Este livro é um manual introdutório para alunos, professores e pesquisadores da Semiótica. Escrito por um dos maiores se
390 86 15MB
Portuguese Brazilian Pages 288 [290] Year 2008
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Sumário
SEMIÓTICA DO DISCURSO
Publicado com o título Sémiotique du Discours pela Presses Universitaires de Limoges (pulim) 39c, rue Camille Guérin F87031 Limoges cedex – França (Tel.: 05 55 01 95 35 – Fax: 05 55 43 56 29) www.pulim.unilim.fr – e-mail: [email protected] “Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication Carlos Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères.” “Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores.”
Jacques Fontanille
SEMIÓTICA DO DISCURSO
Tradução
Jean Cristtus Portela
Copyright© 1999 e 2003 de Jacques Fontanille Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Capa Imagem de síntese criada por J. M. Dischler e D. Ghazanfarpour no M.S.I., Laboratório de Informática da Universidade de Limoges Diagramação Gapp Design Revisão de tradução Daniela Marini Iwamoto Revisão Fernanda Batista dos Santos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Fontanille, Jacques Semiótica do discurso / Jacques Fontanille ; tradução de Jean Cristtus Portela. – 2.ed., 1ª reimpressão. – São Paulo : Contexto, 2019. Título original: Sémiotique du discours. ISBN 978-85-7244-375-3 1. Análise do discurso 2. Semiótica I. Título. 07-6967
CDD-401.41
Índice para catálogo sistemático: 1. Análise do discurso : Comunicação : Linguística 401.41 2019 Editora Contexto Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa 05083-030 – São Paulo – sp pabx: (11) 3832 5838 [email protected] www.editoracontexto.com.br
Proibida a reprodução total ou parcial. Os infratores serão processados na forma da lei.
“[...] de todas as comparações que se poderiam imaginar, a mais demonstrativa é a que se estabeleceria entre o jogo da língua e uma partida de xadrez. De um lado e de outro, estamos na presença de um sistema de valores e assistimos às suas modificações. Uma partida de xadrez é como uma realização artificial daquilo que a língua nos apresenta sob forma natural.” Ferdinand de Saussure
Sumário
Notas do tradutor. ............................................................................................................................ 11 Prefácio à edição brasileira. .......................................................................................................15 Prólogo.......................................................................................................................................................21 Do signo ao discurso.........................................................................................................................29 1. Signo e Significação..................................................................................................31 1.1. A diversidade das abordagens sobre o sentido....................................................31 1.2. As teorias do signo............................................................................................36 2. Percepção e Significação...........................................................................................42 2.1. Elementos para recordar....................................................................................42 2.2. Os dois planos de uma linguagem.....................................................................42 2.3. O sensível e o inteligível....................................................................................47
As estruturas elementares.......................................................................................................... 57 1. As Estruturas Binárias...............................................................................................58 1.1. A oposição privativa..........................................................................................58 1.2. A oposição entre os contrários...........................................................................61 2. O Quadrado Semiótico............................................................................................62 2.1. As relações constitutivas....................................................................................62 2.2. A sintaxe elementar...........................................................................................66 2.3. A polarização axiológica....................................................................................67 2.4. Os termos de segunda geração..........................................................................69 3. A Estrutura Ternária.................................................................................................70 3.1. Os três níveis de apreensão dos fenômenos........................................................70 3.2. As propriedades dos três níveis..........................................................................71 3.3. Os modos de existência.....................................................................................72 4. A Estrutura Tensiva..................................................................................................74 4.1. Problemas em suspenso.....................................................................................74 4.2. Novas exigências...............................................................................................75 4.3. As dimensões do sensível...................................................................................75 4.4. A correlação entre as duas dimensões................................................................76 4.5. Os dois tipos de correlação................................................................................77 4.6. Das valências aos valores...................................................................................79 4.7. Balanço.............................................................................................................82
O discurso.................................................................................................................................................83 1. Texto, Discurso, Narrativa........................................................................................84 1.1. O texto.............................................................................................................84 1.2. O discurso........................................................................................................86 1.3. A narrativa........................................................................................................87 1.4. Texto e discurso................................................................................................88 1.5. Narrativa e discurso..........................................................................................95 2. A Instância de Discurso............................................................................................97 2.1. A tomada de posição.........................................................................................97 2.2. A breagem........................................................................................................98 2.3. O campo posicional........................................................................................100 3. Esquemas Discursivos.............................................................................................108 3.1. Os esquemas de tensão........................................................................................110 3.2. Esquemas canônicos............................................................................................117 3.3. A sintaxe do discurso...........................................................................................133
Os actantes........................................................................................................................................... 147 1. Actantes e Atores....................................................................................................148 1.1. Actantes e predicados......................................................................................148 1.2. Percursos da identidade, papéis e atitudes.......................................................150 1.3. Actantes e atores da frase.................................................................................153 2. Actantes Transformacionais e Actantes Posicionais..................................................156 2.1. Transformação e orientação discursiva.............................................................156 2.2. Os actantes posicionais...................................................................................158 2.3. Os actantes transformacionais.........................................................................161 2.4. Campo posicional e cena predicativa...............................................................165 3. As Modalidades......................................................................................................169 3.1. A modalidade como predicado........................................................................169 3.2. A modalização como imaginário passional......................................................176
Ação, paixão, cognição.................................................................................................................187 1. A Ação...................................................................................................................191 1.1. A reconstrução por pressuposição....................................................................191 1.2. A programação da ação...................................................................................194 2. Paixão.....................................................................................................................204 2.1. A intensidade e a quantidade passionais..........................................................205 2.2. As figuras da dimensão passional do discurso..................................................214 3. Cognição...............................................................................................................225 3.1. Saber e crer.....................................................................................................227 3.2. Apreensões e racionalidades............................................................................229 4. Intersecções e Imbricamentos.................................................................................238 4.1. Imbricamentos................................................................................................238 4.2. O sensível e o inteligível..................................................................................241
A enunciação...................................................................................................................................... 255 1. Recapitulação.........................................................................................................256 1.1. A instância proprioceptiva..............................................................................256 1.2. O campo de presença......................................................................................257 1.3. Os regimes discursivos....................................................................................258 2. Confrontações........................................................................................................258 2.1. Enunciação e comunicação.............................................................................260 2.2. Enunciação e subjetividade.............................................................................261 2.3. Enunciação e atos de linguagem......................................................................267 3. A Práxis Enunciativa...............................................................................................271 4. As Operações da Práxis...........................................................................................275 4.1. As tensões existenciais.....................................................................................275 4.2. O devir existencial dos objetos semióticos.......................................................277 4.3. O devir existencial da instância de discurso.....................................................279 5. A Semiosfera..........................................................................................................282
O Autor. .................................................................................................................................................287 O Tradutor..........................................................................................................................................287
Notas do tradutor
1. Semioticista, Tradutor O semioticista é, por vezes, considerado, nem sempre de forma elogiosa, rara avis da comunidade científica: singular, “exótico” e, se já não bastasse, insaciável. A alegada voracidade da semiótica, ou melhor, das semióticas, parece residir em sua vocação de pesquisa generalista, universalista e, ao mesmo tempo, específica, particularizante. Na sua busca pelo sentido, sem limitar seu campo de estudo a uma linguagem ou código específicos, a semiótica parte da observação dos signos e das redes de relações das quais eles participam e tenta flagrar algo, encontrar um vestígio de padrão, de permanência, de configuração, “cacos” de estrutura nos quais ela imagina ver uma ordem, uma lógica. Do micro ao macro, da parte para o todo, e viceversa, ela procura conhecer mais sobre o sentido ou, simplesmente, fazer sentido – ou fazer signo, como diria J. Fontanille. O tradutor – semioticista à paisana – parece gozar de um estatuto e de uma função semelhantes: partindo de uma língua e de uma cultura que supõem o “todo”, a regra, a unidade, ele deve, no entanto, em seu ofício, lidar com a parte e o fragmento, enfrentar a aparente falta de sentido, significar a exceção, formular hipóteses de leitura, procurando integrá-las ao “todo” por meio de uma boa medida, de uma justa proporção.
Semiótica do discurso
É aí que a atividade do semioticista acha eco na atividade do tradutor ou que, ao contrário, o trabalho do tradutor solicita o trabalho do semioticista. Estando ambos interessados na transposição do sentido, um conjunto comum de preocupações esboça-se em torno dessa convergência. Como fazer para, no processo de transposição, assegurar a conservação da matéria transposta, sua acumulação, descarte e distribuição? Eis um verdadeiro desafio de “logística” semiótica diante do qual aliados, e por vezes sincretizados em um mesmo sujeito, semioticistas e tradutores não podem se dar ao luxo de recuar. 2. Tradutor, Semioticista Neste livro, este tradutor ou, para ser mais preciso, mas correndo o risco de ser redundante, este semioticista que traduz procurou jamais perder de vista o desafio suplementar que a tradução de uma obra de cunho didático impõe para além de sua aparente simplicidade. Sendo o texto didático já um tipo de tradução de um discurso de base, traduzi-lo é sempre uma tarefa delicada que encerra um grande número de escolhas prévias. Assim, as questões de forma ou, simplesmente, de consciência multiplicam-se na medida em que se devem administrar três variáveis que estão indissociavelmente interligadas no texto didático: a teoria propriamente dita, o teórico-didata e seu público leitor. Em nome do público leitor, ou melhor, de uma ideia que dele faço – e que, de certa forma, é a ideia que faço de mim, de acordo com uma fórmula semiótica já consagrada –, fiz uma opção clara pela simplicidade e pela legibilidade. Isso não equivale a dizer que “pasteurizei” Jacques Fontanille, conhecido pela prosa elegante e, muitas vezes, de difícil acesso. Seu leitor contumaz notará que Semiótica do discurso é uma exceção no conjunto de sua obra. Na verdade, tive o privilégio de traduzir um texto absolutamente econômico e objetivo, que põe em prática a maior parte das formas textuais, discursivas e retóricas que chamamos didáticas (a explanação progressiva, a reiteração, a ilustração, a advertência, a cumplicidade e a prudência sedutoras, a recapitulação, a sugestão etc.). Só fiz seguir as marcações do autor, procurando recuperar seu tom e suas expectativas, para tentar obter um
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Notas do tradutor
texto que fosse suficientemente legível e que, assim, reencontrasse, a seu modo, o texto original. 3. Uso de Notas, Adaptação de Exemplos, Agradecimentos Tanto quanto possível, procurei poupar o leitor de notas de tradução que, como se sabe, têm a fama (merecida?) de, em certos casos, dificultar ainda mais sua vida. Empreguei-as apenas quando julguei imprescindível fazê-lo, sobretudo quando tive que comentar termos semióticos que já possuem uma tradução corrente ou quando me vi levado a estabelecer, eu mesmo, uma primeira tradução de um termo. Procurei aclimatar, sempre que possível (ou necessário), os exemplos empregados pelo autor à língua e à cultura brasileiras, ilustrando os casos mais complexos por meio de notas de tradução, para permitir que o leitor tivesse acesso tanto ao exemplo em língua portuguesa quanto ao exemplo original. Quanto às referências literárias, que são muitas e em sua maioria de autores franceses, privilegiei as traduções brasileiras existentes dos textos citados e adotei um procedimento mínimo de inserção de contextualização (nome do autor, gênero da obra, elemento do enredo etc.), na maior parte das vezes diretamente no texto para não prejudicar a fluidez da leitura. Sem pretender fazer uma lista de agradecimentos exaustiva, faço, aqui, justiça a todos aqueles que contribuíram para a realização desta tradução e que são, sem dúvida, os grandes responsáveis pelos acertos deste texto – sendo suas imperfeições de minha inteira responsabilidade. Primeiramente, gostaria de expressar minha gratidão a Jacques Fontanille, sempre pronto a responder às minhas questões, a fornecer-me pistas e, sobretudo, a fazer concessões quanto à tradução e à adaptação de seu texto. Sou muitíssimo grato aos pesquisadores que, quer solucionando minhas dúvidas, quer emprestando-me obras ou indicando-me referências bibliográficas, tiveram neste livro um papel efetivo: Arlindo Machado, Arlindo Rebechi Jr., Arnaldo Cortina, Cidinha Zuin, Fernando Brandão dos Santos, Lucia Santaella, Marcelo Carbone Carneiro, Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, Marilena Chaui e Tae Suzuki. Agradeço também a Matheus Nogueira Schwartzmann pela paciência com que me ajudou a preparar os originais da tradução, lendo meu texto e
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Semiótica do discurso
fazendo-me sugestões sempre acertadas. Seria preciso, ainda, registrar minha gratidão pelos colegas Óscar Quezada Macchiavello e Heidi Bostic, tradutores de Semiótica do discurso, respectivamente, para o espanhol e para o inglês. Suas competentes versões da obra de Fontanille foram de grande utilidade, oferecendo-me o contraponto ideal de que nem sempre o tradutor dispõe. Por fim, gostaria de agradecer também a Luciana Pinsky, bem como a toda a equipe da Editora Contexto, que, paciente e gentilmente, acolheu a proposta inicial desta tradução e orientou-me ao longo de todo o processo editorial. Jean Cristtus Portela
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Prefácio à edição brasileira
A publicação da tradução brasileira de Semiótica do discurso, oito anos depois da primeira edição francesa, é uma boa ocasião para se formular uma questão elementar: uma semiótica do discurso ainda é útil nos dias de hoje? Sentimo-nos no direito de formular tal questão quando consultamos, por exemplo, o Dicionário de análise do discurso, de Charaudeau e Maingueneau,1 e descobrimos que a maior parte das noções que orientam o campo da semiótica do discurso foram nele incluídas. Nesse dicionário podemos encontrar, para citar somente algumas entradas do começo da obra, os seguintes verbetes: actante, ato de linguagem, ator, coerência e coesão, conotação, embreagem e debreagem, dialogismo, emoção, enunciação etc. Se a análise de discurso integrou os conceitos semióticos, haveria ainda um lugar para a semiótica do discurso? Obviamente, a resposta seria negativa se a análise de discurso, constituindo-se como campo disciplinar emergente, houvesse também integrado o próprio projeto semiótico. Ora, sabe-se que não é esse o caso, na medida em que a análise de discurso trata da análise em geral (sem que esse termo seja, de fato, definido) e não especificamente da construção da significação discursiva. Recorrendo a apenas dois exemplos, os casos da embreagem/debreagem e da emoção, constata-se que a abordagem típica
Semiótica do discurso
da análise de discurso concerne ao mesmo tempo, tanto em um caso como no outro, (1) ao inventário das diferentes manifestações no plano da expressão e (2) às diferentes funções que cada uma dessas manifestações ocupa na troca comunicacional. Diferentemente da semiótica, a análise de discurso não tem por objetivo especificamente, por exemplo, a compreensão e a interpretação das emoções e aquilo que há de busca e construção do sentido em sua manifestação discursiva. Portanto, a semiótica do discurso tem ainda um lugar no campo das ciências da linguagem, o que se deve tão somente à preocupação semântica que a caracteriza e a diferencia de todas as outras abordagens provenientes da análise de discurso. Diante disso, é preciso então se perguntar se a semiótica do discurso é algo mais do que uma semântica. O projeto de uma semântica discursiva (e não textual) já havia sido constituído, há não muito tempo, por Benveniste, e é desse projeto que a obra de Jean-Claude Coquet nasceu e que uma parte da obra de Algirdas Julien Greimas tomou forma. Releiamos Benveniste: A linguagem reproduz a realidade. Isso deve entender-se da maneira mais literal: a realidade é produzida novamente por intermédio da linguagem. Aquele que fala faz renascer pelo seu discurso o acontecimento e a sua experiência do acontecimento. Aquele que o ouve apreende primeiro o discurso e, através desse discurso, o acontecimento reproduzido. Assim a situação inerente ao exercício da linguagem, que é a da troca e do diálogo, confere ao ato de discurso dupla função: para o locutor, representa a realidade; para o ouvinte, recria a realidade.2
Se o texto e seus constituintes não contraem relação de pertinência com a realidade, o mesmo não se dá com o discurso, e a questão que surge, então, consiste em saber se os processos significantes são os mesmos para um texto que não tem relação com a realidade e para um discurso cuja principal função é “re-produzir” e “re-criar” a realidade. Em outras palavras, estabelecendo um elo entre o acontecimento primeiro, a experiência que dele se originou e a experiência produzida pela reprodução desse acontecimento, o discurso adquire um “sentido” que não pode ser reduzido às unidades linguísticas que ele emprega? A questão pode ainda ser reformulada deste modo: qual significação específica se constrói ao longo 16
Prefácio à edição brasileira
desse processo de reconfiguração da experiência, entre a experiência vivida, a experiência manifestada no discurso e a experiência suscitada pelo discurso? É verdade que em Benveniste, quando se aborda o domínio do discurso, deixa-se o campo semiótico (aquele dos signos e da significação) para entrar no campo da comunicação.3 No entanto, uma semântica desse novo domínio parece possível, uma semântica que não se reduz apenas às funções que os enunciados linguísticos desempenham na troca e no diálogo. Quando Benveniste estuda, por exemplo, a “natureza dos pronomes”, ele esclarece que “o problema dos pronomes é ao mesmo tempo um problema de linguagem e um problema de línguas, ou melhor, [...] só é um problema de línguas por ser, em primeiro lugar, um problema de linguagem [e de] ‘instâncias de discurso’[...]”.4 Se uma semântica dessas “instâncias de discurso” é possível, é justamente porque o ato de discurso é, em si mesmo, produtor de “significância” (Benveniste reserva “significação” ao sentido das unidades da língua). Esse sentido discursivo é ativado na apropriação da língua pela enunciação, nessa “atualização” pela qual todas as novas articulações significantes assim produzidas serão chamadas “atuais”. Em suma, pode-se apreender o sentido do discurso somente na atualidade que define o ato de discurso. O projeto da semiótica do discurso está assim delimitado: a enunciação carrega em si uma semiose em ato e é dessa semiose que deve a semiótica do discurso tratar. Para Benveniste, a semântica discursiva não pode se reduzir ao “quadro figurativo” da enunciação, ao qual, no entanto, ele consagrou a maior parte de suas contribuições, pois o desafio é bem mais abrangente: é o desafio da “semantização da língua”.5 Portanto, a semiótica do discurso é uma semiótica do particular, do atualizado e do individual. Todavia, ela é também uma esquematização que aspira à generalidade, ao menos por meio de seus conceitos e métodos. E a grande dificuldade consiste em – ainda que as exigências da teoria e da metalinguagem levem à generalidade – não esquecer que essas generalidades dizem respeito a fatos particulares e a discursos concretos. Eis por que o livro que é aqui proposto em tradução foi concebido paralelamente a um outro, que o completa e o põe em prática: Sémiotique et littérature [Semiótica e literatura],6 volume composto por uma série de 17
Semiótica do discurso
estudos concretos que tratam sobre algumas configurações típicas da semiótica do discurso e consagrado a obras ou fragmentos de obras literárias. No entanto, apenas o interesse por análises concretas não é suficiente para ancorar definitivamente a semiose na atualidade do ato, não mais do que os desenvolvimentos concernentes à enunciação e às três principais dimensões sintagmáticas do discurso, a ação, a paixão e a cognição, que são temas obrigatórios aos quais este livro, agora lançado em tradução brasileira, confere toda a atenção necessária. De acordo com as prescrições de Benveniste, a atualidade da semiose discursiva pode-se fundar somente sobre o exame atento dos procedimentos de conversão da experiência em linguagem e da linguagem em experiência. Desse modo, será na experiência sensível, encarnada em um corpo enunciante, que os dois planos da linguagem, a expressão e o conteúdo, serão instaurados solidariamente a partir das primeiras impressões significantes exteroceptivas e interoceptivas, respectivamente. Todavia, a solidariedade entre esses dois tipos de impressões e entre os dois planos da linguagem só se deve a um único princípio: seu enraizamento comum em um terceiro tipo de impressões, as proprioceptivas, impressões do próprio corpo enquanto corpo sensível. Desse primeiro gesto, assim como dessa solidariedade proprioceptiva entre os dois planos da semiose, vão se originar todos os outros, especialmente o controle tensivo imposto à formação dos valores, da actância,* das paixões e, de uma forma mais abrangente, da organização sintagmática do discurso, de seus esquemas rítmicos, prosódicos e axiológicos. Jacques Fontanille
* N.T. (Nota de tradução): No original, actance.
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Prefácio à edição brasileira
Notas 1
P. Charaudeau e D. Maingueneau (orgs.), Dicionário de análise do discurso, trad. Fabiana Komesu et al, 2. ed., São Paulo, Contexto, 2006.
2
É. Benveniste, Problemas de linguística geral i, trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri, 4. ed., Campinas, Pontes, 1995, p. 26.
3
Idem, p. 139.
4
Idem, p. 277.
5
É. Benveniste, Problemas de linguística geral ii, trad. Eduardo Guimarães et al., Campinas, Pontes, 1989, p. 83.
6
J. Fontanille, Sémiotique et littérature: essais de méthode, Paris, puf, 1999.
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Prólogo
Este manual destina-se a estudantes de graduação e pós-graduação e também a todos aqueles que, já um pouco informados a respeito das teorias e métodos próprios às ciências da linguagem, se interessam pela teoria da significação. Este livro, na verdade, propõe uma síntese das aquisições da pesquisa em semiótica. Outros manuais de semiótica, concebidos e publicados ao longo dos anos 1970 e 1980, já oferecem uma visão de conjunto da disciplina, na perspectiva da análise estrutural de textos. Em resumo, o presente manual pretende apresentar “o que aconteceu” desde então, nos anos 1980 e 1990, conservando como pano de fundo as aquisições anteriores. Essas diferentes pesquisas desenvolveram-se, certamente, em perspectivas quase sempre divergentes, por vezes até mesmo francamente polêmicas. Considerar a possibilidade de fazer a síntese dessas diferenças significa, consequentemente, aceitar apagar em parte tais divergências para conservar somente as grandes linhas de convergência. É também deixar de levar em conta certas proposições mais difíceis de serem integradas. Cada uma das pesquisas aqui exploradas – especialmente as de Denis Bertrand, Jean-François Bordron, de Jean-Claude Coquet, de Jean-Marie Floch, de Jacques Geninasca, de Claude Zilberberg – perderá em especificidade certamente, mas a disciplina
Semiótica do discurso
no seu conjunto ganhará, assim esperamos, em “legibilidade”, como se diz hoje em dia. O que aconteceu afinal? Nos anos 1960, a Semiótica constituiu-se como um ramo das ciências da linguagem na confluência da linguística, da antropologia e da lógica formal. Como todas as outras ciências da linguagem, a semiótica atravessou o período dito “estrutural”, do qual ela saiu dotada de uma teoria forte, de um método coerente... e de alguns problemas não resolvidos. O período estruturalista ficou para trás, o que não significa, entretanto, que as noções de “estrutura” e de “sistema” não tenham mais pertinência. O contexto no qual evoluem hoje as ciências da linguagem é completamente outro: as estruturas tornaram-se “dinâmicas”, os sistemas se auto-organizam, as formas inscrevem-se em topologias e o campo das pesquisas cognitivas ocupou, estejamos de acordo ou não, o lugar do estruturalismo em sentido restrito. Em muitos aspectos, essa mudança ainda é superficial, não modificando profundamente as hipóteses e os métodos que, para além das modas intelectuais, definem em profundidade o espírito das ciências da linguagem. Todavia, solidária a seus vizinhos mais próximos, a semiótica encontrou, ao longo dos quinze últimos anos, e ainda encontra hoje em dia novas questões: ela descobre novos campos de investigação e desloca progressivamente seus centros de interesse. De um ponto de vista geral, uma episteme pode ser considerada como uma hierarquia de sistemas que organiza o campo do saber. Contudo, do ponto de vista de uma disciplina específica, uma episteme é também um princípio de seleção e de regulação do que se deve, em uma época dada, ser considerado como pertinente e “científico” para essa disciplina. Assim, a mudança adquire, às vezes, o caráter de uma abertura das perspectivas, quando não o de uma transgressão consensual das coerções epistemológicas. O que era proibido é então questionado e torna-se novamente possível; o que era excluído volta ao domínio das preocupações. A “inovação” teórica e metodológica é, frequentemente, apenas um efeito de sentido do esquecimento ou de uma exclusão categórica anterior. Portanto, a prudência recomenda que evitemos, com afinco, decretar rupturas epistemológicas e mudanças de paradigmas quando estamos diante, simplesmente, de um “retorno do recalcado”. 22
Prólogo
Renovar não é, portanto, renegar. Por exemplo: o estruturalismo postulou como princípio que somente os fenômenos descontínuos e as oposições chamadas “discretas” são inteligíveis e pertinentes. Isso sem considerar os processos de emergência e instalação desses fenômenos e dessas oposições, processos ao longo dos quais os fenômenos atravessam fases em que as modulações contínuas e as tensões graduais predominam. Do ponto de vista da língua, concebida como um sistema abstrato e fechado, essas fases anteriores não são pertinentes. No entanto, o discurso e sua enunciação não são o único reflexo da língua e de seu sistema: eles compreendem, antes de tudo, os processos de emergência e de esquematização do sistema e, principalmente, os processos que o formam a partir da percepção do mundo sensível. Hoje, portanto, relativizaríamos o propósito original e diríamos que, certamente, só as descontinuidades são inteligíveis, mas estas só o são completamente se levarmos em conta os processos que conduzem a elas. Isso significa que os processos são “pertinentes” tanto quanto as oposições discretas que deles resultam. Um outro exemplo. A semiótica estrutural, como as outras disciplinas de inspiração estruturalista, fazia o elogio da formalização. O formalismo, que se apresenta, dentre outras maneiras, sob a forma de um sistema de notação simbólica, explícita e codificada, traduz o caráter puramente conceitual, fixo e acabado das formas descritas. Mas, como dissemos anteriormente, essas formas acabadas passaram por outras fases, nas quais elas eram ainda instáveis e em devir. Além do mais, ao longo dessas fases anteriores, elas adquiriram propriedades “sensíveis” e “impressivas” que, em seguida, a formalização as faz perder. O formalismo simbólico não é, portanto, mais adaptado a essas novas preocupações. A “forma”, é claro, permanece sendo o objetivo a ser alcançado, assim como sua descrição mais explícita possível; no entanto, nesse exercício, a representação topológica, por exemplo, tomará vantajosamente o lugar da notação simbólica. De uma maneira geral, é preferível uma esquematização da significação em devir do que uma formalização acabada. Todas as ciências da linguagem que buscaram dar conta, ao mesmo tempo, das formas e das operações que as suscitam, que quiseram levar em consideração as fases do processo tanto quanto seu resultado, foram obrigadas 23
Semiótica do discurso
a mudar. As posições em um espaço abstrato – deformável, mas controlado por parâmetros conhecidos – substituem, a partir de agora, as sequências de símbolos e seus correlatos terminológicos. O que aconteceu nos anos 1980 e 1990 foi também, e acima de tudo, o aparecimento de novos temas de pesquisa que haviam sido antes quase sempre descartados. Sim, descartados, pois mesmo que dissessem respeito perfeitamente à semiótica como disciplina foram excluídos de seu campo de interesse em nome dos princípios do estruturalismo. A objetividade científica proibia, por exemplo, o interesse pelo implícito e pelos subentendidos do discurso. No entanto, esses temas foram reintroduzidos ao longo dos anos 1980, no movimento inspirado, de um lado, pela pragmática e, de outro, pela linguística da enunciação. Isso não contradiz o fato de que, desde os anos 1930, Bakhtin já opunha à linguística formal o estatuto implícito e subentendido do sentido preciso daquilo que ele chamava de “enunciado” e da orientação axiológica e ideológica do discurso. Um dos pecados capitais da prática científica para o estruturalismo era o “mentalismo”. Desse modo, encontravam-se excluídas do campo da reflexão científica a impressão subjetiva, a introspecção, a psicologia intuitiva etc. e, consequentemente, tudo o que de perto ou de longe parecesse atestar esses erros do pensamento. Gustave Guillaume era, muitas vezes, rejeitado por inscrever no psiquismo do sujeito de linguagem o “tempo operativo”, necessário, segundo ele, à formação das realidades linguísticas. Noam Chomsky era tenazmente questionado por atribuir os julgamentos de gramaticalidade à intuição dos sujeitos falantes – na verdade, à introspecção dos linguistas profissionais. Gérard Genette recusava, por fim, a noção de “ponto de vista” por ser dependente demais da psicologia da percepção. Compreende-se, assim, por que a semiótica levou algum tempo para redescobrir as emoções e as paixões, a percepção e seu papel na significação, as relações com o mundo sensível e sua conivência para com a fenomenologia. No entanto, ninguém duvida de que os discursos concretos encenem acontecimentos e estados afetivos e que a percepção organize as descrições e os ritmos textuais. A semiótica levou algum tempo para abordar tais fenômenos, pois era preciso descobrir os meios para tratar todos esses temas como propriedades do discurso, e não como propriedades do “espírito”, como 24
Prólogo
temas próprios a uma teoria da significação, e não a um ramo da psicologia cognitiva. Os fenômenos eram reconhecidos, faltava construí-los como objetos de conhecimento do ponto de vista da semiótica do discurso. Aparentemente, tais conquistas são irrevogáveis: agora se pode falar de paixões e de emoções discursivas da mesma forma que se pode falar de enunciação do discurso ou de uma lógica narrativa ou argumentativa do discurso. E isso sem, para tanto, reduzir o discurso ao estatuto de um simples sintoma, revelador de um estado psíquico que lhe seria exterior. A semiótica, que fez do discurso não somente seu domínio de exploração, mas, melhor ainda, o objeto de seu projeto científico, tem hoje a capacidade de abordar essas novas questões sem renunciar, para tanto, o que a inaugura como uma disciplina autônoma. Nós não insistiremos aqui por mais tempo sobre essas novas preocupações: esses diferentes aspectos já foram evocados em outros trabalhos ou serão amplamente tratados mais adiante. Gostaríamos somente de recordar duas dimensões essenciais desse deslocamento de interesse: (1) um deslocamento do interesse para as estruturas, em direção às operações e aos atos, e (2) um deslocamento das oposições discretas, em direção às diferenças tensivas e graduais. O primeiro deslocamento conduz a uma sintaxe geral das operações discursivas. Desse modo, considerar-se-á o universo da significação mais como uma práxis do que como um amontoado estável de formas cristalizadas. O segundo deslocamento conduz a uma semântica das tensões e das gradações que é compatível, embora concorrente, com a semântica diferencial clássica. Este livro é um manual, dizíamos nós. Ora, um manual deve obedecer a alguns princípios de base que deveriam facilitar o acesso aos resultados apresentados: as aquisições da pesquisa devem aparecer sob uma forma sistemática e coerente, explícita e operatória. Entretanto, na maioria das vezes, deixa-se ao tempo a responsabilidade do trabalho, e aos didatas e pedagogos a missão de recolher os resultados dessa experiência. A consequência direta desse fato é que, frequentemente, as aquisições da pesquisa são utilizadas no ensino somente dez ou quinze anos depois. Aqui corremos o risco de não esperar que o tempo trabalhe em nosso lugar. Realmente trata-se de um risco, pois o tempo valida ou invalida, 25
Semiótica do discurso
conserva ou relega ao esquecimento, hipóteses e proposições da pesquisa. O tempo filtra, tria e constrói pouco a pouco as condições de uma coerência, de uma sistematicidade e de uma explicitação completa. Logo, precisaremos, nós também, filtrar, triar, conservar e rejeitar – e organizar. Na falta do tempo, adotaremos, para tanto, um ponto de vista. É a escolha de um ponto de vista de conjunto, sustentado com perseverança, que conferirá à nossa tentativa de síntese sua coerência, sua sistematicidade e seu caráter explícito. Esse ponto de vista será o do discurso em ato, do discurso vivo, da significação em devir. Essa escolha será, inicialmente, apresentada e justificada no capítulo “Do signo ao discurso”. Escolher o ponto de vista do discurso em ato é, na verdade, mais do que observar e segmentar unidades mínimas: é escolher observar a maneira pela qual a práxis semiótica esquematiza nossa experiência para fazer dela linguagens. A semiótica como nós a concebemos, na perspectiva definida por Greimas há mais de trinta anos, é a dos conjuntos significantes, mas dos conjuntos significantes em construção e em devir. Nossa escolha será posta em prática, em seguida, no que diz respeito às formas de base das quais toda teoria semiótica deve dotar-se: as estruturas elementares. Na verdade, se a unidade pertinente da semiótica do discurso não pode ser o signo, é porque ela está à procura do sistema de valores que organiza cada “conjunto significante”. Aqui esse sistema de valores assume a forma da estrutura tensiva. No capítulo “O discurso”, examinaremos todas as consequências da escolha proposta. Também proporemos uma representação global do discurso como campo (uma forma topológica), bem como o exame de diferentes tipos e níveis de esquematização, esquemas de tensão e esquemas canônicos. Em “Os actantes” e “Ação, paixão, cognição”, outras consequências serão extraídas de nossa escolha inicial acerca de temas que já são clássicos da teoria semiótica. Com relação à teoria actancial, mostraremos que a concorrência entre duas lógicas, a lógica dos lugares e a lógica das forças, leva-nos a distinguir os actantes posicionais do discurso e os actantes transformacionais da narrativa. Acerca das grandes dimensões do discurso, mostraremos em que a perspectiva do discurso em ato modifica as lógicas respectivas da ação, da paixão e da cognição. 26
Prólogo
Por fim, o capítulo de conclusão empenhar-se-á em postular um lugar para o conceito de enunciação. De fato, esse conceito não conheceu poucos dissabores. Depois de ter sido “esquecido” pelo estruturalismo, ele se tornou preponderante nas linguísticas pós-estruturais. Até mesmo as reflexões de Guillaume converteram-se mais tarde em teoria enunciativa. Depois de ter sido bem pouco, a enunciação seria “tudo” – tudo o que não é redutível a um sistema fechado e cristalizado. Assim, por vezes, o sujeito da enunciação é identificado estritamente com a instância de discurso em geral. Explicar tudo, como bem se sabe, equivale a nada explicar. Eis por que, para concluir, seguindo sempre a perspectiva do discurso em ato, nós nos empenharemos em tornar mais preciso o conceito de enunciação.
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Do signo ao discurso
Na história das teorias da significação, ao final do século xix, com Peirce, e no começo do século xx, com Saussure, nasce uma nova disciplina, a semiótica, que se ocupa da tipologia dos signos e dos sistemas de signos. Entretanto, hoje, essa disciplina orienta-se fortemente em direção a uma teoria do discurso e volta seu interesse para os conjuntos significantes. Este capítulo propõe reexaminar as teorias do signo sob essa nova ótica. O que se pode conservar das teorias da significação na perspectiva de uma semiótica do discurso? O que acontece quando se coloca entre parênteses a questão das unidades mínimas da significação? E quando se substitui tal questão pelo problema dos conjuntos significantes e dos atos que produzem os discursos? Chega-se, então, à conclusão de que a percepção e a sensibilidade ressurgem nos estudos semióticos. 1. Signo e Significação Na grande diversidade de concepções sobre o sentido, ao menos uma constante delineia-se: distingue-se quase sempre a significação como produto, como relação convencional ou já estabelecida, da significação em ato, da significação viva, que parece sempre ser mais difícil de apreender. Entretanto, apesar da dificuldade, é a segunda perspectiva que nós escolheremos, pois o campo de exercício empírico da Semiótica é o discurso, e não o signo: a unidade de análise é um texto, seja ele verbal ou não verbal. As teorias do signo, examinadas dessa perspectiva, fazem surgir quatro propriedades principais da significação. De Saussure aproveitaremos somente, de um lado, a coexistência de dois “mundos”, o mundo interior dos significados e o mundo exterior dos significantes, e, de outro, a definição da significação
Semiótica do discurso
como sistema de valores. Ademais, de Peirce, aproveitaremos, sobretudo, a primazia do interpretante, isto é, do ponto de vista que orienta a visada* sobre o sentido, e a importância do fundamento, que impõe os limites de um domínio de pertinência na apreensão da significação. 2. Percepção e Significação Os dois planos da linguagem substituem, a partir de agora, as duas faces do signo. Sejam quais forem os nomes que se lhes dê, os dois planos da linguagem são separados por um corpo perceptivo que toma posição no mundo do sentido, que define, graças a essa tomada de posição, a fronteira entre o que será da ordem da expressão (o mundo exterior) e o que será da ordem do conteúdo (o mundo interior). É também esse corpo que reúne esses dois planos em uma mesma linguagem. Portanto, o sensível e o inteligível estão irremediavelmente ligados no ato que reúne os dois planos da linguagem. A semiótica do discurso, assim como as ciências cognitivas, não pode mais ignorar a interação do sensível e do inteligível. Na verdade, a formação das categorias e a significação em ato são elas próprias submetidas ao regime do sensível. A semântica do protótipo ensina-nos, entre outras coisas, que pode haver “estilos” de categorização, e nós mostraremos que a diferença entre esses diferentes estilos repousa sobre o peso que eles atribuem, respectivamente, ao sensível e ao inteligível.
* N.T.: No decorrer de toda a obra, as traduções adotadas para “viser” (verbo), “visé(e)” (adj.) e “visée” (subs.) serão, respectivamente, “visar” (como verbo transitivo direto), “visado(a)” e “visada”, salvo nos casos em que o vocábulo “viser”, desprovido de sua especificidade metalinguística, venha a ser empregado como expressão corrente da língua, no sentido exclusivo de “ter por fim ou objetivo”. Com isso, busca-se evidenciar a espessura teórica desses termos, originários do vocabulário da fenomenologia e muito frequentes, sobretudo, nas traduções francesas de Edmund Husserl e em alguns textos de Maurice Merleau-Ponty.
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Do signo ao discurso
1. Signo e Significação 1.1. A diversidade das abordagens sobre o sentido 1.1.1. Sentido, significação e significância
Dispõe-se de três termos para designar os fenômenos semióticos em geral: sentido, significação e significância. 1.1.1.1. O sentido
O sentido é, em primeiro lugar, uma direção: dizer que um objeto ou uma situação tem um sentido é, na verdade, dizer que eles tendem a algo. Essa “tendência a” e essa “direção” muitas vezes foram interpretadas, erroneamente, como pertencentes à referência. Na realidade, a referência é apenas uma das direções do sentido. Outras direções são possíveis. Por exemplo, um texto pode tender a sua própria coerência e é isso que nos faz compreender o seu sentido; ou, ainda, uma forma qualquer pode tender a uma forma típica já conhecida e é isso que nos permitirá atribuir-lhe um sentido. Portanto, o sentido designa um efeito de direção e de tensão mais ou menos conhecível, produzido por um objeto, uma prática ou uma situação quaisquer. O sentido é, afinal, a matéria amorfa da qual se ocupa a semiótica, que se esforça para organizá-la e torná-la inteligível. Tal “matéria” (purport, na obra de L. Hjelmslev em inglês) pode ser de natureza física, psicológica, social ou cultural. Todavia essa matéria não é nem inerte e nem somente submissa às leis do mundo físico, psicológico ou social, já que ela é trespassada por tensões e direções que constituem, do mesmo modo, apelos à significação, pressões ou resistências para um interpretante. A condição mínima para que uma “matéria” qualquer produza um efeito de sentido identificável é, portanto, que ela possua o que nós chamaremos, daqui em diante, uma morfologia intencional. 1.1.1.2. A significação
A significação é o produto organizado pela análise. É o caso, por exemplo, do conteúdo de sentido atribuído a uma expressão a partir do momento em 31
Semiótica do discurso
que essa expressão foi isolada (por segmentação) e que se verificou que esse conteúdo lhe é especificamente inerente (por comutação). Portanto, a significação diz respeito a uma unidade, não importa qual seja seu tamanho – lembremos que para nós a unidade ideal é o discurso –, e repousa na relação entre um elemento da expressão e um elemento do conteúdo. Por isso, fala-se sempre em “significação de... algo”. Consequentemente, dir-se-á que a significação, por oposição ao sentido, é sempre articulada. De fato, na medida em que ela é somente reconhecível após sua segmentação e comutação, só se pode apreendê-la por meio das relações que a unidade isolada mantém com as outras unidades, ou que sua significação mantém com outras significações disponíveis para a mesma unidade. Assim como a noção de “direção” é indissociável do sentido, a noção de articulação é, por definição, relacionada à significação. Por muito tempo reduziu-se a noção de articulação à noção de diferença e, até mesmo, de diferença entre unidades descontínuas. Entretanto, esse é somente um dos casos possíveis. Por exemplo: uma categoria semântica como o calor é uma categoria gradual, e seus diferentes graus (isto é: frio/gelado) distinguem-se sem necessariamente opor-se. Um exemplo mais preciso: se o gradiente é orientado, a significação de alguns de seus graus, por exemplo, morno, será diferente no caso de o gradiente ser orientado positivamente para o quente (morno é então pejorativo) ou positivamente para o frio (morno é então meliorativo). Vê-se que a significação depende da polarização de um gradiente. Além disso, segundo a cultura e a língua, às vezes até mesmo de acordo com o discurso em questão, a posição relativa do polo frio ou quente muda. Desse modo, o grau morno aparecerá como mais próximo do polo frio ou do polo quente. Se se percorre o gradiente no sentido de sua polaridade, do negativo para o positivo, encontra-se então um limiar que determina o surgimento do grau morno. Portanto, os tipos de articulações significantes são bem diversos: oposições, hierarquias, graus, limiares e polarizações. 1.1.1.3. A significância
A significância designa a globalidade dos efeitos de sentido em um conjunto estruturado, efeitos estes que não podem ser reduzidos aos das unidades que compõem o conjunto. Portanto, a significância não é a soma das significações. Este termo teve numerosas acepções, especialmente psicanalíticas, cujo valor operatório é dificilmente controlável. Entretanto ele suscita principalmente 32
Do signo ao discurso
uma questão de método: deve-se conduzir a análise das unidades menores em direção às maiores ou o contrário? O conceito de significação, em sentido restrito, corresponderia à primeira opção, e o de significância, à segunda opção. O termo significância não é quase mais utilizado, pois ele pressupõe uma hierarquia que não é mais pertinente hoje em dia. Na verdade, essa hierarquia se justificaria somente em um contexto científico no qual ainda se acreditasse que o sentido das unidades determina o sentido dos conjuntos mais amplos que as englobam. A escolha que fizemos, que foi por uma semiótica do discurso, obriga-nos a considerar que a significação global, a do discurso, rege a significação local, a significação das unidades que o compõem. Mostraremos, por exemplo, como a orientação discursiva impõe-se à própria sintaxe das frases. Isso não significa, entretanto, que a microanálise não tenha mais pertinência, mas que ela deve simplesmente permanecer sob o controle da macroanálise. Como hoje não se acha mais muita gente que acredite que o “local” determina o “global”, o termo significação adquiriu agora, na maior parte dos casos, uma acepção genérica, englobando o termo significância. É dessa forma que nós vamos empregá-lo. 1.1.2. Semiótica e semântica
Benveniste propunha distinguir duas dimensões da significação: a dimensão das unidades da língua, de tipo convencional, fixada pelo uso ou pelo sistema da língua, e a dimensão do discurso, isto é, das realizações linguísticas concretas, dos conjuntos significantes, produzidos por um ato de enunciação. A dimensão semiótica corresponderia, segundo ele, à relação convencional que liga o sentido das unidades da língua e sua expressão morfológica ou lexical, e a dimensão semântica equivaleria à significação das enunciações concretas, assumidas por “instâncias de discurso”. Essa distinção não foi adotada pela comunidade dos linguistas, que reservam a denominação semântico ao estudo dos conteúdos em si, especialmente no domínio linguístico, e a denominação semiótico ao estudo dos processos significantes em geral. Contudo a questão formulada é ainda atual: como se viu anteriormente, além das relações entre o “local” e o “global”, é a questão das duas formas de abordagem da linguagem que surge neste 33
Semiótica do discurso
momento. De um lado, uma abordagem estática, que só diz respeito às unidades instituídas, estocadas em uma memória coletiva sob a forma de um sistema virtual; de outro, uma abordagem dinâmica, isto é, sensível aos atos e às operações e que diz respeito à significação “viva” produzida pelos discursos. A semiótica originária dos trabalhos de Peirce também propôs distinguir a semântica (significação das unidades), a sintaxe (as regras de combinação das unidades) e a pragmática (a manipulação das unidades e de suas combinações por sujeitos e para sujeitos individuais e coletivos em situação de comunicação). A solução é diferente, mas a questão abordada é idêntica: o discurso é simplesmente uma “concretização”, uma “apropriação individual” das unidades instituídas e organizadas em sistemas ou, na verdade, ele comporta suas próprias regras e seus próprios efeitos de sentido? No entanto, se adotamos o ponto de vista do discurso em ato, a distinção entre semântica, sintaxe e pragmática revela-se pouco pertinente do ponto de vista do método. De fato, é preciso que, tendo considerado de perto as operações enunciativas, possamos irradiar suas consequências na sintaxe e na semântica do discurso. Portanto, nessa perspectiva, elas não podem ser tratadas separadamente.
1.1.3. Por que escolher?
A solução que consiste em separar a questão do sentido em duas ou três dimensões de significação não pode ser mais do que uma solução provisória, uma solução histórica necessária, mas que se depara rapidamente com questões que ela tem alguma dificuldade em resolver. Por exemplo: todos estão de acordo com a distinção do “sentido na língua” de uma unidade e de seu “sentido no discurso”. Essa distinção não acarreta problemas insuperáveis enquanto o “sentido no discurso” for uma das acepções possíveis do “sentido na língua”; dirse-ia, então, que o discurso seleciona uma das acepções da palavra. No entanto, o que acontece quando as duas significações não coincidem mais? Evidentemente, um “sentido no discurso” que não está previsto na língua exige um esforço de interpretação suplementar e um outro procedimento de interpretação, diferente daquele que consiste somente em extrair interpretações de um estoque virtual, mas igualmente possível e legítimo. Muito frequentemente, mas não necessariamente, essa nova acepção é produzida por uma figura de retórica. Acontece até mesmo de algumas dessas acepções retornarem à língua, por exemplo, sob a forma de catacrese (o bico da chaleira, a asa da xícara). 34
Do signo ao discurso
Essa última observação indica claramente o nível de pertinência das distinções que mencionamos até agora: trata-se de procedimentos de codificação e decodificação das linguagens, operação fácil ou difícil, automatizada ou mais elaborada, conforme o sentido das unidades seja ou não conhecido. Contudo essas distinções, entre as várias modalidades de codificação e decodificação das linguagens, não nos dizem nada sobre o processo de significação em si, como ele é concretizado pelos atos do discurso. Além do mais, o raciocínio não deve, quanto a isso, embasar-se somente na linguagem verbal, que dispõe de um vasto estoque de formas codificadas, pois, a partir do momento em que se consideram as linguagens não verbais – gestuais, visuais etc. –, realmente se é obrigado a admitir que nelas o papel da invenção, pelo discurso, das expressões e de sua significação é bem maior, pois, do ponto de vista da organização das unidades no sistema, as linguagens estão longe de ser homogêneas. Se podemos estabelecer as “línguas” de uma linguagem verbal, estamos bem longe de fazer o mesmo no que diz respeito à pintura, à ópera ou à gestualidade em geral, que, no entanto, são igualmente práticas significantes. A dúvida que resta é se esse inventário, que consistiria em estabelecer o sistema das unidades providas de sentido, tem alguma pertinência no caso das linguagens não verbais. E, mesmo assim, caso houvesse tal inventário, seria preciso esperar ainda alguns séculos, se não alguns milênios, antes que a necessidade de uma tradução entre sistemas – como foi o caso do sistema oral e do sistema escrito – originasse uma segmentação estável das unidades e a produção de gramáticas satisfatórias. A abordagem dos fenômenos de significação pelo viés dos signos (as unidades mínimas) fez escola. Ela se revelou pouco operatória, pois, uma vez as unidadessignos estabelecidas, era preciso inventar suas combinações e especialmente a associação entre canais sensoriais estranhos uns aos outros. Tal abordagem conduziu ao atomismo e também a vertiginosas classificações (em uma carta a Lady Welby, Peirce comemora o fato de poder reduzir (!) as 59.049 classes de signos aritmeticamente calculáveis a 66 classes realmente pertinentes). Além disso, essa abordagem é um fator de dispersão da disciplina e de seus métodos: sendo a integração de todas as classes de signos em um só discurso no momento da análise particularmente árdua, os estudos semióticos tendem, nesse caso, a especializarse segundo a classe de signos em questão (semiótica literária, semiótica pictural, semiótica do cinema etc.).
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Semiótica do discurso
Por outro lado, as ciências da linguagem em seu conjunto orientam-se na direção de uma formalização das operações e dos processos, e a Semiótica toma parte nesse movimento. A semiótica peirciana, atualmente, dá mais ênfase ao “percurso interpretativo” do que à classificação dos signos. A semiótica do discurso caminha para a exploração dos atos fundamentais, especialmente a predicação e a assunção, mais do que para a classificação qualitativa ou estatística dos predicados e dos substantivos correspondentes. Globalmente, essa nova preocupação está voltada para a práxis, práxis semiótica ou práxis enunciativa. Apresentaremos a seguir, de maneira sucinta, as principais teorias do signo, tanto de Saussure quanto de Peirce, segundo a perspectiva que escolhemos, que é a de uma teoria do discurso, com a finalidade de chegar a uma teoria da significação sintética que extrapolaria a simples segmentação dos signos. 1.2. As teorias do signo 1.2.1. O signo saussuriano
O signo é composto, segundo Saussure, por duas faces, o significante e o significado. O significante é definido como uma “imagem acústica” e o significado, como uma “imagem conceitual”. O primeiro toma forma, enquanto expressão, a partir de uma substância sensorial ou física; o segundo, enquanto conteúdo, forma-se a partir de uma substância psíquica. No entanto, assim que são reunidos em um só signo, eles adquirem tão somente um estatuto semiótico, e suas propriedades sensoriais, físicas e psíquicas não são mais levadas em consideração. A relação entre as duas faces do signo é chamada de “necessária” ou “convencional”, isto é, ela é fundada em uma pressuposição lógica, que não é, de modo algum, tributária das suas propriedades substanciais originais. Além disso, essa relação é totalmente determinada pelo “valor” do signo, ou seja, pelas diferentes oposições que seu significante e seu significado mantêm com os outros significantes e os outros significados da mesma língua. Do ponto de vista sincrônico – em um determinado estado da língua –, esse valor é imutável. Em contrapartida, do ponto de vista diacrônico, isto é, do 36
Do signo ao discurso
ponto de vista da história dos diferentes estados da língua, a ligação que contraem as duas faces do signo pode, até mesmo, desfazer-se completamente ao longo dessa evolução. A noção de sistema decorre diretamente da definição de “valor” linguístico, pois se o valor de um signo depende de uma rede de oposições, e se essa rede de oposições deve ser, para cada signo, sincronicamente estável, isso significa que o conjunto da rede de oposições de todos os signos forma um sistema estável. Ele só tem uma existência virtual, exceto nas gramáticas e nos dicionários, mas está à disposição dos usuários da língua a qualquer momento. Segundo Saussure, a linguística tem, portanto, como missão o estudo desse sistema de valores. De uma outra forma, Jean-François Bordron colocou em evidência, após Saussure, a irredutível dualidade dos valores: no âmbito econômico, por exemplo, o valor de um bem avalia-se ao mesmo tempo em relação ao conjunto de outros bens em circulação em um dado momento e em relação aos diferentes momentos de sua história. Em linguística, essa dualidade do valor conduz à distinção entre os funcionamentos “sincrônico” e “diacrônico” das línguas. Em semiótica narrativa, o valor é tanto uma diferença semântica quanto uma diferença que, determinando a relação entre os sujeitos e os objetos narrativos, organiza a sintaxe da narrativa e o devir dos actantes. Falar em sistemas de valores é, portanto, invocar ao mesmo tempo as relações que definem os valores de cada unidade do sistema e as regras que determinam a evolução global desse sistema, e, consequentemente, a evolução do valor de cada uma de suas unidades. As noções de sistema e de valor, as quais não se podem separar da questão do signo em Saussure, impõem a exclusão do “referente”: a coisa real ou imaginária à qual o signo remete não é conhecível linguisticamente. Essa exclusão é, na maior parte das vezes, apresentada como uma decisão metodológica e epistemológica. Excluir o referente mundano é conferir à linguística um objeto próprio enquanto ciência – e sua autonomia enquanto disciplina. Todavia a posição de Saussure a respeito do referente é, na verdade, uma consequência de sua definição de signo, pois o mesmo se dá com todas as propriedades substanciais das duas faces do signo que são, sem ter relação com o referente, no entanto, excluídas da mesma maneira: de fato, o sistema de valores não pode nos dizer nada também sobre essas propriedades. A ligação entre o signo e seu referente é chamada arbitrária – poder-se-ia chamá-la, da mesma forma, contingente. Isso
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Semiótica do discurso
significa que o sistema de valores não tem nenhuma explicação satisfatória: assim, uma ligação considerada ininteligível é dada como arbitrária. Ainda assim, notemos que a ligação não é intrinsecamente ininteligível, arbitrária e contingente, e que é o ponto de vista adotado, nesse caso o ponto de vista do signo e do valor, que torna a referência inapreensível.
Considerando, em seguida, estender sua reflexão a outros tipos de signos que não somente os das línguas naturais, Saussure esboça o projeto de uma semiologia que englobaria a linguística propriamente dita. Nela, encontrar-se-ia não somente significantes cuja substância física seria diferente daquela da linguagem verbal, mas também signos cuja relação fundadora não seria “necessária” ou “convencional”, como, por exemplo, os sistemas de signos visuais. Nesse ponto, vê-se que, reservando-se um papel secundário à definição e à delimitação das unidades, a questão tratada por Saussure pode ser reduzida a dois pontos essenciais: (1) a relação entre a percepção e a significação. A partir de nossas percepções emergem significações; nossas percepções do mundo “exterior”, de suas formas físicas e biológicas, produzem significantes. A partir de nossas percepções do mundo “interior”, conceitos, afetos, sensações e impressões formam-se os significados; (2) a formação de um sistema de valores. Os dois tipos de percepções entram em interação, e essa interação define um sistema de posições diferenciais, sendo cada posição caracterizada segundo os dois regimes de percepção: o conjunto é chamado, então, sistema de valores. Paralelamente à teoria do signo, uma teoria da significação vem à tona em Saussure. Essa teoria, especialmente por meio da noção de “imagem” (imagens acústicas, visuais, mentais e psíquicas), está enraizada na percepção. O percurso que vai da substância à forma, do qual se reteve apenas o resultado final, é, de fato, o percurso que vai do mundo sensível ao mundo significante. 1.2.2. O signo peirciano
Enquanto Saussure concebia o signo como pressuposição recíproca entre duas faces distintas, Peirce o definia, desde o princípio, por uma relação assimétrica: aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Geralmente se diz que o signo saussuriano é diádico (duas 38
Do signo ao discurso
faces, um significante e um significado) e o signo peirciano, triádico. Contudo, examinando atentamente a definição proposta pelo próprio Peirce, constata-se que ela contém, de fato, quatro elementos: (1) “aquilo” que representa (2) “algo” (3) para “alguém” e (4) sob “certo modo” ou “aspecto”. Correntemente se diz também que, enquanto Saussure excluiu o referente da definição do signo e, por conseguinte, da linguística e da semiologia, Peirce reservaria ao referente um papel essencial. Essa citação, muito breve, não nos permite avaliar bem a questão. Olhemos mais de perto essa definição em sua totalidade: Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen. (2.228)*
Façamos as contas: (1) representamen, (2) objeto, (3) interpretante, (4) fundamento. Chegamos a quatro termos, aos quais, às vezes, se acrescentam a distinção entre objeto dinâmico (o objeto como ele é visado pelo representamen) e o objeto imediato (o que é selecionado no objeto pelo interpretante), o que resulta, por fim, em um total de cinco elementos. O funcionamento do signo pode ser resumido da seguinte forma: um objeto dinâmico (objeto ou situação percebidos em toda sua complexidade) entra em relação com um representamen (aquilo que o representa), mas isso apenas de um certo ponto de vista (sob certo aspecto ou modo) designado aqui como fundamento. Esse ponto de vista, ou fundamento, seleciona no objeto dinâmico um de seus aspectos pertinentes chamado objeto imediato, e a reunião do representamen e do objeto imediato é feita “em nome de”, ou “para”, ou “graças a” um quinto elemento, o interpretante.
* N.T.: Emprega-se, aqui, a tradução de José Teixeira Coelho Netto, publicada na coletânea Semiótica (São Paulo: Perspectiva, 1995). A indicação “2.228” corresponde a “volume 2, parágrafo 228”, sua localização nos Collected Papers of Charles Sanders Peirce (Cambridge: Harvard University Press, pp.1931-58). Ao contrário da tradução de Teixeira Coelho, seguindo o que parece ser um consenso entre os comentadores de Peirce no Brasil, representamen será grafado ao longo deste texto sem acento circunflexo.
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Semiótica do discurso
Ainda que o objeto dinâmico pudesse ser tomado por um “referente”, vê-se na verdade que ele só está implicado na semiose por meio da mediação do fundamento e do objeto imediato. Umberto Eco chega a elevar esse número a seis elementos: (1) o fundamento oferece, por um lado, um ponto de vista sobre o objeto dinâmico, mas delimita, de outro, o conteúdo de um significado; (2) o objeto imediato é, por um lado, selecionado no objeto dinâmico pelo fundamento e interpretado, de outro, pelo interpretante; (3) o objeto dinâmico motiva, devido a sua morfologia, a escolha do representamen, que, ele mesmo, associado ao interpretante, permite que dele se depreenda o significado. Eco termina por reduzir o conjunto a três elementos, decretando que fundamento, significado e interpretante são uma única e mesma coisa! Essas poucas observações convidam à prudência: (1) o signo peirciano só comporta três elementos para aqueles entre seus exegetas que assim o decidiram; (2) a obra de Peirce é tão vasta e diversa que nela muitas glosas podem coexistir. Há quem fique satisfeito em geral com algumas soluções simples, mas há quem, do mesmo modo, esteja sempre pronto a recusá-las.
No mínimo, fica bem claro que o “referente” – no sentido em que é compreendido corriqueiramente, isto é, a realidade à qual o signo remete – está ainda fora de alcance: o objeto dinâmico é, ao menos parcialmente, já um percepto, e o objeto imediato, seu aspecto pertinente, existe somente segundo uma condição semiótica, o “ponto de vista” que o fundamento impõe. Em suma, o objeto peirciano é somente um puro artefato suscitado no espírito de um sujeito por um representamen, e, como precisa Eco, o objeto dinâmico é somente um conjunto de possibilidades submetido a uma instrução semântica. Quanto ao objeto imediato, ele não é mais do que uma imagem mental do precedente, e ainda uma imagem empobrecida no sentido em que somente uma parte das possibilidades é retida por ele e apresentada ao espírito. O mundo visado, na concepção peirciana do signo, é um conjunto virtual de possibilidades, ou um mundo percebido, ou ainda uma parte extraída de um mundo categorizado. Isso significa que o referente, se há referente, já é um universo organizado e submetido a determinações modais, perceptivas e categoriais. A teoria peirciana do signo não nos coloca a par nem da emergência de uma significação nova nem de seu acabamento e fixação; ela não apreende nada além de um momento de uma vasta semiose sem fim, sem origem e sem horizonte.
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Consequentemente, se a questão da segmentação das unidades mínimas é colocada entre parênteses, observa-se imediatamente que a concepção peirciana do signo formula também a questão das relações entre a percepção e a significação, mas as considerando, de algum modo, “no movimento” que a segunda suscita a partir da primeira, e não como instâncias bem delimitadas. De fato, dois elementos sensíveis, o representamen e o objeto dinâmico, são submetidos a um princípio de seleção recíproca: o representamen só pode ser associado ao objeto sob o controle de um interpretante, ao passo que o objeto só pode ser associado ao representamen segundo um certo ponto de vista, o fundamento. Nos dois casos, essa seleção das relações pertinentes apresenta-se como um direcionamento do fluxo de atenção. No primeiro caso, o interpretante (aquilo que é finalmente visado pelo conjunto do processo) indica para qual direção a escolha do representamen deve conduzir a significação. No segundo, o fundamento (aquilo a partir do que o objeto é apreendido) indica o que se deve reter do objeto dinâmico. Esse direcionamento do fluxo de atenção pode ser compreendido, de um lado, como (1) a indicação de uma direção e de uma tensão, que já definimos como uma intencionalidade, suscitada por uma morfologia, e, de outro, como (2) a definição de um domínio de pertinência. Essas operações de direcionamento semiótico correspondem, no caso da primeira opção, à tensão intencional, à visada e, no caso da segunda, à delimitação do domínio de pertinência, à apreensão. A visada, aqui, diz respeito ao eixo representamen–objeto imediato–interpretante, ao passo que a apreensão diz respeito ao eixo objeto dinâmico–fundamento–objeto imediato. A visada e a apreensão, independentemente da perspectiva peirciana e a partir de um ponto de vista mais amplamente fenomenológico, são as duas operações elementares graças às quais a significação pode emergir da percepção. Mas nos faltam ainda duas condições essenciais para que se possa falar de significação discursiva: de um lado, o corpo, lugar das percepções e das emoções e centro do discurso; e, de outro, o valor, os sistemas de valor sem os quais a significação não produz nada de inteligível.
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Semiótica do discurso
2. Percepção e Significação 2.1. Elementos para recordar O estudo atento das teorias do signo fornece preciosas informações sobre a maneira pela qual a significação toma forma a partir da sensação e da percepção. Com efeito, descartando-se tudo o que busca a segmentação das unidades-signos nessas teorias, resta, todavia, um conjunto de propriedades que parecem pertinentes na perspectiva do discurso, mas que devem agora sofrer algumas modificações. São elas: (1) a separação e a coexistência de dois mundos sensíveis, o mundo exterior e o mundo interior; (2) a escolha de um ponto de vista (visada), que guia e direciona o fluxo de atenção, sob o controle de uma morfologia intencional; (3) a delimitação de um domínio de pertinência para o processo significante (apreensão); (4) a formação de um sistema de valores, graças à reunião dos dois mundos que formam a semiose. 2.2. Os dois planos de uma linguagem 2.2.1. Expressão e conteúdo
A partir do momento em que a perspectiva do signo é abandonada, é a perspectiva das linguagens, tais como aparecem nos discursos, que toma seu lugar. Uma linguagem é a articulação de ao menos duas dimensões chamadas plano da expressão e plano do conteúdo, que correspondem, respectivamente, ao que designamos até agora de “mundo exterior” e “mundo interior”. Essa mudança de denominação merece alguns comentários. A fronteira entre o “exterior” e o “interior” não é preestabelecida, não é a fronteira de uma “consciência”, mas simplesmente a fronteira que um ser vivo instaura cada vez que atribui uma significação a um acontecimento, uma situação ou um objeto. Se, por exemplo, dou-me conta de que as mudanças de cor de uma fruta podem estar relacionadas com o seu grau de amadurecimento, tais 42
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mudanças pertencerão ao plano da expressão, e o grau de amadurecimento, ao plano do conteúdo. Entretanto eu posso, do mesmo modo, relacionar o grau de amadurecimento com uma das dimensões do tempo, a duração, e, nesse caso, o grau de amadurecimento pertence ao plano da expressão, e o tempo, ao plano do conteúdo. Em seus Prolegômenos, Hjelmslev defende que a diferença entre expressão e conteúdo não é “operatória”, pois ela é instável, determinada, e não determinante, estando sempre por ser estabelecida e fixada a cada análise. Portanto, a questão desloca-se um pouco: ao invés de repousar sobre a existência presumida dos dois planos da linguagem, ela recai sobre a maneira pela qual a fronteira é instituída entre eles. Essa “fronteira” não é nada mais do que a posição que o sujeito da percepção atribui-se no mundo quando ele se põe a depreender seu sentido. A partir dessa posição perceptiva, delineiam-se um domínio interior e um domínio exterior entre os quais o diálogo semiótico vai instaurar-se. No entanto, nenhum elemento, com a exceção dessa tomada de posição do sujeito, é destinado a pertencer mais a um domínio que a outro, já que a posição da fronteira decorre, por definição, da posição de um corpo que, para se apropriar do mundo significante, desloca-se ad libitum. Algumas linguagens, especialmente as verbais, são organizadas por línguas, em que a separação da expressão e do conteúdo parece estável e fixada de antemão. Contudo basta levar em consideração o que acontece nos textos para constatar que outras relações semióticas são igualmente pertinentes, e que os “conteúdos” figurativos, por exemplo, podem tornar-se expressões para conteúdos narrativos e simbólicos. Além disso, no caso das linguagens não verbais, chega-se somente com grande dificuldade a fixar os limites de uma “gramática da expressão”: cada realização concreta desloca, de fato, a fronteira entre o conteúdo e a expressão.
Tal concepção poderia sugerir que a semiose, cujo operador estaria sempre em deslocamento entre dois mundos em que a fronteira é negociada ininterruptamente, é uma função inapreensível. No entanto ela só é inapreensível na perspectiva de uma teoria do signo – o que pode explicar por que as semiologias dos anos 1960 tão frequentemente debruçaram-se sobre sistemas de comunicação rígidos e normativos, como os faróis de trânsito. Pode-se também compreender por que as semiologias não verbais eram então postas 43
Semiótica do discurso
à sombra da semiologia linguística, a única que parecia, à época, apreensível, por meio de convenções gramaticais e lexicais e que, por isso, se tornou, talvez um pouco rápido demais, o modelo de todas as outras. Entretanto, segundo a perspectiva do discurso em ato, embasada em uma teoria do campo do discurso e em uma teoria da enunciação, a “tomada de posição” que determina a separação entre expressão e conteúdo torna-se o primeiro ato da instância de discurso pelo qual ela instaura seu campo de enunciação e sua dêixis. Essa “tomada de posição” declina-se em dois atos, como já sugerimos anteriormente: de um lado, a visada, que dirige e orienta o fluxo de atenção; e, de outro, a apreensão, que delimita o domínio de pertinência. Fluxo, direção, orientação, fronteira, campo e domínios, eis os conceitos operatórios que permitem descrever a “tomada de posição” e que passam a ocupar o lugar da simples “pressuposição recíproca” constatada a posteriori entre a expressão e o conteúdo. 2.2.2. Exteroceptividade e interoceptividade
É possível – para fazer menção a uma antiga proposição de Greimas (em Semântica estrutural) – nomear ainda de outra forma esse dispositivo constituído pelos dois planos da linguagem, adotando decididamente uma posição favorável ao “perceptivo”. O plano da expressão será então chamado exteroceptivo, o plano do conteúdo, interoceptivo, e a posição assumida pelo sujeito da percepção, proprioceptiva, pois se trata, de fato, da posição de seu corpo imaginário ou corpo próprio.* O corpo próprio é um invólucro sensível (uma fronteira) que determina, assim, um domínio interior e um domínio exterior. Seja qual for o lugar em que se desloca, ele determina, no mundo no qual toma posição, uma clivagem entre universo exteroceptivo, universo interoceptivo e universo proprioceptivo; entre a percepção do mundo exterior, a percepção do mundo interior e a percepção das modificações do próprio invólucro-fronteira. Portanto, a cada nova posição, o corpo reconfigura a série “intero-extero-propriocepção”.
* N.T.: No original, “le corps propre”. Adotou-se em português – em mais um esforço de continuidade entre o vocabulário filosófico e a metalinguagem semiótica que o absorveu – a solução preconizada por muitos dos tradutores de Maurice Merleau-Ponty, a exemplo de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, em sua tradução de Fenomenologia da percepção (São Paulo, Martins Fontes, 1994).
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Do signo ao discurso
Logo, para que haja significação, deve-se supor um mundo de percepções, no qual o corpo próprio, ao tomar posição, instala globalmente duas macrossemióticas, cuja fronteira pode sempre se deslocar, mas que tem cada uma sua forma específica. De um lado, a interoceptividade produz uma semiótica que tem a forma de uma língua natural, e, de outro, a exteroceptividade produz uma semiótica que tem a forma de uma semiótica do mundo natural. A significação é, portanto, o ato que reúne essas duas macrossemióticas, e isso graças ao corpo próprio do sujeito da percepção, corpo próprio que tem a propriedade de pertencer simultaneamente às duas macrossemióticas de que se vale para sua “tomada de posição”. De acordo com a perspectiva da enunciação, o corpo próprio é tratado como um simples ponto, um centro de referência para a dêixis. Mas, na perspectiva das lógicas do sensível, por exemplo, ele será tratado como um invólucro, sensível às demandas e aos contatos vindos seja do exterior (sensações), seja do interior (emoções e afetos). Em outros contextos, ele será considerado como uma carne sensível e motora, cuja plasticidade dinâmica permite-lhe ajustar-se às morfologias sensíveis do mundo natural ou que lhes adaptem a ele. A partir dessas considerações, a reflexão sobre a “função semiótica” leva a uma verdadeira semiótica do corpo significante. E o corpo próprio não é mais, nesse caso, um simples denominador comum (o “termo neutro” do par “exteroceptivo/interoceptivo”), mas um operador semiótico complexo, cujas múltiplas facetas (ponto-referência, invólucro-memória, carne-movimento) têm funções bem distintas. Se se pode falar em “macrossemióticas” é porque elas já são articuladas. É inútil, de fato, perguntar-se “como as coisas começaram”: estamos imersos em um mundo que já é significante; nele, nós mesmos somos a “parte interessada”, e as percepções que temos são elas também uma forma semiótica. No entanto, cada vez que “tomamos posição” nesse mundo, cada vez que o submetemos a um ponto de vista, revivemos o ato a partir do qual toda significação toma forma.
2.2.3. A isomorfia dos dois planos
Hjelmslev chama a atenção para o fato de que os dois planos da linguagem devem ser heterogêneos, mas isomorfos: por um lado, seus conteúdos devem ser heterogêneos, por outro, suas formas devem permitir a sobreposição. 45
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Quando a vermelhidão significa apenas “vermelhidão”, não há nisso novidade alguma; se, em contrapartida, a vermelhidão significa “amadurecimento”, nosso saber sobre o mundo deu um passo. Entretanto a heterogeneidade dos conteúdos não deve impedir a reunião das duas “macrossemióticas”: a sequência da gradação cromática deve ser, portanto, isomorfa à sequência do grau de amadurecimento. O isomorfismo não é conferido, mas, sim, construído pela reunião dos dois planos da linguagem. A prova disso é que um conjunto de elementos, que pode entrar em contato com vários outros conjuntos, mudará de forma a cada nova associação. A cor – ainda ela – pode ser relacionada com o amadurecimento, com a emoção, com a circulação rodoviária (os faróis de trânsito) etc. Isso não significa que esses diferentes conjuntos podem ser eles mesmos sobrepostos entre si: a cada nova aproximação, um novo “isomorfismo” é definido. É por isso que a gradação cromática não é a mesma quando expressa o amadurecimento e a emoção. Do mesmo modo, o nível de emoção não será o mesmo quando expresso pela cor ou pela gestualidade. Função semiótica é o nome da reunião dos dois planos da linguagem, que estabelece seu “isomorfismo”. Antes que eles sejam reunidos, a relação dos dois planos pode ser qualificada de arbitrária, mas isso não faz muito sentido já que essa relação não é, no caso, uma das relações entre todas as possíveis, que são em número infinito. Em suma, o “arbitrário” é somente o efeito de nossa incapacidade de nos situarmos no interior de uma infinidade de combinações possíveis, e, no final das contas, a confissão de nossa impotência em compreender o que acontece de fato. Depois de reunidos, a relação entre os dois planos é chamada necessária, na medida em que eles não podem significar um sem o outro. Porém, também nesse caso, a partir do momento em que nos lembramos de que a fronteira entre os dois mundos desloca-se sem parar, com o corpo próprio, devemos concordar que se trata de uma “necessidade” bem provisória e que ela só tem valor, na melhor das hipóteses, em um discurso particular e, ainda, pela posição que o define. Considerando um outro ponto de vista, pode-se pensar que a “necessidade” que está em jogo é que produz a tomada de posição do corpo próprio, no qual ela “reduz” provisoriamente a gama de possíveis a um só. A “ligação necessária” entre expressão e conteúdo é, afinal, somente um efeito de sentido a posteriori dessa redução. 46
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2.3. O sensível e o inteligível 2.3.1. A formação dos sistemas de valores 2.3.1.1. A presença, a visada e a apreensão
Perceber algo – antes de reconhecer esse algo como uma figura pertencente a uma das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensamente uma presença. De fato, antes de identificar uma figura do mundo natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou “pressentimos”) sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que, por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece. Eis o mínimo necessário para poder falar-se em presença. A presença, qualidade sensível por excelência, é, portanto, uma primeira articulação semiótica da percepção. O afeto que nos toca, essa intensidade que caracteriza nossa relação com o mundo, essa tensão em direção ao mundo, tem relação com a visada intencional. Em contrapartida, a posição, a extensão e a quantidade caracterizam os limites e as propriedades do domínio de pertinência, ou seja, as propriedades da apreensão. Logo, a presença põe em causa as duas operações semióticas das quais nós já havíamos falado: a visada, mais ou menos intensa, e a apreensão, mais ou menos extensa. Em termos peircianos, vale lembrar, a visada caracteriza o interpretante, e a apreensão, o fundamento. De uma forma mais abrangente, elas são as duas modalidades do direcionamento do fluxo de atenção. Entretanto, um sistema de valores só pode ganhar corpo quando nele surgem diferenças e essas diferenças formam uma rede coerente: é a condição do inteligível. 2.3.1.2. O inteligível e os valores
Se partirmos da apreensão sensível de uma qualidade – ainda a cor vermelha, por exemplo –, as experiências de Berlin e Kay, entre outras, mostram-nos que nós nunca percebemos o vermelho, mas uma determinada posição em uma gama de vermelhos, posição que identificamos como mais ou menos vermelha que as outras. Como se podem constituir “valores” nessas 47
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condições? É necessário – e suficiente – que duas gradações dessa cor sejam relacionadas a dois graus de uma outra percepção, como o gosto das frutas que têm essa cor, por exemplo. Somente assim poderemos dizer que há uma diferença entre as gradações da cor, bem como entre as gradações do gosto. Então, o valor de uma nuança da cor será definido por sua posição, ao mesmo tempo, em relação às outras nuanças da cor e em relação às diferentes “nuanças” do gosto. Voltemos à simples presença: quando percebemos uma variação da intensidade da presença, ela permanece insignificante até que possamos relacioná-la a uma outra variação. Mas, assim que as variações de intensidade são associadas a uma mudança de distância, por exemplo, a diferença é instaurada, e nós podemos até mesmo dizer o que está acontecendo: algo se aproxima ou recua em profundidade. O espaço da presença torna-se, então, inteligível, e nós podemos enunciar (predicar) suas transformações. Globalmente, o sistema de valores resulta, desse modo, da intersecção de uma visada e de uma apreensão – uma visada que guia a atenção para uma primeira variação, chamada intensiva, e uma apreensão que relaciona essa primeira variação a uma outra, chamada extensiva – e delimita, assim, os contornos comuns de seus respectivos domínios de pertinência. 2.3.2. A forma e a substância
Os desenvolvimentos anteriores contribuem para tornar mais claras as relações entre a substância e a forma. Hjelmslev tornou mais precisa a teoria de Saussure insistindo no fato de que os dois planos reunidos em uma função semiótica eram, de início, substâncias. Afetivas ou conceituais, biológicas ou físicas, essas substâncias correspondem, grosso modo, às “imagens acústicas” e às “imagens conceituais” de Saussure. Contudo sua reunião, graças à função semiótica, converte-as em formas: forma da expressão e forma do conteúdo. Fica claro, agora, como o processo de formação de valores que evocamos anteriormente corresponde exatamente à passagem da substância à forma. A substância é sensível – percebida, sentida, pressentida –; a forma é inteligível – compreendida, significante. A substância é lugar das tensões intencionais, dos afetos e das variações da extensão e da quantidade; a forma é o lugar dos sistemas de valores e das posições interdefinidas. 48
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Do ponto de vista da Linguística propriamente dita, na medida em que ela se interessa exclusivamente pelos sistemas de valores que constituem as línguas, e também do ponto de vista de uma Semiologia que só se interessava pelos signos isoláveis e bem formados, nem a substância nem a passagem da substância à forma merecem atenção. Mas, para uma semiótica do discurso, na qual se interpreta e se reinterpreta ininterruptamente a “cena primitiva” da significação, ou seja, a emergência do sentido a partir do sensível, essas questões tornam-se primordiais. Além do mais, opor a substância à forma não deve levar a imaginar – ainda que os próprios termos o permitam – que tudo o que é do domínio da substância é “informe”. A substância também tem uma forma – uma “forma” científica ou uma “forma fenomenológica” –, mas essa forma não é resultado da reunião de dois planos. Consequentemente, a Semiótica enquanto tal não está apta a reconhecê-la – há outras disciplinas que dela se ocupam e é preciso saber interrogá-las, se for o caso. De um ponto de vista semiótico, considerase, em geral, que essas formas preliminares são esquematizações, no sentido empregado por Kant: a diversidade das substâncias sensíveis é submetida a uma pressão que as estabiliza e que lhes confere identidade e regularidade. Por fim, a fronteira entre a substância e a forma, segundo Hjelmslev, assim como a fronteira entre objeto dinâmico e objeto imediato, segundo Peirce, pode ela também se deslocar. E não poderia ser de outra maneira, já que a fronteira entre o plano da expressão e o do conteúdo desloca-se, como defendemos até agora. Cada vez que a fronteira entre a expressão e o conteúdo se desloca, novas correlações entre formas aparecem e abortam as formas precedentes. Logo, a maior ou menor estabilidade da fronteira entre forma e substância depende da memória da análise, bem como de sua progressão. Convenhamos: essa fronteira depende do ponto de vista adotado pelo analista e, por conseguinte, da posição que ele mesmo se atribui em sua análise. 2.3.3. Por uma significação sensível
Dissemos há pouco que as definições de aparência lógica propostas para descrever a função semiótica, a saber, o arbitrário e a necessidade (função às vezes definida como pressuposição recíproca), não eram exatamente definitivas nem muito operatórias. Certamente elas fundaram, nos anos 1940 e 1950, a 49
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consistência de um objeto de conhecimento – o que não é pouco – em um universo intelectual no qual a lógica matemática era um modelo a ser imitado. No entanto, ainda que essas definições sejam parcialmente válidas, elas não oferecem um ponto de partida satisfatório para uma semiótica do discurso. A dimensão sensível e perceptiva parece-nos mais rica em ensinamentos. Recapitulemos: os dois universos semióticos são discriminados pela tomada de posição de um corpo próprio. As propriedades desse corpo próprio, que podem ser designadas globalmente pelo termo proprioceptividade, pertencem, ao mesmo tempo, ao universo interoceptivo e ao universo exteroceptivo. Portanto, a reunião entre esses dois universos, com o objetivo de fazê-los significar conjuntamente, é possibilitada pelo terceiro universo, em particular pelo fato de ele pertencer aos dois outros ao mesmo tempo. O corpo próprio faz desses dois universos os dois planos de uma linguagem. Que essa operação resulte em uma pressuposição recíproca, isso não tem grande interesse diante desta última proposição: o corpo sensível está no centro da função semiótica e o corpo próprio é o operador da reunião dos planos das linguagens. A simples fórmula a semiose é proprioceptiva tem grandes repercussões. A mais evidente, no momento, está contida nesta nova proposição: se a função semiótica é tão proprioceptiva quanto é lógica, então a significação é tão afetiva, emotiva e passional quanto conceitual ou cognitiva. Nesse sentido, outras repercussões surgirão, especialmente nos capítulos consagrados ao discurso e à própria dimensão sensível.
2.3.4. Os estilos de categorização
Uma das capacidades fundadoras da atividade de linguagem é a capacidade de “categorizar” o mundo, de classificar seus elementos. Não se pode, de fato, conceber uma linguagem que seria incapaz de gerar tipos, já que lhe seria preciso uma expressão para cada ocorrência. As linguagens, inclusive a linguagem não verbal, manipulam tipos de objetos (por exemplo, uma mesa de escritório qualquer), e não ocorrências (uma mesa particular que se encontre no escritório). Somente o discurso poderá, sucessiva ou paralelamente, graças ao ato de referência, evocar esta ou aquela ocorrência do tipo a fim de colocá-la em cena. 50
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No domínio da imagem, por exemplo, a necessidade de fazer referência a tipos visuais foi, durante muito tempo, confundida com a necessidade de denominar os objetos representados. A imagem de uma árvore não é a imagem de uma árvore porque eu posso chamá-la de “árvore”, mas porque ela se aproxima de um tipo visual que é aquele da árvore. Do mesmo modo, se eu reconheço uma forma arredondada elíptica não é porque eu posso chamá-la de “elipse”, mas porque eu nela reconheci o tipo visual da elipse. Alguém que não conhecesse seu nome e que fosse, por exemplo, obrigado a utilizar uma perífrase (“forma redonda alongada”) não reconheceria com mais dificuldade o tipo visual. O Grupo µ, por exemplo, mostrou claramente, em seu Traité du Signe Visuel [Tratado do signo visual], que as alterações de um “tipo visual” podiam, sob certas condições, remeter ora a uma visão “idiossincrática”, ora a operações retóricas, ora a coerções de um gênero.
A formação dos tipos é, de certa forma, um outro nome para categorização. É a formação das classes e das categorias que uma linguagem manipula. Ela concerne a todas as dimensões da linguagem: à percepção, ao código e ao sistema. No entanto a categorização atua particularmente no âmbito do discurso, especialmente porque ela organiza a instauração dos “sistemas de valores”. Nesse sentido, a formação de tipos e a categorização interessam-nos diretamente na medida em que elas se tornam estratégias no interior da atividade do discurso. A categorização em ato obedece mais ou menos ao percurso que estabelecemos progressivamente: a esquematização estabiliza a diversidade sensível, uma instância toma posição e visa os resultados de tal ato e, depois, apodera-se de um domínio para articulá-lo. Ora, a semântica do protótipo ensina-nos, por outro lado, que não há somente um modo de formar categorias de linguagem. Intuitivamente – e porque a abordagem estrutural faz parte implicitamente de nossa maneira de pensar –, pode-se achar que somente é possível a busca por propriedades e traços comuns, chamados “traços pertinentes”, como o famoso “para sentar-se” (com encosto, com três ou quatro pés, com apoio etc.) de Bernard Pottier, modelo de todas as análises sêmicas e que designa o traço comum da categoria “assento”. A formação da categoria recai, nesse caso, sobre a identificação desses traços comuns, sobre seu número e sobre sua distribuição entre os membros da categoria. O que é visado são os traços pertinentes, e o que é apreendido é a zona na qual eles são distribuídos. 51
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Uma visão mais vaga dessa abordagem pode ser considerada. Imaginemos um conjunto de parentes: as semelhanças que permitem reconhecê-los são distribuídas desigualmente – o filho assemelha-se ao pai, que se assemelha à tia, que se assemelha à mãe, que se assemelha ao filho etc. Cada semelhança difere da seguinte, não há mais nada em comum entre o primeiro e o último elemento da cadeia, e, entretanto, a ligação de cada indivíduo ao conjunto não deixa muitas dúvidas. Essa rede de traços desigualmente distribuídos, de modo que nenhum prevaleça na definição global do tipo familiar, repousa sobre o que, a partir de Wittgenstein, convencionou-se chamar semelhança de família. O que é visado aqui é o laço de parentesco; o que é apreendido é uma rede de semelhanças locais. Mas pode-se também organizar uma categoria em torno de uma ocorrência particularmente representativa, de uma amostra mais visível ou mais facilmente detectável do que todas as outras e que possui ela só todas as propriedades que são apenas parcialmente apresentadas em cada um dos outros membros da categoria. O uso frequente que fazemos da antonomásia confirma essa hipótese: “Ele é um Maquiavel”. A formação da categoria repousa, nesse caso, sobre a escolha da melhor amostra possível. Visam-se propriedades distribuídas, apreende-se um “representante”. No mesmo sentido, a ocorrência escolhida para caracterizar o tipo pode ser também a mais neutra, aquela que só possui as poucas propriedades comuns a todas as outras. Percebe-se bem como essa tendência atua na denominação dos utensílios de cozinha. Por exemplo, para se preparar um filé, a frigideira será indispensável para uns, para outros será a chapa.* A formação do tipo repousa, nesse caso, sobre a escolha de um termo de base. Não há substância que se preste por natureza a esta ou aquela categorização. É o ato de categorização, em suma, a “estratégia” que o anima, que determinará a forma da categoria (centralizada ou distribuída), suas fronteiras (abertas ou fechadas), sua organização interna (em cadeia, em grupo, em família etc.), assim como suas relações com as categorias vizinhas. Essa
* N.T.: O autor joga com os sentidos de “casserole” (panela) e “marmite” (caldeirão), recipientes, segundo o original francês, para “o cozimento dos alimentos” que são empregados muitas vezes indiscriminadamente na realização de um prato. Outro exemplo empregado pelo autor é a designação de “utensílios elétricos de cozinha” como “robôs”, forma pela qual os franceses se referem a batedeiras, liquidificadores etc.
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questão concerne diretamente à maneira pela qual as culturas “recortam” e organizam seus objetos para deles fazer objetos de linguagem. Ela concerne também ao discurso em ato na medida em que ele também segmenta e categoriza os universos figurativos para, em seu interior, definir sistemas de valores. Eis por que podemos falar em estilos de categorização. Os quatro grandes “estilos” que seguem repousam, inicialmente, sobre escolhas perceptivas, mais precisamente sobre a maneira pela qual é percebida e estabelecida a relação entre o tipo e suas ocorrências: ou a categoria é percebida como uma extensão, uma distribuição de traços, uma série (composta por um ou vários traços comuns) ou uma família (composta por um “ar de família”), ou então ela é percebida como a reunião de seus membros em torno de apenas um dentre eles (ou em torno de uma de suas espécies), ao redor do qual ela forma um agregado (composto em torno de um termo de base) ou uma fila (no sentido de “líder da fila”,* atrás do qual todos se alinham, o melhor exemplar). Para cada uma dessas escolhas, na sequência, a categoria pode nos proporcionar, devido a sua própria morfologia, um sentimento de unidade forte ou fraco. No caso da fila e da série, o sentimento de unidade é forte; no caso do agregado e da família, ele é mais fraco. Em suma, os “estilos de categorização” definem os modos de presença do tipo na categoria. O tipo pode apresentar-se como tendo uma extensão difusa ou concentrada, com uma intensidade sensível forte ou fraca. O quadro a seguir resume essas considerações:
* N.T.: No original, “chef de file”, que equivale simplesmente a “líder”.
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Semiótica do discurso
Na medida em que o discurso em ato refere-se tanto a ocorrências quanto a tipos constituídos, em um ir e vir permanente, na medida em que ele predica e/ou assume sem parar novas categorias e novos sistemas de valores, o conhecimento desses “estilos” de categorização torna-se necessário para elaborar uma semiótica do discurso. No entanto, os estilos de categorização só podem ser eles próprios estabelecidos se se coloca a formação dos sistemas de valor sob o controle das modulações da presença perceptiva e sensível, isto é, se se leva em conta de maneira explícita o controle que a percepção exerce sob a significação. Além do mais, por caracterizarem a maneira pela qual são formados os sistemas de valores, os estilos de categorização determinam, simultaneamente, o valor nas suas duas dimensões: (1) enquanto posição em um conjunto de relações e (2) enquanto diferença no devir desse sistema. Por exemplo, se a escolha incide sobre a estratégia do agregado (em torno de um termo de base), o devir do sistema é limitado ao movimento entre a “particularização” e a “generalização”, conforme o nível de especificação do termo de base: o valor em devir será, portanto, avaliado em termos de especificação. Se a escolha incide sobre a estratégia da fila (por meio do melhor exemplar), o devir do sistema será avaliado em termos de representatividade. No caso da série (por meio dos traços comuns), o devir do sistema se averigua em graus de coerência, conforme o número de traços comuns aumenta ou diminui. Por fim, se se opta pela família, o devir do sistema depende da densidade das semelhanças e relações locais, sendo, portanto, avaliado em termos de coesão. Quando se evoca a coerência de um texto, visa-se, portanto, o número e a recorrência de traços partilhados e distribuídos; quando se evoca sua coesão, em contrapartida, é a maior ou menor densidade de ligações locais que está em jogo: anáforas locais, reiterações temáticas, concordâncias e morfemas descontínuos, blocos rítmicos e rimas fonéticas ou semânticas. Em suma, a escolha de um estilo de categorização, devido à dualidade do valor, é também uma escolha de “estilo sintagmático”.
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Do signo ao discurso
Sugestões de leitura Benveniste, Émile. Problemas de linguística geral ii. Trad. Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989, pp. 220-42. (Linguagem/Crítica). Bordron, Jean-François. Valeur et dualité. In: Laufer, Romain; Hatchuel, Armand (orgs.). Le Libéralisme, l’innovation et la question des limites. Paris: L’Harmattan, 2003. Eco, Umberto. O signo. Trad. Maria de Fátima Marinho. 3. ed. Lisboa: Presença, 1985. Groupe µ. Traité du signe visuel: pour une rhétorique des images. Paris: Seuil, 1992. Hjelmslev, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. (Estudos). Kleiber, Georges. La sémantique du prototype. Paris: puf, 1990. Peirce, Charles Sanders. Écrits sur le signe. Trad. Gérard Deledalle. Paris: Seuil, 1978. ______. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Netto. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Estudos). Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Trad. Antônio Chelini et al. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 1997, pp. 79-84. ______. Escritos de linguística geral. Trad. Carlos A. L. Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo: Cultrix, 2004.
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As estruturas elementares A esquematização e a subsequente articulação dos processos significantes são características intrínsecas ao discurso. O mundo é um signo, o homem é um signo, diz Peirce, mas esse sentido que se difunde ao nosso redor e em nós mesmos só produz uma significação se ele é atualizado pelo discurso, isto é, por um ato inaugural de enunciação. Diante desse sentido difuso, o discurso atua por esquematização: ele propõe esquemas de significação dos mais simples aos mais complexos, nos quais se forja a articulação dos sistemas de valor. Eis o propósito das “estruturas elementares”: identificar as primeiras articulações do sentido. 1. As Estruturas Binárias As estruturas binárias são, essencialmente, de dois tipos: oposições entre contraditórios (chamadas, por vezes, privativas) e oposições entre contrários. A própria noção de oposição privativa é discutível na medida em que, muito frequentemente, uma oposição contraditória pode adquirir um valor genérico, ou seja, acarretar uma mudança de nível hierárquico. Hjelmslev define esses dois tipos de oposições como duas maneiras de ocupar o domínio de uma categoria: no primeiro caso, uma ocupação mais ou menos concentrada e mais ou menos intensa; no segundo, uma divisão em duas zonas que saturam mais ou menos o domínio. 2. O Quadrado Semiótico O quadrado semiótico conjuga esses dois tipos de oposições no interior de um mesmo sistema de valores graças a uma outra relação, a implicação. Portanto, cada um dos termos da categoria está na intersecção de três tipos de relações: uma contrariedade, uma contradição e uma implicação, cada uma relacionando-o a um outro termo, o que faz com que ele receba sua definição do conjunto de relações. O conjunto assim estruturado pode ser percorrido por completo, esboçando, desse modo, o arcabouço mínimo de uma narrativa.
Semiótica do discurso
3. A Estrutura Ternária A estrutura ternária de Peirce trata de um outro aspecto da estrutura elementar: as três fases de elaboração do sentido. A análise dessas três fases mostra que elas correspondem a níveis de existência diferentes das grandezas semióticas, a três etapas superiores do processo que conduz da percepção à significação. Esses níveis de existência, dos quais elevaremos o número a quatro e chamaremos modalidades de existência, podem ser explorados na análise do discurso. 4. A Estrutura Tensiva A estrutura tensiva é um modelo que procura responder às questões deixadas em suspenso pelos modelos clássicos. Na verdade, ela situa a representação das estruturas elementares na perspectiva de uma semântica do contínuo. Além disso, articulando um espaço tensivo das valências e um espaço categorial dos valores, a estrutura tensiva conjuga as duas grandes dimensões da significação: o sensível e o inteligível.
1. As Estruturas Binárias A análise das diferenças mínimas nos conduz a depreender oposições binárias. A categoria é, então, definida pelo seu eixo, o traço comum, e pelos seus dois traços pertinentes, os termos da oposição. A forma mais aprimorada e mais conhecida dessa concepção é representada pela fonologia de Roman Jakobson. 1.1. A oposição privativa A primeira diferença é produzida pela presença e ausência de um traço: as consoantes podem ser sonoras ou não sonoras, no sentido de que uma mesma articulação, por exemplo, bilabial, pode ser combinada ou não a uma ressonância das cordas vocais (/b/ vs. /p/). A categoria em questão é a da sonoridade. Entretanto essa apresentação é discutível, pois não se vê bem como um termo que não apresente o traço definidor da categoria (o traço sonoro) possa pertencer a essa mesma categoria. Nos anos 1960, a noção de oposição privativa deu lugar à de marca: entre os dois termos de uma oposição privativa convém, então, considerar 58
As estruturas elementares
que a presença do traço “marca” um termo; o outro termo, o que não possui o traço, é, então, considerado “não marcado”. A “marca” é talvez mais satisfatória ao pensamento que a “privação”, mas não traz nenhum avanço: de fato, seja “privado do traço” ou “não marcado”, o segundo termo da oposição dificilmente pode pertencer à categoria definida por esse traço ouessa marca. Na verdade, a “privação” ou a ausência da “marca” oculta uma propriedade essencial do termo em questão, a saber, seu valor genérico: suspendendo a aplicação de um traço específico, encontram-se todos os termos possíveis de uma categoria. O famoso slogan feminista “A metade das mulheres são homens” repousa sobre esse mesmo princípio. O uso mais corrente, segundo o qual o conjunto da categoria é designado pelo termo homem, supõe que este último possua o traço que define a categoria em geral, aqui, o traço sexual. Em contrapartida, o termo mulher é tratado como específico e possui, portanto, um traço suplementar que o termo genérico não possui. Ao escolher o termo mulher como termo que designa a categoria, o slogan inverte a relação e faz do termo homem o termo específico, dotado de um traço suplementar, e, do termo mulher, o traço genérico que define a categoria. A guerra dos sexos empresta, assim, as armas da categorização. Além disso, a força genérica do termo “não marcado” é tamanha que chega a suspender a eficiência da oposição visada: esse termo, de fato, só está especificamente implicado na categoria da sexualidade pela sua oposição, no discurso, com o outro termo. No entanto, ele pode ser utilizado em outras distinções: em relação a animal, deus, cosmo etc. Em suma, o termo “não marcado” confere à figura central de uma categoria toda uma gama de possibilidades de interpretação. E, conforme o termo escolhido para isso seja homem ou mulher, tanto um quanto o outro pode ocasionar essa “abertura” das possibilidades. As noções de “oposição privativa” ou de “marca” podem, a rigor, ser suficientes quando uma categoria é limitada a dois termos, mas sua aplicação torna-se particularmente problemática quando o número de termos é superior a dois, já que, nesse caso, o termo dito “não marcado” recobre toda a categoria, salvo o termo marcado. Quando se representa, por exemplo, um “objeto para fumar” no pictograma de “proibido fumar”, escolhe-se o cigarro, que vale por todos os cachimbos, charutos e narguilés. Percebe-se 59
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que, se ele foi empregado dessa forma genérica, é porque, em um momento e em uma zona particular de nossas culturas, ele é o único membro da categoria que pode ser distinguido de cada um dos outros por um traço mínimo (com ou sem papel, com ou sem aparelho, grande ou pequeno etc.). Aqui se reconheceu o “termo de base” que caracteriza um dos estilos de categorização (cf. capítulo “Do signo ao discurso”): a esse respeito, o termo não marcado dos linguistas estruturais é somente um caso particular do “termo de base” da teoria dos protótipos, caso em que os integrantes da categoria são reduzidos a dois termos. Hjelmslev propôs uma outra abordagem do tema, evidenciando o fato de que essa oposição diz respeito à extensão de uma categoria e não a sua compreensão. Ele propõe considerar toda categoria como equivalente a um domínio no espaço abstrato de nossas classificações culturais, domínio que pode ser ocupado de duas formas diferentes. Seja de forma difusa e vaga (subdomínio A), seja de forma concentrada e precisa (subdomínio a):
Assim, não se trata mais de traço “presente” ou “ausente”, mas de intensidade perceptiva de uma parte da categoria: o termo “difuso” ou “vago” serve de fundo sobre o qual se destaca uma figura, o termo “concentrado” e “preciso”. A oposição chamada “privativa” é, desse modo, redefinida como uma oposição que está relacionada ao lugar e à intensidade dos termos, porém é preciso compreender, para evitar mal-entendidos, que o termo “vago” ou “difuso” não é, como se poderia pensar, “impreciso”, mas tem um valor genérico. “Difuso” caracteriza o modo de existência do termo na categoria (o tipo de apreensão que ele impõe), e não o modo de designação de um referente qualquer. Portanto, quando ele aparece no discurso, por exemplo, sob o efeito de uma negação ou de uma neutralização de um traço específico, ele dá passagem livre a todos os termos e a todos os traços possíveis da categoria: não se trata, portanto, de um compartimento vazio (“privado” de um traço), mas de uma caixa de Pandora... 60
As estruturas elementares
1.2. A oposição entre os contrários Uma outra oposição possível é a que põe face a face, sobre o fundo de um mesmo eixo, dois termos igualmente “cheios”, ou seja, cada um definido por um traço. Em fonética, por exemplo, opõe-se o traço “bilabial” ao traço “labiodental” sobre o fundo de um eixo comum, o traço “labial”. A categoria dos labiais é, então, organizada em português pela diferença do ponto de articulação secundária, labial ou dental. Em um nível de análise diferente do que acabamos de evocar, o masculino e o feminino obedecerão ao mesmo princípio de contrariedade: sobre o fundo da categoria sexualidade, os dois termos opõem-se graças à presença de dois traços igualmente presentes, cada um sendo o contrário do outro. Segundo a perspectiva de Hjelmslev, seria preciso supor dois subdomínios concentrados ocupando o domínio da categoria. Essa representação tem a vantagem de mostrar que o domínio pode ser saturado ou não pelos dois contrários, e que, consequentemente, se há zonas não recobertas por A1 e A2, resta ainda um subdomínio “difuso”, ocupado pelo termo genérico:
No entanto, nesse caso, a força genérica da oposição categorial repousa sobre o confronto entre as duas posições contrárias. Enquanto, no caso da oposição “privativa”, ela é sustentada apenas por um só termo, a oposição categorial emerge, aqui, da pressão de homogeneização que se exerce sobre duas figuras de mesmo nível. É dessa maneira que, ao lado dos contrários já instituídos na língua ou no uso, o discurso tem condições de “inventar” novas contrariedades, especialmente graças às metáforas, sobre as quais se exerce igualmente essa “pressão genérica” necessária à interpretação. Quanto a isso, a força genérica da relação de contrariedade é um caso particular de mediação discursiva em geral, da qual Claude Lévi-Strauss mostrou o valor 61
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operatório na análise do mito. Há “mediação”, de fato, a partir do momento em que uma heterogeneidade semântica qualquer é tratada como uma contrariedade submetida a essa pressão genérica. 2. O Quadrado Semiótico O quadrado semiótico apresenta-se como a reunião dos dois tipos de oposições binárias em um só sistema que administra, ao mesmo tempo, a presença simultânea de traços contrários e a presença e a ausência de cada um desses dois traços. Tendo a “ausência”, como já mostramos, um valor genérico, pode-se dizer que o quadrado semiótico concerne tanto à organização interna da categoria quanto à delimitação de suas fronteiras. 2.1. As relações constitutivas Um quadrado semiótico assenta-se sobre os traços contrários de uma categoria, a partir dos quais se projetam os traços contraditórios:
Mas essa representação não tem muito interesse enquanto as relações entre todos os termos não forem discriminadas, especialmente as relações, de um lado, entre a2 e não a1 e, de outro, entre a1 e não a2, mas também entre não a1 e não a2. Logo, trata-se de caracterizar a relação mantida entre os produtos respectivos dos primeiros tipos de diferenças. Com efeito, a partir de a1, por exemplo, obtém-se o contrário a2 e contraditório não a1. Constata-se, então, que esses dois novos termos, se a categoria é homogênea, devem ser complementares entre si. O traço contrário a2 implica (ao menos supostamente) a ausência do traço a1, ou seja, seu contraditório não a1, que é do mesmo gênero que ele. Da mesma forma, o traço a1 implica (ao menos supostamente) o traço não a2. 62
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Em outras palavras, a partir de a1, eu só posso visar a2 pela mediação de não a1, e vice-versa. A questão dos complementares no quadrado semiótico é, portanto, essencial, pois são eles que constituem as estruturas elementares das estruturas de mediação, não somente da oposição. Se, por exemplo, a categoria “vida/morte” se reduzisse à oposição entre contrários, não poderia haver nenhuma narrativa de “medo da morte”, e o mesmo ocorreria, provavelmente, com os gêneros fantásticos e de terror. De fato, a base desses tipos narrativos repousa inteiramente sobre a existência de “não vivos” e de “não mortos”, e, mais particularmente ainda, sobre a complementaridade e a tensão entre, de um lado, os “mortos” e os “não vivos” e, de outro, os “vivos” e os “não mortos”. Assim, a partir da posição “vida”, só se pode visar a posição da morte pela mediação dos “não vivos” (diabos, demônios e demais assombrações), e, inversamente, da posição dos “não mortos” (fantasmas, zumbis e todos que vagam entre os dois mundos). Mas essa maneira de ver as coisas, que introduz na representação estruturas elementares das “visadas” e das “mediações”, implica, ao menos, que as posições semânticas não sejam somente projetadas e articuladas em um espaço abstrato, mas assumidas por uma atividade de “percepção semântica”: de cada uma das posições da categoria um observador deve poder visar e apreender as outras posições por meio de algumas condições definidas em termos de “relações” (contrariedade, contradição, complementaridade). Quando duas outras posições podem ser visadas em perspectiva, a mais distante é, então, apreendida graças à mediação daquela que está mais próxima. Essa é, acreditamos, a única maneira de prever o lugar da enunciação já a partir das estruturas semânticas elementares. Certamente, o “observador” em questão não é um “sujeito”, pois ele só ocupa uma posição de visada semântica, mas ele implica, ao menos, as estruturas actanciais da percepção na própria formação das categorias semânticas. Nós examinaremos detalhadamente essas estruturas actanciais no capítulo sobre os actantes, especialmente na seção sobre os “actantes posicionais”. É possível encontrar em todas as obras de semiótica dos anos 1970 e 1980 excelentes apresentações do quadrado semiótico, que, por muito tempo, fez as vezes de “emblema” da semiótica greimasiana. Para mais esclarecimentos sobre o tema, pode-se reportar a elas. Na verdade, no uso, esse modelo sempre apresentou as
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mesmas dificuldades: uma dificuldade técnica e uma dificuldade metodológica. De um ponto de vista técnico, a relação mais difícil de estabelecer e de justificar é sempre a relação de complementaridade. É sempre possível construir mecanicamente quadrados formais, partindo de dois contrários A e B e projetando seus contraditórios, não A e não B, mas é muito mais complicado identificar claramente esses contraditórios ao longo da análise e se certificar de que eles são mesmo os complementares dos contrários, ou seja, que eles funcionam como “mediadores”. De um ponto de vista metodológico, a construção de um quadrado, a partir da análise de um corpus, é sempre problemática, pois faltam, então, algumas indicações sobre a maneira pela qual os dados textuais devem ser levantados e tratados para corresponder ao estilo de categorização que o quadrado semiótico induz. O resultado é que, na maior parte das vezes, o quadrado aparece como uma projeção que força os elementos do corpus a assumir a forma que ele impõe. De fato, tanto em um caso como no outro, a dificuldade reside sempre na relação problemática entre o modelo constitucional e a forma dos dados textuais extraídos de um corpus concreto. Eis a razão pela qual os complementares, e a mediação que eles instauram, devem concentrar toda a nossa atenção, pois, estabelecidas as oposições de base em um texto qualquer, a identificação das operações de mediação permite explicitar o procedimento pelo qual os dados textuais serão articulados pelo modelo constitucional.
Passemos a um outro exemplo. Imaginemos que, em um determinado texto, dois elementos naturais opõem-se como contrários – a água e o fogo –, e que os outros dois – respectivamente, a terra e o ar – só tenham a função de manifestar a ausência dos primeiros. Nesse caso, a terra seria o contraditório da água, e o ar, o contraditório do fogo:
A mera projeção dos dois tipos de diferenças nada nos diz sobre as relações entre, respectivamente, a água e o ar, o fogo e a terra, e, por fim, a terra e ar. Ora, para que a categoria seja isotópica e homogênea, seria preciso que o valor de cada termo pudesse ser determinado em relação a todos os 64
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outros, e não em relação a um só. É uma questão de “estilo” de categorização: caso se contente em definir cada termo por uma única relação com um outro único termo, globalmente a categoria seria somente uma “família” de oposições. Note-se que o tipo de categoria que é procurado aqui é aquele de uma categoria que forma um todo, em que todos os termos entram em relação com todos os outros, ou seja, segundo Saussure, um sistema de valores. E, além disso, a mediação deve operar entre as oposições. Digamos, então, que se acrescentassem às diferenças de base dois outros tipos de relações: água e ar seriam complementares (pertencentes ao mesmo gênero), já que são ambos opostos a fogo e, do mesmo modo, fogo e terra, ambos opostos a água e pertencentes ao mesmo gênero, seriam também complementares. Quanto a terra e ar, eles seriam subcontrários, ambos produzidos pela negação dos contrários. É possível, então, a partir de fogo, visar a posição água graças à mediação da posição ar, e, a partir de água, visar a posição fogo graças à mediação da posição terra. Reza a tradição que os termos sejam dispostos de maneira mais explícita, como um esquema visual intuitivamente aceitável. A linha diagonal é reservada à contradição; a horizontal, à contrariedade; e a vertical, à complementaridade:
De um ponto de vista prático, quando se busca construir um quadrado semiótico, a dificuldade reside quase sempre no estabelecimento das relações de complementaridade. Seu interesse é justamente proporcionar um bom teste de consistência: se as complementaridades não funcionam no texto analisado, é a categoria que foi mal construída ou mal delimitada. 65
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2.2. A sintaxe elementar O quadrado semiótico é feito para ser percorrido: o sistema de valores que ele propõe pode esboçar as principais fases de uma narrativa mínima. Nesse caso, as relações entre os termos servem como suporte às transformações narrativas elementares. No entanto, nem todas as relações são exploradas da mesma maneira. Para começar, a contrariedade não pode produzir uma transformação: o percurso que leva de um contrário a outro, de a1 a a2, passa, primeiro, pelo contraditório não a1. Em suma, é preciso, primeiramente, negar o termo que está na origem do percurso antes de afirmar seu contrário; é preciso negar o primeiro gênero para passar ao segundo. Essa regra respeita o princípio de mediação. Em seguida, dois percursos são possíveis, sendo um canônico e o outro não canônico: partindo de a1, pode-se negar a1 (não a1) de maneira canônica, para depois afirmar a2. No entanto, pode-se também, de maneira não canônica, pegar a complementaridade com não a2 na “contramão”, depois seguir, ainda na “contramão”, a contradição entre não a2 e a2. Esse segundo percurso encontra-se, às vezes, nos textos, mas se vê rapidamente por que ele não é canônico, pois ele considera às avessas cada uma das relações que utiliza como suporte. Como essas transformações não são canônicas, sendo até ilógicas, elas aparecem como saltos qualitativos e passionais particularmente inusitados. Os percursos não canônicos são, em suma, aqueles que contradizem ou que invertem o princípio de mediação. Por exemplo: a partir da posição “vida”, visar a posição “morte” passando pelos “não mortos” (fantasmas e zumbis) é correr o risco de perder-se em uma zona intermediária de errância, mesmo que para isso a força de asserção (para passar de “não morto” a “morto”) seja insuficiente.
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Recapitulando:
2.3. A polarização axiológica A sintaxe elementar é uma sequência de predicados (negar e afirmar) que assegura as disjunções (negar) e a conjunções (afirmar) de um percurso narrativo condensado. Se se admite, de acordo com Greimas, que a narrativa define-se como uma transformação de conteúdo, então essa sequência torna-se a matriz narrativa por excelência. Outras matrizes são possíveis, como se verá mais adiante. No que concerne àquela da qual nos ocupamos aqui, ou seja, o quadrado semiótico, os termos que a compõem tornam-se precisamente aquilo que está em jogo no percurso narrativo: parte-se da posição a1, por exemplo, buscando-se atingir a posição a2 via posição não a1. Consequentemente, o sistema de valores semânticos que esquematiza o quadrado semiótico deve, então, ser considerado como um sistema de valores para sujeitos determinados, isto é, um sistema axiológico. Logo, passou-se do (1) valor de um termo em relação aos outros ao (2) valor de uma posição em relação às outras posições e ao valor desses conteúdos e dessas posições para um sujeito. Do valor definido pela diferença (versão paradigmática), passou-se ao valor definido como perspectiva de um sujeito narrativo, sujeito que está, ele próprio, engajado em uma série de transformações narrativas (versão sintagmática). Essa conversão pode ser explicada facilmente, ainda que não seja, em si mesma, uma conversão fácil. Na verdade, quando formatado como um quadrado semiótico, o sistema de valores saussuriano deve ser orientado 67
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ou, mais precisamente, polarizado (um polo positivo e outro negativo) para que possa ser percorrido por um sujeito em busca do valor. O observador da visada semântica tornou-se, aqui, um actante narrativo, e o movimento entre posições semânticas substitui a simples apresentação em perspectiva. Um corpo sensível, centro e ponto de referência de uma percepção, tornou-se um corpo em movimento. O percurso que leva de um contrário a outro torna-se, então, o percurso que conduz de um polo a outro, isto é, o percurso que se aproxima ou se afasta do valor positivo. Se, por exemplo, o quadrado dos elementos naturais for polarizado desta maneira:
então, os percursos empreendidos pela sintaxe serão: (1) um percurso canônico progressivo, que adquire valor positivo: (–) fogo ar água (+); (2) um percurso canônico regressivo, que adquire valor negativo: (+) água terra fogo (–); Fica estabelecido como regra que os dois percursos são sempre possíveis e, ao menos, virtualmente ativos. Consequentemente, um não pode se realizar sem neutralizar o outro, e a “energia” despendida para fazê-lo dependerá, então, da resistência oposta pelo percurso contrário. Portanto, a 68
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primeira consequência da polarização do sistema de valores é uma tensão (uma diferença de potencial) entre o polo negativo e o polo positivo; a segunda consequência é o surgimento de uma tensão entre as duas direções possíveis, isto é, entre os dois percursos opostos. 2.4. Os termos de segunda geração Os termos obtidos em um quadrado semiótico são somente os termos resultantes das relações constitutivas do quadrado que surgem na intersecção dos três tipos de relações: a contrariedade, a contradição e a complementaridade. Entretanto, nos discursos concretos, são as figuras mistas que ocorrem mais frequentemente, as figuras compostas que apresentam dominantes. Para dar conta dessas figuras, é necessário combinar os termos simples em termos de segunda geração. A associação de dois contrários, a1 e a2, forma o termo complexo. A associação dos dois subcontrários, não a1 e não a2, forma o termo neutro. Podem-se também associar os complementares aos pares: se o quadrado é polarizado, para formar uma axiologia, uma dessas associações (a1 e não a2, por exemplo) formará o termo positivo, e a outra (no caso, a2 e não a1) formará o termo negativo. A identificação dessas combinações é, geralmente, específica a cada discurso concreto, mas o número de combinações é limitado, o que possibilita prever suas diferentes ocorrências. Logo, podem-se imaginar os elementos naturais que um determinado discurso poderia propor, como, por exemplo, as seguintes combinações: [água + fogo] = fogo líquido; [ar + terra] = poeira; [água + ar] = bruma; [fogo + terra] = cinzas. Quando figuras como essas são identificáveis em um texto, isso significa que as operações de mediação não somente deram certo, mas que produziram novas figuras. A partir de então, a análise desloca-se e passa a se interessar pelo processo de iconização dessas figuras. De fato, é examinando seu devir textual, seu grau de estabilidade e as metamorfoses de sua identificação que se pode acompanhar detidamente o processo de mediação.
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3. A Estrutura Ternária* 3.1. Os três níveis de apreensão dos fenômenos A semiótica peirciana é baseada inteiramente em uma concepção ternária da estrutura elementar. No entanto, nesse caso, não se trata da estrutura dos termos de uma categoria, mas dos níveis de apreensão dessa categoria, ou, em outras palavras, de três modos diferentes da apreensão da significação, que são, segundo Peirce, três maneiras diferentes e hierarquizadas pelas quais podemos conhecer o mundo do sentido. Isso porque sua semiótica é, antes de tudo, uma teoria do conhecimento baseada em uma fenomenologia. No primeiro nível, chamado simplesmente primeiro (ou “primeiridade” – firstness, em inglês), apreende-se somente as qualidades sensíveis ou emotivas do mundo. Esse nível é primeiro quanto à ordem das dimensões, mas também o é porque ele comporta somente um elemento: a qualidade em si. Por exemplo: a sensação de “molhado” é primeira. O signo típico desse primeiro nível é o índice: não porque ele comporte um só elemento (o índice é sempre índice de algo), mas porque ele é o primeiro momento de uma apreensão perceptiva. No segundo nível, chamado segundo (ou “secundidade” – secondness, em inglês), relaciona-se a qualidade com outra coisa que não ela mesma. Esse nível é segundo quanto à ordem das dimensões, mas também o é porque comporta dois elementos. Por exemplo: quando a sensação de “molhado” é relacionada à chuva que cai, essa relação é chamada segunda. O signo típico desse nível é o ícone, na medida em que só pode existir ícone caso ele seja identificado, reconhecido e, portanto, ao menos estabilizado por confrontação com ele mesmo. No terceiro nível, chamado terceiro (ou “terceiridade” – thirdness, em inglês), põe-se os dois primeiros níveis na perspectiva ou sob o controle de um terceiro. Esse nível é também, portanto, terceiro porque ele comporta, de fato, três elementos. Na maioria das vezes, esse terceiro elemento apresenta-se como uma lei ou uma convenção. Partindo dos exemplos anteriores, podemos chegar a fórmulas tais como “Chove sempre” ou “Está molhado”, confrontando a relação de secundidade ao tempo, que desempenharia a função de terceiro e que levaria, assim, à depreensão de uma regra. O signo típico desse nível é o símbolo. * N.T.: A leitura que J. Fontanille faz das tríades peircianas não corresponde exatamente às concepções originais de Peirce. Para o semioticista americano, a primeiridade é a fase perceptiva típica do ícone, a secundidade, do índice, e a terceiridade, do símbolo. É preciso salientar ainda que, diferentemente de Fontanille, Peirce acredita ser o signo um primeiro elemento em relação a um segundo, seu objeto, e a um terceiro, seu interpretante.
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3.2. As propriedades dos três níveis Nos inúmeros escritos de Peirce, os três níveis de apreensão dos fenômenos dizem respeito a praticamente todas as propriedades imagináveis. Cada exegeta esforça-se para encontrar aquelas que lhe seriam convenientes para este ou aquele uso. Perguntar-se sobre o que viriam a ser concretamente a primeiridade, a secundidade e a terceiridade não tem muito sentido, pois se trata de três momentos fundamentais de qualquer construção de sentido, de qualquer experiência e, em geral, da relação entre o homem e o ambiente que o cerca. Em relação à própria teoria peirciana, a estrutura ternária serve especialmente para: (1) construir o próprio signo, já que o objeto é primeiro, o representamen, segundo, e o interpretante, terceiro; (2) distinguir os tipos de signos; (3) distinguir, por fim, vários tipos de objetos, de representamen, de interpretantes, e também de ícones, índices e símbolos, sempre segundo o mesmo princípio de uma nova divisão em três níveis. Em contrapartida, quando se adota a perspectiva da elaboração de uma linguagem e do funcionamento do discurso que a concretiza, percebe-se que a tríade peirciana concerne fundamentalmente às etapas de um processo de produção de sentido ou de interpretação. Jean-François Bordron mostrou-nos, já há algum tempo, que essas etapas corresponderiam exatamente às três sínteses kantianas – a apreensão, a reprodução e a recognição – sínteses de um modelo da formação das figuras semióticas a partir da sensação: apreensão sensível, estabilização da figura e regulação semiótica. De certa forma, essas etapas dizem respeito mais exatamente às modalidades da elaboração da significação. De fato, entre as poucas propriedades dessa tríade que são matéria de consenso entre os diversos leitores de Peirce (Deledalle, Eco, Savan, entre outros), as propriedades modais são as mais frequentemente evocadas. Essas propriedades modais caracterizam os níveis de articulação da significação. Portanto, segundo a perspectiva de uma semiótica do discurso, nós as definiremos como modos de existência da significação em discurso.
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3.3. Os modos de existência Todas as teorias da linguagem devem dotar-se de níveis epistemológicos, que são definidos como os modos de existência das grandezas semióticas. Saussure, por exemplo, distingue a língua, que é virtual, da fala, que é realizada. Guillaume distingue a língua (virtual) da efetuação (atual) e do discurso (realizado). Hjelmslev distingue sempre o realizável (o sistema) do realizado (o processo). Greimas, por fim, distingue as virtualidades do sistema da atualidade do aparato semionarrativo e da realização pelo discurso. Essas diversas abordagens poderiam ser muito facilmente sobrepostas, mas aqui é somente o princípio que as fundamenta que nos interessa: toda teoria da linguagem necessita de uma teoria dos modos de existência para poder especificar o estatuto dos objetos que ela manipula. Além do mais, as enunciações concretas também se servem desses modos de existência: tudo se passa como se elas produzissem, no discurso, os “níveis de existência” necessários à teoria. A questão epistemológica do estatuto das grandezas linguísticas e semióticas torna-se, então, nos discursos concretos, uma questão metodológica: a do problema das modulações da presença dessas grandezas em discurso. Assim, a lítotes (Não te tenho ódio! * opera sobre os dois modos de presença: um conteúdo cuja presença é real – enunciado negativo – e um conteúdo cuja presença é potencial – enunciado positivo subjacente: Eu te amo. Na maior parte das concepções linguísticas, três níveis são suficientes. Para nós, quatro serão necessários. Na verdade, essas concepções consideram somente um percurso ascendente, do virtual ao realizado, que passa por uma atualização intermediária. Mas, se se leva em conta um percurso descendente (as formas linguísticas, por exemplo, são “memorizadas” após o uso e estocadas para evocações posteriores), não se volta, então, à “atualização”, mas a uma outra forma intermediária, a “potencialização”. A mesma observação pode ser feita sobre a tríade peirciana que, em geral, somente é concebida de maneira ascendente e que não distingue a secundidade “descendente” da secundidade “ascendente”.
* N.T.: No original, “Je ne te hais point”, frase com que Ximena expressa seu amor por Rodrigo, em O Cid, de Pierre Corneille (1606-1684).
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As estruturas elementares
Globalmente, Peirce não procede de maneira diferente de Saussure, Guillaume ou Hjelmslev, com sua estrutura ternária. Ainda que a teoria que formula a partir das tríades seja bem diferente das demais, ele apresenta também as diferentes etapas de uma elaboração modal da significação quando distingue: (1) o modo virtual (primeiro), aquele que compreende todas as possibilidades de uma linguagem, especialmente todas as possibilidades sensíveis e perceptivas; (2) o modo atual ou real (segundo), aquele que compreende os fatos realizados e que permite, sobretudo, ancorar a ação e a transformação das situações na percepção e no sensível; (3) o modo potencial (terceiro), aquele que compreende todas as leis, regras e usos que programam a existência e suas transformações. Portanto, os três níveis da semiótica peirciana encorajam-nos também, de fato, a definir os modos de existência do discurso, servindo-nos, para tanto, dos conteúdos de modalidades. Pudemos reconhecer, rapidamente: (1) as modalidades aléticas (a possibilidade), no primeiro nível; (2) as modalidades factuais (querer, saber e poder fazer), no segundo nível; e (3) as modalidades deônticas (o dever, a lei, a regra etc.), no terceiro nível. Logo, elaborar a significação de um discurso significa também atravessar essas diferentes fases modais, da abertura máxima das possibilidades que a impressão e a intuição oferecem até a esquematização coercitiva proporcionada pela análise.
A questão que permanece em suspenso é a seguinte: como tornar operatórias essas noções excessivamente gerais que são os modos de existência? Na maior parte das vezes (em Saussure e Chomsky, por exemplo), elas só fornecem o pano de fundo epistemológico da teoria. Além disso, a própria teoria só retém como pertinente um dos modos de existência (os dois autores citados limitam-se voluntariamente ao virtual, seja da língua ou da competência). Peirce, acompanhando Guillaume e Greimas, é um dos poucos que deu a essas modalidades um papel no próprio método e na análise dos objetos da significação. No entanto, já vimos que a solução que ele defendia resulta uma multiplicação exponencial dos tipos e dos subtipos de signos que se torna, rapidamente, excessiva. Para evitar uma deriva semelhante, propomos atribuir a distinção dos modos de existência a uma única categoria: a presença. Assim, os modos de existência da significação (questão mais ampla da epistemologia) tornamse os modos de existência no discurso, as modalidades da presença em discurso (questão de método e análise). Desse modo, na antonomásia “É um Maquiavel ”, a personagem de Maquiavel é atualizada, mas não realizada, pois a referência visada pela predicação diz respeito a um outro ator. Portanto, 73
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esse outro ator visado pela predicação, um homem político qualquer, por exemplo, é realizado. Além disso, o conjunto dos atores que correspondem a essa definição permanece virtual, enquanto o esquema de comportamento que ela implica – e que caracteriza a categoria – será considerado como potencial. Logo, os modos de existência seriam quatro: virtualizado, atualizado, realizado e potencializado. Mais adiante, voltaremos a esse tópico. 4. A Estrutura Tensiva 4.1. Problemas em suspenso O quadrado semiótico reúne diferentes tipos de oposição para deles fazer um esquema coerente. Todavia ele apresenta a categoria como um todo já acabado, que não está mais sob o controle de uma enunciação viva. Ademais, em sua versão clássica, transforma a categoria em um esquema formal que não mantém mais relação alguma com a percepção e a abordagem sensível dos fenômenos. A proposição que fizemos a esse respeito e que consiste em introduzir na estrutura elementar um observador, e também visadas perspectivas e mediações, não basta ainda para articular as propriedades fenomenais da percepção com as estruturas da significação. Diante disso, um novo passo deve ser dado. Além do mais, os discursos concretos apresentam-nos, a todo momento, suas formas mistas e suas figuras entremeadas: formas complexas e emaranhadas as quais é preciso deslindar para alcançar os mecanismos elementares. Ora, o método que repousa sobre a instauração das estruturas elementares parte, ao contrário, das formas mais simples para chegar às formas mais complexas. Logo, para complementar essa abordagem, temos que nos dotar de meios para apreender as coisas como elas se apresentam no discurso, isto é, primeiramente como formas complexas. A estrutura ternária de Peirce, e, de forma mais abrangente, a distinção entre os modos de existência, fornece-nos uma representação esquemática do percurso que conduz ao sensível e ao inteligível, representação que falta ao quadrado semiótico. Mas, em contrapartida, essa outra abordagem nada nos diz sobre a maneira pela qual se formam os sistemas de valores sobre os quais o quadrado semiótico é totalmente explícito. 74
As estruturas elementares
4.2. Novas exigências Atualmente, se se pretende propor um modelo constitucional das estruturas elementares, parece-nos necessário aceitar as seguintes exigências: (1) as ligações entre o sensível e o inteligível, ou seja, as etapas da passagem de um a outro, devem ser definidas, ficando claro que as propriedades semióticas propriamente ditas estarão do lado do “inteligível”; (2) o modelo proposto deve, globalmente, resultar na formação de um sistema de valores; (3) esse modelo deve também levar em conta a variedade dos “estilos de categorização”; (4) tal projeto deve respeitar as coisas “como elas se apresentam” no discurso, isto é, partir das formas complexas para chegar à formação de posições simples. Nós propomos levar a cabo esse projeto em quatro etapas, que serão exemplificadas, mais uma vez, com a ajuda dos elementos naturais. 4.3. As dimensões do sensível Antes de qualquer categorização, uma determinada grandeza é, para o sujeito do discurso, primeiramente uma presença sensível. Essa presença exprime-se, segundo nós mesmos, ao mesmo tempo em termos de intensidade e em termos de extensão e de quantidade (ver, no capítulo “Do signo ao discurso”, a seção sobre “a formação dos valores”). Qual seria, por exemplo, a qualidade de presença dos elementos naturais? Antes de identificar esta ou aquela matéria, este ou aquele elemento, reconhecemos suas propriedades táteis ou visuais: o quente e o frio, o liso e o áspero, o visível e o invisível, o móvel e o imóvel, o sólido e o fluido. São essas qualidades sensíveis que podem ser avaliadas segundo as duas grandes direções que propomos. Por exemplo: o móvel e o imóvel podem ser avaliados segundo a intensidade (diferentes níveis de energia parecem ligados aos diferentes estados sensíveis da matéria) ou segundo a extensão (o movimento é relativo às posições sucessivas de uma presença material e implica uma avaliação do espaço percorrido e do tempo gasto). 75
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Ou, ainda, a solidez, promessa de permanência, será avaliada como uma capacidade de se limitar a uma só posição e a uma só forma (extensão) por meio de uma forte coesão interna (intensidade), enquanto a fluidez deixa-se apreender como um enfraquecimento da coesão interna (intensidade), como a promessa de uma grande labilidade, de uma inconstância das formas e das posições no espaço e no tempo (extensão). Portanto, cada efeito da presença associa – para ser qualificado, de fato, como “presença” – um certo grau de intensidade e uma certa posição ou quantidade na extensão. A presença conjuga, em suma, forças, de um lado, e posições e quantidades, de outro. Notemos aqui que o efeito de intensidade aparece como interno, e o efeito de extensão, como externo. Não se trata da interioridade e da exterioridade de um eventual sujeito psicológico, mas de um domínio interno e de um domínio externo esboçados no próprio mundo sensível. Como já sugerimos no capítulo “Do signo ao discurso”, o corpo próprio do sujeito torna-se a própria força da relação semiótica, e o fenômeno, assim esquematizado pelo ato semiótico, é dotado de um domínio interior (energia) e de um domínio exterior (extensão). 4.4. A correlação entre as duas dimensões Se, na primeira fase se exploram todas as possibilidades de uma apreensão sensível dos fenômenos, em contrapartida, quando se passa à segunda fase, é preciso selecionar duas dimensões para que se possa articulá-las: uma proveniente da intensidade e outra, da extensão. Essa articulação será chamada, a partir de agora, correlação. A correlação será estabelecida a partir de uma certa qualidade e de uma certa quantidade da presença sensível antes mesmo que uma figura seja conhecida. Por exemplo: é em nome da “solidez” que ao elemento terra poderão ser atribuídas uma grande força de coesão e uma fraca propensão à dispersão espaço-temporal. Inversamente, em nome dessa mesma qualidade de presença, ao ar poderão ser atribuídas uma fraca força de coesão e uma grande labilidade na extensão. Quando se adota o ponto de vista do discurso, se é conduzido a buscar primeiramente – antes de se perguntar se os termos de uma categoria têm um valor universal qualquer – as qualidades sensíveis que determinam e orientam a manifestação da 76
As estruturas elementares
categoria. Todavia, é só na correlação entre duas dimensões sensíveis que as figuras semióticas se formam e se estabilizam. Partindo das duas dimensões evocadas – a intensidade e a extensão, consideradas como dimensões graduais –, sua correlação pode ser representada como o conjunto dos pontos de um espaço submetido a dois eixos de controle:
De acordo com a definição dos planos de uma linguagem: (1) a intensidade caracteriza o domínio interno, interoceptivo, que se tornará o plano do conteúdo; (2) a extensão caracteriza o domínio externo, exteroceptivo, que se tornará o plano da expressão; (3) a correlação entre as duas dimensões resulta da tomada de posição de um corpo próprio, o mesmo que é o lugar do efeito de presença sensível, o que significa que ela é proprioceptiva. 4.5. Os dois tipos de correlação Na terceira fase, algumas conclusões devem ser tiradas sobre a tomada de posição de um corpo próprio, de um “corpo sensitivo”, que não impõe somente a separação entre dois domínios – um domínio interno e intensivo 77
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e um domínio externo e extensivo –, mas que impõe também uma orientação que é aquela da visada (a partir do domínio interno, logo, em intensidade) e da apreensão (a partir do domínio externo, logo, em extensão). Portanto, a visada e a apreensão, as duas operações que consideramos necessárias a uma representação da significação em ato (veja o item “A formação dos sistemas de valores”, no capítulo “Do signo ao discurso”), convertem as dimensões graduais em eixos de profundidade orientados a partir de uma posição de observação. Os graus de intensidade e de extensão, sob o controle das operações da visada e da apreensão, tornam-se, então, graus de profundidade perceptiva. Considerando um a um os pontos do espaço interno, todas as combinações são possíveis entre todos os graus de ambos os eixos. Consequentemente, todos os pontos do espaço interno estão indiferentemente aptos a definir as posições do sistema. Entretanto nós não buscamos definir posições isoladas, buscamos valores, isto é, posições relativas, diferenças de posições. E, quando consideramos a relação entre os dois pontos do espaço interno, somos obrigados a levar em conta a orientação relativa dos dois eixos de controle. De fato, quando se comparam duas posições diferentes no espaço interno, duas evoluções relativas são possíveis, evoluções que definem os tipos de correlações entre os eixos de controle:
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Vê-se que, entre as duas posições, ou as duas dimensões evoluem no mesmo sentido (quanto mais a visada é intensa, mais a apreensão é extensa; quanto menos a visada é intensa, menos a apreensão é extensa) ou, então, evoluem em sentido contrário (quanto mais a visada é intensa, menos a apreensão é extensa, e vice-versa). Logo, podem-se distinguir dois tipos de correlações entre a visada e a apreensão, a saber, uma correlação direta e uma correlação inversa:
As duas correlações podem ser representadas, aproximativamente, pelas duas zonas destacadas na figura. No caso da correlação direta, a direção das variações de posição segue globalmente a orientação da bissetriz do ângulo. No caso da correlação inversa, as variações de posições seguem uma direção perpendicular a essa bissetriz, direção que também pode ser representada por um arco, cujas duas extremidades aproximam os dois eixos de base. 4.6. Das valências aos valores Os dois eixos do espaço externo definem as valências da categoria examinada. Todos os pontos do espaço interno podem corresponder a valores da mesma categoria. Entretanto, dessa nuvem de pontos, surgem alguns princípios organizadores: de um lado, a diferença entre duas correlações 79
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determina duas grandes direções da variação (representadas pelas duas zonas destacadas no esquema anterior); de outro, a conjugação dos graus mais fortes e dos graus mais fracos sobre os dois eixos determina zonas extremas. Todos os pontos do espaço interno são pertinentes, mas as zonas extremas de cada correlação é que são as zonas mais típicas da categoria examinada. A combinação entre esses dois princípios permite depreender quatro grandes zonas típicas da categoria, que corresponderiam, por sua vez, aos “estilos de categorização” apresentados ao final do capítulo “Do signo ao discurso”: (1) uma zona de intensidade forte e extensão fraca (estilo categorial: a fila); (2) uma zona de intensidade e extensão igualmente fortes (estilo categorial: a série); (3) uma zona de intensidade fraca e extensão forte (estilo categorial: a família); (4) uma zona de intensidade e extensão igualmente fracas (estilo categorial: o agregado). Para recorrer a um caso mais concreto, examinemos o que acontece quando, em um discurso particular, os elementos naturais são visados e apreendidos por meio da energia que manifestam e do desdobramento espaçotemporal que são capazes de realizar. Nesse caso, as duas valências são a energia e o desdobramento espaço-temporal. As quatro zonas típicas do espaço interno são, então, ocupadas cada uma por um dos elementos naturais, cuja posição no espaço de correlação define o valor. Enfim, os elementos assim determinados são valores posicionais definidos pelas valências perceptivas e sensíveis do espaço externo. É preciso deixar bem claro aqui que o valor de uma posição depende, ao mesmo tempo, dos graus que a definem sobre os eixos de controle e do tipo de correlação (direta ou inversa) a qual a posição pertence. A distribuição obtida é específica a uma cultura ou a um discurso, já que depende das valências que foram selecionadas em um discurso dado. As possibilidades de escolha não são muito grandes, mas são intrinsecamente específicas, de qualquer maneira, a um determinado discurso. Portanto, o modelo proposto é concebido, a princípio, para dar conta da categorização discursiva como ela aparece sob o controle das práxis enunciativas concretas. Frequentemente, criticou-se o quadrado semiótico 80
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por propor apenas estruturas universais, com a pretensão de descrever discursos concretos. Nós levamos em conta essa crítica, que é justa, situando o surgimento dos valores sob o controle das valências. Em outras palavras, a variação cultural é apresentada aqui a partir das estruturas elementares, com a condição de que elas estejam sob o controle da percepção, na medida em que a percepção dos valores e das figuras discursivas já é resultado, ela própria, de uma seleção de valências perceptivas. Assim, segundo o caso, os elementos naturais serão visados por meio de sua energia, de sua estabilidade no tempo, de sua fluidez, de sua capacidade em ocupar o espaço ou de sua propensão a formar ícones identificáveis... A distribuição dos elementos naturais em uma estrutura tensiva deve ser específica ao discurso ou à cultura analisados. As próprias valências serão específicas, pois, se a intensidade e a extensão têm realmente um valor geral, as isotopias que as realizam em cada discurso são específicas. Os valores serão, eles também, específicos, na medida em que os tipos figurativos escolhidos dependem estritamente das valências e de suas correlações. Devemos esclarecer que a distribuição que propomos a seguir foi elaborada a partir de uma análise da semiótica do mundo natural nos pré-socráticos: nela, o fogo ocupa a posição da mais alta energia e da mais baixa extensão, e a água, a da mais alta energia e da maior extensão etc.
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4.7. Balanço A estrutura tensiva é, portanto, obtida ao final de quatro etapas: (1) a identificação das dimensões da presença sensível; (2) a correlação entre essas duas dimensões; (3) a orientação das duas dimensões – que se tornam, então, valências – e a duplicação da correlação em duas direções; e (4) a emergência de quatro zonas típicas, definidas como polos extremos dos dois gradientes e que caracterizam os valores típicos da categoria. Esse modelo obedece às exigências citadas anteriormente: as dimensões do sensível correspondem aos dois gradientes orientados, os valores inteligíveis aparecem no espaço de correlação. Além do mais, as regras da constituição de uma linguagem são elas também respeitadas, já que a correlação e a orientação das duas dimensões resultam da tomada de posição de um corpo perceptivo que esquematiza a presença sensível e a divide entre um domínio interno (a intensidade) e um domínio externo (a extensão).
Sugestões de leitura Bordron, Jean-François. Réflexions sur la genèse esthétique du sens. In: Palmieri, Ch. (org). Faire, voir, dire. Protée, v. 26, n. 2, 1998, pp. 97-104. Fontanille, Jacques. Sémiotique et littérature: essais de méthode. Paris: puf, 1999, pp. 130-58. ______; Zilberberg, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso/Humanitas, 2001. (Capítulos “Valência” e “Valor”). Greimas, Algirdas Julien. Semântica estrutural. Trad. Haquira Osakabe; Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1973, pp. 27-41. ______; Courtés, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983. (Verbete “Quadrado semiótico”). Hjelmslev, Louis. Nouveaux essais. Paris: puf, 1985. Santaella, Lucia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000. Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Trad. Antônio Chelini et al. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 1997, pp. 79-84; pp. 130-41.
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O discurso
O discurso é a unidade de análise da Semiótica. Ele permite apreender não somente os produtos cristalizados ou convencionais da atividade semiótica (os signos, por exemplo), mas também, e principalmente, os próprios atos semióticos. Pois o discurso é uma enunciação em ato e este ato é, primeiramente, um ato de presença: a instância de discurso não é um autômato que exerce uma capacidade de linguagem, mas uma presença humana, um corpo sensível que se exprime. Além disso, quando se escolhe como ponto de partida o discurso, dá-se conta rapidamente de que as formas cristalizadas ou convencionais que nele encontramos estão longe de serem unicamente signos, pois uma das propriedades mais interessantes do discurso é a sua capacidade em esquematizar globalmente nossas representações e nossas experiências. Do mesmo modo, o estudo dos esquemas do discurso toma rapidamente o lugar do estudo dos signos propriamente ditos. 1. Texto, Discurso, Narrativa Aqui essas três noções serão definidas e confrontadas de modo a desfazer um certo número de mal-entendidos que existem especialmente sobre, de um lado, as relações entre discurso e narrativa e, de outro, entre discurso e texto. O discurso e o texto são dois pontos de vista diferentes sobre o mesmo processo significante. Além disso, uma leitura um pouco atenta de Benveniste mostra que o discurso e a narrativa não pertencem ao mesmo nível de pertinência. 2. A Instância de Discurso A instância de discurso comporta um pequeno número de propriedades: uma posição, um campo e actantes. Ela realiza os atos elementares da enunciação:
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a tomada de posição dêitica e as várias operações (embreagens e debreagens) que permitem delegar a enunciação e organizar os planos de enunciação. Um “campo posicional”, de acordo com Benveniste, é a representação mais simples que se pode dar dessas operações. 3. Os Esquemas Discursivos Esses esquemas são de dois tipos: de um lado, esquemas de tensão, que fornecem uma representação explícita das modulações da tensão no discurso; de outro, os esquemas discursivos canônicos, que organizam as etapas lógicas da ação ou os percursos passionais no discurso. Os esquemas tensivos são módulos de base que associam tensão e relaxamento conforme combinações previsíveis por dedução. Os esquemas canônicos são sequências mais gerais, produzidas e cristalizadas pelo uso, que conjugam vários esquemas tensivos de maneira a dar a uma das dimensões do discurso seu “perfil tensivo” global. Entretanto, a sintaxe do discurso não se reduz a essas formas esquematizadas. Outros fatores entram em jogo, como a orientação discursiva produzida pelos pontos de vista, a sintaxe dos valores de verdade ou, ainda, a retórica das figuras e da argumentação.
1. Texto, Discurso, Narrativa Nós optamos por uma semiótica dos conjuntos significantes, que ultrapassa e engloba a semiótica das unidades mínimas, os signos. Portanto, é preciso especificar o estatuto destes conjuntos significantes que são o texto, o discurso e a narrativa. 1.1. O texto Para começar, o texto. O texto não é objeto exclusivo dos estudos literários. Ele é também objeto de estudo da linguística (a gramática de texto ou a linguística textual e, mais recentemente, a semântica de textos), que se interessa não somente por textos literários, mas por qualquer objeto semiótico de tipo verbal. Mas o texto verbal é apenas um dos textos possíveis. Em Prolegômenos a uma teoria da linguagem, Louis Hjelmslev declara logo a princípio: “A teoria da linguagem se interessa pelo texto, e seu objetivo é indicar um procedimento que permita o reconhecimento de um dado texto por meio 84
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de uma descrição não contraditória e exaustiva do mesmo.”1 E ainda é mais preciso: “Se é possível falar em dados [...] esses dados são, para o linguista, o texto em sua totalidade absoluta e não analisada.”2 Portanto, o texto é, para o especialista das linguagens – o semioticista –, aquilo que se dá a apreender, o conjunto dos fatos e dos fenômenos que ele se presta a analisar. O linguista não lida com “fatos de língua”, como habitualmente se diz, mas com textos, com fatos textuais. Dizer que esses são os dados do linguista e do semioticista não significa que eles não devam ser previamente elaborados e que essa elaboração já não esbarre em certas dificuldades. O estabelecimento do texto, prévio a sua eventual edição, é uma atividade à parte que concerne à filologia e cujas técnicas atuais de edição eletrônica o fizeram evoluir de maneira espetacular. Mas, em um outro domínio, a segmentação de um filme em planos e sequências, por exemplo, é também uma maneira de estabelecer o texto do filme. Dizer que o texto oferece-se ao linguista como uma totalidade não analisada não equivale a dizer que a totalidade em questão é sempre evidente. Quando se trabalha, por exemplo, com uma peça lírica da Idade Média, que só existe por meio de um grande número de versões as quais nenhuma é incontestável, a totalidade em questão é particularmente difícil de apreender e não se encarna em nenhum texto material isolável. Nesse caso, somos levados a falar em texto virtual. Do mesmo modo, isso que se chama hoje em dia de hipertexto, se não hipermídia, nunca é dado em sua totalidade nem mesmo é apreensível como um todo tangível: cada leitor elabora seu próprio texto em função dos links que ativa e do percurso que realiza ao longo das diferentes camadas textuais disponíveis na máquina. A coexistência dos diversos conjuntos textuais e dos diversos modos de expressão é assegurada de uma maneira bem particular e obriga-nos a distinguir camadas virtuais, potenciais e atuais. Em suma, o texto resulta de um primeiro conjunto de operações – delimitação, segmentação, estabelecimento dos dados – aplicadas ao fluxo contínuo da produção semiótica concreta. Mais precisamente, a segmentação, a detecção das rupturas, das ligações e das transições, constitui em todos os casos a primeira etapa da análise semiótica, já que ela permite identificar, a título de hipótese, as primeiras 85
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“macrofiguras” do plano da expressão. Todavia, como frequentemente chamou a atenção Jacques Geninasca, as “unidades textuais” assim obtidas não são ainda “unidades discursivas”, porque elas não são necessariamente pertinentes na perspectiva de uma interpretação semântica. 1.2. O discurso Este termo tem um grande número de acepções sobre as quais não é útil nos aprofundarmos aqui. Lembremo-nos das seguintes a título de indicação: o discurso considerado como um conjunto de frases; o discurso definido como um conjunto de proposições organizadas; o discurso concebido como o produto de uma enunciação. Conforme o caso, o discurso concerne à linguística textual, à linguística enunciativa ou, ainda, por fim, à retórica ou à pragmática. Mas, em todos esses casos, a ideia subjacente poderia ser assim resumida: o discurso é um conjunto cuja significação não resulta da simples adição ou combinação da significação de suas partes. Sabe-se já perfeitamente que a significação de uma frase não pode ser obtida pela simples adição ou combinação da significação das palavras que a compõe. Primeiro, é preciso reconhecer (1) a forma sintática na qual essas palavras se localizam e (2) a orientação predicativa do ato de enunciação que assume essa forma sintática. O mesmo acontece para o discurso, mas, nesse caso, mais ainda do que para a frase cujas formas sintáticas são mais fáceis para identificar, a orientação predicativa que a enunciação impõe é determinante. Portanto, o discurso é uma instância de análise na qual a produção, isto é, a enunciação, não poderia ser dissociada de seu produto, o enunciado. Essa posição é coerente com a que se tomou aqui desde o começo: interessar-se unicamente pelo produto é interessar-se pelas unidades e buscar generalizálas para configurá-las em um sistema. Ora, é um pressuposto de diferentes posições teóricas que defendemos aqui: o discurso não se contenta em utilizar as unidades de um sistema ou de um código preestabelecido. Essa visão das coisas somente se aplica a um pequeno número de situações marginais e, por fim, de pouco interesse (o código de trânsito, por exemplo). Ao contrário, o discurso inventa incessantemente novas figuras, contribui para redirecionar e deformar o sistema que outros discursos haviam antes alimentado. 86
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Daí o interesse de jamais se perder de vista a produção das formas significantes, maneira pela qual o discurso esquematiza nossas experiências e nossas representações com o objetivo de torná-las significantes e de partilhálas com outrem. No entanto essa perspectiva tem suas consequências, pois o discurso inscreve-se no tempo: tanto no tempo de seu desenrolar natural quanto no tempo das produções das quais ele é uma amostra provisória. 1.3. A narrativa Nos seus primórdios, nos anos 1950 e 1960, a análise estrutural dos textos era consagrada a sua dimensão narrativa, o que levava a ver em todo texto uma estrutura narrativa mais ou menos explícita: explícita nos gêneros narrativos (romance, conto, fábula, novela etc.) e implícita nos outros gêneros. De fato, quando se busca um princípio de organização global do discurso que ultrapasse a estrutura das frases, a lógica narrativa impõe-se como uma das soluções mais cômodas a adotar. Ela permite, entre outras coisas, estabelecer ligações a distância que estão, às vezes, ocultas pela segmentação e a sucessão das unidades textuais. Entretanto o lugar reservado às estruturas narrativas respondia também a uma interrogação mais ampla. Quando se busca analisar a significação de um discurso, só se pode basear-se em diferenças, oposições entre termos, expressões e figuras: eis o postulado de base de todas as ciências da linguagem. Ora, quando se estabelecem as oposições pertinentes, não se encontram diferenças no sentido restrito, alternativas que, em um determinado lugar da cadeia, poderiam ser colocadas em evidência por comutação. Desse modo, só se encontram contrastes, isto é, oposições cujos termos estão situados em lugares diferentes, seja na cadeia do discurso verbal, seja no plano de uma imagem, seja no espaço tridimensional da arquitetura, de uma cena ou de uma instalação. Isso equivale a dizer que uma diferença, quando ela é apreendida em um texto, apresenta-se, de fato, como uma transformação entre dois conteúdos situados em lugares diferentes. De um lugar a outro, uma categoria foi transformada, modulada, deformada ou invertida. Essa observação, em verdade, conduziu ao seguinte princípio: em um discurso, o sentido apenas é apreensível por meio de suas transformações. A partir
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de então, como toda narrativa repousa também sobre uma transformação semântica, o estabelecimento da significação de um texto tornava-se indissociável do estudo de sua dimensão narrativa. No entanto as transformações narrativas não são as únicas transformações possíveis em um discurso: figuras, ritmos, gêneros, conjuntos semânticos podem ser transformados sem que isso se traduza em uma transformação narrativa. Portanto, o próprio princípio da transformação discursiva deve ser generalizado sem que isso acarrete uma generalização das estruturas narrativas stricto sensu. As transformações narrativas são apenas um dos casos possíveis das transformações discursivas. Do ponto de vista da história da semiótica, as proposições de Vladimir Propp, e sua reformulação e adaptação, sob o incentivo de Claude Lévi-Strauss, por Algirdas Julien Greimas e Roland Barthes, contribuíram muito para a generalização da narratividade concebida como o próprio princípio da inteligibilidade dos discursos. Pode-se até considerar que essa generalização permitiu fundar a semiótica do discurso. Entretanto, como toda redução científica, ela estava fadada a ser superada. Na verdade, um texto pode comportar transformações figurativas ou transformações que afetam a identidade afetiva do sujeito, ainda que o leitor tenha o sentimento de que nada aconteceu, isto é, de que a situação dos atores em relação a seu ambiente textual não mudou. Ao contrário, a literatura contemporânea habituou-nos a romances que comportam um grande número de acontecimentos, mas que dão, entretanto, a impressão de uma estagnação narrativa. Essa estagnação pode ser, como em Alain Robbe-Grillet em seu O ciúme,3 efeito de uma repetição aparentemente aleatória dos acontecimentos e de uma segmentação incessantemente adiada que impede a projeção de uma lógica narrativa. Pode acontecer também, como em Viagem ao fim da noite,4 de Louis-Ferdinand Céline, que a estagnação seja a própria forma do devir narrativo: a acumulação dos fracassos e das catástrofes não transforma nem a situação de Bardamu nem mesmo sua identidade. Ela só consome progressivamente o capital de esperança virtual que, no começo do romance, poderia ocasionar uma mudança.
1.4. Texto e discurso O inventário das distinções entre essas duas noções seria cansativo e estéril. A própria noção de discurso, na verdade, muda de significação,
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conforme a opomos à noção de “língua”, “sistema” ou “texto”. Sem contar que cada teórico, para especificar e distinguir sua posição no tabuleiro das teorias, só reconhece como pertinente ora o texto, ora o discurso. Grosso modo, a maior parte das concepções linguísticas interpreta o texto como um objeto material analisável, no qual se podem detectar estruturas, e o discurso como o produto dos atos de linguagem. Entretanto esses atos de linguagem manipulam e produzem estruturas, e as estruturas só podem ser atualizadas por atos de linguagem. Como essas duas noções, de fato, recobrem globalmente os mesmos fenômenos, pode-se considerar que elas designam dois pontos de vista diferentes sobre a significação. Portanto, nós falaremos em ponto de vista do texto e em ponto de vista do discurso. Se definirmos a significação como, no mínimo, a reunião de um plano de expressão (E) e de um plano de conteúdo (C), então os dois pontos de vista poderão ser definidos assim: o ponto de vista do texto é aquele que nos permite seguir o percurso [E C], e o ponto de vista do discurso é aquele que nos permite seguir o percurso [C E]. Em uma versão mais elaborada, pode-se considerar que o percurso que leva do conteúdo à expressão (e vice-versa) comporta várias fases e que, sobretudo, ele conduz das estruturas mais abstratas (as estruturas ditas elementares, por exemplo) às organizações mais concretas, próximas do mundo natural e da expressão (as organizações figurativas, por exemplo) – ou inversamente. Nessa perspectiva, a via que liga expressão e conteúdo é um percurso (chamado percurso gerativo) que atravessa uma série de estratos em um espaço teórico organizado verticalmente e que pode ser seguido nos dois sentidos. Assim, o percurso [E C] é considerado descendente, e o percurso [C E], ascendente. Esses dois pontos de vista são estritamente homólogos no que diz respeito aos conjuntos significantes, o que se denomina, em relação às unidades lexicais, ponto de vista onomasiológico (= descendente) e ponto de vista semasiológico (= ascendente). O percurso gerativo do sentido apresenta-se como um conjunto de níveis de significação que se compõe essencialmente de, segundo a concepção mais frequente: (1) estruturas semânticas elementares; (2) estruturas actanciais;
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(3) estruturas narrativas e temáticas; e (4) estruturas figurativas. Cada nível é rearticulado de maneira mais complexa no nível seguinte, do mais abstrato para o mais concreto. Assim, por exemplo, (1) a categoria [vida/morte] (estrutura elementar) será rearticulada (2) em [conjunção/disjunção] (estrutura narrativa elementar) graças à combinação, no próprio interior da primeira categoria, de um actante sujeito e de um actante objeto (estrutura actancial), e essa combinação dará lugar, ela própria, a (3) programas narrativos de preservação, de perda e de separação (estruturas narrativas e temáticas); estes últimos, por fim, (4) serão considerados como “figurativos” quando receberem determinações perceptivas, espaciais, temporais e actoriais (estruturas figurativas). Por exemplo: o par [vida/morte] poderia nesse nível, ao fim de seu percurso, ser manifestado como [luz/obscuridade] (percepção) ou, ainda, [dia/noite], ou [verão/inverno] (temporalização). Essa ilustração simplificada descreve o processo gerativo “ascendente”, que é aquele da construção da significação. O processo “descendente” pode ser também considerado, já que é aquele da análise concreta, o percurso que parte das figuras diretamente observáveis para chegar às grandes categorias abstratas subjacentes. Desse modo, partindo de [dia/noite], ocorrência figurativa em um texto concreto, poder-se-ia recuperar sucessivamente e em ordem inversa ao percurso ascendente os pares: [luz/obscuridade], [conjunção/disjunção], [vida/morte] ou, até mesmo, de forma mais geral, [existência/inexistência].
O ponto de vista do texto segue o percurso no sentido descendente, indo das organizações concretas às estruturas abstratas. O ponto de vista do discurso segue o sentido ascendente, indo, ao contrário, das estruturas abstratas em direção às organizações concretas. Portanto, o ponto de vista do discurso seria, no sentido restrito, gerativo, já que parte das estruturas de conteúdo mais gerais para recuperar progressivamente a diversidade e as particularidades da expressão. Em suma, ele seria o ponto de vista que se empenharia em nos apresentar uma representação da produção semiótica. O ponto de vista do texto, em contrapartida, poderia ser qualificado como hermenêutico, pois ele é dirigido pela busca de uma explicação e de uma intencionalidade que seriam subjacentes aos fatos textuais propriamente ditos. Esse seria, então, o ponto de vista que nos daria uma representação da interpretação semiótica. Entretanto, já se disse aqui que o percurso que leva da segmentação das unidades textuais às estruturas discursivas subjacentes era, ao menos, submetido a regras de pertinência. Logo, essa primeira segmentação deve ser ultrapassada, 90
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se não “esquecida”, para que se possa ter acesso às estruturas pertinentes e, especialmente, às estruturas da ação, da paixão e da cognição (ver capítulo “Ação, paixão, cognição”). Do mesmo modo, o percurso inverso, que deveria levar das estruturas elementares à organização concreta do discurso, depara com vários obstáculos e, sobretudo, com o fato de que a enunciação intervém a todo momento para selecionar e orientar as estruturas subjacentes. A aparente simetria entre os dois pontos de vista esconde, na verdade, uma radical diferença de pertinência. Na ótica do discurso, a cada etapa do percurso põe-se a questão dos atos que, sob o controle da enunciação, orientam, selecionam e convocam as estruturas para inscrevê-las em uma expressão. Diante de um conjunto significante, a semiótica do discurso está sempre em busca da instância de discurso que lhe confere seu estatuto de ocorrência presente, atual e específica. Do ponto de vista do texto, esses atos aparecem, na melhor das hipóteses, como inúteis ou marginais; na pior, como obstáculos, os quais é preciso progressivamente eliminar para recuperar as estruturas objetiváveis e observáveis ou mesmo mais gerais. A semiótica do texto deve ultrapassar a especificidade dos fatos textuais e a singularidade das enunciações para estabilizar a leitura: Iuri Lotman não defendia justamente, em seu A estrutura do texto artístico,5 que a especificidade de um texto resultava somente da interseção de um grande número de estruturas que, tomadas isoladamente, são de caráter muito geral?! Além dessa diferença de pertinência teórica, há uma outra pertinência que influencia diretamente o método de análise e o papel do que se chama contexto. Jean-Michel Adam propõe que se raciocine a partir das duas equações que seguem: [Discurso = Texto + Contexto] e [Texto = Discurso – Contexto] Segundo essa perspectiva, o ponto de vista do discurso integraria o contexto, enquanto o do texto procederia a sua exclusão. Entretanto, as coisas apresentam-se de uma forma um pouco diferente. Constata-se, pela 91
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experiência, que é o ponto de vista do texto, em uma perspectiva hermenêutica, que nos obriga a acrescentar elementos contextuais: de outra forma, a interpretação ficaria incompleta e a compreensão, insatisfatória. Em contrapartida, o discurso não exige que se recorra ao contexto, não porque o entenda como uma parte acrescida, mas porque a noção de contexto não é pertinente desse ponto de vista. De fato, o ponto de vista do discurso neutraliza a diferença entre texto e contexto. Adotar o ponto de vista do discurso é admitir, de entrada, que todos os elementos que concorrem para o processo de significação pertencem de direito ao conjunto significante, isto é, ao discurso, não importa quais sejam esses elementos. Enfim, é o ponto de vista do texto que “inventa” a noção de contexto, porque ele parte de um conjunto de dados previamente delimitados e encontra somente em seguida, no momento da interpretação, a necessidade de acrescentar dados ignorados ou excluídos inicialmente... Muitas discussões que tratam sobre a necessidade de “sair da imanência” da língua ou do texto perdem seu interesse se não se decide a priori quais são os elementos de análise pertinentes. Como a linguística textual decidiu que apenas os elementos verbais são pertinentes, ela sentiu inevitavelmente a necessidade de integrar elementos do “contexto”, já que a significação não reside exclusivamente sobre elementos verbais. Do mesmo modo, é preciso decidir antes de uma análise que, em um quadro, apenas a superfície pintada é pertinente? Certamente que não, pois se correria o risco de se dever acrescentar posteriormente, e a título de “contexto”, os outros quadros de uma mesma série, os outros quadros de um mesmo pintor, depois a moldura, a guarnição, a fixação, talvez até a arquitetura da sala na qual ele está instalado e as posições de observação que ela impõe. A noção de aferência, introduzida por François Rastier e que a ele permite dar conta a posteriori das associações entre o texto verbal e outros tipos de textos (especialmente não verbais), participa desse mesmo princípio: primeiramente, estabelecer o texto verbal e, depois, buscar os elementos de contexto necessários a sua interpretação. Imaginemos um semioticista que se empenha em analisar uma conversa. Se ele adota o ponto de vista do texto, ele vai, para começar, escolher limites para as
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expressões que vai considerar e proceder à segmentação. Por exemplo: seu “texto” será constituído do conjunto de enunciados linguísticos; a busca das significações desses enunciados o conduzirá rapidamente a acrescentar informações de tipo mímico-gestual e de tipo entonativo, provenientes do que ele chamará de contexto paralinguístico. No entanto, se ele quer dotar os atos de linguagem de toda a sua amplitude ao invés de apagá-los progressivamente, ele deverá também explorar as relações institucionais e sociais entre os parceiros da interação e, por que não, levar em conta, por fim, a história de suas relações, de suas culturas respectivas etc. É, então, o contexto sociocultural que é solicitado. Em contrapartida, se o semioticista adota o ponto de vista do discurso, ele começará, a partir de um conjunto de expressões não delimitadas e por meio de sondagens sucessivas, a elaborar hipóteses sobre as temáticas dominantes do intercâmbio conversacional sobre os objetivos ou expectativas desse intercâmbio e sobre os papéis desempenhados por cada um de seus parceiros. Somente em seguida ele buscará as expressões correspondentes sem se impor nenhum limite de gênero ou tipo de significante. Somente ao final de sua análise é que ele poderá fixar os limites de seu corpus, que terá, então, a forma de uma situação semiótica que compreende diferentes expressões linguísticas, mímico-gestuais, espaciais, institucionais e culturais. Em nenhum momento de sua empreitada – já que ele não terá arbitrariamente fixado os limites de um texto –, tal semioticista terá feito apelo a um contexto. Ele terá, ao contrário, construído o discurso (aqui, a situação semiótica) como um todo significante, emprestando suas expressões de diversos tipos de significantes.
Portanto, a noção de contexto é uma invenção que só é necessária quando se adota o ponto de vista do texto, invenção da qual se pode prescindir se se escolhe o ponto de vista do discurso. Em contrapartida, do ponto de vista do discurso, outros problemas impõem-se, especialmente por causa da combinação, em um mesmo processo significante, de vários modos semióticos: verbais, visuais, sonoros, também olfativos, proxêmicos etc. Da mesma maneira, no interior do discurso, coabitam várias lógicas e vários tipos de coerência (ver capítulo “Ação, paixão, cognição”). Então é preciso perguntar-se se esses modos semióticos, essas lógicas e esses tipos são ou não assumidos pelas mesmas vozes enunciativas, se eles mantêm relações de tipo simbólico, semissimbólico ou retórico. Em suma, é preciso perguntar-se como se constitui a rede das relações intersemióticas. Indo mais longe ainda, poder-se-ia sugerir aqui um deslocamento fundamental da questão do sentido em geral. Se se postula como princípio que todo texto é um conjunto heterogêneo, cujos limites só podem ser 93
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decididos após a análise, a posteriori, e não um conjunto previamente delimitado e homogeneizado, então o próprio processo da significação, a própria pressão do sentido, seja na situação de produção ou na situação de interpretação, é uma pressão de homogeneização ou, mais precisamente, uma pressão com vistas à resolução das heterogeneidades. Longe de ser uma explicação posterior da interpretação, por aferência ou por recurso ao texto, a heterogeneidade é um dado semiótico a priori da produção e da interpretação ao mesmo tempo em que é uma tensão a ser resolvida: a significação de um texto concebido desse modo só seria apreensível sob a forma das diversas resoluções de heterogeneidades que ele manifesta. Paul Ricœur, por exemplo, consagrou grande parte de sua obra a essa pesquisa: a metáfora como resolução das heterogeneidades semânticas e figurativas, a narrativa como resolução das heterogeneidades temporais etc. As várias formas da síntese do heterogêneo tomam, então, um lugar central na reflexão sobre as estruturas dinâmicas dos discursos. A problemática é, evidentemente, de uma outra amplitude, não se limitando à questão de uma mera “adição” do contexto ao texto. Ninguém pensaria, por exemplo, em dizer que a representação de uma peça de teatro ou de uma ópera resulta da adição do contexto da representação ao “texto” verbal e/ou musical. Intuitivamente, concorda-se em se atribuir ao conjunto da representação o estatuto de um conjunto significante vivo, submetido a uma enunciação global que produz um discurso. O mesmo se dá com uma conversa ou com qualquer outra prática social. Portanto, o estrito ponto de vista do texto cria uma dificuldade que é somente, no melhor dos casos, um artefato do método escolhido. O ponto de vista do discurso suscita outras dificuldades, especialmente no momento de construir o sincretismo dos diferentes modos e lógicas semióticos. Entretanto, essas dificuldades podem ser superadas recorrendo-se à organização plural e polifônica da enunciação, e, na medida em que elas abrem a análise à questão das sínteses do heterogêneo, elas têm um valor heurístico muito superior à solução “texto + contexto”.
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1.5. Narrativa e discurso Já evocamos o papel das estruturas narrativas na compreensão do discurso. Contudo o binômio “discurso/narrativa” foi alvo de uma análise específica em Émile Benveniste à qual é preciso recorrer para dirimir algumas ambiguidades. Em um célebre artigo de Problemas de linguística geral i, intitulado “As relações de tempo no verbo francês”, Benveniste tenta resolver o problema causado pela aparente ausência de redundância no uso do passado simples e do passado composto em francês. Longe de concorrerem um com o outro, defende ele, eles pertencem a dois sistemas distintos e complementares.6 Em seguida, ampliando a análise, ele demonstra que esses dois sistemas correspondem a dois planos de enunciação diferentes: o plano de enunciação da história, no caso do passado simples, e o do discurso, no caso do passado composto. Os dois planos de enunciação correspondem a morfologias diferentes, que dizem respeito tanto à localização espaço-temporal quanto à designação das pessoas. Além disso, cada plano de enunciação explora um conjunto de tempos verbais: para a história, o passado simples, o imperfeito e o condicional, bem como suas formas compostas; para o discurso, o presente, o passado composto e o futuro, bem como suas formas compostas. Mas, além da simples morfologia verbal, os dois planos de enunciação distinguem-se também pelo regime enunciativo: na história, a ausência do locutor; no discurso, a livre manifestação do locutor e do auditor. Portanto, a história e o discurso distinguem-se, ao mesmo tempo, por um contraste entre as morfologias linguísticas que lhes são específicas e pela presença ou ausência do locutor e seus parceiros. É então que as ambiguidades começam. Na verdade, no curso de sua demonstração, Benveniste propõe exemplos do primeiro tipo que são textos históricos e narrativos, o que, por vezes, permite a alguns concluir que a narrativa-história e o discurso são gêneros diferentes, comportando morfologias diferentes e regidos por tipos diferentes de enunciação. Enfim, tipos textuais que poderiam ser opostos um ao outro. Ora, Benveniste fala somente em planos de enunciação, dos quais um (a história) só se distingue pela ausência da manifestação do outro (o discurso). O discurso é: “[...] toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro”.7 Portanto, a história define-se como a suspensão do discurso: “Ninguém fala 95
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aqui; os acontecimentos parecem narrar-se a si mesmos.”8 Não se trata evidentemente de tipos textuais, mas de estratégias diferentes para manifestar ou para dissimular, na própria morfologia textual, a presença da instância de discurso. Portanto, formalmente, deve-se distinguir o caso geral – a existência de uma instância de discurso – dos casos particulares – sua explicitação ou dissimulação. Substancialmente, considerar-se-á que o aparelho textual da enunciação é, entre outras coisas, destinado a modular nossa percepção da instância de discurso. De um ponto de vista terminológico, a confusão nasce da dupla acepção de “discurso”, que, em Benveniste, designa, ao mesmo tempo, o caso geral, a existência de uma instância de discurso, e o caso particular, sua manifestação explícita. Para ocultar a presença da enunciação, não se deve somente suprimir a expressão dos atores ou das posições espaciais e temporais da enunciação. É preciso também adotar outras expressões, especialmente advérbios, pronomes e tempos verbais específicos do modo “debreado”. Entretanto, esse tipo de funcionamento é corriqueiro. Por exemplo: o gênero linguístico exprime-se tanto pela presença ou pela ausência da desinência do feminino (leão/leoa) quanto pela alternância entre duas expressões diferentes (homem/mulher). O fato é que o masculino, em ambos os casos, é sempre o termo genérico, e o feminino, o termo específico. Do mesmo modo, ainda que o discurso e a narrativa adotem expressões específicas e oponíveis, o fato é que um é o termo genérico, e o outro, o termo específico. A distinção entre genérico e específico não se exprime necessariamente por uma oposição entre termos marcados e não marcados.
Portanto, a questão levantada por Benveniste não é in fine a questão das classes morfológicas e dos gêneros textuais, mas a questão das modulações da presença da instância de discurso no texto, mais ou menos oculta, mais ou menos explícita. Logo, tal questionamento deriva diretamente do ponto de vista do discurso, e a “história-narrativa” é apenas um caso particular de apagamento total ou parcial da instância de discurso. Mais uma vez, o ponto de vista do texto passa longe do problema formulado. Quanto ao método, isso significa que é vão querer caracterizar e classificar textos pelo seu modo de enunciação, mas, ao contrário, convém estar particularmente atento aos graus e às modalidades da presença e da ausência 96
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graduais da enunciação. A esse respeito, o apagamento completo da instância de enunciação seria apenas uma das formas da manipulação do destinatário, um simulacro de objetividade que só engana aquele que acredita na ausência fingida de um enunciador que opera de modo oculto. 2. A Instância de Discurso O termo “instância”, proposto por Benveniste, é sem dúvida o mais apropriado para denominar o discurso enquanto ato: a instância designa, então, o conjunto das operações, dos operadores e dos parâmetros que controla o discurso. Este termo genérico permite evitar especialmente a introdução prematura da noção de sujeito. O ato vem primeiro, sui generis, e os componentes de sua instância vêm em segundo lugar. Do ponto de vista do discurso, o ato é um ato de enunciação que produz a função semiótica. Certamente a função semiótica pode ser examinada de um outro ponto de vista, como a reunião consumada do plano do conteúdo e do plano da expressão, mas se trataria, nesse caso, do ponto de vista do texto. 2.1. A tomada de posição Lembremos que, quando a função semiótica é estabelecida, a instância de discurso deve proceder a uma separação entre o mundo exteroceptivo, que lhe fornece os elementos do plano da expressão, e o mundo interoceptivo, que lhe fornece os elementos do plano do conteúdo. Essa divisão adquire a forma de uma “tomada de posição”. Portanto, o primeiro ato é o de tomada de posição: ao enunciar, a instância de discurso enuncia sua própria posição. Ela é, então, dotada de uma presença (entre outras coisas, de um “presente”) que servirá de orientação ao conjunto das outras operações. Como esclarece Maurice Merleau-Ponty: “Perceber é tornar algo presente a si com a ajuda do corpo.”9 De nossa parte, se afirmamos que enunciar é tornar algo presente a si com ajuda da linguagem, só estendemos o axioma fenomenológico para dele fazer um axioma semiótico. Ademais, de um ponto de vista semiótico, a percepção já é uma linguagem, pois ela é significante. Já que o primeiro ato 97
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de linguagem consiste em “tornar presente”, só se pode concebê-lo em relação a um corpo que possa sentir a sua presença. Logo, o operador desse ato é o corpo próprio, um corpo sensitivo que é a primeira forma que o actante de enunciação assume. De fato, antes mesmo que ele possa ser identificado (ou não) como um sujeito (Eu), este último é instalado como centro de referência sensível, reagindo à presença que o circunda. Essa primeira etapa tem suas consequências: a dêixis do discurso (o espaço, o tempo e, depois, o ator da enunciação) não é uma mera forma, ela está a princípio associada a uma experiência sensível da presença, uma experiência perceptiva e afetiva. Como é uma tomada de posição sensível, destinada a instalar uma área de referência, ela consiste também em uma tomada de posição sobre as grandes dimensões da sensibilidade perceptiva: a intensidade e a extensão. No caso da intensidade, dir-se-á que a tomada de posição é uma visada; no caso da extensão, uma apreensão. A visada opera sobre o modo da intensidade: o corpo próprio vai, então, em direção àquilo que nele suscita uma intensidade sensível (perceptiva, afetiva). A apreensão opera, em contrapartida, sobre o modo da extensão: o corpo próprio percebe as posições, as distâncias, as dimensões e as quantidades. 2.2. A breagem O termo “breagem”* é construído a partir de seus derivados mais conhecidos, a embreagem e a debreagem. Uma vez que a primeira tomada de posição foi concluída, a referência pode, então, começar a funcionar: outras posições poderão ser reconhecidas e relacionadas à primeira. Esse é o segundo ato fundador da instância de discurso: a debreagem realiza a passagem da posição original a uma outra posição; a embreagem procura retornar à primeira posição.
* N.T.: No original, “brayage”. Os vocábulos “breadura” e “breagem” são empregados para designar, geralmente, o ato de brear em sua primeira acepção (cobrir ou untar de breu). Aqui, para denominar o ato de brear o discurso, mais próximo da segunda acepção de brear (estabelecer ou interromper o contato do motor com as engrenagens que põem o veículo em movimento), optou-se pelo vocábulo “breagem” que mantém o paralelismo feito pelo autor entre embreagem e debreagem.
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A teoria das embreagens e debreagens foi elaborada por Greimas a partir do conceito de “shifters” que, em Jakobson, designava os elementos da língua que podiam manifestar a presença da enunciação. No entanto a “breagem” é um conceito bem mais amplo, pois ele caracteriza o ato de enunciação por excelência, ato pelo qual o discurso pode manifestar, indiretamente, a “tomada de posição”. A embreagem foi definida, em geral, como um conjunto de rupturas de isotopias (rupturas espaciais, temporais e actoriais) que opõe o Eu e o Ele, o agora e o então, o aqui e o lá. Essa descrição é justa, mas só diz respeito às consequências superficiais e, na verdade, às consequências textuais e morfológicas da debreagem. Além disso, ela explora uma operação de valor geral, a ruptura de isotopia, sem precisar o que há de específico na “breagem”, ou seja, a mudança de posição da instância de discurso. Se considerarmos a “tomada de posição” como o primeiro ato de discurso, que institui um “campo de presença”, e a debreagem como uma “mudança de posição”, as várias rupturas de isotopias (actoriais, espaciais, temporais, cognitivas, afetivas etc.) associadas à debreagem aparecerão como manifestações superficiais da operação de base.
A debreagem tem orientação disjuntiva. Graças a ela, o mundo do discurso separa-se do simples “vivido” indizível da presença. Com ela, o discurso certamente perde em intensidade, mas ganha em extensão: novos espaços, novos movimentos podem ser explorados, outros actantes podem ser postos em cena. Logo, a debreagem é, por definição, plural e apresenta-se como um desdobramento em extensão. Ela pluraliza a instância de discurso: o novo universo de discurso, que é assim descortinado, comporta, ao menos virtualmente, uma infinidade de espaços, de momentos e de atores. A embreagem tem, em contrapartida, orientação conjuntiva. Sob sua ação, a instância de discurso procura reencontrar sua posição original, o que não chega a fazer, pois o retorno à posição original é um retorno ao indizível do corpo próprio, ao simples pressentimento da presença. Entretanto a embreagem pode, ao menos, construir o simulacro desse retorno. É assim que o discurso chega até a propor uma representação simulada do momento (agora), do lugar (aqui) e das pessoas da enunciação (Eu/Tu). A embreagem renuncia à extensão, pois volta ao ponto mais 99
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próximo possível do centro de referência, e dá prioridade à intensidade: ela concentra novamente a instância de discurso. Portanto, a unicidade aparente do sujeito da enunciação é apenas um efeito dessa redução da extensão (redução da quantidade) e da explosão da intensidade recuperada. No próprio gesto do retorno à posição original (inacessível), o discurso produz, ao mesmo tempo, o simulacro da dêixis e o simulacro de uma instância única. Essa observação deve ser compreendida como uma precaução teórica: sendo a unicidade do sujeito de enunciação apenas um efeito mais forte da embreagem, a situação normal da instância de discurso é a pluralidade (pluralidade dos papéis, pluralidade das posições e pluralidade das vozes). No entanto, como esse retorno é sempre imperfeito, ele é submetido a gradações. Assim, se a embreagem é interrompida no meio do caminho, a pessoa permanecerá dissociada, plural ou dual. Nesse caso, o Tu poderá, por exemplo, ser uma das figuras do sujeito da enunciação tanto quanto o Eu. 2.3. O campo posicional 2.3.1. As propriedades do campo
O primeiro modo da instância, aquele da presença pura, intensa e extensa, visada ou apreendida, pode ser expresso no discurso, bem como os modos secundários, que são obtidos por debreagem e embreagem. Em relação ao primeiro modo, o que está em jogo é a função de apresentação do discurso – chamada também de presentificação. Nos outros modos, trata-se da função de representação, representação de um mundo outro (por debreagem) ou representação de um mundo próprio* (por embreagem). Cada operação da instância de discurso dá-se, de fato, sobre o fundo da instância que a precede e que permanece ativa. A discursivização da tomada de posição pode ser parcialmente esquematizada sob a forma de um campo posicional. Para Benveniste, o campo
* N.T.: No original, “monde propre”. Como se trata justamente de um mundo embreado afim ao do corpo próprio, decidiu-se por essa solução.
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posicional é constituído pelas categorias da pessoa, do número e da diátese.10 Podem ser aí reconhecidas as categorias mais gerais do actante, da quantidade e da orientação predicativa, todas deduzidas da tomada de posição original: (1) A orientação predicativa é estabelecida a partir da posição da instância de discurso, e essa posição permite prever a distribuição dos diferentes actantes em torno do processo (formas ativa, passiva e factitiva). De uma maneira mais abrangente, ela indica qual é o ponto de vista que se impõe ao discurso. (2) O actante é o operador da tomada de posição. Já dissemos que o actante mínimo é o corpo que ocupa o centro de referência do discurso. A formação das diferentes pessoas é um fenômeno secundário. (3) A quantidade resulta da combinação de várias posições e da medida das distâncias espaço-temporais entre essas diversas posições. As propriedades elementares do campo posicional podem ser identificadas como segue: (1) o centro de referência; (2) os horizontes do campo; e (3) a profundidade do campo, que põe em contato o centro e seus horizontes; (4) os graus de intensidade e de quantidade próprios a essa profundidade. O centro é instituído pelo corpo sensível, é o lugar da intensidade máxima em uma extensão mínima. Como esclarece Benveniste: “aquele que [...] organiza [o campo] está, ele próprio, designado como centro e ponto de referência”.11 Sem debreagem, o centro só pode sentir a si próprio como uma pura intensidade emocional e proprioceptiva, sem extensão. Os horizontes delimitam o domínio da presença: mais que isso, eles fazem recuar o domínio da ausência. Eles correspondem à intensidade mínima em uma extensão máxima. Na verdade, nada do que está nos horizontes do campo posicional pode afetar com intensidade satisfatória o centro sensível. Em contrapartida, essa perda da intensidade permite avaliar a distância que separa o centro dos horizontes. O surgimento de uma intensidade muito forte no horizonte assinala, ao mesmo tempo, a formação de um outro campo posicional concorrente do primeiro, isto é, o campo posicional da alteridade.
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2.3.2. A profundidade
A profundidade é justamente a distância (sensível, percebida) entre o centro e os horizontes. No momento em que uma figura qualquer cruza o horizonte do campo, uma certa extensão coincide com uma intensidade perceptiva quase nula. A avaliação dessa extensão associada a uma intensidade fraca fornece a medida da profundidade do campo. À medida que a extensão estreita-se e que a intensidade aumenta, a profundidade diminui. É preciso deixar claro aqui que tratamos da profundidade do campo posicional do discurso concebida como uma tensão entre um centro e seus horizontes, tensão que depende das variações da intensidade e da extensão perceptivas. Em relação ao centro sensível do discurso, portanto, só há profundidade se há uma mudança do equilíbrio entre a intensidade e a extensão e uma variação na tensão entre o centro e os horizontes. Em outras palavras, a profundidade é, aqui, uma categoria dinâmica que o actante posicional só pode apreender no movimento, só quando algo se aproxima ou se distancia. Logo, a profundidade não é uma posição, mas um movimento entre o centro e os horizontes, nem uma medida, mas uma percepção de uma variação da tensão entre a intensidade e a extensão. A noção de profundidade contém em si todas as determinações necessárias para constituir um “campo de presença”: ela pressupõe um centro de referência, ela indica o lugar dos horizontes do campo, ela precisa a distância que os separa. Portanto, a experiência da profundidade, definida como uma correlação inversa entre uma intensidade e uma extensão, bastaria para definir um campo posicional e suas principais direções. Nos dois extremos da correlação situam-se, respectivamente, o corpo-centro, em profundidade nula, e os horizontes, em profundidade máxima. A impressão de unicidade e de pontualidade dada por certos dêiticos resulta diretamente de sua ausência de profundidade: aqui é o lugar de que se avalia a profundidade, mas não é parte dela. Por outro lado, lá e ali são, ao mesmo tempo, marcações para avaliar a profundidade do campo e partes dessa profundidade: no interior de lá, de fato, uma certa extensão, que o distingue de aqui, dá margem a um recuo em profundidade, recuo que a filosofia heideggeriana [aquela do dasein, do “ser aí”] particularmente explorou.
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Seria preciso distinguir aqui uma profundidade progressiva e uma profundidade regressiva. Dois movimentos são possíveis: seja a partir do centro, seja a partir dos horizontes. A profundidade que se move a partir do centro tem um ponto de localização conhecido, a posição de referência do discurso, e assim o actante pode avaliar e medir a distância em profundidade. Em contrapartida, a profundidade que se move a partir dos horizontes não tem ponto de localização conhecido, então ela avança na direção do centro e só pode ser sentida, como é o caso, por exemplo, da vertigem ou do pressentimento de uma invasão ou de uma agressão. Logo, a profundidade progressiva é uma profundidade de dominância cognitiva que a instância de discurso pode predicar e avaliar. A profundidade regressiva é, por outro lado, uma profundidade de dominância emocional e passional.
2.3.3. Os actantes posicionais
Essas primeiras definições, combinadas com os dois tipos de tomada de posição – a visada (intensiva) e a apreensão (extensiva) –, permitem definir os actantes do campo posicional ou, mais simplesmente, os actantes posicionais. No capítulo “Os actantes”, voltaremos a essa noção, opondo os actantes posicionais aos actantes transformacionais. Benveniste fala sobre o “campo posicional do sujeito” e da pessoa: parecenos ainda cedo para falar, a essa altura, em sujeito, referindo-se a um actante que só sente a intensidade e a extensão de uma presença e a proximidade ou a distância dos horizontes. Em contrapartida, a pessoa já tem seu lugar nas propriedades elementares do campo posicional se se entende por pessoa, no mínimo, um actante dotado de presença, um actante presente para si mesmo e para outrem. Todavia, mostraremos mais adiante que a categoria da pessoa deve ser manipulada com precaução. Enquanto actantes típicos do campo posicional (ou, para resumir, “actantes de campo”), eles serão considerados como os próprios actantes da percepção, a estrutura actancial mínima que permitirá falar em “atos perceptivos”, em “operações” de percepções e em produção de significação a partir da percepção, especialmente no interior dos próprios discursos. Se eles são opostos aos actantes “transformacionais”, é essencialmente devido à distinção que fazemos entre as “lógicas de forças” (da parte dos actantes transformacionais) e as “lógicas de lugares” (da parte dos actantes posicionais). Todavia, mais profundamente, a estrutura actancial da transformação pressupõe a existência de um sistema de 103
Semiótica do discurso
valores (ao menos para definir um “objeto de valor” e para caracterizar sua relação com os outros actantes, o sujeito e o destinador). Em contrapartida, a estrutura actancial da percepção não pressupõe tal sistema de valores, já que, por definição, ela contribui para instaurá-lo. Os actantes posicionais são “actantes de campo” anteriores à emergência da significação, que fornecem as primeiras regras e orientações, enquanto os actantes transformacionais são “actantes de percurso”, que realizam, de algum modo, os valores esboçados e inventados pelos primeiros. Portanto, a partir do momento em que um actante de percurso parece “inventar” os valores ao mesmo tempo em que ele os realiza por seus atos, seria prudente conferir-lhe os dois estatutos: de fato, ele acumula nesse caso um papel posicional e um papel transformacional. Logo, os actantes posicionais da estrutura perceptiva são, por declinação, actantes de visada e de apreensão. Em ambos os casos, seus papéis posicionais são três: fontes, alvos e actantes de controle, estes últimos podendo, conforme certas condições, tornar-se obstáculos. Há uma fonte, um alvo e um controle da visada: a fonte é representada pela eficiência; o alvo, pela intensidade de sua reação; o controle, pela modulação de intensidade e as regulagens* que ele induz entre os dois (filtro, amplificador, inflexão da direção etc.). Há uma fonte, um alvo e um controle da apreensão: a fonte instaura um dispositivo de captação, de medida ou de fechamento; o alvo é avaliado em sua extensão; e o controle fornece um padrão, uma escala de avaliação, uma mediação que facilita ou dificulta a interação. Como não há primazia ou anterioridade da visada sobre a apreensão, também não o há entre os três actantes posicionais. Além do mais, seus respectivos papéis não são definidos pelos predicados, mas pela orientação discursiva. Nos poemas de Alcools12 [Álcoois], de Guillaume Apollinaire, por exemplo, o Eu e o Tu, cujos papéis são fixados pelo ato de enunciação, não são, por isso, menos invertidos como actantes posicionais: Eu é o alvo, e Tu, conforme o caso, é a fonte ou o controle.
* N.T.: No original, “réglages”. Embora “ajustes” ou “ajustamentos” fossem preferíveis para traduzir esse termo, a solução adotada nesta tradução (“regulagem”, brasileirismo para “regulação”) tentou sinalizar a diferença (na continuidade) no pensamento de Jacques Fontanille, que passou, mais recentemente, a tratar das práticas semióticas e a empregar, como Éric Landowski, o termo “ajustement”.
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O discurso
A identificação da fonte e do alvo nem sempre é muito fácil. No modo da intensidade, por exemplo, que é o domínio por excelência da visada, o corpo, centro do campo, sente uma intensidade que ele atribui ao efeito de uma presença no campo. Ele a visa, então, mas para reconhecê-la como a origem dessa intensidade: paradoxalmente, ele é a fonte da visada, mas o alvo da intensidade. A questão reside em saber onde se situa a intencionalidade: enquanto a presença sentida dessa forma não for reconhecida como intencional, o corpo-centro permanece a fonte da visada, mas, se essa presença é percebida como intencional, então o actante centro de discurso perde a iniciativa da visada. Ele passa a ser ele próprio visado pela intensidade que ele sente: uma alteridade intencional toma forma no interior de seu próprio campo. Ao contrário, no modo da extensão, no qual se exerce a apreensão, o corpo, centro do campo, é o ponto de referência de todas as avaliações de distância e quantidade: ele é, ao mesmo tempo, fonte da apreensão e fonte das medidas da extensão. Entretanto, a mesma possibilidade permanece aberta: se a presença é percebida como intencional, é o lugar do actante centro de discurso que é apreendido, avaliado; é ele que é aferido e quantificado. Isso significa, entre outras coisas, que a presença, no sentido semiótico, já é uma estrutura de comunicação elementar ao menos por meio do efeito de uma orientação que sobredetermina a estrutura da informação sensorial, que é, na verdade, sempre um certo movimento, uma intensidade que afeta o corpo sensível (e, portanto, centrípeta). Contudo a sensação da presença implica uma relação complementar, que é aquela da intencionalidade: conforme essa nova relação seja centrífuga (é o corpo sensível que visa o mundo) ou centrípeta (é o mundo que visa o corpo sensível), a fonte intencional será situada no corpo sensível ou no mundo. Portanto, a visada perceptiva, enquanto estrutura actancial de comunicação, integra duas relações e orientações: a relação informativa e a relação intencional. Essa dualidade permite explicar que o mesmo tipo de sensação, conforme o caso, possa ser percebido quer como um movimento do corpo sensível em direção ao mundo, quer como um movimento do mundo em direção ao corpo sensível.
Portanto, os actantes de controle administram a relação entre as fontes e os alvos. Eles podem ser definidos a partir da variação dos gradientes de intensidade e de extensão na profundidade: toda modulação ou variação brusca de ambas será atribuída a um actante de controle que enfraquece ou fortalece a presença. O actante de controle pode suscitar o surgimento de novos horizontes: basta que ele atue, então, como alvo e que ele suspenda toda presença além da sua (o actante de controle é, assim, transformado em obstáculo). Esse mecanismo é particularmente evidente no caso da iluminação, em que a relação entre as fontes e os alvos da luz pode ser 105
Semiótica do discurso
perturbada pelo surgimento de obstáculos: actantes de controles que se transformaram em alvos. Como a estrutura dos actante de campo é independente da substância na qual o “campo” é realizado, ela pode manifestar-se em uma grande diversidade de formas. Por exemplo: em uma relação de comunicação entre dois parceiros, o actante de controle pode ser encarnado naquilo que se chama, por vezes, de um “destinatário adicional” ou “indireto” (um terceiro observador, visível ou invisível, cuja presença é conhecida por ao menos um dos parceiros e que exerce influência, consequentemente, no curso da troca). Em uma perspectiva completamente diferente, a evocação de uma experiência sensorial toma facilmente a forma de uma estrutura de campo em que dois princípios – um deles, uma fonte, e o outro, um alvo – são submetidos à regulação de um terceiro, o controle: assim, quando se degusta um vinho, se a força e a intensidade da fonte (o álcool, a vivacidade, a potência...) são orientadas na direção da estrutura estável de um alvo (as matérias, o açúcar, os taninos...), elas poderão ser submetidas à regulação de um controle, de um mediador que modifica a interação principal (as essências florais, os sabores frutados, a acidez...). E, ainda, se as figuras e tropos da retórica são considerados não como simples formas semânticas, mas como acontecimentos e operações que se passam em um texto sob os olhos de um observador (produtor ou intérprete), então a dimensão retórica do discurso é inteiramente submetida a essa estrutura actancial perceptiva. Em cada tropo ou figura, há (1) uma fonte (a confrontação entre domínios, entre isotopias, entre partes de domínios ou figuras, entre argumentos ou entre posições axiológicas etc.) (2) que visa problematicamente um alvo (uma resolução da confrontação inicial, uma resolução interpretativa, uma forma de síntese para combinações heterogêneas etc.), sendo que (3) entre essa fonte e esse alvo a enunciação dispõe de um controle, que é também um guia para a resolução ou interpretação do enunciado problemático (variações e deslocamento de sua própria força de assunção e de sua própria crença, efeitos de composição e de configuração mais ou menos estabilizados e identificáveis etc.). 106
O discurso
Portanto, o dispositivo geral do campo posicional é aplicável a numerosas categorias. Pode-se, por exemplo, falar em profundidade no espaço, no tempo, mas também na afetividade ou no imaginário. Se a substância que ele organiza é indiferente, suas propriedades (centro, horizontes, profundidade, actantes posicionais) permanecem constantes. Certamente tal diversidade de aplicações pode parecer atuar sobre deslocamentos metafóricos, mas trata-se, nesse caso, de transferências metafóricas que têm um valor metassemiótico e que revelam a permanência de um mesmo esquematismo elementar do discurso. A categoria da pessoa, por exemplo, também sofre modulações desse tipo. A variedade de pronomes pessoais que designam ou compreendem o Ego é testemunha disso. No caso do nós majestático, o nós amplificado, o centro transforma-se em uma forma maciça que se confunde rapidamente com o campo inteiro. O actante de controle e os alvos são, então, expulsos do campo. Esse nós transcendente não é afetado por qualquer outra presença que não seja a sua, ele não tem interlocutor, ele não admite nenhuma profundidade. Por outro lado, a distinção entre o nós chamado inclusivo (que inclui a segunda pessoa e que exclui todo o resto) e o nós chamado exclusivo (que exclui a segunda pessoa e inclui as terceiras pessoas) pode ser interpretada como um deslocamento do horizonte do campo. No primeiro caso, o actante de controle fecha o campo; no segundo, ele o abre aos “eles”. Em outras palavras, a diferença entre os dois nós não é uma simples diferença combinatória, mas uma modulação da profundidade da categoria de pessoa e uma modificação da consistência da fronteira do campo. O nós chamado “inclusivo” fortalece essa fronteira na medida em que os dois interlocutores se controlam mutuamente (até mesmo se confundem) para definir seu lugar, enquanto o nós chamado “exclusivo” enfraquece a fronteira, já que só o Ego tem, então, o domínio da parcela de “eles” que ele integra ao “nós” (e, além disso, nenhuma regra obriga-o a declarar qual é a extensão dessa parcela). Um outro exemplo disso é a experiência da madalena em Marcel Proust:13 quando o narrador conta sobre o “ressurgimento da lembrança” escondida nas profundezas da memória graças à degustação da madalena molhada no chá, ele instaura o campo posicional da instância de discurso e seria bem difícil, para ele, transcrevê-lo por meio de outras figuras que não as da profundidade. A fonte é, aqui, a lembrança escondida e o alvo, o corpo do actante. O actante sentiu o efeito da madalena, ele avaliou a profundidade na qual a
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lembrança está escondida. Ao reconhecer o efeito gustativo como associado a uma lembrança, ele, ao mesmo tempo, atribuiu um valor intencional a essa presença sensível. Entretanto, esse actante procura ser a fonte de uma visada, embora ele não chegue a apreender a lembrança escondida. O actante de controle é, então, representado pelas diferentes camadas de memória que a lembrança deve atravessar para reencontrar o corpo, centro do campo. O texto é muito explícito sobre a forma desse actante de controle: uma estratificação e uma espessura que freia, bloqueia, desvia o ressurgimento da lembrança e que, depois, libera a passagem para deixá-la florescer. No entanto o actante de controle só libera a lembrança se o actante centro do campo desistir de ser a fonte da visada e aceitar ser apenas o alvo: logo, a estrutura de comunicação é modificada pela inversão da relação intencional. Portanto, pode-se concluir provisoriamente que o actante de controle pode também funcionar como triagem entre orientações pertinentes e orientações não pertinentes. Ele resiste quando o corpo sensível da lembrança atribui a si mesmo a visada intencional, mas libera a lembrança quando o corpo sensível é, enfim, o objeto da visada intencional. Essa experiência pode ser apreendida em um outro nível de análise como uma micronarrativa, com personagens e peripécias. Entretanto, nesse caso, tratarse-ia da experiência narrativa, e não da experiência sensível, da experiência de uma presença, para a qual somente os actantes posicionais fonte, alvo e controle são pertinentes. É também a estabilidade dessa estrutura actancial posicional e perceptiva que permite a transposição imediata entre, de um lado, um campo sensorial gustativo e, de outro, um campo memorial: em ambos os casos, trata-se de um campo perceptivo.
3. Esquemas Discursivos A instância de discurso não assegura a inteligibilidade do discurso. Ela o atualiza e garante sua presença no mundo, leva a cabo os atos necessários à realização desse discurso. Todavia a significação desses atos não pode ser reduzida apenas a seus efeitos de presença: desse modo, cada ato seria sempre irredutivelmente singular e não traria nenhuma informação aproveitável ao mundo que ele tem por referente ou que propõe, já que não poderia ser relacionado e comparado a nenhum outro ato. Além disso, a presença não permite identificar nem as figuras nem os valores. Ela é sua condição, ela fornece as valências, é o pano de fundo sobre o qual os fenômenos recebem uma primeira esquematização semântica a partir da qual figuras e valores serão articulados. 108
O discurso
No entanto, o discurso proporciona-nos conhecimentos e emoções identificáveis. Se queremos compreender a maneira pela qual ele opera quando age sobre nós, devemos poder comparar, confrontar, generalizar, escapar da irredutível singularidade da presença atual. Nós devemos passar, em suma, do discurso em ato ao discurso enunciado, no qual os valores formam um “sistema” e as figuras assumem os contornos estáveis de “ícones”. De fato, quando falávamos de “ato primeiro”, de “tomada de posição original”, era apenas em relação a essa presença singular. No entanto, nunca se pode encontrar o “primeiro” discurso: a atividade discursiva é sempre apreendida em cadeia ou na espessura de outros discursos aos quais ele se refere incessantemente. Cada ocorrência do discurso é, ela própria, ocasião de um grande número de atos de linguagem encadeados e sobrepostos uns sobre os outros. É preciso passar, assim, do ato de enunciação à práxis enunciativa: a práxis é justamente esse conjunto aberto de enunciações encadeadas e sobrepostas no interior do qual se introduz cada enunciação singular. A partir desse momento, pela repetição, pela reformulação ou até pela inovação, todos os atos da práxis enunciativa são subjacentes ao exercício de um ato singular. É por isso que os discursos são capazes de esquematizar aquilo a que fazem referência e de projetar formas inteligíveis que nos permitem construir sua significação. Portanto, um esquema discursivo é uma forma inteligível, que mantém o elo com o universo do sensível: de fato, cada ato de enunciação reativa essas duas dimensões do sentido concomitantemente. Os esquemas discursivos exprimem, em suma, o elo entre o que nós compreendemos do discurso e nossa apreensão sensível de sua presença. Distinguiremos dois tipos de esquemas: (1) Os esquemas tensivos serão esquemas discursivos elementares, que regulam a interação do sensível e do inteligível, as tensões e os relaxamentos que modulam essa interação; (2) Os esquemas canônicos serão esquemas discursivos compostos, que conjugam e encadeiam vários esquemas tensivos sob uma forma cristalizada e imediatamente reconhecível em uma dada cultura. 109
Semiótica do discurso
O termo esquematismo, na tradição oriunda de Kant, designa a mediação entre o conceito e a imagem, e, de uma forma mais abrangente, entre as categorias do entendimento e os fenômenos sensíveis. Ernest Cassirer, em A filosofia das formas simbólicas, confere a essa atividade uma função central na linguagem: “A linguagem [...] possui tal esquema, com o qual ela precisa, necessariamente, relacionar todas as representações intelectuais, para, assim, torná-las apreensíveis e representáveis pelos sentidos.”14
3.1. Os esquemas de tensão Recorrendo ao princípio de base segundo o qual os esquemas asseguram a solidariedade entre o sensível (a intensidade, o afeto etc.) e o inteligível (o desdobramento na extensão, o mensurável, a compreensão), pode-se definir o conjunto dos esquemas discursivos elementares como variações do equilíbrio entre essas duas dimensões, variações que conduzem seja ao aumento da tensão afetiva, seja ao relaxamento cognitivo. O aumento da intensidade leva à tensão; o aumento da extensão leva ao relaxamento. Portanto, a sintaxe do discurso, esse encadeamento e essa sobreposição de atos, conjuga a todo o momento a dimensão da intensidade (o sensível) e a dimensão da extensão (o inteligível). A essa altura, nosso objetivo é prever e calcular seus cenários típicos. 3.1.1. Os quatro esquemas elementares
Os esquemas discursivos elementares são, de acordo com a definição anterior, movimentos orientados na direção de uma maior tensão ou de um maior relaxamento. Esses diversos movimentos conjugam diminuições e aumentos da intensidade a reduções e desdobramentos da extensão. O princípio organizador da estrutura tensiva (ver capítulo “As estruturas elementares”) permite-nos imaginar quatro grandes tipos de movimentos:
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O discurso
(1) A diminuição da intensidade combinada com o desdobramento da extensão produz um relaxamento cognitivo: é o esquema descendente ou esquema da decadência;
(2) O aumento da intensidade combinado com a redução da extensão produz uma tensão afetiva: é o esquema da ascendência;
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Semiótica do discurso
(3) O aumento da intensidade combinado com o desdobramento da extensão produz uma tensão afetiva e cognitiva: é o esquema da amplificação;
(4) A diminuição da intensidade combinada com a redução da extensão produz um relaxamento geral: é o esquema da atenuação.
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O discurso
3.1.1.1. O esquema de decadência
Este primeiro cenário parte de um realce da intensidade, de um choque emocional, para o relaxamento produzido pelo desenvolvimento, uma explicação ou, ainda, uma reformulação em extensão. A teoria dos incipit,* seja a de Louis Aragon sobre seus romances em Je n’ai jamais appris à écrire ou Les incipit15 [Nunca aprendi a escrever ou Os incipit] ou a de Paul Valéry sobre seu poema La jeune parque16 [A jovem parca] em Fragments des mémoires d’un poème17 [Fragmentos das memórias de um poema], é a perfeita ilustração desse cenário. Ambos apresentam a práxis enunciativa do ponto de vista da produção como um breve momento de “inspiração”, no qual se esboçam, ao mesmo tempo, o começo do texto e sua forma geral seguidos de um longo tempo de desenvolvimento e de “preenchimento” dessa forma. Aragon e Valéry chegam a defender, cada um a seu modo, que os dois momentos não têm nem o mesmo estatuto cognitivo nem o mesmo estatuto modal. No primeiro momento, o corpo, a imaginação e as figuras do inconsciente predominam; no segundo, é a cognição, a releitura e a produção consciente e refletida, por sua vez, que tomam a cena. O primeiro momento encerra uma tomada de posição explosiva, e a sequência do processo é a exploração cognitiva dessa primeira tomada de posição. Em um domínio completamente diferente, a relação entre o que os publicitários chamam de gancho criativo e o restante do anúncio é do mesmo tipo: o gancho só tem valor de realce devido a sua capacidade de captar o olhar e a atenção do espectador, isto é, sua capacidade de propor uma formulação condensada, intensa e, portanto, afetivamente eficiente. O restante do anúncio, seu aspecto visual e textual, explora e difunde essa atenção para conduzi-la a uma decisão ou a um outro ato cognitivo qualquer por meio de uma argumentação mais ou menos complexa. 3.1.1.2. O esquema de ascendência
O segundo cenário, que é o contrário do primeiro, conduz a uma tensão final. De alguma maneira, essa tensão faz, explosivamente e de um modo afetivo, a soma de tudo o que a antecede. Nas estruturas narrativas, é esse * N.T.: Vocábulo latino dicionarizado em português que designa as primeiras palavras de um texto ou, ainda, as palavras iniciais de uma obra sem título.
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tipo de esquema que administra, por exemplo, o crescimento progressivo do medo nas narrativas de terror ou simplesmente do suspense. Contudo a própria sintaxe da frase, na medida em que é submetida à orientação e à práxis discursiva, fornece-nos muitos exemplos desse cenário, especialmente com o tipo dito exclamativo. A edição cinematográfica, que se crê ser controlada pela instância enunciativa do filme, também usa muito esse recurso. Quando a edição vale-se de um estreitamento (progressivo ou repentino) do campo até chegar a um rosto enquadrado em close-up ou apreendido por uma “inserção”, ela passa do desenrolar descritivo e narrativo a um efeito puramente emocional. Inversamente, quando ela amplia progressivamente o campo, partindo de um close-up ou de um plano próximo para chegar a uma série de planos gerais ou panorâmicas, descritivas ou narrativas, ela passa do efeito emocional (o equivalente, de alguma forma, a uma questão ou a uma exclamação) a um desdobramento explicativo e cognitivo. Independentemente das razões particulares que podem conduzir a tais escolhas, a dialética do sensível e do inteligível é sempre determinada pela escolha global de um esquema ascendente ou decadente. Pode-se também evocar, a título de indicação, a construção dos gêneros literários que possuem um desfecho inesperado: a reviravolta da novela, a chave de ouro do soneto, são picos de intensidade que põem em causa globalmente a significação daquilo que os precede não para contradizê-la, mas para propor, no último instante, uma síntese imprevisível e reativar a emoção – paixão, inquietação ou incerteza. De fato, esses “desfechos” e “chaves” impõem uma retroleitura do conjunto do texto. No entanto não se trata – exceto para os leitores “profissionais” e acadêmicos – de uma releitura cursiva. Instantaneamente, sob o impacto da emoção, o desfecho inesperado e a chave incitam-nos a percorrer e a reconfigurar de uma só vez o que restou do texto na memória. Esse percurso faz, de alguma forma, a “soma” de tudo o que lhe é anterior e, graças a essa condensação última, abre-se para novas articulações possíveis da significação do conjunto. 3.1.1.3. O esquema de amplificação
O terceiro cenário baseia-se em um princípio de gradação geral que parte de um mínimo de intensidade e de uma fraca extensão para desembocar 114
O discurso
em uma tensão máxima, igualmente desdobrada na extensão. Nesse caso, o aumento da informação e o desdobramento cognitivo não provocam uma redução de intensidade, ao contrário: o sensível e o inteligível crescem, então, conjuntamente. Pensemos na maior parte das construções sinfônicas, que nos conduzem da linha fina e quase inaudível dos soli aos tutti mais explosivos. Pensemos também, na retórica, em todas as figuras ditas de amplificação: nas imediações de uma passagem do texto ou no texto inteiro, elas generalizam e difundem um efeito enquanto aumentam a sua intensidade. No que toca aos limites da frase, esse esquema é também semelhante ao efeito ocasionado pela ênfase. A tragédia clássica serve-se desse esquema. No Ato iv da tragédia, as tensões diminuem, esboçam-se arranjos, dir-se-ia que a intensidade dramática está enfraquecida antes mesmo que uma solução seja, de fato, encontrada. No Ato v, a crise irrompe com ainda mais força, pois, em breve, a morte ou a desgraça não terá poupado nenhum dos protagonistas: essa intensidade destrutiva e contagiosa é o único desenlace possível. Em contrapartida, na comédia, toda crise deve resolver-se segundo o modelo do esquema descendente graças a arranjos cognitivos, acordos razoáveis. Ou, ainda, graças a novos fatos e descobertas de último momento – por vezes apresentados até de maneira trabalhosamente explicativa –, as relações entre os protagonistas reorganizam-se e a situação estabiliza-se. 3.1.1.4. O esquema de atenuação
O quarto cenário possível é o do declínio geral das tensões e dos desdobramentos: segundo um princípio de redução ou, ainda, de diminuição das forças no discurso, bem como de abreviação da extensão, esse cenário conduz a um relaxamento que tem a forma de desvalorização geral que convoca, ela própria, uma reavaliação. As valências sensíveis da intensidade e as valências inteligíveis da extensão estão no grau mais baixo, ou mesmo sem grau algum, à espera de uma amplificação. Sob certos aspectos, a redução das tensões no Ato iv da tragédia clássica, sem que, no entanto, nenhuma solução cognitiva delineie-se, estaria relacionada a esse cenário. De forma mais abrangente, o reinado da insipidez resulta de um esquema como esse. A insipidez nunca está instaurada, ela deve exercer incessantemente seu controle sobre as sensações, sobre as figuras e as situações evocadas. Evocar 115
Semiótica do discurso
a insipidez na obra de Paul Verlaine, por exemplo, é mencionar o conjunto dos procedimentos semânticos e formais pelos quais ela “desliga” o vibrar das sensações e graças aos quais ela visa um estado neutro (ou neutralizado), um estado de completo relaxamento. Em sua obra Sagesse18 [Sabedoria], por exemplo, o poema L’Échelonnement des haies [A fileira das sebes] conduz-nos de uma evocação contrastada (mas somente potencial) dos elementos de uma paisagem do campo (vegetais, moinho, animais, sons de um sino) a sua apresentação (atual) mais neutra possível. No final das contas, no momento da realização sintética dessas figuras, tudo se confunde na atmosfera aconchegante do nevoeiro: os vegetais e os animais, graças à metáfora, têm suas propriedades trocadas; graças à comparação, os sinos soam como flautas, e, no último verso, o céu é como leite. Por fim, o traço /materno/ confere a essa neutralidade da presença e a esse relaxamento uma dimensão psíquica e afetiva que poderia ser explorada em uma interpretação psicanalítica. A insipidez é também, segundo François Julien em seu Éloge de la fadeur19 [Elogio da insipidez], o princípio central de toda a cultura chinesa. Entretanto essa insipidez é estratégica: ela permite, por intermédio da posição mais neutra possível em relação a todas as coisas, reencontrar o centro ou a base de toda a experiência do mundo. A insipidez seria, em suma, o lugar menos determinado, menos específico, lugar de uma presença ao mesmo tempo contida (no plano da sensibilidade) e genérica (no plano da cognição) e, consequentemente, um lugar em que, nada estando atualizado de antemão, tudo ainda é possível. A zona das valências mais fracas da intensidade e da extensão, essa zona que visa o esquema de atenuação, seria, como tal, a zona virtual por excelência, aquela do apagamento e do desaparecimento das figuras, mas também de onde podem emergir novas formas semióticas. Em uma perspectiva completamente diferente, essa zona das valências fracas seria também a zona do escárnio. Pensemos, por exemplo, no papel das figuras do escárnio em Alcools, de Apollinaire: no momento em que a tensão afetiva aumenta, sem esperança de solução – trata-se geralmente de um amor infeliz ou perdido –, o gracejo ou a piada inapropriada vem reduzir a força da emoção sem, no entanto, resolver as coisas nem em intensidade nem em extensão. Se se pode dizer que o
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O discurso
humor “quebra” o ritmo de uma troca ou de um discurso, não é somente porque ele muda seu tom ou seu registro – isso é apenas um meio de fazê-lo –, mas, sobretudo, porque ele impõe um novo equilíbrio entre o sensível e o inteligível. Além disso, em Alcools, o esquema de atenuação generaliza-se: o escárnio está associado a um emprego lexical antiquado, a anacronismos, a todo um conjunto de figuras locais, acidentais e sem capacidade de desdobramento textual, que manifestam o enfraquecimento da assunção enunciativa.
3.2. Esquemas canônicos Os esquemas de tensão são, de algum modo, “sílabas” do discurso que podem combinar-se para formar sequências discursivas (o equivalente dos sintagmas e das frases). Viu-se, por exemplo, que a tragédia clássica encadeava três cenários tensivos sucessivos: (1) o esquema ascendente, quando se configura o drama; (2) o esquema de atenuação, quando, no Ato iv, os conflitos apaziguam-se; e, enfim, (3) o esquema de amplificação, pelo qual a catástrofe advém e generaliza-se. Esse encadeamento típico forma o esquema canônico da tragédia clássica “à francesa”. Cada tipo de discurso, talvez até mesmo cada gênero (conforme o exemplo anterior da reviravolta da novela e da chave de ouro do soneto), e cada figura de retórica são, assim, compostos de um ou vários esquemas complexos, cujo reconhecimento pelo leitor é uma das mais confiáveis e mais gerais técnicas de leitura. Como esses esquemas são característicos de um tipo ou de um gênero, eles guiam a priori a compreensão do discurso e têm, por isso, o estatuto de esquemas culturais instaurados de forma convencional ou herdados da tradição, razão pela qual eles são chamados de esquemas canônicos. Os princípios de composição dos esquemas canônicos têm um grande poder heurístico, na medida em que eles conferem uma forma estável a um processo de resolução da heterogeneidade. O caso da paixão da “cólera” é particularmente significativo: quando nos interessamos pela cólera humana – aquela comentada por Sêneca, por exemplo, em seu De ira, ou aquela analisada por Greimas, em Du sens ii [Sobre o sentido ii] –, vemos esboçar-se uma composição “ascendente/decadente” que se baseia sobre uma correlação inversa entre a intensidade da emoção e de suas manifestações de um lado e, de outro, na extensão dessas mesmas manifestações (o número e a duração das 117
Semiótica do discurso
medidas de represália, por exemplo). Como diz Sêneca, a explosão imediata conduz a uma cólera impotente, já que sua intensidade esgota-se no instante, em detrimento da represália e da vingança. No entanto, quando nos interessamos pela cólera divina, a situação muda de figura já que essa cólera só obedece ao esquema de amplificação: sua manifestação na intensidade é, na verdade, compatível com sua extensão a todas as coisas, com a duração e a multiplicação de suas expressões e consequências. Tal diferença não pode ser tratada como um detalhe uma vez que se passa, nesse caso, de uma paixão-sentimento (que governa as emoções e os comportamentos) a uma paixão-mito (que coloca em cena forças cósmicas e as condições de existência do mundo e dos humanos). Além do mais, esses esquemas canônicos compostos podem atingir tamanho grau de generalidade que tornam inteligíveis grandes classes de discursos que extrapolam em muito os limites de um tipo ou de um gênero determinados. É o caso, por exemplo, dos esquemas narrativos canônicos e dos esquemas passionais canônicos, que, no interior de uma zona cultural dada, determinam a sintaxe discursiva da ação e da paixão e definem, assim, duas grandes dimensões do discurso em geral. 3.2.1. Os esquemas narrativos canônicos 3.2.1.1. Esquema da prova
O esquema da prova é definido tradicionalmente como o encontro entre dois programas narrativos concorrentes (ver capítulo “Ação, paixão, cognição”): dois sujeitos disputam o mesmo objeto. Entretanto, no esquema da prova estabelecido empiricamente a partir dos trabalhos de Propp, a modificação do enunciado de base – que permite identificar os programas narrativos – só intervém na última etapa, que é precedida por duas outras. Eis o esquema completo: Confrontação
Dominação
Apropriação/Desapropriação
A apropriação é o programa narrativo de conjunção que beneficia o vencedor, e a desapropriação, o programa narrativo de disjunção que afeta o 118
O discurso
outro sujeito. Todavia o estatuto das duas outras etapas não pode ser traduzido em um programa narrativo, isto é, em um discurso-enunciado stricto sensu. Na verdade, a confrontação é pura e simplesmente a colocação em presença dos dois actantes e de seus programas: sem esse encontro, assegurado pelo discurso em ato, a prova jamais aconteceria. Para poder disputar o objeto, os dois sujeitos devem tomar posição em um mesmo campo, o campo de presença da instância de discurso. Às vezes, o motivo do conflito pode limitar-se, ainda, apenas a essa confrontação: trata-se, então, somente de conquistar uma posição, de ocupar sozinho o centro do campo de referência, sem que nenhuma transferência de objetoesteja em causa. A partir de então, o sentido da dominação torna-se mais claro: antes mesmo de ganhar ou perder o objeto, os sujeitos devem medir suas forças, opor-se para saber quem prevalecerá sobre o outro. O que significa prevalecer sobre o outro senão assumir uma posição dominante? Essa dominação pode, primeiramente, expressar-se na forma de modalidades da presença: o vencedor é aquele que tem a presença mais forte, ele se posiciona no centro do campo de referência; o vencido, aquele que tem a presença mais fraca, que é expulso para a periferia, em uma profundidade humilhante ou fora do campo. Essa fase pode ser manifestada isoladamente, assumindo, nesse caso, a forma de um “sombreamento”, que é uma das figuras típicas de alguns percursos passionais como o ciúme: a sombra do rival estende-se no campo do sujeito devido, justamente, a sua presença intensa demais. A dominação pode também se expressar na forma de modalidades da competência: o poder fazer de um dos sujeitos prevalece sobre o poder fazer do outro. Contudo o poder fazer do vencido não é necessariamente nulo (não poder fazer): o valor da vitória é, de fato, proporcional ao da resistência. Mesmo em termos modais, a dominação é ainda uma questão de intensidade e quantidade. Portanto, o esquema da prova pode ser apenas parcialmente traduzido em programas narrativos: só sua última fase convém realmente a essa descrição. Em contrapartida, ele corresponde globalmente ao encadeamento de dois esquemas de tensão: de início, o esquema ascendente, que conduz da confrontação à dominação e durante o qual o combate pela posição torna a presença do vencedor mais avivada; na sequência, o esquema descendente, que conduz da dominação à 119
Semiótica do discurso
apropriação/desapropriação e que, graças a uma transferência de objeto, favorece (ao menos provisoriamente) o relaxamento narrativo. O conjunto todo está sob o controle da enunciação e, especialmente, da orientação discursiva: é ela que, na verdade, delibera sobre a coincidência ou não coincidência entre a posição que motiva o conflito narrativo e o centro do campo posicional do discurso. Dessa deliberação depende o ponto de vista ao qual o esquema será submetido: o ponto de vista do vencedor, se essas duas posições coincidirem, ou o ponto de vista do perdedor, se elas não coincidirem. Não é preciso dizer que os efeitos axiológicos e passionais de ambos diferem completamente. 3.2.1.2. O esquema da busca
O esquema da busca, estabelecido por A. J. Greimas a partir de Propp, mobiliza quatro etapas diferentes: o Destinador e o Destinatário, e o Sujeito e o Objeto (ver capítulo “Os actantes”). Os dois últimos, o Sujeito e o Objeto, estão vinculados, como se viu anteriormente, por programas de conjunção ou de disjunção. Os dois outros, o Destinador e o Destinatário, surgem aqui devido a uma nova dimensão do esquema narrativo: a busca que, na verdade, é uma forma de transferência de objetos de valor. Não se trata mais do conflito entre dois actantes para ocupar uma mesma posição ou para conquistar um objeto. Trata-se da definição e da atualização de valores que conferirão sentido ao percurso do Sujeito. Eis por que, sendo aqui o valor uma determinação suplementar (e particularmente decisiva), tradicionalmente se grafa esses quatro actantes com letra maiúscula. Portanto, o esquema da busca analisa-se em duas dimensões: de um lado, as “junções” e as tensões que as acompanham e, de outro, a manipulação dos valores. As “junções” obedecem, de uma maneira geral, ao esquema decadente (quando o resultado é uma conjunção) ou ascendente (quando o resultado é uma disjunção). Contrariamente, a manipulação dos valores obedece aos esquemas de amplificação ou de atenuação, na medida em que as variações da quantidade das trocas fazem variar solidariamente e no mesmo sentido o valor dos objetos em circulação. O Destinatário (aquele que recebe o Objeto de valor) é muito frequentemente o mesmo ator que o Sujeito (aquele que busca o Objeto), embora isso nem sempre
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O discurso
ocorra. De todo modo, trata-se realmente de dois papéis actanciais diferentes: enquanto Destinatário, ele participa da definição dos valores; enquanto Sujeito, ele participa dos programas de junção com o Objeto. Já se acreditou, por vezes, poder suprimir o Destinatário devido a essa confusão com o Sujeito, mas isso equivale a ignorar a diferença de pertinência entre os dois níveis do esquema canônico.
Portanto, cada um dos dois pares de actantes segue seu próprio percurso. O percurso do par Destinador/Destinatário é o seguinte: contrato
(ou manipulação)
ação
sanção
O percurso do par Sujeito/Objeto será: Competência
Performance
Consequência
O segundo é acoplado ao primeiro, já que o conjunto de suas três etapas equivale à segunda etapa (Ação) do primeiro esquema: ação
= Competência
Performance
Consequência
Estes dois percursos podem se entrelaçar na cadeia do discurso, mas sua diferença radical de estatuto (o primeiro controla e engloba o segundo, definindo os valores que o outro manipula) obriga-nos a considerá-los como duas camadas de determinações distintas. Quanto à manifestação textual, ela é objeto de uma competição: uma das duas camadas deve apagar-se provisoriamente para que a outra apareça. Esses dois percursos mantêm uma relação hierárquica e, portanto, não podem ser “nivelados” em uma única sequência linear. Por exemplo: quando o Sujeito passa à ação, ele pode parecernos como sendo independente do Destinador. Este último ainda pode intervir, mas somente sob uma forma enfraquecida e servil, como Adjuvante, que completa ou reforça a competência do Sujeito. Isso significa que, nesse momento, o centro do campo posicional é ocupado pelo par Sujeito/Objeto ou, ao menos, pelo Sujeito sozinho. O Destinador só ocupa uma posição marginal: ele permanece transcendente, mas está além do horizonte do campo. 121
Semiótica do discurso
De maneira inversa, na negociação do contrato ou no momento da sanção, a relação entre Sujeito e Objeto entra em “modo de espera” (ela é, então, somente potencial). Em certos tipos narrativos, o Sujeito deve até mesmo entregar o Objeto que conquistou a seu Destinador para definir melhor sua mudança de estatuto (ele era Sujeito e torna-se Destinatário). Nesse momento, é a relação Destinador/Destinatário que ocupa o centro do campo posicional em detrimento do outro par de actantes. Portanto, a sequência que desenvolve a ação é, ao mesmo tempo, subordinada à sequência geral, que a determina, e também está em competição com ela no que toca à manifestação textual. Não é somente uma questão de ponto de vista (pdv) do Sujeito ou do Destinador, mas, primeiramente, uma questão axiológica. Na verdade, de acordo com a relação dominante (Sujeito/Objeto ou Destinador/Destinatário), o valor dos valores residirá quer na busca quer na circulação dos objetos. A aproximação entre a manipulação e a aquisição de competência é particularmente esclarecedora, especialmente porque põe em evidência dois tipos diferentes de intencionalidade. Graças à manipulação, o Destinador negocia a passagem do Destinatário à ação, isto é, sua conversão em Sujeito. Conhecendo os valores, o Destinador empenha-se em realizá-los, em fazê-los emergir em um plano de realidade diferente do seu; ele tenta fazê-los sair do plano transcendente para o plano imanente. Portanto, no horizonte da manipulação, a hierarquia entre os valores permanece sempre presente, e é a tensão entre seu estatuto virtual e potencial (no domínio do par Destinador/Destinatário) e seu estatuto atual ou realizado (no domínio do par Sujeito/Objeto) que dá suporte, então, à intencionalidade. Em contrapartida, graças à aquisição de competência (as modalidades do querer fazer, do poder fazer etc.), o Sujeito obtém só a identidade necessária para a performance. Essa competência é exclusivamente dirigida para a conclusão do programa narrativo, e não para a realização de valores. A intencionalidade reside, então, apenas na tensão entre os programas disjuntivos e os programas conjuntivos. Essa diferença intencional pode engendrar, em narrativas mais complexas, escrúpulos, hesitações, que não são nada mais do que as expressões afetivas do “ir e vir” entre os dois níveis de pertinência do esquema narrativo canônico. No entanto, essas expressões são, ao mesmo tempo, indícios de uma forte solidariedade entre os níveis. Muitas vezes, o sujeito do discurso parece inquieto ou indeciso: dividido entre seu papel de Sujeito e seu papel de Destinatário; ele deve, na verdade, negociar incessantemente entre os fins e os meios, entre a manipulação dos valores e a conquista do objeto. Encurralada entre essas duas posições, a instância de discurso insurge-se ou tergiversa.
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O discurso
Somente a existência do valor não é afetada por essas variações do grau de presença discursiva. O Sujeito em ação pode “esquecer” que ele é também um Destinatário, mas não pode “esquecer” o valor atribuído ao Objeto, na falta do qual seu percurso inteiro muda de sentido – o que não deixará de ser notado no momento da sanção. Caso esse valor seja perdido de vista por um só instante, o Sujeito deverá, então, analisar a situação, deliberar, reativar os sistemas de valores e restabelecer o contato com a instância do Destinador. Isso porque, considerando um estado qualquer ou, ainda, um estado preciso da instância de discurso, a presença do valor não pode ser enfraquecida: ele é presente, ele é a própria presença no centro do dispositivo enunciativo. Se a presença do valor se enfraquece, ela se torna antifrástica, irônica, sarcástica: um outro estado da instância de discurso surge ou até mesmo uma nova instância começa a tomar posição. Portanto, reteremos do esquema canônico da busca que ele é composto de duas camadas distintas que pertencem a dois domínios de pertinência diferentes, sendo, no entanto, solidários, e passando, alternadamente, do primeiro ao segundo plano do discurso. 3.2.2. Outros esquemas canônicos
Sendo os esquemas narrativos, por definição, os produtos da práxis enunciativa, eles dependem das zonas culturais – às vezes individuais, mas quase sempre coletivas – nas quais eles foram fixados pelo uso. Nos anos 1960 e 1970, a Semiótica acreditou poder generalizar os esquemas canônicos, especialmente o esquema da busca, para gerar um esquema universal do sentido da ação. Essa ambição parece hoje não somente fora de questão, mas, em seus fundamentos, injustificada. Na verdade, cada cultura tem sua própria representação do sentido da ação ou, de uma forma mais abrangente, seus próprios esquemas do “sentido da vida”. É claro que, por exemplo, uma cultura em que o destino de cada indivíduo é considerado como tendo sido já escrito desde o começo dos tempos não atribuirá muito sentido à busca individual. Já na cultura cristã francesa da época clássica, o debate entre jesuítas e jansenistas sobre a graça era, indiretamente e levando-se em conta o “sentido da vida”, um debate sobre os esquemas narrativos da ação. Aquele que acredita poder construir 123
Semiótica do discurso
e ganhar sua salvação pode fazer dela um objeto de busca; aquele que acredita ter recebido ou não a graça só pode se esforçar por merecê-la, o que deixa de ser uma busca no sentido restrito e torna-se um esforço permanente a respeito de sua própria identidade. Até mesmo no âmbito do corpus folclórico e literário europeu, a partir do qual os primeiros esquemas foram elaborados, constata-se que várias classes de narrativas foram ignoradas, como, por exemplo, as narrativas em que o medo domina ou cuja fuga é a forma dominante da intriga. No entanto, muitos dos contos e novelas de Guy de Maupassant baseiam-se no primeiro tipo de narrativa, ao passo que toda a tradição do conto fantástico, como também vários dos romances de Céline, integra o segundo tipo. De uma forma geral, só se consideraram os casos em que os sujeitos narrativos eram colocados face a objetos de valor desejáveis. Por isso, o esquema da busca ignora todas as situações narrativas que colocam os sujeitos face a objetos negativos, repulsivos ou assustadores. 3.2.2.1. Algumas alternativas para o esquema da busca
O modelo cultural dominante baseia-se em uma falta a ser sanada: o sujeito narrativo sabe (ou descobre) da existência de um objeto de valor, e a falta que ele sente desse objeto desencadeia a busca. Mas a literatura também explorou outras situações: face a um número de objetos cada vez maior, objetos que invadem seu campo de presença, o sujeito narrativo aterroriza-se, sufoca-se e procura deles escapar. Esse é, evidentemente, o esquema dominante em Eugène Ionesco: em seu teatro, as cadeiras, os rinocerontes, os cadáveres, as palavras e as frases proliferam por repetição e acumulação, saturando o campo de presença – no caso, a própria cena teatral. Ao mesmo tempo, esses objetos perdem todo seu valor – de certa forma, por inflação –, e sua presença torna-se opressora. Sem chegar à saturação simbólica e dramática, própria ao teatro de Ionesco, o novo romance francês explora também esse filão, dando uma atenção quase obsessiva aos objetos que saturam o campo de presença. É só lembrarmos, por exemplo, das recorrentes enumerações de O ciúme, de Robbe-Grillet, ou das descrições extasiadas de Le procès-verbal 20 [A Investigação], de Jean-Marie Gustave Le Clézio. De uma forma completamente diferente, Georges Perec, em As coisas,21 mostra como a 124
O discurso
busca de objetos de valor leva a condutas estereotipadas e como sua acumulação esvazia, pouco a pouco, o seu sentido. Essa convergência tenderia a provar que, hoje, a questão pertinente é mais a da saciedade do que a da falta: seria preciso fugir ou aprender a suportar a presença invasiva dos objetos, ou inventar novos sistemas de valor, que servissem a buscas que ainda não foram pensadas. Por outro lado, para além do toque de modernidade dos exemplos precedentes, há muito tempo se conhece um tipo de objeto que suscita esquemas diferentes daquele da busca. Trata-se de uma classe de objetos que pode voltar-se a qualquer momento contra quem lhes possui, objetos que podem tanto alimentar quanto envenenar, tanto exaltar quanto degradar aquele que os conquistou. O phármakon grego é seu melhor exemplo: um remédio que é também um veneno. Todavia os exemplos são incontáveis: objetos mágicos que se tornam maléficos se não se cumpriu este ou aquele ritual; o açúcar, que se torna no imaginário dos diabéticos um veneno; as drogas em geral; o objeto amado, no caso do ciúme (veneno que consome as entranhas de Otelo). Por fim, temos a escrita, como retratada por Platão em um mito já famoso: assumindo o lugar de nossas lembranças imperfeitas, ela nos libera do tempo, mas, ao mesmo tempo, ela nos prende a uma técnica, enfraquecendo a nossa memória. Esse tipo de objeto, cuja própria presença é um fator de reviravolta axiológica, conduz a percursos de “resistência”, de “contenção” ou de “mérito”. Se o sujeito for merecedor (por sua força, por seus atos, por suas qualidades, por uma predestinação qualquer etc.), a presença do objeto permanecerá benéfica. Por outro lado, no que diz respeito ao esquema da prova, as teses feministas insistem sobre seu caráter cultural marcado pelo imaginário masculino. Luce Irigaray, por exemplo, a esse esquema opõe esquemas de fusão amorosa, de maternidade e de troca de cuidados e de favores que corresponderiam, segundo ela, ao imaginário narrativo feminino. Essas breves observações trazem-nos de volta à presença. O esquema da busca baseia-se na falta,* e, no que toca à presença, a falta baseia-se sobre a
* N.T.: No original, “manque”.
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Semiótica do discurso
deficiência* do objeto: a visada, que é, então, intensa (uma espera, uma grande atenção suscitada pelo objeto), encontra apenas uma apreensão fraca ou nula. A liquidação da falta consiste justamente em adaptar a extensão da apreensão à intensidade da visada. Nesse caso, a apreensão denomina-se conquista ou captura. Portanto, o modo de presença/ausência do Objeto parece determinar para o Sujeito a forma do percurso narrativo que os associa. Se uma tipologia dessa natureza é concebível, ela se baseará nos modos de presença. Aqui estão suas grandes linhas:
As narrativas de plenitude raramente são narrativas felizes. Como a felicidade não dá origem a boas histórias, encontramos nesse esquema narrativo, sobretudo, as formas de saturação opressora ou obsessiva sobre as quais fizemos referência anteriormente. A ação só tem sentido quando ela permite fugir do campo de presença saturado ou, ainda, recompô-lo, fazendo assim uma triagem entre os objetos e entre os valores. Os esquemas narrativos de opressão, de fuga ou de recomposição seletiva baseiam-se, consequentemente, na plenitude angustiante do Objeto para o Sujeito. Seria preciso dar uma atenção particular às narrativas de triagem axiológica: elas podem, por vezes, ter superficialmente o aspecto de narrativas de busca, mas a busca em questão é apenas um programa secundário que não fornece a significação global do discurso, pois o discurso, nesse caso,
* N.T.: No original, “défaut”. Valendo-se das primeiras traduções ocidentais de Propp, Greimas privilegiou o vocábulo francês “manque” (“falta”, em português; “lack”, em inglês) para descrever aquilo que está na origem da busca do sujeito narrativo. Embora não haja neste texto uma explicação completa da distinção entre os vocábulos “manque” e “défaut” – sinônimos tanto em francês quanto em português –, fica claro que o autor optou, propositalmente, por desdobrá-los e discriminá-los. Desse modo, “manque” designa aqui a manifestação narrativa do estado disjuntivo do sujeito, e “défaut”, que tem origem na apreensão insatisfatória do objeto, caracteriza um tipo preciso de esquema narrativo, a “narrativa de deficiência”.
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O discurso
está inteiramente consagrado à discriminação entre o “bom” e o “ruim”, o “desejável” e o “execrável” etc. O “mérito” do sujeito e sua demonstração ao longo de todo percurso é frequentemente o princípio de distinção utilizado. Nos casos extremos, a triagem é tão exclusiva que não aproveita nada: chegase, então, ao cinismo ou ao niilismo, que fazem, cada um a seu modo, a mesma desvalorização geral dos objetos. As narrativas de inanidade estão bem representadas em As coisas, de Perec: quanto mais objetos os sujeitos narrativos acumulam, mais seu desejo enfraquece-se e menos o valor desses objetos conta para eles. Os objetos conservam seu valor social, econômico ou simbólico, mas perdem, pouco a pouco, sua qualidade de presença para a instância de discurso. Por outro lado, em uma perspectiva diferente, toda narrativa na qual o sujeito, de início bem preparado, põe em jogo seu capital de objeto faz parte das narrativas de inanidade. Um jogador,22 de Dostoievski, e A pele de Onagro,23 de Balzac, são narrativas em que, para dar novamente sentido à ação, aquele que possui algo (os bens, a vida) deve arriscar-se a perdê-lo. Portanto, nesse caso não é mais a busca que determina o valor da ação, mas o risco. Logo, os esquemas narrativos do risco baseiam-se na inanidade do Objeto para o Sujeito, pois tomam como ponto de partida o valor mais fraco do objeto para reatualizá-lo de forma arriscada. Muitos textos de aventura que parecem ser superficialmente narrativas de busca funcionam, de fato, do ponto de vista da instância de discurso, e especialmente do ponto de vista do engajamento passional dessa instância, de acordo com o modelo do risco. As narrativas de vacuidade são bem menos frequentes, mas o esquema da errância (especialmente no cinema, nos road movies de Jim Jarmush) seria uma boa ilustração de seu funcionamento. Na seara romanesca, L.-F. Céline parece também ter explorado esse filão. Seu Viagem ao fim da noite apresenta-nos um universo em que os valores se desintegram: não se tem mais coragem, nem honra, nem amor, nem se tem mais fidelidade ou segurança, nada vale a pena ser vivido, com exceção do prazer. Na verdade, as personagens, e especialmente Bardamu, colhem aqui e ali, enquanto erram por esse universo deprimente, bens materiais, algumas vantagens e, particularmente, alguns prazeres, mas tudo lhes escapa sistematicamente, até a vida, no caso de alguns deles. 127
Semiótica do discurso
Esse universo narrativo é aquele da vacuidade no sentido de que nada vale a pena ser visado e que nada pode ser apreendido, por pouco que seja. Ele difere do universo cínico (o cinismo filosófico de Diógenes), na medida em que o cinismo apregoa que nada vale a pena ser visado, mas que é preciso, todavia, apreender tudo o que é necessário à satisfação imediata. Os heróis de Céline, ao contrário, apreendem pouquíssimas coisas: assiste-se a um verdadeiro arrefecimento intencional, tanto da visada quando da apreensão. A partir disso, a única coisa em que se pode pensar é na degradação: degradação do corpo, degradação das coisas e dos lugares, degradação das almas, enfim, a pura abjeção. Logo, os esquemas de degradação basear-seiam na vacuidade do Objeto para o Sujeito. Na verdade, em Céline, o campo de presença não é vazio. Ele chega até a ser saturado, mas por “presenças agressivas” e destrutivas. Não é mais o sujeito que visa ou que apreende, é ele que – e aqui está a reviravolta final em nossa esquematização – é visado e apreendido pela morte. Reencontrase, então, o modo da plenitude opressora, e a única maneira de dar sentido de novo à ação é fugir. Os quatro tipos da presença produzem quatro esquemas de base: (1) a deficiência: o esquema da busca; (2) a plenitude: o esquema da fuga ou da recomposição seletiva (por triagem ou por mérito); (3) a inanidade: o esquema do risco; (4) a vacuidade: o esquema da degradação. Esse esboço tipológico não esgota, sem dúvida, as possibilidades de esquematização narrativa. Todavia, ele delineia seu princípio e seus horizontes.
3.2.2.2. Algumas alternativas para o esquema da prova
No que diz respeito ao esquema da prova, as coisas são sem dúvida mais simples, pois as alternativas já são conhecidas: relações polêmicas ou relações contratuais. Todavia, algumas nuanças podem ser feitas no esquema se as possibilidades oferecidas pelo quadrado semiótico forem levadas em conta. De fato, o contrato e a polêmica podem ser considerados como os dois polos da relação entre dois sujeitos que partilham o mesmo campo posicional (não nos esqueçamos de que, na prova, a questão é, sobretudo, tomar posição). Já que não há programa sem contraprograma, o discurso deve, em suma, administrar a 128
O discurso
copresença não de um sujeito e de um objeto, mas de dois sujeitos e de seus programas respectivos: (1) a questão está resolvida se os dois sujeitos aceitam ser um, se eles não reivindicam, cada um, uma identidade e uma posição: fala-se, então, em uma colusão,* cujo princípio seria a troca de traços de identidade e de favores; (2) a relação é particularmente violenta se cada um dos sujeitos reivindica uma identidade e uma posição específicas: fala-se, então, em um antagonismo, cuja tensão só pode ser resolvida pela dominação de uma identidade em detrimento da outra; (3) a suspensão da colusão produz-se no momento em que ao menos um dos sujeitos reivindica uma posição, traços de identidade e programas diferentes: trata-se da dissensão. Nesse caso, a ação só poderá ser concluída se a coabitação das diferentes identidades for possível; (4) a suspensão do antagonismo supõe que os sujeitos esforcem-se para aproximar suas posições e para valorizar traços de identidade e programas comuns a ambos: é a negociação que confere sentido à ação, construindo uma intersubjetividade. Vê-se perfeitamente que o esquema da prova só corresponde a um caso possível, aquele do antagonismo, no qual o outro sujeito tem a presença negativa mais forte. Ao contrário, o caso da colusão é aquele em que o outro tem a presença positiva mais forte e, ainda que seja concebível teoricamente (como na narrativa feminina de Luce Irigaray, da qual falamos anteriormente), não se tem certeza de que seja muito produtivo no plano narrativo. Quanto aos outros dois casos possíveis, a negociação e a dissensão, em que a presença do outro é mais ou menos enfraquecida, eles correspondem a todas as narrativas de esboço ou de degradação de uma relação intersubjetiva: de acordo com * N.T.: No original, “collusion”, termo jurídico que, em uma acepção mais corrente, tem como sinônimo “conluio”. Adotou-se a solução mais próxima do original, já que em ambas as línguas o termo não é frequente.
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Semiótica do discurso
cada caso, amores ou amizades nascentes, cumplicidades frágeis ou fraternidades conflituosas. Portanto, cada modalidade da copresença dos sujeitos corresponde a um esquema narrativo da intersubjetividade: (1) à colusão corresponde o esquema da troca intersubjetiva; (2) ao antagonismo, o esquema da prova intersubjetiva; (3) à dissensão, o da coabitação intersubjetiva; (4) à negociação, o da construção intersubjetiva. A maior parte das narrativas concretas combina ou encadeia dois ou mais desses tipos de esquemas.
3.2.3. O esquema passional canônico
A paixão em discurso remete-se ao “vivido”, ao sentir: com relação à presença, ela é uma intensidade que afeta o corpo próprio, eventualmente uma quantidade que se divide ou que se une na emoção. No entanto, da mesma maneira que as outras dimensões do discurso, a dimensão passional é esquematizada pela práxis enunciativa, e essa esquematização permite-lhe escapar do puro sentir. A esquematização torna a dimensão passional inteligível e permite-lhe inscrever-se em formas culturais que lhe dão seu sentido. Dar sentido à paixão é, primeiramente, dar-lhe a forma de uma sequência canônica na qual uma cultura reconhecerá uma das suas paixões típicas. Entretanto, como se passa nas outras esquematizações, o reconhecimento cognitivo permanece associado à impressão sensível. Em outras palavras, a sequência canônica da paixão permanece submissa aos esquemas de tensão. Comecemos estabelecendo a sequência. O esquema passional canônico configura-se da seguinte forma: despertar afetivo
disposição
pivô passional
emoção
moralização
3.2.3.1. O despertar
O despertar afetivo é a etapa durante a qual o actante é “abalado”: sua sensibilidade é despertada, uma presença afeta seu corpo. Para que se possa falar em despertar afetivo, é preciso que se possa observar, ao mesmo tempo, uma modificação da intensidade e uma modificação quantitativa. A conjugação das duas modificações altera, então, o ritmo de seu percurso: 130
O discurso
agitação ou desaceleração, suspensão ou aceleração; o fluxo da presença no campo foi afetado. Essa modificação não é somente a condição prévia do percurso passional, mas é também sua “assinatura” e indício permanentes: por exemplo, o ritmo desacelerado associado a um estado depressivo – cansaço ou aflição – sinaliza, ao mesmo tempo, a entrada nesse estado passional e o estilo tensivo – no caso, de fraca intensidade e de grande desdobramento no tempo – do percurso passional em sua integralidade. 3.2.3.2. A disposição
A disposição é a etapa ao longo da qual o gênero da paixão especifica-se: a fase da simples inquietação é ultrapassada, o actante apaixonado é agora capaz, por exemplo, de imaginar os cenários próprios ao medo, à inveja, ao amor ou ao orgulho. Portanto, a disposição é o momento em que se forma a imagem passional, cena ou cenário que provocará o prazer ou o sofrimento. Entretanto, por isso mesmo ela implica, no actante, uma certa capacidade: o ciumento deve ter imaginação que lhe trará a suspeita; o medroso deve também construir, a partir da presença ameaçadora que invade seu campo, simulacros de agressão que lhe indiquem o sentimento de sua fraqueza, de sua experiência ou ignorância (em Viagem, Céline resume essa capacidade a uma única fórmula: a imaginação da morte). Quanto ao orgulhoso, ele se munirá dos cenários de gratificação que a sua superestima lhe vai sugerir. 3.2.3.3. O pivô passional
O pivô passional é o próprio momento da transformação passional, que não pode traduzir-se como uma junção, salvo se quiséssemos ampliar indevidamente sua definição: na verdade, o pivô passional é uma transformação da presença, e não uma transformação narrativa no sentido restrito. É somente ao longo do pivô passional que o actante conhecerá o sentido da perturbação (despertar) e da imagem (disposição) que o afetam. Ele é, então, dotado de um papel passional identificável. Por exemplo: aquele que sente uma presença ameaçadora, que cultiva determinados cenários de agressão, pode superar sua apreensão, o que o fará corajoso; caso não a supere e converta-a em certeza, ele se tornará medroso.
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Semiótica do discurso
3.2.3.4. A emoção
A emoção é consequência observável do pivô passional: o corpo do actante reage à tensão que ele sofre: sobressalta-se, arrepia-se, treme, fica corado, chora, grita... Não se trata mais somente de conferir sentido a um estado afetivo, mas, agora, de manifestar o acontecimento passional tanto para si mesmo quanto para os outros. Considera-se geralmente a emoção como uma questão íntima, mas, se levamos em conta o esquema canônico, parece, ao contrário, que a emoção socializa a paixão e nos permite, graças a uma manifestação observável, conhecer o estado interior do actante apaixonado. Eis por que a emoção desempenha um papel essencial nas interações: ela permite prever, calcular, mas também fazer crer em um afeto, induzir ao erro e manipular. 3.2.3.5. A moralização
Tendo chegado ao fim de seu percurso, o actante manifestou, para si mesmo e para outrem, a paixão que ele vivenciou e conheceu. Portanto, a paixão pode ser avaliada, mensurada, julgada, e então seu sentido se torna, para um observador exterior, um sentido axiológico. Os critérios dessa avaliação são múltiplos e variados. Se as manifestações, por exemplo, da autoestima são desproporcionais em relação ao que os outros consideram em um sujeito orgulhoso, ele será “vaidoso”. Ou, ainda, se as manifestações da avareza parecem ocasionadas por objetos de baixo valor, ela será qualificada de “mesquinhez” (avareza “sórdida” ou “mesquinha”, segundo os dicionários de língua francesa).* Do mesmo modo, um luto que seja acompanhado de um sofrimento excessivo será acusado de insinceridade. Com a moralização, a paixão revela os valores sobre os quais se assenta. Esses valores são confrontados com os valores da comunidade e, finalmente, sancionados (positivamente ou negativamente) de acordo com o grau de oposição ou manutenção dos valores dessa comunidade. A dimensão ética,
* N.T.: No texto original, a oposição proposta é entre “pingrerie” e “avarice”, a primeira definida como “avarice ‘sordide’ ”. Isso nos faz pensar sobre o aspecto cultural das paixões, já salientado pelo autor. Em português, para a maior parte dos dicionários brasileiros, não há uma gradação semelhante à do francês no emprego de “avareza”, “sovinice” e “mesquinhez”, que são termos considerados sinônimos. No entanto, os falantes do português parecem intuitivamente atribuir à “mesquinhez” (ou “mesquinharia”) uma carga passional mais intensa a qual daria conta da “sordidez” que intensifica a “avareza” no exemplo original.
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O discurso
que assim se desenvolve no discurso a partir dos discursos passionais, tem por objetivo exercer um controle sobre uma intencionalidade diferente e incômoda e fixar um sentido que o actante apaixonado, por si só, não conseguiria estabilizar. Por outro lado, o actante apaixonado pode reivindicar o “direito” de viver suas paixões, assumindo plenamente o “sentido da vida” que elas encerram. O esquema passional canônico é composto de vários esquemas tensivos. Partindo da intensidade, com o “despertar”, ele desdobra progressivamente suas cenas, suas imagens e seus papéis na extensão (esquema decadente). Em seguida, a partir do pivô passional, ele se concentra na emoção, que une e mobiliza todas as energias com vistas a uma expressão intensa (esquema ascendente). Por fim, a avaliação final mensura-o, confronta-o com o olhar da comunidade; na verdade, restaura os direitos da quantidade e da extensão. A moralização pode tanto desvalorizar a explosão da paixão e minimizar seu alcance (esquema de atenuação) como incentivá-la, difundi-la na comunidade e contribuir, desse modo, para a sua ênfase e a sua generalização (esquema de amplificação). 3.3. A sintaxe do discurso O arcabouço geral da sintaxe do discurso, segundo a perspectiva da presença, é fornecido pelos esquemas de tensão que, combinados em uma determinada sequência, são eventualmente transformados em esquemas canônicos. A partir do conjunto das propriedades do discurso em ato, da instância de discurso e do campo posicional, esses diversos esquemas exploram o essencial das propriedades da presença: a intensidade e a extensidade. Mas a sintaxe do discurso obedece a outras regras que exploram outras propriedades do discurso em ato. Destacaremos, particularmente, (1) a orientação discursiva, que impõe no campo a posição das fontes e dos alvos, e (2) a homogeneidade simbólica que o corpo próprio produz, já que é ele que reúne e põe em comunicação a interoceptividade e a exteroceptividade. Seria preciso, ainda, levar em consideração (3) a profundidade do campo posicional, que permite que coexistam e que se coloquem em perspectiva várias “camadas” de significação. No caso da orientação discursiva, o princípio organizador será o ponto de vista. No caso da homogeneidade dos universos figurativos do discurso, o 133
Semiótica do discurso
princípio organizador será o semissimbolismo e, de uma maneira mais abrangente, todas as formas de conexão entre isotopias. Por fim, quanto à estratificação em profundidade das “camadas” e dimensões do discurso, o princípio organizador será o da retórica. Em geral, esses princípios são bem conhecidos ou já contemplados amplamente em outros estudos. Sobre eles nós diremos apenas algumas palavras de modo a situar cada um segundo a perspectiva de uma semiótica do discurso. 3.3.1. O ponto de vista
Não insistiremos aqui nas tipologias do ponto de vista oriundas dos trabalhos da narratologia, especialmente dos estudos de Gérard Genette. Essas tipologias baseiam-se essencialmente na identificação da posição de referência e no seu lugar nos planos de enunciação (ator, espectador ou narrador). Elas distinguem também, às vezes, o modo cognitivo ou perceptivo da apreensão discursiva: modo intelectual, modo visual ou modo sonoro. Nossa perspectiva, que é a do discurso em ato e da enunciação “viva”, convida particularmente a considerar o ponto de vista como uma modalidade de construção do sentido. A esse respeito, cada ponto de vista organiza-se em torno de uma instância. Portanto, a coexistência de vários pontos de vista no discurso supõe, ao mesmo tempo, que cada ponto de vista corresponda a um campo posicional específico e que o conjunto desses campos particulares seja compatível, de uma forma ou de outra, no interior do campo global do discurso. Para compreender o papel do ponto de vista na construção da significação discursiva, é preciso levar em consideração dois atos elementares constitutivos do campo posicional – a visada e a apreensão – que ligam as fontes e os alvos. O ponto de vista baseia-se em um descompasso entre a visada e a apreensão, descompasso produzido pela intervenção do actante de controle. É como se algo impedisse que a apreensão recobrisse a visada. Eis a primeira propriedade do ponto de vista: entre a fonte e o alvo surge um obstáculo, o que torna a apreensão imperfeita. No entanto, o ponto de vista é também o meio pelo qual se busca otimizar essa apreensão imperfeita, isto é, adaptar a apreensão àquilo que é visado. 134
O discurso
Eis a segunda propriedade do ponto de vista: como a visada exige mais do que a apreensão fornece, esta tende a reencontrar o que a visada exige, regulando-se por meio dela. A otimização seria o ato que caracterizaria o ponto de vista, uma espécie de regulagem entre a apreensão e a visada. Diminuem-se um pouco as pretensões da visada e/ou melhora-se a apreensão para torná-las congruentes. Tratar-se-ia de regular a relação entre a fonte e alvo graças a uma adaptação recíproca da intensidade da visada e da extensão da apreensão. Entretanto, nesse sentido, isso faz com que o horizonte do campo venha a coincidir com o actante de controle. Este não é mais percebido como um obstáculo que impede a apreensão de realizar-se, mas é simplesmente considerado como limite do campo. Portanto, o ponto de vista redefine os limites do campo posicional. Eis a terceira propriedade do ponto de vista: converter um obstáculo em horizonte do campo, admitir o caráter limitado e particular da percepção em ato, reconhecer como irredutível a tensão entre a visada virtual e a apreensão atual e dela constituir a fonte da significação. O sentido emerge dessa tensão, ele é o princípio mínimo de toda intencionalidade. Poderíamos resumir esse desenvolvimento, dizendo que o ponto de vista explora a orientação discursiva para fazer face à imperfeição constitutiva de toda percepção. Assim, ele pode, em um campo cujos limites foram redefinidos, conferir sentido a uma percepção imperfeita.
Nessa perspectiva, o principal interesse do estudo dos pontos de vista residirá no exame dos diferentes tipos de tratamento que eles dão a essa imperfeição. E, se uma tipologia tem algum sentido quanto a esse tema, ela deveria basear-se nas estratégias de regulagem da imperfeição, nas estratégias que permitem otimizar o recobrimento da visada pela apreensão. A partir de então, podem-se considerar, globalmente, quatro grandes tipos de estratégias que atuam seja sobre a intensidade da visada, seja sobre a extensão da apreensão, seja sobre ambas. No primeiro caso, o ponto de vista será chamado eletivo (ou, ainda, exclusivo). A visada renuncia à totalidade do objeto, concentra-se sobre um aspecto considerado como representativo do conjunto e pode assim reencontrar toda a sua intensidade. 135
Semiótica do discurso
No segundo, o ponto de vista será chamado acumulativo (ou exaustivo). Como não pode fazer a visada coincidir com a apreensão, o sujeito aceita dividi-la em visadas sucessivas e aditivas: o objeto não é, então, mais do que uma coleção de partes ou aspectos. No terceiro caso, pode-se conservar uma pretensão globalizante – e então o ponto de vista será chamado dominante ou englobante – ou aceitar simplesmente os limites impostos pelo obstáculo – e então o ponto de vista será particular ou específico:
Notemos que, em cada tipo de ponto de vista, o sentido atribuído ao objeto baseia-se em uma morfologia diferente: o objeto pode ser representado por uma de suas partes, recomposto por adição, apreendido logo de início como um todo (uma gestalt) ou reduzido a um fragmento isolável. Essas morfologias podem conter sistemas de valores que fundamentam, às vezes, até gêneros inteiros. É o caso da poesia descritiva francesa* sobre o corpo feminino, no século xvi, que se baseava inteiramente em um ponto de vista bem próximo, muito particularizante, e que só oferecia à vista um fragmento isolado: a sobrancelha, o pé, o seio etc. Contudo a elaboração poética e metafórica da visão do detalhe faz desses fragmentos o emblema da beleza. Portanto, o ponto de vista particularizante é, nesse caso, finalmente convertido em um ponto de vista eletivo. 3.3.2. O semissimbolismo
A questão da conexão entre isotopias diferentes merece um estudo à parte. Por um lado, ela se assenta sobre a visada de homogeneidade de * N.T.: No original, “blason”.
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todo universo semiótico, homogeneidade requerida especialmente entre o plano da expressão e o do conteúdo. De outro, ela participa das grandes redes de equivalências e de analogias que asseguram a coerência de um conjunto discursivo. A conexão entre isotopias pode ser assegurada por simples figuras que lhes são comuns: o traço de “altura”, por exemplo, pode ser comum, no mesmo discurso, à isotopia do “celeste” e do “sagrado”. No entanto esse tipo de conexão que se baseia em uma parte comum só pode ser, na melhor das hipóteses, um indício de coerência. A homogeneidade só estará assegurada se vários elementos de uma isotopia entrarem em equivalência com vários elementos de outra isotopia. Sob essa condição, uma das isotopias apresenta-se, então, como um plano de expressão de uma ou várias outras isotopias. De fato, a coerência que visamos aqui só é atingida se a conexão é estabelecida entre sistemas de valores (a princípio, entre sistemas de oposições pertinentes), e não entre termos isolados. Conexões estabelecidas termo a termo seriam, no máximo, simbólicas, no sentido usual do termo: a rosa simboliza o amor, o céu simboliza o divino, a balança, a justiça etc. Essas conexões simbólicas são de baixo valor heurístico, pois ou elas são tão convencionais que não oferecem mais nenhuma relação com o discurso em ato ou, ao contrário, elas são fruto de projeções pessoais do analista e, portanto, escapam, da mesma forma, a qualquer racionalidade discursiva. Em contrapartida, as conexões entre sistemas de valores particulares (entre oposições pertinentes) são fruto da práxis enunciativa e contribuem para a coerência discursiva, construindo os sistemas de valores do conjunto do discurso. Por essa razão, elas deveriam ser, mais do que todas as outras, o princípio de base de toda abordagem semiótica da coerência de um discurso. Esse tipo de conexão é chamado de sistema semissimbólico. Seu princípio foi estabelecido por Claude Lévi-Strauss quando fixou a fórmula do mito: a oposição entre duas figuras foi relacionada com a oposição entre duas funções. Depois foi retomado por A. J. Greimas, que considerava o semissimbolismo como um dos sistemas semióticos possíveis em teoria, e por Jean-Marie Floch, que fez dele o principal instrumento de análise da imagem. Na verdade, como 137
Semiótica do discurso
o semissimbolismo é uma codificação semiótica estritamente ligada ao exercício de uma enunciação particular, individual ou coletiva, ele é o único meio de se ter acesso à estrutura de uma linguagem quando essa linguagem não possui uma “língua” ou uma “gramática” generalizável. Como esse é o caso da “imagem”, é bastante natural que as codificações semissimbólicas tenham sido mais frequentemente utilizadas em sua análise. O semissimbolismo é uma das formas da estabilização do sentido no discurso: ele o estabiliza, tornando-o mais específico. Por um lado, ele lhe fornece uma forma imediatamente reconhecível (ele “iconiza” o sentido discursivo); por outro, ele o submete a uma condição de correlação própria a uma enunciação particular. Em A oleira ciumenta, Lévi-Strauss constata que a mulher encontra-se na origem da cerâmica, e que os mitos associam sistematicamente essa relação a uma outra: o engole-vento (um pássaro da floresta amazônica) encontra-se na origem do ciúme. Assim ele estabelece duas isotopias: as figuras da origem (mulher/engole-vento) e as funções temáticas (cerâmica/ciúme). Isso lhe permite, em seguida, relacionar, de um lado, a oposição entre a mulher e o engole-vento e, de outro, a oposição entre a cerâmica e o ciúme: mulher : engole-vento :: cerâmica : ciúme Esse tipo de fórmula pode ser lido de duas maneiras: (1) a mulher é para o engolevento o que a cerâmica é para o ciúme (nos mitos, essas relações são conflituosas) ou (2) a mulher é para a cerâmica o que o engole-vento é para o ciúme (nos mitos, um é a origem do outro). A práxis enunciativa intervém aqui de três maneiras: (1) ela distribui as séries de figuras, de motivos ou de temas nas isotopias: de fato, nada na definição linguística de mulher e de engole-vento permite decidir, a priori, que as duas figuras pertencem à mesma isotopia. Essa isotopia é puramente discursiva (e não linguística); (2) ela estabelece uma conexão global entre as séries que pertencem a, ao menos, duas isotopias; (3) ela hierarquiza as isotopias conectadas e, para isso, atribui a cada relação uma propriedade sintática (nesse caso, as figuras estão em conflito entre elas, e cada uma exprime a origem de uma função temática). Graças a essas três intervenções, o discurso em ato controla completamente a rede de relações que ele propõe e a significação que dela emana.
No primeiro exemplo de conexão que demos, aquele que associa o alto, o celeste e o sagrado, o sistema semissimbólico poderia estabelecer-se em 138
O discurso
duas etapas. Primeiramente em uma codificação relativamente convencional, mas que já supõe uma organização cosmológica de tipo cultural: alto : baixo :: celeste : terrestre Em seguida, uma outra organização, sem dúvida mais específica do ponto de vista cultural: celeste : terrestre :: sagrado : profano Como esses sistemas semissimbólicos são transitivos, obtém-se por fim e de uma forma abreviada: alto : baixo :: sagrado : profano Pode-se, em seguida, afirmar que o alto é o espaço do sagrado sem que isso seja uma projeção interpretativa pessoal: a rede de relações que conduz a essa afirmação é totalmente controlada pelos atos de discurso. 3.3.3. Profundidade do discurso e dimensão retórica
A conexão semissimbólica entre isotopias pode ser estabelecida a distância ou em proximidade: quanto maior a distância, mais a homogeneidade do discurso está assegurada. Passemos, agora, ao nível local, isto é, ao exame das conexões em proximidade ou, ainda, em coincidência. Imaginemos que o discurso mantenha permanentemente as isotopias conectadas em tensão umas com as outras e que ele se sirva de sua coexistência e de sua equivalência para ir e vir de uma à outra. Em todos os pontos da cadeia, observam-se, então, pequenos acontecimentos discursivos feitos de conexões e tensões locais. A coexistência de diferentes isotopias em uma mesma zona do discurso supõe que elas sejam dotadas de graus de presença diferentes, isto é, consideradas como mais ou menos intensas e mais ou menos distantes da posição de referência do discurso. Essa visão das coisas é particularmente verificável no caso dos lapsos: várias isotopias coexistem em cada discurso e apenas uma entre elas pode 139
Semiótica do discurso
atingir, sob o controle das isotopias do discurso e da orientação temática, a manifestação. Se, em um dado momento, uma outra isotopia vem à superfície devido a um acidente fonético, há um lapso. É preciso, então, supor que nessa competição para atingir a manifestação cada isotopia seja dotada de uma força, de uma capacidade de “pressão” enunciativa, e que o discurso normal e controlado seja o resultado de uma contenção permanente exercida contra todas as outras isotopias candidatas à manifestação. Assim, os tropos e as figuras de retórica são casos particulares desse gênero de acontecimento enunciativo, fixados pela tradição e estruturados para produzir efeitos persuasivos e estéticos. A presença da qual falamos agora não é mais simplesmente a presença de um actante para um outro actante. Trata-se da presença dos próprios conteúdos do discurso, presença mais ou menos sentida e mais ou menos assumida pela instância de discurso. O campo posicional do discurso tornase, então, um campo no qual as isotopias estão dispostas em profundidade, em camadas sucessivas, das mais fortemente presentes no centro do discurso até as mais fracamente presentes em sua periferia. Essa gradação da presença está também sob o controle da instância de enunciação: cada camada é visada mais ou menos intensamente ou apreendida de forma mais ou menos próxima ou distante. Portanto, esse controle enunciativo é exercido em duas direções: o controle da assunção, no que concerne à intensidade (sensível, afetiva), e o controle do desdobramento, no que concerne à distância (espaço-temporal, cognitiva). As diferentes isotopias dispostas nas camadas da profundidade discursiva são, desse modo, mais ou menos assumidas e mais ou menos desdobradas: a instância de discurso impõe ou subtrai sua força de enunciação (chamada às vezes de força ilocutória) e faz com que elas recuem ou avancem em profundidade. Esse dispositivo é exatamente aquele em que se exerce a retórica. E os “pequenos acontecimentos de conexão” evocados há pouco, que se servem das diferentes modalidades da coexistência entre isotopias, são, na verdade, tropos e figuras de retórica. Passemos aos modos de existência dos conteúdos do discurso determinados pelos graus de sua assunção e de seu desdobramento pela instância de discurso. 140
O discurso
Se retomarmos a tipologia dos modos de presença estabelecida anteriormente a respeito dos esquemas narrativos canônicos, podemos fazer corresponder a cada um deles um modo de existência dos conteúdos discursivos:
Tomemos como exemplo a ironia, figura que requer ao menos dois conteúdos – um orientado positivamente, outro, negativamente –, ambos situados em duas camadas diferentes na profundidade do discurso. Por exemplo: o uso pejorativo da expressão “Essa é boa!”* combina um conteúdo orientado negativamente, que não está expresso, e um conteúdo orientado positivamente, que está expresso. Contudo ela só funciona ironicamente porque o conteúdo expresso não é assumido (sua presença discursiva é enfraquecida, especialmente pela entonação), enquanto o conteúdo que não é expresso é assumido (sua presença discursiva é forte, eventualmente marcada por um comentário ulterior).
No caso da ironia, o conteúdo positivo é apreensível porque ele está expresso, mas é fracamente visado: logo, ele está potencializado. Em contrapartida, o conteúdo negativo é apreensível com dificuldade já que não está expresso, mas, em compensação, ele é fortemente visado: logo, ele está atualizado. Imaginemos que, em um desses jogos de palavras pelos quais os publicitários são ávidos, a expressão “Essa é boa!” deva, por fim, ser interpretada literalmente: nesse caso, o conteúdo positivo é, ao mesmo tempo, bem apreensível e plenamente visado, estando, portanto, realizado, ao passo que o conteúdo negativo não é nem visado nem apreensível, permanecendo virtualizado.
* N.T.: No original, “C’est malin!”.
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Semiótica do discurso
Toda figura de retórica obedece a esse princípio de base a partir do momento em que ela associa dois planos de enunciação distintos e assumidos de formas diferentes. A metáfora e a metonímia, por exemplo, convidam-nos a ultrapassar o conteúdo diretamente expresso e a associá-lo a um outro mais abstrato, mais geral, ou que pertença a uma outra isotopia. Portanto, elas se servem também da disposição dos conteúdos discursivos em profundidade e de diferentes modos de existência. Por exemplo: a metáfora “essa mulher é um campo de trigo”, além da interpretação que terminará na analogia (fartos cabelos loiros? uma colheita promissora?), começa por associar duas isotopias (a da feminilidade e a da agricultura), situando-as em dois planos de profundidade diferentes. No entanto, ao contrário da ironia, que não assume o conteúdo expresso, o campo de trigo é aqui fortemente realizado. Em contrapartida, é o conteúdo ainda a ser atribuído que se encontra mais fracamente assumido, apreensível com dificuldade e fracamente visado; enfim, virtualizado. É ao longo da interpretação que esse conteúdo subjacente, sob a pressão da atenção que ele requer, será atualizado (fracamente apreendido e fortemente visado).
Agora não vem ao caso examinar um a um todos os tropos e todas as figuras da retórica. Nosso propósito consiste somente em situar a dimensão retórica em relação às propriedades elementares do discurso em ato, e, em particular, aos graus de profundidade da presença. Todavia, pode-se dizer que o que é valorizado aqui não é tanto a estrutura semântica da figura – sobre a qual já dispomos de estudos claros e acessíveis –, mas, principalmente, a dinâmica da sua manifestação, o processo que conduz da “colocação em presença” de duas isotopias à interpretação de sua conexão. Portanto, acabamos por considerar uma figura de retórica como uma microssequência discursiva que compreende ao menos uma fase de “colocação em presença” (um conflito entre dois enunciados ou isotopias, por exemplo) e uma fase de interpretação (a resolução do conflito por analogia, no caso). A “colocação em presença”, ou confrontação, pode dizer respeito tanto a domínios semânticos (como na alegoria) quanto a níveis hierárquicos (como na sinédoque), a papéis actanciais (a metonímia) ou a posições enunciativas (as figuras de argumentação). Ela se vale principalmente da macrofigura do conflito, mas não despreza a macrofigura do deslocamento (especialmente 142
O discurso
quando a confrontação é resultado de uma alteração da sintaxe, superficialmente ou em profundidade). A fase de interpretação ou resolução adota duas vias principais e alternadas: a similitude e a conexão. A resolução por similitude é própria da metáfora e de todas as figuras de analogia, mas também das figuras de equivalência (toda a gama de anáforas, perífrases e outras circunlocuções). A resolução por conexão encontra-se em todos os outros casos, em que, tendo detectado a ausência de equivalência entre os dois conjuntos confrontados, o intérprete busca, então, o princípio de sua conexão (actancial ou topológica). Diante disso, podem-se, ainda, distinguir dois tipos de conexão segundo seu funcionamento: a conexão por hierarquia (a sinédoque) ou a conexão por sistema (a metonímia ou o quiasma). Em outras palavras, cada figura poderá ser definida, ao mesmo tempo, pelo tipo de confrontação (de colocação em presença) e pelo tipo de resolução que ela requer: a metáfora é uma figura de conflito entre domínios semânticos que se resolve por uma analogia, já a metonímia é uma figura de deslocamento que se resolve por uma conexão sistêmica entre dois papéis actanciais, e o quiasma é uma figura de conflito semântico (enfraquecido) que se resolve por uma conexão sistêmica de tipo topológico etc. Já evocamos anteriormente, quando falamos sobre os actantes posicionais, a possibilidade de uma fase intermediária – a fase do controle –, ao longo da qual a solução do problema ou a interpretação da confrontação são preparadas e guiadas pelas variações da assunção enunciativa, assim como os fenômenos de configuração e composição. Portanto, a sequência típica de toda operação retórica compõe-se de três fases que fornecem a sintaxe desses micro ou macroacontecimentos discursivos exatamente como eles são percebidos e apreendidos, em ato, pelos actantes da enunciação. Colocando-se entre parênteses o peso institucional da retórica, a principal (e talvez a única) diferença entre um lapso e uma figura de retórica é esta: o lapso não tem futuro nem sintaxe e, sobretudo, não tem uma sequência canônica, enquanto o tropo ou a figura são moldados em uma forma sintática que lhes foi atribuída por algumas dezenas de séculos de uso e de norma. O conjunto das observações e proposições que acabamos de fazer pode ser resumido em dois quadros de síntese. No primeiro, serão encontradas as 143
Semiótica do discurso
três fases da sequência canônica, mas com uma distinção entre o ponto de vista da geração e o ponto de vista da interpretação:
No segundo quadro, a cada uma das fases correspondem as categorias de discurso que são atribuídas ou solicitadas pela operação retórica:
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O discurso
Sugestões de leitura Adam, Jean-Michel. Le texte narratif. Paris: Nathan, 1985. Coquet, Jean-Claude. Le discours et son sujet i. Paris: Klincksieck, 1985. ______. La quête du sens. Paris: puf, 1997. Floch, Jean-Marie. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit. Paris-Amsterdam: Hades/Benjamins, 1985. Fontanille, Jacques. Sémiotique et littérature: essais de méthode. Paris: puf, 1999. [Capítulos i a iv]. ______; Zilberberg, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso/Humanitas, 2001. (Capítulo “Práxis enunciativa”). Greimas, Algirdas Julien; Fontanille, Jacques. Semiótica das paixões. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. (Capítulo ii). Landowski, Éric. A sociedade refletida. Ensaios de sociossemiótica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Educ/ Pontes, 1992. (Capítulo viii). Lévi-Strauss, Claude. A oleira ciumenta. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1986. Parret, Herman (org.). La Mise en discours. Langages. Paris: Larousse, n. 70, 1983.
Notas 1
4 5 2 3
6
9 7 8
12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 10 11
23
L. Hjelmslev, Prolegômenos a uma teoria da linguagem, trad. José Teixeira Coelho Netto, 2. ed., São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 19. Idem, p. 14. A. Robbe-Grillet, O ciúme, trad. Waltensir Dutra, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. L.-F. Céline, Viagem ao fim da noite, trad. Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. I. Lotman, A estrutura do texto artístico, trad. Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto Raposo, Lisboa, Estampa, 1978. É. Benveniste, Problemas de linguística geral i, trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri, 4. ed., Campinas, Pontes, 1995, p. 261. Idem, p. 267. Idem, ibid. M. Merleau-Ponty, O primado da percepção e suas consequências filosóficas, trad. Constança Marcondes César, Campinas, Papirus, 1990, p. 92. É. Benveniste, op. cit., p. 190. É. Benveniste, Problemas de linguística geral ii, trad. Eduardo Guimarães et al, Campinas, Pontes, 1989, p. 70. G. Apollinaire, Alcools, Paris, Gallimard, 1968. M. Proust, No caminho de Swann, trad. Mário Quintana, 9. ed., Porto Alegre/Rio de Janeiro, Globo, pp. 45-7. E. Cassirer, A filosofia das formas simbólicas, trad. Marion Fleischer, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 211. L. Aragon, Je n’ai jamais appris à écrire ou Les Incipit, Genève, Albert Skira, 1969. P. Valéry, La jeune parque et poèmes en prose, Paris, Gallimard, 2000. P. Valéry, Variété v, Paris, Gallimard, 1945, p. 77-115. P. Verlaine, Sagesse suivi de jadis et naguère, Paris, Le Livre de Poche, 2006. F. Jullien, Éloge de la fadeur, Paris, Le Livre de Poche, 1991. J.-M. G. Le Clézio, Le Procès-verbal, Saint-Amand, Gallimard, 1990. G. Perec, As coisas: uma estória dos anos 60, trad. José Teixeira Coelho Netto, São Paulo, Nova Crítica, 1969. F. M. Dostoiévski, Um jogador, trad. Boris Schnaiderman, São Paulo, Editora 34, 2004. H. de Balzac, A pele de Onagro, trad. Fernando Py, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996.
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Os actantes
Os actantes são forças e papéis necessários à realização de um processo. As personagens de uma intriga, os sintagmas nominais de uma frase, os atores e os papéis de uma peça de teatro são suas realizações concretas. A ambição de uma teoria actancial é fornecer uma representação geral dos actantes necessários à instauração de um processo, independentemente de sua realização particular. Para tanto, ela deve distinguir (1) os atores e os actantes propriamente ditos, em seguida, (2) os actantes posicionais e os actantes transformacionais e, por fim, (3) os actantes fundamentais e os vários papéis que eles podem desempenhar, especialmente sob a ação das modalidades que lhes são atribuídas. 1. Actantes e Atores Os atores e os actantes são distinguidos de duas maneiras. Em primeiro lugar, pelo princípio que orienta seu reconhecimento: reconhece-se um ator pela presença de um certo número de propriedades figurativas, cuja associação permanece mais ou menos estável, enquanto seus papéis se modificam. Em contrapartida, reconhece-se um actante pela estabilidade do papel que lhe é atribuído em relação a um tipo de predicado, independentemente das modificações de sua descrição figurativa. Em segundo lugar, e consequentemente, a um ator podem corresponder vários actantes e, do mesmo modo, a um actante podem corresponder vários atores. 2. Actantes Transformacionais e Actantes Posicionais Os actantes posicionais são definidos exclusivamente pelo seu lugar no campo posicional do discurso: a intencionalidade que os caracteriza é somente uma orientação de natureza topológica. Os actantes transformacionais são definidos
Semiótica do discurso
pela sua participação junto às forças que transformam uma conjuntura. Portanto, a intencionalidade que os caracteriza reside naquilo que está em jogo na transformação, isto é, em um sistema de valores. Os actantes posicionais estão sob o controle da orientação do discurso, enquanto os actantes transformacionais dependem da estrutura semântica dos predicados de que eles participam. 3. As Modalidades As modalidades são conteúdos que definem a identidade dos actantes. Os actantes posicionais são determinados por modalidades da presença (e modos de existência). Os actantes transformacionais são determinados por modalidades dos predicados de ação e de estado (as modalidades do fazer e as modalidades do ser). A atribuição sucessiva de modalidades diferentes a um mesmo actante faz dele, do ponto de vista da sintaxe do discurso, uma sucessão de papéis modais. A questão dos actantes é, sem dúvida, uma das questões que são objeto – não sem debates – de um amplo consenso atualmente nas ciências da linguagem. É também sem dúvida o domínio de pesquisa em que os resultados, desde os anos 1950, são os mais constantes e os mais convincentes. A questão dos actantes está relacionada ao problema dos componentes da instância, tema que, ao lado da questão do ato propriamente dito (ver capítulo “O discurso”), constitui uma das duas questões essenciais para a perspectiva do discurso em ato.
1. Actantes e Atores 1.1. Actantes e predicados A noção de actante é uma noção abstrata que deve ser, antes de tudo, distinguida das noções tradicionais ou intuitivas de personagem, protagonista, herói, ator ou papel. Todas essas noções partem da ideia de que algumas entidades textuais representam seres humanos ou seres animados e que elas têm uma função na intriga narrativa ou ocupam um lugar em uma cena. A partir desse pano de fundo comum, as diferentes noções variam de acordo com a importância do lugar ou da função que designam (ator/ herói) e de acordo com a importância que se atribui seja para a sua função de representação de um ser humano, seja para a sua participação na intriga (personagem/protagonista). No entanto, quaisquer que sejam as nuanças entre essas noções, todas elas pressupõem a existência textual indiscutível de entidades representativas, e assim a única questão que se coloca é saber para que elas servem afinal. 148
Os actantes
Em contrapartida, o actante deve ser concebido segundo uma perspectiva de que nada, no texto, está antecipadamente estabelecido: tudo está por ser construído, especialmente a identidade das figuras antropomorfas que nele parecem se manifestar. Consequentemente, antes de se perguntar qual é a função desta ou daquela personagem, é necessário estabelecer o esquema do desenrolar da intriga e definir as funções que ele requer. Portanto, o actante é uma entidade abstrata cuja identidade funcional é necessária à predicação narrativa. Na verdade, todo enunciado é composto por dois tipos de grandezas: (1) o próprio predicado, que exprime o estado ou o ato, e (2) seus “argumentos”, isto é, seus actantes, que são os termos entre os quais o predicado estabelece uma relação e que ocupam em torno dele um certo número de “funções”. Logo, a fórmula de base seria: Enunciado = Actantes
(Funções)
Predicado
Mas esse é um ponto de vista quase que frástico, focalizado em um predicado particular e isolado. Se adotarmos um ponto de vista discursivo, a situação apresenta-se de forma bem diferente, já que um mesmo actante corresponde, nesse caso, a toda uma classe de predicados que ele encontra um após o outro ao longo do discurso. Mas, por outro lado, cada um desses predicados pode, por sua vez, requerer vários actantes. Do mesmo modo, o discurso é globalmente constituído por uma rede de actantes e predicados que só é inteligível se três condições forem atendidas: (1) os predicados devem constituir-se em um pequeno número de classes; (2) os lugares actanciais requeridos para cada uma dessas classes devem também ser em pequeno número, previsíveis e calculáveis; (3) as séries de predicados devem constituir processos articulados em aspectos, e esses processos devem ser congruentes com os percursos dos actantes. Desse modo, a fórmula de base seria: Discurso-Enunciado = percurso dos actantes
(congruência)
processo
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1.2. Percursos da identidade, papéis e atitudes As noções de actante e de ator permitem distinguir dois grandes tipos de permanência e de identidade no discurso. Primeiramente, esclareçamos que aquilo que chamamos aqui de permanência ou identidade não é senão uma forma particular de isotopia, isto é, uma redundância semântica que, nesse caso, é aplicada a uma categoria particular de conteúdos. Uma personagem que tem o mesmo nome e recebe as mesmas qualificações ao longo de um texto obedece ao princípio da isotopia. Basta imaginar, ao contrário, um romance em que cada personagem seria, a cada aparição, designada por um nome diferente e descrita com novos traços para compreender em que medida a identidade sobre a qual falamos depende da isotopia: ela torna possível uma leitura coerente do percurso da personagem. Os dois grandes tipos de identidades são, respectivamente, (1) no caso dos actantes, aqueles assegurados pelas isotopias predicativas e, (2) no caso dos atores, aqueles assegurados por todas as outras isotopias (figurativas, temáticas, afetivas etc.). A identidade dos actantes define-se em relação à recorrência de uma mesma classe de predicados; já a identidade dos atores define-se em relação à recorrência de uma mesma classe semântica, seja ela abstrata (identidade temática) ou mais concreta (identidade figurativa). Como os predicados são agenciados durante o processo, essas identidades se transformam ao longo de um percurso, quer em percursos temáticos (próprios aos aspectos do processo), quer em percursos figurativos (próprios aos atores). Se identificarmos, por exemplo, em um texto, uma classe de predicados como alçar voo, levantar-se, voar, ela poderá ser reduzida a um arquipredicado como “subir”, e, então, será preciso perguntar-se quais são os actantes que esse predicado implica: no mínimo, ele implicará um actante “fonte” (embaixo), um actante “alvo” (em cima) e um terceiro, que se desloca entre os outros dois. Em Elevação,1 de Charles Baudelaire, esses três actantes correspondem às seguintes figuras: (1) a terra, como fonte do deslocamento (pantanais, vales, montanhas etc.); (2) o céu, como alvo (onde o ar se faz mais fino, espaço transparente, várzeas claras); e (3) meu espírito, que se move de um para outro. Essas mesmas figuras seguem um percurso figurativo (segundo tipo de identidade discursiva) por meio de uma série de imagens e metáforas. Meu espírito, por exemplo, é retomado tanto como ator pessoal (Tu) quanto como ator figurativo (o pensar). No entanto, esse percurso interessa mais do que a simples denominação do ator e afeta também outras propriedades, especialmente
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passionais: gozo, tédio, desgostos e penas etc. O exame desse percurso revela, além disso, que o ator, conservando sua identidade, transforma-se de duas maneiras complementares e congruentes: a cada nova fase do processo (mudança temática), ele recebe novas propriedades (mudança figurativa ou passional). Assim, na fonte do deslocamento, meu espírito é afetado pelo tédio e por desgostos e penas; em contrapartida, no alvo, ele conhece o gozo e, entre esses dois extremos, meu espírito é identificado a um pássaro (pássaro veloz) e sofre, além de tudo, a lei dos aspectos intermediários do processo voar (distender-se ao céu, pairar). Veremos mais adiante que a congruência entre esses dois percursos é assegurada pelas posições modais do actante, que mudam ao longo do processo. A noção de predicado é estática, e o actante, associado a um predicado, não sofre nenhuma transformação enquanto o predicado não é modificado. Em contrapartida, a noção de processo é dinâmica na medida em que ela implica fases sucessivas (os aspectos do processo) e transições de fases. É desse modo que um ator, associado a um processo, pode sofrer tantas transformações temáticas quantos forem os aspectos do processo.
Esse exemplo permite também compreender melhor a noção de papel, que é indissociável da noção de percurso. Como cada ator é programado para um certo número de percursos figurativos (o pássaro, por exemplo, é programado para alçar voo, subir, pairar), cada etapa corresponde a um papel figurativo. Por outro lado, o actante que se desloca é sempre idêntico a ele mesmo enquanto actante, ainda que o percurso figurativo do ator que o manifesta acompanhe bem de perto as fases do processo subjacente que lhe fornecem seu percurso temático. A relação entre esses percursos e esses papéis figurativos, de um lado, e as fases do processo subjacente, de outro, pode ser considerada como uma relação semiótica do tipo semissimbólica. Desse modo, as fases figurativas do voo do pássaro podem manifestar o percurso temático da elevação espiritual. Essa equivalência global, estabelecida graças a um tropo (no caso, situado a meio caminho entre a metáfora e a alegoria), autoriza, então, uma releitura de todas as fases do processo de um modo analógico. O poema de Baudelaire permite-nos tornar mais clara a distinção entre o temático e o figurativo: vários atores diferentes (espírito, nadador, pássaro), dotados cada um de um percurso figurativo, assumem aqui o actante que se desloca e o processo no qual ele está implicado. Contudo, um dentre eles, o espírito, permanece subjacente aos dois outros mesmo quando, metaforicamente, eles chegam a substituí-lo. Nesse caso, diríamos que se trata de um tema, que suporta o percurso dos papéis temáticos
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aos quais são confrontados os papéis figurativos nadador e pássaro. O papel temático surge, então, como uma posição intermediária entre o actante e o ator. A mudança de papel actancial implica uma mudança de classe de predicados e, portanto, de processo. O mesmo ator, meu espírito, por exemplo, pode, desse modo, corresponder a actantes diferentes se mudamos de processo: tendo chegado às várzeas claras, ele não corresponde mais ao actante do deslocamento (o deslocamento terminou), mas a um actante receptivo, já que um novo processo começa, um processo de emissão/recepção. Então, o novo actante bebe o puro fogo e sem esforço entende a linguagem da flor e das coisas sem voz. Do mesmo modo, logo de início, quando ele é interpelado como Tu (flutuas), essa nova identidade corresponde a um outro processo que é o da comunicação verbal.
Portanto, a identidade dos atores, bem como a dos actantes, transformase continuamente, isto é, ela própria é composta de identidades transitórias. Diante disso, devem-se distinguir dois tipos de percursos: (1) Os percursos fechados, cristalizados, em que cada etapa pode ser prevista antecipadamente. A identidade “fechada” dos actantes ou dos atores seria, então, composta de um ou vários papéis – papéis actanciais no caso dos actantes e papéis figurativos no caso dos atores; (2) Os percursos abertos, em que os actantes e atores dispõem de uma liberdade de ação suficiente para inventar e construir sua própria identidade, de modo que cada uma das etapas que a constituem corresponda a uma atitude, e não a um papel no sentido restrito. Portanto, papéis e atitudes são duas formas diferentes das identidades transitórias que compõem o percurso de um actante ou de um ator. O papel só pode ser reconhecido nestes dois casos: (1) ou porque ele é suficientemente estereotipado em uma determinada cultura para que seja identificado imediatamente, sob a condição de que o uso que se faz desse papel seja compatível com o estereótipo, (2) ou porque ele é suficientemente repetido e reiterado no discurso para ser estabilizado e reconhecido. Mas, nesses dois casos, o reconhecimento do papel faz-se a posteriori, depois do uso que o cristalizou, depois da repetição que o estabilizou. O papel é uma identidade acabada, apreendida ao fim de um percurso, e que pressupõe sempre uma práxis enunciativa graças à qual ele se estabilizou e objetivou. 152
Os actantes
Em contrapartida, a atitude pode ser reconhecida no momento exato em que surge. Ela abre novas possibilidades de identidade, coloca o actante em devir: pela graça de um gesto inesperado, de uma ousadia no comportamento ou de uma propriedade revelada e não previsível, novas bifurcações vem à tona. Para estabelecer um papel, a instância de discurso deve situar-se ao final do percurso, no ponto em que o processo acaba, de modo a ter uma boa ideia da situação, daquilo que foi transformado e daquilo que permanece idêntico. Para identificar uma atitude, ela deve, ao contrário, tomar posição no próprio curso do devir, seguir e partilhar, o mais próximo possível do actante, o desenrolar do processo. Em suma, a atitude é uma identidade subjetiva, porque ela só pode ser apreendida na presença da instância de discurso, enquanto o papel é uma identidade objetiva, separada dessa instância. Em Elevação, o pássaro apenas desempenha seu papel (alçar voo, subir, pairar); o nadador, por outro lado, é menos previsível e bem mais inventivo, já que ele acaba por afundar-se, beber o puro fogo e sem esforço entender a linguagem da flor e das coisas sem voz. O pássaro desempenha um papel: uma identidade estereotipada, programada sob a forma de um percurso figurativo fechado. Já o nadador assume uma atitude: uma identidade em devir sob a forma de um percurso figurativo aberto. Ademais, do ponto de vista do próprio actante, esses dois tipos de identidades correspondem, como veremos em breve, a dois grupos diferentes de modalidades: “poder fazer e dever fazer”, no caso do pássaro, e “saber fazer e querer fazer” no caso do nadador.
1.3. Actantes e atores da frase A frase comporta, por definição, ao menos um predicado. Portanto, ela também pode ser analisada do ponto de vista actancial. No domínio da gramática contemporânea, Lucien Tesnière foi o primeiro a destacar essa dimensão da frase. Concebendo a frase como um “pequeno drama”, uma “cena”, ele pôde, então, dispor em torno do predicado verbal as valências do verbo, que designam ao mesmo tempo o número e o lugar dos actantes necessários ao drama. No entanto as valências actanciais são independentes dos sintagmas concretos que ocupam seu lugar: todos sabem que o actante “sujeito” pode 153
Semiótica do discurso
ser representado por um nome, um infinitivo, um pronome, uma outra fase etc. A natureza dos sintagmas deve ser próxima da natureza dos atores: são constituintes figurativos que recebem seu valor sintático das valências actanciais definidas pelo próprio predicado. Portanto, o que chamamos “função” na análise gramatical tradicional designa uma relação superficial entre o predicado verbal e os constituintes figurativos, nomes, infinitivos, pronomes (o equivalente dos “atores”). Essa relação não pode ser estabelecida sem a mediação de um actante que, por sua vez, mantém uma estreita relação com o predicado. Consequentemente, poderíamos complementar a fórmula proposta anteriormente, distinguindo dois tipos de “funções”, a saber, as funções frásticas (“funções 1”) e as funções actanciais, ou valências (“funções 2”): Frase = Sintagmas
(Funções 1)
Actantes
(Funções 2)
Predicado
Tesnière, na análise da língua francesa, constata que os verbos exigem, no máximo, estruturas de base de valência 3 (sujeito, objeto, destinatário, por exemplo). Ele propõe, então, generalizar essa constatação, conservando apenas três tipos de actantes: o primeiro actante, o segundo actante e o terceiro actante. Essa classificação, retomada em semiótica por Jean-Claude Coquet, deve ser utilizada com prudência: um verbo como vender, por exemplo, é um “pequeno drama” de quatro actantes (dois sujeitos, dois objetos) e, para reduzir esse número a três actantes, é preciso decompor o processo vender em dois predicados associados: dar um objeto e dar a contrapartida. Obtém-se então, para cada um dos dois predicados, apenas três papéis: (1) o doador, (2) o objeto e (3) o beneficiário. Essa análise sugere-nos que certos enunciados devam ser tratados como compostos, ainda que não se note neles nenhum imbricamento. No entanto, tal caso parece não ter sido previsto por Tesnière. Os limites da análise actancial, em relação à análise actorial, aparecem aqui claramente: as valências verbais só conservam os papéis e os lugares necessários ao “pequeno drama”. Elas correspondem, sobretudo na frase concreta, aos sintagmas que não se podem deslocar sem modificar a estrutura sintática e, no mínimo, sem substituí-los por um pronome clítico (A sua vizinha, eu a vi ontem mesmo!). Consequentemente, as valências de Tesnière só são compatíveis com os actantes da estrutura de base, devendo todos os outros constituintes ou ligarem-se indiretamente a estes ou figurarem na lista de “circunstantes”.
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Os actantes
Por outro lado, a gramática dos casos, cujo precursor mais conhecido é Charles Fillmore, oferece uma outra descrição desses actantes (chamados, nessa gramática, casos profundos) mais abstratos que os sintagmas. Fillmore também parte da ideia de que a frase, antes de ser uma sequência de sintagmas dispostos um a após o outro, é a representação semântica (e mental) de uma cena. Cada cena-predicado impõe uma determinada distribuição dos actantes (os casos profundos). Essencialmente, esses actantes são: o agentivo (actante animado instigador), o instrumental (actante inanimado interveniente), o dativo (actante animado afetado), o factitivo (actante resultante), o locativo (actante de situação) e o objetivo (actante inanimado afetado). Essa lista sofreu muitas variações e complementos, mas aqui é somente seu princípio de base que nos interessa. Na verdade, no que toca a esse princípio, não se trata mais de “lugares” ou de “valências”, mas de casos semânticos que são definidos por um pequeno número de categorias, cujo núcleo comum poderia ser a força e a intencionalidade que lhe é associada. Assim, o actante afetante (agentivo ou instrumental ) e o actante afetado (objetivo ou dativo) são dois polos de força: a força emana de algo e aplica-se a um outro elemento. Por outro lado, o actante animado (agentivo ou dativo) e o actante inanimado (instrumental ou objetivo) distinguem-se pelo fato de que o primeiro possui intrinsecamente essa força ou é por ela afetado em sua identidade, enquanto o mesmo não se dá com o segundo. Por fim, levando-se em conta o alcance dessa força, pode-se definir o locativo e o factitivo: o locativo indica o quadro espaçotemporal no qual a força é exercida; o factitivo, o alcance da força quanto a suas consequências e resultados. Portanto, ao que parece, os actantes em si podem ser abordados de duas maneiras diferentes: segundo uma lógica dos lugares (como nas valências verbais de Tesnière) e segundo uma lógica das forças (como na gramática dos casos de Fillmore). Desse modo, o percurso de sua identidade será diferente para cada caso. No primeiro caso, será composto por uma série de “posições” sucessivas: o actante muda de identidade deslocando-se, ele passa a um primeiro plano ou ele recua a um segundo plano em função da posição (primeiro, segundo, terceiro) que lhe atribui cada um dos predicados sucessivos. No segundo caso, em contrapartida, esse percurso será composto por variações da “força” que define o actante, essa força sendo considerada como o conjunto das condições necessárias para a realização do ato: a força 155
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aumenta, diminui, esgota-se; a força pertence ou não ao actante; ela o transforma ou não; ela lhe diz ou não lhe diz respeito etc. Cabe-nos refletir em que essas duas lógicas são compatíveis e quais são seus respectivos domínios de pertinência. 2. Actantes Transformacionais e Actantes Posicionais 2.1. Transformação e orientação discursiva É esta última questão que gostaríamos de retomar, agora sistematicamente, segundo a perspectiva de uma semiótica do discurso. A lógica dos lugares é uma lógica posicional: ela define os actantes unicamente a partir de uma posição de referência por meio da qual eles podem ser situados (primeiro, segundo, terceiro, por exemplo) e podem deslocar-se. A lógica das forças é uma lógica transformacional: ela define os actantes unicamente a partir de sua participação em uma transformação entre dois estados e de seu engajamento em face dessa transformação. As proposições de Tesnière e de Fillmore não pertencem exclusivamente a uma ou outra das duas lógicas. De fato, em Tesnière, o primeiro e o segundo actantes correspondem geralmente ao sujeito e ao objeto. Contrariamente, viu-se que a lógica das forças em Fillmore implica fontes e alvos. No entanto, pode-se mesmo assim constatar que Tesnière raciocina mais em termos posicionais, e Fillmore, mais em termos transformacionais. Agora isso pouco importa: a distinção necessária já foi feita e, independentemente das teorias desses dois linguistas, ela nos permitirá definir por contraste os actantes posicionais, que dependem da lógica dos lugares, e os actantes transformacionais, que dependem da lógica das forças.
Um exemplo pode ilustrar essa diferença: José vendeu sua casa de Minas a um argentino. Uma outra possibilidade seria: Pablo comprou uma casa de um agricultor mineiro.* * N.T.: No original, a venda é firmada entre “Jean”, camponês da região de Ardèche (Sudeste da França), e “Wolfgang”, um alemão.
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Os actantes
As duas frases baseiam-se no mesmo “pequeno drama” composto igualmente por quatro actantes: dois sujeitos (o vendedor e o comprador) e dois objetos (um objeto, uma contrapartida). Todavia, o lexema verbal é diferente, a ordem dos sintagmas está invertida. O próprio conteúdo dos sintagmas, e especialmente o grau de identificação dos atores, é também diferente. Trata-se de uma diferença na encenação da frase, é claro, mas, de uma frase para a outra, a cena é praticamente irreconhecível. Poderíamos contentar-nos em dizer que se trata de uma mudança de ponto de vista: o mesmo “drama” é contado a partir do ponto de vista de José ou do ponto de vista de Pablo, como se fosse apenas a passagem de uma construção ativa a uma construção passiva. Todavia, aqui, a perspectiva não opõe um agente e um objeto, que são, alternadamente, os sujeitos sintáticos da frase. Ela opõe dois agentes, que tomam alternadamente a iniciativa do processo. Falar aqui em ponto de vista não esclarece muito as coisas, exceto se atribuímos a essa noção mais importância do que de costume: ela diria respeito, então, aos sistemas de designação dos atores, à escolha do lexema verbal, à ordem dos constituintes da frase etc. Ele diria respeito até mesmo ao sentido do enunciado, sua intencionalidade. De fato, o segundo enunciado não faria literalmente sentido algum em uma história em que José (ou os mineiros ou os agricultores) fosse a personagem principal. O mesmo vale para o primeiro exemplo, de forma inversa. Pois “tomar a iniciativa do processo” significa pura e simplesmente obedecer ou desobedecer à orientação discursiva, que decide a posição de referência, que decide o que deve ser levado em conta em relação a ela. Em suma, a orientação discursiva escolhe a maneira pela qual as transformações narrativas devem se ordenar em torno da instância de discurso para ter um sentido global. O enunciado de transformação é sempre interpretável isoladamente, mas ele será tido como insignificante ou inadequado no discurso se não obedecer à orientação dominante. Eis por que é preciso acrescentar a esse enunciado de transformação uma “tomada de posição”, que depende da enunciação. Inversamente, a orientação discursiva e o sistema de posições pressupõem o sistema das transformações, já que, se o discurso “orienta”, é necessário que haja algo para ele orientar. 157
Semiótica do discurso
O conceito de “colocação em intriga” desenvolvido por Paul Ricœur seria aqui de grande utilidade: de um lado, o discurso acolhe as estruturas da história, as estruturas da transformação narrativa; de outro, ele assegura sua “colocação em intriga”, evidenciando as modulações do desenrolar dos fatos. O papel de “sujeito operador” (aquele que realiza a transformação) pertence às estruturas da história, enquanto o papel de “actante de iniciativa” (aquele que modifica o desenrolar dos fatos) pertence às estruturas da intriga. Portanto, a intriga é o resultado da assunção enunciativa das estruturas narrativas, reconfiguradas em relação à posição da instância de discurso e à orientação discursiva que ela impõe. Formalmente, por exemplo, dir-se-á que o papel actancial que tem a “iniciativa” na intriga é aquele cujo lugar coincide com a instância de discurso. Se seguirmos Tesnière à risca, como a indicação da contrapartida não é necessária à estrutura de base do nosso exemplo, a distribuição dos três actantes (primeiro, segundo e terceiro actantes) seria rigorosamente inversa: José, que é o primeiro actante no exemplo inicial, tornar-se-ia terceiro actante no exemplo seguinte; Pablo, que é somente o terceiro actante no exemplo inicial, tornar-se-ia, em seguida, o primeiro actante. Por outro lado, se seguirmos Fillmore, nada mudará: José sempre seria, ao mesmo tempo, agentivo em relação à casa e dativo em relação à contrapartida. Pablo sempre seria, ao mesmo tempo, dativo em relação à casa e agentivo em relação ao dinheiro. Como já observamos, a teoria de Tesnière seria mais sensível à distribuição dos actantes posicionais, e a de Fillmore, mais sensível à distribuição dos actantes transformacionais. Vê-se claramente que a descrição completa dos fenômenos exige uma teoria actancial que contemple ambas as perspectivas.
2.2. Os actantes posicionais Portanto, a noção de actante posicional supõe que se possam definir os actantes, que são entidades sintáticas abstratas, a partir de uma topologia, da estrutura de um “lugar”. É o que se chama teoria localista. Esse tipo de abordagem não data de hoje, uma vez que se pode encontrá-la já nos gramáticos estoicos – ao menos pelo que conhecemos deles por meio dos
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Os actantes
gramáticos medievais – e em vários autores russos e americanos. O próprio Hjelmslev, que inspirou profundamente a linguística e a semiótica europeias, concebeu uma teoria localista dos casos. Esse esclarecimento deve vir acompanhado de um segundo: invocar uma abordagem localista significa recorrer obrigatoriamente à percepção. De fato, se as estruturas sintáticas podem ter a forma de um “lugar”, de um espaço, é porque, antes de se tornarem estruturas sintáticas concebíveis intelectualmente, elas são, a princípio, cenas percebidas vagamente, cenas das quais se extraiu toda a substância figurativa para conservar somente as propriedades do lugar e do movimento. Logo, essas topologias têm o estatuto de imagens esquemáticas subjacentes à sintaxe do discurso. Como são organizadas em torno de actantes, elas são estruturas de campo. Isso nos conduz novamente ao campo posicional do discurso, ao campo no interior do qual operam os dois atos perceptivos elementares, a visada e a apreensão. Esses dois atos implicam, cada um, ao menos dois actantes posicionais, um primeiro e um segundo, o actante-fonte e o actante-alvo, com uma mudança acentuada de registro: na visada, a fonte entra em relação intensiva e afetiva com o alvo, em um campo posicional aberto, enquanto na apreensão a fonte entra em relação cognitiva e extensiva, ou, ainda, quantitativa, com o alvo, isso tudo em um campo posicional fechado. Em suma, a visada atualiza e abre as estruturas de campo, enquanto a apreensão as realiza e as fecha. Um terceiro actante deve ser previsto igualmente, pois é preciso reservar um lugar a um terceiro elemento no face a face da fonte e do alvo. Nós já identificamos esse terceiro como o actante de controle ou, simplesmente, controle. Dentre as suas várias funções, pode-se citar: a regulagem, o filtro, o obstáculo. O tipo “regulagem” é particularmente bem representado pelo funcionamento dos pontos de vista (ver capítulo “O discurso”). O tipo “filtro” está implicado em todos os processos de seleção, de triagem, de repartição. O tipo “obstáculo” é a principal fonte da peripécia. Essas diferentes versões do controle explicitam particularmente os modos de participação nas estruturas da intriga (ajustamentos, bifurcações, peripécias), que, como se vê, diferem muito claramente das estruturas propriamente narrativas (conjunção e disjunção entre objetos e sujeitos).
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Portanto, antes de serem sujeitos e objetos, “agentivos” ou “objetivos”, os actantes posicionais são fontes e alvos do ato no campo posicional. Antes de serem “factitivos”, “instrumentais” ou “dativos”, eles são actantes terceiros, actantes de controle.
Esse dispositivo mínimo baseia-se, afinal, no fato de que os atos perceptivos elementares apresentam duas propriedades de base: uma direção (fonte/alvo) e um controle dessa direção, que pode modificar sua orientação, desdobrá-la, interrompê-la, prolongá-la etc. Em semiótica visual, esse dispositivo actancial aplica-se mais particularmente à iluminação, que requer fontes, alvos e que encontra, por vezes, obstáculos. Em contrapartida, na comunicação, é o destinatário adicional, ou observador, que assumirá as funções de controle em relação à fonte e ao alvo de cada fase da troca comunicacional. Essa terminologia não substitui a terminologia empregada em outros casos, como, por exemplo, as noções de “destinador” e “destinatário”, ou de “emissor” e de “receptor”. Ao contrário, ela nos convida a distinguir dois níveis de funcionamento. Por exemplo: nos Alcools, de Appolinaire, o poema “Vendémiaire” [Vindemiário] coloca em cena um Eu e um Tu que são, respectivamente, definidos como destinador e destinatário, ainda que a fonte seja o Tu, e o alvo, o Eu. Nesse caso, os papéis posicionais não coincidem com os papéis enunciativos. A semiótica da luz, por exemplo, não pode ser concebida sem esses actantes elementares. Pode-se até mesmo conceber uma tipologia dos obstáculos de acordo com o fato de eles reterem mais ou menos a luz, de acordo com a força com que eles se opõem à circulação da iluminação: desse modo, os obstáculos podem ser opacos, translúcidos ou transparentes. Pode-se também levar em conta a força que eles empregam para refletir a luz em direção ao alvo: o obstáculo absorvente só reflete lampejos, enquanto o obstáculo brilhante poderá mostrar reflexos deslumbrantes. No caso do reflexo deslumbrante, que particularmente tanto acolhe como rejeita a luz, compreende-se claramente que o actante captura os raios de luz e desvia sua direção, inverte sua orientação e concentra sua intensidade. Esse efeito produzido sobre o observador, a violência do choque visual, é resultado, evidentemente, da intensidade da fonte original, mas também e, sobretudo, de todas as operações de controle: desvio, reorientação, concentração. Nos textos verbais, sejam eles poéticos ou científicos, esses actantes posicionais também intervêm. Quando, por exemplo, este ou aquele texto coloca em cena transformações elementares da matéria, observa-se que os elementos materiais são triados, transferidos, misturados, fundidos, graças a um pequeno número de
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Os actantes
operações que se baseiam, por sua vez, nos actantes posicionais fonte, alvo e controle. Um filtro, por exemplo, é um actante de controle que separa elementos misturados, opondo uma resistência seletiva a seu movimento: considerando a direção escolhida, ele só barra uma parte do fluxo e deixa passar a outra. Por fim, na perspectiva da comunicação, o destinatário suplementar e indiscreto aparecerá como um terceiro e, portanto, como um actante de controle, pois ele modifica e desvia parcialmente a orientação do processo de comunicação. Pode-se até mesmo pensar que, provavelmente, como ele é sensível a outras informações, diferentes daquelas a que é sensível o destinatário direto, ele filtrará também o fluxo e desvirtuará o sentido. Além disso, se sua presença é conhecida dos dois parceiros diretos da troca, eles mesmos serão conduzidos a modificar suas estratégias de comunicação, em função dessa presença, e da escuta, das preocupações, das expectativas e das estratégias que eles atribuem ao destinatário indireto.
Dois dos três exemplos empregados aqui (a iluminação e a comunicação verbal) poderiam sugerir que os actantes fonte e alvo são equivalentes aos clássicos emissor e receptor. Essa ambiguidade deve ser dirimida. Em primeiro lugar, seria apenas metaforicamente – ou por um grande nível de abstração – que o par emissor/receptor poderia ser aplicado ao segundo exemplo (as transformações materiais). Em segundo lugar, o par emissor/receptor implica uma atividade transformadora (a emissão e a recepção) que não é pertinente do ponto de vista estritamente posicional. Na verdade, os actantes posicionais não fazem nada por si próprios: eles ocupam lugares, eles são movidos por uma energia que os desloca. 2.3. Os actantes transformacionais Um actante transformacional deve ser dotado ou afetado por uma força intencional para tomar parte na cena predicativa do enunciado, e isso independentemente da orientação discursiva. A tradição semiótica distingue, a esse respeito, duas classes de transformações: (1) aquelas que dependem do desejo e da busca, que associam o sujeito e o objeto, e (2) aquelas que dependem da comunicação, que associam o destinador e o destinatário. Isso leva a supor que todos os predicados narrativos pertencem a uma dessas duas classes, o que, no que concerne aos predicados da frase, precisaria ainda ser demonstrado. Mas o modelo subjacente não é o da frase e dos predicados verbais, é o modelo do discurso em sua dimensão mais abrangente, inclusive 161
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antropológica. Ora, do ponto de vista antropológico, o valor está no centro da predicação discursiva: o desafio de uma lógica transformacional, o que lhe confere seu sentido, é exatamente a construção dos valores, é seu devir, suas realizações concretas, sua inscrição nas figuras do mundo. E, do ponto de vista da sintaxe narrativa, isto é, da transformação das conjunturas, o actante necessário para tal é, no mínimo, o objeto, justamente aquilo que é transformado, pois o objeto é o que está em jogo na transformação, o actante no qual o valor está ancorado. Portanto, a perspectiva discursiva coloca no centro da sintaxe narrativa o objeto de valor: aquilo que dá suporte à transformação e aquilo que, em suma, vale a pena. Reduzido ao essencial, o devir do objeto de valor no discurso conhece apenas duas dimensões: (1) por um lado, a dimensão da atualização dos valores, graças a sua inscrição em objetos e em figuras concretas e graças à construção e/ou à conquista desses objetos por sujeitos; (2) de outro, a dimensão da troca dos objetos de valor entre os destinadores e os destinatários, que é, por definição, seu modo de existência nas comunidades humanas. Essas duas dimensões da manipulação dos valores são também os dois pontos de vista segundo os quais elas são percebidas: por meio das figuras que as exprimem, a percepção do valor desemboca na dimensão estética dos discursos; e, por meio da troca e da circulação dos objetos em uma comunidade, a percepção do valor é ética e econômica. Além disso, essas duas dimensões são, ao mesmo tempo, distintas e complementares: uma não pode funcionar sem a outra, e, mesmo que uma dimensão seja inibida enquanto a outra está ativa, ela continua sendo eficiente. O avarento, por exemplo, inibe a dimensão da troca entre sujeitos para conservar somente a dimensão da atualização do valor em um tipo de objeto particular. No entanto, ele só parece avaro, de fato, porque continua a pertencer a um actante coletivo, aquele da troca, que exerce sobre ele uma pressão para que ele devolva à circulação os objetos retidos. 162
Os actantes
Algumas paixões, como o ciúme e a inveja, baseiam-se inteiramente na solidariedade problemática entre as duas dimensões: de um lado, o apego ao objeto é transformado em inquietação pela presença do rival, de outro, as trocas com os outros sujeitos são convertidas em rivalidades e competições pelo objeto desejado. Essas duas dimensões, tratadas como duas valências oriundas da percepção dos valores, formam, então, uma estrutura tensiva na qual dominam ora a percepção do valor por meio das figuras e objetos, ora a percepção das trocas, e na qual elas podem também se fortalecer ou inibirse reciprocamente. Em Lévi-Strauss, o sistema de parentesco é apresentado como um sistema de comunicação social, que concerne apenas à dimensão da troca dos objetos de valor. No entanto, se ele se limitasse apenas a isso, não poderia ser tema de narrativa alguma, pois não haveria nada a contar, e Romeu e Julieta nunca teriam se encontrado. Ora, o próprio Lévi-Strauss estudou casos em que as relações de parentesco entre famílias estão implicadas em narrativas concretas e complexas, em que justamente a procura do parceiro, isto é, a primeira dimensão, a inscrição do valor em determinadas figuras (a busca do objeto), também intervém. Sobretudo nas narrativas de incesto, as duas dimensões entram em contradição: a procura do parceiro perturba, então, a comunicação social, a busca dos valores entra em contradição com os princípios da sua troca. As duas dimensões são necessárias à dinâmica da narrativa e influem uma sobre a outra: o modo de atualização dos valores evidentemente determina os objetos que poderão ser trocados. As regras de parentesco determinam os tipos de alianças que são possíveis ou não. De uma outra forma, a influência é também determinante. Uma aliança transgressora, por exemplo, colocará em causa a estabilidade do sistema de valores, chegando até mesmo a depreciar os objetos de valores. No caso do incesto, a estrutura tensiva funciona em correlação inversa, já que a atualização do valor em um objeto particular domina à custa das regras de troca. Inversamente, no motivo estereotipado dos “casamentos arranjados”, são as regras da troca social que se impõem em detrimento da escolha do objeto. Felizmente, existem também escolhas acertadas que satisfazem às regras sociais e às situações como a época contemporânea demonstra, nas quais nem a escolha do objeto nem a aplicação das regras da troca bastam para assegurar o valor da aliança. A história dos costumes matrimoniais assenta-se assim sobre as variações dessa estrutura axiológica.
Os próprios gêneros estão sujeitos a essas tensões: o texto poético é, ao mesmo tempo, um lugar de troca (dos valores de comunicação, retóricos e 163
Semiótica do discurso
pragmáticos) e um objeto que permite ancorar o valor em uma realidade material e intelectual (dos valores de composição, morfológicos e estéticos). As duas dimensões, a construção do objeto estético e sua comunicação ao leitor, corroboram uma à outra e só fazem sentido uma em relação à outra. Entretanto, no interior de um mesmo gênero, o equilíbrio entre as duas dimensões pode variar se, por exemplo, a preocupação morfológica e estética prevalecer sobre a preocupação com a comunicação (beirando, por vezes, o hermetismo), ou, ao contrário, como é o caso da doutrina chamada de “realismo socialista”. Consequentemente, restam-nos ainda duas dimensões: (1) uma dimensão em que os valores estão encarnados nos objetos procurados e conquistados pelos sujeitos e (2) uma dimensão em que os valores são propostos, garantidos, trocados e postos em circulação. Em cada uma dessas dimensões, a categoria do actante cinde-se em dois papéis, produzindo assim o par sujeito/objeto, no caso da primeira dimensão, e o par destinador/destinatário, no caso da segunda. O sujeito visa e apropria-se do objeto, o destinador propõe-no ao destinatário. Percebe-se a essa altura da exposição que já é possível derivar simples e diretamente os actantes transformacionais a partir dos actantes posicionais. De fato, o par sujeito/objeto é homólogo ao par fonte/alvo (o sujeito visa e apreende o objeto); o mesmo ocorre com o par destinador/destinatário (o destinador visa e apodera-se do destinatário, comunicando-lhe o objeto), e, por fim, o par destinador/destinatário atua globalmente como actante de controle (pois é ele que define o valor) em relação ao par sujeito/objeto. Todavia, nós trocamos de domínio de pertinência, passamos agora a uma lógica das forças, e essa força é produzida pelo valor. Portanto, pode-se dizer que a “lógica transformacional” resulta da projeção do valor sobre o sistema posicional, ao qual ela impõe, além de uma mudança de estatuto dos actantes (definidos em relação à força axiológica, e não em relação ao lugar que eles ocupam), uma duplicação da estrutura devido às duas dimensões da manipulação de valores. Uma outra ambiguidade deve ser agora dirimida: se o sujeito apropria-se do objeto, como se pode dizer que o destinador propõe-no ao destinatário? Essa aparente contradição conduziu alguns semioticistas a renunciar ao destinatário, já que ele seria uma repetição do sujeito. Contudo a aparente confusão entre o
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Os actantes
sujeito e o destinatário é somente uma ilusão provocada pela forma de nossas narrativas cotidianas. Entretanto, não faltam narrativas em que o sujeito constrói ou conquista um objeto de valor para colocá-lo entre as mãos de um terceiro, o verdadeiro destinatário. Portanto, a distinção entre as duas dimensões e os quatro actantes que as sustentam é imperativa, se não se quer confundir os actantes (e seus papéis) e os atores (e sua identidade figurativa). Por outro lado, o fato de haver quatro papéis actanciais em torno da transformação narrativa em geral não constitui uma obrigação para as transformações particulares. Ao contrário, quando o número de actantes manifestados é incompleto, o dispositivo actancial não é por isso menos significativo. Por exemplo: a presença do destinador faz do sujeito um actante heterônomo, mas, em sua ausência, ele se torna um actante autônomo. Do mesmo modo, a ausência de destinatário, que faz do ato algo aparentemente gratuito, coloca em primeiro plano a construção ou a afirmação da identidade do sujeito, que se torna, então, o principal desafio da narrativa.
2.4. Campo posicional e cena predicativa Os actantes transformacionais derivam, portanto, dos actantes posicionais (1) pela adoção de uma outra lógica semiótica (força e valores) e (2) pela duplicação da estrutura. Mas a distinção entre os actantes posicionais e os actantes transformacionais baseia-se na oposição mais abrangente que nos conduz a opor o universo da presença ao universo da junção. O universo da presença é aquele do campo de presença, da tomada de posição enunciativa, da orientação discursiva etc. O universo da junção é, por outro lado, aquele dos enunciados de estado e de ação, das transformações e da programação narrativa. O universo da presença tem por domínio de eleição o discurso em ato, o discurso concebido como um conjunto significante sujeito aos atos de enunciação. O universo da junção, em contrapartida, tem por domínio de eleição o discurso enunciado, o discurso acabado e objetivável. Portanto, a presença e seu domínio de pertinência – o discurso em ato – dependem das fases incoativa e durativa do processo semiótico. Já a junção e seu domínio de pertinência – o discurso enunciado – dependem da fase terminativa, do aspecto acabado do mesmo processo. Desse modo, o momento da presença (que funda a pertinência do campo posicional) é aquele da emergência dos valores nas modulações da copresença – copresença entre fontes e alvos, sincronização e ajustamentos 165
Semiótica do discurso
de seus ritmos de existência, flutuações de seus recíprocos efeitos de intensidade. O momento da junção (que funda a pertinência da cena predicativa) é aquele da ancoragem dos valores nos objetos, da circulação dos objetos. Essa distinção é particularmente perceptível no discurso da filosofia cínica: o cínico, de fato, é sensível à presença dos meios necessários à satisfação de suas necessidades, mas ele faz de tudo para que esses meios não se tornem objetos de valor. O cínico não se conjunge ou se disjunge dos objetos, pois ele lhes recusa seu estatuto sintático. E o meio mais seguro para tanto é a satisfação imediata, sem elaboração e sem ritual: os alimentos consumidos sem demora (e sem cozimento), os parceiros sexuais “consumidos” no mesmo instante, sem nenhuma preparação nem ritual de sedução. A síncope temporal, nesse caso, é o meio pelo qual o cínico permanece em presença sincronizada com suas necessidades e inibe toda elaboração axiológica. Jean-Claude Coquet propõe a esse respeito distinguir dois tipos de semióticas diferentes. A semiótica da junção, da transformação narrativa, e do actante programado é dita objetal. A semiótica da presença, do campo posicional e das instâncias enunciantes, programadas ou não programadas, é dita subjetal. Éric Landowski, por sua vez, também propôs, de uma outra maneira, distinguir uma semiótica da junção (de tendência cognitiva e econômica) e uma semiótica da presença (de tendência sensível e estética). No entanto, não basta distinguir essas duas semióticas: é preciso, ademais, articulá-las como dois regimes diferentes da significação.
Jean-Claude Coquet propõe, baseado em uma terminologia emprestada de Tesnière (primeiro, segundo e terceiro actantes), distinguir essencialmente, no interior da instância de discurso, dois tipos de primeiros actantes – o não sujeito e o sujeito –, confrontados ao objeto (o segundo actante), aos quais se acrescenta eventualmente o destinador (o terceiro actante). O não sujeito pode somente predicar, ele não tem iniciativa na medida em que só pode seguir percursos preestabelecidos, um número bem pequeno de programas impostos. Todavia ele é, em primeiro lugar, um corpo, um corpo que toma posição no campo do discurso e, por essa razão, é também o lugar das emoções e das paixões. O sujeito pode, ao mesmo tempo, predicar e afirmar. Portanto, ele é capaz de julgar e, graças a isso, tem acesso às funções superiores da percepção, 166
Os actantes
da cognição e da avaliação. Todas as iniciativas lhe são possíveis, já que ele pode sempre deliberar, decidir e inventar seus próprios percursos. O destinador é o terceiro ao qual se referem ou não os dois primeiros, de acordo com o fato de eles serem heterônomos ou autônomos. Esses diferentes actantes pertencem à classe dos actantes posicionais, e não à classe dos actantes transformacionais. Na verdade, eles são instâncias enunciantes do discurso, e não actantes narrativos da história. Uma das diferenças entre o “não sujeito” (que só pode agir se for programado) e o “sujeito” (que inventa seus próprios percursos) diz respeito à questão da iniciativa, que nós associamos à colocação em intriga. Uma outra diferença, que faz do não sujeito um escravo dos aspectos do processo, e do sujeito, um actante senhor do tempo, está baseada na mesma distinção entre, de um lado, as estruturas narrativas atemporais da “história” e, de outro, a temporalidade inerente à colocação em intriga. Segundo a perspectiva que propomos, o não sujeito seria a fonte de uma visada, enquanto o sujeito seria a fonte de uma apreensão. De fato, a visada é sensível, intensiva e afetiva, enquanto a apreensão é perceptiva, extensiva e cognitiva. Por outro lado, de um outro ponto de vista, a capacidade de julgamento do sujeito faria dele um bom candidato aos papéis de controle na ausência de um terceiro destinador. Entretanto, como a tipologia proposta por Jean-Claude Coquet foi exclusivamente elaborada para dar conta dos discursos verbais, na tradição linguística oriunda de Benveniste, nós conservaremos as denominações fonte, alvo e controle, que, além de oferecerem uma definição mais específica da dimensão perceptiva, dizem respeito a uma Semiótica geral. É preciso ainda dizer que a teoria actancial de Jean-Claude Coquet explora principalmente uma outra dimensão da identidade actancial, a modalização, dimensão sobre a qual trataremos mais adiante e que se revela particularmente heurística. Em contrapartida, a divisão entre semiótica objetal e semiótica subjetal, que permitiu depreender um novo domínio de pertinência – aquele do campo posicional e da presença –, não pode mais ser mantida, pois os dois domínios de pertinência devem ser, a partir de agora, associados no interior de uma mesma semiótica do discurso. Na verdade, não se pode reduzir a 167
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instância de discurso ao campo posicional nem reduzir o discurso enunciado à cena predicativa. Se reduzimos a instância de discurso ao campo posicional e à presença, só conservamos o substrato fenomenológico do discurso, sua forma intencional elementar, e perdemos, ao mesmo tempo, a outra dimensão do discurso, a dimensão que faz dele uma estrutura de recepção e de troca de valores, enfim, um sistema de valores. Se reduzimos o discurso enunciado unicamente à cena predicativa, só conservamos a dimensão narrativa e formal do discurso, e seu substrato axiológico, e perdemos de vista, ao mesmo tempo, tanto a dimensão do discurso em ato como as condições de emergência dos valores. Essa concepção sobre o discurso possibilitou os avanços teóricos e metodológicos dos anos 1970 e 1980, justamente porque ela reduzia o domínio de pertinência e purificava-o de todo efeito “subjetivo”. Ao “objetivar” o discurso sob a forma de um simples enunciado, essa concepção tornava possível a articulação formal. Ela deve, atualmente, ser complementada pela outra concepção que adota o ponto de vista do discurso em ato. Portanto, entre uma opção, que consiste em tudo explicar à luz do campo posicional do discurso, e uma outra, que consiste em tudo reduzir à estrutura actancial narrativa, escolhemos conservar para cada um desses pontos de vista seu domínio de pertinência e associá-los entre si graças à noção de práxis enunciativa. Voltaremos a tratar dessa noção, mas, daqui em diante, ela já pode ser compreendida como o lugar da articulação entre as estruturas semionarrativas – dominadas pela cena predicativa – e a instância de discurso – dominada pelo campo posicional. A práxis enunciativa é também um outro nome para aquilo que chamamos anteriormente de processo semiótico ou semiose em ato, e fica claro agora como os dois domínios de pertinência invocados dependem cada um de uma fase particular (de um aspecto) dessa práxis e de seu processo.
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3. As Modalidades 3.1. A modalidade como predicado 3.1.1. O predicado modal
As modalidades são predicados que atuam sobre outros predicados e, portanto, eles são predicados que modificam o estatuto de outros predicados. Ademais, eles asseguram uma mediação entre os actantes e seu predicado de base no interior de uma cena predicativa. Assim, a modalidade do querer relaciona um actante sujeito a um outro predicado (dançar, por exemplo). Quando ocorre a realização concreta dessa relação, o actante do predicado modal pode ser confundido com o actante do predicado modalizado (Ele quer dançar) ou estar dissociado dele (Ele quer que você dance). Pode-se encontrar também um caso em que apenas o objeto do predicado modalizado é mencionado (Eu quero esta casa). Todavia, independentemente de qual for a variedade de realizações particulares, a estrutura subjacente é sempre a mesma. Na perspectiva linguística, a expressão da modalidade é, de fato, muito variável: ela pode dar-se em um verbo (saber), em uma perífrase verbal (ser capaz de) ou em uma expressão nominal (a capacidade de..., a necessidade de...) etc. As nuanças semânticas são infinitas, ainda mais em relação às combinações que as expressões modais podem contrair entre si. Por exemplo, o enunciado: Ele gostaria mesmo de aprender a dançar. O predicado dançar é modalizado por aprender, que é uma modalidade factual do tipo saber. Essa modalidade cognitiva é modalizada pelo querer (o “gostar”), outra modalidade factual. Essa modalidade volitiva é modalizada duas vezes, uma primeira vez pela forma verbal em -ria, que é uma modalidade de atenuação argumentativa e que produz uma distância enunciativa e um valor probabilístico, e uma segunda vez pelo advérbio mesmo, modalidade de orientação axiológica concessiva. Sem aprofundarmonos mais nos meandros da análise, fica bem claro aqui, acerca de um 169
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enunciado por fim muito banal, que a modalização multiplica os níveis de controle do predicado de base e, ao mesmo, introduz gradientes, tensões e polaridades reversíveis. Essa propriedade é essencial para explicar certos efeitos passionais, que de uma forma mais geral chamaremos daqui a pouco de “imaginário modal”: a determinação modal dos predicados é recursiva, e essa recursividade pode adiar indefinidamente a realização do processo principal. Eis por que, sob uma perspectiva discursiva, a Semiótica conservou um número fixo de predicados modais, que são, por razões de comodidade, designados pelos verbos modais, mas não devem ser confundidos com as expressões linguísticas correspondentes. Esses predicados modais são, assim, o querer, o dever, o saber, o poder e o crer. Voltaremos a tratar da tipologia das modalidades, mas agora devemos introduzir uma distinção entre modalidade e modalização. A modalização é mais geral que a modalidade. Na verdade, entende-se por modalização em linguística tudo o que assinala a atividade subjetiva da instância de discurso, tudo o que, de fato, indica que se trata de um “discurso em ato”. E isso inclui as expressões afetivas, as avaliações axiológicas, as orientações e efeitos argumentativos, e, consequentemente, a constituição dos sistemas de valores do discurso. E, ainda, se se adota a perspectiva de Jacques Geninasca, para quem o discurso inteiro manifesta a atividade da enunciação, não há muito mais limites para a modalização. Em contrapartida, a noção de modalidade é mais específica. Ela é, como dissemos, um predicado que atua sobre um outro predicado. Mais precisamente, é um predicado que enuncia, na perspectiva da instância de discurso, uma condição de realização do predicado principal. Em outras palavras, a modalidade emana especificamente de um actante de controle, enquanto a modalização emana em geral da manifestação da atividade enunciativa. Esse actante de controle, enquanto actante posicional, pertence à instância de discurso e participa da atividade enunciativa, mas representa apenas um de seus múltiplos aspectos. Essa cláusula, que limita o campo de aplicação da noção, autoriza-nos, portanto, a tratá-la de maneira específica a partir de agora, sem confundi-la com a enunciação global e implícita do discurso. 170
Os actantes
3.1.2. A modalidade como condição pressuposta pelo processo
Para apreciar a natureza particular desses predicados modais, pode-se confrontá-los aos predicados que eles modificam. Quanto ao valor de verdade, o predicado modal permanece verdadeiro mesmo se o predicado modalizado não o é. O fato de que Ele dança seja falso não impede que Ele quer dançar permaneça verdadeiro. Em contrapartida, se Ele quer dançar é falso, então será preciso acrescentar muitas outras condições complementares (uma obrigação, por exemplo) para que Ele dança seja, se não verdadeiro, ao menos realizável. No caso de a modalidade querer ser falsa, consequentemente Ele dança é falso também ou, então, poder-se-á dizer, sob a forma de uma verdade concessiva: Embora ele não queira dançar, ele dança assim mesmo (porque ele é obrigado, como o ministro ladrão em Zadig,2 de Voltaire). Essa assimetria dos valores de verdade é típica da relação de pressuposição. Nesse caso, o predicado modal é pressuposto pelo predicado modalizado. O estatuto de termo pressuposto, em linguística, implica uma propriedade que é crucial para a semiótica do discurso: um conteúdo pressuposto permanece verdadeiro mesmo que ele não esteja expresso explicitamente; para isso, basta que o termo pressuponente esteja expresso. Se Ele dança é verdadeiro, então as modalidades que ele pressupõe também o são, ao menos em parte. Isso significa que, no decorrer da análise, estaremos no direito de questionarnos, por exemplo, sobre a presença implícita de um querer ou de um saber, mesmo se tais modalidades não estiverem explícitas. Esse ponto é essencial para se compreender o estatuto enunciativo das modalidades. Elas dependem da perspectiva enunciativa, primeiramente, porque o actante de controle é um dos papéis da instância de discurso e também porque nos levam a pensar que um processo qualquer pode ser visado sob vários pontos de vista diferentes. Ora, é o papel da instância de discurso fazer variar dessa maneira as visadas e as apreensões, o que confirma nossa sugestão, por outro lado, que consiste em atribuir o predicado modal a um actante posicional, o actante de controle. No entanto, de uma forma mais abrangente, a modalidade pertence muito frequentemente ao domínio do implícito enquanto pressuposto. O implícito não tem nenhuma existência verificável no domínio de pertinência 171
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do discurso enunciado, senão uma existência metalinguística. De fato, por dedução, pode-se decretar que para fazer é preciso, primeiro, saber, querer, dever etc., e, quando se encontra um fazer no discurso, pode-se, então, reconstruir por dedução os saber, os querer e os dever subjacentes. Em contrapartida, na perspectiva do discurso em ato, o implícito de um discurso depende do “saber compartilhado”, dos conhecimentos (enciclopédicos ou circunstanciais) comuns aos parceiros da enunciação. Portanto, o implícito, enquanto “saber compartilhado”, será comprometido na práxis enunciativa, será oculto e extraído, convocado, interrogado. Além disso, a qualquer momento os parceiros da troca enunciativa podem lançar mão dele para fortalecer, testar ou subverter o elo empático que os une. Portanto, expressa ou não expressa, a modalidade é uma condição para que o predicado se realize e seja verdadeiro no discurso. Esse estatuto de condição pressuposta levou a conferir aos predicados modais, em semiótica, um estatuto distinto dos outros predicados: as modalidades são as condições necessárias ou facultativas da ação transformadora dos actantes. No entanto, enquanto condição de realização do ato, a modalidade atua sobre o conjunto do processo ou, como dizíamos anteriormente, sobre o conjunto da cena predicativa. Consequentemente, ela atua ao mesmo tempo sobre o predicado propriamente dito e sobre seus actantes. Ela atua sobre o predicado, é claro, na medida em que designa um de seus modos de existência anterior à sua realização (eis o porquê dessa propriedade ser designada como condição de sua realização). Contudo ela atua também sobre os actantes, na medida em que o conteúdo semântico da modalidade pode ser considerado como uma propriedade do próprio actante, propriedade necessária para que ele realize o ato. No esquema narrativo canônico, por exemplo, as modalidades são adquiridas na fase da etapa denominada aquisição de competência (as provas qualificantes de Propp). As modalidades são genuínos predicados narrativos, pois elas, de fato, transformam algo: a competência é adquirida, complementada, perdida etc. Entretanto, o que os predicados transformam é somente a força intencional dos actantes, isto é, uma parte de sua identidade de actantes transformacionais, e não diretamente a situação narrativa. 172
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Portanto, as modalidades consideradas como condições pressupostas pertencem à lógica das forças, a lógica transformacional do discurso-enunciado. 3.1.3. A modalidade como modo de existência do processo
Um processo em que se exprimem as condições sob forma modal é um processo que não é considerado como realizado. Querendo apreendê-lo pelo ângulo de sua condição modal, escolhe-se uma perspectiva em que sua realização está somente em segundo plano, e sua condição modal, em primeiro. A atenção dirige-se, então, para as condições e afasta-se parcialmente da transformação em si. Portanto, pode-se dizer que a modalidade modifica o modo de existência do processo no discurso, que ela muda seu grau de presença em relação à instância de discurso. A modalidade ocupa o primeiro plano, absorve a atenção e beneficia-se da presença discursiva mais forte. A realização do processo fica em segundo plano, não chama a atenção e sua presença no discurso é enfraquecida. Quanto aos modos de existência, o predicado modal suspende a realização do ato já que, com a modalidade, se concebe o processo em uma perspectiva diferente daquela de sua realização pura e simples. Portanto, é preciso supor que a modalidade confere ao predicado que ela modifica um modo de existência diferente do realizado. Examinemos a sequência: (1) Ele dança
(2) Ele sabe dançar
(3) Ele quer saber dançar
Na sequência (1), dançar está realizado; em (2), o saber está realizado, mas a realização de dançar está suspensa; por fim, na sequência (3), apenas o querer está realizado, e a realização de saber e de dançar está suspensa. Podese até mesmo considerar que a distância entre o novo modo de existência do processo e o modo de existência realizado é proporcional ao número e ao tipo de modalidades. Fica claro que, quanto mais se aumenta o número de condições modais concatenadas, como na sequência (3), relega-se mais ainda a realização do processo para um segundo plano. Consideremos a existência no discurso como uma gradação, cujos dois polos extremos seriam o polo realizado e o polo virtualizado. Por um lado, Ele dança acontece, está “presente” no discurso, por outro, Ele dança não 173
Semiótica do discurso
acontece, está “ausente” do discurso. Entre esses dois polos extremos, os diferentes predicados modais permitem-nos percorrer todos os graus intermediários. Voltaremos a tratar mais adiante sobre a definição desses graus quando propusermos uma tipologia das modalidades. Todavia, para poder falar em diferenças de presença discursiva dos processos, para poder invocar o gradiente de seus diversos modos de existência, é preciso supor que o processo esteja situado no campo posicional da instância de discurso, que ele seja percebido por um observador e que o sujeito da enunciação possa dispor sobre a distância (espacial ou temporal, não importa) entre o processo e seu observador. Sem isso, a noção de modo de existência permanece uma noção puramente abstrata e formal. No campo posicional, quanto mais se se distancia do centro, mais a presença enfraquece-se em relação ao centro. E quanto mais se se aproxima do centro, mais a presença fortalece-se. Com relação às modalidades, quanto maior o número de condições modais às quais o processo está sujeito, mais distante ele está do centro de referência. Do mesmo modo, quanto mais essas condições são incertas ou desfavoráveis, mais o processo está distante na profundidade do campo de presença. Portanto, distinguir-se-á duas dimensões da presença modal: o número e a intensidade. O número de modalidades distancia-se proporcionalmente do centro de referência, pois ele aumenta a distância em relação ao modo realizado. A intensidade é aquela da expectativa de realização: quanto mais a condição é incerta, quanto mais ela é desfavorável, mais essa expectativa é fraca, e o processo afasta-se mais ainda na profundidade do campo, para longe da instância de discurso. Portanto, o modo de existência do processo modalizado é mensurado em relação à oposição enunciativa. O que está em jogo é a do campo posicional, do centro de referência e da distância em relação ao centro de referência. Logo, o modo de existência do processo modalizado faz parte da outra lógica, isto é, da lógica dos lugares, a lógica posicional própria à instância de discurso. Quando a modalidade é considerada como uma condição do processo, ela deriva da lógica das forças; quando é considerada como um modo de existência do processo, ela deriva da lógica dos lugares. 174
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O resultado disso é que as modalidades são a interface entre, de um lado, a estrutura narrativa da história (as transformações e a lógica das forças) e, de outro, a colocação em intriga e a instância de discurso (o campo perceptivo e a lógica das posições). Portanto, não é surpreendente que a teoria da modalidade tenha conhecido dois desenvolvimentos paralelos: um em semiótica narrativa (a partir das proposições de Greimas) e outro em semiótica do discurso (com as proposições de Coquet). Compreende-se melhor também por que a semiótica das paixões – que se baseia, entre outras coisas, nas modalidades – esteja a meio caminho entre a semiótica narrativa e a semiótica discursiva e que proponha, de certa maneira, uma síntese dessas duas abordagens. 3.1.4. A tipologia das modalidades
Como síntese das proposições que formulamos, podemos propor agora uma tipologia das modalidades que se assenta sobre o duplo estatuto de condição pressuposta (aspecto narrativo) e de modo de existência do processo (aspecto discursivo). Conforme esse duplo estatuto, as modalidades serão definidas por meio de duas variáveis: (1) os actantes que elas envolvem, como condição do processo, no que diz respeito à lógica das forças, e (2) os modos de existência que elas impõem ao processo, no que diz respeito à da lógica dos lugares. Segundo a lógica das forças, duas situações configuram-se: ou a modalidade modifica a relação entre o sujeito e o objeto ou, então, ela modifica a relação entre o sujeito e um terceiro actante. O querer e o saber modificam a relação entre o sujeito e seu objeto. Todavia, essa relação pode também ser modificada por uma forma do crer, que se exprime em português pela construção “crer em algo”, e que chamaremos pura e simplesmente de crer. O dever e o poder modificam a relação entre o sujeito e um terceiro, seja esse terceiro um destinador (no caso do dever) ou um adversário (no caso do poder). Essa relação entre o sujeito e o terceiro actante pode ser também modificada por um outro tipo de crer, que se exprime em português pela construção “crer em alguém”, e que chamaremos de aderir para distingui-la da primeira forma. Segundo a lógica dos lugares, que define os diferentes modos de existência, quatro situações configuram-se, correspondendo aos quatro modos de 175
Semiótica do discurso
existência reconhecidos até hoje. São eles, na ordem de graus de presença: (1) o modo virtualizado, que caracteriza o querer e o dever; (2) o modo potencializado, que caracteriza os dois tipos de crer; (3) o modo atualizado, que caracteriza o saber e o poder; e, por fim, (4) o modo realizado, o último da lista, que não é, na verdade, o modo das modalidades em sentido restrito, já que, sob seu domínio, surgem os enunciados do fazer e do ser, que não comportam nenhuma distância modal. A tipologia das modalidades deduzida a partir de seus dois principais tipos de propriedades estabelece-se, então, da seguinte maneira:
3.2. A modalização como imaginário passional O conjunto dos predicados modais do discurso surge agora como uma dimensão em parte autônoma em relação aos predicados narrativos dos quais eles modificam o sentido e o estatuto. Essa relativa autonomia lhes é assegurada por duas observações que, entre as já feitas aqui, merecem ser novamente evocadas: (1) em primeiro lugar, enquanto condições pressupostas, as modalidades são independentes da realização do processo; além disso, o conjunto da dimensão modal do discurso pode ser reconstituído a partir dos processos, estejam as modalidades expressas ou não; (2) em segundo lugar, enquanto modos de existência dos processos, as modalidades estão sob o controle da enunciação e, desse modo, elas escapam ao controle dos predicados que elas modificam; elas lhes impõem a posição da instância de discurso e determinam-lhes a orientação discursiva. Essa relativa autonomia levou, ademais, a um desenvolvimento considerável das pesquisas modais, pois o enunciado modal nos dá acesso a estruturas actanciais e narrativas mesmo na ausência de uma narrativa de fato. Eis por que, por 176
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exemplo, para caracterizar o valor semiótico de uma porta ou de uma janela em semiótica da arquitetura, não é necessário coletar e analisar os percursos dos sujeitos e seus usos efetivos desses tipos de aberturas: basta reconhecer seu estatuto modal (poder/não poder ver, poder/não poder atravessar etc.). Isso nos convida a fazer da dimensão modal do discurso uma dimensão completa capaz de assegurar sozinha todo um ramo da significação tanto de discurso enunciado quanto do discurso em ato. Considerando essa significação como independente da realização dos processos, daquilo que acontece de fato na dimensão narrativa, pode-se dizer, em suma, que ela inaugura no discurso um campo imaginário específico, um imaginário cuja instância de discurso está sempre no centro, mas que obedece a regras diferentes das regras da dimensão narrativa propriamente dita. Quando enuncio Eu quero dançar, eu me ponho a sonhar com cenas em que danço: apenas a modalidade basta para descortinar essas evocações imaginárias, independentemente do que eu faça na realidade. 3.2.1. A modalização como construção da identidade dos actantes
A identidade semântica de um actante é definida pelo lugar que ele ocupa em relação a um predicado: mas essa identidade só é assegurada – e só será igualmente reconhecida – no âmbito de todo o discurso se ela apresenta uma recorrência. Como já observamos, as modalidades são as mais aptas a assegurar essa recorrência e, portanto, a construir a identidade do actante na medida em que, mesmo quando elas não estão expressas, elas são dedutíveis. Consequentemente, elas são mais frequentes que suas manifestações explícitas; além do mais, elas podem ser expressas mesmo na ausência de um processo realizado e, por isso, são globalmente mais frequentes que os próprios processos. Logo, essa propriedade nos incita a basear-nos nas modalidades para construir a identidade do actante. Formalmente diz-se que, se os predicados modalizados descrevem o fazer dos actantes – sua performance –, os predicados modais descrevem, em contrapartida, seu ser – sua competência. Portanto, a dimensão modal do discurso pode agora ser considerada como aquela em que – por acumulação, combinação e transformação das modalidades – os actantes constroem sua identidade. Imaginemos, por exemplo, um actante que se esforça para adquirir todas as 177
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competências necessárias para realizar uma proeza: ele acumula técnicas, estoca informações, treina, ganha resistência etc. No final das contas, ele muda de identidade, está melhor assim, e estima que fez o que importava: ele não se dá mais sequer ao trabalho de realizar a proeza. A construção da identidade modal prevalece, então, sobre a busca dos objetos de valor. Em termos mais técnicos: os valores modais são substituídos pelos valores descritivos. A identidade modal dos actantes pode ser caracterizada pelo número de modalidades que a define e pela natureza das combinações que ela contrai. Portanto, é preciso, a princípio, definir o número de modalidades e as combinações concebíveis para cada número: (1) O actante não modalizado (actante M0) é um actante imediatamente realizado no acontecimento, um corpo que toma posição. Portanto, ele pode apenas reagir às tensões, sensíveis e afetivas, que perpassam seu campo de presença. Quando Proust descreve a experiência do despertar nas páginas iniciais de No caminho de Swann, ele descreve, primeiro, a tomada de posição progressiva de um actante M0 e só depois a aquisição das modalidades. Logo, o actante M0 teria o estatuto de uma instância fenomenológica em um campo discursivo em vias de formação; (2) O actante unimodalizado (actante M1) deve ser provido da única modalidade de que não se pode prescindir para agir – o poder fazer (a capacidade) – ou para existir – o poder ser (a possibilidade). Quando Fabrício está perdido em plena batalha de Waterloo, em A cartuxa de Parma,3 de Stendhal, ele acaba por esquecer o que ele foi fazer ali – lutar, talvez ver Bonaparte –, ele não tem mais nenhum ponto de referência, ele reage apenas em função das peripécias de modo a safar-se sem graves prejuízos: nele não há nem querer, nem dever, nem saber, há unicamente poder. O actante M1 é um autômato ou uma máquina eficazmente programada para uma única tarefa e que depende, assim, obrigatoriamente, de outros actantes mais bem providos de modalidades; (3) Portanto, o actante bimodalizado (actante M2) deve combinar o poder com uma outra modalidade. Agir “impulsivamente”, por exemplo, é, do ponto 178
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de vista da identidade modal, agir sob o controle do poder e do querer (não se encontra nesse ato nem deliberação, nem programação cognitiva da ação, nem injunção exterior). Em contrapartida, agir “metodicamente” e sem engajamento passional é contentar-se apenas com o poder e com o saber. Por fim, a identidade do “escravo”, ou do actante sob controle (ou sob influência), associará um dever ao poder do autômato. Eis o mínimo modal necessário para participar de um esquema narrativo canônico: ou poder + querer, ou poder + saber, ou, ainda, poder + dever. Os actantes M0, M1 e M2 correspondem para Jean-Claude Coquet ao não sujeito: fica claro que a descrição modal é mais precisa e mais diretamente operatória que a denominação genérica, adotada por comodidade. Ademais, é preciso esclarecer que as combinações modais que ele concebe são menos numerosas que aquelas que propomos aqui; (4) O actante trimodalizado (actante M3) é o único que se pode considerar como tendo uma identidade quase completa, já que nesse nível de modalização ele combina praticamente todos os tipos de modalidades: ao poder, acrescentar-se-á, por exemplo, um saber e um querer para um actante autônomo, ou um saber e um dever para um actante heterônomo. Nos dois casos, no lugar do saber pode surgir um crer etc. Perrette, da fábula de La Fontaine A leiteira e o jarro de leite, corresponderia ao tipo M3, mas com uma mudança de identidade ao longo do caminho. Ela parte para a cidade com seu jarro de leite sobre a cabeça, com um equipamento modal de actante M3 heterônomo: ela pode, sabe e deve. No entanto, com a ajuda da imaginação, ela muda de identidade e impõe-se, então, como um actante M3 autônomo: ela ainda pode, ela se põe a crer em sua iminente fortuna, ela quer especular sobre a venda do leite. Sua queda, o incidente final, traz bruscamente Perrette de volta à primeira identidade e, ainda por cima, sem o poder; (5) Quando o actante é definido por quatro modalidades (actante M4), o número de combinações aumenta, mas, obviamente, uma nova dimensão da identidade surge então. Na verdade, entre as combinações possíveis, algumas vão obrigatoriamente opor um saber e um crer, outras, um querer e um dever, que poderiam aparecer, então, ao mesmo tempo como redundantes e contraditórias: ou o sujeito sabe ou crê, ou ele quer ou deve. Tanto em 179
Semiótica do discurso
um caso como no outro, é preciso conceber uma hierarquia entre as modalidades redundantes. Percebe-se, nos dois casos, que essa hierarquia permite compreender como o sujeito assume seu percurso ou seu ato. Logo, a nova dimensão que surge é a dimensão da assunção. Não só se sabe, mas se crê: ao passo que fica claro que se assume pessoalmente o que se sabe. Não só se deve fazer algo, mas se quer: assume-se, então, pessoalmente o que se deve fazer. Essa dimensão pode ser também manifestada na identidade do actante M3, mas, nesse caso, na falta de redundância parcial entre as modalidades, apenas o contexto permite decidir se o crer e o querer têm esse valor de assunção. Primeira observação: Jean-Claude Coquet traduz essa propriedade grafando a modalidade de assunção – em sua teoria, apenas o metaquerer – com maiúscula e colocando-a na primeira posição da série modal. Para ele, ela é característica ao actante sujeito. Propomos atribuir também ao crer o estatuto de modalidade de assunção. Realmente, se limitássemos o exercício da instância de discurso ao campo posicional, o querer bastaria, já que ele permite ao sujeito afirmar-se a si mesmo como ego. Todavia, se a instância de discurso é também a instância que constrói e controla o sistema de valores do discurso, então o crer torna-se necessário para assumi-los. Segunda observação: as combinações concebíveis aqui são menos numerosas que aquelas teoricamente possíveis. Há duas razões para isso. Primeiramente, assim como as sílabas de uma língua são bem menos numerosas que as combinações possíveis entre os fonemas da própria língua, as combinações modais são também culturalmente determinadas e limitadas. É preciso realmente reconhecer que, quanto a isso, nós raciocinamos até aqui – como já tantos fizeram! – segundo um ponto de vista “ocidental contemporâneo”. Nós situamos, por exemplo, o poder na base do edifício, já que ele caracteriza o actante M1. De fato, poderíamos muito bem imaginar uma cultura em que, por exemplo, a modalidade do actante M1 fosse obrigatoriamente o querer. Há um vestígio dessa configuração na expressão popular francesa Cet arbre veut tomber [Essa árvore quer cair], expressão que se pode encontrar também, entre outros lugares, na região dos Grandes 180
Os actantes
Lagos Africanos. O dispositivo de conjunto seria profundamente modificado por tal configuração. Além disso, a combinatória abre-se novamente a partir do momento em que não se situa mais as coisas na perspectiva do ato, mas, sim, de uma forma mais abrangente, na perspectiva do afeto. Como veremos em breve, um actante pode muito bem ser definido somente por um querer e um dever, mas fica claro que ele não está pronto para passar à ação somente com esse equipamento modal, ele pode tão somente vivenciar um estado passional. 3.2.2. Os valores modais
Nós já sugerimos que a identidade modal dos sujeitos poderia constituir o desafio de uma busca específica, a busca de identidade, especialmente quando eles estão em condições de assumir essa identidade (actante M3 e M4). Portanto, as modalidades podem ser, para eles, preciosas aquisições dos objetos de valor. Um exemplo disso é a forma típica do romance de aprendizado, e, em particular, a que se exprime por meio do gênero picaresco no século xvii. O termo “aprendizagem” poderia dar margem à confusão, pois aprender é adquirir saber, mas nessa busca o actante não almeja somente o saber e o saber fazer. Ele descobre também sua vocação, suas motivações, ele hierarquiza suas obrigações, ele mede suas capacidades. Em suma, ele aprende a assumir, a controlar e a adaptar o que ele é. Todavia, para tanto, as modalidades devem mudar de estatuto e de uso: elas não são mais condições pressupostas, mas valores que definem papéis e atitudes diante do mundo e em um percurso de vida. E há um sinal dessa conversão que não deixa dúvidas: ao invés de funcionar de maneira categórica (pode-se ou não fazer, quer-se ou não etc.) como em seu estatuto puramente narrativo, as modalidades funcionam, então, de maneira gradual. O rebelde, por exemplo, é alguém que atribui mais força a seu querer do que a seus deveres. Isso significa que o resignado, ao contrário, longe de não possuir nenhum querer, simplesmente adotou a hierarquia inversa, sendo o seu querer sujeito à força de seu dever. Esses dois exemplos mostram claramente que (1) as diferenças modais são aqui da ordem do mais e do menos, o que introduz uma hierarquia entre as modalidades, e que (2) essas hierarquias e esses gradientes modais formam papéis (o rebelde, o resignado etc.). 181
Semiótica do discurso
Mas a gradação modal pode dizer respeito tanto à intensidade quanto à quantidade. É preciso, então, lembrar-se de que, como todo sistema de valores, os valores modais só surgem sob o controle das valências da percepção (ver capítulo “As estruturas elementares”), isto é, das valências de intensidade e quantidade. Tomemos como exemplo o caso do homem de ciência: enquanto não se trata de sua própria identidade na comunidade científica à qual ele pertence, seus conhecimentos serão avaliados somente do ponto de vista da verdade (adequação à realidade, respeito aos procedimentos científicos usuais etc.). No entanto, se se trata, por exemplo, de saber se ele é um “verdadeiro” intelectual, um “verdadeiro” pesquisador, a avaliação de seus conhecimentos, conforme a cultura e conforme seus discípulos, recairá, então, principalmente sobre sua extensão ou grau de especialização. O intelectual do Renascimento – pensemos no caso do famoso Giovanni Pico della Mirandola – deve saber tudo (eixo da quantidade) e com a maior profundidade possível (eixo da intensidade). Contudo, a partir da época clássica, o homem de sociedade, e, ainda hoje, o homem cultivado – aquele que lê o Le Monde! –, deve saber de tudo um pouco, isto é, ter conhecimentos extensos, mas sem bancar o sabe-tudo, sem se meter a especialista. Inversamente, o especialista e o erudito devem renunciar à quantidade para aprofundarem ao máximo seu conhecimento em um domínio restrito. Em todos esses casos, o valor do saber deriva de uma determinada relação entre intensidade e extensão. Cada um deles corresponde a uma identidade reconhecível, em uma dada cultura, como um papel – ou uma atitude. O mesmo se dá no caso das outras modalidades: o indeciso não sabe em que fixar seu querer, ele o espalha por um grande número de objetos sempre com uma fraca determinação; o fanático, em contrapartida, concentrou toda a intensidade de seu crer em um único objeto. Inversamente, o crédulo é aquele que crê em tudo, mas fracamente etc. Até agora estamos diante da lógica das forças: os valores modais baseiam-se, segundo essa perspectiva, na avaliação da força modal com vistas ao sucesso das transformações. Entretanto, segundo a lógica posicional, o sujeito da enunciação, individual ou coletivo, decidirá quais são os equilíbrios aceitáveis 182
Os actantes
ou quais são aqueles que devem ser rejeitados. Nos exemplos anteriores, vê-se claramente que um julgamento moral insinua-se na avaliação da identidade modal, e que, por exemplo, aquele que condena o crédulo (grande dispersão, fraca intensidade) adota uma posição diametralmente oposta a do que condena o fanático (grande concentração, forte intensidade). Portanto, distinguir-se-á, procurando aprimorar o método, o que as denominações emprestadas à língua confundem, isto é, de um lado, (1) a formação dos valores modais que seguem a lógica das forças, que estabelece os diversos equilíbrios entre a intensidade e a extensão e caracteriza a identidade de cada actante, seu “código” pessoal, de certa forma; de outro, (2) a avaliação ética, que toma posição em relação ao sistema, que segue a lógica dos lugares e que aplica aos valores modais um julgamento que emana da cultura de referência. 3.2.3. Das modalidades às paixões
A partir do momento em que as modalidades tornam-se valores modais, elas se baseiam, como se viu, em uma regulação perceptiva e sensível: um corpo sensitivo “sente” a intensidade e a extensão modal, o observador reconhece aí um papel ou uma atitude, isto é, a identidade transitória de um actante. Portanto, esses papéis ou atitudes modais são também, ao menos virtualmente, papéis e atitudes passionais, já que estão relacionados ao afeto e à sensibilidade. Todos os exemplos de que nos servimos há pouco comportam, em maior ou menor escala, uma dimensão passional: o crédulo, o fanático, o indeciso e o erudito são atores dos quais se pode praticamente prever os comportamentos afetivos, pois esses comportamentos são previsíveis a partir de sua definição modal. Cada um desses atores tem suas emoções próprias e características: a adesão impensada, o arrebatamento inquietante, a hesitação ansiosa ou curiosidade jamais saciada. Então, percebe-se que o efeito passional não se encontra tanto em uma certa relação entre intensidade e extensão modais, mas no movimento que modifica suas tensões: o papel do erudito, por exemplo, só será tratado como um papel passional se ele for apreendido no movimento e na tensão que o conduzem a um conhecimento sempre mais aprofundado e sempre mais restritamente especializado. O mesmo acontece com o fanático, cujo caráter apaixonado é tão mais sensível quanto ele parece dirigido para uma 183
Semiótica do discurso
crença mais forte e sempre mais estreita. O papel só se torna passional se for apreendido em seu devir. Do ponto de vista da história da semiótica do discurso, a teoria das modalidades foi o primeiro passo na direção de uma semiótica das paixões: os efeitos passionais, graças ao componente modal oriundo da narratividade, tornam-se analisáveis, cada efeito passional podendo ser reduzido, de um ponto de vista narrativo, a uma combinação de modalidades. Portanto, os afetos passionais eram considerados como simples epifenômenos do percurso narrativo dos actantes. Todavia essa abordagem do domínio afetivo permanecia nos limites de uma lógica das transformações, a lógica do discurso-enunciado. No entanto, fica bem claro que a dimensão afetiva do discurso não pode ser privada da presença, da sensibilidade e do corpo que toma posição na instância de discurso, pois a afetividade reivindica o corpo do qual ela emana e o qual ela modifica. Hoje em dia as proposições que estamos em condições de fazer conciliam esses dois pontos de vista: mesmo apenas na perspectiva das modalidades – que proporemos em breve ultrapassar –, os efeitos passionais participam dos dois domínios. As modalidades, como já provamos, asseguram a síntese entre a lógica das forças (a das transformações, das cenas predicativas e do discurso-enunciado) e a lógica das posições (a da presença, do discurso em ato etc.), pois elas são, ao mesmo tempo, condições pressupostas em relação à lógica das forças e modos de existência em relação à lógica das posições. Portanto, sendo a identidade passional dos actantes baseada nos valores modais, ela é por definição um dos lugares fundamentais da interação entre esses dois domínios de pertinência. Assim, a identificação dos actantes da enunciação aos do enunciado, e vice-versa, dar-se-á pelo intermédio desses papéis e atitudes passionais. Não se pode exigir que um leitor, por exemplo, partilhe logo de início das aventuras de que os atores de uma história qualquer participam nem que participe de tudo o que no discurso depende, em geral, do domínio das transformações narrativas. Em contrapartida, pode-se se apoiar sobre o fato de que há, ao menos, algo em comum com esses actantes: um corpo, uma posição, percepções que conciliam intensidade e extensão e que, consequentemente, podem ser manifestadas nos textos por graus de profundidade e de presença. 184
Os actantes
Tal é a mola propulsora da identificação dos actantes da enunciação e do enunciado, se não o é também da captura do leitor pelo discurso: para ler, o leitor deve elaborar a significação; para elaborar a significação, ele deve tomar posição em relação ao campo de discurso, adotar um ponto de vista, desenvolver uma atividade perceptiva etc. Desse modo, ele já partilha, ao menos parcialmente, da identidade modal e passional dos actantes do discurso.
Sugestões de leitura Bertrand, Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. Bauru: Edusc, 2003. (Parte 4: “Narratividade”). Coquet, Jean-Claude. Le Discours et son sujet i. Paris: Klincksieck, 1984, pp. 27-153. Fillmore, Charles. Toward a modern theory of case. Project on linguistic analysis, n. 13. Columbus: Ohio State University Press, 1965, pp. 1-24. Fontanille, Jacques; Zilberberg, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso/ Humanitas, 2001. (Capítulo “Modalidade”). Greimas, Algirdas Julien. Semântica estrutural. Trad. Haquira Osakabe; Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1973, pp. 225-50. ______; Courtés, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983. (Verbetes “ator”, “actante” e “modalidade”). Hjelmslev, Louis. La Catégorie des cas. Munique: W. Fink, 1971. Tesnière, Lucien. Éléments de syntaxe structurale. Paris: Klincksieck, 1959.
Notas Ch. Baudelaire, As flores do mal, trad. Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006, pp. 125-7. Voltaire, Zadig ou o Destino: história oriental, trad. Mário Quintana, Porto Alegre, Abril, 1972, pp. 15-77. 3 Stendhal, A cartuxa de Parma, trad. Vidal de Oliveira, São Paulo, Globo, 2004. 1 2
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Ação, paixão, cognição
A faculdade da linguagem permite-nos tomar posição em relação ao mundo percebido e vivido e, ao mesmo tempo, atribuir-lhe uma determinada presença discursiva ou, ainda, representá-lo. Ela pode, é verdade, surgir a posteriori, como um uso mais ou menos controlado dos sistemas de signos. Esses sistemas de signos serão específicos a um discurso particular ou a um uso mais amplo, sendo que, nesse caso, serão mais ou menos convencionais ou estereotipados. Todavia a perspectiva da semiose em ato convida-nos a situar-nos aquém e além da formação desses sistemas de signos e de seus usos no momento em que a linguagem organiza o vivido e a experiência para fazê-los significar. Organizar a experiência para fazer dela um discurso é, antes de tudo, nela descobrir (ou projetar) uma racionalidade: uma direção, uma ordem, uma forma intencional ou, ainda, uma estrutura. Portanto, este capítulo é consagrado às grandes racionalidades de que nos valemos para organizar nossa experiência em discurso: a racionalidade da ação, da paixão e da cognição, que constituem as três grandes dimensões de nossa atividade de linguagem. 1. A Ação A ação (a dimensão pragmática) tem sua própria lógica: a lógica das transformações. Ela se caracteriza essencialmente pelo seu caráter acabado: o sentido da ação só pode ser determinado retrospectivamente graças ao cálculo das pressuposições. O resultado da ação pressupõe o ato que a produz, que, por sua vez, pressupõe, ele próprio, os meios e a competência que o tornam possível. A racionalidade própria à ação é a racionalidade da programação: no próprio movimento do discurso, a ação parece obedecer a um programa dotado de uma
Semiótica do discurso
meta, de um desafio, de meios, de papéis e de um percurso. A noção de programação não deve despertar muitas ilusões. Na verdade, ainda que o programa preceda a ação, a racionalidade de que ele provém é ainda retrospectiva, pois, se ele é acabado, é justamente porque o conjunto de suas propriedades é estabelecido a partir do fim e das metas fixadas. 2. A Paixão A paixão (dimensão passional) obedece, em contrapartida, a uma lógica tensiva, aquela da presença e das tensões que ela impõe ao corpo sensível do actante. Eis por que a maior parte dos efeitos passionais, no discurso, pode ser apreendida na perspectiva das variações de intensidade e de quantidade. No entanto, a análise das paixões leva em conta muitos outros componentes além dos estritamente perceptivos e tensivos, especialmente o aspecto, a modalidade e o ritmo. O percurso passional só segue um programa na medida em que ele é altamente estereotipado; no entanto, a experiência sensível só pode ser apreendida pelo discurso no próprio momento em que ela advém, e não retrospectivamente. Consequentemente, o discurso apaixonado é regido por uma racionalidade bem diferente da primeira: a racionalidade do advir, que é aquela da irrupção dos afetos e do devir das tensões afetivas. Portanto, a racionalidade própria ao universo da paixão é aquela do acontecimento: o acontecimento não é acabado, ele advém e afeta aquilo que está diante dele, para quem ou em quem ele advém. 3. A Cognição A cognição (dimensão cognitiva) pode ser compreendida de duas maneiras. Em um sentido geral e englobante, a cognição, hoje em dia, designa muitas vezes o conjunto da faculdade de linguagem, isto é, as três dimensões de que já falamos aqui. Esse uso, induzido pelo sucesso atual das pesquisas cognitivas, não se revela muito operatório: se, à primeira vista, tudo no discurso é cognitivo, é preciso realmente distinguir diferentes domínios de pertinência, diferentes racionalidades em um segundo momento. Em um sentido mais específico, a cognição designará a manipulação do saber no discurso. A linguagem é, então, concebida na perspectiva dos conhecimentos que ela tem condições de nos proporcionar sobre o nosso mundo, sobre nós mesmos ou sobre o mundo possível que ela suscita. Nessa perspectiva, o discurso é considerado, então, como um todo de significação inteligível, e não somente como um lugar em que circula a informação. Uma outra lógica impõe-se nesse caso, a lógica epistêmica, da qual derivam, sobretudo, os modos de apreensão do mundo vivido (apreendidos por inferências, por impressão etc.). Para cada uma dessas apreensões corresponde uma racionalidade particular (racionalidade inferencial, sensitiva etc.), mas globalmente a racionalidade cognitiva é a racionalidade da apreensão e da descoberta: apreensão e descoberta da
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Ação, paixão, cognição
presença do mundo e de sua própria presença, descoberta da verdade, descoberta dos elos que podem surgir entre os conhecimentos existentes etc. *** Essa abordagem das racionalidades e dimensões do discurso é compatível com a definição empírica da significação, que só poder ser apreendida em seu devir, em transformação. Cada uma das três dimensões é, na verdade, uma maneira específica de apreender a mudança. As três grandes lógicas do discurso surgem, então, como três formas do devir: (1) a transformação sujeita a um programa de ação; (2) o acontecimento que afeta passionalmente a posição da instância de discurso; e (3) a apreensão e a descoberta da mudança, consideradas como fonte de conhecimento. Entretanto não nos enganemos, pois essas três lógicas não podem surgir nem atuar separadamente: elas são três pontos de vista sobre a mesma faculdade da linguagem, mas apenas três pontos de vista, não constituindo, assim, três “realidades” distintas. Se pensarmos, por exemplo, na argumentação, podemos imaginar que ela depende unicamente do terceiro tipo de racionalidade, a cognição, pois ela manipula conhecimentos. No entanto sabemos bem que argumentar é também jogar com as paixões (segundo tipo de racionalidade) com vistas a agir, isto é, obter uma certa transformação do outro ou da situação que se partilha com ele (primeiro tipo de racionalidade). Entretanto, os discursos concretos atribuem mais ou menos importância ao sentido que a ação, a paixão ou a cognição, respectivamente, conferem ao mundo: assim delineiam-se gêneros ou atitudes filosóficas frente ao sentido da vida. A interação entre esses três grandes tipos de racionalidades – a programação, o acontecimento e a descoberta – constitui um conjunto complexo, mas coerente, controlado por uma mesma práxis. Desse modo, o discurso pode, ao mesmo tempo, manifestar percursos acabados, emoções e tensões afetivas, podendo tanto reproduzir programas estereotipados quanto inventar novos mundos.
Essas três noções serão consideradas como as principais dimensões da sintaxe do discurso: três regimes diferentes e complementares de discursividade, três racionalidades identificáveis. Fala-se, por vezes (e até mesmo aqui), em “dimensão retórica” ou em “dimensão estética” do discurso. Portanto, devemos dizer que há “dimensões” e “dimensões”. Quando falamos em “dimensão retórica”, o termo “dimensão” tem um sentido fraco, genérico, e é preciso compreender, então, que evocamos somente um conjunto homogêneo de determinações específicas ao discurso. 189
Semiótica do discurso
Em contrapartida, quando falamos em “dimensão pragmática” (semiótica da ação), em “dimensão passional” (semiótica da paixão) e em “dimensão cognitiva” (semiótica da cognição), “dimensão” adquire um sentido forte, idêntico ao sentido empregado na expressão “espaço em duas ou três dimensões”. Nesse sentido, pode-se dizer que todo objeto semiótico é um objeto em três dimensões (ação, paixão, cognição), e provavelmente pelos mesmos motivos que levavam Peirce a dizer que todo objeto semiótico podia ser apreendido como primeiro, segundo ou terceiro. E isso nós iremos demonstrar quando chegarmos à terceira dimensão, a cognição. As três dimensões em questão seriam, assim, as três únicas maneiras (únicas: cqd!)* de organizar a sintaxe de um objeto semiótico. Todavia, após tal afirmação, devemos nos perguntar o que significa “organizar a sintaxe de um objeto semiótico”. Sendo que as respostas mais simples são frequentemente as mais operatórias, podemos nos referir ao que já chamamos de “síntese do heterogêneo”. A heterogeneidade é, de fato, um dado pré-sintagmático, um estado semiótico anterior à ordenação e ao reconhecimento dos esquemas organizadores. A heterogeneidade é também uma pressão que se exerce sobre a enunciação com vistas a uma organização identificável e significante (tanto na produção como na interpretação), sendo, por fim, uma propriedade das situações “percebidas”, anterior à articulação da presença em intensidade e extensão. A cada uma das três dimensões do discurso corresponde uma maneira específica de assegurar a síntese do heterogêneo (ou ao menos de tentar resolvê-la): chamaremos regimes discursivos essas diferentes formas da resolução das heterogeneidades. A dimensão pragmática fornece, nesse sentido, um dos regimes discursivos, o regime da ação. Essa afirmação não pode surpreender quem já tenha lido os três tomos de Tempo e narrativa, já que ela é o próprio tema da primeira parte do seu primeiro tomo (a mimese i é, de fato, para Ricœur, a primeira síntese temporal, aquela que produz a semântica da ação). Contudo a dimensão tímica (ou passional) fornece um outro regime, o da paixão, que reconfigura o conjunto do que é percebido em torno das
* N.T.: Acrônimo empregado geralmente ao final de uma demonstração matemática: c.q.d. = como queríamos demonstrar.
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modulações da presença, da copresença com o mundo e com outrem ou, ainda, da presença consigo mesma. Ainda mais porque, se confrontamos vários gêneros ou tipos de discurso, percebemos que as configurações passionais resultam, muito frequentemente, da conversão problemática de grandes operações míticas, e especialmente das operações de mediação entre domínios heterogêneos. Enfim, a dimensão cognitiva – é ainda preciso dizê-lo? – propõe também uma síntese do heterogêneo, um terceiro regime discursivo, sobretudo porque ela age por confrontação, comparação e porque os diferentes tipos de apreensões dos quais ela se serve são, primeiramente e por definição, modalidades diferentes de relacionamento:* relacionamento das figuras com seu referente, relacionamento entre elas próprias, por fim, relacionamento das figuras com os estados interiores do sujeito. 1. A Ação O regime da ação baseia-se na transformação descontínua das conjunturas. Uma ação liga duas situações, a situação inicial e a situação final, cujos conteúdos são invertidos: antes da ação, o ambicioso é pobre e desconhecido; depois da ação, ele é rico e (talvez) estimado. Dessa cláusula derivam todas as propriedades da ação. 1.1. A reconstrução por pressuposição Assim, para poder apreender uma transformação, é preciso confrontar a situação final com a situação inicial: esta última, na verdade, só tendo sentido quando é sobreposta à primeira. Se a apresentação da situação inicial for complexa e indistinta, é impossível identificar qual o conteúdo particular, cujo destino foi invertido na situação final. No entanto, mesmo se essa apresentação estiver explícita e se ela evidenciar, por exemplo, uma deficiência ou uma falta, nada nos garante também de que se trata realmente do conteúdo pertinente. Muitos textos são, a esse respeito, particularmente
* N.T.: No original, “mise en relation”.
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Semiótica do discurso
enganadores: um herói, que partiu em busca da riqueza, descobriu a sabedoria; um outro, que partiu para aprender a sentir medo, encontrou a riqueza e desposou uma princesa. A situação inicial pode mostrar a motivação dos atores, mas as motivações obedecem a outras racionalidades, diferentes daquelas da ação: um ator acredita precisar de um determinado objeto, e a paixão ou o erro ditam-lhe uma conduta que não vai originar uma verdadeira ação. Portanto, a identificação do conteúdo pertinente para a ação só é possível a partir do fim, isto é, graças à sobreposição da situação final à situação inicial. Os esquemas narrativos, por exemplo, são leituras às avessas do curso da ação: a partir do fim, da sanção – reconhecimento, recompensa ou punição –, somos convidados a investigar sobre o fato de que trata a ação, isto é, identificar a consequência da ação. A partir da consequência, pode-se reconstituir o que nos conduz a ela, começando pela própria performance. Em seguida, a partir da performance, pode-se calcular as condições que tiveram que ser estabelecidas previamente, as competências que tiveram que ser adquiridas etc. Portanto, a intencionalidade da ação só pode ser retrospectiva. A recíproca também é verdadeira: todo funcionamento retrospectivo assinala que o discurso procura nos impor uma lógica de transformação e, de uma forma mais geral, a racionalidade da ação. Se, por exemplo, o desenlace de um romance policial subverte todas as hipóteses que se puderam formular ao longo da leitura, pode-se considerar que, pela leitura retrospectiva que impõe, ele neutraliza todas as impressões ou as inferências anteriores para substituí-las por um princípio de transformação descontínuo: nosso saber, nosso acesso à informação narrativa e nossas inferências e impressões são, então, apesar de seu conteúdo de tipo cognitivo, surpreendidas em pleno erro tanto pela lógica da ação, uma lógica de dissimulação e de revelação – que é aquela do narrador, é claro –, quanto pela lógica do criminoso, uma programação oculta pela narrativa. Considerando a síntese do heterogêneo, que nós postulamos como elemento de definição desses tipos de racionalidade, a semiótica da ação baseia-se, ao mesmo tempo, no fechamento e na retroleitura de um processo. Mais precisamente, a heterogeneidade constitutiva dos percursos narrativos e de suas peripécias, bem como das formas temporais que eles manifestam, 192
Ação, paixão, cognição
é, nesse caso, tratada como uma totalidade integral, cujos constituintes podem ser calculados e deduzidos por pressuposição. Os principais constituintes da semântica da ação, tais como os enumera Ricœur em seu Tempo e narrativa i (agente, paciente, fim, meio, circunstância, ajuda, hostilidade, cooperação, conflito etc.), não são construídos de forma diferente: o processo global da transformação deve ser fechado, e, a partir desse fechamento, os actantes e segmentos necessários podem ser deduzidos e identificados. Portanto, a homogeneidade proposta pelo regime da ação é a homogeneidade de uma forma global composta de partes encadeadas umas nas outras. Essas partes têm um estatuto idêntico (logo, elas são do mesmo gênero) embora tenham um conteúdo diferente. Enfim, o elo de concatenação não tem o mesmo sentido em um percurso progressivo e em um percurso regressivo. Na progressão, os elos entre os elementos da cadeia são possíveis e contingentes (princípio de escolha); já na regressão, eles são necessários (princípio de pressuposição). Esse tipo de síntese é também aquele da gramática distribucional ou de sua forma mais atual, a gramática gerativa e transformacional. O mesmo acontece com os percursos passionais a partir do momento em que eles são considerados na perspectiva das transformações que produzem: a paixão age, isto é, ela desemboca em uma racionalidade diferente de sua própria. A crítica que Sêneca faz sobre a cólera, em seu De ira, é, a esse respeito, exemplar: aquele que se enche de cólera foi afetado por um acontecimento, mas essa reação vem do fato de que o homem em cólera programou-se, ele mesmo, para encolerizarse. O raciocínio é, então, completamente retrospectivo: a cólera pressupõe uma frustração que, por sua vez, pressupõe a expectativa por algo (que será recusado); a expectativa, ela própria, pressupõe uma crença, pois o homem colérico é alguém que esperava receber, nesse mundo, algo de bom de outrem, mas que termina por se sentir enganado. O raciocínio de Sêneca não obedece a uma racionalidade passional, ele a ignora conscientemente. Ele relaciona uma situação inicial (a crença otimista e pacífica) a uma situação final (a explosão agressiva) para mostrar que a cólera revela, de alguma maneira e retrospectivamente, um otimismo equivocado. Inversamente, uma vingança controlada e eficaz pressupõe uma visão sadia sobre as coisas, isto é, uma crença pessimista, que não nutre nenhuma expectativa positiva. Nessa perspectiva, a cólera não é mais tratada conforme uma lógica passional, aquela do acontecimento, já que a questão que se postula é exatamente aquela da
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finalidade da ação ou, ainda, de sua otimização: quais são as melhores condições iniciais para que a ação tenha sucesso? Além disso, a estratégia proposta tem por objetivo tornar impossível o próprio acontecimento: nada que não esteja já integrado no programa da ação deve advir.
1.2. A programação da ação O fato de que o sentido da ação seja reconhecível somente a posteriori não significa que ele não seja controlável pela ação, pois, do contrário, toda ação apareceria como aleatória e ininteligível ao longo de seu desenrolar. Na verdade, o actante pode programar a ação, e isso de três maneiras: (1) calculando ele mesmo às avessas o percurso a partir da situação que ele quer obter; (2) utilizando esquemas estereotipados; (3) implementando estratégias. Entretanto, da solução (1) para a solução (3), ele se distancia progressivamente da ação e mostra-se cada vez mais sensível ao acontecimento. Em outras palavras, partindo de uma estrita programação às avessas a partir do resultado esperado, ele acaba por adotar uma programação prospectiva, a partir da posição imposta pela instância de discurso. Os esquemas estereotipados já recorrem à práxis e à memória; quanto à eficácia das estratégias, a práxis depende da capacidade de resposta do actante no acontecimento hic et nunc. Quanto mais o actante distancia-se do regime da ação, menos satisfaz às condições previstas por ela (fechamento e retroleitura): a estratégia induz, então, a um percurso aberto e concebido prospectivamente. Contudo, no interior dessas projeções estratégicas, o modo de raciocínio pode permanecer retrospectivo. De fato, a reconstrução por pressuposição é acessível ao actante contanto que ele possa aceder à dimensão cognitiva: tendo descoberto a racionalidade retrospectiva da ação e tendo reconhecido-a como uma forma de sua experiência, ele vai aplicá-la a seu projeto de ação e reconstituir todas as suas etapas por pressuposição. O cinema comercial, por exemplo, habituounos às cenas de preparação de um assalto a banco, em que a segmentação temporal da ação é fixada de trás para frente a partir do tempo máximo de que dispõem os ladrões para realizar a operação. Não há nada para ser descoberto, nada a inventar (desse ponto de vista particular): tudo já está virtualmente programado pelo tempo e pelas circunstâncias. 194
Ação, paixão, cognição
Em todo caso, em muitos outros tipos de discursos ou em outras situações narrativas, a programação não depende nem de uma reconstrução às avessas nem de uma cadeia de instruções. O programa deve poder ser, portanto, inventado pelo actante: é nesses casos em que os cálculos do actante tornam-se verdadeiramente estratégicos. Na execução do plano do assalto a banco, por exemplo, interferem, de um lado, o contraprograma de segurança e defesa da ordem e, de outro, o que se chama, em geral, de os imponderáveis. Nesse caso, o actante deve poder combinar (1) a programação às avessas, que lhe permite conservar seu objetivo principal; (2) os esquemas estereotipados, que permitem uma resposta canônica; e (3) um cálculo estratégico a partir das representações que faz do adversário ou do “imponderável”. É claro, portanto, que a representação da ação é da ordem do simulacro (uma representação de segundo grau no interior de um discurso), e que o percurso desenrola-se, então, sobre a dimensão cognitiva do discurso. Os discursos técnicos, como uma receita de cozinha, uma instrução de uso ou um manual de instruções de montagem que acompanha um kit qualquer, fornecem excelentes ilustrações dessa lógica retrospectiva. Eles são discursos de programação, os quais se apresentam sob a forma de uma série de instruções. Essas instruções são totalmente controladas pelo resultado a ser obtido: quando se trata de um prato, por exemplo, estabelecer a receita consiste em: (1) fazer a lista dos ingredientes graças a uma análise do prato; (2) decompor as fases da realização partindo do final (o momento em que o prato deve ser apresentado à mesa) – decoração, disposição, cozimento, preparação etc. –; e (3) conciliar essas diferentes fases no tempo, levando em conta a duração de cada uma delas e de sua ordem necessária. Ainda que o discurso de instrução seja lido como uma progressão em direção ao fim (na direção da descoberta que fazemos dele), ele não deixa, por isso, de obedecer a uma programação retrospectiva calculada a partir do resultado esperado. Em contrapartida, ou quando a ação é um projeto ou no momento da produção do discurso de instrução, a programação só pode se basear em estimativas e deve, então, munir-se de um quadro esquemático. Consequentemente, a reconstrução, que ela se dê por pressuposição ou por projeção de um simulacro, deverá obedecer a um certo número de marcações típicas, isto é, ela deverá, em suma, explorar o esquema canônico de uma ação: o programa de base (ou “programa narrativo”), a meta (consequência), o desafio (objeto de valor), os parceiros (outros actantes), as fases intermediárias obrigatórias (aquisição de competência, predicados modais) etc. Nesse caso, a programação utiliza um “metadiscurso” de instrução, aquele que nos liga à cultura à qual pertencemos e que define a boa forma de uma programação.
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Semiótica do discurso
1.2.1. O programa narrativo
A unidade de base do enunciado da ação é o programa narrativo. Importante: O adjetivo “narrativo” deve ser compreendido no sentido geral e técnico do que “corresponde a uma transformação”. Um programa de base é composto de enunciados de estados, isto é, de uma interação elementar entre dois tipos de actantes, o sujeito (S) e os objetos (O), reunidos por um predicado dito de junção: conjunção (S O) ou disjunção (S O). Um programa narrativo consiste, então, em transformar um enunciado elementar em um outro (situação inicial situação final), por exemplo: (S
O)
(S
O) = programa “disjuntivo”
O)
(S
O) = programa “conjuntivo”
Ou, ao contrário: (S
A fórmula tradicionalmente utilizada – que é apenas uma “escrita”, e não uma análise – é a seguinte no caso do programa conjuntivo: Ft [S1
(S
O)]
Essa fórmula só conserva os símbolos do ato (Ft = “fazer transformador”), do operador (S1), do beneficiário (S2), do que está em jogo, ou melhor, do objeto de valor (O), e da meta, o enunciado de estado final (S O). Os colchetes “[ ]” simbolizam a transformação, e os parênteses “( )”, o enunciado elementar. A programação da ação (programa de base, operador, meta, objeto de valor, ato, beneficiário etc.) provém somente parcialmente dessa fórmula do programa narrativo. É preciso ainda confrontar esse último ao contraprograma e à estratégia dos subprogramas. 1.2.2. Programa e contraprograma
É preciso lembrar que, na perspectiva da transformação, situamo-nos em uma lógica das forças e principalmente que, se um programa tem por 196
Ação, paixão, cognição
objetivo transformar um enunciado em um outro enunciado, ele encontrará uma certa resistência da parte do enunciado inicial, considerado como um estado mais ou menos estável. Trata-se, então, da resistência da matéria, da resistência da própria complexidade da situação inicial ou, mais frequentemente, da resistência imputável diretamente à ação de um outro sujeito. Solidez, complexidade ou hostilidade, todas essas figuras esboçam a perspectiva de um contraprograma. O contraprograma torna-se mais claro se desdobrarmos totalmente a fórmula da transformação: Ft [S1
(S2
O)
(S3
O)]
As notações S1, S2 e S3 são, por direito, actantes distintos. De fato, algumas equivalências (chamadas também de sincretismos) são possíveis: – S1 = S2 (o operador separa-se do objeto e o atribui a um sujeito qualquer); – S1 = S3 (o operador subtrai o objeto de um outro sujeito para dele se apropriar); – S2 = S3 (o operador atribui o objeto a um sujeito que não o possuía); – S1 = S2 = S3 (o operador atribui-se um objeto que ele não possuía). No entanto, independentemente da interpretação particular da situação, ela comporta, ao menos virtualmente, o vestígio de um contraprograma. Esse contraprograma apoia-se em S2, o actante do qual se modifica a situação para suscitar uma outra em proveito de S3. Tomemos como exemplo o manual de instruções de montagem. A inexistência do objeto a ser reconstituído é em si um obstáculo à montagem: o enunciado (S2 O) não é somente o enunciado a ser transformado, mas também o vestígio do contraprograma a ser combatido. Na verdade, esse tipo de manual de instruções é concebido para afrontar a decomposição do objeto, que, por sua vez, resulta do processo de condicionamento: o objeto foi concebido como um todo, depois segmentado para ser vendido em um kit; o contraprograma, no caso, é a decomposição do objeto em partes. Enquanto o operador não imaginar ao menos a forma acabada desse objeto, o contraprograma irá impor-se.
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Esse exemplo mostra claramente que a noção de “contraprograma” não deve ser limitada ao caso em que um verdadeiro antissujeito opõe-se ao sujeito. De fato, nesse caso pode-se ainda falar em antissujeito se se admite que ele está, de algum modo, “objetivado”, inscrito na própria morfologia do objeto. No entanto, esse “antissujeito” pode, a qualquer momento, recuperar sua autonomia nos comentários do sujeito que monta o kit: a resistência do objeto decomposto em partes é, então, imputada, por exemplo, a seu criador ou a seu fabricante.
Portanto, o conflito é inerente à lógica da ação: se é preciso um operador para transformar um estado, é justamente porque, por definição, esse estado resiste à transformação. Em contrapartida, os estados instáveis podem evoluir sem operador, mas, como veremos mais adiante, sua evolução não depende de uma lógica da ação. A estratégia será definida como essa dimensão da programação que consiste em desfazer o contraprograma. São inúmeras as consequências dessa observação sobre a programação da ação, porém nós só conservaremos duas delas em termos de estratégia: a estratégia aspectual e a estratégia dos simulacros. 1.2.3. Estratégias aspectuais: programa e subprogramas
Uma receita de cozinha que dissesse: Cozinhe a carne em pedaços salpicados de farinha em uma panela com as cebolas fatiadas, o vinho, o óleo e as rodelas de cenoura...
não teria muitos adeptos. Na verdade, a primeira regra que se deve aplicar para desfazer o contraprograma é a segmentação da ação: dividir para reinar. Dividir o programa em subprogramas equivale a dividir a resistência do contraprograma. Se a resistência é devido à complexidade da situação, então o subprograma aplicar-se-á a uma parte mais simples; se a resistência é devido à hostilidade, então o subprograma aplicar-se-á a um aspecto secundário ou, ao menos, distanciado do desafio principal. Um prato como o cozido de carne com cenouras, por exemplo, deve produzir um certo número de sensações (sabores, aromas, consistências) às quais só se possa chegar graças a um arranjo ordenado das operações. Em outras palavras, para que a receita seja eficaz, ela deve decompor as etapas e ordená-las: dourar a cebola antes da carne, refogar a carne antes de introduzir as cenouras etc. 198
Ação, paixão, cognição
No entanto, só se pode ordenar a sequência depois de ter feito a segmentação pertinente, e isso, unicamente a partir de uma representação global e estável do objeto. Portanto, haveria em perspectiva na programação uma formação “icônica” da meta a ser atingida. A ação solitária de um jogador que, em uma partida de futebol,* recebe um passe ligeiro de forma inesperada e chuta forte em direção ao gol é bela, certamente, mas ela supõe a ausência momentânea do contraprograma, isto é, a desorganização momentânea da defesa adversária. Na falta de poder contar com tal ausência, a partida será jogada graças à acumulação de ações menos espetaculares compostas de subprogramas: posses de bola alternadas, dribles, marcações, série de passes etc. A segmentação em subprogramas atribui menos relevância à intensidade e ao brio, à concentração de uma ação explosiva, e mais eficácia ao cálculo, à quantidade de um grande número de ações concentradas e ordenadas. Em suma, em uma estrutura tensiva que oporia a explosão do acontecimento e a programação da ação, a segmentação programática estaria do lado da extensão dominante. De uma certa maneira, a decomposição da ação em subprogramas faz eco à decomposição do objeto evocada anteriormente. A decomposição do objeto confere-lhe uma morfologia “resistente”, e essa resistência deve ser compensada por instruções de uso que segmentem a ação. A decomposição da ação confere-lhe uma complexidade e uma imprevisibilidade que deve, ela também, opor-se à ação da parte adversária. A simples réplica possível é, então, um melhor conhecimento das combinações disponíveis no caso.
A segmentação em subprogramas pode obedecer a várias regras complementares: regra das condições pressupostas, da morfologia do objeto, da forma temporal e espacial que o programa deve assumir e, finalmente, regra da própria organização do contraprograma. Quanto às condições pressupostas, os subprogramas permitem adquirir as modalidades necessárias à ação (ver capítulo “Os actantes”). Por exemplo: para montar um móvel, o operador deve saber ao menos a diferença entre uma chave de fenda comum e uma chave de fenda Philips, ou entre um simples parafuso e um pino, entre a sustentação e o fundo etc. Logo, esses programas de aquisição modal formam a competência do operador.
* N.T.: Este exemplo, bem como o que será empregado mais adiante, tratava originalmente de um “ponta” de rúgbi e do sucesso e do fracasso de suas estratégias de jogo.
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Quanto à morfologia do objeto, os subprogramas adotam a estrutura do objeto em partes, ao menos a estrutura na qual ele se apresenta na situação inicial. O caso da receita culinária é exemplar: é melhor, por exemplo, que na preparação de uma maionese não se reconheça no produto final o ovo, o óleo e o limão. E, entretanto, os subprogramas consistirão em quebrar os ovos, acrescentar o óleo e só depois o limão. Essas partes são, além de tudo, hierarquizadas, e os subprogramas reproduzem essa hierarquia projetando-a no tempo (antes/depois) e no espaço (para frente/para trás etc.). Portanto, quanto às formas temporais e espaciais, os subprogramas adotam a estrutura hierárquica das partes do objeto. Contudo a programação espaçotemporal deve também levar em conta a duração relativa de cada um dos subprogramas: se as cenouras não estiverem cortadas em rodelas no momento em que as cebolas fatiadas e os pedaços de carne são dourados no óleo quente, o sucesso do cozido estará seriamente comprometido. Isso equivale a dizer que, a qualquer momento, o contraprograma, atuando sobre sua própria programação temporal, pode conduzir-nos a modificar nossa estratégia: se as cenouras não estão prontas para serem cozidas no momento adequado, alguns minutos depois as cebolas e a carne terão passado do ponto. Quanto ao contraprograma em si, o operador deve poder agir por antecipação. Mudando de exemplos, evoquemos a estratégia de Bardamu, no romance de Céline, Viagem ao fim da noite: ele está diante de um contraprograma persistente, irredutível e irremediável, contraprograma que, pela degradação das situações encontradas pela frente, conduz à decomposição das matérias, ao agravamento das relações entre personagens e à morte de alguns deles. A única iniciativa que lhe fora concedida para desfazer o contraprograma é a fuga: e ainda é preciso que ele parta em tempo hábil. Logo, Bardamu antecipa-se por meio do contraprograma graças a certos sinais que sua experiência lhe ensinou a reconhecer. Graças ao cheiro (real ou metafórico) das “situações”, à agressividade que emana de seus semelhantes ou à doença que se espalha, ele é capaz de prever o momento em que a irremediável degradação surtirá efeito. O episódio do comércio na África é exemplar: tendo percebido a tempo a reunião de todos os sinais prenunciadores, ele incendeia seu casebre, apaga todos os vestígios de sua passagem e foge. 200
Ação, paixão, cognição
Esse tipo de estratégia, que se baseia na segmentação de um processo em partes ordenadas e reguladas no tempo e no espaço, é de natureza aspectual: assim como o aspecto em linguística, essa estratégia consiste em tratar o processo da ação não como um todo, mas como uma estrutura temporal e espacial hierarquizada. 1.2.4. Estratégias e simulacros
Para adaptar seu programa ao contraprograma, a qualquer momento o operador deve poder dispor de uma representação do contraprograma que seja adequada à fase na qual ele mesmo se encontra. O que chamamos aqui de “representação” já tem a forma de um discurso: ela se refere a uma posição, compreende um sistema de valores, baseia-se em programas narrativos, desdobra-se no espaço e no tempo, e o actante visado é dotado de uma identidade modal. Portanto, esse seria um discurso virtual, imputável a outro actante, mas apreendido a partir da posição do primeiro actante. Esse discurso virtual, tal como ele é sugerido na resposta que lhe dá o primeiro actante, é, na maioria das vezes, limitado a uma representação do objetivo suposto. No discurso argumentativo, a construção de tais simulacros foi repertoriada sob a forma de figuras de retórica: a prolepse, por exemplo, é o exato equivalente de uma representação da estratégia do antissujeito, já que é a figura que consiste em imitar por antecipação um argumento da parte contrária para extrair as suas objeções e poder refutá-lo previamente. Como as estratégias são interativas, cada um construindo seu próprio simulacro e também o do outro em função dos simulacros que se supõe que o outro elabore, o mecanismo que se delineia é aquele do imbricamento e do encadeamento de simulacros: ter-se-á, então, simulacros de primeiro, segundo, enésimo grau (do ponto de vista paradigmático), e simulacros de primeiro, segundo e enésimo tipo (de um ponto de vista sintagmático). Portanto, a estratégia não supõe somente uma capacidade de antecipação em relação ao percurso de outrem, mas, mais que isso, uma memória e uma capacidade metassemiótica: a memória permite conservar uma representação mobilizável de todas as combinações de simulacros, e a capacidade metassemiótica permite agenciá-las como cenários possíveis.
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Voltemos ao futebol e a nosso jogador solitário (time A): no momento em que recebeu a bola, ele tirou proveito do fato de os defensores (time B) terem se concentrado em uma zona X do gramado. Portanto, do ponto de vista do time adversário (B), o programa do time A recebeu uma representação que indicava que, nessa fase do jogo, todos os esforços estavam voltados para essa zona X na qual ambos os times se concentraram. Imaginemos que os jogadores do time B decidam se valer de uma artimanha: diante da investida sem resistência do nosso jogador solitário, a defesa do time B avança em direção ao campo do adversário (A), ou simplesmente não se move, para que o jogador do time A, no instante em que receba a bola e já pronto para chutar ao gol, encontre-se impedido na medida em que estará dando as costas para a defesa adversária. A representação que cada time ou jogador faz do programa do outro é um simulacro, isto é, um equivalente simplificado e adaptado à concepção de uma contraestratégia. De uma forma mais geral, diríamos que o actante faz um simulacro do contraprograma sob a forma de uma imagem esquemática e virtual do objetivo almejado por esse contraprograma (ou seja, o enunciado terminal). Mas o papel dos simulacros vai além: o manual de instruções de montagem deve fornecer um simulacro do objeto que respeite a morfologia do objeto. O jogador de futebol elabora, igualmente, um simulacro para seu adversário que, em nosso exemplo, vai se revelar enganoso: a artimanha do time B, destinada a colocar em situação de impedimento o jogador do time A, é um bom exemplo desse tipo de ocorrência.
No final das contas, a comunicação entre os actantes respectivos do programa e do contraprograma dá-se totalmente por meio desses simulacros. Isso significa, entre outras coisas, que a programação de cada um deles é, a todo o momento, modificada para falsear e manipular a programação um do outro. Uma dimensão cognitiva surge, então, na qual a programação instituída e manifestada (e não a programação imanente) torna-se um meio estratégico de comunicação. No entanto, se a ação programada é acompanhada de um “fazer saber” sobre a programação eventualmente destinado a enganar o adversário, isso quer dizer que a racionalidade da ação pode, a qualquer momento, desdobrarse: ela aparece, então, como heterogênea, composta de duas camadas significantes, uma camada pragmática e uma camada cognitiva. Segundo a terminologia de Hjelmslev, o percurso narrativo seria subdividido, assim, em duas semióticas: uma semiótica-objeto (a dimensão pragmática) e uma metassemiótica (a dimensão cognitiva). Desse modo, a manifestação da ação teria duas faces: o desenrolar da ação e a exibição de seu modelo interno. 202
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Nas estratégias que poderíamos qualificar de baixo nível, os simulacros dizem respeito somente à representação antecipada do resultado final e, eventualmente, das etapas intermediárias. Por exemplo: em um manual de instruções, as fotos, os desenhos e esquemas, que comportam códigos de partes e códigos de etapas. Nas estratégias de alto nível, a ação investe-se de uma outra dimensão, que poderíamos chamar persuasiva, na qual são propostos e interpretados os simulacros recíprocos dos programas e contraprogramas. Conhece-se, a esse respeito, a sutileza do jogo de xadrez, mas se sabe, por outro lado, que uma tal complexidade estratégica tem um custo alto, pois ela escapa à simples lógica da ação e tem efeitos emocionais e axiológicos, além de incidências metassemióticas. A dimensão retórica do discurso explora também esse tipo de estratégia de “alto nível”. Pensemos no exemplo do asteísmo. Ele consiste em uma figura argumentativa cujo enunciado tem uma orientação negativa que deve, entretanto, ser entendida em um sentido positivo. Essa figura permite, por exemplo, agradecer a alguém ao censurá-lo pelo presente recebido: logo, o simulacro que o locutor propõe de si mesmo é o de alguém que não esperava um presente, ou que esperava um presente de menor importância. Consequentemente, o interlocutor vê-se, do mesmo modo, dotado, por imbricamento e superposição, do simulacro de alguém que dá um presente sem motivo, gratuita e generosamente. A estratégia propõe uma nova leitura do dom na perspectiva de uma troca desequilibrada, na qual o dom seria superior a sua expectativa. Globalmente a estratégia tem por objetivo, por meio do contradom simbólico que dita essa forma de polidez, reconstruir o sentido do dom, apagar retrospectivamente toda obrigatoriedade e reciprocidade, de modo a evidenciar, de um lado, a generosidade que ele inspirou e, de outro, o prazer e a surpresa que ele traz. Portanto, a figura estratégica é acompanhada de um deslocamento axiológico, de uma modificação da identidade modal dos actantes em causa e de um certo número de efeitos afetivos.
Essas últimas observações devem ser destacadas: uma outra dimensão diferente da dimensão da ação instaura-se aqui, os papéis passionais e os afetos fazem sua aparição. A persuasão provém da cognição e da paixão, e não somente da ação. Eis por que as estratégias fundamentadas nas trocas de simulacros podem modificar o sentido da ação: não estamos mais diante da simples racionalidade da transformação acabada. 203
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2. Paixão O regime da paixão baseia-se nas modulações contínuas da intensidade semântica e na sua relação com a quantidade (seja a quantidade actancial ou a extensão espaço-temporal). Certamente, a paixão transforma, assim como a ação, mas a racionalidade que a dirige é aquela das modulações tensivas – modulação das extensões próprias à intensidade e à extensidade. Logo, quanto aos esquemas do discurso, a paixão obedeceria principalmente aos esquemas tensivos, enquanto a ação obedece aos esquemas narrativos canônicos. Na qualidade de regime discursivo, a paixão sintetiza, organiza e solidariza as tensões da presença, enquanto a ação sintetizaria os programas de junção. Desse ponto de vista, vê-se que a semiótica das paixões nasceu da necessidade de resolver heterogeneidades próprias à semiótica narrativa, na qual – ao lado dos enunciados de junção e de suas transformações, assim como das modalidades da competência – surgem “excedentes” inexplicáveis, de tipo intensivo, quantitativo e, de uma forma geral, afetivos. As modalidades (querer, poder, dever), que “extrapolam”, por exemplo, a simples realização de um programa acabado e que mantêm o actante no mesmo estado de tensão que no começo do programa, constituem um “excedente” heterogêneo que nos convida a buscar um outro nível de funcionamento textual: ritmos que, projetados no desenrolar da ação, significam praticamente o contrário do que está expresso como motivo da ação; actantes que “esquecem” a progressão natural da ação para visar somente a realização de sua própria identidade etc. Se as hipóteses de Ricœur sobre o tema forem levadas em conta, a colocação em intriga narrativa já é suficiente para assegurar as sínteses temporais. Entretanto, quando se examinam atentamente os discursos que os filósofos (que constituem o corpus de referência de Ricœur) sustentam sobre o tempo, percebe-se que a paixão encontra neles mais espaço do que a ação. Os “regimes temporais” que eles declinam de fato são, antes de tudo, “regimes passionais” ou sensíveis que implicam o corpo sensitivo, como, por exemplo, em Santo Agostinho (a lembrança, a atenção e a espera), ou, em Husserl (a retenção e a protensão), ou, ainda, em Heidegger (o cuidado e a preocupação). Portanto, a discursivização da paixão, tanto quanto a discursivização da ação, é uma forma de síntese discursiva, mas que atua principalmente sobre as categorias da presença, a intensidade e a quantidade. 204
Ação, paixão, cognição
2.1. A intensidade e a quantidade passionais A paixão é, no discurso, o efeito de duas determinações: de um lado, determinações modais (ver capítulo “Os actantes”) e, de outro, determinações tensivas. A relação entre as duas pode ser ilustrada graças à relação, mais conhecida em linguística, que se mantém entre os fonemas e a entonação: os fenômenos são determinações descontínuas, que são os constituintes de uma cadeia sonora abstrata, enquanto a entonação é seu acompanhamento tensivo, feito de acentos e de modulações. Esses fenômenos de acompanhamento da cadeia dos constituintes podem ser denominados expoentes. As determinações modais são constituintes, e as determinações tensivas, expoentes. A distinção entre constituintes e expoentes não é hierárquica: certas sintaxes já evocadas aqui, como as do distribucionalismo, só conhecem os constituintes. Outras, como a de Viggo Brøndal, concentram-se nos expoentes e na energia e ritmo que a frase deve gerenciar. Os expoentes, de uma certa forma, concernem à camada mais profunda do sentido em ato: a emoção, o vivenciado, a percepção. O regime da paixão partilha com o regime da ação o mesmo tipo de constituintes, as modalidades, embora ele tenha seus próprios expoentes, a intensidade e a quantidade do afeto. Segundo o princípio definido por Greimas, as modulações da tensividade fórica (os expoentes) são rearticulados de maneira descontínua sob formas de modalizações do ser (os constituintes). São os constituintes que visam o valor que os expoentes determinam. Quando passamos do estudo do fonema ao estudo da sílaba em fonologia, o princípio de pertinência muda. Pode-se definir, por comutação, fonemas que são unidades descontínuas e que podem ser descritos pela combinação de “traços” pertinentes (sonoro/não sonoro, labial/dental etc.). Contudo a sílaba não pode ser definida sem que se recorra aos fonemas tensivos (oclusão/explosão, abertura/ fechamento) que servem, entre outras coisas, para administrar as modulações da energia articulatória a fortiori, quando passamos ao estudo mais geral da entonação e da prosódia do plano da expressão. Os linguistas propuseram estabilizar essa diferença: fala-se, assim, em “fatores segmentais” e “fatores suprassegmentais”, o “segmento” sendo, como seu nome indica, a unidade descontínua obtida pela segmentação da cadeia do discurso. No entanto, a abordagem mais clara dessa questão parece-nos ser a de Hjelmslev, que distingue em toda sintaxe duas dimensões: a dimensão dos constituintes (os
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Semiótica do discurso
fonemas e os sintagmas, por exemplo) e a dimensão dos expoentes (o perfil e os tipos entonativos, os acentos de intensidade e de duração etc.). A vantagem dessa apresentação é que ela diz respeito tanto ao plano do conteúdo quanto ao plano da expressão: desse modo, haveria para o plano do conteúdo também um conjunto de expoentes que seria homólogo àquele que já conhecemos para o plano da expressão.
2.1.1. A intensidade
Quando se fala sobre a intensidade em fonologia, sabe-se de que se trata: ela explora uma substância não fonológica, que pode ser identificada com a energia articulatória e com a intensidade acústica. No entanto, quando se fala de intensidade afetiva do discurso, sobre o que se fala exatamente? Na expressão linguística, a intensidade é uma variável que aparece no momento da avaliação e que participa da modalização enunciativa: ela depende da apreciação do sujeito da enunciação. Quando este último deve pronunciar-se a respeito de um acontecimento negativo, ele conclui, por exemplo, de que se trata quer de um incidente, quer de uma catástrofe; ele escolhe entre as duas alternativas em função da intensidade – do impacto – que atribui ao acontecimento disfórico. Portanto, a intensidade só intervém na modalização enunciativa de uma forma secundária, já que a avaliação axiológica acontece primeiro. Nesse exemplo, para ser mais preciso, a intensidade é aquela da disforia. A intensidade afetiva é, desse modo, indissociável da axiologia. Ela poderia até mesmo ser definida como uma propriedade da própria foria: por um lado, a foria é mais ou menos intensa (é essa a definição de afeto) e, por outro, ela é polarizada em disforia e em euforia pelo julgamento axiológico (é essa a definição de valor). O efeito passional resulta, então, da conjugação dessas duas propriedades, o afeto e o valor. Em geral é bem difícil distinguir a expressão linguística da intensidade daquela da afetividade: tal comportamento será julgado inaceitável com respeito à norma e escandaloso com respeito ao efeito afetivo que ele produz (indignação, cólera etc.) – o ganho em intensidade é acompanhado, dessa forma, de uma manifestação passional. Do mesmo modo, entre a economia e a avareza, o aumento da intensidade assinala a transformação de um 206
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comportamento estereotipado em uma paixão. Isso não significa, entretanto, que o inaceitável e a economia não tenham nenhum efeito passional; isso significa somente que a intensidade afetiva não atingiu, nesse caso, o limiar necessário para que a língua natural possa identificá-la de maneira distintiva. Todavia, a intensidade afetiva permanece latente e disponível para eventuais explosões ulteriores. Se se considera o conjunto de modulações da intensidade em um discurso, então pode-se falar em um perfil de intensidade do conteúdo desse discurso que caracterizará globalmente sua dimensão passional. Contudo nós temos por regra não nos limitarmos ao discurso verbal: a partir disso, é preciso ampliar a perspectiva de análise, voltando à primeira definição de intensidade que propusemos, já que as marcas da intensidade nos discursos visuais ou gestuais não podem ser detectadas por meio do estudo da modalização linguística da enunciação. Se a intensidade afetiva é aquela que aparece em conjunto com a atualização do valor, então toda intensidade associada a um contraste perceptivo, e que participe da atualização de um valor discursivo, poderá ser atribuída à paixão. Na verdade, essa proposição decorre diretamente do princípio da síntese do heterogêneo: a primeira operação, de fato, consiste em estabelecer contrastes de intensidade que formarão uma primeira rede de relações. Isso é o que nos conduz a formular para essa intensidade a mesma questão formulada em relação à intensidade entonativa: qual é seu correlato extradiscursivo? Qual substância ela explora? A resposta encontra-se, a princípio, em nossa definição da própria semiose: a intensidade passional do discurso tem por correlato fenomenológico a proprioceptividade, a sensibilidade do corpo próprio que serve de mediador entre os dois planos da semiose (ver capítulo “Do signo ao discurso”). Entretanto não se pode ignorar também seu correlato psicológico: trata-se, então, das pulsões, da libido, de todas as formas da energia psíquica. Seja qual for a natureza extradiscursiva dessa intensidade, ela tem ao menos um ponto comum com a intensidade semiótica: ela diz respeito ao corpo próprio, ela é uma das propriedades das tensões às quais o corpo é submetido no momento em que toma posição para instaurar a função semiótica. 207
Semiótica do discurso
Dando continuidade à analogia no âmbito do plano da expressão, podemos nos perguntar que efeito esse expoente intensivo pode ter sobre os constituintes da sintaxe passional. Quando, por exemplo, na seguinte frase: Foi Joana quem derrubou o vaso. o acento prosódico recai sobre Joana, a intensidade vem completar o dispositivo de extração por meio do apresentativo, para dirigir o fluxo de atenção para o sintagma extraído da frase, e reorganizar a informação. Em contrapartida, na frase: Paulo veio ontem em casa. apenas o acento de intensidade (recaindo sobre Paulo, veio, ontem ou casa) vai nos dizer à qual isotopia será preciso relacionar essa informação ou, ainda, com qual outro enunciado ele entra em contraste afetivo: desse modo, se ontem é selecionado e recebe o acento de intensidade, por exemplo, será preciso procurar uma indicação anterior ou posterior à frase que faz desse momento, por anáfora ou por contraste, um momento singular. Portanto, o acento de intensidade não se limita a dirigir o fluxo de atenção, ele permite também reorganizar os constituintes sintáticos, extraílos e torná-los os constituintes que dirigem a cadeia no plano semântico. Passemos agora a um exemplo do plano do conteúdo, um exemplo passional, a impulsividade. O impulsivo reage imediatamente, com veemência, obedecendo a um movimento que o arrebata antes que ele tenha refletido. Isso significa que sua identidade modal é do tipo M2, composta apenas por um querer e por um poder. No entanto, qualificar alguém como “impulsivo” é também tomar como horizonte de referência uma outra identidade modal, aquela de tipo M3 ou M4, que compreenderia, além das modalidades precedentes, os saberes e os deveres. De fato, a impulsividade compreende, ao mesmo tempo, um suplemento e uma falta: um suplemento de intensidade e de vivacidade e uma falta de reflexão. A passagem da identidade M3/4 à identidade M2 explica-se justamente pelo deslocamento do acento de intensidade: vindo a concentrar-se sobre o querer, a intensidade 208
Ação, paixão, cognição
neutraliza todos os outros traços da identidade a ponto de o impulsivo poder até mesmo encontrar-se impotente diante do obstáculo que seu querer o conduziu a afrontar. Como as modalidades são os constituintes da identidade passional, dir-se-á aqui que o acento de intensidade faz do constituinte querer aquele que dirige inteiramente a identidade do actante. 2.1.2. A quantidade
Nossas representações cotidianas da afetividade habituaram-nos a pensála segundo a intensidade ou, ainda, como uma energia incontrolada. Essas representações, na maior parte das vezes, ignoram a quantidade e a extensão. Entretanto, encontram-se vestígios desse fenômeno nos usos cotidianos mais correntes. Em francês, por exemplo, pode-se dizer que alguém “junta seu espírito”* após uma forte emoção: teria a emoção “dispersado-o”? Essa expressão cristalizada, que se baseia no sentido antigo de “espírito” (Os corpos leves e sutis que eram considerados o princípio da vida e dos sentimentos, diz o dicionário Littré), pertencia em francês clássico a um conjunto produtivo e aberto do qual também faziam parte “conter seu espírito”, “recobrar seu espírito” etc.** Portanto, segundo esse uso, a vida afetiva seria divisível em constituintes mais ou menos fortemente associados entre eles. De um ponto de vista completamente diferente, a distinção entre a avareza e a mesquinhez*** não se refere à intensidade, mas ao valor dos objetos visados ou, mais precisamente, ao tamanho e à quantidade desses objetos. O mesmo ocorre com o orgulho e a suscetibilidade ou, ainda, com a suscetibilidade “melindrosa”:**** não é bem a intensidade da reação passional que faz a diferença, mas sua relevância, o número ou a extensão das causas. O orgulho só se exprime em certas ocasiões verdadeiramente
* N.T.: No original, “[il] rassemble ses esprits”. Diz-se de alguém que recobra a serenidade, que volta a ver as coisas com clareza.
** N.T.: No original, respectivamente, “retenir ses esprits” e “reprendre ses esprits”. *** N.T.: No original, respectivamente, “avarice” e “pingrerie”. Em português, diferentemente do francês, não há uma distinção rígida ou gradação na definição dos dois vocábulos. Cf. nota no item “Moralização” da seção que trata do percurso passional canônico, no capítulo “O discurso”.
**** N.T.: No original, respectivamente, “fierté ”, “susceptibilité” e “susceptibilité ‘ombrageuse’ ” . Esse exemplo encontra certa correspondência em português, com exceção de “ombrageuse” que, nesse caso, significa também “receosa”, “desconfiada”, acentuando ainda mais, de forma quase redundante, o caráter do sujeito suscetível.
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Semiótica do discurso
relevantes; a suscetibilidade vai aproveitar-se de todas as pequenas ocasiões para manifestar-se. Desse modo, a quantidade diz respeito ao processo passional e, mais precisamente, tanto ao sujeito – quando se trata, para ele, de “juntar-se” ou de “recobrar-se” – quanto ao objeto – quando se trata do número e de sua relevância. No entanto, ela diz respeito também ao desdobramento no espaço e no tempo. É próprio da “obsessão”, por exemplo, impor um certo número de ocorrências, incorrendo, com uma frequência insistente, no mesmo papel ou na mesma atitude afetivos. Obtém-se, assim, no limite, uma saturação temporal que não deixa lugar a nenhum outro papel. Esse caso concerne indiretamente à nomenclatura das paixões, que caracteriza os grandes tipos de estados afetivos de acordo com sua extensão: a emoção, instantânea, a paixão, durável, a inclinação e o sentimento, permanentes. Vê-se que o expoente passional da quantidade afeta o sujeito, o objeto e o desdobramento espaço-temporal do percurso passional. Contudo, ele pode assumir formas muito diferentes. Por exemplo, no caso do desdobramento espaço-temporal, a quantidade só diz respeito à medida da extensão (distância, duração) ou ao número de ocorrências. A combinação da medida e do número forma, então, ritmos passionais, o ritmo de uma possível repetição. Quando se trata do objeto, a medida também entra em cena, mas para fixar o valor do objeto e relacioná-lo, eventualmente, a uma norma, como no caso da mesquinharia ou da suscetibilidade. Há também casos em que a paixão “recorta” o objeto em partes para conservar somente algumas delas, ocultando as outras. Se o amor é “cego”, por exemplo, não é porque o sujeito não vê mais seu objeto, mas, exatamente ao contrário, é porque ele focalizou alguns de seus aspectos e ocultou outros, concentrando toda a sua atenção nas partes selecionadas. Do mesmo modo, a compaixão segmenta o outro em “partes”: uma face negativa e uma face positiva. A verdadeira compaixão dirige-se às duas faces, já que ela trata o outro como um semelhante ou, ainda, como em Rousseau, como um “igual”. A pena e a comiseração só se dirigem à face negativa do outro. Eis por que, segundo os dicionários, há nelas “desgosto” e “amargura”. Finalmente, quando se trata do sujeito, é sua própria identidade que está em causa: como cada identidade é composta por vários papéis e atitudes, cada papel ou atitude podendo ser, eles mesmos, compostos por vários 210
Ação, paixão, cognição
constituintes e, especialmente por várias modalidades, a coerência desse conjunto dificilmente é preservada. Na verdade, os constituintes dos papéis e os próprios papéis podem tornar-se incompatíveis ou autônomos. Desse modo, Swann, em Um amor de Swann,1 tendo começado a experimentar o amor e o ciúme, vê-se desdobrado: um outro sujeito se materializou junto dele e vai acompanhá-lo até que esse amor tenha acabado. A heterogeneidade do desdobramento espaço-temporal, da morfologia do objeto ou da identidade do sujeito é um problema que o discurso resolve por meio de sequências passionais, que organizam as mudanças de equilíbrio nas tensões. Assim, o motivo da cólera não é uma paixão no discurso mítico, pois, nele, a cólera figura como uma pura intensidade que não compromete nenhuma organização quantitativa: Manyu, o deus da ira na mitologia indiana, é aquele cuja potência nos arranca e nos poupa do não ser e do caos. Em contrapartida, no discurso quotidiano ou nos textos literários, a cólera torna-se uma paixão, pois ela gerencia solidariamente duas dimensões incompatíveis: de um lado, a intensidade de uma explosão em que o sujeito se expressa como um “todo” e, do outro, a extensão (na duração e na quantidade) das medidas de represália a adotar. A figura de mediação própria ao discurso mítico – entre o ser e a existência – torna-se uma paixão no contexto cultural em que a mediação verifica-se problemática, pois o número e a diversidade potencial das manifestações da cólera humana só podem atualizar-se em detrimento da força de explosão: por isso, é exatamente o número que é o elemento problemático. Eugène Ionesco, em O rinoceronte, oferece-nos um outro exemplo de desdobramento do actante. Durante o primeiro ato da peça, Bérenger confessa a seu parceiro, Jean: Estou cansado. Há muitos anos que me sinto cansado. Custa-me a suportar o peso do meu próprio corpo... [...] Eu sinto a cada instante o meu corpo, como se ele fosse de chumbo, ou como se carregasse um outro homem nas costas. Ainda não me habituei comigo mesmo. Eu não sei se eu sou eu. Mas basta beber um pouco, o fardo desaparece e eu me reconheço, eu me torno eu mesmo.2 Percebe-se imediatamente que a questão da identidade é posta em termos de desdobramento, mas de um desdobramento sentido como uma incapacidade de assumir uma posição única. O sujeito sente seu corpo como se ele fosse um
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Semiótica do discurso
outro corpo, mas ele deve encontrar meios para “reunir-se” em apenas um eu, ou seja, em uma instância de discurso. Portanto, a relação consigo mesmo tornase, ao mesmo tempo, condição para a tomada de posição enunciativa e para o reconhecimento da identidade. A solução considerada, a embriaguez, não é muito ortodoxa, embora seja testemunha incontestável da natureza somática e passional da “liga” que mantém juntas as partes do si. Os constituintes modais da identidade são também invocados na mesma cena com Jean, mas de um modo inteiramente negativo: Bérenger não quer (falta-lhe vontade, constata Jean), não deve (ele não faz seu dever, critica Jean) e não sabe, mas faz conjecturas assim que um rinoceronte entra em cena, como atesta a sequência: O que eu sei?...Talvez ele tenha ficado... Talvez tenha se abrigado... Talvez tenha feito um ninho... A única identidade modal que teria ainda um sentido para ele é a de tipo epistêmico, é uma crença incerta e absurda, a crença na presença dos rinocerontes na vizinhança. Trata-se de um actante M1 e, de acordo com a definição de tal actante, a percepção de sua identidade é exclusivamente proprioceptiva. Parece, inclusive, que, no caso de Bérenger, as únicas paixões possíveis (ele fala de um medo indefinido, de angústias e de um grande cansaço) resultam de sua crença em seu próprio desdobramento corporal. De certa maneira, a dialética do Eu (instância de referência) e do Si (instância em devir no discurso), à qual toda a enunciação deve fazer face, tornando-se problemática, compromete a homogeneidade do actante e só se pode resolver pela manifestação de uma ou várias paixões.
Nessa perspectiva, a paixão poderia ser considerada como o princípio da coerência (ou da incoerência) interna do sujeito: ela dissocia ou mobiliza, ela seleciona um papel e suspende todos os outros, ela agrupa os papéis em torno de um só etc. Ela rege, em suma, as relações entre as partes constitutivas do si do sujeito. Como a identidade global de um actante não pode ser somente a soma das suas identidades transitórias – o todo não é a soma das partes –, a paixão seria essa “liga” mais ou menos eficaz que assegura a consistência do todo. Se essa totalidade revela-se permanente em longo prazo, ela se chamará, então, caráter ou temperamento. 2.1.3. Associação da intensidade e da extensão
Voltemos ao tema da nomenclatura passional: os diferentes termos de que dispomos tanto em francês como em português – emoção, paixão, inclinação e sentimento – são definidos ao mesmo tempo por uma duração específica e por um certo grau de intensidade. Da emoção ao sentimento, à medida que a extensão temporal aumenta e se regulariza, a intensidade diminui. 212
Ação, paixão, cognição
Falávamos sobre o caso da obsessão. Nela, a repetição não acarreta diminuição na intensidade, ao contrário, a própria duração da obsessão é uma indicação de sua gravidade, de sua potência afetiva. Isso equivale a dizer que a quantidade passional só pode ser avaliada comparativamente a uma intensidade, e vice-versa. Por exemplo: o que falta ao “impulsivo” para que ele se torne “enérgico” ou “voluntarioso”? Sem dúvida um poder que fosse independente do querer, mas, antes de tudo, uma capacidade de querer no tempo, uma capacidade de querer por tanto tempo quanto fosse necessário à organização dos programas de ação e à instauração do poder fazer e do saber fazer. Logo, o impulsivo escolhe a explosão intensa e imediata em detrimento da eficácia da extensão. Consequentemente, voltamos mais uma vez aos esquemas tensivos do discurso que conjugam em todos os seus cenários típicos um grau de intensidade a um grau de quantidade (ver capítulo “O discurso”). Isto é intrínseco à racionalidade passional: conjugar gradientes e deles originar tensões. E, se nos lembramos de que esses gradientes de intensidade e extensão expressam propriedades elementares da percepção, então podemos dizer que a racionalidade passional consiste em conjugar gradientes perceptivos, gradientes da presença perceptiva em discurso. Na verdade, a questão da presença é ainda latente. Poderíamos até mesmo considerar que a racionalidade passional consiste em transformar em efeitos de presença simples enunciados de transformação: sujeitos, objetos, conjunções e disjunções são assim interpretados em termos sensíveis, graças a uma embreagem no espaço tensivo da presença perceptiva, para dar origem a paixões. A disjunção, por exemplo, é somente vivenciada como falta se for transformada em um certo sentimento de presença: o sujeito visa o objeto – a intensidade é forte –, mas não o apreende – a extensão é nula. De forma mais geral, essas observações podem ser resumidas da seguinte maneira: segundo a perspectiva da paixão, um processo não é considerado do ponto de vista de seu resultado, mas do ponto de vista de seu peso de presença – não se trata mais de uma transformação, mas, sim, de um acontecimento.
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Semiótica do discurso
2.2. As figuras da dimensão passional do discurso 2.2.1. O léxico passional
Nas línguas naturais, as paixões são designadas por lexemas, na maior parte dos casos, nominais (“orgulho”), e, em alguns outros, como lexemas adjetivos (“mesquinho”), adverbiais (“orgulhosamente”) ou verbais (“inquietar-se”). Esses lexemas são signos e, enquanto tais, são resultados de um uso. Como todos os vocábulos de uma língua, eles são depositários (e tributários) de uma história e de uma cultura. Nosso projeto como um todo é o de uma semiótica do discurso, e não do signo, e, consequentemente, ele nos impele a ultrapassar também a expressão lexical da paixão. Tratar da paixão em discurso limitando-se às “palavras da paixão” seria como tratar da ação em um texto limitando-se aos verbos de ação. Essa “fossilização” histórica e cultural dos efeitos passionais é, em si, um fenômeno intrigante, mas também um fenômeno limitado e que depende da capacidade mais geral do discurso de produzir efeitos passionais. Essa capacidade não pode ser abordada unicamente pelo viés dos signos linguísticos, que são apenas produtos particulares e cristalizados. Já observamos, a respeito da distinção entre inaceitável e escandaloso ou entre econômico e avarento, que a língua francesa, bem como a portuguesa, só pode reconhecer a paixão abaixo de um certo limiar de intensidade. Tratase de uma limitação histórica e cultural, pois outras línguas, especialmente as orientais, podem atribuir um lugar preponderante às emoções de fraca intensidade, “insípidas” ou “neutras”. Além disso, por ser a dimensão afetiva do discurso sujeita a uma avaliação moral na maioria das línguas, ela é particularmente sensível aos parâmetros culturais em vigor: nas línguas indo-europeias, sobretudo, tudo se passa como se somente pudessem ser lexicalizados como paixões os estados afetivos passíveis de serem previamente classificados como vícios ou virtudes. Sabe-se, por exemplo, que, no grego antigo, o verbo (zelô) e seu derivado (zélosis) recobrem o campo semântico daquilo que chamamos, atualmente, “emulação”, “zelo”, “inveja” e “ciúme”: uma única noção concentra aquilo que, para nós, se divide em diferentes paixões. E a razão dessas distinções surge imediatamente, pois, na verdade, duas classes 214
Ação, paixão, cognição
ganham forma sob a pressão de avaliações morais diametralmente opostas: de um lado, a emulação e o zelo, de outro, a inveja e o ciúme. Um exame mais atento dessa configuração mostra que a cultura grega antiga aceitava o entrelaçamento da relação de apego (S/O) e da relação de rivalidade (S1/ S2). Em contrapartida, hoje, nossa cultura distingue nesse conjunto (1) as paixões fundamentadas somente em uma das duas relações e (2) as paixões mistas, avaliadas negativamente: de um lado, a emulação, que se baseia na relação entre S1 e S2, e o zelo, que se baseia na relação S e O; do outro, a inveja e o ciúme, que exploram o triângulo doloroso formado por S1, O e S2. Vê-se claramente, nesse exemplo, que a segmentação moral sobrepõe-se à segmentação afetiva de maneira que distinções passionais sejam fixadas em todas as culturas em que haja traços pertinentes no plano moral, ao passo que, inversamente, nas áreas culturais em que a moral não atue de forma distintiva, a segmentação das paixões permaneça livre e indeterminada. Desse modo, a dimensão moral é, ao mesmo tempo, um meio pelo qual podemos ter acesso às classificações passionais e uma máscara da qual precisamos nos livrar. Por outro lado, graças a um exame mais atento das teorias das paixões que os filósofos nos propõem, encontra-se, em geral muito facilmente, a base “patrícia” ou “plebeia”, “aristocrática” ou “burguesa” deste ou daquele sistema filosófico das paixões. Nesse sentido, Diógenes, Aristóteles, Descartes, Espinosa ou Nietzsche racionalizam uma ideologia das paixões e sistematizam a segmentação própria à cultura que cada um assume. No entanto, esses sistemas filosóficos apresentam, para um semioticista, um outro inconveniente: ao basearem-se nas palavras da paixão, eles exploram, na maior parte do tempo involuntariamente, uma semântica inadequada, de tipo descontínuo. Quase todas as teorias filosóficas das paixões buscam o “metassemema” da paixão, a (ou as) paixão(ões) primitiva(s), a partir da qual todo o sistema passional seria deduzido, graças a uma especificação progressiva, por adição de propriedades. Conforme o autor, essas paixões primitivas seriam o desejo e a cólera (Platão), reformulados em concupiscível e irascível (São Tomás de Aquino), ou a apatia e a cólera (Aristóteles), ou, mais recentemente, a admiração (Descartes) etc. As teorias filosóficas das paixões tiveram sempre mais ou menos a forma de uma “árvore de Porfírio”, declinando as espécies passionais a partir dos gêneros. No entanto, a árvore de Porfírio não nos parece a forma adequada de uma teoria das paixões. A dificuldade não está somente ligada à natureza contínua e tensiva das paixões, ela se atém também ao fato de que, pelo que se sabe, nenhuma cultura
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jamais produziu uma “árvore de Porfírio” das paixões expressas pelos seus discursos. As paixões não são mamíferos ou pássaros, cuja classificação em gêneros e espécies seria justificada por um ancestral comum! Se se toma o exemplo do furor, constatase que, de acordo com os discursos em que aparece, ele é uma espécie da loucura e da cólera, como em Hércules furioso, de Sêneca; uma espécie do ciúme e da possessão divina, como em Fedra, de Eurípides; ou uma espécie do entusiasmo criador, como em O sobrinho de Rameau, de Diderot. Seria mesmo um gênio aquele que pudesse decidir, a partir de uma análise desses discursos, qual é o gênero e qual é a espécie! De fato, cada configuração passional, tratada como uma sequência discursiva, tem a forma de um “cacho” semântico no qual cada ramificação seria um lugar de derivação possível na direção de outras paixões. Portanto, no interior de uma cultura dada, o conjunto compõe uma rede que tem uma forma bastante complexa.
Ademais, em muitos casos, cada discurso impõe às paixões típicas e lexicalizadas propriedades que as tornam praticamente irreconhecíveis. Se nos interessamos pelo que representa o “ennui” [“tédio”] em Capitale de la douleur [Capital da dor],3 de Paul Éluard, constatamos que esse lexema só aparece ali sob a seguinte condição: trata-se do estado de espírito de um ator trancafiado em um espaço fechado que vê passar um outro actante, cujo trajeto tange, sem propriamente atravessar, o espaço em que ele se encontra. Isso não invalida o sentido lexical da palavra “ennui”, mas realmente é preciso reconhecer que sua utilização na interpretação do texto de Éluard seria de pouco proveito! A paixão, assim como a ação ou a cognição, é uma dimensão da sintaxe do discurso e, por isso, cada efeito passional deve ser relacionado à sintaxe de que depende e que lhe fornece seu contexto. Assim, o campo das variações é amplamente aberto: a generosidade, de acordo com o contexto, pode tanto ser uma espécie de maquiavelismo quanto de inocência! Se fosse preciso estabelecer uma tipologia das paixões – o que duvidamos –, ela teria a forma de uma “semelhança de família” (ver capítulo “Do signo ao discurso”): nenhuma hierarquia global resiste à variação sintática e contextual, pois uma paixão considerada a priori como englobante pode surgir como englobada em outro contexto. É preciso resignar-se quanto a isso, pois as paixões são fenômenos complexos e lábeis, e a abordagem lexical, que parece mais simples a princípio, é uma fonte de inúteis complicações a partir do momento em que se interessa pelo funcionamento discursivo. 216
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Isso não significa, entretanto, que o nome das paixões não tenha efeito algum no discurso. Pensemos, por exemplo, no caso do conde Mosca que, em A cartuxa de Parma, inquieta-se para saber se a palavra “amor” fora pronunciada entre a duquesa Sanseverina e Fabrício. Na verdade, o nome da paixão contém todo um programa: devido a seu poder de condensação do conjunto de papéis e de etapas da paixão, ele representa um uso codificado, sobre o qual os actantes não têm mais que improvisar a respeito, e que pode, a partir do momento em que é invocado, desdobrar-se em um percurso figurativo. Uma das principais dificuldades da interação passional deve-se justamente ao fato de que, fora do percurso completo que compreende, entre outras coisas, a expressão somática ou verbal, a paixão de um sujeito é ilegível para o outro: o nome da paixão fornece, então, uma indicação suplementar, que reativa um esquema canônico esquecido. Não basta experimentar, é preciso ainda que se reconheça o que se experimenta! 2.2.2. As paixões no discurso em ato
Como renunciamos parcialmente aos signos da paixão que são os lexemas, é preciso buscar as formas e esquemas sintáticos que produzem os efeitos de sentido passionais do discurso. Essas formas são (felizmente) estabilizadas em códigos identificáveis, cujo conjunto constitui o que chamamos de racionalidade da paixão; são justamente esses códigos que nos permitem identificá-la quando ela é sentida. Na perspectiva do discurso em ato, as paixões conjugam o sensível (a visada, a intensidade) e o inteligível (a apreensão, a extensão e a quantidade). Portanto, os códigos de identificação dos efeitos passionais do discurso dependerão ao mesmo tempo desses dois tipos, mas com a presença de dominantes: da parte do sensível, esses dominantes são os códigos somáticos e figurativos e, da parte do inteligível, os códigos modais, perspectivos e rítmicos. Voltemos à origem da nossa reflexão sobre o discurso: a tomada de posição. Ela supõe um corpo próprio, ela instaura um campo de presença, com uma profundidade que pode ser avaliada. Esses dois elementos, o corpo que toma posição e a profundidade do campo de presença, correspondem, respectivamente, aos códigos somáticos e aos códigos perspectivos da paixão. 217
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Ademais, o campo de presença é trespassado pelo fluxo de figuras que nele surgem e desaparecem. Esse fluxo dispõe sobre arranjos de figuras cujos aparecimentos, desaparecimentos e deformações obedecem a um ritmo, um andamento, em retenção e em protensão, sendo que essas duas propriedades correspondem, respectivamente, aos códigos figurativos e aos códigos rítmicos. Finalmente, o conjunto do campo, animado pela visada e pela apreensão e trespassado por fluxos intensivos e extensivos, pode ser graduado em uma série de modos de existência, propriedade que origina os códigos modais dos efeitos passionais. 2.2.2.1. Os códigos modais
Já apresentamos, anteriormente, o funcionamento passional das modalidades (ver capítulo “Os actantes”). Recordemos aqui dois princípios essenciais desse funcionamento: (1) para produzir efeitos passionais, as modalidades devem ser tratadas como valores modais sujeitos às tensões da intensidade e da extensão modais; (2) para constituir um papel passional, as modalidades devem estar associadas entre elas, ao menos aos pares – a correlação global entre as intensidades e as extensões de cada uma delas é a fonte do efeito passional. Este último princípio é particularmente importante no fenômeno que reconhecemos intuitivamente como “contágio” passional, e que os linguistas e filósofos da linguagem chamam mais correntemente de empatia. Gostaríamos de salientar aqui somente o papel das modalidades nesse tipo de “contágio” sem desenvolver uma argumentação detalhada da questão, que deve levar em conta, sobretudo, o contato e a sincronização dos corpos e a partilha do campo de presença. O “contágio” passional não é a identificação: na interação, uma expressão passional desencadeia uma outra, que, por sua vez, suscitará uma outra e assim por diante... Para cada etapa, cada actante elabora sua própria identidade passional em reação à que precedeu. Todavia o sofrimento de um pode suscitar tanto a compaixão como a irritação no outro; a alegria de um fará nascer no outro tanto o prazer como a inveja etc. E, ainda, quando o sofrimento de um suscitar a compaixão do outro, essa compaixão não será um sofrimento de 218
Ação, paixão, cognição
mesma intensidade que o primeiro: Rousseau insiste justamente, na “Sexta caminhada” de seus Devaneios do caminhante solitário,4 no prazer que se pode extrair da compaixão pelo sofrimento de outrem. De uma outra forma, Stefan Zweig, em La pitié dangereuse [A piedade perigosa],5 enfatiza o alívio que a compaixão traz como compensação pelo espetáculo do sofrimento de outrem. Portanto, não se trata de uma identidade passional e modal que circula entre os actantes, trata-se, poderíamos dizer, de um princípio afetivo: uma paixão suscita uma outra, e ambas dependem da identidade modal do actante que a vivencia. Esse princípio afetivo manifesta-se, ao mesmo tempo, pela solidariedade que se expressa entre as identidades dos parceiros da paixão e pela reconfiguração permanente e interativa dessas identidades. A solidariedade tem motivações diversas, mas é globalmente fundamentada pelo reconhecimento, por um corpo sensível, de um outro corpo semelhante ao primeiro, ao menos devido a sua sensibilidade comum. Quanto à configuração, ela impossibilita uma real previsão dos efeitos passionais da interação. Assim, o “mistério” a ser resolvido é aquele do elo empático. As modalidades tensivas fornecem uma resposta inicial sobre a questão: cada modalidade de um dos actantes está correlacionada a uma modalidade do outro actante pelo viés de uma intensidade ou de uma quantidade. Por exemplo, Quanto mais você quer, menos eu posso, é uma fórmula modal típica da inibição na interação que é idêntica a esta outra: Quanto mais eu quero, menos eu posso – que descreve uma inibição solitária. A diferença entre as duas fórmulas encontra-se na distribuição dos papéis modais. No primeiro caso, os dois papéis modais são desempenhados por dois atores diferentes; no segundo, eles são desempenhados por um mesmo ator, embora o efeito passional seja o mesmo. Portanto, é preciso considerar que o “contágio” passional é obra dos actantes coletivos, cujas intensidades e quantidades modais estão estreitamente correlacionadas. No primeiro exemplo, ainda que haja dois atores, só há uma inibição, da qual ambos os papéis partilham. Na análise do ponto de vista de uma semiótica operatória, a empatia ou o contágio poderiam ser assim resumidos: uma solidariedade tensiva, um entrelaçamento eficiente entre duas propriedades modais que não são mais as propriedades de um indivíduo, mas de uma “massa actancial” compacta, na qual a manifestação das emoções provoca aqui e ali, neste ou naquele 219
Semiótica do discurso
momento, efeitos de individualização pontual e, em outros momentos ainda, efeitos de “contágio” e de circulação dos fluxos passionais. 2.2.2.2. Os códigos rítmicos
No conto intitulado “O medo”6 Maupassant faz com que duas experiências particularmente traumatizantes sejam relatadas a uma personagem. Uma acontece em pleno deserto, com dois amigos e uma pequena tropa. Um dos amigos, acometido de insolação, cai e morre. Durante sua agonia, ouve-se o tambor das dunas: um barulho inexplicável, sem um timbre particular, mas cujo ritmo inalterável põe à prova os nervos dos protagonistas, e um medo incontrolável instala-se. O ritmo poderia ser definido como uma das formas mínimas da intencionalidade: aparecimentos e desaparecimentos sucedem-se segundo uma ordem e uma frequência aparentemente regulares, indicando assim que poderiam ser o efeito de um ato intencional, de um programa que os teria assim organizado. O ritmo do programa regulariza e impõe a percepção dos contrastes (no caso de “O medo”, o contraste entre barulho e silêncio), isto é, dos valores elementares. Onde há ritmo, haveria, ao menos virtualmente, sentido. Mas, do ponto de vista do efeito passional, o ritmo é, sobretudo, o perfil de tensões sentidas pelo corpo próprio: ritmo abrandado, agitado, sincopado... que abranda, agita ou abala bruscamente a percepção proprioceptiva. No conto de Maupassant, saber que existe um barulho chamado “tambor das dunas” de nada adianta: é preciso vivenciar esse barulho, senti-lo presente, perceber seus efeitos sobre o corpo próprio. Os códigos rítmicos têm uma grande eficácia passional, pois eles são, como mostrou Jacques Geninasca, tipicamente “impressivos”. Na ausência de causa técnica identificável, a única coisa a que o ritmo pode remeter imediatamente é a pulsação somática que ele provoca. Em outras palavras, dar sentido ao ritmo, nessas condições, é alienar sua própria carne a uma forma estrangeira: uma marcação* é apresentada, à qual a carne sensível vai * N.T.: No original, “empreinte”, o particípio passado de “empreindre”, isto é, “imprimir (sob pressão)”, “marcar”. Configurado em torno da ideia de “marca” material ou imaterial, esse vocábulo possui inúmeras acepções: “gravura”, “inscrição”, “impressão (digital, genética)”, “vestígio”, “rastro”, “traço”, “estampa” etc. A solução apresentada aqui procurou adequar o termo ao sentido geral da frase sem se preocupar com o sentido que “empreinte” viria a adquirir na obra de J. Fontanille, que passou a fazer referência, mais recentemente, a uma “sémiotique de l’empreinte” (“semiótica do vestígio”).
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Ação, paixão, cognição
ajustar-se e sincronizar-se, já que não há mais sequer espaço para a ocorrência de conteúdos “interoceptivos”. 2.2.2.3. Os códigos somáticos
A emoção, uma das fases dos percursos passionais, compreende uma ou várias expressões somáticas: a cor da pele, a fisionomia, o gesto, o tremor etc. Esses são, nesse contexto, meios de demonstrar o que se sente, tanto a si mesmo como aos outros. Sem a expressão somática que o acompanha, o actante é incapaz de sentir a paixão que o anima. Ele pode saber que está apaixonado, que está sob a influência da cólera ou que tem medo, mas ele não sente o amor nem cólera, nem medo. Portanto, haveria paradoxalmente algo de “metassemiótico” na manifestação emocional. Contudo, esse aspecto metassemiótico, assim como no caso da estratégia (ver no início deste capítulo o problema da programação), resulta da heterogeneidade do regime discursivo: na verdade, na manifestação emocional insinua-se um código cultural que não é mais da ordem do vivido, mas um fazer saber que é de ordem cognitiva. Uma das versões de um célebre conto-tipo, aquele do “jovem que saiu pelo mundo para aprender o que é o medo”,7 registrado pelos irmãos Grimm, mostra-se particularmente perspicaz a esse respeito: um jovem que jamais tinha conhecido o medo deixa seu povoado para poder, enfim, provar esse sentimento. Atravessando sem medo algumas situações mais difíceis, enfrentando sem tremer as personagens mais inquietantes ou as mais repugnantes, o herói termina por livrar sua terra de todos os feiticeiros, fantasmas e malfeitores. Para recompensá-lo pelas suas proezas, o rei lhe concede a mão de sua filha. Certa noite, decidida a ajudá-lo a completar sua busca, enquanto o herói dormia em sua cama, a princesa virou sobre ele um balde cheio de água – e de peixinhos! Enfim ele estremeceu! Não é preciso obviamente eliminar a hipótese de um desfecho sarcástico e humorístico. Entretanto, embora possa parecer anedótico, o final do conto assinala claramente a natureza da falta do nosso herói: ele não podia experimentar o medo enquanto não sentisse a sua expressão somática. Em contrapartida, depois dessa experiência proporcionada por sua jovem esposa, tudo é possível.
O caráter “codificado” dessas expressões somáticas resulta do uso. Como a sua principal função é tornar a paixão sentida reconhecível para si mesmo e para outrem, cada expressão somática é “sancionada” por um observador. Essa sanção, que redunda ou não em identificação, alimenta uma práxis 221
Semiótica do discurso
intersubjetiva que conservará ou eliminará esta ou aquela expressão em virtude de seu poder de codificação passional. É assim que, graças ao uso ou à práxis, os códigos somáticos da paixão tornam-se verdadeiros códigos simbólicos, típicos de cada cultura. Prova disso é que não se expressa a cólera, ou o amor, da mesma forma no Ocidente e no Oriente. As expressões somáticas da emoção tornam completo o diálogo instaurado pela impressão rítmica com o mundo exterior, pois elas emitem de volta, na direção do mundo exterior, a marcação dos ritmos e movimentos interiores. A primeira marcação, aquela que emana do ritmo exterior, concerne à carne sensível; a segunda marcação, aquela que emana dos movimentos interiores, afeta a superfície e a forma do corpo próprio. 2.2.2.4. Os códigos perspectivos
A tomada de posição da instância de discurso por meio do corpo próprio é uma das condições sine qua non da sensibilização do discurso. Essa tomada de posição traduz-se nos efeitos passionais por uma colocação em perspectiva: o enunciado narrativo (transformacional) é, então, situado na perspectiva do actante que ocupa a posição da instância de discurso, e é essa perspectiva que subjetiva, de algum modo, o referido enunciado. Quando se passa da rivalidade à emulação, ou, ainda, ao ciúme, passa-se de uma simples situação narrativa e actancial a uma paixão, embora, para tanto, tenha sido preciso adotar a perspectiva de apenas um dos rivais sobre a rivalidade. De uma configuração actancial não orientada passou-se a uma configuração orientada na perspectiva de um só actante, que se torna, então, capaz de sentir os efeitos passionais da configuração por sua própria conta. Como não há discurso sem tomada de posição, é preciso supor que, quando uma situação narrativa é enunciada sem orientação, a tomada de posição é exterior à própria situação: contar uma rivalidade, no lugar de uma emulação ou de um ciúme, é recusar tomar posição no interior de uma situação. Nós não insistiremos nessa questão e nem sobre as consequências dessa colocação em perspectiva do actante, que foi por nós amplamente contemplada no capítulo “O discurso”. Observemos somente que tal questão é formulada acerca de fenômenos linguísticos aparentemente insignificantes, cuja relação com os efeitos passionais geralmente não é notada. Como, por 222
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exemplo, em francês, a escolha entre o passado simples e o imperfeito, ou, ainda, em alguns casos, a escolha do artigo definido (caso em que a instância de discurso não toma posição e trata a noção como um “todo”) e do artigo indefinido (quando ela toma posição e coloca a noção em perspectiva). De fato, trata-se, nesses casos, da escolha entre a embreagem (posição projetada no enunciado) e a debreagem (posição implícita). Em francês, diz-nos Gustave Guillaume, o passado simples (ou passado definido) e o imperfeito opõem-se como uma visão não secante e uma visão secante do processo. A primeira consiste em apreender o processo como uma totalidade, sem perspectiva, à distância, e inteiramente compreendido entre seus dois limites. A segunda, ao contrário, lança o observador para o meio do processo e nele instaura uma perspectiva, um antes e um depois, de maneira que os limites iniciais e terminais do processo continuem quase sempre inacessíveis. Nós temos, bem precisamente aqui, uma alternativa entre uma instância de discurso que rejeita tomar posição e uma instância que toma posição no interior do enunciado narrativo. Essa diferença de tomada de posição induz a uma diferença de perspectiva que implica, ela própria, uma diferença passional: o passado simples seria inapto para expressar as paixões e os estados de espírito a menos que ele não os reduzisse a meros acontecimentos exteriores. Já o imperfeito prestar-se-ia muito adequadamente à expressão das paixões e dos estados de espírito. Mais precisamente, é o imperfeito, e não o passado simples, que permite exprimir o “vivido” das paixões. Essa análise faz eco às intuições de Roland Barthes e de alguns outros que consideram o passado simples como o tempo por excelência da narrativa que se “conta sozinha”, como obedecendo a uma lógica que transcenderia os acontecimentos. É claro que essa impressão de leitura decorre do fato de esse tempo verbal ser mais particularmente adaptado ao que chamamos de “lógica da ação”, ao passo que o imperfeito conviria melhor à “lógica da paixão”. Do mesmo modo, em grego antigo, quando se escolhe entre (pólis) e (ásty), os dois nomes dados a “cidade”, escolhe-se entre uma tomada de posição externa e uma tomada de posição interna. Em um estudo consagrado aos valores semânticos desses dois termos na Ilíada, M. Cazevitz, E. Lévy e M. Woronoff 8 mostraram que pólis é reservada à cidade objetiva, apreendida do exterior, em sua totalidade, por um observador neutro que percebe seus limites; em alguns casos, pólis designa as próprias muralhas. Em contrapartida, ásty designa a cidade vista do interior, por um observador que tomou posição em seu centro ou que lhe atribui um valor particular e que, assim localizado mentalmente, não percebe mais seus limites. E, como dizem os autores, “assim se explica como ‘ásty’ pôde adquirir um valor afetivo, o que já é perceptível em Homero”. A tomada de posição interna, que instala uma perspectiva no próprio âmago da
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Semiótica do discurso
situação ou da figura discursivizada, é, desse modo, a fonte direta da afetividade: pode-se constatar que mesmo os inimigos (os Aqueus) empregam o termo ásty quando se trata do objeto de suas cobiças e de suas preocupações, quando se trata, na verdade, do próprio lugar do valor que eles perseguem!
2.2.2.5. Os códigos figurativos
O código figurativo de um efeito passional poderia ser definido como uma cena típica da paixão, que, pela frequência do uso, pode também se tornar um leitmotiv: a cena de exclusão do ciumento (Nero agindo nos bastidores, Otelo atrás de uma cortina, Swann em frente a uma janela iluminada) é uma das cenas típicas mais conhecidas. De uma forma geral, a paixão se expressa por figuras extraídas dessas cenas típicas e utiliza-as em seguida como catacreses: é assim com os códigos metonímicos entre Swann e Odette (a pequena frase de Vinteuil, a catleia etc.)* ou, ainda, com os códigos sinestésicos de Baudelaire associados à nostalgia dos paraísos perdidos. A inscrição do afeto nas figuras do discurso é uma das chaves da lógica passional. O actante apaixonado é um actante ligado aos valores, mas que, na lógica que é provisoriamente a sua, não os pode reconhecer de um ponto de vista conceitual: os valores apresentam-se diante dele imersos em um universo figurativo que lhe proporciona sensações. Essas sensações são fontes de prazer ou de dor, primeiras impressões axiológicas. Assim, o código figurativo tornase, para o actante apaixonado, um código de pressentimentos axiológicos. O que a psicanálise caracteriza como “fetichismo” tem praticamente a mesma natureza: uma cena fortemente investida do ponto de vista axiológico e afetivo é remanejada, segmentada, e o acento afetivo da intensidade é deslocado de um segmento da cena para outro. A cena assim extraída passa a valer pelo conjunto de toda a cena, como uma sinédoque, e, como uma antonomásia, torna-se o melhor exemplar de todas as ocorrências da cena. A poesia descritiva francesa do século xvi adota esse mesmo procedimento: uma parte do corpo, não importa que ela seja a mais ínfima, é erigida como representante da totalidade por uma série de transições e deslocamentos semânticos. * N.T.: A primeira expressão refere-se ao compositor Vinteuil, personagem cuja “sonata” (um trecho dela, uma frase musical) arrebatara o narrador, e que servirá constantemente de mote na descrição da relação entre Swann e Odette. A segunda é uma alusão de conotação sexual a uma espécie de orquídea que faz parte da linguagem amorosa empregada por Swann e Odette.
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Causa ou efeito, não se sabe, é preciso reconhecer que as paixões estão intrinsecamente ligadas ao imaginário dos elementos naturais: desde a época pré-socrática, a água, o fogo, o mineral, o ar e o vento são elementos essenciais da física qualitativa das paixões; o amor, a cólera, a crueldade, a insensibilidade, a inquietação ou a agitação estão – mais do que por uma ilustração metafórica – inscritos nos próprios elementos. Eis por que a abordagem antropológica das paixões é uma abordagem figurativa. Nos mitos estudados por Lévi-Strauss, por exemplo, o ciúme ou o orgulho não são identidades psicológicas ou modais, mas pássaros, mamíferos ou elementos materiais. 3. Cognição Os três grandes regimes discursivos são três maneiras de visar e, em seguida, construir a significação do mundo. De uma forma geral, trata-se sempre de uma significação da mudança na medida em que postulamos, desde o princípio, que a significação só pode ser apreendida em seu devir. O regime da ação visa o sentido por meio de uma programação das transformações do mundo. O regime da paixão visa o sentido experimentando carnalmente os acontecimentos que afetam o campo de presença. Por fim, o regime da cognição visa o sentido construindo o conhecimento segundo o princípio da descoberta. Cada regime tem sua concepção da mudança e do devir: para o regime da ação, a mudança só é apreensível a partir do fim e do resultado; para o regime da paixão, a mudança só é apreensível in praesentia, como um impacto e um afeto que sobrevêm na presença do actante; para o regime da cognição, a mudança só é apreensível por comparação entre duas figuras, entre duas situações, comparação que permite mensurar a descoberta, o ganho de conhecimento. Assim, o regime da cognição, na perspectiva de uma semiótica do discurso, é o regime do cálculo das representações: um actante fornece representações, simulacros de algum modo, sobre os quais um outro actante poderá fazer operações, e, sobretudo, operações de comparação. O primeiro actante é chamado de informador; o segundo, de observador. As representações que circulam entre eles são os objetos de saber ou objetos cognitivos. A totalidade dos conteúdos discursivos – enunciados narrativos, figuras, actantes e atores, ação, 225
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paixão etc. – pode receber um tratamento cognitivo. Entretanto, o valor desses conteúdos discursivos dependerá sempre de sua confrontação com outros conteúdos, o que nos permite avaliar a mudança cognitiva que eles produzem. Na perspectiva da síntese do heterogêneo, a operação mínima que o actante cognitivo pode realizar é, consequentemente, o relacionamento: analogia ou contraste, simetria ou assimetria, transitividade ou intransitividade, conexidade ou dissociação etc. A partir dos diversos relacionamentos, o tratamento cognitivo consistirá em operações mais complexas, que permitirão ao observador elaborar, por sua vez, novas representações – novos objetos de saber. É assim que ganha forma a lógica da descoberta. A síntese cognitiva distingue-se dos dois outros regimes de duas maneiras: (1) pelo tipo de relação que introduz nos conjuntos heterogêneos e (2) pela mudança de nível de pertinência que impõe. Sobre as relações, já vimos que a ação trabalhava por fechamento e retrospecção para produzir sequências calculáveis e que a paixão agia sobre tensões sensíveis da presença. Desse ponto de vista, a cognição trabalha não diretamente no nível da forma global, mas pelo relacionamento local das partes entre si. Sobre o nível de pertinência, já se observou que a dimensão pragmática, assim como a dimensão passional, podia, devido a sua própria heterogeneidade, suscitar – justamente para resolvê-la – o surgimento de uma dimensão metassemiótica: essa simples mudança de nível assinala a passagem para a dimensão cognitiva. Assim, na estratégia, o surgimento de uma metassemiótica traduz-se por um “fazer saber”. Da mesma forma, na paixão, a codificação das manifestações emocionais, que constitui em si mesma uma passagem a uma metassemiótica, corresponde também a um fazer saber. Logo, nossa hipótese é a seguinte: a dimensão cognitiva é a dimensão em que são apreendidas as regras e as formas das duas outras dimensões graças à passagem de uma semiótica-objeto a uma metassemiótica. Em suma, essa propriedade da dimensão cognitiva justifica a limitação do repertório teórico a três dimensões: qualquer outra mudança de nível, qualquer outra metassemiótica, não produzirá nada exceto cognição, ainda que essa metassemiótica se aplique à própria dimensão cognitiva. 226
Ação, paixão, cognição
Algumas distinções preliminares devem ser feitas agora. Comecemos com a distinção entre o “saber” e o “crer”. 3.1. Saber e crer Nós não retomaremos aqui a discussão de fundo, já clássica, sobre esta distinção, na medida em que, por um lado, ela traz ao debate muitas outras considerações além daquelas sobre as lógicas significantes do discurso e, por outro, ela supõe a intervenção, no interior da lógica cognitiva, das duas outras dimensões lógicas (ação e paixão). Por exemplo: a confiança, que se baseia em uma adesão, implica uma dimensão passional em relação ao crer. Ou, ainda, a forma mínima da espera fiduciária é idêntica a que a programação da ação preconiza: eu espero do programa estabelecido que ele traga o resultado para o qual foi concebido. Todavia, na perspectiva restrita da lógica cognitiva, a da descoberta, podese introduzir sem alarde a distinção entre o “saber” e o “crer”, formulando-se a questão do modo de relacionamento e de valorização do objeto cognitivo. Se o objeto cognitivo é relacionado com outros objetos cognitivos com o único propósito de avaliar sua contribuição efetiva, sua diferença – seu valor de conhecimento – é o valor de um simples saber. Se ele é relacionado ao mesmo tempo com outros objetos e com outros sujeitos (entre outros, com o próprio observador), a confrontação envolve então não somente objetos cognitivos, mas também universos de assunção, o que significa que estamos no âmbito do crer. A questão que se formula nesse caso trata da assunção do objeto cognitivo pelo observador; assunção direta, se o objeto se integra a seu próprio universo de crenças, ou indireta, se ele se integra a universos assumidos por outros actantes nos quais o observador confia. Em termos mais simples, o valor saber baseia-se na simples relação entre objetos cognitivos sem tomada de posição da instância de discurso, enquanto o valor crer baseia-se em uma relação triangular, tendo a instância de discurso tomado uma posição entre os dois objetos cognitivos. A distinção entre esses dois valores é, por vezes, frágil, pois, no processo permanente da formação dos saberes e de sua conexão, é bem difícil provar que a instância de discurso nunca toma posição. Assim, talvez seja mais prudente falar em 227
Semiótica do discurso
dois níveis de pertinência, em dois modos de valorização complementares dos objetos cognitivos. Entretanto, ainda que seja delicado colocá-la em prática, essa distinção não é por isso menos pertinente. Recordemos como as modalidades tornamse valores modais: isso se dá na sequência da projeção dos conteúdos modais sobre os gradientes da intensidade e da extensão, após uma coerção aplicada a esses gradientes sob a forma de um limiar. A distinção entre o saber e o crer é particularmente útil quando essas modalidades definem a identidade do sujeito. Tomemos como exemplo o sujeito que só visa objetos cognitivos no modo da intensidade máxima e da quantidade mínima: em se tratando de saberes, estaremos lidando com um erudito; em se tratando de crenças, teremos diante de nós um fanático. O erudito só se define na relação que ele estabelece entre objetos cognitivos: o forte coeficiente de triagem que ele lhe impõe não tem incidência alguma na posição que ele adota a seu respeito, e menos ainda em relação a sua posição perante outrem – ele só exclui para conhecer mais. Em contrapartida, o fanático compromete, em suas restrições, sua relação com os outros universos de assunção e, consequentemente, com os outros sujeitos que os assumem: o forte coeficiente de triagem aplica-se, assim, tanto aos sujeitos cognitivos quanto aos objetos cognitivos – ele exclui, justamente com os objetos rechaçados, os sujeitos que os assumem. Devese notar, por sinal, que a valorização do objeto cognitivo acarreta também uma valorização ou uma desvalorização do sujeito. Ao contrário, se nós pensarmos em um sujeito cognitivo que vise o maior número de objetos cognitivos com uma fraca intensidade, estaremos lidando, no caso do saber, com uma pessoa cultivada e, no caso do crer, com uma pessoa crédula. Nesse caso também, a diferença de avaliação a respeito da identidade modal dos dois actantes marca um deslocamento nos objetos que estão em jogo. Ninguém pensará em se ofender com o caráter superficial do saber do homem cultivado, na medida em que a postura adotada não envolve a sua posição enquanto instância de assunção. Em contrapartida, o crédulo é estigmatizado, pois deveria estar, sob o regime do crer, afirmando a sua posição; porém sua posição não é, por fim, identificável, já que ele se desloca sem parar de objeto em objeto, confundindo as fronteiras dos universos de assunção. Além disso, o crédulo não é credível, não se pode confiar nele porque sua 228
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posição não é identificável: em outras palavras, não se pode utilizar seu universo de assunção para validar novos objetos cognitivos. 3.2. Apreensões e racionalidades Em La parole littéraire, Jacques Geninasca propõe uma série de distinções que lhe permite dar conta da especificidade do discurso estético, mas que, em si mesma, é suficientemente geral para enquadrar-se na perspectiva da lógica da cognição. Na verdade, os modos de significação que estão engendrados nos discursos são definidos como instruções de leitura que permitem construir a coerência: “Entenderemos por racionalidade qualquer forma de assegurar a inteligibilidade do mundo e dos enunciados, reduzindo a multiplicidade fenomenal à unidade.”9 Essa definição se baseia em uma redução drástica (reduzir à unidade), mas, no fundo, ela só evoca a redução inerente a todo conhecimento: ainda que o objetivo não seja a unidade, o processo de conhecimento é exatamente o processo de redução da diversidade fenomenal, redução que produz categorias, esquemas, tipos etc. De um outro ponto de vista, essa definição é mais geral que a perspectiva da cognição, já que ela concerne à inteligibilidade do mundo e dos enunciados, inteligibilidade que tanto a ação quanto a paixão pode também promover. Ela invoca, de fato, o conjunto do que designamos “síntese do heterogêneo”. Todavia, a concepção de Jacques Geninasca merece que nos demoremos um pouco mais sobre ela, pois as racionalidades que ele preconiza exploram, entre outras coisas, apreensões, e as apreensões são, em verdade, modos de apreensão, isto é, modalidades cognitivas de descoberta dos fatos da significação. Como esclarece Geninasca, “a realidade nunca é mais do que o efeito de um modo de apreensão”.10 A realidade só pode ser conhecida por meio de apreensões. Não se trata mais de programar a mudança e/ou a heterogeneidade na e graças à ação nem de vivenciá-las pela paixão, mas de apreendê-las e de descobri-las como inteligíveis. Essa é uma boa ocasião para reconsiderarmos a nossa definição da apreensão. A apreensão opõe-se à visada, pois é da ordem da extensão, da quantidade, da inteligibilidade e da cognição, enquanto a visada é da ordem da intensidade, do sensível e do afeto. Portanto, a apreensão, segundo a nossa concepção, é o ato elementar da síntese cognitiva. A distinção 229
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entre as apreensões será feita segundo as relações que induzem e da fase cognitiva que atualizam. Jacques Geninasca distingue, na perspectiva do discurso estético, três tipos de apreensões: (1) a apreensão dita molar, que estabelece relações de dependência unilateral entre figuras ou conceitos e entre seus referentes; (2) a apreensão dita semântica, que estabelece equivalências e solidariedades esquemáticas e categoriais no próprio interior do discurso; (3) a apreensão dita impressiva, que relaciona percepções entre si e estabelece configurações rítmicas, tensivas e estésicas. Se a apreensão molar diz respeito a dependências unilaterais, e a apreensão semântica, a solidariedades múltiplas (ao menos correlações bilaterais), a apreensão impressiva parece interessar-se pelas dependências holísticas. A impressão, de fato, se ela apreende um ritmo ou uma outra manifestação qualquer, apreende-os como um grupo, como um agregado ou uma série, como a forma virtual de um todo analisável, mas não analisado. Ainda que a apreensão dita impressiva pareça atípica e marginal no pensamento de Geninasca, ela nos parece, entretanto, a chave de um dispositivo dinâmico da apreensão cognitiva. Na realidade, na perspectiva da descoberta e da valorização dos objetos cognitivos, o que está em jogo é a capacidade de inovação e de mudança cognitiva dos discursos: para que haja algo para “apreender” ou “descobrir”, é preciso que o discurso esteja ainda em condições de inovar, de suscitar seu próprio universo semiótico. A apreensão dita molar é essencialmente referencial e inferencial, ela estabelece relações que trazem aparentemente informações, mas em um sistema predeterminado que não produz globalmente nenhuma informação nova. Tanto a referência quanto a inferência só verificam a conformidade ou não conformidade dos saberes a serem validados em relação aos saberes partilhados e estabelecidos. A apreensão dita semântica, geralmente por meio da metáfora e sob o controle da 230
Ação, paixão, cognição
imaginação – a capacidade de produzir imagens – dá acesso diretamente à inovação discursiva. Tanto isso é verdade que os objetos cognitivos produzidos dessa forma são, em último caso, incomparáveis e só têm a garantia do sujeito da enunciação que atesta seu valor. A hipótese que propomos é a seguinte: a apreensão impressiva é a mola propulsora da mudança, a apreensão que compromete as operações de referência e inferência e que confere liberdade à apreensão dita semântica. Alguns precursores no assunto permitirão que sustentemos essa hipótese. O primeiro é Husserl, que se propunha voltar à camada dita hilética de toda atividade científica graças a uma regressão refletida ao substrato sensível de todo o conhecimento. O conhecimento revela-se a nós sob a forma de categorias e leis que fazem referência a uma suposta realidade e que nos permitem fazer inferências sobre essa “realidade”. Para Husserl, essas categorias e essas leis ocultam-nos, ao mesmo tempo, o ser das “coisas em si mesmas” e, sobretudo, a maneira pela qual elas nos chegam. Desse modo, ele propõe regressar a um não saber radical: renunciar ao saber para ter acesso finalmente à “coisa em si mesma” e a seu efeito sensível. Proust é outro desses precursores. Quando fala sobre Elstir, o pintor impressionista de À sombra das raparigas em flor,11 ele insiste no fato de que, para pintar, o artista deve renunciar a toda sua inteligência, a tudo que sabe sobre os objetos e sobre o espaço, sobre as cores do mundo e sobre a luz, para descobrir e reconstruir as equivalências secretas entres as figuras da paisagem. Do mesmo modo, seu espectador, para compreender o quadro, deve renunciar também ao que sabe sobre as figuras do mundo para se deixar surpreender novamente pelas ilusões de ótica, que, justamente por isso, não lhes aparece mais como ilusões, mas pura e simplesmente como a maneira pela qual as coisas se revelam à apreensão. A obra artística, seja uma pintura ou um texto literário, deve ser tratada como um discurso cognitivo entre outros: um discurso que organiza a experiência, que lhe dá sentido, que extrai dela conhecimentos, que aumenta, de algum modo e a sua maneira, nosso conhecimento sobre o mundo e sobre o lugar que nós ocupamos nele. Trata-se de saber quais conhecimentos merecem ser conservados, quais conhecimentos merecem ser assumidos pelo sujeito da enunciação. Em Proust, a divisão é suficientemente clara: de um lado, a percepção 231
Semiótica do discurso
convencional das coisas, tal como é fixada em nossa “enciclopédia figurativa” ou, ainda, no léxico da língua natural; de outro, a vasta metáfora, o jogo de equivalências e a circulação das imagens que transportam o quadro ou o texto para um outro universo de sentido. Entre os dois ocorrem todas as espécies de procedimentos de composição que têm por objetivo invalidar a percepção convencional ou puramente inferencial sobre as coisas e, consequentemente, reativar essa sensibilidade “nativa” que está na origem da experiência estética. No caso de Elstir, a visão convencional e “cultivada” de uma paisagem marinha consistiria em manter a estabilidade das isotopias corriqueiras: os barcos estão sobre a água; as casas, na terra; os pescadores, no mar; os passeantes, nos caminhos, na areia ou nos rochedos. Essa visão é referencial e deriva de uma apreensão molar. Em contrapartida, a visão estética seria constituída pelo conjunto do sistema de equivalências, pela vasta metáfora a que Proust atribui a manifestação do gênio de Elstir: essa visão deriva de uma apreensão semântica. Quanto à apreensão impressiva, ela assegura a transição entre as outras duas, suspende a visão convencional e prepara o terreno para a visão estética: ela consiste simplesmente em lançar-se à impressão imediata, isto é, em ver (sem saber) mastros que se erguem acima dos telhados, pescadores explorando grutas e os passeantes lançando-se à água etc. A apreensão impressiva é aquela que permite a manifestação direta da relação sensível com o mundo. Ela nos dá acesso às formas e aos valores por intermédio de puras qualidades e quantidades perceptivas, percebidas globalmente, sem análise. O ritmo é um dos exemplos dessas configurações perceptivas, na medida em que sinaliza a potencialidade de uma forma e, consequentemente, de uma significação a ser descoberta. No entanto, o mesmo se dá com a tipografia de um texto ou, ainda, com os diferentes estados da luz e da matéria em uma obra plástica. Imagina-se com frequência que o primeiro gesto de análise consiste em segmentar um texto para depreender suas unidades. Certamente esse começo denota um bom método, mas se negligencia, assim, o fato de que nossa segmentação pode ser guiada pela percepção de ritmos, contrastes ou formas plásticas que predeterminam a análise semântica. Em suma, nós consideramos a apreensão impressiva como uma reavaliação ou suspensão da apreensão inferencial, que prepara o terreno para a apreensão semântica. 232
Ação, paixão, cognição
Poderíamos contar também entre os precursores Benveniste, que graças à distinção entre o modo semiótico e o modo semântico da significação opunha uma significação convencional, fixada nos signos da língua e no sistema, a uma significação viva, uma significação em ato (ver capítulo “Do signo ao discurso”). A apreensão inferencial (o modo semiótico de Benveniste) não impõe à instância de discurso uma tomada de posição, ela se dá independentemente de toda instância de discurso. Em compensação, a apreensão semântica (o modo semântico de Benveniste) não se pode conceber sem uma instância que tome posição e que assuma uma enunciação. No entanto, para Benveniste, os dois modos tratar-se-iam somente de dois pontos de vista epistemológicos ou, ainda, de duas abordagens complementares dos mesmos fenômenos da significação. Trata-se aqui de distinguir duas maneiras de apreender o mundo em uma lógica da cognição. Como esses dois tipos de apreensão coexistem no discurso, é preciso dar conta da sintaxe que nos permite ir de um ao outro. Daí o papel mediador atribuído à apreensão no esquema que segue: Apreensão molar
Apreensão impressiva
Apreensão semântica
A apreensão “molar” e a apreensão “semântica” podem ser opostas aqui como os contrários da categoria da apreensão, os dois polos entre os quais o discurso vai e vem, um baseando-se em dependências unilaterais, que impossibilitam a formação de um todo de significação, e outro assentando-se em correlações múltiplas, constitutivas de uma totalidade. A partir disso, a apreensão “impressiva” é um termo contraditório que “suspende” a ação da referência e da inferência e que põe em dúvida as percepções convencionais. Além disso, pela “abordagem holística” e pouco nítida que traz da totalidade, ela possibilita a apreensão semântica. A partir da posição fornecida pela apreensão impressiva, é preciso, em seguida, afirmar equivalências e solidariedades e assumir essa totalidade graças à apreensão semântica. É aqui que o raciocínio dedutivo recupera seus direitos: na verdade, a discussão que promovemos até agora esboça os grandes traços de uma categoria da apreensão que seria organizada pelas relações de contrariedade e contradição. Ora, a lei de construção de uma categoria assim estruturada 233
Semiótica do discurso
define o lugar de uma outra posição possível, aquela do termo contraditório da apreensão semântica. Essa mesma lei de construção delineia, do mesmo modo, um outro percurso que teria a seguinte forma, em que “X” seria o contraditório da apreensão semântica: Apreensão semântica
Apreensão X
Apreensão molar
Fica claro que o primeiro percurso é próprio ao discurso estético. No entanto, se abandonamos essa perspectiva particular e se levamos em conta o conjunto de possibilidades discursivas, o segundo percurso não deve ser descartado. E a última questão que se formula é a seguinte: qual é a apreensão “X”? Qual é o termo contraditório da apreensão semântica? Esse quarto tipo de apreensão teria o papel de suspender as equivalências inovadoras do discurso, de enfraquecer a assunção das figuras pelo sujeito de enunciação e de preparar o terreno para novas referências e inferências, promovendo a convenção entre as formas semióticas. A partir das correlações livres, embora fortemente assumidas, que propõe o discurso vivo, essa apreensão produziria formas cristalizadas, produtos do uso e do desgaste. O primeiro gesto que conduz à “dessemantização” do discurso é aquele que consiste em excluir as relações com o todo: na realidade, uma forma só pode ser “cristalizada” e dessemantizada se ela é separada do todo orgânico que a motiva e a faz significar. Portanto, a apreensão “X” localiza, reduz o alcance das equivalências e solidariedades e prepara o surgimento de dependências locais e unilaterais. Essa propriedade estaria de acordo com seu estatuto de “subcontrário”, isto é, de contrário do outro contraditório, a apreensão impressiva. Se esta última é holística e pouco nítida, a apreensão “X” será local e precisa. O caso da catacrese (“a asa da xícara”), e de muitas outras produções fraseológicas, é exemplar: uma metáfora cristaliza-se ao mesmo tempo em que é separada do discurso que a inventou. Esquece-se a distinção entre seu conteúdo e seu veículo; em pouco tempo não se percebe mais a relação de equivalência, já que não se percebe mais a competição entre os dois conteúdos. A partir desse momento, a expressão concernida não exige ser assumida pelo sujeito de enunciação nem ser imaginada a partir de sua posição ou de suas percepções. Ela age sozinha e de maneira autônoma. A 234
Ação, paixão, cognição
figura está agora pronta para um uso puramente convencional e referencial: a “asa” designa diretamente a “alça”, a parte saliente pela qual se segura a xícara, ela é, como diria Pierre Fontanier, uma figura não tropo. Portanto, essa apreensão “X” é intuitivamente bem conhecida: é ela que cristaliza, fossiliza, que transforma os esquemas da ação em esquemas canônicos, os programas narrativos em roteiros cristalizados e as imagens em designações estereotipadas. Poderíamos ser tentados a chamá-la de apreensão regressiva para marcar bem o fato de que ela impõe um retorno à apreensão referencial e inferencial, um retorno àquilo contra o que toda instância de discurso – estética ou não estética – procura lutar, por uma tomada de posição e uma assunção dos valores. Na continuidade das observações que fizemos sobre Husserl e Proust, é uma outra denominação que vamos conservar para esse tipo de apreensão. Na verdade, o movimento que conduz de uma visão mítica e mágica do mundo a uma visão referencial e positivista está claramente designado por esses autores. Em Husserl, a “técnica” é uma ciência que esquece o “sentido de ser” dos conhecimentos que ela elabora, transformando-se assim em uma técnica vazia de sentido. Em Proust, é o conhecimento dito “culto” ou, ao menos, aquele que se crê como tal, aquele que reduz a metáfora a ilusões de ótica, que procura explicar o que deveria somente ser vivido e assumido. É também o conhecimento que reduz a metáfora a um mero processo de designação pelo acréscimo ou pela preocupação decorativa, aquele que faz da retórica uma mera técnica culta e, por fim, aquele que só reconhecerá nas figuras e nas imagens constitutivas do discurso vivo o procedimento, a habilidade ou a virtuosidade. Só “técnica”, em suma, nada além de técnica. Em último caso, confrontada à apreensão semântica que “problematiza” a organização do mundo, pode-se dizer que a apreensão técnica refugia-se nas explicações mínimas necessárias, quando não triviais. Portanto, o quarto tipo de apreensão será denominado apreensão técnica e será definido como aquele que só avalia os objetos cognitivos por meio de explicações locais, isolantes e desmitificantes. O segundo percurso agora está completo: Apreensão semântica
Apreensão técnica
Apreensão molar
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Semiótica do discurso
Dispomos, para concluir, de uma tipologia das apreensões que assume a forma de um quadrado semiótico:
Entre todos os percursos possíveis, que são indicados por flechas no esquema anterior, nós queremos chamar a atenção em particular a dois dentre eles. Trata-se: (1) do percurso “técnica molar impressiva semântica” e (2) do percurso “impressiva semântica técnica molar”. Esses dois percursos inversos partem ambos de uma simples “apreensão” indicial (respectivamente, o índice de um procedimento e o índice de um efeito somático) para chegar a uma regra, a um metassaber baseado no modelo de inteligibilidade do discurso analisado (respectivamente, um modelo de inteligibilidade inferencial e externo e um modelo de inteligibilidade simbólico-mítico e interno do outro modelo). Entre cada um desses dois extremos, os dois percursos atravessam duas posições (apreensão molar ou apreensão semântica) que desempenham, paralelamente, dois papéis específicos. (a) A segunda posição do percurso confirma e estabiliza a apreensão indicial, fornecendo-lhe um correlato de identificação que, graças à relação de equivalência assim introduzida, transforma o índice em ícone. Em um dos casos, é a apreensão molar que estabiliza e iconiza o produto da apreensão técnica por uma referência externa. No outro caso, é a apreensão semântica que faz o mesmo com o produto da apreensão impressiva por uma referência interna. (b) A terceira posição, que resulta em dois percursos de uma negação contraditória da segunda, troca a primeira base indicial por uma outra com base no outro tipo de apreensão. Contudo, em relação à precedente e em razão da contradição, esta última só poderia ser uma apreensão crítica, que já tem o estatuto de uma metassemiótica. A apreensão técnica funciona como um comentário crítico sobre a apreensão semântica, assim como a apreensão impressiva em relação à apreensão molar.
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Ação, paixão, cognição
Essa é a razão pela qual elas tomam um sentido diferente conforme a apreensão molar ou a apreensão semântica encontrem-se no meio ou no final de um de seus percursos: elas são simples estabilização icônica de uma apreensão indicial, no primeiro caso, ou fornecem um modelo metassemiótico, no segundo caso. Se se vai até o fim desse raciocínio, chega-se ao seguinte resultado: ocupando a segunda posição de cada um dos percursos inversos, a apreensão molar e a apreensão semântica propõem duas formas da estabilização icônica, dois tipos de equivalências, uma externa e referencial, outra interna e retórica. Ocupando a posição terminal dos dois percursos inversos, a apreensão molar e a apreensão semântica propõem duas formas da modelização metassemiótica, uma externa e inferencial, outra interna e simbólica, ou mesmo mítica. A diferença entre os dois tipos de iconizações e os dois tipos de modelizações metassemióticas é, portanto, de natureza sintática, já que resulta da inversão dos percursos.
Agora já podemos imaginar quais seriam as racionalidades cognitivas correspondentes às diversas apreensões, especificando o tipo de valores cognitivos que elas propõem. Desse modo, detectamos, por meio dos dois primeiros tipos de apreensão e sob a inspiração de Geninasca, dois grandes valores cognitivos: valores referenciais e informativos (apreensão molar) e valores estéticos e simbólicos, ou, ainda, míticos (apreensão semântica). Os valores subjacentes à apreensão impressiva são de tipo sensível, ou, mais precisamente, hedônico: o sentido emerge do prazer ou do desprazer que a impressão ou a percepção de uma figura proporciona. Finalmente, subjacentes à apreensão técnica, encontramos os valores técnicos e científicos. A síntese cognitiva basear-se-ia, consequentemente, em quatro grandes tipos de racionalidade, elas próprias fundadas em quatro maneiras diferentes de valorizar a descoberta dos objetos cognitivos:
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Semiótica do discurso
4. Intersecções e Imbricamentos Os discursos concretos nunca se baseiam em apenas uma dimensão por vez: pode-se conceber uma tipologia dos discursos que se basearia em regimes dominantes ou, ainda, em apreensões cognitivas dominantes, mas certamente não em regimes ou apreensões exclusivos. Portanto, é preciso que nos preparemos para dar conta das intersecções e imbricamentos entre esses três tipos de lógicas discursivas. O devir programado de uma transformação, por exemplo, pode ser interrompido ou alterado por um acontecimento, um “advir” passional que impõe suas próprias condições. Por meio de uma simples variação de posição da instância de discurso, pode-se, na verdade, passar de uma dimensão a outra: se a instância de discurso separa-se do processo em desenvolvimento, o regime passional é suspenso para dar lugar a uma lógica retrospectiva, a lógica da ação. É preciso também se lembrar de que a posição dessa instância é, de fato, ocupada por um corpo próprio e que esse corpo proporciona, a todas às três lógicas, uma ancoragem comum e permanente, mesmo que ele mude de função de uma lógica à outra. Na realidade, ele pode ser o ponto de referência de um cálculo cognitivo, o lugar das inquietações e da invasão afetiva ou, simplesmente, o instrumento da ação. Entretanto, é justamente sempre a instância proprioceptiva que desempenha esses papéis e que assegura a transição entre eles. 4.1. Imbricamentos Os três grandes regimes discursivos determinam-se entre si e formam sequências facilmente reconhecíveis. A partir do momento em que não se impõe limites ao número de fases, suas combinações são inúmeras. Nós evocaremos aqui apenas um tipo de combinações, os imbricamentos, que se dão nos seguintes moldes: [Regime A1 – Regime B – Regime A2]. Por que essa combinação, e não outra? Porque nos parece ser a mais rica em ensinamentos, pois permite mensurar o efeito de um regime, o tipo B, sobre outro, que se encontra ao mesmo tempo associado em dois subtipos: A1 no começo e A2 no final.
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Ação, paixão, cognição
No esquema narrativo canônico, por exemplo, o regime da ação está enquadrado por dois momentos de cognição, a manipulação (Cognição 1) e a sanção (Cognição 2). Ou seja: [Cognição 1 – Ação – Cognição 2] Fica claro, então, que é a fase da ação intermediária que modifica as relações cognitivas entre os actantes: na primeira fase cognitiva, é o Destinador que tenta persuadir o Sujeito; na segunda, é o sujeito que, apresentando sua ação da melhor forma, tenta persuadir o Destinador de que ela está de acordo com o contrato inicial. Inversamente, quando o sujeito narrativo deve elaborar simulacros no interior de uma estratégia de programação por menos complexa que seja, é a cognição que se encontra imbricada entre os dois momentos da ação, o segundo sendo modificado em relação ao primeiro graças a uma inflexão da estratégia: [Ação 1 – Cognição – Ação 2] Do mesmo modo, o regime da paixão pode estar imbricado em duas fases de cognição, sobretudo quando o saber é convertido em crença ou, ainda, quando ele só pode ser assumido por intermédio da confiança, segundo uma garantia transcendente: [Cognição 1 – Paixão – Cognição 2] Se a cognição chega a modificar uma sequência passional, talvez seja, por exemplo, para modificar universos de crença ou para tomar posição em relação à emoção: [Paixão 1 – Cognição – Paixão 2] Esse imbricamento é preconizado por quase todos os moralistas. Como já vimos, Sêneca propõe, em seu De ira, suspender a escalada em potência da cólera, dar um tempo à cognição para que ela faça seu
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Semiótica do discurso
trabalho. Para Sêneca, se a análise cognitiva dos motivos da cólera é efetuada, ela alimentará um desejo de vingança e justiça mais do que uma explosão de cólera. Por outro lado, o regime da ação pode ser determinado pela paixão, a ponto de ser considerado não mais que uma “passagem ao ato”, o qual, como se sabe, produz também suas próprias emoções ou, ao menos, muda a natureza da paixão inicial: [Paixão 1 – Ação – Paixão 2] Finalmente, uma fase passional pode ser imbricada no meio de uma sequência de ação. Então ela lhe serve momentaneamente como um estopim. Aumentado a intensidade desta ou daquela modalidade que compõe a identidade do sujeito, ela dá início a um processo interrompido que permite ultrapassar um obstáculo. Pode também comprometer definitivamente o desenvolvimento da ação. Seja qual for o caso, ela modifica a natureza da ação: [Ação 1 – Paixão – Ação 2] É claro que esses esboços têm apenas um valor indicativo. A exploração concreta desses imbricamentos deve obedecer a dois princípios: (1) a cada mudança de regime, o universo de discurso inteiro é afetado: a posição da instância de discurso, o papel do corpo próprio, o nível de modalização dos actantes (M0, M1, M2 etc.), o sentido do tempo, o espaço e o devir etc.; (2) o imbricamento em si especifica os componentes: os dois regimes em presença, tanto o que imbrica quanto o que é imbricado, são especificados pela sequência em que se situam. Por exemplo: a fase passional depende da crença e da confiança quando ela se encontra entre duas fases cognitivas; em contrapartida, ela participa da (des)regulação das condutas quando está imbricada em uma sequência de ação.
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Ação, paixão, cognição
4.2. O sensível e o inteligível 4.2.1. Quatro níveis de articulação
A principal questão, nos entrecruzamentos dos três regimes, continua sendo a questão da articulação entre o sensível e o inteligível. Essa questão é bem mais geral do que aquela da interpenetração dos regimes da ação, da paixão e da cognição. Na verdade, ela diz respeito à emergência da significação a partir da experiência sensível, e essa conversão sempre está presente no discurso em ato. Pode-se abordá-la de quatro pontos de vista (pdv) complementares: (1) pdv da função semiótica; (2) pdv da formação de valores; (3) pdv dos esquemas de discurso; e (4) pdv dos modelos sensoriais. O primeiro pdv já foi abordado no capítulo “Do signo ao discurso”. A função semiótica não é uma relação formal entre um plano de expressão e um plano de conteúdo. Ela é resultado de uma tomada de posição de um corpo próprio, que determina, primeiramente, um domínio interoceptivo e um domínio exteroceptivo e, depois, a projeção desses dois domínios um sobre o outro pelo efeito da mediação proprioceptiva. O sensível – a propriocepção – torna-se, desse modo, o domínio comum ao plano da expressão e ao plano do conteúdo. O segundo pdv foi abordado no capítulo “As estruturas elementares”. A estrutura tensiva apresenta-se como um modelo de engendramento dos valores discursivos no espaço interno da correlação a partir das valências perceptivas e graduais que constituem o espaço interno de controle. Portanto, ela relaciona o sensível e o inteligível na medida em que as valências de controle – de tipo gradual, tensivo e perceptivo – determinam as diversas posições categoriais (ou valores) do espaço interno. O terceiro pdv foi abordado no capítulo “O discurso”, por meio dos esquemas tensivos. Na realidade, os esquemas tensivos são modelos sintáticos que dão conta das variações de equilíbrio entre a intensidade (sensível, afetiva, sentida) e a extensão (perceptiva, cognitiva, mensurável). O problema é saber como, em tal pdv do discurso, as valências do afeto e as valências da cognição conjugam-se ou opõem-se, aliam-se ou combatem-se. Somente o último pdv, que diz respeito aos modos sensoriais, ainda não foi explicitamente abordado. Na verdade, ele constitui em si um amplo 241
Semiótica do discurso
programa de pesquisa do qual nós indicaremos aqui apenas alguns elementos, limitando-nos ao exemplo dos odores. Afirmar que a significação se apoia na percepção e que o inteligível é indissociável do sensível, é apenas uma mera petição de princípio ou, ainda, uma posição filosófica, enquanto não examinamos como a conversão ocorre concretamente no discurso. No entanto, agora nós temos os meios para fazê-lo: a estrutura tensiva, a semiótica da presença e a apreensão impressiva nos dão acesso, do ponto de vista do método, a esse tipo de “advento” semiótico. Contudo, precisamos também nos perguntar o que buscamos descobrir com isso: a esse respeito, a questão poderia ser aquela da especificidade semiótica dos modos sensoriais. Tal problemática pode ser derivada em quatro questões: (1) De que maneira os valores surgem a partir dos diferentes modos sensoriais? Valores descritivos? Valores modais? Aspectuais? E quais outros... ? (2) Como a significação só pode ser apreendida em seu devir (em suas transformações, dizia Greimas) e quais são os regimes narrativos e os dispositivos actanciais induzidos por cada um dos modos sensoriais? (3) Quais são as figuras associadas a cada um deles? As formas do tempo? As formas do espaço? (4) Até que ponto a experiência sensível determina a estrutura discursiva? Essa é a questão da estesia e das suas relações com o conjunto dos esquematismos discursivos. Nós nos empenharemos em responder, ponto por ponto, a cada uma dessas questões, no que toca ao universo dos odores.* No entanto, escolher um modo
* N.T.: No original, “odeurs”. Em português, a distinção, inexistente em francês, entre “odor” vs. “cheiro”, tanto do ponto de vista etimológico – “odore” vs. “flagare” (“cheirar”) – quanto do ponto de vista do uso, manifesta uma diferença clara quanto ao registro de ocorrência. O vocábulo “odor” é mais usado nos registros ditos cultos (literários, científicos etc.) ou com sentido eufêmico ou antiquado, enquanto “cheiro” é empregado amplamente nos registros coloquiais. Na tradução, tentou-se manter a lógica do uso cotidiano dos dois vocábulos, empregandose, na maior parte dos casos, “odor” para designar o fenômeno mais geral do olfato e “cheiro” para descrever a sua manifestação particular.
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sensorial não é o bastante, é preciso ainda que ele esteja manifestado em um discurso concreto. Assim, iremos estudar Viagem ao fim da noite, de Céline.12 4.2.2. A semiótica dos odores 4.2.2.1. Os valores olfativos
A categorização dos cheiros provém, grosso modo, de dois princípios concorrentes: ou eles são classificados em função de sua fonte (flor, animal, matéria etc.) ou em função de um processo que é apreendido em uma de suas fases. No primeiro caso, a categorização tem uma base actancial, já que é o actante-fonte que serve como princípio de classificação (voltaremos a falar sobre isso mais adiante). No segundo caso, ela tem uma base aspectual, já que as fases de um processo definem sua aspectualidade. É a este último caso que nos dedicaremos com mais atenção agora. Um cheiro de mofo, de podre, um cheiro fresco, um cheiro abafado: todos eles são classificados em função de uma fase precisa de um processo que ainda resta a ser determinado. Sabe-se que o odor equivale, no plano axiológico, à pureza ou impureza, e, por derivação, à santidade e ao pecado. A pureza, literalmente, resulta de um processo de triagem, seguindo um princípio de exclusão; a impureza resultaria, consequentemente, do processo contrário, a mistura, seguindo um princípio de participação e de confusão. Em suma, o odor dividiria e classificaria os sentidos em função de uma correlação na qual o número de gradientes seria inversamente proporcional a seu valor: o polo positivo estando do lado da triagem, da exclusão, e o polo negativo e heterogêneo, do lado da mistura. Portanto, subjacente à valorização pelo odor haveria um processo que estaria relacionado à estrutura quantitativa e qualitativa das situações. Em resumo, diríamos, com certa insolência, que a unidade e o homogêneo cheiram bem, e o plural e o heterogêneo cheiram mal. Desse modo, no que diz respeito a uma das dimensões essenciais deste livro, ou seja, o estudo da significação pelo viés das diferentes formas da síntese do heterogêneo, o odor é um caso exemplar: as mudanças e os contrastes olfativos são aqui explicitamente relacionados a diferentes momentos da heterogeneidade figurativa e material, assim como de sua resolução. 243
Semiótica do discurso
Falta-nos dizer qual é o conteúdo semântico das categorias que sofrem a ação desses processos de heterogeneização e homogeneização. A maior parte dos enunciados de categorização aspectual concerne, de fato, ao vivente: desse modo, esse seria o processo que conduz da vida à morte, que seria, assim, apreendido em várias fases e que permitiria categorizar os odores. Obviamente que, na maior parte das vezes, lidamos com sequências menores (o dia, por exemplo, ou a estação), mas essas são ainda sequências de um processo que diz respeito ao vivente. De que modo os viventes estão relacionados a esses processos? A resposta reside na categorização dos próprios cheiros: o podre e o mofado são estados compostos e correspondem a fases de desunião da matéria orgânica. Em contrapartida, o fresco é um estado unificado, homogêneo, que corresponde a uma fase anterior do processo. O processo em questão aparece, então, como orientado: uma tensão o atrai em direção ao fim e conduz a uma desunião progressiva dos corpos orgânicos. Logo, a passagem da unidade à pluralidade, do bom ao mau cheiro, é globalmente também a passagem da vida à morte, da fase incoativa do vivente a sua fase terminativa. Se o odor pode ser tratado como uma linguagem, então os valores dos quais essa linguagem é constituída falam sobre o devir interno da matéria orgânica. Em Céline, a afirmação dessa propriedade é, ao mesmo tempo, mais geral e mais crua. Mais geral, a princípio, porque Céline vai, sem meias palavras, diretamente ao centro do problema, à fonte dos cheiros, do próprio processo: É pelos cheiros que terminam as criaturas, os países e as coisas. Todas as aventuras se vão pelo nariz.13
Como em outros tantos casos, o uso metafórico de uma expressão ou de uma figura é semioticamente mais “verdadeiro” que seu uso corrente: assumindo o valor genérico que a metáfora lhe confere, o cheiro torna-se a expressão de todo fim. A versão de Céline é também mais “crua”, pois ele evoca diretamente a decomposição que ameaça: É difícil. Já que não passamos de recintos de tripas mornas e não totalmente podres, sempre teremos dificuldades com os sentimentos. Apaixonar-se não é 244
Ação, paixão, cognição
nada, o difícil é ficar junto. Quanto à imundície, ela não tenta durar nem crescer. Aqui, neste aspecto somos bem mais infelizes do que a merda, essa sanha de perseverarmos em nossa condição constitui a inacreditável tortura. Realmente, não adoramos nada mais divino do que o nosso cheiro. Toda a nossa desgraça decorre de que temos de continuar sendo Jean, Pierre ou Gaston, custe o que custar, durante anos a fio. Este nosso corpo, disfarçado em moléculas agitadas e banais, o tempo inteiro se revolta contra essa farsa atroz de durar.14
Durar sem movimento é desfazer-se, decompor-se. O cheiro do vivente é, primeiramente, o cheiro de seu “ficar junto”, que gera esse esforço para permanecer ao mesmo tempo idêntico a si mesmo e “coerente”. Entretanto, é também o cheiro da decomposição, do desligamento* das partes. Céline atribui ao cheiro dois predicados implícitos: conservar (para o cheiro de “ficar junto”) e dispersar (para o cheiro do desligamento da identidade). A desgraça do vivente é, em suma, estar implicado em um devir. E o cheiro, consequentemente, é uma propriedade da identidade em devir, identidade concebida como uma força de coesão exposta à força contrária. Para empregar os mesmos termos que utilizamos anteriormente, o cheiro de que gostamos é o cheiro que testemunha a nossa unidade, e o cheiro que rejeitamos é aquele que acusa a nossa desunião. A hipótese inicial (a unidade cheira bem, a desunião final cheira mal) estando confirmada, temos agora condições de tornar mais preciso o estatuto dos valores olfativos: seja qual for a isotopia que os assume (moral, estética, vital), os valores em jogo são sempre, (1) no plano semântico, de tipo quantitativo e mereológico, e, (2) no plano sintático, de tipo aspectual. Mas o texto de Céline introduz uma outra variável que não estava prevista no início: a identidade. Seria ela generalizável? A resposta é sim. Na realidade, o odor é associado a sua fonte, o que permite identificála: um cheiro de rosas, um cheiro de gasolina, um cheiro próprio a Jean ou a Gaston, o cheiro dos curtumes etc. Todavia vê-se claramente que se trata de um princípio de classificação (ou ainda de mera denominação metonímica), e não de categorização: esse modo de identificação não permite
* N.T.: No original, “déliaison”.
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muito mais do que remeter o odor a sua fonte, uma referência entre figuras do mundo natural, nada além disso. O odor permite que reconheçamos sua fonte, mas não traz em si conhecimentos a respeito dela. Entretanto isso não é completamente verdadeiro, pois existe um tipo de identificação pelo odor que tem uma virtude cognitiva: a identificação que delimita classes, e especialmente a que permite identificar grupos definidos pelo papel temático ou figurativo. Já se falou do cheiro dos pobres, das mulheres adúlteras (detectado pelo faro eclesiástico no século xix!) etc. A classificação baseada em um traço cognitivo nada tem de original, mas, nesse caso, o traço figurativo (pobre, adúltero) remete a um papel, e a classificação olfativa torna-se mais específica. O odor é, então, a expressão sensível direta do papel social ou temático. Além disso, o processo de classificação segundo o odor é dos mais singulares, pois ele integra cheiros cujas fontes são muito diversas. Examinemos esta passagem de Viagem: Em volta de seu barraco, vindos desde a manhã, se espremiam os querelantes, massa disparatada, colorida de tangas e salpicada de pipilantes testemunhas. Condenáveis e simples público de pé, misturados no mesmo círculo, todos cheirando forte a alho, a sândalo, a manteiga rançosa, a suor açafronado.15
Ela trata da constituição de um actante coletivo a partir de atores heterogêneos. Na verdade, esses atores têm papéis diferentes, e o conjunto é visivelmente díspar. Ora, o actante coletivo constitui-se mesmo assim – e isso graças ao odor –, pois, sejam quais forem os cheiros propriamente individuais, uma vez reunidos em uma massa, eles pertencem à totalidade dos presentes. O odor tem um poder genérico e homogeneizante. E é justamente esse poder genérico que permite que ele se apresente como a expressão de fenômenos abstratos, como a desunião ou o fim das coisas. Céline, por exemplo, fala sobre o odor das agonias e das derrocadas: [...] odor fiel a todas as agonias, odor nítido de todas as derrocadas deste mundo, odor da pólvora fumegante.16
Ao final do processo de generalização, encontra-se sempre a morte, a desunião, o fim... Portanto, em Céline, a identificação pelo odor só faz confirmar, no final das contas, a natureza quantitativa, mereológica e aspectual dos valores olfativos. 246
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4.2.2.2. A narrativa olfativa
Curiosamente, a nomenclatura dos odores na língua natural pode dar acesso à estrutura actancial e narrativa do odor: aroma, buquê, fragrância, perfume, essência, empireuma, fetidez, fedor, relento, bafio, ranço, eflúvio, exalação etc. Pode-se poupar o leitor dos meandros da análise léxico-semântica e ir diretamente a seu resultado. A nomenclatura dos odores baseia-se nos três actantes posicionais que já tivemos ocasião de propor (ver capítulo “Os actantes”): a fonte, o alvo e o controle. A fonte encontra-se designada segundo o princípio líquido (buquê), vegetal ou químico (aroma) ou orgânico (empireuma). O alvo está implicado de um ponto de vista somático – a repugnância (fetidez, fedor), o nojo (relento) – ou de um ponto de vista afetivo, do agradável (perfume) ao infecto (fetidez, fedor). Por fim, o controle é evocado: o cozimento (o perfume de um assado, por exemplo), o fogo (empireuma), a umidade (bafio, relento) e também deteriorações ou mudanças de estado (eflúvio). Quando a definição evoca o caráter volátil da fonte, ela implica, na verdade, o ar como controle. Distinguiremos os atores, que são elementos materiais (fogo, água, ar), e as operações (cozimento, consumação, deterioração, volatilização). O processo em si decompõe-se em três etapas: (1) uma transformação material sob a ação do actante de controle, (2) uma emissão e (3) uma penetração. Alguns termos da nomenclatura (exalação) designam diretamente a emissão. Quanto à penetração, ela é uma operação gradual que supõe que o alvo seja o espaço de recepção do odor, espaço dotado de orifícios e de uma profundidade: o odor dito penetrante é aquele que chega ao recôndito mais profundo do corpo-alvo. O sintagma proposto apresenta-se, de fato, como um diálogo entre corpos vivos: mesmo quando a fonte é química, ela é percebida sob a forma de uma exalação natural que emana, por simulacro, de um corpo orgânico metafórico. De um lado, tem-se uma matéria orgânica em devir sob a ação do actante de controle, de outro, um corpo oco que deve acolher o cheiro em seu interior para identificá-lo e, somente em seguida, aceitar ou recusar a “mensagem” que lhe é proposta.
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Céline explora sistematicamente esse sintagma para expressar a invasão do lugar que a instância de discurso ocupa. Assim, o cheiro só é uma das versões da agressão generalizada que visa o sujeito. Isso acontece, por exemplo, sob o controle da duração: À medida que se permanece num lugar, as coisas e as pessoas perdem a compostura, apodrecem e começam a feder de propósito para você.17
Nessa passagem, o odor do fim e da decomposição não é somente inelutável, ele é também intencional, ele toma por alvo o próprio lugar do sujeito. A Viagem de Céline escolheu seu actante de controle: o tempo – nela, basta esperar para que o processo chegue ao fim. No entanto, a obra evoca um outro actante de controle, sob a forma de um elemento material: o ar. O ar é objeto das mesmas operações que a matéria: concentração ou dispersão. Entretanto o efeito é inverso: o ar concentrado (confinado) favorece os cheiros desagradáveis, enquanto o ar livre, propagado, favorece os cheiros agradáveis. Portanto, seria preciso supor que, do ponto de vista da percepção, o ar e o odor estão correlacionados: o ar controla a extensão da percepção, enquanto o odor controla sua intensidade. Em última análise, como neste exemplo: No verão também tudo cheirava forte. Não havia mais ar na área, unicamente odores.18
Quando levamos em conta a natureza espacial da extensão controlada pelo ar, percebem-se, inclusive, os rudimentos de um sistema semissimbólico: Assim que uma porta se fecha atrás de um homem, logo ele começa a feder e tudo o que leva consigo fede também. Sai de moda ali mesmo, corpo e alma. Apodrece. Se os homens fedem, é bem feito para nós. Precisávamos cuidar deles! Precisávamos levá-los para passear, tirá-los de casa, expô-los.19
O fechado é para o ar concentrado o que o aberto é para o ar livre: de um lado, o cheiro de morte, do outro, o cheiro de vida. Na verdade, esse actante de controle age diretamente sobre a composição da configuração material: o ar estagnado favorece a concentração de figuras e matérias heterogêneas, enquanto o ar livre facilita sua difusão, sua seleção, bem como a homogeneidade das figuras e matérias. 248
Ação, paixão, cognição
4.2.2.3. O tempo e o espaço olfativos
Como o tempo e o espaço são metamorfoses figurativas do actante de controle, eles estão diretamente implicados na forma do processo olfativo. Depreenderemos agora algumas de suas propriedades. Essas propriedades são diretamente dependentes das propriedades da presença olfativa, já que as formas do espaço e do tempo são, nesse caso, aquelas do campo de presença do odor. A principal característica da presença olfativa é sua capacidade de dissociar-se da fonte e, consequentemente, de suspender os efeitos da distância espaço-temporal. No que concerne ao espaço, a forma dominante é a forma dos invólucros* sucessivos e concêntricos da fonte: o odor é um dos invólucros do corpo odorante. Em Céline, trata-se do perímetro das cidades. As cidades são cercadas por um invólucro olfativo, como, por exemplo, o cheiro da periferia: Em volta do metrô, perto dos bastiões paira, endêmico, o cheiro das guerras que se arrastam, relentos de vilarejos semiqueimados, mal cozidos, revoluções que abortam, comércios em falência.20
Esse invólucro é, ao mesmo tempo, devido à preeminência do cheiro do fim das coisas, o lugar em que tudo morrerá, o lugar que conserva a presença odorante dos fracassos e da morte. No que concerne ao tempo, o cheiro vem do passado ou do futuro para invadir o campo perceptivo do discurso. É a figura do relento, da remanência olfativa ou, ainda, da antecipação do odor. Para Céline, o cheiro torna-se a figura genérica de toda reminiscência. Sobre Musyne, uma de suas amantes, ele comenta: Para ela eu tinha o mau cheiro, era evidente, de todo um passado [...].21
Nesse caso, não é o passado em si que é disfórico, mas sua presença atual sob a forma de um odor-lembrança, uma presença que se impõe ao sujeito, que ocupa seu campo perceptivo. Quanto ao futuro, ele só oferece
* N.T.: No original, “enveloppes”.
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Semiótica do discurso
uma perspectiva: a morte. Portanto, o futuro é o cheiro da morte que antecipa por sua presença o acontecimento derradeiro: [...] o mundo nos deixa bem antes de irmos embora de vez [...] a morte também está ali, fedorenta, ao nosso lado, o tempo todo agora e menos misteriosa do que uma partida de bisca.22
Desse modo, Céline apreende o modo de presença do odor: obsessivo, invasivo, persistente, insensível ao tempo e à mudança; uma presença que se exerce segundo o modo da intensidade, mas que ocupa toda a extensão disponível; uma presença, finalmente, que não deve nada às retenções e protensões do próprio sujeito – é nisso que pensamos quando dizemos que o odor impõe sua presença. A explicação já está contida no dispositivo actancial: diante do odor, o corpo sensível, centro de referência do campo de presença, é somente um alvo; ele não é mais o ponto de partida de visada alguma, ele é apreendido, submergido, penetrado. O odor da fonte, na perspectiva da intersubjetividade do vivente, torna-se o cheiro do outro, e essa experiência consiste em uma inversão do centro de referência: o campo do outro (a não pessoa) impõe-se, impõe seu próprio centro de referência, desaloja-nos de nosso próprio centro. O que é insuportável, nessa situação, não é tanto a qualidade do cheiro agradável ou desagradável, mas seu poder de penetração e de invasão, sua capacidade de nos desalojar de nossa posição no centro de referência. Assim, madame Herote é uma: [...] pessoa substancial, tagarela e perfumada a ponto de se desmaiar [...].23
Aqui veem-se claramente invólucros sucessivos se desenvolverem: um corpo invasor, falas invasivas, o conjunto coroado por um perfume ainda mais invasivo – o desmaio é a resposta do outro corpo, desalojado de sua posição de referência. 4.2.2.4. Estesia olfativa e lógica do discurso
O universo dos odores – especialmente em Céline – fornecerá um bom exemplo da maneira pela qual uma estesia, uma experiência sensorial excepcional, confere ao discurso o princípio de seu desdobramento e de seu esquematismo. Desde o princípio, observou-se uma dupla direção da denominação e da categorização dos cheiros: de um lado, a identificação 250
Ação, paixão, cognição
pela fonte, do outro, a identificação pelo aspecto por intermédio de uma fase particular de um processo. A primeira direção estende-se com o odor dos “papéis” sociais e temáticos; a segunda obedece a uma orientação dos odores em direção ao fim do processo e a uma projeção dos valores de vida e de morte (o vivente fazendo as vezes de isotopia subjacente ao conjunto dos processos implicados). O primeiro tipo fornece ao odor o estatuto de uma designação referencial e convencional: o cheiro refere-se a sua fonte. O indivíduo que o carrega consigo está ligado por inferência ao grupo ao qual ele pertence. Seja o cheiro de uma fonte vegetal ou animal, de um grupo humano, de uma profissão ou de um papel, esse primeiro tipo derivaria globalmente daquilo que Geninasca chama de apreensão molar e de uma racionalidade cognitiva informativa. O segundo tipo atribui ao odor um lugar em um devir em um esquema discursivo e relaciona-o aos grandes sistemas de valores do discurso. Ele permite à instância de discurso tomar posição (correndo o risco, como já vimos, de ser desalojado dessa posição pelo odor), orientar os processos e, ao mesmo tempo, aplicar a capacidade genérica do odor em proveito de vastos sistemas analógicos e metafóricos. Esse segundo tipo derivaria da apreensão semântica e de uma racionalidade cognitiva mítica. Em Céline, constata-se a incessante transformação do primeiro tipo no segundo, já que, por fim, todos os odores acabam por significar o odor do fim de todas as coisas. Contudo, voltemos à estesia para que possamos compreender melhor o papel organizador da percepção. Definiremos a estesia como o modo de aparecer das coisas, a maneira singular pela qual elas se revelam para nós, independentemente de qualquer codificação prévia. A capacidade genérica do odor, em Viagem, está a serviço ao mesmo tempo de uma indiferenciação e de uma heurística: por detrás da aparência distinta das coisas vivas, esconde-se seu destino comum e inelutável, a corrida em direção à decomposição e à morte. Portanto, o odor do segundo tipo revela o que o odor do primeiro tipo tenta dissimular. Em toda experiência olfativa, pode-se observar um descompasso entre a aparência olfativa, que é referencial, particular e informativa, e o aparecer olfativo, a estesia, que aqui expressa o sentido do devir de todas as coisas. 251
Semiótica do discurso
A aparência é mais ou menos estereotipada (o cheiro das classes sociais, por exemplo), mas está sempre codificada por um saber preexistente, de tipo médico, dietético, higiênico, sociológico ou psicológico. O aparecer do odor em devir não é em nada codificado, ao contrário, é ele que nos inteira desse odor em devir: o movimento que nos conduz em direção ao fim (para o fim da noite). Logo, a percepção convencional e a estesia entram em tensão, e essa tensão será a mola propulsora de todas as esquematizações do discurso. O aparecer corresponderia aqui, ao mesmo tempo, à apreensão impressiva, que suspende o exercício da apreensão molar, e à apreensão semântica, que desenvolve a impressão sob a forma de uma ampla equivalência. A tensão inicial entre os dois tipos de percepção é particularmente sugestiva: na verdade, a aparência é atual, enquanto o aparecer é, de início, virtual; uma é apreendida, a outra apreende o sujeito. Essa tensão requer uma resolução, e esse par funcional tensão/resolução declina-se em Céline em diversas esquematizações narrativas e discursivas. Tomemos como exemplo o esquema da degradação: todas as situações em Viagem têm o mesmo devir. Elas compreendem, desde o início, os germes de sua degeneração, mas essa degradação virtual deve ainda se realizar: as coisas desfazem-se, as relações envenenam-se, a morte ameaça, só resta fugir. Um outro exemplo disso é a figura do pulular informe: todas as matérias, todos os conjuntos figurativos, apresentam-se, de início, em sua identidade estável e reconhecível, mas contêm, virtualmente, o próprio princípio de sua desintegração: a rocha torna-se então melado ralo, e as grandes cidades, enormes bouillabaisses.* Isso equivale a dizer que a tensão inicial entre a aparência atual e o aparecer virtual é o próprio modelo de todos os devires no discurso, já que ela define a imperfeição sobre a qual se fundamenta a intencionalidade do discurso. Assim chegamos, para concluir, às seguintes homologações: (1) a aparência é produzida pela apreensão inferencial; (2) o aparecer é produzido pelas apreensões impressivas e semânticas; (3) a estesia é o momento crítico da apreensão impressiva por meio do qual o mundo sensível apresenta-se a nós
* N.T.: Sopa típica francesa, de origem provençal, cuja base são peixes e frutos do mar.
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Ação, paixão, cognição
de uma forma outra. As apreensões cognitivas, que organizam a dimensão cognitiva, têm por correlatos momentos da percepção e da sensação: aparência, estesia, aparecer. Nesse sentido, a síntese sensorial e figurativa fornece o esquema de todas as outras, especialmente o esquema das sínteses actanciais e narrativas. Sugestões de leitura Coquet, Jean-Claude. La Quête du sens. Paris: puf, 1997, pp. 1-18. Courtés, Joseph. Analyse sémiotique du discours. Paris: Hachette, 1991, pp. 69-126. Floch, Jean-Marie. Sémiotique, marketing et communication: sous les signes, les stratégies. Paris: puf, 1990, pp. 126-52. Fontanille, Jacques; Zilberberg, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso/ Humanitas, 2001. (Capítulos “Emoção” e “Paixão”). Geninasca. Jacques. La parole littéraire. Paris: puf, 1997, pp. 59-62; 211-18. Greimas, Algirdas Julien. Du sens ii. Paris: Seuil, 1983, pp. 19-48; 115-33;157-69. ______; Fontanille, Jacques. Semiótica das paixões. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. (Capítulo i). Hénault, Anne. Le pouvoir comme passion. Paris: puf, 1995. Landowski, Éric. Presenças do outro: ensaios de sociossemiótica. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002. Ouellet, Pierre. Poétique du regard: littérature, perception, identité. Montréal/Limoges: Septentrion/Pulim, 2000. Parret, Herman. Les Passions: essai sur la mise en discours de la subjectivité. Bruxelas: Mardaga, 1986. Ricœur, Paul. Tempo e narrativa. Tomo i. Trad. Constança Terezinha Marcondes César. Campinas: Papirus, 1994. ______. Tempo e narrativa. Tomo ii. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1995. ______. Tempo e narrativa. Tomo iii. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997.
Notas M. Proust, No caminho de Swann, trad. Mário Quintana, 9. ed., Porto Alegre/Rio de Janeiro, Globo, pp. 162-352. 2 E. Ionesco, O rinoceronte, trad. Luís de Lima, Abril, São Paulo, 1976, p. 39. 3 P. Éluard, Capitale de la douleur, Paris, Gallimard, 1966. 4 J.-J. Rousseau, Os devaneios do caminhante solitário, trad. Fúlvia M. L. Moretto, 3. ed., Brasília,UnB, 1995. 5 S. Zweig, La Pitié dangereuse, Paris, Grasset, 2002. 6 G. de Maupassant, “O medo”, em Contos da galinhola, trad. José Condé, v. 14, São Paulo, Livraria Martins, 1956, pp. 47-54. 7 J. e W. Grimm, “História do jovem que saiu pelo mundo para aprender o que é o medo”, em Contos de Grimm, trad. David Jardim Jr., Belo Horizonte, Villa Rica, 1994. 8 M. Cazevitz et al., “Astu et Polis: essai de bilan”, em Lalies, n. 7, Paris, Presses de l’École Normale Supérieure, 1989, pp. 279-285. 9 J. Geninasca, La Parole littéraire, Paris, puf, 1997, p. 59. 10 Idem, p. 201. 1
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Semiótica do discurso
M. Proust, À sombra das raparigas em flor, trad. Mário Quintana, rev. Maria Lúcia Machado, 13. ed., São Paulo, Globo, 1996. 12 L.-F. Céline, Viagem ao fim da noite, trad. Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 13 Idem, p. 189. 14 Idem, pp. 341-2. 15 Idem, p. 161. 16 Idem, p. 185. 17 Idem, p. 281. 18 Idem, p. 274. 19 Idem, p. 360. 20 Idem, p. 247. 21 Idem, p. 86. 22 Idem, p. 459. 23 Idem, p. 83. 11
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A enunciação
Concebemos este último capítulo como uma conclusão. De fato, seu fio condutor nos guiará, passo a passo, aos horizontes da cultura como um todo, passando pela noção de práxis enunciativa. No entanto, não é graças à generalização do conceito de enunciação que atingiremos nossos objetivos, mas, ao contrário, graças a uma definição mais precisa do que aquela que se conhece habitualmente. 1. Recapitulação Antes de esboçar o domínio próprio à enunciação, uma recapitulação conclusiva das principais escolhas efetuadas até aqui se impõe. O papel da propriocepção na semiose, o campo de presença e as diferentes lógicas do discurso receberão a devida atenção de nossa parte cada qual a seu tempo. 2. Confrontações Tornar preciso o domínio da enunciação é, em primeiro lugar, distingui-lo de três outros domínios com os quais ele se confunde muito frequentemente: os domínios da comunicação, da subjetividade e dos atos de linguagem. A enunciação surge como ponto de vista diferente do ponto de vista da comunicação sobre a atividade de linguagem e como independente dos efeitos de pessoa e de subjetividade. Ela pode, então, ser definida como uma dupla predicação metadiscursiva que consiste em predicação existencial e assunção, o que a distingue dos atos de linguagem em geral.
Semiótica do discurso
Reexaminar a enunciação segundo uma perspectiva dinâmica edialética implica, na sequência, tratá-la como uma práxis que, graças às duas predicações metadiscursivas próprias à enunciação, pode administrar os modos de presença dos enunciados em discurso. Segundo a perspectiva da práxis enunciativa, o discurso em ato e o sistema subjacente estão em interação, independentemente da distinção entre diacronia e sincronia. Graças à práxis enunciativa, o discurso pode também atualizar as virtualidades do sistema, recuperar formas cristalizadas e potencializadas pelo uso ou inventar outras novas. 4. As Operações da Práxis A sintaxe dos modos de existência fornece o modelo das operações da práxis enunciativa: de um lado, os enunciados estão sujeitos a percursos ascendentes e descendentes projetados no gradiente dos modos de existência; de outro, a instância de discurso é o lugar de diversos “sentimentos de existência” que lhe atribuem essas variações da presença. Essa sintaxe provém de duas grandes dimensões: a dimensão da assunção dos enunciados, mais ou menos intensa, e a dimensão de seu reconhecimento na comunidade dos sujeitos de linguagem, mais ou menos extensa. Ademais, quando ela diz respeito a dois enunciados concomitantemente, dos quais ela manipula as tensões e os modos de coexistência, ela concebe a dimensão retórica do discurso. 5. A Semiosfera A semiosfera, segundo a interpretação que propomos, fornece um modelo para o campo de exercício da práxis enunciativa. Esse campo de exercício é, desse modo, coextensivo à cultura, e os movimentos que nele são observados apresentam-se globalmente como operações de tradução e de difusão.
1. Recapitulação O conjunto das escolhas feitas e das posições adotadas até o momento poderia levar a uma generalização prematura da noção de enunciação. Uma rápida recapitulação nos convencerá disso facilmente e nos levará a redefinir progressivamente o domínio específico dessa noção. 1.1. A instância proprioceptiva A semiose, apreendida segundo a perspectiva do ato que a constitui, foi definida a partir da tomada de posição de uma instância proprioceptiva, que, sob certas condições modais, se torna uma instância enunciante. 256
A enunciação
A tentação de estabelecer uma equivalência entre esse ato, que consiste em reunir os dois planos de uma linguagem, e o ato de enunciação propriamente dito é grande. Mostraremos mais adiante por que e como é preciso resistir a essa tentação, mas já se pode observar que o ato semiótico em geral depende, em primeiro lugar, da sensibilidade proprioceptiva e que nessa perspectiva as duas operações elementares, a visada e a apreensão, são, antes de tudo, operações perceptivas, antes mesmo de serem assumidas por uma enunciação que deitiza, localiza, mensura e avalia. 1.2. O campo de presença Optar pela perspectiva do discurso em ato em um outro nível de análise significa buscar como se pode “fazer signo”, mais do que identificar e classificar as maneiras de “ser signo”. Eis por que a primeira unidade de análise da semiótica do discurso é o campo de exercício da atividade de linguagem. Contudo nós concebemos vários tipos de campos. À primeira vista, o campo de presença perceptivo, o campo tensivo do discurso e o campo de exercício da enunciação podem aparentar ser coextensivos, e suas diferentes definições podem derivar simplesmente da diferença entre domínios de pertinência entre três pontos de vista diferentes. Entretanto, mostrar-se-á que o campo de exercício da enunciação (o domínio da práxis enunciativa), ainda que adote as propriedades de um campo de presença e de um espaço tensivo, é, no entanto, bem mais amplo que esses dois outros campos. Grosso modo, poder-se-ia dizer que o campo do discurso reúne todos os campos de presença suscitados pelas diferentes tomadas de posição da instância de discurso, e que, além disso, o campo de exercício da práxis enunciativa engloba todos os campos de discurso das diversas enunciações particulares que ela convoca. Ademais, é verdade que a enunciação manipula os modos de existência das grandezas que ela convoca para o discurso. Servindo-se assim de seus respectivos graus de presença, ela os situa em uma profundidade discursiva que não pode ser confundida nem com o eixo paradigmático (pois há copresença, e não seleção) nem com o eixo sintagmático (pois há superposição, e não sucessão e combinação). No entanto, se a enunciação se serve da intensidade e da extensão ou da quantidade dessas grandezas discursivas, 257
Semiótica do discurso
não se trata da intensidade e da extensão lato sensu: a intensidade em questão é aquela da força de assunção da enunciação, e a extensão é aquela da capacidade de desdobramento e de declinação figurativa da enunciação. De um ponto de vista paradigmático, o domínio da enunciação seria mais específico do que o domínio da presença em sentido amplo na medida em que ela só manipula variedades particulares da intensidade e da extensão. De um ponto de vista sintagmático, o domínio da enunciação englobaria os campos de presença e os espaços tensivos, já que é justamente a práxis que os põe em comunicação entre si. 1.3. Os regimes discursivos Estando o discurso situado sob o controle de uma instância que orienta e determina sua significação e intencionalidade, os três regimes do discurso parecem também sujeitos à enunciação: (1) a ação, quando ela se torna programação estratégica e recorre à produção de simulacros; (2) a paixão, com a primazia acordada ao surgimento repentino do acontecimento no campo de presença; (3) a cognição, com a gama das diferentes apreensões que ordenam o conhecimento do mundo discursivo em torno de sua instância de referência. Todavia, a expressão “regimes discursivos” indica bem que essas diferentes dimensões do discurso obedecem a regras sobre as quais a enunciação não tem domínio algum. Essas regras e princípios de formação do discurso se impõem a cada enunciação particular e à práxis enunciativa em sentido mais geral. A instância de discurso pode tomar posição em relação às regras de programação da ação, em relação aos efeitos passionais do acontecimento ou em relação às apreensões cognitivas, mas ela não controla as consequências de cada uma dessas tomadas de posição: essas consequências são reguladas pelos regimes próprios às três dimensões do discurso. 2. Confrontações Na história recente das ciências da linguagem, observa-se um curioso embate entre duas grandes tendências. De um lado, temos os herdeiros da tradição 258
A enunciação
europeia, especialmente os de Benveniste, que defendem a necessidade de um componente enunciativo em linguística. Estes, muito frequentemente, limitaramse seja ao desenvolvimento do aparelho formal da enunciação sob a forma de uma enunciação enunciada (atores, espaços e tempos do ato de enunciação representados no enunciado), seja a uma tipologia cada vez mais complexa das instâncias de enunciação (narradores, observadores, atores, leitores-modelo etc.). De outro lado, temos os herdeiros da tradição anglo-saxônica, principalmente a corrente logicista e cognitivista, que pensam poder prescindir dessa noção, isso quando não a ignoram simplesmente. A questão da enunciação é, então, mascarada pela questão da comunicação, reificada sob forma de “situação de comunicação” ou submersa em um componente pragmático da linguagem no qual ela se confunde com os atos de linguagem. Curiosamente, os partidários de ambas as tendências entram em acordo, às vezes, para fazer da enunciação um fenômeno marginal, o próprio terreno das disfunções semânticas, sintáticas e referenciais do discurso: nesse caso a enunciação seria distinguida pela sua intervenção descompassada, atípica ou enigmática. Em geral, o debate entre correntes teóricas é frutífero, mas ele parece se deparar aqui com duas dificuldades, que impedem uma eventual superação dialética das posições em questão. A primeira está ligada ao fato de que a questão da enunciação surge sempre como um acréscimo a uma teoria de base, uma espécie de estágio posterior da própria teoria ou, ainda, uma excrescência mal integrada: de um lado, a linguística da enunciação, de outro, o componente pragmático. A maneira mais simples de resolver essa dificuldade parece ser, como já propusemos, a adoção do ponto de vista da “semiose em ato” e do discurso em ato logo de início. Essa é também a solução adotada por Jean-Claude Coquet, em La quête du sens [A busca do sentido], e por Jacques Geninasca, em La parole littéraire [A palavra literária], cada um a sua maneira. A posição de Oswald Ducrot, que consiste em reintroduzir a argumentação na língua, no sentido de uma “pragmática integrada”, vai nessa mesma direção, ainda que ela atribua mais importância à polifonia e à argumentação do que ao ato de enunciação propriamente dito. A segunda dificuldade reside na sobreposição abusiva entre, de um lado, a enunciação e, de outro, as três noções que lhe são frequentemente associadas: as noções de comunicação, subjetividade e ato de linguagem. 259
Semiótica do discurso
2.1. Enunciação e comunicação O ponto de vista da comunicação é aquele que se interessa pela circulação das mensagens no interior das coletividades ou entre parceiros de uma interação particular. Consequentemente, trata-se de um ponto de vista que instaura a atividade de linguagem em um contexto, em uma situação englobante que não é ela própria tratada como significante e que, portanto, não é considerada como uma linguagem, mas tão somente como a determinação exterior de uma linguagem. Essa situação extralinguística (e extrassemiótica) é de natureza sociológica, institucional ou psicológica e determina o sentido dos discursos e dos enunciados que ela engloba, em particular o sentido das enunciações. Ela o determina, mas não pode nem explicá-lo nem articulá-lo. Já tivemos ocasião de mostrar, no capítulo sobre o discurso, que a redefinição dos limites da própria atividade discursiva e a consideração do “contexto” como uma linguagem tornavam inútil a própria noção de “contexto”. Quando a “situação de comunicação” torna-se, ela mesma, uma linguagem, como propõe Éric Landowski, por exemplo, em A sociedade refletida, estamos diante de discursos sincréticos, que entremeiam de maneira mais ou menos coerente linguagens de diferentes naturezas. Portanto, a perspectiva da semiótica do discurso invalida o ponto de vista da comunicação, ao menos na perspectiva de uma articulação das significações. Além do mais, mesmo na perspectiva de uma pragmática da comunicação, as proposições mais operatórias (o princípio de cooperação, o cálculo das implicaturas, o dialogismo, a polifonia) acabam, na maioria das vezes, por decidir-se por uma “coenunciação” dos discursos, por uma colaboração dos vários parceiros da troca na construção de sua significação. Portanto, elas mesmas invalidam uma concepção da comunicação reduzida à circulação das mensagens em um contexto. Em contrapartida, do ponto de vista da enunciação, não se trata mais da circulação das mensagens em um contexto extrassemiótico de tipo sociopsicológico. Tudo se ordena em torno da posição da instância de discurso, trata-se de construir e de formular essa posição, mas também de aceitá-la, adotá-la, recusá-la, de rechaçá-la ou de deslocá-la. Tanto para o enunciatário como para o enunciador, não se trata mais de fazer circular mensagens, mas de situar-se em relação aos discursos para construir sua significação. 260
A enunciação
2.2. Enunciação e subjetividade A partir de Benveniste, a enunciação foi associada aos efeitos de subjetividade. A inferência feita pela maioria das pessoas poderia se resumir da seguinte forma: se há enunciação, então há sujeito. Se essa enunciação é uma representação simulada no enunciado, então estamos diante de um simulacro enunciado do sujeito; se ela permanece pressuposta pelo enunciado, então estamos diante do “sujeito de enunciação implícito”. Essa inferência está no centro da vulgata da enunciação e leva, no entanto, a análises contraintuitivas: a análise das modalizações epistêmicas, por exemplo, modalidades que introduzem uma distância crítica entre a posição da instância de discurso e o enunciado, leva a tachá-las de “subjetivas”, enquanto, nesse caso, seria, ao contrário, a ausência de tais modalizações, a adesão imediata da instância de discurso a seu enunciado, que deveria ser considerada como “subjetiva”. A noção de subjetividade, de fato, não tem exatamente o mesmo sentido, quer a consideremos do ponto de vista da produção ou do ponto de vista da interpretação. Do ponto de vista da produção, o “sujeito” se expressa exibindo as modalidades de sua posição em relação ao enunciado; por outro lado, do ponto de vista da interpretação, o “sujeito” é tanto mais presente, eficiente, quanto não expressa seus atos e particularidades, pois o enunciatário não tem mais nenhum meio de negociar sua própria posição. Ademais, o que se atualiza na modalização, por exemplo, não é a subjetividade, mas uma atividade enunciativa: graças a uma deiscência de tipo metassemiótico, o discurso reflete-se a si próprio e propõe uma representação das condições e das operações que dirigem a produção do enunciado. Como nós veremos daqui a pouco, a subjetividade deve ser buscada na maneira pela qual a instância de discurso assume essa reflexividade, e não na própria reflexividade. Em parte, Benveniste é ele próprio responsável por essa assimilação, mas indiretamente. Na verdade, quando fala de operador enunciativo, ele o designa em geral pela expressão “instância de discurso”, mas, em seu artigo consagrado ao sistema da pessoa, ele introduz a oposição entre a “pessoa subjetiva” (Ego) e a “pessoa não subjetiva” (não Ego). Essa descrição frequentemente colocada em discussão tornou-se, entretanto, canônica e 261
Semiótica do discurso
comporta dois deslocamentos conceituais notáveis: o primeiro é o deslocamento da instância de discurso para a categoria da pessoa; o segundo é o da pessoa à subjetividade. A instância de discurso engloba a pessoa, que engloba ela própria a subjetividade. São esses os deslocamentos que gostaríamos de submeter a um exame crítico. O primeiro deslocamento não é generalizável. Christian Metz mostrou que a aplicação da categoria da pessoa à enunciação cinematográfica mais complicava do que resolvia os problemas de análise e, por isso, ele preconizou uma enunciação impessoal (o lugar do filme).* Por outro lado, a reflexão sobre a práxis enunciativa conduz a uma concepção impessoal da enunciação: a práxis sendo, por definição, obra de vários actantes de enunciação – ou ainda de grupos, de comunidades inteiras, se não de culturas –, deve ser considerada idealmente como “transpessoal” ou ao menos como “pluripessoal”. A partir disso, parece prudente reservar a categoria da pessoa à descrição da morfologia pronominal e verbal, ao menos nas línguas em que elas estão associadas a essas partes do discurso. Mas há também uma outra razão que desautoriza essa projeção: a enunciação é um conceito que tem caráter universal, enquanto a pessoa é uma formação cultural. A enunciação Egocentrada é típica das línguas indo-europeias, em que é Ego aquele que diz Ego e que se assume como tal na predicação. Em contrapartida, nas línguas asiáticas, e especialmente no japonês, é sabido que o lugar que designamos por Ego é um lugar secundário, estabelecido e designado a partir do lugar de outrem, que é definido, ele mesmo, por sua posição na estratificação social e simbólica. Nesse caso, o referente da enunciação não é mais um centro egoico, mas a estratificação social, que não depende em sentido restrito da categoria da pessoa. Nem é preciso ir tão longe para encontrar um grande número de textos poéticos em que o centro de referência é um Tu obtido não por debreagem a partir do Ego, mas, ao contrário, por embreagem a partir de um mundo impessoal. Na verdade, a transcendência do Eu em relação ao Tu está longe de ser adquirida em discurso. Tudo depende, de fato, da maneira pela qual as relações constitutivas da categoria da pessoa são
* N.T.: No original, “le site du film”.
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A enunciação
manifestadas. Em Appolinaire, por exemplo, o Tu é ora uma projeção a partir do Eu, ora a partir do Ele. A fórmula de Benveniste, “É ‘ego’ que diz ego”,1 retomada e complementada por J.-C. Coquet pela afirmação “[...] é ego que diz ego (esse é o ato linguístico) e que se diz (ou que é dito) ego (esse é o ato lógico-semântico)”,2 figura de fato como um dos mais famosos praxemas enunciativos da cultura indo-europeia (que as próprias glosas teóricas ajudaram a perpetuar). Benveniste havia realmente observado que a pessoa não obedecia, em algumas línguas, a esse princípio de autodesignação subjetiva, mas o fez desqualificando em seguida sua especificidade graças a um argumento que parece, hoje, surpreendentemente especioso: Uma língua sem expressão da pessoa é inconcebível. Pode acontecer somente que, em certas línguas, em certas circunstâncias, esses “pronomes” sejam deliberadamente omitidos; é o caso na maioria das sociedades do extremo oriente, onde uma convenção de polidez impõe o emprego de perífrases ou de formas especiais entre certos grupos de indivíduos, para substituir as referências pessoais diretas. Esses usos, no entanto, não fazem mais que sublinhar o valor das formas evitadas; é a existência implícita desses pronomes que dá o seu valor social e cultural aos substitutos impostos pelas relações de classe.3 Definir o sistema da pessoa nas línguas do extremo Oriente como “usos” de “evitamento” e “substituição” em relação ao sistema indo-europeu é um procedimento ao menos curioso. A prova é que esse sistema arruína a concepção de alocução proposta pelo próprio Benveniste. Segundo ele, o Eu é sempre transcendente em relação ao Tu, pois Eu impõe-se, de início, por autorreferência, o que permite, em seguida, instalar seu alocutário. No entanto, fica claro que a instância de discurso nas línguas do extremo Oriente instaura previamente o outro e, em seguida, define-se apenas em relação a ele. Onde estaria, então, sua “transcendência”? Algumas observações sobre o japonês, em particular, mostram o quanto a concepção de Benveniste é enviesada. A primeira diz respeito ao estatuto dos pronomes como partes do discurso. Em japonês, os pronomes são “palavras nominais” ou partículas demonstrativas utilizadas como pronomes: Watakushi (Eu) tem também como sentido (este mais antigo) “o que é privado, pessoal, íntimo, secreto”, oposto “ao que é público e de interesse geral”. A partícula “wa”, além de designar o tópico da frase, pode designar também o reflexivo “si” (o “self” inglês). Vê-se que as duas expressões têm alguma relação, entre outras coisas, com o egoísmo, a parcialidade ou a arbitrariedade.4 Em suma, os pronomes pessoais do japonês são mais descritivos que dêiticos. Eles fazem referência não diretamente àquele que fala, mas à estratificação social e à posição respectiva dos parceiros no interior da estratificação. Passemos a palavra ao especialista:
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Semiótica do discurso
O superior era concebido como ocupando a posição, ao mesmo tempo, mais distante e mais elevada, – o inferior supostamente como ocupando a posição mais próxima [de ele mesmo], cada vez que intervém como sujeito falante.5 Haguenauer evoca como comprovação de sua tese as expressões meshita (literalmente, “olhos para baixo”) e meue (“olhos para cima”, ainda literalmente), que designam, respectivamente, o inferior (aquele que está abaixo da linha de visão do superior) e o superior (aquele que está acima da linha de visão do subalterno). Portanto, nesse caso o campo pessoal não está centrado, mas estratificado. Ele está organizado segundo uma profundidade na qual o enunciador escolhe ocupar quase sempre, por polidez, o estrato mais baixo, mas de maneira alguma para constituir nele um “centro” de referência. Prova disso é que a metáfora visual utilizada para opor o inferior e o superior suspende o efeito “fonte-alvo” para conservar somente a linha de visão, que atua como a linha de divisão hierárquica no interior da estratificação social. A primeira pessoa, como se viu, remete à esfera privada, e não à subjetividade; ela remete ao “si”, e não ao “mim”. De fato, em vez de ser o centro em torno do qual se organiza a instância de discurso graças, entre outras coisas, à instauração do alocutário, ela seria, ao contrário, um lugar de recolhimento, nas margens de um campo social e público, próprio a esse universo cultural. O privado constróise apenas se opondo ao público, mas as diversas acepções da palavra de primeira pessoa (intimidade, egoísmo, parcialidade, arbitrariedade) mostram que aqui a especificidade do “privado” consiste em determinar uma zona em que as regras exteriores não mais funcionam. Nessa perspectiva, se houvesse uma debreagem, ela seria simétrica àquela observada nas línguas indo-europeias: no lugar de dissociar Eu e não Eu, ela dissociaria, para começar, Ele e não Ele (ou seja, “si”). Se o pronome pessoal de primeira pessoa Watakushi existe em japonês, convém, todavia, usá-lo somente de maneira concessiva ou restritiva de modo que ele pudesse ser traduzido em português como “da minha parte”, “no que me concerne”, “quanto a mim, eu...”,* isto é, sempre para limitar por restrição essa “zona de intimidade” em que as regras sociais correntes não funcionam mais. O japonês não pode exprimir a pessoa senão por meio desses quase-pronomes concessivos. Por vezes, a partícula wa é utilizada especialmente para topicalizar a primeira pessoa, isto é, para reorientar o predicado na direção da pessoa. Assim, o enunciado japonês próprio ao linguajar coloquial feminino, Watashi samishii wa, cujo sentido geral é “me sinto sozinha”, deve ser compreendido mais precisamente como “sabe, eu é que me sinto solitária”. A solução puramente descritiva, que consistiria em dizer que a pessoa e a topicalização estão “amalgamadas”, não é suficiente, pois a topicalização modifica a orientação argumentativa e axiológica da primeira pessoa: ela proíbe, sobretudo, considerá-la como originária e transcendente. * N.T.: No original, “moi, je”.
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A enunciação
Portanto, a predição de base do japonês não daria lugar à assunção de Ego que diz ego. Só chegaríamos à pessoa subjetiva por regressão, por concessão, a partir de um campo social mais abrangente. O sistema pessoal japonês seria baseado em dois princípios: (1) os quase-pronomes pessoais descrevem a esfera do “si” por um gesto de restrição e de exclusão em relação ao domínio público; (2) eles permitem uma distribuição de posições em um campo estratificado verticalmente e relativamente estável, no qual o enunciador deve tomar lugar sem se tornar, para isso, um centro de referência. Portanto, o modelo proposto por Benveniste e retomado pela maior parte dos linguistas deve ser considerado, na perspectiva de uma semiótica das culturas, como um uso entre outros.
O segundo deslocamento ocasionado pela descrição canônica da enunciação a partir de Benveniste é ainda mais danoso, pois introduz na enunciação uma categoria actancial que muda sua natureza. Na verdade, a noção de “subjetividade” remete à distinção entre os diversos actantes transformacionais (sujeito/objeto/destinador/destinatário), enquanto a estrutura actancial da instância de discurso é somente posicional. Segundo a perspectiva de análise que se adota, dessa estrutura actancial podem ser depreendidas somente as seguintes séries: quanto ao campo, centro, horizontes e profundidade; quanto às posições, fonte, alvo, controle, ou, como para Metz, foco e lugar. Portanto, a introdução da noção de subjetividade, se não é insidiosamente inspirada em um pouco de psicologia e filosofia e na crença em alguma interioridade, provoca uma projeção da estrutura posicional da instância de discurso sobre a estrutura transformacional do discurso enunciado. Diante disso, sendo o sujeito um actante de tipo transformacional, a enunciação é tratada como uma transformação que equivale a uma transformação narrativa e que comporta desafios, objeto de valor, inversão de conteúdo etc. Esse ponto de vista é concebível, e até mesmo legítimo, mas não é o ponto de vista do discurso em ato, e sim do discurso realizado, acabado, apreendido a partir do fim do processo. Portanto, com a noção de subjetividade, muda-se de domínio de pertinência e considera-se a enunciação, do mesmo modo como o enunciado, inscrita em um discurso acabado e apreendida retrospectivamente. Por outro lado, seguindo certas proposições de Jean-Claude Coquet, nós já mostramos aqui como se podia passar de um actante posicional qualquer do discurso (actante M0) a um actante sujeito (actante M3 e M4). A questão 265
Semiótica do discurso
da subjetividade e da intersubjetividade deve, então, ser tratada: (1) independentemente da questão da pessoa, que remete a uma esquematização cultural do campo da enunciação, e (2) na perspectiva de uma construção progressiva da identidade modal dos actantes, e não como um substituto da enunciação. A questão da subjetividade deve, particularmente, ser cuidadosamente distinta da questão da tomada de posição da instância de discurso, que se manifesta ela de todas as maneiras e independentemente dos efeitos de pessoa e de sujeito. A partir do momento em que a enunciação, a pessoa e a subjetividade são fenômenos distintos, a identificação da instância de discurso (Quem fala? Quem vê? Quem ouve? etc.) é relegada à esfera de um exercício escolar pouco pertinente do ponto de vista da significação do discurso e sem muito alcance do ponto de vista da enunciação em ato. Na perspectiva de uma didática do texto e da imagem, é útil, de fato, compreender quem fala e quem vê exatamente da mesma maneira que é útil saber qual personagem cumpriu tal ação ou qual outra viu sua situação transformarse: situamo-nos, então, no nível da continuidade e da coesão actoriais, mas sem nenhum ganho para a compreensão dos próprios atos em desenvolvimento. De fato, nesse caso busca-se identificar o(s) ator(es) que corresponde(m) aos actantes pessoais e à subjetividade e esquece-se, ao mesmo tempo, que a enunciação é o lugar de organização de todo o discurso, a instância responsável pelo devir das figuras e, de uma forma mais geral, pelos atos que delas fazem um conjunto significante, sujeito a alguma racionalidade e a alguma axiologia. A questão das operações de enunciação, de sua natureza, dos conteúdos e axiologias sobre os quais elas tratam parece-nos, de fato, pertinente de uma outra forma. Concretamente, por exemplo, em se tratando da análise de um ponto de vista, o fato de saber se é o ponto de vista da personagem ou do autor ideal, de um observador abstrato ou de uma protagonista da ação, só tem o interesse de nos permitir mensurar o grau de engajamento da enunciação na trama do enunciado. O grau de identificação entre os actantes da enunciação e os actantes do enunciado, entre as posições enunciativas e as forças narrativas, fornece, então, a medida da maneira pela qual os actantes do enunciado estão assumidos pelos actantes da enunciação. 266
A enunciação
Em contrapartida, o fato de saber se o ponto de vista é estabelecido por acumulação de aspectos, por somação parcial ou global, por amostragem ou por eleição de uma parte representativa do conjunto, por fixação ou por rotação etc. é uma informação decisiva para poder dispor sobre a forma do conteúdo que ele assim apreende. Essa forma do conteúdo informanos até mesmo sobre a concepção do mundo que determina a escolha do ponto de vista. Poder-se-á, então, decidir em nome de qual valor cognitivo ele age: se procede por acumulação e somação, ele buscará a exaustividade; em contrapartida, se procede por amostragem e seleção, ele almejará a representatividade. E assim por diante... A cada vez, na perspectiva de uma síntese do heterogêneo, uma nova concepção da totalidade e da coerência impõe-se e, consequentemente, impõe-se também uma nova representação da maneira pela qual o mundo faz sentido e faz signo para nós (e pela qual fazemos signo com ele). A tipologia das instâncias de enunciação já teve seus tempos de glória e podemos considerar, hoje, suas contribuições como pontos pacíficos. Seria imprudente continuar nessa direção de trabalho, porque, por um lado, ela pressupõe a confusão entre enunciação, pessoa e subjetividade e, por outro, ela traz o risco da profusão terminológica: se cada vez que uma nova operação é identificada atribui-se a ela uma nova instância, somos conduzidos a acrescentar um novo nome de instância a uma lista que já é longa. A proliferação terminológica não faz avançar sequer um passo o conhecimento. Ela é, por vezes, um mal necessário, mas não seria razoável fazer dela uma meta em si. 2.3. Enunciação e atos de linguagem Quando os filósofos da linguagem, como John Austin, propuseram a distinção entre os enunciados “descritivos” – a narrativa de um acontecimento, por exemplo – e os enunciados “performativos” – a promessa ou injunção que programa o acontecimento –, eles quiseram nos fazer crer que a teoria da linguagem só se preocupara até então com o primeiro tipo de enunciados e esquecera o segundo. Ora, todos sabemos que os filósofos da Antiguidade, seja Platão por ocasião da controvérsia com os sofistas, seja Aristóteles em sua Retórica, já haviam considerado também que a linguagem 267
Semiótica do discurso
não é feita somente para descrever o mundo, mas também para transformálo, para agir sobre as coisas e sobre outrem. Essa perspectiva “performativa” da linguagem fora certamente esquecida, mas somente, e provisoriamente, pelos engenheiros da informação e técnicos da comunicação, que consagraram todos os seus esforços à “circulação” das mensagens e da informação, ou pelos lógicos, ocupados demais com o valor referencial de suas proposições. Hoje, até mesmo o conceito e os procedimentos de “planificação da informação” não podem prescindir de uma representação explícita do destinatário, de sua competência, de suas expectativas, e dos percursos de ação que se procura fazê-lo realizar, ou que se procura otimizar por intermédio de uma informação programada. Portanto, não se pode imaginar comunicação humana sem influência, sem ação de um dos parceiros sobre os outros; não se podem conceber a enunciação e o discurso sem levar em conta sua eficiência e sua ação sobre as situações que eles evocam. Enfim, a manipulação e a ação estão inextricavelmente associadas à predicação. Diante disso, como fazer a diferença entre a enunciação e a ação, entre a enunciação e a manipulação? Já que dispomos de uma teoria da ação, da paixão e da cognição, o que temos a fazer com uma teoria da enunciação? O que há ainda de característico à noção de enunciação? De fato, seja sob a forma de atos de programação, de atos de manipulação passional ou de apreensões e representações cognitivas, os regimes discursivos são suficientes, em geral, para dar conta do conjunto dos atos de linguagem. Há um regime, entretanto, que escapa aos demais regimes, a predicação: o sujeito narrativo pode seduzir, influenciar, persuadir, comandar um outro sujeito narrativo, mas ele não pode predicar a sedução, a influência, a persuasão ou a injunção, salvo se lhe dão a palavra, e, nesse caso, trata-se, na verdade, de uma delegação de enunciação. A predicação é uma propriedade intrínseca da enunciação e permite lançar luz sobre a especificidade dos atos de enunciação, sobre o pano de fundo dos atos de linguagem em sentido amplo. Primeiramente, a enunciação assere o enunciado: algo existe, algo acontece, algo está presente. A asserção é o ato de enunciação pelo qual o conteúdo de um enunciado advém à presença, pelo qual é identificado como estando no 268
A enunciação
campo de presença do discurso. Em outras palavras, a asserção é o ato pelo qual a instância de discurso “faz ser” e “torna presente”. Foi assim que, parafraseando Merleau-Ponty (ver capítulo “O discurso”), já redefinimos a enunciação: enunciar é tornar algo presente a si com a ajuda da linguagem. Em seguida, a enunciação assume a asserção: algo está presente para aquele que enuncia; algo acontece em relação a ele, no campo de presença em que ele é o ponto de referência; algo advém em relação à posição da instância de discurso, e afeta essa posição ou o coage a reafirmá-la. Eis por que a enunciação pode ser considerada em duas perspectivas complementares: (1) A asserção, conduzindo a uma predicação existencial, diz respeito, portanto, à presença dos enunciados e modifica o campo de presença do discurso. Desse modo, deduz-se facilmente que o ato de enunciação por excelência é aquele que situa o enunciado nesse campo e que lhe atribui um modo de existência, isto é, um grau de presença. Assim, atuando sobre a intensidade e a extensão dessa presença, a predicação existencial tratará um enunciado como realizado, outro como virtualizado, outro ainda como potencializado etc. (2) A assunção é autorreferencial: para engajar-se na asserção, para assumir a responsabilidade pelo enunciado, para apropriar-se da presença instaurada, a instância de discurso deve relacioná-los a ela mesma, à sua posição de referência e ao efeito que eles produzem em seu corpo. Esse ato de assunção é, de fato, o ato pelo qual a instância de discurso faz conhecer sua posição em relação ao que advém em seu campo. Contudo, ao mesmo tempo, a predicação assuntiva é uma outra articulação da presença, complementar à predicação existencial. De uma certa maneira, trata-se de fato da presença em relação ao outro, presença da instância de discurso em relação àquilo que advém, presença em relação àquilo que surge no campo e que não é ela mesma. Eis por que ela se expressa também em intensidade – o que os pragmaticistas chamam de força ilocutória, a força de engajamento no ato de predicação. Ela se expressa também em extensão – é o 269
Semiótica do discurso
alcance dessa assunção que provocará no discurso verbal, por exemplo, um deslocamento didático, uma “tematização” ou uma “ênfase”. Esses dois níveis da predicação têm uma propriedade em comum: os atos metadiscursivos. Na verdade, a enunciação é não o próprio ato de linguagem, mas a propriedade da linguagem que consiste em manifestar essa atividade. Examinemos, por exemplo, a predicação existencial: ela não se confunde com a referência. O enunciado pode ser considerado como algo que faz referência a uma realidade não linguística: a sequência É uma árvore pode ser considerada como um enunciado que faz referência a uma árvore pertencente ao mundo natural, mas a enunciação assere a presença da mesma figura no campo do discurso e enquanto ser de linguagem. É uma árvore significa, então, no plano metadiscursivo, que é intrínseco à enunciação o seguinte: Enquanto ser de linguagem, a árvore de que se trata surge no campo do discurso. Do mesmo modo, a predicação assuntiva faz referência à presença da instância de discurso, mas à sua presença enquanto ser de linguagem, de certa forma independentemente do ser do mundo singular que lhe é provisoriamente equivalente. Em L’Énonciation impersonnelle ou le site du film [A enunciação impessoal ou o lugar do filme], Christian Metz, obrigado a ultrapassar as concepções teóricas derivadas das morfologias linguísticas da enunciação, também chega a definir a enunciação como uma “metalinguagem”. Essa é também a posição de Greimas e Courtés, no Dicionário de semiótica, que opõem a metalinguagem descritiva e não científica da enunciação à metalinguagem científica da própria teoria semiótica. A enunciação é uma metalinguagem “descritiva”, pois, predicando o enunciado, explicita sua própria atividade, codifica-a, fazendo dela um acontecimento sensível ou observável. A enunciação é o lugar em que o discurso declara o que advém (grandezas, atos, acontecimentos) em seu próprio campo. Para concluir, a distinção a ser feita entre a enunciação e os atos de linguagem não é fácil, pois parece ir contra as intuições mais correntes. O estatuto metadiscursivo que lhe atribuímos permite ao menos compreender por que ela não pode ser confundida com eles. No entanto, essa distinção é necessária para explicar como o discurso pode acolher, entre outras coisas, uma estrutura 270
A enunciação
dêitica ou um componente modal: a primeira, derivada da autorreferência característica da predição assuntiva, e a segunda, da atribuição dos modos de existência aos enunciados convocados no discurso, característica da predicação existencial. A autorreferência está no próprio princípio da referência dêitica, já que, postulando uma relação dêitica, a instância de discurso remete à sua própria posição. Os modos de existência estão no centro da modalização, uma vez que as diferentes modalidades são deduzidas diretamente dos quatro principais modos de existência (ver capítulo “Os actantes”). 3. A Práxis Enunciativa Os esclarecimentos feitos até agora permitem tornar mais preciso o que se entende atualmente pela expressão práxis enunciativa, conceito introduzido em semiótica no final dos anos 1980 por A. J. Greimas, retomado em Semiótica das paixões e, em seguida, desenvolvido por Denis Bertrand. A práxis enunciativa, na verdade, não é a práxis semiótica lato sensu. Significar é um ato; discorrer, um conjunto de atos, um feixe e um emaranhado de operações dos quais a enunciação só assume aquilo que concerne à presença, seja à presença do enunciado, seja à presença da instância de discurso. Portanto, a práxis enunciativa está particularmente implicada no aparecimento e no desaparecimento dos enunciados e das formas semióticas no campo do discurso, ou no acontecimento que constitui o encontro entre o enunciado e a instância que o assume. Todas as outras operações, todos os outros atos, dependem dos regimes respectivos da ação, da paixão e da cognição, e não têm acesso a essa dimensão metadiscursiva que é intrínseca à enunciação. As pessoas são livres para ampliar o conceito de enunciação como quiserem, mas correm o risco de fazer dele uma mera repetição da noção de semiose e um parassinônimo inútil da noção mais geral de discurso em ato. A práxis enunciativa administra essa presença de grandezas discursivas no campo do discurso: ela convoca ou invoca no discurso os enunciados que compõem o campo. Ela os assume mais ou menos, ela lhes atribui graus de intensidade e uma certa quantidade. Ela recupera formas esquematizadas pelo uso ou, ainda, estereótipos e estruturas cristalizadas. Ela as reproduz tais como são ou as desvirtua e lhes fornece novas significações. Ela também 271
Semiótica do discurso
apresenta outras formas e estruturas, inovando de forma explosiva, assumindo-as como irredutivelmente singulares ou propondo-as para um uso mais amplamente difundido. Definir a enunciação como uma dupla predicação (existencial e assuntiva) que incide sobre a copresença recíproca do enunciado e da instância de discurso e afirmar que é a práxis enunciativa que administra a presença em discurso equivale a dizer que a enunciação, tal qual a definimos, só pode ser uma práxis cuja substância consiste essencialmente nas duas grandes dimensões da presença, a intensidade e a extensão. Portanto, a noção de práxis enunciativa comporta algumas implicações que convém agora apresentar: (1) Ela não é a origem primeira do discurso. Ela pressupõe algo diferente da atividade discursiva (o sistema da língua, mas também o conjunto dos gêneros e tipos de discursos ou os repertórios e as enciclopédias de formas próprias a uma cultura). Ela supõe também uma história da práxis, dos usos, que seriam práxis anteriores assumidas por uma coletividade e estocadas na memória. A semiótica inspirada nos trabalhos de Greimas escolheu dispor os elementos do sistema subjacente sob a forma de um percurso gerativo, constituído de vários níveis que se deduzem uns dos outros por pressuposição: as estruturas narrativas pressupõem os enunciados de junção, que pressupõem igualmente as estruturas elementares. No entanto, o percurso gerativo da significação é apenas um simulacro idealizado da competência enunciativa. Ele permite organizar as estruturas virtuais de que a instância de discurso dispõe no momento de enunciar. Todavia, na análise concreta dos discursos, ele pode servir no máximo de quadro formal de referência para a descrição dos atos de enunciação, pois não indica como atua a enunciação, ele indica somente (e parcialmente) a partir de que e sobre o que ela intervém. O percurso gerativo seria, de uma certa maneira, o simulacro do “modo de estocagem” dos componentes do sistema e dos produtos do uso, e não o simulacro de sua manifestação. (2) Por outro lado, o sistema também não pode ser considerado como a origem do discurso. A noção de “apropriação individual da língua”, 272
A enunciação
introduzida por Benveniste para definir a enunciação, não é completamente satisfatória, pois ela oculta o fato de que o sistema (a língua) é, ao contrário, o produto esquematizado dos usos e, consequentemente, da acumulação da práxis. Em suma, para compreender o funcionamento da enunciação é preciso admitir que ela não se limita a explorar o sistema em estoque, mas contribui a remodelá-lo e colocá-lo em devir. Tais considerações supõem, é claro, que se supere uma concepção estritamente individual e pessoal da enunciação, já que os discursos só podem contribuir ao devir do sistema se a enunciação individual e a enunciação coletiva não forem separadas, se elas forem consideradas como partes de um mesmo conjunto em devir; (3) Portanto, a perspectiva da práxis enunciativa é interativa. Em termos topológicos, ela extrai formas de um espaço de esquematização para, por sua vez, modificá-las e alimentá-las. Em termos temporais, ela ultrapassa a oposição entre sincronia e diacronia, já que mantém o elo entre, de um lado, um determinado estado sincrônico e, de outro, todos os estados sincrônicos anteriores e posteriores. Se há leis na práxis enunciativa, elas são antes pancrônicas que acrônicas (o sistema é, por definição, acrônico; a práxis, pancrônica). Em termos de presença – isto é, em relação, ao mesmo tempo, aos aspectos espaciais e temporais –, a práxis enunciativa administra, entre outras coisas, o modo de existência das grandezas e dos enunciados que compõem o discurso: ela os apreende no estágio virtual (enquanto entidades pertencentes a um sistema), ela os atualiza (enquanto seres de linguagem e de discurso), ela os realiza (enquanto expressões), ela os potencializa (enquanto produtos do uso) etc. Os modos de existência, dos quais a práxis administra a distribuição e a variação, dizem respeito diretamente às relações entre o sistema e o discurso, já que o sistema é por definição virtual, ao passo que o discurso visa a atualização. Portanto, a reflexão sobre a práxis enunciativa deveria desenvolver-se em duas direções: (1) O exame das operações que produzem tipos, que os reativam e os recusam, que produzem formas inovadoras e que as esquematizam. A práxis enunciativa, 273
Semiótica do discurso
manipulando os modos de existência, adquire, de um lado, uma dialética de criação e de sedimentação e, de outro, concorre para a formação da dimensão retórica dos discursos (os topoi, as figuras, os tropos e a argumentação); (2) A definição de um campo de exercício da práxis. A práxis é exercida em um campo, o campo do discurso, que pode ser provisoriamente definido como um domínio espaço-temporal. É possível distinguir, no processo semiótico, várias fases aspectuais conforme a significação seja “emergente”, “em processo” ou “concluída”. Essas três fases servem, então, de princípio de declinação, segundo o qual o campo tomará três formas diferentes: a. Ao longo da fase de emergência, o campo perceptivo é articulado por intensidades sensíveis e afetivas, por extensões e quantidades perceptivas. As primeiras articulações do campo do discurso são as valências (intensivas e extensivas). Trata-se, para sermos mais precisos, de um campo de presença. b. Ao longo da segunda fase, aquela do discurso em ato propriamente dito, a fase da instauração das formas discursivas, o campo do discurso é um esquema ou uma combinação de esquemas discursivos. Na verdade, é nessa segunda forma do campo do discurso que podem ser esquematizadas as fenomenologias subjacentes e em que se formam, consequentemente, as configurações propriamente semióticas. Portanto, é também nessa segunda metamorfose do campo discursivo que valores tomam forma. Trata-se, nesse caso, do campo esquemático. c. Ao longo da última fase, a fase do discurso enunciado e acabado, o campo do discurso torna-se uma rede de diferenças, um espaço categorizado, discretizado. Estamos diante, assim, do campo diferencial. Logo, o campo do discurso declina-se em três fases: o campo de presença, o campo esquemático e o campo diferencial. No entanto, além do campo do discurso é preciso imaginar um domínio espaço-temporal que seria comum ao sistema e aos discursos, um domínio que, a cada enunciação particular, se reduz a um campo específico de presença, mas que não pode ser confundido com a soma de todos os campos de presença possíveis. Assim como o discurso não pode ser considerado a soma de todos os enunciados que contém, a práxis não pode ser definida 274
A enunciação
como a soma de todos os discursos que a manifestam. Na verdade, o domínio da práxis é também o domínio da memória cultural e dos esquemas semióticos, e também o domínio dos discursos singulares. O modelo da semiosfera, emprestado de Lotman, vai nos fornecer uma boa aproximação desse domínio, que é aquele da experiência semiótica no interior de uma cultura. 4. As Operações da Práxis 4.1. As tensões existenciais Para que em um mesmo discurso coabitem grandezas de estatutos diferentes, elas devem derivar de modos de existência igualmente diferentes: a copresença discursiva não se reduz à coocorrência. Os modos de existência – o virtualizado, o atualizado, o potencializado e o realizado – convertem, de certa forma, a copresença em uma espessura discursiva e projetam articulações modais sobre o campo do discurso. Se representarmos o campo como um domínio dotado de horizontes, os quatro modos de existência seriam distribuídos como no esquema que segue:
Portanto, o ato produtor do discurso de significação apresenta-se, a princípio, como uma tensão entre o virtual (o que está fora do campo do discurso) e o realizado (o centro do campo do discurso), passando pela 275
Semiótica do discurso
mediação do modo atualizado (a passagem da fronteira). Além disso, uma outra tensão vem à tona, aquela que leva do modo realizado ao modo virtualizado, passando pelo modo potencializado (a passagem da fronteira no sentido contrário). Aliás, é preciso dizer que, segundo a perspectiva do discurso em ato que nós definimos como o campo esquemático – o campo do discurso propriamente dito –, não se pode voltar ao modo virtual estritamente falando: sair do campo esquemático é adotar uma posição que está ainda definida em relação a esse campo, não é voltar às estruturas virtuais do sistema. Eis por que, seguindo essa direção, se parte do modo virtual e, seguindo a outra, só se atinge o modo virtualizado. A que correspondem esses diferentes modos de existência? O modo virtual, no sentido próprio do termo, é o modo das estruturas de um sistema subjacente, da competência formal disponível no momento da produção do sentido. O modo atualizado é aquele das formas que advém no discurso e das condições para que elas ali advenham: a atualização de um cromatismo em uma imagem, por exemplo, compreende o conjunto das tensões e dos contrastes nos quais ele toma parte, devido a sua coexistência com os cromatismos vizinhos. O modo realizado é justamente o modo pelo qual a enunciação faz as formas do discurso encontrarem-se com uma realidade, realidade material do plano da expressão, realidade do mundo natural e do mundo sensível no caso do plano do conteúdo. O movimento inverso é aquele próprio à dimensão retórica dos atos de discurso: uma forma é considerada potencializada quando sua difusão ou seu reconhecimento são tais que ela pode figurar como tópos do discurso (tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações). O modo virtualizado (nunca voltamos ao virtual propriamente dito, pois estamos ainda no discurso em ato) é aquele das grandezas que servem de segundo plano ao funcionamento das figuras do discurso: o ato semiótico consiste, então, em realizar uma figura, em remeter uma outra figura ao estado virtualizado e em colocá-las em interação de modo que, no momento da interpretação, o enunciatário seja conduzido a ir e vir de uma figura à outra. As operações da práxis podem ser consideradas a partir de dois pontos de vista diferentes: do ponto de vista do devir do objeto – o objeto sendo aqui uma grandeza semiótica qualquer, o produto do ato significante, um 276
A enunciação
enunciado – ou do ponto de vista do devir dos sujeitos – os sujeitos sendo, no caso, os parceiros da interação semiótica. 4.2. O devir existencial dos objetos semióticos O devir do objeto é regulado pelos atos da práxis, considerados como operações que atuam sobre seu modo de existência. O primeiro percurso, aquele que explora a tensão entre o modo virtual e o modo realizado, será chamado de ascendente, na medida em que ele “sobe” em direção à manifestação e que ele almeja atingir o centro de referência do discurso, a instância realizante. O segundo percurso, aquele que explora a outra tensão e que se dá entre o modo realizado e o modo virtualizado, será chamado de descendente (ou decadente), na medida em que ele volta em direção ao sistema, cristaliza as formas vivas em estereótipos, em praxemas, e alimenta, em suma, a competência dos sujeitos da enunciação graças aos produtos dos usos mais típicos. O percurso ascendente, segundo o qual as formas significantes são convocadas com vistas à manifestação, é analisável em dois atos diferentes: (1) A fase Virtual Atualizado [V A] representa a emergência de uma forma. É a fase da inovação; (2) A fase Atualizado Realizado [A R] descreve o aparecimento de uma forma. Nela, a forma recebe uma expressão e um estatuto de realidade que lhe permite fazer referência; O percurso descendente, segundo o qual as formas significantes são tornadas implícitas, memorizadas, tipificadas ou ainda apagadas e esquecidas, compreende também duas fases: (3) A fase Realizado Potencializado [R P] é a condição do declínio de uma forma enquanto forma viva e inovadora e descreve, consequentemente, sua entrada no uso e sua fixação enquanto praxema potencialmente disponível para outras convocações.
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(4) A fase Potencializado Virtualizado [P V] descreve o desaparecimento de uma forma e sua diluição nas estruturas virtuais subjacentes ao exercício de uma prática significante. Na perspectiva da dimensão retórica do discurso, em que acontecem as principais transformações do uso e as interações do discurso com o sistema do qual ele se alimenta, é preciso levar em consideração a manipulação concomitante de, ao menos, duas grandezas ou de dois enunciados. Consequentemente, nesse caso a práxis atuará globalmente em ao menos duas grandezas ao mesmo tempo, derivando cada uma de um modo de existência. O ato semiótico rebaixa uma forma para promover outra; dois modos de existência concorrentes são modificados de forma solidária. Portanto, a práxis compreende ao menos um ato de orientação ascendente e um ato de orientação descendente. A tipologia do fazer semiótico torna-se, então, calculável: (1) [A R] e [P V]: o aparecimento de uma forma correlacionada ao desaparecimento de uma outra constitui uma revolução semiótica. A clássica comutação é um exemplo disso. No domínio visual, o famoso exemplo de Wittgenstein, a figura do “pato-coelho” apresentado em suas Investigações filosóficas deriva estritamente dessa operação: o aparecimento do coelho acarreta o desaparecimento do pato, e vice-versa; (2) [V A] e [R P]: a emergência de uma forma correlacionada ao declínio de uma outra é uma distorção semiótica. Os tropos vivos são bons exemplos disso, sejam eles verbais ou visuais, já que põem em concorrência uma forma atualizada (o conteúdo figurante e percebido) e uma forma potencializada (o conteúdo reconstituído, conceitual ou parafrástico); (3) [V A] e [P V]: a emergência de uma forma combinada ao desaparecimento de outra é uma remanejamento semiótico, que afeta as relações entre os primitivos culturais e o sistema. Por exemplo, toda operação que tem por objetivo reativar a combinatória virtual em um estereótipo deriva dessa transformação. Alguém que afirme estar “matando
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cachorro a grito” enquanto vocifera com seu cão está efetuando um remanejamento semiótico;* (4) [A R] e [R P]: o aparecimento de uma forma combinada ao declínio de outra é uma flutuação semiótica. Isso ocorre, sobretudo, quando duas isotopias ligadas por uma metáfora são manifestadas alternadamente na superfície textual. Sua alternância supõe, então, que a isotopia figurante vá e venha entre atualização e realização, e a isotopia figurada, entre potencialização e realização. O caso da “imagem na imagem” é um exemplo corriqueiro de flutuação semiótica: quando fixamos a atenção na imagem inserida, encaixada, a imagem de base não é perdida de vista, ela permanece potencialmente disponível. Recapitulemos. A práxis enunciativa, considerada como uma composição de atos ascendentes e descendentes e apreendida do ponto de vista do devir do objeto, pode adotar quatro estratégias diferentes, definidas como quatro transformações tensivas entre estados concorrentes. Assim, obtemos globalmente a seguinte rede:
4.3. O devir existencial da instância de discurso Os modos de existência e as tensões existenciais advêm somente no campo de uma instância de discurso, subtendido pelo campo de presença de uma instância sensível e perceptiva, em relação com outras instâncias. Assim, os modos de existência são sempre modos de existência para alguém * N.T.: O exemplo original trata de alguém que encenasse a expressão “être sur les dents” (“estar nos dentes”, literalmente) – que significa, na verdade, estar muito tenso (por estar em alerta, sobrecarregado ou cansado) – “sob a forma de uma verdadeira acrobacia”.
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e situados em algum lugar. Portanto, em se tratando dos graus de presença da enunciação, é preciso levar em conta o fato de que essa presença é uma presença para instâncias – corpos – que a ela são sensíveis e que por ela são afetadas, e que, consequentemente, vivenciam emoções, e, de uma forma mais geral, variedades diferentes do sentimento de existência. As duas principais dimensões do campo esquemático que controlam, justamente e por definição, as variedades do efeito de presença nos darão aqui uma ajuda preciosa. Essas duas dimensões são, no caso, aquelas da intensidade da assunção e da extensão do reconhecimento. A presença da instância de discurso em relação aos enunciados mensura-se, de fato, nestas duas direções: a primeira é da ordem da intensidade, pois ela obedece à lógica das forças; a segunda, da ordem da extensão, pois obedece à lógica dos lugares. A intensidade da assunção caracteriza a intensidade do elo que une o sujeito e sua produção. Esse “elo” é empático na medida em que ele é mais forte se o sujeito se reconhece em sua produção. A esse respeito, é preciso observar que a assunção é uma dimensão indispensável das tensões existenciais no discurso. Por exemplo, conforme seja forte ou fraca, é a assunção que nos informa se uma figura foi proposta ou simplesmente mencionada, se é preciso tomá-la ao pé da letra ou com sarcasmo, ou, ainda, se é preciso compreendê-la como uma antífrase ou ironia. A extensão do reconhecimento concerne, ao mesmo tempo, ao número dos actantes da enunciação e à difusão das formas significantes implicadas. A repetição de uma forma no uso não deve ser considerada objetivamente como uma quantidade dos próprios objetos semióticos, mas, sim, como a quantidade das ocorrências, ou seja, de fato como a recorrência das enunciações que a põem em cena, como a quantidade e a frequência da sua assunção por instâncias de discurso. Passa-se, então, da quantidade dos objetos à estrutura individual ou coletiva das instâncias da presença. Em uma perspectiva mais abrangente, é preciso recordar que a práxis é encarregada da regulação global, em diacronia e em sincronia, dos diferentes modos de existência das grandezas das quais os discursos lançam mão. Essa regulação comporta, tanto na tradição linguística como nas semânticas cognitivas mais atuais, uma condição intersubjetiva, assim como condições de iteração e de tipificação. A condição intersubjetiva é central em Benveniste 280
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de tal modo que a iteração das formas não tem nenhum valor se, por exemplo, a sanção dos alocutários não a sustenta. Sem a partilha intencional que a intersubjetividade proporciona, a frequência de emprego de uma forma é somente pura repetição objetiva e insignificante: a formação e o desaparecimento de uma norma baseiam-se nesse princípio. Os sujeitos que tentam fazer evoluir a norma não podem esperar lograr sucesso se não encontram um auditório, se não suscitam o horizonte de expectativa que transformará sua prática em uma verdadeira linguagem. Generalizando um pouco, seríamos inclinados a considerar que é a troca social, a circulação dos objetos semióticos e dos discursos no interior das culturas e das comunidades, que conserva ou que rejeita os usos inovadores ou cristalizados e que transforma de alguma maneira as criações do discurso em formas canônicas. A frequência de emprego é sustentada pela sanção intersubjetiva, e a “saliência” perceptiva de um protótipo depende da unanimidade de um número suficiente de sujeitos. Nesse caso, a intensidade da assunção e a extensão do reconhecimento evoluem na mesma direção e fortalecem umas às outras. Portanto, pode-se falar aqui em correlação direta entre a intensidade e a extensão. Essa correlação direta assegura o valor de troca de uma forma. Contudo, pode-se perfeitamente encontrar evoluções em que a recorrência de uma forma dessemantiza seu conteúdo e esgota seu valor. Quando um tropo se “lexicaliza” (como em “beber um copo”), ele é totalmente dessensibilizado, esquecido enquanto tropo. Do mesmo modo, na imagem, os sistemas semissimbólicos que produzem o efeito de profundidade (por exemplo, na equivalência: pequeno : grande :: distante : próximo) não são mais percebidos enquanto tais. A “inflação” discursiva corrói, assim, o valor de uso de uma forma. Inversamente, na fase de inovação, quando uma forma inovadora faz seu aparecimento, ela é pouco difundida, mas está investida do impacto explosivo de uma forte assunção e, portanto, de um valor de uso intacto. Como a intensidade e a extensão evoluem em razão inversa uma em relação à outra, essas duas possibilidades assinalam aqui uma correlação inversa entre essas duas dimensões. Dito isso, é possível propor uma tipologia das operações da práxis semiótica do ponto de vista do devir das instâncias de discurso, uma tipologia que 281
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qualifica a atitude da instância de discurso em relação aos enunciados que ela manipula. Na verdade, o cruzamento das duas dimensões elementares da presença, que são a intensidade da assunção e a extensão do reconhecimento, engendra várias posições possíveis, que nós identificamos assim: (1) A correlação direta define as duas operações sobre o valor de troca: a amplificação e a atenuação. A amplificação instaura uma forma no uso de modo que a força de assunção é fortalecida pela extensão do reconhecimento. Portanto, a amplificação é um percurso que conduz da adoção de uma forma a sua integração. A atenuação descreve o processo inverso: a enunciação “não acredita mais” em uma forma, ela não a assume mais, ela sai pouco a pouco do uso. Portanto, o percurso da atenuação conduz do uso vivo à obsolescência de uma forma. (2) A correlação inversa define duas operações sobre o valor de uso: a somação e o desdobramento. A somação impõe uma forma, por meio de uma assunção forte, no lugar de um reconhecimento bem fraco. Portanto, ela pode conduzir da difusão à revivificação de uma forma. O desdobramento, em contrapartida, difunde um uso, fazendo-o perder sua força de assunção. Portanto, o desdobramento é um percurso que vai da formação de uma forma inovadora a seu desgaste. Isso nos dá os quatro tipos seguintes:
5. A Semiosfera Não podemos expor aqui toda a teoria da semiosfera de I. Lotman, até porque pretendemos utilizar tão somente seu princípio de base. A semiosfera é o domínio no qual os sujeitos de uma cultura experenciam a significação. A 282
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experiência semiótica na semiosfera antecede, segundo Lotman, a produção dos discursos, pois ela é uma de suas condições. A semiosfera é, antes de tudo, o domínio que permite a uma cultura definir-se e situarse para poder dialogar com outras culturas. É também um campo cujo funcionamento dialógico tem por principal tarefa regular e resolver as heterogeneidades semioculturais. Lotman antecipa várias propriedades estritamente homólogas das propriedades do campo discursivo: (1) a semiosfera, centrada sobre o nós (a cultura, a harmonia, o interior) e excluindo o eles (a barbárie, a estranheza, o caos, o exterior), é limitada por fronteiras; (2) incessantes superposições e transposições ocorrem entre o centro e a periferia, entre o interior e exterior. Desse ponto de vista, a heterogeneidade das grandezas que ocupam o campo é dupla: heterogeneidade categorial, de um lado, e heterogeneidade existencial, de outro. A primeira compromete a unidade e a coerência do campo, mas a segunda, ao atribuir a cada grandeza um modo de existência diferente, restaura, se não uma coerência global, ao menos uma certa congruência e torna possível sua copresença. A heterogeneidade categorial suscita, de algum modo, um conflito que a heterogeneidade existencial e a concomitância de vários estágios de desenvolvimento vêm regular. Nós já examinamos as operações da práxis que tratam dos modos de existência, portanto, ocupemo-nos agora da superposição de várias versões das mesmas grandezas semióticas. Em Lotman, os movimentos e as deformações da semiosfera tomam a forma de um conjunto de traduções, de processos de difusão de formas e de mecanismos pelos quais as diferentes culturas assumem e transformam as contribuições exteriores. O que é mais notável na teoria da semiosfera é a classificação dos tipos de “traduções” e de difusão que Lotman propõe. De fato, ele descreve o devir de uma contribuição por meio das diversas metamorfoses que a integração a uma nova cultura lhe impõe. E isso em quatro etapas: a. A contribuição exterior é percebida como explosiva e singular, sobrevalorizada como prestigiosa ou inquietante. Ela se beneficia, consequentemente, de uma axiologia ambivalente: positiva quanto à surpresa ou ao interesse que suscita e negativa quanto a sua força subversiva ou distintiva em relação à cultura hospedeira; 283
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b. A contribuição exterior é imitada, reproduzida e transposta nos termos do “próprio” e do “nosso”, o que lhe permite ser difundida e integrada em todo o campo de discurso de maneira que ela perca todo seu fulgor. Ela perde, então, tanto seu caráter surpreendente quanto seu caráter inquietante; c. A contribuição exterior não é mais percebida como estrangeira, sua origem é até mesmo contestada, retiram-lhe tudo que lhe é específico, ocultam-na para melhor assimilá-la à cultura hospedeira. O domínio exterior conserva aqui toda a sua especificidade e sua singularidade, e parece tão profundamente confuso, falso, não pertinente, quanto mais sucesso obtémse na assimilação completa da forma dele emprestada; d. Por fim, a contribuição exterior que se tornou irreconhecível como tal é erigida como norma universal e proposta, em compensação, não somente nos limites do domínio interior, mas também nos domínios exteriores como modelo* de toda a cultura, como signo da civilização por excelência. Seja no âmbito da cultura como um todo ou de um discurso considerado como o vetor de uma mudança cultural, a práxis enunciativa estaria baseada, de acordo com Lotman, em um amplo processo de paráfrase e tradução. No entanto, a exploração que propomos desse processo baseia-se mais particularmente nas propriedades de campo que ele coloca em evidência: os movimentos de atualização e de potencialização das formas na passagem da fronteira da semiosfera afetam, de fato, principalmente a intensidade e a quantidade de sua recepção e difusão. Portanto, reencontramos no âmbito do campo cultural como um todo as questões da força de assunção e da extensão do reconhecimento. Um exame mais atento das propriedades semânticas dos diferentes tipos de “tradução” fornece-nos agora seu esquema. Esse paradigma das formas de diálogo entre campos semióticos compreende de fato: (1) tensões entre a abertura do campo, caso (A) e (D), e o fechamento do campo, casos (B) e (C); (2) tensões entre uma intensidade afetiva forte (intensidade da percepção e da recepção), casos (A) e (D), e uma intensidade fraca, casos (B) e (C); * N.T.: No original, “parangon”.
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(3) tensões que incidem sobre a extensão e a quantidade, que é grande e está em expansão nos casos (B) e (D), e é restrita e está em concentração nos casos (A) e (C). Consequentemente, a práxis atua em duas dimensões essenciais: a intensidade, de um lado, e a quantidade, de outro. Portanto, seu campo de exercício, a semiosfera, acolhe as contribuições e transforma-as em quatro fases definidas como: (1) tipos A e B: a intensidade e a extensão evoluem em razão inversa uma da outra. Em A, a irrupção explosiva da contribuição exterior engendra um afeto intenso, mas sem extensão. Em B, a difusão cumpre seu papel, e a contribuição exterior é, ao mesmo tempo, domesticada, negociada, diluída e integrada: o campo inteiro é afetado por ela, mas fracamente; (2) tipos C e D: a intensidade e a extensão evoluem na mesma direção, conjuntamente. Em C, tanto a extensão como a intensidade estão no grau mais baixo. Em D, a amplificação – enfática, conquistadora e normativa – cumpre seu papel e tange ao mesmo tempo a intensidade (do reconhecimento) e a extensão (da difusão). O esquema da semiosfera toma, então, a seguinte forma:
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Sugestões de leitura Benveniste, Émile. Problemas de linguística geral i. Trad. Maria da Glória Novak; Maria Luisa Neri. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995, pp. 247-59. Bertrand, Denis. L’Impersonnel de l’énonciation. Protée, v. 22, n. 1, 1993, pp. 25-35. ______. Caminhos da semiótica literária. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. Bauru: Edusc, 2003. [Parte 1: “Percurso do método”]. Coquet, Jean-Claude. Le Discours et son sujet i. Paris: Klincksieck, 1984. Culioli, Antoine. Pour une linguistique de l’énonciation i: opérations et représentations. Paris: Ophrys, 1990. ______. Pour une linguistique de l’énonciation ii: formalisation et opérations de repérage. Paris: Ophrys, 1999. ______. Pour une linguistique de l’énonciation iii: domaine notionnel. Paris: Ophrys, 1999b. Fontanille, Jacques. Les Espaces subjectifs: introduction à la sémiotique de l’observateur. Paris: Hachette, 1989, pp. 11-48. ______; Zilberberg, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso/Humanitas, 2001. [Capítulo “Práxis enunciativa”]. Kerbrat-Orecchionni, Catherine. L’Énonciation: de la subjectivité dans le langage. 4. ed. Paris: A. Colin, 2002. Landowski, Éric. A sociedade refletida. Ensaios de sociossemiótica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Educ/ Pontes, 1992. Lotman, Iuri. La sémiosphère. Limoges: Pulim, 1998. Metz, Christian. L’Énonciation impersonnelle ou le site du film. Paris: Klincksieck, 1991, pp. 9-36; 175-214.
Notas 1
É. Benveniste, Problemas de linguística geral ii, trad. Maria da Glória Novak; Maria Luisa Neri, 4 ed., Campinas, Pontes, 1995, p. 286.
2
J.-C. Coquet, Le Discours et son sujet i, Paris, Klincksieck, 1985, p. 15.
3
É. Benveniste, op. cit., p. 287.
4
Ch. Haguenauer, Morphologie du japonais moderne, Paris, Klincksieck, 1951, p. 125.
5
Idem, p. 119.
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O autor Jacques Fontanille é professor de Linguística e Semiótica na Universidade de Limoges (França), titular da cátedra de Semiótica no Instituto Universitário da França, fundador do Centro de Pesquisas Semióticas (CeReS) e diretor do Seminário Intersemiótico de Paris. É autor de Le savoir partagé (1987); Les espaces subjectifs (1989); Sémiotique des passions (1991), em coautoria com A. J. Greimas; Semiótica de las pasiones: el seminario (1995); Sémiotique du visible (1995); Tension et signification (1998), em coautoria com C. Zilberberg; Sémiotique et littérature (1999); Soma et séma (2004); Dictionnaire des passions littéraires (2005), em coautoria com E. Rallo Ditche e P. Lombardo; e Significação e visualidade (2005).
O tradutor Jean Cristtus Portela é Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp de Araraquara, com estágio anual na Universidade de Limoges (França), Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Londrina e Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Unesp de Bauru. É autor de artigos e traduções nas áreas de Linguística, Semiótica e Comunicação