Seminario a Angustia de Lacan

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Harari, Roberto O seminário "a angústia" de Lacan: uma introdução / Roberto Harari; tradução de Francisco Settineri. -- Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1997. 241p. ; 14x21 cm. -- (Letra Psicanalítica) 1. Psicanálise li. Série

2. Psicologia CDU

1. Título 159.9 159.964.2

Ficha elaborada pela bibliotecária Mónica Germany

CRB 10/888

ROBERTO HARARI

O SEMINÁRIO "A ANGÚSTIA", DE LACAN: UMA INTRODUÇÃO Tradução de Francisco Settineri

Membro da Assoaaçáo Psicanal1ttca de Porto Alegre (APPOA)

artes • Of1c1os

PORTO ALEGRE - RS 1997

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© de Roberto Harari

Revisão Editoração Capa Fotolito de Capa Impressão Letra Psicanalítica (Conselho Editorial)

Roger Lerina Espaço de Design Tatiana Sperhacke (t@t studio} Newpoint Pallotti Alfredo Néstor Jerusalinsky Eda Estevanell Tavares Edson Luiz André de Souza Lucy Unhares da Fontoura Mário Corso Robson de Freitas Pereira

Reservados todos os direitos de publicação para ARTES E OFÍCIOS EDITORA LTDA Rua Henrique Días, 201 W(051) 311-0832 90.035-100 Porto Alegre -RS e-mail: [email protected] IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL ISBN 85-854

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Ao Centro de Extensión Psicoanalítica, pelos que me acompanharam, pelos que me escutaram, pelos que o prosseguem.

.. Não perguntes como será o que esperas, não deixes que ninguém to nomeie".

H. A. Murena, EI demonio de la arrnonía

"A meio caminho entre o Desejo e a Idéia surge, entretanto, o platônico conceito de Eros produtivo, esse impulso que não se acalma com visões, mas com obras, nem com contemplações, mas através de ações. Não é a visão pura da Idéia a verdadeira enteléquia do processo, mas a ação produtiva".

E. Trías, EI artista y la ciudad "Não. Cansaço,por quê? É uma sensação abstrata Da vida concreta Qualquer coisa como um grito Por dar, Qualquer coisa como uma angústia Por sofrer, Ou por sofrer completamente, Ou por sofrer como... Sim,ou por sofrer como... Isso mesmo: como... Como quê?... Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço". F. Pessoa (Álvaro de Campos), Não, não é cansaço...

SUMÁRIO



Prólogo, 9



1. Afeto, sinal, quadro matricial, 13 ,

♦ 2. Não... sem objeto. O grafo da angústia, 37 .. ♦

3. Faltar a falta. a-Coisa, acting-out e passagem ao ato, 61



4. Destinos do a. Enganos, transferência, fracasso, luto, 87

♦ 5. O quadro da divisão significante do sujeito, 113 ♦

6. Amor-sublimação, gozo e tripa causal, 139



7. Pulsão de saber? O grafo dos pisos do a, 165



8. Voz, olhar, falo. Fazer o "amorrer", 193



9. Do quadro fantemático a uma nova versão do quadro matricial, 215

PRÓLOGO

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oncebi esta obra em uma linha de orientação similar à de meu livro Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de Lacan: uma introdução, cuja primeira edição data de 1987. Nesse vol:ume- que tem a fortuna de con­ tinuar recebendo uma aceitação muito calorosa e estimulante, por parte de meus amigos leitores-, explico que suas páginas constituem o resultado reescrito das dez aulas que proferi sobre o tema, no Centro de Extensión Psicoanalítica do Centro Cultural General San Martín, de Buenos Aires, em 1986. Pois bem, este novo opus reconhece origem e teor introdutório idên­ ticos: trata-se de nove reuniões que versaram, durante o ciclo anual seguinte, sobre o Seminário lacaniano anterior ao nomeado, isto é, A angústia. Cabe esclarecer que essa escolha não foi fruto de uma aproximação temporal inocente e empírica entre Seminários, senão que foi devida- e se deve, agora como publicação - a uma série de diversas circunstâncias que tomam o dito Seminário especial e necessariamente indicado para seu trabalho e processamento. Vejamos, então, algumas delas: a) A angústia situa com rigor, precisão e riqueza clínica "mostrativa" aquilo que Lacan chamou de seu "invento", ou seja, o objeto a; b) demonstra a impropriedade das críticas realizadas ao mestre francês- devidas à ignorância ou à má-fé - pelo fato - dizem - de que teria subestimado, ou inclusive

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escotomizado, a consideração do sempre fugidio afeto, ao qual é tão inclinada - ou tão afeita - a outra psicanálise; c) assinala balizas que incitam a prosseguir com desenvolvimentos apenas esboçados de maneira programática no Seminário; d) no meu entender, configura uma das melhores apresentações de "temas chaves"' do ensino lacaniano, referentes ao modo com que ele incide sobre o tratamento analítico, seja subvertendo-o com fecundidade, seja ampliando seu alcance. Como se poderá apreciar, ao longo da leitura do livro, ponho em ato o item que encabecei c), mediante uma série de articulações, de grafos, de gráficos, de quadros, de textos, e in­ clusive de conceitos, cuja entidade excede os limites do Semi­ nário, de acordo com o objetivo de ajudar seu melhor enten­ dimento. Entretanto, tenho a convicção - que espero que seja compartilhada com o leitor - de que esse afã didático não tenha pago o preço elevadíssimo do abastardamento nocional. Por fim, devo sublinhar uma vez mais, com o risco de incorrer em um lugar-comum: nem tudo aquilo que Lacan considera, no Seminário, foi incluído em minha ..Introdução". Porém, além dessa obviedade, quero ressaltar, a partir disso, dois pontos: 1) as "linhas-força" principais que vertebram o ensino do Semi­ nário foram contempl.adas integralmente� 2) meu livro não se propõe como alternativa ao Seminário, mas pretende erigir-se como um modo de conduzir até ele.

II A angústia, como tantos outros Seminários, não foi edi­

tado - até o presente - na versão oficial, sob a responsabilidade dos familiares de Lacan. Atendendo à co.nsideração legal que :. Aqui :. o .�utor .coloca entre parênteses "ou !lave•, fazendo um jogo entre clave e !lave . Julgamos desnecessário traduzir o jogo de palavras, dado que a. palavra portuguesa "chave• contém. em sua polissemia, os sentidos das duas palavras espanholas. Nota do tradutor.

O SEMINÁRIO "A ANGÚSTIA", DE LACAN: UMA INTRODUÇÃO ♦ 11

eles esgrimam com estrita justiça, a livre circulação dos Semi­ nários aludidos pennanece interdita sine die. Por conseguinte, para trabalhar A angústia, servi-me de várias versões de trans­ crições em francês e de uma tradução para o castelhano, para cujo estudo, por parte dos interessados, foi rea1izada por uma entidade psicanalítica desta cidade. Desde já, há discordâncias flagrantes entre essas versões, as quais creio ter resolvido, mediante um procedimento de leitura confrontati-va intra e intertextual, não deixando ao acaso ou à intuição o sentido de minhas escolhas. Essa pluralidade insolúvel não é resolvida pela edição dos familiares, já que, como se depreende dos poucos Seminários publicados, neles campeia um estilo de resumo universitário, que sanciona como unívocas opções bastante discutíveis. Além disso, tendem a omitir ou simplifi­ c:ar os trechos obscuros e/ou dubitativos e/ou contraditórios. A esse respeito, quero destacar que minha incumbêncià, no livro, procurou a todo momento situar-se em uma tessitura radical­ mente diversa da nomeada, buscando-se o respeito - comparti­ lhado - por um dos valores intelectuais que mais se destacam do Seminário, o fato de que constitui um ensaio. Ensaio que, como tal, encontra-se imbuído pelas notas da provisoriedade e da audácia do pensamento. Está claro que essas notas, afinal, se sucedem de maneira inexorável, se se opera de acordo com a ética do desejo.

m A partir do texto transcrito de minhas aulas, a licen­ ciada Alejandra Cowes ultimou uma primeira redação, realizada com a idoneidade e o empenho que a caracterizam. Por isso, endereço-lhe novamente minha mais sincera grati­ dão. Trabalhei sobre essa versão durante quatorze meses, até· o texto do qual estamos no prólogo. Em relação a meu livro de

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1987, o presente assume uma distância maior do traço colo­ quial fundante de ambos; de modo congruente com esse propósito, as perguntas e respostas que julguei pertinentes encontram-se agora englobadas no corpo do texto. Como se deduz, cada capítulo corresponde a uma aula, sendo que seus títulos foram concebidos para esta publicação. O mesmo ocor­ re com as notas de rod_apé; porém, a bibliografia corresponde estritamente à utilizada nas aulas.

IV Tal como fiz no aludido livro que iniciou esta séríe, concluo com um voto: o de que esta "Introdução" possa che­ gar a se constituir como uma ferramenta apta para o trabalho de delineamento das características intransferiveis, singulares e -eficazes da clínica psicanalítica lacaniana. O que não corres­ ponde a um interesse meramente acadêmico, mas envolv�, em especial, a ordem ética da práxis operatória em Saúde Mental. Buenos Aires, setembro de 1992.

1 . AFETO, S I NAL, QUADRO MATRICIAL

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Seminário 10, de Jacques Lacan, A angústia, possui - como os restantes - um percurso assaz rigoroso, o que se verifica tanto em seu discorrer expositivo como em sua concatenação lógica e

temporal com dois momentos chaves. de seu ensino. Assim, nesse último sentido, cabe recordar que precede ao já clássico Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise, o primeiro dos Seminários a ter sua versão estabelecida e publicada. Por óutro lado, seu ditado é imediatamente pos­

terior ao de A identificação, o que obriga a levar-se em consideração esses dados, para advertir que os temas que vão surgindo não se dão ao estilo de uma associação livre. Lacan se preocupa em assinalá-lo, mal

começa a proferir este Seminário, em novembro de 1962. Ali, assinala que irá retomar uma problemática que, de algum modo, tinha ficado pen­

dente, desde o ano anterior. Não nos estenderemos aqui sobre o Seminário anterior, salvo para pontuar que nele é possível datar o início - siste­ mático - do apoiamento lacaniano na topologia. Sem dúvida, a questão da

identificação se prestava para isso, já que as superfícies topológicas - ali consideradas - permitem pensar certas condições onde o interno e o externo sejogam de uma maneira muito singular. No Seminário de 19611962, Lacan se propôs a trespassar as concepções psicanalíticas ingênuas da identificação, estabelecidas habitualmente em termos de projeções e introjeções. Desse modo,

às considerações clássicas sobre um sujeito que

toma objetos do exterior para interiorizá-los, ou que expele de si certos aspectos para situá-los fora, responde com proposições topológicas - não

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intuitivas, nem imaginárias - onde a dupla dentro/fora perde todo seu valor evidenten1ente óbvio, já que é posta em questão. Pois bem, aquele Seniinário, em que entrou em função a topologia - cuja utilidade era prefigurada em alusões como a do Discurso de Roma [1], onde se pode encontrar uma referência precoce ao toro -, não podia senão deixar al­ guns pontos pendentes. No começo de A angústia, o propósito será tratar as questões pendentes; desse modo, Lacan julgou congruente anicular a iilentificação coni a angústia. Abordar a angústia como tema central do Seminário de 1962-1963 foi, além disso, uma maneira propícia, estratégica, de responder a uma objeção que já então - e antes também - era formulada ao ensino lacania­ no, imputando-se-lhe um excessivo intelectualismo. Os que sustentavam essa acusação - e ainda há quem a mantenha - pretendiam que o decisivo para as preocupações dos. analistas residia na temática dos afetos. Lacan, sem dúvida, não se centrava nos evanescentes "aspectos afetivos�'; daí a crítica já tradicional, esgrimida por autores como André Green, em sua obra Le discours vivalir, conhecido em castelhano como La concepción psicoanalítica del afecto - e/ discurso viviente. Para esse autor, na obra lacaniana é deixada de lado a qualidade afetiva, que ele considera crucial para a psicanálise, disciplina que configura um âmbito onde vale "a heterogeneidade do significante". Como se sabe, a psicologia costuma fazer uma certa divisão que se pretende simples: a psicanálise trataria dos afetos, enquanto que as outras vertentes, por exemplo a piagetiana, abor­ daria o viés cognitivo. Desse modo, conserva-se a velha distinção entre o sentir, o pensar e o querer, aproveitando-se a ocasião para absorver a psicanálise no campo psicológico. Muitos tentaram, fundando-se nesses pressupostos, realizar cruzas forçadas entre os presumidamente diversos cognitivismos e afetivismos. O resultado não poderia passar de consistir em uma série de híbridos estéreis, dos quais o de Green não é um dos menos conhecidos. Em A angústia, é importante destacar o lugar que Lacan confere ao afeto, à medida que o que intitula o Seniinário é algo que, para autores como Green, entra em cheio no território do afetivo, a partir de uma ótica

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u AA INTRODUÇÃO ♦ 15

quase fenomenológica: a angústia afeta o sujeito. Não obstante, a postura Jacaniana implica centrar-se em um afeto que não é qualquer, mas aquele que mais interessa à prática analítica. Com efeito, desde os próprios primórdios da empresa fréudiana, é factível encontrar a presença da angústia. Por exemplo, pode-se notá-la nas passagens em que se tenta diferenciar a neurose de angústia da neurastenia, ou quando surge a questão da histeria de angústia, às vezes tomada como sinônimo - embora não seja fácil aceitar essa homologação sem objetar - da fobia. Portanto, a angústia não é u m afeto a mais, nem pode servir de base para uma eventual "teo,ria dos afetos", dessas que dão lugar àquilo que Lacan chamou de "método do catálogo"; ou seja, aquela enumeração - como paradigma - onde se dá lugar a uma série de senti­ mentos aparentemente mais ou menos organizados, embora a série oculte uma absoluta arbitrariedade. Costumam ser forjadas listas semelhantes, com respeito aos instintos. Segundo se pode notar, deve haver, segura­ mente, a mesma quantidade de instintos quanto de autores que teorizaram a respeít_o; ocorre algo semelhante com os afetos. Diante desse panorama, Lacan deixa deslizar uma afirmação forte, daquelas que utiliza pour -d uM� é� para inquietar: somos psicanalistas - aponta - e não psicólogos; portanto, as teorias classificatórias, caóticas e por justaposição não concernem ao campo de nossa prática; interessa-nos, pelo contrário, o que foi marcado por Freud como central e decisivo: a angústia. Articula essa .. consideração com uma referência clínica que . pode ser lida de forma cruzada com uma passagem de Os quatro conceitos. Nela, afirma que a angústia é importante, nem mais nem menos, para saber sob que condi­

ções e até que ponto o analista pode suportar a angústia de seu anali­ sante. No seminário seguinte, assinalará que a angústia do analisante deve ser dosada pelo analista. A recomendação implica não se constituir em uma espécie de indutor - analista ansiogênico, por-definição -, nem tampouco em um domesticador da angústia, que, nem bem emerge esse fenômeno - pois também é um -, procura colocar rápidas barreiras de . contenção. Com freqüência, a barreira consiste em dar um nome que outorgue um sentido imaginário ao que ocorre ao analisante; a angústia,•

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assim, pode chegar a diminuir de forma até imediata, mas ao mesmo se sufoca o que através dela se queria dizer. Vã empresa, porque O retorno denunciará a falácia do proceder analítico. Com a menção a algo que se quer dizer por meio da angústia, já estamos avançando urna idéia que se acha em Freud, e que Lacan resgata em seu justo valor, destacando-se que se. encontra n o próprio início de sua trajetória: a angústia é um sinal. O mero fato de apontar para isso implica considerá-lo como algo que remete a outra ordem. Não se trata, pois, de u m fenômeno auto-remissível, senão que, pelo contrário, possui uma con­ dição de remessa a outro regime. Ou seja, não se representa a si mesma. O Seminário 1 O foi ditado no começo da década de 60, em uma época em que o ambiente cultural europeu - e muito especialmente o francês - encontrava-se impregnado do pensamento existencialista, que havia tomado fôlego no segundo pós-guerra. Enfocar a problemática da angústia implicava não desdenhar toda urna série de autores que, a partir da filosofia, haviam-se ocupado da questão. Lacan, então, entrou no tema - diríamos quase que inevitavelmente - pelo viés do existencialismo. Mas o fez, para logo diferenciar -se melhor de tais postulações. É que, nesses trechos, o Senzinário 1O se apropria de pontuações próprias do discurso filosófico; simula, parece confundir-se com ele, mas de imediato toma distância a seu respeito. Essa é uma maneira inteligente de utilização, por parte da psicanálise, de questões que lhe sãó ·atinent�i) embora surjam no terreno da filosofia. � � 4 � o... � As proposições jniciais de Lacan, no Seminário, referem-se - como não podia ser de outra maneira, tratando-se das concepções existenciais já referidas - a um texto princeps: O conceito de angústia, do dina­ marquês Sõren Kierkegaard. Não seria essa a única remissão lacaniana ao citado pensador; com efeito, além de citá-lo - como veremos - ao final deste Seminário, um ano mais tarde voltará a trabalhar sua obra, através do texto A repetição. Kierkegaard tinha sido reivindicado, em reiteradas ocasiões, como precursor direto do existencialismo contemporâneo . Lac an acrescenta que foi o mais ousado investigador da alma anterior a Freud. A tradição filosófica kierkegaardiana, que situa na existência o ponto de