Seduzidos pela memória
 8586579157, 9788586579158

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SELEÇÃO DE TEXTOS

Heloisa Buarque de Hollanda

Instituto do Pluralismo Cultural Univcmdadc Candido Mendes - UCAM Coleção Agmd4 do Milinio. Dirigida por Candido Me.odes e Enriquc Rodriguez Larreta A coleção Agm4a do Milênio, publicada em co-edição com a Aeroplano Ed,itora e o MAM-RJ, explora nosso presente cultural, publicando significativas

interprcc:açóes cc:6,ricas, ecoá.dos e estudos de caso sobre as transformações do mundo contemporâneo nesta virada de milênio.

Seduzidos pela Memória Andreas Huyssen

Copyright © by Andreas Huyssen Catalogação na fonte Departamento Nacional do livro H998s

Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memória: arqtúterura, monumentos, mfdia / Andreas Huyssen - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. 116p., l2x2lcm. ISBN 85-86579-15-7 1. Memória - Aspectos sociais. 2. Memória (Filosofia). 3. Holocausto íudeu (1939-1945). 4. Civilização moderna - Séc. XX. 5. Alemanha - Civil ização - S~c. XX. I. Tírulo.

CDD-909.82

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Victor Burton Projeto gráfico e Editoração eletrônica

Adriana Moreno Coordenação e ditorial

Lucia Lambert Assistente editorial

Ana Carolina Kapp Revisão

Andréia do Espírito Santo Apoio CNPq

lª ed- 2000 2ª ed - 2004 Direitos reservados Aeroplano Editora e Consulcoria Lrda. Av. Acaulfo de Paiva, 658 s/402 Leblon - Rio de Janeiro - RJ - 22440-030 T elefax: (2 1) 2239-7399 [email protected]

Os ensaios reunid os ne apontam o surpro(

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men ta de uma C lJll u 1c1 e: política da memórit.1

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t heid na África do Su l. Observando as t ransfo rmações de Berl im, Huyssen explora as construções de cenários urbanos, espaços virtua is e os novos sentidos da memória histó ri ca . Juntos, estes ensaios sugerem que o imaginário urbano e as memórias traumáticas têm um papel -chave na atual transformação na nossa experiência de espaço e tempo e nos co nduzem mu i to além do legado da modernidade e d o co lo nialismo .

Pas~a,dos pre,entes: m1d1a, polittca, m aésla

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Um dos fenômenos culturais e políticos mais surprccn~ dentes dos anos recentes é a emergência da memória como t J.d);.'-

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uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais. Esse fenômeno caracteriza uma volta tJi,.. ao passado que contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro, gue tanto caracterizou as _primeiras décad~s da modernidade do século XX. Desde os mitos apocalípticos de ruptura radical do começo do século XX e a emergência do "homem novo" na Europa, através das fantasmagorias assassinas de purificação racial ou de classe, no Nacional Socialismo e no stalinismo, ao paradigma de modernização norte-americano, a cultura modernista foi energizada por aquilo que poderia ser chamado de "futuros presentes"1. No entanto, a partir da década de 1980 o foco parece ter-se deslocado dos futuros presentes para os passados presentes; este deslocamento na experiência e na sensibilidade do tempo precisa ser explicado histórica e fenomenologicament: ~ Mas o foco contemporâneo na memória e na temporalidade também contrasta totalmente com muitos outros trabalhos inovadores sobre categorias de espaço, mapas, geografias, fronteiras, rotas de comércio, migrações, deslocamentos e diásporas, no contexto dos estudos culturais e pós-coloniais. De fato, não faz muito tempo havia nos Estados Unidos um amplo consenso de que para entender a cultura pós-moderna o foco devia ser deslocado da pro-

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blemática do tempo e da memória, vinculada à forma an-

nados, então, primeiramence pdo d1,11> tá sendo musealizado e que todos nós representamos os nossos papéis neste processo. É como se o objetivo fosse conseguir a recordação total. Trata-se então da fantasia de um

do experimentado do mesmo modo nas épocas passadas.

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~ucess_? de q_ualquer monumento deve ser medido por sua capacidade de negociar co~ ~~-=--m~cielo~ djscurs-;s de meàs mória oferecidos pelas mesmas mí~ias ele~rônicas . qurus o monumento ~orno matéria sjlida ae_~enta uma

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alternativa. E não há garantias de que os monumentos de hoje, projetados e construídos com a participação do público, debates acirrados e engajamento memorialístico, não vão um dia perdurar, como seus antecessores do século

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XIX, como figuras do esquecimento. Por enquanto, pelo menos, um antigo meio que um dia sucumbiu ao ritmo e à velocidade da modernização, passa a se beneficiar de novas possibilidades numa cultura híbrida memorial-midiática.

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Apesar do recente crescimento do revisionismo sobre o Holocausto, 6 a questão do Holocausto nos anos 1980 e 1990 não é o esquecimento, e si~ a onipresença, ou mesmo o excesso da imaginária do H-;locausto ;;_ nossa cultura, desde o fascínio pelo fascismo no cinema e na literatura, que Saul Friedlander criticou de maneira tão convincente, até a proliferação de uma vitimologia do Holocausto muitas vezes superficial, notada numa grande variedade de discursos políticos que nada têm a ver com a Shoah.7 De maneira perversa, mesmo a negação do Holocausto e o debate público que a cerca mantém o Holocausto na consciência do pl'1blico. Cru·ente de negação, porém, o trauma

original é freqüentemente reencenado e explorado em rei prese~tações cinematográficas e literárias de um modo que \ tambem pode ser profundamente ofensivo. Decerto, a prolifera~o indiscrimin_a~ do próprio lugar-comum pode ser 1 um smal de sua fossilização traumática, de sua permanên-

eia na prisão de uma fixação melancólica que atinge muito ) 1 mais pessoas além das vítimas e dos perpetradores. ~ -~liferação,~e.J,ê, naJite!_.!_tllf~ e no cin_e_!lla ou na política conte~orânea, realmente banaliza o evento histórico da Solução Fi!1a!. nazista, ~ o muitos dizem, então a construção de mais e mais memoriais e monumentos ao Holocausto também pode não ser uma boa solução para os problemas da rememoração. A tentativa de compensar versões aparentemente banalizantes como a do seriado de televisão Holocau;iõ (1979) com representações museicas e monumentais sérias pode apenas, mais uma vez, congelar a memória em imagens e discursos ritualísticos. A insistência exclusiva em favor da representação verdadeira do Holocausto como evento único, indizível e incomensurável pode não fazer mais sentido diante de suas múltiplas representações e funções como um lugar-comum onipresente na cultura ocidental. Representações popularizadoras e comparações históricas são parte indissociável de uma memória do Holocausto que se tornou fraturada e sedimentada de múltiplas maneiras. Os critérios para representar~ Holocausto não devem ser solenidade ou reverência, como seria apropriado no ca so de um objeto de culto. O res~eito sil:_ncioso e revcrc1m: pode ser cabível diante do sofrimento de um sobrevivente' individual, mas é equivocado como estratégia discw·siva para o evento histórico, mesmo que este esconda no seu ccr ne algo de indizível e irrepresentável. Se nos cabe a rc~ ponsabilidade de prevenir o es'l.uecimento, devemm cií1,11 atentos aos poderosos efeitos ~ urna novd.1 111cl11il111 mática pode despertar na mente dos tele!.pn t,1111111, dr 111 1 je. As gerações posteriores ao Holocausto q11r 11vc1 1111 1 6111\ socialização primária através da tdt•vi,.10 p111h 111 c11 111111111

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pela Momóna

seu próprio caminho rumo ao testemunho, o documentário ou o tratado histórico justamente através de um Holocausto ficcionalizado e emocionalizado feito especialmente para o horário nobre da televisão. Se o Holocausto pode ser comparado com um terremoto que destruiu todos_ os instrumentos para medi-lo, como sugeriu Lyotard, encao certamente deve haver mais de um modo de representá-lo.

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. A crescente distância temporal e_geraci9nal, portanto, é importante sob outro aspecto: ela permitiu que a memória enfocasse mais do que apenas oJ-atos. Em geral, tornamo-

J; 1nos cada vez mais conscientes de como a memória social e ..,

col~tiva é construída através de uma variedade de discursos o I e diversas camadas de representações. A historiografia do Holocausto, os arquivos, os testemunhos oculares, os filmes documentários - tudo isso contribuiu para estabelecer um núcleo duro de fatos, e esses fatos precisam ser transmi/ tidos às g,e~ações posteriores ao Holocausto. Sem fatos, não há memona real. Mas também estamos livres para reconhecer que o Holocausto de fato se tornou disperso e fra\ turado através dos diferentes modos existentes para reme' ~orá-lo. O enfoque obsessivo no indizível e no irrepresent~l, tal como no passado o articularam tão convincentemente Elie Wiesel ou George Steiner, e tal como ele dá forma hoje à fil~sofia ética de Jean-François Lyotard, impede esse reconhecimento. Mesmo em sua forma históri~ ~ / séria e legítima, a memória do Holocausto se estrutura de ( ' modo bem diferente no país das vítimas e no país dos per' pe~adores, e também diverso nos países da aliança antinazista."

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Desde o princípio, os mesmos fatos geraram relatos e memórias sintomaticamente distintos· Na AI emanh a, o

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Holocausto significa a ausência de uma presença Jlld.uc1 forte na sociedade, além de ~ fardo traum~cico para ,1 identidade nacional. Tentativas genuínas de lamentação, que existiram por um certo tempo, enredam-se inexoravelmente com uma ferida nardsica, a autoflagelação e o recalque. Assim, até muito recentemente não houve muito conhecimento público sobre o que de furo se perdeu com a destruição - ou sequer um maior interesse por isso. Em Israel, o Holocausto se tornou central _para a fundaçao do estado, tanto como o desfecho de uma rejeitada históri.a dos judeus como vítimas q_uanto como ponto de partida de uma nova história nacional, uma auto-afirmação e urna resistência. Na imaginação israelense, a rebelião do gueto de Varsóvia se reveste da força de uma memória mítica de resistência e heroísmo insondáveis na Alemanha. A imaginação americana sob~ o Holocausto se concentra no papel dos Estados Unidos como liberadores dos campos de concentração e porto seguro para refugiados e imigrantes: e os memoriais americanos ao Holocausto se estruturam em conformidade com isso. Na versão soviética, o genocídio dos judeus perdeu a sua especificidade étnica e simplesrr~ente degenerou na form~ da perseguiçáo nazista ao comunismo internaci~nal. E isso em tal medida que hoje se faz necessário reconstruir as narrativas dos espaços memoriais europeus do Leste e soviéticos. J É claro que muitas dessas informações são hoje bem conhecidas, mas podem não ter sido inteiramente compreendidas as suas implicações para o debate sobre rememo ração, esquecimento e representaçáo. Essa fratura 111(11!,pl.1 da memória do Holocausto em diferentes paÍ\l'..'i ,••, mia mentação em diversas camadas de imagens,.dis111,~"' q11t· variam desde o documentário até a tcl