Se Isto é Uma Mulher 9789722356305

Numa manhã soalheira durante o mês de maio de 1939, um grupo de cerca de 800 mulheres foi conduzido em marcha forçada pe

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Se Isto é Uma Mulher
 9789722356305

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FICHA TÉCNICA

Título original: If This Is a Woman Inside Ravensbrück: Hitler’s Concentration Camp for Women Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah Helm Edição publicada originalmente em 2015, em língua inglesa, no Reino Unido, por Little, Brown, uma chancela de Little, Brown Book Group Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Ana Saldanha Imagem da capa: Shutterstock Arranjo gráfico: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1.a edição em papel, Lisboa, setembro, 2015 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 BARCARENA E-mail: [email protected] www.presenca.pt

DEDICATÓRIA

Às que recusaram



.. ...Considerai

se isto é uma mulher, ... ..Sem cabelo e sem nome ... ..Sem mais força para recordar, .... .Vazios os olhos e frio o regaço .. ...Como uma rã no inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Primo Levi, Se Isto É Um Homem

PRÓLOGO Do aeroporto de Tegel, em Berlim, demora-se pouco mais de uma hora a chegar a Ravensbrück de automóvel. Da primeira vez que fiz essa viagem, em fevereiro de 2006, demorei mais tempo, porque caía muita neve e um camião tinha-se atravessado na via de cintura de Berlim. Heinrich Himmler ia muitas vezes de automóvel a Ravensbrück, mesmo quando fazia um tempo atroz como este. O chefe da SS tinha amigos na zona e aproveitava para fazer uma visita de inspeção ao campo de concentração. Raramente partia sem deixar novas ordens. Uma vez, ordenou que fossem incluídos mais tubérculos na sopa das prisioneiras. Noutra ocasião, disse que o extermínio não estava a avançar com suficiente rapidez. Ravensbrück foi o único campo de concentração construído especificamente para mulheres. O campo tomou o nome da pequena vila adjacente à cidade de Fürstenberg e situa-se a cerca de oitenta quilómetros a norte de Berlim, junto à estrada para Rostock, na costa báltica da Alemanha. As mulheres que chegavam à noite julgavam por vezes estar perto da costa, porque sentiam o sal no vento; por vezes, sentiam também areia debaixo dos pés. Quando amanhecia, viam que o campo tinha sido construído na margem de um lago e que estava rodeado por uma floresta. Himmler gostava que os seus campos de concentração se localizassem em zonas de beleza natural e que, de preferência, não estivessem ao alcance da vista. Atualmente, o campo de concentração continua a não estar ao alcance da vista; os crimes horrendos ali perpetrados e a coragem das suas vítimas permanecem ainda, em grande medida, desconhecidos. Ravensbrück entrou em funcionamento em maio de 1939, pouco menos de quatro meses antes da eclosão da guerra, e os Russos libertaram-no seis anos mais tarde — foi um dos últimos campos de

concentração a que os Aliados chegaram. No primeiro ano, contava com menos de 2000 prisioneiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas de Jeová, que chamavam Anticristo a Hitler. Outras foram detidas simplesmente porque os nazis as consideravam seres inferiores e queriam removê-las da sociedade: prostitutas, criminosas, mulheres sem-abrigo e ciganas. Mais tarde, o campo de concentração viria a receber milhares de mulheres capturadas em países ocupados pelos nazis, muitas delas pertencentes à resistência. Para lá, também eram levadas crianças. Uma pequena percentagem das prisioneiras — cerca de dez por cento — era judia, mas o campo não foi formalmente designado como um campo de concentração para judias. No seu auge, o campo de Ravensbrück contava com uma população de cerca de 45 000 mulheres; ao longo dos seis anos da sua existência, cerca de 130 000 passaram pelos seus portões, para serem espancadas, obrigadas a passar fome e a trabalhar até à morte, envenenadas, executadas e assassinadas com gás. Segundo as estimativas, o número total de mortes oscila entre 30 000 e 90 000; provavelmente, o número efetivo de mortes situa-se entre esses dois, mas a quantidade de documentos da SS sobre o campo de concentração que chegaram até aos nossos dias é tão reduzida que nunca será possível saber ao certo. A destruição maciça de provas em Ravensbrück é mais uma das razões por que a história do campo de concentração se manteve na obscuridade. Nos últimos dias, todos os dossiês de todas as prisioneiras foram queimados no crematório ou em fogueiras, juntamente com os corpos. As cinzas foram lançadas ao lago. Fiquei a par da existência de Ravensbrück quando estava a escrever um livro sobre Vera Atkins, uma oficial da organização Special Operations Executive (SOE) [Executivo de Operações Especiais] dos serviços secretos britânicos durante a guerra. Imediatamente após o fim da guerra, Vera Atkins decidiu fazer uma

pesquisa sobre mulheres do SOE que tinham sido lançadas de paraquedas na França ocupada para ajudar a resistência, muitas das quais tinham já desaparecido. Vera seguiu-lhes a pista e descobriu que várias tinham sido detidas e levadas para campos de concentração. Numa tentativa de reconstituir a pesquisa de Vera Atkins, comecei pelos seus documentos pessoais, que se encontravam arquivados em caixas de cartão na posse da sua cunhada, Phoebe Atkins, na sua casa na Cornualha. A palavra «Ravensbrück» estava escrita numa das caixas. Lá dentro, havia apontamentos manuscritos de entrevistas com sobreviventes e com elementos suspeitos da SS — algumas das provas recolhidas inicialmente sobre o campo de concentração. Folheei os papéis. «Tivemos de nos despir e raparamnos o cabelo», disse uma mulher a Vera. Havia «uma coluna de fumo azul sufocante». Uma das sobreviventes falava de um hospital do campo de concentração onde «os germes da sífilis eram injetados na medula espinal». Uma outra descrevia a chegada de mulheres ao campo de concentração depois de uma «marcha da morte» pela neve, vindas de Auschwitz. Um dos agentes do SOE, detido em Dachau, escrevera uma mensagem a dizer que tinha ouvido falar de mulheres de Ravensbrück que eram forçadas a trabalhar num bordel em Dachau. Várias das entrevistadas mencionavam uma jovem guarda chamada Binz, que tinha cabelo «claro, com um corte à pajem». Outra guarda tinha em tempos sido ama em Wimbledon. Entre as prisioneiras encontrava-se «a nata das mulheres da Europa», segundo um investigador britânico; incluía-se nesse grupo uma sobrinha do general De Gaulle, uma antiga campeã de golfe e várias condessas polacas. Comecei a procurar datas de nascimento e moradas para o caso de algumas das sobreviventes — ou até mesmo algumas das guardas — ainda estarem vivas. Alguém tinha dado a Vera a morada de uma tal Sra. Chatenay, «que sabe pormenores sobre a esterilização de crianças no Bloco 11». Uma médica chamada Louise

Le Porz prestara uma declaração muito pormenorizada em que afirmava que o campo de concentração tinha sido construído numa propriedade que pertencia a Himmler e que o seu Schloss privado, o seu castelo, ficava nas imediações. O endereço dela era Mérignac, Gironde, mas, pela data do seu nascimento, era provável que já não estivesse viva. Uma mulher de Guernsey, chamada Julia Barry, vivia em Nettlebed, no condado de Oxford. Outras moradas eram extremamente vagas. Pensava-se que uma sobrevivente russa trabalhava «na unidade materno-infantil, na estação de caminhos de ferro de Leninegrado». Na parte de trás da caixa, encontrei listas manuscritas de prisioneiras, trazidas clandestinamente para o exterior por uma polaca que tinha tirado apontamentos no campo de concentração e fizera esboços e mapas. «As polacas tinham a melhor informação», aparecia no apontamento. A mulher que escrevera a lista tinha morrido havia já muito tempo, mas algumas das moradas eram de Londres e algumas das prisioneiras ainda se encontravam vivas. Levei comigo os esboços na primeira visita a Ravensbrück, na esperança de que me ajudassem a orientar-me quando lá chegasse. No entanto, com a neve a cair com mais intensidade, perguntava-me se conseguiria chegar até ao campo de concentração. Muitas pessoas tentaram e não conseguiram chegar a Ravensbrück. Alguns elementos da Cruz Vermelha que tentaram ir ao campo de concentração no caos dos últimos dias da guerra tiveram de voltar para trás, tal era o fluxo de refugiados que avançava no sentido contrário. Alguns meses depois do fim guerra, quando Vera Atkins se dirigiu a Ravensbrück para iniciar a sua investigação, mandaram-na parar num posto de inspeção russo; o campo de concentração encontrava-se dentro da zona de ocupação russa, pelo que pessoas dos países aliados dificilmente eram autorizadas a visitá-lo. Nesta fase, a iniciativa de Vera para encontrar as mulheres desaparecidas já se encontrava integrada numa investigação britânica mais alargada do campo de concentração, resultando nos primeiros julgamentos por crimes de guerra em Ravensbrück, que se

iniciaram em Hamburgo em 1946. Nos anos 1950, com o início da Guerra Fria, Ravensbrück ficou por trás da Cortina de Ferro, que dividiu as sobreviventes — do Leste e do Ocidente — e separou a história do campo de concentração em duas partes. Fora da vista do Ocidente, o local tornou-se um santuário das heroínas comunistas do campo de concentração, sendo os seus nomes dados a ruas e a escolas por toda a Alemanha de Leste. Entretanto, no Ocidente, Ravensbrück literalmente desapareceu de vista. As sobreviventes do Ocidente, os historiadores e os jornalistas nem sequer podiam aproximar-se do local. Nos seus países de origem, as ex-prisioneiras deparavam com dificuldades para verem as suas histórias publicadas. O acesso às provas era difícil. As transcrições dos julgamentos de Hamburgo tinham sido classificadas como «secretas» e encerradas trinta anos antes. «Onde ficava?», era uma das questões mais comuns que me colocavam quando comecei a escrever sobre Ravensbrück, juntamente com: «Porque é que havia um campo de concentração separado para mulheres? As mulheres eram judias? Era um campo de morte? Era um campo de trabalhos forçados? Ainda há alguma mulher que esteja viva?» Nos países que perderam um grande número de pessoas no campo de concentração, os grupos de sobreviventes tentaram manter viva a memória dos acontecimentos. Cerca de 8000 francesas, 1000 holandesas, 18 000 russas e 40 000 polacas foram feitas prisioneiras. No entanto, por diferentes razões em cada país, a sua história foi ocultada. No Reino Unido, que não teve mais do que vinte mulheres nesse campo de concentração, a ignorância é assombrosa, o mesmo podendo dizer-se em relação aos Estados Unidos. Os Britânicos estão a par da existência de Dachau, o primeiro campo de concentração, e talvez de Belsen, por terem sido as tropas britânicas a libertá-lo e porque os horrores que lá encontraram, captados em

filme, se gravaram indelevelmente na consciência coletiva. Para além desses dois campos de concentração, só Auschwitz, sinónimo do extermínio de judeus nas câmaras de gás, tem verdadeira ressonância. Depois de ler os arquivos de Vera, tentei encontrar o que tinha sido escrito sobre o campo de concentração para mulheres. Os principais historiadores — quase todos homens — não tinham praticamente nada a dizer. Até mesmo os livros sobre os campos de concentração escritos desde o final da Guerra Fria pareciam descrever um mundo inteiramente masculino. Mas foi então que uma pessoa amiga, que trabalhava em Berlim, me emprestou um volume de ensaios, na sua maior parte da autoria de investigadoras alemãs. Na década de 1990, as historiadoras feministas tinham encetado um contra-ataque. Este livro prometia «libertar as mulheres do anonimato que se encontra por trás da palavra prisioneira». Seguiu-se uma série de outros estudos, com outros autores — usualmente alemães — a retalharem partes de Ravensbrück e a examinarem-nas «cientificamente», o que parecia abafar a história. Reparei numa menção a um «Livro de Memórias», que me soou muito mais interessante, e tentei contactar a sua autora. Tinha-me chegado igualmente às mãos um punhado de memórias de prisioneiras, na maior parte dos casos remontando aos anos 1950 e 1960, encontrados em prateleiras recônditas de bibliotecas públicas, muitas vezes com capas sensacionalistas. Na capa de um livro de memórias de uma professora de literatura francesa, Micheline Maurel, podia ver-se a imagem de uma mulher voluptuosa, qual namorada de James Bond, por trás do arame farpado. Um livro sobre Irma Grese, uma das primeiras guardas de Ravensbrück, intitulava-se A Bela Fera. A linguagem destes livros de memórias parecia datada e, a princípio, irreal. Uma escritora falava de «lésbicas com rostos abrutalhados» e outra da «bestialidade» das prisioneiras alemãs, «que dava muito que pensar quanto à virtude fundamental da raça». Estes textos eram desorientadores; era como se ninguém soubesse bem como contar a história. Num prefácio a um livro de memórias, o escritor francês François Mauriac escreveu que Ravensbrück era

«uma abominação que o mundo resolveu esquecer». Talvez eu devesse escrever sobre outra coisa. Fui encontrar-me com Yvonne Baseden, a única sobrevivente do campo que eu sabia estar viva, para lhe pedir a sua opinião. Yvonne era um das mulheres do SOE de Vera Atkins, detida enquanto colaborava com a Resistência em França e em seguida enviada para Ravensbrück. Ela sempre se mostrara disponível para falar sobre o seu trabalho na Resistência, mas quando eu abordava o assunto de Ravensbrück, dizia que «não sabia nada» e desviava a conversa. Desta vez, eu contei-lhe que estava a planear escrever um livro sobre o campo de concentração, na esperança de que dissesse mais alguma coisa, mas ela olhou para cima, horrorizada. «Oh, não!», disse. «Não pode fazer isso.» Perguntei-lhe porque não. «É demasiado horrível. Não poderia escrever sobre outra coisa? O que vai dizer aos seus filhos sobre o que está a fazer?», perguntou. Ela não achava que se devia contar aquela história? «Oh, sim. Ninguém sabe nada sobre Ravensbrück. Ninguém quis saber, desde o momento em que voltámos.» Olhou pela janela lá para fora. Quando me vinha embora, deu-me um pequeno livro. Era mais um livro de memórias, com uma sobrecapa particularmente monstruosa, figuras contorcidas a preto e branco. Não o tinha lido, disse Yvonne, pondo-mo nas mãos. Era como se o quisesse longe da vista. Quando cheguei a casa, a sobrecapa sinistra soltou-se e revelou uma capa azul simples. Li o livro de uma assentada. A autora era uma jovem advogada francesa chamada Denise Dufournier, que tinha escrito um relato simples e comovente de resistência heroica. A «abominação» não era a única parte da história de Ravensbrück que estava a ser esquecida; também a luta pela sobrevivência o estava a ser. Alguns dias depois, ouvi uma voz francesa no meu atendedor automático de chamadas. Era a Dra. Louise Le Porz (agora Liard), a médica de Mérignac que eu pensava já ter falecido. Convidou-me

para ir a sua casa em Bordéus, onde vivia agora. Eu poderia ficar o tempo que quisesse, já que havia muito sobre que conversar. «Mas é melhor que se apresse. Eu tenho noventa e três anos.» Pouco depois, estabeleci contacto com Bärbel Schindler-Saefkow, a autora do «Livro de Memórias». Bärbel, que era filha de uma prisioneira comunista alemã, estava a compilar uma base de dados das prisioneiras; tinha viajado por toda a parte a recolher listas de nomes existentes em arquivos escondidos. Enviou-me a morada de Valentina Makarova, membro da resistência da Bielorússia que sobrevivera à marcha da morte de Auschwitz. Valentina respondeume sugerindo que a visitasse em Minsk. Quando cheguei aos subúrbios mais afastados de Berlim, a neve começava a abrandar. Passei por uma placa sinalizadora a indicar Sachsenhausen, o local do campo de concentração dos homens, o que significava que seguia na direção certa. Sachsenhausen e Ravensbrück mantinham contactos estreitos. No campo de concentração dos homens fazia-se o pão para o campo das mulheres; o pão era transportado por esta estrada todos os dias. Ao princípio, cada mulher recebia meio pão à noite. Perto do final da guerra, quase nem uma fatia recebiam, e as «bocas inúteis» — como os nazis chamavam às pessoas de quem se queriam livrar — não recebiam nada. Os oficiais da SS, os guardas e os prisioneiros eram frequentemente transferidos entre os dois campos de concentração, numa tentativa da administração de Himmler de rentabilizar ao máximo os recursos existentes. Na fase inicial da guerra, abriu uma secção para mulheres em Auschwitz — e mais tarde noutros campos de homens — para a qual Ravensbrück fornecia e treinava as guardas. Numa fase mais avançada da guerra, vários elementos do pessoal da SS em Auschwitz foram transferidos para Ravensbrück. As prisioneiras eram também transferidas entre os dois campos. Por consequência, embora Ravensbrück possuísse um cariz distintamente feminino, tinha igualmente uma cultura em comum com

os campos de concentração para homens. O império da SS de Himmler era vasto: a meio da guerra, havia cerca de 15 000 campos de concentração nazis, entre os quais se contavam campos temporários de trabalho e milhares de subcampos, ligados aos principais campos de concentração, espalhados por toda a Alemanha e pela Polónia. Os maiores e os mais monstruosos eram os que tinham sido construídos em 1942, segundo os termos da Solução Final. Até ao fim da guerra, foram exterminados cerca de seis milhões de judeus. Os factos do genocídio dos judeus são atualmente tão bem conhecidos e tão avassaladores que muitas pessoas supõem que o programa de extermínio de Hitler consistiu apenas no Holocausto Judeu. As pessoas que perguntam sobre Ravensbrück ficam muitas vezes surpreendidas por a maioria das mulheres ali mortas não ser judia. Atualmente, os historiadores diferenciam os campos, mas os rótulos podem ser enganadores. Ravensbrück é frequentemente considerado um campo de «trabalho escravo», um termo que atenua o horror do que aconteceu e que pode também ter contribuído para a sua marginalização. Foi sem dúvida um local importante de trabalho escravo — a Siemens, a grande empresa elétrica, tinha aí uma fábrica —, mas tratava-se de um estádio na via para a morte. As prisioneiras da época chamavam a Ravensbrück um campo de morte. A sobrevivente francesa e etnóloga Germaine Tillion chamou-lhe um local de «extermínio lento». Saindo de Berlim, a estrada para norte atravessa campos brancos antes de mergulhar entre árvores. De tempos em tempos, eu passava por cooperativas agrícolas abandonadas, resquícios da era comunista. Nas profundezas da floresta, a neve tinha-se espalhado e tornavase difícil encontrar o caminho. As mulheres de Ravensbrück eram muitas vezes levadas para o bosque, para cortar árvores, debaixo de neve. Esta agarrava-se aos seus socos de madeira, de modo que caminhavam sobre plataformas de neve, torcendo os tornozelos. Os

cães, lobos-da-alsácia, seguros pela trela por guardas, saltavam-lhes em cima se elas caíssem. Os nomes das vilas da floresta começavam a parecer-me familiares, devido aos testemunhos que tinha lido. Altglobsow era a vila de onde provinha a guarda com o cabelo cortado à pajem — Dorothea Binz. A seguir, avistei o pináculo da igreja de Fürstenberg. Do centro da cidade, o campo de concentração era totalmente invisível, mas eu sabia que se encontrava do outro lado do lago. As prisioneiras falavam sobre ver o pináculo da igreja quando saíam pelos portões do campo de concentração. Passei pela estação de Fürstenberg, onde tinham terminado tantas terríveis viagens de comboio. As mulheres do Exército Vermelho chegaram da Crimeia numa noite de fevereiro, apinhadas em vagões de gado. Do outro lado de Fürstenberg, uma estrada pavimentada de floresta — construída pelas prisioneiras — conduzia ao campo de concentração. Do lado esquerdo apareceram umas casas com telhados inclinados; pelo mapa de Vera, sabia que eram as casas onde tinham vivido as guardas. Uma delas tinha sido convertida num albergue da juventude, onde eu iria passar a noite. A decoração original das guardas tinha há muito sido retirada e substituída por mobiliário moderno e impecável, mas as suas ocupantes anteriores ainda assombravam os velhos aposentos. O lago espraiava-se à minha direita, vasto e de uma brancura gelada. Mais acima, viam-se as instalações do comandante e um muro alto. Alguns minutos depois, encontrava-me à entrada do complexo. À minha frente, estendia-se mais um vasto espaço branco salpicado por árvores — tílias, fiquei a saber mais tarde, plantadas aquando da construção do campo de concentração. Todos os barracões que em tempos se encontravam à sombra das árvores tinham desaparecido. Durante a Guerra Fria, os Russos usaram o campo como base de um regimento de tanques e demoliram muitos dos edifícios. Os soldados russos jogavam futebol onde em tempos tinha sido a Appellplatz do campo de concentração, a praça onde as

prisioneiras se perfilavam para a chamada. Eu ouvira falar da base russa, mas não contava com tanta destruição. O campo da Siemens, a algumas centenas de metros do muro, na parte sul, estava cheio de ervas daninhas e era difícil chegar até ele, assim como até ao anexo, o chamado Campo da Juventude, onde tantas das mortes foram perpetradas. Eu teria de os imaginar, mas não precisava de imaginar o frio. As prisioneiras ficavam aqui, na praça do campo de concentração, horas e horas a fio, vestidas só com roupas de algodão. Procurei abrigo no «bunker», o edifício de pedra da prisão, com as suas celas convertidas durante o período da Guerra Fria em memoriais às vítimas comunistas. Havia listas de nomes inscritos em granito preto polido. Numa das salas, alguns trabalhadores retiravam os memoriais para pintar as paredes. Agora que o Ocidente tinha novamente tomado posse do campo de concentração, historiadores e arquivistas dedicavam-se à elaboração de uma nova narrativa e à organização de uma nova exposição memorial. Fora dos muros do campo de concentração encontrei outros memoriais, mais íntimos. Perto do crematório, havia uma travessa comprida e escura entre muros altos conhecida como a galeria de tiro. Estava ali depositado um pequeno ramo de rosas; as flores já estariam murchas se não tivessem congelado. Havia uma etiqueta com um nome. Vi três pequenos ramos de flores no crematório, colocados em cima dos fornos, e algumas rosas espalhadas pela beira do lago. Como voltara a haver acesso ao campo de concentração, este era visitado por antigas prisioneiras que vinham aqui recordar as suas amigas mortas. Eu precisava de encontrar mais sobreviventes enquanto era ainda possível. Compreendi nesse momento o que este livro deveria ser: uma biografia de Ravensbrück, a começar no princípio e a acabar no fim, reconstituindo a sua história fragmentária o melhor que pudesse. Com o livro, tentaria lançar luz sobre os crimes dos nazis contra as mulheres, mostrando ao mesmo tempo como a compreensão do que

aconteceu no campo de concentração para mulheres pode esclarecer a história nazi. Uma grande parte das provas foi destruída, muito foi esquecido e distorcido. Todavia, salvou-se bastante documentação, e novas provas ficavam disponíveis a todo o momento. As transcrições britânicas dos julgamentos já podiam ser consultadas há muito tempo e continham uma grande abundância de pormenores; começavam também a ficar disponíveis documentos de julgamentos realizados por trás da Cortina de Ferro. Desde o final da Guerra Fria que os Russos permitiam um acesso parcial aos seus arquivos, e em várias capitais europeias apareciam testemunhos nunca antes examinados. As sobreviventes do Leste e do Ocidente começavam a partilhar memórias. Os filhos das prisioneiras faziam perguntas, encontravam cartas e diários escondidos. O mais importante para este livro seriam as vozes das próprias prisioneiras; elas seriam o meu guia do que realmente aconteceu. Alguns meses depois, na primavera, regressei da cerimónia do aniversário da libertação do campo de concentração e encontrei-me com Valentina Makarova, a sobrevivente da marcha da morte de Auschwitz, que me tinha escrito de Minsk. Ela tinha o cabelo brancoazulado e um rosto que parecia cortado à faca. Quando lhe perguntei como sobrevivera, disse: «Porque nós acreditávamos na vitória», como se fosse algo que eu já devesse saber. O sol trespassou as nuvens por breves momentos quando me aproximei da galeria de tiro. Uns pombos piavam no topo das tílias, competindo com os sons do trânsito que passava na estrada. Um autocarro com estudantes franceses estava estacionado e os jovens andavam por ali a fumar. Olhei para o outro lado do lago gelado, para o pináculo da igreja de Fürstenberg. À distância, via uns trabalhadores a movimentarem-se de um lado para o outro num cais com barcos; no verão, os turistas andam de barco no lago sem saberem que lá no fundo há cinzas do campo de concentração. A brisa fazia voar uma rosa vermelha sobre

o gelo.

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO 1 LANGEFELD «O ano é 1957. A campainha do meu apartamento está a tocar», escreve Grete Buber-Neumann, uma antiga prisioneira de Ravensbrück. «Abro a porta. Está uma mulher diante de mim, com a respiração ofegante, e faltam-lhe dentes no maxilar inferior. Balbucia: “Já não me conheces? Sou a Johanna Langefeld, a antiga chefe das guardas em Ravensbrück.” A última vez que a vi foi há catorze anos, no seu gabinete no campo de concentração. Eu era prisioneira e trabalhava como sua secretária... Ela rezava a Deus para que Ele lhe desse forças para deter o mal, mas se uma judia entrasse no seu gabinete, o seu rosto enchia-se de ódio... Então, ela senta-se à mesa comigo. Diz-me que gostava de ter nascido homem. Fala de Himmler, a quem por vezes chama Reichsführer. Fala durante muitas horas, confunde os anos e tenta explicar o seu comportamento.» *** No início de maio de 1939, uma pequena caravana de camiões surgiu de entre as árvores e chegou a uma clareira perto da minúscula vila de Ravensbrück, nas profundezas da floresta de Mecklenburg. Os camiões avançaram para lá de um lago, altura em que as suas rodas começaram a girar no mesmo sítio e os seus eixos se enterraram na areia ensopada. Algumas pessoas saltaram dos veículos para os desatolar, enquanto outras descarregavam caixotes. Uma mulher de uniforme — casaco e camisa cinzentos — saltou também para fora. Os pés enterraram-se-lhe na areia, mas ela soltouse, subiu um pouco a encosta e olhou à sua volta. Havia árvores cortadas ao lado do lago cintilante. O ar cheirava a serradura. Fazia calor e não havia sombra. À direita dela, na margem mais distante,

encontrava-se a pequena cidade de Fürstenberg. Barracões com barcos pontilhavam a margem. Via-se um pináculo de uma igreja. No lado oposto do lago, à esquerda, erguia-se um vasto muro cinzento com cerca de cinco metros de altura. O caminho da floresta ia dar a uns portões com barras de ferro, para o lado esquerdo do complexo. Viam-se tabuletas com os dizeres «Proibida a Entrada a Pessoas Estranhas». A mulher — de estatura média, entroncada, com cabelo castanho ondulado — avançou a passos decididos na direção dos portões. Johanna Langefeld tinha vindo com um pequeno grupo de guardas e de prisioneiras para trazer equipamento e inspecionar o novo campo de concentração para mulheres; a abertura do campo estava prevista para daí a alguns dias e Langefeld iria ser a Oberaufseherin — a chefe das guardas. Já tinha visto o interior de muitas instituições penais para mulheres ao longo da sua vida, mas nunca um lugar como aquele. No último ano, Langefeld tinha trabalhado como guarda sénior em Lichtenburg, uma fortaleza medieval perto de Torgau, na margem do rio Elve. Convertido num campo de concentração temporário para mulheres enquanto Ravensbrück estava a ser construído, Lichtenburg tinha câmaras e masmorras húmidas que eram acanhadas e pouco salubres; impróprias para prisioneiras. Ravensbrück era novo e tinha sido construído de raiz. O complexo ocupava cerca de vinte e cinco mil metros quadrados, suficientemente espaçoso para as primeiras cerca de mil mulheres ali esperadas, com espaço de sobra. Langefeld entrou pelos portões de ferro e andou à volta da Appellplatz ensaibrada, a praça do campo de concentração. Do tamanho de um campo de futebol, tinha espaço suficiente para reunir todas as prisioneiras ao mesmo tempo. Havia altifalantes pendurados de postes acima da cabeça de Langefeld, embora o único som por agora fosse o do martelar de pregos. Os muros bloqueavam a vista do exterior, com a exceção do céu. Ao contrário dos campos de concentração para homens, Ravensbrück não tinha torres de vigia ao longo dos muros nem

espaldões de artilharia. No entanto, havia uma vedação elétrica fixada ao interior do muro a toda a volta e tabuletas de onde em onde, com uma caveira com uma cruz de ossos por cima a alertar para a alta voltagem. Só para além dos muros, para sul, à direita de Langefeld, o terreno era suficientemente elevado para poderem ver-se os topos das copas das árvores numa colina. Grandes blocos de barracões cinzentos dominavam o complexo. Os barracões de madeira, ordenados numa grelha, eram de um só piso e tinham janelas pequenas; dispunham-se à volta da praça. Duas filas de blocos idênticos — embora um pouco maiores — estavam dispostas de cada lado da Lagerstrasse, a rua principal. Langefeld inspecionou os blocos um a um. Logo a seguir ao portão, o primeiro bloco à esquerda era a cantina do pessoal da SS, mobilada com cadeiras e mesas bem esfregadas. Também à esquerda da Appellplatz encontrava-se a Revier do campo de concentração, um termo militar alemão que significa enfermaria. Do outro lado da praça, entrou no balneário, equipado com dezenas de chuveiros. Havia caixotes empilhados numa das extremidades, contendo vestuário de algodão às riscas, e a uma mesa uma mão-cheia de mulheres estava ocupada a empilhar triângulos de feltro colorido. Ao lado do balneário, sob o mesmo telhado, ficava a cozinha do campo de concentração, onde brilhavam enormes panelas e chaleiras de aço. O edifício ao lado era o armazém do vestuário das prisioneiras, ou Effektekammer, onde se encontravam sacos grandes de papel pardo empilhados em cima de uma mesa, e a seguir a Wäscherei, a lavandaria, com as suas seis máquinas de lavar e centrifugar — Langefeld gostaria que fossem em maior número. Nas imediações, estava a ser construído um aviário. Heinrich Himmler, o chefe da SS, que dirigia os campos de concentração e muitas outras coisas na Alemanha nazi, queria que os seus campos de concentração fossem tão autossuficientes quanto possível. Haveria uma coelheira, um galinheiro e uma horta, assim como um pomar e um jardim de flores. Os arbustos de groselha transplantados dos jardins de Lichtenburg e transportados em camiões estavam já a

ser plantados ali. O conteúdo das latrinas de Lichtenburg tinha também sido trazido para Ravensbrück, para ser usado como fertilizante. Himmler exigia que os seus campos de concentração partilhassem os recursos disponíveis. Como Ravensbrück não dispunha de fornos para cozer pão, este era trazido diariamente de Sachsenhausen, o campo de concentração dos homens, a oitenta quilómetros a sul. A Oberaufseherin avançou a passos largos pela Lagerstrasse, que começava do lado mais afastado da Appellplatz e levava às traseiras do campo. Os blocos de habitação estavam dispostos perpendicularmente à Lagerstrasse, alinhados de tal modo que as janelas de um bloco davam para a parede das traseiras do seguinte. Seriam os blocos de habitação das prisioneiras, oito de cada um dos lados da «rua». Tinham sido plantadas flores vermelhas — sálvias — no exterior do primeiro bloco; havia tílias a intervalos regulares entre os restantes. Como em todos os campos de concentração, a disposição em grelha foi usada em Ravensbrück principalmente para assegurar que as prisioneiras poderiam ser sempre vistas, o que implicava menos guardas. Foi destacado um grupo de cinquenta e cinco guardas do sexo feminino e uma brigada de quarenta homens da SS, todos sob o comando geral do Hauptsurmführer Max Koegel. Johanna Langefeld acreditava que poderia dirigir um campo de concentração para mulheres melhor do que qualquer homem, e certamente melhor do que Max Koegel, cujos métodos ela desprezava. Himmler, no entanto, não tinha dúvida de que Ravensbrück deveria ser dirigido, no geral, segundo as mesmas linhas dos campos de concentração para homens, o que significava que Langefeld e as suas guardas teriam de responder perante um comandante da SS. Oficialmente, nem ela nem nenhuma das suas guardas tinham qualquer tipo de estatuto. As guardas não só estavam subordinadas aos homens como não tinham qualquer crachá ou patente e eram meras «auxiliares» da SS. A maioria não estava armada, embora

algumas das guardas que vigiavam os grupos de trabalho no exterior estivessem munidas de pistola e muitas tivessem cães. Himmler acreditava que as prisioneiras receavam mais os cães do que os homens. No entanto, a autoridade de Koegel no campo de concentração não seria absoluta. Foi nomeado comandante temporariamente e certos poderes tinham-lhe sido recusados. Por exemplo, não haveria uma prisão ou «bunker» no campo de concentração na qual pudessem manter-se em detenção elementos desordeiros, como era o caso em todos os campos de concentração para homens. Koegel também não teria autoridade para ordenar castigos corporais «oficiais». Irritado por estas omissões, Koegel escreveu aos seus superiores da SS solicitando maiores poderes para punir as prisioneiras, mas o seu pedido foi indeferido. A Langefeld, no entanto, que acreditava mais na rotina militar e na disciplina do que em castigos corporais, agradavam estas regras, especialmente porque tinha conseguido obter concessões significativas na gestão do dia a dia. No exaustivo livro de regras do campo de concentração, o Lagerordnung, estava escrito que a chefe das guardas aconselharia o Schutzhaftlagerführer (o comandante interino) em «questões femininas», embora não ficasse definido quais eram. Entrando num dos barracões de habitação, Langefeld olhou à sua volta. Como tantas outras coisas aqui, a organização dos dormitórios era novidade para ela; em vez de dormirem em celas partilhadas ou em camaratas, como Langefeld estava acostumada a ver, mais de 150 mulheres iriam dormir em cada bloco. Os interiores eram idênticos, com dois grandes dormitórios — A e B — a ladearem uma zona de balneário, com uma fila de doze lavatórios e doze sanitas, bem como uma sala comum onde as mulheres fariam as suas refeições. As zonas de dormitório estavam ocupadas por dezenas de beliches triplos feitos de tábuas. Cada prisioneira teria um colchão cheio de serradura e uma almofada, assim como um lençol e um cobertor aos

quadrados azuis e brancos dobrado aos pés da cama. A importância da rotina militar e da disciplina tinha sido instilada em Langefeld desde a mais tenra idade. Filha de um ferreiro, Joahnna Langefeld, cujo nome de solteira era Johanna May, nasceu na cidade de Kupferdreh, no Ruhr, em março de 1900. Ela e a sua irmã mais velha foram criadas num luteranismo estrito; os pais vincavam-lhes bem a importância da frugalidade, da obediência e da oração diária. Como qualquer outra boa menina protestante, Johanna sabia que o seu papel na vida seria o de esposa e mãe modelar: «Kinder, Küche, Kirche» — filhos, cozinha, igreja — era um credo familiar no lar da família May. No entanto, já desde a infância que Johanna ansiava por mais. Os seus pais falavam-lhe também do passado da Alemanha. Depois de irem à igreja ao domingo, recordavam a humilhação da ocupação francesa do seu amado Ruhr sob Napoleão, e a família ajoelhava-se e rezava para que Deus ajudasse a Alemanha a tornarse grande de novo. Ela idolatrava a sua homónima Johanna Prohaska, uma heroína das guerras de libertação que se tinha disfarçado de homem para combater os Franceses. Johanna Langefeld contou tudo isto a Grete Buber-Neumann, a antiga prisioneira, depois de aparecer à porta da sua casa em Frankfurt anos depois, procurando «tentar explicar o seu comportamento». Grete, que esteve presa em Ravensbrück durante quatro anos, ficou sobressaltada com o reaparecimento em 1957 da antiga chefe das guardas; sentiu-se também fascinada pelo relato de Langefeld da sua «odisseia» e registou-o por escrito. Em 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Johanna, na altura com catorze anos, deu vivas com o resto da multidão enquanto os jovens de Kupferdreh marchavam para a guerra para seguirem o sonho de tornar a Alemanha grande de novo, só para vir a descobrir que ela e todas as mulheres alemãs teriam um papel muito limitado a desempenhar. Dois anos depois, quando se tornou claro que a guerra não terminaria em breve, subitamente as mulheres foram mandadas trabalhar nas minas, nas fábricas e nos escritórios; ali, na «frente doméstica», teriam uma oportunidade de prestar provas do que

valiam realizando os trabalhos dos homens, só para serem arredadas desses mesmos postos de trabalho quando eles regressassem da guerra. Dois milhões de alemães não voltaram das trincheiras, mas outros seis milhões, sim, e Johanna assistiu ao regresso dos soldados de Kupferdreh, muitos mutilados e todos humilhados. Nos termos da rendição, a Alemanha pagaria reparações, que tolheriam a economia, exacerbando a hiperinflação; em 1924, o amado Ruhr de Langefeld foi mais uma vez ocupado pelos Franceses, que «roubaram» o carvão alemão como punição pelas reparações não pagas. Os pais de Joahnna perderam as suas poupanças e ela viu-se na penúria e à procura de emprego. Nesse mesmo ano, encontrou marido, um mineiro chamado Wilhelm Langefeld, que morreu dois anos depois de uma doença dos pulmões. A «odisseia» de Johanna sofreu uma interrupção; ela «perdeu-se nos anos», escreveu Grete. Os meados da década de 1920 foram um período sombrio que ela não conseguia explicar a não ser dizendo que teve uma ligação com outro homem, que a deixou grávida e dependente de grupos protestantes de caridade. Enquanto Langefeld e milhões como ela se debatiam com dificuldades, outras alemãs encontraram a libertação nos anos 1920. Com o apoio financeiro americano, a república socialista de Weimar estabilizou o país e encaminhou-o para uma via liberal. As mulheres adquiriram o direito ao voto e pela primeira vez aderiram a partidos políticos, particularmente de esquerda. Inspiradas por Rosa Luxemburgo, a líder do movimento comunista Spartacus, raparigas da classe média, Grete Buber-Neumann entre elas, cortaram o cabelo, assistiam a peças de Bertolt Brecht e faziam caminhadas pelas florestas com camaradas do Wandervogel, um movimento de juventude comunista, falando da revolução. Entretanto, por todo o país mulheres da classe operária recolhiam fundos para a «Ajuda Vermelha», inscreviam-se em sindicatos e distribuíam panfletos de apoio a greves à porta de fábricas. Em 1922, em Munique, onde Adolf Hitler atribuía a culpa dos

problemas da Alemanha ao «judeu inchado», uma precoce jovem judia chamada Olga Benario fugiu de casa para aderir a uma célula comunista, renegando os seus pais, pessoas da classe média abastada. Tinha catorze anos. Poucos meses depois, a jovem estudante de olhos escuros já liderava camaradas em caminhadas pelos Alpes da Baviera, mergulhava em ribeiros da montanha e a seguir lia Marx à volta da fogueira do acampamento e planeava a revolução comunista da Alemanha. Em 1928, tornou-se famosa ao invadir um tribunal em Berlim e libertar um destacado comunista que ia ser guilhotinado. Em 1929, Olga trocou a Alemanha por Moscovo para se treinar com a elite de Estaline, antes de se dirigir para o Brasil para começar uma revolução. No pobre vale do Ruhr, Johanna Langefeld era nessa altura uma mãe solteira sem futuro. A queda da Bolsa de Nova Iorque, o chamado «Wall Street Crash», desencadeou uma depressão económica e financeira a nível mundial, fazendo mergulhar a Alemanha numa nova crise económica mais profunda que atirou com milhões de pessoas para o desemprego e criou uma instabilidade generalizada. O receio mais forte de Langefeld era que lhe fosse tirado o seu filho, Herbert, se ela caísse na pobreza. No entanto, em vez de engrossar as fileiras dos miseráveis, optou por os ajudar, virando-se para Deus. «Foi a convicção religiosa que me levou a trabalhar com os pobres mais pobres», disse ela todos aqueles anos depois à mesa da cozinha do apartamento de Grete em Frankfurt. Arranjou trabalho nos serviços de assistência social, ensinando prendas domésticas a mulheres desempregadas e «reeducando prostitutas». Em 1933, Johanna Langefeld encontrou um novo salvador em Adolf Hitler. O programa de Hitler para as mulheres não podia ser mais claro: as alemãs deviam ficar em casa, criar tantos filhos arianos quantos pudessem e obedecer aos maridos. As mulheres não estavam talhadas para a vida pública; a maior parte dos empregos ser-lhes-ia barrada e o acesso à universidade limitado. Tais atitudes poderiam ser facilmente encontradas em qualquer

país europeu nos anos 1930, mas a linguagem dos nazis em relação às mulheres era singularmente «tóxica»; o séquito de Hitler não só desprezava abertamente o «estúpido» e «inferior» sexo feminino como também exigia repetidamente a «separação» das mulheres dos homens, como se estes não vissem para que serviam as mulheres a não ser como adornos ocasionais e, é claro, para terem filhos.1 Os judeus não eram os únicos bodes expiatórios de Hitler para os males que afligiam a Alemanha: as mulheres que se tinham emancipado durante os anos da república de Weimar eram culpadas de tomarem os empregos dos homens e de corromperem a moral do país. No entanto, Hitler tinha a capacidade de seduzir os milhões de mulheres que ansiavam por um homem «forte como o aço» que restaurasse a ordem e o orgulho do Reich. Foram admiradoras dessas, muitas delas profundamente religiosas e todas elas inflamadas pela propaganda antissemítica de Josef Goebbels, que encheram o comício de vitória de Nuremberga em 1933, onde o repórter americano William Shirer se misturou com a multidão. «Hitler entrou hoje nesta cidade medieval ao cair da noite, passando por sólidas falanges de nazis a darem vivas entusiásticos... Dezenas de milhares de bandeiras com a suástica encobrem as belezas góticas deste local...» Mais tarde, nessa mesma noite, à porta do hotel de Hitler: «Fiquei um pouco chocado com os rostos, especialmente com os das mulheres... Olhavam para cima, para ele, como se fosse um Messias...» Que Langefeld votou em Hitler é quase certo. Ela ansiava por corrigir a humilhação do seu país. Também acolhia de bom grado o novo «respeito pela vida da família» proclamado por Hitler. E Langefeld tinha razões pessoais para se sentir agradecida ao novo regime: pela primeira vez, tinha um emprego assegurado. A maior parte das carreiras estava fechada às mulheres, particularmente às mães solteiras, exceto aquela que Langefeld tinha escolhido. Do serviço de assistência social tinha sido promovida ao serviço prisional. Em 1935 foi de novo promovida, dessa vez ao posto de Hausmutter em Brauweiler, uma casa de correção para prostitutas

perto de Colónia. O emprego dava-lhe direito a alojamento e creche para o seu filho, Herbert. Enquanto esteve em Brauweiler, no entanto, parece que não se adaptou facilmente a todos os métodos nazis para ajudar «os pobres mais pobres». Em julho de 1933, foi aprovada a Lei para a Prevenção de Prole com Doenças Hereditárias, legalizando a esterilização em massa como meio de eliminar os fracos, os ociosos, os criminosos e os loucos. O Führer acreditava que todos esses degenerados eram uma sangria desnecessária do erário público e que deviam ser removidos da cadeia da hereditariedade, para tornar mais forte a Volksgemeinschaft, a comunidade de alemães de raça pura. O diretor de Brauweiler, Albert Bosse, declarou em 1935 que 95 por cento das suas prisioneiras eram «incapazes de se emendarem e teriam de ser esterilizadas por razões morais e com o objetivo de manter a saúde do Volk». Em 1937, Bosse despediu Langefeld. A razão dada nos registos de Brauweiler é roubo, mas tratava-se certamente de uma desculpa para ocultar a oposição de Langefeld aos seus métodos. Os registos revelam também que Langefeld não tinha ainda aderido ao Partido Nazi, um dever exigido a todo o pessoal das prisões. O «respeito» de Hitler pela vida da família nunca enganou Lina Haag, a mulher de um membro comunista do parlamento estatal em Württemberg. Mal ouviu na rádio, em 30 de janeiro de 1933, que Hitler tinha sido nomeado chanceler, soube com toda a certeza que a nova polícia de segurança, a Gestapo, viria buscar o seu marido: «Nos nossos comícios, tínhamos avisado o país contra Hitler. Contávamos com um levantamento popular, não se verificou.» No dia seguinte, em 31 de janeiro, a previsão de Lina concretizouse, quando ela e o marido estavam a dormir; às cinco da manhã, chegaram os capangas do regime. A caça aos comunistas tinha começado. «Os capacetes, os revólveres, os bastões. Pisavam os lençóis limpos com um entusiasmo repelente. Nós não éramos estranhos para eles — eles conheciam-nos e nós conhecíamo-los a eles. Eram homens crescidos, cidadãos como nós — vizinhos, pais

de família. Gente comum, normal. E olhavam para nós agora cheios de ódio, com as pistolas apontadas.» O marido de Lina começou a vestir-se. Porque é que vestiu o casaco tão depressa perguntou-se Lina. Será que iria deixar-se levar sem uma palavra? «O que é que se passa?», perguntou-lhe ela. «Ah, bem», disse ele, encolhendo os ombros. «Ele é membro do parlamento estatal», berrou ela aos polícias que empunhavam bastões. Eles riram-se. «Ouviram aquilo? Comunistas, é o que vocês são, mas agora nós vamos acabar com estes vermes todos.» Lina afastou à força da janela a filha do casal, Katie, uma menina de dez anos, que gritava enquanto o pai era levado. «Eu pensei que as pessoas não tolerariam aquilo por muito tempo», disse Lina. Quatro semanas depois, em 27 de fevereiro de 1933, quando Hitler estava ainda a esforçar-se por consolidar o poder do seu partido, o parlamento alemão, o Reichstag, foi incendiado. Os comunistas foram acusados, embora muitas pessoas suspeitassem de que o fogo tinha sido posto por capangas nazis como pretexto para aterrorizar todos os adversários políticos no país. Hitler aprovou imediatamente um édito abrangente chamado «detenção preventiva», que permitia que qualquer pessoa fosse detida por «traição» e ficasse presa por um período indefinido de tempo. A dezasseis quilómetros a norte de Munique, estava prestes a abrir um campo novinho em folha para receber os «traidores». Inaugurado em 22 de março de 1933, Dachau foi o primeiro campo de concentração nazi. Ao longo das semanas e dos meses seguintes, a polícia de Hitler procurou todos os comunistas ou suspeitos de serem comunistas e levou-os para lá, para esmagar a sua oposição. Os sociais-democratas foram também detidos, assim como sindicalistas e quaisquer outros «inimigos do Estado». Alguns dos detidos, particularmente entre os comunistas, eram judeus, mas nos primeiros anos do domínio nazi os judeus não foram presos em números significativos; os que foram levados para os

primeiros campos de concentração tinham sido presos, como os restantes, por resistência a Hitler, não simplesmente devido à sua raça. O único objetivo dos campos de concentração de Hitler nos primeiros tempos era esmagar toda a oposição interna alemã; só depois de se cumprir este objetivo tentariam alcançar-se outros. Esse esmagamento foi uma tarefa atribuída ao homem mais competente para a desempenhar: Heinrich Himmler, o chefe da SS, que em breve se tornaria também chefe da polícia, incluindo a Gestapo. Heinrich Luitpold Himmler era um chefe de polícia improvável, pequeno e gordo, com um rosto pálido e sem queixo e óculos de aros dourados empoleirados no seu nariz afilado. Nascido em 7 de outubro de 1900, o segundo de três rapazes, era filho de Gebhard Himmler, um vice-diretor de uma escola perto de Munique. Os serões no confortável apartamento da família em Munique eram passados a ajudar o pai na sua coleção de selos ou a escutar histórias de feitos heroicos do seu avô militar, enquanto a sua adorada mãe, uma católica devota, costurava a um canto da sala. O jovem Heinrich era um excelente aluno, mas os colegas consideravam-no um marrão, e ele era muitas vezes vítima de perseguições e ataques; como no ginásio mal conseguia chegar às barras paralelas, os professores obrigavam-no a contorcer-se em flexões sob o olhar dos colegas, que o vaiavam. Anos depois, nos campos de concentração para homens, Himmler introduziu um tipo de tortura em que os prisioneiros eram acorrentados uns aos outros em círculo e forçados a saltar para cima e para baixo até caírem por terra e, em seguida, obrigados ao pontapé a levantarem-se até tombarem de vez. Ao sair da escola, o sonho de Himmler era obter uma comissão militar, mas, embora tenha prestado serviço militar como cadete por um breve período de tempo, a falta de saúde e os problemas de visão excluíram-no da classe dos oficiais. Estudou Agricultura, dedicou-se à criação de galinhas e deixou-se absorver por outro sonho romântico, um retorno à Heimat — o lar pátrio alemão —, passando os seus

tempos livres a caminhar nos seus amados Alpes, frequentemente com a mãe, ou a estudar Astrologia e Genealogia, ao mesmo tempo tomando apontamentos no seu diário sobre todos os pormenores triviais da sua vida diária. «Os pensamentos e as preocupações perseguem-se na minha cabeça», queixou-se. No final da adolescência, Himmler recriminava-se pela sua incompetência social e sexual. «Sou um tagarela incorrigível», escreveu, e em relação ao sexo: «Estou a controlar-me com um freio de ferro.» Nos anos 1920 aderiu a um grupo masculino de Munique chamado Sociedade Thule, que debatia as raízes da supremacia ariana e a ameaça dos judeus. Foi também acolhido nas unidades paramilitares da extrema-direita em Munique. «É tão agradável andar outra vez de uniforme», escreveu. Nas fileiras do Partido NacionalSocialista (Nazi), as pessoas começavam a dizer: «O Heinrich resolve as coisas.» As suas capacidades de organização e a sua atenção aos pormenores eram de primeira ordem, e ele revelou uma grande aptidão para prever os desejos de Hitler. Era útil, descobriu Himmler, ser «tão ardiloso como uma raposa». Em 1928, casou-se com uma enfermeira chamada Margarete Boden, sete anos mais velha do que ele. Tiveram uma filha, Gudrun. Profissionalmente, Himmler fazia também progressos, e em 1929 foi nomeado chefe da SS (Schutzstaffel), o esquadrão paramilitar formado inicialmente como guarda-costas pessoal de Hitler. Quando Hitler subiu ao poder em 1933, Himmler tinha já transformado a SS numa força de elite. Uma das suas incumbências era dirigir os novos campos de concentração. Hitler propôs a utilização dos campos de concentração como locais onde internar e esmagar a sua oposição, tomando como modelo os campos de concentração usados pelos Britânicos para o internamento maciço do inimigo durante a Guerra Sul-Africana de 1899-1902. O estilo dos campos de concentração nazis, no entanto, seria definido por Himmler, que escolheu pessoalmente o local para o seu protótipo em Dachau. Foi também ele quem selecionou o comandante de Dachau, Theodor Eicke, que se tornaria chefe das

unidades dos «Cabeças de Morte», como os esquadrões de guardas dos campos de concentração da SS eram conhecidos — usavam no boné um emblema com uma caveira com ossos cruzados por cima para denotar a sua lealdade à morte. Himmler encarregou Eicke de conceber um modelo para aterrorizar todos os «inimigos do Estado». Em Dachau, foi precisamente isso que Eicke fez, criando uma escola para homens da SS, que lhe chamavam «Papá Eicke» e que ele «endurecia» antes de serem enviados para outros campos de concentração. Esse endurecimento significava que os homens deviam aprender a nunca revelar fraqueza perante o inimigo e só deviam «arreganhar os dentes» — por outras palavras, deviam odiar. Entre os primeiros recrutas de Eicke encontrava-se Max Koegel, o futuro comandante de Ravensbrück, que chegou a Dachau à procura de emprego após um breve período na prisão por desfalque. Nascido numa cidade nas montanhas do Sul da Baviera chamada Füssen, famosa pelo fabrico de alaúdes e pelos seus castelos góticos, Koegel era filho de um pastor. Órfão aos doze anos, passou os anos seguintes como pastor nos Alpes antes de procurar outro trabalho em Munique, onde começou a dar-se com grupos völkische de extrema-direita e aderiu ao Partido Nazi em 1932. O «Papá Eicke» rapidamente encontrou uma utilidade para Koegel, agora um homem de trinta e oito anos de uma dureza profundamente vincada. Em Dachau, Koegel conviveu com outros homens da SS, como Rudolf Höss, um dos outros primeiros recrutados, que viria a tornar-se comandante de Auschwitz e que desempenhou igualmente um papel em Ravensbrück. Höss recordaria mais tarde com afeto os seus tempos em Dachau, falando de um quadro de homens da SS que aprenderam a «amar» Eicke e que nunca esqueceram as suas regras, «que se mantiveram firmes e se tornaram parte da sua carne e do seu sangue». Tal foi o sucesso de Eicke que não tardaram a ser construídos vários outros campos de concentração seguindo o modelo de Dachau. Mas naqueles primeiros tempos nem Eicke, nem Himmler, nem mais ninguém pensava ainda num campo de concentração para

mulheres; as mulheres que se opunham a Hitler não eram tomadas suficientemente a sério para serem consideradas uma ameaça genuína. É certo que nas purgas de Hitler milhares de mulheres foram detidas. Muitas delas tinham encontrado a sua libertação pessoal durante o período da república de Weimar — sindicalistas, médicas, professoras universitárias, jornalistas. Muitas eram comunistas ou mulheres de comunistas. Ao serem detidas, eram vítimas de maus tratos, mas não as levavam para campos de concentração ao estilo do de Dachau nem se contemplava a hipótese de abrir secções femininas nos campos de concentração dos homens. Eram detidas em prisões para mulheres ou em casas de correção, onde o regime vigente era duro mas não intolerável. Muitas das prisioneiras políticas foram levadas para Moringen, uma casa de correção adaptada perto de Hanôver. As 150 mulheres que ali se encontravam em 1935 dormiam em dormitórios que não eram fechados à chave e as guardas faziam-lhes recados, indo comprarlhes lã para tricotarem, por exemplo. No átrio da prisão, ouvia-se o matraquear de máquinas de costura. Havia uma mesa de «notáveis» à parte das outras, entre elas os membros mais destacados do Reichstag e mulheres de industriais. No entanto, tal como Himmler calculara, as mulheres podiam ser torturadas de maneiras diferentes das dos homens; para a maior parte das mulheres, o simples facto de os maridos terem sido mortos e de os filhos lhes terem sido tirados — usualmente enviados para lares de acolhimento nazis — era provação suficiente. A censura excluía a possibilidade de pedir auxílio. Barbara Fürbringer, ouvindo dizer que o seu marido, um membro comunista do Reichstag, tinha sido torturado até à morte em Dachau e que os seus filhos tinham sido levados para um lar de acolhimento nazi, tentou alertar a sua irmã na América: Querida Irmã Infelizmente, estamos mal. O Theodor, o meu querido marido, morreu subitamente em Dachau há quatro meses. Os nossos três filhos foram internados num lar de

acolhimento em Munique. Eu estou no campo de mulheres em Moringen. Já não tenho dinheiro.

Como o censor rejeitou a carta, ela escreveu de novo: Querida Irmã, Infelizmente, as coisas não estão a correr exatamente como seria nosso desejo. O Theodor, o meu querido marido, morreu há quatro meses. Os nossos três filhos vivem em Munique, no número 27 de Brenner Strasse, eu vivo em Moringen, perto de Hanôver, no número 32 de Breite Strasse. Ficar-te-ia agradecida se me enviasses uma pequena quantia de dinheiro.

Himmler calculava também que, se a repressão dos homens fosse suficientemente terrível, todas as outras pessoas não tardariam a mostrar-se aquiescentes. E esse cálculo revelou-se em grande medida correto, como Lina Haag, detida poucas semanas depois do marido e enviada para outra prisão, não tardaria a observar. «Ninguém viu para onde nos estávamos a encaminhar? Ninguém viu para lá da demagogia desavergonhada dos artigos de Goebbels? Eu conseguia vê-lo mesmo através dos muros grossos da prisão; um número cada vez maior de pessoas lá fora estava a seguir a linha oficial.» Até 1936, não só tinha sido eliminada toda a oposição política como as organizações humanitárias e as igrejas alemãs estavam a seguir a linha oficial. O movimento alemão da Cruz Vermelha tinha aderido à causa nazi; nas reuniões, a bandeira da Cruz Vermelha era adejada ao lado da bandeira com a cruz suástica, e os guardiães da Convenção de Genebra, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, inspecionaram os campos de concentração de Himmler — ou, pelo menos, os blocos-modelo — e concederam-lhes a sua aprovação. As capitais do mundo ocidental adotaram a posição de que os campos de concentração nazis eram uma questão interna da Alemanha e não algo com que devessem preocupar-se. Em meados dos anos 1930, a maior parte dos líderes ocidentais ainda acreditava que a maior ameaça à paz mundial era o comunismo, não a Alemanha nazi. No entanto, apesar da ausência de uma oposição significativa, interna ou externa, o Führer prestava uma especial atenção à opinião

pública nos primeiros tempos do seu domínio. Num discurso num campo de treino da SS em 1937, disse: «Sei sempre que não devo dar um só passo que venha a ter de recuar. Há que ter faro para avaliar a situação, para perguntar: “Ora bem, com o que é que me posso safar e com o que é que não posso?”» Até mesmo o movimento contra os judeus da Alemanha avançou mais lentamente ao princípio do que muitos elementos do partido desejariam. Nos primeiros anos, Hitler aprovou leis que impediam o acesso dos judeus ao trabalho e à vida pública, incitando ao ódio e à perseguição, mas levaria ainda algum tempo, considerava ele, até se conseguir fazer mais do que isso impunemente. Himmler também tinha «faro» para avaliar as situações. Em novembro de 1936, o Reichsführer SS, que por esta altura não só era chefe da SS mas também chefe da polícia, viu-se a braços com uma tempestade internacional que se desencadeou devido a uma comunista alemã que saiu de um navio nas docas de Hamburgo para as mãos da Gestapo, que a aguardava. Ela estava grávida de oito meses. Tratava-se de Olga Benario. A menina intrépida de Munique que tinha fugido de casa para se tornar comunista tinha agora trinta e cinco anos e estava prestes a tornar-se uma causa célebre para os comunistas em todo o mundo. Depois do seu treino em Moscovo no início da década de 1930, Olga foi escolhida para o Comintern (a organização internacional comunista) e em 1935 foi enviada por Estaline para ajudar a organizar um golpe contra o Presidente do Brasil Getúlio Vargas. O chefe da operação era o lendário líder rebelde brasileiro Luís Carlos Prestes. A insurreição destinava-se a promover uma revolução comunista no maior país da América do Sul, proporcionando assim a Estaline um ponto de entrada nas Américas. No entanto, em consequência de uma informação dos serviços secretos britânicos, a conspiração foi abortada, Olga foi detida e, juntamente com uma outra conspiradora, Elise Ewert, enviada a Hitler «como uma oferenda».2 Das docas de Hamburgo, Olga foi levada para a prisão de Barminstrasse em Berlim, onde deu à luz uma menina, Anita, quatro

semanas mais tarde. Comunistas por todo o mundo lançaram uma campanha para as libertar. O caso atraiu muita atenção, em grande medida porque o pai do bebé era o famoso Carlos Prestes, o líder do golpe falhado; o casal tinha-se apaixonado e casado no Brasil. A coragem de Olga e a sua beleza morena e delicada tornavam o caso ainda mais comovente. Esta publicidade negativa no estrangeiro não era bem-vinda, especialmente porque que se estava no ano dos Jogos Olímpicos em Berlim e porque tinham sido feitos tantos esforços para melhorar a imagem do país.3 Os chefes da Gestapo de Himmler tentaram inicialmente debelar o escândalo propondo que o bebé fosse entregue à mãe de Olga, Eugenia Benario, que ainda vivia em Munique, mas Eugenia recusou-se a receber a criança; há muito tempo, tinha renegado a sua filha comunista e agora renegava também a neta. Em seguida, Himmler deu permissão à mãe de Prestes, Leocadia, para levar Anita, e, em novembro de 1937, a avó brasileira foi buscar a bebé à prisão de Barminstrasse. Olga, agora destroçada, ficou sozinha na sua cela. Numa carta a Leocadia, explicou que não tinha tido tempo para se preparar para a separação: «Por isso, tem de me perdoar o estado das coisas da Anita. Recebeu a minha descrição da rotina dela e do gráfico do peso? Organizei o gráfico o melhor que pude. Os órgãos internos dela estão bem? E os ossos, as perninhas dela? Talvez tenha sofrido com as circunstâncias extraordinárias da minha gravidez e do seu primeiro ano de vida.» Em 1936, o número de mulheres detidas em prisões alemãs começava a aumentar. Apesar do terror, as mulheres continuavam a operar clandestinamente, muitas delas agora inspiradas pela eclosão da guerra civil espanhola. Entre as que foram levadas para o «campo de concentração» para mulheres de Moringen, em meados da década de 1930, encontravam-se mais mulheres comunistas e ex-membros do Reichstag, assim como as que operavam em grupos minúsculos ou sozinhas, como a artista gráfica deficiente Gerda Lissack, que elaborava panfletos antinazis. Ilse Gostynski, uma jovem judia, que

ajudava a imprimir artigos de ataque ao Führer na sua impressora, foi detida por engano. A Gestapo queria a sua irmã gémea, Else, mas, como Else estava em Oslo a organizar rotas de evasão para crianças judias, levaram Ilse na sua vez. Em 1936, 500 donas de casa alemãs com bíblias na mão e lenços brancos na cabeça chegaram a Moringen. As mulheres, testemunhas de Jeová, protestaram quando os seus maridos foram convocados para o serviço militar. Hitler era o Anticristo, diziam; Deus é que era o governante da Terra, não o Führer. Os seus maridos e outros homens testemunhas de Jeová foram enviados para o campo de concentração mais recente de Hitler, Buchenwald, onde lhes foram aplicadas vinte e cinco chicotadas com um chicote de couro. No entanto, como Himmler sabia que nem mesmo os seus homens da SS estavam ainda suficientemente empedernidos para espancarem donas de casa alemãs, em Moringen as testemunhas de Jeová simplesmente viram as suas bíblias confiscadas pelo diretor da prisão, um bondoso militar aposentado que era coxo. Em 1937, a aprovação de uma lei contra a «Rassenschande» — literalmente, «vergonha da raça» —, que tornava ilegais as relações entre judeus e não-judeus, trouxe mais um influxo de mulheres judias a Moringen. Na segunda metade de 1937, as prisioneiras que ali se encontravam notaram um aumento súbito no número de mulheres sem-abrigo que eram trazidas «a coxearem, algumas com faixas, muitas outras a cuspirem sangue». Em 1938, chegaram dezenas de prostitutas. Else Krug estava a trabalhar como de costume quando um grupo de polícias de Düsseldorf lhe bateu com força à porta, no número 10 de Corneliusstrasse, berrando-lhe que a abrisse; eram duas da madrugada do dia 30 de julho de 1938. As rusgas policiais eram habituais e Else não tinha motivo para receios, embora ultimamente fossem mais frequentes. A prostituição era legal perante a lei nazi, mas a polícia podia usar qualquer desculpa; talvez uma das mulheres tivesse faltado à inspeção da sífilis ou talvez um agente policial

pretendesse obter informações sobre uma nova célula comunista nas docas de Düsseldorf. Vários agentes da polícia de Düsseldorf conheciam estas mulheres pessoalmente. Else Krug era muito procurada, quer pelos serviços especiais que prestava — dedicava-se ao sadomasoquismo — quer pelos seus mexericos; mantinha-se atenta ao que se passava. Else também era popular na rua; acolhia sempre uma rapariga se pudesse, especialmente se a garota fosse nova na cidade. A própria Else tinha chegado assim às ruas de Düsseldorf dez anos antes — sem trabalho, longe de casa e na penúria. No entanto, a rusga policial de 30 de julho era diferente das anteriores na Corneliusstrasse. Clientes aterrorizados agarraram no que puderam e fugiram meio despidos para a rua. Na mesma noite, ocorreram rusgas similares numa casa na vizinhança, onde Agnes Petry estava a trabalhar. O marido de Agnes, um proxeneta da zona, foi igualmente detido. Depois de mais uma rusga pela Bahndamm, os agentes policiais detiveram um total de vinte e quatro prostitutas, e pelas seis da manhã estavam já todas atrás das grades, sem data prevista para a sua libertação. O tratamento dado às mulheres na esquadra era também diferente. O agente de serviço — o sargento Peine — conhecia a maior parte das mulheres, por terem já anteriormente pernoitado nas celas, e, pegando no seu grande livro de registos preto, tomou nota dos seus nomes, das suas moradas e dos seus pertences. Na coluna intitulada «razão para a detenção», no entanto, Peine escreveu cuidadosamente «Asoziale», «associal», diante de cada um dos nomes — uma palavra que nunca tinha usado no livro até àquele momento. E ao fundo da coluna, também pela primeira vez, escreveu a vermelho: «Transporte.» As rusgas aos bordéis de Düsseldorf repetiram-se por toda a Alemanha ao longo de 1938, com a purga nazi contra as suas classes desfavorecidas e indesejadas a entrar num novo estádio. Foi implementado um programa chamado «Aktion Arbeitsscheu Reich» (Ação contra os Ariscos ao Trabalho), visando todos os que eram

considerados marginais sociais. Em grande medida sem que o mundo exterior se apercebesse e sem ser noticiado dentro da Alemanha, mais de 20 000 alegados «associais» — vagabundos, prostitutas, desempregados, mendigos e ladrões — foram detidos e enviados para campos de concentração. Em meados de 1938 ainda faltava um ano para começar a guerra, mas a guerra da Alemanha contra os seus próprios elementos indesejados já estava lançada. O Führer fez saber que, como o país tinha de ser «puro e forte» enquanto se preparava para a guerra, as «bocas inúteis» deveriam ser removidas. Desde o momento em que Hitler subiu ao poder, empreendeu-se a esterilização em massa dos doentes mentais e dos degenerados sociais. Em 1936, os ciganos foram fechados em reservas perto das grandes cidades. Em 1937, milhares de «criminosos habituais» foram enviados para campos de concentração, sem qualquer processo legal. Hitler autorizou as medidas, mas o instigador da repressão foi o seu chefe de polícia e dirigente da SS, Heinrich Himmler. Foi também Himmler que, em 1938, apelou a que todos os «associais» fossem detidos em campos de concentração. O momento era significativo. Bem antes de 1937, os campos de concentração, criados inicialmente para remover a oposição política, começaram a esvaziar-se. Os comunistas, os sociais-democratas e outros, detidos nos primeiros anos do domínio de Hitler, foram em grande medida esmagados, e a maioria foi libertada, eram homens despedaçados. Himmler, que se opusera a estas libertações em massa, via o seu império em perigo de declínio e procurou novos usos para os seus campos de concentração. Até àquele momento, ninguém sugerira seriamente que se usassem os campos de concentração para outros elementos a não ser os da oposição política, mas se os enchesse com criminosos e marginais Himmler poderia começar a expandir de novo o seu império. Via-se como muito mais do que um mero chefe de polícia; o seu interesse pela ciência — por todas as experiências que pudessem ajudar a criar uma raça ariana perfeita — era sempre o seu

principal objetivo. Ao trazer aqueles degenerados para dentro dos campos de concentração, começava por se assegurar de um papel central na experiência mais ambiciosa do Führer, cujo objetivo era uma limpeza genética do povo alemão. Além disso, os novos prisioneiros proporcionariam uma força de trabalho imediata para a reconstrução do Reich. A natureza e o objetivo dos campos de concentração sofreriam agora uma alteração. Com o número de prisioneiros políticos alemães a diminuir, os rejeitados sociais viriam substituí-los em grandes números. Entre os detidos pela primeira vez, haveria certamente tantas mulheres — prostitutas, pequenas criminosas, miseráveis — como homens. Uma nova geração de campos de concentração iria agora ser construída de raiz. E com Moringen e outras prisões de mulheres já sobrelotadas, e dispendiosas, Himmler apresentou a proposta de construção de um campo de concentração para mulheres. Em 1938, convocou os seus conselheiros para debaterem a sua possível localização. É provável que tenha sido um amigo de Himmler, o Gruppenführer Oswald Pohl, um administrador sénior da SS, quem apresentou a proposta de que o novo campo de concentração fosse construído na zona do lago Mecklenburg, perto de uma vila chamada Ravensbrück. Pohl conhecia a zona, porque tinha uma propriedade ali. Mais tarde, Rudolf Höss diria que avisou Himmler de que o local era demasiado pequeno: o número de mulheres detidas aumentaria com toda a certeza, especialmente quando a guerra começasse. Outros chamaram a atenção para o facto de o terreno ser pantanoso e para a possibilidade de o campo de concentração demorar demasiado tempo a construir. Himmler arredou todas as objeções. A sua localização a apenas oitenta quilómetros de Berlim seria conveniente para inspeções, e ele viajava frequentemente para essas bandas, para visitar o seu amigo de infância, o famoso cirurgião da SS Karl Gebhardt, que dirigia a clínica médica Hohenlychen, a oito quilómetros de Ravensbrück.

Himmler ordenou então que os prisioneiros do campo de concentração de Sachsenhausen, nos arredores de Berlim, começassem a construir Ravensbrück logo que possível. Entretanto, o campo de concentração para homens em Lichtenburg, perto de Torgau, que estava já meio vazio, iria ser evacuado e o resto dos homens levados para o novo campo de concentração de Buchenwald, que abrira em julho de 1937. As mulheres destinadas ao novo campo de concentração poderiam ser detidas em Lichtenburg enquanto Ravensbrück estava a ser construído. Dentro de um vagão de um comboio com grades, Lina Haag não fazia ideia de para onde se dirigia. Depois de quatro anos numa cela da prisão, foi-lhe dito, a ela e a dezenas de outras mulheres, que iam ser «transportadas». De algumas em algumas horas, o comboio parava numa estação, mas os nomes — Frankfurt, Estugarda, Mannheim — proporcionavam poucas pistas. Lina fitava as «pessoas comuns» nas plataformas — uma visão que já não tinha há anos — e as pessoas comuns olhavam fixamente, por sua vez, «para aquelas figuras fantasmagóricas com olhos encovados e cabelo enriçado». À noite, as mulheres eram tiradas do comboio e alojadas em prisões locais. Lina sentia-se horrorizada com as guardas. «Era inconcebível como, em face de toda aquela desgraça, elas conseguiam tagarelar e rir-se nos corredores. A maior parte é devota, mas com uma espécie peculiar de devoção. Parecem esconder-se por trás de Deus, enojadas com a sua própria maldade.» As mulheres da casa de correção de Moringen vieram juntar-se às outras no comboio e mantiveram-se juntas, em choque. Uma médica chamada Doris Maase entrou em Estugarda, juntamente com uma chusma de prostitutas de Düsseldorf. Doris, descrita na sua ficha da Gestapo como uma «estudante vermelha», tinha meio pente, que emprestou a Lina. A toda à volta, as «rameiras» e os «estafermos» soltavam gargalhadas, embora, como Lina admitiu a Doris, ao fim de quatro anos numa prisão, era provável que também ela parecesse uma «rameira».

Em Lichtenburg, os SS estavam à espera, com luvas de camurça e revólveres. Johanna Langefeld também estava à espera. Depois de ser despedida da casa de correção de Brauweiler, Langefeld foi readmitida pelo gabinete de Himmler e foi-lhe oferecida uma promoção a guarda em Lichtenburg. Langefeld viria a afirmar que só aceitou o emprego na crença, mais uma vez, de que poderia cumprir a sua vocação de «reeducar prostitutas», o que era obviamente uma mentira: tinha-lhe sido oferecida uma promoção, um aumento de salário e alojamento para si e para o seu filho. De qualquer modo, Brauweiler já tinha demonstrado a Langefeld que as prostitutas e outras marginais deveriam ser eliminadas da sociedade, não reeducadas. Ao mesmo tempo, chegou também a Lichtenburg Gertrud Kröffges, uma mulher de quem Langefeld provavelmente se recordava dos tempos da casa de correção. Kröffges fora parar a Brauweiler por não manter em dia os pagamentos para o sustento dos seus filhos. Agora, estava a ser enviada para Lichtenburg porque «era incapaz de se emendar», como se afirmava na sua ficha da polícia, e porque, «devido ao seu estilo de vida imoral e associal, a Volksgemeinschaft [a comunidade racialmente pura] tem de ser protegida dela». Nem mesmo o funcionário da prisão que registou as mulheres em Lichtenburg via razão para prender tais pessoas destituídas de tudo. Agnes Petry, uma das detidas em Düsseldorf, chegou «sem dinheiro», escreveu ele no cartão de registo. A única coisa que trazia era uma fotografia do marido. A palavra «Stutze» ficou registada na sua ficha, o que significava que era uma pessoa «dependente do Estado». «Poderia ser mandada para trás?», perguntava ele numa carta ao chefe da polícia de Düsseldorf. «Ela tem alguém no mundo que possa ajudá-la?» Lina Haag há muito tempo que tinha abandonado a esperança de que alguém ajudasse alguma delas. Em 12 de março de 1938, a Áustria foi anexada e, pouco depois, começaram a chegar à fortaleza resistentes austríacas, entre elas uma médica, uma cantora de ópera e uma carpinteira; todas tinham sido espancadas e violadas. «Se o

mundo não protestava nem sequer contra a anexação brutal de territórios estrangeiros, era provável que protestasse contra as chicotadas sofridas por algumas pobres mulheres que tinham protestado contra ela?», perguntava Lina. A notícia de que Olga Benario, um nome dos tempos áureos da resistência comunista, se encontrava na fortaleza deu esperança a algumas mulheres. Olga foi trazida sozinha de Berlim numa carrinha da Gestapo, e escoltada diretamente para as masmorras de Lichtenburg. Algumas camaradas comunistas conseguiram estabelecer contacto e encontraram-na desolada devido à recente separação da sua filha. Conseguiram passar mensagens e minúsculos presentes à socapa para a sua cela. Recordando o assalto espantoso ao tribunal de 1928, algumas sonhavam com a evasão, mas Lina Haag disse que «não fazia sentido» tentar fosse o que fosse. «O Führer fica sempre na mó de cima e nós não passamos de pobres diabos — absolutamente esquecidas, desgraçadas...» Então, uma trapezista cigana chamada Katharina Waitz tentou escalar os muros da fortaleza. Foi detida e espancada. O comandante de Lichtenburg, Max Koegel, gostava de bater. Lina recorda que no dia de Páscoa ele espancou três mulheres nuas «até já não conseguir continuar». Em 1 de outubro de 1938, o dia em que as forças de Hitler tomaram o Sudetenland, Koegel assestou mangueiras sobre as prisioneiras. Tinha-lhes sido ordenado que fossem para o pátio da prisão para escutarem o discurso de vitória do Führer, mas as testemunhas de Jeová recusaram-se a descer os degraus e as guardas forçaram-nas, arrastando mulheres de idade pelos cabelos. Quando começavam a ouvir-se os primeiros acordes de melodias prussianas, alguém segredou «vem aí a guerra», e de súbito a fortaleza irrompeu num clamor. Todas as testemunhas de Jeová começaram a berrar histericamente antes de tombarem de joelhos e se porem a rezar. As guardas começaram a atacar as prisioneiras e a multidão reagiu. Koegel ordenou que as mangueiras de incêndio fossem dirigidas contra as mulheres que rezavam, que foram

derrubadas e esmagadas pela força dos jatos de água e mordidas por cães. Agarrando-se umas às outras, quase se afogaram, «como ratos a pingar», disse Marianne Korn, uma das mulheres que rezavam. Pouco depois do motim, Himmler visitou a fortaleza para se assegurar de que a ordem tinha sido restaurada. O Reichsführer SS inspecionou Lichtenburg várias vezes, fazendo-se acompanhar pela chefe do movimento nazi de mulheres, Gertrud Scholtz-Klink, para lhe exibir as suas prisioneiras. Nas suas visitas, por vezes autorizava libertações. Um dia, libertou Lina Haag, na condição de que ela não falasse do tratamento que tinha recebido. Himmler inspecionava também as guardas. Deve ter notado que Johanna Langefeld tinha uma certa autoridade — um jeito para acalmar as prisioneiras sem grande aparato —, porque a selecionou para futura chefe das guardas. Foram as crianças da zona quem primeiro suspeitou de que alguma coisa ia ser construída na margem norte do Schwedtsee — ou lago Schwedt —, mas quando contaram aos pais, estes ordenaram-lhes que não dissessem nada. Até 1938, as crianças brincavam num terreno baldio perto do lago, onde havia menos árvores e podiam tomar banho. Um dia, disseram-lhes que o local estava interdito. Ao longo das semanas seguintes, os habitantes da cidade local de Fürstenberg — da qual a vila de Ravensbrück é um pequeno subúrbio — assistiram à chegada de barcaças pelo rio Havel acima com materiais de construção. As crianças diziam aos pais que tinham visto homens com uniformes às riscas a cortarem árvores. Ravensbrück, oitenta quilómetros a norte de Berlim, no extremo sul da região do lago Mecklenburg, era, como Himmler reconheceu em 1938, uma boa localização para um campo de concentração. As ligações ferroviárias e fluviais eram boas. Fürstenberg, rodeada por três lagos, o Röblinsee, o Baalensee e o Schwedtsee, é atravessada pelo rio Havel, que se divide em vários canais na cidade. Um outro fator que influenciou a escolha de Himmler foi a localização numa zona de beleza natural. Himmler acreditava que a

purificação do sangue alemão deveria começar junto da natureza, e as forças revigorantes das florestas alemãs desempenhavam um papel central na mitologia do Heimat — o solo alemão. Buchenwald — que significa floresta de faias — localizava-se numa famosa zona florestal perto de Weimar, e vários outros campos de concentração foram deliberadamente construídos em locais de grande beleza. Algumas semanas depois da abertura de Ravensbrück, um curso de água aí existente foi declarado «uma fonte orgânica para a raça ariana». Fürstenberg sempre tinha sido popular junto dos amantes da natureza, que vinham andar de barco nos lagos ou visitar o palácio barroco de Fürstenberg. No início da década de 1930, a cidade foi temporariamente um reduto comunista, e, nas tentativas iniciais dos nazis de estabelecerem o seu controlo, houve várias batalhas de rua, mas ainda antes de Hitler se tornar chanceler a oposição já tinha sido erradicada. Foi nomeado um presidente da câmara nazi, e um sacerdote nazi, o pastor Märker, ficou encarregado da igreja evangélica da cidade. Os «cristãos alemães» de Hitler, uma força em zonas rurais como aquela, organizavam festas e desfiles nacionalistas. No final da década de 1930, já quase não havia judeus em Fürstenberg. Eva Hamburger, uma hoteleira judia, resistiu à expulsão, mas depois do pogrom da «Kristallnacht», a «noite dos vidros partidos», de 9 e 10 de novembro de 1938, também ela abandonou a cidade. Em Fürstenberg, nessa noite, o cemitério judeu foi destruído e o hotel de Eva Hamburger atacado. Pouco depois, o jornal local noticiava que a última propriedade de judeus, o número 3 de Röbinsee, tinha sido vendida. Como a maior parte das pequenas cidades alemãs, Fürstenberg sofrera bastante com a crise económica, e o aparecimento de um campo de concentração traduzia-se em postos de trabalho e mais comércio. O facto de as prisioneiras serem mulheres não era controverso. Valesca Kapler, a mulher de meia-idade de um lojista, era a líder eficiente do Frauenschaft local (o grupo nazi de mulheres),

e fazia frequentes palestras às senhoras da cidade em que explicava os malefícios da maquilhagem, do tabaco e do álcool e o fardo que os «associais» constituíam para o Estado. Josef Goebbels chegou até a fazer um discurso em Fürstenberg em que disse às pessoas da cidade: «Se a família é a fonte de força da nação, a mulher é o seu cerne e o seu centro.» Na primavera de 1939, com a data de abertura do campo de concentração a aproximar-se, as mulheres eram instadas a «servir na frente doméstica» —, o que incluía trabalharem como guardas do campo de concentração —, mas nada de oficial foi dito sobre o recrutamento; de facto, nada de oficial foi dito sobre o campo de concentração. Só uma pequena referência no Forest News* a «um acidente perto do grande estaleiro de construção» proporcionava alguma pista de que o campo de concentração estivesse a ser construído.

Em inglês no original. (NT)

No início de maio, realizou-se um concerto de música de Haydn e Mozart, e a Gestapo local promoveu um evento desportivo de tiro e lançamento de granadas. No cinema passou uma comédia romântica. Os jornais noticiavam que, após um inverno duro, se procuravam donativos para obras de caridade, e apareciam avisos de falências. Durante todo este tempo, a eclusa do rio abria-se constantemente para deixar passar barcaças com materiais de construção, e o muro do campo de concentração tornava-se visível da margem do lago onde se localizava a cidade. Várias mulheres da zona candidataramse a um emprego no campo, entre elas Margarete Mewes, uma jovem mãe que era criada de servir. No primeiro domingo de maio, realizaram-se as tradicionais comemorações do Dia da Mãe em Fürstenberg. Frau Kaper entregou Cruzes de Mãe às mulheres que tinham tido mais do que quatro filhos e que assim tinham respondido ao apelo de Hitler para multiplicar os genes arianos.

Em 15 de maio, numa manhã de sol, vários autocarros azuis passaram pela cidade e viraram para o «estaleiro de construção». Antes do nascer desse dia, os mesmos autocarros azuis tinham estacionado diante dos portões do castelo de Lichtenburg, a cerca de 480 quilómetros a sul. Momentos depois, pela ponte levadiça do castelo desfilaram figuras femininas, com pequenos sacos nas mãos, e entraram para os veículos. Era uma noite sem nuvens, mas dentro dos autocarros estava bastante escuro. Mulher alguma teve pena de ver a fortaleza preta e maciça desaparecer por trás delas na escuridão, embora nenhuma fizesse ideia do que as aguardava. Algumas das mulheres atreviam-se a esperar que a viagem as levasse a algum lugar melhor, e uma viagem — qualquer viagem — era por si só uma amostra de liberdade, mas as prisioneiras políticas avisaram que não havia hipótese de irem para algo melhor. A incursão seguinte de Hitler na Checoslováquia era só uma questão de tempo. Maridos, irmãos, pais, filhos estavam a morrer mais depressa do que nunca em Buchenwald, Sachsenhausen e Dachau. Várias mulheres andavam com avisos oficiais dessas mortes nos seus sacos, juntamente com fotografias dos filhos e maços de cartas. As mulheres judias pensavam nos que tinham sido detidos no pogrom da Kristallnacht.4 No entanto, paradoxalmente, precisamente porque eram judias, estas mulheres tinham mais razões do que muitas outras para acalentarem esperanças naquele momento. O horror da Kristallnacht seis meses antes tinha traumatizado os judeus alemães e chocado o resto do mundo, levando-o não a intervir, mas a oferecer mais vistos aos que agora estavam desesperados por fugir. Os nazis estavam a encorajar a partida dos judeus para poderem apoderar-se das suas propriedades e dos seus bens. Seis meses depois dos pogroms de novembro, mais de cem mil judeus alemães já tinham emigrado e muitos mais estavam ainda à espera dos documentos necessários para o fazer. Os judeus que se encontravam nas prisões e nos campos de concentração tinham ficado a saber que também eles poderiam emigrar, desde que tivessem um visto e fundos para a viagem. Entre

os que acalentavam a esperança de receberem em breve os documentos necessários encontrava-se Olga Benario. Embora a sua mãe a tivesse renegado, a sogra brasileira de Olga, Leocadia, bem como a irmã de Carlos Prestes, Lígia, empenhavam-se incansavelmente no caso de Olga desde que tinham conseguido obter a libertação da sua bebé, Anita. Imediatamente antes de sair de Lichtenburg, Olga escreveu a Carlos, que se encontrava detido numa prisão no Brasil. «A primavera chegou finalmente e os rebentos verde-claros das árvores olham curiosos por cima dos muros do pátio da nossa prisão. Mais do que nunca anseio por algum sol, por beleza e sorte. Virá o dia em que nos reuniremos com Anita e Leocadia, nós os três felizes? Perdoa-me estes pensamentos, eu sei que tenho de ser paciente.» Quando amanheceu na zona campestre da região de Mecklenburg, a luz do sol penetrou pelas fendas do oleado e as prisioneiras sentiram-se mais animadas. As austríacas cantavam. Quando os autocarros chegaram perto de Ravensbrück, era meio-dia e fazia um calor sufocante. As mulheres respiravam a custo. Os autocarros saíram da estrada e pararam. Abriram-se as portas e as que estavam à frente viram um lago cintilante. O odor do pinhal encheu o autocarro. Uma comunista alemã, Lisa Ullrich, reparou numa «aldeia esparsamente povoada situada junto a um pequeno lago idílico, rodeada por uma escura floresta de abetos». O coração das mulheres «saltou de alegria», recordou Lisa, mas antes de todos os autocarros pararem ouviram-se gritos, berros, estalar de chicotes e os latidos de cães. «Recebeu-nos um chorrilho de ordens e de insultos quando começámos a sair dos autocarros. Apareceram hostes de mulheres por entre as árvores — guardas de saia, blusa e boné, com chicotes nas mãos, algumas com cães a ganirem e a precipitarem-se para os autocarros por entre as árvores.» Ao descerem dos autocarros, várias mulheres desmaiaram e as que se debruçavam para as ajudarem eram derrubadas por terra pelos cães ou chicoteadas. Não o sabiam ainda, mas uma das regras do campo de concentração era que ajudar outra prisioneira constituía

uma infração. «Cadela, cabra suja, põe-te de pé. Cadela preguiçosa.» Uma outra regra era que as prisioneiras tinham sempre de formar filas de cinco. «Achtung, Achtung. Filas de cinco. Mãos ao lado do corpo.» As ordens ecoavam por entre as árvores enquanto as prisioneiras que ficavam para trás eram pontapeadas por botas militares. Petrificadas com o terror, de olhos pregados no solo arenoso, as mulheres faziam os possíveis por não darem nas vistas. Evitavam o olhar umas das outras. Algumas gemiam. Mais um estalar de chicotes e fez-se silêncio total. A rotina bem ensaiada da SS cumprira o seu objetivo — causar o máximo de terror no momento da chegada. Quem tivesse pensado em oferecer resistência, a partir daquele momento ficaria submissa. O ritual já se desenrolara centenas de vezes em campos de concentração masculinos e estava agora a ser representado pela primeira vez nas margens do Schwedtsee. Seria pior para as prisioneiras que chegaram mais tarde, pela calada da noite, ou em tempo de neve, sem compreender a língua. Mas todas as sobreviventes de Ravensbrück recordariam o trauma da chegada; todas recordariam o seu próprio silêncio. Este primeiro grupo mantém-se de pé e em silêncio ao calor durante cerca de duas horas. Quando começa a contagem, Maria Zeh, de Estugarda, olha para cima e vê que a colza está em flor. É esbofeteada. «Die Nase nach vorne!», berra uma guarda — o nariz para a frente. As mulheres são contadas de novo e a seguir mais uma vez — mais uma lição a aprender: se alguém sair da fila ou desmaiar ou se a contagem estiver errada, começa tudo de novo. «E antes de marcharmos entregam um papel à chefe das guardas com a contagem», recorda Lisa Ullrich. A chefe das guardas é Johanna Langefeld. Está à parte e verifica agora os números. Dá sinal para as mulheres marcharem. A figura corpulenta de Max Koegel também lá está. Avançando, as prisioneiras passam por casas meio construídas à

sua esquerda, mas só se apercebem vagamente do que as rodeia. Entram para uma vasta clareira onde todas as árvores foram cortadas e todas as ervas arrancadas, deixando areia e pântano. Neste terreno baldio ergue-se um enorme muro cinzento. As mulheres entram por um portão e apercebem-se de que entraram no novo campo de concentração. «Achtung, Achtung, filas de cinco.» Estão de pé numa praça inóspita de areia, com marcas no chão como as de uma parada militar. Cheira-lhes a madeira nova e a tinta fresca. A toda a volta há sombrios barracões de madeira. Algumas das mulheres reparam em canteiros de flores vermelhas. O sol brilha impiedoso. O portão fechase por trás das mulheres.

Os nazis apontavam para estudos científicos que mostravam que as mulheres tinham o cérebro mais pequeno do que o dos homens e, por consequência, eram obviamente inferiores.

Os serviços secretos britânicos boicotaram igualmente uma tentativa de manifestantes comunistas de tirar Olga do navio, quando atracasse em Southampton a caminho de Hamburgo. Moscovo tinha avisado antecipadamente o Partido Comunista britânico em Londres, apelando a que fossem organizados protestos, mas o sinal foi intercetado pelo MI6 e o navio seguiu diretamente para a Alemanha sem entrar em mais nenhum porto.

Por exemplo, todos os ciganos em Berlim foram arrebanhados antes do início dos Jogos Olímpicos. Para os tirar da vista do público, foram metidos num vasto campo construído num pantanal em Marzhan, um subúrbio de Berlim.

Dezenas de milhares de judeus alemães do sexo masculino foram detidos em campos de concentração depois da Kristallnacht, mas as mulheres judias não tinham sido detidas, provavelmente por receio de criar controvérsia e por não haver ainda espaço suficiente para as pôr atrás das grades naquela altura.

CAPÍTULO 2 SANDGRUBE «Mãos ao lado do corpo. Filas de cinco. Olhar para a frente.» Em grupos, as prisioneiras marcham na direção de um edifício novo à direita do portão, onde se inicia o ritual seguinte: o banho. O primeiro grupo entra e vê mesas com guardas atrás delas e pilhas de peças de vestuário às riscas. Tudo tem de ser despido. As mulheres começam a tirar a roupa. «Schnell, schnell.» Algumas ficam paradas, com fitas a segurarem panos para o fluxo menstrual, e olham para as guardas, que lhes berram: «Tirem tudo.» E tudo é tirado e atirado para grandes sacos de papel pardo, juntamente com todas as peças de roupa e todos os bens materiais. As prisioneiras entregam tudo: últimas cartas, fotografias de filhos, lenços bordados, gorros, pequenos cestos, poemas, pentes. «Até não restar nada.» Alianças de casamento também. Completamente nuas, as mulheres fitam de novo os pés, mas algumas olham para cima e gritam ao verem que os oficiais da SS estavam ali presentes desde o início, a olharem fixamente para elas. Eles riem-se e berram insultos ao verem a humilhação das mulheres. A seguir, chegam as barbeiras e algumas das mulheres são empurradas para o lado. «Beeilt euch, beeilt euch!» — Avancem — e o cabelo das mulheres selecionadas é rapado. A seguir aparece outra mulher. Manda as mesmas mulheres afastarem as pernas e rapa-lhes os pelos púbicos. Poucas horas depois da sua chegada, em 15 de maio de 1939, as primeiras das 867 prisioneiras transferidas de Lichtenburg para Ravensbrück já se despiram, foram lavadas, inspecionadas para ver se tinham piolhos e em muitos casos rapadas, porque a Oberaufseherin não permite infestações ali. As prisioneiras

receberam em seguida novo vestuário: vestidos e casacos de algodão às riscas azuis e brancas, um lenço de cabeça branco, meias e calçado grosseiro de madeira, como socos. A cada uma foi dado um número, impresso num pequeno pedaço de tecido branco. Era o mesmo número que lhes tinha sido atribuído à chegada a Lichtenburg — de 1 a 867. Também lhes foi dado um triângulo colorido de feltro. Passaram-lhes para as mãos uma agulha e linha e ordenaram-lhes que cosessem os triângulos ao ombro esquerdo dos seus casacos. A cor do triângulo indicava em que categoria a prisioneira tinha sido colocada: preto para «associais» — prostitutas, mendigas, pequenas criminosas, lésbicas; verde para criminosas habituais; vermelho para prisioneiras políticas; lilás para testemunhas de Jeová; amarelo para judias. Estas foram subdivididas, dependendo da razão para a sua detenção. Todas as judias usavam um triângulo amarelo, mas as identificadas como «Pol. Jude» — detidas por crimes políticos — usavam um triângulo amarelo sobre um fundo vermelho. Nas judias políticas incluía-se a categoria mais numerosa, as que tinham sido presas por Rassenschande, relações com um não-judeu; destas havia noventa e sete. As judias presas por serem associais usavam um triângulo amarelo sobre um fundo preto. Depois de serem cosidos os números e os triângulos, ouviu-se o som de uma sirene pelo sistema de altifalantes e as mulheres perfilaram-se de novo na Appellplatz antes de marcharem, por categoria, para blocos separados, lideradas pela sua Blockführer, a guarda do bloco. As judias foram levadas para o «Judenblock», exceto Olga Benario, que foi levada para o outro lado. Dentro dos blocos, a cada mulher foram atribuídos uma cama num beliche, uma tigela, um prato, um copo de alumínio, uma faca, um garfo e uma colher, assim como um pequeno pano para secar e polir os utensílios. Qualquer mancha nos utensílios acarretaria uma participação a Langefeld, que tinha dado instruções exatas sobre o polimento. Tal como estava acordado ao abrigo do Lagerordnung do campo de concentração, a Langefeld competia o controlo de

«questões femininas», que incluía autoridade exclusiva sobre os blocos de habitação; Koegel e os seus homens não tinham autorização de entrada neles a não ser que fossem acompanhados por uma guarda. Para a sua higiene pessoal, foram dados a cada mulher uma escova de dentes, um copo, um pedaço de sabão e uma toalha pequena. Qualquer item que fosse perdido implicaria uma «participação» à Oberaufseherin. A cada mulher foi atribuída uma minúscula prateleira para guardar os seus pertences; o desaparecimento de qualquer objeto seria motivo para uma «participação». Havia uma série de regras para fazer a cama. Tinha de ser feita «ao estilo prussiano», como se requeria em todos os campos de concentração, mas ali Langefeld deu também as suas próprias instruções específicas: as almofadas deveriam ser sacudidas de modo a que os cantos formassem ângulo reto com a cama; o colchão deveria ficar perfeitamente liso, o que era impossível, visto que o seu enchimento era de serradura. Todas as mulheres recordavam que lhes era requerida uma precisão particular na forma de dobrar o cobertor aos quadrados azuis e brancos. «O cobertor tinha de tapar a almofada e de ficar alinhado com a beira da cama, com a linha de quadrados absolutamente direita», recordou Fritzi Jaroslavsky, uma prisioneira austríaca, dobrando nervosamente a bainha de uma toalha de mesa enquanto falava. «Até mesmo dois centímetros para fora do colchão implicavam que a guarda se pusesse a berrar “Vaca preguiçosa, cadela estúpida” e a dar-nos pontapés ou a bater-nos e a berrar “Participação”.» O pior de tudo eram as regras da Appell, a chamada. Às cinco da manhã, o campo de concentração era acordado por uma sirene e as prisioneiras marchavam para fora dos blocos para se perfilarem em filas de cinco, de mãos ao lado do corpo e em sentido enquanto era feita a contagem. Mesmo naqueles primeiros tempos, demorava cerca de meia hora a acertar com os números, e às cinco da manhã

soprava um vento frio do Schwedtsee, trespassando o vestuário de algodão. «Achtung! Achtung! Mãos ao lado do corpo, filas de cinco.» Por vezes, Langefeld fazia a Appell em pessoa, mas usualmente deixava essa tarefa à sua delegada, Emma Zimmer, que também tinha vindo de Lichtenburg. Zimmer, uma mulher de cinquenta e um anos que tinha o «pulso solto» — gostava de esbofetear as prisioneiras —, percorria as filas com um dossiê grande, com o qual batia nas cabeças das prisioneiras ao menor movimento ou som. Por vezes, usualmente quando estava bêbeda, Zimmer — a quem as prisioneiras puseram a alcunha de «Tia Emma» — também as pontapeava com as suas botas militares. Langefeld nunca batia nem dava pontapés, embora por vezes pregasse uma forte bofetada numa prisioneira, particularmente quando ouvia uma «participação». A prisioneira culpada da infração era levada ao gabinete de Langefeld para responder à acusação — de ter perdido uma caneca, de não ter dobrado bem o cobertor —, que podia tentar justificar. Em seguida, Langefeld tomava a sua decisão e, se a acusação ficasse provada, ela esbofeteava a prisioneira e anunciava o castigo, que podia ser limpar as casas de banho, embora a punição preferida de Langefeld fosse obrigar a prisioneira a permanecer de pé durante várias horas sem comer. Se a mulher castigada caísse, seria deixada por terra durante algum tempo antes de ser levada. Para casos sérios, Langefeld estava habilitada a usar camisas de forças e jatos de água. Depois de Zimmer terminar a contagem matinal, as mulheres regressavam aos seus blocos, onde um líquido preto que passava por café era servido com um pedaço de pão, a porção diária, que podia ser comida naquele momento ou guardada na prateleira para mais tarde. A sirene soava mais uma vez e começavam as seleções para os grupos de trabalho. As prisioneiras perfilavam-se de novo e em seguida era-lhes ordenado que pegassem em ferramentas e marchassem para o trabalho — recolher areia às pazadas ou construir uma estrada — a cantar marchas alemãs. No regresso, ao fim do dia, eram contadas novamente.

Ao fim de alguns dias, a maior parte das prisioneiras de Lichtenburg já tinha sido transferida para Ravensbrück. As regras de Langefeld já tinham sido decoradas e a ordem estava estabelecida. Os sacos de papel pardo com as roupas e os pertences das prisioneiras já tinham sido levados para a Wäscherei, para as roupas serem lavadas e em seguida passadas a ferro com um gigantesco ferro a vapor. Cada item era depois colocado de novo no seu saco de papel pardo numerado e enviado para a Effektenkammer, na porta ao lado. A Effektenkammer estava dividida em quatro compartimentos. Num deles encontrava-se uma mesa comprida assente em cavaletes, onde todas as peças de vestuário e todos os pertences das prisioneiras eram espalhados para serem em seguida cuidadosamente arrumados. O compartimento ao lado era um gabinete com duas secretárias, duas máquinas de escrever e um grande armário de metal contendo centenas de fichas, nas quais estavam escritos o nome e o número de cada prisioneira e pormenores sobre todas as peças de vestuário e todos os bens pessoais, com cópias enviadas para o gabinete de Langefeld.5 Os objetos de valor eram guardados nos armários de metal, fechados à chave por uma questão de segurança, e cuidadosamente registados. As roupas eram dobradas e colocadas em sacos de papel pardo novos, que eram pendurados em cabides; os cabides eram levados para serem pendurados em varões no sótão grande por cima do gabinete de Langefeld. Quando alguma prisioneira era libertada, mandavam-na à Effektenkammer, onde dizia o seu número a uma funcionária, que ia ao sótão e tirava o seu saco de roupas usando um varão com um gancho. Mais tarde, quando chegaram prisioneiras da Polónia, da Rússia e da França, algumas traziam malas cheias de bens pessoais, que eram todos metidos em sacos de papel e registados da mesma maneira, disse Edith Sparmann, uma prisioneira alemã da Checoslováquia que trabalhava na Effektenkammer. Os sacos eram enormes e de um papel pardo muito forte, alinhavados dos lados. Um

dos compartimentos estava exclusivamente reservado para estes sacos de papel pardo, prontos para os grandes transportes. «Havia uma série de objetos de valor mais tarde», disse Edith, que também se recordava de como Langefeld ia frequentemente à Effektenkammer para verificar as coisas. «Ela não era tão má como algumas das outras. Deixou a minha mãe ficar com a aliança de casamento.» Nos primeiros dias, foram também atribuídas tarefas na cozinha às prisioneiras e as rações para cada bloco foram cuidadosamente calculadas, dependendo da contagem das prisioneiras na noite anterior. Na Revier, a enfermaria, todas as prisioneiras eram submetidas a um exame vaginal; se alguma delas tivesse sífilis, que era o caso de Agnes Petry, esse facto ficava registado na sua ficha. As mulheres que estivessem grávidas iam ter o bebé a um hospital das redondezas, em Templin. O bebé era dado para adoção e a mulher voltava para o campo de concentração. Ao fim dos primeiros sete dias, a contagem — incluindo algumas novas chegadas a acrescentar às de Lichtenburg — perfazia um total de 974 prisioneiras no campo de concentração. Destas, 114 usavam um triângulo vermelho (prisioneiras políticas); 388 testemunhas de Jeová usavam um triângulo lilás; 119, verde (criminosas habituais); 240, preto (associais); 137, amarelo (judias) e algumas das categorias sobrepunham-se. A partir daquele momento, a cada nova mulher que chegava era dado um número em sequência, de modo que, simplesmente com base no número, era imediatamente evidente, tanto para as guardas como para as outras prisioneiras, quem já estava há mais tempo no campo de concentração e quem tinha chegado mais tarde. A primeira prisioneira a quem foi dado um número «puramente» de Ravensbrück (ou seja, que não tinha sido transferida de Lichtenburg) era uma professora alemã de trinta e sete anos detida por resistência comunista, chamada Clara Rupp. Chegou em 25 de maio e foi-lhe atribuído o número 1415. Até ao final da primeira semana, as fichas de todas as primeiras mulheres a chegarem já tinham sido copiadas e arquivadas e as suas

roupas arrumadas em sacos de papel pardo pendurados acima da cabeça de Langefeld. O trabalho de Langefeld, no entanto, ainda mal tinha começado. O gabinete de Johanna Langefeld, dentro de um bloco como os outros perto do portão, não era tão grandioso como as instalações vastas do comandante, construídas em pedra, mas a localização do seu bloco era ideal. Da secretária, avistava a Appellplatz, o que lhe permitia observar muito do que ali se passava. O seu gabinete contava também com bastante pessoal. Uma série de funcionários e de datilógrafas sentava-se a secretárias, com as prisioneiras em fila à espera de darem pormenores sobre a sua detenção, o seu historial médico e o contacto do familiar mais próximo, que eram anotados em várias fichas diferentes. Em seguida, o mensageiro de Langefeld levava cópias das informações sobre as prisioneiras aos departamentos relevantes no campo de concentração. Nos primeiros dias, houve uma série de questões administrativas a tratar. Chegavam pedidos de informação de departamentos policiais. «O KZ [Konzentrationslager, campo de concentração] paga o preço do bilhete de comboio de uma prisioneira?», queria saber a polícia de Hamburgo. «Düsseldorf devia mandar chapéu?» Chegavam cartas da Cruz Vermelha alemã, transmitindo pedidos de informação sobre prisioneiras recebidas da Cruz Vermelha internacional em Genebra. Uma filha, Tanja Benesch, queria notícias da sua mãe, Susi. E Langefeld viu-se obrigada a dizer a Max Koegel que as máquinas de lavar roupa do campo de concentração eram só para o vestuário das prisioneiras e para a roupa de cama; ele teria de mandar lavar as suas roupas noutra parte. Mais trabalhos foram atribuídos às prisioneiras. Hanna Sturm, uma carpinteira comunista austríaca, foi incumbida de construir vedações e martelar pregos. Surgiram bastantes problemas de disciplina. Uma outra austríaca, chamada Marianne Wachstein, chegou de camisa de noite e não sabia quem era.

Hedwig Apfel, que dizia ser cantora de ópera e de Viena, atirou o seu colchão ao chão no primeiro dia e mal tinha parado de gritar desde então. Alguns dias depois da abertura do campo de concentração, lançou-se uma busca a nível nacional por Katharina Waitz, a trapezista cigana, que escapara novamente, embora ninguém soubesse como. As testemunhas de Jeová causaram mais problemas a Max Koegel, desta vez recusando a sua oferta de as libertar. A troco da sua libertação, fora dito às mulheres, simplesmente teriam de assinar um papel a renegar a sua fé, mas todas recusaram, repetindo que o Führer era o Anticristo. Foi em grande medida devido ao motim das testemunhas de Jeová em Lichtenburg que Koegel inicialmente solicitou a construção de um bloco de detenção em Ravensbrück. Disse ao seu superior da SS, Theodor Eicke, algumas semanas antes da abertura do campo de concentração: «Vai ser impossível manter a ordem se não pudermos vergar aqueles estafermos histéricos. Priválas de comida não vai pô-las submissas sem alguma forma de detenção rigorosa.» Embora aquele seu primeiro pedido tenha sido recusado, Koegel obteve autorização para converter um bloco de alojamento num «bloco de punição», um Strafblock, e vários «estafermos histéricos» não tardaram a ser atirados lá para dentro. O Strafblock situava-se a alguma distância dos outros blocos, por trás de arame farpado. As prisioneiras eram enviadas para lá por crimes tais como chegarem repetidamente atrasadas à Appel, não fazerem a cama de acordo com as regras ou se recusarem a cumprir uma ordem. As prisioneiras do Strafblock eram forçadas a trabalhar mais horas, nos piores grupos, sem dia livre. Eram usadas formas de punição como camisas de forças e jatos de água. Anexadas a um dos extremos do Strafblock, foram construídas algumas celas solitárias em madeira. A Gestapo de Berlim tinha solicitado a construção dessas celas para encarcerar prisioneiras que ainda estivessem sob interrogatório, embora começassem também a ser detidas outras mulheres em prisão solitária, entre elas Marianne

Wachstein, a austríaca que tinha chegado de camisa de noite. Fecharam-na numa cela depois de ela se recusar a assinar um documento relacionado com a sua detenção e por ter protestado que os seus direitos humanos estavam a ser violados. Como Marianne explicou mais tarde, recusou-se a assinar porque não fazia ideia do motivo por que estava ali; vinte e quatro horas antes, tinha sido arrancada, inconsciente, de uma cela numa prisão em Viena onde estava detida por «insultar» o Führer. «Do que me lembro a seguir é de acordar em camisa de noite num vagão de um comboio. Belisquei-me, porque julguei que estava a sonhar; não era sonho, era a realidade.» Um guarda no comboio disse-lhe inicialmente que ela estava a ser levada para um manicómio. «Isso pôs-me feliz.» Depois, o comboio passou por Salzburgo «e eu compreendi que estava a ser raptada para a Alemanha. Sentia-me muito perturbada e não conseguia pôrme de pé nem andar». Um guarda berrou-lhe e começou a desferirlhe pancadas na cabeça. «Comecei a vomitar. Ele agarrou em mim, puxou-me para cima, atirou-me para um banco e fechou a porta.» Sem saber o que estava a passar-se, Marianne foi conduzida para Ravensbrück e obrigada a assinar um documento que não lhe permitiram ler. «Então, eu disse, Deus vai vingar-me e os comunistas vão ter a sua vingança do que os nazis fizeram.» Nessa altura, Marianne foi levada à presença do comandante e punida com quarenta e dois dias de «detenção agravada», o período máximo segundo as regras do Strafblock, um documento com várias páginas. Para as prisioneiras condenadas a prisão solitária, a «detenção simples» permitia-lhes ter um colchão e um cobertor na cela e alguma luz; era-lhes dado café e pão uma vez por dia e uma refeição quente a cada quatro dias. As prisioneiras condenadas a «detenção agravada» recebiam as mesmas rações, mas ficavam fechadas numa cela escura sem colchão nem cobertor, só com um balde e nada mais. Koegel decidia todos os casos do Strafblock sem consultar Langefeld, embora a delegada dela, Emma Zimmer, que dirigia o

bloco, mantivesse a Oberaufseherin bem informada. Segundo Ilse Gostynski, algumas guardas sentiam-se tão obviamente descontentes com as condições nos primeiros tempos que foram despedidas. Entre as que tinham vindo de Lichtenburg havia «uma lésbica, muito decente para com as prisioneiras, mas frequentemente bêbeda», que foi despedida por ser «demasiado bondosa». Três outras foram-se embora porque «já não conseguiam aguentar mais aquilo». A própria Langefeld afirmaria mais tarde que, quando chegou a Ravensbrück, acreditava ainda que o seu papel seria o de «reeducar prostitutas». A verdade é que ela não podia recusar uma promoção como aquela, especialmente vinda do próprio Reichsführer da SS. Era agora a mulher mais importante no império dos campos de concentração de Himmler. E por si só as condições oferecidas eram tão atraentes que seria muito difícil desistir do emprego. Langefeld e todas as suas guardas devem ter ficado agradavelmente surpreendidas ao verem o seu alojamento. Várias destas mulheres eram viúvas ou divorciadas e, tal como Langefeld, tinham sido transferidas de Lichtenburg, depois de trabalharem vários anos em prisões e em casas de correção. Uma mulher de meia-idade chamada Ella Pietsch, treinada para ser guarda de casas de correção, não tinha mais nenhum sítio para onde ir, uma situação em que se encontrava também Jane Bernigau, que anteriormente trabalhara em orfanatos. Ambas concorreram ao emprego em Ravensbrück por causa do salário e da segurança que proporcionava. Outras eram operárias fabris que tinham perdido o emprego. Ottilie Lotz conseguiu aquele emprego por acaso. Depois de o seu marido morrer, Lotz mudou-se para Lichtenburg para estar mais perto da filha; arranjou emprego como funcionária administrativa na fortaleza e foi promovida a guarda. Estas mulheres do quadro do pessoal do campo de concentração estavam alojadas em boas casas com telhados inclinados situadas entre os pinheiros e com vista para o lago. A cerca de cem metros, fora dos muros do campo de concentração, ficavam perto, mas ao mesmo tempo estavam suficientemente distantes dele para

possibilitar uma sensação de separação do trabalho. Muitas dessas casas estavam ainda a ser construídas e havia prisioneiros a trabalharem por toda a parte — a carregarem tijolos das barcaças atracadas no lago —, mas algumas das casas já se encontravam acabadas. Os interiores estavam decorados com gosto. Os quartos ficavam dos lados de uma escadaria central, e cada um deles tinha cortinados bonitos e mobiliário novo. Cada quarto era partilhado por duas mulheres, tendo cada uma delas o seu guarda-fatos e a sua cómoda. O apartamento da chefe das guardas era maior do que os outros e ela teve autorização para trazer consigo Herbert, agora com onze anos, para viver com ela; ele frequentaria a escola local. Às guardas que tinham filhos foram prometidas vagas grátis no infantário do pessoal, que abriria em breve — várias mães solteiras tencionavam trazer os filhos com elas. Mais acima na encosta, por entre as árvores, ficavam as casas mais grandiosas dos oficiais da SS, rodeadas por grandes jardins. A casa de Koegel, onde ele vivia com a sua mulher, Marga, tinha soalhos de parquet e uma escadaria elegantemente esculpida. Pela casa havia chifres de veados e outros troféus de caça pendurados; havia também chifres de veados pendurados por cima do pórtico exterior. A localização das moradias do pessoal da SS, distante do campo de concentração, num local natural agradável, era uma característica comum a todos os campos. A intenção era levar os funcionários da SS a sentirem-se contentes no seu ambiente. Em Ravensbrück, os homens tinham o seu próprio campo de jogos da SS, enquanto as mulheres podiam ir andar de barco no lago no verão ou fazer piqueniques nos bosques. Para as mulheres mais jovens, não eram só o salário e as condições que as atraíam: a perspetiva de conhecerem um atraente oficial da SS era outro fator apelativo; ao mesmo tempo, às que eram lésbicas — uma minoria significativa —, Ravensbrück oferecia oportunidades especiais para conhecerem outras mulheres,

particularmente numa época em que o lesbianismo, como a homossexualidade em geral, era fortemente reprovado. As novas recrutas ficaram também satisfeitas ao encontrarem uma cantina do pessoal bem abastecida, e na bonita cidade de Fürstenberg havia um cinema, vários bares e um salão de cabeleireiro onde se podia fazer uma ondulação permanente à moda. Pouco tempo depois de chegarem, as mulheres enviaram postais à família e aos amigos descrevendo o seu novo emprego com orgulho. Várias guardas tinham álbuns de fotografias e diários do período passado em Ravensbrück com imagens da decoração «luxuosa» dos seus apartamentos. As guardas com cães, que tinham um estatuto especial, tiravam fotografias com os seus cães ao lado. Gertrud Rabenstein, a guarda conhecida em Lichtenburg como «Gustav de Ferro», tirou fotografias com Britta, a sua cadela pastora-alemã, de pé junto ao muro do campo de concentração. Rabenstein era divorciada e tinha perdido a custódia do seu filho. Organizou um álbum de fotografias para lhe dar a conhecer algo da sua vida no campo de concentração. «Os cães foram treinados para atacar pessoas com uniforme de prisioneiro», disse ela. Ao lado das imagens de Gertrud com Britta aparecem cenas felizes de mãe e filho de férias. No julgamento de Rabenstein no pós-guerra, o filho foi chamado a prestar declarações sobre a mãe e disse que o lema dela era: «Sê dura. Sê dura. Ser dura é bom. Não sejas sentimental.» Disse que ela costumava contar-lhe uma história sobre como uma vez tinha visto um ferreiro a bater o metal e este a endurecer. «Isso foi bom.» As guardas depressa se instalaram e Langefeld atribuiu-lhes as suas tarefas. Várias ficaram encarregadas dos blocos enquanto outras deveriam vigiar os grupos de trabalho no exterior. Langefeld deu a todas instruções sobre o comportamento a adotar; por exemplo, cruzar os braços ou sentar-se na presença de prisioneiras era proibido e os mexericos constituíam uma infração que poderia ser punida com despedimento. As guardas só poderiam visitar as instalações masculinas com a permissão de Langefeld.

Em questões mais alargadas relativamente ao tratamento das prisioneiras, no entanto, rapidamente se tornou evidente que muitas das guardas — particularmente as que vigiavam os grupos de trabalho no exterior — seguiam as indicações de Koegel, não as de Langefeld. Do seu gabinete, Langefeld via as mulheres que eram trazidas diariamente do areeiro com as pernas e os braços em sangue. E mesmo do seu apartamento conseguia ouvir os gritos das mulheres. Edith Fraede deixava os cães rosnarem e morderem as mulheres entre os portões do campo de concentração e o areeiro — ou Sandgrube, como era conhecido. Se uma prisioneira aterrorizada deixasse cair a pá, Fraede dava-lhe pontapés ou pegava na pá e batia-lhe com ela nas costas. Fraede tinha cerca de trinta anos e era grande e loura. Rabenstein, no entanto, usualmente esperava até o trabalho já estar em curso para extravasar, mas nessa altura já Britta estava a puxar pela trela. Nos primeiros tempos, as guardas com cães não conseguiam controlá-los. Eram novatas e na primavera e no verão era difícil, porque os cães estavam muitas vezes com cio. Por isso, quando uma prisioneira caía ou corria para o lago para beber água, os cães puxavam com tanta força que as guardas simplesmente os soltavam da trela. Nesta altura, o areeiro ficava mesmo junto aos muros do campo de concentração, perto do lago e do local onde estavam a ser construídas as casas para os SS. Mal os grupos de trabalho chegavam ao areeiro, as mulheres tinham de se perfilar e começar a cavar. Às nove da manhã, o sol já era forte e elas sentiam o suor a escorrer-lhes pelas costas. Tinham de encher uma pá de areia de um monte e atirá-la para outro até toda a areia ter sido transferida de um lado para o outro. A seguir, voltavam a passá-la para outro monte, com as guardas a berrarem «Schnell, schnell, cadelas preguiçosas». Outro grupo atirava com a areia para um monte a um ou dois metros pela encosta acima. «Pás

cheias, pás cheias. Vacas imundas. Escumalha. Cadelas. Vacas imundas.» As pás eram demasiado curtas ou demasiado compridas, estavam dobradas ou partidas. Por vezes, um grupo tinha de amontoar a areia num vagão e pô-lo em cima de uns trilhos improvisados. Muitas vezes, o vagão saltava dos trilhos e as mulheres tentavam impedir que se virasse, mas quando caía, espalhava o seu conteúdo e elas tinham de voltar a enchê-lo. Com a temperatura a subir, as guardas berravam e praguejavam ainda mais alto; batiam nas costas das mulheres e pontapeavam as que desmaiavam. Outros grupos descarregavam coque e pedras de uma barcaça no lago. As mulheres punham sacos às costas, enquanto mais acima na encosta outro grupo puxava cilindros de pedra para alisar a terra para a construção de uma estrada. Pelo menos o alisamento da terra tinha um objetivo. Não havia qualquer objetivo prático em retirar pazadas de areia de um lado para o outro.6 As prisioneiras não tardaram a detestar a areia. As testemunhas de Jeová achavam que aquele trabalho tinha sido concebido especificamente para elas, «para as fazer renegar o seu Deus», mas muitas notavam que eram as judias quem mais sofria: pareciam mais fracas e estavam menos acostumadas a provações físicas, diziam outras. Ao meio-dia, as mulheres no Sandgrube estavam já com os braços e o rosto queimados do sol e as bocas secas. Quando a areia se metia nos seus socos de madeira, queimava-lhes as solas dos pés e rebentava-lhes as bolhas. O Sandgrube não tardava a ficar manchado com sangue. Rabenstein e Britta supervisionavam o grupo que fazia as descargas. Mais acima na colina, observavam as prisioneiras a pegarem em sacos de carvão ou de pedras e a empilhá-los em carroças na margem do lago. As mulheres empurravam as carroças pela colina acima para uma entulheira, mas para lá chegar tinham de atravessar uma ponte improvisada feita de tábuas, e muitas vezes as mulheres de mais idade caíam das tábuas à água. Quando isso acontecia, as guardas berravam e davam pontapés a quem caísse.

Um dia, uma mulher deu com uma enxada na cabeça de Rabenstein, para se vingar. Foi enviada para o Strafblock e nunca mais voltou a ser vista. Por vezes, Rabenstein selecionava um grupo de mulheres aleatoriamente, mandava-as perfilarem-se por trás de um monte de pedras e dava-lhes pontapés com as suas botas. Ou ordenava a uma prisioneira que tirasse terra de um monte enorme cavando um túnel a partir de baixo até o monte começar a desabar. A prisioneira tinha de continuar a tirar terra com uma pá até o monte desabar por fim em cima dela e ela ser enterrada viva. Rabenstein considerava isto um jogo, a que chamava «Abdecken» — «telhado a cair». Depois, a prisioneira, pisada e a sufocar, era retirada pelas colegas. De pé, em cima de uma cadeira na sua cela de madeira, Marianne Wachstein viu desenrolar-se pela janela um «jogo» semelhante lá fora: Olhei lá para fora e vi o seguinte: uma jovem fraca — ouvi mais tarde dizer que se chamava Langen, sofria de lúpus e tinha um pedaço de carne cosido no nariz — recusou-se a retirar areia. Bateram-lhe com força, mas ela continuou a recusar-se a pegar na pá. Segurando-a firmemente, arrastaram-na até a um poço e assestaram jatos fortes de água sobre ela. Puseram-na assim num monte de areia só com a cabeça descoberta. Atiraram-lhe areia para a cabeça e para o rosto. Ela estava constantemente a tentar libertar-se. Este jogo prolongou-se por tanto tempo que por várias vezes desci da pequena cadeira e sentei-me.

Wachstein reparou que algumas guardas estavam a assistir à cena e um dos assistentes principais do comandante também. Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, demorou pouco tempo a fazer a sua avaliação do campo de concentração. Nem todas as prisioneiras eram enviadas para o trabalho no exterior; como as competências de Hanna — era serralheira e vidraceira, para além de carpinteira — eram demasiado valiosas para serem desperdiçadas em trabalhos inúteis, começou a ser empregada como faz-tudo, o que lhe permitia bisbilhotar dentro de escritórios e de blocos e surripiar coisas — um número atrasado de um jornal ou talvez uma faca —, que trazia às escondidas para o seu bloco. A sua melhor descoberta,

logo ao princípio, foi um exemplar já muito manuseado de Guerra e Paz. Há muito tempo que Goebbels tinha banido todos os livros de Tolstoi, juntamente com outras obras sediciosas de autores como Kipling, Hemingway, Remarque e Gide. Usualmente, os livros eram queimados ou usados como papel higiénico, e é provável que Hanna tenha encontrado o livro numa das latrinas. Ela tinha a esperança de arranjar uma oportunidade para o ler com as suas camaradas. Dado que cada minuto de cada dia era agora regulado por sirenes estridentes e por regras, falar com as amigas era difícil. Não havia cantos nem becos escondidos para onde as prisioneiras pudessem escapulir-se sem serem vistas. Os barracões estavam tão sobrelotados e as mulheres eram tão apertadamente vigiadas — sempre em movimento constante — que os contactos individuais ou a formação de pequenos grupos eram virtualmente impossíveis, precisamente o objetivo da forma como estava organizada a vida das prisioneiras. A médica Doris Maase detestava a companhia constante de «gentalha», mas exprimiu o seu desagrado de modo cuidadoso na carta censurada que mandou para casa: «Gostava de ser daquelas pessoas a quem a estupidez e a falta de interesse não incomodam tanto, mas não consigo evitá-lo. Talvez soe paradoxal, mas com o passar do tempo começa a preferir-se ser uma eremita a estar sempre rodeada de pessoas.» Algumas prisioneiras, conhecidas como Blockovas, tinham a seu cargo os blocos e competia-lhes fazer cumprir as regras. Por vezes, mesmo antes de as luzes se apagarem, se a Blockova de Hanna Sturm não estivesse por perto, ela batia na cama abaixo da sua, onde dormia a sua amiga Käthe Rentmeister, e Käthe alertava outra camarada, Tilde Klose, que dormia na cama por baixo da dela. As mulheres trocavam algumas palavras sobre a mais recente descoberta de Hanna ou, se a Blockova estivesse de bom humor, poderia até permitir uma pequena conversa de tempos em tempos. Uma ou duas destas novas prisioneiras com poder — a maioria com triângulos verdes ou pretos — comportavam-se como tiranas

desde o início; certos nomes — Kaiser, Knoll e Ratzeweit — eram já conhecidos entre as prisioneiras políticas desde Lichtenburg como sinónimo de problemas. Mas muitas destas primeiras prisioneiras a chegar ao campo de concentração já estavam juntas na prisão há muitos anos e tinham aprendido a dar-se umas com as outras, fossem quais fossem os seus antecedentes. Um pedaço de feltro de uma cor diferente cosido nos seus casacos às riscas não ia transformá-las em inimigas de um momento para o outro. Aos domingos, havia uma pausa. Nem todas as prisioneiras tinham folga ao domingo: o bloco das prisioneiras judias, o Bloco 11, e as prisioneiras do Strafblock tinham de trabalhar como de costume. Havia também uma Appell aos domingos ao meio-dia e limpezas a fazer. Mas ao fim da tarde as prisioneiras iam todas dar um «passeio» obrigatório — uma espécie de caminhada recreativa forçada ao longo da Lagerstrasse, ao som de música. As guardas na guarita ligavam o sistema de altifalantes a uma estação alemã de rádio e soavam marchas militares, o que, pelo menos, significava que as mulheres podiam conversar livremente, já que as guardas não conseguiriam ouvi-las. Depois da marcha, por vezes era possível deitarem-se tranquilamente na cama, lavarem a sua roupa, serem «normais». Tinham direito a uma colher de compota ao domingo, a um quadrado de margarina e a uma salsicha. As prisioneiras que tinham a sorte de receber dinheiro de casa podiam gastá-lo na loja do campo de concentração, que se situava na cantina do pessoal e vendia bolachas, pasta dos dentes e sabão. Durante este «tempo livre», o grupo de Hanna tentava reunir-se na parte de trás do bloco para lerem o seu livro; uma delas lia em voz alta enquanto outra ficava de vigia. Mal conseguiam acreditar na sua sorte por terem encontrado Tolstoi num campo de concentração. Aos domingos, as prisioneiras liam também cartas recebidas de casa e respondiam-lhes. Era autorizada uma carta por mês, que, naquela época antes da guerra e desde que não se fizesse menção à política ou ao campo de concentração, podia ainda ser bastante

longa. Nas suas cartas à família, Doris Maase mencionava que andava a ler livros. Doris trabalhava como enfermeira na Revier, onde também passava as noites. Ainda era possível receber encomendas de casa, incluindo livros, e havia até uma espécie de biblioteca no campo de concentração — uma coleção de livros aprovados, entre eles vários exemplares de Mein Kampf. «Hoje, tento passar o domingo», escreveu Doris à sua irmã em junho de 1939. «Estou a ler Para lá dos Bosques, de [Trygve] Gulbrannssen.» Como o marido de Doris, Klaus, estava em Buchenwald, os dois trocavam cartas censuradas, lendo nas entrelinhas. Pelo menos, como era prisioneiro em Buchenwald, Klaus fazia uma ideia daquilo por que Doris estava a passar; é claro que ela não podia contar-lhe nada sobre a brutalidade a que assistia. Sabemos pelo testemunho de Doris mais tarde que ela costumava ver pela janela da Revier os grupos a serem levados para o portão, conduzidos por um oficial da SS que deliberadamente obrigava as mulheres a passar por um lago grande, de modo que começavam a trabalhar completamente encharcadas. Em junho, a camarada de Olga Benario, Sabo (Elise Saborowski Ewert), a sua aliada na conspiração dos tempos do Brasil, subitamente caiu de joelhos e desmaiou quando trabalhava no Sandgrube. Sabo tinha sido violada e torturada numa prisão brasileira e nunca recuperara. Fraede pontapeou-a, mas Sabo não conseguiu levantar-se e acabou por ser levada para a Revier, onde se encontrava Doris, que pôde ajudá-la. «A Maase, onde é que está a Maase?», era o berro que se ouvia todos os dias na zona onde se faziam os curativos. «Há tantas coisas de que mal posso falar, está tanto à tua espera», escreveu ela numa carta a Klaus. Num outro domingo, numa carta à sua irmã, Doris mostrava entusiasmo pelas boas notícias de casa — «Ao princípio, não conseguia acreditar que algo assim tão agradável ainda exista. Quase sinto que lá estive» —, mas a sua tentativa de parecer animada não conseguia disfarçar o receio que sentia pelo que poderia acontecer à sua família no exterior. O pai de Dora, também médico, era judeu, e

ela sabia que, com a aproximação da guerra, o seu lado da família correria cada vez mais riscos; as novas leis estavam a tornar impossível qualquer forma de vida normal na Alemanha e o pai de Doris tinha sido proibido de exercer a sua profissão. Embora a sua mãe não fosse judia — o que explica porque é que Doris recebeu melhor tratamento do que outras prisioneiras judias no campo de concentração —, a pressão sobre esses «casamentos mistos» estava a aumentar, com os casais a verem-se forçados a contemplar a hipótese de uma separação ou da emigração. A certa altura, Doris pergunta: «Os pais andam a descontrair-se como deviam? Imagino rosas a desabrocharem aí e todos os dias mais qualquer coisa para colher no jardim», mas na carta seguinte fica a saber que a sua mãe e o seu pai vão «atravessar o canal», e fica à espera de mais notícias. «Quanto a mim, estou bem», escreveu Doris à sua irmã, e é quase tentador acreditar nela, porque prosseguiu dizendo: «Uso o cabelo comprido e bem preso e estou cheia de viço, por dentro e por fora» — embora seja impossível saber o que ela queria dizer com «viço». Sabemos pelos seus testemunhos mais tarde que nos finais de junho a temperatura no Sandgrube era escaldante e que as mulheres que Doris tratava tinham a pele queimada, chagas e furúnculos. O que preocupava as prisioneiras ainda mais eram os gritos aterrorizadores que vinham agora do Strafblock. As prisioneiras tinham recentemente descoberto que Olga Benario estava detida numa das sufocantes celas de madeira. Doris escreveu numa das cartas à família: «Meus queridos, faz tanto calor.» Foi Ilse Gostynski a primeira a descobrir que Olga se encontrava em prisão solitária. Ilse estava encarregada de despejar os baldes das celas e conseguiu trocar algumas palavras com Olga, que conhecia de Lichtenburg e cuja história lhe causara uma profunda impressão. Ilse recordava-se de Olga como uma «jovem de Munique, muito bela, muito inteligente. Em Ravensbrück, tratavam-na mal, não lhe davam quase nada para comer».

As celas eram feitas de madeira fina, com apenas dois metros de comprimento por dois metros de largura, e não dispunham de ventilação. Olga não tinha nada a não ser um colchão de palha e um balde. Ilse pôs Hanna Sturm ao corrente da difícil situação de Olga e Hanna conseguiu arranjar bolachas e pão para Olga, que Ilse levou à socapa quando foi despejar os baldes na vez seguinte. As suas camaradas enviavam-lhe mensagens. Se Zimmer visse Ilse, também ela seria detida em prisão solitária. «Deixava algumas doçarias ou um pedaço de papel com palavras reconfortantes das suas colegas... Ela estava muito mal», recordou Ilse. Pouco depois de encontrar Olga, Ilse foi informada de que iria ser libertada, o que deixaria Olga sem intermediária. Talvez o aspeto «normal» mais surpreendente do campo de concentração fosse o facto de, ao mesmo tempo que a brutalidade aumentava, serem libertadas prisioneiras regularmente. Os contactos ingleses de Ilse tinham-lhe conseguido um visto. Foi-lhe dito que podia ir embora e mandaram-na primeiro à Effektenkammer, onde as roupas que trazia vestidas à chegada lhe foram entregues juntamente com os seus bens pessoais, e em seguida ficou livre de partir. Nesse mesmo dia, Ilse apanhou um comboio para Berlim e daí a uma ou duas semanas já estava num comboio em direção a De Hoek, na Holanda, onde apanhou um ferry para atravessar o canal da Mancha para Harwick, na costa do Essex. Ali, esperavam-na amigos comunistas, os mesmos que tinham obtido os documentos necessários para a sua libertação. A salvo em Inglaterra, Ilse contou aos seus amigos o que se passava com Olga Benario e instou-os a contactarem a família do marido dela no Brasil; Ilse acreditava que o seu caso pessoal daria à família de Olga a esperança de conseguir obter também a sua libertação, mas teriam de arranjar um visto antes de rebentar a guerra. Alguns meses depois de chegar a Inglaterra, Ilse, como cidadã alemã, foi declarada estrangeira inimiga e internada num campo na ilha de Man. Depois da guerra, Ilse casou-se e teve uma filha, Marlene. Voltou a

encontrar-se com a sua irmã gémea, Else, que tinha passado a guerra escondida na Noruega. Ao fim de algum tempo, as irmãs descobriram que os seus pais tinham morrido em Auschwitz e que muitos dos seus amigos tinham tido o mesmo destino. Em 1951, Ilse tentou escrever a sua história, descrevendo resumidamente os anos passados em Moringen, Lichtenburg e Ravensbrück. Insatisfeita com a sua incapacidade de descrever «o medo e o sofrimento intermináveis», desculpou-se num posfácio aos seus leitores: «Ao reler o meu relato, sinto pena por não parecer conseguir descrever a verdadeira tragédia do campo de concentração.» Segundo a sua filha, Marlene, depois de escrever o relato Ilse nunca mais voltou a falar sobre o campo de concentração. «Sofria da dor e da culpa próprias dos que tiveram a sorte de sair antes de começar o pior.» Sentada num café na zona norte de Londres, Marlene, que é artista, mostrou-me um quadro que pintou em que Ilse e Else aparecem como meninas da burguesia alemã, com vestidos de musselina, «antes de se rebelarem e irem acampar para os bosques para lerem Marx», diz Marlene. Numa outra pintura, chamada Bars*, Marlene representa a mãe nos seus últimos dias, deitada na cama a dormir. «Voltou a ficar bela na velhice», diz a legenda de Marlene. «Tratam dela como se fosse um bebé e nunca fala nem sorri. Vejo a sombra da sua prisão a projetarse no fim da sua vida, um assunto por encerrar. Num outro lugar ou num outro tempo, a sombra poderia ter-se projetado sobre mim ou sobre o meu filho. Eu saberia como ser corajosa?»

Em português: grades (de prisão). (NT)

Depois de Ilse partir para Inglaterra, o número de chegadas começou a aumentar. Entre as novas prisioneiras encontrava-se uma jornalista checa chamada Jozka Jaburkova, detida em Praga no dia a seguir à invasão alemã, 16 de março de 1939. Logo que a capital checa caiu nas mãos do inimigo, toda a resistência foi erradicada, os intelectuais foram alvo de perseguições e algumas publicações

periódicas foram encerradas, entre elas A Semeadora, uma revista feminina comunista de que Jozka era editora. Ao chegar ao campo de concentração, Jozka sofria de terríveis dores de cabeça por ter sido violentamente espancada nos interrogatórios a que foi submetida, mas não tardou a encontrar camaradas comunistas que cuidassem dela. A sua chegada levantou os ânimos no bloco político, onde o seu nome já era conhecido. Pela sua parte, Jozka ficou encantada por saber que Olga se encontrava ali; tinha colaborado na sua campanha de libertação. Hanna convidou Jozka a juntar-se ao grupo de leitura de Tolstoi, e Jozka não só divertia as outras mulheres com as suas previsões da vindoura revolução comunista como com os seus contos de fadas; em tempos, publicara um livro de contos de fadas chamado Eva no País das Maravilhas. Em 28 de junho chegou a maior caravana de novas prisioneiras desde a abertura do campo dois meses antes. A meio da noite, 450 ciganas de Burgenland, na Áustria, entraram a marchar pelos portões, muitas delas a tremer nas suas camisas de noite, algumas acorrentadas umas às outras e outras grávidas ou com filhos ao colo. A maioria tinha tranças negras compridas e todas pareciam estar a gritar e a chorar. Com a guerra a grande escala agora iminente, Hitler abriu uma nova frente na guerra racial, ordenando o arrebanhamento de 3000 sinti e roma austríacos, a maior parte dos quais já vivia em Burgerland há várias gerações. Mulheres e homens foram arrastados das suas camas e levados sem qualquer aviso, e em seguida foram separados por sexo. Uma adolescente de quinze anos chamada Bella estava ainda de camisa de noite quando foi levada: «A minha mãe, que estava grávida, correu atrás do veículo, a gritar que parasse.» A maior parte das mulheres foi reunida, primeiro num salão local em Pinkafeld, onde estavam à sua espera rufiões da zona fazendo-se passar por agentes policiais e SS alemães. Muitas foram violadas «pelos SS da vila», como chamavam aos capangas locais de Hitler. As mulheres foram levadas em camiões para uma prisão perto de

Graz. Antes de partirem, um comandante da polícia que acompanhava a caravana ofereceu um sanduíche a Bella. «“Olha, toma”, disse ele. “Não, eu não como.” Ele disse: “Sim, comes. Eu sei como a fome dói”, por isso eu aceitei-a.» Na prisão de Feldbach, em Graz, havia guardas com cães-polícias. As mulheres aqui reunidas tinham sido arrancadas a um sem número de vilas de Burgenland e todas falavam do mesmo terror. Gisela Sarkozi foi detida com a sua irmã: «Eles vieram a meio da noite, por toda a parte, os SS, e o presidente da câmara também veio; ele era um “chefão” hitleriano. Arrombaram as portas e tiraram as pessoas para fora. Não nos deixaram vestirmo-nos.» Gisela foi transportada para a cidade de Oberwart, aonde a sua mãe foi levar-lhe roupa; daí levaram-na para Graz. Theresia Pfeifer e a irmã, Anna, foram expulsas da sua casa e em seguida amarradas e acorrentadas depois de algumas detidas terem tentado fugir. Meteram-nas em vagões para gado e viajaram de comboio durante dois dias e duas noites. Os homens foram enviados para Dachau, as mulheres para Ravensbrück. Quando o comboio parou em Fürstenberg, estava escuro como breu e ninguém fazia ideia de onde estavam. Os SS estavam por ali com os seus cães. «Tivemos de nos perfilar em pares e fomos levadas para o banho. Primeiro tivemos de nos despir diante dos SS. Todas chorávamos e gritávamos. Diziam-nos que tínhamos de ficar em silêncio, ou davamnos um tiro.» As tranças de Theresia foram-lhe cortadas, os pelos do corpo rapados. Deram-lhe um triângulo de feltro preto e mandaram-na cosê-lo ao vestido às riscas de prisioneira. Várias mulheres aos gritos foram levadas para o Strafblock, onde Zimmer se encarregou delas. Outras foram distribuídas pelos blocos e marcharam para o Sandgrube na manhã seguinte com as outras prisioneiras. Em julho, já toda a gente na Alemanha sabia que a invasão da Polónia estava iminente. As pessoas de etnia alemã que viviam na Polónia regressavam à Alemanha em grandes números, a guerra de propaganda de Goebbels contra os Polacos estava a intensificar-se e

as guardas do campo de concentração promoviam o ódio contra «as imundas eslavas». As guardas falavam também dos seus maridos, irmãos e filhos convocados para a guerra. Até mesmo o pastor Märker, o sacerdote de Fürstenberg, se tinha oferecido como voluntário para a guerra.7 Como se o próprio campo de concentração estivesse em pé de guerra, altas patentes militares vinham regularmente inspecioná-lo, o que levava a que Langefeld estivesse sempre a postos. Depois de ela manter todas as prisioneiras em parada ao longo de várias horas durante uma inspeção da Luftwaffe, ouviu-se um oficial perguntar: «Onde é que está o comandante? Não ouço uma voz de comando», ao que Langefeld respondeu que não tinha necessidade de berrar. Antes da guerra, as medidas de segurança foram apertadas em todo o campo de concentração, para o caso de haver «amotinamento». O Strafblock encheu-se e à volta da Appellplatz viam-se mulheres, hora após hora, de pé, descalças, viradas para a parede como «punição» por «crimes». No bloco político, o grupo comunista sentia mais dificuldade em falar, porque havia espias de Koegel por toda a parte. Jozka Jaburkova foi traída por uma espia um dia depois de deitar um farrapo na sanita, o que provocou o entupimento do sistema de esgotos. Odiada pelo seu «rosto arrogante», Jozka era sempre incumbida das tarefas mais imundas. Naquela altura, também ela foi obrigada a ficar de pé muitas horas, virada para a parede. Mas então, em 18 de julho, soube-se que a cela de Olga Benario estava vazia; ela tinha sido levada do campo de concentração sob escolta da Gestapo. As suas camaradas do grupo de leitura de Tolstoi acreditavam que tinha sido levada para Berlim para ser interrogada pela polícia secreta de Hitler. O facto de ela ter sido selecionada no período imediatamente antes da guerra demonstrava o quanto os fascistas ainda receavam a resistência comunista, diziam, e o alto preço que atribuíam ainda à cabeça de Olga. Algumas provas mais recentes apontam para uma explicação diferente: provavelmente, ela não foi levada do campo de concentração em julho de 1939 para ser

interrogada, mas porque a Gestapo tinha acedido a libertá-la. A prova de que Olga estava prestes a ser libertada encontra-se em parte num relatório da Gestapo sobre as circunstâncias da sua partida de Ravensbrück, incluindo uma descrição curiosamente pormenorizada do que levava vestido: «Um vestido multicolorido com um cinto vermelho, um casaco preto a três quartos, sapatos beges, meias de cor pálida e uma mala de mão amarela.» Claramente, antes da partida foi levada à Effektenkammer e vestiu-se com as suas roupas de civil; as únicas prisioneiras que partiam de Ravensbrück com roupas de civil em 1939 eram as que estavam prestes a ser libertadas. Anita Benario Prestes, a filha de Olga, que vive atualmente no Brasil e é professora na Universidade do Rio de Janeiro, tem mais provas de que a sua mãe estava prestes a ser libertada. Evidentemente, Anita era demasiado nova para compreender as negociações da libertação de Olga, mas a sua avó Leocadia e a sua tia Lígia contaram-lhe mais tarde o que aconteceu. Deram também a Anita a sua correspondência com a Gestapo, assim como todas as cartas escritas pela sua mãe a elas e a Carlos. Enquanto Carlos Prestes continuava encarcerado numa prisão brasileira, Leocadia e Lígia prosseguiram na sua campanha para tirar Olga de Ravensbrück. Ao princípio, tinham poucas esperanças, disse Anita, mas sentiram-se encorajadas por uma carta de Ilse Gostynski enviada de Inglaterra na qual as persuadia a continuarem a tentar. Assim, em junho de 1939, Leocadia e Lígia Prestes escreveram novamente às autoridades alemãs pedindo a libertação de Olga. Pouco depois, receberam uma resposta do gabinete de emigração judaico-alemão, segundo a qual a Gestapo estava disposta a libertar Olga «na condição de ela emigrar imediatamente para o estrangeiro». A carta sugeria até, numa atitude prestável, que elas deveriam requerer «logo que possível ao México» um visto para Olga. Leocadia deslocou-se ao México e, com algum atraso, conseguiu obter o visto e outros documentos mexicanos oficiais e enviou-os por correio para a Alemanha, via Nova Iorque, como era necessário na

altura. «Ela tinha a esperança de que a minha mãe fosse libertada, mas sabia que o período de tempo era muito curto. Depois de rebentar a guerra, seria impossível a Olga vir reunir-se a nós», disse Anita. Leocadia ficou no México a aguardar confirmação de que o visto tinha chegado a Berlim, mas até 25 de agosto essa confirmação ainda não tinha chegado. «Nessa fase, ela já estava desesperada», disse Anita. «E a minha mãe também.» Anita sabe quais eram os sentimentos da sua mãe através das numerosas cartas de Olga para Leocadia e para Carlos, nas quais o seu desespero por se reunir à filha que lhe tinha sido tirada da cela de Berlim em 1937 é dolorosamente claro. Como se numa tentativa de ser uma mãe presente para Anita à distância, faz perguntas sobre todos os pormenores da saúde da sua filha e dos cuidados que lhe são prestados, dando instruções a Leocadia para que Anita apanhe sol e use o cabelo curto e vestuário simples. «Ela não deve julgar-se especial.» E Olga preocupava-se com a possibilidade de a filha não poder aprender o português que falava a sua família brasileira. «Na prisão, eu podia pelo menos falar-lhe em francês. Eu só sei a linguagem das crianças na minha língua materna — e mais uma vez suponho que o culpado é o meu velho otimismo, que me fez ter a esperança de não virmos a ser separadas.»8 Em meados de agosto de 1939, um mês depois de partir de Ravensbrück, Olga aguardava ainda na sua prisão temporária em Berlim a confirmação de que os documentos requeridos para a sua emigração tinham chegado. Permitiam-lhe ler o jornal nazi Völkischer Beobachter, e sabia que a guerra estava iminente. Uma vez desencadeadas as hostilidades, não teria qualquer hipótese de sair da Alemanha. «Não se zangue comigo, mas sinto o mais profundo pessimismo», escreveu a Leocadia em 15 de agosto. Na carta seguinte, parecia ter perdido a vontade de escrever, pura e simplesmente: «Olhe, eu fiquei furiosa ao princípio por este papel ser pequeno, mas agora vejo-me sem mais nada para escrever. Dê mil beijos meus à minha adorada filha.»

Enquanto Olga aguardava em Berlim, as suas camaradas em Ravensbrück defrontavam-se com novos terrores. Pouco tempo depois de Olga partir do campo de concentração, Hanna Sturm e o seu grupo de leitura foram apanhados em flagrante a recitar Tolstoi. Enviada à presença de Koegel para ser punida, Hanna viu a espia que as tinha traído de pé ao lado dele e cuspiu-lhe, levando Koegel a esbofeteá-la e a prometer que lhe «ensinaria alguma disciplina». Em seguida, Hanna foi fechada numa cela de madeira escura e sem nada, como Olga antes dela. Hanna Sturm estava tão bem preparada para sobreviver a estas celas solitárias como qualquer outra mulher. Nascida numa família de lavradores pobres de Burgenland, com origens étnicas na minoria checa, foi trabalhar nos campos aos oito anos e já martelava pregos nas vedações muito antes de aprender a ler. Na juventude, foi atraída para a «Viena vermelha» e durante o período conturbado dos anos 1930 na Áustria filiou-se num sindicato e envolveu-se em lutas antifascistas, acabando frequentemente atrás das grades. Também tinha estado detida nas masmorras de Lichtenburg. Todavia, Hanna nunca vira uma cela como aquela e, quando escreveu a sua história, anos depois, as suas recordações deste primeiro bloco de celas eram ainda tão vívidas como tudo o que lhe aconteceu depois. O relato de Hanna Sturm é também extremamente valioso, porque só duas prisioneiras deixaram um testemunho do primeiro bloco de celas de madeira de Ravensbrück, que nos finais de 1939 já tinha sido demolido, tendo as provas de que alguma vez tivesse existido sido destruídas. Para além da luz que entrava por algumas fendas na parede, a cela de Hanna estava completamente às escuras. Era como «um caixote pequeno», recordou ela, com dois metros de comprimento por dois metros de largura. Como Hanna tinha sido condenada a «detenção agravada», não tinha cama nem colchão e nada onde se sentar a não ser o chão. Era-lhe fornecida uma refeição por semana, à quinta-feira. Nos outros dias, os únicos alimentos eram cem gramas de pão e uma tigela de uma espécie de café.

Quando Hanna entrou na cela, começou por fechar os olhos, para tentar habituar-se à escuridão. Quando queria fazer as suas necessidades, tinha de tatear a parede até encontrar o balde. No entanto, embora fosse impossível ver fosse o que fosse, Hanna conseguia ouvir bastantes coisas. Pouco depois, ouviu berros e gritos no pátio lá fora. Espreitando por uma fenda na parede, viu que os gritos vinham de uma cigana, louca de terror, que estava a ser arrastada para dentro do Strafblock do outro lado. A seguir, ouviu os sons de um espancamento e a voz de Zimmer a berrar: «Espera até eu te enfiar a camisa de forças, vaiste calar, cadela.» Hanna reconheceu outra voz familiar, a de Margot Kaiser, uma prisioneira alemã que era ajudante de Zimmer e que era profundamente odiada em todo o campo de concentração. Kaiser afastou-se para ir buscar a camisa de forças. Os gritos pararam subitamente e Hanna só conseguiu ouvir uns gemidos e a seguir nada. Zimmer pareceu esquecer-se da cigana até várias horas depois, quando começaram de novo a ouvir-se berros e se tornou claro que ela tinha sido encontrada morta noutra cela. Hanna ouviu Zimmer dizer: «Está aqui morta como um cão.» Zimmer berrou uma ordem a Kaiser e a outras para que a ajudassem. Hanna não ouviu mais nada, mas outras prisioneiras viram o cadáver da cigana a ser arrastado da zona do Strafblock pelos cabelos e puxado para a lavandaria, com o corpo coberto de sangue e de agulhas de pinheiro. As prisioneiras viriam a saber que a cigana ficara enlouquecida de dor porque o seu bebé de seis semanas lhe tinha sido arrancado dos braços. Ela estava a amamentar e tinha ficado com os seios inchados e duros, o que acentuava ainda mais o seu sofrimento. Ninguém sabia o nome da cigana e não há registo oficial da sua morte. Talvez tenha sido a primeira prisioneira a ser assassinada em Ravensbrück, embora, segundo os registos do campo de concentração, tenha sido uma outra cigana do transporte de Burgenland, Amalie Pfeiffer, uma mulher de cinquenta anos, a primeira prisioneira a morrer no campo de concentração.

A morte de Amalie foi cuidadosamente registada e existe até uma certidão de óbito. Nela, diz-se que, em 24 de agosto de 1939, Amalie Pfeiffer, nascida Karoly em 5 de julho de 1890 (cigana), residente em Neustift an der Lafnitz (Áustria), faleceu às 16h00 no campo de concentração para mulheres de Ravensbrück . Causa da morte: «Suicídio por ferimentos provocados por golpes de faca na artéria cervical esquerda.» Após a morte da cigana, o bloco de celas ficou mais silencioso. Hanna arranjou maneiras de melhorar as condições da sua cela. Zimmer não a tinha revistado exaustivamente e, como sempre, ela tinha algo útil escondido nas roupas, desta vez uma tesoura, e não tardou a descobrir que conseguia falar num sussurro com as mulheres ao lado. Uma das suas vizinhas chamava-se Lene e disse a Hanna que era testemunha de Jeová. Mas Zimmer ouviu as vozes e berrou: «Silêncio, suas macacas.» Ao fim de algum tempo, Hanna ouviu gargalhadas loucas vindas da cela do outro lado. «É assim que deve ser um manicómio», pensou ela, mas então reparou que a mulher «louca» ria sempre que ouvia a voz de Zimmer. Escutando os mexericos das guardas, Hanna descobriu que a mulher era Hedwig Apfel e que era música, talvez cantora de ópera. Apfel era judia e a sua família pagara uma fortuna aos nazis na tentativa de obter a sua libertação. Hanna sabia também da presença de uma americana no bloco de celas, que «rezava todo o tempo muito alto, usando palavras ininteligíveis» — presumivelmente em inglês. A «americana» talvez fosse a colega de conspiração de Olga, Sabo, que tinha vivido muitos anos no Canadá e esteve detida no bloco de celas nesse verão. Sempre que Sabo rezava, desencadeava o riso histérico de Hedwig Apfel. Hedwig estava a provocar Zimmer. Quando Zimmer abria a porta de Hedwig, ela estava à espera com um balde das suas necessidades, que lhe despejava na cabeça. Zimmer berrava: «Judensau!» (porca judia). Hedwig imitava-a: «Judensau, Judensau.» Por vezes, Hedwig corria da sua cela para o espaço exterior do bloco de detenção, e Margot Kaiser ia em sua perseguição e apanhava-a.

Hanna conseguira fazer minúsculos buracos nas paredes da sua cela e via para as celas dos dois lados. Um dia, Zimmer abriu a porta de Hanna de rompante e atirou com Hedwig Apfel lá para dentro. Hedwig soltou uma risadinha e ficou visivelmente assustada com a escuridão. Quando viu que Hanna estava na cela, convidou-a para dançar. Hanna sugeriu que, em vez de dançar, cantassem. Hedwig começou a cantar: «Para ti, porque és uma de nós.» E Hanna pensou então: «Talvez afinal ela não seja louca.» Hedwig disse: «Eu só estou a fazer de conta que sou louca. Die Alte [a velha — Zimmer] tem medo de mim desde que eu lhe despejei o balde na cara. Da próxima vez, vou-lhe cuspir na cara e vais ver como ela foge.» A partir daquele momento, Apfel e Sturm tornaram-se boas amigas, o que não agradou a Zimmer; tirou Hedwig da cela e Hanna voltou a ficar sozinha. Hedwig foi transferida da sua cela, que foi ocupada por outra mulher de quem Hanna tentou também tornar-se amiga. Batendo na parede, perguntou: «Quem és tu?» «Sou a Susi, e tu?» «Chamo-me Hanna.» No dia seguinte, Hanna ficou a saber que Susi era a comunista austríaca Susi Benesch. Susi estava muito doente, com furúnculos por todo o corpo. Não conseguia deitar-se nem sentar-se e como à noite andava de um lado para o outro todo o tempo, ninguém em todo o bloco de celas conseguia dormir. Numa manhã, Zimmer tirou Susi da cela e mandou-a trabalhar, aparentemente julgando que se ela se cansasse a carregar com pedras dormiria melhor à noite. Quando Susi regressou ao fim do dia, disse a Hanna: «É duro carregar pedras. Mas pelo menos vi o sol e estive com pessoas.» No dia seguinte, Susi não regressou. Hanna voltou a não ter ninguém com quem falar e começou a perder a conta aos dias. Mas ouvia outras prisioneiras a mexerem-se e por vezes a falarem e a gritarem. Uma das prisioneiras cujos movimentos Hanna ouvia devia ser Marianne Wachstein, a mulher que tinha chegado em camisa de noite de Viena. Tal como Hanna, Marianne deixou um relato pormenorizado do tempo que passou no bloco de celas de madeira, e a descrição de

muito daquilo por que passou condiz com a de Hanna, embora as circunstâncias em que prestaram os seus respetivos testemunhos fossem muito diferentes. Hanna só pôde contar a sua história depois da guerra, mas Marianne escreveu um relato não censurado do que tinha visto seis meses depois da sua ocorrência. Em fevereiro de 1940, Marianne foi inesperadamente libertada para prestar depoimento no julgamento do seu marido, um homem de negócios judeu acusado de corrupção por um tribunal nazi. Ela escreveu o seu relato nas primeiras semanas depois de ser libertada, enquanto recuperava num hospital em Viena. Por consequência, ele é único, por ser virtualmente contemporâneo. «O campo de concentração de Ravensbrück, perto de Fürstenberg, é um campo de trabalho escravo», começou ela. O trabalho que temos de fazer lá (eu sofria dos nervos e não podia trabalhar por essa razão) é empurrar cilindros usando duas cordas e uma pega. É essa pega que as mulheres têm de agarrar e puxar. Têm de carregar areia em caixas de madeira, trabalhando ao sol, nove horas por dia. Três vezes por dia e duas aos sábados há a dita chamada. As prisioneiras têm de se perfilar à frente dos barracões e de se manter imóveis, como soldados, com as mãos ao lado do corpo, até serem contadas pela Frau Oberaufseherin [Langefeld]. O campo tem 17 barracões. Um dos barracões é para judias.

Marianne fala em seguida da sua chegada a Ravensbrück e conta o que lhe aconteceu na cela de madeira. Não havia luz. A guarda, Zimmer, entrou e começou a berrar-lhe: «Agora vais passar fome e não vais sair daqui.» Marianne respondeu-lhe: «Se for a vontade de Deus, morrerei aqui.» Ao ouvir aquilo, Zimmer levou Marianne para o corredor e mandou que se despisse até ficar em camisa. «Vestiramme uma camisa de forças. Fiquei com as mãos tão apertadas que me incharam. Agarraram-me pelo pescoço e atiraram-me para dentro da cela e, por causa da camisa de forças, desmaiei e tive um ataque de nervos e pus-me aos gritos.» Quando Marianne acordou, estava um homem de uniforme a empurrá-la. Era o delegado de Koegel, Egon Zill, que a socava no nariz e nos pés enquanto Zimmer lhe puxava pelo cabelo. Incapaz de

se proteger, como estava ainda com a camisa de forças, Marianne desmaiou outra vez com as dores e, quando acordou, viu que estava deitada nos seus próprios excrementos e que a camisa de forças lhe tinha sido tirada. Passou essa noite na cela, em camisa de noite, com os dentes a baterem. No dia seguinte deram-lhe um cobertor e no terceiro dia um saco de palha e outro cobertor, mas não comeu durante três dias. A seguir, disseram a Marianne que tinha sido condenada a mais três semanas de detenção «por gritar na cela e ficar deitada nos seus próprios excrementos». Tal como Hanna Sturm, Marianne foi apresentada a Hedwig Apfel. E, tal como Hanna, foi obrigada a partilhar a cela com Hedwig como punição. Ao contrário de Hanna, no entanto, Marianne não tinha dúvida de que Hedwig Apfel era louca. Quando Zimmer vinha à porta delas, Apfel atirava-lhe a sua água e cuspia para a porta e para o saco de palha. «Ela tem diarreia e não se limpa. Cospe nas mãos e esfrega o rosto.» Havia um beliche na cela e Apfel dormia na cama de cima. À noite, vinha sentar-se na cama de Marianne, mas Marianne não tinha qualquer desejo de travar amizade com ela e dizia-lhe que se fosse embora. Em retaliação, Apfel rasgava os cobertores de Marianne e desfazia-lhe a cama. «E fala toda a noite, a praguejar contra Deus. Tem as mãos, os braços e as pernas tão magros como uma aranha.» Devido ao ruído, as guardas não se atreviam a entrar na cela. Ao terceiro dia, a «louca» Apfel sentou-se na cama de cima, verteu o café na cabeça de Marianne e pôs-se a atirar-lhe coisas e a berrarlhe. Zimmer abriu a porta da cela, mas não se atreveu a entrar. Por fim, Zimmer ordenou a Margot Kaiser que entrasse na cela e Marianne foi retirada e fechada de novo sozinha, antes de ser libertada e enviada para o seu bloco. No início de setembro, muito depois de Marianne Wachstein ter saído do bloco de celas, Hanna ainda lá continuava, fechada sozinha no escuro e sem qualquer esperança de libertação. Tinha perdido a conta ao tempo, mas ainda espreitava pelos buracos para as celas

vizinhas para ver se alguém se encontrava nelas. Uma das celas, comparada com a dela, parecia bastante confortável; tinha uma cama com um cobertor e um banco, mas continuava vazia. Algum tempo depois — Hanna não sabia quanto —, ouviu alguém a falar na cela e reconheceu a voz dessa pessoa. Era Olga Benario. Como Leocadia e Olga receavam nos últimos dias de agosto, o visto mexicano de Olga tinha ficado retido no correio — de facto, não tinha chegado a sair de Nova Iorque. Em 1 de setembro, forças alemãs entraram na Polónia e eclodiu a guerra, anulando qualquer hipótese de Olga sair da Alemanha. Em 8 de setembro, a Gestapo levou-a de volta a Ravensbrück. Como a consideravam agora uma ameaça menos importante (por razões não explicadas), as condições da sua detenção não eram tão rigorosas como antes; traziam-lhe comida regularmente e estava autorizada a receber cartas, entre elas um envelope do consulado mexicano em Hamburgo com uma cópia do seu visto, que tinha acabado por chegar. Como Olga bem sabia, no entanto, era demasiado tarde — e, de qualquer modo, uma cópia não bastava. Sob novas e mais estritas regras de censura em tempos de guerra, Olga escreveu a Leocadia e a Lígia em 13 de setembro: Minhas queridas! Voltei para o campo de Ravensbrück. Recebi visto de entrada no México do consulado mexicano em Hamburgo, mas receio bem que não poderei fazer uso dele. No entanto, sei que continuarão a fazer tudo o que é possível por mim. Entreguem a carta inclusa a Carlos e por favor deem-me mais pormenores sobre a Anita. Com todo o meu afeto, beijos à minha filhinha. A vossa Olga.

Logo que pôde, Hanna deu a conhecer a sua presença a Olga, segredando-lhe por um dos minúsculos buracos que tinha feito na parede. Olga ficou espantada por encontrar a sua amiga na cela ao lado, dizendo-lhe que ouvira falar da detenção do grupo de leitura de Tolstoi quando voltou para o campo. Hanna disse que estava a passar fome e Olga ofereceu-se para partilhar a sua comida; conseguiram alargar o buraco na parede para

Olga poder dar pão a Hanna — tal como Hanna tinha feito chegar comida a Olga quando estavam a fazê-la passar fome alguns meses antes. «Precisas de comida quente, mas como é que havemos de nos arranjar?», perguntou-se Olga. «O melhor era aproximares a boca do buraco e eu dou-te de comer. De manhã dou-te o pão, logo depois de a Zimmer trazer o café.» Olga disse então a Hanna que tinha uma notícia para ela, mas que teriam de falar rapidamente, antes de «die Alte» voltar. A notícia era que a guerra tinha rebentado. Na sua cela solitária, Hanna não fazia ideia do que se passava no exterior e Olga transmitiu-lhe tudo o que tinha ficado a saber em Berlim. Daí a pouco tempo, todas as prisioneiras do bloco de celas estavam já a par dos acontecimentos, porque Zimmer andava a «celebrar e a gabar-se às prisioneiras das “gloriosas” notícias das conquistas nazis que estão a acontecer todos os dias na guerra».

Segundo prisioneiras secretárias, quando o campo de concentração foi libertado cinco anos depois, os ficheiros de algumas das prisioneiras continham uma quantidade de papel suficiente para cobrir três metros quadrados.

Em contraste, os prisioneiros nos novos campos de concentração de Himmler para homens de Mauthausen e Flossenbürg trabalhavam em pedreiras, britando granito para reconstruir Berlim como a nova capital de fantasia da Germânia de Hitler.

As páginas do livro de registos da igreja de Fürstenberg relativas aos anos da guerra foram arrancadas, provavelmente por Märker, para encobrir as suas atividades.

Atualmente, Anita não fala uma palavra de alemão e mandou traduzir as cartas da sua mãe para português.

CAPÍTULO 3 BLOCKOVAS Doris Maase via bastantes coisas da sua janela na Revier. Observava as guardas e os homens da SS a entrarem à hora do almoço na cantina do pessoal em frente e via-os saírem à noite como «casais de namorados». No início de setembro de 1939, pouco depois de começar a guerra, Doris olhou lá para fora e viu uma prisioneira a correr para a vedação elétrica. Estava a tentar matar-se, mas foi impedida por uma jovem guarda loura que a arrastou para o Strafblock, batendo-lhe no caminho. Doris ficou a saber que o nome da guarda era Dorothea Binz: «Vi a Binz levar a mulher esquelética e bater-lhe com uma cana nas coxas nuas. Tal crueldade numa mulher tão nova e tão bonita causou-me uma impressão duradoura.» O apetite de Binz pela crueldade não tardou a causar uma viva impressão em todas as pessoas no campo de concentração. No entanto, até conseguir aquele emprego, ela dera pouco nas vistas. Dorothea Binz, filha de um guarda-florestal, era uma das várias raparigas da zona que começaram a trabalhar no campo de concentração no verão. Estas mulheres recrutadas eram diferentes das que tinham chegado de Lichtenburg com as prisioneiras cinco meses antes. Não tinham experiência de trabalho noutra instituição penal e muitas eram tão jovens que não tinham tido qualquer experiência de vida significativa antes do domínio nazi. O trabalho no campo de concentração era o seu primeiro emprego. Dorothea sempre tinha vivido na zona florestal nos arredores de Fürstenberg, frequentando a escola e a igreja, brincando nos trilhos da floresta, dando caça a javalis, tomando banho nos lagos no verão, patinando neles no inverno. A sua família tinha-se mudado bastantes vezes dentro daquela zona e em meados dos anos 1930 instalou-se numa aldeia chamada Altglobsow, um povoado pobre a cinco

quilómetros de Ravensbrück, onde os habitantes ganhavam a vida no abate de árvores ou no trabalho da terra. Como recém-chegada, a família de Binz era vista como forasteira, especialmente porque o posto oficial de Walter Binz, como guarda-florestal, significava que os Binz tinham mais posses e viviam numa casa maior. Aos dez anos, Dorothea e as suas amigas aderiram à Bund Deutscher Mädel (Liga de Raparigas Alemãs), o ramo feminino da Juventude Hitleriana. Na escola, estudava o currículo nazi, que ensinava as crianças a desprezarem os judeus e a criticarem os marginais da sociedade, embora haja alguns indícios de que os seus pais não tinham grande apreço pelas ideias de Hitler. Walter Binz nem sempre caía nas boas graças dos seus patrões, talvez devido à sua relutância em aderir ao Partido Nazi — o que era obrigatório para funcionários governamentais e estatais. Sabia-se igualmente que o guarda-florestal tinha comparecido em tribunal acusado de caça furtiva; também bebia muito, assim como a sua mulher, Rose. A família Binz não era mal querida, mas as pessoas da aldeia tinham as suas reservas em relação a ela, e ouviam frequentemente berros e gritos vindos da sua casa. Não era um lar feliz. Dorothea também tivera os seus reveses: no início da adolescência teve um problema de tuberculose, o que era comum no clima húmido destas terras baixas, mas, como a sua infeção foi severa e implicou uma estada de vários meses num sanatório, ela atrasou-se nos estudos, acabando a escola com poucas ou nenhumas habilitações. Estigmatizada por ser tuberculosa e impedida de concorrer a muitos empregos devido ao perigo de contaminação, depois de acabar os estudos Dorothea foi trabalhar como criada de cozinha; por isso, quando surgiu a oportunidade de trabalhar como guarda no novo campo de concentração, ela agarrou-a imediatamente. Mais tarde, progredindo na carreira, contava por entre risadas como o seu pai lhe tinha dito para não aceitar o emprego, mas que a oportunidade era demasiado boa para ser rejeitada: viver fora de casa, num alojamento confortável, com um bom salário e um uniforme elegante. Dorothea já tinha atraído as atenções dos jovens oficiais da SS aquartelados num

campo de treino nas redondezas que frequentavam o bar de Altglobsow. Alta, magra e loura, com maçãs do rosto redondas e nariz arrebitado, era considerada uma beleza na zona. Também outras mulheres da zona se sentiam atraídas por aquele trabalho. Margarete Mewes, uma mulher de Fürstenberg com três filhos, entrou ao serviço ao mesmo tempo que Binz, assim como Elisabeth Volkenrath, que era filha de um agricultor. Todo o pessoal da SS do campo de concentração recebeu instruções para endurecer o seu tratamento das prisioneiras quando a guerra rebentou. De acordo com Rudolf Höss, agora oficial em Sachsenhausen, no dia em que as forças alemãs entraram na Polónia o próprio Eicke convocou todos os oficiais dos campos de concentração de patente mais alta para lhes comunicar que, a partir daquele momento, «[devem] tratar as ordens como sacrossantas e, mesmo as que parecerem mais duras e severas têm de ser implementadas sem hesitação». Höss recordava-se de ouvir Eicke dizer: «As leis duras da guerra prevaleciam agora.» A partir dessa altura, a missão do pessoal dos campos de concentração da SS seria «proteger a pátria contra todos os inimigos internos» — a luta para suprimir os que se encontravam nos campos de concentração era tão importante para o futuro do Reich como a luta travada na frente de combate. «Por conseguinte, ele, Eicke, exigia que os homens que prestavam serviço no campo mostrassem uma severidade inflexível para com as prisioneiras. Só a SS era capaz de proteger o Estado NacionalSocialista de todo o perigo interno. Outras organizações careciam da necessária dureza.» Koegel compreendeu bem as ordens de Eicke. O inimigo interno em Ravensbrück — só 1607 mulheres em 1 de setembro de 1939 — era pequeno em número, mas Koegel trataria cada uma delas com a devida dureza. A cada dia, novas mulheres vinham engrossar as suas fileiras. Em 16 de setembro, chegou um grupo de prisioneiras políticas, entre elas Luise Mauer, uma mensageira do Partido Comunista Alemão que tinha arriscado várias vezes a vida a

atravessar a fronteira com mensagens secretas. A Luise restava pouco espírito de combate, depois de ser forçada a ficar de pé à chuva durante horas junto aos portões do campo de concentração, de a mandarem despir-se e de lhe fazerem um tratamento de desinfestação para os piolhos e lhe raparem o cabelo no «banho», e ainda menos depois de lhe atribuírem o trabalho mais duro, descarregar carvão do fundo de barcaças. Estas «prisioneiras de setembro» foram alojadas num bloco especial onde não poderiam infetar o campo com as suas conspirações perigosas. No entanto, enquanto as comunistas eram esmagadas, uma mãocheia de polacas — as primeiras reais inimigas «estrangeiras» a chegarem — eram as mais odiadas. Poucos dias depois de cruzarem a fronteira para a Polónia, as forças alemãs não só se tinham empenhado em apoderar-se das terras e das propriedades polacas mas também em capturar e matar as suas classes dominantes, incluindo um número incontável de professoras, sindicalistas, condessas, líderes comunistas, mulheres de oficiais e jornalistas. Tão «imundas» eram estas «eslavas» que mal entraram pelos portões de Ravensbrück foram brutalmente esfregadas para ficarem «limpas» antes de serem enviadas para o Strafblock e de lhes ser atribuído o trabalho de fazer tijolos «até ficarem com as mãos em sangue e em carne viva», nas palavras de Maria Moldenhawer, uma aristocrata e instrutora de «preparação militar» numa escola feminina de Varsóvia. Para inspirar ainda mais ódio, espalharam-se histórias segundo as quais os Polacos tinham cortado a língua aos soldados alemães ou lhes tinham envenenado o chá. Renee Salska tinha arrancado os olhos de crianças alemãs, diziam as guardas, embora o seu único crime fosse o de ter ensinado História polaca numa escola em Poznań. As primeiras «inimigas internas» a sublevarem-se em Ravensbrück, no entanto, não foram estas recém-chegadas polacas, mas as inimigas mais antigas e mais odiadas de Koegel: as testemunhas de Jeová. As mulheres religiosas que se tinham

amotinado em Lichtenburg estavam agora a recusar as suas ordens de coser sacos para o esforço de guerra. Tinha sido criada uma oficina de costura para as forças armadas no campo de concentração, para aproveitar as capacidades das mulheres, mas isso era trabalho de guerra, protestaram elas, era contra os seus princípios pacifistas. Essa tomada de posição provocou mais um acesso de raiva cega no comandante. Diz bastante sobre a atitude mental de Max Koegel o facto de até mesmo naquele momento as prisioneiras que mais o incomodavam não serem as «putas comunistas», a «bicharada eslava» ou as «cadelas judias», mas estes «estafermos religiosos». Tinham-lhes sido dirigidas todas as ameaças e infligidas todas as crueldades imagináveis para as levar a renunciar à sua fé assinando no tracejado. Para quebrar a unidade dessas mulheres, elas tinham sido repartidas por diferentes blocos, mas, como começaram imediatamente a tentar converter outras prisioneiras à sua fé, voltaram a ser reunidas num só bloco. E como castigo foi-lhes atribuída como Blockova a odiada Käthe Knoll, uma prisioneira de triângulo verde que, dizia-se, tinha assassinado a própria mãe. Mesmo assim, as declarações de renúncia à religião continuavam empilhadas por assinar no gabinete de Langefeld. Langefeld, pela sua parte, parecia imperturbada; a todos os títulos, estas respeitáveis donas de casa alemãs eram prisioneiras-modelo que não lhe causavam problemas. Talvez fosse precisamente por elas serem «donas de casa alemãs modelo» que Koegel sentia mais dificuldade em lhes arreganhar os dentes do que às comunistas, às judias, às eslavas e às prostitutas — o que o enfurecia ainda mais. O protesto das testemunhas de Jeová também não era propriamente insignificante. No outono de 1939, constituíam mais de metade das mulheres no campo de concentração, e Koegel tinha solicitado mais poderes para as reprimir, exigindo um edifício prisional maior e mais permanente. Agora que a guerra tinha começado, Ravensbrück deveria estar equipado com um bloco de celas semelhante aos dos campos de concentração masculinos.

No outono de 1939, Koegel recebeu finalmente permissão para a nova prisão, e foram trazidos prisioneiros do sexo masculino de Sachsenhausen para a construir, embora o comandante do campo de concentração tomasse medidas para que as testemunhas de Jeová os ajudassem. Construído em pedra e com dois andares, um abaixo do solo, contaria com setenta e oito celas e substituiria a estrutura de madeira onde Hanna Sturm estava ainda encarcerada. Ao fim de quase três meses na solitária, Hanna já tinha perdido a conta aos dias, mas sabia que estava a chegar o outono, porque fazia um frio gélido na sua cela e ela continuava com um vestido fino de verão. Olga já tinha saído da cela ao lado há muito tempo, mas Hanna ainda ouvia Hedwig Apfel. De cada vez que Mewes, a nova guarda do Strafblock, entrava na cela de Hedwig, a cantora de ópera guinchava e ria e atirava o seu balde à cara de Mewes. Desde o início da guerra, o número de prisioneiras no Strafblock tinha aumentado substancialmente, e Mewes foi destacada para ajudar Zimmer na distribuição das refeições e na ronda noturna. Mewes, uma mulher abrutalhada e sombria, tinha tido três filhos, todos de homens de Fürstenberg diferentes, o que Hanna tinha ficado a saber escutando as conversas das guardas. Pelo menos, pensou Hanna, podia dar graças por Margot Kaiser ter sido transferida. Sob o novo regime do comandante, a prisioneira de Chemnitz, com vinte anos e de triângulo verde, foi promovida e era agora a prisioneira mais poderosa do campo de concentração. Em qualquer campo de concentração masculino, Margot Kaiser teria sido apelidada de Kapo («de confiança», capataz) ou Kapo Sénior. Em Ravensbrück, a palavra era menos usada, mas, para todos os efeitos, a prática de recrutar prisioneiras para colaborar na gestão do dia a dia do campo era similar à de Buchenwald, Dachau ou Sachsenhausen. Era mais provável que as prisioneiras guardas fossem chamadas pelos seus títulos oficiais — a Blockova era a chefe do bloco, a Stubova a chefe do dormitório —, mas eram todas destacadas para prestar assistência aos homens da SS, tal como os

Kapos nos campos de concentração masculinos. Esses postos para as prisioneiras existiam desde o início, mas no outono de 1939, de acordo com as novas regras mais rigorosas, o sistema de Kapos foi afinado, criando-se uma nova hierarquia. Introduziu-se o posto de Lagerläuferin — corredora do campo: prisioneiras cuja tarefa consistia em levar mensagens de um lado para o outro quando necessário. E foi nomeada uma «prisioneira-chefe»; Margot Kaiser foi a primeira a ocupar o posto. O seu título oficial era Lagerälteste, sénior do campo, embora as prisioneiras lhe chamassem Lagerschreck — terror do campo. O sistema de Kapos foi sempre fulcral no modelo dos campos de concentração. Por um lado, poupava pessoal e despesas: sem estas prisioneiras dispostas a ajudar, a SS não seria capaz de controlar os vastos números detidos nos seus campos de concentração. Mas, como Rudolf Höss explicou nas suas memórias, os Kapos eram muito mais do que mão de obra grátis. «Quantas mais rivalidades, quantas mais batalhas entre os prisioneiros houver, tanto mais fácil é controlar o campo. Dividir para reinar — esse não só é o princípio da alta política, mas também de um campo de concentração.» E o pessoal prisioneiro não representava de modo nenhum as necessidades ou os desejos dos prisioneiros. A sua missão era obedecer às ordens da SS; mal deixassem de o fazer, eram removidos do seu posto. Esta era a armadilha, como o próprio Heinrich Himmler explicou num discurso a oficiais do exército alemão. «O Kapo deve fazer os homens marchar», disse, «e logo que deixe de fazer o seu trabalho, mandamo-lo voltar para o seu bloco com os outros prisioneiros e ali eles matá-lo-ão à pancada.» Desde o início, o sistema funcionou tão bem com as mulheres como com os homens; não havia falta de prisioneiras dispostas a aceitar o suborno de vestuário melhor, mais comida e a sua própria cama. Tal como nos campos de concentração masculinos, as mulheres Kapos usavam braçadeiras verdes que indicavam o seu estatuto privilegiado e lhes permitiam circular livremente. Nos primeiros tempos, tal como nos campos de concentração dos

homens, as mulheres escolhidas eram frequentemente as que usavam os triângulos verdes; escolher a classe das criminosas para mandar nas prisioneiras políticas era a forma mais óbvia de instituir o sistema de «dividir para reinar». A experiência dos campos masculinos demonstrara que era mais provável que os «verdes» usassem de zelo no seu trabalho. Um Kapo «verde» em Mauthausen, um criminoso empedernido chamado August Adam, tinha a tarefa de atribuir trabalho aos recém-chegados e gabou-se mais tarde de escolher advogados, sacerdotes e professores e de lhes dizer: «Bem, aqui estou eu no comando. O mundo virou-se de pernas para o ar.» A seguir, batia-lhes com o seu bastão e mandava-os para o Scheisskompanie — o grupo das latrinas. As mulheres com triângulo verde em Ravensbrück não pertenciam ao mundo do crime violento como August Adam; era mais provável que as que eram escolhidas como Kapos fossem simplesmente mulheres irresponsáveis que tinham caído numa vida de pequenos furtos, abortos ilegais ou desemprego voluntário. Até mesmo Käthe Knoll — uma espécie de Kapo desde os primeiros tempos de Lichtenburg — não tinha afinal assassinado a sua mãe; como viria a saber-se mais tarde, fora detida por «vergonha racial» depois de ter tido relações com um judeu; levara também uma vida de pequenos crimes. Margot Kaiser, a nova Lagerschreck, nunca tinha assassinado ninguém até chegar a Ravensbrück. Ao longo da adolescência envolveu-se em esquemas e em pequenos furtos até a mandarem trabalhar para uma fábrica de munições, da qual viria a fugir. No entanto, à data da sua saída de Ravensbrück, já tinha matado dez mulheres à pancada, como confessou no seu julgamento no pósguerra. Embora as mulheres com triângulo verde detivessem o maior poder, Ravensbrück empregava igualmente como Kapos grande número de mulheres com triângulo preto, particularmente nos blocos, e a este respeito o campo de concentração das mulheres diferia dos destinados aos homens. Entre as mulheres com triângulo preto, Ravensbrück dispunha de um recurso útil que não existia nos campos

de concentração dos homens: Püffmutter, madames de bordéis. Langefeld gostava de nomear essas mulheres: se uma Püffmutter era capaz de dirigir um bordel, também seria capaz de dirigir um bloco de Ravensbrück. Philomena Müssgueller, uma prostituta de quarenta e um anos que gerira um bordel em Munique durante muitos anos, ficou satisfeita por ser tirada da confusão do bloco das associais para trabalhar como Blockova a manter a ordem entre as «políticas», especialmente porque era recompensada com uma salsicha extra e a sua própria cama. Philomena já tinha o seu gangue de acólitas de triângulo preto, que tentavam cair nas suas boas graças, e juntas detinham facilmente o poder necessário para manter sob controlo um punhado de mulheres de triângulo vermelho. Marianne Scharinger, uma austríaca detida por fazer abortos ilegais, foi nomeada Blockova do bloco judeu, enquanto a prostituta de Düsseldorf Else Krug tinha sido escolhida para o trabalho cobiçado de dirigir o armazém das batatas. Descascar montanhas de tubérculos num período de tempo limitado era um trabalho duro e repetitivo, mas muito procurado devido à possibilidade que proporcionava de meter ao bolso uma batata, uma couve ou um nabo. Desde a eclosão da guerra, as prisioneiras recebiam uma concha de sopa a menos por dia, e Else estabeleceu um sistema de contrabando, levando vegetais extra para as mulheres do seu bloco. À medida que o poder das Kapos ia aumentando, ninguém as desprezava mais do que as alemãs e as austríacas com triângulos vermelhos. A «prisioneira de setembro» Luise Mauer era vítima dos abusos de uma Blockova, uma prostituta chamada Ratzeweit, uma personagem «desprezível» que agredia as mulheres e berrava quando elas se atrasavam a levantar-se para a Appell. Ratzeweit gostava de implicar com mulheres mais velhas, e atormentava de tal modo Lisel Plucker, uma prisioneira política idosa, que ela tentou matar-se passando pela vedação elétrica. Maria Wiedmaier, que tinha organizado comités de Ajuda Vermelha para o Partido Comunista, nunca recebera ordens de marginais como

Müssgueller. «Zimmer rodeava-se de triângulos verdes», disse ela, «e aproveitava-se da sua malvadez e dos seus métodos abrutalhados.» Estas Kapos eram também usadas como espias da SS; uma dessas espias viu Minna Rupp, uma outra comunista alemã que chegara recentemente, a roubar meia cenoura e denunciou-a a Koegel, levando à sua detenção no Strafblock. As prisioneiras já quase não conseguiam encontrar-se, porque estavam sob a observação das Spitzel (informadoras), que não só as denunciariam a Koegel como também a Langefeld. Johanna Langefeld reconhecia o valor do sistema de Kapos, particularmente com Koegel a tentar minar a sua autoridade. Nos primeiros seis meses do campo de concentração, a Oberaufseherin tinha perdido várias batalhas com o comandante e agora ia haver uma nova prisão no campo — ou «bunker» — contra os seus desejos. Langefeld estava muito empenhada em obedecer às ordens de Himmler de «proteger a pátria dos seus inimigos internos». A mera visão das mulheres de pé durante horas ao frio e à chuva demonstrava a sua disciplina de ferro. No entanto, os métodos de Koegel não eram os de Langefeld, e mais tarde ela diria aos seus interrogadores americanos que sempre soubera que Koegel era um sádico, embora a sua declaração sugira que ficou tão indignada com a recusa de Koegel de a informar dos seus planos como com a sua brutalidade. Koegel tinha garantido o direito de — à revelia de Langefeld — enviar mulheres para o Strafblock e para as celas solitárias sem consulta prévia. Para agravar a situação, a entrada das guardas no novo bunker de pedra — a não ser das destacadas para o local — estaria sujeita à autorização de Koegel. Em contraponto a esta afronta, Langefeld reforçou a sua base de poder nos blocos de alojamento, na cozinha, na Wäscherei e na Effektenkammer, assegurando-se de que eram nomeadas para postos-chave Kapos que lhe eram leais. E insistia em escolher ela própria esse pessoal entre as prisioneiras. Levava o seu tempo, observando as mulheres

na Lagerstrasse e lendo as suas fichas. Também escutava as suas informadoras, frequentemente outras Kapos. Doris Maase diria mais tarde que desde os primeiros meses Johanna Langefeld recrutou os seus «homens de confiança» entre as prostitutas. Quando ouvia dizer que uma Blockova estava a perder o controlo da situação, a mulher era despedida. Langefeld saía então para a Lagerstrasse na hora da Appell e escolhia outra mulher que lhe tivesse atraído a atenção. No outono de 1939, Langefeld andava à procura de uma nova Blockova para o bloco judeu. O bloco estava num verdadeiro caos; as mulheres chegavam sempre tarde à Appell, havia muitas com piolhos, a comida era entornada. Um grupo de crianças ciganas órfãs também tinha sido alojado no bloco, o que complicava ainda mais a situação. Até mesmo Doris Maase descreveu o bloco como uma «tropa fandanga», ao observar as mulheres a perfilarem-se na Revier. Desde o início, as prisioneiras judias foram deliberadamente mais rebaixadas do que qualquer outro grupo. Constituindo apenas dez por cento do total, as judias foram isoladas num bloco numa das extremidades da Lagerstrasse, sujeitas a assédios constantes. As rações eram menos generosas e elas trabalhavam mais horas, sem dia livre. Previsivelmente, muitas das judias não tardaram a adoecer, sofrendo na maior parte dos casos de pernas inchadas, ataques de nervos e infeções respiratórias. Muitas tinham também chagas e feridas causadas pelos espancamentos. Era prática habitual das guardas do turno da noite sentarem-se na cantina a falar do que tinham lido sobre as «ordinárias das judias» e as «cadelas judias ricas», antes de irem desancar qualquer «porca, puta ou cadela» judia que vissem. A eclosão da guerra fez-se acompanhar por uma escalada dos abusos, como Marianne Wachstein observou quando regressou ao bloco depois do seu período de isolamento na cela. Viu mulheres doentes forçadas a sair para o frio da manhã por Blockovas e obrigadas a permanecer na Appell ao mesmo tempo que sofriam

ataques epiléticos e convulsões, enquanto outras desmaiavam, de pé à chuva de castigo. «Uma judia chamada Rosenberg, que estava na altura no lado B do barracão judeu, teve de sofrer a punição de permanecer de pé dentro do bloco com a porta e as janelas abertas ao frio gelado — embora sofresse dos pulmões», disse Marianne. «Essa mulher tinha sido acusada de não fazer bem a cama.» O medo de ser obrigada a permanecer de pé obcecava Marianne, porque ela mal conseguia andar ou manter-se de pé. Quando chegou ao campo em junho, um médico «humano» da SS dispensou-a da Appell, mas no outono um novo médico da SS disse-lhe que ela teria de comparecer à chamada. Marianne objetou e exigiu que ele a examinasse primeiro para determinar se ela estava suficientemente bem de saúde para o fazer, mas ele recusou «e disse qualquer coisa rude e ofensiva sobre os judeus», e a enfermeira que estava sentada à secretária «seguiu-o com um sorriso de desdém». Quando Marianne disse: «Eu contarei às pessoas no estrangeiro como se é tratada num campo de concentração», o médico agarrou nela e atirou-a para fora do consultório. «Também relatarei isto», disse Marianne, claramente acreditando que o mau tratamento que estava a sofrer não tardaria a ser retificado. Depois do incidente, Marianne regressou ao seu bloco e contou às amigas: «O médico fez o juramento de Hipócrates e tem de me examinar a mim, uma judia, tal como examina uma mulher ariana quando verifica se ela está apta ou não», e todas as outras concordaram, entre elas Edith Weiss, Modesta Finkelstein, Leontine Kestenbaum e várias outras da «tropa fandanga» de Viena. Um tal aumento do abuso antissemítico no campo de concentração não era propriamente surpreendente, dada a escalada da perseguição aos judeus por todo o Reich. O Führer ainda não estava pronto a ordenar a captura por atacado dos judeus alemães — em certa medida porque não havia planos firmes de para onde eles iriam —, mas a perseguição tinha-se intensificado, e quando a guerra começou, em setembro de 1939, 500 000 judeus alemães tinham já arranjado maneira de sair da Alemanha; restavam ainda 250 000, um

terço dos quais mulheres — viúvas, divorciadas, mães solteiras, as pobres e as sem-abrigo, nenhuma com hipótese de arranjar um visto e todas correndo grandes riscos de serem detidas pela polícia e acusadas, como Herta Cohen, do crime de «infetar o sangue alemão». A detenção ocorreu, disse Herta numa das suas muitas declarações à polícia, num restaurante chamado Bremer Hafen, em Essen, onde tinha ido tomar uma cerveja. Eram cinco da tarde. E eu sentei-me a uma mesa onde não havia ninguém. A outra mesa estavam dois homens de uniforme. Uniformes cinzentos. Os dois homens aproximaram-se da minha mesa e sentaram-se. Também queriam uma cerveja. Um foi-se embora. E o outro ficou. Quando ficámos sós, eu disse-lhe que era judia, mas para ele isso não era importante e ele queria ficar ali sentado. Ofereceu-me uma bebida. Eu fiquei atordoada. Ao fim de duas horas, eu ia-me embora e o homem pagou as bebidas. A caminho de casa perguntou-me se eu queria tomar uma cerveja perto do meu apartamento na Adolf Hitler Strasse.

Ele convidou-a a ir ao apartamento dele. «Eu digo que não posso fazer isso, porque sou judia. E ele diz, cala-te, isso não importa. Eu fico com ele. Ele dá-me mais cerveja. Na manhã seguinte, estou deitada ao lado dele. Não sei o que aconteceu às minhas roupas. Na manhã seguinte fizemos sexo.» O interrogador quer saber mais e pergunta agora o que aconteceu exatamente, onde aconteceu e como aconteceu — «Foi uma relação sexual completa?... Ele penetrou-te?... Penetrou-te mesmo?» Mas as respostas não bastam ao homem e o interrogatório é retomado no dia seguinte. A uma das perguntas, Herta responde: «Eu tive de limpar o sémen», e as perguntas prosseguem até finalmente não haver mais nada a dizer e ela ser enviada para Ravensbrück. A «razão para a detenção» dada na sua ficha é «infetar sangue alemão». Algumas destas mulheres judias alemãs estavam tão desesperadas que várias tentaram fugir atravessando a fronteira holandesa, mas viajar sozinha dava nas vistas. Frau Koch, de Leipzig, sacrificou a sua hipótese de liberdade deixando que o marido fugisse com os filhos e ficando para trás para dissimular a partida deles.

Quando a costa ficou livre, partiu para se juntar a eles, mas foi detida e levada para Ravensbrück. Uma prisioneira política alemã que a conhecera antes reconheceu-a no campo um dia. «Tinham-lhe cortado o cabelo e andava por ali descalça. Nunca esquecerei o olhar triste que me lançou.» Mathilde ten Brink nunca tivera grandes esperanças de escapar, já que não possuía documentos. Mathilde era uma sem-abrigo de cinquenta e um anos, de Osnabrück. Perdera o emprego como mulher da limpeza na loja da família quando esta foi destruída no pogrom da Kristallnacht, o que pode também explicar como perdeu o Reichspass, o bilhete de identidade. Seja como for, a polícia holandesa prendeu-a em Emmerich e entregou-a à Gestapo. Num relatório da polícia alemã observava-se que ela «Não é casada. Um metro e 38 e fraca». Tinha feições judias. «O nariz é muito grande. Orelhas grandes. Não tem dentes. Fala alemão e mau holandês.» Mathilde não tinha «casa nem filhos», segundo o relatório da polícia, que incluía dezenas de páginas de correspondência oficial, antes de Mathilde ser sequer enviada para Ravensbrück, assim como o relatório de Irma Eckler, uma mulher judia acusada de Rassenschande. Irma e o seu marido «ariano» — que também foi preso — tinham duas filhas pequenas, que foram levadas; uma vivia agora com os pais de Irma e a outra fora internada num orfanato nazi. Irma recebia apenas fragmentos de notícias sobre as filhas nas cartas censuradas dos seus pais. Numa das respostas de Irma, é evidente que ela estivera a trabalhar num grupo no exterior, porque diz que viu crianças a andarem de patins — crianças da vila, talvez, ou filhos dos SS, a brincarem nos jardins das suas casas: Querida Mamã, Fiquei terrivelmente feliz com a sua carta. Sim, é assim que eu imaginava a Ingrid. Ela vai ser alguém que saberá defender a sua posição na vida. Andar de patins parece estar na moda. Aqui no trabalho vejo as crianças a andarem de patins. Agora, a mãe anda com certeza a pôr o jardim em ordem. Já não fala de emigrarem? Os meus pensamentos e beijos também para a minha patinadora, Da sua Mamã Irma.

Quando Doris Maase descreveu o bloco das judias como uma tropa fandanga, no entanto, não só queria dizer que essas mulheres eram as mais desesperadas mas também que não tinham disciplina, organização ou causa comum. Embora identificadas como judias, a religião significava pouco ou nada para elas, e poucas perfilhavam quaisquer crenças políticas. Nos Blocos 2 e 3, as comunistas e outras prisioneiras políticas andavam a planear como celebrar o aniversário da Revolução Bolchevique em 7 de novembro, mas as judias comunistas no Bloco 11, um grupo minúsculo, eram desprezadas como Vermelhas pelas outras judias e, por seu turno, desprezavam as vienenses «burguesas» e sentiam repulsa pelas prostitutas. Uma minoria de mulheres judias podia consolar-se com a ideia de que estavam ali por combaterem o fascismo, o que Maria Wiedmaier e as suas camaradas tentavam recordar quando eram chamadas todas as manhãs para a formatura. Poucas semanas depois da sua libertação do isolamento, mais uma vez Marianne Wachstein exigiu saber a razão por que estava no campo de concentração, e mais uma vez foi levada à presença do comandante. Evidentemente, ainda acreditava que poderia fazer Koegel ver a razão, mas em vez disso: «O Herr Direktor pegou no dossiê que estava diante dele e bateu-me várias vezes com ele nas mãos, e eu compreendi que não me era permitido defender-me.» Koegel ordenou que Wachstein fosse detida de novo numa cela solitária e disse a Langefeld que metesse na ordem o bloco das «putas judias». A reação de Langefeld foi radical. Despediu a Blockova do bloco das prisioneiras judias e dirigiu-se à Lagerstrasse durante a Appell para escolher outra. No entanto, em vez de se voltar para os blocos das criminosas ou das associais, encaminhou-se para as judias e observou-as em silenciosa repugnância. Joahnna Langefeld odiava tanto os judeus como qualquer outra pessoa, mas uma destas mulheres destacava-se. Olga Benario era uma mulher bonita que dava nas vistas, mesmo com o seu uniforme às riscas, e Langefeld, que conhecia Olga já desde Lichtenburg, estava a par da sua história.

Mandou-a sair da formatura, ordenou-lhe que se pusesse em sentido e disse-lhe que ela seria a nova Blockova do bloco das prisioneiras judias. Até esse momento, a nenhuma prisioneira política — judia ou não — tinha sido oferecido o cálice envenenado de mandar nas suas colegas prisioneiras. Como a SS queimou todos os documentos sobre a nomeação dos Kapos e de outro pessoal prisional, não existem informações oficiais sobre a razão por que foi atribuído o posto de Blockova a Olga. Os relatos de prisioneiras do Bloco 11 são raros, já que poucas das prisioneiras judias sobreviveram. Depois da guerra, as camaradas comunistas de Olga tentaram explicar a sua nomeação, mas a versão dos acontecimentos que apresentaram nem sempre é fiável. Até ao início dos anos 1950, a maior parte das sobreviventes comunistas alemãs de Ravensbrück já se tinha instalado no Leste, onde escreveram uma história do campo de concentração com um principal objetivo em mente: louvar a corajosa resistência comunista. Na nova República Democrática Alemã (RDA), o heroísmo dos comunistas dos campos de concentração foi destacado para contribuir para a promoção da imagem do país como um baluarte da luta contra o fascismo. Olga Benario, a revolucionária de Estaline, ocupava um lugar central nesta narrativa; foi dado o seu nome a ruas, escolas e edifícios por toda a Alemanha de Leste. Certos elementos da história de Olga, no entanto, não se coadunavam com este tema, em particular a sua nomeação como Blockova — um papel que significava que teria de implementar as ordens da SS. Para tornar mais aceitável a nomeação de Olga, estes historiadores comunistas omitiram a menção do facto de que esse cargo implicava privilégios e tentaram dar a entender que a aceitação de Olga não era uma colaboração, mas antes um sinal de que a SS tinha esgotado as maneiras de a fazer vergar — nomearam-na Blockova para «atrair o ódio sobre ela», disseram. Mal foi nomeada, Olga aproveitou a sua função de Blockova para mostrar «àquelas

judias burguesas os males do fascismo», escreveu Ruth Werner, a primeira biógrafa de Olga. Werner, que não esteve detida em Ravensbrück, mas que tinha sido treinada em Moscovo com Olga e baseou a sua biografia em entrevistas com sobreviventes comunistas, descreveu as outras prisioneiras judias não comunistas de Ravensbrück como «mulheres selvagens» com uma atitude de «eu primeiro, a roubarem roupa e cobertores», dando assim provas — se fossem necessárias — de que o antissemitismo grassava também entre muitas prisioneiras comunistas alemãs no campo de concentração. Olga não era totalmente judia, sugeriram algumas camaradas. Maria Wiedmaier disse que ela parecia «ariana» e que poderia ser «meio ariana». A idolatria de Olga no pós-guerra atingiu o seu ponto culminante com a inauguração do memorial de Ravensbrück em 1959, quando se juntou uma multidão aos pés de uma estátua chamada Tragende (Mulher a Carregar), que representava uma mulher esquelética esculpida em bronze, num pedestal, com a figura desfalecida de outra mulher nos braços. Tragende representa Olga Benario. A Olga ali representada parece atualmente distante, sombria e fria, nada como a torturada Olga — esposa e mãe — que aceitou a função de Blockova em 1939. Quando Olga Benario regressou de Berlim em setembro, não pode haver qualquer dúvida de que se encontrava extremamente vulnerável. Três anos passados atrás das grades, a maior parte deles em prisão solitária, tinham-na enfraquecido tanto do ponto de vista físico como psicológico. Ao voltar para Ravensbrück, encontrou o grupo comunista quase esmagado. Hanna Sturm estava ainda no bunker. A sua querida amiga e camarada revolucionária Sabo tinha morrido, provavelmente de pneumonia, embora nalguns relatos se indique que foi espancada até à morte. Jozka Jaburkova estava doente, em estado crítico. E a fé em Estaline tinha sido perturbada pela notícia de que ele assinara um pacto com Hitler. Olga tinha também a sua dor pessoal. Há muito tempo que rejeitara

as suas raízes judias, mas naquele momento tudo o que lhe estava a acontecer derivava dessas mesmas raízes. Nunca saberemos como ela encarava este conflito — ansiaria por estar no bloco comunista com as suas velhas camaradas ou por se juntar às suas colegas judias no Bloco 11? Também nunca saberemos até que ponto ela receava pela segurança da sua mãe, que se tinha afastado dela, e do seu irmão. Uma tia, irmã da mãe, tinha fugido para a América, mas a mãe e o irmão de Olga ainda viviam em Munique. O seu desespero mais profundo, no entanto, resultava claramente de ter ficado a saber durante o verão que lhe tinha sido negada qualquer esperança de voltar a ver Anita e Carlos. Olga poderia ter recusado a função de Blockova — já antes demonstrara ter coragem para tomar atitudes de desafio semelhantes, mas isso tinha sido antes de se tornar mãe. Se recusasse, arriscava-se a ser morta a tiro ou, na melhor das hipóteses, a ser condenada de novo a viver no bunker, sem receber cartas nem ter outra maneira de saber notícias de Anita. Se surgisse uma nova oportunidade de emigrar, ela não seria informada. Não se sabe a data exata em que Olga se tornou Blockova, mas deve ter sido antes de 14 de outubro de 1939, já que nesse dia ela escreveu a Carlos dizendo-lhe que por vezes lhe era permitido ler o jornal, o que só pode querer dizer que ela estava a usufruir dos privilégios de ser Blockova, e era também óbvio que podia circular livremente e ver as suas amigas. Acrescenta na carta: «As poucas semanas em Berlim recordaram-me que a coisa mais difícil é estar só. Aqui, tenho as minhas camaradas, que se preocupam com o que eu como.» Olga preocupava-se com a maneira como Carlos estava a suportar a sua detenção, porque sabia que ele se encontrava em prisão solitária. «Andas, fazes exercício? Deprime-me mesmo saber que estás sozinho.» Como sempre, a sua carta regressava ao tópico de Anita. «Sonho contigo e com a pequerrucha uma e outra vez, mas é uma amargura acordar de manhã.» «Achtung! Achtung!», berra Olga mal a sirene da manhã começa a

tocar. Em outubro, as temperaturas estão já a descer rapidamente e, embora haja um fogão no bloco, ninguém pode usá-lo. Como várias mulheres se recusam a acordar, Olga marcha para um lado e para o outro, a sacudi-las. Se chegarem atrasadas, as guardas batem-lhes, avisa ela. Outro grupo apinha-se à volta do Kesselkollone, o carro da sopa. O «café» é rapidamente bebido. Olga berra: «Para fora, para fora. Appell! Appell!» As mulheres que estão demasiado doentes para trabalhar ficam na camarata, mas todas as outras marcham para fora, e às quatro e meia da manhã as prisioneiras do Bloco 11 já se encontram sob o céu estrelado. «Achtung! Achtung! Filas de cinco» e os «corvos» aparecem com as suas capas de lã pretas de inverno, observando atentamente as Blockovas, não vão elas enganar-se na contagem. Uma a uma, as mulheres com braçadeiras verdes — Ratzeweit, Müssgueller, Scharinger e agora também Benario — comunicam os números a Langefeld. A contagem de Olga é verificada e aprovada. Ordena-se às mulheres que regressem aos seus blocos, onde só têm tempo para fazerem a cama antes da chamada para o trabalho. Olga vigia a sua marcha de regresso ao bloco e em seguida preenche os dados no livro de registos. Como Blockova, compete-lhe levar as doentes do bloco para a Revier, onde elas se põem na fila com as outras na esperança de serem vistas por um médico. Olga troca umas palavras com Dora Maase e transmite-lhe uma mensagem de Maria Wiedmaier, do Bloco 3. Durante todo o dia, Olga tem tarefas a cumprir: registar as novas chegadas, contar meias, calcinhas e camisolas interiores para a lavagem semanal, fazer listas das rações, tudo sob o olhar da guarda do bloco. Quando as mulheres regressam ao meio-dia, serve a sopa do almoço e volta a contá-las e, quando elas regressam ao fim do dia, conta-as de novo. A Appell do fim da tarde é o pior, porque como há mulheres que desaparecem durante o dia — escondidas no bloco, talvez —, a contagem tem de começar de novo do princípio e, se a prisioneira que falta não for encontrada, toda a gente espera, enquanto a comida arrefece e a temperatura desce. Há mulheres que

tombam por terra e Olga tem de ficar a ver a guarda Fraede a baterlhes. Depois da sopa à noite, as mulheres arrastam-se para o balneário e disputam as sanitas. Despem-se e sobem para as suas camas. Olga percorre a camarata. Alguém está a dormir vestida para se manter mais quente. Tem de tirar a roupa e dobrá-la, diz Olga, ou será denunciada. Outra mulher está a gemer, a queixar-se de dores nas pernas. A mulher diz a Olga que é cega. Olga vê que ela tem os tornozelos inchados e roxos, e para por um momento para mostrar à mulher como estender as pernas para aliviar as dores. Às nove da noite o bloco é fechado à chave e os guardas da SS deixam as mulheres sozinhas até de manhã. É agora que Olga reúne algumas amigas à sua volta para conversarem. Ela tem a sua própria cama e o seu próprio armário. Ali estão Rosa Menzer, de Dresden, que Olga conhece desde os tempos de Lichtenburg, e Lena e Lenza, as suas outras jovens camaradas. Aos domingos, quando a vigilância da SS afrouxa, as camaradas de Olga reúnem-se mais uma vez para escreverem cartas e falarem sobre as suas famílias. Como Rosa, que era costureira, não sabe escrever, Olga ou outra camarada escrevem-lhe as cartas e Rosa paga-lhes o favor mostrando-lhes como alinhavar papel velho nas camisas para lutar contra o frio. Olga lê às outras prisioneiras as cartas que recebeu de Carlos e discutem as ideias dele sobre filosofia e o que Olga poderia escrever na sua resposta. E falam sobre Anita. Todas concordam que Anita deveria pertencer a um coletivo desde a mais tenra idade. Olga escreve: «É importante para o caráter dela. Tenho alguém aqui que diz isso.» Os dias passam. Olga acaba por conhecer melhor as mulheres enquanto patrulha as camaratas, e elas acabam por a conhecer melhor a ela e aguardar com expectativa as suas rondas; até as «burguesas» vienenses deixam de lhe chamar Vermelha e vaca bolchevique, porque ela as ajuda, dizendo-lhes como comer devagar para atenuar a fome e mostrando-lhes como catar piolhos nas

cabeças umas das outras. «Não desistam», diz ela. «Fiquem juntas para se manterem mais quentes.» Olga arranja tempo para desenhar e fazer esboços. Nos pedaços de papel a que tem acesso por ser Blockova, desenha mapas miniaturais para as outras mulheres poderem seguir a evolução da guerra. Assinala a frente de combate a lápis, com minúsculas setas, mostrando como as forças alemãs estão a avançar pela Polónia; um tracejado delimita as terras ocupadas pelos nazis. As informações de Olga vêm-lhe de notícias que lê no jornal nazi, o Völkischer Beobachter, que lhe é trazido à socapa por Maria Wiedmaier e Doris Maase. Olga desenha lindamente e as mulheres do bloco observam-na cheias de admiração. Uma nova prisioneira chamada Käthe Leichter chegou de Viena. Parece estar muito bem informada e conta a Olga o que está a acontecer no mundo lá fora, dizendo que, antes de ela ser detida, a imprensa austríaca noticiava que Churchill proporia a paz até ao Natal. Käthe não tarda a ser adorada por todas as mulheres do bloco; canta-lhes e recita poemas. Dizem que ela parece saber de cor todos os poemas que já alguma vez foram escritos. Ela é mais velha do que Olga e parece querer ajudá-la. E embora Käthe não seja uma «camarada» propriamente dita — é social-democrata, não comunista —, as duas mulheres têm muito em comum, assim como todas as outras prisioneiras; todas têm filhos ou família longe. Num serão, Käthe fala dos seus últimos dias em Viena. O marido e os dois filhos conseguiram atravessar a fronteira checa em segurança e estão agora em Paris. Käthe sente-se desesperada por os ter deixado partir à sua frente e recrimina-se por não os ter seguido mais cedo. Sabe que eles chegaram a Paris porque recebeu cartas através de uma tia em Viena, mas preocupa-a que a capital francesa seja também tomada em breve — e para onde irão eles então? Käthe recita outro poema, desta vez um que escreveu a um «irmão» imaginário num campo de concentração masculino. Irmão, estiveste com a tua mulher e os teus filhos na noite passada?

Eu estive com os meus filhos. Cobri-os a ambos e disse: «A mãe vai aí estar não tarda nada, sejam bons, não chorem.» A luz do candeeiro incide num livro e num sofá. Estávamos sentados em silêncio, o meu marido e eu, para não despertar as crianças. Levantei-me de um salto, assustada. O luar pálido refletia-se nos beliches de ferro. E eu estou aqui deitada entre muitas, tão quieta, tão só, tão fria. Eu em Ravensbrück, tu em Sachsenhausen, em Dachau ou Buchenwald.

Ao longo do mês de novembro, as cartas de Olga pararam. Graças a outra prisioneira judia, Ida Hirschkron, sabemos porquê. Ida, detida em Viena por atividades de resistência em julho de 1939, chegou a Ravensbrück em outubro. Foi enviada para o bloco judeu, onde continuaria a ser mantida até setembro de 1941, altura em que foi subitamente libertada. «A minha libertação deve ter sido um engano», escreveu mais tarde, «porque, mal regressei a Viena, a Gestapo começou a andar à minha procura outra vez. Por conseguinte, vi-me forçada a viver na clandestinidade.» Mas Ida não voltou a ser detida e depois da guerra relatou a sua experiência no campo de concentração. A sua recordação mais nítida era a do «confinamento» do bloco judeu, que começou em 10 de novembro de 1939 Nesse dia, todas as prisioneiras judias foram barricadas dentro do Bloco 11. As portas foram trancadas e as janelas entaipadas. Ninguém sabia porquê. «Não tínhamos autorização para sair do bloco para receber correio ou escrever cartas, estávamos completamente isoladas do mundo exterior.» Até mesmo a chamada era feita dentro do bloco, por Emma Zimmer. «Quando a Zimmer entrava nos blocos, o nosso coração batia mais acelerado. Havia uma tempestade de insultos grosseiros — “porcas judias”, “escória judia”, “bando de mandrionas judias”. Ao mesmo tempo, a Zimmer batia-nos com toda a força, à toa, e batia em quem calhasse estar perto dela.» O confinamento continuava, dia após dia. Ida não explica como ou com que frequência as mulheres recebiam comida ou água, mas ficavam sentadas no escuro, «aterrorizadas com o que poderia acontecer a seguir», e Zimmer voltava todos os dias para berrar e

lhes bater. «Durante todo este tempo, não tínhamos ar e não nos deixavam abrir as janelas. Quase enlouquecemos de medo.» O pesadelo prolongou-se por três semanas e claramente teria prosseguido por muito mais tempo se Olga não tivesse tomado uma iniciativa. «Mas então a nossa Blockova, a Olga Benario-Prestes, atreveu-se a pedir a Zimmer que pusesse fim àquele estado de coisas quase insuportável.» Era uma impudência sem precedentes. Até àquele momento, nenhuma prisioneira — e certamente nenhuma Blockova — se atrevera a confrontar uma guarda, e, segundo Ida, o protesto de Olga fez perder a cabeça a Zimmer. «Zimmer berrou como uma louca e apresentou um relatório da amotinação a Koegel, o comandante do campo. Mandou toda a gente pôr-se em sentido e berrou: “Vocês, judias, vão todas ser mortas a tiro agora!” Aquilo causou um tremendo pânico e caos entre as prisioneiras.» Mas Koegel não ordenou que as prisioneiras fossem executadas a tiro. A ameaça era só um «pequeno prazer sádico de Zimmer», disse Ida. «O que tivemos de fazer foi pegar em ferramentas e ir cavar areia.» Algum tempo depois, as mulheres ficaram a saber a causa da sua provação. Em 8 de novembro de 1939, dois dias antes de serem encarceradas, um marceneiro de 36 anos de Württemberg chamado Georg Elser tinha tentado matar Hitler e quase conseguira. Pôs uma bomba numa cervejaria onde Hitler estava a fazer um discurso, mas, devido a um erro no cálculo do tempo, a bomba rebentou dez minutos depois de Hitler ir embora, matando oito pessoas. Em retaliação, os judeus de todos os campos de concentração foram punidos. O testemunho de Ida Hirschkron, a que os historiadores comunistas no pós-guerra não tiveram acesso, proporciona uma visão quase única do interior do bloco judeu neste período conturbado. Sem esse testemunho, nada se saberia sobre a coragem de Olga ao exigir o fim do confinamento. Em resultado do protesto de Olga, esse tipo particular de punição terminou e as portas do bloco voltaram a ser abertas. Como Hirschkron deixa bem claro, no entanto, o trabalho de cavar

areia não era propriamente uma opção suave. As guardas no Sandgrube asseguraram-se de que as prisioneiras continuariam a sofrer de manhã à noite. «As mulheres eram atacadas pelos cães e havia ferimentos terríveis. Eu própria tive frequentemente de ajudar a levar mulheres em braços para o campo, cobertas de sangue. As mulheres tinham de ser levadas para o hospital com terríveis queimaduras do frio.» Havia muitas idosas entre as prisioneiras, e uma delas era completamente cega, embora não saibamos se esta é a mesma mulher cega confortada anteriormente por Olga no bloco. «Os pés da mulher estavam de tal maneira inchados que ela não conseguia fazer o trabalho que nos mandavam fazer. Por isso, a Zimmer agarrou na mulher cega pela nuca e espancou-a até ela cair por terra, levantou-a de novo e bateu-lhe com a mão e voltou a atirá-la para o chão, onde ela ficou a gemer.» Só em 20 de dezembro Olga pôde voltar a escrever a Leocadia e a Lígia, embora fosse uma carta muito breve. Nela, agradecia-lhes por continuarem a fazer «tudo» o que podiam por ela» e por um telegrama que acabara de receber, enviado no terceiro aniversário de Anita — a 27 de novembro —, durante o confinamento; «beijem a minha filha, Anita, por mim». Apesar do «amotinamento», Olga manteve o seu posto de Blockova em dezembro, segundo Alice Bernstein, uma outra sobrevivente judia. Alice era Stubova (chefe de dormitório) no Bloco 11 na altura e recordou outro incidente que envolveu Olga três dias antes do Natal. Nessa manhã, deixou que uma criança cigana de três anos dormisse mais tempo do que o habitual. «A criança estava doente e a Blockova, Olga Benario-Prestes, tinha-a tapado com um cobertor de lã.» A menina foi encontrada pelo homem da SS Johann Kantshcuster. «Ele agarrou a menina pelos cabelos, levou-a até ao lago e afogou-a.»

CAPÍTULO 4 A VISITA DE HIMMLER Em 4 de janeiro de 1940, Heinrich Himmler ordenou ao seu motorista que se dirigisse para noroeste de Berlim, ao longo das estradas geladas na direção da floresta de Mecklenburg e daí para Ravensbrück. Com o nevão da noite anterior e a temperatura a descer aos vinte graus negativos, a viagem era perigosa, encontrando-se as estradas frequentemente bloqueadas por neve acumulada. Dado o estado do tempo, assim como os acontecimentos da guerra, particularmente na Polónia, poderia imaginar-se que uma visita ao pequeno campo de concentração para mulheres de Ravensbrück em janeiro de 1940 não ocupasse um dos primeiros lugares na lista de prioridades do Reichsführer. Mas Himmler gostava de visitar os seus campos de concentração e esta seria a primeira inspeção que faria a Ravensbrück desde a sua abertura em maio. Adolf Hitler mostrava pouco interesse pelos campos de concentração — de acordo com os registos existentes, nunca visitou um único que fosse —, mas aqueles encontravam-se no centro do império de Himmler; tudo o que se passava por trás dos seus muros era autorizado com a sua assinatura. A obsessão de infância de Himmler pelos pormenores transformara-se numa necessidade de microgerir todo o seu império, particularmente os campos de concentração. Na sua qualidade de Reichsführer SS tinha poder sobre tudo, do consumo de calorias dos prisioneiros à nomeação de oficiais da SS; vetava sempre qualquer homem cuja árvore genealógica indiciasse genes não arianos. E durante as suas visitas gostava de conhecer pessoalmente os prisioneiros, chegando a admoestar um ou dois ou a selecionar alguém para ser libertado. O mau tempo não demoveria Himmler de visitar Ravensbrück; gostava de se embrenhar pela província gelada, chegando até a

conduzir ele próprio o seu Mercedes cabriolé. Mesmo agora, a capota estaria descida e Himmler bem envolto em mantas quentes. Estes bosques não se comparavam aos Alpes da Baviera que ele conhecera em pequeno, com as suas cascatas e os seus castelos de conto de fadas, mas as florestas da planície eram também puras terras alemãs e os bosques eram um local onde procurar a presença mística dos seus antepassados. Também se deslocava a estas paragens para visitar os seus amigos. Não era só Oswald Pohl, o chefe do departamento económico da SS, que tinha uma propriedade perto de Ravensbrück; vários outros destacados nazis tinham aqui propriedades e deslocavam-se regularmente àquela zona para caçar. Himmler, no entanto, considerava a caça «um assassínio a sangue-frio de animais inocentes e indefesos». Criticando o «mastim» Hermann Göring, disse uma vez ao seu massagista e confidente Felix Kersten: «Imagine, Herr Kersten, que um pobre veado está a comer erva pacificamente e aparece o caçador com a sua arma para abater o pobre animal. Isso poderia dar-lhe prazer, Herr Kersten?» Kersten tinha sido contratado por Himmler para lhe aliviar as dores crónicas de estômago de que sofria desde a adolescência. Ao massagista natural da Estónia — Himmler chamava-lhe «o meu Buda preto» — competia fazer passar as dores do seu paciente com as suas massagens e escutar-lhe as teorias sobre a raça superior. Ninguém na elite nazi acreditava mais fanaticamente na ideologia da raça superior do que o Reichsführer SS e mais ninguém tinha a mesma obsessão com teorias relacionadas com ela; sobre o misticismo indiano ou os pedreiros-livres e como se relacionavam com ideias de higiene racial, Himmler era capaz de recitar literalmente resmas de informações, de tal modo que o historiador britânico Hugh Trevor-Roper, que estudou Himmler de perto, comentou: «Com um pedantismo tão limitado, com um antiquarismo tão ao pé da letra estudou Himmler os pormenores destas tristes asneiras que muitas pessoas supuseram, erradamente, que ele tinha sido professor.» Como Trevor-Roper lembrou, no entanto, se Himmler fosse só um

curioso, «teríamos ouvido falar muito menos dele». Como gestor, era também «muito eficiente». Algumas semanas depois do início da guerra, Hitler recompensou a eficiência de Himmler na frente de guerra com o posto de Comissário do Reich para a Consolidação da Germanidade, o que requeria que ele removesse todas as pessoas indesejadas da recentemente ocupada Polónia e que transformasse o território num espaço perfeito para nele viver uma super-raça alemã geneticamente pura. Em janeiro, a tarefa já avançava a bom ritmo; ele já tinha transferido a população do corredor de Warthegau e de Gdansk e repovoara a zona com habitantes de etnia alemãs, transportados dos estados bálticos. As classes dominantes polacas estavam também a ser arrebanhadas e dois milhões de judeus polacos iam ser transferidos para reservas no chamado «Governo Geral», uma parte do Leste da Polónia anexada. O Führer não tinha ainda decidido para onde acabariam por ir esses judeus, mas muitas pessoas em torno de Hitler partiram do princípio de que eles seriam empurrados mais para leste ou até deportados para África — tinha sido aventada a hipótese de os instalar na colónia francesa de Madagáscar. Com a maior experiência humana alguma vez imaginada em curso, Himmler encontrou agora uns momentos para se dirigir a Ravensbrück para examinar experiências mais localizadas. Tinha também combinado um encontro em Ravensbrück com Oswald Pohl, que encetara ele próprio uma experiência. Na sua propriedade nas imediações de Ravensbrück, Pohl andava a tentar criar diferentes raças de galinhas, e Himmler, que também costumava fazer criação de galinhas, estava ansioso por trocar impressões com ele. O chiar das rodas na estrada gelada alertou o campo de concentração para a aproximação de Himmler. Grupos de prisioneiras afundadas até aos joelhos na neve abriam um caminho com pás. No lago gelado, outras mulheres estavam a trabalhar, a tirar gelo para o armazém do campo. As mais fracas caíam frequentemente no gelo, arrastando as picaretas nas suas mãos queimadas pelo frio. «Por vezes, os seus cadáveres gelados tinham de ser arrancados à força»,

recordou Luise Mauer. O automóvel do Reichsführer parou junto ao edifício central. Koegel, recentemente promovido a Sturmbannführer (major) e oficialmente confirmado como comandante, saiu para o cumprimentar. Seguidos por Langefeld, os dois homens entraram pelos portões do campo para inspecionar as fileiras de guardas femininas em grande excitação. Em seguida, Himmler acompanhou Koegel ao seu gabinete para ouvir todos os pormenores sobre a revolta persistente das testemunhas de Jeová. A recusa dessas mulheres de coserem sacos do correio militar transformara-se nas últimas semanas num protesto declarado, que Koegel não tinha conseguido debelar, e o comandante estava furioso. Muitas prisioneiras recordariam mais tarde o protesto, assinalado pela extraordinária resistência daquelas mulheres. Primeiro, foram forçadas a ficar de pé no gelo e na neve horas a fio até várias caírem por terra com queimaduras do frio. Mal o novo bunker de pedra de Koegel ficou pronto, as mulheres foram detidas nele, nove por cela, em escuridão total e sem comida. Mesmo assim, nem uma única mulher tinha ainda cedido. Koegel apelou a Himmler para que lhe concedesse maiores poderes para fazer vergar as testemunhas de Jeová. A única maneira, insistiu, era espancá-las. Havia espancamentos casuais todos os dias, mas Koegel pediu autorização para recorrer ao Prügelstrafe, um método usado nos campos de concentração masculinos. Este espancamento «oficial» implicava atar o prisioneiro de barriga para baixo sobre um trampolim, ou Bock, e aplicar-lhe vinte e cinco chicotadas nas nádegas com um chicote de pele. Esse tipo de punição só podia ser autorizado pelo próprio Himmler e, até à data, ele recusara-se a permiti-lo. Não há registo da razão para Himmler não autorizar essa punição em Ravensbrück, mas sabemos que Langefeld acreditava que era desnecessária e que deixou claro que se opunha a ela. Himmler pediu para ver primeiro as testemunhas de Jeová nas suas celas antes de tomar uma decisão. Koegel orgulhava-se da sua

nova prisão. Construída em pedra, rodeada por pinheiros, era impenetrável. Dorothea Binz, a filha do guarda florestal, e Maria Mandl, uma guarda austríaca com mais experiência, tinham sido escolhidas para dirigir o novo bunker, o que as tornava quase tão poderosas como Johanna Langefeld — e certamente mais temidas. Mais nenhuma guarda podia entrar na prisão sem a autorização de Koegel. Quando Himmler chegou, a 4 de janeiro de 1940, as testemunhas de Jeová já se encontravam no bunker há três semanas. Uma guarda abriu uma das portas. Himmler e Koegel espreitaram para a escuridão, para um grupo de mulheres esfomeadas e geladas encafuadas numa cela húmida e fétida. As mulheres rezavam. Ouviuse o comentário de Himmler de que elas «estavam mal». Entre as prisioneiras do primeiro grupo encontravam-se Erna Ludolph e Marianne Jorn, com os lenços brancos na cabeça quase invisíveis enquanto rezavam em silêncio na escuridão gélida. Ambas tinham já passado pelo menos cinco anos na prisão por se recusarem a renegar a sua fé; ambas estavam entre as que tinham sido atacadas à mangueirada como «ratos afogados» durante o motim em Lichtenburg. Era o vigésimo primeiro dia da sua detenção no bunker quando Himmler apareceu, recordou Erna Ludolph. «Ele deixou que as guardas lhe abrissem uma porta e apanhou um susto quando nos viu.» A seguir, Himmler falou. «Não veem que o vosso Deus vos abandonou? Podemos fazer-vos o que quisermos.» Uma das testemunhas de Jeová na cela respondeu: «Deus salvar-nos-á. E se Ele não nos salvar, nós não vos serviremos.» Himmler parou à porta de outra cela. Mais uma vez, pediu que a porta fosse aberta e espreitou lá para dentro. Perguntou a uma jovem chamada Ruth Bruch se estava disposta a renunciar à sua fé. Ela disse: «Só seguirei as regras de Deus.» Himmler respondeu: «Devias ter vergonha, moça», e virou-se para ir embora. Himmler e Koegel caminharam pela Lagerstrasse enquanto o comandante abordava outras questões problemáticas, muitas das

quais estavam a surgir devido aos desenvolvimentos na guerra. Os arrebanhamentos na Polónia, por exemplo, significavam que chegava diariamente um número crescente de mulheres polacas; dentro de pouco tempo, seriam necessários mais blocos de alojamento. O bloco das prisioneiras judias já estava lotado, assim como o Strafblock, que começava a encher-se com novas prisioneiras associais. A Revier já não tinha condições para tratar todas as doentes, na fila para serem vistas por um médico, a maioria com triângulos pretos ou verdes, cobertas de chagas. Para o comandante, todas essas mulheres eram «estafermos, cadelas e putas», mas Himmler raramente usava tal linguagem; para ele, eram «bocas inúteis», «vidas que não valiam a pena ser vividas».9 Embora Koegel não o soubesse — o assunto era demasiado secreto —, Himmler já tinha planos para abordar o problema; em janeiro de 1940, o extermínio de vidas que não valia a pena ser vividas já tinha começado — não nos campos de concentração, mas nos hospitais alemães e em nome da eutanásia. A intenção de Hitler de erradicar os deficientes físicos e mentais da Alemanha — incluindo os cegos, os surdos, os mudos e os epiléticos — para rejuvenescer a raça (e poupar na despesa pública) já há muito era conhecida dentro do partido, mas, como sempre, o Führer avançava cautelosamente, ciente da opinião pública interna e no estrangeiro. Sabia que um tal programa de mortes em massa não poderia ser autorizado por nenhuma lei, por mais camuflada que fosse, mas a coberto da guerra o seu cariz criminoso poderia ser obscurecido. Por essa razão, Hitler esperou até a guerra estar em curso para ordenar, em outubro de 1939, que se iniciasse o projeto de «eutanásia». Como mesmo assim não podia haver uma garantia de qual seria a reação pública, concebeu-se uma história complicada para enganar o povo alemão e os potenciais observadores estrangeiros. Em primeiro lugar, foi criado um gabinete especial dentro da Chancelaria de Hitler para dirigir o programa de «eutanásia», com o nome de código T4, inspirado pela morada do dito gabinete, que se

situava no número 4 da Tiergartenstrasse, em Berlim. Foram criados centros de extermínio dentro de hospitais e clínicas — cinco na Alemanha, um na Áustria anexada — e uma «comissão» de médicos, que prestaram juramento de sigilo, diagnosticaria os doentes incuráveis e os loucos. Tomou-se uma série de medidas práticas para disfarçar o que iria acontecer. Estabeleceu-se uma «Companhia Limitada para o Transporte de Inválidos no Interesse Público» para gerir o transporte em autocarros, e o pessoal dos hospitais e das clínicas foi ensinado a redigir cartas falaciosas às famílias das vítimas. A decisão de como matar foi mais difícil. Na Polónia, Himmler ordenou que todos os doentes mentais fossem liquidados a tiro, mas na Alemanha a hipótese da execução maciça a tiro dos pacientes dos hospitais foi excluída: revelaria o que estava a acontecer. Após alguma discussão do assunto entre médicos destacados, concordouse em usar monóxido de carbono. Uma das propostas consistia em administrar esse gás libertando-o nas enfermarias enquanto os doentes estivessem a dormir. Outros médicos sugeriam introduzir-se gás através de chuveiros numa câmara selada construída para o efeito. Tomou-se a decisão de testar a ideia da câmara de gás num dos centros de extermínio T4 escolhidos. Os resultados revelaram-se satisfatórios e foram certamente transmitidos a Himmler pouco antes de ele fazer a sua primeira visita a Ravensbrück. Terminada a inspeção, Himmler estava ansioso por regressar ao gabinete de Koegel, onde o aguardava o seu amigo Pohl, para falarem da criação de galinhas. Johanna Langefeld tinha a esperança de conseguir trocar umas palavras com Himmler e entrou na sala quando a conversa dele com Pohl estava a começar. O objetivo de Langefeld era argumentar contra o pedido de Koegel da instituição de Prügelstrafe, mas quando entrou deparou com uma cena curiosa, como a descreveu a Grete Buber-Neumann depois da guerra: Numa das salas do edifício do comando, Himmler estava sentado ao lado do homem encarregado das capoeiras na propriedade de Pohl situada nas imediações.

Também presentes estavam os elementos mais seniores da administração do campo de concentração e várias guardas. Himmler estava embrenhado numa conversa sobre a questão da criação de galinhas, tanto do ponto de vista da investigação sobre genética racial como do ponto de vista do agricultor. Pohl tinha trazido o seu principal criador de galinhas com ele para participar na conversa com Himmler.

Langefeld tentou falar com Himmler sobre o pedido de Koegel para conduzir punições corporais oficiais e tinha a esperança de que o Reichsführer concordasse com ela, mas ele não lhe deu ouvidos. «Em vez disso, prosseguiu na sua conversa entusiástica da questão de como criar uma raça perfeita de galinhas.» Langefeld disse a Grete que sabia que Koegel andara a tentar nas costas dela convencer Himmler a concordar com o plano de Prügelstrafe. «Foi nesta altura que Langefeld viu quem Koegel realmente era, um sádico criminoso», comentou Grete. O comandante tinha até afirmado que os espancamentos eram necessários para proteger a própria Langefeld, dizendo a Himmler que ela tinha sido «atacada por uma prisioneira com uma faca, embora isso fosse completamente falso». Comentando ainda o relato de Langefeld, Grete disse que lhe parecia claro que Langefeld era já «uma mulher profundamente confundida» nesta fase da vida do campo. «O conflito entre moralidade e imoralidade estava a travar-se dentro da cabeça de Langefeld. Por um lado, aqui estava uma mulher que apoiava a insanidade racista nazi e o antissemitismo, mas, por outro lado, ela sentia-se acossada pela culpa por as mulheres poderem vir a ser vítimas de castigos corporais.» Langefeld deixou-se ficar no gabinete de Koegel e acabou por ter uma oportunidade de dirigir a palavra ao Reichsführer. «Mas, depois de ele ouvir tudo o que queria sobre o assunto das galinhas, ignorou o que lhe disse Langefeld e deu ordem de que os espancamentos deveriam no futuro ser permitidos em Ravensbrück», disse Grete. No entanto, as primeiras prisioneiras a serem espancadas não foram as testemunhas de Jeová detidas nas celas. Himmler ordenou a Koegel que as libertasse do bunker e as mandasse fazer trabalhos

forçados na neve. Parece ter compreendido o que Koegel não conseguira ainda compreender: que não havia espancamento que fizesse as testemunhas de Jeová renunciarem à sua fé. Para além da sua recusa de fazer trabalho de guerra ou de reconhecer o Führer, as testemunhas de Jeová eram prisioneiras-modelo; era contra a sua fé mentir ou fugir e davam excelentes empregadas domésticas. Assim, pouco depois da sua visita ao campo de concentração, Himmler ordenou que as testemunhas de Jeová fossem empregadas nas casas dos SS como criadas — ofereceu até algumas a Oswald Pohl para ele usar na sua propriedade vizinha. Antes de partir de Ravensbrück, Himmler assinou a libertação de uma prisioneira comunista alemã que tinha tentado fugir em julho e que estava detida no bloco de castigo desde essa data. A sua libertação foi pós-datada para daí a três meses, em 20 de abril, o dia em que Hitler faria cinquenta e um anos. Era uma tradição libertar prisioneiros no dia de anos do Führer. Um mês depois da visita de Himmler, ocorreu o primeiro Prügelstrafe. As vítimas foram Mariechen Öl e Hilde Schulleit, apanhadas a roubar um pote de banha. Himmler aprovou pessoalmente o castigo; de acordo com as novas regras, o Reichsführer teria de ser consultado em cada ocasião. Como as regras também requeriam, um médico esteve presente, e a chefe das guardas, Langefeld, foi obrigada a assistir. O Bock foi colocado numa das celas no bunker, as mulheres foram amarradas de rosto para baixo e depois de lhes serem levantadas as saias receberam cada uma vinte e cinco chicotadas nas nádegas. Nesta ocasião, o próprio Koegel manejou o chicote de pele. Quando a punição corporal do Prügelstrafe se iniciou, muitas novas prisioneiras tinham já sido fechadas nas celas do bunker desocupadas pelas testemunhas de Jeová. Marianne Wachstein, detida nas celas de madeira no verão anterior, continuara a protestar contra o seu tratamento, pelo que foi detida no novo bunker no início de fevereiro de 1940. Assim como descreveu o primeiro edifício da

prisão, também deste pôde fazer um relato e, mais uma vez, porque registou tudo por escrito mal a soltaram — seria libertada daí a três semanas —, ainda se lembrava bem dos pormenores. Oscila até entre o tempo passado dos verbos e o presente, porque sabe que os acontecimentos que descreve ainda continuam a verificar-se. Marianne disse que foi levada à presença de Langefeld no início de fevereiro de 1940 e que lhe foi dito que o seu crime era o de «difamar o Estado» e que a pena eram vinte e oito dias no novo bunker. Quando protestou, Langefeld disse-lhe que a punição «vinha de Koegel». Levaram-na para a cela «sem terem em consideração que eu tinha os pés a sangrar e gelados e que estava tão magra que podiam contar-se as minhas costelas todas, e nalguns sítios tinha a pele pendente como um saco vazio». Desmaiou, e Zimmer tentou reanimá-la deitando-lhe «água para cima através da abertura por onde metem a comida». Como aquilo não a reanimou, Zimmer ordenou a uma ajudante que batesse em Marianne com o cabo de uma vassoura através da mesma abertura. «Quando acordei com as pancadas, estava toda molhada e tive de ficar, naquele inverno frio, com o vestido e as meias molhados — na solitária não há sapatos — durante vários dias.» Uma guarda chamada Kolb abriu a porta da cela de Marianne para a insultar. Frau Kolb disse: «Fede aqui dentro», por isso eu respondi: «Peço-lhe desculpa Frau Aufseherin, mas não é possível que eu feda, eu lavo o corpo três vezes por dia.» Ao que ela respondeu: «Todos os judeus fedem», e eu tive a sensação de que se dissesse mais uma palavra ela me batia, por isso deixei-me ficar em silêncio. Quando ela abriu a porta outra vez para me trazer a comida, disse outra vez: «Tu fedes», e fechou rapidamente a porta.

Marianne encontrou outras prisioneiras no bunker, entre elas Alma Schulze, «uma beleza ariana que tinha sido espancada tão violentamente que gritava à noite, “Os meus olhos, os meus olhos”, porque tinha medo de ficar cega». A cantora de ópera «louca», Hedwig Apfel, nunca mais tinha sido libertada desde os tempos do

bloco de celas de madeira; Marianne ouvia-a gritar. As provações agravaram-se. A «cela húmida e negra como o breu» de Marianne ficava no subsolo. Eu estava na cela 15, era tão húmida que a parede da janela estava coberta por bolor preto. Na solitária, não se tem autorização para fazer nada. Nem para ler nem para escrever, só se pode ficar sentada. Também não se pode andar. A cela não tinha aquecimento de qualquer espécie. O inverno era muito frio. Embora eu seja bastante resistente, estava enregelada, a tremer, a bater com os dentes, na mais completa escuridão. Deixava-me ficar sentada na cela com os pés a sangrar.

Ao fim de alguns dias, soltaram Marianne. Ao sair da sua cela, ouviu Apfel gritar. «Já não soava humana, mais como um animal. Acho que há outra mulher louca, porque ouvia-se uma outra voz que também já não tinha nada de humano.» No seu relato, escreveu que eram precisamente cinco da tarde do dia 23 de fevereiro de 1940 «quando Deus me tirou de lá transportando-me para aqui». «Aqui» era o hospital em Viena onde estava a recuperar. A sua viagem de regresso a Viena tinha sido o oposto da viagem de pesadelo para o campo de concentração, em camisa de noite, nove meses antes. Enquanto Marianne aguardava um lugar num comboio numa prisão de Berlim, um médico aplicou-lhe um unguento nos pés, que tinham queimaduras do frio, e noutras prisões a caminho de Viena foi alvo de outros gestos de bondade; deram-lhe «comida muito boa», incluindo, numa ocasião, «duas fatias de pão de centeio com manteiga». Ao chegar a Viena, Marianne foi internada num hospital. As condições do seu regresso permanecem por esclarecer, mas sabemos que foi libertada para prestar declarações no julgamento do seu marido, a ser realizado em Viena, sendo ele acusado de atos de corrupção relacionados com o negócio da sua família judia. Dado o estado de saúde de Marianne, no entanto, ela não pôde prestar depoimento de imediato, sendo-lhe permitido restabelecer-se antes, e no hospital arranjou forças para escrever o seu relato sobre Ravensbrück, dirigindo-o a um funcionário do tribunal — um tal Herr Hofrat Dr. Whilhelm. Como Marianne não receava ser enviada de novo para o campo,

não tentou autocensurar-se, apresentando até o seu relato como testemunho. Assim como acreditara em Ravensbrück que podia apresentar o seu protesto ao comandante da SS, como se ele proviesse de um mundo normal, também agora julgou que os tribunais vienenses escutariam os seus avisos e processariam os perpetradores nazis com base no seu testemunho. Sugeriu até que os advogados verificassem as suas afirmações falando com outras testemunhas no campo de concentração, e nomeou alguma da «tropa fandanga» judia austríaca, um grupo em que se incluíam Toni Hahn, Ami Smauser, Louise Olhesky e Kate Piscaul. Mencionou também a prisioneira austríaca Susi Benesch — «comunista e ariana» —, que estivera no bunker com ela. «Contudo, para entrevistar estas testemunhas é necessário tirá-las de Ravensbrück, porque elas não se atreveriam a contar a verdade em face das punições medievais, entre elas chicotadas, espancamentos e camisas de forças», escreveu Marianne. Enquanto Marianne redigia o seu relato de Ravensbrück, não fazia ideia de para seguiam os acontecimentos que tinha testemunhado. Nessa altura, os primeiros centros de gaseamento, encomendados ao abrigo do novo programa de eutanásia de Himmler, estavam ainda a começar a ser montados. Por conseguinte, o seu relato fala-nos de um período anterior ao Holocausto com uma inocência perturbante. No entanto, Marianne claramente acreditava que tinha testemunhado um crime monstruoso em curso e que tinha sido libertada por Deus para o contar ao mundo. Contudo, pouco depois de escrever o seu relato, Marianne Wachstein foi reenviada para Ravensbrück e, em fevereiro de 1942, morreu num dos centros de gaseamento do programa de eutanásia. Quem recebeu o seu relato em Viena escondeu-o durante o período da guerra, e o aviso de Marianne ao mundo só veio a ser conhecido nos finais dos anos 1950, quando o entregaram anonimamente aos arquivos memoriais do campo de concentração.

Estes termos não foram inventados pelos nazis: outras expressões, tais como «cascas

humanas vazias» e «vidas de lastro», eram comuns na ciência eugénica na Alemanha e em muitos outros países, nomeadamente nos Estados Unidos, desde o século XIX.

CAPÍTULO 5 A DÁDIVA DE ESTALINE Em fevereiro de 1940, um comboio vindo de Moscovo parou no lado soviético da Ponte Brest-Litovsk, na fronteira entre a Rússia e a Polónia. Umas figuras desceram pelo lado de um vagão, com os pés à procura de degraus gelados. Uma a uma, saltaram para a neve com um baque surdo. Vinte e quatro passageiros ao todo, incluindo duas mulheres, ficaram de pé a olhar para o outro lado da ponte, para a Polónia, perguntando-se o que iria acontecer-lhes. O grupo era constituído por alemães, todos eles ex-comunistas, libertados do Gulag de Estaline e que este estava agora a entregar a Hitler. A ponte onde se encontravam já tinha dado o seu nome a vários pactos traiçoeiros, já que ao longo dos anos a Alemanha e a Rússia tinham travado combates pela posse da Polónia. Estes homens e estas mulheres eram uma dádiva a Hitler, desta vez como parte do pacto nazi-soviético. Uma das duas mulheres era Margarete Buber-Neumann, a viúva de trinta e nove anos de Heinz Neumann, em tempos uma figura luminária do comunismo alemão, agora morto — vítima das purgas de Estaline.10 Durante os anos 1930, Neumann, como outros entre a elite comunista alemã, passou algum tempo em Moscovo. Grete, a sua mulher, também uma verdadeira crente, seguiu o seu marido para Moscovo em 1933. Depois de uma estada no Hotel Lux, onde comunistas estrangeiros — entre eles Olga Benario — se reuniram para prestar homenagem na corte de Estaline, o casal partiu para Espanha para fundar um jornal comunista, mas em vez disso viu-se envolvido nos letais jogos de poder internos entre o Partido Comunista Alemão e Moscovo. Neumann desagradou a Estaline de formas que nunca chegou a compreender. Tal como milhões de outros, foi declarado inimigo do povo e, depois de regressar a

Moscovo, foi detido e executado em 1937, após um julgamento fantoche. Um ano depois, também Grete foi detida e condenada a trabalhos forçados em Karaganda, um campo de concentração soviético nas estepes do Cazaquistão. A execução do seu marido e dois anos no Gulag tiveram um efeito muito negativo em Grete. Antes de partir para a fronteira, ela e os outros passaram algum tempo em Moscovo, onde se recompuseram o suficiente para que os nazis não fizessem uma ideia errada sobre o tratamento que tinham sofrido. Mas nada poderia restaurar a fé de Grete no comunismo. Ao voltar à sua Alemanha natal era uma mulher azeda, cheia de repugnância por Estaline e receando o que o regresso à pátria lhe traria. De certeza que os nazis iriam puni-la por atos de alta traição cometidos durante os seus anos como ativista comunista. Os prisioneiros foram levados por uma escolta alemã e encafuados na parte de trás de um camião, que se dirigiu para a cidade polaca de Lublin, a 170 quilómetros a sudoeste, onde ficaram detidos durante alguns dias no castelo de Lublin, no centro histórico da cidade. Ali, das janelas, Grete via as marcas dos primeiros seis meses de guerra. Uma grande parte da cidade tinha sido reduzida a escombros, e sob as ordens de Odilo Globocnik, o chefe da polícia de Himmler em Lublin, a população judia estava a ser levada para lá do castelo, para uma zona que se tornaria o seu gueto. Dentro da prisão do castelo, através de outras presas — freiras, estudantes, professoras, médicas —, Grete ficou a saber do terror nazi mais alargado e conheceu comunistas polacas que ainda acalentavam a esperança de escapar para leste, para Moscovo, na crença de que tal lhes proporcionaria salvação. Ela tentou dissuadilas da sua fé em Estaline, mas enquanto falava «os seus rostos tornaram-se de pedra». Grete foi levada para oeste, para a prisão da Gestapo em Alexanderplatz, em Berlim. Conhecida como a «Alex», funcionava como um entreposto para prisioneiros destinados aos campos de concentração. Cada noite, as mulheres falavam sobre o KZ e de

quando iriam para lá. Às sextas-feiras, era anunciada uma lista das que iriam ser levadas no dia seguinte. Num desses dias, uma médica judia chamada Jacoby ouviu o seu nome na lista. Nessa noite, tentou enforcar-se numa cisterna de água, mas foi encontrada e cortaramlhe a corda. No dia seguinte, enviaram-na para Ravensbrück. Na Alex, Grete conheceu uma jovem comunista alemã chamada Lotte Henschel, para quem a Rússia soviética ainda era a terra da esperança. Lotte interrogou Grete sobre as suas experiências ali e depois de a ouvir sentou-se no colchão ao seu lado e desatou a chorar. «O que é que temos para dar sentido à vida agora?», perguntou. No dia 1 de agosto de 1940, Grete ouviu o seu nome anunciado na lista do KZ, e no dia seguinte partiu para Ravensbrück. No transporte de Grete viajavam cinquenta mulheres, mas só duas lhe causaram uma viva impressão. Uma delas, que Grete supôs que fosse prostituta, declarou que só ia para ser reeducada e que sairia daí a três meses. A outra era uma testemunhas de Jeová que tinha aparência de professora e rezava todo o tempo. Chegaram à estação de Fürstenberg a meio da manhã. Havia cães a rosnarem enquanto as mulheres eram empilhadas em camiões e levadas para Ravensbrück. Grete fitou com fascínio e temor o campo nazi, que comparou instantaneamente com o que tinha conhecido em Karaganda. A vedação de arame alta, os guardas, os berros — os russos gritavam «Davai, Davai» e os alemães gritavam «Raus, Raus» — eram familiares. Mas quando ela se aproximou, as diferenças tornaram-se evidentes. Em comparação, o campo de concentração nazi era minúsculo. Quando Grete chegou, albergava cerca de 4000 mulheres; Karaganda detinha 35 000. As suas recordações da Sibéria seriam sempre de inverno, a época do ano em que tinha partido — um acampamento vasto, cinzento, gélido, onde exércitos de prisioneiros, na sua maioria homens, labutavam na estepe do Cazaquistão sob um céu de um cinzento de aço. Grete chegou a Ravensbrück no início de agosto e no campo de

concentração alemão estava-se na segunda parte do verão; fora dos portões, a água límpida do Schwedtsee batia contra os canaviais numa brisa quente de verão. Passando os portões, para seu espanto, ela reparou nos canteiros de flores de um vermelho-vivo; mais à frente, via-se uma espécie de rua com dezasseis blocos de madeira a ladeá-la, todos eles pintados, e ao lado de cada bloco uma pequena árvore. Os caminhos perto dos portões estavam cobertos por areia, que tinha sido varrida recentemente formando padrões complicados. À esquerda, perto de uma torre de vigia, havia um aviário. Andavam lentamente por ali pavões, e um papagaio palrou. Em Karaganda não havia flores nem relvados verdes, mas aquilo era, de algum modo, mais fantasmagórico, e por uns momentos tudo ficou em silêncio. Os berros e os gritos começaram de novo quando passou uma coluna de prisioneiras, e Grete viu as residentes do campo de concentração pela primeira vez: não as figuras trôpegas e desorganizadas do Gulag — homens misturados com mulheres — mas mulheres em filas ordeiras, cada uma delas com um lenço branco atado na cabeça, um vestido às riscas e um avental azulescuro. «Esquerda, direita. Esquerda, direita. Cabeças para cima. Braços ao lado do corpo. Perfilem-se.» Os seus rostos eram impassíveis. Pareciam todas idênticas. Ouviu-se o uivo de uma sirene. Agora, apareciam mulheres de todo o lado a marchar em colunas de cinco. Algumas levavam pás aos ombros, e o que mais a espantou foi que estavam a cantar «marchas tontas». Era tudo muito prussiano, e Grete, que se criara em Potsdam, conhecia bem esse estilo. Mais à frente, reparou em mais e mais pormenores da «exaustividade prussiana». A informação sobre as recém-chegadas foi registada, as suas fichas carimbadas, os dossiês verificados uma e outra vez. Algumas das mulheres que berravam as ordens usavam o mesmo vestuário às riscas e eram obviamente prisioneiras. Também no Gulag algumas prisioneiras eram recrutadas para fazer uma grande parte do trabalho. Grete habituara-se a ver pessoas russas

nesses papéis — chamavam-lhes «brigadeiros» e usualmente eram homens. Ver mulheres, mulheres alemãs, como «brigadeiros», a berrarem ordens às outras prisioneiras, «algumas com evidente satisfação», chocou-a. Até mesmo a mulher que agora catava a cabeça e os pelos púbicos de Grete para ver se ela tinha piolhos era uma prisioneira, uma testemunha de Jeová. Meticulosamente, a mulher procurou, de tesoura na mão, mas não encontrou nada e Grete foi poupada à lâmina de barbear. O pessoal nos chuveiros usava fatos-macacos brancos e também elas eram prisioneiras. No campo de concentração soviético fazia-se a distinção entre prisioneiros políticos e criminosos. Aqui, as prisioneiras estavam repartidas por muitas categorias, como Grete descobriu quando viu os pequenos triângulos coloridos. Como prisioneira política, recebeu um triângulo vermelho com o número 4208. Depois do duche, Grete ficou de pé perante um médico do campo de concentração, que batia com a sua chibata nas botas de couro. O Dr. Sonntag, recém-chegado ao campo, selecionou Grete da fila. «Porque é que estás aqui?», perguntou. «Política», disse ela. «Bruxa bolchevista», resmungou ele. «Volta para a fila.» Daí a pouco, Grete estava já a usar as roupas que tinha visto às mulheres a marcharem: vestido às riscas, avental azul, lenço branco na cabeça. Não usavam sapatos no verão e o seu grupo caminhou descalço sobre o cascalho até ao Bloco 16, o bloco de receção. Com as outras cinquenta recémchegadas, Grete esperou no exterior, esfregando as solas dos pés para se livrar de lascas de cascalho aguçadas. Para lá dos barracões, via os muros altos do campo de concentração e contou cinco filas de arame farpado. O sol do meiodia refletia-se numa tabuleta negra com uma caveira e dois ossos cruzados sobre ela pintados a amarelo. Anteriormente, nesse mesmo dia, Grete ouviu dizer que uma cigana tinha corrido para o arame farpado. «Vais ver onde, mais tarde. Quando arrancaram o corpo, os dedos dela ficaram decepados e ainda lá estão.» Uma voz gutural berrava nomes com um sotaque que Grete

reconheceu como sendo suábio.11 A mulher era a Blockova do bloco de Grete. Era também prisioneira política, com um triângulo vermelho e uma braçadeira verde. Grete achou-a repelente; alguém lhe disse que se chamava Minna Rupp. Dentro do bloco havia filas de mulheres a tricotarem meias cinzentas. Devido ao número cada vez maior de prisioneiras, as recém-chegadas eram mantidas à parte enquanto se processava o seu registo, e, ao mesmo tempo que esperavam, tricotavam meias para os soldados. O barracão «parecia um palácio» comparado com as barracas toscas de tijolos no Gulag. Lá, Grete saía para a estepe quando precisava de fazer as suas necessidades; aqui, havia sanitas e lavatórios, assim como mobília — bancos, uma mesa e armários. Cada nova prisioneira recebeu o seu kit — caneca, colher e tigela — e dois cobertores de lã, um lençol branco e uma camisa de noite comprida às riscas azuis e brancas. Foram-lhes comunicadas as regras sobre a higiene pessoal, a alimentação e a arrumação. Mais tarde, através de outras prisioneiras, Grete ficaria a par das muitas outras regras impostas por Minna Rupp. Rupp considerava um arranhão no alumínio da caneca de uma prisioneira um ato de sabotagem e denunciava a sua perpetradora, que poderia receber um castigo corporal ou ser enviada para o bunker por esse delito. As mulheres não deviam sorrir umas às outras nem dar apertos de mão, sob pena de serem mandadas para o exterior, onde teriam de permanecer de pé horas a fio. A Blockova verificava até a maneira como as mulheres vestiam a roupa interior, para se assegurar de que não tentavam meter papéis entre as peças de vestuário para se agasalharem. Ninguém podia ir à casa de banho durante a noite e devia observar-se silêncio absoluto permanentemente. Mas nada era mais importante para Minna Rupp do que a maneira de fazer a cama. Uma ruga no cobertor implicava que o domingo inteiro fosse passado de castigo a fazer camas. As reincidentes eram enviadas para o Strafblock ou para o bunker e apanhavam vinte e cinco chicotadas, e Minna Rupp sabia bem o terror deste castigo, já que ela própria tinha em tempos sido mandada

para o Strafblock por roubar meia cenoura. Mais tarde também foi chicoteada. As amigas de Grete no bloco das recém-chegadas eram, na sua maioria, polacas, mulheres com autonomia, muitas delas professoras. Já ali estavam há algumas semanas e tinham aprendido bastante sobre como suportar a situação. Uma delas, uma professora de música, mostrou a Grete o truque para fazer a cama. Usava um pau para alinhar o colchão, de modo que Rupp não tinha de que se queixar. Todas detestavam Rupp. Até há pouco tempo, só prisioneiras associais e criminosas detinham aqueles postos, mas recentemente, Grete ficou a saber, houvera um golpe, e agora também comunistas como Rupp ocupavam aqueles cargos. Os dias foram passando e Grete foi-se mantendo atenta às comunistas. Provavelmente, conhecia algumas dos velhos tempos, e receava encontrar-se com elas. Tal como as outras comunistas que encontrara desde a partida da Rússia, nenhuma delas quereria ouvir o que ela tinha a dizer sobre Estaline. Não lhes agradaria o facto de ela ter sido trazida para ali de Moscovo. Suspeitariam dela. Ao fim de uma semana, deu-se o confronto. Grete estava sentada a tricotar meias quando um grupo de prisioneiras com braçadeiras vermelhas entrou no bloco e chamou o seu nome. Uma delas era Minna Rupp. O trio levou Grete para o dormitório, onde normalmente as prisioneiras não tinham autorização para entrar durante o dia, e o seu interrogatório começou. «Foste presa em Moscovo? Porquê?» Grete compreendeu que se tratava de um interrogatório político em nome das comunistas do campo de concentração. Respondeu com franqueza, contando a história da perseguição de Estaline. «Está bem», disse Minna Rupp. «Tu és uma trotskista, é o que és.» Com isso, Rupp queria dizer que Grete era uma traidora à verdadeira causa estalinista. A partir daquele momento, foi ostracizada. Grete era de novo considerada uma inimiga do povo, desta vez pelas suas antigas camaradas alemães, agora prisioneiras como ela num campo de concentração nazi.

O golpe comunista que retirou às prisioneiras com triângulos verdes e pretos os seus lugares de Kapo foi um importante ponto de viragem na vida no campo de concentração nos primeiros tempos. Ocorreu a dada altura na primavera de 1940. Até esse momento, a prática da SS de selecionar associais e criminosas como Kapos tinhase mantido; a nomeação de Olga Benario como Blockova em novembro foi uma exceção. Mas então, no início do ano novo, as prisioneiras políticas tomaram uma decisão deliberada de tentar destronar as «verdes» e as «pretas». Tinham várias razões para isso. Em janeiro de 1940, uma figura esquelética saiu a cambalear do bunker do campo de concentração e viu o céu. Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, uma das comunistas mais ferrenhas, tinha sido libertada depois de seis meses na solitária. Vivera no escuro e com rações de fome e quase morrera. De regresso ao bloco, Hanna pôde relatar às suas camaradas os horrores do bunker e de como tinha sido praticamente dada como morta. Nos meses gélidos de inverno tinha adoecido. Não conseguia comer e enfraqueceu tanto que ficou prostrada por terra todo o tempo. Um dia, Hanna ouviu Zimmer dizer, à porta da sua cela: «Mais vale que ela bata a bota ali dentro», mas «eu não quis fazer esse favor a Zimmer». Forçou-se a mastigar um pedaço de pão. Cuspindo a parte sólida, conseguiu engolir o resto e foi lentamente recuperando as forças. Num domingo, uma guarda simpática chamada Lena estava de serviço. Hanna sabia que «Lenchen», como lhe chamava afetuosamente, era bondosa, porque a tinha conhecido numa ocasião antes de ser enviada para o bunker. Nessa altura, as duas tinham ido consertar uma janela na casa do comandante, e Lenchen disse a Hanna: «Estás a ver como os SS vivem bem aqui, e nós trabalhamos no duro e ganhamos uma ninharia.» Agora, Lenchen abriu a porta da cela de Hanna e disse: «Oh, então estás aqui. Estás com bastante mau aspeto, o que se passa?» «Estou doente, muito doente», disse Hanna. «Como é que te posso ajudar? Aqui, vais morrer, é o mais certo.»

Lenchen levou comida e medicamentos a Hanna e no dia seguinte até levou o médico a vê-la — um médico que esteve no campo de concentração durante pouco tempo. O médico disse que, provavelmente, Hanna estava com tifo. No entanto, ela voltou a recuperar as forças aos poucos, e subitamente, no fim de janeiro de 1940, Koegel foi à sua cela. «Queres voltar para o teu bloco?», perguntou ele. «Quero, senhor», respondeu Hanna. «Bem, sai lá. Mas aviso-te: não quero ouvir falar de ti outra vez.» A libertação de Hanna encantou as suas camaradas, mas o aspeto daquela austríaca em tempos forte e agora reduzida a pele e osso era mais uma prova do tormento em que se encontravam todas. Desde o confinamento de Hanna, muitas outras camaradas comunistas tinham sido levadas ao desespero. Uma delas atirou-se contra a vedação eletrificada, e os espancamentos oficiais no Bock tinham espalhado um novo desespero. Uma mulher chamada Irma von Strachwich foi detida no bunker por gritar «Heil Österreich!». Como continuou a gritar, foram-lhe aplicadas cinquenta chicotadas e morreu. Pouco depois, todas as mulheres conheciam uma prisioneira vítima desse castigo corporal. Ira Berner, uma outra comunista alemã, disse: «Vi mulheres cuja pele era uma massa de sangue tal que não conseguiam sentar-se semanas a fio. Muitas ficaram com os rins afetados e com outros problemas.» Foi o espancamento «não oficial» da comunista austríaca Susi Benesch que causou o choque mais profundo. Rosemarie von Luenink, outra prisioneira política alemã, viu o que aconteceu: Nessa altura, tínhamos de descarregar tijolos de um navio. A Benesch estava tão fraca que deixou de conseguir carregar as pedras e tombou por terra. A Rabenstein pô-la de pé à força, voltou a pôr-lhe a pedra ao ombro e ela tombou pela última vez. Então, a Rabenstein pegou na pedra e esmagou a cabeça da Benesch com ela. Ela morreu instantaneamente e vimos o sangue a escorrer-lhe da boca e a língua de fora.

Depois do assassínio de Susi, as comunistas ficaram extremamente abatidas, e Käthe Rentmeister, uma das mais antigas, tomou a iniciativa de tentar restaurar o seu orgulho. Convocou as

comunistas convictas para uma reunião no seu beliche no Bloco 1 e discutiram o que fazer. Todas tinham servido longas penas na prisão antes de virem para o campo de concentração. Tinham feito a sua aprendizagem nos anos 1920, em reuniões dos sindicatos e da juventude comunista, nos corredores do Reichstag ou nos comités da Ajuda Vermelha. A maioria tinha maridos, irmãos, pais nos campos de concentração. O irmão de Käthe Rentmeister estava em Sachsenhausen — tinha sido um dos prisioneiros enviados para construir Ravensbrück. Maria Wiedmaier era a mais dura de todas. Tinha trabalhado para os serviços secretos do partido e organizara greves na Holanda e na França. Em 1935, a Gestapo disse-lhe que o homem que ela amava estava morto. Como Maria se recusou a acreditar, levaram-na a um cemitério e exumaram o seu cadáver para ela o ver e a seguir prenderam-na. As mulheres concordaram que Koegel tinha praticamente conseguido esmagá-las e que não havia defesa contra a SS, mas que poderiam sem dúvida defender-se de pessoas como Margot Kaiser, a Lagerschreck, e das suas Kapos criminosas com triângulos verdes e pretos. Todas as presentes tinham a algum momento sido denunciadas à SS por uma das «bandidas» de Kaiser. As prisioneiras políticas com triângulo vermelho nem sequer podiam encontrar-se sem serem traídas por Kaiser, enquanto as «imundas» associais e criminosas roubavam as colegas e desfrutavam de privilégios negados às outras prisioneiras. Se as comunistas conseguissem de alguma maneira ocupar estes cargos de Kapos, a sua vida poderia melhorar. Não era impossível, especialmente porque havia razões para crer que talvez tivessem Johanna Langefeld do seu lado. Langefeld acedera recentemente ao pedido das prisioneiras políticas para viverem todas juntas no Bloco 1. A Oberaufseherin parecia aprovar a maneira como elas mantinham a ordem e uma ou duas das suas principais personalidades tinham granjeado a confiança dela. Toda a gente sabia que Langefeld estava a travar a sua própria guerra com a SS. Precisava de novas aliadas, mesmo entre as prisioneiras.

Algumas prisioneiras manifestaram a sua oposição a fazer o trabalho da SS fascista, mas outras disseram que o bloco judeu se tinha transformado desde que Olga Benario passara a ocupar o cargo de Blockova. As mulheres judias andavam agora de cabeça mais erguida, organizavam sessões de leitura de poesia e falavam até em encenar uma peça de teatro. Se as comunistas não se agarrassem a algum poder, outras se apressariam a tomá-lo. As checas ocupavam postos, e Langefeld andava até a favorecer certas polacas. Maria Wiedmaier estava em contacto com Olga, que as instava a avançar; era seu dever, como comunistas, sobreviverem. Maria disse que deveriam tentar arranjar cargos não só nos seus blocos mas também na cozinha e na administração, para poderem recolher informações e operar clandestinamente. Tal como Olga, Maria tinha sido treinada em Moscovo e não se esquecera de como se infiltrar — nunca se esqueceria, como a sua ficha da Stasi revelaria mais tarde. Hanna Sturm apresentou um plano. Algumas semanas depois de ser libertada do bunker, mandaram-na trabalhar na despensa da SS, de que estavam encarregadas Kapos associais. As prisioneiras que trabalhavam na despensa eram frequentemente acusadas de roubo. Hanna propôs que uma das chefes associais fosse incriminada. Ela e um grupo de outras começaram a roubar cigarros e bebidas alcoólicas da despensa e plantaram o seu saque numa destacada chefe de bloco com triângulo verde. Tomaram medidas para que o caso chegasse aos ouvidos de Langefeld. O plano resultou melhor do que contavam. Furiosa com a traição da sua confiança pelas Kapos associais, Langefeld demitiu quase todas e mandou Margot Kaiser para o Strafblock. No final da primavera, eram já as prisioneiras políticas a ocupar os cargos mais influentes no campo de concentração, e uma comunista chamada Babette Widmann substituiu Kaiser, obtendo o posto de prisioneira mais importante, de Lagerälteste. Ninguém perdeu tempo a pensar no destino das demitidas; as comunistas estavam demasiado ocupadas a tratar dos interesses das suas camaradas.

Barbara Reimann, uma jovem comunista de Hamburgo, foi presa em 1940 por escrever cartas aos soldados alemães na frente de combate em que os instava a não combaterem. Chegou ao campo de concentração logo a seguir à tomada de poder pelas prisioneiras comunistas e encontrou muitas camaradas dispostas a ajudá-la. Minna Rupp, agora Blockova do bloco das recém-chegadas, informou a nova Lagerälteste de que Barbara tinha chegado e, através de Langefeld, conseguiram transferi-la para o bloco político. Ali, as alemãs mais velhas, algumas das quais Barbara conhecera como mães de amigas da escola, encarregaram-se de a proteger. Não surpreende que as comunistas com os seus novos poderes estivessem decididas a impedir que a sua influência fosse minada. Quando em agosto se espalhou a notícia de que Grete BuberNeumann tinha chegado e de que andava a contar mentiras sobre Estaline, tomou-se a decisão de a condenar como trotskista. As comunistas diriam mais tarde que a SS trouxe Grete perante elas uma manhã como uma espécie de troféu, dizendo: «Querem saber como pode ser um campo de concentração? Façam-lhe perguntas sobre os campos de concentração de Estaline.» Segundo Maria Wiedmaier, foi Olga Benario quem propôs que Grete fosse ostracizada, e o comité comunista concordou. A filha de Grete, no entanto, duvida que tenha sido Olga a tomar a iniciativa de ostracizar a sua mãe. As duas mulheres tinham-se encontrado de passagem no Hotel Lux em Moscovo nos anos 1930. «A minha mãe nunca exprimiu nada a não ser admiração por Olga», diz Judith Buber Agassi, sentada ao sol ardente na sua casa numa zona costeira de Israel. No entanto, Judith deixa bem claro que a sua mãe sempre mostrou azedume pela forma como o resto da clique comunista a tratou: Para a minha mãe, foi a pior coisa. Considerava os comunistas preconceituosos. Quem não fosse comunista tinha menos valor, até mesmo no campo de concentração. Quer alguém estivesse no campo por ser prostituta, testemunha de Jeová ou judia, era tudo a mesma coisa. As mulheres comunistas eram um grupo de vistas estreitas. A minha mãe não suportava isso. Depois da guerra, elas quiseram dar a entender que tinham ajudado as judias no campo. Mas é claro que isso não era possível. Elas não

podiam ajudar.

Não era inteiramente verdade que as prisioneiras políticas não judias não pudessem ajudar as judias. Através de Langefeld e das prisioneiras no seu círculo mais próximo, as novas Kapos políticas obtinham informações que poderiam transmitir às prisioneiras judias. Maria Wiedmaier continuou a fazer passar as cartas de Olga Benario para o exterior, permitindo-lhe assim escrever mais livremente a Carlos e a Leocadia do que através do correio do campo de concentração. Além disso, as próprias prisioneiras judias acreditavam claramente que as novas Kapos de triângulo vermelho poderiam ajudá-las, razão por que não só Olga mas também outras líderes judias do Bloco 11 apoiaram a tentativa de obter poder das prisioneiras políticas. Käthe Leichter encantava o bloco judeu com os seus poemas e as suas histórias desde que chegou no outono de 1939 e acabara por ganhar nome no campo de concentração. Käthe, uma socialdemocrata, não tinha acesso direto às informações das comunistas, mas contava com os seus próprios contactos, e em abril ouviu dizer que uma velha amiga de Viena, outra social-democrata, chamada Rosa Jochmann, ia ser trazida para o campo de concentração. Käthe conseguiu encontrar-se com Rosa logo que ela chegou. Disse-lhe que ela, Rosa, seria Blockova. Rosa recordou mais tarde: «Não tínhamos autorização para falar com as judias, mas é claro que o fazíamos. No meu primeiro dia, Käthe e eu andámos por todo o campo de concentração e ela disseme o que eu deveria fazer e deu-me instruções.» Käthe tinha a certeza de que Rosa possuía as qualidades necessárias para o trabalho de Blockova, porque conhecia há muito a sua força de caráter. Que Rosa Jochmann tenha vindo juntar-se a Käthe Leichter em Ravensbrück é por si só extraordinário. As duas tinham-se conhecido nos conselhos de trabalhadores em Viena nos finais dos anos 1920, lutando por melhorar as condições de trabalho das mulheres. Provinham de meios muito diferentes. Rosa, nascida em 1901, filha

de uma lavadeira e de um metalúrgico, começou a trabalhar numa fábrica aos catorze anos. Aos vinte e poucos anos, era ativista do movimento sindical austríaco e tornou-se chefe das Mulheres Socialistas da Áustria, um organismo social-democrata. Quatro anos mais nova do que Rosa, Käthe Leichter, nascida em Viena em 1905, pertencia a uma família judia próspera e culta, mas rejeitou as suas origens burguesas e foi para Heidelberg, na Alemanha, estudar Filosofia com o filósofo Max Weber. Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Käthe organizou manifestações pacifistas de protesto e foi recambiada para a Áustria; quando os nazis subiram ao poder, o seu doutoramento foi anulado. Com os direitos das mulheres a tornarem-se cada vez mais importantes no programa dos liberais austríacos, ambas as mulheres se encontraram à frente da campanha, embora Rosa, que acreditava no poder da greve, nem sempre concordasse com Käthe, que apelava à negociação e tentava dizer à classe operária o que fazer. No entanto, as duas tornaram-se amigas e trabalharam juntas até os novos líderes fascistas da Áustria banirem as suas atividades. No início de 1938, uma altura em que a anexação (Anschluss) da Áustria por Hitler parecia inevitável, as duas mulheres estavam envolvidas na resistência antifascista e corriam o risco de serem presas; nem uma nem outra aproveitaram a oportunidade de escapar. O marido de Käthe Leichter, Otto, que era editor de um jornal antifascista, e os seus dois filhos partiram para França, contando que ela os seguisse, mas, por razões que a família nunca chegou a compreender bem — provavelmente porque ela sentiu dificuldade em abandonar a sua mãe, ainda a viver em Viena, e porque não acreditava que seria presa —, Käthe atrasou a sua partida. Por fim, marcou a viagem de comboio, mas foi detida na noite anterior ao dia da partida. Quando Rosa Jochmann chegou a Ravensbrück, cerca de seis meses depois de Käthe, ficou espantada por ver a sua amiga ali e ainda mais espantada com o que ela lhe disse. Mais tarde, recordou textualmente as informações de Käthe, proporcionando uma

perspetiva rara do raciocínio desesperado subjacente à decisão das prisioneiras de cooperar com a SS nos primeiros anos do campo de concentração. Logo que ouviu falar da chegada de Rosa, Käthe negociou a sua nomeação como Blockova, o que por si só revela a influência que certas prisioneiras — até mesmo judias sociais-democratas — tinham conseguido adquirir. Ela disse a Rosa: Não te esqueças de que não é como estar nos conselhos de trabalho sindical na nossa terra. Tu vais ser um instrumento da SS. E terás de concordar sempre com a SS. E se eles espancarem alguém até à morte à tua frente, terás de perguntar à pessoa que está a ser espancada: «Porque é que fizeste tal coisa?» E assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, tens de fazer tudo o que puderes para evitar que a guarda apresente queixa. E como chefe do bloco tens de ficar ao canto e berrar a toda a gente durante a chamada: «Atenção. Toda a gente olhe para a guarda.»

Käthe disse a Rosa que acontecia frequentemente uma guarda chamar alguém da fila com o seu bastão, talvez porque ela não tinha cosido bem qualquer coisa ou por qualquer outro motivo irrelevante. «E desanca a mulher quase até à morte diante de ti», disse Käthe. Estás ali a ver a cena e és obrigada a fingir que te sentes ultrajada pelo que a prisioneira fez, e dizes: «Porque é que fizeste isto, quem julgas que és?» E tens de fingir que também te sentes ultrajada. Mas tens de tentar chamar a guarda à parte e dizer-lhe: «Frau Aufseherin, não consigo compreender isto, ela normalmente é uma pessoa tão bem comportada.» E dizes, por isso não faça queixa dela. Eu ponho-a a limpar as latrinas. Ou faço-a carregar com a comida durante dois meses. Tens de concordar sempre com a SS. Sempre.

O pragmatismo brutal de Käthe sobre a posição das prisioneiras judias foi o que mais chocou Rosa. No fim das suas palavras, Käthe virou-se para ela e disse: «Rosa, e se os SS quiserem que tu digas “judia fedorenta”, o que é que tu fazes?» Eu disse: «Não, recuso-me a dizer isso, Käthe. Podes fazer o que quiseres, mas eu não vou dizer isso.» E a Käthe disse: «Então não podes ser chefe do bloco. Não vais ser capaz. Tens de o dizer.» Então, a Käthe deu-me as suas instruções. Disse: «Não podes contradizer os SS. São todos estúpidos, maus e cruéis. Mas talvez consigas ajudar se cooperares um

bocadinho com eles, sendo diplomática e concordando com eles.» E era verdade. A Käthe tinha razão.

A convicção de Käthe de que cooperar com os SS era a única maneira de sobreviver talvez refletisse a sua fé no poder da negociação, assim como a sua experiência do grupo de trabalho das «celebridades» no campo de concentração. A certa altura, o grupo das celebridades — assim chamado porque havia princesas e primadonas entre elas — passou a poder fazer o que quisesse. Clara Rupp (sem qualquer parentesco com Minna), uma professora alemã comunista, era uma das «celebridades», e recordou nas suas memórias: Não havia nada de que as prisioneiras mais gostassem do que enganar as guardas, quebrar as regras. Alguns grupos faziam-no tão bem que quase não se importavam com os SS de todo em todo. Uma vez, uma prisioneira trouxe às escondidas um magnífico ramo de azáleas da estufa para o bloco das prisioneiras políticas. O roubo foi descoberto, porque as flores frescas do comandante não foram entregues nesse dia. Mas o roubo tinha sido tão bem organizado que as «contrabandistas» não foram descobertas, o que lhes causou grande alegria.

Mais tarde, disse ela, tornou-se muito mais fácil escapar impune com partidas como essas, quando o número de prisioneiras aumentou de tal maneira que o reino de terror da SS se tornou mais errático, mais difuso. Como muitas outras mulheres que ali estiveram prisioneiras do princípio ao fim, Clara recordava os primeiros anos como os mais aterradores, simplesmente porque o controlo da SS se estendia a todos os cantos: todas as pessoas «viviam em perigo iminente». No entanto, diz Clara, em 1940 um grupo de mulheres pôde saborear a liberdade por um breve período de tempo. Estavam a construir uma nova estrada para o campo de concentração quando lhes foi dito subitamente para pousarem as ferramentas, porque os materiais de construção se tinham esgotado. Como não havia trabalho — e nenhuma hipótese de escaparem —, não lhes foi atribuída guarda para as vigiar. Uma Kapo de triângulo verde ficou encarregada delas, recordou Clara.

Então, a prisioneira judia Käthe Leichter começou a falar com a triângulo verde. E a Käthe diz à mulher que a guerra vai terminar em breve e que Hitler está acabado, e a Kapo — uma mulher com bom feitio, que tinha sido presa por fazer abortos — acreditou nela. Daí a pouco, éramos nós que chefiávamos as triângulos verdes e não o inverso. Esta alteração ficou a dever-se principalmente à Käthe de Viena. Ela era o elemento mais destacado do grupo e desenvolveu as capacidades mais particulares a este respeito. Era muito boa a organizar as coisas. Como era judia, não tinha acesso a jornais, mas como eu tinha amigas bem colocadas, arranjava-lhe jornais. Quando Käthe recebe o jornal, esquece o perigo e abre-o, lê-o e até se esquece de quem é e de onde está.

Uma outra prisioneira, uma alemã chamada Elizabeth Kunesch, confirmou o relato de Clara do grupo de construção da estrada. Estava lá desde o início e recorda o grupo até aos dias de hoje, em particular uma mulher chamada Käthe. «Käthe era judia e muito inteligente e muito bondosa. Costumava cantar para nós enquanto carregávamos pedras e fazia-nos esquecer a nossa dor.» Segundo Clara, havia uma princesa verdadeira no grupo das celebridades; tinha sido denunciada pela sua cozinheira por falar mal de Hitler, e era muito musical. «Se lhe pedíssemos, era capaz de trautear qualquer parte da orquestra.» Havia uma outra professora universitária, Maria, «uma enciclopédia ambulante» que ensinava História inglesa a Clara durante uma hora todas as noites. Era uma figura original: alta, com muitas sardas, muitas vezes com piolhos, com uma barriga bastante grande. Costumava envolver-se em tudo e mais alguma coisa para se proteger do frio, mas usualmente perdia tudo outra vez. Muitas pessoas estúpidas faziam pouco dela, mas as inteligentes eram suas amigas. Eu adorava a maneira como ela ansiava por céus abertos, prados e florestas.

Havia Anni, de Praga, em tempos secretária de Tomás Masaryk, o Presidente da Checoslováquia entre as duas guerras. «Sabia sempre os melhores boatos no campo.» Mesmo quando havia trabalho a fazer, as celebridades marchavam para fora a cantar. «Quando a Princesa estava de muito bom humor, cantava a ária da “Rosa” de Fígaro.» A Kapo simpática de triângulo verde atribuía as tarefas «com um piscar de olhos do nosso lado». E as mulheres falavam de

filosofia ou de literatura. Todos os dias havia conversas nalgum canto da nossa estrada, que continuava indefinidamente em construção. Uma vez, quase todas nós estávamos numa trincheira a assentar pedras, e como já tínhamos cantado Mozart, Beethoven e Bruckner, Maria começou a fazer-nos uma palestra sobre o Romantismo e nós ficamos tão absorvidas pelas suas palavras que não reparámos numa guarda que vinha da lavandaria. Pisei o pé de Maria e ela começou a repreender-me até ver a expressão dos nossos rostos. A guarda optou por se vingar em mim e berrou. «Eu já te ensino a trabalhar, não esperas pela demora», e pôs-me a trabalhar na lavandaria, a esfregar lençóis sujos e sacos de carvão.

As celebridades falavam de regressar a casa em breve ou sobre Marx e as disputas no bloco judeu entre as comunistas e as sociaisdemocratas. Ficavam a saber como Käthe argumentava com Olga sobre se o capitalismo continha as sementes da sua própria destruição. Algumas dizem que o poder de Hitler foi subestimado. Por vezes, saímos para trabalhar mesmo que esteja a chover, porque estamos a meio de um tópico que tem de ser acabado. O nosso grupo de trabalho era o melhor de todos; trabalhávamos para nós mesmas e não para os nazis. A Käthe era a verdadeira chefe do nosso grupo. Estava sempre animada e era delicada. Diz-nos um dia que tem um plano para acoplar um motor ao seu carrinho de mão. Rimo-nos a bandeiras despregadas. Mostra-nos cartas dos seus dois adoráveis garotos.

Kathy Leichter, a neta de Käthe e filha de um dos adoráveis garotos, diz que ainda hoje a família se pergunta porque é que ela não saiu da Áustria quando ainda tinha hipóteses de o fazer. «Podia ter ido ter com os outros para um lugar seguro», diz Kathy, uma realizadora de cinema que vive no Upper East Side de Nova Iorque. «A maior parte das mulheres não julgava que corresse perigo. Mas Käthe sabia. Por isso, enquanto se traça a sua história, apetece gritar-lhe todo o tempo: “Mete-te nesse comboio. Vá lá, mete-te nele. Porque é que não partiste, por amor de Deus? Parte, Käthe!” Mas ela não parte.» Perguntei-lhe como achava que Käthe era. «Parecia-se um pouco comigo», disse Kathy, que tem cabelo preto aos caracóis pelos ombros e grandes olhos escuros.

Mas era mais substancial. Era uma mulher bastante masculina. E, tal como eu, era uma mulher que trabalhava, que conciliava o trabalho com cuidar dos filhos. Estudou puericultura e os direitos das mulheres que trabalhavam no lar e falava com costureiras e perguntava-lhes quais eram os seus problemas. Tinha tentado contribuir para tornar o mundo melhor, especialmente para as mulheres, e também em Ravensbrück tentou prosseguir no seu projeto. E era uma mulher culta. Conhecia todas as pinturas do Louvre. Mas também é difícil conhecê-la. Estou sempre à procura da voz dela. Estava bloqueada. Só obtenho vislumbres ocasionais. Através das memórias de outras pessoas ou dos poemas dela. Ou da peça de teatro.

Graças a Käthe, as celebridades sabiam tudo sobre a peça. «Só o bloco judeu poderia organizar algo como aquilo», disse Clara. A peça intitulava-se Schumm Schumm e foi escrito um texto completo, mas era falso, para parecer inofensivo se a peça fosse descoberta. Käthe, juntamente com outra judia austríaca, uma advogada chamada Herta Breuer, elaborou o verdadeiro texto dramático; as palavras tinham de ser decoradas e ditas só no dia do espetáculo. Contava a história de um casal judeu e da sua filha que foram libertados de um campo de concentração. Foram enviados para o exílio para uma ilha onde as feições judias eram consideradas divinas e os judeus tratados como realeza. Havia várias alusões ao campo de concentração: a mãe desmaiou ao chegar e nada conseguiu reanimá-la até Appell, Appell lhe ser segredado ao ouvido. Os preparativos para a peça provocaram excitação e muitas mulheres não judias ajudaram as dramaturgas judias, particularmente com o guarda-roupa, que foi feito «com amor e carinho a partir de nada», recordou Clara, de restos e pedaços «organizados» — surripiados — por outras prisioneiras. As mulheres tinham vestidos feitos de lenços da cabeça da cor da alfazema trazidos pelas prisioneiras checas «e “organizados” para nós por amigas», disse Clara. As joias e os ornamentos foram feitos de papel prateado e dourado, também «organizado» por prisioneiras amigas, assim como o papel para as abas dos casacos dos homens. Os selvagens da ilha usavam saias de palha: as ciganas da oficina de fabrico de tapetes trouxeram-na à socapa. A peça foi levada à cena no bloco das prisioneiras judias num

domingo à tarde. Na assistência, viam-se muitas Blockovas e Stubovas de outros blocos e, como elas vieram, vieram também outras prisioneiras comuns. No dia seguinte, deu-se o desastre. No Bloco 2, um outro grupo de prisioneiras foi apanhado a dançar e, quando as guardas as acusaram, elas queixaram-se de que se o bloco judeu tinha representado uma peça de teatro, porque é que elas não haviam de dançar? Ao princípio, dava a ideia de que todo o bloco judeu seria punido, assim como todas as prisioneiras que tinham assistido ao espetáculo, mas após «negociações» só as que participaram na produção foram punidas. Clara não nos diz quem eram as prisioneiras, mas, obviamente, eram todas do bloco judeu e entre elas deviam estar as criadoras da peça, Käthe Leichter e Herta Breuer, assim como Olga Benario, a Blockova judia. Não havia nada que as suas camaradas não judias pudessem fazer agora para as ajudar, fosse qual fosse o posto de Kapo que ocupassem. Foram apresentadas às seis prisioneiras duas opções de castigo: vinte e cinco chicotadas ou seis semanas no bunker. Escolheram o bunker, e as seis foram encafuadas numa pequena cela. Traziam-lhes comida a cada quatro dias. As mulheres «estavam profundamente perturbadas ao serem libertadas», disse Clara. «Uma delas disse-nos: “Como tinha tanta fome, não suportava ouvir ninguém mastigar. A que tivesse ainda alguma coisa para comer quando as outras já tinham acabado era a mais odiada. Porque continuava a mastigar.”Avisaram-nos para evitarmos o bunker a todo o custo. Estavam mesmo mal.»

10 Neumann foi o segundo marido de Grete. Era judeu, tal como o seu primeiro marido, Rafel Buber, filho do filósofo religioso judeu Martin Buber. A irmã de Grete, Babette, também se casou com um judeu. «Talvez o facto de ambas se terem casado com judeus fosse uma espécie de protesto contra o pai», diz Judith Buber Agassi, a filha de Grete. «O pai delas [diretor de uma fábrica de cerveja em Potsdam], de vistas estreitas, não gostava de judeus.»

11 Da Suábia, uma região no Sudoeste da Alemanha.

CAPÍTULO 6 ELSE KRUG Poucas semanas depois de chegar ao campo de concentração, Grete Buber-Neumann estava perfilada na Appellplatz à espera de saber se seria selecionada para o cargo de Blockova. As suas amigas polacas tinham-na animado a tentar obter esse posto. Em agosto de 1940, a transferência de poderes para as triângulos vermelhos já tinha ido mais longe do que alguém alguma vez previra: não só estavam a ser atribuídos postos no campo de concentração em tempos detidos por associais e criminosas às comunistas como a outras prisioneiras políticas de todas as ideologias. As prisioneiras polacas, receando nunca virem a assegurar esses postos para si, esperavam no entanto beneficiar do golpe propondo as suas próprias candidatas, e tinham a certeza de que Grete possuía as qualidades necessárias. Acalentavam a esperança de que ela fosse nomeada sua Blockova, em vez da detestada Minna Rupp, mas o plano correu mal. «Eu estava perfilada com meia dúzia de outras prisioneiras na praça, e ali esperámos, em sentido. A Langefeld apareceu e submeteu-nos a uma inspeção pormenorizada, perguntando a cada uma de nós onde e porque é que tínhamos sido detidas e há quanto tempo estávamos no campo de concentração. Escolheu algumas de nós, eu incluída, e disse que eu iria para o Bloco Dois.» Quando Grete disse às polacas qual era o bloco que lhe tinha sido atribuído, elas ficaram horrorizadas. O Bloco 2 estava cheio das temidas associais. E, previsivelmente, ela descobriu que entrar no bloco era como «pôr o pé, nua, numa jaula de animais selvagens». A sua primeira tarefa foi servir às prisioneiras de triângulo preto a sopa do almoço. Enquanto tentava fazê-lo, viu-se rodeada por mulheres esfomeadas e agressivas que lhe estendiam a tigela e berravam:

«Despacha-te lá! A nossa mesa primeiro.» Grete ergueu a concha da sopa e ficou paralisada de pânico, sem fazer ideia de como controlar aquela turba ameaçadora. Quando as prisioneiras políticas arredaram do poder as associais e as criminosas, não tinham contado com o facto de que teriam de viver entre elas como suas Blockovas, mas para a SS encarregar prisioneiras políticas de vigiar as associais era mais uma oportunidade de «dividir para reinar». As prisioneiras políticas nomeadas para blocos de associais ficaram horrorizadas com o que tinham de defrontar. Quando Nanda Herbermann foi nomeada Blockova de um bloco associal, encontrou lá personagens «de Sodoma e Gomorra». Sentia-se repugnada pela imundície: «Levavam os pratos para os beliches à noite e aliviavam a bexiga e os intestinos neles.» A «imundície» moral horrorizava-a ainda mais, especialmente o lesbianismo. Nanda sempre tinha levado uma vida recatada, trabalhando para o bispo de Münster na edição de um jornal católico antinazi. «O seu destino também as tornou duras e egoístas», disse ela. Várias das mulheres eram verdadeiros monstros e eu receei-as sempre; moralmente, estavam completamente arruinadas, e para além disso eram manhosas e enganadoras e, por isso, perigosas. Outras eram só crianças, marginais da sociedade que, sob os terrores da SS, só poderiam piorar.

Algumas das mulheres eram impelidas por um tal desespero que se atiravam para a vedação eletrificada, «e de manhã os seus restos queimados pendem da vedação elétrica». Bertha Teege, uma comunista alemã, viu um desses corpos pendurados do arame no dia em que chegou ao campo de concentração, em julho de 1940: «Uma jovem associal de Viena tinha tentado escapar. O corpo, ainda pendurado, foi-nos mostrado como forma de dissuasão.» Bertha, que já conhecia outras prisioneiras políticas ali, não tardou a obter um cargo de Blockova e foi enviada para o Bloco 9, outro bloco de associais. Ali, tomou o lugar da Puffmutter de Munique destituída, Philomena Müssgueller, outra vítima do golpe, que tinha sido atirada para o Strafblock. Teege veio encontrar associais num

lado do seu bloco e ciganas no outro. Controlá-las era «uma tarefa hercúlea», mas pouco depois associou-se à sua antiga camarada comunista Luise Mauer, agora Blockova do «bloco de criminosas notórias», e juntas «endireitámos o que podíamos — apoderámo-nos de certas coisas e nunca deixámos que nos apanhassem». As duas tinham contactos com a «administração do campo». As ciganas, disse Bertha Teege, eram mais controláveis do que as prostitutas. «As ciganas são como crianças dependentes, zangam-se e brigam umas com as outras e depois voltam a ficar amigas.» As associais, no entanto, eram seres decrépitos e incapazes de lidar com a situação. Mais de 80 por cento tinham doenças venéreas e tuberculose. No entanto, Teege não diz quem eram estas mulheres associais. Tal como as suas colegas políticas, parece nunca ter perguntado nomes. Para além das primeiras Kapos notórias, como Müssgueller, Kaiser e Knoll, as criminosas comuns e as associais do campo de concentração quase nunca foram identificadas pelo nome. Tanto a SS como as outras prisioneiras encaravam estas mulheres como uma turba anónima. As prisioneiras usavam a linguagem da SS para se referirem a elas: eram «associais», «vermes», «estafermos» ou — como Grete disse — «animais selvagens». Até mesmo quando uma Kapo de triângulo preto ou verde é recordada por um ato de bondade, raramente lhe é concedido um nome, embora Edith Sparmann recordasse Goldhansi, como era alcunhada a sua Blockova. Goldhansi demonstrou bondade para com Edith, que era muito nova quando chegou e foi separada da sua mãe. «A Goldhansi encontrou a minha mãe e arranjou maneira de nos encontrarmos», disse Edith. Provavelmente, Goldhansi também perdeu o seu trabalho no golpe. Embora saibamos bastante sobre o que as prisioneiras políticas pensavam das associais, não sabemos nada sobre o que as associais pensavam delas. Ao contrário das mulheres políticas, as associais não deixaram memórias. Falar depois da guerra significaria

à partida revelar a razão da sua detenção e expor-se a mais vergonha. Se houvesse indemnizações, talvez elas vissem uma razão para se identificarem, mas tal não aconteceu. As associações alemãs criadas a seguir à guerra para ajudar os sobreviventes dos campos de concentração estavam dominadas por prisioneiros políticos. E quer estivessem instalados no Leste comunista ou no Ocidente, esses organismos não viam qualquer razão para ajudar os sobreviventes «associais». Como esses prisioneiros não tinham sido detidos por serem «combatentes» contra o fascismo, fosse qual fosse o seu sofrimento nenhum deles reunia as condições necessárias para beneficiar de auxílio financeiro ou de qualquer outro. Os Aliados ocidentais também não estavam interessados no seu destino. Embora tenham morrido milhares de associais em Ravensbrück, nem uma só sobrevivente de triângulo preto ou verde foi convocada a prestar um depoimento nos julgamentos dos crimes de guerra em Hamburgo ou em quaisquer outros julgamentos posteriores. Por consequência, essas mulheres simplesmente desapareceram: como as zonas de prostituição das cidades de que provinham tinham sido arrasadas pelas bombas dos Aliados, ninguém sabia para onde elas foram. Ao longo de várias décadas, também os historiadores do Holocausto consideram as histórias das associais irrelevantes; mal merecem uma menção nas histórias dos campos de concentração. Encontrar sobreviventes entre este grupo era duplamente difícil, porque os seus membros não formaram associações nem grupos de veteranos. Hoje, bater às portas da Bhandamm de Düsseldorf, uma das poucas zonas de prostituição de antes da guerra que não foi destruída, só traz berros furiosos de «Saia-me da zona». Só nos anos 1990 é que os investigadores começaram a apelar às sobreviventes para que se apresentassem, mas, do punhado que respondeu ao apelo, nenhuma delas deu o seu nome verdadeiro e nenhuma delas, disseram todas, era prostituta. Käthe Datz admitiu ter sido detida como associal por «não querer trabalhar»; escapuliu-se do seu emprego numa fábrica um dia para cuidar da sua mãe doente.

Disseram que eu era uma traidora e que tinha cometido um crime. A seguir, fui metida num transporte de massas e por isso pus-me a chorar. No nosso grupo havia muitas raparigas da vida — prostitutas. Lembro-me de as ver a andar de saltos altos pelas ruas empedradas de Fürstenberg a caminho do campo de concentração. Posso dizer-lhes como eles atacavam essas mulheres. «Suas porcas. Vamos ensinar-vos uma lição», e a seguir vieram os pontapés e as pancadas.

No entanto, graças à burocracia nazi, restam-nos algumas pistas sobre a identidade destas mulheres. O sistema de registos da polícia montado por Himmler para monitorizar e em seguida exterminar os marginais alemães era tão abrangente que os bombardeamentos não conseguiram destruir todos os dossiês. O caráter exaustivo da burocracia atingiu a sua manifestação máxima em Colónia, onde existia uma das maiores zonas de prostituição da Alemanha. Em parte porque essas mulheres serviam os militares, eram monitorizadas e controladas de forma muito apertada. A cidade foi arrasada pelas bombas dos Aliados em 1942, mas durante o período de limpeza no pós-guerra foi encontrado entre os escombros um punhado de ficheiros da polícia, que foram arquivados em Düsseldorf, onde permanecem por ler há quase setenta anos. Ali se encontra a ficha de Anna Sölzer. Só com vinte anos quando a fotografia da polícia foi tirada, em 1941, Anna era uma rapariga bonita, com um chapéu de feltro escuro. Encontrada a viver num quarto, foi detida por suspeita de espalhar doenças venéreas. Não tinha documentos de identificação, porque tinham sido destruídos quando uma casa onde vivia foi bombardeada. O agente que efetuou a sua detenção encontrou-a sozinha no quarto, «mas sabemos que lá tinham estado homens», observou. «Ao princípio, ela recusou-se a sair da cama e ir à esquadra da polícia, dizendo que não queria.» Anna estava grávida de cinco meses. Disse que não sabia quem era o pai. Como as mulheres grávidas não podiam ser detidas, ficou sob um regime de recolher obrigatório até o bebé nascer e em seguida foi presa de novo. O dossiê de Anna contém uma declaração que ela prestou como parte de um relatório sobre a «história genética» da sua família. Não conheceu o pai. A mãe morreu quando ela tinha seis anos. «Estive

num orfanato até aos oito anos. Fui para uma casa onde aprendi a trabalhar numa família como empregada doméstica, mas pagavamme tão pouco que fui trabalhar para uma fábrica.» Mesmo aí, só ganhava vinte marcos por semana, por isso começou a trabalhar como prostituta. No relatório da polícia conclui-se que Anna provinha de uma família «geneticamente sem valor» e que mostrava «widerspenstiges freches Benehmen» — um comportamento voluntarioso e atrevido. Anna disse à polícia que só quis continuar a trabalhar como prostituta até ter o bebé. «Eu vou arranjar trabalho, por causa do bebé. Sei que a polícia anda a vigiar-me. Se fizer mais alguma coisa má, vou para o KZ.» Enquanto estava grávida, adoeceu e foi ter com o pai do bebé para lhe pedir auxílio. «Mas ele era casado e tinha família.» Quando nasceu, o bebé — Bodo — foi levado para um orfanato de Colónia. Pouco depois, Anna foi levada para Ravensbrück. Também no dossiê de Anna existe um telegrama das autoridades em Ravensbrück para a Gestapo de Colónia comunicando a morte por tuberculose de Anna às 1600 de 28 de dezembro de 1944. Indubitavelmente, a tuberculose era comum no campo de concentração, mas em 1944 era já frequentemente dada como causa de morte para encobrir o assassínio de prisioneiras. A Gestapo de Colónia recebeu a carta-padrão que o campo de concentração enviava nesses casos: «Por favor, informem a família da morte. A família não pode ver o corpo e não é possível entregar-lhe as cinzas por razões de higiene.» A Gestapo de Colónia respondeu a KZ Ravensbrück dizendo que a única família de Anna era o seu filho, Bodo, que na altura tinha três anos. «A criança será o herdeiro. Vive agora num orfanato. Por favor, enviem-lhe os pertences dela através do Departamento da Juventude de Colónia.» A história da vida de Ottile Görries também surgiu dos escombros. Ottile viveu num orfanato desde os dois anos. Não tinha emprego quando foi presa e «bebe todo o dia em bares», disse o interrogador da Gestapo, que considerou a família de Ottile «geneticamente

defeituosa». Os objetos que lhe foram confiscados quando foi admitida no campo de concentração — um alfinete de peito e um pente — aguardavam recolha, dizia-se numa nota. Ela tinha morrido em Ravensbrück. Mais rostos de outras mulheres nos fitam de mais dossiês, contando todos histórias similares. Elisabeth Fassbender criou-se num orfanato em Colónia e foi detida por roubar um casaco. Também ela morreu em Ravensbrück. Desde o início, a proporção de associais no campo de concentração era de cerca de um terço da população total, e ao longo dos primeiros anos prostitutas, sem-abrigo e mulheres «ariscas ao trabalho» continuaram a entrar em grandes números pelos portões de Ravensbrück. A sobrelotação dos blocos de associais aumentou rapidamente, a ordem entrou em colapso e seguiram-se a miséria e a doença. Pouco acostumadas a seguirem regras, as associais estavam mais sujeitas a serem acusadas de cometer algum pequeno delito, como, por exemplo, o de não fazer corretamente a cama, e eram em seguida punidas com castigos corporais ou com o Strafblock, regressando em muito pior estado. Do testemunho de Bertha Teege deduz-se que algumas das Blockovas políticas estavam tão dispostas como as próprias guardas a apresentar queixa das associais de que estavam encarregadas por cometerem infrações. Bertha queixa-se de que não havia nada que ela pudesse fazer por essas mulheres, porque elas estavam sempre «a lutar entre si, eram falsas e preguiçosas» e recusavam-se a obedecer às regras. As mulheres podiam agora ser enviadas para o Strafblock só por subirem a bainha a um vestido, depilarem as sobrancelhas ou cortarem o cabelo, observou ela. «Estranhamente, muitas associais gostavam dessas vaidades, as lésbicas mais do que todas.» Uma jovem foi enviada para o Strafblock por ser preguiçosa. «Abre o vestido à minha frente para me mostrar o peito — comido pelo gelo e por bichos. Na manhã seguinte, aparece morta.»

Quando ocorreu um assalto às despensas da cantina da SS, as associais foram acusadas e todas tiveram de ficar de pé durante horas enquanto o bloco era revistado, o que as fez «tombar como moscas». A busca não teve êxito. «Nada encontrado, a não ser mensagens secretas patéticas e cartas de amor das associais.» O que mais chamava a atenção das novas Blockovas políticas não era só a desordem nos blocos de associais, mas o lesbianismo, que alastrou com a sobrelotação a fazer aumentar a proximidade dos corpos. Nanda Herberman não tinha qualquer dúvida de que o sexo lésbico era mais prevalecente nos blocos das associais. Observava espantada o que se passava, rezando por aquelas «almas perdidas». «Praticavam os atos mais depravados umas com as outras.» A sua explicação era que as mulher eram tão «carentes moralmente» que «a sexualidade era a única coisa que lhes restava». Não havia homens disponíveis. Os homens da SS desprezavam as prisioneiras e qualquer contacto sexual implicaria o seu despedimento. Os únicos outros homens que se viam no campo de concentração nos primeiros tempos eram os prisioneiros trazidos de Sachsenhausen e de Dachau para construir os novos blocos. Esta força de trabalho escravo masculina era tão permanente que no verão de 1942 já tinha os seus próprios barracões de alojamento, e criarase um pequeno campo de concentração para homens adjacente ao das mulheres, nas traseiras. Mas o campo de concentração dos homens estava para lá dos muros do campo das mulheres e rodeado por arame farpado; o contacto sexual era quase impossível, embora não inaudito.12 O lesbianismo das prisioneiras assumia muitas formas. Algumas das mulheres que tinham vindo para ali eram já abertamente homossexuais. Embora a homossexualidade feminina não constituísse motivo para detenção, algumas mulheres apareciam nos registos como lesbisch e usavam o triângulo preto. Muitas lésbicas declaradas não faziam qualquer tentativa de ocultar a sua inclinação sexual, tomando até algumas delas nomes de homem — Max, Charlie ou Jules — e por vezes aliciando outras que não eram homossexuais,

mas que eram facilmente atraídas. Outras mulheres ofereciam sexo em troca de comida. Grete conhecia uma «prostituta» lésbica chamada Gerda; «as prisioneiras traziam-lhe as suas rações de margarina e de salsichas». Como até Nanda reconhecia, no entanto, muitas das mulheres viravam-se para o sexo porque se sentiam sós. Várias das «almas perdidas» — Gisela, Freda e Thea — procuraram até afeto junto da própria Nanda. Lançando os braços à volta dela, «estremeciam com a dor das suas vidas arruinadas». Uma prisioneira morreu nos braços de Nanda; estava «inçada de doenças». Thea estava doente e andava pelo bloco à noite, assustando as mulheres que dormiam. «Thea», recordou Nanda, «tu já não sabias o que fazias.» Uma noite, eu estava a dormir no meu beliche e tu bateste-me com as mãos em punho. Estavas ali de pé, envolta em cobertores. Eu queria agarrar-te, mas tu começaste a correr e saltaste pela janela e correste, comigo e com várias outras prisioneiras atrás de ti, até finalmente te apanharmos. Era uma noite gélida de inverno. E a SS veio e pôs a Thea numa camisa de forças. A SS veio com cães. Eu tive de vir contigo ao edifício das celas, onde te puseram uma camisa de forças perante os meus olhos. Não conseguiste sair viva da casa da morte.

Käthe Datz, a «arisca ao trabalho», sobreviveu à solidão dos blocos das associais em parte porque tinha uma amiga, Helga. As duas estavam juntas quando lhes raparam o cabelo. «Quando saímos do chuveiro, eu mal a reconheci. Diz ela: “Ei, sou eu.” Eu disse: “A sério, és mesmo tu?”» Käthe arranjou às escondidas um pente pequeno e, quando o cabelo lhe cresceu, costumava penteá-lo para cima, e também o usava o pente para controlar os piolhos. Podiam-me tirar o que quisessem, menos o meu pequeno pente. Penteava-me todos os dias. Podiam encontrar-se vestígios vermelhos, e isso dava cabo das pessoas, que não suportavam estarem sempre a coçar-se. Não nos davam remédio para os piolhos. Não se podia ir ao médico para tratar os piolhos. Por isso, havia quem ficasse com eczema. Mas eu estava bem. Resolvi o problema dos piolhos. Outras começaram a desistir. Ficavam sentadas a um canto. De manhã, davam-nos o café — água com qualquer coisa dentro. Muitas nem isso recebiam. Quando viam que elas estavam quase acabadas, já não lhes davam mais nada. Esperavam que morressem e depois levavam-nas embora.

As associais que procuravam consolo no sexo evidentemente não conseguiam manter a discrição enquanto faziam amor. Outras prisioneiras falavam frequentemente de camas a tremerem e até a desabarem durante a noite. E como o lesbianismo era um crime no campo de concentração (embora não no mundo lá fora), muitas eram apanhadas em flagrante e atiradas para o Strafblock, onde, como disse Bertha Teege, «as aberrações sexuais se tornavam descontroladas». Erika Buchmann, que se tornou Blockova do Strafblock em 1942, disse que os atos sexuais no bloco eram «por vezes desavergonhados e sem restrições», mas os casais procuravam também alguma privacidade. «Se uma pessoa se levantasse à noite para ir à casa de banho, tinha de esperar, porque os casalinhos estavam nas pequenas divisões com as portas fechadas.» Grete Buber-Neumann também se sentia chocada com o sexo lésbico, mas tinha mais sangue-frio do que algumas das outras prisioneiras, talvez porque tinha aberto os olhos no Gulag. Na opinião de Grete, as prostitutas no Gulag estavam em muito melhor situação, precisamente porque também havia homens e elas podiam «continuar a trabalhar». Em Ravensbrück, as prostitutas, «habituadas a longas horas e a um estilo de vida irregular, sentiam-se destroçadas e brutalizadas pela disciplina do campo». Para Grete, mais chocante do que o sexo era a maneira como as mulheres se denunciavam umas às outras continuamente. «Amizades juradas selavam-se num dia e eram quebradas com quezílias e inimizade no dia seguinte. Todo o dia, as mulheres acusavam-se umas às outras, lançando os insultos mais vis. Os insultos que mais magoam relacionam-se com a sua honra profissional, a acusação de que costumavam cobrar pouco. “Olha quem fala”, era uma frase de abertura comum. “Recebia bêbedos num portal por um marco.”» No entanto, tal como no caso de Nanda, as críticas de Grete parecem também mascarar algum afeto por estas mulheres. Talvez isso se devesse à sua amizade por Else Krug.

Quando no final do verão de 1940 Grete entrou pela primeira vez no Bloco 2 e tentou servir a sopa, entrou em pânico ao ver a «turba» a ameaçá-la. Mas então, para seu espanto, um dos elementos destacou-se e pediu ordem. «Uma mulher com um ar forte, olhos castanhos vivos, um queixo determinado e voz de sargento», foi como Grete descreveu a sua salvadora, que subitamente saltou para cima de um banco e berrou: «Se não se puserem na fila como deve ser e não pararem de assediar a nova Blockova, as panelas voltam para a cozinha e ninguém come nada.» Resultou como por encanto, disse Grete. «Depois disso, não voltei a ter problemas — por algum tempo.» Grete ficou tão agradecida à mulher que a ajudou que a recordou nas suas memórias. Ela chamava-se Else Krug. E como ajudou Grete e mais tarde se tornou sua amiga, Else Krug foi uma das poucas prostitutas de Ravensbrück a serem identificadas pelo nome. Grete, recentemente chegada a Ravensbrück, não o sabia, mas Else era já uma figura bem conhecida no campo de concentração; tinha chegado no primeiro transporte de Lichtenburg e foi uma das primeiras prisioneiras de triângulo preto a ter um cargo de Kapo, dirigindo o grupo de trabalho na despensa da cozinha — um cargo que ainda detinha, apesar do golpe comunista. Como prisioneira com algum prestígio, por consequência, Else ocupava um lugar na mesa principal na sala às refeições, sentando-se ao lado da Blockova. Foi ali que ela e Grete tiveram oportunidade de conversar e de ficarem a conhecer-se. Else recordava muitas vezes o seu passado, falando da vida como prostituta em Düsseldorf, sempre com um brilhozinho nos olhos. A sua especialidade era sadomasoquismo, que descrevia com pormenores vívidos. Nalguns dias, virava-se para Grete e começava por dizer: «Que tal um pequeno estudo da natureza?», e lançava-se nas suas reminiscências. «Até àquela altura, eu sempre me considerara uma pessoa bastante esclarecida», recordou Grete, «e tinha lido algumas obras científicas sobre o assunto, mas as histórias dos pedidos que lhe faziam no decurso da sua profissão e de como

ela lhes acedia punham-me os cabelos em pé.» No entanto, Grete acabou por admirar Else. «Ela contava as suas histórias de uma maneira seca e prosaica, e havia um certo orgulho profissional na sua atitude. Sabia o que era e insistia que era boa no que fazia.» Else nunca se lamuriava nem dizia, como outras, que se emendaria quando saísse. Em vez disso, deitava contas à vida. «Mais uns anos no campo e vou ter dificuldade em ganhar 300 marcos por noite. Ah, bem, vou ter de inventar alguma coisa especial para compensar.» Grete ficou também a saber que Else era muito competente na gestão do seu grupo de trabalho na cozinha e que se orgulhava disso. O trabalho nesse grupo era muito procurado, porque as oportunidades de surripiar cenouras, batatas e nabos extra, e por vezes até comida enlatada e compotas, eram consideráveis — assim como os riscos de se ser apanhada em flagrante ou denunciada por uma prisioneira política a tentar roubar o lugar. Provavelmente, a principal razão por que a operação de Else Krug ainda não tinha sido prejudicada, apesar da campanha de difamação contra as associais de Hanna Sturm, era porque ela controlava a sua equipa — todas as suas colegas associais — com rédeas curtas, assegurando-se de que os espólios eram partilhados equitativamente. Else tornara-se uma espécie de mãe para o seu grupo da cozinha, granjeando a sua lealdade, observou Grete. No entanto, em todas as suas conversas, Grete parece não ter ficado a saber nada sobre o meio de que Else provinha ou sobre a mãe dela, embora ouvisse frequentemente falar sobre outras. Uma vez por mês, como todas as prisioneiras, as associais podiam escrever uma carta, e como uma das tarefas das Blockovas era a précensura do correio, acabavam por ler todas as cartas. As dirigidas às mães eram as mais comoventes. Uma prisioneira escreveu: «Querida mãe, eu sei que tenho sido um grande motivo de vergonha para si, mas escreva-me nem que seja só umas palavras. Sinto-me tão infeliz. Quando sair, vou começar de novo; a sério. Mande-me um marco.» Por vezes, ao sábado, quando chegava correio, havia uma resposta

inesperada para uma delas, «porque algumas mães se tinham sentido tocadas, e as lágrimas jorravam em catadupa, mas, chegado o domingo, todos os remorsos eram esquecidos e os insultos começavam outra vez a ser disparados». Na maior parte dos casos, no entanto, as mulheres não recebiam resposta, porque as cartas nunca chegavam ao seu destino ou porque a família as tinha renegado. Algumas mulheres nunca escreviam, talvez porque tivessem perdido o contacto com a família há muito tempo e nunca tivessem tido a coragem de lhes dizer no que se tinham tornado ou onde estavam, o que parece ter sido o caso de Else. Sabemos por outras fontes que Lina Krug, a mãe de Elsa, não fazia ideia de onde a filha se encontrava. Encontrar os parentes das prisioneiras associais é uma tarefa tão impossível como encontrá-las a elas. Frequentemente, não tinham morada fixa ou encontravam-se eles próprios atrás das grades. Depois da guerra, se essas mulheres não regressassem, as famílias tendiam a manter o silêncio. Talvez adivinhassem para onde tinham sido mandadas, mas não vissem o interesse de tentar fazer ouvir a sua voz; as famílias também não recebiam auxílio nem compensação. A mãe de Elsa, no entanto, fez-se ouvir. Depois da guerra, apelou ao organismo dos sobreviventes alemães, a Vereinigung der Verfolgten des Naziregimes (VVN: Organização para as Vítimas do Fascismo), dizendo que procurava notícias da sua filha. Lina Krug parece não ter feito a mínima ideia de que a sua filha era prostituta ou da razão por que tinha sido presa. Simplesmente solicitou à VVN qualquer informação que pudesse ter. A carta expõe também algo sobre o meio familiar de Else, revelando uma história de vida que era muito diferente do estereótipo associal encontrado no dossiê da polícia nazi. Na carta, declara-se que Elisabeth (Else) nasceu em 3 de março de 1900 em Merzig, no estado de Saarland, o minúsculo estado alemão na fronteira com a França, e que a família vivia na cidade vizinha de Neudorf-Altenkessel. O pai de Else, Jacob Krug, era mestre alfaiate, uma figura respeitada na sua comunidade.

A certa altura nos anos 1920, ela saiu de casa para viver em Düsseldorf. Lina não explica quando ou porque é que Else saiu de casa, mas sabemos por outros registos que Jacob Krug morreu novo, pelo que talvez ela tenha ido procurar trabalho quando a família perdeu o seu ganha-pão. Nos anos 1920, com o aumento do desemprego, muitas mulheres jovens foram para as cidades para trabalharem para famílias abastadas como empregadas domésticas. A razão por que Else caiu na prostituição não é clara, mas, provavelmente, tal como muitas outras, simplesmente precisava de dinheiro. Não iria com certeza revelar à mãe o que fazia, o motivo provável para terem perdido o contacto. É também difícil dizer com exatidão quando é que Else se tornou prostituta, mas sabemos — graças a outros fragmentos de documentos nazis — que em 1938 estava a trabalhar num bordel em Düsseldorf. A morada era Corneliusstrasse, número 10, então em plena zona de prostituição da cidade. Para além dos dossiês pessoais de prostitutas, uma série de livros de registos da polícia foi também tirada dos escombros das cidades alemãs, encontrando-se entre eles o livro de registos diários de 1938 da polícia de Düsseldorf. Nesse volume, com sinais de ter sido bastante manuseado, há uma lista de todas as rusgas a todos os bordéis de Düsseldorf levadas a cabo nesse ano. As rusgas eram mensais e na sequência de cada uma delas cerca de vinte e cinco prostitutas eram registadas no livro e em seguida soltas. As mesmas moradas e os mesmos nomes aparecem uma e outra vez. Uma morada no número 10 de Corneliusstrasse era frequentemente alvo de uma rusga policial. Algumas das prostitutas eram levadas para a esquadra com o marido, que muitas vezes era proxeneta. A maioria tinha alguns bens pessoais — alguns pfennigs e um chapéu, que deixavam no balcão da esquadra quando eram detidas, assinando um documento. Uma das prostitutas do número 10 de Corneliusstrasse trouxe também um saco — era Else Krug. Na noite de 30 de julho de 1938, o bordel do número 10 de Corneliusstrasse foi alvo de mais uma rusga, mas desta vez as

suspeitas do costume não foram soltas e mandadas para casa. Tinham sido detidas ao abrigo da nova lei dos «associais» de Himmler, numa das primeiras detenções em massa do seu tipo, o que significava que em breve seriam enviadas para Ravensbrück. Antes de sair da esquadra, Else Krug assinou o documento relativo ao seu saco com a letra firme e clara do costume. No seu segundo ano em Ravensbrück, Else já não estava em contacto com a sua mãe há pelo menos quatro anos, provavelmente há muitos mais. E depois deixou de ter a possibilidade de escrever à família mesmo que quisesse. Uma a uma — graças à tomada de poder das prisioneiras de triângulo vermelho —, as restantes Kapos associais foram arredadas dos seus cargos e, quando os furtos de Else acabaram por ser denunciados, também ela perdeu o seu emprego na despensa da cozinha. Foi punida com uma detenção no Strafblock, a carregar tijolos e a descarregar carvão das barcaças, mas não se deixou ir abaixo, diz Grete, que por vezes trocava umas palavras com a sua amiga através da vedação de arame do Strafblock. «Grete», disse Else uma vez, «eles julgam que conseguem deitarme abaixo com trabalho, mas estão enganados; eu sou resistente, consigo aguentar melhor do que qualquer um deles.» A brutalidade no Strafblock era pior do que nunca. Uma nova guarda, Gertrude Schreiter, filha de um padeiro de Colónia, batia nas prisioneiras com um cinto de pele. Ela «ficava uma fera», diziam as mulheres, e algumas prisioneiras diriam mais tarde que reconheciam as mulheres detidas no Strafblock porque a brutalidade «as transformava também em seres bestiais» — «os últimos resquícios de qualquer suavidade desaparecidos dos seus rostos e da sua postura». Perto do final de 1940, Koegel decidiu dar uso a esses seres bestiais ordenando-lhes que se encarregassem da aplicação das chicotadas no Bock. As sessões eram agora tão frequentes que Dorothea Binz e Maria Mandl não tinham mãos a medir e precisavam

de quem as ajudasse. Se as mulheres do Strafblock acedessem a colaborar, ser-lhes-ia dada mais comida e seriam enviadas para os seus blocos normais. Não houve falta de voluntárias. Também não houve falta de quem se dispusesse a chicotear a trapezista Katharina Waitz depois de ela ter escapado pela terceira vez. Na sequência das duas tentativas de evasão anteriores, Katharina tinha sido mantida em detenção no Strafblock durante muitos meses; a certa altura, em 1941, encontrou maneira de se evadir de novo. Desta vez, a sua fuga foi tão espetacular que muitas prisioneiras a descreveriam mais tarde. A coberto do escuro, sem alertar nem guardas nem cães, escapuliu-se do Strafblock e foi até à cantina da SS. Subiu para o topo do edifício e, usando uma almofada e um cobertor para se proteger da corrente elétrica, escalou a vedação e saltou para o chão do outro lado. Recorrendo a todas as suas capacidades de trapezista, saltou as cinco filas de arame farpado e escalou o muro de quatro metros, usando também a almofada e o cobertor para passar por cima do arame farpado no topo. Katharina saltou então para a liberdade, mas de manhã as guardas encontraram o cobertor no arame farpado e a almofada no telhado da cantina. As prisioneiras que se recordavam de como Katharina tinha escapado também se recordavam de como tinha sido trazida de volta. Enquanto estava a ser procurada, todas as prisioneiras do campo foram obrigadas a ficar em sentido de castigo, mas foram as detidas no Strafblock, de onde ela tinha escapado, que sofreram as punições mais severas. Essas mulheres foram obrigadas a ficar de pé, sem comer, até Katharina ser encontrada. A busca demorou três dias e três noites. Na quarta manhã, Katharina foi descoberta escondida em Fürstenberg. As guardas com cães enviadas para a procurar reapareceram, com Koegel atrás a empurrar Katharina à sua frente. Estava toda mordida e coberta de sangue e de poeira. Doris Maase, observando a cena da janela da Revier, viu Koegel levar Katahrina para o Strafblock e dizer às prisioneiras,

enlouquecidas de fome e de fúria: «Aqui está ela. Podem fazer o que quiserem.» Outra testemunha ouviu Koegel dizer: «Vamos levá-la para as bestas, que as nossas bestas se divirtam com ela», e mal ele entregou Katharina às mulheres do Strafblock «as piores de entre elas empurraram-na para a casa de banho, insultando-a, e bateramlhe com pernas de cadeiras até a matarem». O seu cadáver «devia ter um aspeto terrível», disse Doris Maase, porque, pela primeira vez na história do campo de concentração, um corpo foi levado pelo médico do campo, o Dr. Sonntag, e pelo seu ajudante, não pelas prisioneiras. Pouco depois da morte de Katharina, Koegel organizou mais um castigo corporal em massa, e mais uma vez o Strafblock foi envolvido. As testemunhas de Jeová que trabalhavam nas coelheiras andavam a recusar-se a recolher lã angorá, dizendo que estava a ser usada para os casacos dos soldados e que, por consequência, era trabalho de guerra. Koegel ficou enraivecido e deu ordens para que dezenas de mulheres fossem chicoteadas, mas, como para essas sessões múltiplas precisava de mãos extra, apelou a voluntárias do Strafblock. Mais uma vez, foram feitas propostas aliciantes e apresentaram-se algumas voluntárias, mas Koegel precisava de mais. Talvez devido ao aspeto forte de Else Krug ou porque Koegel reparou no seu orgulho altivo, selecionou-a especificamente para ser uma das que empunhariam o chicote. Tal como às outras, ofereceram-lhe a oportunidade de ser libertada do Strafblock, mas Else recusou. Koegel chamou Else ao seu gabinete, tendo Grete conseguido ouvir o que se seguiu. Como Koegel não estava habituado a que as prisioneiras se opusessem às suas ordens, ficou furioso e pôs-se a berrar com Else, ordenando-lhe que lhe obedecesse. «Não, Herr Comandante do Campo», disse Else. «Eu nunca bateria numa colega prisioneira.» «O quê, sua puta imunda? Julgas que podes escolher à tua vontade? Isso é recusa de obedecer a uma ordem.» Else encolheu os ombros, mas estava sombriamente determinada. «Levem embora a

puta», rosnou Koegel. «Vais ter motivo para te lembrares de mim, posso-te garantir.»

12 Segundo Maria Bielicka, uma prisioneira polaca, as prostitutas dos blocos das associais por vezes tinham contactos com homens do pequeno campo de concentração masculino. «Sabiam como o fazer. Uma foi apanhada e foi metida no bunker e apanhou vinte e cinco chicotadas.»

CAPÍTULO 7 DOUTOR SONNTAG Olga, como todas as outras prisioneiras, vivia no receio quase constante do inverno. Só nas primeiras semanas da primavera é que o inverno se ausentava dos seus pensamentos, mas, como mostram as suas cartas, a partir do verão a perspetiva das primeiras neves assombrava-a. «Para mim, a vida no verão é tão mais fácil, e espero não passar outro inverno aqui», escreveu a Leocadia e a Lígia em junho de 1940. Por agora, o verão agradável evocava-lhe pensamentos agradáveis sobre Anita. «Deem-lhe muitos desportos. Nas suas capacidades e no seu caráter, sai a mim ou ao pai?» Havia até uma nova esperança de libertação, assinalada pela referência a uma transferência de dinheiro. As recentes libertações das prisioneiras Ida Hirschkron e Marianne Wachstein talvez lhe tenham reanimado o otimismo. Pouco depois de escrever aquelas palavras, no entanto, Olga foi condenada à detenção no bunker pelo seu papel na peça de teatro do Bloco 11. A ausência de cartas entre julho e novembro de 1940 indica que ela e as outras cinco ficaram em detenção até chegar o inverno, que seria muito frio nesse ano: as guardas encontraram prisioneiras geladas, coladas ao chão do bunker. Na sua carta de novembro para Carlos — que ainda se encontrava na prisão no Brasil —, Olga alude à sua encarceração. «Aqui estão algumas linhas como sinal de vida para ti... quando se passou tanto tempo, deve ser possível sobreviver um pouco mais.» Quando Olga saiu do bunker, encontrou muitas alterações. Estavam a ser construídas oficinas. Havia mais mil prisioneiras e dois novos barracões. As polacas constituíam o grupo maior e estavam a consolidar uma nova autoridade.

Despedida do seu posto de Blockova, Olga foi enviada para o grupo de descarga de tijolos. Barcaças carregadas com tijolos para os novos edifícios atracavam todos os dias no Schwedtsee. As mulheres formavam uma cadeia humana, atirando tijolos ao longo da fila até descarregarem as barcaças. As mãos de Olga estavam endurecidas, mas as palmas macias de outras ficavam dilaceradas e em seguida dormentes com as queimaduras do frio. Algumas talvez conseguissem obter uma ligadura de papel ou um pouco de tintura de iodo na Revier, mas não as prisioneiras judias. O médico-chefe, Walter Sonntag, recusava-se a tratar judeus. Em dezembro, Olga voltou a ter notícias de Carlos, e Leocadia enviou-lhe uma fotografia de Anita. «A pequerrucha já está completamente diferente da bebé que eu conheci», escreveu Olga na sua resposta ao marido. «Tenho andado a seguir os acontecimentos através do jornal o melhor que posso.» Instava-o de novo a não perder a esperança. «Quanto a mim, estou a preparar-me para chegar até ao fim do inverno.» O facto de Olga ter lido o jornal significava pelo menos que estava em contacto com as suas camaradas noutros blocos. Os acontecimentos a que se refere sem dúvida incluíam a invasão por Hitler da França, da Bélgica e da Holanda. Nas páginas do Völkischer Beobachter deve ter lido a propaganda nazi segundo a qual o Reino Unido estava realmente prestes a propor um acordo de paz. Hitler tinha até assinado pactos com o Japão e a Itália. Mas quanto tempo duraria o pacto importante de Hitler com Estaline? Para Olga e para as suas camaradas comunistas, esta era a questão mais importante de todas. As mulheres diziam a si mesmas que o objetivo de Estaline não tardaria a tornar-se claro. Olga atualizou o seu minúsculo atlas, indicando para onde se tinham deslocado as frentes, e começou a organizar o seu próprio jornal do campo de concentração em miniatura usando minúsculos pedaços de papel. A agenda do Reichsführer para 14 de janeiro de 1941 indicava:

«Himmler partiu de Berlim às 10h30 e passou o dia e a noite em Ravensbrück.» Um ano depois da sua primeira visita, Himmler dirigiase de novo para a floresta gelada de Mecklenburg e dessa vez passaria a noite. O mais provável é que não a tenha passado em Ravensbrück, mas a oito quilómetros, numa pequena propriedade no meio da floresta chamada Brückenthin, que tinha adquirido e onde instalara a sua amante, Hedwig Potthast. Hedwig, com vinte e sete anos, era secretária de Himmler desde 1936, e em 1940, quando as relações dele com a sua mulher, Marga, se deterioraram, tornaram-se amantes. Ele chamava-lhe «Häschen» — «Coelhinha». O facto de Himmler ter uma amante coadunava-se perfeitamente com as suas opiniões sobre as relações extramatrimoniais. Foi Himmler quem, em 1937, introduziu o conceito de Lebensborn («Fonte de Vida») — instituições onde os oficiais da SS podiam procriar fora do casamento com mulheres arianas selecionadas, para produzirem um fornecimento constante de crianças arianas perfeitas. Em 1940, aprovou uma ordem de procriação a instar os soldados alemães a procriarem fora do casamento para se produzirem tantas crianças quanto possível, de modo a reabastecer o fundo genético. Não era necessário que tal fosse feito em segredo, proclamou. A sua própria procriação era outro assunto completamente diferente. Talvez para benefício de Häschen — ele parece ter-lhe devotado um genuíno afeto —, assegurou-se de que os seus encontros eram discretos, escolhendo como ninho de amor uma simples casa de guarda-florestal junto a uma pequena aldeia.13 Embora Brückenthin fosse recatada, era também bastante prática. A apenas oito quilómetros de Ravensbrück, Himmler podia combinar uma visita a Häschen com uma visita de inspeção ao campo de concentração, usando esta última para encobrir a outra. Do outro lado do lago ficava a vila de Comthurey, onde se situava a propriedade do seu amigo criador de galinhas Oswald Pohl; a mulher de Pohl oferecera-se para ajudar Häschen no que ela precisasse. A oito quilómetros de distância ficava a vila de Hohenlychen, com a sua famosa clínica da SS. Encontravam-se ali frequentemente oficiais de

altas patentes e políticos nazis a receberem o tratamento ministrado pelo Professor Doutor Karl Gebhardt, que estava mais do que disposto a ajudar o seu velho amigo Himmler olhando pela amante dele. No entanto, embora Häschen ocupasse os pensamentos de Himmler, a visita de janeiro a Ravensbrück era também importante para ele. Tinha assuntos a debater no campo de concentração e queria particularmente encontrar-se com Walter Sonntag, o importante médico da SS. A neve até tinha sido varrida do jardim ornamental junto ao gabinete do Dr. Sonntag; a Revier foi esfregada de alto a baixo e todo o campo cheirava a madeira molhada. Desde a última visita de Himmler, as suas prioridades tinham sofrido uma evolução. A Polónia tinha sido esmagada e estava a ser reorganizada para permitir a criação da prometida utopia alemã de Hitler. Abrira um novo campo de concentração em Oswiecim — em alemão, Auschwitz —, no Sul da Polónia, para deter resistentes polacos. E os dois milhões de judeus do país estavam a ser expulsos das suas casas e forçados a viver em guetos ou em reservas em partes da Polónia anexada — ou o Grande Reich — chamadas «o governo geral». Mas ainda não tinha sido proposta uma solução oficial — exceto, talvez, em privado — para o que fazer a seguir com os judeus. Como Hitler estava naquele momento a fazer planos para invadir a União Soviética — toda a massa terrestre russa poderia cair nas mãos dos Alemães —, uma das ideias era empurrar os judeus para as margens do continente e deixá-los lá. Essa solução, no entanto, colocava os seus próprios problemas: os judeus teriam de algum modo de ser esterilizados, caso contrário nunca mais seriam destruídos. Não surpreende pois que um dos assuntos a ocupar a mente de Himmler no início de 1941 fosse a esterilização em massa. Estava em conversações com os seus médicos preferidos sobre se essas experiências deveriam ser conduzidas ali, em Ravensbrück. Com a perspetiva de uma nova frente a abrir-se para leste, Himmler pensava também em como Ravensbrück e outros campos

de concentração poderiam aproveitar melhor os seus recursos para apoiar o esforço de guerra. Nos primeiros tempos, os trabalhos forçados foram usados em grande medida como um meio de tortura e de disciplina, mas dava a impressão de que a guerra se prolongaria por mais tempo do que o esperado e o trabalho dos prisioneiros estava a ser explorado de modo mais útil. A questão relacionada com o que fazer com os prisioneiros que não podiam trabalhar ocupava igualmente bastante os pensamentos de Himmler. Já há mais de um ano que o programa T4 de eutanásia de Hitler tinha sido lançado e durante esse período mais de 35 000 homens, mulheres e crianças que se considerava serem uma causa de desperdício dos recursos da nação foram exterminados com monóxido de carbono bombeado para câmaras de gás escondidas em hospitais alemães. Na Polónia, as técnicas do programa T4 tinham também sido adaptadas para matar os deficientes físicos e mentais do país, assassinados em unidades móveis, camiões especialmente adaptados para o efeito. A autoridade do Reichsführer não se estendia ao programa T4 de eutanásia, mas ele era sempre consultado relativamente às operações. Poucas semanas antes da sua visita a Ravensbrück, Himmler interveio pessoalmente quando eclodiu uma crise no castelo de Grafeneck, a sudoeste de Estugarda, um dos centros T4 de extermínio por gás. Em dezembro de 1939, a velha cocheira do castelo foi convertida numa câmara de gás e ao longo dos doze meses seguintes dez mil homens e mulheres com doenças físicas e mentais foram levados de autocarro para Grafeneck para serem assassinados. No entanto, mais tarde, em 1940, os autocarros pertencentes à «Companhia Limitada para o Transporte de Inválidos no Interesse Público» começaram a atrair a atenção, e um juiz local comunicou manifestações de sérias preocupações. «Há várias semanas que circulam rumores nas vilas à volta de Grafeneck de que há algo de errado a passar-se no castelo», escreveu. «Os pacientes chegam, mas nunca mais voltam a ser vistos nem podem ser visitados, e é igualmente suspeito o fumo

frequentemente visível.» Em novembro, uma aristocrata local e nazi ardente, Else von Löwis, escreveu uma carta aos chefes do partido pedindo-lhes que comunicassem a Hitler que os extermínios estavam a pôr à prova a lealdade da população local. Presumia que o Führer não estava a par das mortes, já que não tinha sido aprovada uma lei a autorizá-las. «O poder sobre a vida e a morte tem de ser legalmente regulamentado», disse ela. Os assassínios estavam a deixar uma «impressão horrível» na população local. As pessoas perguntavam: «Aonde é que isto nos levará e quais serão os seus limites?» A carta de Else von Löwis chegou às mãos de Himmler, que interveio imediatamente. A carta tocou um nervo sensível, porque confirmou os riscos implicados em conduzir o extermínio maciço de cidadãos perto de onde viviam alemães comuns, que certamente os notariam. Himmler deu ordens para que Grafeneck fosse «imediatamente desativado» para sossegar os ânimos. «O processo deve ser defeituoso, se se tornou tão público como parece», afirmou. Claramente, era o facto de o extermínio se ter tornado público que constituía o seu defeito, não o extermínio em si: pouco depois do encerramento de Grafeneck abriram dois novos centros de extermínio na Alemanha, mas mais bem disfarçados. O programa T4 de eutanásia iria ser expandido, e Himmler planeava também agora alargar o uso dos seus métodos de gaseamento a outras instituições. Pouco depois do episódio de Grafeneck, escreveu ao chefe do programa T4, Philipp Bouhler, também chefe da Chancelaria de Hitler, perguntando-lhe «se e como o pessoal e os recursos do T4 podem ser utilizados para os campos de concentração». Ao entrar na Revier acabada de limpar para conversar com o Dr. Sonntag, Himmler veria com os seus próprios olhos a necessidade crescente de se livrarem de «bocas inúteis». As pequenas enfermarias estavam apinhadas de rostos pálidos e nos corredores mulheres nuas e debilitadas aguardavam tratamento em fila. No entanto, os novos planos de gaseamento eram, provavelmente,

demasiado prematuros — e demasiado secretos — para serem discutidos com um mero médico de um campo de concentração. Em vez disso, Himmler abordou com o Dr. Sonntag a questão mais premente da gonorreia. Algumas semanas antes, Himmler encarregara o seu cirurgiãochefe, Ernst Grawitz, de ordenar a Sonntag que iniciasse experiências com prostitutas de Ravensbrück para encontrar uma cura para a gonorreia e estava ansioso por ouvir os resultados. Há muito tempo que Himmler se sentia fascinado pelas experiências médicas, e a eclosão da guerra dera ao seu interesse um novo objetivo — aumentar a expectativa de vida das forças alemãs. Onde melhor conduzir as experiências do que em cobaias humanas nos campos de concentração? No campo de concentração masculino de Sachsenhausen tinham sido conduzidas experiências em prisioneiros com gás mostarda para descobrir uma cura para os soldados intoxicados na frente de combate, e em Dachau os prisioneiros estavam a ser privados de oxigénio para se descobrir a que altitude um piloto morreria. A presença em Ravensbrück de dezenas de prostitutas infetadas oferecia uma oportunidade de explorar as hipóteses de cura da sífilis e da gonorreia. Seguindo as instruções de Himmler, os soldados eram encorajados a frequentar bordéis enquanto estivessem na frente de combate. A atividade sexual regular, acreditava Himmler, incrementaria a sua motivação para combater, especialmente se fosse possível protegê-los de doenças venéreas. Mas naquele momento ficou furioso ao saber por Sonntag que as experiências nem sequer tinham ainda começado. Aparentemente, Grawitz não tinha transmitido a ordem a Sonntag, porque se tinha esquecido ou talvez porque não confiava em médicos de campos de concentração sem grandes qualificações, como Sonntag, para realizar a tarefa adequadamente. Sonntag tinha formação de dentista e as suas qualificações médicas eram limitadas, mas Himmler tinha-o em grande conta, porque tinha sido ele a conduzir as experiências com o gás mostarda

em Sachsenhausen. Sonntag não hesitara em aplicar bactérias letais à pele de prisioneiros saudáveis, induzindo inchaços monstruosos e causando dores insuportáveis. Por conseguinte, o Reichsführer SS ordenou a Sonntag que iniciasse sem demora as experiências de gonorreia em Ravensbrück. Homem alto de uniforme preto imaculado e caveira da divisão Totenkopf (Cabeça de Morte) da SS no boné, o Dr. Walter Sonntag dava nas vistas quando descia a Lagerstrasse até ao hospital do campo de concentração, com uma bengala de bambu enfiada numa das suas botas de cano alto. As prisioneiras recordavam o seu nariz aquilino, as suas feições angulares e as suas grandes orelhas. Recordavam também a sua força incomum: qualquer mulher a quem ele desse uma bofetada caía invariavelmente por terra. Walter Sonntag, filho de um carteiro, nasceu em 1907 na cidade de Metz, numa região que era na altura a Lothringen alemã e que é agora a Lorraine francesa. Sendo originário de uma região fronteiriça contestada — a Lorraine foi disputada ao longo de séculos entre a França e a Alemanha —, o nacionalismo de Sonntag foi incentivado desde tenra idade. No início da Primeira Guerra Mundial, as vilas que ele conhecia foram palco de nova carnificina. Nos termos do acordo de Versalhes que se seguiu, os Sonntag, como milhares de outros alemães humilhados, foram expulsos e forçados a começar uma nova vida. O seu pai arranjou trabalho na agricultura e Walter passou os seus anos de criança a brincar com animais. Quando acabou os estudos, sentiu-se atraído pelo Partido Nazi e decidiu melhorar as suas perspetivas de vida estudando para ser dentista. Embora Sonntag tenha inicialmente escolhido a carreira de dentista, mais tarde passou para a Medicina, sem dúvida atraído pelo papel destacado que os médicos estavam a desempenhar na nova guerra racial de Hitler. Aderiu ao Partido Nazi e, juntamente com centenas de outros estudantes de Medicina, inscreveu-se na SS. A percentagem de médicos que concorreram à SS era a maior de qualquer profissão.

Em meados da década de 1930, a ética nacional-socialista da limpeza racial constituía o núcleo do currículo de Medicina. Era pedido aos médicos alemães que curassem a «totalidade» da raça alemã, não simplesmente que se concentrassem no indivíduo. E para tratar a saúde pública requeria-se que eliminassem os seres racialmente sub-humanos ou geneticamente impuros, possibilitando assim que o reservatório genético alemão se limpasse e florescesse. Walter Sonntag começou a escrever uma tese em 1939 sobre a «medicina social», na qual comparava as ideias do Führer às advogadas pelos Espartanos ou pelos cientistas da época medieval, que teriam exterminado os leprosos se não fossem os escrúpulos religiosos. Expunha também as suas opiniões sobre a esterilização, declarando: «A reprodução dos elementos geneticamente malsãos e associais de um povo inevitavelmente conduzirá à deterioração de toda a nação. A esterilização dos indesejáveis e a sua eliminação tanto quanto possível são, por consequência, um projeto humanitário que oferece proteção às partes da sociedade com mais valor.» Claramente, o seu catolicismo inicial já não o restringia, nem o facto de a sua irmã Hedwig ter desenvolvido esclerose múltipla, um distúrbio genético crónico que ela receava ser um castigo de Deus por se ter casado com um protestante. O facto de os campos de concentração contarem com hospitais era uma das muitas anomalias do sistema nazi. Tudo nos campos parecia destinado a tirar a saúde aos prisioneiros e acabar por os matar, de uma maneira ou de outra, não a tratá-los ou a curá-los. No entanto, se os prisioneiros jovens e de boa saúde eram usados como mão de obra escrava, fazia sentido tratar as suas doenças no dia a dia. Além disso, os nazis tinham um verdadeiro terror da possibilidade de alastramento de doenças contagiosas dos prisioneiros esfomeados e apinhados nos campos de concentração para a população em geral. Uma das principais funções dos hospitais, por consequência, era impedir a eclosão de epidemias mortais. Quando Sonntag começou a trabalhar em Ravensbrück, a Revier

ainda aparentava vestígios de ser um hospital normal. Instalada num barracão normal, contava com uma «enfermaria» com sessenta camas, ocupadas pelas prisioneiras em estado grave. A temperatura das pacientes era monitorizada e quando alguma delas ficava com menos de 39 graus de febre era enviada de volta para o trabalho. Dispunha de uma sala de operações totalmente equipada, assim como de uma farmácia, equipamento para fazer radiografias e um laboratório de análises clínicas. As regras de higiene eram cumpridas, sendo os lençóis mudados regularmente. Havia um horário de «consultas» diárias e, em teoria, qualquer prisioneira poderia pôr-se na fila para ser vista por um médico. As duas médicas, a Dra. Jansen e a Dra. Gerda Weyand, tinham estudado em escolas médicas respeitadas. Ao seu serviço encontrava-se uma enfermeira qualificada, Lisbeth Krzok, «Schwester Lisa», e várias outras Schwestern, que usavam o uniforme castanho das enfermeiras do Reich. Não havia nada de normal na gama de ferimentos e de doenças de que sofriam as mulheres que todas as manhãs se punham em cinco filas à porta do hospital, queixando-se de mordidas de cães, ferimentos de chicotadas e queimaduras causadas pelo frio. Também não havia nada de normal na maneira como a Schwester Lisa, conhecida como a Schreck do hospital, berrava às prisioneiras a exigir silêncio, as mandava despirem-se e as insultava enquanto elas aguardavam na fila. A Dra. Jansen deixava-se ficar sentada horas a fio com uma chávena de café, na conversa, até acabar a hora das consultas e as pacientes serem mandadas embora sem receberem tratamento. Mas a outra médica, Gerda Weyand, mostrava mais paciência para com as prisioneiras, mais humanidade. Fazia-lhes perguntas sobre os seus sintomas, examinava-as e nunca lhes batia nem as insultava. A própria presença de membros do pessoal que eram prisioneiras emprestava também um certo ar de normalidade à Revier. Como noutras partes do campo de concentração, a colaboração das prisioneiras tinha sido requisitada e agora elas praticamente dirigiam

a administração da Revier. A uma mesa no corredor, estavam sentadas enfermeiras prisioneiras com ligaduras, unguentos e remédios. Rodeadas por prisioneiras a acotovelarem-se, faziam os possíveis por tratar furúnculos, eczemas e cortes. A médica prisioneira Doris Maase, que dormia no hospital à noite, acorria a casos urgentes muito depois de as outras irem embora. E no gabinete dos arquivos encontrava-se uma mulher com fartos cabelos ruivos e olhos brilhantes. Colada à parede ao seu lado havia uma imagem de um girassol arrancada a uma revista deixada ali por um médico da SS. Recentemente chegada de Praga, Milena Jesenska era jornalista e tinha sido em tempos amante de Franz Kafka. Agora, arquivava os resultados dos testes feitos às prisioneiras associais integrados no programa de experiências de Sonntag. Aqui também estava Erika Buchmann, uma mulher alta, loura e de olhos azuis. Em tempos secretária de um comunista do Reichstag, Erika era agora secretária da Revier, datilografando longas listas de doentes entregues todas as manhãs pelas chefes dos blocos. Como estas mulheres — Maase, Buchmann, Jesenska — tinham de se manter limpas para trabalharem no hospital, estavam alojadas num bloco privilegiado e mudavam de roupa com mais frequência do que as prisioneiras comuns. Tal como as outras prisioneiras que pertenciam ao pessoal do campo de concentração, usavam braçadeiras especiais — no caso das que trabalhavam na Revier, amarelas —, o que lhes permitia circularem livremente no campo. Esta liberdade, juntamente com a possibilidade de ajudar algumas das prisioneiras, faziam-nas sentirem-se um pouco mais normais. Com a chegada do Dr. Sonntag, no entanto, nada poderia voltar a ser normal. No seu primeiro dia, ficaram todas a vê-lo passar pela fila de mulheres que estavam à espera de tratamento, dando pontapés às mais fracas com as suas botas ou batendo com a sua bengala às que soltavam gritos de dor. Mandou uma mulher despir-se e deu-lhe um pontapé na barriga. O que horrorizava as mulheres não era só a sua brutalidade, era também o sorriso no seu rosto.

Nenhuma das prisioneiras que trabalharam com Sonntag no hospital tinha qualquer dúvida de que ele era um sádico. Era um «extremo prazer» para Sonntag extrair dentes sãos. As mulheres chegavam com uma infeção num dente; ele extraía-lhes um molar em perfeito estado. «Estas extrações eram realizadas sem anestesia. Os terríveis gritos ouviam-se por todo o hospital. Quando ele saía da sala de operações, vinha com um sorriso de satisfação», recordou Erika Buchmann. Depois da guerra, Erika prestou testemunho sobre todo o tipo de atrocidades em Ravensbrück, mas nada do que ela presenciaria depois seria descrito com a nitidez minuciosa com que recordou o tratamento dado por Sonntag a uma mulher exausta que veio consultá-lo no inverno de 1940 com queimaduras provocadas pelo gelo: Ele deixou-se ficar de pé em frente da mulher com uma cana de bambu na mão. Bateu com ela nas feridas da mulher causadas pelas queimaduras do gelo. Arrancou as ligaduras com a cana, porque nessa altura as ligaduras já eram de papel. Escarafunchou com a cana as feridas abertas, a sangrar, cheias de pus. Aquilo deulhe um prazer especial.

Nada agradava mais a Sonntag do que uma oportunidade para declarar que uma mulher estava em condições de ser chicoteada. Um dos deveres do médico do campo de concentração era decidir se uma prisioneira condenada a vinte e cinco chicotadas no Bock era suficientemente resistente do ponto de vista físico para sobreviver. As regras estipulavam que as mulheres com febres altas ou doenças agudas não deviam ser chicoteadas, mas Sonntag enviava-as sempre para o Bock. Só ordenava a suspensão do castigo corporal se a mulher desmaiasse, e tomava-lhe o pulso e dava sinal para que recomeçassem a chicoteá-la mal as pulsações voltassem ao normal. Ficava sempre particularmente bem-disposto quando vinha das celas onde decorriam os castigos corporais. Não se tratava simplesmente de Sonntag ter prazer com o sofrimento das prisioneiras; elas, evidentemente, enojavam-no. Odiava-as e por vezes parecia até receá-las, assegurando-se de que

as pacientes eram mantidas a alguma distância dele, razão por que, se as examinasse, o fazia com a sua cana. No entanto, por entre as imagens do seu sadismo encontram-se outras recordações de uma figura grotesca e frequentemente absurda. Era um devasso e um ladrão — roubava comida das encomendas recebidas pelas prisioneiras — e gostava de se pavonear e de se exibir com a sua cana de bambu. E era frequentemente visto bêbedo a roubar pelo campo de concentração. «Lembro-me de uma mulher que veio tratar um dedo partido, esmagado quando ela estava a descarregar tijolos, e nesse momento Sonntag veio do hospital a dar pontapés no ar. Estava bêbedo», disse uma prisioneira chamada Maria Apfelkammer. Estava também bêbedo quando noutra ocasião andou de bicicleta à volta da mesa de operações. As tolices de Sonntag enfureciam Koegel. Como médicochefe, Sonntag recusava-se a reconhecer a autoridade de Koegel. Considerava o comandante da SS ordinário e rude, assim como a maior parte dos seus subordinados. Detestava particularmente Koegel por o impedir de viver na urbanização junto ao lago destinada aos SS. Como Sonntag era solteiro, Koegel insistia que ele deveria viver numa casa alugada em Fürstenberg. Walter Sonntag não só gostava de causar dor como não suportava ver outras pessoas a tratarem com bondade as prisioneiras doentes ou em sofrimento. Um dia, apanhou uma mulher chamada Vera Mahnke a tentar enfiar um pedaço de pão pelo arame a uma amiga judia no Strafblock. «O Dr. Sonntag estava a passar e sem perguntar o que eu estava a fazer berrou: “Sua porca velha. Seu monte de merda. Dás pão a uma judia, é?”, e começou a dar-me murros. Pontapeou-me e espancou-me até eu desmaiar.» Sonntag detestava particularmente os judeus. Da janela do seu gabinete via com repugnância as prisioneiras judias que descarregavam os tijolos a voltarem ao fim do dia, cobertas de poeira, encharcadas em suor e a arrastarem os seus socos de madeira. O verão era tão duro para o grupo da descarga de tijolos como o inverno. Estavam todas queimadas pelo sol e as que ainda não se

encontravam no campo de concentração há muito tempo apresentavam um aspeto lastimável. «Tinham o rosto, os braços e as pernas de um vermelho vivo e as mãos, pendentes ao lado do corpo, em carne viva e a sangrar», recordou Doris Maase. Por vezes, a chefe do grupo de descarga dos tijolos parava na Revier para pedir ligaduras, mas sabiam que não deviam fazê-lo se Sonntag lá estivesse. E mesmo que lhes fossem dadas ligaduras, como elas nunca eram mudadas, daí a dias as feridas supuravam e ficavam com larvas. Um dia, Erika Buchmann viu uma mulher idosa chegar ao hospital a rastejar de gatas. «Era uma visão terrível. As ligaduras pendiam-lhe em farrapos. Mas Sonntag proibiu que a ajudássemos.» Numa outra ocasião, Olga Benario ia a passar. Tinha as mãos esfaceladas e a sangrar, mas em vez de a insultar ou de a pontapear, para espanto de toda a gente Sonntag pareceu apiedar-se dela e ofereceu-lhe ajuda. Ao fim de dois anos no campo de concentração, Olga tinha causado uma viva impressão em muitos dos elementos do pessoal, assim como nas outras prisioneiras. Talvez Sonntag tivesse visto a sua figura alta e morena na Lagerstrasse, a conversar com Doris Maase. Claramente, tinha-lhe chamado a atenção a algum momento. «Sonntag, o grande patife, permitiu-lhe que usasse luvas», recordou Maria Wiedmaier. Sonntag revelava também interesse, e até mesmo um respeito relutante, por certas prisioneiras que trabalhavam na Revier. Embora Doris Maase fosse meio judia, ele recorria à sua experiência médica. «A Maase, a Maase, onde é que está a Maase?», chamava, como outros antes dele. Nomeou Erika Buchmann sua secretária pessoal e raramente permitia que se ausentasse, tão dependente estava das suas capacidades. Também não conseguia ocultar a sua adoração pela jornalista checa Milena Jesenska, cuja atenção andava sempre a procurar atrair. Um dia, ofereceu-lhe as sobras do seu pequenoalmoço, que ela recusou sem lhe agradecer. Num outro dia, fê-la parar no corredor e fez-lhe cócegas no queixo com a sua bengala de

bambu, e, para seu grande espanto, Milena agarrou na bengala e atirou-a ao chão. Milena contou mais tarde como Sonntag a fitou e lhe viu no rosto a fúria e o ódio. Depois desse incidente, ele desistiu das suas abordagens, mas continuou a fazer vista grossa quando Milena ajudava as prisioneiras. As prisioneiras que trabalhavam para Sonntag indubitavelmente adquiriam alguma influência e até poder. Maase levava medicamentos da enfermaria à socapa. Milena trocava por vezes fichas de mulheres com doenças venéreas para as poupar à faca de Sonntag. Buchmann arranjava maneira de dispensar prisioneiras doentes dos grupos de trabalho. No entanto, o preço que pagavam por esta possibilidade de ajudar as outras prisioneiras era elevado: na maior parte do tempo, eram obrigadas a ajudar Sonntag. Tinham de ficar ao seu lado a segurar na seringa, a passar-lhe instrumentos cirúrgicos, a preencher fichas para Berlim e a elaborar as suas listas. Depois da visita de Himmler em janeiro de 1941, Sonntag começou a manter novas listas. Ao princípio, elaborava listas de mulheres com gonorreia e sífilis, procurando encontrar uma cura para essas doenças. Não existem registos de como conduzia as suas experiências, mas toda a gente sabia que estavam a decorrer. Cabia a Milena Jesenska a manutenção do ficheiro das mulheres que sofriam de doenças venéreas. De cada vez que uma nova prisioneira chegava com a suspeita de uma infeção, recolhia-se uma amostra de sangue, que era enviada para um laboratório em Berlim. Quando chegavam os resultados, Milena arquivava-os, e, como estava a par das «curas bárbaras» de Sonntag, tentava, sempre que possível, falsificar os resultados ou perdê-los no sistema. Sonntag começara também a fazer experiências de esterilização. Nesta fase, várias novas propostas de esterilização em massa estavam a ser apresentadas a Himmler. Um cientista afirmava que a seiva de uma planta chamada Caladium seguinum causava a esterilidade, e Himmler sentia-se tão interessado pela ideia que mandou cultivar a planta numa estufa para a experimentar em prisioneiras. Uma outra opção explorada consistia em esterilizar

homens e mulheres expondo-os a doses elevadas de radiação. Himmler depositava mais fé no trabalho do Professor Carl Clauberg, que estava a tentar esterilizar mulheres injetando-lhes um produto irritante no útero. Himmler perguntara a Clauberg quanto tempo demoraria a esterilizar mil mulheres e sugeriria mais tarde que ele fizesse a experiência em Ravensbrück. Entretanto, Sonntag usava os seus próprios métodos — quais seriam, mais uma vez, não sabemos — mas as suas cobaias parecem ter sido escolhidas aleatoriamente. Doris Maase observou que, como Sonntag não suportava a ideia de as prisioneiras polacas e checas não saberem falar alemão, quando uma delas dizia que não falava alemão ele dizia: «É louca» e escolhia-a para ser esterilizada. Hanna Sturm recordava-se de ter levado duas crianças ciganas a Sonntag, com idades entre os nove e os onze anos, que ele tentou esterilizar. Depois da operação, ela levou-as de volta ao seu bloco. «Cambaleavam pela estrada do campo de concentração. Um ou dois dias depois, foram encontradas mortas na cama.» Chegava um número cada vez mais elevado de mulheres grávidas a Ravensbrück. Desde os primeiros dias, Himmler insistira que não deveria haver nascimentos no campo, e todas as grávidas eram levadas para um hospital no exterior para darem à luz, mas o aumento do número de prisioneiras significava que o rastreio nem sempre era eficaz. Por consequência, tornou-se necessário realizar abortos na Revier. Sem pessoal habilitado disponível, Schwester Lisa realizava as operações, que, frequentemente, corriam cruelmente mal. Schwester Lisa «tinha sucumbido ao feitiço de Sonntag», como diziam as prisioneiras, parecia sentir prazer nas tarefas mais cruéis e gabava-se dos resultados às outras, como recordou Erika Buchmann: Lembro-me de um dia uma jovem cigana particularmente bonita ter vindo para a sala de operações para dar à luz e de ouvirmos dizer que tinha morrido. A enfermeira Lisa exigiu que eu viesse ver o que tinha acontecido. Eu recusei-me, mas a enfermeira Lisa agarrou-me no braço e atirou-me para a frente da cama, arrancou o lençol do corpo e eu fui obrigada a ver o que não queria ver. Acredito que uma mulher não pode fazer pior aos vivos ou aos mortos do que a enfermeira Lisa tinha feito. Era puro sadismo. Ainda consigo ver o sorriso sardónico da enfermeira Lisa perante o horror

que eu senti.

No entanto, Schwester Lisa não foi a única a sucumbir ao feitiço do Dr. Sonntag. Alguns meses depois de ele chegar, algumas prisioneiras repararam que a médica Gerda Weyand começou a comportar-se de modo diferente. Ao princípio, a atitude de Weyand para com as prisioneiras era considerada aceitável, até mesmo amigável para algumas, mas depois da chegada de Sonntag ela tornou-se indiferente aos seus deveres médicos e parecia não notar a dor das pacientes. Não tardou a tornar-se evidente que Sonntag e Weyand se tinham envolvido numa relação amorosa. Nos preliminares do julgamento de Hamburgo, Weyand escreveu a Erika pedindo-lhe que testemunhasse a seu favor. Erika recusou-se e recordou a Weyand as atrocidades em que ela tinha participado. «Eu também não poderia esquecer as alturas no hospital, no consultório do Dr. Sonntag, em que vocês os dois se divertiam horas a fio muito ruidosamente e sem se importarem com o facto de, do outro lado da parede, estarem pessoas gravemente doentes, com febre, que ansiavam por descanso.» No verão de 1941, Gerda Weyand e Walter Sonntag casaram-se. Isso proporcionou a Sonntag um estatuto mais elevado no seio da SS, e o casal mudou-se para uma casa bem equipada e com aquecimento central na encosta relvada acima do lago. Nesta altura, o enclave da SS, com bonitos jardins, era um local idílico para criar uma família. Os casais podiam deixar os filhos num infantário junto à margem do lago, ao cuidado de prisioneiras testemunhas de Jeová, enquanto iam trabalhar no campo de concentração, que ficava a apenas alguns minutos a pé. As crianças em idade escolar frequentavam a escola local em Fürstenberg. Os Sonntag, como outras famílias da SS, tinham empregadas domésticas, selecionadas entre as prisioneiras de mais confiança. Escolheram Hanna Sturm para sua criada. Gerda escreveu a Walter algum tempo depois: «Nunca fui tão feliz como em Ravensbrück», mas Hanna diria mais tarde que via frequentemente Sonntag bater em Gerda. Por vezes, ele bebia tanto que se esquecia da presença

de Hanna enquanto espancava a sua nova mulher. Uma visão da vida dos Sonntag em Ravensbrück é proporcionada pelo próprio Walter Sonntag em cartas que escreveu a Gerda depois de deixar o campo de concentração em dezembro de 1941. Por essa altura, Max Koegel, que detestava Sonntag, conseguiu obter a sua demissão; ele foi enviado para a frente de combate em Leninegrado. No entanto, os Sonntag recusaram-se a abdicar da sua casa da SS, apesar dos esforços de Koegel para os despejar. Gerda Weyand, grávida do seu primeiro filho, ficou em Ravensbrück para dar à luz. Nas cartas enviadas de Leninegrado, Walter Sonntag falava frequentemente da sua vida em Ravensbrück. Chamava à mulher «Rechonchuda» e fazia-lhe perguntas sobre a casa, a mobília, o automóvel e as galinhas. «Minha querida e boa Rechonchuda... assegura-te de que tudo está em ordem. O automóvel está na garagem? As janelas estão bem trancadas? Como vais organizar o cão, as galinhas e o pombal?» Pergunta se ela recebeu um recibo de 200 marcos do vinho que ele tinha comprado na loja de vinhos local. Numa das cartas, mostra-se indignado por Gerda estar a ser tratada ao mesmo nível de outras esposas de funcionários da SS e até mesmo das guardas. «Tem sempre presente o grau de estudos delas», escreve. «Querida Rechonchuda, nós estamos a milhas de distância dessa gentalha. Quando o Koegel e outros te põem ao mesmo nível das guardas, tendo em consideração os estudos delas e o meio de que provêm as esposas, não te surpreendas.» Com a passagem do tempo, estas cartas adquirem um tom ameaçador. Pergunta à mulher porque é que ela não lhe escreveu — «É de mais, teres de me escrever?» E se ela lhe arranjasse um casaco para o inverno de Leninegrado? A conta do vinho foi paga? A dada altura, em meados de 1941, o Dr. Sonntag começou a matar. Não se provou se Gerda Weyand sabia que o seu marido andava a assassinar pessoas a sangue-frio, mas Doris Maase, que fazia o turno da noite na Revier, testemunhou a sua entrada no edifício com uma seringa. Quando ele injetava uma paciente por

razões médicas, pedia a assistência de Doris. Nessas outras ocasiões, não o fazia. «Ouvíamo-lo entrar num quarto e na manhã seguinte encontrávamos um cadáver nesse quarto.» No verão de 1941, o número de mortes de prisioneiras de Ravensbrück — arrasadas pelo trabalho escravo, debilitadas por doenças, espancadas ou geladas até à morte — aumentava a um ritmo constante. Agora, pela primeira vez, estavam a ocorrer execuções planeadas. Sonntag andava a injetar uma substância letal, provavelmente petróleo ou fenol. Mais uma vez, não existem provas de que Sonntag estivesse a cumprir ordens diretas, mas parece provável que assim fosse e que essas ordens viessem de Himmler. Durante a primavera de 1941, Himmler tinha avançado rapidamente com os seus planos de alargar o programa de eutanásia aos campos de concentração. O seu pedido ao chefe do programa T4, Philipp Bouhler, para usar o seu pessoal e as suas instalações para matar «bocas inúteis» tinha sido prontamente deferido. Já desde abril de 1941 que estavam a ser selecionados prisioneiros de Sachsenhausen para serem exterminados com gás e planeava-se incluir outros campos de concentração no programa. Entretanto, os médicos nos outros campos de concentração de Himmler recebiam ordens para começarem a matar bocas inúteis — os loucos e os doentes incuráveis — por meio de injeções. Uma outra prisioneira que testemunhou as injeções foi Bertha Teege, a comunista que, como «mensageira do campo», tinha a oportunidade de ver mais do que a maioria. Um dia, mandaram-me ir ao bloco de castigo com a guarda, a Zimmer. Disseramnos que uma das prisioneiras tinha esvaziado os intestinos. A Zimmer disse: «Die Sau muss weg» — A porca tem de ir. A Zimmer mandou-me levar a mulher para o hospital. Ali, foi posta numa cama. Na manhã seguinte, estava morta. Eu vi o cadáver dela. Mataram-na com uma injeção.

Um dia, uma jovem prostituta do grupo de carpintaria de Hanna Sturm disse que já não conseguia trabalhar mais, ou «rebentava-lhe a cabeça». Disse a Hanna que Sonntag a tinha chamado e lhe tinha tirado uma amostra de tecido vaginal, dizendo-lhe que era para um

teste a doenças venéreas. Ordenou-lhe que se virasse, dizendo «Chegou a tua hora», e injetou-a no cimo da coxa. Daí a algumas horas, a mulher estava morta. «Mostrei o corpo a uma prisioneira polaca que era médica. Estava completamente deformado. Ela disse que tinham injetado petróleo na moça.» O comportamento de Sonntag por essa altura parecia cada vez mais sinistro a várias prisioneiras, não só por causa dos assassínios, mas também pelo que ele andava a dizer às pessoas. Era como se tivesse um segredo que lhe custasse guardar. Uma prisioneira que foi consultá-lo por essa altura por causa de um ferimento no pé recordou como, «num momento de embriaguez», ele lhe confidenciou, gabando-se, que passava os dias a assinar certidões de óbito, mas que, «um dia, chegará o dia em que mataremos toda a gente». Numa outra ocasião, ordenou à sua secretária pessoal, Erika Buchmann, que percorresse os blocos e elaborasse uma lista de todas as prisioneiras de triângulo verde e preto — as criminosas e as associais — que tivessem tatuagens. «Eu tinha de ver as tatuagens e dizer-lhe de que tipo eram — cabeça de serpente, etc. Fazia isto aos domingos. Perguntei-lhe duas ou três vezes para que é que ele queria saber. Ele sorriu e disse: “Há sempre uso para pequenas imagens bonitas.”» Erika declarou mais tarde que na altura nunca falou às outras prisioneiras daquelas listas de tatuagens; as prisioneiras que trabalhavam no hospital raramente falavam do que viam. Se fossem ouvidas por alguma informadora, perderiam o seu posto. De qualquer forma, não tinham as condições necessárias para compreenderem o significado do que testemunhavam. Quando Sonntag ordenou a Erika que elaborasse uma lista das tatuagens das prisioneiras, era como se estivesse a insinuar o que viria a acontecer. Mas só depois da guerra, no julgamento de Buchenwald, é que ela ficou a saber que a SS usou a pele tatuada de prisioneiras assassinadas para fazer marcadores para livros, carteiras e outros emblemas. No final do verão, já várias mulheres do grupo dos tijolos tinham

sucumbido à onda de assassínios de Sonntag. A maior parte adoecera com o esforço de cavar areia ou descarregar tijolos; já não tinham préstimo para o trabalho. Um dia, Olga voltou do trabalho com as descarregadoras de tijolo trazendo nos braços o corpo esquelético de uma mulher, tão leve que poderia ser o de uma criança. Olga aproximou-se do hospital, provavelmente com a esperança de encontrar Doris Maase, mas viu-se confrontada com o Dr. Sonntag, que a tinha visto da janela do seu consultório. Qualquer que fosse a centelha de humanidade que levara Sonntag em tempos a tratar as mãos de Olga e a dar-lhe umas luvas, a visão de Olga — uma judia — agora à procura de misericórdia para a figura exausta nos seus braços teve um efeito muito diferente sobre o médico. O pedido de Olga foi quanto bastou para desencadear em Sonntag uma raiva incontrolada, e ele saiu de rompante do hospital a berrar «porca judia» e «cadela judia» e a esbracejar. Pontapeou Olga, atirando-a ao chão, a ela e à mulher que trazia nos braços. Segundo a sua amiga Maria Wiedmaier, Olga foi severamente espancada pelo próprio Sonntag. Foi levada pelas guardas e condenada a mais um período de detenção solitária no bunker. Não se sabe ao certo quanto tempo passou no bunker desta vez, mas Maria Wiedmaier disse que foram várias semanas. As cartas de Olga, como de costume, proporcionam pistas sobre a cronologia dos acontecimentos. Em maio de 1941, escreveu a Carlos: «Sobrevive-se com a esperança do outono para a primavera e depois pensa-se de novo para a frente, no inverno que virá. Quanto tempo ainda? Essa é a única questão ardente diante de uma pessoa.» Depois de maio, no entanto, não há mais cartas para Carlos ou para Leocadia até setembro, o que sugere que o ataque de Sonntag a Olga e à mulher débil nos seus braços terá ocorrido durante o mês de junho. Certamente, Olga passou aquele verão numa cela escura e solitária no bunker do campo, sem poder escrever ou receber cartas e completamente só. Não existem registos de quem era a mulher que Olga levou para o

hospital ou do que lhe aconteceu. Mas ela é recordada nos nossos dias como a figura esquelética nos braços de Olga em Tragende, a estátua junto ao lago de Ravensbrück.

13 Como a ligação de Häschen a Himmler não agradava aos pais dela, ela insistiu que o relacionamento fosse conduzido em segredo.

CAPÍTULO 8 DOUTOR MENNECKE Durante três semanas no verão de 1941, Ravensbrück pareceu enfeitiçado. As guardas retiraram-se e fecharam os portões à chave atrás de si. Tudo tombou em silêncio. As prisioneiras ouviam o canto das aves. Bertha Teege, recentemente promovida a chefe das Kapos (Lagerälteste), disse que tudo começou quando uma das associais começou a arrastar uma perna, sem conseguir mexê-la. Ao fim de algumas horas, dezenas de outras prisioneiras estavam coxas. «As mulheres pareciam estar paralisadas», Bertha informou Langefeld. Quando a paralisia se alastrou, a SS entrou em pânico, receando a poliomielite. As prisioneiras não estavam com medo. As pernas estavam a inchar-lhes devido aos novos turnos noturnos na oficina de alfaiataria, diziam algumas. Outras viam aquele sintoma como um sinal de histeria. Max Koegel deitou as culpas para as experiências do médico. Ouviram-no insultar Sonntag, acusando-o de infetar todo o campo. À uma da madrugada da noite seguinte, Bertha Teege foi acordada e entregaram-lhe as chaves da cozinha e do Strafblock. O campo de concentração estava agora de quarentena, ficou a saber-se, e ela ficaria encarregada dele — «Aquilo mostrava a que ponto as autoridades estavam em pânico.» O transporte de prisioneiras para dentro e para fora do campo foi suspenso até novas ordens e as mulheres confinadas aos seus blocos. Nenhum elemento do pessoal da SS entraria no complexo até a misteriosa epidemia desaparecer. Ao longo dos dias seguintes instalou-se uma estranha paz. As associais «paralisadas» foram reunidas num só bloco, que foi isolado, e todas as outras prisioneiras receberam o aviso de que deveriam manter-se afastadas. Uma das prisioneiras, no entanto, não tinha

qualquer intenção de evitar as mulheres afetadas. Milena Jesenska, a funcionária administrativa do hospital que tão audazmente rejeitara as abordagens de Sonntag, tinha travado amizade com muitas das prisioneiras doentes quando elas iam à Revier. Agora, queria ajudálas, e não havia ninguém para a impedir. No verão de 1941, Milena Jesenska era, provavelmente, uma das mulheres mais carismáticas no campo de concentração. Como sofria de artrite e de uma doença dos rins, à primeira vista parecia ter mais de quarenta e três anos, mas o seu espírito não estava vergado. O seu cabelo ruivo da cor do fogo era ainda espesso e comprido e nos olhos tinha a expressão de alguém que nunca obedecera a uma regra. Grete Buber-Neumann disse que ela tinha uma autoconfiança que parecia protegê-la dos ataques dos elementos da SS. As atitudes de acobardamento e de medo provocavam a violência das autoridades, mas na Appell Milena demorava sempre o tempo que lhe apetecia a perfilar-se, irritando a guarda de serviço, que poderia avançar para lhe dar uma bofetada, mas que recuava ao enfrentar o seu olhar. Milena fez também muitas admiradoras entre as prisioneiras. «No campo, as fracas sentiam-se frequentemente atraídas pelas que irradiavam força», disse Grete, que, embora não fosse fraca, estava emocionalmente traumatizada e se sentia ela própria atraída por Milena. Neste período de enfeitiçamento, a amizade das duas mulheres consolidou-se e — para Grete — transformou-se num amor profundo e duradouro. Cada dia, Grete seguia Milena para o «bloco da epidemia». Sentavam-se na soleira e conversavam ao sol de agosto. Foi aí que Grete ouviu Milena falar da sua vida na Praga dos anos 1920, da sua família checa abastada — da sua mãe culta e do seu pai, um professor de cirurgia oral na universidade dessa cidade. Ficou a conhecer uma Milena mais jovem, a escritora provocadora com um encanto anárquico que perguntava aos seus leitores numa peça jornalística: «Já alguma vez viram o rosto de um prisioneiro por trás das grades? A liberdade está do outro lado da janela. O céu está do

outro lado da janela. Do outro lado da porta só há realidade.» Em 1922, Milena estava já a conviver com os escritores judaicoalemães da Checoslováquia atraídos ao convívio dos cafés de Praga. Conheceu Franz Kafka e leu as suas obras, que eram pouco conhecidas. O caso amoroso entre os dois iniciou-se em 1922, no ano em que ele começou a escrever O Castelo, no qual um homem chamado K chega a uma vila governada por uma sinistra burocracia sediada num castelo das redondezas. Era de A Metamorfose, de Kafka, no entanto, que Milena mais falava a Grete; ela tinha traduzido essa novela para checo. Contou a Grete a história de Gregor Samsa, o caixeiro-viajante incompreendido que na história de Kafka se transforma num enorme inseto e é mantido pela sua família escondido debaixo da cama, por ela se envergonhar dele. Na sua versão, Milena enfeitava certas partes, particularmente a história da doença do inseto, «e de como, com uma ferida nas costas infetada pelo pó e pelos ácaros, ele é deixado a morrer numa solidão desgraçada». A ligação de Milena com Kafka, intensa e torturada, não podia durar. Durante o tempo em que estiveram juntos, o romancista encontrava-se doente com tuberculose, e em 1924 faleceu. A partir desse momento, Milena empenhou-se no jornalismo e na luta pela justiça social. Como tantas outras pessoas à sua volta, dedicou-se ao comunismo, até em meados dos anos 1930 ser uma das primeiras do seu grupo a prestar atenção às notícias que chegavam a Praga das purgas de Estaline. Em 1937, Milena, casada por duas vezes e com uma filha, já tinha rasgado o seu cartão de membro do Partido Comunista, embora o seu ódio pelo fascismo se tornasse mais forte a cada dia que passava, com a iminência da invasão alemã. Quando as forças de Hitler marcharam para o Sudetenland, os textos antifascistas de Milena eram já tão vociferantes que a sua detenção era inevitável, e, juntamente com a maioria dos intelectuais de Praga, foi presa pela Gestapo. No campo de concentração, a deceção partilhada com o sonho de

Estaline aproximou Milena e Grete, mas tinham mais em comum para além da desilusão política. Grete não só se sentia fascinada pelo passado exótico de Milena como também pelos seus modos. Milena compreendera rapidamente que era Grete, não ela, quem tinha a história mais extraordinária de todas, porque aos quarenta e um anos Grete Buber-Neumann já tinha sido feita prisioneira pelos dois ditadores mais monstruosos do mundo. Milena, disse Grete, «tinha uma capacidade maravilhosa de fazer perguntas e conseguia dar corpo à recordação de coisas que eu tinha esquecido há muito. Não se contentava em ouvir contar os acontecimentos, queria ver as pessoas que eu tinha conhecido na minha longa marcha pelas prisões soviéticas». E quanto mais as duas mulheres conversavam, tanto mais Milena via que, «quando tudo terminasse», elas deveriam escrever um livro. «A ideia dela era escrever um livro sobre os campos de concentração de ambas as ditaduras: milhões de seres humanos reduzidos à escravatura em nome do socialismo num e no outro em nome do lucro e da glória da raça superior. Chamar-se-ia “A Era dos Campos de Concentração”.» Essa conversa ocorreu em 1941, antes de serem construídas as câmaras de gás de Auschwitz e antes de o mundo exterior fazer uma ideia clara do Gulag de Estaline. Para Grete, no entanto, Milena não só era uma alma gémea como uma aliada. Mais de um ano depois de Grete ter chegado do Gulag, as comunistas do campo de concentração ainda a marginalizavam, e agora, segundo o que contou, rejeitavam igualmente Milena, por ela se atrever a conviver com esta traidora trotskista, Buber-Neumann, que espalhava mentiras sobre a União Soviética. Que os sentimentos estivessem inflamados no verão de 1941 não é surpresa; em junho, Hitler tinha finalmente rasgado o seu pacto com Estaline e marchou para a Rússia com uma força maciça — a Operação Barbarossa. Uma vaga de otimismo dominava agora as prisioneiras comunistas, convencidas de que o Exército Vermelho daria luta e que elas seriam libertadas dentro de pouco tempo. Milena e Grete não tinham assim tanta certeza disso. Segundo Grete, o seu

ceticismo provocava mais ataques das comunistas da linha dura, que lhes chamavam «inimigas da classe». Embora certos elementos do aparelho comunista se tenham de facto voltado contra Milena no campo de concentração, a comunidade mais alargada de prisioneiras checas — muitas, tal como ela, eram escritoras, bailarinas, músicas ou artistas, frequentemente mulheres que ela conhecia há muitos anos — adorava-a pelos seus modos encantadores e pela sua coragem, fossem quais fossem as suas divergências políticas. Em outubro de 1941, uma resistente checa chamada Anicka Kvapilová, anteriormente chefe do departamento de Música da Biblioteca Municipal de Praga, chegou a Ravensbrück. Em choque e desespero junto à Revier, olhou para cima e viu o rosto sorridente de Milena voltado para ela e para outras recém-chegadas horrorizadas, que aguardavam o exame médico. Como recordou Anicka: «A mulher parou por um momento nos degraus do bloco da Revier, sorriu-nos e disse em checo: “Bem-vindas, pequenas.”» Anicka não conhecia Milena de Praga, mas estava a par da sua reputação e adivinhou quem era. «O cabelo dela era de um ruivo cintilante. No meio de toda aquela desumanidade, esta foi a primeira coisa humana que aconteceu.» Durante aquelas semanas de verdadeiro encanto no verão de 1941, outras prisioneiras desfrutaram também das suas liberdades. As prisioneiras faziam passeios e estabeleceram contacto com as suas camaradas judias, ou visitavam as doentes. A comunista Jozka Jaburkova escreveu uma série de contos de fadas para a sua amiga Tilde Klose, que estava doente com tuberculose. No bloco das prisioneiras judias, Olga passava o tempo a fazer o seu miniatlas. Como guarda-chefe destacada, Bertha Teege permitia às prisioneiras que aproveitassem a quarentena. «As testemunhas de Jeová sacaram da sua Bíblia ilegal», recordou ela, «as associais cantavam a plenos pulmões, as criminosas profissionais implicavam umas com as outras, as ciganas dançavam, faziam acrobacias, zangavam-se e faziam as pazes logo a seguir, e as polacas visitavam-se umas às outras.»

A SS não tinha problemas em deixar que as suas prisioneiras de confiança dirigissem o campo de concentração. Tal era a confiança da SS em mulheres como Bertha Teege e outras prisioneiras nomeadas para integrarem o pessoal que as guardas simplesmente abandonaram o campo de concentração, com a certeza de que as coisas seriam dirigidas eficientemente e o campo mantido sob controlo. Esta demonstração de confiança revela até que ponto a SS tinha conseguido delegar com sucesso a gestão do campo no dia a dia às próprias prisioneiras. Desde a «tomada de poder» comunista do ano anterior, cada vez mais prisioneiras políticas eram destacadas para trabalhos úteis. Agora, as prisioneiras não só dirigiam os blocos como trabalhavam na cozinha, serviam refeições na cantina da SS e asseguravam o funcionamento do infantário da SS. Outras trabalhavam na Effektenkammer; e várias, na Revier como enfermeiras, parteiras e técnicas. Não eram só as alemãs e as austríacas que arranjavam bons empregos; profissionais de saúde polacas trabalhavam na sala de radiografias da Revier, e havia checas no laboratório. A subida mais rápida no recrutamento tinha-se verificado no setor administrativo do campo de concentração. Com o número de prisioneiras a aumentar, também a burocracia do campo aumentara, e Koegel precisava de pessoal de escritório. Dado que os trabalhos de datilógrafa, estenógrafa, guarda-livros e arquivista eram típicos de mulheres, havia muitas prisioneiras em Ravensbrück com as qualificações necessárias para preencher esses postos. Mulheres que em tempos tinham datilografado discursos para membros do conselho ou tinham sido guarda-livros de sindicatos escreviam agora à máquina listas de chegadas ou passavam notas de honorários a agricultores locais pelos serviços de prisioneiras. Perto das instalações do comandante, um escritório de datilógrafas, Schreibstube, era inteiramente constituído por prisioneiras. Se quisessem, estas trabalhadoras podiam usar os seus privilégios para bom fim: podiam informar as Blockovas sobre as novas chegadas ou avisá-las de cortes previstos nas rações ou de

visitas de pessoas importantes. Estas prisioneiras do Schreibstube eram altamente privilegiadas. Como trabalhavam ao lado do pessoal da SS, tinham de se lavar com mais frequência do que as prisioneiras comuns, andavam mais bem vestidas e comiam melhor. Todas elas viviam no Bloco 1, onde as condições eram melhores e onde muito pessoal prisioneiro mais valorizado — Blockovas, Stubovas, as que trabalhavam na Revier e outras — também vivia. Com contactos nos escritórios da administração, as Blockovas conseguiam igualmente ter mais influência e poder, e no verão de 1941 nenhuma tinha mais autoridade do que Rosa Jochmann, a líder sindical austríaca, agora Blockova do Bloco 1. Embora inicialmente Rosa tivesse de ser persuadida por Käthe Leichter a aceitar o posto de Blockova, acabara por compreender os seus benefícios. Nesta altura, «todo o campo estava nas mãos das prisioneiras», diria mais tarde. Era tal o poder de Rosa que quando, numa ocasião, uma guarda jovem correu para Langefeld a comunicar uma queixa sem importância contra o Bloco 1, Rosa foi ter com Langefeld e apresentou queixa da guarda, dizendo que ela tinha pisado o risco, e foi a guarda quem foi repreendida. Rosa Jochmann «era considerada um modelo» segundo várias prisioneiras. Tinha-se revelado tão competente na gestão do Bloco 1 que este era agora sempre o selecionado para mostrar às visitas; os visitantes do exterior — nazis importantes, diplomatas de países neutros, industriais, membros da Cruz Vermelha alemã ou autoridades da Wehrmacht — eram acompanhados numa visita ao bloco de Rosa para verem o quão civilizado era realmente um campo de concentração. No outono de 1941, no entanto, as prisioneiras com mais poder no campo de concentração eram as duas Lagerälteste (chefes das Kapos) Bertha Teege e Luise Mauer, ambas comunistas alemãs. Bertha ocupava o posto desde janeiro de 1941, mas no verão era tal a carga de trabalho que as duas mulheres passaram a partilhar a função. Frequentemente vistas ao lado de Langefeld ou a correrem pela Lagerstrasse para entregarem as mensagens dela, as mulheres

eram invariavelmente recordadas como uma dupla. À primeira vista, a ascensão ao poder de Bertha e de Luise é difícil de explicar; nada nos seus antecedentes as destaca de outras prisioneiras comunistas alemãs comuns. Bertha, filha de um fabricante de mobiliário, trabalhava como guarda-livros antes da guerra, aderiu à oposição comunista e casou-se com um membro comunista do parlamento local. Tinha dois filhos. Luise Mauer, modista, casara-se também com um político comunista e trabalhou para o partido como mensageira. Luise tinha uma filha. As histórias de detenção e encarceramento destas mulheres eram também similares às de muitas outras, e à chegada ao campo de concentração não tinham causado uma impressão fora do comum. No entanto, aos olhos de Langefeld Bertha Teege e Luise Mauer eram recrutas óbvias. As comunistas sabiam cumprir ordens e, desde o «golpe», as duas tinham-se revelado trabalhadoras de confiança. Ambas eram capazes; com trinta e muitos anos de idade, tinham sofrido anos de prisão e de separação dos seus filhos antes ainda de virem para o campo de concentração: a sua capacidade de resistência tinha sido completamente esmagada. Luise Mauer desmoralizou-se ainda mais em Ravensbrück, com longas temporadas em grupos de trabalho mais duros. Ao chegar ao campo de concentração, um ano mais tarde, Bertha Teege lançou um olhar aos castigos infligidos às prisioneiras mais difíceis e decidiu-se rapidamente pela sobrevivência. Pouco depois de chegar, Bertha viu o interior do bunker, onde vários cadáveres tinham gelado e estavam colados ao chão de pedra das celas. «Foram chamadas funcionárias do hospital para “raspar os corpos mortos do chão”», recordou ela, acrescentando que compreendeu nessa altura: «É melhor não mostrar o horror que se sente, ou também se é encarcerada.» No início de 1941, quando ocorreu a primeira execução, Teege foi recrutada para ajudar, o que fez prontamente. A vítima era uma polaca chamada Wanda Maciejewska, condenada à morte por atos de «terrorismo» cometidos na Polónia. A tarefa era escoltar Wanda

ao local, perto do bunker, onde ela iria ser executada a tiro. A tarefa seguinte foi despir o cadáver, que foi levado para o crematório de Fürstenberg no carro funerário do campo de concentração. Teege levou as roupas ensanguentadas da mulher para a Effektenkammer, para serem lavadas e voltadas a usar. Em agosto de 1941, tal era já a confiança que Langefeld depositava em Bertha Teege que, quando a SS abandonou o campo devido ao receio da poliomielite, ela entregou-lhe as chaves. Três semanas depois, chegou o momento de as devolver. A epidemia terminou tão abruptamente como tinha começado, causada talvez por uma histeria de massas ou por um truque deliberado montado pelas prisioneiras associais para criar pânico. Um novo pânico estava prestes a eclodir, e desta vez a causa seria real. Ao longo do início do outono de 1941 — Doris Maase disse que começou em julho —, o Dr. Sonntag elaborou mais listas, mas ninguém sabia porquê. Chegavam boatos das secretárias do Schreibstube de que ele estava a agir em cumprimento direto de ordens de Berlim. As selecionadas eram na sua maioria as idosas e as doentes. Teege e Mauer conduziram as mulheres aos balneários, onde lhes foi ordenado que se despissem e desfilassem nuas perante Sonntag. A seguir, regressaram aos seus blocos e mais mulheres foram chamadas aos balneários. Muitas delas sofriam de sífilis ou de gonorreia. Algumas prisioneiras do bloco judeu foram chamadas. Também foram selecionadas prisioneiras com tuberculose, incluindo a Kapo do grupo de trabalho das «celebridades». Ninguém sabia quem iria a seguir. A incerteza era uma das piores coisas; até mesmo as mais pequenas alterações provocavam ansiedade. Desde a invasão da URSS em junho, havia mais incerteza do que nunca. As rações estavam cada vez mais reduzidas; havia boatos de que o pão poderia acabar. A loja da cantina não tinha praticamente nada à venda e o correio das prisioneiras estava prestes a ser suspenso, ou era o que constava.

A sobrelotação causava mais incertezas. Chegavam cada vez mais prisioneiras — a maioria polacas, mas também prisioneiras políticas e associais alemãs —, fazendo subir o número para perto das 7000 prisioneiras. E a cada semana havia mulheres que tinham de mudar de bloco para alojar as recém-chegadas, o que as afastava das suas amigas. Algumas partilhavam até um colchão. Os duches tinham sido reduzidos a um de quatro em quatro semanas. Cada prisioneira tinha um cobertor, em vez dos dois anteriores, e o inverno estava a chegar. As mulheres das listas de Sonntag iam ser libertadas, dizia-se. Estavam a ocorrer libertações, certamente: para evitar mais «epidemias», várias mulheres com tuberculose foram informadas de que iriam ser libertadas, entre elas três comunistas, Lotte Henschel, Tilde Klose e Lina Bertram. A secretária da Revier, Erika Buchmann, foi libertada no verão, aparentemente numa das decisões caprichosas de Himmler. Em julho, Doris Maase saiu em liberdade. As prisioneiras que trabalhavam na Effektenkammer, no entanto, não sabiam nada sobre as libertações relacionadas com as listas de Sonntag, e seriam as primeiras a saber, porque o vestuário das mulheres que iam ser libertadas era sempre tirado do depósito com antecedência. Por outro lado, a devolução das roupas não era garantia de libertação, como o pessoal da Effektenkammer sabia igualmente. A resistente polaca Wanda Maciejewska, executada a tiro em janeiro, foi levada a recolher as suas roupas e ordenaram-lhe que as vestisse imediatamente antes da sua execução — uma charada destinada a disfarçar a sua morte iminente. Até à terceira semana de novembro, o Dr. Sonntag tinha já selecionado mais de 250 nomes para as suas listas. Em 19 de novembro, um homem de fato chegou de Berlim. Ninguém sabia quem ele era, mas Emmy Handke, que era secretária na Revier, descobriu que se tratava de um psiquiatra. Alguém no Schreibstube ouviu dizer que ele tinha quarto reservado num hotel em Fürstenberg. Já se tinham passado quase nove meses desde que Himmler escrevera a Philipp Bouhler, o chefe da Chancelaria de Hitler, a

perguntar se poderia usar «o pessoal e as instalações do T4 para os campos de concentração». O pessoal eram os psiquiatras e os médicos usados para selecionar os deficientes para o extermínio da «eutanásia»; as instalações eram as câmaras de gás montadas no hospital do castelo para esse fim. O interesse de Himmler pelo uso das câmaras de gás do T4 resultava em grande medida da necessidade de libertar espaço nos campos de concentração. Com a nova iniciativa de usar os prisioneiros como mão de obra escrava nas indústrias da guerra, havia mais necessidade do que nunca de eliminar prisioneiros que não fossem capazes de trabalhar — as chamadas bocas inúteis. Poucas semanas depois da carta a Bouhler, o Reichsführer recebeu autorização para usar os recursos do T4. No entanto, esta nova série de extermínios por gás não deveria ser dirigida a partir dos gabinetes do T4 dentro da Chancelaria do Führer, mas do Inspetorado dos Campos de Concentração de Himmler, localizado em Oranienburg, nos arredores de Berlim, a norte. Daí ter sido inventado um novo nome para encobrir os extermínios: Sonderbehandlung 14f13. Sonderbehandlung — «tratamento especial» — era o eufemismo usado pela SS e pela polícia para os assassínios. No Inspetorado dos Campos de Concentração, o código «14f» era usado para indicar prisioneiros que morressem nos campos. As subdivisões «14f14» indicavam execuções e «14f8» suicídios. A nova, «14f13», indicava morte por gás. O programa adaptado 14f13 foi lançado na primavera com um ensaio no campo de concentração masculino de Sachsenhausen, mesmo ao lado do inspetorado de Himmler em Oranienburg. Em abril de 1941 chegou ali uma comissão médica para iniciar as seleções. Dada a fuga de informação sobre o extermínio por gás em Grafeneck cinco meses antes, o secretismo que rodeava a operação em Sachsenhausen era apertado, mas, graças a cartas escritas por um dos elementos da comissão médica, certos pormenores chegaram até aos nosso dias. Friedrich Mennecke, um psiquiatra do programa T4, escrevia todos

os dias à sua mulher, Eva, falando-lhe do seu trabalho em Sachsenhausen. Estava alojado no Hotel Eilers em Oranienburg, num «quarto grande e agradável», e os seus colegas de Tiergartenstrasse 4 deslocavam-se todos os dias àquele subúrbio no S-Bahn de Berlim. O seu trabalho era «muito, muito interessante» e ele tomava café e comia bolo todas as tardes com o comandante. Ao fim de quatro dias, Mennecke e os seus colegas já tinham «processado» entre 250 e 400 prisioneiros. Algumas semanas depois, os prisioneiros processados por Mennecke em Sachsenhausen foram levados para Sonnenstein, perto de Dresden, local de um outro centro de extermínio por gás, igualmente escondido dentro de um hospital. Este era outro ponto de viragem na escalada do programa nazi de extermínio: a primeira vez que prisioneiros de um campo de concentração eram mortos com gás. Um Himmler satisfeito ordenou ao seu pessoal do 14f13 — e aos seus colegas do T4 — que começassem a selecionar prisioneiros noutros campos para serem transportados para as câmaras de gás. Ao longo do verão, no entanto, desencadearam-se protestos entre o público e as mortes por gás foram suspensas. Foi um novo centro de extermínio por gás num hospital psiquiátrico em Hadamar, perto de Limburg, que reacendeu a perturbação. Estava instalado num priorado franciscano adaptado e tinham sido instaladas câmaras de gás numa das alas, mas, mais uma vez, o disfarce tinha corrido mal. Em junho de 1941, o bispo de Limburg escreveu: Várias vezes por semana, chegam autocarros a Hadamar com um número considerável de vítimas. As crianças da escola da vizinhança conhecem este veículo e dizem: «Aqui vem a caixa das mortes outra vez.» Ou as crianças chamam nomes umas às outras e dizem: «Tu és louca, vais ser mandada para o forno em Hadamar.» Ouvem-se pessoas de idade dizer: «Não me mandem para um hospital estatal. Depois de acabarem com os pobres de espírito, as próximas bocas inúteis de quem chegará a vez serão as pessoas de idade.»

Também era impossível disfarçar o grande número de urnas que subitamente se empilhavam nos crematórios por toda a Alemanha. Parentes em choque ficavam a saber que o seu ente querido,

usualmente internado num hospital psiquiátrico, tinha morrido inesperadamente; como não fora possível preservar o corpo devido ao risco de infeção, tinha sido cremado. Em muitos casos, as urnas eram enviadas à família errada, e algumas recebiam duas urnas. O que mais horrorizava, em especial os católicos, era saber que os seus entes queridos tinham sido cremados. Durante a primavera e o verão de 1941, desencadeou-se uma forma de protesto silencioso por toda a Alemanha. As famílias publicavam condolências idênticas nos jornais, exprimindo a sua incredulidade perante a notícia «incompreensível» que tinham recebido da morte súbita de um ente querido. Advogados falando em nome de famílias de pacientes ainda internados em hospitais psiquiátricos diziam que as famílias estavam «a ser tratadas como tolas» pelo «programa monstruoso» e pela «camuflagem esfarrapada» usada para encobrir o que estava a passar-se. Os responsáveis tinham «perdido o sentido da diferença entre o certo e o errado», escreveu um outro padre católico. Em 3 de agosto de 1941 surgiu o protesto mais sério até essa data. O conde Clemens August Graf von Galen, que era bispo de Münster, condenou do púlpito os assassinos: uma «vida improdutiva» não era razão para matar. Por esta altura, começavam a aparecer artigos na imprensa estrangeira, nomeadamente no New York Times, sobre os extermínios e o seu encobrimento. Os protestos apareciam num momento inoportuno para Hitler. Em 2 de junho de 1941, as forças alemãs entraram na Rússia e a atenção do Führer estava concentrada no Exército Vermelho de Estaline. As perturbações internas, por consequência, eram um contratempo. No entanto, não querendo provocar protestos mais alargados numa altura em que os seus projetos de mortandade estavam a amadurecer, Hitler declarou em agosto que suspenderia o programa de eutanásia a nível interno. Os protestos públicos não tardaram a dissipar-se e Hitler pôde concentrar-se na tarefa dominante: derrotar Estaline e aniquilar os três milhões de judeus da Rússia. Os esquadrões da morte da SS de Himmler, os SS

Einsatzgruppen, Grupos de Ação Especial, enviados atrás das forças alemãs, foram incumbidos da missão de lançar a operação de extermínio dos judeus russos, e durante o verão o Reichsführer deslocou-se aos territórios russos conquistados para supervisionar a operação. O principal método utilizado foi a execução a tiro em massa. Ao princípio, as ordens de Himmler eram para matar só os homens — talvez achasse que os seus esquadrões da morte não estavam suficientemente «endurecidos» ou «acostumados às suas próprias atrocidades», como disse um biógrafo, para disparar sobre mulheres e crianças. No final de julho, no entanto, as ordens de Himmler eram já que as mulheres e as crianças judias russas deveriam também ser executadas. Numa visita a Minsk em 15 de agosto, o Reichsführer pediu para assistir a uma execução em massa. Ficou de pé junto a uma trincheira e observou grupos de judeus e de resistentes — homens e mulheres — a serem mortos a tiro e a caírem em seguida numa vala diante de si. Um militar diria mais tarde: «Depois da primeira rodada de tiros, Himmler veio olhar pessoalmente para dentro da vala, observando que havia alguém que ainda estava vivo. Disse-me: “Tente, dispare sobre aquele.” Himmler ficou ao meu lado enquanto o fiz.» Se Himmler alguma vez tinha tido reservas quanto a incluir as mulheres nos seus novos planos de extermínio por gás nos campos de concentração dentro do território alemão («o velho Reich»), depois de Minsk deixou de as ter. No início do outono de 1941, autorizou que se retomassem as seleções nos campos de concentração ao abrigo do novo plano de extermínio 14f13, no qual Ravensbrück seria incluído. A ordem de «suspensão» do programa de eutanásia que Hitler dera no verão nunca foi o que parecera ser. O extermínio de adultos alemães deficientes nas câmaras de gás dos hospitais foi geralmente interrompido, mas só para apaziguar a Igreja, e a «eutanásia» prosseguiu noutras instituições por outros meios, usando injeções

letais. As crianças eram envenenadas ou mortas à fome. Entretanto, Himmler pôde aproveitar a capacidade de sobra nas câmaras de gás do programa T4 nos hospitais e usá-la para as bocas inúteis dos seus campos de concentração. Em novembro de 1941, o Dr. Mennecke, o médico T4 que selecionou os primeiros prisioneiros 14f13 em Sachsenhausen, recebera já novas ordens para se dirigir para Ravensbrück. Chegou ao campo rodeado por um grande secretismo, mas sabemos que a data era 19 de novembro de 1941, porque é a data da sua primeira carta à mulher, enviada de Fürstenberg. Viajou de comboio, havia pulgas na sua cama de hotel, a caminhada até ao campo de concentração era longa e havia nevoeiro. Friedrich Wilhelm Heinrich Mennecke era filho de um pedreiro e nasceu perto de Hanôver em 1904. No início da Primeira Guerra Mundial, tinha dez anos, e disse adeus ao seu pai, que, mesmo aos quarenta e dois anos, foi chamado a combater na frente. Três anos depois, Friedrich viu o pai regressar a casa, gravemente ferido e traumatizado pela guerra. Incapacitado e alquebrado, faleceu aos cinquenta anos, deixando uma esposa empobrecida e dois filhos. Depois de acabar a escola, Friedrich não pôde ir estudar para a universidade, trabalhando antes como caixeiro-viajante. Só mais tarde, com a ajuda de outros parentes, conseguiu realizar a sua ambição de estudar Medicina. Um estudante de segunda, mas nazi empenhado, especializou-se em Psiquiatria e em 1939 tornou-se diretor do hospital psiquiátrico estatal de Eichberg, onde conheceu Eva Wehlan, uma técnica de saúde dez anos mais nova, com quem se casou. Em fevereiro de 1940, durante o lançamento do programa de eutanásia T4, foi convidado a assistir a uma conferência em Berlim. Ele e entre dez e doze outros médicos foram encarregados de selecionar «vidas que não valem a pena serem vividas» em asilos psiquiátricos. Assim como todos os outros, também Mennecke «acedeu sem hesitar» a encarregar-se dessa missão. Quando em 1941 o trabalho do T4 foi alargado aos campos de concentração, com o seu novo código 14f13, as suas competências

foram novamente solicitadas. Há razão para crer que o secretismo em torno de Ravensbrück foi particularmente apertado, talvez porque Himmler ainda receasse que o extermínio por gás de mulheres em solo alemão pudesse ser um passo demasiado ousado e requerer uma camuflagem especial. Não só Mennecke recebeu ordens para nunca mencionar que estava a trabalhar em Ravensbrück como também o nome do campo foi omitido da documentação da SS relativa ao novo programa 14f13. Um documento nazi oficial datado de 10 de dezembro de 1941, um dos poucos documentos relativos ao 14f13 que chegaram até aos nossos dias, contém instruções para os comandantes da SS sobre como e quando as seleções para a morte por gás deveriam processar-se. É dirigido aos comandantes de Dachau, Sachsenhausen, Buchenwald, Mauthausen, Auschwitz, Flossenbürg, Gross-Rosen, Neuengamme e Niederhagen. Na carta, declara-se que «os médicos da comissão visitarão em breve os campos acima mencionados com o objetivo de examinar os prisioneiros»; realizarse-iam mais visitas durante a primeira metade de janeiro de 1942. A carta prossegue fornecendo informações pormenorizadas sobre a forma como os médicos dos campos de concentração deveriam proceder à pré-seleção antes da visita da comissão médica. É incluído um modelo de formulário «a ser preenchido nesta fase». A omissão de Ravensbrück da lista de campos de concentração visados é duplamente extraordinária, dado que nesta data já se tinha realizado uma visita da «comissão médica» e outra estava prestes a começar. Por consequência, deve deduzir-se que, para preservar o secretismo, a informação e o formulário foram transmitidos a Max Koegel em mão, em data anterior, por um dos elementos do pessoal do Inspetorado dos Campos. Este intenso secretismo causou confusão em Ravensbrück e obscureceu o verdadeiro curso dos acontecimentos depois da guerra. Até nos nossos dias, muitos dos pormenores desta primeira fase do genocídio nazi estariam por documentar se o Dr. Friedrich Mennecke não tivesse registado minuciosamente o que aconteceu nas cartas — por vezes, duas por

dia — que escreveu à mulher. A primeira carta de Ravensbrück (dirigida de «Fürstenberg, Mecklenburg, quarta-feira, 19 de novembro de 1941, 19h15») estabelece o tom. Como se estivesse de facto a falar com Eva — e falará com ela, literalmente, a qualquer momento —, começa: Minha querida Mamã! Acabei de marcar o telefonema, pergunto-me: será para breve? Conto-te tudo ao telefone, mas para ser mais exaustivo escrevo-te também esta carta. Encomendei carne de veado assada para o jantar, mas vou agora primeiro beber à tua saúde. À tua! Há um nevoeiro tão cerrado hoje que não se vê por cem metros à volta. Os Tommies não vão poder atacar com este tempo.

Conta o seu dia, que começou em Berlim em Tiergartenstrasse 4, onde tomou o pequeno-almoço com os chefes, entre eles os doutores Paul Nitsche e Werner Heyde, «que foram muito, muito simpáticos» e «te mandam cumprimentos». Nitsche e Heyde informaram também Mennecke sobre futuros planos, dizendo-lhe que iria para Buchenwald depois de Ravensbrück, e que depois disso estava destinado a Gross-Rosen, um campo de concentração masculino mais a leste. «Isto vai demorar cerca de catorze dias, porque num KZ podem despachar-se entre setenta e oitenta por dia», diz ele a Eva, referindo-se à rapidez notável com que as vítimas para as câmaras de gás podiam ser selecionadas nos campos de concentração em comparação com as dos hospitais e dos asilos em que trabalhara antes. Mennecke partiu para iniciar o seu trabalho em Ravensbrück. Antes de apanhar o comboio, comeu bratwurst, «50 gramas de carne» (uma referência aos cupões de refeições), com batatas e couves. Em Fürstenberg, foi primeiro ao hotel e em seguida ao campo de concentração. Depois de entrar pelo portão principal, Mennecke foi apresentado a Koegel, que lhe disse que só havia 259 prisioneiras para examinar, o que significava «só dois dias para dois homens»; o colega de Mennecke, Curt Schmalenbach, viria juntar-se a ele, embora

Mennecke tenha ficado claramente irritado com isso — «Eu consigo fazer tudo sozinho.» Mennecke diz a Eva que, se acabar até sábado, irá direto ao próximo trabalho em Weimar, o que quer dizer Buchenwald. «Parece haver mais lá», diz, referindo-se a mais prisioneiros, «por isso vamos ser três a trabalhar.» «Tomei café com o “Adju” [o ajudante de campo] — na messe dos oficiais — e discutimos a agenda de trabalhos [as seleções] e tomámos uma cerveja.» Koegel recomendou a Mennecke que mudasse de hotel por causa das pulgas e ele mudou-se para um hotel melhor, embora no café ao lado «haja muitos soldados repelentes». Despedindo-se — aparentemente, a conversa telefónica já tinha entretanto acontecido —, Mennecke menciona a ofensiva no Leste: «Esperemos que avancemos rapidamente. As pessoas aqui calculam que a guerra deve estar acabada até ao próximo verão. Esperemos que sim. Vai para a cama e tem sonhos doces, sonhos doces. Beijos do coração, muitos, muitos, muitos, do teu fiel Fritz Pa.» Em 21 de novembro, uma quinta-feira, Mennecke começa o seu primeiro dia de trabalho em Ravensbrück. Os mesmos pormenores obsessivos são comunicados a Eva num comentário em simultâneo com os seus atos: «Estou a sentar-me para almoçar sopa de lentilhas com toucinho, omelete a seguir.» Nesta carta, ficamos a saber um pouco mais sobre o seu trabalho. Teve uma reunião com Sonntag, o médico da SS, e com o SS Sturmbannführer Koegel, no qual «se tornou claro que o número de pessoas em questão [ou seja, a serem mortas] precisava de ser aumentado em cerca de sessenta ou setenta». Sonntag, evidentemente, interpretou o critério para definir uma «boca inútil» de forma demasiado redutora, um erro que Mennecke terá agora de corrigir aumentando os números, o que é uma maçada — vai ter de ficar até segunda-feira. No entanto, Mennecke sente-se contente com a forma como estão a correr as coisas, «sobre rodas» — em certa medida porque não tem de fazer grande coisa. Sonntag manda entrar as «pats» (pacientes) e põe Mennecke a par do seu comportamento, «por isso corre tudo sem

solavancos». Ele só tem de preencher os formulários. «O cabeçalho dos formulários já está preenchido à máquina e eu só tenho de escrever os diagnósticos, sintomas principais, etc.» E Mennecke pode dizer, todo satisfeito, que, depois de um telefonema ao Dr. Heyde em Berlim, Schmalenbach está fora de ação, já não virá afinal. Depois do almoço deu um passeio agradável com Koegel e Sonntag — «visitámos as cortes do gado» — e mais tarde jantou com Sonntag na messe dos oficiais, comendo três tipos de salsichas. Antes de se deitar, escreve: «Vou dar um pequeno passeio agora e pôr esta carta no correio para que seja entregue hoje à noite. Espero que estejas tão bem como eu. Sinto-me maravilhosamente. Recebe mais beijos do fundo do coração do teu querido senhor e abraça o teu fiel Fritz-Pa.» Com a passagem dos dias, as cartas de Mennecke vão-se acumulando, juntamente com os pormenores cada vez mais grosseiros das refeições que faz, das bebidas que emborca, dos vales grátis, dos preparativos de viagens, dos quartos de hotel, de transações no mercado negro e de outras minudências, misturados com as suas descrições da assinatura da sentença de morte das prisioneiras. A razão para estes comentários constantes talvez derive de um sentido de missão histórica. Algumas das cartas contêm expressões como «Quem escreve vive» ou «Elas [as cartas] devem prestar testemunho destes tempos mais grandiosos». Indubitavelmente, as cartas revelam com que facilidade ele era capaz de ignorar o pano de fundo do campo de concentração: ao fim de dois anos a pôr cruzes em quadrados de formulários a autorizar as suas «mortes misericordiosas», Mennecke estava tão acostumado às suas próprias atrocidades que já nem sequer era capaz de ver as «pacientes». Por vezes, chama-lhes «porções». O que é certo é que nunca se lhes refere como mulheres. Sabemos que era capaz de insultar mulheres, já que numa das suas cartas chama à cunhada bolchevique, porque «bebe e anda muito com homens», mas as «pats» não lhe provocam reações desse tipo, e, depois de preencher

os seus dados, tornam-se simplesmente «formulários» a serem entregues a tempo em Berlim. Eva também não mostra qualquer interesse pelas «pats». Nas suas respostas ao «meu querido Fritz Pah», Eva pergunta, «quanto é que conseguiste fazer hoje?» e «quando é que acabas?», e tagarela sobre as suas refeições e os ratos no sótão. Embora Mennecke mal reparasse nas «pats», elas observavam atentamente Mennecke. Ao fim da tarde, no dia da sua chegada, foi pedido a Emmy Handke, na Revier, que apresentasse as fichas de todas as pacientes. «Tivemos de tirar todas as fichas pessoais das judias, das criminosas profissionais, das doentes incuráveis e das que tinham sífilis.» Ao longo dos dias seguintes, grupos dessas mulheres foram levados para os balneários, onde o Dr. Mennecke, com uma caneta na mão, se encontrava sentado a uma mesa com pilhas de formulários e o Dr. Sonntag se mantinha de pé ao seu lado. Foi ordenado a cada mulher que se despisse e desfilasse nua perante ele. Emmy ficou a saber mais tarde que ele tinha feito perguntas a algumas delas: «Por exemplo, às judias dizia: “És casada?” e “Tens filhos dessa união?”, etc.» Outra secretária do Schreibstube, Maria Adamska, ouviu dizer que as mulheres tinham de desfilar nuas diante da comissão a uma distância de cerca de sete metros. Não se faria qualquer exame médico, na realidade. Segundo Emmy, as mulheres com sífilis e as prostitutas constituíam o primeiro grupo. Outras disseram que foram as prisioneiras com defeitos genéticos e as doentes incuráveis entre as judias que foram primeiro. Todas concordaram que as primeiras mulheres a serem chamadas eram as que constavam da lista de Sonntag. Em breve houve novo alarme: as prisioneiras observaram que os nomes das que eram chamadas já não se confinavam às mulheres das listas de Sonntag. Mulheres saudáveis do bloco das judias eram mandadas desfilar perante a comissão, entre elas Käthe Leichter e Olga Benario. Sonntag nunca tinha mostrado interesse por essas

mulheres. Käthe contou a Rosa Jochmann: Ela disse que muitas mulheres do Bloco 11 tiveram de se perfilar nuas ao longo de uma fila de 500 metros perante os médicos. Mas os médicos não olharam realmente para elas. E houve um médico que se abeirou da Käthe e lhe disse: «Frau Dra. Leichter, quais são as suas habilitações?», e ela respondeu: «Filosofia e Economia Política.» E a resposta do médico foi: «Vai precisar da sua filosofia.»

A seguir foi a vez das testemunhas de Jeová. Algumas foram levadas para os balneários diretamente vindas de castigos corporais no Bock. A comissão começou também a examinar mulheres com suspeita de doenças pulmonares vindas do hospital do campo de concentração; os médicos de Berlim disseram-lhes que «iam embora para fazer tratamento». Para horror do grupo comunista, Lotte Henschel, Tilde Klose e Lina Bertram foram mandadas desfilar — as mesmas três camaradas a quem tinha sido prometida a libertação por sofrerem de tuberculose. Todas as prisioneiras que estavam doentes pareciam correr o risco de serem selecionadas. Clara Rupp, que trabalhava na Revier nessa altura, sentia-se tão aterrorizada que não conseguia dormir. «Reparámos que a qualquer mulher que fosse mandada para o hospital por qualquer motivo era subitamente diagnosticada uma doença genética ou talvez tuberculose.» Usualmente, era mentira. «Para se livrarem do número máximo possível de pessoas do campo, as autoridades aumentavam por quaisquer meios o número de pessoas doentes. Nós compreendemos imediatamente que era uma fraude e avisámos as nossas camaradas para não irem à Revier.» Algumas das enfermeiras da SS pareciam também compreendê-lo. Uma disse a Clara: «“Quando estes transportes se puserem em marcha, o campo não tardará a ficar vazio.” Perguntámos-lhe o que queria dizer, e ela respondeu: “Não posso dizer-vos a verdade, mas não quero mentir-vos.”» As associais pressentiam um novo horror. As prisioneiras com triângulo preto já não estavam a ser incluídas nas listas por terem sífilis ou gonorreia; as seleções estavam a ser também usadas como um meio aleatório de punição. Por exemplo, as que tinham acedido a

aplicar castigos corporais às colegas eram poupadas à seleção da comissão, mas Else Krug, a prostituta de Düsseldorf que se recusara a cumprir a ordem de Koegel de espancar testemunhas de Jeová, foi agora chamada. Enquanto desfilava nua diante de Friedrich Mennecke, o aviso de Koegel — «Vais ter motivo para te lembrares de mim» — deve ter-lhe soado aos ouvidos. Mennecke só ficou a saber da expansão dos critérios de seleção quando, para sua grande irritação, o seu colega do T4 Schmalenbach apareceu para colaborar no trabalho. Pior ainda, veio acompanhado por um outro colega do T4, um tal Dr. Meyer, com a presença de ambos explicada pelas novas instruções que traziam: o número de prisioneiras a ser selecionado era agora 2000 — mais do que seis vezes o alvo inicial de Mennecke de 320. Até mesmo Mennecke ficou consternado com a nova quota, dizendo a Eva: «Vamos ter mais que fazer aqui do que o previsto: cerca de 2000 formulários!» A sua surpresa — espanto, até — é reveladora; ao fim de dois anos como fiel roda de engrenagem na máquina do T4, até Mennecke via que estavam a abusar dele. Ao longo de todo o programa de «eutanásia» por gás, ele cumprira o dever de fazer os seus diagnósticos das vidas que não mereciam ser vividas de acordo com os critérios estabelecidos, mas esses critérios tinham agora mudado. Não só tinha sido transferido para a seleção de prisioneiros de campos de concentração, em vez da dos deficientes em hospitais a que estava habituado, mas as linhas de orientação definindo que prisioneiros escolher estavam agora a ser expandidas de poucos em poucos dias. Desde a sua chegada, os números que lhe tinham sido recomendados que visasse tinham começado a aumentar, ao princípio de 259 para 328 — quase certamente por ordem do próprio Himmler. Calculando que — tal como os seus soldados assassinos na Rússia — Mennecke estaria já «acostumado às suas própria atrocidades», Himmler aumentou o número para 2000. Dado que havia 6544 prisioneiras no campo naquela altura, o novo

alvo significava que quase um terço das mulheres de Ravensbrück iria ser «misericordiosamente morta». Mennecke via agora que os seus diagnósticos eram uma perda de tempo: os números eram definidos em Berlim, o que o irritava. Berlim não se importava com a forma como os «formulários» eram escolhidos, queixou-se ele a Eva. Era o «caos», desabafou. «Quem é que manda, em Berlim?» No entanto, Mennecke aceitou a situação. Ele, Schmalenbach e Meyer despacharam-se a meter mãos ao trabalho, dando início a uma competição para ver quem conseguia preencher mais formulários. Mennecke disse a Eva que os outros dois «acabaram só vinte e dois formulários até às onze da manhã, enquanto eu já tinha feito cinquenta e seis ao meio-dia.» Pelo menos, podiam poupar tempo mandando passar as «pats» judias sem demoras. Também neste ponto havia novas instruções. Não só o número foi aumentado como os três médicos tinham ordem de Berlim para não se darem ao trabalho de examinar as prisioneiras judias, como Mennecke confirmou no seu julgamento depois da guerra. Acusado em 1947 nos Julgamentos Médicos de Nuremberga, realizados em Frankfurt, as declarações que Mennecke prestou foram quase tão francas como as suas missivas à mulher. Relatou em pormenor, por exemplo, como em novembro de 1941 recebeu subitamente instruções para selecionar prisioneiros por «razões políticas e raciais», para além das razões médicas invocadas para as «mortes misericordiosas». A partir desse momento, os judeus deixaram de ser sujeitos a um exame médico, passando a ser adicionados à lista de seleção por serem judeus. O tribunal condenou Mennecke à morte por enforcamento, mas ele morreu na cela. A sua mulher tinha-o visitado dois dias antes e acredita-se que tenha levado ao seu «Fritz Pa» os meios para se suicidar. Na noite antes de Mennecke partir de Ravensbrück para a sua missão seguinte em Buchenwald, teve tempo de jantar com a mulher do Dr. Sonntag, Gerda. Escreveu a Eva nessa noite dizendo-lhe que tinha jantado bife com couves e batatas na messe dos oficiais. Essa refeição foi seguida por uma ceia de carne, pão e chá e por fim duas

fatias de bolo no café do mercado, antes de ir para a cama. Recordando a Eva que partiria no dia seguinte, disse-lhe que competia ao pessoal do campo de concentração encontrar as 1500 «pats» que ainda faltavam. Não lhe tinha sido possível completar o trabalho, em grande medida porque Berlim tinha chamado novamente de volta Schmalenbach e Meyer antes de o trabalho estar terminado. Os formulários já assinados por Mennecke foram enviados para Berlim com as suas notas. Anexada, ia também uma fotografia de cada prisioneira, com observações nas costas, como para lhe recordar quem era quem. Uma mão-cheia dessas fotografias chegou até aos nossos dias, e as anotações sugerem, ao contrário da impressão que Mennecke dá nas cartas que escreve à mulher, que por vezes ele se interessava pelas «pats». Numa das fotografias, escreveu: «Anna Sara, judia, checa, funcionária marxista, tem um ódio feroz à Alemanha, teve relações com o embaixador inglês.» Noutra: «Charlotte Sara, nascida em Breslau, divorciada, judia, católica, enfermeira, tentou disfarçar origens judaicas e usa cruz católica.» Depois da partida da comissão, as prisioneiras de Ravensbrück defrontaram-se com outro motivo de receio. Em novembro de 1941, três outras polacas foram executadas a tiro, uma mãe e as suas duas filhas, e seguiram-se outras quatro execuções de polacas no início de dezembro. Os tiros ecoaram pelo campo e pouco depois o seu vestuário ensanguentado apareceu na Effektenkammer. Todas as mulheres no campo de concentração se perguntavam se sobreviveriam ao inverno. As que trabalhavam no exterior viam-se com os membros inchados e enegrecidos com queimaduras do frio. Numa carta a Carlos em dezembro, Olga escreveu: «Só espero que, com a necessária força de espírito e condição física, consiga sobreviver ao inverno que se aproxima. A questão é só se será o meu último.» Todas as notícias da frente indicavam que a guerra iria prolongarse, uma perspetiva que enchia toda a gente de desespero. No Leste,

o Exército Vermelho estava a resistir em Rostov, Moscovo e Estalinegrado, e a 7 de dezembro a América entrou na guerra na sequência do ataque do Japão a Pearl Harbor nesse dia. As mulheres do bloco das judias já tinham razão para recear uma guerra mais longa. Em outubro de 1941, Hitler ordenara a deportação de todos os judeus alemães; estavam a partir de Hamburgo e de Berlim comboios com destino ao Leste. Nas cartas enviadas a prisioneiros judeus falava-se do desaparecimento de famílias inteiras. E com as notícias das deportações de judeus chegou o anúncio de que mais nenhum judeu alemão poderia emigrar, quer tivesse apoio do exterior quer não. Para Olga, isso significou que a sua libertação para ir para o México ou para qualquer outra parte era agora um sonho irrealizável. No entanto, apesar do desespero, a visão de oficiais alemães feridos a regressarem da frente de combate e os rostos perturbados dos seus camaradas daí SS que iriam substituí-los recordavam às prisioneiras que a maré poderia pelo menos estar a mudar no Leste. Olga continuava a trabalhar no seu miniatlas. Os seus mapas mais recentes mostravam Estaline a fazer recuar os Alemães em Rostov e em Leninegrado. Numa página, tinha um diagrama de um jornal em que se mostrava a posição mais recente das forças à volta de Moscovo; na parte de trás do recorte de jornal, a notícia da morte de um soldado alemão estava datada de 10 de dezembro de 1941. As cartas de Olga a Carlos nesta altura não eram todas pessimistas: Muito frequentemente, não consigo deixar de me rir quando penso na surpresa que vais ter quando vires a mulher em que me tornei. Mas uma coisa que aprendi aqui é a saber o verdadeiro valor de tudo o que é humano, dos cumes a que a alma humana pode alcandorar-se... Tens alguma fotografia nova da Anita? Em breve poderá escrever-nos ela própria.

Na mesma carta, contudo, Olga admite que o esforço de acreditar num futuro melhor é agora frequentemente excessivo para ela: dá consigo a construir «castelos no ar sobre o nosso futuro juntos». Em dezembro ainda não havia notícias sobre o destino das

prisioneiras selecionadas por Mennecke e ainda não tinha sido feito nada para escolher as restantes 1500 prisioneiras necessárias para as suas listas. Uma das razões para esta inação talvez tenha sido a partida do campo do Dr. Sonntag, que foi enviado para a frente de combate em Leninegrado. Para o substituir chegou a jovem médica Herta Oberheuser, presumivelmente ainda não qualificada para um papel importante como o de selecionar as vítimas. Mas esta pausa não foi duradoura. Cerca de uma semana antes do Natal, o fingimento de que era necessário um médico no campo de concentração para fazer a seleção para as listas foi abandonado e Max Koegel foi informado de que deveria ser ele a sugerir os nomes. O seu método foi delegar a tarefa: ordenou às suas Blockovas que o fizessem. Koegel tomou a iniciativa sem precedentes de reunir as Blockovas para anunciar o que iria acontecer. Rosa Jochmann descreveu a ocasião como «uma Appell para Blockovas». Era sem dúvida um acontecimento fora do comum — talvez único — e provocou receios consideráveis, que rapidamente se transformaram em descrença e horror quando as mulheres compreenderam o que ele lhes estava a ordenar que fizessem. «Koegel disse-nos», explicou Rosa, «que tínhamos de identificar todas as mulheres que estivessem doentes ou não pudessem trabalhar, porque iam ser enviadas para um hospital. Acenou com a cabeça na direção do bunker e disse: “Se não o fizerem, acabam ali, e sabem o que isso quer dizer.”» Diante do comandante encontravam-se vinte mulheres, as prisioneiras mais privilegiadas do campo de concentração, quase todas beneficiárias do golpe que dera o cargo de Kapos às prisioneiras políticas anteriormente nesse ano. Deparavam-se com uma escolha impossível. Koegel já tinha a sua cooperação e sentiase visivelmente confiante de que, com algum subterfúgio, conseguiria levá-las a fazer também a seleção para a câmara de gás. A assistir estava Johanna Langefeld com as suas duas Lagerälteste de confiança, Bertha Teege e Luise Mauer. Estas receberam instruções

específicas: deveriam recolher os nomes das Blockovas e transmitilos a Langefeld, que, por seu turno, foi informada por Koegel de que seria ela a chefiar a operação. Nunca saberemos com exatidão como reagiram as Blockovas; as sobreviventes entre elas eram as únicas testemunhas, e, precisamente porque ali estavam e desempenharam um papel nos acontecimentos, é inevitável que a verdade tenha sido objeto de malabarismos. Algumas admitiram que entregaram nomes, outras rejeitaram a sugestão e outras ainda tentaram justificar a entrega de nomes com base na ideia de que era preferível serem elas a fazer a seleção do que a SS. Nanda Herbermann, a escritora católica e Blockova das prisioneiras associais, disse que escolheu entre dez e doze associais doentes, porque acreditava na altura que iriam de facto ser enviadas para um hospital. Rosemarie von Luenink, uma Stubova, disse que ela e a sua Blockova se recusaram a selecionar fosse quem fosse. Minna Rupp, a Blockova comunista da Suábia que atormentara Grete Buber-Neumann quando ela chegou, negou também que tivesse fornecido o nome de prisioneiras. Grete não negou que tivesse selecionado nomes — era Blockova das testemunhas de Jeová na altura —, mas disse que o fez com base nas garantias de Koegel. «Chegou-nos uma ordem para darmos os nomes de aleijadas congénitas, das que faziam chichi na cama, de amputadas, deficientes mentais e das que sofriam de asma e de tuberculose. A SS assegurou-nos que iriam ser transferidas para um campo de concentração onde o trabalho seria mais fácil.» A declaração de Grete, no entanto, é incaracteristicamente sucinta. E é difícil não nos perguntarmos porque é que, se Grete realmente não suspeitava de quaisquer intenções sinistras, ela e Milena se esforçaram tão desesperadamente por retirar Lotte Henschel da lista de seleção original. Lotte Henschel era uma das três comunistas alemãs a quem no início do outono tinha sido prometida a libertação por ser tuberculosa, mas que foram subsequentemente selecionadas por Walter Sonntag.

Lotte, que Grete tinha conhecido na «Alex», a prisão de Berlim, antes de ir para Ravensbrück, tinha-se entretanto tornado amiga íntima dela e de Milena. Milena tornara-se amiga de Lotte na Revier, onde a jovem comunista alemã também trabalhava, e foi ali que Milena viu que Lotte estava a ficar doente. Sabendo que naquela altura as tuberculosas estavam a ser libertadas, Milena concebeu um estratagema para tirar Lotte do campo, trocando uma amostra de saliva de Lotte por uma que indicava a presença de tuberculose. Mas o truque tinha corrido horrivelmente mal, porque quando Sonntag começou a compilar as primeiras listas de seleção incluiu também as tuberculosas. Milena, apoiada por Grete, tentou em vão anular a decisão sobre Lotte. «A Milena torturou-se com autorrecriminações», diria Grete mais tarde. «Retirou mais amostras de saliva — que, é claro, deram negativo — e suplicou ao Dr. Sonntag que desse alta a Lotte, visto que ela tinha tido uma recuperação milagrosa.» Walter Sonntag — imediatamente antes de ser enviado para Leninegrado — acabara por aceder e retirou Lotte da lista. «Só o facto de o Dr. Sonntag conhecer Lotte, que tinha trabalhado na Revier, a salvou da morte», disse Grete, embora, evidentemente, não nos diga que nome foi posto na lista em sua substituição. A história de Lotte Henschel viria a sofrer mais uma reviravolta. Segundo a própria Lotte, provavelmente foi Gerda Sonntag, a mulher do Dr. Sonntag, quem desempenhou um papel realmente decisivo na salvação da sua vida. Lotte trabalhava na Revier quando Gerda Weyand ainda era médica da SS, antes de se casar com Walter Sonntag. Nessa altura, Gerda era considerada uma pessoa razoável e tinha-se mostrado simpática para com Lotte. Depois da guerra, Gerda, tal como o seu marido, respondeu por crimes de guerra, particularmente em relação aos transportes para a morte, e em sua defesa negou ter conhecimento deles. Lotte testemunhou contra Gerda, embora ela lhe tivesse salvado a vida. O facto de Gerda ter ajudado a tirar o seu nome da lista de seleção, disse Lotte, era prova de que sabia a verdade sobre os transportes.

Além disso, «Se ela [Gerda Weyand/Sonntag] objetasse realmente ao crime, não me salvaria só a mim, salvaria também as outras» — uma referência às duas outras comunistas com tuberculose que estavam para ser libertadas, Tilde Klose e Lina Bertram. «E teria abandonado o campo e o marido. Mas não o fez. Ficou lá e deu-lhe apoio.» O caso de Lotte Henschel não é a única prova de que as Blockovas sabiam — ou tinham boas razões para saberem — que a seleção para as listas significava a morte. Ainda mais incriminador é o testemunho das prisioneiras que eram secretárias, responsáveis pelos registos das mortes e por outros documentos. A condessa polaca Maria Adamska, uma mulher com uma educação esmerada, foi suficientemente apreciada pelas autoridades para lhe ser concedido o posto de secretária no gabinete político do campo de concentração, que era responsável pelo registo de todas as mortes ocorridas no campo. Até ao final de 1941, não houve necessidade de o campo de concentração ter o seu próprio registo de óbitos. As mortes eram registadas no minúsculo arquivo público na câmara da vila de Ravensbrück. Em dezembro de 1941, no entanto, foi criado um novo arquivo chamado «Ravensbrück II», sob as ordens diretas do comandante. Maria Adamska observaria mais tarde que o arquivo foi criado precisamente na altura em que chegou a ordem de elaborar novas listas de doentes e de deficientes. Uma outra secretária, uma prisioneira austríaca chamada Hermine Salvini, apresentou ainda mais provas do que estava para vir. Hermine, que trabalhava no «departamento de assistência social» do campo, tratava da correspondência das prisioneiras com a família. Na altura em que as listas foram compiladas, ordenaram-lhe que elaborasse centenas de formulários com razões falsas para a causa de morte. Segundo Rosa Jochmann, Hermine contou às outras Blockovas o que lhe tinham dito para fazer. «Contou-nos que nos escritórios lhes tinham mandado fazer 1500 cópias de um formulário com as seguintes palavras: “Serve a presente para informar que ‘espaço em branco’ faleceu em Ravensbrück em consequência de um

coágulo sanguíneo.”» Rosa foi uma das prisioneiras que diriam mais tarde que sabiam desde o início que Koegel estava a mentir quando falava de um hospital, e conversou sobre o que fazer com as outras. «Compreendemos que a situação era muito séria. Falei sobre ela com as minhas amigas políticas e decidimos não selecionar ninguém.» Embora Rosa não diga quem eram as «amigas políticas», parece provável que tenha discutido o assunto com Käthe Leichter, com quem falava sobre tudo. Afinal, foi a sua velha amiga de Viena, com quem tinha lutado em tantas campanhas pelos direitos das mulheres, que aconselhou Rosa a aceitar o cargo de Blockova, porque assim poderia «fazer algum bem», mesmo como colaboradora da SS. A Käthe, convocada já a desfilar perante o «comité médico», a situação dois anos depois deve ter parecido muito diferente. Rosa foi ter com Langefeld e disse-lhe que não se envolveria na seleção. «Langefeld não disse nada», contou Rosa. «Pareceu compreender.» Bertha Teege e Luise Mauer prestaram também depoimentos depois da guerra afirmando ter-se recusado a cumprir a ordem, embora, de todo o grupo, talvez o testemunho das duas Lagerälteste seja o mais contraditório. Numa declaração, Luise explicou que ela e Bertha «receberam instruções para registar todas as prisioneiras incapazes de trabalhar», o que implica que a sua tarefa consistia em complementar as listas fornecidas pelas Blockovas com as suas seleções. Luise diz numa outra declaração que ela e Bertha foram «dispensadas desse dever e que Langefeld concordou que não seriam punidas se recusassem». Numa outra ocasião, no entanto, Luise faz um relato mais ambíguo dos acontecimentos. Diz que ela e Bertha consultaram primeiro as outras Blockovas e foram ter com Langefeld para lhe pedir que as dispensasse daquele dever. Desta vez, diz Luise, «Frau Langefeld ficou zangada com a nossa recusa e ameaçou punir-nos, a não ser que cumpríssemos o nosso dever». Bertha Teege não diz nada sobre o assunto da elaboração das listas, mas afirma noutra ocasião que estava ansiosa por ser libertada

do campo de concentração em janeiro, altura em que se contava que Himmler fizesse nova visita. A antecessora de Teege no posto de Lagerälteste tinha sido libertada um ano antes e ela aceitara o posto na esperança de ser libertada «tal como foi Babette Widmann». O que é certo é que as listas foram elaboradas, quer pelas Kapos, pelas guardas ou, provavelmente, por ambas, mas até ao Natal ainda não havia sinal de Mennecke. O Natal de 1941 ficou na memória pelo vento cortante que uivava pelo campo de concentração e por uma geada excecionalmente dura, mas não nevou. Na véspera de Natal à noite, na oficina de costura, a guarda de serviço deu autorização para que cada grupo nacional cantasse uma canção de Natal, e foram as prisioneiras alemãs a começar, com «Stille Nacht». Ao princípio, as polacas recusaram-se a participar, mas depois mudaram de ideias e cantaram, mas, ao chegarem às palavras «Toma a minha mão, menino Jesus», as lágrimas embargaram-lhes a voz e tiveram de parar. De regresso aos blocos, as trabalhadoras da noite de véspera de Natal passaram por uma árvore de Natal montada pelas guardas na Lagerstrasse; até tinha velas. E nas casas dos elementos da SS, Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, andava a montar árvores de Natal para os oficiais e as suas famílias. Nessa noite, as prisioneiras trocaram minúsculos presentes. Algumas tinham feito estrelas e manjedouras do menino Jesus de palha. O presente de Natal de Olga para Maria Wiedmaier foi o seu atlas miniatural.

CAPÍTULO 9 BERNBURG No princípio de janeiro de 1942, a neve caía quase constantemente, acumulando-se com uma espessura de quinze centímetros nos telhados dos blocos, mas o céu ficou límpido no dia em que Fritzi Jaroslavsky chegou. Viera sozinha de comboio de Viena, com um só guarda a escoltá-la. Fritzi sentiu-se animada ao ver o céu azul. Com apenas dezassete anos, tinha passado doze meses numa prisão da Gestapo por colaborar com a célula de resistência do seu pai No início de 1942, começaram a chegar ao campo de concentração cada vez mais prisioneiras estrangeiras da resistência na sequência de um novo impulso alemão para erradicar os insurgentes em países conquistados pelo Reich. O pai de Fritzi, Eduard Jaroslavsky, um operário fabril social-democrata, era um dos milhares de austríacos que, três anos depois da Anschluss, ainda operavam na clandestinidade. Fritzi considerava ser seu dever ajudá-lo. Muitos amigos estavam a fazer o mesmo. O seu papel «era muito simples — nada». Recolhia mensagens secretas numa lavandaria perto do escritório onde trabalhava como secretária; a lavandaria era uma «caixa de correio» aonde chegavam mensagens para a célula do seu pai. «A gerente telefonava-me de tempos em tempos e dizia: “A sua roupa está pronta”, e eu sabia que tinha chegado uma mensagem e que era para eu ir recolhê-la. Levava-a ao meu pai.» No início de janeiro de 1941, a Gestapo prendeu a gerente e confiscou a sua agenda telefónica com os nomes de todos os elementos da célula. Fritzi passou o ano seguinte numa prisão vienense. Em junho de 1941, a mãe visitou-a e deu-lhe a notícia de que o seu pai tinha sido guilhotinado em Berlim. «Perguntaram à minha mãe se queria as cinzas dele e disseram-lhe que teria de

pagar. Ela não tinha dinheiro.» O guarda que acompanhou Fritzi no comboio de Viena para Ravensbrück disse-lhe que também tinha acompanhado o pai dela quando ele foi levado para ser executado. No entanto, o guarda mostrou-se bastante bondoso para com Fritzi, assegurando-lhe, que não tinha nada a recear do lugar para onde ia; provavelmente, trabalharia nos campos agrícolas. Ao princípio, o campo de concentração não pareceu mais horrífico a Fritzi do que a prisão da Gestapo. Para seu grande espanto, outras austríacas estavam prontas a dar-lhe as boas-vindas. Sabiam da sua chegada: as prisioneiras que trabalhavam no Schreibstube viram um telex do quartel-general da Gestapo em Viena e a notícia foi transmitida a Rosa Jochmann. Como a rede comunista também ficou a saber da sua chegada — acabada de vir da capital austríaca, Fritzi era uma fonte potencial de informação —, a própria Olga Benario, com Maria Wiedmaier, veio ao seu encontro no bloco das admissões. «Disseram-me que duas importantes prisioneiras queriam falar comigo», contou Fritzi, falando no seu apartamento em Viena. Jovem no campo de concentração, aos oitenta e cinco anos continua a ser uma jovem, pelos padrões dos sobreviventes. «Disseram-me para ir lá fora, porque elas queriam falar comigo na Lagerstrasse. Fui conduzida lá para fora e vi duas figura de pé junto à esquina de um bloco. Era possível falarmos, mas tomámos precauções para que ninguém nos ouvisse. Elas perguntaram-me se eu tinha notícias da Áustria.» As recordações que Fritzi tem de Olga e Maria em ação, a recolherem informações, proporciona um raro vislumbre de como aquelas ex-agentes secretas soviéticas — judia e gentia — colaboravam uma com a outra, ainda a tentarem utilizar as suas capacidades. «Causaram-me uma viva impressão», disse Fritzi. «Pareciam saber muito, e era óbvio que já ali estavam há muito tempo. Sentia-me intimidada por elas, claro. Eu era muito nova.» «Que aspeto tinham?» «Uma delas sorriu-me e disse-me que eu tinha amigos lá. Acho

que foi a Olga. Mas queriam principalmente ouvir o que eu sabia, o que não era muito. Está a ver, eu tinha estado na prisão nos doze meses anteriores.» Mesmo assim, Fritzi pôde informá-las sobre as detenções dos elementos clandestinos e as deportações de judeus da Áustria, de que tinha ouvido falar na prisão. No comboio, tinha ouvido alguns passageiros falarem dos ataques aéreos dos Aliados no Ruhr e da resistência das tropas russas nos arredores de Moscovo. «E falei-lhes do trabalho do meu pai e do que lhe tinha acontecido. Foi bom para mim. Tive a impressão de que olhariam por mim.» Alguns dias depois, Rosa Jochmann arranjou maneira de transferir Fritzi para o Bloco 1, onde ficaria a dormir na cama de cima do beliche da própria Rosa. Fritzi sabia que era uma sorte sair do bloco de admissões, onde havia «mulheres de todos os tipos», mas ali no Bloco 1 foi encontrar mulheres que se compreendiam umas às outras. Podiam falar sobre pessoas da sua terra. «Era mais como viver com amigas. Era fácil distinguir quem eram quem no campo. As dos outros blocos não pareciam tão limpas nem tão bem alimentadas como nós, as do Bloco Um.» Rosa conseguia obter todo o tipo de coisas para as prisioneiras; até tinham, por vezes, carvão para queimar no fogão. Arranjou emprego a Fritzi no Schreibstube. «Acho que ela me tratou como se fosse minha mãe, de certo modo. Sim, ela interessava-se sempre pelas mais novas.» Todas as prisioneiras do Bloco 1 se comportavam bem e ninguém roubava, embora uma vez uma mulher tenha sido apanhada a roubar pão de um armário e alguém informara uma guarda. «A moça apanhou vinte e cinco chicotadas e foi enviada para o bunker, onde viria a morrer.» Quando tomavam o café de manhã ou comiam a sopa ao fim da tarde, era Rosa quem as servia na sala comum. «Ela deixava-nos falar baixinho», disse Fritzi. «Sobre o trabalho desse dia ou as notícias de casa.» Algumas das mulheres alemãs tinha maridos ou filhos na frente de combate e algumas tinham perdido parentes ou amigos nos bombardeamentos recentes.

O lugar à cabeceira da mesa de Fritzi era ocupado por Anni Wamser, uma outra comunista alemã, a quem cabia dividir o pão e pô-lo nas prateleiras das prisioneiras. Maria Wiedmaier também se sentava a essa mesa, assim como a amiga alemã de Rosa, Cäzilie Helten — a quem chamavam Cilli. Rosa e Cilli raramente andavam separadas no campo de concentração, disse Fritzi, e viveram juntas abertamente como lésbicas em Viena depois da guerra. Através de Rosa, Fritzi não tardou a conhecer austríacas de outros blocos. Frau Lange era a esposa de um homem que tinha trabalhado na célula clandestina do pai de Fritzi. Era judia, embora tivesse sido detida por resistência. Fritzi encontrava-a na Lagerstrasse e conversavam um pouco. «Toda a gente se sentia desesperada por notícias do mundo exterior, mas quando me perguntavam pelo meu pai, eu desatava a chorar.» Uma mulher do Tirol, Fini Schneider, com cerca de trinta anos e também judia, protegeu Fritzi. Fritzi recorda com afeto as amizades que formou nessas primeiras semanas: eram «a família austríaca». Via frequentemente Rosa Jochmann a passar por perto com Käthe Leichter, «embrenhadas na conversa». Himmler visitou o campo de concentração por volta desta altura, do que Fritzi se recorda devido a um boato que circulava segundo o qual o Reichsführer oferecera a libertação a Rosa, mas ela recusara ir-se embora. «Constou que ela lhe disse que era precisa no campo e que não queria ir embora.» Perguntei a Fritzi se achava que isso era verdade. «Talvez fosse verdade. Mas as pessoas não gostavam de falar disso.» Bertha Teege, a Lagerälteste, aguardava ansiosamente a visita de Himmler em janeiro, na esperança de ser libertada. «As prisioneiras políticas andavam nervosas, a perguntarem-se quem teria sorte daquela vez», recordou Fritzi. Mas o «Reichsheini», como Berta chamava a Himmler, «estava de mau humor». Primeiro, ficou enraivecido por ver um homem da SS com a barba por fazer, a seguir irrompeu numa fúria perante o baixo ritmo de produção das oficinas

de costura. Antes de partir, Himmler visitou o Bloco 1 e envolveu-se numa «breve conversa jocosa» com Rosa Jochmann — «“Porque é que estás aqui? É melhor emendares-te” — e foi tudo, partiu sem libertar ninguém.» Não há menção à visita de janeiro no diário de Himmler, embora num apontamento seja mencionada uma chamada telefónica de Max Koegel: «Terça-feira, 13 jan. 1942, ao meio-dia, SS-Stubaf [Sturmbannführer] Kögel telefonou a Himmler para dizer que as testemunhas de Jeová se amotinaram de novo. As mulheres recusaram-se a fazer trabalhos de guerra, receberam 25 e 50 chicotadas. Dormem junto a janelas abertas sem colchões nem roupa de cama, punidas com supressão de comida.» Esta atitude assinalou uma nova fase de protesto por parte de um grupo dissidente de «Jeovás extremistas», como se tornaram conhecidas, porque interpretavam qualquer tarefa, fosse qual fosse, como trabalho de guerra. Naquele caso, recusaram-se a descarregar palha: a palha era para os cavalos, os cavalos serviam a Wehrmacht e a Wehrmacht estava a fazer a guerra. No entanto, os protestos das testemunhas de Jeová por si sós não teriam feito Himmler regressar a Ravensbrück. Durante a primeira semana de janeiro de 1942, ele esteve de novo na Rússia, e no seu regresso à Alemanha tinha muito que fazer. Estava envolvido no assunto da «Solução Final da Questão dos Judeus», que deveria ser debatido numa reunião urgente a ser presidida por Reinhard Heydrich, em Wannsee, um subúrbio de Berlim, em 20 de janeiro. Heydrich era nessa altura chefe do Gabinete Central de Segurança do Reich (RSHA) e Protetor da Boémia e da Morávia. Provavelmente, foi o contra-ataque soviético nos arredores de Moscovo no outono de 1941 que finalmente levou Himmler a formalizar as suas ideias sobre como assassinar os judeus da Europa. Nos primeiros tempo da guerra, julgara-se possível que os judeus fossem transferidos para Madagáscar ou para outras partes de África, mas esta opção já tinha sido posta de parte há muito tempo, e

agora que os Soviéticos estavam a contra-atacar, as esperanças de Hitler de capturar os judeus e de os instalar em territórios russos desmoronavam-se também. Ninguém sabe quando Hitler decidiu formalmente optar pelo extermínio em massa. O Führer sempre tinha prometido exterminar os judeus, mas até àquele momento não tinha aparecido ainda uma solução. A execução em massa usada para matar os judeus soviéticos revelara-se ineficiente e má para o moral das tropas. Por outro lado, o gás dera bons resultados no programa de «eutanásia», que demonstrou que o assassínio em massa de civis inocentes era tecnicamente exequível e que as autoridades e a burocracia alemãs estavam prontas a adaptar-se para o concretizar. Até ao verão de 1941 já tinham sido assassinados pelo menos 80 000 alemães nas câmaras de gás. Embora Hitler anunciasse que o programa estava suspenso, alguns dos centros de câmaras de gás em hospitais na Alemanha tinham sido adaptados para matar prisioneiros indesejados dos campos de concentração de Himmler, sob os auspícios do promissor programa 14f13. E em dezembro de 1941 — antes de se realizar a conferência de Wannsee — já estava a ser usado para matar judeus alemães deportados para um novo campo de concentração chamado Chelmno, criado em Łódź, na Polónia, onde o procedimento consistia em bombear monóxido de carbono para as traseiras de câmaras de gás móveis em camiões. Além disso, vários elementos do pessoal do T4 tinham sido enviados à Polónia para averiguar como a metodologia da morte por gás usada no programa de eutanásia nos hospitais alemães poderia ser adaptada para matar os judeus da Europa. Esses assuntos dominariam as discussões em Wannsee, e, embora Himmler não fosse necessário na reunião propriamente dita, na sua qualidade de homem nomeado por Hitler para supervisionar o extermínio em massa desejaria estar presente. A evolução da situação no campo de concentração das mulheres tinha relevância para o assunto a discutir em Wannsee. No momento em que a reunião em Wannsee foi convocada, o primeiro extermínio por gás

das prisioneiras estava prestes a realizar-se e fazia sentido visitar Ravensbrück para inspecionar os preparativos. É provável que tenha também havido razões pessoais para levar Himmler a deslocar-se àquela zona. Sabemos que a sua amante, Hedwig Potthast (Häschen), estava grávida do primeiro filho do casal, cujo nascimento estava previsto para meados de fevereiro. Como era seu hábito, Himmler deve ter combinado a inspeção a Ravensbrück com uma vista a Häschen, na sua propriedade em Brückenthin, a oito quilómetros de distância, ou talvez na clínica vizinha de Hohenlychen. Estava previsto que o bebé nascesse nessa clínica e o seu médicochefe, Karl Gebhardt, acedera a assistir ele próprio ao parto. Em 5 de janeiro de 1942, a notícia de que a comissão médica estava de regresso a Ravensbrück causou grande perturbação no campo de concentração. Fritzi recorda que, pouco depois da sua chegada, as pessoas começaram a dizer que algo terrível ia acontecer, «mas ninguém sabia o quê». Rosa Jochmann, na cama de baixo, estava com os nervos em franja. «Eu via que muitas das mulheres mais velhas estavam preocupadas. Havia muitas discussões.» Na Lagerstrasse, o grupo austríaco, e particularmente as raparigas judias, falava sobre o assunto. Fritzi recordou: Fini Schneider não estava preocupada. Sabia que ia ser transportada para algum lugar, mas disse-me que ia para um sítio melhor. Era uma jovem tão bonita. Consigo vê-la ainda, a sorrir-me na Lagerstrasse. Mostrava-se sempre alegre e otimista, mas talvez estivesse a tentar esconder-me os seus receios.

No seu regresso a Ravensbrück, Mennecke estava com problemas de calos, como disse à sua «queridíssima bebé» numa carta escrita em 5 de janeiro: «O meu dia hoje foi como se segue. Às 9h30 tomei o pequeno-almoço e fui à cidade fazer umas coisas; nos correios, pus um selo no jornal que te enviei, comprei uns postais, porque os postais e o papel de carta tornaram-se muito raros! A seguir, comprei duas embalagens de pensos para calos.» Um automóvel levou-o em seguida para o campo de concentração para começar a trabalhar nas «novas fichas». Estava cheio de fome, «por isso, vou comer primeiro.

Mmm!». Após uma ausência de seis semanas, Mennecke encontrou mudanças. Sonntag tinha partido para a frente de Leste e um novo médico chamado Gerhard Schiedlausky recebeu Mennecke com a notícia de que a sua mulher acabara de ter um bebé. Schiedlausky vivia numa daquelas «belas casas» no enclave da SS, enquanto Sonntag estava «com certeza enregelado até aos ossos em Leninegrado», disse Eva a Mennecke. Com o contraataque russo perto de Moscovo agora em curso, havia um ambiente antirrusso hostil na messe dos oficiais. Mennecke também detestava os Russos: «O povo russo nasce e cria-se na imundície. Uma só vida humana [russa] tem tão pouco significado como em qualquer ordem inferior de animais.» Uma conversa com um major da SS chamado Vogel, que tinha acabado de perder uma perna na batalha de Rostov e ia a caminho da clínica vizinha de Hohenlychen, implicou que Mennecke só começasse a trabalhar às 2h20 «e por isso só consegui acabar 30 fichas». Informou Nitsche e Heyde por telefone, mas eles não se importaram «e foram muito simpáticos, perguntando-me como tu estavas». Mennecke disse a Eva que teria de levar as fichas para Berlim em 15 de janeiro. «Vou para Gross-Rosen em meados de janeiro», disse, referindo-se à sua ronda seguinte de seleções no campo de concentração masculino de Gross-Rosen. Terminava a carta com: «Voltei para o hotel às 5h15. Vesti as minhas melhores roupas, lavei os pés e demorei algum tempo a tratar dos calos.» No dia seguinte, Mennecke viu 181 «pats» — «todas arianas, com numerosas condenações por crimes. Agora faltam 70 arianas e 90100 mulheres judias» — e esperava completar todas as fichas a tempo de chegar a Berlim na quarta-feira de manhã. «É doloroso saber do avanço russo na Crimeia. Esperemos que tudo corra bem.» Em 8 de janeiro, a carta de Mennecke à «mamã» começava com a descrição usual do jantar, após o qual foi dar um passeio na neve. A sua noite foi perturbada por ruídos no quarto ao lado, onde «um grupo de oficiais da SS com as suas namoradas bebiam garrafas de vinho

umas atrás das outras». Em 9 de janeiro, às 9h50, estava de novo a apresentar o seu «relatório»: «O Papá apresenta-se diante de ti como um porquinho completamente limpo. Que bela sensação a de ter lavado a sujidade de quatro semanas — mas mais agradável quando é a Mamã a fazêlo!» Foi «à pesca» de mais alguns «formulários» para preencher e no dia seguinte visitou a clínica da SS de Hohenlychen, onde se encontrou com um homem que disse que tinha enviado o «material bem acondicionado num caixote de madeira» — provavelmente uma referência a bebidas alcoólicas do mercado negro. Em 12 de janeiro, Mennecke preparava-se já para ir embora. «Minha querida Eva-Mutti, [é] a minha última carta para ti de Fürstenberg, começo precisamente à meia-noite, de pijama.» Quanto ao trabalho do seu último dia, «os formulários estão bem organizados por ordem alfabética e metidos na mala. Despedi-me do comandante e paguei a conta do almoço (1,05 marcos) e entreguei os meus vales para hoje e para ontem.» Já tem as malas feitas. «Oh, sim! O Papá também sabe como fazer isso. Acho até que me posso orgulhar desta vez, porque tudo cabe bem, vou envergar o uniforme e levar todas as roupas à paisana nas malas.» E, assim, Friedrich Mennecke partiu de Ravensbrück pela última vez. Em 1 de fevereiro, um domingo, os boatos intensificaram-se. O pessoal da Effektenkammer recebeu uma pilha de novas roupas à civil, ninguém sabia porquê. Falava-se de quem estaria «na lista». As secretárias do Schreibstube falavam de um Sondertransport, um transporte especial, uma palavra que tinham visto em documentos, mas ninguém sabia o que significava. Fini disse a Fritzi que sabia que o seu nome estava na lista. «Era o que ela achava», disse Fritzi. «Eu senti-me muito assustada com aquilo, mas a Fini disse-me que não me preocupasse por ela. Acreditava que iria para um sanatório.» Frau Lange estava igualmente na lista, pelo menos era o que se dizia, assim como Käthe Leichter. Mas Käthe também não estava preocupada, ou, se estava, não o demonstrava e apressava-se a

dizer às outras que tudo correria bem. As prisioneiras que julgavam que constavam da lista sentiam-se aterrorizadas, mas as suas amigas tentavam tranquilizá-las, repetindo novos boatos de que iriam trabalhar numa fábrica de munições. Todas as mulheres se tranquilizavam umas às outras, mas ninguém se sentia sossegado. No hospital, era já evidente que nenhuma das doentes ou das deficientes iria ser poupada, e todas as prisioneiras de triângulo preto ou verde contavam ser selecionadas, mas as listas mudavam constantemente, ainda havia esperança. Algumas falavam de evasão ou de revolta, mas Teege e Mauer transmitiram uma ordem — provavelmente emitida por Langefeld — de que deveriam manter-se todas calmas. Langefeld raramente é mencionada nos testemunhos sobre aqueles dias de terror, exceto como uma figura que observa de longe, frequentemente confundida com a sua delegada, Zimmer. Fritzi recorda que Rosa Jochmann estava longe de aparentar calma. Como Fritzi dormia na cama por baixo da dela, via a crescente agitação de Rosa. Via-a também a procurar Käthe Leichter para conversar. Rosa diria mais tarde que Käthe falava de fazer um filme sobre tudo aquilo. «Ninguém vai acreditar em nós», disse Käthe, «por isso precisamos de fazer um filme para mostrar a toda a gente que isto realmente aconteceu. E verás, mesmo quando tudo tiver acabado, ninguém vai acreditar em nós.» Rosa comentaria mais tarde: «E nesta altura o extermínio por gás ainda nem sequer tinha começado, mas a Käthe sabia que iria acontecer.» Ao fim da tarde de 3 de fevereiro, uma terça-feira, as prisioneiras perfilaram-se para a Appell, mas havia poucas dúvidas de que a partida do Sondertransport estava iminente. Ao chegar a hora de se apagarem as luzes, muitas contavam já que partisse no dia seguinte. Depois de as prisioneiras serem contadas na Appell, a lista dos nomes foi levada para os escritórios e entregue a Zimmer como de costume, mas ela, em vez de entregar a lista a uma das funcionárias para ser datilografada, leu ela própria os nomes. Uma prisioneira polaca, Ojcumiła Falkowska, que trabalhava na cantina do pessoal, teve a primeira notícia fundamentada sobre a

lista, porque a viu. Zimmer estivera na cantina durante a hora do jantar. «Disseram-me para dar doses maiores a um grupo específico de guardas», disse Ojcumiła. «A guarda Zimmer não era muito cuidadosa e deixou a lista de nomes em cima da mesa, por isso eu aproveitei a oportunidade e deitei-lhe uma vista de olhos. Vi que não havia nomes polacos na lista e que a maioria era de prisioneiras do Strafblock.» Os motoristas da SS Von Rosenberg, Huber, Karl e Doering, assim como o chefe dos transportes, Josef Bertl, estavam a jantar na cantina e conversavam sobre o transporte do dia seguinte. «Não vão precisar de nada lá para onde vão», disse um deles. Ojcumiła tinha ordens para dar também doses de comida maiores aos condutores, «para os recompensar pela sua tarefa detestável». Depois de terminada a ronda da noite, os blocos ficaram em silêncio, mas poucas mulheres dormiam. Reuniam-se nos beliches para debater o que fazer, enquanto outras andavam de bloco em bloco a despedir-se. Rosa Jochmann visitou Käthe Leichter. No interior do bloco judeu, Rosa deparou com sentimentos de terror. O grupo vienense — Marianne Wachstein, Modesta Finkelstein e Leontine Kestenbaum — contava ser levado, juntamente com Herta Cohen e outras associais judias alemãs acusadas de infetarem o sangue alemão. Só um pequeno grupo de prisioneiras políticas judias, entre elas a amiga de Rosa, Käthe Leichter, estava ainda aparentemente na dúvida. «Cerca de noventa por cento do Bloco Onze estava convencido de que morreria», diria Rosa mais tarde. «Mas a Käthe disse: “Olha para elas todas, estão realmente loucas. Nós somos demasiado fortes para nos matarem. Vamos ser levadas para as minas para trabalhar ou coisa do género.”» Rosa nunca chegou a saber se Käthe disse aquilo para sossegar as que ficavam ou porque realmente acreditava que assim fosse. «Nunca saberei o que a Käthe pensava realmente. Foi a despedida mais terrível que se possa imaginar.» Nessa noite, Bertha Teeger informou as líderes comunistas sobre o que iria acontecer — provavelmente, tinha ficado a saber por

Langefeld. As selecionadas seriam enviadas às primeiras horas da manhã aos balneários para mais um exame médico. O bloco judeu seria indubitavelmente convocado juntamente com outras prisioneiras. De posse desta informação fidedigna, Bertha e Maria Wiedmaier decidiram que Olga deveria ser posta ao corrente, e dirigiram-se para o bloco judeu para encontrar a sua camarada. Quando contaram a Olga o plano de reunir as prisioneiras nos balneários de madrugada, ela respondeu de imediato: «Isto significa o fim.» Bertha e Maria tentaram tranquilizá-la. Maria recordou: «Todas insistimos que poderia ser só uma missão de trabalho, mas a Olga disse: “Não, isto é um transporte de extermínio [Vernichtungstransport].”» Maria Wiedmaier recordou: «Olga disse que se “parecesse morte certa” ela tentaria escapar.» Às duas da madrugada, a única luz que brilhava era a da sala das guardas, onde Jane Bernigau, uma guarda do turno da noite, aguardava instruções. A seguir, chegou a ordem de Langefeld, ou possivelmente de Zimmer, dizendo a Bernigau que se dirigisse para os balneários. Bernigau tinha sido cuidadosamente escolhida para a tarefa daquela noite: com trinta e três anos, acabara de regressar de um treino em Mauthausen e contava com uma promoção. Dentro dos balneários, Langefeld — ou talvez Zimmer — disse-lhe: «Prepara as mulheres para o transporte.» As prisioneiras foram acordadas aos berros e muitas receberam ordens para se despacharem. O alerta chegou mais cedo do que o esperado e apanhou-as desprevenidas. As primeiras a marcharem para fora do seu bloco foram as judias, mas nem todas foram chamadas. Entre as que ficaram contava-se Olga Benario. Este grupo particular não foi levado para os balneários primeiro, mas para o Strafblock. Eugenia von Skene, uma das detidas no Strafblock, disse que a tratadora de cães Edith Fraede levou as mulheres para o bloco por ordem de Zimmer. Um grupo grande de detidas no Strafblock foi chamado e todas juntas — judias e mulheres do Strafblock — marcharam pelo campo para os balneários, perto do portão. Aqui,

vieram juntar-se-lhes testemunhas de Jeová e associais. Dentro da Revier instalou-se a confusão. As prisioneiras que conseguiam andar — as asmáticas, tuberculosas, com delírios de febre ou doenças venéreas — foram conduzidas para o exterior agarrando muletas e óculos. As que não eram capazes de andar ficaram nas camas ou deitadas no chão à espera de serem recolhidas. Nos balneários, Langefeld (ou Zimmer), verificava uma longa lista de nomes. Bernigau e as suas colegas despiram as prisioneiras e revistaram-lhes o corpo, e depois deram-lhes roupas à civil para vestir. «Consistia em vestido, casaco e roupas interiores. A roupa que tiraram foi levada para a lavandaria para ser lavada e entregue a prisioneiras que chegassem de novo», disse Bernigau. Daí a dez minutos, os camiões chegavam aos portões. Durante todo este tempo, as outras prisioneiras tinham ordens para permanecerem nos seus blocos e não olharem lá para fora, mas o pessoal da Revier viu os motoristas à espera junto aos camiões. Milena Jesenska estava a espreitar por uma janela na Revier quando foi dado o sinal para levar as mulheres doentes. Grete contaria mais tarde: «A Milena disse-me que viu as pacientes serem brutalmente arrastadas das suas camas e atiradas para a palha no fundo dos camiões. A partir desse momento, soube para onde se dirigiam aqueles camiões.» A única prisioneira que ficou na Revier foi Lotte Henschel, a amiga de Milena e de Grete, cujo nome tinha sido riscado da lista à última hora. «Todas as pacientes na sala de isolamento do hospital foram enviadas para o transporte menos eu e uma polaca que estava a morrer», disse Lotte. Também Emmy Handke assistiu da Revier e reparou que jovens «de perfeita saúde» estavam a ser levadas juntamente com mulheres idosas e inválidas. «Até tive de ajudar algumas mulheres a subirem para o camião. Foram levadas pela SS e nós ficámos petrificadas com o receio de que algo sinistro estivesse prestes a acontecer a observá-las — mulheres paralisadas, como gado, atiradas para o camião com todas as outras.» Luise Mauer e Bertha Teege, as prisioneiras Kapos, também

ajudaram a meter as vítimas nos camiões. «A Bertha e eu levámos uma prisioneira coxa do Bloco Um numa padiola até aos portões do campo, onde estava à espera um camião», disse Luise. O vicecomandante, um homem chamado Meier, deu uma bofetada a Bertha por ajudar a prisioneira apavorada. Até mesmo naqueles últimos momentos, outras prisioneiras aproveitaram a oportunidade para dizer uma última palavra às amigas de partida, e as vítimas tentaram passar-lhes mensagens escritas à pressa, recordações ou só palavras para serem entregues às suas famílias. Fritzi recorda-se de ver Fini, sentada na parte de trás de um camião, a acenar-lhe e a sorrir. «Mesmo nessa altura, julgou que ia para um sítio melhor — tenho a certeza disso.» Maria Apfelkammer, a prisioneira que trabalhava na Effektenkammer, viu as suas amigas comunistas Tilde Klose e Lina Bertram — as outras duas tuberculosas que, com Lotte Henschel, contavam anteriormente ser libertadas — serem conduzidas para os camiões. Viu também partir uma outra amiga comunista: Mina Valeske mal andava, mas conseguiu arrastar-se até ao camião, apoiada à bengala. Rosa Jochmann saiu para acenar às suas camaradas. «Ali, vi a Käthe a caminhar ao longo da Lagerstrasse ao frio, à luz das estrelas. “Rosa”, disse Käthe, “se é realmente verdade que nunca mais vou voltar para casa, por favor olha pelos meus três rapazes.”» Rosa sabia que ao dizer «os três rapazes» ela estava a referir-se ao marido e aos dois filhos. «E vi a minha querida amiga Käthe Leichter ser metida no camião. Continuo sem saber se ela pensava que ia morrer.» Todo o campo — tanto guardas como prisioneiras — ficou em silêncio enquanto os camiões eram fechados e presos com cadeados e a seguir partiam. No dia seguinte, a vida no campo de concentração prosseguiu, mas as prisioneiras tomaram consciência de que havia mulheres que simplesmente tinham desaparecido. Rosa Jochmann espreitou para dentro do bloco judeu e «todo o bloco tinha desaparecido». Muitos

beliches no bloco das testemunhas de Jeová estavam vazios. «As testemunhas de Jeová podiam todas ter-se salvado. Só teriam de assinar um papel a dizer que renegavam a sua fé. Mas de mil só cinco o fizeram.» A Revier estava também vazia — para além de Lotte. Metade do Strafblock tinha desaparecido. Nunca chegou a determinar-se o número exato de prisioneiras que partiram nessa noite ou a sua identidade. As prisioneiras que eram secretárias encontravam-se na melhor posição para o descobrir, porque tiveram de tratar da documentação. Maria Adamska disse que, mal os camiões partiram, lhe ordenaram que recolhesse os registos de certas prisioneiras e que a maior parte era de judias, juntamente com as idosas e as doentes. Os dossiês foram levados para o novo gabinete de registos do campo de concentração e ali deixados durante alguns dias, sendo em seguida devolvidos ao departamento de política e fechados à chave numa caixa de metal. A impressão de Rosa de que o bloco judeu estava vazio era incorreta, porque dezenas de prisioneiras, entre as quais Olga, tinham ficado. Também ninguém sabia para onde tinham ido as mulheres ou que o lhes acontecera. As ordens de Koegel às prisioneiras secretárias nessa noite foram simplesmente que escrevessem Sondertransport (transporte especial) ou Sonderbehandlung (tratamento especial) nas fichas das que tinham partido; ou, nalguns casos, apenas «transferida para outro campo». No dia seguinte, nenhuma das prisioneiras sabia mais nada, como Koegel pôde dizer a Himmler quando se avistou com ele três dias depois. Ao contrário da visita de Himmler ao campo de concentração em janeiro, a reunião seguinte do Reichsführer com Koegel aparece registada na sua agenda. Num apontamento de 7 de fevereiro de 1942, regista-se: «Visita de RFSS Himmler a SS-Ostubaf [Obersturmbannführer] Koegel e Professor De Crinis.» O Professor De Crinis era um dos principais psiquiatras do T4. A entrada da agenda de Himmler é intrigante a dois títulos. Em

primeiro lugar, não indica o local do encontro, o que não era usual. Como Ravensbrück não é especificado, talvez tenha ocorrido no comboio particular de Himmler, que ele usava para se deslocar naquela altura. O local mais provável, no entanto, é Hohenlychen, a clínica médica da SS. Karl Gebhardt concordara em assistir ao nascimento do bebé de Hedwig Potthast e sabemos que «Häschen» estava prestes a entrar em trabalho de parto. Por consequência, é possível que Himmler mais uma vez tenha combinado os seus negócios de extermínio com uma viagem para a visitar. Hohenlychen era um local tranquilo para se ter uma conversa e podia contar-se com a discrição de Gebhardt. O assunto em debate, «as testemunhas de Jeová», é também curioso. Sem dúvida, Koegel tinha queixas contra as mulheres religiosas — tinha-as sempre —, mas parece surpreendente que três dias depois do transporte de vítimas para as câmaras de gás, em 4 de fevereiro, as testemunhas de Jeová fossem uma prioridade para Himmler ou até mesmo para Koegel, e, se o eram, porquê envolver Max de Crinis? De Crinis, um austríaco, era a eminência parda da eutanásia nazi e, provavelmente, o principal intelecto médico por trás do extermínio por gás do programa T4. No seu julgamento, Friedrich Mennecke declarou que De Crinis estava presente quando os médicos do T4 se reuniram em fevereiro de 1940 para acordar as linhas gerais do plano de eutanásia. De Crinis movia-se também nos círculos nazis mais elevados e era particularmente próximo de Reinhard Heydrich. É impossível saber o que Himmler debateu com De Crinis. No entanto, dado o conhecimento pormenorizado de De Crinis sobre a «eutanásia» por gás, faz sentido partir do princípio de que o extermínio dos judeus constou da conversa. A ligação entre o programa para assassinar os deficientes (T4), o assassínio de bocas inúteis dos campos de concentração (14f13) e agora a decisão, tomada apenas três semanas antes em Wannsee, de matar em câmaras de gás todos os judeus da Europa é nitidamente simbolizada pela presença de De Crinis nesta reunião. Os três programas de

extermínio constituíam um estádio no processo em desenvolvimento do genocídio nazi, e os métodos envolvidos nos três — particularmente o uso de gás — eram similares. Naquele preciso momento, os colegas de De Crinis do T4 encontravam-se na Polónia a dar conselhos sobre como a sua experiência poderia ser adaptada à matança de judeus nos novos campos de morte propostos. E, indubitavelmente, De Crinis poderia dar conselhos sobre o extermínio por gás a nível interno, incluindo o próximo assassínio das mulheres de Ravensbrück. Uma das prioridades-chave do extermínio por gás a nível local era a necessidade continuada de secretismo. Uma vantagem de implementar o extermínio dos judeus a milhares de quilómetros para leste era a sua distância do olhar do público alemão, mas o assassínio das mulheres de Ravensbrück ocorrera num dos centros de câmaras de gás do T4 dentro da própria Alemanha. Tendo em conta os protestos no passado nas imediações desses centros, era da maior importância que ninguém viesse a saber o que se passava. Por consequência, o facto de não ter havido fuga de informação relativamente à operação de Ravensbrück deve ter deixado Himmler e De Crinis satisfeitos. Os líderes religiosos tinham feito vista grossa, a população de Fürstenberg não prestara atenção aos camiões que saíram do campo de concentração e, como Koegel pôde comunicar, ninguém — certamente não as prisioneiras — sabia para onde iam os camiões. O segredo do primeiro extermínio em massa de mulheres tinha sido bem guardado — só que, no preciso momento em que os três homens estavam reunidos, em Ravensbrück o segredo estava literalmente a espalhar-se. Um ou dois dias depois de as prisioneiras partirem, os camiões que as levaram reapareceram e estacionaram junto à Effektenkammer. As partes de trás foram abertas e caiu para fora um monte de peças de vestuário misturadas com outros itens — muletas, faixas, dentaduras, óculos, bengalas. As prisioneiras que arrumaram este amontoado encontraram as roupas e os pertences das mulheres que tinham

partido. Mais uma vez, a Effektenkammer era a primeira a receber a notícia, e a notícia era que as mulheres deviam ter morrido. Não foram as roupas que o provaram. Para preservar o secretismo da operação, antes de saírem do campo de concentração as mulheres tiveram de despir o seu uniforme de prisioneiras, com os números que poderiam identificá-las, e de vestir roupas à paisana ao acaso, inidentificáveis. No entanto, juntamente com aquele amontoado encontravam-se objetos que tinham pertencido às mulheres e que que eram familiares às suas amigas do campo de concentração: faixas, muletas, óculos — itens sem os quais as suas donas não podiam passar. Maria Apfelkammer ficou abismada quando tirou da pilha a bengala que pertencera à sua amiga Mina Valeske, a bengala a que Mina se apoiara quando Maria a viu a coxear para o camião de partida. Tinha até o nome de Mina e o seu número do campo de concentração talhados nela. Os seus óculos, bem reconhecíveis, também vieram. Luise Mauer recordou: «A nossa amiga Frau Türner do Bloco Um não conseguia andar sem as muletas. Agora, as muletas dela estavam aqui, por isso era impossível que Frau Türner estivesse algures numa clínica. E porque é que devolveriam as dentaduras se as suas donas ainda estivessem vivas?» Luise contou que uma testemunha de Jeová que descarregou o camião lhe disse que uma lista das prisioneiras que tinham sido removidas tinha voltado com uma cruz ao lado de cada nome. A prisioneira parteira Gerda Quernheim recordou ter recebido pernas postiças e cintas na Revier. «Todas as reconhecemos e soubemos imediatamente que as suas donas já não podiam estar vivas.» Até mesmo as guardas parecem ter ficado espantadas. Emma Zimmer perguntou ao comandante porque é que as roupas tinham sido devolvidas. «Eram propriedade do campo», disse-lhe ele. «Eu acreditei nele, mas também fiquei com as minhas dúvidas», diria ela mais tarde. «Em 1942, sentia já que nem tudo estava como deveria.» A guarda Jane Bernigau disse que as guardas desconheciam o objetivo dos transportes nessa altura, mas que depois de os camiões

partirem «tinham continuado a pensar naquilo». Alguns dias mais tarde, quando as roupas voltaram, o pessoal do campo de concentração pôde ver que se tratara de um «transporte de “candidatas à morte” [Todeskandidaten]», disse Bernigau, acrescentando: «Dos chefes da SS veio um silêncio total.» Rosa Jochmann disse que não havia dúvida do que tinha acontecido: Menos de meia hora depois de o camião regressar, todas as pessoas do campo sabiam que tinha chegado e que as mulheres estavam todas mortas. Fez-se um silêncio cruel. As mulheres não falavam umas com as outras — nem mesmo as prostitutas. Usualmente, aos domingos havia uma hora de canções em que as mulheres cantavam juntas, mas nesse domingo toda a gente ficou em silêncio. Na chamada, toda a gente se mostrou obediente. As Blockovas não precisaram de berrar.

Cerca de quatro semanas depois, espalhou-se o boato de que os camiões iam voltar para levarem mais pessoas. Agora, toda a gente via que o Sondertransport de 4 de fevereiro era apenas o início. Nesse momento, espalharam-se especulações sobre o destino das mulheres. Corria o boato de que se tratava na verdade de um novo campo de concentração. Mas Eugenia von Skene ouviu um homem da SS dizer que o novo campo era no céu. O boato mais persistente era de que tinham sido levadas para um local chamado Buch, um subúrbio de Berlim onde existia um centro de investigação médica. Luise Mauer ouviu dizer que as mulheres tinham sido levadas para Buch para serem usadas em experiências médicas. Outras prisioneiras diziam que elas tinham sido levadas para serem eletrocutadas. Hanna Sturm perguntou ao médico do campo qual era o destino dos transportes. «Ele disse que as prisioneiras seriam distribuídas por hospitais em Buch.» Maria Adamska declarou: «Ouvimos dizer a homens da SS que as mulheres foram levadas para um hospital em Buch e que as mataram com choques elétricos. Um dos homens da SS tinha-o visto com os seus próprios olhos.» A certa altura, uma das mulheres, ou possivelmente várias, teve a ideia de que as prisioneiras que fossem escolhidas a seguir deveriam

esconder mensagens nas suas roupas a dizerem para onde tinham ido. Seguindo todas o mesmo procedimento, poderiam anotar em pedaços de papel para onde tinham ido e o que viram. Escondidos nas roupas, talvez metidos numa bainha, quando as peças de vestuário fossem devolvidas as suas camaradas saberiam o que procurar. Para a partida seguinte, a intensidade do secretismo foi duplicada. A SS tinha aprendido com os erros cometidos anteriormente. Dessa vez, confiscaram todos os objetos pessoais das mulheres selecionadas, tais como alianças de casamento e próteses, «por isso soubemos quem iria», como disse Eugenia von Skene. No entanto, o plano das mensagens secretas avançou, com várias voluntárias. Como as prisioneiras foram revistadas da cabeça aos pés antes de partirem do campo de concentração, as mulheres que trabalhavam nos balneários esconderam minúsculos pedaços de papel e lápis em lugares onde as suas colegas poderiam encontrá-los antes de serem levadas. No segundo transporte iam mais judias, assim como um grande número de prisioneiras com triângulos pretos e verdes. Nanda Herbermann disse: «Muitas das minhas prostitutas do Bloco Dois encontravam-se entre elas — as que estavam doentes ou fracas e não podiam trabalhar o dia inteiro.» Luise Mauer disse que daquela vez as prisioneiras de triângulos pretos e verdes foram levadas — menos as «flageladoras», que era como se referia às criminosas e às prostitutas que tinham concordado em encarregar-se dos castigos corporais no Bock. Uma das mulheres que se tinham recusado a bater nas colegas era a amiga de Grete, a prostituta de Düsseldorf Else Krug. Else estava detida no Strafblock desde que se recusara a bater em testemunhas de Jeová no verão anterior. Agora, encontrava-se na lista do segundo Sondertransport. Ofereceu-se como voluntária para esconder uma mensagem. Rosa Jochmann recordou-se de que uma rapariga judia linda e inteligente chamada Bugi foi selecionada dessa vez e que também ela se ofereceu como voluntária. Tomou-se uma especial

atenção ao vestuário que envergavam quando partiram. Alguns dias depois, o camião voltou, e, numa busca rápida, as roupas de Else e de Bugi foram encontradas. Segundo Maria Apfelkammer, a mensagem de Else foi a primeira a ser encontrada. Maria não nos revela o que dizia a sua carta, mas ela tinha evidentemente escrito o nome Buch. Maria recordou: «Todas sentimos que as mulheres tinham sido assassinadas, mas não houve uma prova concreta até ser encontrada uma carta da prisioneira Else Krug cosida no seu casaco quando os seus pertences voltaram de Buch.» Na mensagem de Bugi, ela não mencionava explicitamente Buch. Num pedaço de papel minúsculo escondido na bainha da sua saia, Bugi escreveu: «A passar por Bernau. Agora estamos em Dessau. Por toda a parte as casas têm bom aspeto» — e parava aí. Bernau era um outro subúrbio de Berlim e Dessau uma cidade a sudoeste da capital. Chegou uma outra mensagem de uma mulher austríaca. Luise Mauer recordou que estava escondida numa manga e que nela estava escrito: «Chegámos a Dessau. Disseram-nos que tomássemos banho e vão-nos dar roupas novas e atribuir tarefas.» As mensagens não eram conclusivas em relação ao destino. A de Else confirmou a suspeita sobre Buch, mas algumas só mencionavam Dessau, que ficava para lá de Buch. O que quer que significassem as mensagens, foram vistas como uma confirmação de morte e, quando a notícia sobre elas se espalhou, o campo de concentração ficou envolto «no mesmo silêncio cruel de antes», disse Rosa Jochmann. Entretanto, as prisioneiras que trabalhavam nos serviços administrativos tinham visto provas concretas. Maria Adamska recordou que, quando começaram a chegar cartas de familiares das mulheres que tinham sido enviadas nos camiões, o pessoal, sob a supervisão da SS, teve de voltar a tirar os dossiês da caixa de metal para lhes responder. Dentro de cada dossiê encontraram uma certidão de óbito, sendo a causa de morte uma de entre várias doenças. O local da morte indicado era sempre Ravensbrück. A data variava,

mas era sempre no futuro — por outras palavras, várias semanas depois de as mulheres serem levadas. Emmy Handke disse que eram as próprias prisioneiras que trabalhavam no Schreibstube quem preenchia o espaço destinado à causa de morte. Recordava-se de que o pessoal andava ocupado há semanas a escrever as certidões de óbito. «Havia quatro razões diferentes para a morte: problemas de coração; pulmões infetados; problemas de circulação ou poderia também escrever-se: “Todos os esforços médicos para salvar a pessoa foram em vão.” As prisioneiras que tinham de preencher as certidões podiam escolher a seu gosto a doença dada como a causa de morte da mulher em questão.» As prisioneiras que eram secretárias redigiam também cartas a serem enviadas aos parentes, comunicando-lhes a morte e fornecendo-lhes razões falsas, uma data falsa e um local falso da morte. Diziam também aos parentes que eles poderiam receber as cinzas do seu ente querido numa urna em troca de uma pequena quantia; não seria possível ver o corpo por receio de infeção. Nas semanas seguintes houve vários outros Sondertransporte. Maria Adamska disse que partiram de quatro em quatro dias até ao fim de março, mas outras prisioneiras afirmaram que prosseguiram até maio. A estimativa mais fiável é que houve dez ao todo, cada um deles levando cerca de 160 mulheres — um total de cerca de 1600 assassinadas. Depois dos primeiros, tornou-se mais difícil prever quem seria a seguir — não parecia haver um padrão definido. Nanda Herbermann diz que «todos os tipos» eram levados mais para o fim. Quase todas continuavam a fazer trabalhos forçados até ao dia em que partiam. A maioria teria vivido mais vinte anos: As pessoas que foram levadas não eram só as tuberculosas ou as prostitutas infetadas com sífilis. Não, havia também pessoas saudáveis entre elas, pessoas que, talvez devido a uma existência insuportável no campo, tinham sofrido um ataque de nervos ou um ataque cardíaco provocado por todo o tormento. Havia outras que tinham trabalhado ao nosso lado anos a fio, mas não eram particularmente robustas.

Às duas ou três da manhã, chegava a ordem de se apresentar para ser transportada e começavam os gritos. «As pessoas que

anteriormente não suspeitavam de nada ficavam agora de súbito a saber com uma certeza horrífica o que as aguardava — os gritos ainda hoje me soam aos ouvidos. E a maneira como eram metidas nos camiões! Berravam-lhes insultos como “suas porcas nojentas” ou “escumalha infetada” à laia de despedida.» Provavelmente, foi durante o mês de março que chegou a vez de Olga: a sua camarada íntima Maria Wiedmaier tinha a certeza de que Olga partira no terceiro transporte. Foi Maria quem ficou a saber por Bertha Teege que Olga constava da lista e lhe foi dizer, mas Olga já o tinha adivinhado. Quando me encontrei com a Olga daí a dez minutos, ela soube logo o que estava a passar-se. Aparentava compostura e tentou acalmar-me. Falou do Carlos, do partido, da Anita. Eu tentei convencê-la de que ela não ia morrer, mas que voltaria a ver o Carlos e a Anita. Por fim, compreendi que era melhor se me limitasse a escutar o que ela tinha a dizer. Tive de lhe prometer que olharia pela Anita. Ela tinha uma pequena fotografia da Anita, que levou consigo.

Maria disse que a partida de Olga foi numa segunda-feira, às duas da manhã, como sempre. Bertha Teege e «algumas das camaradas» foram com o grupo do bloco judeu para os balneários. «A Olga prometeu: “Se chegar ao ponto de eles irem matar-nos, eu dou luta.”» Olga prometeu também esconder uma mensagem nas roupas. Alguns dias depois, o camião voltou e a última carta de Olga foi encontrada. Dizia: «A última cidade foi Dessau. Mandaram-nos despir. Não maltratadas. Adeus.» Quatro semanas depois, apareceu uma lista no Schreistube das prisioneiras «Transferidas para outro campo» da qual constava o nome de Olga. «Foi a última coisa que ouvi sobre ela.» Em abril, havia já mais provas concretas de morte. As famílias de várias das mulheres já tinham recebido a mensagem do campo com as mentiras sobre o local e a causa da morte, e várias tinham recebido aquilo que lhes disseram serem as cinzas dos seus entes queridos. Alguns desses parentes escreveram a outras pessoas da família, também no campo de concentração — uma irmã, talvez, ou

uma prima —, que não tinham sido selecionadas, dizendo que tinham recebido as cinzas da falecida e pedindo mais informações. As urnas com as cinzas foram enviadas para vários lugares, até para Viena. Em finais de março, a «Tia Lenzi» de Käthe Leichter — que desempenhara o papel de intermediária para as cartas entre Käthe no campo de concentração e o seu marido e os dois filhos em Nova Iorque — recebeu uma carta das autoridades do campo de concentração com a notícia da morte de Käthe. A curta missiva informava Lenzi de que Käthe tinha falecido em 17 de março e era acompanhada por uma urna com as suas cinzas. A Tia Lenzi escreveu a um amigo da família, também em Nova Iorque, pedindolhe que transmitisse a notícia a Otto e aos filhos, porque era preferível dá-la pessoalmente. A Tia Lenzi estava destroçada. Escreveu à sua prima: Todas as nossas esperanças e toda a felicidade das nossas vidas ficam enterradas na sepultura com a nossa querida Käthe. Agora tenho de realizar a última tarefa de sepultar a urna com os seus restos mortais. Que diferente é este fim do que eu tinha imaginado — voltar a ver a bondosa Katherl. As suas últimas cartas estavam sempre cheias de amor abnegado e de preocupações com o nosso bem-estar. Agora, esta voz foi silenciada para sempre.

A Tia Lenzi acrescentava que não lhe tinham dito como Käthe morrera, mas que transmitiria a informação quando ela chegasse. O que chegou, claro, foram as mentiras habituais — Käthe tinha morrido de «falência cardíaca»; o local da morte era Ravensbrück. Franz Leichter recorda que, quando ele, o seu irmão e o seu pai receberam a notícia, acreditaram na história da falência cardíaca durante algum tempo, não suspeitando de mais nada. Um número incontável de outras pessoas — parentes de prisioneiros comunistas, de católicos, de testemunhas de Jeová, de prostitutas, de marginais, de judeus e de não-judeus — por toda a Alemanha estava também a receber cartas com a notícia da morte de um ente querido prisioneiro juntamente com urnas cheias de cinzas falsas. Rosa Menzer morreu de «cancro do útero», foi dito à sua família. Ilse Lipmann morreu de «um acidente vascular cerebral».

Os funcionários de Ravensbrück muitas vezes não faziam ideia de quem informar da morte de prisioneiras associais, já que os endereços das suas famílias usualmente não eram conhecidos. Se fossem judias, provavelmente toda a família teria já sido deportada. Mas como a regra mandava que a família fosse informada, as cartas e os pertences pessoais da vítima eram enviados para a esquadra local da polícia com a recomendação de serem entregues a quem de direito. Os pertences de uma judia chamada Sara Henni Stern consistiam em algumas moedas. Como a polícia local não conseguiu encontrar um seu parente, recomendou-se que a sua posse fosse reclamada pelo Reich alemão. Julius ten Brink, que há três anos tentava obter a libertação da sua irmã Mathilde, recebeu uma urna com um embrulho dos seus pertences, listados como «um casaco, um par de meias, uma camisola interior; três pares de calças». Embora todas as cartas oficiais enviadas às famílias enlutadas durante a charada do programa 14f13 fossem grotescas, a carta enviada à família de Herta «Sara» Cohen destaca-se também por razões históricas. Herta Cohen era a judia detida em 1940 por fazer sexo com um polícia de Düsseldorf e infetar o seu sangue alemão. Encontrava-se entre as que foram levadas em camiões para morrerem numa câmara de gás na primavera de 1942. Algumas semanas depois, a polícia de Düsseldorf recebeu uma carta assinada pelo comandante de Ravensbrück, Max Koegel. A polícia era incumbida de encontrar a irmã de Herta, informá-la da sua morte de «acidente vascular cerebral» e dizer-lhe que, se quissesse as cinzas da irmã, deveria primeiro confirmar se haveria espaço no cemitério local. A família deveria em seguida enviar uma carta a confirmar o espaço, juntamente com a taxa devida. Se a carta não chegasse a Ravensbrück no prazo de dez dias, a urna seria inutilizada. Embora esta farsa burocrática acrescente mais pormenores trágicos à história, é uma outra parte da carta aos Cohen que lhe confere importância histórica. A carta assinada por Koegel sobre o caso de Herta Cohen proporciona aquela que talvez seja a única prova documental de que os transportes de Ravensbrück eram parte

do programa de extermínio por gás 14f13. Foi certamente o próprio Himmler quem ordenou aos funcionários da SS que nunca usassem o código secreto 14f13 em nenhuma correspondência de Ravensbrück; dado o melindre particular do assassínio de mulheres com gás, o Reichsführer pretendia que o secretismo fosse ainda mais apertado. No caso de Herta, no entanto, a precaução foi esquecida. Talvez porque a carta era dirigida a uma força policial, considerou-se seguro anotar o código, ou talvez tenha sido um simples deslize. Qualquer que tenha sido a razão, no canto superior direito da carta de Koegel, ao lado da data (13 de março de 1942), está escrito o código revelador «14f13», que indicava a quem estivesse a par da situação que todas as palavras sobre a morte de Herta «de acidente vascular cerebral», tão cuidadosamente datilografadas por baixo, eram mentira: Herta tinha sido assassinada com gás. No início do verão, os gritos durante a noite cessaram, porque os transportes foram interrompidos, mas as prisioneiras continuavam sem saber onde ou como eram mortas as suas colegas. Ao longo do resto da guerra, muitas prisioneiras de Ravensbrück continuaram a acreditar nos boatos de que as transportadas de 1942 tinham sido assassinadas num hospital ou numa clínica em Buch, perto de Berlim. Mesmo no primeiro julgamento de Hamburgo em 1946, algumas mulheres falaram de Buch como sendo o local da morte. Até aos nossos dias continuam sem se compreender muitas coisas sobre Buch, particularmente em relação às experiências médicas nos seus hospitais. Não se pode excluir a possibilidade de algumas das vítimas terem sido levadas de camião para Buch, quer para experiências quer em trânsito, antes de serem conduzidas a outros lugares para morrerem nas câmaras de gás. Pouco depois da guerra, no entanto, surgiram novas provas sobre a localização dessas câmaras de gás. Quando Hitler reorganizou o programa de eutanásia, depois dos protestos da Igreja no verão de 1941, dois centros fecharam, mas não tardaram a abrir dois novos. Um deles localizava-se num antigo

hospital em Bernburg, uma bonita cidade alemã a sul de Berlim, na margem do rio Saale. Durante a guerra, as prisioneiras de Ravensbrück não tiveram motivos para pensar em Bernburg ou em qualquer outro centro de «eutanásia» como possível destino; depois da guerra, quando a história do programa T4 começou a ser conhecida nos julgamentos médicos de Nuremberga e noutros, estabeleceu-se a relação. Apareceram provas de que tinha sido instalada uma câmara de gás no hospital de Bernburg, disfarçada de chuveiros. Nessa sala, com catorze metros quadrados, mais de 8000 pessoas foram exterminadas com gás. Ao lado da câmara de gás havia um crematório com dois fornos, uma sala de dissecção e uma morgue. As vítimas chegavam em grandes autocarros cinzentos, mas por vezes vinham de comboio. Eram conduzidas por enfermeiras a uma sala onde lhes ordenavam que se despissem para serem examinadas; as que apresentassem características físicas ou mentais incomuns eram marcadas nas costas com uma cruz vermelha. Em grupos de até cem, as vítimas eram levadas para os chuveiros. Ali, esperavam que saísse água dos chuveiros, mas em vez disso jorrava gás e elas morriam, usualmente depois de se debaterem longa e dolorosamente. Depois, os corpos com as cruzes vermelhas eram dissecados na morgue. As provas revelam que as primeiras vítimas foram levadas para ali de lares, mas mais tarde chegaram prisioneiros dos campos de concentração. Ao ouvir esta informação, um grupo de sobreviventes alemãs de Ravensbrück, liderado pela comunista Maria Wiedmaier, decidiu investigar mais a fundo na esperança de descobrir por fim o que tinha acontecido à sua camarada Olga Benario e a outras comunistas enviadas nos mesmos transportes. Todos os elementos do grupo, na sua maioria membros da organização VVN (Vítimas do Fascismo), recordavam as mensagens secretas que as suas amigas tinham conseguido fazer-lhes chegar, muitas das quais diziam: «Última paragem Dessau.» Como uma vista de olhos a um mapa lhes mostrou que Dessau era a paragem antes

de Bernburg, as mulheres da VVN escreveram ao gabinete do presidente da câmara de Bernburg a solicitar quaisquer provas de que as prisioneiras de Ravensbrück tinham também morrido ali. A resposta do gabinete foi que todos os documentos relacionados com as câmaras de gás foram destruídos antes do fim da guerra. Em correspondência encontrada em Gross-Rosen e em Buchenwald acham-se pormenores sobre os prisioneiros transportados desses campos para Bernburg, mas os documentos relativos a Ravensbrück foram todos queimados. O homem que poderia ter deslindado o mistério era Irmfried Eberl, o diretor do centro de extermínio de Bernburg na altura. Eberl iria a julgamento em 1948, mas cometeu suicídio antes de começar a ser julgado. Sabia que tinha a pena de morte garantida: a seguir ao seu trabalho em Bernburg, Eberl foi o primeiro comandante de Treblinka, o campo de morte judeu no Leste da Polónia. Ao longo do tempo, as sobreviventes de Ravensbrück foram ficando a saber mais pormenores sobre Bernburg. Num outro julgamento, um dos médicos de Bernburg revelou que não só homens, mas também mulheres, eram ali exterminados na câmara de gás. «Quando as prisioneiras chegavam, já vinham despidas», disse ele. «Da nossa sala levávamo-las diretamente para aquilo a que chamávamos os chuveiros, onde as púnhamos a dormir com monóxido de carbono.» Em 1967, a guarda de Ravensbrück Ella Pietsch prestou depoimento perante uma comissão de inquérito alemã sobre Bernburg. Em 1941 e 1942, Pietsch era guarda na oficina de cestaria do campo, onde as prisioneiras eram subitamente chamadas por ordem alfabética e mandadas sair. Isso incomodava-a, porque deixava os turnos com falta de mão de obra. «Havia sempre entre duas e seis que não voltavam na manhã seguinte», disse ela. Pietsch ficou tão incomodada que perguntou a um oficial da SS para onde tinham ido as mulheres, e foi-lhe dito que tinham ido «para um novo campo». As guardas estavam proibidas de fazer perguntas dessas, mas

Pietsch persistiu. «Fiquei a saber que o novo campo era o campo de Bernsdorf, na região do Halle. Lá, matavam as pessoas com gás.» No dia a seguir a prestar essa declaração, Pietsch corrigiu-se, dizendo: «O nome do novo campo não era Bernsdorf, era Bernburg.» Evidentemente, um oficial da SS tinha deixado escapar o segredo. Muitas famílias das assassinadas em Bernburg nunca chegaram a saber a verdade; muitas não faziam ideia de como o descobrir. Dez anos depois da guerra, no entanto, Lina Krug, a mãe de Else, estava decidida a saber mais pormenores. Tal como outros, Lina foi informada de que a sua filha tinha morrido de doença do coração num campo de concentração, mas a notícia não fazia sentido. Por um lado, continuava a não compreender porque é que sua filha, uma boa católica que tinha saído de casa há aqueles anos todos para procurar trabalho, tinha sido levada para um campo de concentração. Duvidando da história da sua morte, Lina escreveu em 1950 à organização dos sobreviventes VVN a perguntar se sabiam porque é que Else tinha sido detida e como tinha morrido. Como organismo comunista, o VVN não estava habituado a receber pedidos de esclarecimento de famílias de prostitutas, mas Else era uma exceção. A história da coragem da prostituta de Düsseldorf era bem conhecida no campo de concentração, assim como a forma como tinha morrido. Os sobreviventes do VVN escreveram a Lina Krug informando-a de que Else usava o triângulo preto que identificava as prisioneiras associais. Lina ficou assim saber que a sua filha se tinha tornado prostituta. O VVN pôde também dizer a Lina que a coragem da sua filha tinha sido «exemplar». Else fizera frente à SS em várias ocasiões. Recusara-se a bater em camaradas e por esse motivo tinha sido condenada à morte. Pouco depois da guerra, o marido de Käthe Leichter e os seus dois filhos, Franz e Henry, visitaram Viena e ficaram a saber a verdade sobre a sua morte. Tomaram também conhecimento de que, pouco depois de receber a notícia da morte de Käthe, a Tia Lenzi — a intermediária — tinha sido enviada para Auschwitz e assassinada na câmara de gás.

Fritzi Jarolavsky, a resistente vienense que foi levada para o campo de concentração na adolescência, nunca chegou a saber o destino de Fini Schneider, de quem se tinha tornado amiga. A última vez que viu Fini, ela estava a sorrir corajosamente na parte de trás de um camião. Fritzi sempre supôs que ela devia ter morrido, mas nunca teve uma confirmação. Quando nos encontrámos em Viena, mostrei-lhe uma lista de nomes de austríacas cujas cinzas tinham sido enviadas para as suas famílias em Viena e uma lista de um cemitério de Viena indicando onde se encontravam sepultadas as cinzas. Da lista constavam os nomes de Fini e de Käthe Leichter. Fritzi pegou na lista e fitou-a em silêncio durante algum tempo. A seguir, disse que não conseguia compreender como é que as cinzas tinham voltado para Viena. A sua mãe tivera de pagar para receber as cinzas do seu pai. Quem teria pago as cinzas de Fini? Nessa altura, toda a sua família já tinha morrido. Nunca chegou ao Rio de Janeiro uma urna ou uma comunicação oficial a anunciar a morte de Olga e só quando Carlos saiu da prisão, depois de acabar a guerra, é que ele teve a certeza de que Olga tinha morrido, embora já devesse tê-lo adivinhado, porque as cartas dela deixaram de chegar em fevereiro de 1942. Nunca saberemos se foi enviada uma comunicação oficial à mãe de Olga em Munique, porque Eugenia, juntamente com o irmão de Olga, Ernst, foi deportada para o campo de concentração de Theresienstadt em 1942, e ambos foram assassinados na câmara de gás em Auschwitz.

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO 10 LUBLIN A polícia alemã foi buscar Maria Bielicka a meio da noite, quando ela estava a dormir na casa dos seus pais em Varsóvia. Tinha dezanove anos. Estava-se em janeiro de 1941 e nos dezoito meses anteriores — desde a invasão nazi da Polónia — Maria ajudara a resistência em Varsóvia e nos arredores, encarregando-se da distribuição de jornais clandestinos. Mas um dos elementos do seu grupo traiu-a. Uma mulher que ela conhecia foi torturada e denuncioua. «Os polícias arrombaram a porta, entraram no apartamento e ordenaram-me que fosse com eles. Por isso, com eles ali de pé, eu vesti-me e a minha mãe foi em silêncio à cozinha e encheu a minha pasta da escola com coisas de que eu poderia precisar na prisão: carnes frias, pensos higiénicos e pão. São assim as mães polacas.» Maria falou comigo em 2010, no seu apartamento na zona londrina de Earls Court. Disse que raramente falara do campo antes. Quando veio viver para Inglaterra depois da guerra, ninguém acreditava no que ela tinha para contar. «Ninguém aqui queria sequer saber coisas sobre os campos de concentração.» Desde essa altura, ela «tinha prosseguido com a sua vida», trabalhando para o banco Barclays. Agora com oitenta e nove anos, Maria queria falar. Tinha-lhe sido diagnosticado cancro do pâncreas e não lhe restava muito tempo de vida. Mostrou-me uma fotografia do seu pai, detido pelos Soviéticos pela sua participação na luta pela independência da Polónia em 1917. A sua mãe vendeu tudo e levou Maria, então ainda bebé, para Moscovo, para subornar os Soviéticos e tirar o marido da cadeia russa. «E conseguiu! Como lutar pela Polónia era passado de geração em geração, os meus pais conheceram-se a passar livros

secretos clandestinamente.» Aponta para um grupo em fundo na fotografia. «E aquilo é a Revolução Russa em curso.» Perguntei-lhe se a sua mãe não a tinha avisado de que não devia juntar-se à resistência quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, e ela sorriu. «Tem de compreender que durante um século e meio a Polónia esteve varrida do mapa. As nossas mães criaram-nos a acreditar que o país nunca devia ser aniquilado outra vez. Criaram as filhas a acreditar que a resistência era um papel tanto para as raparigas como para os rapazes.» Quando o blitzkrieg de Hitler contra a Polónia começou em 1 de setembro de 1939, tornou-se rapidamente óbvio que ele não estava só decidido a obter uma vitória militar mas também a aniquilar a Polónia como entidade e absorvê-la na Alemanha. Atrás dos tanques vieram as unidades Cabeça de Morte da SS, com ordens para varrer tudo, privando a Polónia de toda e qualquer potencial liderança e enterrando a sua história e a sua identidade cultural. Em todas as cidades, vilas e aldeias que se encontravam no caminho dos exércitos alemães, as escolas, as universidades e as câmaras municipais foram encerradas e muitas vezes incendiadas, enquanto professores, padres, médicos e personalidades destacadas da comunidade eram arrebanhados, torturados e mortos a tiro. Entre os visados encontravam-se tanto mulheres como homens. Quaisquer que fossem as reticências iniciais sentidas pelos nazis em relação ao tratamento brutal de mulheres alemãs, na Polónia houve pouco comedimento. De facto, o tratamento das mulheres durante o ataque alemão foi tão violento que depois da guerra mesmo as mulheres que tinham sido levadas para Ravensbrück recordariam o que lhes acontecera na Polónia naqueles primeiros dias com mais nitidez do que tudo o que sofreram mais tarde no campo de concentração. Stanisława Michalik foi detida na sua casa em Terespol e levada com o irmão, um padre, à delegação local da Gestapo. Aí, encontrou o chefe da estação da cidade, o diretor de uma escola primária e

«todos os intelectuais da cidade». Ao longo de dias, ouviu os gritos dos homens a serem interrogados e viu-os regressar, destroçados e a sangrarem. Mandavam os homens cortar o cabelo e comê-lo. A seguir chegou a vez dela. «Não conseguiram arrancar-me nada, por isso rasgaram-me a roupa e deitaram-me num bloco de madeira, com dois a segurarem-me enquanto outros me batiam nos seios e pelo corpo todo com bastões de borracha. Quando eu desmaiava, despejavam água fria em cima de mim e voltavam a bater-me.» Stanisława viu passar o irmão com a batina rasgada em tiras. Muitas outras mulheres foram trazidas, incluindo uma amiga de Terespol, uma mulher corpulenta. «Espancaram-na terrivelmente, até a carne começar a cair-lhe. Corria-lhe literalmente pus do corpo a jorros, por isso a cela encheu-se com o fedor de carne em decomposição.» Os torturadores da Gestapo eram frequentemente alemães étnicos, chamados Volksdeutsche, que viviam nas regiões polacas e se tornavam colaboradores de bom grado. As prisioneiras eram por vezes poupadas a maus tratos físicos, sendo em vez disso forçadas a assistir de perto ao que acontecia aos homens. Uma mulher viu um médico que conhecia ser reduzido a uma «massa ensanguentada». Jadwiga Jezierska, uma estudante de Sociologia detida na prisão de Pawiak em Varsóvia, viu o chefe da Gestapo matar um homem a tiro e a seguir ordenar às prisioneiras que fossem ver o corpo. «Ele tirou as roupas e pavoneou-se nu diante delas.» Com as forças alemãs a avançarem pela Polónia, Lublin, a 160 quilómetros a sudeste de Varsóvia, preparava-se para ser atacada. Era entre os professores e os alunos desta cidade universitária que alguma da resistência mais forte se desenvolvia. Quando se espalhou a notícia de que a livraria St. Adalbert, na zona histórica de Lublin, estava a arder, os estudantes acorreram a combater as chamas. Wanda Wojtasik, uma jovem de dezassete anos, magra mas forte, dava ordens aos outros para formarem uma cadeia humana e passarem os livros de mão em mão. Krysia Czyż, com apenas quinze

anos, teve a ideia de levarem os livros para os guardar em segurança nos claustros do mosteiro na vizinhança. A partir desse momento, as duas raparigas passaram ao ativo na resistência clandestina. Wanda distribuía folhetos enquanto a sua nova amiga Krysia ajudava num abrigo antiaéreo para crianças, usando uma vez os truques aprendidos nas guias para atar um cordão umbilical com um atacador de sapatos durante um parto de emergência. As células secretas eram organizadas pelos próprios professores dos estudantes e pelos seus pais. A mãe de Krysia, Maria, ocupava um posto de responsabilidade como major no exército voluntário de Lublin, o AK (Armia Krajowa). Durante a Primeira Guerra Mundial, a sua mãe tinha prestado serviço num hospital de campanha com «as legiões» — os exércitos que obtiveram a independência da Polónia em 1918 — e transmitiu tudo o que sabia a Krysia. O pai de Krysia, Tomasz, que era professor, aderiu ao programa de ensino secreto no qual os professores davam aulas clandestinamente às crianças cujas escolas estavam fechadas. O ensino tornou-se uma forma de resistência encoberta, uma maneira de garantir que, por mais mortes que houvesse, a história e a cultura da Polónia perdurariam. Michał Chrostowski, um intelectual radical, organizava em sua casa sessões para os músicos, os escritores e os artistas de Lublin. Quando as forças de Hitler chegaram à cidade, as suas duas filhas, Grażyna, com dezoito anos, e Pola, com dezanove, encontravam-se no apartamento a fazerem planos para um jornal clandestino: Polska żyie — «A Polónia Está Viva». Pola, morena e alta, era jornalista, enquanto Grażyna, com o cabelo louro aos caracóis, se virava para a poesia e para a arte. Estes resistentes não tinham qualquer hipótese contra o chefe da polícia local de Himmler, Odilo Globocnik, que no início de 1940 já estava a esmagar a oposição polaca e a mandar os homens para o primeiro campo de concentração nazi em solo polaco, criado em Auschwitz, na Silésia. Entre os que foram levados para lá encontravase Michał Chrostowski. Pola e Grażyna foram também detidas e levadas para serem interrogadas «debaixo do relógio», como os

prisioneiros chamavam à esquadra central da polícia de Globocnik, com o seu relógio do século XVII. Outras mulheres foram arrebanhadas em vilas distantes e trazidas para Lublin pela neve em trenós conduzidos por alemães com casacos de pele de ovelha. Em maio de 1941, também Krysia e Wanda tinham já sido capturadas e estavam detidas no castelo de Lublin. Grażyna e Pola encontravam-se igualmente ali. Os juízes nazis escutaram acusações espúrias contra elas e em seguida condenaram-nas à morte. De vez em quando, ouvia-se berrar um nome e uma mulher era chamada para ser executada. Em 21 de junho de 1941, os nomes de Grażyna e de Pola foram chamados, juntamente com outros dezoito, mas quando um guarda as conduzia para serem executadas, o comandante da prisão passou por elas. O comandante, um homem da Silésia que falava polaco, ordenou irado às mulheres que voltassem para as suas celas, dizendo que aquele dia não era para tais coisas; a invasão alemã da União Soviética estava em curso. As mulheres passavam o tempo à espera de ouvirem chamar o seu nome ou à janela a verem homens — frequentemente um irmão, um pai ou um marido — a ser perfilados lá em baixo para os levarem para Auschwitz. Ou compunham poemas e desenhavam retratos umas das outras em papel trazido às escondidas por guardas polacos. Grażyna escreveu uma mensagem a uma tia: «Escreva se souber alguma coisa sobre o Papá, ele partiu no dia 22 para um campo.» Também Krysia transmitia clandestinamente mensagens secretas à sua mãe, que lhes respondia. Algumas das mensagens das jovens, tão minúsculas que podiam ser enroladas e escondidas na palma da mão, apareceram recentemente e estão em exposição num museu de Lublin, «Debaixo do Relógio». A filha de Krysia, Maria, encontrou as minúsculas mensagens escondidas numa velha caixa de doçarias da sua avó. Está também em exibição nas paredes do museu um pequeno número de retratos, entre eles um de Krysia Czyż desenhado por Grażyna na prisão do castelo, com os óculos encavalitados no seu nariz sardento. Existem igualmente desenhos da autoria de Krysia

nas paredes do museu, entre eles vários mapas meticulosamente desenhados a indicar um número incontável de caminhos de Ravensbrück para a Polónia. Em setembro de 1941, partiu de Lublin para a Alemanha um comboio cheio de prisioneiras. Ao entrarem em confortáveis carruagens de passageiros, sentiram-se contentes pela primeira vez desde o início da guerra, acreditando que a mudança deveria ser para melhor. Zofia Stefaniak recordou: «Estávamos todas contentes por deixarmos o castelo. Não sabíamos o que viria a seguir, mas era uma mudança e dava uma sensação de paz.» Partiam num momento crucial da guerra no Leste e os sinais do que estava a passar-se encontravam-se à sua volta, embora não soubessem interpretá-los. No camião que as levou até à estação viram enormes multidões de judeus encurralados no gueto judeu por trás de grades de Lublin. Nos arredores da cidade viram um gigantesco estaleiro de construção no subúrbio de Majdanek; não faziam ideia de que Majdanek seria em breve o local de um novo campo de concentração. O que quer que o futuro reservasse a estas mulheres de Lublin, elas sentiam que, pelo menos, estava a ser-lhes poupada a vida. Iam para a Alemanha, mas o que poderia ser pior do que aquilo por que tinham passado? Porquê transportá-las centenas de quilómetros para a sua morte? Se a intenção fosse executá-las, tal teria acontecido no castelo, disso tinham a certeza. Na plataforma da estação, os seus familiares tentavam entregarlhes embrulhos de última hora. Foi só quando o comboio ganhou velocidade que as jovens compreenderam que iriam deixar a Polónia, sem saberem se encontrariam maneira de regressar, e atiraram mensagens à pressa pelas janelas da carruagem — dirigidas a uma mãe ou a uma irmã — na esperança de que quem as encontrasse as enviasse às suas destinatárias. Sobrepondo-se ao ruído do comboio, Wanda berrou a Krysia: «Temos de nos aguentar, estás a ouvir-me? Temos de voltar.» Grażyna agarrou-se a Pola. Disse a uma amiga

que, a partir daquele momento, nunca mais deixaria de se manter ao lado de Pola. Ao fim de algumas horas, a cidade bombardeada de Varsóvia ficou à vista e ali mais carruagens foram acopladas ao comboio, com mulheres da prisão de Pawiak, entre elas Maria Bielicka, a jovem com a pasta da escola preparada pela sua mãe. «Mais tarde, a minha mãe mandou outro embrulho para a prisão de Pawiak. Tinha o meu casaco de inverno e botas de esqui, que pude levar comigo quando partimos de comboio para a Alemanha.» Era de noite quando o comboio saiu da estação de Varsóvia, recordou Maria. «Cantámos para nos animarmos e lembro-me de que uma das melodias encantou o guarda, por isso ainda nos divertimos à custa dele. Quando estávamos a passar por Łódź cantámos “O Hitler está pendurado pela gravata” e o guarda continuou a sorrir, porque não compreendia. Encontrávamos sempre pequenas coisas como essas para mantermos o ânimo. Partidinhas de garotas, poderia dizer-se.» Enquanto o comboio avançava, espalhou-se a notícia, pelas mulheres de Varsóvia, de que estariam a dirigir-se para um local chamado Ravensbrück. Outras de Varsóvia já tinham sido levadas para esse local e algumas conseguiram comunicar clandestinamente informações sobre ele a pessoas amigas na capital. Passaram por Poznań. Alguém atirou outra carta pela janela. «Estamos a dirigir-nos para o desconhecido.» Quando atravessam a fronteira alemã, deixando a Polónia, Krysia está a dormir, mas acorda ao ouvir uma amiga gritar: «Meu Deus, deixa-me morrer na Polónia.» Grażyna compõe um poema enquanto Wanda tenta ver para onde estão a dirigir-se ao certo. Na segunda noite, passam lentamente por Berlim, que está mergulhado na escuridão — a escuridão típica da guerra. Ao amanhecer do dia 23 de setembro, as jovens acordam de um sono leve e veem que o comboio está a passar por bosques e por um lago cintilante. Pouco depois, veem campos recentemente lavrados

onde estão a trabalhar homens e mulheres. Quase no meio de um campo, o comboio para. Há uma plataforma e uma estação minúscula: Fürstenberg. Um momento de silêncio, em seguida soam berros e gritos, aparecendo «mulheres louras gigantescas» na plataforma, com cães a rosnarem. O ruído torna-se mais forte, as gigantes abrem as portas do comboio e puxam pelas mulheres, atirando-as ao chão, e lá caem elas, com malas e sacos à sua volta. «Filas de cinco, filas de cinco.» Os cães a rosnar são soltos. Wanda, Krysia, Grażyna, Pola, Maria, toda a gente se perfila, mas alguém na parte de trás tropeça e grita. Ninguém se mexe. A mulher que tropeçou é pontapeada. Reina o silêncio. É uma espécie terrível de silêncio que elas não compreendem, mas por que passarão uma e outra vez. «Porque é que eu não consigo atacar estas mulheres hediondas com os meus punhos?», pergunta-se Wanda. Nem mesmo o facto de saberem que estão todas juntas ajuda. Pelo contrário, torna a humilhação mais insuportável. Wanda pensa: «Que diabo. Atiro-me à que estiver mais perto e quero lá saber das consequências.» A mulher de capa negra aproxima-se. «Mas e se ela me bate a mim ou à Krysia? Vou olhá-la nos olhos.» A guarda desvia o olhar e passa à frente. Ao marcharem para o campo de concentração, as mulheres rezam entredentes. Fitam os bosques e o lago e os barracões gigantes e sombrios em filas perfeitas e quando chegam mais perto reparam nos canteiros simétricos com flores vermelhas que rodeiam alguns dos barracões e nas filas de pequenas árvores. Enquanto aguardam na Appellplatz com os seus sacos, veem filas de mulheres envergando vestuário às riscas a marcharem com ferramentas. Do barracão maior vêm sons e cheiros de cozinha. Umas figuras esqueléticas aparecem a correr e levam as mãos à boca a fazer sinal às recém-chegadas de que devem comer tudo o que tragam nos sacos, porque lhes será tirado. As recém-chegadas respondem aos sinais e oferecem os alimentos que têm a mais. As mulheres esqueléticas parecem aterrorizadas. Sacodem a cabeça,

sussurrando: «Bunker, bunker» — mas as recém-chegadas não sabem o que isso significa. Enquanto esperam ao calor, algumas sentam-se em cima dos seus sacos e são repreendidas pelas guardas. Aguardam até ao fim da tarde e pela noite dentro. Às quatro da madrugada ainda estão à espera e são finalmente levadas para os balneários. Há oficiais do sexo masculino a vê-las a despirem-se. «Aproximavam-se de nós, altos, com as suas baionetas, e riam-se», recordou Maria Bielicka. «Agradava-lhes aquilo. É claro que lhes agradava — olharem para os nossos corpos jovens —, mas não acho que fosse sexual, tinha mais que ver com uma questão de poder.» Maria descreve o que aconteceu a uma mulher mais velha, obesa, a quem chamavam Vovó Fillipska: Depois do duche, ela tentou vestir uma camisola interior que era demasiado pequena. Tinha um peito enorme e os homens riam-se à gargalhada a vê-la debaterse. Ela era muito abonada, sabe, e um dos homens chegou ao pé dela e pôs-se a brincar com os seios dela com a baioneta, levantando-os para os ver balouçarem-se. Riram-se todos a bandeiras despregadas outra vez.

Como acontecera às outra prisioneiras antes delas, o cabelo foi cortado às jovens polacas. «És tu, Wanda?», disse Krysia. «Aquela é a Grażyna?» Os caracóis de Grażyna tinham desaparecido todos. «Parecíamos palhaços, algumas com vestidos pelos tornozelos, outras com vestidos pelos joelhos», disse Maria. Com socos de madeira, saíram trôpegas, tentando equilibrar-se. Passaram mais prisioneiras, que não pareciam reparar nas recémchegadas. «Não parecem ter rosto», disse Wanda para consigo. «Oh, Deus, se tens compaixão pelo mundo, permite-nos que mantenhamos os nossos rostos neste lugar terrível.» Krysia estava visivelmente a pensar a mesma coisa. Agarrou na mão de Wanda. «Elas parecem todas exatamente iguais», segredou. Zofia Kawińska disse que a única coisa da chegada de que conseguia lembrar-se era do ruído dos gritos constantes das gigantes. Enquanto aguardavam de novo ao ar livre, algumas prisioneiras polacas aproximaram-se e falaram com uma ou duas

delas, que conheciam de Varsóvia. «Preparem-se. Mantenham-se firmes», disseram às recém-chegadas. Maria Bielicka reconheceu uma amiga de Varsóvia chamada Maria Dydyńska. «A Maria parecia aterrorizada por nos ver e isso assustou-me — dava a ideia de que ela sabia alguma coisa.» Uma outra mulher correu para elas e sussurrou: «Sondertransport» — transporte especial. Ecoavam murmúrios sinistros. «Sondertransport, sondertransport.» Ao princípio, não pareceu acontecer nada de especial a este Sondertransport. Depois do «banho» deram-lhes triângulos de feltro vermelho carimbados com um P preto. Quase todas as recémchegadas estrangeiras foram consideradas políticas e a letra impressa no triângulo denotava a sua nacionalidade. Às mulheres de Varsóvia e de Lublin foram atribuídos números, de 7521 a 7935. Wanda assegurou-se de que o seu número era a seguir ao de Krysia; elas eram o 7708 e o 7709. As recém-chegadas marcharam em filas de cinco para os blocos de quarentena, situados por trás de uma vedação de arame. A quarentena era prática habitual há vários meses, devido ao receio da SS de que as mulheres que chegavam da Polónia trouxessem o tifo para o campo de concentração. Como a sobrelotação crescente tornara mais difícil manter a higiene, foram introduzidas novas regras; as solas dos sapatos eram verificadas para detetar sujidade, formou-se um grupo de verificação de piolhos. Como as polacas eram consideradas sujas, as recémchegadas tinham de esfregar o seu bloco várias vezes por dia com uma escova feita de hastes da planta do arroz. Para começar, toda aquela limpeza pareceu encantadora. No castelo de Lublin, as pulgas amontoavam-se em massas negras, mas aqui havia lençóis brancos e cada mulher tinha os seus próprios utensílios, assim como um pano para os limpar. Um das Blockovas da quarentena, uma Volksdeutsche chamada Hermine, estava constantemente a implicar com as mulheres, mas pelo menos a sua atitude resultava em ordem, que as prisioneiras já não tinham há

meses. Na quarentena, não havia trabalho. Passavam os dias sentadas no bloco. Já lhes tinham tirado tudo — botas da neve, blocos de desenho, lápis —, que fora levado à sua chegada para ser etiquetado e armazenado. As cruzes foram-lhes arrancadas do pescoço. As que traziam escova de dentes podiam ficar com ela. E quem tivesse pensos higiénicos estava também autorizada a ficar com eles; os fornecidos pelo campo de concentração tinham-se esgotado. Mas a maior parte daquelas mulheres deixara de ter o período menstrual há muito tempo, com o choque da primeira detenção. Agora viviam num tédio, sem fazerem nada, sentadas na «sala comum» apertadas em bancos ou no chão. Inventavam jogos e escutavam o ritmo do campo de concentração — as sirenes, os passos, os berros de «Raus! Raus! Achtung!» e os uivos dos cães. De manhã e ao fim do dia recebiam meia caneca de café, que Wanda e Krysia suspeitavam ser feito de bolotas ou de alguma parte do nabo. O pão tinha a consistência de barro e trazia serradura à mistura. O almoço consistia em batatas com casca, com puré de nabos ou uma espécie de beterraba. Quando soava a sirene às nove da noite para ir dormir e Hermine corria o cortinado à volta do seu cubículo de Blockova, as prisioneiras deitavam-se e falavam em murmúrios sobre as suas famílias, perguntando-se o que as aguardaria. Era proibido rezar. A sirene do despertar soava às quatro da manhã. A contagem das prisioneiras nos blocos de quarentena era feita no interior, mas elas viam pelas janelas outras mulheres a saírem de outros blocos, de pé durante horas, frequentemente à chuva. Krysia chamava àquela cena «paradas de morte». «Mas pelo menos podem olhar para cima, para as estrelas», disse Wanda. De vez em quando, as jovens viam figuras cinzentas passarem de fugida pelo bloco. Subitamente, essas mesmas figuras cinzentas reapareciam de todos os cantos, corriam na direção de alguma coisa, pegavam nela e metiam-na à boca. Ou punham-se de gatas e lambiam o chão, voltando a correr para o lugar de onde tinham vindo.

Essas figuras pareciam estar sempre sós. Krysia e Wanda chamavam-lhes — ironicamente — Goldstücke: «moedas de ouro». Enquanto as Goldstücke vagueavam por ali, outras prisioneiras passavam por elas e por vezes davam-lhes empurrões para as afastarem do seu caminho. Todos os grupos que chegaram a partir daquela altura descreveriam figuras similares no campo de concentração, com o aumento constante do número de prisioneiras, mas as polacas parecem ter sido as primeiras a considerar as Goldstücke como uma categoria. As guardas tinham outro nome para elas: Schmuckstücke, queriam com isso dizer «peças» sem préstimo, sujas.14 De facto, essas prisioneiras eram simplesmente as mais pobres das pobres no campo de concentração. Denise Dufournier, uma prisioneira francesa que chegou em 1944, descreveu as Schmuckstücke como «as mais miseráveis, sujas e esfarrapadas». Sempre com uma caneca de lata estendida, «pareciam-se com os pobres de todos os países do mundo». Um ano antes, a SS teria varrido essas mulheres da Lagerstrasse; agora, eram ignoradas na maior parte dos casos. Havia sempre um grupo de Goldstücke, ou Schmuckstücke a pairar junto ao bloco da cozinha onde o Kesselkolonne, o grupo de distribuição da sopa, começava a sua ronda dos blocos. As mulheres estavam ali à espera de que algo vertesse, o que acontecia com frequência, porque as vastas panelas de ferro pesavam imenso e as mulheres que as transportavam tinham dificuldade em mantê-las direitas no carrinho de mão, berrando às Goldstücke que se afastassem, senão vertia-se tudo e acabavam todas no bunker. Por vezes, as Goldstücke aproximavam-se da vedação do bloco de quarentena e as jovens de Lublin recuavam chocadas. «Olha para aquilo», disse Krysia na primeira vez que apareceram. «Ela desistiu de lutar», disse Wanda. E rezavam a Deus para que, acontecesse o que acontecesse, elas nunca se tornassem assim. Alguns dias depois da sua chegadas, as jovens de Lublin e de Varsóvia veem um grupo bastante diferente de mulheres aparecer por

trás da vedação de arame do bloco de quarentena. Krysia, Wanda e as outras ouvem dizer que são amigas polacas que já estão há muito tempo no campo de concentração. Elas vinham cumprimentar as recém-chegadas e procurar notícias do seu país. Este contacto é uma infração de todas as regras, mas a Blockova Hermine deve ter sido subornada ou talvez tenha recebido ordens para permitir que elas se aproximem da vedação, porque não diz nada. Estas polacas há muito detidas em Ravensbrück parecem ao princípio estranhas, estrangeiras. As jovens chamam-lhes «anciãs» ou «homens velhos», porque algumas têm o cabelo grisalho. Estas primeiras prisioneiras foram detidas só por viverem em partes da Polónia em disputa, perto da fronteira com a Alemanha. Não pertenciam à resistência, não combateram na guerra. Estão ali há tanto tempo que têm a pele macilenta. Algumas têm pelos no rosto. E a sua pronúncia não é familiar, usam palavras misteriosas quando falam sobre o campo de concentração — Sandgrube, Bock. E falam alemão, a língua das guardas. No entanto, ao longo das semanas de quarentena, quando as «homens velhos» voltam a aparecer, as suspeitas dissipam-se. Elas parecem ter bons conselhos para as novas prisioneiras: «Guardem sempre metade do pão para a noite.» «Nunca bebam a água.» «Catem os piolhos.» Mais tarde, as «anciãs» começam a trazer algumas coisas que «organizaram» — a palavra usada no campo de concentração como sinónimo de roubar ou de trazer às escondidas. Há um ano, as polacas estavam no fundo da escala social, incapazes de «organizarem» fosse o que fosse, mas na altura do Sondertransport de setembro de 1941 a sua posição tinha já começado a alterar-se. É difícil identificar claramente o momento em que estas primeiras prisioneiras polacas começaram a trepar pela escala social em Ravensbrück, mas talvez tenha sido graças a um condessa polaca e aos seus contos de fadas que a sua sorte começou a mudar. No início de 1941, um grupo de polacas juntou-se a um grupo de associais alemãs que trabalhavam na despensa dos vegetais.

Durante o longo turno noturno, sentavam-se em cima de montanhas de nabos a descascá-los até cada uma encher vinte e cinco baldes — a quota necessária na cozinha para a sopa do dia seguinte. Custavalhes manterem-se acordadas, mas não lhes era permitido descansar até terminarem o trabalho. Um dia, um grupo de polacas começou a recitar poesia e a contar histórias. Captaram a atenção de todas as outras mulheres e enquanto falavam os baldes foram-se enchendo com o dobro da rapidez habitual. Uma professora polaca contava contos de fadas no dialeto das montanhas Tatar, mas a contadora de histórias mais popular era uma condessa de Poznań, Helena Korewina. Os mitos e as lendas polacos que contava faziam que os baldes se enchessem mais depressa do que nunca. Reparando como um grupo de russas ali por perto descascava os nabos rapidamente, as contadoras de histórias projetaram a voz ainda mais alto, atraindo as russas simplesmente com o som das suas vozes e acelerando ainda mais as coisas. Até mesmo as guardas pareciam escutá-las, e o que estava a passar-se chegou aos ouvidos de Langefeld, que andava à procura de uma polaca para sua intérprete. O número de prisioneiras polacas tinha aumentado tão rapidamente que quase ultrapassava todos os outros grupos, mas a maioria não falava alemão e não conseguia compreender as ordens, que eram muitas vezes transmitidas à força de pancada. Langefeld preferia ser compreendida e, ao ouvir falar das contadoras de histórias polacas, chamou Helena Korewina à sua presença e nomeou-a sua intérprete. Quando as estudantes de Lublin e de Varsóvia chegaram, a condessa polaca não só tinha já causado uma viva impressão em Johanna Langefeld como também obtivera a sua confiança. Por sugestão de Korewina, Langefeld nomeou várias polacas como chefes de bloco e como secretárias na administração do campo de concentração. A própria Korewina era uma das prisioneiras com mais poder no campo de concentração.

Mal termina a quarentena de quatro semanas, as mulheres são obrigadas a sair para a chamada da manhã. Krysia diz que faz demasiado frio para olhar para as estrelas. Uma das jovens mete uma toalha debaixo do vestido para se agasalhar. Uma guarda vê o que ela fez e esbofeteia-a. Agora são as novas prisioneiras que são olhadas fixamente. Como as mais recentes no campo, provocam uma espécie de inveja, como se algo do mundo exterior ainda viesse agarrado a elas. Outras prisioneiras tentam tocar-lhes. Depois da chamada, o grupo volta para o bloco e faz fila para o café, mas, como ainda não aprenderam a poupar o pão, os 250 gramas distribuídos na noite anterior já desapareceram e elas não têm nada para comer antes de começarem o trabalho. De novo lá fora na Appellplatz, para a chamada para o trabalho, ficam a saber que são Verfügs. Como Sondertransport, as novas polacas estão proibidas de trabalharem fora do campo, embora ninguém lhes diga porquê. Por isso, têm de se meter na fila das Verfügbare, literalmente disponíveis ou sobras, embora para as polacas pareça significar escumalha — prisioneiras que têm de aceitar qualquer trabalho que reste depois de todos os trabalhos melhores serem atribuídos. Então, enquanto outros grupos saem pelos portões do campo de concentração, carregando panelas com a sopa do almoço, as prisioneiras polacas põem-se junto das Verfügbare e uma Kolonka (abreviatura de Kolonnenführerin, capataz) chama os seus nomes. Certas Verfügs parecem ter combinado com a Kolonka para ficarem com os melhores trabalhos, mas às recém-chegadas cabe limpar as fossas, tirar lama às pazadas ou descarregar tijolos. A sobrelotação implicou novas regras para os grupos. Os tijolos, atirados de pessoa para pessoa, são contados para que um certo número seja posto em cada carrinho de mão; a quantidade de areia em cada pá é verificada, mesmo que as mãos que seguram a pá estejam em sangue e esfaceladas. Há quem saiba as regras e quem não as saiba — as polacas recém-chegadas não as sabem. No grupo de descarga de tijolos, por

exemplo, se uma mulher desmaiar as outras não têm autorização para a levar dali, o que significa que os tijolos têm de continuar a ser atirados por cima dela para a seguinte na fila. Mas as alemãs, que já têm experiência, atiram muito depressa, e se a nova polaca não apanhar o tijolo a tempo ele cai em cima das pernas da mulher que desmaiou. As polacas têm ainda de aprender a apanhar os tijolos evitando as suas arestas aguçadas. As mãos de Wanda não tardam a ficar transformadas numa massa de carne a sangrar — a dor é tão forte que ela baixa-as e fica a ver o sangue a pingar. «O que é que se passa?» Wanda ergue as mãos para as mostrar à guarda. Depois da pausa para o almoço — sopa aguada no bloco —, a mesma guarda chama-a discretamente e manda-a carregar cestos por um ou dois dias. Às 19h00 soa a sirene e elas apressam-se a ir para a fila da sopa de nabos. Às 20h15 soa a sirene para a hora de deitar, e às 21h00 para fazer silêncio, mas nessa altura vem uma guarda com um cão e inspeciona os corpos das prisioneiras para ver quem vestiu peças de vestuário extra. As culpadas são atiradas para o chão e atacadas pelo cão. A guarda retira-se por fim, berrando: «Alles in Ordnung.» No bloco, as jovens esforçam-se por compreenderem as regras para não as violarem. Claramente, o que é propriedade dos Alemães é sacrossanto, já que uma caneca riscada implica uma participação e, provavelmente, um castigo corporal. Revelar iniciativa acarreta a punição mais cruel. Uma mulher faz protetores com farrapos para os dedos dos pés para evitar as frieiras. Apanha vinte e cinco chicotadas, embora agora não possa trabalhar. Uma outra altera um vestido para lhe assentar melhor. É chicoteada. E todas as regras têm de ser seguidas de imediato: mal se ouve a ordem, sai-se do bloco «como se a fugir de um edifício em chamas», caso contrário apanhase uma mangueirada, o que no inverno significa ficar com as roupas geladas todo o dia. Mas as regras não têm lógica. Multiplicam-se a cada dia que passa. A limpeza que lhes agradou ao princípio não é implementada

por razões de higiene, mas por uma obsessão tresloucada. Por exemplo, mandam as mulheres limparem os copos com um avental sujo, porque o pano da louça limpo poderia deixar um borboto branco. E as regras sobre como dobrar os cobertores estão agora descontroladas. Não são só as roupas de cama que têm de ser dobradas e voltadas a dobrar, é tudo. A maior parte dos domingos é passada a dobrar roupa de cama, cobertores, toalhas, panos da louça, guardanapos em triângulos cada vez mais rebuscados. No entanto, a implementação das ordens é inteiramente arbitrária, dependendo do capricho da Blockova. Como uma delas tem uma regra segundo a qual as janelas devem ser deixadas abertas de par em par toda a noite, ao acordarem as mulheres veem gelo no teto a pingar para as suas camas. Por vezes, têm de arrancar o próprio cabelo gelado da almofada. Uma outra Blockova gosta de inspecionar as calcinhas das prisioneiras para ver se elas enfiaram alguma coisa nelas. Para o fazer, fecha subitamente a porta do dormitório e obriga toda a gente a marchar diante dela com as saias levantadas. Uma outra perde as estribeiras se uma prisioneira tiver tentado fazer um penteado que a favoreça. Frequentemente, o castigo é aplicado para servir de lição, já que o campo de concentração é agora tão grande que nem todas as prevaricadoras são apanhadas. Uma prisioneira de dezassete anos sofre duas semanas no bunker simplesmente porque tentou aparar a franja. A cela está gelada e ela fica com gangrena nas pernas e é levada para a Revier para lhas amputarem, mas a operação é feita tarde de mais e a jovem morre. No inverno, nas cabeças rapadas das novas prisioneiras começa a despontar cabelo. Grażyna Chrostowska, a poetisa de Lublin, tenta fazer um penteado com os tufos de cabelo que lhe cresceram, mas uma guarda apanha-a em flagrante e rapam-lhe de novo o cabelo como castigo. O maior número de novas regras destina-se a reprimir a amizade, ou, na linguagem do campo, a associação entre as prisioneiras. Como grupo, as polacas são particularmente culpadas de amizade e associação, pelo que lhes é dito que não pode haver reuniões de qualquer espécie e, um dia, que não podem trocar

olhares pela janela. Não podem dar cumprimentos de mão nem falar umas com as outras sem autorização. Mas Halina Chorążyna, uma professora universitária de Química de Varsóvia, conhece maneiras de contornar essas regras e, no dia de Natal, desafia a interdição chamando as jovens para cantarem cânticos de Natal polacos. «Mas não cantem alto», segreda ela. «Cantem dentro das vossas cabeças.» Cantam em silêncio, formando as palavras em uníssono, e resulta. Halina chegou ao campo ao mesmo tempo que as jovens, mas já é uma «homem velho» em termos de sabedoria de vida. Como muitas das mães destas jovens, combateu na Primeira Guerra Mundial. Cada dia, sob a orientação de Halina, as mulheres decidem fazer alguma coisa, por mais pequena que seja, para se ajudarem umas às outras, talvez um sorriso a alguém como Grażyna, que anda preocupada com sua irmã Pola, que está doente. As amigas reparam que nem uma nem outra sorriem desde que ficaram a saber que o seu pai morreu. Ou num outro dia Halina diz-lhes: «Aproximem-se de outra que pareça sentir-se só.» Na cama de baixo do seu beliche, Stanisława Michalik encontra uma recém-chegada, uma moça polaca do campo, que está muito perturbada. Na sua primeira noite confidencia a Stanisława que está grávida e que se sente aterrorizada com o que irá acontecer. No dia seguinte, a jovem polaca é levada para a Revier. Mais tarde nessa noite, regressa ao bloco e chora nos braços de Stanisława, dizendo que lhe «cortaram o bebé». No inverno de 1941 já toda a gente em Ravensbrück sabia que andavam a realizar-se abortos no Revier. As regras eram que não deviam nascer bebés ali. Nos primeiros tempos, o número de prisioneiras que chegavam grávidas era tão reduzido que simplesmente eram enviadas para um hospital em Templin, uma cidade nas redondezas, para darem à luz. Dois anos depois, no entanto, o número de mulheres grávidas multiplicara-se, devido quase inteiramente à chegada à Alemanha de milhares de trabalhadores

escravos polacos. Desde a invasão da Polónia, em 1939, as forças de Hitler prenderem homens e mulheres polacos para trabalharem em propriedades agrícolas e em fábricas na Alemanha. Em 1940, Himmler emitiu um decreto segundo o qual a uma alemã que tivesse relações íntimas com um polaco ser-lhe-ia rapado o cabelo em público e em seguida ela seria levada pelas ruas «para servir de lição às outras». Mas o estigma da humilhação pública não impedia os contactos, e alemãs grávidas — assim como polacas que eram trabalhadoras escravas e estavam grávidas de alemães — eram trazidas para Ravensbrück e forçadas a abortar. A todas era atribuído o triângulo vermelho das prisioneiras políticas, mas para as distinguir das «verdadeiras» políticas, as outras prisioneiras chamavam-lhes, cruelmente, Bettpolitische, políticas de cama. Tal como as judias que eram detidas por manterem relações sexuais com arianos, estas mulheres eram também acusadas de terem cometido Rassenschande. Os abortos eram usualmente realizados por um dos novos médicos do campo de concentração, um antigo cirurgião naval chamado Rolf Rosenthal. Todas as prisioneiras que trabalharam na Revier recordaram a sua crueldade sanguinolenta. Hanka Housková, uma prisioneira checa que era enfermeira, recordou como, numa ocasião, Rosenthal cortou um feto de cinco meses do corpo de uma mulher com uma serra cirúrgica. A Dra. Bozena Boudova, uma farmacêutica checa, ouviu gemidos de uma sala de operações um dia e viu um bebé morto com o cordão umbilical ensanguentado num balde. Rosenthal contava com a assistência da prisioneira Gerda Quernheim, conhecida como «o pequeno furão». Quernheim, nascida em Oberhausen, no vale do Ruhr, tinha trinta e quatro anos quando chegou a Ravensbrück na primavera de 1941. Enfermeira e parteira experiente, tinha sido detida por realizar abortos, o que era ilegal fora do campo: os bons alemães arianos deviam fazer tudo o que pudessem para aumentar a taxa de natalidade, não baixá-la. No entanto, normalmente a prática de abortos ilegais não levava a um

campo de concentração, mas Quernheim agravara o seu crime insultando o Führer durante o seu julgamento. Quando chegou a Ravensbrück, Gerda foi integrada no grupo que tirava piolhos, para rapar o cabelo às prisioneiras, mas foi quando a integraram no grupo dos cadáveres, que recolhia corpos e os levava para um local de onde eram transportados para o crematório de Fürstenberg, que a sua atitude começou a atrair as atenções. Helena Strzelecka, uma polaca do mesmo grupo, recordou uma ocasião em que foi com Gerda ao bunker recolher o corpo de uma testemunha de Jeová de uma cela. «De facto, era só um esqueleto», recordou Helena, «deitado em água.» Sob o domínio de Mandl e de Binz, os horrores do bunker tinham sofrido uma escalada e a tortura pela água tornara-se comum. Havia uma torneira na Cela 64, conhecida como a cela da morte. As prisioneiras que desmaiavam depois de serem espancadas eram deitadas no chão e abria-se a torneira. Ficavam ali deitadas na água tanto tempo que por vezes morriam geladas. Era o que tinha acontecido à testemunha de Jeová. «A guarda Hasse estava a brincar com as chaves e a fazer pouco da mulher morta», disse Helena. «Quando a puseram no caixão, a Quernheim disse: “Oh, sua estúpida testemunha de Jeová. Agora vais para o teu Jeová.” A seguir, o dentista tirou-lhe os dentes de ouro. Eles iam em grande quantidade para Berlim.» Pouco tempo depois, Quernheim foi selecionada para trabalhar na Revier ao lado dos médicos do campo de concentração. Em troca, tinha autorização para comer na cantina da SS, que foi quando Doris Maase lhe pôs a alcunha de «o pequeno furão». Quando chegou a nova médica, Herta Oberheuser, recorreu a Quernheim para a ajudar nas injeções letais, que Oberheuser continuou a administrar depois da partida de Sonntag. A prisioneira alemã Klara Tanke, que também trabalhava na Revier, recordou que no início de 1941 chegou um grupo de prisioneiras holandesas — na sua maioria comunistas — e que entre elas havia uma dentista de vinte e tal anos que sofria de icterícia.

Klara recordou: «Ela pediu-me um comprimido para aliviar a dor. Eu não pude ajudá-la. A mulher holandesa queixou-se à Oberheuser, que disse: “Eu dou-te uma injeção para te dar paz.” A Quernheim foi buscar uma seringa e a Oberheuser administrou uma injeção letal. O corpo foi levado para a sala onde se punham os cadáveres.» Klara viu também a Dra. Oberheuser dar uma injeção letal a uma jovem de dezoito anos de Bremerhaven, que era a sua cidade natal. A mulher foi injetada por «fazer chichi na cama», disse Klara. Mais uma vez, foi Quernheim quem foi buscar a seringa. Quando Rolf Rosenthal descobriu que Quernheim era parteira, deu-lhe ordens para o ajudar a realizar os abortos, que no campo de concentração eram legais, porque as prisioneiras eram «vidas que não valiam a pena ser vividas». O crime de Quernheim tornava-se agora um dever: ela ajudava Rosenthal a induzir o trabalho de parto e depois matava o feto, estrangulando-o ou afogando-o num balde. Em troca, obtinha mais privilégios, usando um avental branco limpo e dormindo na Revier. Ilse Machova, uma outra prisioneira checa que trabalhava na Revier, descreveu como Quernheim se livrava dos corpos à noite, metendo-os em caixotes de cartão, levando-os para a fornalha do campo de concentração e atirando-os lá para dentro. As prisioneiras também a viam a dirigir-se para a fornalha em pleno dia, usualmente com um balde. Nas palavras da prisioneira enfermeira Hanka Housková: Avistávamos muitas vezes o balde da Gerda Quernheim, coberto com um pano de lã, que ela levava de um lado para o outro diariamente, contendo os bebés recémnascidos mortos. Uma vez, levava dois baldes. Noutra ocasião, convencemo-nos de que ouvimos o choro de um bebé recém-nascido a vir do balde dela. Depois deste choro, corremos para o corredor. O Dr. Rosenthal veio ter connosco, perguntou-nos o que estávamos a fazer e mandou-nos voltar para o trabalho.

As identidades das mães e dos bebés não foram registadas e depois da guerra as prisioneiras «políticas de cama» sobreviventes raramente quiseram falar, tal era a vergonha que ainda sentiam. A história de Leni Bitterhoff, no entanto, tal como a contou a um

investigador policial, conta-se entre os poucos registos policiais nazis que chegaram até aos nossos dias. Em 1939, na sequência de uma denúncia, a polícia começou a investigar Leni, a filha de um agricultor de Kleve, no Noroeste da Alemanha. Leni perdeu o marido na frente leste em 1941. Segundo o que disse à polícia durante o seu interrogatório, foi na ausência do marido que visitou uma amiga que trabalhava numa estalagem e aí conheceu um trabalhador polaco chamado Michał, cuja mulher também trabalhava ali. Ele sorriu, mas «eu não lhe retribuí o sorriso». Quando, dois anos depois, voltaram a encontrar-se na rua, pararam para conversar. Uma semana depois, Michał visitou Leni no seu apartamento, onde a beijou. «E o polaco também me tocou imoralmente durante as carícias, ao que eu não resisti.» Prosseguiu: «Depois de instada a confessar [pela polícia], admito que tivemos relações sexuais durante esse encontro.» Houve mais visitas. O casal teve relações sexuais e «eu tenho de admitir que dei café e pão ao polaco em duas ocasiões». Uma vez, foi ao cinema com Michał e a sua mulher, e depois «eles foram para a casa deles e eu fui para a minha casa sozinha». Leni não teve contacto com Michał de novo durante algum tempo, embora lhe tivesse enviado um postal de Natal, sabendo já nessa altura que estava grávida dele. «Eu sabia que o Michał era o pai. Não fiz sexo com outros homens.» Michał deu-lhe uma pulseira, «que eu agora entrego à polícia». Em troca da pulseira, Leni deu a Michał um pequeno lenço de assoar. «Eu tinha o lenço e não o comprei especialmente para Michał.» Contou a Michał que estava grávida e ele prometeu divorciar-se da mulher e casar com ela. Mas daí a pouco tempo Leni foi levada para Ravensbrück, onde lhe provocaram um aborto, provavelmente praticado por Rolf Rosenthal. Nos meses do inverno de 1941-42 entregaram picaretas às Verfügs polacas e mandaram-nas quebrar a areia gelada, cortando um quadrado antes de avançarem para outro lugar. Depois de uma

grande queda de neve, o grupo foi mandado tirar carrinhos de mão da margem do lago, onde ficavam meio submersos em lama e em gelo. Enchiam os carrinhos com neve e empurravam-nos pela encosta enlameada da colina até às casas dos oficiais da SS no topo, em seguida despejavam a neve e voltavam para baixo, vigiadas por guardas com cães. Wanda viu que Krysia não conseguiria desempenhar aquela tarefa. Como havia um enorme cão a puxar a trela, pronto a atacá-la mal ela caísse, Wanda ia atrás dela, mas só viu que ela estava a chorar quando chegaram ao cimo da colina. Foi então que Krysia perdeu o controlo do carrinho de mão e uma guarda atirou-se a ela com um chicote. Instintivamente, Wanda avançou um passo e estendeu o braço para proteger Krysia, berrando à guarda: «Não vê que a criança está exausta?» A guarda olhou para ela, atónita, e afastou-se. A partir daquele momento, Wanda jurou nunca mais deixar Krysia sozinha. Ao fim de seis meses no campo, as estudantes polacas estavam a aprender a contornar algumas das regras. Por exemplo, as que proibiam as amizades estavam a aproximar ainda mais as mulheres, em grupos cada vez mais pequenos e mais seguros, e a forçá-las a demonstrarem a sua amizade de novas maneiras. Nos blocos, tarde da noite, ou talvez à hora das refeições, as polacas em idade escolar assistiam a aulas organizadas por mulheres mais velhas, frequentemente professoras, para não ficarem atrasadas nos estudos quando regressassem a casa. Zofia Pociłowska, uma escultora, começou a fazer minúsculos presentes para as suas amigas, esculpindo com paus partidos no que conseguia arranjar. Um dia, alguém de outro bloco «organizou» uma faca para Zofia. Agora, ela podia esculpir objetos muito mais delicados, como um crucifixo num pedaço de carvão ou uma Virgem Maria na ponta de uma escova de dentes, do tamanho de uma unha. De um dia para o outro, Zofia tornou-se a mulher mais popular do bloco. Todas as outras prisioneiras queriam uma escultura que pudessem admirar e esconder numa fenda na parede. A escultura mais procurada era um anel com o número de prisioneira do campo

de concentração gravado. Grażyna compunha mais poemas e «dava-os» às suas amigas, mas, como não tinha papel para os registar em segurança, compunha-os durante a chamada, no meio da fila de cinco, criando versos que eram passados às suas colegas que estavam mais perto, cada uma memorizando um ou dois versos — «Ave que vagueias, ave que passas, porque voas aqui? Isto não é caminho para ti; é um campo, um lugar condenado e esquecido por Deus» — enquanto prosseguia a chamada. Janina Iwańska, uma outra amiga de Lublin, conseguia memorizar tudo. Por vezes, conseguiam «organizar» pedaços de papel para anotarem os poemas. A seguir, tomou-se uma iniciativa para impedir as amizades entre as prisioneiras polacas de outra maneira, separando o grupo e enviando-as para diferentes blocos. O novo bloco de Wanda e de Krysia estava «cheio de prostitutas e de ladras de todas as nacionalidades, umas bruxas grosseiras sempre aos berros» que «cuspiam nos nossos lençóis e nos roubavam os poucos tesouros que tínhamos», como Wanda recordaria mais tarde. Duas semanas depois, as jovens foram transferidas para o Bloco 11. Ali, algumas mulheres, muitas delas ciganas, realizavam aquilo a que Wanda chamava atos feios e inumanos de amor lésbico. Sentada no seu apartamento em Cracóvia com vista para a praça central, pedi a Wanda que falasse desses «atos inumanos». Um retrato de João Paulo II fitava-nos da parede e Wanda ficou também de olhar fixo, sem dizer nada. Perguntou se eu tinha ido de propósito a Cracóvia para lhe perguntar aquilo. Mas houve um período em que Wanda Wojtasik se sentia tão assombrada pelos «atos inumanos» de amor lésbico como por outros atos pelos quais o campo de concentração ficou conhecido. Nas suas memórias, publicadas em 1948, disse que o Bloco 11 foi onde «perdeu a sua inocência» e onde aquela coisa chamada «amor lésbico» adquiriu uma «grotesca realidade humana». Wanda demorava uma eternidade a adormecer. «Ao princípio, não conseguia acreditar no que estava a acontecer e ficava a ver de olhos

arregalados, dilacerada entre a curiosidade e o desespero.» Wanda conseguiu evitar que Krysia visse algumas das coisas que aconteciam. Krysia, diz ela, era «uma moça sossegada, bonita, graciosa, não só inocente mas também ingénua e crédula». Wanda interrogava-se, no entanto, «se um dia nós seremos também assim». Uma cigana chamada Zorita, que era muito baixa e muito magra, meteu disfarçadamente um papel nas mãos de Wanda. «Se quiseres, vem para a esquina do Bloco 12», dizia. Zorita parecera uma moça delicada, com grandes olhos negros aveludados. Só então compreendi o significado daqueles olhares convidativos. A minha primeira reação foi rir. Então, era para eu fazer de homem, era isso? Mas era horrível, e triste. Eu não queria participar naquilo. Mas por vezes surpreendia acidentalmente o olhar de Zorita, e o que via nele assustava-me. Retraí-me ao princípio e senti pena.

As propostas chegavam-lhe «rápidas e em catadupa». Wanda viuse procurada como «mulher e homem», com o lesbianismo a «alastrar como uma praga». Não queria ter nada que ver com aquilo, disse, mas destruiu a sua fé na inocência de simples gestos humanos. E Krysia via, «é claro que via. Como é que poderia não ver aquelas cenas horríveis quando estavam de facto a acontecer junto à nossa cama? Ela chorou durante muito tempo naquela primeira noite e nunca veio dizer-me boa noite à cama, pelo menos não da mesma maneira de antes». Outras mulheres polacas, interrogadas recentemente sobre o lesbianismo que encontraram, falam mais à vontade do que Wanda Wojtasik. A maioria diz que lhe foram feitas propostas a dada altura. E algumas falam, como Wanda, de uma época em que o sexo lésbico pareceu explodir numa vaga de promiscuidade por todo o campo — mas só entre as alemãs, as ciganas e as holandesas, insistem elas, nunca entre as polacas. «Havia aquelas mulheres», disse Maria Bielicka, «e foi um choque para nós todas, as estudantes, porque não sabíamos nada sobre essas coisas. Fomos criadas de uma forma muito tradicional.» Mas não era tão dramático como algumas ex-prisioneiras diziam, sugere Maria. «Raramente acontecia à noite, porque as mulheres estavam

demasiado cansadas. Era principalmente aos fins de semana. Mas discretamente. Beijavam-se. Lambiam-se. Tocavam-se. Aquilo que costumam fazer normalmente. Havia muitos casais. Era o tipo de amizade delas, mas não um tipo que nós fôssemos capazes de compreender naquela altura. E, de qualquer modo, tínhamos coisas mais importantes com que nos preocuparmos.» No início da primavera de 1942, as prisioneiras preocupavam-se por estarem a começar a passar fome. A ração de pão foi cortada, de 250 gramas para 200, e a sopa estava cada vez mais aguada. As más colheitas tinham afetado o abastecimento por toda a Alemanha e as rações de todos os prisioneiros tinham sido reduzidas. Wanda tentava proteger Krysia das conversas «mórbidas, constantes» que decorriam à volta delas, «mulheres de rosto escaveirado e olhos brilhantes a terem alucinações com comida». Começava com uma conversa sobre uma ida ao teatro e acabava com «Onde é que foste cear a seguir?», e os pormenores do festim imaginário eram descritos. As prisioneiras que tinham chegado recentemente começavam a ficar com pelos no rosto, nas mãos e nas pernas e as suas expressões eram macilentas e vazias, a não ser quando se falava de comida. Irena Dragan viu uma mulher apanhar um pássaro que voava entre as traves do teto e comê-lo cru. Agora havia Goldstücke nos blocos das polacas. «Havia algumas em todos os blocos», diz Maria Bielicka. «Quando chegava a comida, viam-se. Eram sempre empurradas para o fim da fila e nunca conseguiam receber nada. E as chefes de sala implicavam sempre com elas. E eram de todas as classes, de todas as nacionalidades. Eu conhecia uma que vivia bastante bem antes da guerra, mas a mudança foi tão colossal que ela não conseguia adaptar-se. Era filha de um proprietário de terras.» «O que foi feito delas?» «Saíram do bloco um dia e desapareceram — provavelmente, foram levadas para o bloco de detenção.»

«Alguém no seu transporte acabou assim?» «Não, nós éramos um grupo forte. Elas eram uma aqui, outra ali», diz, e aponta para os cantos do seu apartamento em Earls Court. «E a diferença era que, quando nós chegámos ao campo, chegámos sem nada. Tudo nos foi tirado, menos talvez os óculos ou a bengala das muito idosas. E continuaram a tirar-nos coisas. Mas ao fim de seis meses começámos a reaver algumas coisas.» A certa altura, no início de 1942, Maria Bielicka foi selecionada das filas de Verfügbar pela própria Langefeld e enviada para a oficina de encadernação. O campo de concentração era agora tão autossuficiente que encadernava os seus próprios livros-razão e livros de registos. «Avançou ao longo da fila de mulheres a perguntar se alguém tinha aprendido a fazer encadernação. Eu tinha estudado encadernação durante um período letivo na escola, por isso pus o dedo no ar.» A trabalhar ali, Maria não estava ao frio e ficava a par de informações que ouvia a amigas checas que trabalhavam na Effektenkammer ao lado. Outras também estavam a obter melhores trabalhos. Uma outra Verfüg polaca ficou encarregada das coelheiras, o que implicava limpar as gaiolas e recolher pelos de angorá, que por vezes conseguiam «organizar». Várias polacas, entre elas Wanda e Krysia, foram retiradas do Verfübar e enviadas para a oficina de cestaria, onde se fabricavam sapatos de palha usados como polainas pelo pessoal do campo de concentração e talvez por militares da WaffenSS. O trabalho era desagradável e o chefe das oficinas, um alfaiate chamado Fritz Opitz, era um bruto. As mulheres sentiam-se sufocadas com a poeira, sentadas a mesas a entrançarem a palha e a tirarem-na de grandes fardos, o que lhes cortava as mãos. Mas pelo menos estavam dentro de um barracão, com mais hipóteses de sobreviverem. Ninguém tinha dúvidas de que os trabalhos melhores para as jovens polacas resultavam em parte da influência de Helena Korewina. Há seis meses que tinha chegado o Sondertransport e durante esse tempo Korewina, a condessa polaca que era intérprete,

tinha obtido a confiança de Langefeld. As duas andavam praticamente sempre juntas. «A Langefeld tinha muito afeto pela Korewina», recordou uma outra mulher do gabinete da chefe das guardas. «A Langefeld dependia absolutamente dela e seguia as suas opiniões. Uma vez, quando tiveram de ser organizadas cinquenta e duas equipas de trabalhadoras para o exterior, a Langefeld disse à Korewina: “Organiza tu e diz-me depois o que decidiste.” Era assim. Escusado será dizer que as Kolonki [chefes dos grupos de trabalho] eram na sua maior parte polacas.» As polacas que falavam alemão fluentemente estavam também a ocupar um número crescente de cargos nos escritórios e nos blocos. Maria Dydyńska trabalhava no escritório da Gestapo, onde via as listas de transporte de prisioneiras e datilografava a correspondência dirigida a Berlim. A bailarina polaca Ojcumiła Falkowska trabalhava na cantina. Havia agora polacas a trabalharem em todas as partes do campo de concentração, do armazém das roupas à cozinha; até faziam a limpeza de casas dos SS. Nos blocos, Blockovas polacas faziam agora cumprir as regras da SS. Mas, também como as suas predecessoras, poucas duvidavam de que a cooperação era a opção certa. A instrutora militar polaca Maria Moldenhawer até felicitou os Alemães pela sua «honestidade por verem finalmente o valor das polacas, que, como trabalhadoras, comparadas com as mulheres associais alemãs, que eram de tipo depravado, inspiravam confiança nas autoridades do campo». Através da sua influência, na Páscoa de 1942 Helena Korewina tinha já obtido a permissão de Langefeld para as prisioneiras polacas voltarem a ficar juntas em blocos adjacentes. O mais notável é que possibilitou a criação de uma Kunstgewerbe, uma oficina de artes e artesanato, onde jovens artistas polacas podiam trabalhar, pintar, bordar e esculpir pequenos artefactos. A oficina localizava-se ao lado do barracão onde se faziam os sapatos de palha, e, por ordem de Langefeld, beneficiava de uma proteção especial de guardas benevolentes.

Segundo Zofia Pociłowska, muitas das jovens que trabalhavam na oficina de fabrico de sapatos, entre elas Krysia, Wanda, Grażyna e outras, foram transferidas para a oficina de artes e artesanato nos meses do inverno de 1942. É impossível dizer como Helena Korwina persuadiu Langefeld a aceder à criação de uma oficina de artes. Talvez tenha mostrado à chefe das guardas as miniaturas artísticas que as jovens andavam a fazer a partir do nada e Langefeld tenha visto uma maneira de as ajudar. É menos difícil de explicar como Langefeld persuadiu Fritz Opitz, o chefe da oficina dos sapatos, a permitir a criação da oficina de artes: Opitz ficava com os objetos artísticos e vendia-os. «Até encomendava objetos especialmente para as namoradas dele. Por isso, nós fazíamos o que ele queria e as guardas vinham e embalavam as coisas», segundo o relato de uma das sobreviventes. E outras guardas faziam vista grossa, sabendo que lhes seria oferecido um lindo retrato ou uma boneca pintada. Os retratos de Grażyna não tardaram a ficar pendurados nas paredes das casas dos SS e as suas esposas exibiam chinelos lindamente bordados. Um outro elemento do grupo de estudantes polacas, Wojciecha Buraczyńska, recorda-se de como Helena Korwina costumava visitar a oficina de artes e observá-las a trabalhar. «A Korewina parecia sempre elegante, mesmo com o uniforme às riscas do campo. Não sei como, mas algumas pessoas conseguiam-no.» Nesta fase, as polacas sabiam já que Langefeld estava até certo ponto a protegê-las. «Sempre souberamos que ela era nossa aliada. Deixava-nos sair mais cedo da chamada se estivesse a nevar e nunca nos obrigava a ficar ali de pé mais tempo do que o necessário. Sabíamos que ela não era cem por cento SS.» Enquanto falava, Wojciecha procurou o seu exemplar do último poema de Grażyna. Era sobre um girassol, disse. Havia girassóis junto ao bloco e, pelas janelas, as prisioneiras viam as flores a balouçarem-se ao vento. Vasculhou em maços de papéis, cartas e desenhos, entre eles um retrato dela em adolescente — «A Grażyna desenhou este na oficina de artes de Ravensbrück.» E Wojciecha

encontrou um minúsculo objeto e pô-lo na palma da mão à luz de um candeeiro. Era um crucifixo, esculpido na ponta de uma escova de dentes branca.

14 Schmuckstücke era também irónico. Schmuck significa «joias ou berloques», e Schmuckstücke quer dizer «peça de joalharia». Em iídiche, schmuck significa também «homem pobre», o que poderia explicar o seu uso neste contexto. Mais frequentemente, as guardas chamavam às prisioneiras Stücke — simplesmente, «peças».

CAPÍTULO 11 AUSCHWITZ Wojciecha Buraczyńska não foi a primeira a observar que Johanna Langefeld «não era cem por cento SS». Tal como as polacas, Grete Buber-Neumann, a ex-comunista que viria a trabalhar junto de Langefeld no campo de concentração, acabaria por a ver como uma mulher dividida pelos seus instintos e pelas suas crenças em conflito. Por um lado, ela acreditava fervorosamente nos ideais do NacionalSocialismo, sonhando com o dia em que o Führer tornaria a Alemanha orgulhosa e grande de novo. Langefeld admiraria também Himmler até ao final, acreditando que o Reichsführer SS não fazia ideia dos crimes que os seus capangas cometiam em seu nome. No entanto, Johanna Langefeld nunca abandonou a sua fé religiosa, disse Grete, e sentia que era cada vez mais difícil compatibilizar os seus valores luteranos com a ordem de terror da SS na qual se via forçada a participar: «Por isso, ela vinha para o campo todas as manhãs a rezar e a suplicar a Deus que lhe desse força para evitar que acontecesse o mal. Que confusão desastrosa.» Contudo, apesar da sua confusão, a vida de Langefeld em Ravensbrück no início da primavera de 1942 parecia bem instalada. Tornara o seu apartamento, com vista para o lago, um lar feliz para Herbert, então com catorze anos, que frequentava a escola local em Fürstenberg juntamente com os filhos de outras guardas e brincava com eles na margem do lago. E, apesar das suas disputas com Max Koegel, Langefeld podia consolar-se com a ideia de que pelo menos Himmler ainda reconhecia as suas competências, particularmente a sua capacidade de manter 5000 prisioneiras na linha. Igualmente importante para uma administração competente, Langefeld conseguia chefiar com sucesso o número crescente de guardas e mantê-las satisfeitas. Um grupo eficiente de prisioneiras,

na sua maioria alemãs, checas e polacas, colaborava na gestão do campo. Na primavera de 1942, Langefeld concebeu até a ideia de montar um salão de cabeleireiro para o pessoal, o que a tornou popular junto de todas. A prisioneira checa-alemã Edith Sparmann foi uma das primeiras a ouvir falar do projeto. Um dia, na Lagerstrasse, perguntaram às prisioneiras se alguma tinha aprendido o ofício de cabeleireira. Edith, que trabalhava na altura na Effektenkammer, disse que sim e ordenaram-lhe que se apresentasse no gabinete da chefe das guardas. Ao princípio não compreendi, por isso disseram-me que iam montar um salão de cabeleireiro no campo para as guardas não terem de ir a Fürstenberg. Eu disse que iam precisar de escovas e de tesouras e de rolos e de ferros de frisar e de secadores. Elas pediram-me que trabalhasse lá. Lembro-me de que ficou a saber-se na Lagerstrasse que aquilo ia acontecer, e as prisioneiras do meu bloco disseram-me: «Então, arranjaste uma grande carreira.»

O salão foi montado numa velha oficina do outro lado do muro do campo de concentração em frente dos balneários, onde rapavam o cabelo às recém-chegadas. Trabalhavam lá três prisioneiras todo o dia. Havia bastante trabalho, já que a maior parte das guardas tinha marcação pelo menos de duas em duas semanas. «Elas gostavam de vir ao salão do campo», disse Edith, «porque era mais barato do que o da cidade — e igualmente bom. O caracol Olympia estava na moda na altura» — ergueu a mão à testa e fez um gesto floreado. «Era um caracol só, afastado da coroa da cabeça.» Edith acabou por conhecer bem as guardas, porque elas iam ao salão com muita frequência. Recordava-se de Dorothea Binz, embora ela não fosse uma das clientes habituais. E recordava-se também de Maria Mandl: Toda a gente sabia quem eram a Binz e a Mandl. Quando estavam encarregadas do bunker, preferiam ser elas a bater nas pessoas do que mandarem outras fazê-lo. A Binz costumava berrar às pessoas, mas no salão não nos gritava. Era tal e qual como uma cliente normal num salão de cabeleireiro. Não falava realmente connosco, só para dizer o que queria que fizéssemos — a Binz também tinha um caracol Olympia, mas trazia o cabelo mais comprido do que o das outras. Pelos ombros. Era

muito loura. Era naturalmente loura. Muitas pintavam o cabelo, mas a Binz não precisava de o fazer. E conversava com as outras clientes que lá estivessem. Perguntava em que turno estavam ou o que iam fazer à noite. Para nós, elas também eram como clientes normais.

Perguntei a Edith que tipo de penteado Johanna Langefeld preferia, mas ela disse que nem Langefeld nem a sua delegada Edith Zimmer iam ao salão. Ela não arranjava o cabelo — usava-o puxado para trás «num puxo mal feito», disse Edith. Em 3 de março de 1942, Heinrich Himmler fez mais uma visita a Ravensbrück. A sua agenda indica que chegou às onze da manhã e que ficou três horas. O seu principal objetivo naquele dia era conversar com Koegel sobre um problema que tinha surgido em Auschwitz. Na sequência da reunião de Wannsee seis semanas antes, os planos para começar a exterminar os judeus avançaram rapidamente. Estavam a ser abertos campos de morte em Belzec, Treblinka e Sobibor, todos no centro da Polónia. Um novo departamento (IVB4: Assuntos Judaicos — Assuntos de Evacuação) da direção da Segurança do Reich (RSHA), sob a direção de Adolf Eichmann, encarregava-se de organizar as operações de extermínio e estava prestes a enviar o seu primeiro transporte «oficial» de judeus para Auschwitz. Vinte mil judeus da Eslováquia deveriam chegar daí a três semanas. Aparentemente, Ravensbrück não estava envolvido nesses preparativos. O campo não tinha sido designado como centro de extermínio de judeus, ou campo de morte, e, de qualquer forma, ao abrigo dos novos planos, quaisquer judias que chegassem a Ravensbrück no futuro seriam transferidas para Auschwitz. No entanto, nesta fase avançada do processo, dois factos tinham sido trazidos à atenção de Himmler. Em primeiro lugar, que entre os prisioneiros eslovacos destinados a Auschwitz se encontravam 7000 mulheres. Em segundo lugar, que Auschwitz não estava equipado para receber mulheres. Até àquele momento, o campo só alojara

homens, na sua maioria combatentes da resistência polaca ou prisioneiros de guerra soviéticos. Claramente, não havia espaço em Ravensbrück para as 7000 judias eslovacas, e, de qualquer modo, já não era permitida a presença de judeus em solo alemão. Por conseguinte, à última hora Himmler deu ordem a Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, para que evacuasse uma zona do campo usada para o grupo de prisioneiros de guerra soviéticos, de que restavam poucos depois das execuções em massa, e que a reservasse para as judias que iriam chegar. A zona estava separada da secção dos homens por um muro e por uma vedação eletrificada. Talvez seja surpreendente que Himmler se tenha dado ao trabalho de separar as mulheres dos homens em Auschwitz, dado que, segundo os novos planos de Wannsee, todos os judeus seriam futuramente exterminados por meio de gás. Mas nem todos os que chegavam seriam exterminados no local. Auschwitz iria desempenhar um duplo papel na Solução Final: de trabalho escravo assim como de extermínio. Os judeus seriam poupados à câmara de gás desde que fossem considerados aptos para o trabalho. E enquanto permanecessem no campo era da maior importância que os sexos não se misturassem e, possivelmente, dessem origem a mais vidas indesejadas. A separação dos sexos era também uma parte útil da camuflagem concebida para garantir que os judeus que chegavam não adivinhassem o seu destino. Na opinião de Himmler, colocar as mulheres e os homens em secções separadas parecerlhes-ia mais normal, mais de acordo com um campo normal de trabalho escravo, o que lhes tinha sido dito que Auschwitz era. E as prisioneiras de Auschwitz não só deveriam ser separadas dos homens como deveriam ser vigiadas por guardas do sexo feminino. Também isso pareceria mais normal, não só para as prisioneiras para as guardas. Por conseguinte, foi para recrutar guardas para Auschwitz a tempo da chegada das primeiras judias que Himmler visitou Ravensbrück em 3 de março de 1942. Disse a Koegel que contava que ele fornecesse todo o corpo de guardas para a nova secção de mulheres de Auschwitz. Para além disso, mil prisioneiras

deveriam trabalhar lá como Kapos. Tinham de estar prontas até 26 de março, daí a três semanas, para estarem já nos seus postos na data prevista da chegada do transporte de eslovacas. Himmler disse também a Koegel que, como ninguém em Auschwitz tinha experiência da guarda de mulheres, toda a responsabilidade administrativa da sua nova secção de mulheres caberia às autoridades de Ravensbrück, e que a partir daquele momento as futuras guardas de Auschwitz seriam treinadas ali. Himmler queria que Johanna Langefeld se encarregasse da nova secção de mulheres de Auschwitz: ela era a guarda mais experiente que ele tinha. As mudanças implicavam uma enorme perturbação da rotina em Ravensbrück, mas Koegel, naturalmente, obedeceu às ordens de Himmler. Langefeld foi enviada a Auschwitz para conhecer o campo de concentração, regressando alguns dias depois. Às primeiras horas de 26 de março, partiu de novo de comboio, desta vez levando consigo mil prisioneiras para trabalharem como Kapos e um pequeno contingente de guardas. Existe pouca informação sobre as guardas que partiram para Auschwitz nesse dia, mas das catorze que Langefeld identificaria mais tarde, várias eram notoriamente brutais. Margot Drechsel teve um papel destacado no ajuntamento de vítimas para as câmaras de gás de Bernburg, e Elfriede Vollrath, uma mulher de Fürstenberg, era conhecida por gostar de espancar as prisioneiras, o mesmo podendo dizer-se de Elisabeth Volkenrath, uma guarda de vinte e três anos. As guardas que partiram para Auschwitz, no entanto, eram vastamente ultrapassadas em número pelas mil prisioneiras enviadas para serem Kapos. Entre elas havia cerca de cinquenta testemunhas de Jeová e uma vintena de prisioneiras políticas, na sua maioria comunistas alemãs, incluindo-se nesse grupo as favoritas de Langefeld, Bertha Teege e Luise Mauer. Havia também um grande número de «criminosas» e de associais. É surpreendente que um número assim tão elevado de Kapos fosse considerado necessário no novo campo de concentração para mulheres em Auschwitz. No entanto, dada a falta de guardas do sexo feminino com preparação,

claramente fora tomada a decisão — provavelmente pelo próprio Himmler — de permitir que estas prisioneiras já brutalizadas e desesperadas fossem encarregadas de manter a ordem e de o fazer como bem entendessem. Mais uma vez, os pormenores sobre estas mulheres são escassos. Havia indubitavelmente vários nomes notórios na lista, entre eles o de Philomena Müssgueller, a Kapo que fora dona de um bordel em Munique e era o terror do Strafblock, e uma outra prostituta odiada, chamada Elfriede Schmidt. No entanto, dado o seu grande número, a maioria deve ter sido selecionada aleatoriamente. Por exemplo, Agnes Petry, a prostituta de Düsseldorf sem dinheiro, apanhada com Else Krug na primeira detenção de «Asoziale» em 1938, pertencia a esse grupo. Else tinha morrido, transportada algumas semanas antes para a câmara de gás de Bernburg por se recusar a bater nas suas colegas. Agora, Agnes ia a caminho de Auschwitz para guardar outras prisioneiras à espera de uma morte semelhante, embora nem Agnes nem nenhuma das outras prisioneiras que partiram de comboio em março de 1942 pudessem saber o que traria o seu novo campo. Para além das polacas, que sabiam da existência do campo de concentração porque alguns dos seus familiares tinham sido enviados para lá por serem da resistência, poucas prisioneiras em Ravensbrück tinham ouvido falar de Auschwitz em março de 1942. Aparentemente, a própria Langefeld sabia muito pouco. Ao regressar da sua visita, disse a Teege e a Mauer que vira prisioneiros «num estado terrível», mas foi tudo. Segundo Grete Buber-Neumann, Auschwitz era tão pouco conhecido na altura que várias prisioneiras de Ravensbrück se ofereceram como voluntárias para irem para lá como Kapos em março de 1942, pensando que as condições poderiam ser melhores. Enquanto o comboio avançava para leste, passando pelas ruínas de cidades polacas, pelo menos uma das mulheres mudou de ideias e conseguiu escapar. Embora pouco se saiba sobre a forma como as mulheres de

Ravensbrück foram selecionadas para trabalharem em Auschwitz, sabemos bastante sobre o que aconteceu quando chegaram, em grande medida graças a Bertha Teege e a Luise Mauer, que deixaram ambas relatos vívidos. O seu comboio chegou a Auschwitz a meio da manhã de 26 de março, só algumas horas antes da chegada das primeiras prisioneiras judias. Ao princípio, as mulheres de Ravensbrück não viram nada que as surpreendesse. A paisagem à volta do campo era mais desoladora do que aquela a que estavam acostumadas; em vez dos bosques e dos lagos de Ravensbrück, viram planícies cinzentas e vazias, pontuadas por vilas bombardeadas. E o campo de concentração era a uma escala muito maior, com blocos construídos com tijolos, mais sombrios do que os barracões de madeira pintada com que estavam familiarizadas. Ao entrarem pelos portões, viram que a secção das mulheres estava deserta. A primeira ordem que receberam — para se porem em sentido na Lagerstrasse — não constituiu surpresa. De facto, permaneceram de pé durante quatro horas enquanto a mulher que tinha escapado era procurada, trazida perante elas e chicoteada. Foi a meio da tarde que as judias chegaram por fim, vindas de Poprad, na Eslováquia. Por coincidência, assim como 999 mulheres tinham chegado de Ravensbrück, também o primeiro grupo de judias eslovacas era constituído por 999 mulheres. «As eslovacas eram pessoas bem nutridas, com estudos e bem arranjadas, com imensa bagagem», recordou Bertha Teege, que estava tão acostumada a ver as judias como as miseráveis que Ravensbrück fizera delas que agora mal conseguia acreditar no que via. Disseram-lhe que as eslovacas tinham trazido bagagem porque todas tinham visto os avisos na sua terra a dizer-lhes que iriam para um campo de trabalho por três meses e que deveriam trazer vestuário, roupa de cama e alimentos até um máximo de cinquenta quilos. «De facto», escreveria mais tarde, «todas trouxeram o melhor que tinham e todas estavam firmemente convencidas de que seriam postas a trabalhar.»

Uma das judias deixou cair um saco e espalharam-se laranjas pela Lagerstrasse. «Saltaram-me os olhos da cabeça», disse Teege, que já não via uma laranja há anos. Comunicou o incidente a um oficial sénior da SS, Hans Aumeier, que lhe respondeu: «Que se lixem as tuas laranjas, sua merdas.» Às eslovacas foi mandado tirar a roupa, um processo com que as prisioneiras guardas de Ravensbrück já estavam familiarizadas, mas a diferença ali era que nenhum dos seus pertences fora registado. «O nosso primeiro pensamento foi, porque é que os pertences das prisioneiras estão todos misturados? Mais tarde, com certeza que as mulheres vão reaver o que é delas.» As peças de vestuário foram também atiradas para um grande monte e os alimentos que tinham trazido postos à parte. As eslovacas tiveram então de ficar nuas à espera do «banho», descrito por Luise como uma banheira de oito metros de largura na qual todas as mulheres tiveram todas de tomar banho na mesma água. O exame ginecológico, já bastante brutal em Ravensbrück, foi ali realizado pelas prostitutas associais de Ravensbrück mais grosseiras, a quem foi dito que procurassem não doenças, mas joias escondidas. Algumas das judias eram muito jovens, com catorze anos, e muitas eram virgens, um facto que encantou os SS que estavam a assistir e que berravam obscenidades. Chegou um médico da SS que disse que não acreditava que aquelas jovens judias fossem todas virgens e que averiguaria ele próprio. Foi distribuído vestuário, mas, em vez das peças às riscas limpas de Ravensbrück, as eslovacas receberam uniformes masculinos rasgados, imundos e infestados de piolhos, tirados aos russos que tinham ocupado o seus blocos antes de serem executados. As mulheres foram de tal modo apinhadas nos blocos vagos que muitas não tinham cama e muito menos roupa de cama. Bertha Teege escreveria mais tarde que ela e a sua amiga Luise Mauer estavam «inocentes» em relação a tudo aquilo — «Ao fim de algumas horas em Auschwitz, não fazíamos ideia do que tudo queria dizer.» Demoraria anos até os historiadores esclarecerem o que

significaram aqueles acontecimentos; a chegada dos judeus eslovacos em 26 de março de 1942 foi o primeiro transporte «oficial» de judeus, enviados para Auschwitz por Adolf Eichmann, o homem encarregado de implementar a Solução Final. No entanto, embora as prisioneiras políticas alemãs não fizessem ideia do que se passava, parecem ter tido a sensação de que se encontravam perto do epicentro de uma monstruosidade ainda não conhecida. «Vinte e seis de março de 1942 — nunca esquecerei essa data», escreveria mais tarde Bertha Teege. Embora «inocentes», estas duas prisioneiras de Ravensbrück talvez não se encontrassem num estado de total inocência. Em Ravensbrück, estavam a par dos métodos nazis. Ambas tinham presenciado a forma como as judias eram tratadas e ambas tinham visto as seleções para os transportes de morte 14f13 e ajudado Langefeld a organizá-las. Por conseguinte, estas mulheres estavam mais acostumadas do que a maioria a certos sinais. Em particular, estavam habituadas à fantochada montada pela SS para disfarçar o que fazia. Apenas dois dias após a chegada das eslovacas, Bertha Teege estava a trabalhar no gabinete de Langefeld quando lhe entregaram uma caixa com 700 cartas escritas pelas eslovacas aos seus entes queridos. Todas tinham recebido papel e lápis e tinha-lhes sido prometido que as cartas seriam enviadas. Teege recebeu ordem de queimar as cartas numa fornalha, o que fez, sob supervisão. Ao longo dos oito dias seguintes foram chegando mais transportes da Eslováquia e na semanas seguintes chegaram mais judeus da Roménia, da Hungria e da Alta Silésia, de modo que no final de abril havia já 6700 prisioneiras na nova secção de mulheres de Auschwitz. Este número era mais elevado do que o de prisioneiras em Ravensbrück — em abril de 1942, cerca de 5800 — e, com o aumento do número de prisioneiras, Teege e Mauer começaram a observar mais sinais do seu destino provável. As condições eram tão abismais que as mulheres, antes tão bem arranjadas, estavam agora cobertas de piolhos pretos e com bolhas de sarna. As descrições de Teege e de Mauer da secção das mulheres são

semelhantes às do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss. Nas suas memórias, escritas enquanto aguardava a sua execução, dedica várias páginas à secção das mulheres, que parece tê-lo fascinado quase mais do que qualquer outra parte do campo. As condições aí eram atrozes, diz ele, e muito piores do que no campo dos homens, em grande medida devido à extrema sobrelotação nos blocos femininos. Desde o princípio, as prisioneiras foram ali «amontoadas até ao teto». As parcas instalações sanitárias não tardaram a ressentir-se e as mulheres faziam as suas necessidades onde calhava. Um prisioneiro enviado com um recado do campo dos homens disse que as condições nos blocos das mulheres «ultrapassavam tudo o que pudesse imaginar-se e tudo estava preto com piolhos». As mulheres estavam a morrer com tifo ou a matar-se primeiro. Segundo Teege e Mauer, as condições nos grupos de trabalho das mulheres eram também piores do que tudo o que tinham visto em Ravensbrück. Guardas masculinos com cães vigiavam as mulheres no trabalho, e homens da SS a cavalo e com metralhadoras patrulhavam a zona. Quem tentasse escapar era morta a tiro, e os oficiais apresentavam relatórios «para causar boa impressão ao comandante e obter um dia de folga em Katowice». Bertha Teege sabia isto, porque estava encarregada de arquivar os relatórios. Frequentemente, as trabalhadoras não tinham nada para comer, porque o pão estava com bolor e a desculpa dada pelos «guardas bandidos da SS» era que era «pilhado em França» e que não tinham mais nada. As mulheres do primeiro transporte eslovaco foram enviadas para o trabalho de demolição de casas bombardeadas na zona. «Tinham de as deitar por terra», recordou Bertha, «batendo nas paredes com bastões de ferro compridos e muito pesados.» Havia um grande número de ferimentos e de mortes e os grupos que regressavam do trabalho constituíam uma visão terrível, com as mulheres a voltarem mordidas pelos cães, espancadas e muitas vezes a carregarem os corpos das mortas.

Teege e Mauer descobriram «a pouco e pouco» quais eram «as instalações e os métodos» usados aqui, e compreenderam que a SS tinha criado deliberadamente aquelas condições para se assegurar de que as mulheres albergadas no campo de concentração morreriam. «Nunca nos livrávamos do horror», escreveu Bertha, «e a acrescentar a isso havia a perspetiva constante de sermos nós próprias uma das vítimas um dia.» Höss, em contraste, culpava as próprias prisioneiras do horror do campo de concentração das mulheres. «Quando as mulheres batiam no fundo, deixavam-se ir completamente», disse ele. «Andavam por ali aos tropeções como fantasmas sem vontade própria e tinham de ser empurradas para toda a parte pelas outras, até chegar o dia em que morriam discretamente.» Höss gostaria que acreditássemos que para ele aqueles «cadáveres de mulheres aos tropeções» eram «uma visão terrível». Não havia nada que ele pudesse fazer quanto a isso, disse, e culpava a falta de pessoal e a própria Langefeld: «Para pôr aqueles formigueiros sobrelotados na ordem devida seria necessário mais do que algumas supervisoras de Ravensbrück que me foram atribuídas. A chefe das supervisoras daquele período, Frau Langefeld, não era de maneira nenhuma capaz de lidar com a situação.» No entanto, como Teege e Mauer começavam também a constatar rapidamente, as mulheres que não faziam a vontade à SS morrendo eram assassinadas, pura e simplesmente. As execuções aconteciam de tempos em tempos em Ravensbrück, mas essas mortes — sempre fora de vista — eram usualmente levadas a cabo individualmente e não podiam comparar-se com as execuções em massa que se praticavam ali, como Luise ficou a saber quando uma amiga a convidou a espreitar por um buraco na parede de um dos barracões. Ali, viu entre quinze e dezoito pessoas, homens e mulheres, mortas por terra, algumas com crianças nos braços. Os homens da SS estavam a disparar sobre os mortos e os vivos indiscriminadamente. Segundo Bertha Teege, as prisioneiras de Auschwitz não faziam

ideia da existência das câmaras de gás. É plausível, porque nesta fase inicial da carnificina, o campo só tinha uma câmara de gás que mal fora ainda usada e se encontrava meio escondida subterraneamente, com relva por cima. Quando se processavam as mortes, supostamente ninguém se encontrava nas imediações, mas Bertha Teege foi investigar um dia e ouviu gritos. Depois de cerca de duas semanas no campo de concentração, Luise Mauer foi chamada ao gabinete de Langefeld e recebeu instruções para fazer todas as prisioneiras «desaparecer» da Lagerstrasse. Fez o que lhe mandaram e ao regressar ao gabinete só encontrou a sua amiga Bertha. Todas as outras pessoas, incluindo os elementos da SS, tinha saído. Meia hora depois, cerca de 300 mulheres, crianças e homens, jovens e velhos, de boa saúde e doentes, alguns caminhando com o auxílio de muletas, começaram a aproximar-se pela Lagerstrasse, ladeados por homens da SS com cães. Estes conduziram os prisioneiros para dentro de um túnel, uma espécie de corredor subterrâneo que levava a um espaço que parecia um silo gigante com poços de ventilação. Dois homens da SS com máscaras de gás despejaram latas para os poços. O ar encheu-se com berros e gritos terríveis, os das crianças mais prolongados, que se foram desvanecendo e transformando em gemidos. Ao fim de quinze minutos, tudo era silêncio. «Soubemos que 300 pessoas tinham acabado de ser assassinadas», disse Luise Mauer. A matança que ela testemunhou foi, provavelmente, o primeiro extermínio por gás em Auschwitz. Uma hora depois, Johanna Langefeld apareceu no escritório com um ar pálido e perturbado. Ficou ainda mais perturbada ao encontrar Teege e Mauer ali, e perguntou-lhes se tinham visto o que acontecera. Quando elas responderam que sim, Langefeld disse-lhes que não soubera antes que andavam a matar pessoas ali. Disse: «Por amor de Deus, não digam a ninguém o que viram, senão vão também para a câmara de gás.» Quase de imediato, Langefeld apresentou um protesto ao Obergruppenführer Oswald Pohl, o chefe da direção central

económico-administrativa da SS, que fez uma visita de inspeção ao campo de concentração pouco depois daqueles acontecimentos. Em declarações posteriores aos interrogadores americanos, Langefeld disse: «Eu aproveitei a primeira oportunidade para abordar o estado de coisas com o tenente-general Pohl.» Mas Langefeld é vaga em relação à natureza do estado de coisas que abordou. Com base nos comentários subsequentes que fez, parece altamente improvável que tenha mencionado especificamente o extermínio por gás; é mais provável que tenha questionado as disposições administrativas e que se tenha queixado de não estar a ser consultada em relação a decisões que afetavam o campo de concentração das mulheres. Como chefe das guardas, Langefeld acreditava firmemente que deveria ter autoridade exclusiva sobre o campo de concentração das mulheres e que os oficiais da SS deveriam manter-se afastados. Acreditava que, se este princípio tivesse sido estabelecido, ela poderia ter influenciado os acontecimentos para melhor, como sentia que tinha feito em Ravensbrück. Pohl, no entanto, não estava «recetivo» às suas queixas, diria ela mais tarde. Convencida de que dominava as regras, Langefeld apresentou novo protesto, desta vez ao quartel-general em Oranienburg. No seu relato aos interrogadores americanos, declarou que pediu ao quartelgeneral que confirmasse que, «segundo as regras da SS, em questões relativas às mulheres é a chefe das guardas quem determina os procedimentos». As autoridades superiores concordaram com ela, disse Langefeld, mas a SS local — ou seja, Rudolf Höss — rejeitou a decisão, minando assim ainda mais a sua autoridade em Auschwitz. O resultado foi que ela solicitou a sua transferência para Ravensbrück, mas o pedido foi recusado, e a partir desse momento ela envolveu-se numa luta de poder com Höss. Langefeld recusava-se a aceitar ordens do homem da SS, Hans Aumeier, que Höss nomeara como seu superior, e o próprio Höss recusava-se a permitir que qualquer homem da SS recebesse ordens dela. Entretanto, segundo a descrição de Höss, as condições no campo de concentração das mulheres pioravam, particularmente

porque as guardas estavam a tornar-se cada vez mais depravadas. O problema, diz Höss, é que, enquanto essas guardas estiveram em Ravensbrück, foram «totalmente estragadas»: «Fizeram tudo para as persuadir a ficar nos seus postos no campo de concentração para mulheres [de Ravensbrück] e ao oferecer condições de vida extremamente boas esperava-se atrair novas recrutas.» Em Ravensbrück, «o trabalho delas não era particularmente oneroso, já que não havia ainda sobrelotação», enquanto em Auschwitz as guardas tinham de trabalhar «nas condições mais difíceis». «Desde o início», afirma Höss, «a maioria queria fugir e voltar para o conforto sossegado e a vida fácil em Ravensbrück.» Assim, Langefeld começou a perder o controlo das suas próprias guardas, que corriam «para aqui e para ali em toda esta confusão como um bando de galinhas alvoroçadas». No meio do caos, as testemunhas de Jeová, que tinham também chegado de Ravensbrück para trabalharem como Kapos, entraram em greve de fome e declararam: «Hitler e os seus vassalos são os instrumentos do diabo.» Várias foram enforcadas, mas Höss escolheu algumas que não tinham aderido ao protesto para trabalharem na sua casa. Escreveria mais tarde que aquelas mulheres alemãs religiosas, que alcunhou de «abelhas da bíblia», eram diferentes das outras prisioneiras: «A minha esposa dizia com frequência que ela própria não conseguiria tratar de nada melhor do que elas.» Não tardou muito, diz Höss, a instalar-se a imoralidade. Uma das guardas «desceu ao ponto de se tornar íntima de alguns dos prisioneiros, principalmente dos Kapos «verdes». Habitualmente, a mulher tinha relações sexuais com esses Kapos, que em troca lhe davam joias roubadas da montanha de bens preciosos tirados aos judeus que chegavam ao campo. O que Höss não nos diz é que tanto alguns homens da SS como ele estavam igualmente a aproveitar-se dessas mesmas transações. Höss andava envolvido com uma prisioneira austríaca, Nora Hodys, originalmente de Ravensbrück, que trabalhava no depósito de joias. Ela ajudava-o a levar joias clandestinamente para fora do campo.

Instaurou-se um inquérito interno da SS, que foi rapidamente abandonado, mas não sem que antes se ficasse a saber que Höss tinha mandado arranjar um quarto para se encontrar com Hodys num dos blocos das mulheres. Segundo provas apresentadas no inquérito, Johanna Langefeld encarregou-se dos preparativos, embora o que ela teve a dizer sobre este assunto não se encontre registado. No entanto, Langefeld confirmou que a sua capacidade de influenciar os acontecimentos na secção das mulheres foi minada pelo comportamento cada vez mais dissoluto das suas guardas. Há amplas provas de deboche sob a influência do álcool envolvendo as guardas de Ravensbrück, particularmente na cantina do pessoal de Auschwitz. Como Langefeld diria mais tarde: «Um grande número de mulheres guardas ficou sob a influência de homens da SS com quem tinham travado relações íntimas.» Teege e Mauer admitiram que os «assuntos internos» na secção das mulheres estavam agora «descontrolados». No depósito de vestuário, onde trabalhava Philomena Müssgueller, as guardas e as Kapos «metiam coisas aos bolsos». Quanto às condições de vida, havia «falta de tudo», e no seu bloco privilegiado havia «até uma janela na porta para os guardas do sexo masculino olharem lá para dentro». Ao mesmo tempo, aquelas duas prisioneiras políticas eram cada vez mais solicitadas a assumir o papel de guardas. Bertha Teege disse que tal se devia ao facto de as guardas em Auschwitz serem «muito preguiçosas» e até se recusarem a ficar para a chamada do fim do dia, que tinha de ser ela a fazer. Não tardou que fossem estas duas prisioneiras comunistas a terem de fazer a pré-seleção para as câmaras de gás. Era uma tarefa de que tinham sido incumbidas pela primeira vez em Ravensbrück, em dezembro. Nessa ocasião, disseram-lhes que as prisioneiras iam ser transferidas para um hospital — uma mentira em que elas tinham decidido acreditar. Em Auschwitz, ouviram a mesma mentira e foi-lhes dito que os médicos tomariam a decisão final, «mas sabíamos agora que o hospital era a câmara de gás», e ambas nos dizem que se

recusaram a fazer as seleções. «Fomos bastante francas sobre isso com a Langefeld», disse Teege, que acrescenta que Langefeld compreendeu as suas razões e não comunicou a sua insubordinação. Em vez disso, assegurou-se de que seriam as guardas oficiais a fazer a pré-seleção. Teege e Mauer dizem que começaram a tentar avisar as chefes dos blocos sobre o extermínio por gás, instando-as a persuadir as prisioneiras que se encontravam doentes a fingirem que estavam aptas para o trabalho, mas as suas tentativas raramente foram bemsucedidas. «Corríamos pelos blocos antes de chegarem os médicos e pedíamos às mais idosas para pelo menos fingirem que estavam a trabalhar, mas elas só diziam que tinham dores pelo corpo todo.» O dilema de ambas era que não podiam dizer às prisioneiras que as escolhidas iriam para as câmaras de gás — «fazê-lo implicaria pôr em risco a nossa própria vida». Uma vez, Mauer adoeceu com tifo e quase foi mandada para as câmaras de gás, porque os selecionadores não abriam exceções para os não-judeus. Uma outra tarefa atribuída às duas prisioneiras comunistas era o tratamento das crianças do campo de concentração. Um dia, um menino de quatro anos foi-lhes entregue e disseram-lhes para encontrarem a mãe dele. Conseguiram encontrá-la e presenciaram um «reencontro comovente». No dia seguinte, a mãe e o filho foram assassinados na câmara de gás. Durante todo este tempo, Langefeld, Teege e Mauer desenvolveram um ódio ainda mais profundo pelos homens da SS, em particular por Hans Aumeier, o homem de Höss, que vinha ao campo das mulheres, bêbedo e a dizer palavrões, para as assediar e minar ainda mais a autoridade de Langefeld. Em 18 de julho de 1942, um dia muito quente, quatro meses depois da chegada das mulheres de Ravensbrück, Auschwitz preparou-se para uma visita de Heinrich Himmler. Ele chegou com um grande séquito e exigiu que o conduzissem numa visita exaustiva ao campo. Mas antes informou Höss da sua decisão de acelerar o extermínio por gás dos judeus da Europa: a partir daquele momento, o programa de

Eichmann de transporte e extermínio dos judeus intensificar-se-ia mês após mês. Os campos de morte em Belzec, Treblinka e Sobibor já se encontravam em atividade e planeavam-se já mais centros de extermínio por gás. A construção de um vasto novo complexo em Birkenau, a dois quilómetros do campo principal de Auschwitz, estava já terminada, e o novo equipamento de gás tinha sido instalado. Ao inspecionar o campo de Birkenau nesse dia, disse Himmler a Höss, ficou «com as pernas bambas». Ao mesmo tempo, ordenou-lhe que incrementasse o ritmo do extermínio em Auschwitz — uma demonstração de como «um homem tem de superar a sua fraqueza para se manter duro», escreveu Höss. Himmler não só inspecionou as instalações para o extermínio como também as fábricas de trabalho escravo, e concordou com Höss na implementação de um novo sistema segundo o qual os trabalhadores úteis seriam identificados à partida; no futuro, os prisioneiros que chegassem de comboio seriam selecionados numa rampa à chegada e enviados para a câmara de gás ou para as fábricas. A visita de julho proporcionou também a Himmler uma oportunidade para satisfazer o seu especial interesse pela agricultura; pediu para ver o curral do gado de Auschwitz, onde provou um copo de leite. A seguir, pediu para ver a secção das mulheres, que fora recentemente transferida para Birkenau. Esta visita deu a Langefeld uma oportunidade para apresentar pessoalmente um protesto ao Reichsführer sobre a situação das mulheres no campo, e ela preparou cinco prisioneiras «merecedoras», que tinham vindo consigo de Ravensbrück, na esperança de que ele lhes concedesse a libertação antecipada. Fizeram-na esperar, no entanto, enquanto Himmler assistia à aplicação de chicotadas a algumas mulheres. Uma mesa de cavalete tinha sido montada para o efeito. Segundo Bertha Teege, que ajudou a preparar as vítimas, dez mulheres foram perfiladas para serem chicoteadas diante de Himmler naquele dia, entre elas cinco testemunhas de Jeová, quase desfalecidas devido à greve de fome que tinham feito, e cinco judias

de várias nacionalidades, «que eram bem constituídas, diga-se». Sete dessas prisioneiras acabariam por ser chicoteadas, mas todas tiveram de esperar nuas todo o dia até chegar o momento da sua punição. «Perto do fim da tarde, os cavalheiros chegaram nos seus carros, com um séquito de mirones curiosos atrás deles», recordou Bertha Teege. «Himmler lançou um olhar às prisioneiras perfiladas, mandou que lhe apresentassem as mulheres nuas e depois passou a maior parte do seu tempo aqui a assistir ao castigo corporal das prisioneiras.» No final, emitiu uma ordem segundo a qual no futuro as chicotadas deveriam deixar de ser aplicadas pelas guardas, mas sim por uma prisioneira, como acontecia em Ravensbrück. «É triste ter de o dizer, mas algumas putas embrutecidas — não há outro nome para aquelas mulheres — ofereceram-se como voluntárias com grande entusiasmo», disse Teege. Himmler e o seu séquito aproximaram-se em seguida das filas de prisioneiras e Langefeld avançou para propor a libertação das suas mulheres. Segundo Teege e Mauer, Himmler dirigiu-se às candidatas à libertação uma a uma, perguntando-lhes porque estavam detidas. Mauer explicou que era comunista e que o seu marido fora em tempos membro do parlamento de Estado pelo Partido Comunista Alemão. Himmler perguntou: «Ainda és comunista?», ao que Mauer respondeu que sim. «Qual é a tua opinião sobre o NacionalSocialismo?» Mauer respondeu que já estava na prisão há tanto tempo que tinha poucas opiniões positivas. Himmler disse-lhe que ela deveria familiarizar-se com o poder nacional-socialista e que seria libertada após um período de um ano à experiência, durante o qual trabalharia como cozinheira para a SS. Outras foram libertadas com condições similares, embora Bertha Teege tenha sido libertada mais rapidamente. Questionada por Himmler, Teege prometeu «esforçar-se por se adaptar como cidadã», e foi-lhe dito que poderia voltar para junto da sua família em Berlim imediatamente, sob supervisão policial. «Ele

deu-nos um aperto de mão e foi-se embora.» Alguns dias depois, Bertha foi acompanhada por um guarda até ao portão. Correu sem parar até à estação de caminhos de ferro. O relato desse dia feito por Johanna Langefeld inclui mais uma troca de palavras com Himmler. Essa troca de palavras é reveladora, tanto pela luz que lança sobre Langefeld e as suas prioridades como porque ilumina o modo peculiar como funcionava a mente de Himmler. A conversa entre os dois disse respeito à questão da autoridade de Langefeld no campo de concentração. A preocupação crescente de Langefeld, ao que parece, era o modo como a SS estava a manipular as Kapos que ela tinha trazido de Ravensbrück e a usá-las contra ela. Para ilustrar a sua queixa, Langefeld explicou que tinha recentemente julgado uma questão disciplinar envolvendo uma prisioneira judia chamada Gorlitz, acusada de roubar maçãs. Quando Langefeld investigou o caso, tornou-se-lhe claro que uma das Kapos, uma associal, dissera a Gorlitz que roubasse a maçã enquanto estava a trabalhar. Langefeld ilibou a judia e puniu a Kapo, mas esta queixouse a Hans Aumeier, que por sua vez acusou Langefeld de proteger uma Judenweib, uma mulher judia. Esta interferência era inaceitável, disse Langefeld. Himmler prometeu debruçar-se sobre o assunto e em seguida deu uns passos ao longo da fila de prisioneiras, parando diante de uma associal alemã, uma mulher alta e loura, e perguntando-lhe: «Como é que uma mulher tão linda como tu pode ser associal? Porque é que não te casaste, não constituíste família, não tiveste filhos?» Aumeier interrompeu-o naquele momento, dizendo que aquela era «a cadela» envolvida no incidente que acabara de ser discutido com Langefeld. Himmler olhou para Aumeier e disse-lhe rispidamente: «Como se atreve a chamar a uma mulher um tal palavrão feio?» Segundo Höss, no entanto, Himmler não deixou por ali a questão da secção das mulheres. Antes de partir do campo, deu ordens específicas para que fosse concedido mais poder às Kapos, não menos, minando assim ainda mais a autoridade de Langefeld na

secção das mulheres. Na opinião de Höss, essas Kapos eram «criaturas verdadeiramente repulsivas» que «ultrapassavam de longe os seus equivalentes masculinos em dureza, miséria, impulsos vingativos e depravação». Aparentemente, Himmler concordou e disse a Höss que fizesse mais uso delas. Höss diz que Himmler observou as mulheres «verdes» e «pretas» — presumivelmente durante a aplicação das chicotadas — e, vendo o seu «desejo de fazer mal às outras prisioneiras», decidiu que eram «particularmente adequadas para serem Kapos das judias». Com a sua visita ao campo de concentração agora completada, Himmler saiu de Auschwitz a toda a pressa para nunca mais voltar.

CAPÍTULO 12 COSTURA Quando as novas instalações alargadas das câmaras de gás começaram a funcionar em Auschwitz-Birkenau, Helmut Kuhn, um marceneiro de Fürstenberg, estava ainda a fazer caixões para as mortas de Ravensbrück. Uma carruagem funerária puxada por um cavalo e conduzida por Herr Wendland, da empresa de transportes Wendland, levava os caixões pela cidade até ao crematório de Fürstenberg. Em cada caixão havia uma chapa metálica em que estava inscrito o nome e o número da prisioneira morta. Na sua oficina de marcenaria, Herr Kuhn fabricava todo o tipo de coisas para o campo de concentração. Atualmente, o seu filho Erich ainda vive por cima da velha oficina do outro lado do lago. «Não só caixões. Fazíamos portas, prateleiras, beliches. Eu costumava ir com o meu pai para tirar medidas e instalar o que fabricávamos.» Erich Kuhn diz que não via grande coisa. «Toda a gente se limitava a preocupar-se consigo própria naqueles tempos. Fazíamos o nosso trabalho e íamo-nos embora.» Mas lembra-se de ver prisioneiras a atravessarem a cidade. «Uma vez, ouvi dizer que as pessoas da cidade cuspiam nas prisioneiras, mas não acreditei. A maior parte das pessoas desviava logo o olhar.» Sobre a mesa encontra-se um velho livro de encomendas, e ele folheia-o e lê: «SS... Encomenda de portas... 301 reichsmarks. Fazíamos um bom trabalho. Algumas portas ainda lá estão.» Mas o fabrico de caixões interrompeu-se a meio da guerra, porque o campo de concentração construiu o seu próprio crematório. Só as Prominente, as prisioneiras importantes, passaram a ter caixões a partir dessa altura, diz ele. «Eles não se davam a esse trabalho para as outras.» Desde o início, Ravensbrück desenvolveu-se de um modo caseiro,

por assim dizer. Como era o único campo de concentração para mulheres, estava menos vinculado a diretrizes centrais do que os campos de concentração para homens. Talvez por ser mais pequeno e mais periférico — pelo menos inicialmente —, Ravensbrück desenvolveu laços locais mais fortes. Em 1942, as ligações do campo de concentração com a sua comunidade local eram evidentes a vários títulos. Havia prisioneiras a trabalharem em quintas das redondezas, na apanha da beterraba ou da batata, enquanto outras eram contratadas em pequenos números para trabalharem em oficinas na cidade, ao abrigo de contratos negociados legalmente. Da sua sala de aulas em Fürstenberg, Wolfgang Stegemann via as mulheres passarem a marchar, vestidas com as suas roupas às riscas. Havia também filhos de guardas e de oficias da SS na sua turma. «Vinham todos a pé do campo de concentração em grupo. Não falávamos muito com eles. Sentíamos inveja, porque eles tinham comida melhor do que nós.» O pai de Wolfgang era proprietário de uma lavandaria na cidade, onde trabalhavam vinte prisioneiras a lavar roupa — fardas militares e vestuário das prisioneiras. «Por vezes, o meu pai metia um pedaço de pão às escondidas na roupa. Eu não compreendia como é que ele conseguia fazê-lo, mas não perguntava nada. Ninguém perguntava nada.» Os sapatos de palha feitos pelas prisioneiras eram vendidos localmente. E durante algum tempo a Kuntsgewerbe, a oficina de artes das prisioneiras, vendeu brinquedos às escolas locais. Por vezes, até o próprio Himmler mostrava interesse. Numa das suas visitas, parou e pôs-se a observar as mulheres a trabalharem, admirando muito uma carruagem ornamental esculpida em madeira. Mais tarde, vieram umas guardas embrulhá-la e toda a gente soube que se destinava ao Reichsführer SS. Era através das guardas e das suas famílias que o campo de concentração desenvolvia os laços mais fortes com a comunidade local. Ao chegar o verão de 1942, a necessidade de novas guardas fazia-se já sentir, não só porque Ravensbrück estava a expandir-se

mas também porque se treinavam agora guardas no campo para trabalharem também na secção de Auschwitz. O recrutamento estendia-se a outras paragens, mas as mulheres da zona ainda continuavam a concorrer aos postos de trabalho — jovens como Irma Grese, a filha de um leiteiro de uma vila nas imediações. Grese, uma jovem de dezanove anos perturbada cuja mãe cometera suicídio quando ela tinha doze, tinha a esperança de trabalhar como enfermeira, mas contentou-se com um emprego no campo de concentração. Os atrativos eram óbvios — o uniforme, o alojamento grátis — e eram agora oferecidos mais incentivos, entre eles um salão de cabeleireiro no local e bilhetes grátis para o cinema em Fürstenberg. As próprias guardas eram o melhor anúncio para o emprego. Com os seus casacos cinzento-rato, saias-calças, bonés e botas de pele, ao passarem pela rua principal de Fürstenberg eram a inveja das raparigas da zona. A partir de janeiro de 1940 passaram a usar um emblema com uma águia na manga esquerda e bonés que indicavam que eram funcionárias do Reich. As tratadoras de cães pavoneavamse também com os seus grandes pastores-alemães. «Acho que era o uniforme o que mais as atraía», diz Ilse Wiernick, que era filha de um professor de Fürstenberg. A sua família tinha parentes em Himmelpfort, uma vila da zona. «Havia uma guarda de Himmelpfort e eu lembro-me de um dia ela voltar com o uniforme vestido e de todas as pessoas da vila a adorarem e lhe dizerem que linda que estava.» Por esta altura, muitas tinham já formado relacionamentos com oficiais da SS, e várias tinham ficado grávidas. Uma das guardas deu à luz um menino no campo de concentração, recorda-se Ilse, mas não se casou e não lhe permitiram que ficasse com o bebé; ele foi criado pela sua irmã. Como o campo de concentração ficava muito próximo, quaisquer alterações ocorridas nele eram rapidamente notadas em Fürstenberg. No verão de 1942, a empresa gigante da indústria têxtil Texled, sediada em Dachau, abriu novas e vastas instalações na zona e as

pequenas oficinas de costura da cidade fecharam, perdendo-se negócio. Alguns funcionários da Siemens, a empresa de eletrónica, encontravam-se alojados no hotel de Fürstenberg e dizia-se que havia planos para montar uma fábrica no campo de concentração, embora ninguém soubesse o que isso significaria para a cidade. Entretanto, o trabalho de Herr Wendland estava a expandir-se; a sua carruagem funerária fazia um número cada vez maior de deslocações. Em meados do ano, ele tinha já comprado um veículo a motor para transportar a carga, e o livro de encomendas de caixões de Herr Kuhn encontrava-se também cheio — estando o aumento da procura relacionado com o som de disparos que ecoavam pelos bosques ao fim da tarde. Cerca de uma hora depois, um homem da SS chamado Arthur Conrad vinha com amigos beber num bar no centro da cidade. Gabava-se da sua perícia: o Genickschuss — um tiro de uma pistola de 7.65 mm na nuca, seguido, se necessário, por um tiro no coração. Com a disseminação de boatos sinistros, algumas das mulheres mais velhas suplicavam às mais jovens que não aceitassem o posto de guarda, diz Ilse Wiernick. Tentaram persuadir Margarete Mewes a desistir do emprego. Mewes, que tinha três filhos, já trabalhava no campo há quase três anos, mas não lhes deu ouvidos. «Quando voltava para casa do trabalho, não conseguia olhar pelos filhos e deitava-se na cama.» A família de Ilse tinha uma criada chamada Elli Hartmann que também se tornou guarda, «e a minha mãe tentou impedi-la», diz Ilse. «Perguntou-lhe se achava realmente que era o emprego certo para ela. Mas a Elli disse que assim ganhava mais, e foi. Lembro-me de que ficou noiva de um oficial da SS que partiu para a frente de combate. A Elli era boa pessoa. O marido voltou e foram viver para a Alemanha Ocidental.» Os boatos do que acontecia em Ravensbrück chegavam também a vilas mais distantes. Dorothea Binz voltava de tempos em tempos a Altglobsow para visitar a família. A sua mãe estava muitas vezes bêbeda e tinha desistido de a convencer, mas a sua amiga dos

tempos da escola Ilse Halter recorda-se de a sua mãe ter um dia tentado convencer Dorothea a reconsiderar o que estava a fazer. Era um dos dias de folga de Dorothea e a mãe de Ilse, respeitada na vila, chamou-a lá a casa. «Queria descobrir o que se passava realmente no campo. Havia tantas histórias sobre aquele lugar, e a minha mãe queria saber a verdade», disse Ilse, que estava presente quando Dorothea veio a sua casa. A Dorothea disse à minha mãe que os boatos não eram verdadeiros. Disse: «Mas, Frau Schumann, tem de compreender que há criminosas e prostitutas no campo e mulheres que fazem mau uso da religião. Não são pessoas com educação.» A minha mãe deu a entender que ficou satisfeita com o que a Dorothea disse, mas acho que teve mas foi medo. O meu pai não pertencia ao partido, mas a minha mãe era mais neutra. Foi então que eu me apercebi de que a Dorothea era uma mentirosa. Olhei para ela e fiquei pasmada ao ver como o rosto dela tinha mudado desde que tinha ido trabalhar para lá. Estava mais duro. Mirrado, de alguma forma. Muitas vezes penso nisso.

Para as prisioneiras, a partida de Johanna Langefeld de Ravensbrück em março assinalou a primeira grande mudança de 1942 — uma mudança para pior, particularmente para as polacas. Era só graças a Langefeld que as polacas tinham obtido algum estatuto, e ocupar postos úteis no campo tinha «reduzido o ímpeto de interferir da parte das guardas», nas palavras de Maria Moldenhawer. A substituta de Langefeld como chefe das guardas foi a austríaca Maria Mandl, uma mulher de vinte e três anos cujo posto anterior de chefe das guardas do bunker passou a ser ocupado por Dorothea Binz. Mandl adorava «interferir». O seu passatempo especial durante a chamada era a caça ao caracol. Avançava lentamente ao longo das filas a inspecionar as cabeças das prisioneiras e se encontrasse uma madeixa encaracolada batia na cabeça da mulher em questão ou atirava-a ao chão ao pontapé. Dependendo da sua disposição, mandava rapar o cabelo à infratora e em seguida obrigava-a a desfilar diante das outras com um cartaz pendurado ao pescoço: «Infringi as regras e fiz caracóis no cabelo.» Maria Bielicka viu Mandl matar uma judia ao pontapé durante a

chamada. «Ela tinha feito algo de errado e primeiro foi esbofeteada e depois pontapeada.» Mas aconteceu uma coisa estranha depois disso. Eu tinha uma amiga que estava encarregada do trabalho da limpeza das instalações das guardas. Uma das guardas mais velhas tinha um piano no quarto. Um dia, a minha amiga entrou e ouviu uma música linda. A mulher que estava a tocar estava embrenhada num mundo só seu — em êxtase. Era a mesma guarda que tinha assassinado a mulher judia alguns dias antes.

No entanto, a nomeação de uma nova guarda das chefes em Ravensbrück não estava relacionada com as mudanças mais fundamentais no regime do campo que ocorriam na primavera de 1942 — mudanças ordenadas pelo próprio Reichsführer SS que a partir daquele momento ligariam o campo mais firmemente ao aparelho central da SS. Mais uma vez, o comentário de Maria Moldenhawer é astuto: «Nesta altura, ficámos com a clara impressão de que estavam a vir diretrizes duras das autoridades centrais. As autoridades do campo de concentração implementavam estas ordens implacavelmente, em contraste com os tormentos internos que tínhamos conhecido até àquele momento.» As primeiras dessas novas diretrizes duras foram sentidas no campo pouco depois da visita de Himmler em março. Embora o objetivo imediato da visita fosse, certamente, chegar a acordo quanto à transferência de guardas de Ravensbrück para Auschwitz, a preocupação mais alargada do Reichsführer por esta altura era a intensificação do uso por todos os meios possíveis do trabalho escravo dos campos de concentração. Na sequência da perda de Estalinegrado e de outros reveses no Leste, a esperança de uma vitória precoce contra Estaline tinha-se desmantelado. Com a certeza de que a guerra prosseguiria por mais tempo, a necessidade urgente de munições fazia-se sentir, mas havia falta de mão de obra. O resultado foi que cada vez mais mulheres de Ravensbrück, juntamente com prisioneiros de todos os campos de concentração, foram empregadas como trabalhadoras escravas no fabrico de equipamento militar, vestuário e armamento. Com esta nova

prioridade em mente, Himmler tinha visitado as oficinas em março e ficara furioso ao descobrir que as mulheres amarradas aos teares continuavam a fazer turnos de apenas oito horas. Foram introduzidos turnos de onze horas nas oficinas têxteis, bem como turnos noturnos, e quotas de produção mais exigentes. Nas suas conversas com o comandante, Himmler revelou também que se tinham encetado negociações com o gigante alemão da indústria eletrónica Siemens e com pessoal da Luftwaffe para se instalar em Ravensbrück uma fábrica onde se fabricariam peças elétricas para aviões de combate. Este plano tinha implicações alargadas para as prisioneiras: em breve, as mulheres seriam utilizadas como trabalho escravo numa das áreas-chave da produção de armamento. O contrato tinha igualmente implicações para a empresa Siemens & Halske, como se chamava então, consolidando as suas relações já bastante íntimas com o regime nazi. A fábrica da Siemens em Ravensbrück tornou-a uma das principais empresas alemãs a instalar uma unidade de produção num campo de concentração e a primeira de todas as empresas alemãs a explorar o trabalho escravo de mulheres. Fundada em 1847, a Siemens & Halske começara como uma empresa familiar, mas na década de 1930 era a maior empresa elétrica do país e, para preservar o seu domínio do mercado, colaborava com o Terceiro Reich de Hitler, garantindo contratos lucrativos de fabrico de armamento. Várias personalidades destacadas da empresa, entre elas Friedrich Lüschen, que inventou o primeiro cabo telefónico, aderiram à SS, e um dos diretores, Rudolf Bingel, tornou-se tão próximo de Heinrich Himmler que foi convidado a juntar-se ao seu círculo de amigos — os industriais alemães favoritos do Reichsführer. No período de preparação para a guerra, a Siemens, sediada em Berlim, perdeu milhares de trabalhadores, que eram chamados a combater. Para colmatar esta falta de pessoal, a empresa admitiu mais de 3600 judeus como trabalho escravo. Na esperança de que trabalhar para a Siemens os poupasse à deportação, os judeus

trabalhavam no duro, e a Siemens considerava-os elementos valiosos, especialmente as mulheres, com os seus dedos ágeis bem adaptados a um trabalho de precisão. No início de 1942, no entanto, como o transporte de judeus da Alemanha para as novas câmaras de gás na Polónia estava já em curso e a Siemens necessitava de outra nova força de trabalho, a perspetiva de trabalho escravo barato de mulheres em Ravensbrück não podia ter vindo em melhor altura. Além disso, o campo de concentração estava idealmente localizado fora da linha de fogo dos bombardeiros dos Aliados, dispunha de vias de comunicação excelentes e ficava a curta distância da sede da empresa em Berlim. Menos de uma semana depois da visita de Himmler ao campo de concentração em março de 1942, Oswald Pohl, o chefe económico do seu gabinete, escreveu à Siemens a prometer 6000 trabalhadoras do campo de concentração. A construção da fábrica iniciar-se-ia no princípio do verão. Entretanto, Ravensbrück ficou a par de outras novas diretrizes emitidas por Himmler relativas ao novo trabalho escravo, algumas das quais seriam implementadas mais cedo. Uma dessas diretrizes, explicitada numa carta a Pohl, envolvia a criação de bordéis nos campos de concentração masculinos, nos quais trabalhariam como prostitutas mulheres de Ravensbrück. Depois de visitar as pedreiras nos campos de concentração para homens em Mauthausen, onde prisioneiros cadavéricos estavam a morrer como tordos, Himmler tivera a ideia brilhante de revigorar os trabalhadores escravos acenando-lhes com o chamariz de cupões para uma visita a um bordel. Na opinião de Himmler, a perspetiva de sexo «encorajaria os homens a trabalharem melhor». Pouco depois de ser emitida esta ordem, o médico de Ravensbrück Gerhard Schiedlausky começou a selecionar mulheres de acordo com certos critérios. Às escolhidas foi dito que seriam libertadas após seis meses nos bordéis. Eram na sua maioria prisioneiras de triângulo preto, classificadas como associais e detidas em Ravensbrück precisamente por serem prostitutas. Agora, essas mesmas mulheres

poderiam obter a sua libertação antecipada trabalhando novamente como prostitutas nos campos de concentração masculinos. «As mulheres escolhidas tinham de ser bonitas, com bons dentes e sem infeções venéreas nem doenças de pele», recordou Schiedlausky. As primeiras a partir foram doze prisioneiras destinadas a bordéis em Mauthausen, quatro para Dachau, catorze para Buchenwald e doze para Flossenbürg. Edith Sparmann recorda-se de ver as mulheres chegarem à Effektenkammer para recolherem as suas roupas. Não tinham de levar as suas próprias roupas, podendo escolher o que quisessem «para ficarem com o melhor aspeto possível», e eram acompanhadas por guardas. De todas as novas «diretrizes centrais» impostas a Ravensbrück na primeira metade de 1942, as mais odiadas eram as que definiam novos horários e novas quotas para a oficina de costura. Esta oficina, na zona industrial nas traseiras do campo, era há muito um dos locais de trabalho mais receados. O ruído das máquinas era ensurdecedor e o ar estava sempre cheio de poeira. Ao longo da sala havia linhas de montagem, com mulheres sentadas a máquinas de costura a confecionarem uniformes para a Waffen-SS, assim como vestuário para as prisioneiras do campo. A qualquer momento, o capataz da oficina, um austríaco chamado Gustav Binder a quem tinham posto a alcunha de Schinderhannes, o nome de um notório fora da lei da Rhineland executado em 1803, podia sair enraivecido do seu gabinete e atirar um banco, ou talvez um sapato com agulhas ainda espetadas, e acertar no rosto de uma das mulheres. Depois da visita de Himmler, as provações das prisioneiras intensificaram-se. As instalações da fábrica foram aumentadas, as prisioneiras passaram a trabalhar em turnos de onze horas e pela primeira vez começou a haver dois turnos — um de dia e outro de noite. Havia também novas quotas de produção, que os patrões da indústria têxtil de Ravensbrück — Fritz Opitz, o gerente; o seu delegado, Josef Graf; e Binder, o capataz — deveriam fazer cumprir.

Os três eram alfaiates de profissão, com formação obtida na sede da Texled em Dachau. Como a Texled, uma das quatro maiores empresas da SS, era dirigida profissionalmente, usava o equipamento mais recente e dependia quase inteiramente de trabalho escravo dos campos de concentração, era altamente lucrativa. Oswald Pohl instalou a principal oficina de costura da Texled em Ravensbrück, porque a confeção de vestuário era «trabalho de mulheres». Fritz Opitz, o patrão, partiu em finais de abril para a sede da Texled em Dachau para receber instruções relativamente às novas quotas de produção. No entanto, como Opitz mal sabia ler e escrever, embora fosse alfaiate profissional, Graf, recentemente dispensado do serviço na frente de combate russa por invalidez, e Binder organizaram o horário de trabalho. Binder sentou-se a uma máquina de costura e coseu cada uma das partes de cada peça de vestuário enquanto Graf o cronometrava. Foi assim que determinaram o período mínimo de tempo que demorava a coser um punho ou uma bainha, por exemplo. Estabeleceram um período de dois minutos e meio por camisa, o que implicava a produção de um mínimo de 180 peças por turno, dadas cinquenta e sete mulheres a cada uma das dez linhas de montagem a trabalharem onze horas, começando às sete da manhã e terminando às seis da tarde. O turno da noite começaria às sete e terminaria às seis horas da manhã seguinte, tendo todas as prisioneiras um intervalo de meia hora a meio. Em seguida, Binder «treinou» as mulheres para atingirem a quota definida, começando pelo turno da noite. Com as janelas permanentemente tapadas, as mulheres ficavam sentadas às máquinas de costura, com chinelos especiais de algodão nos pés, prontas a pressionar os pedais. «Hoje à noite vamos produzir 180 camisas», diz Binder, que está de pé ao lado da primeira mulher na linha de montagem e conta os segundos com o seu cronómetro enquanto ela cose a sua parte da camisa. Quando ela não cumpre o alvo, ele esbofeteia-a e ela cai do banco. As outras cerca de 600 trabalhadoras estremecem e olham para Binder, que está corado, a tremer e encharcado em suor. Tem

pele de rústico e um pescoço grosso. Ele puxa a mulher para cima e senta-a e ela volta a pôr a máquina a trabalhar, para tentar de novo enquanto ele pega no seu cronómetro. Ao fim de dois, três, quatro outras tentativas falhadas, a mulher já foi tão espancada que mal consegue sentar-se direita, mas à quinta tentativa é bem-sucedida. Binder procede do mesmo modo com cada uma das mulheres da linha de montagem. E como durante algum tempo a quota é cumprida, Binder delega a supervisão e retira-se para trás das portas de vaivém que levam ao escritório onde Graf se encontra sentado e onde uma prisioneira regista a produção num gráfico, com base na contagem de camisas, calças e casacos ao fim de cada turno. Quando os números sobem, Binder e Graf podem comunicar com orgulho a Opitz que as quotas foram atingidas, e Opitz pode comunicar o resultado a Dachau. Estes homens não estão às ordens do comandante da SS e, embora tragam chicotes, não usam uniformes da SS, porque se orgulham de serem alfaiates, não meros guardas da SS. Mas como há sempre incerteza em relação aos resultados, porque os tempos de produção são tão precisos que as linhas de montagem têm de funcionar continuamente, é essencial que a supervisora do corte, a prisioneira alemã Maria Wiedmaier, uma comunista há muito detida em Ravensbrück, mantenha um fornecimento constante de tecido às costureiras. Como é também essencial que as situações de agulhas partidas ou de linhas emaranhadas sejam resolvidas sem demora, outra prisioneira, uma checa chamada Nelly, está encarregada de andar a correr por entre as máquinas a mudar linhas e agulhas partidas. Tem de andar depressa para que as costureiras acabem a sua parte da peça antes da seguinte na linha de montagem. E como cada costureira continua o trabalho da que a precede, não pode haver pausas, a não ser no intervalo de meia hora. São permitidas idas à casa de banho, mas num sistema rotativo; uma guarda que tem uma lista com os números das 600 prisioneiras chama os números um a um ao longo do turno, mas, como nunca

chega aos últimos números, alguns deles não chegam a ser chamados dias e dias, e as mulheres em questão podem ter de urinar no seu lugar. Este comportamento é punido, frequentemente com a permanência de pé em imobilidade no exterior por um período de quatro horas, muitas vezes à noite e ao frio gélido, e depois de abril os sapatos e o vestuário de inverno (meias e casacos) deixam de ser usados e as mulheres envergam apenas peças de vestuário de algodão fino. Mas é frequente que uma linha de montagem pare subitamente a meio de um turno por uma das mulheres adormecer. Binder cronometrou as tarefas de acordo com o seu próprio desempenho, sem tomar em consideração que uma prisioneira esfomeada poderá demorar o dobro do tempo e perder as forças. Mal ouve parar a linha de montagem, Binder sai do seu gabinete e arremessa uma tesoura à mulher que adormeceu. Se não lhe acertar, aproxima-se dela, agarraa pelos cabelos, levanta-a e bate-lhe com o rosto na máquina de costura até lhe jorrar sangue pelo nariz. Por vezes, Binder e Graf entram na oficina juntos, ambos bêbedos. Escolhem uma mulher de idade, acusam-na de algum crime e depois começam a espancá-la e atiram-na por cima da mesa, de modo que ela cai no chão do outro lado. Numa dessas ocasiões, uma jovem, também sobrinha ou filha da mulher com mais idade, tenta ajudá-la, mas o alfaiate bêbedo agarra nela e Binder pontapeia-lhe a barriga com as suas botas de biqueira de metal. Também ela cai agora, agarrada à barriga e a gritar. Quando o trabalho é retomado, a jovem fica ali, prostrada por terra. Por fim, é levada para a Revier, de onde chega a notícia de que morreu. É na última hora do turno da noite, quando as mulheres deveriam estar a aguardar com expectativa o período de descanso, que se alastram os piores receios. Todas as mulheres sabem que as peças de vestuário estão a ser contadas; sabem o que acontecerá se não tiverem cumprido a sua quota de produção. Por isso, quando as máquinas finalmente param e se instala o silêncio, viram os olhos, 600 pares deles, para a porta de Binder. Subitamente,

Schinderhannes sai de rompante do seu covil, de rosto ruborizado, olhos faiscantes, punhos cerrados, a berrar insultos. Todos os olhos o seguem enquanto ele vai de uma mulher à seguinte, a agarrá-las pelo cabelo e a bater-lhes com a cabeça contra as máquinas de costura até ficar completamente exausto. Todas as mulheres serão punidas por não cumprirem a quota estabelecida — provavelmente, sendo obrigadas a ficar em sentido durante várias horas antes de regressarem aos seus blocos para dormir, ou sendo-lhes atribuída uma nova quota mais elevada que será ainda mais impossível de atingir. Algumas operadoras das máquinas tinham mais sorte do que outras. Quando Grete Buber-Neumann foi trabalhar para a oficina de costura, reparou numa jovem ucraniana que ocasionalmente levantava os olhos da sua máquina e sorria para o outro lado da sala. Durante o intervalo da meia-noite, a jovem, Nina, ensinava a Grete canções populares russas, que por vezes cantavam juntas enquanto trabalhavam — as máquinas faziam tanto ruído que ninguém as ouvia. E havia um supervisor chamado Siepel, um húngaro, que tentava ajudar as mulheres mostrando-lhes como fazer certas coisas. As mulheres acabaram por o adorar, só para descobrirem um dia que ele tinha partido para a frente de combate. Um dia, a supervisora das prisioneiras, Maria Wiedmaier, chamou Grete à parte e ofereceu-lhe um trabalho melhor no escritório da fábrica. Maria tinha agora poder para fazer tal coisa, porque era favorecida por Binder por o ajudar a atingir as quotas. Muitas das comunistas alemãs adotavam uma atitude servil para com os homens da SS, disse Grete. O trabalho parecia dar um objetivo a estas prisioneiras, e «entregavam-se de corpo e alma ao trabalho da guerra». Talvez não seja demasiado surpreendente, já que as prisioneiras alemãs também tinham entes queridos na frente de combate e famílias em abrigos antiaéreos. Maria Wiedmaier trabalhava com tanto empenho que Graf foi ouvido a comentar um dia: «O que é que eu faria sem ela?» Binder

tinha uma opinião tão boa dela que até a convocou como testemunha no seu julgamento. Claramente, ainda sentia orgulho no seu trabalho em Ravensbrück, gabando-se em tribunal dos seus famosos «140 pares de calças por dia».15 «E é verdade que a mesma tarefa era desempenhada da mesma maneira, segundo as mesmas regras, nos mesmos dois minutos e meio, todos os dias?», perguntou Stephen Stewart,16 o principal advogado de acusação. «Jawhol», disse Binder. Depois de Binder ser condenado à morte, a sua esposa fez um apelo, dizendo que era ele quem estava sob pressão, não as prisioneiras: elas andavam sempre a tentar sabotar o trabalho. As prisioneiras, «por maldade, estragavam centenas de peças de vestuário de modo que era impossível o meu marido cumprir a quota». Será que o tribunal poderia poupar a vida dele, por ela e pelos seus dois filhos? Mas Binder foi enforcado, assim como Graf e Opitz. No entanto, havia algo de verdade no que disse Martha Binder. Uma das consequências não intencionais da decisão de Himmler de forçar os prisioneiros a colaborarem no esforço de guerra foi o incentivo que tal dava à sabotagem. Não fazia sentido sabotar o transporte de areia de um lado para o outro ou o descarregamento de carvão, mas valia a pena correr riscos para estragar as peças de vestuário a serem usadas pelos soldados alemães. A maior parte das prisioneiras na oficina de costura estava demasiado exausta, demasiado aterrorizada com as consequências ou ambas as coisas para considerar sequer a hipótese de sabotagem, e as trabalhadoras nas linhas de montagem estavam demasiado expostas para o arriscarem. Na zona de corte, no entanto, sob uma supervisão menos apertada, Katarzyna Kawurek atirava para o lixo peças de uniformes devidamente cortadas, o que enfurecia Binder. «Ele nunca conseguia ter o número certo de itens em cada pilha», disse Katarzyna, «mas nunca adivinhou que alguém pudesse estar a pô-las no lixo.» E era precisamente a estupidez de Binder que tornava possível a

sabotagem. A sua insistência de que os mesmos procedimentos fossem seguidos «da mesma maneira, no mesmo dia» aplicava-se também ao modo como verificava as peças de vestuário terminadas. Todos os dias, as mesmas partes de uma peça de vestuário eram verificadas e outras negligenciadas. Wiktoria Ryczko, que cosia botões em uniformes, observou que, embora Binder verificasse sempre se os botões estavam bem cosidos e batesse na cabeça e no rosto das mulheres quando os pontos não eram suficientemente fortes, nunca verificava a posição dos botões. Por isso, ela cosia bem os botões, mas em posições em que não entrariam nas casas. Uma outra polaca, Krystyna Zaremba, descobriu como desperdiçar linhas fazendo cortes fundos em carrinhos de linhas. «Quanto mais danos causávamos, tanto melhor nos sentíamos, e ajudava-nos a sobreviver aos horríveis dias no campo de concentração.» A sabotagem mais eficaz verificava-se na oficina de peles, que abriu no início de 1942. As condições árticas durante o inverno soviético de 1942 punham os soldados alemães fora de ação e Ravensbrück tornou-se então a principal oficina de confeção de vestuário militar quente. A pele de coelhos angorá, criados nas coelheiras junto aos portões do campo de concentração, já era usada para confecionar gorros e luvas, mas um fornecimento muito maior de peles estava agora disponível. Em dezembro de 1941, Himmler ordenou a confiscação de todas as peles que fossem propriedade de judeus e decidiu também que «as peles de todos os tipos, de ovelha, de lebre e de coelho, devem ser disponibilizadas para as fábricas da Waffen-SS em Ravensbrück, perto de Fürstenberg.» Na ordem declarava-se igualmente: «É também importante examinar os itens para garantir que nada está escondido ou cosido dentro deles» — uma referência às vastas quantidades de dinheiro e de joias escondidas nos bolsos e nos forros das peças de vestuário. Nos primeiros meses de 1942, casacos sumptuosos, cachecóis, gorros e luvas comprados nalgumas das lojas mais chiques de Paris a Praga chegaram em catadupa a Ravensbrück. «Era uma espécie de lição de História sobre as conquistas alemãs», disse uma das

prisioneiras que trabalhavam com as peles. «Por vezes, tínhamos a totalidade da Europa posta na nossa mesa de trabalho. Líamos etiquetas de todas as cidades.» Havia «peles lindas, bordadas, como se de um museu». O pessoal da SS ficava igualmente impressionado, particularmente o gerente da fábrica de têxteis. Fritz Opitz «tirava o dinheiro e o ouro da roupa e dos casacos de peles de mulheres e crianças judias e vivia como um rei», escreveu Maria Wiedmaier. «Inebriado com aquela riqueza, mal escondia o seu deboche, e mais tarde havia orgias com as guardas nas instalações da SS.» Uma outra mulher, Maria Biega, recordava-se de ter visto Opitz «carregado com peles de judeus» enquanto esbofeteava uma trabalhadora, uma professora liceal polaca, «de tal modo que o sangue dela espirrou por todo o chão da oficina das peles». Graf, o gerente da oficina de costura, acompanhou-o, batendo na mulher com um bastão de borracha. O turno noturno da oficina de peles era considerado o mais duro de todos, mas era o melhor para as sabotadoras; com os homens da SS de olhos postos no que era possível pilhar, prestavam menos atenção às quotas de produção. As peles eram cosidas à mão, o que proporcionava mais oportunidades para estragar peças de vestuário do que nas máquinas. As trabalhadoras, muitas delas jovens polacas, eram supervisionadas por uma prisioneira associal, uma prostituta, que andava ao longo das mesas «a levantar-nos o queixo com o pé se começássemos a cabecear». Segundo Irena Dragan, uma das polacas da oficina de peles, as pernas da prostituta estavam cobertas com furúnculos e chagas. As peles nem sempre eram sumptuosas, e muitas vezes chegavam a cheirar mal e cheias de pulgas e traças, por estarem guardadas há meses. E para algumas das trabalhadoras o horror dessa situação era insuportável. Uma jovem pediu a Irena que lhe espetasse uma agulha para ela poder «acordar daquele pesadelo». Mas outras davam cuidadosamente pontos soltos, sabendo que os anoraques se desmanchariam. Por vezes, metiam mensagens dentro das peças a

dizer aos soldados que eles estavam a travar uma guerra perdida. Frequentemente, as mulheres colaboravam, concordando em destruir as peles de mais qualidade cortando-as em pedaços minúsculos, a que chamavam sementes de papoila ou macarrão, «mas tínhamos de ter muito cuidado, por causa das alemãs que estavam a trabalhar connosco», disse Irena. Outras trabalhavam em grupos de até doze pessoas, aceitando os conselhos de veteranas como Halina Chorążyna, a professora universitária de Química, que calculava como dar aos anoraques um tratamento especial furando a pele de tal maneira que ela se desmancharia.17 Punham um anoraque bem confecionado em cima, com os sabotados por baixo para não serem detetados. Um dia, chegou uma encomenda para fazer anoraques para o chefe da Luftwaffe, o próprio Hermann Göring. Deveriam ser feitos com pele de raposa prateada selecionada. «Nós demos um tratamento especial à pele de modo que, vistos de fora, os anoraques tivessem muito bom aspeto.» Mas quando as prisioneiras bateram a pele — o que faziam sempre antes de as peças serem recolhidas, para as amaciar —, ela desfez-se com alguma facilidade. «Os alemães ficaram furiosos, mas julgaram que tinham cometido um erro ao bater uma pele assim tão delicada, e nós conseguimos safar-nos.» Nas ocasiões em que não conseguiam escapar impunes, os castigos eram duros, «mas não impediam que outras o fizessem uma e outra vez», disse Krystyna Zaremba, embora ao chegar o verão o turno noturno já tivesse perdido algumas das suas sabotadoras mais corajosas. Stanisława Michalik recorda-se do nascer do Sol de um vermelho de sangue na manhã do dia 18 de abril de 1942. «Ainda hoje, quando nasce um dia assim, sinto-me terrivelmente triste.» Wanda Wojtasik recorda-se de que era um «lindo dia de sol» e que, pouco depois da chamada da manhã e sem dúvida depois de o turno da noite regressar, uma guarda entrou no Bloco 11 e chamou uma série de números de prisioneiras. As mulheres chamadas deveriam dirigir-se

nach vorne — para a frente, perto dos edifícios da administração. Stanisława, Wanda e a sua melhor amiga Krysia não constavam da lista, mas várias das suas amigas íntimas sim, entre elas as irmãs Grażyna e Pola e outras que tinham vindo do castelo de Lublin. Muitas das sobreviventes polacas diriam mais tarde que quando se deu aquela primeira chamada não faziam ideia do que iria acontecer às mulheres chamadas. A ordem nach vorne poderia simplesmente querer dizer uma punição ou uma «participação», disse Wanda Wojtasik. Não era usual serem chamados tantos nomes de uma só vez e instalou-se um certo nervosismo por todos os nomes serem de prisioneiras de Sondertransport, mas a maioria achava que, se havia a intenção de matar a tiro as prisioneiras chamadas, tal teria sido feito à chegada, não depois de as manterem vivas durante seis meses. No entanto, a palavra Sondertransport sempre soara sinistra e nunca tinha sido explicada às mulheres. E entre o grupo havia muitas que, depois de serem detidas em Lublin, tinham comparecido perante o tribunal policial fantoche de Odilo Globocnik e supostamente condenadas à morte. Este processo legal espúrio, que usualmente ocorria no país em que se verificara a detenção, parece ter sido acionado em certos casos em que os invasores nazis consideravam que um homem ou uma mulher capturados eram particularmente perigosos ou tinham desempenhado um papel significativo num grupo de resistência paramilitar.18 A escolha dos que seriam «julgados», no entanto, era frequentemente aleatória; entre o grupo deste Sondertransport encontravam-se mulheres que não sabiam se tinham sido condenadas ou não. Mais tarde, saber-se-ia que algumas simplesmente tinham as palavras «Patriota fanática, a não voltar para a Polónia» escritas nos seus dossiês. De qualquer modo, não havia lógica concebível para explicar porque é que as mulheres naquela primeira lista tinham sido chamadas e outras não. De facto, ao longo da vida do campo nunca ninguém chegou a descobrir lógica para explicar porque é que algumas mulheres eram chamadas para serem

executadas num dia específico enquanto outras, que poderiam esperá-lo, nunca chegaram a ser chamadas. Algumas das mulheres do bloco tinham até motivo para acalentar a esperança de que as convocadas estariam prestes a serem libertadas. Em janeiro desse ano, dez resistentes tinham sido chamadas em grupo de um bloco polaco diferente e enviadas para Varsóvia para serem libertadas — ou, pelo menos, era o que se dizia. Maria Bielicka, que estava nesse bloco, recordava claramente os acontecimentos, porque entre o grupo encontrava-se Władysława Krupska, a mulher que a tinha traído inicialmente. Em abril, no entanto, quando ocorreu esta nova convocação, nem Maria nem nenhuma das outras mulheres do Sondertransport sabiam ainda que, na realidade, o grupo enviado para Varsóvia em janeiro tinha sido executado. Só o descobriram algumas semanas depois, quando chegaram mais polacas de Varsóvia que contaram às prisioneiras o que tinha acontecido, incluindo a história da sua quase evasão, de partir o coração. A caminho de Varsóvia, o camião que transportava as dez prisioneiras avariou-se e as mulheres ficaram sem vigilância por breves momentos, enquanto o condutor foi procurar auxílio. Várias queriam fugir, mas Władysława Krupska persuadiu-as a não o fazerem, dizendo que o mais certo era serem apanhadas e que então é que não seriam libertadas. À chegada a Varsóvia todas as mulheres — incluindo Władysława — foram mortas a tiro. Qualquer que fosse a confusão que reinava entre as camaradas das mulheres constantes da lista de 18 de abril, aparentemente elas tinham poucas dúvidas sobre o que iria acontecer. Ao longo do dia, outras foram sendo chamadas. Stanisława Młodkowska estava a coser botões ao lado de uma delas, Zofia Grabska. Zofia tinha acabado de regressar ao trabalho depois de passar vários dias na Revier, onde lhe trataram as pernas e os braços inchados. «Estava a olhar-se a um espelho que tinha conseguido arranjar não sei como e queixava-se de que a sua família já não a reconheceria, porque tinha ficado magra e pálida», recordou Stanisława.

Nesse momento, o guarda, Erich, entrou na sala de costura e leu o número da Zofia e mandou-a sair. A Zofia pôs-se de pé, com as pernas a tremer, olhou para mim com um ar confrangido e um sorriso triste, atirou o espelhinho para a mesa e dirigiu-se para o guarda. Ao sair, esqueceu-se de tirar os chinelos de algodão, que pertenciam à sala da costura, e por isso o guarda deu-lhe pontapés nas pernas.

Grażyna também sabia o que iria acontecer. Na noite anterior, algumas amigas tinham ouvido dizer a contactos no Schreibstube que ela poderia ser convocada na chamada da manhã seguinte. Como Grażyna fazia nessa altura o turno da noite, enquanto estava a dormir a sua amiga de Lublin Janina Iwańska passou em revista a roupa e os esconderijos dela à procura dos pedaços de papel nos quais estavam escritos os seus poemas para que, se ela fosse revistada, a encontrassem «limpa» — e também para salvar os poemas. Dois dias antes, Grażyna tinha escrito o seu poema «Girassol»; era o «grito do anseio insuportável que todas sentíamos», disse Wanda Wojtasik. Grażyna tinha tido um pressentimento, disse Wanda. «Andava a dizer às amigas que morreria em breve.» Wanda recorda que a maior parte das outras «se recusou a acreditar no pior — mas não Grażyna». «Porquê a Grażyna?», perguntei eu. «A Grażyna era diferente. Ela achava sempre que estava prestes a morrer. Era uma daquelas que tinham muito pouca vontade de viver.» O que talvez seja motivo de maior perplexidade em relação à convocação de 18 de abril é o facto de as prisioneiras mais antigas do campo de concentração — as polacas e outras que já tinham visto tudo aquilo antes — não parecerem saber o que ia acontecer. E se o sabiam — como com certeza era o caso —, porque é que não disseram nada? Nesta fase, já todas as veteranas do campo de concentração, especialmente as que trabalhavam nos escritórios, sabiam que Sondertransport e Sonderbehandlung eram eufemismos nazis para a morte. Pelo menos cinco polacas tinham já sido executadas no campo, e, como as veteranas sabiam, seguindo procedimentos idênticos. Em cada um desses casos, chegara um mensageiro

especial de Berlim no dia anterior para entregar a ordem de execução nas mãos do comandante. E em cada caso foi usada uma camuflagem especial para levar as mulheres a acreditarem que iam ser libertadas ou enviadas para outro campo. Talvez aquelas veteranas polacas estivessem a proteger as mulheres jovens do que sabiam para não as assustarem. Talvez simplesmente não soubessem o que dizer, já que não havia nada que pudessem fazer. De qualquer modo, muito antes do dia 18 de abril todos os sinais de que estava prestes a ocorrer uma execução em massa deviam ser já evidentes para as prisioneiras mais antigas. Desta vez, os números eram tão elevados que se formou um esquadrão de execução especial, ao qual pertencia Artur Conrad. Na cantina da SS, Conrad andava até a gabar-se de receber mais comida. Se alguma dúvida persistisse ainda, ter-se-ia dissipado com a chegada de um mensageiro especial de Berlim no dia anterior para entregar a ordem de execução ao comandante com uma lista de quinze nomes. Como admitiu a própria Maria Adamska, a funcionária polaca do escritório, a partir daquele momento qualquer sugestão de que as jovens iriam para outro campo era uma «charada rematada». Mas era uma charada a que todo o campo se viu forçado a assistir e na qual várias prisioneiras desempenharam um papel. O papel das mulheres da Effektenkammer consistia em recolher o vestuário das jovens prisioneiras para que toda a gente pudesse fazer de conta que elas iam para casa, embora não houvesse ordem para lhes ser devolvida a bagagem, o que aconteceria se realmente elas fossem ser libertadas. As mulheres na cozinha receberam ordens para fazerem comida para o caminho, mas as quantidades minúsculas que prepararam não chegariam para uma viagem; foram enviadas para o bunker. A chefe do bunker, Dorothea Binz, juntamente com as suas assistentes prisioneiras — três testemunhas de Jeová e a bailarina polaca Ojcumiła Falkowska —, estava à espera à entrada do bunker para receber as mulheres. Ojcumiła, que trabalhara até há pouco

tempo na cantina da SS, tinha sido enviada para o bunker por trazer pão às escondidas, mas em vez de ficar detida Binz nomeara-a sua intérprete. Ojcumiła diria mais tarde que, mal viu as suas camaradas polacas à porta do bunker, soube o que iria acontecer-lhes. «Soube que iam ser mortas a tiro quando apareceram com roupas à paisana e sem bagagem.» Mas até Ojcumiła resistiu à tentação de fazer qualquer aviso às jovens, provavelmente porque era estritamente vigiada por Binz, mas também porque, tal como as outras, não saberia o que dizer. Em vez disso, desempenhou o seu papel na charada seguindo as instruções de Binz, conduzindo as mulheres às suas celas e dando-lhes o almoço usual de sopa. Em seguida, começaram as «formalidades», como disse Ojcumiła. Binz verificou a identidade das mulheres e leu a sentença de morte. Ojcumiła traduzia. «Depois do almoço, veio um camião e eu e as testemunhas de Jeová tivemos de meter no camião o número certo de caixões.» Ojcumiła explicou que naquela altura havia ainda um caixão por pessoa, mas que, para economizar, mais tarde haveria dois corpos por caixão. O Lagerführer [comandante] veio com um funcionário do departamento político e a chefe do bunker e, com a minha assistência como intérprete, realizou-se uma identificação final. Durante todo o tempo, o Lagerführer segurava os papéis firmemente nas mãos. De onde eu estava, via documentos para cada prisioneira, por vezes com fotografias.

As mulheres permaneceram nas celas durante toda a tarde, enquanto o resto do campo prosseguia na sua rotina usual. Às quatro da tarde, chegou café para as prisioneiras, mas antes de o receberem Dorothea Binz foi para uma sala sozinha e preparou uma espécie de poção. Ojcumiła viu-a pela porta a misturá-la no café. Ojcumiła foi encarregada de servir às jovens o café com a poção e recomendaram-lhe que as encorajasse a bebê-lo. «Tentei descobrir o que era o líquido. Era transparente e não tinha cheiro. Não consegui ler o rótulo do frasco.» Numa ocasião posterior, quando Binz estava a misturar a dose para outro grupo, Ojcumiła arranjou coragem para

perguntar o que era. «Como a Binz confiava em mim agora, disse que era um tranquilizante. Disse-me que, nas ocasiões anteriores, quando ainda não davam tranquilizantes às prisioneiras, elas gritavam palavras de ordem e protestos ao defrontarem o pelotão de execução.» Depois de bebido o café, tudo se desenrolou na maior ordem. Às cinco da tarde, chegou uma carrinha da polícia. As condenadas, como Ojcumiła as descreveu, estavam agora sonolentas e tiveram de ser conduzidas até à carrinha. Neste ponto, o relato de Ojcumiła interrompe-se, porque ela e as três testemunhas de Jeová foram fechadas numa cela e não conseguiram ver mais nada. Mas quando ela saiu da cela viu os casacos, as malas de mão e os sapatos das mulheres, que tinham sido deixados ali. «Por isso, a minha conclusão foi que elas foram levadas descalças.» Este facto foi confirmado por outras testemunhas. Embora a SS se esforçasse por esconder as mulheres durante o dia, algumas prisioneiras vislumbraram-nas quando elas estavam a ser levadas. Segundo Grete Buber-Neumann, pouco antes da chamada do fim do dia chegaram ordens para manter a Lagerstrasse completamente deserta. Todas as prisioneiras tiveram ordem de recolher aos seus blocos, com as portas fechadas, e ninguém podia aproximar-se das janelas. Mas as mulheres que estavam a trabalhar no hospital e na cozinha observaram as prisioneiras polacas a serem conduzidas para fora do bunker e a atravessarem a praça do campo de concentração, descalças e de vestido, «como penitentes medievais». Nessa altura, ao saírem pelos portões do campo, algumas das mulheres «viraram-se e acenaram animadamente, na esperança de que algumas das suas amigas as vissem». Wanda Wojtasik, que também se encontrava numa posição em que podia ver, não recordava os acenos, mas viu Pola Chrostowska, a irmã de Grażyna, a olhar para trás na direção dos blocos: «A Pola apontou um dedo para o céu.» O local da morte foi mantido em segredo, embora existam algumas pistas. A guarda Ella Pietsch, que trabalhava no edifício central,

recordou que, quando estava a conversar no fim do seu turno com uma amiga, uma outra guarda chamada Grete Hofbauer, «um camião com prisioneiras juntamente com guardas da SS com capacetes de aço e espingardas passou junto à janela». O camião avançou ao longo do lago. «A Hofbauer disse que as prisioneiras iam ser mortas a tiro.» No seu julgamento, um dos oficiais da SS, Heinrich Peters, disse que lhe ordenaram que formasse um pelotão de homens para uma execução por volta daquela altura, e recordava-se de as mulheres terem sido levadas para o local num veículo fechado. Peters disse que as mulheres foram atadas a um pau e mortas a tiro. Fez um esboço de uma zona arenosa nos bosques para lá dos muros, nas traseiras do campo de concentração. Seja como for, os disparos foram ouvidos no campo de concentração. Sabemo-lo porque temos informação sobre o que aconteceu no final da «charada», como Maria Adamska descreveu os acontecimentos. De facto, foi a própria Maria quem nos contou o que aconteceu a seguir. Embora a Lagerstrasse tivesse sido esvaziada enquanto as mulheres eram levadas, pouco depois da sirene do fim da tarde as prisioneiras receberam ordens para regressarem para a chamada do fim do dia. «Às seis da tarde, as prisioneiras ouviram uma rajada de tiros. A seguir, soaram nove tiros de revólver.» Grete Buber-Neumann confirmou a sequência dos acontecimentos. «Ficámos ali, milhares, e esperámos como habitualmente. Tudo estava em silêncio. E subitamente, do outro lado do muro, soou um matraquear de tiros seguido, um ou dois segundos depois, por vários tiros isolados.» Grete, que estava junto às prisioneiras políticas alemãs, encontrava-se numa posição que lhe permitia observar as prisioneiras polacas. «Diante de nós estavam as mulheres do bloco polaco, com os lábios a mexerem-se numa prece silenciosa. O sol do fim da tarde incidia nos muros do campo como de costume e um bando de corvos voltou a instalar-se no telhado do Kommandantur.»

15 Alegadamente, a algumas prisioneiras alemãs pagavam um reichsmark por dia pelo seu trabalho nos barracões da costura: o suficiente para comprar um pouco de pasta de peixe ou talvez alguns camarões, o que, naquela altura, era praticamente tudo o que havia à venda na loja das prisioneiras.

16 O nome original de Stephen Stewart era Stefan Strauss. Fugiu da Áustria para a Inglaterra imediatamente antes da Anschluss.

17 Chorążyna também organizou a sabotagem das peças tricotadas, separando fios de modo a aparecerem buracos nas luvas e nas meias dos soldados. Maria Bielicka descreveu-a como sendo «como um ratinho. Ali sentada. Um ratinho muito forte. Organizava tudo».

18 Os agentes secretos a trabalharem por trás das linhas para as forças aliadas — agentes do SOE, por exemplo — eram também por vezes, embora nem sempre, condenados à morte ou enviados para campos de concentração.

CAPÍTULO 13 COELHAS Na manhã de 27 de maio de 1942, o Obergruppenführer Reinhrad Heydrich, o Protetor da Boémia e da Morávia e chefe da polícia de segurança de Hitler, sentou-se no seu Mercedes-Benz descapotável e partiu para o trabalho no castelo de Praga. O seu motorista parou numa paragem de elétricos, de onde Jozef Gabčik, um membro da resistência checa que operava sob a direção do SOE britânico, saltou para diante do automóvel e tentou abrir fogo, mas a sua arma ficou encravada. Um segundo assassino, Jan Kubis, lançou uma bomba para o veículo de Heydrich, que rebentou o para-choques do lado direito, incrustando pedaços de metal, vidro, arame e fibras dos estofos no baço de Heydrich. Levado a toda a pressa para o hospital, foi submetido a uma operação de urgência realizada por médicos locais, porque o principal cirurgião de Himmler, Karl Gebhardt, trazido de avião especialmente para o efeito, não chegou a tempo de o operar. Após a operação, o estado de Heydrich pareceu estabilizar-se, mas não tardou a deteriorar-se. Enquanto a febre subia vertiginosamente, a infeção de gangrena gasosa espalhou-se pelas suas feridas e provocou-lhe inchaços pretos supurantes. Gebhardt não conseguiu deter o alastramento da infeção e, apesar de lhe ser ministrada morfina, Heydrich contorcia-se com dores agonizantes, acabando por morrer em 4 de junho. No relatório médico declarava-se que a causa da morte era lesões em órgãos vitais «causadas por bactérias e, possivelmente, por venenos trazidos por estilhaços da bomba... que se aglomeraram e multiplicaram». Heydrich era uma figura-chave. Hitler procurou vingança. As forças alemãs já estavam a perder terreno na frente leste; agora, este

ataque feria o âmago da organização nazi, indiciando vulnerabilidade. Desencadeou-se a execução em massa de suspeitos por todo o protetorado, mas Hitler exigia um sacrifício simbólico dos próprios Checos e apelou à Gestapo local para que «nadasse em sangue» enquanto procurava o assassino de Heydrich. Em 9 de junho, uma falsa pista levou os investigadores a acreditar que o assassino se escondia numa pequena vila a vinte e quatro quilómetros de Praga chamada Lidice. Dez camiões cheios de agentes da polícia de segurança entraram em Lidice e todos os homens da vila foram encurralados, encostados a uma parede de um celeiro e mortos a tiro. Todos os edifícios foram incendiados e arrasados, matando as pessoas que tinham ficado dentro deles. As mulheres e as crianças sobreviventes foram levadas para um centro desportivo nas imediações, onde as crianças foram separadas das mães, com os bebés arrancados dos seus braços e levados. Algumas das crianças, com aparência ariana, foram enviadas para adoção por alemães, mas o resto desapareceu. Alguns dias depois, as 195 mulheres de Lidice foram metidas em camiões de transporte de gado e levadas para ocidente, para um destino desconhecido. O resto do mundo não tardou a ficar a par da atrocidade de Lidice, mas ninguém soube das outras repercussões do extermínio de Heydrich, que ocorreram por trás dos muros do campo de concentração de Ravensbrück, a cerca de quinhentos quilómetros a norte. A meio de junho, as prisioneiras de Ravensbrück ficaram atónitas com o espetáculo de uma vila inteira de camponesas aterrorizadas e perplexas — raparigas, avós, mães, tias, vizinhas, amigas — sentadas na Appellplatz em frente da cozinha. Vera Housková, uma prisioneira política checa, recordou: Apertavam a si as pequenas trouxas com os seus pertences, que lhes tinham permitido trazer — cortinados, um pote de banha. Estavam ali sentadas, aterrorizadas, a olharem para nós — silhuetas às riscas à distância. Tinham perdido tudo — o seu país, os seus maridos, a sua vila e os seus filhos —, embora não soubessem, a verdade. Não sabiam porque é que aquilo lhes tinha acontecido ou porque é que estavam ali. Não sabiam nada. Pelo menos nós sabíamos porque é que estávamos ali.

As guardas do campo de concentração tinham sido informadas de que aquelas mulheres eram cúmplices da morte de Heydrich e prestaram-se a aplicar-lhes o tratamento mais brutal possível. Uma das mulheres de Lidice deu à luz no hospital do campo de concentração pouco depois de chegar. «Era um menino, que nasceu de boa saúde, e a mãe ouviu o bebé e viu-o chegar ao mundo com um rosto feliz», disse Vera Housková. «Algumas horas depois, os médicos anunciaram à mãe que o bebé tinha morrido e espancaramna brutalmente. Ela tinha dez filhos, oito dos quais já tinham morrido na tragédia em Lidice.» Outros acontecimentos ligam Ravensbrück à morte de Heydrich. A intensificação da caça ao assassino coincidiu com o ataque aos médicos que não tinham conseguido salvar a vida de Heydrich. Hitler acusou Karl Gebhardt, o diretor da clínica da SS de Hohenlychen, de não ter utilizado um novo tipo de medicamento, as sulfonamidas, no tratamento das feridas sépticas de Heydrich. Há já alguns meses que os Alemães sofriam baixas sem precedentes na frente leste, onde milhares de soldados morriam de gangrena gasosa devido à infeção provocada por feridas que eram trespassadas por estilhaços e outros detritos, como fora o caso de Heydrich. Há muitos meses que os médicos nazis debatiam de modo aceso se deveriam usar-se novas marcas de sulfonamidas no tratamento dos soldados em vez de os operar imediatamente em hospitais de campanha, especialmente porque os Aliados tinham agora «um medicamento milagroso», um novo tipo de penicilina que estava a salvar a vida dos seus soldados.19 Gebhardt tinha estudado os factos científicos sobre as sulfonamidas e estava convencido de que esse medicamento não se comparava à penicilina. Agora, defrontando-se com as acusações do Führer de que não tinha conseguido salvar a vida de Heydrich, viu-se sob pressão para mudar de opinião. Foi Himmler quem encontrou uma saída para o impasse. Ordenou a Gebhardt que conduzisse experiências para testar de uma vez por todas a eficácia das sulfonamidas no tratamento da gangrena gasosa. As experiências

seriam conduzidas sob os auspícios de Ernst Grawitz, o médico-chefe da SS e presidente da Cruz Vermelha alemã, mas Gebhardt dirigi-lasia e Himmler providenciaria as cobaias: jovens prisioneiros saudáveis dos seus campos de concentração. Em 1942, Himmler começara já a encarar as experiências médicas como um dos objetivos principais dos campos de concentração. Ali estava uma oportunidade para usar cobaias humanas e conseguir assim audazes inovações científicas, o que a classe médica conservadora fora dos campo de concentração nunca contemplaria favoravelmente. Para esse fim, Himmler criara o seu próprio círculo de especialistas — curandeiros, industriais, praticantes de medicina alternativa —, unidos sob o manto de um instituto chamado «Ahnenerbe», «Herança Ancestral», que recolhia fundos para subsidiar alguns dos projetos médicos mais radicais do Reichsführer. Karl Gebhardt não tinha qualquer interesse na Herança Ancestral ou nas suas ideias excêntricas. A sua clínica tinha uma reputação internacional a defender. Fundada em 1902 pela Cruz Vermelha alemã como sanatório para crianças com tuberculose (entre elas a jovem Dorothea Binz), a clínica de Hohenlychen transformou-se num estabelecimento de cuidados de saúde vasto e elegante à beira-lago que, sob a direção de Gebhardt, se converteu num centro de excelência médica, especializado em medicina desportiva e operações inovadoras. A clínica atingiu o seu momento áureo durante os Jogos Olímpicos de 1936, passando a contar com uma piscina, um centro desportivo e massagistas. Naquele momento, tratava os feridos de guerra alemães e era preferida por altas patentes militares e por homens da SS. Embora Gebhardt não tivesse interesse pelas experiências da gangrena gasosa, sentia dificuldade em recusar a sugestão de Heinrich Himmler. Os dois homens conheciam-se há muito tempo; tinham sido criado juntos em Munique, onde Gebhardt andara na escola com o irmão mais velho de Heinrich Himmler, Gebhard. E ninguém podia recusar um pedido do Reichsführer SS, que não tardou a providenciar as primeiras cobaias a Gebhardt: um grupo de

prisioneiros de Sachsenhausen. Os homens foram levados para Ravensbrück para serem submetidos aos testes, já que esse campo de concentração ficava mais perto de Hohenlychen. Eram-lhes feitas incisões nos músculos das pernas, inseridas pequenas quantidades de bactérias para criar uma infeção e em seguida introduzia-se a sulfonamida e examinavam-se os resultados. Os testes revelaram-se inconclusivos, mas Himmler queria mais.20 Gebhardt e o seu assistente, Fritz Fischer, afirmariam ambos no julgamento dos médicos em Nuremberga em 1947 que a ideia seguinte de usar mulheres como cobaias não tivera nada que ver com eles. Gebhardt afirmou até que estava de cama, doente, quando a decisão de usar mulheres foi tomada. Só ficou a saber, disse, quando Fischer veio ter com ele em pânico e lhe comunicou que «em oposição às suas [de Gebhardt] estipulações e instruções uma mulher tinha sido apresentada para os testes seguintes. O que deveria ele fazer?». Furioso com a notícia, Gebhardt apressou-se a consultar Himmler, que, por acaso, estava «a visitar parentes nas redondezas». Himmler disse a Gebhardt que tinha sido ele quem decidira que deveriam ser usadas mulheres, visto que as experiências até àquela data se tinham revelado «bastante inofensivas». Além disso, as mulheres que ele selecionara pessoalmente eram ideais para o objetivo em questão: jovens polacas saudáveis de Lublin. E tranquilizou o seu velho amigo dizendo-lhe que, como essas jovens estavam condenadas à morte, poderia ser-lhes oferecida a comutação da pena e a libertação em troca de se submeterem aos testes. Como Gebhardt disse em tribunal, «cedeu» e ordenou que se iniciassem as experiências sobre as mulheres polacas. O que Gebhardt não revelou ao tribunal foi a identidade dos parentes que Himmler estava a visitar nas redondezas, que eram certamente a sua amante, Hedwig «Häschen» Potthast, e o bebé, Helge, que nascera em Hohenlychen em 15 de fevereiro. Depois do nascimento, a mãe e o bebé instalaram-se em Brückenthin, a propriedade de Himmler nas redondezas. Ali, estavam a salvo dos

ataques aéreos em Berlim e perto do seu médico. Karl Gebhardt não só assistira ao parto de Helge em Hohenlychen em fevereiro como era também seu padrinho, para selar ainda mais os laços entre as famílias. Em Ravensbrück, no início de julho de 1942, as prisioneiras viram novos equipamentos serem instalados na sala de operações e toda a gente foi avisada de que deveria manter-se afastada. Pouco depois, chegou um camião com um carregamento de muletas de madeira. Algumas pessoas diziam que estava a ser instalada uma secção do sanatório de Hohenlychen no campo de concentração, para prestar cuidados a oficiais feridos. Ninguém notou que tinham sido trazidos para ali prisioneiros de Sachsenhausen para serem operados, tão estritas eram as medidas de segurança. Na manhã de 22 de julho, setenta e cinco das mulheres mais jovens e mais saudáveis do transporte de Lublin foram chamadas à Appellplatz. Algumas, tendo acabado de sair do turno da noite, foram chamadas dos blocos, outras das oficinas de costura ou de outros grupos de trabalho. Stefania Łotocka estava a trabalhar na oficina das peles quando lhe ordenaram, a ela e a outras, que fossem nach vorne. Perfilaram-se em grupos de cinco. Instantes depois, Koegel avançou para elas com «um oficial baixo e gordo da SS, com cabelo ruivo e muitas medalhas». Era Karl Gebhardt. Vinha a acompanhá-lo um homem alto e magro, muito louro, com olhos azuis grandes. Era Fritz Fischer, o seu assistente. Também estavam presentes os médicos do campo de concentração, Rolf Rosenthal e Herhard Schiedlausky, assim como a médica alta e loura Herta Oberheuser. Nunca ninguém teve algo de positivo a dizer sobre Oberheuser. Ela era uma dermatologista de trinta anos, nascida em Colónia, e tinha-se oferecido como voluntária para Ravensbrück para ter a oportunidade de ver doenças de pele graves, mas nunca demonstrou qualquer interesse em ajudar as prisioneiras, berrando-lhes «sua cavalgadura, sua vaca, não te aproximes, tens piolhos» — ou coisas do género. A oportunidade de

trabalhar ao lado de Gebhardt era o grande furo da sua carreira, embora para as prisioneiras perfiladas na Appellplatz fosse óbvio que Oberheuser ocupava um lugar inferior na escala dos médicos. «Ela afivelava o seu ar obsceno de gatinha e os outros ignoravam-na completamente», recordava Wanda Wojtasik. As polacas tiveram de levantar as saias e os médicos baixaram-se para lhes inspecionarem as pernas. Eles «gozavam e insultavam» as mulheres enquanto o faziam. «Não compreendíamos porque é que eles queriam olhar-nos para as pernas. Talvez tivessem planeado algum trabalho novo e precisassem de pernas fortes. Estávamos perplexas», disse Maria Bielicka. As mulheres foram mandadas de volta para os seus blocos e não lhes disseram mais nada, mas os boatos multiplicavam-se. Algumas diziam que iam ser escolhidas para uma troca de prisioneiros e que seriam enviadas para a Suíça. Outras que a SS estava a preparar uma execução em massa. Quatro dias depois, o mesmo grupo de setenta e cinco prisioneiras voltou a ser reunido e dessa vez foi-lhe dito que se apresentasse à Revier. O grupo de Wanda Wojtasik foi o último a perfilar-se, e ela tomou o seu lugar na última fila de cinco. Encontravam-se presentes os mesmos médicos. Koegel verificou os nomes da lista e «com um gesto teatral» apontou para as prisioneiras e deu a lista «ao homem gordo». Herta Oberheuser chamou os nomes das dez primeiras, que ficaram, e as restantes voltaram para os seus blocos. Wanda foi a última a ser escolhida da parte de trás das filas. «Só conseguia pensar que desta vez estava sozinha. A Krysia não ia comigo.» As pernas daquelas mulheres foram examinadas mais atentamente e a seis delas, entre elas Wanda, foi dito que ficariam nessa noite na enfermaria. As restantes quatro foram enviadas de volta aos seus blocos. Uma delas, Zofia Sokulska, uma estudante de Direito da Universidade de Lublin, foi rejeitada por ser demasiado magricela. Maria Bieliecka também foi rejeitada, mas nunca viria a saber porquê. As que tinham sido rejeitadas sentiam-se aterrorizadas com o que tal poderia querer dizer. «Não conseguíamos discernir nenhum

padrão», disse Maria Bielicka. «Nada fazia sentido.» As mulheres do Sondertransport já estavam acostumadas à ideia de morte iminente. Desde as execuções de 18 de abril, havia convocatórias uma ou duas vezes por semana, usualmente na Appell da manhã, e na chamada do fim do dia ouvia-se a rajada de tiros. Mas aquilo era diferente. «Falámos sobre aquilo toda a noite», disse Wacława Gnatowska. «Se ia haver uma execução em massa, porquê fazê-la assim, por fases?» A advogada magricela Zofia Sokulska — conhecida como Dziuba —, que tinha melhores contactos no campo de concentração do que a maioria, ouvira dizer que estavam a planear-se experiências, embora, como não queria assustar as outras, não o tenha comunicado às colegas. No dia seguinte, as seis que tinham ficado na Revier reapareceram subitamente na Lagerstrasse, a caminhar — ou antes, a cambalear — para os seus blocos. Era óbvio que tinham sido drogadas. Wanda Wojtasik parecia embriagada. Algumas amigas do grupo de Lublin rodearam-nas. «O que é que eles te fizeram? É tudo? Sentes-te bem? E da cabeça?» Wanda respondeu: «Bem, é claro, enquanto estive lá dentro extraíram-me o quinto parafuso», e alguém disse: «Aí têm! Eu não disse que elas saíram com um parafuso a menos?» Mas a aparência de coragem parou na chamada seguinte, quando Wanda desmaiou sob o efeito da morfina. Nessa noite, deitada ao lado de Krysia, perguntou: «O que é que eles nos farão a seguir? Pelo menos sou eu e não tu.» Quatro dias depois, vêm guardas buscar as mesmas seis mulheres e levam-nas para a Revier, onde ficam a aguardar. Wanda olha para Maria GnaŚ, que está com um tom amarelado doentio. Maria segreda: «O que é que eles nos vão fazer?» «Exterminar-nos», diz Wanda. Maria geme: «Não! Não pode ser verdade.» Ordenam às mulheres que se dispam e que entrem para uma banheira com água quente e sabão. É um tal luxo que elas chapinham na água e não conseguem deixar de se encantar com a

água quente e limpa, mas quando lhes apontam seis camas, feitas com lençóis limpos e bem engomados, começam a sentir profundos receios. Ficam deitadas a conversar, a tagarelar sobre tudo e mais alguma coisa. Recordações. Cansada de pensar no que acontecerá a seguir, Wanda fecha os olhos e é acordada por um grito súbito e vê uma enfermeira debruçada sobre Maria GnaŚ com uma lâmina. Wanda salta da cama, mas a enfermeira explica que não vai magoar Maria, só vai rapar-lhe os pelos. Porque é que lhes rapariam os pelos das pernas se tencionassem matá-las? Uma a uma, as mulheres são injetadas e levadas numa maca para a sala de operações. Enquanto a anestesia começa a fazer efeito, Wanda repete uma e outra vez: «Nós não somos cobaias; nós não somos cobaias.» Quando Wanda acorda, está de volta à sua cama, com gesso nas pernas. No gesso de uma das pernas está escrito III TK. As outras cinco têm marcas similares. Nenhuma delas sente dores naquele momento, mas ao fim do dia já todas se contorcem, gritam e gemem. Maria GnaŚ vê alguém à janela e pergunta à enfermeira em alemão: «Ele vem buscar-me. Pode ver pela janela? Ele está ali para me vir buscar.» Maria Zielonka grita: «Oh, Jesus. Jesus.» Wanda berra às suas amigas: «Calem-se, ou eu esborracho-as.» O delírio das prisioneiras assusta as enfermeiras alemãs na sala ao lado, de tal modo que na seleção das prisioneiras seguintes os médicos procuram mulheres que não falem alemão. Agora, Wanda vê alguém à janela. É Krysia, que conseguiu vir espreitar no regresso do turno da noite. Wanda esforça-se por sorrir e afasta a custo o cobertor para lhe mostrar a perna engessada. Krysia vai-se embora. Nos dias seguintes, as pernas das mulheres incham de tal maneira que o gesso se enterra na carne até às virilhas. Oberheuser entra, debruça-se sobre a perna de Wanda e cheira-a, toma apontamentos e tira-lhe sangue. As jovens são levadas de volta à sala de operações e tiram-lhes o gesso, mas elas não conseguem ver quem está a fazêlo, porque alguém lhes tapou a cabeça com lençóis. Contudo, sentem

que estão a raspar-lhes as pernas e ouvem o pus a gotejar para taças de metal. Sentem que estão a ser-lhes extraídas coisas das feridas antes de lhes serem aplicadas as gazes e o gesso. De novo na enfermaria, as mulheres veem um líquido castanho e malcheiroso a escorrer do gesso das jovens nas camas ao lado. Não conseguem sentar-se o suficiente para ver que escorrem os mesmos líquidos das suas pernas, mas conseguem sentir o cheiro. Todas têm uma sede insuportável. Ao meio-dia, as enfermeiras vêm com a parca refeição usual do campo de concentração, mas à noite as prisioneiras ficam fechadas. As portadas são fechadas por causa dos ataques aéreos. Não há água, nem ninguém para as ajudar. Elas não conseguem mexer-se. Nuvens de moscas esvoaçam à volta da carne a apodrecer. As mulheres desmaiam e recobram os sentidos ao longo de toda a noite. Os dias passam e mais amigas do exterior vêm à janela. Uma traz uma maçã, outra traz um barco esculpido numa escova de dentes. Jadwiga Kamińska, uma das jovens do grupo de Lublin, é quem organiza o apoio. «Tudo o que possa levantar-lhes o ânimo», diz às outras no bloco, e pede às polacas na cozinha que tragam comida às escondidas. Mas então a própria Jadwiga é convocada para a Revier com mais seis do seu bloco. Wanda e as outras tentam tranquilizar as recémchegadas, enquanto elas estão deitadas em camas feitas de lavado a aguardar a anestesia, e depois da operação Jadwiga sorri e diz que não sente dores. Wanda acena com a cabeça. Poucas horas depois, também Jadwiga está a contorcer-se com dores. Chega a noite, as portadas são fechadas e as cobaias mais antigas afadigam-se a tratar das mais recentes. Uma enfermeira deixou um par de arrastadeiras e um balde de água. A pé-coxinho no escuro, de uma cama para outra, Wanda leva as arrastadeiras, mas não tardam a ficar cheias. Oferece água do único balde às cobaias recentes até ela acabar e depois sobe para a sua cama a custo, deixando um trilho de pus castanho. Como uma das novas cobaias não acorda, chamam uma

enfermeira, e ela alerta o médico de serviço, Rosenthal, que entra de rompante, bêbedo, com a camisa meio desabotoada a mostrar o peito peludo. Recebe uma agulha das mãos da enfermeira e espeta-a na almofada. A rir, sai outra vez aos baldões. Pouco depois, entra outra enfermeira e dá uma injeção à jovem em coma, que a reanima, e ela acorda. Três semanas depois, nove cobaias já foram operadas. São todas levadas para outra sala, deitam-nas em mesas e tiram-lhes as ligaduras. Veem as suas próprias feridas pela primeira vez e cada uma delas fita incrédula os inchaços e as incisões na tíbia, tão profundas que se vê o osso. Uma mulher tira um pedaço de vidro, outra uma farpa com cinco centímetros. Durante horas ficam ali deitadas, a transpirar, com as feridas expostas. Subitamente, as enfermeiras cobrem as cabeças das cobaias, bem apertadas, para ocultar os seus torturadores, mas Wanda espreita e vê Gebhardt com as suas mãos rechonchudas atrás das costas. Vê também Fischer, com uma bata manchada de sangue — deve ter vindo diretamente de uma operação. Os médicos pegam em etiquetas coladas às jovens e examinamnas. Há vários outros oficiais ali — Wanda conta onze. Um que ela não reconhece parece particularmente importante, e os outros aparentam sentir-se intimidados. Não faz ideia de que se trata de Ernst Grawitz, o médico-chefe da SS e diretor da Cruz Vermelha alemã. Um a um, os onze inclinam-se sobre as mulheres, examinando e cheirando cheios de excitação as feridas pútridas. Somos mais como ratazanas, pensa ela. Mas consegue mesmo assim dizer para consigo que, pelo menos, talvez as poupem à execução por terem acedido a ser ratazanas. No seu julgamento no pós-guerra, Gebhardt e Fischer fizeram o seu próprio relato daquela mesma inspeção. Na sequência de testes inconclusivos com os homens de Sachsenhausen, os médicos tomaram a decisão de inserir uma quantidade maior de bactérias nas pernas das mulheres, com mais lixo, vidro e farpas, para se

assegurarem de que a infeção alastraria mais. Rasparam-lhes as feridas, limparam-lhas com água oxigenada e em seguida trataramnas com diferentes medicamentos à base de sulfonamida, com outros medicamentos ou deixaram-na sem tratamento, e colocaram-lhes etiquetas nas pernas. Gebhardt não contava ainda obter resultados dos testes, mas pelo menos o seu fracasso dessa vez não poderia ser atribuído à quantidade limitada de bactérias usada. Quando examinou as mulheres, Gebhardt descobriu, como esperava, que os resultados eram mais uma vez inconclusivos. Apesar de a infeção ter alastrado, não havia indícos de que uma mulher tivesse melhores resultados do que outra com qualquer um dos medicamentos. Ernst Grawitz, no entanto, o «médico importante», achava que os ferimentos infligidos tinham sido demasiado moderados para provar fosse o que fosse. As feridas eram meras picadas de pulgas, protestou ele. «Quantas mortes houve?» «Nenhuma», disse Gebhardt. Então, Grawitz ordenou a Fischer que da próxima vez desse um tiro na perna das cobaias e que em seguida injetasse as bactérias. Só assim se recriaria a realidade das feridas no campo de batalha. Depois de Grawitz se retirar, Gebhardt e Fischer decidiram não dar um tiro nas pernas do grupo seguinte. Em vez disso, planearam intensificar a quantidade de bactérias e garantir uma infeção ainda maior cortando o fornecimento de sangue à ferida. Alguns dias depois da primeira inspeção dos médicos, Wanda e as outras cobaias iniciais receberam ordens para regressarem aos seus blocos. Mal conseguiam andar. As suas amigas cuidaram delas, mas faltavam muitos rostos familiares — durante a estada das cobaias na Revier, mais mulheres do Sondertransport tinham sido executadas. Krysia cuidou de Wanda. As amigas ofereciam comida. Alfreda Prus, uma jovem sossegada e delicada que era estudante da universidade de ZamoŚć, perto de Lublin, dava a Wanda a sua ração diária de pão. Mas então, a 20 de setembro, Alfreda e várias outras receberam ordem de nach vorne. Como era de manhã, a altura do dia

em que as mulheres selecionadas para serem executadas costumavam ser chamadas, Irena Krwczyk sentiu tanta certeza de que estava prestes a ser morta a tiro que tremia com tal violência que não conseguia vestir-se. Marta Baranowska, a sua Blockova polaca, ajudou-a a recompor-se o suficiente para se preparar. Em vez de as guardas as acompanharem ao bunker, a sala de espera das execuções, levaram-nas à Revier, onde foram recebidas pela Dra. Herta Oberheuser, que estava sentada a uma mesa envergando uma capa preta e de perna cruzada. Quando as prisioneiras foram levadas para a enfermaria, encontraram as suas amigas polacas agora a ocuparem duas salas, deitadas com as pernas enfaixadas em ligaduras espessas, esverdeadas e com um cheiro nauseabundo. As vítimas «antigas» dizem às novas que já se sentem melhor, mas todas ouvem os gemidos lancinantes que vêm da sala ao lado. No dia seguinte, este grupo é também sedado. Alfreda Prus, a estudante de ZamoŚć, começa a cantar cantigas loucas sobre noites quentes e palmeiras. Quando acorda, Stefania Łotocka descobre que está com as pernas grotescamente inchadas. Só consegue ver o pé, que tem uma chaga enorme coberta com bolhas cheias de um líquido incolor. O resto da perna está tapado por ligaduras brancas espessas. Sente a febre a subir e com ela uma dor insuportável. Sente um zumbido e pancadas nos ouvidos. Será que lhe amputaram as pernas? E há uma sede terrível, mas ninguém quer saber, até que Jadwiga Kamińska, que foi operada antes e sente agora um pouco mais de forças, se arrasta para fora da sua cama e, com o rosto contorcido de dores, ajuda as vítimas mais recentes. Jadwiga sucede a Wanda no papel de cobaia enfermeira. De manhã, Herta Oberheuser aparece para tirar sangue da orelha e do dedo das vítimas para análise. Recua, tomando apontamentos do que vê. O seu rosto é uma máscara, os seus olhos vítreos. Não mostra sombra de piedade e deixa feridas sem ligaduras dias

seguidos, de tal modo que as mulheres sentem que estão a apodrecer dentro do gesso, mas quando por fim lhes mudam o penso, essa é a pior tortura. São os médicos de Hohenlychen quem usualmente muda os pensos, e os rostos das mulheres são sempre cobertos com um lençol. Mas antes de cobrirem o rosto de Stanisława Młodkowska, ela repara que a enfermeira que está a pôr os lençóis é Gerda Quernheim, a parteira assassina de bebés. Stanisława sente que lhe arrancam abruptamente as ligaduras e que lhe abrem as feridas ainda mais enquanto um médico tira qualquer coisa, e a sensação que lhe dá é de que ele está a escarafunchar a ferida com um instrumento aguçado, a espremer a perna. Desmaia. Ao regressar à enfermaria, Stanisława está a gemer e Jadwiga Kamińska bate na porta a pedir auxílio. Por fim, a Dra. Oberheuser entra, levanta o cobertor de Stanisława, sacode a cabeça, sai, regressa e injeta-lhe qualquer coisa que leva a que ela comece a reanimar. Stanisława não tarda a recuperar suficientemente para se preocupar com o que estará a acontecer à sua amiga Alfreda Prus. A jovem de ZamoŚć está deitada em silêncio. No seu pequeno rosto, Stanisława vê uns olhos enormes, com um brilho febril. Sempre que se mexe, Alfreda tem um acesso de soluços. Começam a aparecer cada vez mais amigas à janela da enfermaria. Constou que Alfreda, de ZamoŚć, está num estado terrível. Por milagre, alguém traz uma colher de compota numa caneca a Stefania Łotocka, e Stefania tenta persuadir Alfreda a comêla, porque se lembra de ouvir dizer à sua mãe que a compota ajuda a fazer parar os soluços. Alfreda recusa a compota. «Não vai ajudarme, de qualquer maneira», diz ela. «Vou morrer, quer a coma quer não.» Durante quatro dias, as mulheres sofrem delírios de febre e são regularmente levadas para a sala de operações, cada vez para tomarem mais injeções. Gritam por água, com os lábios tão secos que sangram. Por fim, Oberheuser ordena que lhes tragam água e as mulheres bebem sofregamente, mas provoca-lhes ardência nos

lábios. A água tem vinagre, o que as faz sentirem ainda mais sede, como Oberheuser sabia que aconteceria. Ao quinto dia, as injeções param. Ouve-se grande agitação na sala ao lado, onde Weronika Kraska solta um gemido terrível e respira ofegante. Weronika, com quem poucas das suas colegas se tinham preocupado, porque ela parecia bastante forte, está a queixar-se de sentir o pescoço hirto. O Dr. Schiedlausky está de serviço e, como ele diz que não há nada que possa fazer-se por ela, fecham a enfermaria para a noite. Jadwiga Kamińska vai a pé-coxinho à outra sala e regressa com a notícia de que Weronika parece estranhamente hirta e horrível. O código na sua perna é E II. Jadwiga e algumas das cobaias mais fortes começam a compreender que o código deve especificar uma bactéria de algum tipo e que algumas receberam uma dose mais forte do que outras. A rigidez do pescoço pode ser um sintoma de tétano, que matará Weronika, embora ela ainda esteja a combater a infeção. Na manhã seguinte, Weronika está a morrer. Ela sabe-o. Mal consegue falar e têm de deitar água na sua boca de maxilares cerrados. Com as suas últimas forças, consegue dizer umas palavras através dos dentes cerrados sobre os seus dois filhos pequenos. As palavras desvanecem-se, ouve-se um estertor e o seu rosto contorcese. Solta um grito final, terrível, sem semelhança com qualquer som humano que alguém já tenha ouvido. No seu rosto forma-se uma expressão medonha e a cabeça tomba-lhe para o pescoço hirto. Gerda Quernheim vem a correr com uma agulha e espeta-a delicadamente, libertando Weronika do seu sofrimento. O rosto dela suaviza-se e a tensão no seu corpo dissipa-se rapidamente. O hospital cai em silêncio. A notícia da morte de Weronika alastra rapidamente pelos blocos de polacas, enquanto dentro da Revier as jovens se sentem agora preocupadas com Alfreda Prus, que está cada vez mais pálida. O seu código é K I, e alguém diz que ela parece ter gangrena. Ainda aos soluços, ela repete insistentemente: «Estou a morrer. Estou a morrer.»

Lá fora, todas aguardam notícias de Alfreda, e Eugenia Mikulska, que é da mesma cidade de ZamoŚć, corre à janela da enfermaria mal pode. Antes da guerra, estudou enfermagem com a irmã de Alfreda. Alfreda vira-se e vê o rosto de Eugenia a sorrir-lhe para a encorajar. No dia seguinte, Eugenia regressa à janela e Alfreda ergue a mão e diz: «Dá lembranças minhas aos nossos amigos em ZamoŚć.» Pouco depois, Alfreda é levada para lhe fazerem nova incisão e, quando volta à enfermaria, tem a ferida a sangrar abundantemente. O colchão de palha fica vermelho e forma-se uma poça de sangue debaixo da sua cama. Uma enfermeira do campo de concentração parece apiedar-se dela e traz-lhe uma caneca de café da messe de oficiais, mas é claro que isso não melhora o seu estado, e a enfermeira chama Oberheuser. Claramente, Oberheuser sabe que Alfreda está às portas da morte, porque tenta injetar-lhe qualquer coisa para deter a hemorragia. Os médicos não parecem querer que ela morra ainda. Talvez a experiência não esteja completa. Completa ou não, na manhã seguinte chegam duas enfermeiras para levar Alfreda. Quando ela está a ser transportada numa maca, vira a cabeça na direção de Stefania, a sua companheira na cama ao lado, sorri e diz: «Estás a ver, eu bem te disse que ia morrer.» Daí a um instante, as outras ouvem os gritos mais terríveis e inumanos — desta vez de Alfreda Prus. Os gritos de Alfreda são tão penetrantes que as outras cobaias dizem que todo o campo deve têla ouvido morrer.

19 A pressão para encontrar um remédio milagroso aumentou quando os Aliados começaram a lançar folhetos para o lado alemão a anunciar que os seus soldados estavam a ser tratados com sulfonamidas e com penicilina.

20 Hitler apoiava as experiências em prisioneiros de campos de concentração, dizendo que eles «não deviam manter-se completamente não afetados pela guerra enquanto os soldados alemães estão a ser submetidos a pressões quase insuportáveis e a nossa terra natal, mulheres e crianças estão a ser engolidas por uma chuva de bombas incendiárias».

CAPÍTULO 14 EXPERIÊNCIAS ESPECIAIS Encontrei Zofia Kawińska no seu apartamento no décimo andar com vista para os guindastes do estaleiro naval de Gdansk. Ela era um dos elementos do segundo grupo de vítimas das experiências com sulfonamidas de Himmler. Uma senhora minúscula, vergada, caminha com dificuldade desde a guerra. Pergunto-lhe se ainda sente dores por causa das experiências. «Um pouco», diz, enquanto me oferece chá e bolachas. Debruça-se para me mostrar as cicatrizes nos lados das pernas. «Meteram as bactérias e o vidro e os pedaços de madeira, e esperaram.» Olha para cima e fita-me com os seus olhos de um castanho-escuro, como se estivesse a tentar ver se eu consigo compreender. «Mas eu não sofri tanto como outras pessoas. Toda a gente na Polónia voltou para casa com feridas.» Quando Zofia regressou, descobriu que tinha perdido o pai em Auschwitz. Ele foi detido ao mesmo tempo que ela, na casa da família em Chełm. «A última vez que o vi foi no camião a caminho do castelo de Lublin. Partilhámos um pão que a minha mãe nos tinha dado», diz ela, olhando para os guindastes com os olhos marejados de lágrimas. As suas recordações do campo de concentração surgem numa série de imagens nítidas. Recorda-se de Binz. «Ela tinha um cão pequeno a quem fazia festas. A Binz adorava aquele cão, mas gostava de bater nas pessoas. As guardas não eram mulheres com estudos.» Recorda mais o frio do que a fome. «Fazíamos luvas de pele para os pilotos, mas tínhamos os pés como blocos de gelo. Tiravam-nos os sapatos na primavera.» E quando fala das experiências recorda o cheiro das pernas a apodrecerem. «Estávamos fechadas à chave com aquilo, compreende, e

não podíamos abrir as janelas. Era pior do que o cheiro a cadáveres em decomposição. As nossas próprias pernas. Era a Oberheuser quem nos fechava, porque não nos era permitido ver os médicos importante. Os médicos importantes não queriam testemunhas, porque sabiam que os executariam por isso.» «Como era Oberheuser?» «Quando aquilo começou, antes de ficarmos muito doentes, lembro-me de que ela entrou e nós perguntámos-lhe: “O que é que fez às nossas pernas? Não vamos poder usar meias de vidro.”» «O que é que ela disse?» «Nada. Sorriu, um sorriso estranho.» Depois de conversarmos mais algum tempo, perguntei a Zofia se tinha perdido a fé em Ravensbrück. Ela fez uma pausa e desviou o olhar. «Não. Não tenho menos fé. Está a ver, nós fomos para o campo de concentração com uma vontade férrea de sobreviver.» E fecha as minúsculas mãos em punho sobre a toalha de mesa e lançame um outro olhar — mais uma vez, como se para ver se eu consigo compreender. Após um momento de hesitação, levantou-se e pegou em algo para me mostrar; um pequeno medalhão de prata com uma imagem de Cristo. Pertencia a uma amiga íntima que morreu em Ravensbrück. Zofia guardou-o sempre. No campo de concentração, escondeu-o numa série de esconderijos, enterrando-o na terra, metendo-o por trás de traves nas paredes, mas encontrava-o sempre. Mesmo depois de sair da Revier, encontrou-o outra vez, escondido algures no bloco. Foi um milagre não o ter perdido, diz. «Protegeu-me.» Em 7 de outubro de 1942, um outro grupo de cobaias foi convocado à enfermaria. Maria Plater-Skassa viu folhas de outono tombarem enquanto a conduziam para fora do bloco. Genowefa Kluczek foi acordada nessa manhã pela Blockova, Marta Baranowska, que, com lágrimas nos olhos, trepou ao seu beliche de três camas e disse: «Veste-te, garota. Vem comigo. Sê corajosa.» Pelagia Maćkowska ainda queria acreditar que a promessa do

regresso à Polónia se ela acedesse a fazer a operação poderia ser verdadeira. Veria de novo o seu marido e os seus filhos. Eles tinham sido enviados para Auschwitz por serem membros da oposição clandestina polaca. Tudo se processou como anteriormente. As novas cobaias perfilaram-se, evitando olhar umas para as outras, com a pele macilenta coberta por uma penugem fina. Todas se encantaram por tomarem banho, até uma delas começar a chorar, lembrando-se dos filhos. Ordenaram-lhes que desfilassem nuas diante de um médico, provavelmente Rosenthal, que estava sentado numa marquesa com um cigarro nos lábios, rodeado por enfermeiras alemãs. Não lhes prestava atenção. Quando as novas pacientes se instalaram nas suas camas, suplicaram a Jadwiga Kamińska que lhes dissesse o que tinha realmente acontecido às suas amigas Weronika Kraska e Alfreda Prus, mas Jadwiga não queria falar diante de Maria KuŚmierczuk, uma das amigas mais íntimas de Alfreda, que estava deitada numa das camas. Maria, que conhecia Alfreda da escola, fora operada alguns dias antes e tinha o mesmo código que Alfreda — K I — marcado na perna. O Dr. Rosenthal examinou o braço de Pelagia à procura de uma veia para a injetar. «Gut, gut», disse. Ela acordou dois dias depois com alucinações. O rosto da sua mãe estava debruçado sobre ela e ela pôs-se a berrar: «Porque é que não ajudam a minha mãe?» A sua perna era um cepo de um pretoazulado. Tal como antes, as mulheres ouviram os gritos de outras antes de gritarem elas próprias. E tal como antes, algumas das jovens ficaram com soluços e outras com o pescoço hirto. Embora o procedimento fosse o mesmo, os relatos deste grupo indicam que a atitude dos médicos mudara. Ansiosos ao princípio por colaborar nas experiências do Dr. Gebhardt, agora pareciam todos entediados. A observação das cobaias ficou a cargo da médica de segunda, a Dra. Oberheuser.

Oberheuser faz a ronda das enfermarias todas as manhãs, por vezes para tirar sangue, mas usualmente sem qualquer motivo específico. Uma enfermeira do campo de concentração a quem chamam «o pato» acompanha-a sempre. As prisioneiras chamam-lhe «pato» porque ela tem um andar bamboleante, e a uma outra chamam «ratazana». As enfermeiras fazem todas caretas ao sentir o fedor, mas Oberheuser «parece acostumada a ele e só sorri, parecendo toda satisfeita consigo própria», diz Pelagia. Chega o dia de voltar a fazer o penso e Stefania Łotocka espreita por debaixo do lençol e vê os médicos a divertirem-se. À esquerda da mesa encontra-se Fischer. Na mão direita tem um gancho de metal brilhante. Ao lado direito está Oberheuser, segurando uma taça grande em forma de rim. Tem vestida uma blusa branca de seda bastante transparente, através da qual pode ver-se a sua roupa interior cor-de-rosa. Traz pulseiras nos braços e anéis nos dedos. Os dois estão ali a sorrir um para o outro e Pelagia vê que estão a namoriscar. Enquanto o penso de Pelagia é mudado, ela ouve o som de instrumentos de metal e Oberheuser dizer: «Gleich, gleich» — «Espera, espera». Na enfermaria, Zofia Kiecol tem soluços e Kazia Hurowska, uma robusta moça de aldeia, está sem sentidos, com as pernas de um cinzento quase preto inchadas, o quádruplo do seu tamanho normal. Maria KuŚmierczuk, a amiga da escola de Alfreda, com o mesmo código que ela teve, está também gravemente doente. Para surpresa de todas, subitamente é-lhes dada comida melhor. «Então, os médicos não querem que morramos ainda», diz alguém. Mas o cheiro da comida misturado com o fedor das suas pernas provoca-lhes vómitos. Zofia vomita e soluça incessantemente. Zofia e Leokadia Kwiecińska, que estão deitadas lado a lado, são amigas da oficina de costura. Zofia costumava perguntar todos os dias a Leokadia: «O que achas? Será que voltamos para a Polónia? Se ao menos pudéssemos voltar. Quem vai olhar pelas minhas garotas se eu não voltar?»

Agora, Leokadia vê as enfermeiras levarem Zofia. E levam também Kazia. Mas Maria KuŚmierczuk, a que tem o mesmo código K I que a sua amiga Alfreda, continua miraculosamente a combater a infeção. Só restam nove do seu grupo de doze. «Mas temos de resistir», berra alguém. E olham para Maria, que parecia um caso perdido há apenas alguns dias, mas ainda continua a lutar por viver. A Dra. Oberheuser diz a Dziuba Sokulska, a advogada magricela, que não tardará a ficar melhor, o que acontece de facto, e ela é posta a enrolar ligaduras no outro lado do hospital. E Stanisława Jabłońska também tem novas forças — o suficiente para contar histórias às outras, para lhes dar algo em que pensar para além da carne pútrida. Vêm mais amigas visitá-las à janela. Toda a gente no campo de concentração lhes chama agora Kaninchen — coelhas. As que estão fora passam comida ou côdeas às polacas que têm contactos na Revier, dizendo: «Isto é para as Kaninchen», e as oferendas são trazidas às escondidas. Ao princípio, as jovens tentam dissuadir as outras de empregarem esse nome, mas como coelhas são famosas. Como as guardas também lhes chamam coelhas, o vocabulário das prisioneiras é agora oficial. Não é só recolhendo comida para as coelhas que as outras prisioneiras podem ajudá-las. As prisioneiras também recolhem informações. No seu posto a enrolar ligaduras, Dziuba Sokulska está em contacto com uma médica polaca, Zofia Mączka, de Cracóvia, que trabalha na Revier como radiologista. Tal como todas as outras prisioneiras que são enfermeiras ou médicas, Zofia está proibida de entrar nas enfermarias da experiência, mas espia pelos buracos das fechaduras, escuta às portas e espreita pelas janelas, recolhendo informações que transmite a Dziuba. Os médicos vêm e vão nos seus carros de e para Hohenlychen. De cada vez que vêm trazem bactérias em pequenos frascos, que têm rótulos e que Zofia vê mais tarde por ali. Vê tubos de papel cobertos de pus, que são usados para inserir as bactérias nas feridas, o que lhe permite saber qual a paciente que recebeu determinada dose. As amostras de sangue e de urina são analisadas no laboratório

por estudantes de Medicina, algumas delas prisioneiras polacas, que transmitem às outras o que ficam a saber. Com toda esta informação, Zofia fica a saber que Weronika Kraska foi infetada com uma dose letal de tétano muito antes de morrer, e que Alfreda e Kazimiera Kurowska foram infetadas com bactérias que provocam gangrena gasosa em quantidades tão maciças que os seus organismos não conseguiram resistir. Zofia consegue monitorizar a morte de Kazia Kurowska espreitando pelo buraco da fechadura ao longo de vários dias, enquanto a gangrena gasosa lhe destrói a perna direita e começa a infetar todo o lado direito do seu corpo. A enfermeira, Gerda Quernheim, acaba por pôr fim à vida de Kazia com uma dose elevada de morfina. Alguns dias depois de começarem as operações, Zofia Mączka arranjou maneira de manter registos, que conseguiu esconder com a ajuda de amigas da oficina de costura. Um dia, usaria esses registos para condenar os assassinos, disse a Dziuba. Dziuba queria que o mundo soubesse agora, para deter o mal, mas Zofia não via hipóteses de isso acontecer. Pouco depois, no entanto, apresentouse uma oportunidade a Maria Bielicka. Ela tinha sido rejeitada como cobaia e trabalhava ainda na oficina de encadernação no outono de 1942. A oficina ficava ao lado da Effektenkammer, onde trabalhavam três jovens checas, e elas e Maria Bielicka tinham-se tornado amigas. Maria ficou a saber que as checas enviavam frequentemente as roupas de prisioneiras executadas às suas famílias. O sistema era sempre o mesmo. As roupas eram trazidas do armazém e embaladas num caixote, que era selado pelas guardas da SS. As guardas nunca verificavam o conteúdo dos caixotes, limitando-se a olhar para a etiqueta e a despachá-los. A família enlutada recebia separadamente uma carta do comandante a informar que a sua filha tinha morrido de causas naturais. As jovens checas disseram que era possível enviar cartas às escondidas juntamente com a roupa. Uma ou duas vezes, tinham até enganado as guardas enviando roupas de mulheres que não tinham

sido executadas, com mensagens escondidas dentro. «Toda a gente andava a tentar ajudar as polacas naquela altura», disse Maria. Toda a gente andava chocada com aquelas experiências e aterrorizada com a perspetiva de lhe acontecer o mesmo, por isso perguntaram-me se eu gostaria de mandar algumas roupas para casa para poder enviar às escondidas uma mensagem aos meus pais sobre o que estava a acontecer. O meu pai e a minha mãe estavam na clandestinidade polaca em Varsóvia. Achei que era uma grande oportunidade para lhes falar do campo de concentração.

Com este plano em mente, Maria e algumas amigas esboçaram um mapa grande a mostrar a localização e a planta do campo de concentração. «Escrevemos sobre as experiências e as execuções, e tudo o que podíamos, e as moças checas puseram a carta na trouxa com as minhas roupas. Disse-lhes para mandarem tudo menos o meu casaco de inverno e as minhas botas da neve — para o caso de vir a precisar deles. As guardas selaram o caixote e carimbaram-no com carimbos oficiais da SS e despacharam-no.» Como mais tarde, ainda durante a guerra, os pais de Maria foram detidos e mortos a tiro, ela nunca teria ficado a saber qual fora a sua reação ao receber a embalagem, se não fosse uma amiga que vivia perto deles em Varsóvia e que estava presente quando eles a abriram. «Imagine o que eles pensaram ao princípio», disse Maria. «Pensaram que eu devia ter sido executada. Mas a minha amiga disse-me que, quando encontraram a carta, ficaram cheios de alegria por eu ter sido tão esperta para o fazer!» Maria tinha a esperança de que os seus pais transmitissem a informação ao movimento clandestino polaco de resistência e que ela chegasse aos ouvidos do mundo. «Mas, sabe, para nós no campo de concentração era uma vitória de qualquer maneira. É claro que queríamos contar os crimes ao mundo, mas a alegria para nós era também o termos enganado o nosso inimigo. Era uma pequena vitória. Mas essas eram as coisas que ajudavam as prisioneiras a aguentar.» No final de outubro, algumas das mulheres já estavam na

enfermaria há dois meses. As camas, em tempos brancas, estavam agora cinzentas e pegajosas. Stefania Łotocka tentava manter o cobertor bem chegado ao pescoço para evitar o fedor da sua perna, mas não resultava. O cabelo emaranhado formava-lhe uma espécie de barrete no topo da cabeça. Tinham sido mutiladas; agora tinham sido abandonadas. Até mesmo Oberheuser raramente passava pela enfermaria. Nuvens de moscas alimentavam-se do pus e as ligaduras brancas estavam cobertas com larvas pretas. A imundície matá-las-ia, se mais nada tivesse esse efeito, pensava Stefania olhando para as baratas nas fendas das paredes. Uma manhã, Oberheuser entrou na enfermaria, toda despachada e com um ar importante, anunciando que iam limpá-las a todas e darlhes camisas de noite lavadas. O professor ia voltar. Embora só o esperassem às duas da tarde, as mulheres foram preparadas horas antes, deitadas em tábuas especiais na clínica, «como cadáveres numa morgue». Cada uma envergava uma camisa de noite esfarrapada e tinha um cartão à sua frente no qual estavam escritos os códigos com uma bela letra gótica. Ao longo daquelas horas, as suas feridas continuaram a doer-lhes e a sangrar. Oberheuser reorganizava os cartões de vez em quando: A I, A II, C I, C II, D I, D II, E I, E II. Foi só ao fim da tarde que Karl Gebhardt apareceu com os seus médicos. Estavam todos embriagados. Gebhardt, virado para a gabarolice, exibiu as suas Kaninchen aos outros, que se maravilharam com aquela visão. «Olhem para isto», disse ele, apontando com orgulho para pernas inchadas e feridas supurantes, e enquanto explicava alguma coisa, com a mão a esconder a boca, toda a gente riu a bandeiras despregadas e seis pares de olhos olharam com atenção, tomando apontamentos mentalmente. Segundo uma das cobaias, naquele dia a aparência de Gebhardt era a de um homem «gordo, com um rosto pálido como um pudim e olhos pequenos. Vestido à paisana — com uma camisola azul-marinho». De cada vez que o cirurgião-chefe se aproximava de uma das

mulheres, Fischer e Oberheuser ladeavam-no, tentando impressionálo com os seus relatórios, e quando ele acenava com a cabeça, Oberheuser «sorria com satisfação», com o rosto «excitado e corado». Rapidamente entediado com Oberheuser e as pacientes, Gebhardt foi embora. Tal como o seu pessoal, Karl Gebhardt tinha obviamente perdido o interesse pelos casos; os resultados, mais uma vez, não apresentavam nada de novo. Grawitz, o diretor do programa experimental, nem sequer se deu ao trabalho de aparecer daquela vez. De qualquer modo, o homem que promoveu inicialmente as experiências com sulfonamida, Heinrich Himmler, tinha encontrado experiências mais absorventes para seguir. Em finais de outubro de 1942, o entusiasmo de Himmler pelas experiências médicas encontrava-se no auge. Em vez de curas para feridas do campo de batalha, estava a pedir a Sigmund Rascher, um outro médico seu favorito, que encontrasse maneiras de reanimar soldados e pilotos retirados de mares gelados. Himmler andava a fazer leituras sobre os métodos usados por comunidades costeiras em séculos passados para salvar tripulações naufragadas no Báltico. Muitas vezes, a gente do povo conhecia excelentes remédios, disse ele a Rascher numa carta, como, por exemplo, tisanas feitas com ervas medicinais. Himmler prosseguiu: «Consigo também imaginar que a mulher de um pescador poderia levar o seu marido meio gelado para a cama com ela depois de o salvarem do mar e aquecê-lo dessa maneira.» Aconselhou Rascher a tentar o mesmo, e disse-lhe que usasse as prostitutas de Ravensbrück, enviadas para o bordel de Dachau, para o «calor humano». Ao princípio, Rascher rejeitou a ideia, dizendo que não resultaria, mas Himmler insistiu e, como Rascher era também um dos seus amigos íntimos e devoto dos projetos da Herança Ancestral do Reichsführer, acabou por concordar. Desde o estabelecimento de um bordel em Buchenwald alguns meses antes, com mulheres de Ravensbrück, também tinha já sido

criado um outro em Dachau, para onde tinham sido enviadas mulheres de Ravensbrück. De entre essas mulheres, foram escolhidas quatro «prostitutas» para as experiências de Rascher. Uma delas, no entanto, foi rejeitada por Rascher por ser demasiado nórdica. Rascher escreveria mais tarde que ela «exibia características raciais nórdicas indesmentíveis: cabelo louro, olhos azuis, cabeça e estrutura corporal correspondentes». Perguntei à moça porque é que ela se tinha oferecido como voluntária para o bordel. Recebi a resposta: «Para sair do campo de concentração, porque me prometeram que todas as que se oferecessem como voluntárias para o bordel durante meio ano seriam libertadas do campo.» À minha objeção de que era uma grande vergonha oferecer-se como prostituta, foi-me dito: «Mais vale meio ano no bordel do que meio ano no campo de concentração.»

Rascher disse que a mulher lhe tinha também feito um relato das «condições mais peculiares» em Ravensbrück, e que esse relato tinha sido confirmado pelas outras. Ofende os meus sentimentos raciais expor como prostituta a elementos racialmente inferiores do campo de concentração uma moça que tem a aparência de ser uma pura nórdica e que talvez pudesse, se lhe fosse atribuído um trabalho em condições, ser posta no bom caminho. Por consequência, recusei-me a usar aquela moça para fins experimentais.

Disposto a usar as outras mulheres de Ravensbrück, Rascher preparou-se para as experiências, mantendo Himmler informado dos progressos obtidos. Em primeiro lugar, oito prisioneiros do sexo masculino foram colocados num tanque grande cheio de água quase gelada e ali deixados até perderem os sentidos. Cada um dos homens foi retirado do tanque, inconsciente, e colocado entre duas mulheres de Ravensbrück deitadas nuas numa cama espaçosa. Às mulheres foi dito que deviam aconchegar-se o mais possível ao homem moribundo. Os três estavam cobertos com cobertores. O resultado foi que os homens recobraram rapidamente os sentidos. Uma vez recuperada a consciência, não a perdiam outra vez, mas «muito rapidamente compreenderam a situação», como diria Rascher mais tarde, e «aconchegaram-se aos corpos femininos nus».

A temperatura corporal dos homens subiu mais ou menos à mesma taxa com que subiria se tivessem sido aquecidos por cobertores quentes. «Mas em quatro casos os homens realizaram um ato sexual com as mulheres.» A temperatura dos homens enregelados aumentou mais rapidamente depois do ato sexual. Experiências realizadas só com uma mulher em vez de duas revelaram um reaquecimento ainda mais rápido, talvez, segundo Rascher, porque havia menos inibições e a mulher se aconchegava mais ao homem. Em nenhum dos casos o reaquecimento do homem foi mais eficaz do que se tivesse sido metido num banho quente. E num dos casos o homem teve uma hemorragia cerebral e morreu. No princípio de novembro, com a chegada a Hohenlychen de um homem chamado Ludwig Stumpfegger, perderam-se quaisquer esperanças de que as experiências em Ravensbrück terminassem. O acesso a material feminino para experimentação tentara Stumpfegger a vir fazer alguns testes: queria partir ossos e ver se eles voltavam a crescer e a soldar-se. Stumpfegger, um outro favorito de Himmler, propôs as experiências a Gebhardt. Este conhecia bem Stumpfegger — tinham trabalhado juntos na equipa médica dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 —, mas diria mais tarde que se opusera aos testes de Stumpfegger por essas experiências já terem sido feitas. Mas Stumpfegger contava com a aprovação de Himmler. Recentemente, o Reichsführer fizera uma série de visitas a clínicas de convalescença para militares feridos e acreditava que poderia fazer-se mais para consertar ossos partidos. Propôs a Stumpfegger que conduzisse as suas experiências em jovens prisioneiras polacas em Ravensbrück. Em 2 de novembro, uma bailarina polaca de dezasseis anos chamada Basia Pietrzyk, a mais jovem do transporte de Lublin, tornou-se uma das primeiras vítimas de Stumpfegger. Basia era uma jovem esguia e graciosa cujo cabelo escuro e olhos negros lhe tinham valido a alcunha «Pimenta» no bloco polaco. Durante a sua operação, Stumpfegger retirou-lhe pedaços de osso das tíbias das duas pernas,

engessou-lhe as pernas até às virilhas e escreveu no gesso o código I A, para assinalar o início da sua série de experiências. Levou os pedaços dos ossos de Basia no seu automóvel para Hohenlychen para os estudar. Mais uma vez, as operações foram supostamente conduzidas em segredo, mas, mais uma vez, o secretismo não resultou. A técnica de radiologia polaca Zofia Mączka não só pôde observar tudo como antes como foi recrutada para participar, já que foi ela quem tirou as radiografias antes e depois de cada operação. Ao longo das semanas seguintes, com um número crescente de mulheres polacas a serem chamadas à Revier, Zofia registou três tipos diferentes de operação: para partir ossos, para enxertar ossos e para fazer fissuras em ossos. Parti-los demorava até três horas, um período durante o qual os ossos das canelas de ambas as pernas eram esmagados com martelos na mesa de operações. Os ossos eram encaixados — com ou sem grampos —, as feridas suturadas e as pernas engessadas. Alguns dias depois, o gesso era removido e os ossos ficavam a sarar. Noutras operações, uma fíbula ou uma tíbia inteira eram simplesmente retiradas. As operações aos músculos começaram ao mesmo tempo, também por instigação de Stumpfegger. Nesses, sujeitavam a vítima a várias operações. Inicialmente, um pedaço de músculo era retirado da canela e da coxa, e em operações posteriores eram removidos pedaços cada vez maiores. Izabela Rek foi chamada à Revier e quando entrou viu cinco das suas amigas já despidas, deitadas com o rosto virado para a parede, com termómetros enfiados no ânus. Seria a sexta a ficar ali deitada. Depois de uma operação a uma das suas pernas (faria operações em ambas), o Dr. Rosenthal pegou numa agulha de tricotar que estava numa mesa próxima e bateu numa zona de osso exposto, com Izabela a ver. Com a nova série de experiências em curso, o som de ossos a serem esmagados e fraturados e de músculos enxertados em ossos vinha da sala de operações todos os dias, acompanhado pelos

assobios da Dra. Herta Oberheuser, especialmente se o Dr. Fischer estivesse por perto. Quando Maria Grabowska foi levada até à porta da sala de operações para aguardar a sua vez, ouviu o som de uma broca lá dentro. Esperou uma hora, e Oberheuser abriu a porta da sala de operações, «com a bata branca encharcada em sangue». Maria sentiu uma dor tão aguda que dava a sensação de lhe terem trespassado o osso da canela com um prego e de lho terem furado com uma broca, que foi mais ou menos o que aconteceu. Era tão insuportável que ela sentia o coração a contrair-se. Eugenia Mikulska é agarrada por enfermeiras enquanto os médicos lhe cortam a canela, embora, claramente, a anestesia não tenha resultado. Dias depois, quando consegue arranjar forças para olhar para a perna, vê o osso completamente exposto, do joelho ao tornozelo, com dobras de carne esverdeada à volta. Enviada para fazer novo penso alguns dias depois, espera à porta da sala de operações e, quando ouve a sua amiga Jadwiga Dzido a gritar lá dentro, tenta fugir, mas descobre que não se aguenta nas pernas e cai. Aparece uma enfermeira, que lhe pergunta: «Porque é que ias fugir? Sabes que tens de entrar ali como ela e que ele também te vai cortar.» Antes de Rosenthal começar a operar Eugenia, repara nos seus pés pequenos e na curva da planta dos pés e pergunta-lhe se ela é bailarina. «Não, sou enfermeira», diz ela. «Oh, Krankenschwester, Krankenschwester», repete ele, enquanto corta o músculo vivo. Quando Eugenia volta para a enfermaria, berra: «Não há Deus», mas Jadwiga Dzido está a berrar muito mais alto. «Deem-me uma espada, deem-me uma espada, tenho de me defender. Toda a Polónia está a sangrar e eu estou a sangrar», grita incessantemente. Jadwiga está a delirar de febre. Tem também uma hemorragia muito grave. O sangue corre da sua perna mutilada, que está encerrada numa tala de ferro, e por isso Eugenia força-se a sair da cama, trôpega e a cair, para chegar junto de Jadwiga. À terceira

tentativa, consegue, e, amparada ao colchão de Jadwiga, faz uma espécie de torniquete na perna da sua amiga. Mas Jadwiga parece estar nas últimas. Oberheuser entra daí a pouco e a expressão do seu rosto indica que pensa o mesmo. No dia seguinte, como Jadwiga ainda está em delírio e a esvair-se, Eugenia, que começa a melhorar, vai a pé-coxinho ao outro quarto contar às amigas o que se passa com Jadwiga Dzido. Quando se vira para voltar para a sua cama, para horrorizada à porta. Oberheuser e Gerda Quernheim estão debruçadas sobre Jadwiga, prestes a espetar-lhe uma seringa. «E eu só pensava: “Não podem matá-la.”» Eugenia e outras gritam então: «Não a matem. Ela não vai morrer», e Oberheuser e Quernheim olham na direção de Eugenia. Faz-se silêncio. Oberheuser afasta a mão de Gerda Quernheim de Jadwiga e retiram-se as duas. Eugenia olha para Jadwiga, pensando agora que a única esperança é que ela saia do seu estado de delírio. Miraculosamente, quase naquele preciso momento, ela abre os olhos, fita Eugenia e diz, num tom de voz normal: «Onde é que eu estou? O que é que está a acontecer?» Quando vem o jantar, Eugenia persuade Jadwiga a comer, e ela come. Quatro anos depois, Jadwiga Dzido seria uma das quatro coelhas polacas a prestar depoimento no julgamento dos médicos em Nuremberga. Os relatos das coelhas não só dão pormenores sobre a selvajaria a que elas próprias foram submetidas como lançam também luz sobre outras atrocidades que ocorriam na Revier na mesma altura; em particular, os seus depoimentos revelam como os médicos de Ravensbrück usavam cada vez mais e habitualmente injeções para matarem as prisioneiras. Que os médicos e as enfermeiras no campo de concentração recorriam a seringas para assassinar coelhas polacas mutiladas não era, obviamente, nenhuma surpresa para as prisioneiras que trabalhavam na Revier. Desde os tempos do Dr. Sonntag que o uso

de injeções para matar as doentes era prática corrente, e a nova equipa médica — Schiedlausky, Oberheuser e Rosenthal — não tinha problemas em assassinar uma paciente injetando-a com fenol, Evipan ou até mesmo gasolina. A todos tinha sido dito que essa era uma maneira eficiente de se livrarem de vidas inúteis.21 No entanto, deduz-se claramente das observações das coelhas que no outono de 1942 a prática de assassínio por injeção estava a ser incrementada. A prisioneira enfermeira Gerda Quernheim parecia estar agora autorizada a ministrar essas injeções e fazia-o a seu belprazer. A radiologista polaca Zofia Mączka achava que Quernheim talvez estivesse a matar as suas vítimas «para as libertar» do seu sofrimento, embora acrescentasse: «Esse era o perigo — ela perdeu o controlo interior sobre quem matar e quem não matar.» Outro pessoal da Revier acreditava que Quernheim sabia exatamente quem matar e que estava deliberadamente a assassinar prisioneiras em parceria com Rosenthal. Nos primeiros tempos, Rosenthal e Quernheim colaboravam nos abortos, o que continuou a verificar-se, mas em meados de 1942 estavam já a passar mais tempo a matar pacientes através de injeções letais, o que, notavam as prisioneiras, parecia dar-lhes prazer. Tornara-se prática comum pôr as prisioneiras a serem injetadas numa pequena sala da Revier chamada Stübchen. A prisioneira enfermeira checa Hanka Housková recordou uma ocasião em que entrou no Stübchen durante o período das experiências médicas: Uma garota cigana estava deitada na cama. Gerda Quernheim e o Dr. Rosenthal estavam debruçados sobre ela. A criança pediu-me socorro e quando me aproximei vi Gerda Quernheim com uma seringa na mão a injetá-la na veia. O Dr. Rosenthal segurava na mão da criança com um pedaço de um tubo de borracha. A criança chorava e debatia-se. O Dr. Rosenthal berrou-me que saísse, porque só estava a incomodar, ou será que também queria levar uma injeção? Ao fim de algum tempo, eu ainda ouvia a criança a chorar, o Dr. Rosenthal e Gerda Quernheim voltaram a entrar e ouviram-se umas risadinhas desagradáveis.

Mais tarde, o corpo da pequena cigana foi levado, com manchas azuladas.

Milena Jesenska era quem mais de perto vigiava Quernheim e Rosenthal. Para contar os assassínios, adotou o hábito de abrir os caixões que eram colocados todas as manhãs no pátio da Revier. Nos finais de 1942, começou a reparar nos corpos das pessoas que tinham obviamente sido mortas durante a noite. Nesses corpos, havia «marcas de agulhas hipodérmicas, costelas esmagadas, equimoses nos rostos e faltas de dentes suspeitas», disse ela a Grete BuberNeumann. A única prisioneira com autorização para andar pela Revier durante a noite era Quernheim e não tardou a tornar-se evidente que Rosenthal ia ter com ela para encontros sexuais. A seguir, frequentemente assassinavam uma paciente — «não só pelo prazer perverso de o fazer», disse Milena, mas pelo lucro. Milena estava convencida de que durante o dia o casal selecionava as suas vítimas — usualmente as que tinham dentes ou coroas de ouro, que eram removidos antes de as mulheres serem assassinadas, e Rosenthal vendia o ouro. Outras prisioneiras estavam também cientes de que o assassínio por injeção se tornara comum. «Eu via muitas vezes a Gerda Quernheim entrar com uma seringa no Stübchen», disse a médica checa Bozena Boudova, cuja tarefa consistia em preparar as soluções letais. Quernheim não era a única que colaborava com o médico da SS nos assassínios. «Sabia-se que não eram só os médicos que davam as injeções, mas também as próprias prisioneiras enfermeiras.» Desde o início do outono, as prisioneiras começaram a reparar num outro padrão nos assassínios por injeção: as vítimas eram frequentemente judias. Nesta fase, Hitler já tinha ordenado que a Alemanha se tornasse «judenfrei» — livre de judeus — até ao final de 1942, e Himmler ordenou similarmente que cada um dos seus campos de concentração em solo alemão se tornasse judenfrei. Um a um, os campos estavam a enviar os seus prisioneiros judeus para Leste, principalmente para Auschwitz. Durante os extermínios por gás em Bernburg, que foram suspendidos no princípio do verão de 1942, Ravensbrück ficou

praticamente «livre» de judias, mas tinham chegado outras, inseridas noutros grupos. Algumas eram estrangeiras — entre elas oitenta e duas judias holandesas chegadas ao longo dos meses de verão. No outono, quando o campo se preparava para uma evacuação final de judias, era óbvio que os médicos tinham recebido ordens para apressar a morte do maior número possível de prisioneiras judias — antes da «limpeza» final —, para poupar nos custos do seu transporte. Magdalene Hoffmann, uma enfermeira experiente, reparou que as judias eram empregadas nos trabalhos mais duros, tais como cavar sepulturas: «Muitas vezes estavam doentes, com pernas inchadas, mas o tratamento por médicos da SS e por enfermeiras da SS estava proibido. Por essa altura, aquelas mulheres judias começaram a receber uma injeção letal de Evipan, com a assistência de Gerda Quernheim.» Hoffmann disse que ela própria recebeu ordens de Rosenthal para dar injeções a todas as judias que sofressem de disenteria, e que todas elas morreram. Nos primeiros dias de outubro, as restantes 522 judias de Ravensbrück foram deportadas para Auschwitz. Em novembro de 1942, as experiências médicas tinham já avançado para uma outra fase e o horror na Revier acentuou-se ainda mais. Primeiro, foi conduzida uma segunda ronda de experiências com bactérias nas prisioneiras polacas. Pouco depois, prisioneiras de outras nacionalidades começaram a ser trazidas para a enfermaria das experiências: mulheres escolhidas ao acaso — ucranianas, checas, alemãs —, algumas jovens e outras idosas. As enfermeiras chamavam a essas mulheres «as loucas», mas ninguém parecia saber ao certo porque é que elas estavam ali. As polacas tentavam dar-lhes apoio. No grupo havia uma mulher russa que estava toda preta com queimaduras do gelo e não falava. Também tinha sido trazida uma pequena mulher débil, que se encolhia e estremecia violentamente quando alguém tentava sequer aproximar-se dela. Essa mulher era jugoslava, descobriram as coelhas, e também ficaram a saber que o

seu marido tinha sido morto a tiro diante dela. E havia uma velha senhora alemã — uma «verde» — que, acabou por se saber, fora em tempos cantora de ópera. Devia ter sido uma grande beleza em nova, diziam todas. E nos dias bons cantava uma ária ou duas para as outras e dava-lhes o seu pão. Mas na maior parte do tempo estava de mau humor e berrava a plenos pulmões: «Hitler kaputt» ou «Heil Hitler» e escondia-se debaixo das roupas de cama às gargalhadas. Mais tarde, uma a uma, as jovens do grupo das chamadas «loucas» foram levadas e constou-se que iriam ser submetidas a «experiências especiais». Essas operações especiais eram realizadas por Stumpfegger, por vezes com a assistência de Fischer, e implicavam a amputação e a remoção de membros inferiores na sua totalidade. A vítima era assassinada sem mais na sala de operações por meio de uma injeção letal e os membros embrulhados em lençóis e levados para Hohenlychen para uso posterior. Uma das primeiras vítimas das «experiências especiais» foi uma jovem ucraniana que se chamava Hania. Hania disse às jovens polacas que tinha sido trazida para a Alemanha para os trabalhos forçados e que a fizeram manter-se de pé durante horas numa fábrica húmida e fria, o que lhe tinha provocado a inflamação das articulações das ancas e impedira que trabalhasse, motivo por que a tinham levado para ali. No entanto, era uma moça forte, e recusou-se a ser sedada por Rosenthal, oferecendo-lhe resistência perante os olhares das polacas. Quando ele veio com a seringa, ela estrebuchou de tal maneira para se afastar dele que Rosenthal teve de chamar a enfermeira alemã, Dora, para o ajudar, mas Hania continuou a resistir a ambos. Hania agarrou-se aos lados da cama para impedir que a pusessem na maca e, quando se ergueu com toda a força para empurrar Rosenthal, este perdeu as estribeiras, saltou para a frente e esbofeteou-a com toda a força, agarrando-lhe o cabelo e berrando: «Ucrânia, Ucrânia.» Mesmo assim, como ela continuava a resistir, Rosenthal agarrou-a

pelo colarinho da camisa de noite e atirou-a para a maca. A enfermeira, Dora, tinha já recuado, assistindo horrorizada, e virou-se e fugiu dali. Hania estava agora a chorar e a berrar pela sua mãe enquanto a amarravam à maca e a levavam. Hania não regressou. Mas Dora voltou à enfermaria algum tempo depois e disse às jovens de Lublin que sentia vergonha de ser alemã e que não queria continuar a trabalhar ali. Dora saiu do campo de concentração pouco depois. Daí a pouco tempo, removeram uma clavícula inteira a uma segunda ucraniana. Como se a situação na enfermaria do campo de concentração não fosse já suficientemente macabra, as prisioneiras repararam então que Fischer e outros médicos se metiam em veículos levando consigo membros inteiros, mal escondidos debaixo de cobertores, e se dirigiam para Hohenlychen. Algumas horas depois de Hania ser levada, Zofia Mączka, a radiologista, observou o Dr. Fischer no automóvel de Hohenlychen a segurar numa perna embrulhada num lençol. Mais uma vez, Karl Gebhardt, o cirurgião-chefe, tentaria negar no seu julgamento qualquer envolvimento nessas operações, referindose a determinada altura a «estas prisioneiras de Ravensbrück, com quem estou sempre a ser difamado, não sei porquê». Afirmou também que Stumpfegger se tinha encarregado sozinho das «experiências especiais», no seguimento das suas operações aos ossos e por ordens diretas de Himmler. O Reichsführer tinha ouvido falar da investigação feita por um médico russo em Kiev que envolvia o transplante de membros inteiros ou de partes de membros, e queria que Stumpfegger copiasse essa técnica, mas Gebhardt declarou não saber mais nada. Como Stumpfegger cometeu suicídio no final da guerra e todas as suas vítimas das «experiências especiais» tinham morrido, poderíamos nunca ter tido conhecimento destes casos se não fosse o testemunho de Zofia Mączka e de outras prisioneiras. No entanto, o testemunho de Fritz Fischer revelou-se também

crucial no julgamento, já que ao ser interrogado pela acusação admitiu ter participado em pelo menos uma das «experiências especiais», dizendo que se opusera à operação «por motivos médicos e humanitários», mas que Gebhardt lhe ordenara que realizasse a operação e que, por consequência, ele não teve opção. A operação envolvia um jovem paciente alemão em Hohenlychen que tinha perdido uma omoplata e uma clavícula devido a um tumor, e o plano consistia em dar ao paciente uma omoplata de uma das «loucas» de Ravensbrück enxertando-lha e «proporcionando-lhe assim uma boa oportunidade de sobrevivência». A omoplata seria tirada do ombro de uma mulher, que não estava a funcionar normalmente devido a uma amputação prévia da mão. Inicialmente, o plano era que Stumpfegger realizasse a amputação, mas Fischer foi chamado à última hora para se encarregar dela. O tribunal ouviu Fischer confessar que amputou a omoplata em Ravensbrück, matou a vítima com uma injeção letal, foi de automóvel para Hohenlychen com a omoplata embrulhada num cobertor e a entregou a Gebhardt. Quando o juiz lhe perguntou se aquela parte do corpo pertencia a um homem ou a uma mulher, Fischer disse que não sabia: a pessoa esteve coberta durante a operação. Em Hohenlychen, Gebhardt transplantou a omoplata para o homem doente com a assistência de Stumpfegger e de um outro médico. O homem viria a morrer. No decurso do julgamento, a identidade da vítima não chegou a ser determinada, e o tribunal ficou simplesmente a saber que a omoplata «foi removida de uma prisioneira louca do campo». Ao longo do inverno, mais mulheres «loucas» foram levadas para as enfermarias das experiências. Uma dessas mulheres — uma checa — gritava tão alto um dia que a coelha polaca Stanisława Czajkowska, acabada de regressar de uma operação, acordou da anestesia a perguntar: «O que é que está a acontecer? O que é que está a acontecer?» Os gritos da mulher checa exprimiam «um desespero, uma dor e uma revolta indizíveis», recordaria ela mais tarde.

Alguém contou então às polacas que a mulher checa tinha sido trazida para Ravensbrück de uma vila checa chamada Lidice, que tinha sido arrasada pelos Alemães. As coelhas arranjaram maneira de comunicar com a mulher checa e ficaram a saber que durante o ataque a Lidice a sua casa tinha sido incendiada e destruída com todos os seus filhos lá dentro. As crianças chamaram pela mãe a pedir socorro, mas os alemães recusaram-se a permitir-lhe que fosse ter com eles. Ao ouvir isto, as coelhas compadeceram-se da mulher e tentaram ajudá-la. Na altura, não faziam ideia do quanto tinham em comum com aquela mãe checa. A destruição da sua vila e a morte da sua família, assim como a mutilação de todas às mãos dos médicos da SS, eram o resultado direto da morte de Reinhard Heydrich.

21 O assassínio por injeção letal era comum em todos os campos de concentração e continuava a ser usado em hospitais alemães ao abrigo do chamado programa de eutanásia.

CAPÍTULO 15 CURA A última coisa de que Stefania Łotocka se lembrava, antes de ser anestesiada pela primeira vez, era de ver pela janela da enfermaria umas folhas da cor do cobre a esvoaçarem lá fora. Depois de acordar completamente, muitas semanas depois, viu flocos de neve a instalarem-se na mesma vidraça. Era o princípio de dezembro e ela começava a recuperar. A enfermaria das coelhas parecia tranquila pela primeira vez desde que tudo começara. Até mesmo Krysia, a adolescente de óculos, tinha parado de chorar. Krysia foi uma de um dos últimos grupos de prisioneiras de Lublin a serem chamados para as operações com bactérias; depois disso, deixou de haver gritos, só choro. Stefania, na cama ao lado, escutava Krysia noite após noite. A adolescente estava em delírio e a sua perna tão inchada que parecia que poderia rebentar a qualquer momento. Mesmo assim, não gritava, mas chorava «como uma criança pequena vítima de uma injustiça, a chamar a mãe para a salvar», disse Stefania. «Eu peguei-lhe na mão, que pendia da cama, e beijei-lha. E, para minha surpresa, a Krysia parou de chorar.» As experiências não tinham terminado. Algumas mulheres estavam ainda a ser submetidas a novas operações. Mas raramente eram convocadas novas coelhas polacas e as que já tinham servido o fim previsto estavam agora abandonadas «como feridas de guerra esquecidas». Abandonadas aos seus próprios cuidados, espremiam cuidadosamente o pus, extraindo corpos estranhos, detritos — cacos, uma tira de feltro, pedaços de vidro, farpas de madeira. Ajudavam-se também umas às outras. Quando Izabela Rek se engasgou e começou a ficar roxa, as amigas abriram-lhe a boca à força com um garfo e puxaram-lhe a língua para fora. E as polacas do campo de concentração lá fora tinham criado um comité de auxílio; a

cada coelha estava atribuída uma «mãe» polaca para olhar por ela. Usualmente, a «mãe» trabalhava na cozinha ou na cantina e tinha acesso a rações extra, que eram trazidas às escondidas para a Revier. As mulheres notavam que a sua pele jovem começava a sarar; a carne cortada unida pelo gesso começava a fechar-se por si só. Em meados de dezembro, Eugenia Mikulska recuperou o apetite. Alguém bateu à janela e passou-lhe uma tigela de leitelho, que ela bebeu sofregamente. «Foi como um pequeno milagre,» disse ela, e atreveuse a pensar que o pior já tinha passado. Irena Krawczyk descobriu que conseguia pôr-se de pé em cima da perna a que a tinham operado — «um momento de alegria para as minhas colegas de enfermaria e para mim, foi uma das maiores experiências da minha vida». As mulheres falavam até de como conseguiriam ir de comboio para casa, para a Polónia, de muletas. Outras diziam que já teriam sorte se conseguissem chegar ao seu bloco, quanto mais à Polónia. O bloco parecia a um mundo de distância da Revier. Sempre que alguém abria uma janela, soprava uma rajada de vento gélido e todas elas se esforçavam por respirar o ar «como um elixir». Izabela Rek começou a sonhar que voltava para o seu bloco. «Vai ser como ir para casa», disse ela. Todas compreendiam o que ela queria dizer, embora soubessem também que continuavam a passarse coisas terríveis lá. As execuções não tinham parado. Uma das mulheres perto da janela da Revier viu uma jovem a bater com força na porta da Effektenkammer e a gritar pela mãe. Nessa manhã, a mãe de Kazimiera Pobiedzińska tinha sido chamada nach vorne e enviada ao armazém a recolher as suas roupas. A adolescente soube o que se tinha passado e correu à Effektenkammer, mas a sua mãe já tinha sido morta a tiro. Corria o boato de que Johanna Langefeld — recentemente regressada a Ravensbrück — tentara ajudá-la. Depois de seis meses como chefe das guardas na secção feminina

de Auschwitz, Johanna Langefeld regressou a Ravensbrück em outubro de 1942 e voltou a ocupar o seu posto de Oberaufseherin. A razão da sua transferência é intrigante. Na altura da visita de Himmler a Auschwitz em julho não se pusera a questão de ela partir de Ravensbrück. Pelo contrário, embora a própria Langefeld pedisse a sua transferência, dando como motivo o facto de Höss se recusar a aceitar a sua autoridade, esse pedido foi recusado. Pela sua parte, Höss pediu a Himmler que substituísse a quezilenta Langefeld, mas Himmler disse-lhe que ela tinha de ficar. Segundo as memórias de Höss, depois da visita de Himmler a Auschwitz em julho a situação na secção das mulheres foi de mal a pior, o que se devia em grande medida aos novos poderes atribuídos pelo próprio Himmler às Kapos. No dia da sua visita em julho, o Reichsführer ordenara especificamente que elas fossem encorajadas a «descarregar a sua maldade nas prisioneiras», particularmente nas judias. Depois disso, diz Höss, com a secção de mulheres de Auschwitz a expandir-se, «essas Kapos sem escrúpulos tomaram as rédeas, estabelecendo um sistema de “autogoverno” das prisioneiras». Nos primeiros dias de outubro, a brutalidade das Kapos culminou de uma maneira mais atroz ainda do que Höss ou Himmler tinham imaginado. Uma pequena vila chamada Budy, a cerca de sete quilómetros de Auschwitz, tinha sido transformada num subcampo. Aí, 400 mulheres, muitas delas intelectuais, professoras e artistas judias francesas, assim como russas e ucranianas não judias, viviam numa escola desativada e trabalhavam na drenagem de um pântano. As mulheres eram vigiadas por dúzias de prisioneiras recrutadas em Ravensbrück. As condições de vida eram abismais; todos os dias, as guardas da SS acirravam as Kapos para elas espancarem as prisioneiras judias. Uma das Kapos, a prostituta Elfried Schmidt, enviada para Ravensbrück em 1939, estava envolvida com um dos guardas da SS e era a cabecilha das «espancadoras». Nos primeiros dias de outubro de 1942, deu-se um motim em Budy, seguido por um massacre. Um oficial da SS, Pery Broad, descreveu o

que viu em apontamentos tomados no local: No chão por trás e ao lado do edifício da escola, dezenas de cadáveres de mulheres mutiladas e cobertas de sangue estão tombados ao acaso, todas elas só com camisas sujas de prisioneiras. Entre as mortas, algumas mulheres meio mortas estão a contorcer-se. Os seus gemidos misturam-se com o zunido de enormes nuvens de moscas que sobrevoam as poças pegajosas de sangue e os crânios esmagados, o que produz um tipo peculiar de música que, inicialmente, deixou perplexas as pessoas que se aproximavam.

Höss veio inspecionar a situação. «O banho de sangue de Budy ainda está diante dos meus olhos», escreveu. «Acho incrível que seres humanos pudessem alguma vez transformar-se em seres assim tão bestiais. A maneira como as Kapos desancaram as judias francesas, despedaçando-as, matando-as com machados e esganando-as, era simplesmente macabra.» Broad sugeriu a explicação de que o massacre foi encenado pelas Kapos para encobrir os espancamentos a que se entregavam, que teriam ido longe de mais. Uma outra possibilidade era que as prisioneiras, acreditando que tinham hipótese de se evadirem, como se encontravam fora dos muros do campo de concentração, montaram em Budy uma rebelião desesperada que foi reprimida. Qualquer que fosse a causa, a chacina causou escândalo entre a SS. Embora nesta fase morressem mais de mil pessoas por semana nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau, a matança não planeada de 150 mulheres fora do campo de concentração, em Budy, foi considerada inaceitável pelas autoridades da SS, porque revelava que a ordem entrara em colapso, e logo entre as mulheres. Como Höss precisava de bodes expiatórios, seis das Kapos presentes em Budy foram sumariamente executadas. Talvez Langefeld não se encontrasse no campo de concentração quando ocorreu o massacre; mais tarde, diria que estava ausente nessa altura, a recuperar de um ferimento. No entanto, é de assinalar que a sua remoção do posto de chefe das guardas da secção das mulheres em Auschwitz e o seu regresso a Ravensbrück aconteceram poucos dias depois do massacre de Budy. Segundo

Danuta Czech, a autora de Auschwitz Chronicle, o massacre de Budy ocorreu em 5 de outubro de 1942. Em 8 de outubro, «as Oberaufseherin da SS nos campos de concentração de Auschwitz e de Ravensbrück foram trocadas. Langefeld regressou a Ravensbrück após discussões/discordância com Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz. Maria Mandl veio para Auschwitz». Havia um forte receio de amotinação nos campos de concentração e talvez Budy tenha finalmente persuadido Himmler a ceder aos protestos de Höss de que Langefeld era a pessoa errada para Auschwitz e que deveria ser substituída por uma mulher mais adequada à tarefa. Essa mulher era Maria Mandl, que sempre fora conhecida em Ravensbrück como «a besta». No seu regresso a Ravensbrück em outubro de 1942, Langefeld descobriu que muita coisa tinha mudado. Na sua ausência, Max Koegel tinha sido enviado para o campo de morte em Majdanek e uma nova equipa da SS assumira o controlo. O novo comandante era Fritz Suhren, anteriormente de Sachsenhausen. Um homem delgado e elegante — louro e com sardas —, Suhren, com trinta e quatro anos, nasceu perto de Oldenburg, na Baixa Saxónia, e trabalhara como negociante de têxteis. Era conhecido na SS como um funcionário aplicado que gostava de fazer tudo segundo as regras. Chegara também um novo chefe da Gestapo, chamado Ludwig Ramdohr. Como a sua primeira tarefa em Ravensbrück foi investigar a corrupção da SS, particularmente os roubos na oficina de peles, era detestado tanto pelas prisioneiras como pelos próprios SS. O campo de concentração estava maior — tinha aumentado com a chegada de trabalhadoras escravas do Leste. Por toda a parte, havia escavações e construíam-se novos edifícios, com grupos de prisioneiros de ambos os sexos a edificarem novas instalações para o setor industrial nas traseiras e novas casernas perto do muro na parte sul. O mais surpreendente para Langefeld deve ter sido a presença do lado de fora dos muros do Siemenslager, como se chamavam as novas instalações da Siemens. Na sua ausência, uma fábrica

moderna, cercada por arame farpado eletrificado, tinha aparecido num terreno elevado a cerca de 700 metros do muro na parte sul. Terminada em dez semanas, a fábrica acarretou muitas mortes entre as centenas de prisioneiros dos campos masculinos, muitos dos quais tinham recentemente sido levados para ali de Buchenwald especialmente para a construção do Siemenslager. Para cumprir o prazo da Siemens, ao longo do verão os prisioneiros foram impelidos e espancados muito para além do desespero, cortando árvores, cavando fossas e carregando pedras. O prazo foi cumprido, mas 300 trabalhadores morreram e outros 300, demasiado enfraquecidos para continuarem a trabalhar, foram enviados para Dachau num transporte de doentes. Com as primeiras mulheres a começarem a trabalhar nas instalações em 25 de agosto de 1942, a Siemens & Halske veio juntar-se a três outras grandes empresas alemãs — a IG Farben em Auschwitz, a Steyr-Daimler-Puch AG em Mauthausen e a Heinker em Sachsenhausen — no uso de mão de obra escrava de campos de concentração. A empresa ficou tão satisfeita com a sua nova fábrica de Ravensbrück que Rudolf Bingel, o elemento da Siemens que pertencia ao círculo de amigos de Himmler, escreveu ao Reichsführer SS a agradecer-lhe calorosamente. A bondade de Himmler para com a Siemens inspirava-lhe «um particular júbilo», escreveu Bingel, que prometeu prestar serviço a Himmler quando ele quisesse. Quando Langefeld regressou em outubro, cerca de 200 mulheres já estavam empregadas na Siemens, e a visão do grupo a marchar para fora dos portões do campo de concentração cada manhã e em seguida a virar à esquerda na direção da colina onde se situava a fábrica era já familiar a toda a gente em Ravensbrück. À hora do almoço, as mulheres regressavam a marchar para o campo para comerem a sopa, partindo a seguir para o trabalho e só voltando ao fim do dia. A maior parte das prisioneiras ficou encantada por lhe ser oferecido trabalho na nova fábrica. Depois de meses de trabalho árduo a empurrar e a puxar carroças «como um cavalo», a visão da fábrica

nova, limpa e aquecida «cortou-me a respiração», disse Rita Sprengel, uma comunista alemã. Dentro das suas Halle, como chamavam às instalações da fábrica, havia filas atrás de filas de mesas limpas com máquinas brilhantes onde as mulheres enrolavam arames de cobre finos em bobines, sentadas em cadeiras ajustáveis com costas e braços. «É claro», disse Rita, «o conforto não foi criado com as prisioneiras em mente.» Ela compreendia que, sem esses elementos, as bobinadoras teriam um desempenho menos eficiente e, de qualquer modo, o arame tinha de ser mantido à temperatura ambiente para ser suficientemente maleável para ser enrolado à volta das bobines. No entanto, esse conforto era uma alegria e «adiava o nosso fim». Para além disso, a disciplina na Siemens era inicialmente menos estrita. Embora houvesse uma guarda da SS de serviço dentro de cada Halle, a responsabilidade por manter a ordem era partilhada com os gerentes da empresa, a maior parte dos quais viera da sede da Siemens em Berlim e não tinha experiência direta de campos de concentração. Por consequência, as guardas sentiam-se de certo modo condicionadas e, pelo menos dentro das instalações da fábrica, controlavam mais os seus impulsos de bater nas mulheres, embora, na sua frustração, algumas guardas fossem ainda mais violentas mal as mulheres saíam. Um dia, enquanto aguardava com as outras para marchar de volta para as instalações centrais do campo de concentração, Georgia Tanewa, uma búlgara de dezanove anos, tentou ler um jornal velho, usado para embrulhar peças de máquinas empilhadas numa prateleira. «Esqueci-me por um momento de onde estava, e uma guarda subitamente deu-me um safanão e esbofeteoume.» Satisfeita com os primeiros resultados, a Siemens admitiu mais mulheres. As mais jovens eram escolhidas primeiro, desde que vissem bem e passassem em certos testes. Um dos Meister (capatazes) civis da Siemens, Richard Lombacher, explicou os testes a Rita Sprengel, enquanto marchava com as mulheres para o trabalho.

Ele disse que usava alicates para ver se as mulheres conseguiam dobrar o arame fino. Ou a gente dele chamava um bloco inteiro de mulheres e mandava-lhes estender as mãos. A seguir, o Meister avançava ao longo das filas, olhava para as prisioneiras para ver se eram jovens e ágeis e verificava-lhes as mãos para se assegurar de que não tremiam. Procuravam pele seca e lisa e dedos finos e direitos.

A Siemens também se apressava a recrutar mulheres com competências administrativas, para trabalharem como secretárias e guarda-livros. Uma das primeiras prisioneiras que admitiram foi Grete Buber-Neumann, que obteve um posto elevado a trabalhar para o diretor da fábrica, Otto Grade. Tendo começado a trabalhar na Siemens como aprendiz de operário aos dezanove anos, Grade, na altura com trinta e oito, subira a pulso e obteve uma promoção e um aumento de salário significativos quando o nomearam diretor da fábrica de Ravensbrück. Trabalhando no escritório de Grade, Grete pôde rapidamente observar as qualidades que lhe tinham granjeado o posto: calculava com grande assiduidade e precisão até ao último pfennig se as prisioneiras estavam a trabalhar o suficiente para justificar o seu «salário». «A produção de cada prisioneira era cuidadosamente medida e o pagamento fazia-se em função dos resultados», recordou ela. É claro que, como Grete explicou, a Siemens não pagava o «salário» às prisioneiras, que não recebiam nada. O dinheiro que as prisioneiras «ganhavam» era pago diretamente à SS, que alugava as mulheres como escravas. De acordo com os termos do seu contrato, a Siemens pagava à SS cerca de quarenta pfennigs por cada hora de trabalho. Mesmo assim, para rentabilizar o investimento a empresa praticava um sistema de incentivos. Se a prisioneira bobinasse mais do que a sua quota, recebia um cupão no valor de até um reichsmark, que podia ser descontado na loja do campo de concentração; se ficasse abaixo da quota, Grade ordenava a uma guarda que lhe desse umas bofetadas. Se isso não resultasse, ele enviava uma participação à repartição de trabalho do campo de concentração declarando que a mulher era uma inútil e que deveria ser substituída. A consequência era ser recambiada para o campo e, provavelmente,

detida no bunker, castigada com vinte e cinco chicotadas ou ambas as coisas, e era enviada uma nova trabalhadora no dia seguinte. Os nomes das prisioneiras rejeitadas eram anotados no relatório mensal de Grade, enviado para a sede da Siemens em Berlim. No relatório, indicava-se que essas prisioneiras eram «inadequadas» ou que «tinham sido enviadas de volta pelo gabinete central do campo de concentração». Grade não se coibia de fazer esses relatórios, disse Grete. Era um verdadeiro capataz de escravos e teria sido um verdadeiro ornamento da SS. A sua principal motivação era o receio de ser enviado para a frente de combate. «Se demonstrasse ser um gestor eficiente, mantendo altas taxas de produção, a Siemens podia requerer a isenção de Grade e ele não seria chamado.» No final do ano, era já óbvio que Grade estava a fazer um bom trabalho, porque a fábrica da Siemens estava de novo a expandir-se, e da sua janela no escritório do diretor Grete podia observar um grupo de prisioneiros a executar o trabalho de construção. As condições dos trabalhadores eram tão abismais que vários homens tentaram escapar. «No curto período de tempo em que trabalhei para Grade ouvi falar de cinco execuções “durante uma tentativa de fuga”, e isso só de um dos grupos de trabalho.» Grete só trabalhou na Siemens durante um breve período de tempo, porque, pouco depois de Johanna Langefeld regressar, exigiu que Grete fosse trabalhar para ela. Era tal o influxo de russas desde a sua ausência que Langefeld necessitava de uma falante de russo no seu gabinete, assim como de uma boa estenógrafa. Grete era ambas as coisas. Transferida para o gabinete de Langefeld, ficou em posição de observar a Oberaufseherin mais de perto do que nunca; reparou que, depois do regresso de Langefeld de Auschwitz, ela se encontrava «em mau estado». «Ela tinha uma série de hábitos neuróticos», disse Grete. «Antes de falar, tinha sempre de pigarrear uma ou duas vezes, e estava sempre a alisar a roupa com as mãos ou a afastar uma madeixa de cabelo imaginária dos olhos. Por vezes, parava a meio de uma frase e ficava a olhar pela janela vários minutos.»

Como chefe das guardas, Langefeld era obrigada a assistir de novo a açoitamentos, um dever que ela continuava evidentemente a odiar tanto como sempre. O que mais parece ter perturbado Langefeld no seu regresso, no entanto, foram os horrores mais recentes perpetrados pelo Dr. Rosenthal e por Gerda Quernheim, que Grete lhe descreveu. Grete sabia todos os pormenores do escândalo crescente, porque todas as noites Milena Jesenska regressava do escritório na Revier ao colchão que partilhava com Grete no Bloco 1 e descrevia-lhe o que tinha visto. Numa ocasião, Milena ouviu o choro de um bebé por trás de uma porta e abriu-a e viu um recém-nascido saudável «a contorcer-se entre as pernas da sua mãe». Quernheim estava ausente da Revier e um bebé saudável tinha nascido vivo no fim do tempo — uma ocorrência rara —, mas pouco depois o choro do bebé parou, quando Quernheim o afogou num balde. No início de dezembro, Quernheim engravidou de Rosenthal, e este fez-lhe um aborto. Com a aproximação do fim do ano, Milena sentia-se cada vez mais convencida de que, com a ajuda de Quernheim, Rosenthal andava a matar prisioneiras e a vender o ouro dos seus dentes. «Horrorizada», Milena suplicou a Grete que contasse a Langefeld, na esperança de que ela interviesse. Grete «arranjou coragem» e transmitiu o que Milena lhe tinha dito a Langefeld, que se pôs a berrar, dizendo: «Estes médicos da SS são tão criminosos como o comandante do campo e os seus homens.» Grete perguntou, hesitantemente: «Se é isso que pensa realmente, porque é que continua aqui?», ao que Langefeld respondeu que tinha de ficar «para evitar o pior». No entanto, como Grete também observou, Langefeld não tinha problemas, mesmo então, em elaborar novas listas de judias a serem enviadas para Leste, embora soubesse agora melhor do que ninguém o que lhes aconteceria. Durante a ausência de Langefeld, as prisioneiras judias tinham sido inteiramente «limpas» de Ravensbrück e enviadas para Auschwitz, e o bloco judeu no campo de concentração tinha sido encerrado. No entanto, ainda chegavam

ocasionalmente pequenos grupos de judias — sozinhas ou em grupo —, talvez detidas com outros transportes. Também elas eram em seguida enviadas diretamente para Auschwitz, de modo que Ravensbrück tornara-se agora uma espécie de campo transitório para judias. Langefeld tinha agora a tarefa de preencher essas listas de transporte de judias e, enquanto lia os nomes em voz alta, «tinha o rosto contorcido e a voz cheia de ódio», disse Grete. Langefeld disse um dia a Grete: «Auschwitz é o lugar mais horrível que a mente do homem pode conceber», mas não mencionou os crimes cometidos contra os judeus, dizendo: «Não consigo aceitar o facto de as testemunhas de Jeová que levei para lá terem encontrado o seu fim. Mas pelo menos salvaram-se a Teege e a Mauer.» Ao regressar de Auschwitz, Langefeld parecia continuar ainda a admirar o Führer, assim como o Reichsführer SS, mas ao mesmo tempo não escondia o seu ódio pelos SS seus subordinados, e o novo pessoal em Ravensbrück parecia-lhe ainda pior do que os anteriores. A SS culpava-a agora de tudo o que corresse mal. No inverno, duas polacas que trabalhavam na cozinha escaparam escondendo-se em caixotes do lixo que foram metidos num camião e levados para fora do campo. Uma delas foi capturada, trazida de volta e atirada para o bunker, enquanto a outra, alegadamente, foi morta a tiro ao atravessar uma fronteira. Ramdohr culpou Langefeld da falta de segurança na cozinha, que era «dominada por polacas imundas». Langefeld era uma «mulher estranha», disse Grete, «que mostrava por vezes um coração caloroso». Quando uma cigana veio pedir ajuda a Langefeld — uma mulher que ela conhecia desde os tempos de Lichtenburg —, ela falou-lhe «consoladora, e com grande bondade». Grete reparou também que Langefeld, ao contrário de qualquer homem da SS, estava aberta à persuasão, o que podia ser útil. Numa ocasião, uma prisioneira associal foi levada ao gabinete de Langefeld, acusada de roubar um nabo, o que, se provado, significaria o bunker. «Roubaste o nabo?», Langefeld perguntou à mulher.

«Frau Oberaufseherin, eu estava com tanta fome, estava mesmo», foi a resposta, por entre soluços entrecortados. «Mas se toda a gente roubasse nabos, não haveria para mais ninguém», disse Langefeld, e mandou a mulher sair. Grete apelou a Langefeld, dizendo que a mulher, que ela conhecia, nunca sobreviveria ao bunker, e que não era uma má pessoa. «Frau Langefeld considerou o caso por um momento, com contrações nervosas no rosto. Com um gesto súbito, rasgou a participação e atirou-a para o cesto dos papéis.» Langefeld continuava a manter a sua maior benevolência para com as polacas. Ao regressar de Auschwitz, mostrou-se particularmente preocupada com as Kaninchen, cujo tormento era objeto de compaixão por todo o campo. Perto do final de 1942, as prisioneiras foram informadas de que poderiam receber encomendas com alimentos das suas famílias pela primeira vez. A notícia provocou deleite. Até àquele momento, só certas prisioneiras favorecidas estavam autorizadas a receber encomenda, das suas famílias e a receção de alimentos nunca tinha sido permitida. A ideia foi de Himmler. Se as prisioneiras trabalhavam para contribuir para o esforço da guerra, precisavam de se alimentar melhor; fazia sentido permitir que as famílias contribuíssem para o facilitar. Himmler, como habitualmente, imprimiu a sua marca pessoal na ordem. O conteúdo das encomendas deveria ser consumido num período de dois dias ou seria confiscado (talvez para evitar os ratos). Qualquer elemento da SS que roubasse algo das encomendas seria condenado à morte. As coelhas polacas souberam da existência das encomendas quando as suas amigas começaram a levar-lhes pequenos luxos às escondidas. Uma amiga checa levou a Maria Grabowska um pouco de açúcar, que ela polvilhou no pão. Em meados de dezembro, Pelagia Maćkowska recebeu a sua encomenda com alimentos de casa — incluindo uma camisola quente, tricotada por uma das suas irmãs. Oberheuser e as enfermeiras vieram admirar os presentes.

Os embrulhos não só continham luxos tais como pão caseiro, bolos e açúcar, mas também cartas escondidas e talvez uma fotografia de uma criança que já não era vista pela prisioneira há anos. Nesse momento, os pensamentos das coelhas sobre o seu lar reanimaramse, especialmente porque se aproximava o Natal. Na véspera de Natal, a sopa foi servida cedo nas enfermarias para o pessoal alemão poder ir para casa celebrar a data. A conversa desviou-se para os Natais em casa. Ouviu-se bater a uma janela e subitamente uma amiga chamada Halina estava entre as mulheres, beijando-as, com as suas faces gélidas contra as delas. Só depois de Halina ir embora é que as coelhas descobriram que ela tinha deixado um pequeno bolo feito de pão, margarina e compota. Estava enfeitado com um coelho feito de compota. As coelhas ficaram encantadas com aquele presente tão esperto na véspera de Natal, mas a excitação fez-lhes subir a febre. Pelagia saiu a custo da cama com as suas «botas» de gesso para levar água às colegas, mas enquanto andava as suas botas ficaram subitamente vermelhas e ela voltou a içar-se para a cama, aos gritos de dor e deixando manchas de sangue no chão. Ao chegar o dia de Ano Novo, várias das coelhas foram consideradas suficientemente restabelecidas para regressarem aos seus blocos, entre elas Stefania Łotocka, a quem deram as suas roupas e um par de muletas e disseram que voltasse a pé. Stefania conseguiu de algum modo sair cambaleante da Revier, mas à porta o ar gelado fê-la desmaiar e cair por terra. Receando que passasse um guarda e a pontapeasse, deixou-se ficar enroscada à volta das muletas, a pensar: «Vou só tentar pôr-me o mais confortável possível aqui deitada», quando apareceu uma figura acima de si, a agarrou suavemente por baixo dos braços e a levou para o bloco. A «figura» era Rosetta, a Blockova do bloco polaco. O calor do corpo de Rosetta fez Stefania recuperar os sentidos nos seus braços. Em meados de janeiro chegou a notícia por que as coelhas polacas tanto ansiavam: Herta Oberheuser informou-as de que não haveria mais operações experimentais. Um ou dois dias depois, o

comandante Fritz Suhren veio em pessoa confirmar a notícia e fazer nova comunicação: duas mulheres, Maria GnaŚ e Maria Pajączkowska, iriam ser libertadas. Falou com um olhar vidrado «como se nós não estivéssemos na sala, e a seguir foi-se embora». Ficaram todas a olhar fixamente para Maria GnaŚœ para Maria Pajączkowska, cujas feridas mal tinham ainda começado a sarar, e todas, incluindo as duas jovens, compreenderam que não havia qualquer hipótese de elas irem para casa. Uma das funcionárias de Langefeld chegou com documentos em que se declarava que as duas mulheres estavam livres e «deveriam ir diretas para casa, para Lublin». «Mas nós nem sequer conseguimos andar», disse Maria Pajączkowska, ansiosa. Alguns dias depois, ambas foram levadas — aparentemente libertadas, mas Dziuba Sokulska ouviu uma notícia diferente pouco depois. Dziuba contactou uma amiga polaca no Schreibstube, que disse que tinha visto um papel com o nome das duas mulheres e uma cruz ao lado de cada um. A causa da morte em ambos os casos foi dada como embolia pulmonar, mas toda a gente sabia que elas tinham sido mortas a tiro. Quando Dziuba deu a notícia ao Bloco 15, fez-se silêncio, o mesmo silêncio fatídico que Wanda se esforçara uma vez por explicar. «Ficávamos em silêncio porque nos sentíamos assoberbadas pela nossa humilhação e pela fraqueza física total e absoluta que nos acossava.» Nunca houvera qualquer intenção de as mandar para casa. Os médicos da SS queriam as duas coelhas mortas, porque vivas eram prova dos seus crimes. Instalou-se a angústia. Como ninguém conseguia compreender porque é que Maria Gnás e Maria Pajączkowska tinham sido selecionadas para serem executadas em primeiro lugar, ninguém conseguia adivinhar quem morreria a seguir. Este pensamento vinha acompanhado por medo: poderia ser qualquer uma delas, a qualquer momento. Dziuba Sokulska foi a primeira a sugerir um protesto. Típica

advogada, disse que deveria ser feito de forma ordeira, começando por uma carta breve ao comandante a pedir uma explicação. Enviaram o seu protesto. Suhren não respondeu. O seu silêncio, no entanto, fez agravar a indignação das mulheres e incentivou-as. Os protestos iniciais eram menores — mais uma espécie de atos individuais de desafio — e mal foram notados, mas assinalaram uma mudança de atitude. Por exemplo, Eugenia Mikulska, avançando tropegamente com as suas muletas na Revier, viu Oberheuser e Fischer a olharem na sua direção e a rirem quando ela se desequilibrou. «Consegui apoiar-me nas muletas o suficiente para virar as costas aos dois criminosos. Eles obviamente compreenderam o meu gesto de desprezo, porque foram embora.» Como a SS sabia que as coelhas tinham apoio crescente por todo o campo, começou a disseminar difamações, dizendo que as famílias delas na Polónia tinham todas recebido vastas somas de dinheiro como recompensa pelo sofrimento das suas filhas, que pais, irmãos, maridos, todos tinham recebido promessas de libertação antecipada. As poucas prisioneiras que poderiam ter acreditado nas mentiras não tardaram a mudar de ideias ao verem as figuras alquebradas daquelas moças, em tempos ágeis e saudáveis, a saírem aos tropeções da enfermaria, tentando regressar aos seus blocos. Quando as coelhas ouviram o que andava a ser dito sobre elas, as conversas sobre atos de protesto tornaram-se mais acaloradas. De regresso ao bloco, havia muito tempo para conversar e fazer planos. Não podiam ir trabalhar no exterior, permanecendo dentro do bloco a costurar e a tricotar. «A visão de tantas mulheres deficientes num bloco afetou-nos e, subitamente, tivemos uma sensação crescente do nosso próprio poder», recordou Wanda Wojtasik. Alguns grupos de coelhas começaram até a aventurar-se a sair para respirar o ar e em dias de sol reuniam-se num local abrigado contra a parede do bloco. Pelagia Michalik recordava-se da «visão dolorosa» dessas jovens, «com os ombros contraídos de forma não natural pelas muletas, encostadas à parede das traseiras do bloco e com os seus rostos magros e pálidos

virados para o consolo do calor do sol». As piores tensões resultavam das continuadas execuções de polacas. Não se registaram mais mortes de coelhas naquela ocasião, mas outras polacas eram selecionadas uma ou duas vezes por semana. Chegava uma mensageira, que chamava por certos números, e as mulheres perfilavam-se e ordenavam-lhes que marchassem. Nessa noite, ouviam-se tiros. Em fevereiro de 1943, dois grupos de oito foram chamados em dias consecutivos e quando as rajadas de tiros soaram na segunda noite todo o bloco ficou em efervescência. Desencadearam-se discussões, com as cabecilhas entre as coelhas a clamarem por ação, enquanto outras, frequentemente mais velhas e preocupadas com as repercussões, perguntavam: «E o que é que vocês propõem? Foram todas ser cortadas sem se queixarem.» Entre as coelhas, instalou-se uma nova atitude de desafio, com algumas a falarem de greves de fome, de um protesto em massa na Lagerstrasse ou até de evasão. As mais cautelosas do bloco — mais uma vez, usualmente as mulheres mais velhas — diziam que um protesto em massa de muletas seria risível, e, quanto à evasão, era impossível. Mas as jovens cabecilhas argumentavam, dizendo que não iam morrer por nada, e as suas vozes cresciam em número à medida que mais vítimas iam saindo da enfermaria e voltavam para «casa», para o bloco. A cunhada de Maria GnaŚ, uma das coelhas assassinadas, escapou realmente. Conseguiu de algum modo escalar o muro e embrenhar-se nos campos para lá dele. Estava numa espécie de transe, disseram as pessoas. Capturada imediatamente, quando Suhren lhe perguntou porque é que tinha tentado escapar, a sua resposta foi: «Não quero que me deem um tiro.» Todas as prisioneiras ficaram obcecadas com a maneira como ela tinha conseguido saltar o muro. Várias diziam que preferiam escapar e serem abatidas a tiro do que irem como carneiros para o matadouro. Outras diziam que se suicidariam antes de serem vítimas de novas experiências. E, embora muitas se encontrassem ainda num

estado lastimável, todas estavam a convalescer lentamente, ajudadas pelos embrulhos enviados pelas suas famílias, que lhes davam força física e moral. Em janeiro, também Krysia tinha já voltado para o Bloco 15 e estava a recuperar rapidamente, com os cuidados de Wanda. As duas partilhavam um colchão, como antes, e no beliche ao lado estavam as irmãs Iwańska, Janina e Krystyna, também de Lublin. Juntas, as quatro ponderaram várias opções — evasão, suicídio, greves de fome — e então Krysia apresentou o seu plano para «contar ao mundo». Deviam transmitir secretamente informações sobre os crimes dos médicos às pessoas no exterior. Se conseguissem fazer chegar um relatório daquelas atrocidades ao movimento de resistência polaco, ele enviá-lo-ia para Londres. Quando a informação chegasse ao governo polaco no exílio, chegaria também às pessoas com poder. As mulheres tinham consciência de que toda a gente — pelo menos na Polónia — já sabia da existência de campos de concentração e que estavam a morrer pessoas neles. Mas também tinham a certeza de que ninguém sonhava sequer que estavam a ser feitas experiências com mulheres jovens e saudáveis que eram em seguida assassinadas a tiro. Se as pessoas com poder ficassem a saber o que estava a passar-se — Krysia referia-se aos governos de Londres e de Washington, à Cruz Vermelha Internacional, ao Papa —, com certeza ergueriam a sua voz e aquilo pararia, disse ela, e as outras concordaram. Debateram então como fazer chegar a história ao exterior, e, provavelmente, foi Janina Iwańska quem teve a ideia de escrever com tinta secreta. As quatro tinham sido escuteiras e estavam a par do truque da escrita secreta, usando sumo de limão, leite ou sumo de cebola como tinta invisível. Mas o que iriam usar como tinta? Krystyna sugeriu urina. Talvez tivesse ouvido dizer que a urina tinha sido usada com bons resultados por outros autores de mensagens no passado. «Mas como é que arranjamos papel?», perguntou outra. «E como fazemos chegar as nossas cartas ao exterior?»

Maria Bielicka tinha conseguido fazer chegar informações ao exterior alguns meses antes através dos seus contactos na Effektenkammer, escondendo mensagens em embrulhos com roupas, mas Maria pertencia ao grupo de Varsóvia; nenhuma das jovens de Lublin sabia dessa sua iniciativa ou tinha contactos na Effektenkammer. A sua única comunicação com o mundo exterior até à data eram as cartas oficiais mensais em alemão, censuradas pela SS, nas quais pouco mais podiam dizer do que «Ich bin gesund und fühle mich wohl» (Estou de saúde e sinto-me bem). «Então, escrevemos entre as linhas e nas margens das cartas oficiais», sugeriu Krysia. Como isso era algo que a sua mãe tinha feito na Primeira Guerra Mundial, ela lembrar-se-ia de passar as cartas a ferro para revelar o que estava escrito secretamente. Krysia resolveu igualmente a questão seguinte: para avisar a sua família de que a carta continha uma mensagem secreta, dar-lhes-ia pistas no texto em alemão. Quando eram pequenos, ela e o seu irmão mais novo, Wieslaw, costumavam ler as histórias de aventuras do escritor polaco Kornel Makuszynski. Uma das suas preferidas era O Demónio da Turma Sete, na qual o herói enviava informações em cartas ocultadas em código. A chave era a palavra constituída pela primeira letra de cada linha. A ideia de Krysia era fazer uma alusão a Makuszynski na sua próxima carta para casa. A família com certeza suspeitaria de algo e o seu irmão compreenderia a alusão. As jovens concordaram que o plano poderia resultar. As quatro escreveriam cada carta juntas e ninguém fora do grupo deveria saber. Quando chegou o dia de escrever uma carta oficial para casa, encontraram um esconderijo no sótão do seu bloco; o espaço já era usado pelas fumadoras que «organizavam» cigarros dos armazéns. Ali, prepararam a sua primeira carta secreta. Primeiro, escreveram as frases visíveis em alemão, e nelas Krysia recordou a Wieslaw como costumavam admirar o engenho de O Demónio da Turma Sete. Dispôs as linhas na carta de modo a que as primeiras letras de cada linha formassem as palavras «list moczem»

— «carta escrita com urina». Em seguida, molhando um pau em urina, escreveu nas margens: «Decidimos contar-vos toda a verdade.» Como a primeira carta secreta seria breve, seguiam-se só algumas frases sobre as experiências médicas. No final, Krysia escreveu: «Seguem-se mais cartas» e escreveu uma palavra de código a ser usada pela família na sua resposta oficial seguinte para indicar que tinha recebido a mensagem secreta. A primeira carta foi enviada, mas, como parte do código que assinalava o conteúdo secreto estava apagada quando a família de Krysia a recebeu, o truque quase falhou. Wieslaw Czyż, o irmão mais novo de Krysia, recorda-se bem da chegada da primeira carta secreta à casa da família em Lublin. Como sempre que chegava uma carta da irmã, o seu pai, Tomasz, lia-a em voz alta a Wieslaw, na altura com quinze anos, e à sua mãe, Maria. Até àquele momento, a família tinha tentado ler nas entrelinhas em busca de informações sobre o estado de Krysia, mas a linguagem formal era sempre a mesma. Mas então, num dia no início de 1943, uma das suas cartas aludia a uma história de Makuszynski. «Parecia fora do contexto», diz Wieslaw. «Mas, como eu ainda era muito novo, ainda tinha a história na memória e lembrei-me logo de que o momento alto era as crianças a mandarem mensagens secretas escondidas nos textos. Por isso, rapidamente adivinhei o que ela estava a tentar dizer-nos. A Krystyna era uma moça sossegada mas esperta, e sempre cheia de ideias brilhantes.» Wieslaw e os pais decifraram o código, mas, devido à letra que faltava, leram a instrução como list mocz — molhem a carta — em vez de list moczem — carta em urina. Por isso, a família salpicou a carta com água, que revelou o texto secreto, mas só teve tempo de o decifrar antes de ele desaparecer. Adivinhando o seu erro, apressaram-se a levar a carta a um farmacêutico de confiança para lhe perguntar como revelar um texto escrito com urina. Ele disse-lhes que da próxima vez aplicassem um ferro quente. No futuro, foi o que fizeram, e resultava.

«Foi uma coisa extraordinária receber esta informação da minha irmã diretamente de um campo de concentração», disse Wieslaw. «Só havia três pessoas presentes nesta operação com o ferro, a minha mãe, o meu pai e eu. Está a falar com a única testemunha ainda viva.» Perguntei se a família se sentia preocupada com os riscos que Krysia estava a correr. «Sim», disse Wieslaw, «mas ninguém o questionou. Sabíamos que ela estava a fazer o que tinha de fazer — a manter a sua resistência. Era instintivo. Era o que todos nós fazíamos. É difícil para você compreender agora, mas, está a ver, a resistência era tudo o que nos fazia aguentar naquela altura. Vivíamos sob um poder cruel e brutal. A única coisa que importava para nós era a rebelião.» Depois daquela carta, outras chegaram com mais informações sobre o campo de concentração, embora, todos estes anos mais tarde, Wieslaw já não conseguisse lembrar-se dos pormenores. Recordava-se de que a sua mãe, que era major no «Exército Voluntário» de Lublin, conseguira transmitir os relatos aos seus chefes na clandestinidade em Lublin: «Ao enviar as mensagens, a Krysia sabia que seria imediatamente ligada à rede de resistência polaca mais alargada por causa da sua mãe.» Wieslaw sabia que os comandantes em Lublin tinham enviado a informação por sinais para estações em Varsóvia, que por sua vez a passaram a estações na Suécia, de onde, esperava a família, as mensagens poderiam até chegar ao governo polaco no exílio em Londres, embora não se saiba se isso chegou alguma vez a acontecer. Krystyna era particularmente corajosa? Não especialmente, disse Wieslaw. Ela era uma rapariga normal, como as outras. A única coisa que poderia dizer-se sobre a Krystyna é que tinha uma inocência especial. Está a ver, ela era particularmente nova. Na altura da sua detenção, só sabia dos estudos e do patriotismo. As amigas eram como ela. Mas ela era mais nova, de algum modo. Mais inocente.

A sua irmã nunca mais falou sobre as cartas depois da guerra: «Quando a Krysia voltou para casa, em 1945, só queria esquecer e voltar para a escola. Recusou-se a voltar a falar sobre o campo de concentração.» Quando falei com Wieslaw em 2008, Krysia ainda era viva e morava com a sua filha, Maria, em Lublin. Maria talvez soubesse onde estavam as cartas, disse Wieslaw, mas Krysia tinha falhas de memória e não conseguia falar. A filha de Krysia, Maria Wilgat, não quis nessa altura falar das cartas que pudessem ainda existir e disse que sabia pouco sobre o campo de concentração a não ser o que tinha lido em livros, já que depois da guerra Krysia nunca lhe tinha falado sobre o assunto. Mas Maria ofereceu-se para ajudar. Vinte anos depois da guerra, a sua mãe tinha acedido a escrever um texto sobre a escrita secreta, que tinha um significado especial para ela. «Foi a única história que ela quis contar», disse Maria, e enviou-me uma cópia do texto. A escrita de cartas começou, escreveu Krysia no seu texto, para contar ao mundo «os atos vergonhosos dos médicos alemães» e na esperança de que se o mundo erguesse a sua voz talvez os Alemães parassem de cometer os seus crimes. «Várias de nós morreram em consequência destas operações, muitas ficaram aleijadas para o resto da vida e todas nós, independentemente do grau de danos causados à nossa saúde, sofremos uma tortura mental que não pode ser esquecida.» O projeto foi empreendido desde o início com o maior empenho. Depois de recebermos um sinal da minha família de que a primeira carta secreta tinha sido decifrada, este jogo perigoso absorveu-nos completamente. Começámos a esforçar-nos por melhorar e expandir a nossa correspondência. O primeiro melhoramento que fizemos foi deixar de escrever entre as linhas. Em vez disso, usávamos o interior dos envelopes das cartas do campo de concentração. Assim, ganhávamos algum espaço extra, porque podíamos escrever mais densamente em papel limpo. Também era mais seguro. No primeiro período da nossa correspondência, numerámos sucessivamente cada envelope de modo a que as nossas famílias na Polónia pudessem saber se estavam a receber todas as cartas que tínhamos escrito.

Para poderem enviar cartas mais longas, as jovens tiveram a ideia de enviar parte de cada carta a cada uma das suas quatro famílias, que teriam de se encontrar em segredo para as reunir e ler a carta na íntegra. Foi enviado um sinal para indicar o que tinha sido feito. Estas cartas conjuntas eram «menos pessoais», já que seriam lidas pelas outras famílias. As quatro chegavam a acordo sobre os factos a incluir e usualmente as cartas eram redigidas por pelo menos duas delas. O sistema foi também melhorado pedindo às famílias que escondessem os seus sinais de «receção» nos embrulhos com alimentos que enviavam — um fio de uma certa cor posto no embrulho ou o número de uma carta recebida inscrito numa lata de conserva. «Depois de sabermos quais eram os métodos usados no campo para verificar os embrulhos com alimentos [as mulheres da SS inspecionavam-nos diante das prisioneiras], começámos até a receber mensagens secretas das nossas famílias, usualmente escondidas em bisnagas de pasta dos dentes. Isso explicava a alusão frequente a pasta dos dentes nas nossas cartas.» Mais tarde, as jovens recebiam comida embrulhada em páginas de livros «Desta maneira, as nossas famílias conseguiam fazer-nos chegar Pan Tadeusz e Ecos da Floresta, de Zeromski», disse Krysia. Ao fim de algum tempo, o grupo expandiu-se, vindo-se-lhe juntar outras quatro prisioneiras, entre as quais Dziuba Sokulska, a advogada de Lublin, e a jovem estudante de Varsóvia Wojciecha Buraczyńska. Havia um outro grupo que estava a par da escrita das cartas e lhe prestava assistência, mas que não as escrevia. Para Krysia, escrever as cartas tornou-se uma missão à qual se dedicava empenhadamente, planeando o quê e onde escrever e como dividir as cartas, inventando sinais e refletindo sobre como ocultar as provas antes de subir ao sótão já tarde da noite e de se acocorar em silêncio para recolher urina — não nos dá pormenores — e escrever. Os factos tinham de ser tão exatos quanto possível, verificados uma e outra vez, já que se tratava de provas em primeira mão das atrocidades; não se desperdiçava tempo nem espaço com queixas sobre as condições no campo de concentração ou descrições

gerais. No seu texto, Krysia cita as suas próprias cartas, pedindo desculpa aos leitores por não incluir todos os nomes nalgumas partes ou por os enunciar por uma ordem errada. «Só havia espaço para uma descrição muito abreviada das operações», explica. Pede também desculpa pelo facto de algumas das mulheres nomeadas nas cartas como vivas terem já falecido, mas tal devia-se a terem sido executadas pouco depois de a carta ser escrita. Pensando nas suas cartas, Krysia nota as suas características infantis. «Temos de recordar que foram escritas por moças jovens. A nossa idade e a nossa falta de perspetiva justificam a maneira como são descritos os acontecimentos e a interpretação dos factos.» Censura até as cartas que escolhe para ilustrar o seu texto, para remover «pormenores irrelevantes» ou «pós-escritos otimistas». Estes últimos eram pequenas expressões inseridas para transmitir uma imagem positiva do campo de concentração — «queríamos animar os nossos pais depois de eles lerem o conteúdo das cartas, que traziam notícias tão horríveis». Outras informações que citava tinham também sido autocensuradas, e a leitura do texto tornava óbvio que a maior parte das cartas originais devia ter sido preservada. Em 2010, a filha de Krysia, Maria Wilgat, disse-me que a sua mãe estava criticamente doente, com pouco tempo de vida. Maria estava agora disposta a ajudar-me em relação às cartas secretas. Tinha descoberto minúsculas mensagens tiradas às escondidas da prisão do castelo de Lublin, disse ela. Alguns documentos da resistência tinham em tempos sido escondidos dentro de um velho rolo da massa e numa tábua de cortar escavada. Quanto às cartas secretas do grupo da sua mãe, escritas em Ravensbrück, Maria mostrou-mas — na sua totalidade, vinte e sete, algumas só um papel esboroado, quase ilegível, e em várias formas, até mesmo triangulares. Algumas eram obviamente as costas de envelopes e outras tinham palavras escritas à volta de outras. Todas tinham sido preservadas com cuidado. As cartas mais antigas consistiam principalmente em longas listas

de nomes das mulheres executadas e das que tinham sido submetidas a operações, alguns com cruzes a preto ao lado, que as quatro famílias reunidas em Lublin devem ter examinado com atenção antes de transmitirem as más notícias. Havia também relatos pormenorizados de operações, datas e mais nomes. Em 24 de março, Krysia escreveu: Até 16 de janeiro de 1943, 70 pessoas foram operadas ao todo. Deste número, 56 eram do transporte de Lublin de setembro, 36 dessas operações começaram com infeção (3 sem incisão) e 20 operações aos ossos. Nas operações aos ossos, cada incisão é aberta de novo. Não houve mais novas operações desde 15 jan.

Segue-se uma lista quase completa de datas de operações, com os números do campo de concentração das mulheres: «Operações de infeção 1 de agosto de 1942: Wojtasik Wanda 7709, GnaŚ Maria 7883, Zielonka Maria 7771...» Aqui estão também os nomes dos médicos, que naquele preciso momento operavam ainda escondidos por trás de lençóis. Para além do Professor Gebhardt, as operações também são realizadas pelos seus dois assistentes, Fischer e Stumpfegger. Em sinal de que leram esta carta, enviem-me um fio azul num embrulho... Podem enviar uma mensagem escondida no findo duplo de uma lata. Escrevam pelo menos uma vez, descrevam a situação política. Estou à espera disso! Mensagem continuada nas cartas da Wanda e da Janina Iwańska.

Em várias cartas, Krysia escreve que está ansiosa por saber se as suas mensagens estão a chegar a Londres e ao resto do mundo. Continuando a ler, encontramos alguns dos «pós-escritos tontos» que Krysia escrevia para animar os pais. «Não estamos mal de todo. Estamos todas juntas», escreveu numa carta. «Está tudo bem connosco. Levantamo-nos cedo, por isso eu estou grata ao papá por desde a infância nos habituar a isso.» Noutra carta: «Temos a oportunidade de nos lavarmos e a água fria é saudável e realmente bastante agradável.» Mais tarde, ao ler as cartas mais atentamente, encontrei várias que Krysia não mencionou no seu texto. Uma delas começa assim:

Mamã querida, desde ontem ando deprimida e não consigo suportar isto, por isso tenho de te escrever os meus pensamentos e imaginar que estamos perto para poder sentir-te perto de mim. Sinto que bom que é e começo a chorar. Por vezes é tão mau que tenho de falar contigo em imaginação ou escrever, ou tenho de começar a pensar noutra coisa, porque senão vou-me abaixo.

Outra carta, cuja data está desvanecida, mas que, provavelmente, foi escrita no final de março ou no início de abril, tem um tom completamente diferente; fala de como começou o primeiro protesto real no campo: «O primeiro protesto contra os atos ilegais... Em 12 de março de 1943 cinco mulheres saudáveis foram de novo levadas para serem operadas. Ofereceram resistência. Não foi usada força física contra elas. Uma delas, a Zofia [Dziuba] Sokulska protestou vivamente.» Krysia tinha dito aos pais numa carta anterior que desde 15 de janeiro de 1943 «ninguém foi levada para ser operada», mas quando eles receberam a carta, essa informação já estava desatualizada. Nos primeiros dias de março, dizia-se que a Revier estava já a preparar-se para novas operações e a indignação atingiu de novo o auge. Cinco mulheres que já tinham sido operadas uma ou duas vezes antes foram convocadas novamente, entre elas Dziuba Sokulska. Os acontecimentos no Bloco 15 desenrolaram-se rapidamente. Como Wanda Wojtasik diria mais tarde: «Subitamente, tivemos a coragem suicida das pessoas que sabem que podem agir como quiserem hoje, porque estarão mortas amanhã. Sem palavras, todas chegámos à mesma conclusão ao mesmo tempo: já bastava.» Dziuba, mais uma vez, foi a primeira a tomar posição. Convocada à Revier, pediu à Dra. Oberheuser que explicasse a razão para operar prisioneiras saudáveis. Oberheuser ignorou-a. Dziuba disse-lhe então que já tinha sido submetida a duas operações e que recusaria uma terceira. Saiu da enfermaria e voltou para o seu bloco, onde já se sabia o que ela tinha feito e reinava uma grande excitação motivada pela sua coragem. Quase ao mesmo tempo, outra das cinco mulheres novamente convocadas, Zofia Stefaniak, estava deitada na Revier, ainda a

recuperar de uma operação anterior. Com três buracos a atravessarlhe a perna, tinha ficado mais tempo do que as outras e presenciara algumas das piores atrocidades posteriores, obra de Stumpfegger. Zofia estava tão horrorizada que quando ouviu dizer que iria ser novamente operada arranjou subitamente forças para descer da cama, arrastar-se até à janela e saltar para fora. «Sentia tanto medo da operação que desta vez tinha de escapar», disse Zofia. «Achei que desta vez me iriam cortar as pernas. Tinha acabado de ver uma moça russa com as pernas cortadas. Por isso, saltei para a relva.» Como Zofia escapou depois da chamada do fim do dia, ninguém a viu. De alguma maneira, conseguiu chegar ao Bloco 15 e só então ficou a saber que também Dziuba tinha recusado. Esconderam-na no sótão. As que se recusaram aguardavam agora uma reação da SS, mas ela não se verificou. Era como se todo o pessoal da SS estivesse a fazer de conta que as experiências nunca tinham ocorrido. «Agem como se nós não tivéssemos nada que ver com eles», disse Jadwiga Kamińska. Manteve-se o impasse até no dia seguinte chegar da Revier uma lista de cinco nomes. Ninguém reagiu. Dentro do Bloco 15, alguém, provavelmente Jadwiga, sugeriu uma marcha de protesto, e desta vez a ideia não foi desdenhada. «Se o comandante quer fazer de conta que não tem havido experiências médicas no campo, vamos pôr-nos diante dele e mostrar-lhe», disse uma das cabecilhas. «A nossa atitude era que se íamos ser assassinadas, que o fôssemos por uma razão — não cortadas primeiro», recordou Eugenia Mikulska. Uma outra prisioneira sugeriu que seria melhor marchar para o gabinete de Langefeld, não até ao de Suhren, porque talvez pelo menos ela as escutasse. Deviam levar uma petição que cada uma assinaria, disse Dziuba Sokulska. Halina Chorążnya, a professora universitária de Química, ofereceu-se para redigir uma breve declaração para ser lida por uma delas. Jadwiga Kamińska e Zofia Baj foram escolhidas como porta-vozes das manifestantes. Marchariam no dia seguinte. Toda a gente iria mostrar unidade. As

que estavam demasiado doentes para andar seriam levadas em braços pelas mais fortes. Outras iriam apoiadas em muletas ou a coxear como pudessem. Os testemunhos sobre a data são contraditórios, mas Krysia declara na sua carta, no seu tom caracteristicamente despachado: «Em 14 de março, todas as mulheres que tinham sido operadas juntaram-se diante da Oberaufseherin, exigindo uma explicação dos motivos para realizar operações em prisioneiras políticas e se estavam previstas em sentenças especiais.» Provavelmente, foi a meio da manhã que as manifestantes partiram, já que era nessa altura do dia que a Lagerstrasse se encontrava mais sossegada. As mulheres perfilaram-se à porta do bloco e o seu desfile iniciou-se. «Parecia-nos um longo caminho — 300 metros ou mais. E o terreno era muito acidentado», recordou Wojciecha. Pelagia Maćkowska recordava-se assim da cena: «Uma coluna de mulheres aleijadas, algumas apoiadas em muletas, outras em bengalas ou levadas por companheiras saudáveis, avançou lentamente na direção do bloco administrativo do campo de concentração. Nunca esquecerei aquela cena.» À cabeça da coluna iam as mais incapacitadas. «Eu ia à cabeça do grupo e a procissão silenciosa de jovens aleijadas seguia atrás de mim», recordou Mikulska. A coluna percorreu os 300 metros na sua totalidade em silêncio absoluto, com a exceção dos estalidos das bengalas na Lagerstrasse. Cada mulher dava um passo e a seguir reunia forças para dar o seguinte. Pareceu demorar uma eternidade. Os primeiros metros eram os mais perigosos, porque com certeza as guardas apareceriam, mas não foi feita qualquer tentativa de deter as manifestantes ou de interferir fosse de que maneira fosse. Os grupos de prisioneiras que regressavam mais cedo do trabalho ficaram a fitá-las atónitas. Outras, dentro das camaratas, olhavam pelas janelas, mas continuavam a não aparecer guardas. «Chegámos à praça principal, onde se situava o bloco administrativo, sem quaisquer obstáculos», disse Pelagia, embora

tivessem a noção de que havia olhares postos nelas de dentro do Kommandantur. «O desfile chegou e alguém mandou parar a coluna. As duas que levavam a Eugenia Mikulska avançaram para a frente e pousaram-na.» «Diante do Schreibstube, pousaram-me no chão e voltaram para as filas a cerca de cinquenta metros atrás. Eu não conseguia pôr-me de pé, por isso apoiei-me no joelho da perna sã e estiquei à minha frente a perna que me tinham operado, porque não conseguia dobrá-la.» Depois de todas as manifestantes assumirem as suas posições, as suas porta-vozes, Jadwiga Kamińska e Zofia Baj, aproximaram-se do gabinete de Langefeld. Nessa altura, apareceu uma só guarda, e elas informaram-na de que queriam falar com a Oberaufseherin Langefeld. A guarda voltou para dentro e durante algum tempo não aconteceu nada. «Estávamos preparadas para o pior», recordou Eugenia. Passou mais algum tempo. «Estava tudo em silêncio à nossa volta. Não havia vivalma nas estradas do campo de concentração.» Segundo Pelagia: «Aguardámos em profundo silêncio e olhávamos todas fixamente para um ponto.» Como Langefeld continuava a não aparecer, Jadwiga Kamińska leu a sua curta declaração de protesto, numa voz discreta, diante do bloco administrativo. «Nós, as prisioneiras políticas polacas, protestamos categoricamente contra as operações experimentais realizadas nos nossos corpos saudáveis.» Langefeld não aparecia, nem Suhren, nem qualquer outra pessoa. Por isso, as mulheres continuaram ali de pé, a olhar em frente. As sálvias de cor flamejante tinham florido e o sol do meio-dia era ardente. Jadwiga leu de novo a declaração, na mesma voz discreta. «Nós, as prisioneiras políticas polacas, protestamos categoricamente contra as operações experimentais realizadas nos nossos corpos saudáveis.» Continuava a haver só silêncio. Ao fim de algum tempo, segundo algumas das mulheres, apareceu uma funcionária administrativa alemã, que disse a Jadwiga e a Zofia

que a Oberaufseherin «não sabia nada das operações», elas «deviam ser um produto da imaginação das prisioneiras». A nova convocatória das coelhas à Revier era simplesmente um pedido para que fossem medir a temperatura. Agora, deviam todas portar-se bem e regressar às suas camaratas. Krysia, no entanto, registou na carta que enviou para casa uma mensagem muito diferente da de Langefeld. A chefe das guardas informou as manifestantes, através da sua funcionária, que tinha comunicado a questão ao comandante, que responderia ele próprio. A maior parte das manifestantes também se recorda de que Johanna Langefeld apareceu por breves instantes diante delas. «Saiu e olhou para nós por um momento», disse uma delas. Ela «parecia embaraçada», disseram outras. «Parecia paralisada de algum modo, e incomodada, como se estivesse com dores», disse outra. Mas todas concordaram que Langefeld não disse nada, deu meia-volta e entrou rapidamente no bloco. Grete Buber-Neumann, na altura secretária pessoal de Langefeld, mantém um silêncio dececionante em relação a este episódio — talvez não se encontrasse no gabinete de Langefeld naquele dia. Mas diz-nos o suficiente sobre o estado de espírito de Langefeld para sugerir o que a «paralisou» enquanto olhava para as filas cerradas de coelhas. Por volta daquela altura, Langefeld contou a Grete que andava a ter sonhos maus. Uma manhã, ela entrou no gabinete cansada e deprimida. Tinha tido um sonho, que queria contar-me para eu o interpretar. No sonho, caíam bombas no campo de concentração e vinham tanques estrangeiros que conquistavam Ravensbrück. Eu disse sem hesitar: «Frau Oberaufseherin, tem medo de que a Alemanha perca a guerra», e acrescentei, ao fim de um momento: «E a Alemanha vai perder a guerra.» Por dizer aquilo, eu devia ter sido atirada diretamente para o bunker. Mas ela limitou-se a olhar para mim horrorizada e ficou em silêncio. A partir daquele momento, eu soube que aquela mulher nunca me faria mal.

Grete diz-nos que a posição de Langefeld naquela altura era cada vez mais periclitante. Já era acusada pela SS de favorecer as prisioneiras polacas, e Suhren andava a recolher mais provas contra

ela com a ajuda de Ramdohr. Grete esforça-se por nos explicar que, nos primeiros meses de 1943, Langefeld estava cada vez mais «dividida» entre o que estava certo e o que estava errado. E Grete reclama para si mesma uma grande parte da responsabilidade da mudança de perspetiva de Langefeld, levando-a a ver as coisas do ponto de vista das prisioneiras. «Eu não só tinha abalado a convicção dela de uma vitória alemã, mas também a tinha feito ver o sistema do campo de concentração através dos olhos das suas vítimas», diz ela. A influência de Grete em Langefeld foi indubitavelmente significativa. No entanto, como secretária de Langefeld, a sua própria posição estava também comprometida nessa altura. A sua ânsia de reclamar retrospetivamente um papel na «viragem» de Langefeld talvez a tenha ajudado a desviar a atenção do facto de que, sentada no gabinete de Langefeld, era agora a prisioneira mais privilegiada do campo. E por mais dividida que Langefeld se sentisse, não tinha feito nada desde o seu regresso de Auschwitz para deter os assassínios e as atrocidades cometidos em Ravensbrück. Mesmo agora, defrontandose com o protesto das coelhas, simplesmente passou a batata quente ao comandante, como afirmou Krysia. Suhren não sabia o que fazer; não tinha regras na sua secretária a explicar-lhe como esmagar um levantamento de mulheres de muletas. Por isso, com um olho na multidão lá fora, o comandante pegou no telefone para pedir instruções a Berlim. Como as manifestantes, entretanto, estavam com dores e não podiam continuar à espera de uma resposta, a líder deu o sinal de que deviam regressar ao bloco. Eugenia continuava a equilibrar-se na sua perna engessada. Mais tarde, recordaria: «Mais uma vez, as minhas companheiras vieram ter comigo e levantaram-me, levaramme para a camarata e deitaram-me na cama.» Todas as outras se viraram e regressaram ao bloco. «Sentimos que tínhamos demonstrado resistência, éramos um grupo unido com uma espécie de força», disse Pelagia Maćkowska. Mas os protestos não tinham terminado. No dia seguinte, ainda

sem resposta de Suhren, as mulheres resolveram escrever novamente: «Não nos foi dito e gostaríamos de saber se estas operações estão contempladas na nossa sentença, cujo conteúdo desconhecemos. Solicitamos uma audiência ou uma resposta.» A carta foi entregue diretamente a Suhren. Chegou uma espécie de resposta — não de Suhren, mas da Revier. Como se para provar a afirmação de que as convocatórias tinham sido um «mal-entendido», apareceu uma mensagem a solicitar às mulheres que comparecessem voluntariamente na Revier «para lhes ser medida a temperatura». Ninguém o fez. As cinco anteriormente chamadas para nova operação não voltaram a ser convocadas e os protestos alastraram-se. Sem dúvida animadas pelo levantamento das coelhas e pela ausência de reação da SS, um grupo de prisioneiras polacas «saudáveis» apresentou o seu «protesto enérgico», nas palavras de Krysia. Mais uma vez, as autoridades «não aplicaram repressões nem recorreram à força», escreveu ela numa carta para casa. O protesto das polacas «saudáveis» foi uma espécie de amotinação encenada três dias depois. O incidente foi desencadeado quando, imediatamente antes do início da Appell do fim do dia, nove mulheres, todas de Varsóvia, foram subitamente chamadas e mandadas apresentar-se na Effektenkammer. Claramente, tal significava que iriam ser executadas. Talvez devido ao ambiente febril na sequência do protesto das mulheres incapacitadas, ou talvez porque estas prisioneiras pertenciam a um grupo particularmente forte, este anúncio motivou uma reação emotiva extraordinária. Amigas das vítimas, furiosas por nem sequer terem tido tempo de se despedirem, saíram das filas e avançaram espontaneamente na direção da Effektenkammer para tentar vislumbrar as mulheres condenadas uma última vez. Helga Gallinat, uma das guardas, apercebeu-se do que estava a acontecer e correu atrás das prisioneiras, a berrar-lhes e a bater-lhes. As mulheres surpreenderam Gallinat, atacando-a e quase a linchando. Outras guardas que acorreram em socorro de Gallinat

foram também atacadas. Por entre o tumulto que irrompeu, a intérprete polaca de Langefeld, Helena Korewina, demonstrou a sua considerável autoridade, ligando a sirene a chamar o turno da noite ao trabalho. Quando soou a sirene, milhares de trabalhadoras noturnas inundaram a Lagerstrasse, o distúrbio dissipou-se e o campo de concentração voltou a entrar na ordem. Mas toda a gente sabia que Ravensbrück estivera a minutos de um motim. Os ânimos estavam agora ainda mais inflamados e Fritz Suhren tinha mais provas para usar contra Langefeld, já que o levantamento demonstrou que, claramente, ela já não controlava as prisioneiras. No entanto, foi um outro incidente, pouco depois do quase motim, que pôs à prova a lealdade de Langefeld e a paciência de Suhren. Mais uma vez, as coelhas estavam envolvidas. Grete BuberNeumann, que nessa ocasião estava ao lado de Langefeld, faz um relato pormenorizado. Segundo ela, Langefeld sentia-se particularmente horrorizada com os tormentos das coelhas, porque lhes tinham mentido ao prometerem que as enviariam para casa em troca de acederem a ser operadas; em vez disso, as vítimas «usadas» estavam a ser mortas a tiro. No entanto, foi só num dia no início de abril que a realidade deste engano se revelou a Langefeld. Nesse dia, quando Grete trabalhava com a Oberaufseherin no seu gabinete, chegou um memorando da Gestapo a pedir que dez polacas com números entre 7000 e 10 000 se apresentassem nach vorne. Grete viu o memorando e soube logo o que significava, assim como Langefeld, evidentemente. Uma mensageira foi chamar as mulheres aos seus blocos. Grete recordou: Fiquei sentada à minha máquina de escrever a olhar pela janela. Quando o grupo atravessava a praça, reparei que duas delas estavam de muletas. «Frau Langefeld», chamei. «Vão matar as coelhas a tiro. Estão a vir agora.» Langefeld levantou-se de um salto, olhou lá para fora, pegou no telefone e exigiu falar com o comandante. Eu fiquei ali sentada a escutar cheia de ansiedade. «Herr Lagerkommandant», disse ela. «Tem permissão de Berlim para matar as coelhas?»

Grete não ouviu a resposta de Suhren. Langefeld desligou e virouse para Grete, dizendo-lhe que fosse lá fora e mandasse as duas prisioneiras de muletas regressar aos seus blocos. Ao fim de quatro anos como chefe das guardas no campo de concentração de mulheres e de seis meses em Auschwitz, Johanna Langefeld finalmente escolheu entre o que estava certo e o que estava errado, livrou-se da sua indecisão e tomou medidas para salvar a vida de duas prisioneiras polacas. Grete, sabendo que Langefeld estava a desobedecer às ordens da SS, e por consequência correndo ela própria um risco considerável, seguiu as instruções da sua chefe e disse às coelhas para regressarem aos seus blocos. Duas semanas depois, Grete estava de novo no gabinete de Langefeld e viu-a atender um breve telefonema de Fritz Suhren. Nessa ocasião, Langefeld escutou em silêncio, pousou o auscultador e saiu, sem dizer nada. Em consequência da sua decisão duas semanas antes de deter a execução das mulheres incapacitadas, Johanna Langefeld tinha sido despedida. O próprio Himmler aprovara a decisão. Por isto — e por uma série de outros «crimes» congeminados contra ela — iria responder a acusações de violação de disciplina perante um tribunal da SS. No início de abril de 1943, Johanna Langefeld partiu de Ravensbrück pela última vez.

TERCEIRA PARTE

CAPÍTULO 16 EXÉRCITO VERMELHO Valentina Samoilova, uma estudante de Medicina em Kiev, estava a celebrar o fim do período a comer um gelado nas margens no rio Dnepr quando as forças de Hitler atravessaram para a Rússia em junho de 1941. «A seguir, o céu iluminou-se e vieram ordens para mobilizar», recordou. «Ao princípio, cantámos cantigas e depois ouviram-se as sirenes e os rapazes disseram adeus às raparigas. Nessa noite vimos aviões em fogo no céu e cavalos feridos nas ruas. Tivemos de desembaraçar a zona de cadáveres. Víamos que tudo estava a chegar ao fim.» Era a mesma história por toda a União Soviética. A guerra eclodiu quando os estudantes estavam a acabar os exames. Anna Stekolnikova, uma professora estagiária de Oryol, a sul de Moscovo, estava a comemorar o fim do período quando a voz de Molotov, o ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, trovejou de um altifalante a dizer que a guerra tinha começado. Mandaram-nos reunir no nosso colégio, onde nos ensinaram a ativar bombas incendiárias. A seguir, os rapazes partiram para a frente de combate e nunca mais voltámos a vê-los. Depois, subitamente, todos tivemos de partir. Era o dia 2 de julho de 1941, e chegou uma ordem para todo o pessoal médico evacuar o hospital. Os estudantes entre nós tinham acabado de fazer os seus exames, mas toda a gente foi convocada.

Em Odessa, no mar Negro, médicas e enfermeiras estagiárias receberam uniformes militares, alistaram-se numa divisão militar médica e foram enviadas para a frente de combate que se aproximava da cidade, para tratarem os feridos nas trincheiras. «Não pensámos duas vezes. Éramos praticamente crianças, mas amávamos o nosso país e queríamos defendê-lo», diz Maria Vlasenko, uma enfermeira de Odessa, que foi atingida num olho e

numa perna por estilhaços nas trincheiras. Quando a cidade portuária de Odessa caiu nas mãos do inimigo em novembro de 1941, Maria e a sua divisão médica bateram em retirada com as tropas para as praias do mar Negro, para embarcar em navios com destino a Sebastopol e defender a península da Crimeia. Sebastopol já se encontrava em ruínas e havia poucas esperanças de deter o avanço dos Alemães, mas as ordens de Estaline eram de combater até à morte. «Não há prisioneiros de guerra soviéticos, só traidores», disse ele às suas forças, que foram empurradas para a ponta do promontório, onde ficaram à mercê das forças alemãs, com o mar nos outros três lados. Os oficiais de alta patente do Exército Vermelho foram levados em navios, mas as enfermeiras e os médicos foram deixados no topo dos rochedos da Crimeia a tratar dos feridos. Disseram-nos que viriam navios ou submarinos salvar-nos, mas eles vieram. Avançámos para a última baía — a baía Arenosa — onde os feridos se encontravam a toda a volta. Arrastámo-los para junto do rochedo para poderem ser transportados para os navios de salvamento, mas eles continuavam a não aparecer. Usámos tudo o que tínhamos para os ajudar — lençóis velhos ou camisas. Para fazer talas, rachámos um banco. Usávamos álcool em vez de morfina. Mas sabíamos que estávamos isolados. Estávamos ali isolados com os nossos feridos naquele promontório, que estava prestes a cair. Havia corpos a cair à água, onde borbulhavam e rebentavam. O mar estava a ficar vermelho à nossa volta. E então a península foi atingida por uma bomba.

Enquanto Maria Vlasenko fala, outros membros da sua família chegam à sua pequena casa numa vila poeirenta na costa do mar Negro. Sentam-se no chão e escutam-na. Nunca tinham ouvido a sua história. Maria e outras como ela encontram-se entre as vítimas mais anónimas de Ravensbrück. As sobreviventes ocidentais recordavam as mulheres «disciplinadas» do Exército Vermelho que chegaram ao campo de concentração, mas ninguém sabia grande coisa sobre elas e depois de a Cortina de Ferro se cerrar essas mulheres desapareceram inteiramente de vista. Além disso, as sobreviventes eram também anónimas no seu próprio país, onde foram compelidas

ao silêncio por medidas de terror. Foi o próprio Estaline quem instilou o terror. Quando os sobreviventes soviéticos regressaram à pátria após anos de sofrimento em campos de concentração alemães, Estaline mantevese fiel à palavra e tratou os seus militares como traidores, simplesmente porque tinham sido capturados e não combateram até à morte. Entre os que regressaram encontravam-se 800 000 mulheres soviéticas que se tinham oferecido como voluntárias ou que tinham sido mobilizadas para trabalhar em unidades secretas, nas transmissões ou como médicas e enfermeiras. O próprio facto de terem estado num país estrangeiro e de se terem misturado com estrangeiros — mesmo que fossem prisioneiros — significava que estavam contaminadas pelo fascismo. De regresso a casa, em Odessa, Maria Vlasenko e a maior parte das suas camaradas foram interrogadas pelo SMERSH, o serviço de contraespionagem do exército soviético durante a guerra. Na melhor das hipóteses, passaram a figurar numa lista negra e foi-lhes negada autorização para trabalharem. No pior dos casos, inventavam-se acusações descabeladas e os suspeitos eram julgados em tribunais soviéticos secretos. Os camaradas eram torturados, subornados ou chantageados para denunciarem outros camaradas e em seguida os «culpados» eram enviados para a Sibéria ou executados. Depois da morte de Estaline em 1953, o ambiente aligeirou-se e alguns dos exilados na Sibéria puderam regressar, mas o receio de perseguição persistia e os relatos dos campos de concentração nazis continuavam a ser fortemente censurados. Só depois da reunificação alemã em 1990, quando pela primeira vez Berlim ofereceu pequenas indemnizações às vítimas no ex-bloco de Leste, é que elas começaram a apresentar-se para reclamarem o dinheiro a que tinham direito, embora nesta altura já muitas tivessem falecido. Desde o fim da Guerra Fria, as autoridades russas passaram a conceder um acesso limitado aos seus arquivos, lançando mais luz sobre a extensão da perseguição de Estaline. Entre os documentos encontram-se alguns relacionados com os julgamentos secretos no

pós-guerra. Por exemplo, em 1949, em Simferopol, na Crimeia, cinco mulheres do Exército Vermelho — médicas e enfermeiras — foram julgadas por «colaboração» com os «fascistas» em Ravensbrück. Durante o julgamento, uma das acusadas «virou» e prestou depoimento contra as suas camaradas. Uma outra enforcou-se na cela. As restantes três foram condenadas e enviadas para a Sibéria. Maria Vlasenko tem conhecimento desse julgamento. A sua amiga Lyusya Malygina, uma das médicas do Exército Vermelho, foi uma das condenadas e enviadas para a Sibéria. Mas recusa-se a falar do assunto — «Foi uma história escura.» A sua amiga Ilena Barsukova vive perto, e talvez saiba mais. «Malygina era uma mulher linda e muito corajosa», disse Ilena Barsukova. «Ela salvou muitas vidas no campo. E tentou também salvar-nos a todas da captura.» Quando as médicas e as enfermeiras do Exército Vermelho ficaram isoladas na ponta da península em julho de 1942, precisava-se de uma voluntária que fosse a nado com uma mensagem para o chefe das forças crimeias, o general Ivan Petrov, até aos oficiais do outro lado da baía. «A mensagem era para Estaline», disse Ilena. «Foi Lyusya Malygina quem se ofereceu como voluntária. Protegeu de algum modo o documento secreto e levou-o a nado. Nós pensámos que isso significava que ainda poderíamos ser salvas.» Com os Alemães a aproximarem-se, no entanto, as mulheres aperceberam-se de que tinham sido abandonadas e de que a única opção para evitar a captura seria saltar para o mar ou descer pelos rochedos até às grutas mais abaixo. «Tentámos arrastar também os feridos para as grutas, mas a maior parte já tinha morrido, por isso descemos pelos rochedos e escondemo-nos. Estivemos lá cinco dias sem comida. Os Alemães estavam mesmo por cima de nós e sabiam que estávamos a morrer à fome. Por isso, atiraram-nos cordas.» Lá em cima, as tropas alemãs aguardavam-nas. «Nós tirámos as botas e esvaziámos a água», disse Ilena Barsukova. «A seguir, ficámos a saber que setenta e um dos nossos comandantes tinham

sido levados por submarino para não caírem nas mãos do inimigo. Foi só então que chorámos.» As médicas e as enfermeiras capturadas, juntamente com as restantes tropas do sexo masculino, marcharam cinquenta quilómetros a subir até um ponto de paragem na cidade de Bakhchisaray. Não havia água na marcha e as temperaturas atingiam os 40 ºC. As populações locais ofereciam ajuda, mas quem tentasse beber num lago ou estendesse a mão para colher uma maçã de uma árvore era morto a tiro. O trilho estava «encharcado em sangue», e toda as pessoas temiam o que aconteceria a seguir. Tinha-se espalhado rapidamente a notícia da chacina de militares do Exército Vermelho capturados pelos Alemães. «Vi um homem meter a mão na bota, tirar uma faca e cortar a sua própria garganta», disse Maria Vlasenko. As mulheres do Exército Vermelho estavam a par das violações e das brutalidades infligidas a mulheres noutras unidades capturadas. As tropas alemãs eram industriadas com propaganda em que se descreviam as mulheres soviéticas de uniforme como «mulhereshomens repelentes» e se declarava: «É isto que o Bolchevismo faz às mulheres.» Eram «criaturas depravadas» que tinham «traído as suas famílias». Em Bakhchisaray começaram a abater os judeus a tiro. Os militares capturados, as médicas e as enfermeiras foram postos em fila diante de uma grande vala antitanque com uma prancha por cima. As tropas alemãs estavam a toda a volta com armas e cães, e em seguida foram selecionados prisioneiros e mandados avançar. «Eram sempre os judeus», disse Ilena Barsukova. Cenas como estas tinham-se já desenrolado por todo o território soviético capturado desde o início da invasão. Os homens foram chamados primeiro, mas só porque era mais fácil identificá-los. «Lembro-me de um que insistiu: “Eu não sou judeu. Sou ucraniano”, e depois mandaram-no baixar as calças. Disseram: “Ah, tu não és judeu”, e por isso pouparam-no», disse Ilena. Como os Alemães não podiam ter a mesma certeza em relação às

mulheres, procuravam outros prisioneiros para os ajudarem a identificar as judias entre eles. Os não-judeus informavam com um aceno de cabeça ou apontavam com um pau. «Talvez houvesse acertos de contas», disse Ilena Barsukova. «Talvez oferecessem a esses informadores cama ou comida se eles colaborassem. Nunca chegámos a saber.» Rosa Markova foi uma das primeiras a ser delatada, e ordenaramlhe que avançasse. «Ela não parecia judia», disse Ilena Barsukova. «Usava o cabelo numa trança. Mas eles selecionaram-na de qualquer maneira.» Semyon Adler foi o seguinte. Depois, avançou uma terceira mulher, Anna Brin. «Acho que ela viu que estavam a levar os outros judeus e decidiu ir com eles. Dissemos à Anna: “Tu não tens de ir. Não foste escolhida.” Mas ela insistiu.» Esses três deram os braços e avançaram juntos para a prancha, onde foram mortos com um tiro na nuca e caíram na vala. De Bakhchisaray marcharam para Simferopol, a quarenta quilómetros a noroeste. Fazia ainda mais calor. Da divisão das mulheres, só 200 estavam ainda vivas, e muitas encontravam-se feridas. As que caíam por terra eram mortas a tiro. As mulheres marchavam agora numa fila à parte dos homens e enquanto avançavam, iam ouvindo instruções segredadas que eram passadas de boca em boca. Vinham de uma «líder» mais à frente. Ao princípio, as instruções eram simplesmente «tenham coragem». A líder era «mais velha e sabia muito». Olharia por elas, dizia-se. Havia até alguém que a conhecia. Era uma professora de Odessa. Tinha combatido na guerra civil. «Sejam fortes», foi outra mensagem. «Olhem umas pelas outras. Acreditem numa vitória soviética.» Seguiram-se mais informações: «Ela fala línguas. Ela compreende o que os Alemães dizem.» E depois as pessoas começaram a segredar o seu nome: Yevgenia Lazarevna Klemm. «Nós éramos muito novas e não sabíamos nada de nada», disse Ilena Barsukova. «Mas já nos sentíamos mais fortes, sabe? Sabíamos que a tal Yevgenia Lazarevna era experiente e que nos diria o que fazer.»

Em Simferopol apinharam-nos numa pequena cadeia onde o calor e a imundície propiciaram o alastramento de infeções. No pátio, Yevgenia Lazarevna misturava-se com as mulheres e elas viam-na de tempos em tempos: uma mulher alta, de cerca de quarenta anos, com o cabelo castanho-alourado. «Devochki! [Meninas!]», dizia. «As que não me conhecem, saibam que sou a Yevgenia Lazarevna Klemm. Como é que estão, meninas? Vão ficar bem? São meninas do Exército Vermelho. Nós somos prisioneiras de guerra. Lembrem-se disso.» «E nós acreditámos nela», disse Ilena Barsukova. «Não sabíamos o que queria dizer “prisioneiras de guerra”, mas pensávamos que, de algum modo, poderia querer dizer que o mundo exterior nos ajudaria, por isso deu-nos esperança.» Yevgenia Lazarevna escolheu médicas para suas ajudantes. Como a perna de Maria Vlasenko estava infetada, uma ajudante veio fazer o penso da ferida, mas um guarda viu-a e berrou a Maria, ordenandolhe que se levantasse, e bateu-lhe. A ajudante de Klemm berrou em alemão: «Não bata nessa mulher, não vê que ela está ferida?» E o guarda arrancou-lhe a ligadura e bateu-lhe ainda mais, partindo-lhe os dentes. «A seguir, o guarda retirou-se e voltou com sopa e um pedaço de pão e disse “Essen” [come], e voltou a ir embora.» Pouco depois, as mulheres estavam de novo a marchar para oeste. Cerca de um dia depois, foram metidas em comboios de transporte de gado. «Espreitámos pelos buracos na carruagem e vimos uma tabuleta grande que dizia Kiev. Era a minha cidade», recordou Tamara Tschajalo, que fizera o seu estágio de Medicina em Kiev. Muitas horas depois, chegaram a uma cidade com tropas chamada Slavuta, onde as conduziram para um extenso campo de concentração para tropas soviéticas capturadas, dirigido pelo exército alemão. Estava imundo. As mulheres adoeceram com tifo, difteria, sífilis e tuberculose, e várias morreram. «Obrigaram-nos a cortar o cabelo para nos livrarmos dos piolhos», disse Ilena Barsukova. «Tínhamos de ferver a roupa em caldeirões. Era o tifo que

aterrorizava os Alemães, por isso eles mantinham-se afastados. A Yevgenia Lazarevna disse-nos que se conseguíssemos viver assim três semanas sobreviveríamos, e era verdade. Quando alguém estava doente, ela assegurava-se de que havia sempre uma amiga para lhe dar a mão.» A médica, Tamara Tschajalo, quase morreu em Slavuta, mas Yevgenia Lazarevna tratou dela, salvando-lhe a vida. «Ela disse-me que era imune ao tifo, porque o tinha apanhado durante a guerra civil.» Yevgenia Lazarevna tinha agora várias ajudantes. Entre elas, contavam-se Lyusya Malygina, a médica que tinha atravessado a nado o mar da Crimeia ensanguentado para levar uma mensagem, e uma outra médica chamada Lyuba Konnikova. Lyuba era judia, mas ninguém a tinha identificado até àquele momento, e ninguém a tinha denunciado. «Ela tinha um temperamento fogoso», recordou Maria Vlasenko. Ilena Barsukova recordava-se de que Lyuba tinha «nervos de aço». Em Slavuta, mais judias foram mortas a tiro. Uma das outras mulheres de Odessa, Nadia Nakonechnaya, recordava-se de como a sua amiga judia Anna, que era médica, tinha sido denunciada por uma sua colega médica chamada Yusefa. «Essas duas andavam sempre em conflito no hospital em Odessa», disse Nadia. «A Anna tinha a certeza de que a Yusefa diria aos Alemães que ela era judia.» Uma outra sobrevivente de Odessa, Zoya Savel’eva, falou de umas masmorras, «um enorme buraco negro», algures em Slavuta. «As judias foram postas nesse buraco semanas a fio e ali mantidas na escuridão. Não havia comida e ninguém sabia o que lhes estava a acontecer ou se já estavam mortas ou não. Um dia, os uniformes das mulheres que tinham morrido foram atirados para as celas, para as outras moças escolherem alguma coisa de préstimo.» Nessa altura, todos os uniformes estavam já manchados e esfarrapados, mas Yevgenia Lazarevna disse-lhes que era importante continuarem a usá-los, para mostrarem que eram prisioneiras de guerra. A paragem seguinte foi Rovno, perto da fronteira alemã. Aí, Raisa Veretennikova foi selecionada e morta a tiro devido ao seu cabelo

encaracolado. Indignadas com as traidoras no seu seio, as mulheres lutavam agora entre si, mas Yevgenia Lazarevna disse que as traições tinham de parar. «Somos todas mulheres do Exército Vermelho. Olhem umas pelas outras e sobreviveremos a isto.» Algumas semanas depois — estava-se agora no final do outono —, as mulheres foram de novo amontoadas em camiões de transporte de gado. Na paragem seguinte estava-se em dezembro de 1942. As mulheres andavam em viagem há cinco meses. A temperatura atingia os quarenta graus negativos. Ainda envergando os seus uniformes do Exército Vermelho, foram dispostas em filas de cinco. Ainda não o sabiam, mas encontravam-se na Alemanha, em Soest, na Vestfália. Aí, encontraram outras mulheres do Exército Vermelho, algumas de batalhões de transmissões ou oficiais dos serviços secretos, outras, como elas, médicas e enfermeiras que também tinham prestado serviço na frente de combate — em Kiev, Estalinegrado, Rostov e Leninegrado. Maria Klyugman, uma cirurgiã experiente, tinha feito operações em Cernigov. Valentina Samoilova, a jovem do gelado em Kiev, tinha sido colocada como profissional de saúde do exército em Estalinegrado, onde ajudara a sua unidade a defender uma ponte nos arredores da cidade sitiada. Cercados durante a defesa final desesperada, ela e os seus camaradas tinham-se camuflado com a lama do rio, mas a ponte fora tomada e foram todos capturados. Valentina apanhou um tiro numa perna e foi dada como morta, mas os Alemães levaram o seu corpo, ainda enlameado, e atiraram-na para um comboio de carga cheio de cadáveres. Na estação seguinte, os corpos foram retirados por um guindaste e Valentina foi içada num gancho gigante. «E depois contorci-me e alguém viu que eu estava viva. Disseram: “Olha, ele está vivo”, porque julgaram que eu era um rapaz, mas veio um médico alemão e descobriu que eu era rapariga, por isso meteramme no comboio para oeste. Estava a nevar e fazia muito frio e acabámos por chegar a Soest.» Não demoraram muito tempo a perceber que o campo de

concentração em Soest era diferente de todos os outros; havia um centro desportivo e um enorme entroncamento ferroviário nas imediações. Os guardas eram da Gestapo, não militares. O local tinha sido recentemente transformado num estaleiro a que chegavam milhares de trabalhadores escravos trazidos do Leste. Todos os dias, autênticos caudais de civis russos e ucranianos jorravam dos comboios e eram conduzidos para o centro desportivo. Muitas das mulheres civis tinham sido apanhadas ao acaso por unidades nazis de passagem pelo Leste da Ucrânia. Evdokia Domina estava nas colheitas quando foi apanhada por soldados alemães e metida num comboio. «A minha mãe nem sequer soube que eu tinha desaparecido.» Alexandra Dzyuba e as suas amigas foram atraídas à câmara da sua vila, onde os alemães tinham prometido passar um filme, mas quando chegaram foram todas presas. «O meu pai pegou num cavalo e tentou seguir o nosso comboio para me salvar na estação seguinte, mas os alemães bateram-lhe com as armas deles.» No centro desportivo, os empregadores alemães — Meister de fábricas — circulavam entre as mulheres capturadas com chicotes, escolhendo quem queriam, algumas para trabalhos agrícolas, mas a maioria para o fabrico de armamento. Assistindo a essas seleções, as recém-chegadas não compreenderam inicialmente que também elas receberiam ordens para fabricar armamento para o inimigo. Até à data, os Alemães tinham matado ou encarcerado nas piores condições todos os prisioneiros soviéticos. Recentemente, no entanto, a necessidade urgente de mão de obra levara a uma alteração da política praticada, e os prisioneiros do Exército Vermelho estavam também a ser usados como trabalhadores escravos. «Quando tentaram levar-nos para trabalhar, não compreendemos ao princípio, e as primeiras quinze que foram escolhidas começaram a ir», disse Tamara Tschajalo. «Mas então a Yevgenia Lazarevna fezlhes chegar a ordem de não se mexerem. “Mantenham-se firmes”, disse ela. “Não devemos fazer este trabalho.” E elas voltaram e ficaram com o resto na fila. Pensámos que o mais certo era morrermos, mas estávamos preparadas.»

Tamara recordava-se das palavras de Klemm: «Ela disse-nos que éramos prisioneiras de guerra e que ao abrigo da lei internacional o inimigo não tinha o direito de nos fazer trabalhar nas fábricas de guerra. Este conselho foi transmitido de mulher em mulher e nós obedecemos. Os alemães ameaçaram-nos com pancada e levaramnos ao chefe da Gestapo, que nos fez ficar de pé em celas durante três dias. Mas nós não nos queixámos e cantámos as nossas canções de batalha.» Quando chegou a vez de Yevgenia Lazarevna comparecer diante do chefe da Gestapo, ela disse-lhe na cara que ele não tinha o direito, ao abrigo das Convenções de Genebra, de forçar prisioneiros de guerra a fazer armas para o seu inimigo. Ao longo de toda a viagem da Crimeia para a Alemanha, ela tinha falado às mulheres dos sofrimentos dos soldados no passado. Ela mesma tinha prestado serviço como enfermeira da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial e conhecia as regras sobre o tratamento dos prisioneiros, consagradas desde então nas Convenções de Genebra. «Lembrem-se de que são prisioneiras de guerra, meninas», dizia às mulheres uma e outra vez, insistindo que mantivessem os seus uniformes no melhor estado possível, já que eles eram a única prova que tinham do seu estatuto de prisioneiras de guerra. «Vocês têm direitos», dizia-lhes, mas devia saber que isso não era verdade. Estaline recusara-se a assinar as Convenções de Genebra e, do ponto de vista dos Alemães, os Soviéticos não tinham quaisquer direitos.22 No entanto, Klemm deve ter julgado que até mesmo a Gestapo pensaria duas vezes antes de matar 500 mulheres de uniforme, médicas e enfermeiras, em pleno solo alemão. De qualquer modo, devia ser claro para ela que muitas daquelas mulheres recusariam obedecer à ordem acontecesse o que acontecesse. Lyuba Konnikova sabia pouco sobre as regras da guerra, mas estava ciente de que não tinham marchado desde a Crimeira «só para fazer armas para matar os meus camaradas na frente de combate». Por isso, quando os Meister apareceram diante dela, Lyuba pegou num pedaço de metal e

atirou-o a um dos cães de guarda alemães, mas os guardas não disseram nada. Klemm disse a Lyuba mais tarde que «não mostrasse a sua fúria», recordou Maria Vlasenko. «Ela avisava sempre as mais fogosas.» E avisou também a mulher de Estalinegrado, embora ainda não soubesse o nome de Valentina Samoilova. Valentina recordou: Fomos chamadas em grupos para uma espécie de centro desportivo e disseramnos: «Tu vais para esta fábrica, tu vais para ali.» Por isso, eu perguntei a um homem: «A sua fábrica é para trabalho militar?» E o dono da fábrica disse: «É.» Por isso, eu disse-lhe: «Nós somos prisioneiras militares, não trabalharemos em armamento», e durante meio-dia eles tentaram todos levar-nos a fazê-lo, mas nós recusámos. Julgámos que íamos ser todas mortas.

Até mesmo Valentina, toda enlameada, manteve intacto o seu uniforme, e quando chegou a sua vez de comparecer diante do chefe da Gestapo, ele ficou a fitá-la durante algum tempo. «Eu tinha a pele clara e o cabelo louro e ele perguntou-me se eu era uma rapariga alemã. Eu disse, em alemão: “Não, sou ucraniana.” Ele perguntoume: “Porque é que não trabalhas?” Eu disse que era uma boa trabalhadora, mas que não trabalharia numa fábrica militar alemã. Ele pontapeou-me com tal força que eu caí por terra.» No centro desportivo, Valentina reparou que alguém do grupo das mulheres do Exército Vermelho estava a fazer sinais sobre como deviam todas comportar-se: Uma mulher que eu não conhecia aproximou-se de mim e disse que eu devia manter a calma. Era mais velha. Ouvi dizer que era de Odessa. Era Yevgenia Lazarevna, mas nessa altura eu ainda não a conhecia. Escutei o seu conselho. Ela disse: «Tu és muito nova. Nós não precisamos de vítimas, precisamos de combatentes.» Disse que eu devia esperar por um sinal dela antes de fazer mais alguma coisa. Tínhamos de agir em uníssono, era essa a sua mensagem.

A autoridade de Yevgenia Lazarevna alastrou rapidamente para além do grupo da Crimeia a todas as mulheres do Exército Vermelho presentes. Se iam protestar, deveria ser «em uníssono», recordou Valentina: Disse-nos que não devíamos «quebrar o círculo». Era essa a expressão que ela

usava sempre. Ninguém devia «quebrar o círculo». Devíamos manter-nos juntas e assim ficaríamos bem. E, subitamente, tivemos a sensação de que afinal talvez não acabássemos todas mortas. Foi esse o início da nossa organização. E cantámos as nossas canções soviéticas: «Lutaremos por Estaline.» Aquilo silenciou os alemães. Não sabiam o que fazer. Pareciam não ter ordens. As ordens deles eram obrigar-nos a trabalhar, mas agora que recusávamos eles estavam em choque. Não se atreviam a matar-nos a tiro.

Três noites depois do início do protesto, os Alemães retiraram a ordem de trabalhar em fábricas de armamento. As russas foram levadas para um comboio que as aguardava e metidas em vagões de gado. Havia baldes lá dentro; as portas dos vagões foram fechadas com pregos e cobertas com arame farpado. Viajaram durante cinco dias e cinco noites, parando só por breves instantes em estações, onde lhes passavam pão e água por aberturas. À noite, o interior dos vagões era escuro como o breu, mas durante o dia as frestas deixavam passar raios de luz que incidiam nos corpos das mulheres, todas aconchegadas para se manterem quentes. A temperatura lá fora raramente subia acima de zero. Muitas das mulheres estavam doentes com tifo ou com tuberculose. Ninguém sabe quantas estavam já mortas quando o comboio chegou à estação de Fürstenberg. Era o dia 23 de fevereiro de 1943 e Valentina fazia vinte e quatro anos. A jovem que tinham içado com um gancho do comboio de cadáveres de Estalinegrado chegou a Ravensbrück no dia dos seus anos.

22 Klemm estaria também a par da Convenção de Haia de 1907, que a URSS tinha assinado e que protegia os prisioneiros de guerra e limitava o seu uso em trabalhos forçados. No entanto, tanto Hitler como Estaline, em igual medida, desenhavam as «regras da guerra», quer assinadas quer não. A Alemanha tinha assinado as convenções de Genebra e de Haia, mas as forças alemãs dizimaram cerca de 3,5 milhões de tropas soviéticas capturadas.

CAPÍTULO 17 YEVGENIA KLEMM Por um segundo houve uma quietude na escuridão absoluta. Subitamente, do lado de fora vieram pancadas nas portas dos vagões, que se abriram de par em par, e os corpos começaram a exalar vapor ao contacto com o ar gelado da noite. As mulheres olharam para as luzes, mas antes de terem tempo de se mover, umas figuras de capas saltaram para dentro dos vagões, agarraram nelas pelos braços e pelas pernas, aos berros e aos pontapés, e atiraramnas lá para fora. Havia cães por toda a parte. Algumas disseram que havia neve no chão. Do que não há dúvida é que o céu estava límpido e fazia frio. Valentina Samoilova recordou: Marchámos do comboio, em filas de cinco. Eu sentia-me fraca e alguém me estendeu a mão. Julguei que era para me ajudar, mas era para me bater. «Porcas russas! Bandidas russas!» Ninguém conseguia compreender porque é que lhe estavam a bater. Ainda não tínhamos aprendido que era só a maneira como eles se comportavam. Era como se estivessem à espera de alguma coisa de nós. Talvez fosse porque ainda estávamos de uniforme.

Que todas as mulheres conseguissem preservar o seu uniforme, mesmo naquelas condições, parece notável, mas nada lhes era mais querido do que aquela simples indumentária de caqui — saias ou calças e casacos, debruados nos ombros para identificar um batalhão médico ou de transmissões, e uma estrela vermelha no boné verde a identificá-las como militares de Estaline. Foi passada a informação de que deviam formar fila e a coluna começou a avançar, mas era tão longa que as que se encontravam na parte traseira não faziam ideia do que estava a acontecer na parte da frente. Havia luzes brancas ainda mais brilhantes à frente; nunca tinham visto tais luzes na União Soviética e ficaram ofuscadas. Valentina recorda-se de ser forçada a correr na direção da luz e de

compreender a seguir que estava a correr para uns portões gigantes. As que caíam eram alvejadas a tiro. Tudo parecia enorme. As mulheres com capas pretas eram gigantes. Junto aos portões do campo, um oficial da SS berrava ordens e apontava para um edifício, mas poucas das mulheres compreendiam a língua alemã. Subitamente, foram empurradas para a frente para entrarem por janelas abertas. «Por isso, nós pensámos, que lugar é este para onde estamos a entrar pelas janelas, mas não tivemos muito tempo para pensar, porque a seguir ordenaram-nos que nos despíssemos e que empilhássemos os nossos uniformes. Tudo o que nos era querido foi-nos tirado.» Mas Valentina conseguiu ficar com o seu cartão da Komsomol (Juventude Comunista) prendendo-o entre os dentes. «A seguir, passaram-nos em revista, espetaram-nos os dedos e fizeram-nos deitar.» Cada mulher foi examinada exaustivamente, com mãos metidas nos seus orifícios, a passar tudo em revista, enquanto os SS assistiam e berravam: «Cadelas imundas, putas russas.» Entre os oficiais da SS ali presentes encontravam-se Fritz Suhren e o seu delegado, o Obersturmführer Edmund Bräuning. Estes oficiais de alta patente do campo de concentração tinham vindo para os balneários de madrugada para insultar e fitar estas mulheres soviéticas que tinham vindo de Leninegrado, de Estalinegrado e de outras cidades que já conotavam uma derrota humilhante. Ludmilla Voloshina diz que os SS se riram quando encontraram joias escondidas na vagina de uma mulher, mas toda a gente sabia que foram eles que fizeram que assim parecesse. Algumas mulheres recordavam-se de lhes serem dados comprimidos para tomarem. Valentina cuspiu o seu. A seguir foi o duche e depois disso foram encharcadas num desinfetante pegajoso e passadas por água. O cabelo foi-lhes cortado, não rapado, mas cortado à toa com tesouras, de tal modo que ficaram com tufos. Elas procuraram os seus uniformes, mas tinham desaparecido. Os SS riram-se e disseram-lhes que os uniformes tinham sido queimados, e que por isso não tinham outra

opção a não ser vestir o uniforme às riscas do campo de concentração. «Olhei para as outras com os seus tufos de cabelo e elas pareciam flores num caule», disse Valentina. «E alguém disse, Valentina, tu também pareces uma flor. Nós éramos muito jovens.» Enquanto as mulheres marchavam para os seus blocos, batiamlhes e davam-lhes pontapés. Yekaterina Boyko disse: Uma loura alta tirou o cinto e bateu-me com ele na cabeça e um cão mordeu-me. Eu caí e quando recobrei os sentidos estava molhada e não sabia porque é que aquilo estava a acontecer. Pusemo-nos em fila e berraram-nos um número e a mulher com o número estava ao meu lado, por isso eu disse, esse é o teu número, mas era demasiado tarde, porque eles começaram a bater-lhe, e bateram-lhe até ela cair sem sentidos, e eu fiquei ali a ver, a ferver por dentro.

Retrospetivamente, Maria Vlasenko pensa: «Era como se nós tivéssemos chifres.» Indubitavelmente, a SS de Ravensbrück estava preparada para ter problemas, razão por que Suhren ordenou que as mulheres do Exército Vermelho chegassem ao campo de concentração à noite e as forçou a entrar para os balneários pelas janelas das traseiras, para que ninguém as visse de uniforme, que a seguir as levou a tirar por meios enganadores. O estratagema de Suhren foi certamente resultado de ordens superiores. Como demonstrava a reação de confusão dos alemães ao protesto das mulheres do Exército Vermelho em Soest — e como Yevgenia Klemm tinha esperado —, havia alguns elementos dos círculos nazis que eram sensíveis aos perigos de ignorar as Convenções de Genebra no que dizia respeito a este grupo de prisioneiras de guerra. Ninguém hesitara em massacrar prisioneiros de guerra soviéticos, especialmente porque acontecera lá longe, no Leste. Mas estas combatentes de uniforme — ainda por cima pessoal médico — estavam em solo alemão e qualquer violação do seu estatuto de prisioneiras de guerra seria mais difícil de explicar se Genebra decidisse interessar-se pelo caso. Até à data, Himmler conseguira evadir-se, facilmente às questões sobre os seus campos de concentração colocadas pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha sediado em Genebra, e este recusara

envolver-se, argumentando que os prisioneiros eram civis e, por consequência, não estavam incluídos no seu mandato. A presença daquelas mulheres do Exército Vermelho, no entanto, poderia provocar questões mais penetrantes da Suíça. Himmler queria evitálo e por isso Suhren recebeu instruções para disfarçar quem elas eram através da remoção do seu «estatuto de guerra». Quando as mulheres chegaram a Ravensbrück, o único indício desse «estatuto de guerra» eram os seus uniformes, e por isso Suhren tomou medidas para que eles lhes fossem retirados à sua chegada ao campo de concentração. No entanto, Suhren fez uma concessão interessante — também seguindo ordens. Quando deram números às mulheres do Exército Vermelho para elas os coserem ao casaco (os seus andavam na casa dos 17 000) juntamente com os triângulos vermelhos que as identificavam como prisioneiras políticas, seria de esperar que usassem a simples letra «R» para as identificar como russas, à semelhança de outras suas compatriotas no campo de concentração. Em vez disso, as mulheres do Exército Vermelho receberam as letras «SU», União Soviética, o que pelo menos lhes permitia continuar a afirmar que o seu estatuto especial tinha sido reconhecido e que ainda estavam a ser tratadas como prisioneiras de guerra. O que é certo é que as outras pessoas do campo de concentração continuariam sempre a chamar às mulheres com as letras SU «prisioneiras de guerra». Apesar das tentativas de ocultar a chegada de membros do Exército Vermelho, as prisioneiras do turno noturno da administração viram tudo e no dia seguinte espalharam a notícia de que as soviéticas tinham entrado no campo a avançar em formação, com as cabeças bem erguidas. Estavam obviamente sob o comando de uma poderosa líder, dizia toda a gente. Não só tinham chegado de uniforme como algumas vinham ainda ensanguentadas da frente de combate As soviéticas foram instaladas num bloco especial, à parte do resto do campo, cercado por arame farpado. O seu bloco estava à guarda

da recém-formada «polícia do campo» — a Lagerpolizei (LAPO) —, constituída por prisioneiras armadas com chicotes e bastões. As soviéticas seriam também mantidas em quarentena o dobro do tempo das outras. Todo o campo estava de olhos postos no seu bloco. Para as russas comuns, levadas para ali como trabalhadoras escravas, a presença daquelas russas «oficiais» causava nervosismo. Algumas tentavam passar-lhes às escondidas mensagens de louvor a Estaline, indicando o seu número do campo de concentração e oferecendo ajuda. Para as líderes comunistas no campo de concentração — checas, alemãs, austríacas e outras —, a chegada do Exército Vermelho era um momento importante e fizeram-se planos para estabelecer contacto. «Elas vinham de um país que implicava esperança», disse Dagmar Hajkova, uma das comunistas checas. Uma outra checa, Helena Palevkova, ofereceu-se como voluntária para catar piolhos na esperança de ter uma oportunidade de cumprimentar as suas camaradas russas. E não eram só as prisioneiras que se sentiam impressionadas. Johanna Langefeld, ainda no seu posto quando as prisioneiras do Exército Vermelho chegaram, foi ouvida a admirar a sua «disciplina» e a dizer que o comportamento do comandante e dos seus homens nos balneários era «desprezível». Langefeld disse também que as mulheres eram claramente controladas por uma líder de alta patente, mas, tanto quanto sabemos, nem ela nem nenhum dos homens da SS alguma vez descobriu quem era essa «líder» ou ficou a saber que ela não tinha patente de qualquer espécie. A primeira vez que ouvi o nome de Yevgenia Klemm, estava sentada num banco na margem do Schwedtsee, junto aos muros do campo de concentração de Ravensbrück, em abril de 2008. Uma mulher com um gorro de lã grossa enfiado na cabeça e a tapar-lhe as orelhas estava a atirar rosas vermelhas para o lago em memória das camaradas perdidas. Estava ali para comemorar a libertação. Não quis conversar, mas quando lhe perguntei quem era a líder do Exército Vermelho no campo, ela olhou para mim e disse: «Yevgenia

Lazarevna Klemm. Ela foi a razão por que sobrevivemos.» Em seguida, virou-se de costas. Seria difícil descobrir mais pormenores. As sobreviventes do Exército Vermelho ainda vivas atualmente eram demasiado jovens na altura para conhecerem a história de Yevgenia Klemm em pormenor, e as mais velhas já tinham morrido, tendo o seu testemunho oficial sido objeto de censura, como fiquei a saber através de Maria Vlasenko, uma das enfermeiras de Odessa. Maria pegou num artigo de jornal que tinha escrito no início dos anos 1970 em que descrevia a sua experiência na guerra. Poderia ser interessante, disse ela, «mas eles cortaram muito». Perguntei o que é que tinham cortado. «A verdade», respondeu ela. «Quando escrevíamos sobre o campo de concentração, não podíamos dizer nada que desse a entender que os fascistas não eram maus todo o tempo. Não podíamos dizer que tínhamos os domingos livres ou que nos davam uma colher de compota aos fins de semana. Não podíamos escrever sobre o nosso verdadeiro sofrimento. Tínhamos sempre de manter a compostura e mostrar coragem. Qualquer fraqueza era cortada.» Ninguém sofreu os efeitos da censura do pós-guerra mais dolorosamente do que Antonina Nikiforova, uma outra médica do Exército Vermelho, que chegou a Ravensbrück em março de 1944. Antonina trabalhou como patologista na Revier e coligiu material no campo, que escondeu e que esperava poder usar num livro. Depois da guerra, no entanto, o SMERSH confiscou-lhe os materiais e o manuscrito, que nem mesmo atualmente podem encontrar-se nos arquivos russos. No entanto, Antonina nunca desistiu. Pouco depois de lhe ser confiscado o primeiro manuscrito, ela pediu a todas as suas camaradas que lhe escrevessem a contar o que recordavam. Socorrendo-se dessas cartas, começou novamente a escrever, mas o seu trabalho foi censurado mais uma vez. Preservou cuidadosamente as cartas, no entanto, embora recusasse autorização para a sua leitura antes de morrer, o que ocorreu em 1994. Só recentemente foram integradas no arquivo de Ravensbrück, a aguardar leitura. De

quatro grandes caixas, as vozes das mulheres do Exército Vermelho, cujos relatos parecem sem vida nos textos oficiais, soam bem alto — tagarelas, enlutadas, reminiscentes, mentirosas, acusadoras, risonhas e com histórias que andam entre o presente e o passado, como a carta de Anya Munkina, que perdeu um braço na frente de combate e tinha um trabalho especial no campo de concentração a limpar o chão. Contente por ter notícias de Antonina depois da guerra, Anya escreve: Estou a chorar de alegria, gostava de me encontrar contigo e de te abraçar e falar do campo de concentração. O teu trabalho era terrível — penso muito em ti, especialmente naquela masmorra, tu e um cadáver diante de ti e tu a trabalhares sem máscara. Durante o dia, toda a gente vai na direção dela e eu agarro na minha esfregona e limpo o pátio e tento encontrar um pedaço de beterraba ou uma batata. À noite nas camaratas era aconchegado — todas as mulheres a tentarem aquecer o ambiente com o coração. Eu escutava as leituras do jornal de Yevgenia Lazarevna. Depois de ouvir a sua voz, era agradável adormecer, embora um pouco assustador. Não tardei a ser separada das minhas amigas e a ser enviada para Bergen-Belsen. Esse era um verdadeiro buraco contaminado de piolhos onde contraí tifo e disenteria. Não tinha esperança de voltar a ver o sol.

Ilena Vasilievna (que não revela o seu apelido) diz a Antonina: «Não te levo a mal que não te recordes de mim — éramos tantas. Tu ajudaste-me e a outras duas moças polacas a sair para o trabalho. É por isso que eu ainda estou viva.» Esmiuçando mais, encontram-se outras menções a Klemm. «Ela curou-me do tifo esfregando-me com casca de árvore.» Numa carta de uma prima de Klemm diz-se que depois da guerra, quando Yevgenia Lazarevna regressou a Odessa, ela nunca mais quis voltar a falar sobre o campo de concentração. «Ficava nervosa quando vinha à baila, por isso eu tentava evitar o tópico. Mas ouvi-a uma vez dizer que no campo de concentração punham calças de borracha nas pessoas e batiam-lhes. E havia coisas mil vezes piores do que isso.» Com os nomes e os endereços de Antonina, foi possível encontrar mais mulheres que tinham conhecido Yevgenia Klemm e ficar a saber algo mais sobre a sua vida. Ela nasceu em Odessa, provavelmente por volta de 1900. Supunha-se que o seu pai era sérvio e a sua mãe

russa. Algumas pessoas diziam que ela era judia, outras que não. Quando andava na escola, desenvolveu uma paixão por História e estudou para ser professora de História em Odessa. No início da década de 1920, aderiu à revolução bolchevique prestando serviço em hospitais de campanha, principalmente na frente polaca, que foi onde cuidou de um letão ferido chamado Robert Klemm. Apaixonaram-se e no regresso casaram-se, mas pouco depois Robert morreu de tuberculose. Talvez tenham tido um filho, mas ninguém tinha a certeza. Nos anos 1930, Klemm tornou-se formadora de professores no Colégio Pedagógico de Odessa, onde atraiu os maiores elogios. Os seus alunos adoravam-na. Olga Khohkrina explicou porquê: Nas aulas, pintava-nos imagens do passado com as suas descrições e, como apresentava materiais maravilhosos, nós perdíamo-nos na História. Lembro-me de uma lição que ela deu sobre a grande Rússia, e usou materiais sobre os Tártaros e os Cossacos com tal efeito que havia estudantes em lágrimas. Houve uma aula sobre a invasão mongol em que descreveu as coisas de uma forma tão lírica que os alunos estavam boquiabertos. Dizia-nos que o conhecimento dava força e compreensão. Tinha a capacidade de inspirar amor e respeito. Era um dom.

«Como é que ela era?», perguntei. Muito humilde. Dava a impressão de não ter interesse por riquezas materiais. Muitas vezes convidava os alunos para o seu apartamento e aquecia-os com uma chávena de chá. Estava muito frio e ela era muito pobre. E penso que era uma idealista que queria desempenhar o seu papel. Disse-me que, quando era enfermeira na guerra civil, adoeceu com tifo e quase morreu. Quando se desencadeou a Segunda Guerra Mundial, não havia necessidade de ela se oferecer novamente como voluntária, porque os nossos professores foram todos levados para lugar seguro, mas ela voltou a alistar-se.

Perguntei que tipo de comunista era Klemm. «Do tipo romântico», disse Yevgenia Vladimimova, uma outra sua antiga aluna. Acho que, em jovem, provavelmente sentiu-se atraída para a causa de uma forma devotada, mas humanitária. Como tantos outros jovens russos, provavelmente sentiuse inebriada com o sonho bolchevique. Ela tê-lo-ia visto como uma maneira de construir um mundo melhor. Penso que muitas pessoas o viram assim inicialmente. Lembro-me de ouvir dizer que quando Lenine morreu ela pôs Liszt a tocar durante

horas.

Durante as primeiras semanas em Ravensbrück, os dons de Yevgenia Lazarevna foram extremamente necessários. As mulheres no resto do campo sentiam-se impressionadas com a disciplina das soviéticas, mas dentro do bloco muitas estavam doentes com tifo.23 A SS levou várias para as matar a tiro, de modo a evitar o alastramento da infeção. Outras estavam simplesmente aterrorizadas. Uma das correspondentes de Antonina Nikiforova escreveu: Achei o campo tão fantasmagórico com as suas ruas negras, as guardas com capas negras e os seus cães ferozes e as suas ordens, com todas as pessoas vestidas com roupas às riscas e a maioria com o cabelo rapado, que nem sequer vou tentar descrevê-lo no papel. O nosso terror — o meu terror — consistia ao princípio no facto de não conhecermos a língua e nem sequer sabermos o que queria dizer Konzlager [campo de concentração].

Pelo menos, a viagem tinha terminado. Ao chegar ao bloco, Tamara Tschajalo encontrou espaço num colchão ao lado de Yevgenia Lazarevna e adormeceu imediatamente. E estavam juntas sob o mesmo teto, onde podiam tentar curar os seus ferimentos. Yevgenia Lazarevna circulava entre elas tarde da noite, a mostrarlhes em que posição deviam dormir para atenuar a dor. Escolheu também ajudantes para cuidarem das que mais necessitavam, entre elas Alexandra Sokova, uma poetisa e professora, e Maria Klyugman, a cirurgiã de Kiev. Talvez fosse significativo que pelo menos duas das ajudantes de Klemm, Sokova e Klyugman, fossem judias, assim como Lyuba Konnikova, e havia várias outras judias soviéticas que não tinham sido identificadas pela SS. A traição dos últimos seis meses não estava esquecida. A SS já tinha removido as suas espias: as mulheres do Exército Vermelho que tinham apontado as judias a serem executadas na viagem foram usadas para outros trabalhos sujos. Mas mantinha-se um ambiente de bastante azedume. Uma das mulheres que escreveram a Antonina disse: «Já não vejo a Lyusya e não quero vê-la, digo o mesmo da Vera Bobkova, especialmente quando penso na maneira como agarraram nas roupas das judias em Slavuta depois da morte delas.»

No bloco, Klemm instava as mulheres a sanarem também essas feridas. «Não permitam que os fascistas nos dividam. É isso que eles querem. Mantenham-se limpas e arrumadas, é possível, mesmo nas piores condições. Nós somos pessoas civilizadas.» Algumas mulheres ainda tinham o período menstrual. «Não nos deram nada — nem sequer roupa interior. Era um grande problema para algumas moças, mas daí a pouco nenhuma de nós tinha o período, claro. Lavávamo-nos um bocadinho com água gelada, era tudo», disse Ekaterina Goreva. Como as mulheres do Exército Vermelho estavam isoladas do resto do campo, Klemm tentava recolher informações. Através de mensagens trazidas às escondidas pela sua Blockova polaca, estabeleceram contacto com as comunistas do campo de concentração. Algumas médicas checas, enviadas ao bloco para identificar as prisioneiras com tifo, deram-se a conhecer. As checas explicaram quem mais ali estava — as nacionalidades e os números —, como o campo estava organizado e que trabalho escravo se fazia. Até trouxeram às escondidas um jornal alemão. À noite, Yevgenia Lazarevna reunia as moças à sua volta em grupos e lia-lhes o jornal. Interpretando as notícias nazis, dizia que o Exército Vermelho estava a furar o cerco no exterior de Moscovo e que as baixas dos Alemães eram pesadas. Contava-lhes o que ia sabendo sobre o campo: iriam ficar isoladas durante várias semanas, mas depois teriam de trabalhar. As mulheres aqui cosiam peças de vestuário para o exército alemão. Havia uma grande fábrica que fazia componentes elétricas para armas — o Siemenslager. Klemm disse que enquanto estivessem de quarentena deviam todas aprender alemão. «Meninas», disse, «por agora, estamos rodeadas por arame, mas um dia os Alemães tirarão o arame e então terão de se misturar com mulheres de outras nacionalidades. Precisam de aprender a língua deles. Isso vai ajudar-vos na luta que virá.» Pediu a todas as que sabiam falar alemão que levantassem a mão e organizou o bloco em oitenta grupos de três ou quatro prisioneiras,

cada um deles com uma líder, e cada líder recebia a lição do dia de Klemm. Entre os beliches atravancados, começou a aprendizagem. «E ela dizia à Vera Bobkova: “Vera, lembra-te de que a frase alemã se constrói assim e assim”, e a Vera segredava o que a Klemm lhe tinha dito ao seu pequeno grupo», recordou Ilena Barsukova. Klemm também dava o seu apoio às mais jovens, algumas com dezasseis ou dezassete anos. Perguntava-lhes de onde eram e pelo que tinham passado, e se os seus pais ainda estavam vivos. «Vamos manter-nos juntas, meninas. Vocês estão comigo.» Lembrava-se dos pormenores das suas vidas. E sabia logo quem eram as filhas de comissars ou kulaks24 ou quem era filha de alguém que tinha servido sob os czares, e compreendia as diferentes «famílias» do campo, como já se autoapelidavam — a família de Moscovo, a família de Leninegrado, a família de Odessa. Por vezes, perguntava às jovens quais eram as suas receitas preferidas e dizia-lhes quais eram as suas. E depois lia um poema que Alexandra Sokova tinha escrito e falava sobre ele. Ou falava-lhes sobre as mulheres que tinham sido prisioneiras sob os czares e de como tinham sofrido e sobrevivido. «Contava histórias do passado para esquecermos o presente», disse Tamara Tschajalo. Lyusya Malygina, a médica que mergulhou no mar Negro, organizou um grupo para cuidar de Klemm. Mais velha do que a maioria, Klemm tinha as pernas inchadas e o tifo que contraíra anos antes deixara-a parcialmente cega de um olho. As suas ajudantes tratavam-lhe as feridas e arranjavam-lhe espaço no balneário. Algumas disseram que essas mulheres eram um comité eleito, mas a maioria disse que simplesmente queriam cuidar dela e ajudá-la. «Ela era a mãe de que eu sentia a falta», disse Tamara Tschajalo. Quando a quarentena estava a chegar ao fim e as mulheres tentavam ver para lá do arame farpado, repararam numa nova edificação que se erguia por trás do muro: uma chaminé gigante. Viam uma carroça puxada por seis mulheres a passar todas as manhãs com cadáveres empilhados. E viam as recém-chegadas a marcharem na direção dos blocos de quarentena nas imediações.

Inventavam alcunhas para as guardas, «corvos negros» que tinham «roupas extremamente bonitas» com cintos e calçado «da melhor pele». Uma guarda em particular aproximava-se do bloco para lhes berrar. Lyuba Konnikova, a prisioneira «de temperamento fogoso», chamava a essa guarda «a loura linda». As prisioneiras lá fora ainda continuavam a espreitar na direção do bloco soviético e viam as cabeças rapadas das mulheres, «sempre erguidas bem alto». Por vezes, ouviam-nas cantar. Mais tarde, muitas sobreviventes diriam — de facto, muitas insistiriam — que as mulheres do Exército Vermelho usavam o seu uniforme no campo. Talvez a desordem crescente no exterior simplesmente servisse para enfatizar a ordem das mulheres do Exército Vermelho quando chegaram. O inverno de 1942-43 foi duro e longo, deixando as mulheres exaustas e com doenças. No início de 1943, foram instituídos turnos mais longos. Em 20 de janeiro, Richard Glücks, o novo chefe dos serviços administrativos dos campos de concentração de Himmler, escreveu a todos os comandantes solicitando-lhes que «explorassem todas as oportunidades de manter a capacidade de trabalho dos prisioneiros». A falta de trabalhadores alemães atingira um nível crítico. Embora estivessem a reunir escravos do Leste, não eram em número suficiente. Até mesmo prisioneiras de Ravensbrück consideradas demasiado velhas ou doentes para trabalhar deveriam agora ser aproveitadas para tricotar meias para os soldados. Himmler prometera aos patrões da indústria que conseguiria colmatar a falta de mão de obra com trabalhadores dos campos de concentração. Foi planeada uma rede de novos campos de concentração satélite, cada um deles com uma fábrica onde trabalhariam prisioneiros. Em Ravensbrück, concebido originalmente para 3000 prisioneiras, encontravam-se agora 18 000 mulheres, e chegavam mais cada dia. Não só vinham do Leste como os números das que chegavam do Ocidente estavam também a aumentar. Em abril, chegaram 250

francesas, a quem foram atribuídos números na casa dos 19 000. Foram construídos mais blocos, mas a construção não conseguia acompanhar o ritmo das chegadas; de cada vez que surgiam mais mulheres, mais apertadas ficavam as prisioneiras. Onde a areia desaparecia nos caminhos, espalhavam-se cinzas. Formou-se um novo grupo de pinturas e os blocos toscos foram pintados de verde. O sistema de esgotos avariou-se, e formou-se um novo grupo de prisioneiras para tratar das canalizações, assim como um novo grupo para catar piolhos. Por todo o campo, havia cartazes a declarar «Piolhos=Morte». As prisioneiras eram regularmente forçadas a manter-se de pé nuas no exterior, até mesmo com neve, enquanto o seu vestuário e os cobertores eram queimados e os blocos fumigados com gás. Quando Langefeld foi despedida, as suas Blockovas favoritas — mulheres experientes, que sabiam como manter a ordem — foram atiradas para o bunker, entre elas Grete Buber-Neumann, que foi condenada a várias semanas de «detenção no escuro». Na ausência dessas mulheres, Ramdohr, o chefe da Gestapo, instituiu a sua própria forma de controlo, nomeando espias para se infiltrarem nos blocos. Segundo a comunista alemã Maria Apfelkammer, Ramdohr entrava diretamente num bloco e perguntava: «Há alguém interessada na sua liberdade?», e uma ou duas mulheres saíam da fila e seguiam-no — as suas novas Lagerspitzel (espias do campo). «A seguir, nunca mais voltávamos a falar com elas», disse Maria. Estas novas Spitzel nunca mais eram colocadas nos seus blocos, no entanto; eram enviadas para outros para espiar aí. As prisioneiras que trabalhavam nos serviços administrativos do campo de concentração sabiam quem eram as espias, porque tinham de alterar a sua documentação. Tentavam avisar as mulheres do novo bloco, mas, como também havia infiltradas nos serviços administrativos, era perigoso. As Spitzel denunciavam pessoas por qualquer coisa, particularmente por «organizarem». Com a crescente sobrelotação, a «organização» florescia, já que havia falta de tudo — palha para colchões, tigelas para a sopa e até mesmo roupa.

No início do verão de 1943, os uniformes de prisioneira já se tinham esgotado. Substituíam-nos as roupas das mulheres mortas. A cada semana, chegavam camiões de Auschwitz com as roupas de judias, removidas antes de elas entrarem nas câmaras de gás. Como essas peças de vestuário eram dadas às recém-chegadas a Ravensbrück, quando Grete Buber-Neumann finalmente saiu do bunker reparou em prisioneiras «a andarem de um lado para o outro nas ruas do campo vestidas com roupas coloridas de todos os tipos e não com vestuário às riscas. As ciganas em particular andavam tão vistosas como aves tropicais, com todo o tipo de peças coloridas». Reparou também que «o passo de marcha do regulamento, que a SS tivera tanto trabalho a ensinar, estava igualmente a desaparecer». Para as prisioneiras, o pior efeito da sobrelotação era a tortura crescente da Appell. Enquanto anteriormente se levantavam às seis, agora tinham de o fazer às quatro para poderem ser todas contadas, uma operação que chegava a durar três ou mais horas. E era tal o tamanho do campo que a nova chefe das guardas aparecia muitas vezes na Lagerstrasse de bicicleta, com a sua capa negra enfunada. Era a «bela besta».25 As soviéticas não tardariam a descobrir que se chamava Dorothea Binz. Por volta da altura da sua promoção, Binz fez uma visita à sua vila de Altglobsow numa carruagem puxada por um cavalo. Ilse Halter, uma das habitantes da vila, recorda-se de a ver aparecer na rua principal, com a sua capa negra a esvoaçar e com um cão e um chicote. «Ela achava-se muito importante», disse Ilse. «Eu penso que ela voltou para nos mostrar a todos o quão bem se tinha saído. As pessoas já tinham medo dela naquela altura.» «Porque é que tinham medo?», perguntei. «Porque eles faziam todos coisas terríveis lá em cima», disse Ilse, e fez uma pausa. «Sabe o que eles faziam? Leu sobre isso? Atiravam bebés ao ar para lhes darem tiros» — fez um gesto de atirar com os braços. Perguntei a Ilse onde tinha ouvido dizer isso. Acreditava que era verdade?

«Penso que sim», disse ela. «Oh, sim, acredito.» Em meados de abril de 1943, a vedação de arame à volta do bloco das mulheres do Exército Vermelho foi retirada e mandaram-nas marchar para o exterior para a sua primeira Appell. «Eram quatro da madrugada. Tinha estado a nevar. Perfilámo-nos lá fora em filas de dez e tentámos manter-nos juntas como um rebanho de ovelhas no tempo frio», escreveu Tamara Limakhina, uma das correspondentes de Antonina. Em seguida, as soviéticas tiveram de voltar a formar filas para a seleção dos grupos de trabalho e receavam serem enviadas para a Siemens para o fabrico de armamento, mas, tal como todas as recém-chegadas antes delas, foram enviadas para o Sandgrube. Para aquelas soviéticas serem usadas em trabalho útil, a sua força e o seu ânimo teriam primeiro de ser quebrados, e o melhor lugar para tal era o areeiro. No primeiro dia, Nina Kharlamova escorregou e o seu carrinho, cheio de areia molhada, ficou atolado na lama e virou-se; uma guarda bateu-lhe com o seu bastão até ela voltar a encher o carrinho. Mas o carrinho voltou a ficar atolado e a virar-se, e dessa vez Nina foi pontapeada e espancada até cair por terra. As soviéticas faziam turnos mais longos do que as outras prisioneiras e só tinham autorização para entrarem nos seus blocos depois da Appell do fim do dia, o que significava que após doze horas de trabalho tinham de ficar perfiladas ao frio e à chuva até cair a noite, com as roupas molhadas coladas ao corpo. Quando as autorizavam a voltarem para o bloco, Klemm e a poetisa Alexandra Sokova estavam à sua espera. Por serem prisioneiras mais velhas, tinham-nas posto a tricotar dentro do bloco. Yevgenia Lazarevna arranjava farrapos para ligar as feridas e as bolhas de Nina e dizia às mulheres que olhassem umas pelas outras: «Não se ponham em perigo. Procurem pequenas coisas que possam fazer para nos ajudar a todas. Se uma guarda estiver a tomar o pequeno-almoço, roubem o jornal e tragam-no.» E dizia-lhes para não acreditarem nos Alemães quando eles diziam que os Soviéticos

tinham perdido a batalha de Estalinegrado. «Ela soube antes de qualquer uma de nós que ganhámos», disse Nina Kharlamova. As médicas do Exército Vermelho foram deixadas a trabalhar no areeiro durante muitas semanas, mas algumas das outras soviéticas não tardaram a ser enviadas para as oficinas de costura, onde encontraram Gustav Binder, a quem chamavam «Girafa». «Subitamente, de máquina para máquina, há um murmúrio: “Vem aí o Girafa”, e todas as mulheres tremem agora, ficam pálidas e estremecem debruçadas sobre a sua máquina», escreveu Tamara Limakhina, recordando a cena a Antonina Nikiforova. Há silêncio total. Só se ouve o ruído das máquinas. A seguir, aparece no limiar da porta um SS alto, com o pescoço comprido de uma girafa. Depois de examinar lentamente todas as mulheres a trabalharem, dirige-se para a mesa onde há um monte de itens acabados e pega num par de calças e começa a examiná-lo, e o coração de todas as mulheres bate como o de um passarinho numa gaiola, e na cabeça de toda a gente há um pensamento: agora ele vai espancar alguém. A seguir, ele berra «Kolonnenführerin [líder de equipa], o que é aquilo, o que é aquilo?», apontando para o item. Uma mulher pequena, com um rosto pálido e adoentado, em passo lento mas constante, sem trair o medo que sente, avança para a mesa. Ninguém pode protegêla. Toda a gente sabe que ela vai ser espancada. Talvez até ficar meio morta. «O que é aquilo?» E fita, com o rosto vermelho de ódio, o rosto da mulher. «O que é aquilo?» e começa a bater-lhe com as mãos e com as botas com tachas de metal. Ela tenta proteger o rosto e salvar-se, mas isso enfurece ainda mais aquela besta, e, vermelho de raiva e a espumar, bate-lhe incessantemente nas costas, no rosto e no peito. A mulher está a sufocar como um cadáver e está deitada no chão e a sangrar do nariz e da boca, e então ele agarra no banco dela, e nesta altura já ninguém estava a costurar. Estava toda a gente de pé e com ódio e terror assistia a este espancamento. Nos seus corações havia lágrimas de ódio e de impotência e de humilhação e de dor interior. E depois ouviu-se um grito do chão, um grito de partir o coração da mulher que já não conseguia resistir mais tempo, e a besta, completamente sobressaltada, para e pousa o banco. Olha à sua volta atentamente para toda a gente, dá-lhe um último pontapé e depois berra: «Arbeit schnell.» E vai-se embora. Essas eram cenas frequentes. E nós, as mulheres que tínhamos combatido em Estalinegrado, só podíamos limitar-nos a assistir.

Muitas vezes, Binz aparecia à porta das oficinas de costura quando as mulheres formavam fila para sair e atacava-as — particularmente às mulheres do Exército Vermelho — berrando: «Porcas russas,

vocês marcham a vossa marcha russa, agora marcham para nós, suas porcas russas.» Um dia, atacou Ilena Barsukova, a enfermeira de Odessa. «Bateu-me na cabeça e nas costas, mas eu não chorei. Forcei-me a não chorar — não ali, à porta da oficina. Depois, quando regressei ao bloco, a Yevgenia Lazarevna estava à minha espera. Já lhe tinham contado. Sabia. E mal a vi desatei a chorar. E depois toda a gente desatou a chorar. Ela chorou também.26 Disse-me que no futuro devia evitar o olhar da SS. E depois juntámo-nos num grupo e planeámos como fazer pequenas sabotagens cosendo aberturas nos braços das peças ou cortando um elástico para que a peça se rasgasse, mas de modo a que ninguém notasse, o que era fácil nos casacos brancos de camuflagem.» Pouco depois, uma das prisioneiras da família de Moscovo escreveu um poema sobre Binz. Anna Stekolnikova guardou uma cópia, que tirou de uma gaveta no seu minúsculo apartamento no último andar de um prédio em Moscovo, onde estava escondido há setenta anos. Anna disse que o poema foi escrito por uma amiga chamada Lydia Gradzilowa e leu-o em voz alta. «Uma loura linda» Tu és tão linda, Com olhos azuis brilhantes e madeixas de cabelo, Mas se pudéssemos despedaçávamos o interior da tua alma E estrangulávamos o teu coração sedento de sangue. Lembras-te da moça que chicoteaste, de Jacqueline? Como pisaste Wanda, a moça polaca? Como torturaste a moça russa, Veronicka? Tu e o cão.

Perguntei a Anna se chamavam de facto Loura Linda a Binz no campo de concentração e ela disse: «Era antes cadela linda. Mas ela era linda — alta e elegante.» «Era uma sádica?» «Sabíamos que ela nos odiava a nós, as russas. Tratava as ucranianas de maneira diferente, mas quem fosse russa estava condenada. Sim, acho que ela era uma sádica, uma verdadeira sádica. Os olhos quase lhe brilhavam quando batia nas pessoas.»

Um dia, no entanto, Binz poupou a vida a Anna ao refrear o seu cão. Eu tinha estado a cavar areia no fundo do lago e estávamos a voltar para o campo em filas de cinco e alguém me fez uma pergunta e eu mexi os lábios. A Binz viu e berrou o meu número do campo de concentração e mandou-me ficar de pé em cima da pequena elevação junto ao hospital durante várias horas. E era sempre ventoso e terrivelmente frio ali, por isso as moças do meu bloco guardaram-me comida, mas depois apareceu a Binz com o cão e o cão saltou-me para cima e derrubou-me. E eu caí e ele começou a atacar-me, mas a Binz puxou-o para trás. Foi como se tivesse pena de mim e berrou-me: «Weg» — vai-te lá. Pouco depois, o cão morreu, e a Binz enterrou-o ali mesmo onde morreu, em frente de um dos blocos, e plantou flores na sepultura.

Olga Golovina deu-me um aperto de mão com a força de uma jovem e em seguida contou-me mais histórias sobre Binz e sobre a família de Moscovo. «No bloco, mantínhamo-nos sempre juntas, mas era difícil», disse ela, deitando a cinza do cigarro para um vaso com uma planta empoeirada. A sua voz era rouca, tinha o cabelo louro com uma ondulação permanente. Olga estava nos serviços de espionagem. A sua missão era descer de paraquedas por trás das linhas alemãs. Nunca saltara de paraquedas e nunca tivera treinos. Para atenuar o impacto na aterragem, tinha casca de árvore amarrada aos pés. Mostrou-me fotografias das suas amigas do Exército Vermelho. «No bloco, todas tínhamos alcunhas. Eu era a Pushkin por causa do meu cabelo encaracolado. E havia a Gata, e a Vera Samoilova era a Ursa, porque era embirrenta. A Alexandra Sokova era Graf [conde], porque por alguma razão tinha chegado de calças e porque era muito séria. Encontrávamo-nos ao serão.» A certa altura, o trabalho de Olga consistia em levar a gigantesca Kesselkolonne (carroça da sopa) da cozinha para o bloco. Um dia, enquanto puxavam a custo, a carroça virou-se e entornou-se café a ferver nas pernas da sua amiga Nadia, queimando-lhe a pele, mas Nadia continuou a andar até ao bloco, sabendo que se Binz soubesse o que tinha acontecido seriam todas mandadas para o bunker. Noutra ocasião, ela e as outras jovens empurraram a carroça para um monte

de cadáveres, empilhados como toros de madeira. «E eles caíram todos.» Olga mencionou Lyusya Malygina. «Tem de escrever sobre a Lyusya — tão linda e tão corajosa, a Lyusya salvou muitas vidas. Ela trabalhava no hospital e trocava nomes para nos salvar das listas de morte.» A Olga estava a par do julgamento de Simferopol?, perguntei, referindo-me ao julgamento no qual Lyusya Malygina e outros foram acusados de colaboração pela polícia secreta de Estaline. Ela acenou com a cabeça e perguntou-me o que eu sabia. Mostrei-lhe uma carta que tinha encontrado nas caixas de Antonina. A carta tinha sido escrita por Maria Klyugman, a cirurgiã do Exército Vermelho, outra das acusadas. Essa carta é o único registo escrito do julgamento conhecido; nela, Maria identifica os acusados e os seus acusadores, e três outras pessoas. Olga pediu para ver a carta, leu-a e pareceu ficar abalada. Sempre tinha constado que acontecera algo do género, disse, «mas ninguém sabia ao certo». Saiu para fumar mais um cigarro. «Mas não havia traidoras no campo», disse, quando voltou para a sala. «Não que eu as conhecesse. No campo éramos fortes, está a ver — nós, as moças soviéticas», e recordou um dia do aniversário da revolução de outubro em que Lyusya Malygina «saltou do seu beliche e se pôs a dançar», e uma francesa cantou uma ária. «A Yevgenia Lazarevna vinha sempre dizer: “Bom feriado, meninas.” Encorajavanos sempre a comemorar como pudéssemos.» No outono de 1944, Rosa Thälmann chegou ao campo de concentração. Era a mulher do famoso comunista alemão Ernst Thälmann, morto a tiro em Buchenwald em agosto desse ano. «Então, a Yevgenia Lazarevna disse: “Vamos fazer-lhe um bolo.” E fizemo-lo realmente. Davam-nos vinte e cinco gramas de margarina aos fins de semana e uma colher de compota e nós misturámo-los com pedaços de pão e fizemos um bolo que decorámos com flores roubadas à campa do cão da Binz.» No verão de 1943, Suhren instituiu uma nova regra segundo a qual aos domingos todas as prisioneiras deviam marchar pela

Lagerstrasse, não passear, para restaurar a disciplina e a ordem, perdidas desde a partida de Langefeld. As soviéticas — proibidas até essa altura de aparecerem na Lagerstrasse aos domingos — receberam igualmente ordens para marcharem. «As nossas beldades louras viram aquilo como uma oportunidade para se exibirem», disse Olga, rindo-se. «Passaram os vestidos a ferro pondo-os debaixo do colchão e aperaltaram-se. Até lavaram o cabelo com café. Depois, marchámos todas lá para fora como se estivéssemos numa parada militar e toda a gente nos olhou fixamente.» Dagmar Hajkova, a destacada comunista checa, fez um relato mais dramático no seu testemunho no pós-guerra. A marcha realizou-se num dia muito quente, disse ela. «Todas as superfícies do campo estavam cobertas por cinzas pretas. Era como se o campo estivesse envolvido num véu de luto. Vários milhares de mulheres com farrapos às riscas, com socos de madeira ou de pés descalços, marchavam em filas de cinco em nuvens espessas de poeira negra.» Ordenaram às mulheres que cantassem canções alemãs. Algumas checas tentaram cantar canções nacionais checas, mas as guardas mandaram-nas parar, por isso ficaram em silêncio. «Só as proletárias [associais] continuaram a cantar», disse Dagmar, «na maior parte dos casos canções populares sobre olhos azuis, lábios vermelhos e beijos. Era uma cena triste. Todas jovens, quase não pareciam seres humanos — sebentas, descalças ou com socos de madeira, a tropeçarem devido ao cansaço. Não era uma verdadeira marcha, de modo nenhum. Algumas coxeavam. Toda a gente ansiava pelo fim.» Mas então, subitamente, ouviu-se um som ribombante do outro lado do campo e toda a gente se virou para ver as 500 soviéticas a marcharem para a praça principal, alinhadas por altura e marchando em filas de cinco num passo perfeito de parada militar. Parados nos degraus da cozinha, o comandante e o seu pessoal estavam a assistir, pasmados. Da praça do campo, milhares de olhos de prisioneiras de todos os povos da Europa estavam também a observar as soviéticas. Quando chegaram ao centro da praça, começaram todas a cantar um hino de guerra do Exército Vermelho.

Cantavam com vozes límpidas e altas, uma canção atrás de outra. Avançaram para o centro da praça, rostos jovens, cabelo rapado em sinal de vergonha, mas com as cabeças bem erguidas: e toda a gente ficou paralisada. Continuaram a andar como se estivessem numa parada na Praça Vermelha em Moscovo, não num campo de concentração nacional-socialista.

O que Dagmar Hajkova diz que aconteceu a seguir parece provir da sua imaginação. As outras prisioneiras formaram uma guarda de honra para as soviéticas, afirma ela. «Milhares de mãos aplaudiramnas. As militares do Exército Vermelho começaram a cantar a canção dos Partisanos e todo o campo juntou a sua voz às delas.» Olga Golovina falara mais simplesmente de as jovens soviéticas se «exibirem». No entanto, o pessoal da SS ficou tão pasmado que não reagiu durante alguns minutos. «A Binz ficou ali à espera de um sinal», disse Hajkova. «Não tinham experiência anterior de um comportamento assim tão ousado. Demoraram algum tempo a enxotá-las de volta para as camaratas. Não tivemos autorização de voltar a sair dos blocos nesse domingo. Mas não sofremos uma punição em massa. A SS nem sequer comunicou esse acontecimento a Berlim. Não queriam que eles soubessem. E nunca mais voltámos a ter de marchar aos domingos.»

23 Embora essa doença fatal estivesse disseminada no campo de concentração, as prisioneiras raramente se queixavam de constipações ou de gripe. Quando fugia dos Alemães na Frente Leste, Ida Grinberg, uma médica do Exército Vermelho, dormia em ramos de pinheiros estendidos na neve. «Também então não apanhámos constipações.» Ida observou também que os homens usualmente eram muito mais fracos do ponto de vista físico, «e eu acreditava que tinham menos força de vontade do que as mulheres».

24 Os kulaks eram camponeses prósperos; muitos deles foram liquidados nos anos 1920 e 1930 durante o impulso bolchevique de coletivização da agricultura.

25 Esta alcunha é anteriormente atribuída a Irma Grese.

26 A descrição de mulheres a chorarem de Ilena Barsukova é uma raridade. «Vi muito poucas lágrimas no campo. Por alguma razão, as pessoas não choravam», disse Anna Stekolnikova.

CAPÍTULO 18 DOUTOR TREITE As mulheres do Exército Vermelho não tinham necessidade de recear serem enviadas para o Siemenslager. Segundo os termos da sua detenção, não podiam trabalhar fora dos muros do campo de concentração; também não podiam trabalhar no fabrico de armamento, já que era provável que protestassem. A Siemens não queria elementos perturbadores na sua fábrica, que no verão de 1943 estava já a ter um desempenho excecionalmente bom. O patrão da Siemens, Rudolf Bingel, estava tão satisfeito com a produção em Ravensbrück que em 1943 doou cem mil reichsmarks ao «círculo de amigos» de Himmler. Desde que a fábrica abrira um ano antes, tinha triplicado de tamanho, e mais de 600 mulheres trabalhavam agora em turnos de doze horas, incluindo um turno noturno. Faziam rolos de cobre, comutadores, microfones, equipamento telefónico e condensadores, que saíam em catadupa das linhas de produção, eram enviados para a oficina onde se davam os últimos toques e em seguida embalados e carregados em vagões de comboio. As mulheres não faziam uma ideia clara do uso que teriam essas componentes. «Pensávamos, será para um avião ou para uma arma?», disse a prisioneira búlgara Georgia Tanewa. Foi montada uma linha ferroviária na floresta a ligar a fábrica da Siemens a um ancoradouro no lago e daí à linha principal que passava por Fürstenberg. Havia igualmente planos para estabelecer uma ligação da fábrica a uma instituição para delinquentes juvenis do sexo feminino que se situava nas imediações, numa zona florestal chamada Uckermark. Dirigido pela polícia judiciária, não pela SS, o Campo da Juventude Uckermark, como viria a ser conhecido, albergava cerca de 400 adolescentes prisioneiras consideradas moral

ou sexualmente depravadas. Algumas prisioneiras de Ravensbrück disseram que, na maior parte dos casos, as jovens tinham cometido pequenos delitos: muitas tinham sido apanhadas a viajar de comboio sem bilhete. Como eram jovens e fortes, dariam com certeza boas trabalhadoras escravas, e por isso a Siemens negociou também a abertura de uma delegação da sua fábrica no Campo da Juventude. Ao fim de um ano em Ravensbrück, a direção da Siemens e a SS cooperavam já plenamente. Apareceram homens importantes trajados à civil na fábrica, entre eles o principal diretor da Siemens, Gustav Leifer, um outro membro da SS, que visitou Fritz Suhren nas suas instalações no campo de concentração, tendo Suhren visitado a sede da Siemens em Berlim. Otto Grade, o diretor da fábrica de Ravensbrück, tinha excelentes relações com Suhren e era frequentemente visto nas instalações centrais do campo de concentração. Tinha às suas ordens na Siemens dezenas de funcionários civis — técnicos, gestores e instrutores. Nem tudo na fábrica corria sobre rodas. A direção teve de proibir os contactos entre o pessoal civil e as prisioneiras. Uma comunista austro-checa, Anni Vavak, empregada na Siemens, tentara falar com o pessoal civil para o alertar para as atrocidades. «Eu queria absolutamente estabelecer contacto com esses civis», disse Anni. «Queria que esses trabalhadores alemães transmitissem o que eu lhes contasse para que as pessoas na Alemanha soubessem o que acontecia no campo.» Um punhado de gestores de alto nível parecia minimamente decente. Um homem da Siemens costumava esconder um jornal debaixo da sua mesa para as prisioneiras o encontrarem, e outro civil ofereceu-se para pôr no correio as cartas das prisioneiras. No entanto, como muitos dos civis da Siemens eram «grosseiros» e sentiam «repulsa» pelas prisioneiras, Anni não conseguiu aliciar nenhum. A maioria era também convictamente nazi. O chefe do Spulerei (departamento de bobinagem), Lombacher, era «ao mesmo tempo nazi e sádico», e não era o único. Até mesmo os mais bondosos alteraram o seu comportamento depois de receberem

novas ordens da direção da Siemens a proibirem todos os contactos. Uma dessas ordens chegou às mãos de Anni, «que amarfanhei na mão, e disse a mim mesma que as prisioneiras políticas estavam acima desta escumalha». Anni não disse o que constava do aviso, mas conhecemos a opinião da empresa sobre a confraternização através de um outro comunicado da direção, que consta dos arquivos. Frustrado pela paragem causada por uma falta de componentes, o gerente queixouse: «É incompreensível que as prisioneiras devam em certo sentido ser pagas por se aquecerem e descansarem nas nossas belas e limpas instalações. Os sentimentos de compreensão são inapropriados nestes casos e todos devemos constantemente suprimi-los em nós mesmos.» Os gestores da Siemens também se tinham queixado dos «sentimentos de compreensão» exibidos por Hertha Ehlert, uma das primeiras guardas na Siemens, que dava comida às prisioneiras, e que por consequência tinha sido removida e transferida pela SS para o campo de morte de Majdanek, na Polónia. Ehlert foi substituída na Siemens por Christine Holthöwer, que era conhecida por gostar de bater e que espiava a mando de Ludwig Ramdohr. Com o campo da Siemens a crescer, novas guardas foram recrutadas do pessoal da empresa em Berlim. Atraídas com promessas de mais dinheiro e comida, algumas tinham saudades de casa e detestavam aquele local. «Eu quis voltar para casa imediatamente», disse uma mulher, «mas disseram que eu tinha assinado, por isso tinha de ficar. Foi duro ao princípio. Nos primeiros oito dias, não conseguia engolir nada. Mas depois uma pessoa endurece.» A deterioração do estado de saúde das prisioneiras, causada pela alimentação abismal do campo e pela sobrelotação dos blocos, implicava substituições frequentes no pessoal da Siemens, mas não havia nada a fazer, já que, nos termos do contrato entre a Siemens e a SS, a responsabilidade pela alimentação e pelo alojamento das mulheres cabia à SS. Como um funcionário da Siemens disse:

«Como o alojamento e a alimentação estavam assegurados pelo campo, todas as medidas da nossa parte eram supérfluas.» A Siemens também não tinha de se preocupar com a saúde das trabalhadoras: ao abrigo do contrato com a SS, a empresa tinha o direito de retirar das suas listas as mulheres doentes, assim como quaisquer mulheres inadequadas que se portassem mal ou não atingissem a quota de produção estabelecida. Otto Grade, o diretor da fábrica, assegurava-se de que o número de prisioneiras rejeitadas ficava sempre registado nos seus relatórios mensais enviados para Berlim, bem como o número de novas substituições. A saúde das trabalhadoras era igualmente afetada pela longa marcha entre o campo de concentração e a fábrica, que faziam quatro vezes por dia. A distância dos portões até à vedação da fábrica da Siemens era de cerca de um quilómetro e meio, mas às prisioneiras parecia muito mais longa. Com socos de madeira que não lhes serviam, marchavam primeiro pela areia húmida ou pelo solo enlameado junto ao lago e em seguida enfiavam-se nos bosques e subiam uma colina íngreme, com os pés a enterrarem-se na terra e a escorregarem em folhas molhadas. Na neve e no gelo, as mulheres escorregavam e caíam. As trabalhadoras da Siemens partiam do campo de concentração — depois de se perfilarem para a Appell — com um pequeno-almoço só de café. «Chegávamos à Siemens enregeladas e começávamos a trabalhar com os dedos hirtos, o estômago sempre vazio, ensonadas», disse Anni Vavak. Para piorar a situação, quando as prisioneiras chegavam, os trabalhadores civis estavam muitas vezes a tomar o pequeno-almoço. «Sob o nosso olhar, sabendo que estávamos esfomeadas, tiravam todas as suas comidas deliciosas, de que nem sabíamos já o nome», recordou Minny Bontemps, outra mulher da Siemens. No regresso para o almoço, as mulheres só tinham tempo de agarrar numa tigela de sopa aguada com nabos e duas ou três batatas, mas o cumprimento das quotas de produção significava que as guardas as impeliam para fora antes de elas terem tempo de

comer e as conduziam pela colina acima berrando-lhes: «Mãos para baixo, bico fechado, suas idiotas, suas cadelas imundas sem préstimo!» Ao fim do dia, as mulheres exaustas regressavam ao campo e quando caía a noite iniciava-se o turno noturno na Siemens, das dez da noite às seis da manhã, sem sequer uma fatia de pão. As mulheres da Siemens sofriam de furúnculos, pernas inchadas, diarreia e tuberculose, mas as longas horas de tarefas repetitivas e a pressão constante para cumprir as quotas provocavam uma doença específica: tiques nervosos. «Ao fim de três meses, as mulheres eram uma pilha de nervos e não conseguiam continuar», disse Irma Trksak, uma prisioneira austro-checa. «Muitas começavam a preferir cavar areia ou até esvaziar valas.» As que ficavam com tiques nervosos não tardavam a serem consideradas inadequadas e eram rapidamente retiradas das listas. Selma van de Perre (cujo apelido de solteira era Velleman e a quem conheciam no campo como Margareta van der Kuit),27 uma prisioneira holandesa que chegou à Siemens no ano seguinte, disse que muitas mulheres na fábrica tinham colapsos nervosos. «Era uma das coisas terríveis — a loucura. Eu vi-a com muita frequência, começava assim», e pestanejou e piscou os olhos. «A seguir, começava o riso estranho.» Uma das afetadas foi uma jovem holandesa chamada Jacky van der Aa, que chegou com a sua mãe, Bramine. Mãe e filha eram de uma família da alta sociedade; tinham sido detidas por ajudarem a resistência holandesa, disse Selma. «Estavam perfeitamente bem quando chegaram. A Jacqueline era linda, tinha uns maravilhosos cabelos encaracolados, mas raparam-lhe a cabeça — foi a única do nosso grupo. Ela fartou-se de chorar.» Alguns meses depois de começar a trabalhar na Siemens, Bramine morreu de tifo depois de beber água de uma das torneiras na fábrica. A seguir, Jacqueline começou a dar sinais de um problema de nervos. «Reparei que eram frequentemente as mulheres de boas famílias que não eram capazes de aguentar. Não estavam acostumadas àquelas condições», disse Selma, que se recordava de muitos outros casos, entre eles o de uma

mulher chamada Everardina Hoetink. «Ela era advogada no Ministério da Alimentação antes da guerra. Lembro-me de ela me roubar o pão um dia. A seguir, começou a ter tiques. Era um fenómeno. Eu via sempre como começava.» Perguntei o que lhes acontecia. «Oh, as guardas reparavam quase logo e elas eram recambiadas para o campo e mortas.» Como Selma observou, o extermínio das «loucas» e de outras «bocas inúteis» nunca chegara a parar. Continuavam a ser dadas injeções letais na Revier. Depois dos grandes transportes que levaram mulheres para a morte em Bernburg no início de 1942, faziam-se seleções menores de tempos em tempos; os camiões chegavam de noite e levavam até cinquenta mulheres para serem exterminadas em câmaras de gás, provavelmente em Auschwitz. Os pormenores sobre estes transportes para a morte mais pequenos, que se tornaram conhecidos como transportes negros — ou transportes Himmelfahrt («com destino ao céu») —, são escassos, mas Gerhard Schiedlausky, o médico do campo de concentração, revelou algo do seu funcionamento no seu julgamento em Hamburgo. Os transportes negros eram disfarçados como «eutanásia» ao abrigo da mesma ordem 14f13 que regulamentava os extermínios por gás em Bernburg. Os médicos dos campos de concentração elaboravam um relatório médico dos selecionados, disse ele, e os próprios prisioneiros eram submetidos a um teste de inteligência para verem se eram «loucos» ou não. Na primavera e no verão de 1943, apareciam cada vez mais homens importantes à paisana na Appellplatz de Ravensbrück. Eram Meister da Heinker, da Daimler-Benz e de outras empresas de armamento que vinham selecionar trabalhadoras. Informados do sucesso da operação da Siemens — e encorajados por Himmler —, também eles queriam contratar trabalho escravo para as suas fábricas de munições. Ao contrário da Siemens, no entanto, a maior parte desses industriais detestava a ideia de localizar as suas fábricas tão perto de um campo de concentração; construíram-nas em

«campos-satélite» ou «subcampos» localizados a alguma distância de Ravensbrück, embora com trabalhadoras do campo central. A estudante polaca Maria Bielicka foi escolhida para trabalhar no primeiro campo-satélite de Ravensbrück. Em março, foi chamada com dezenas de outras à Appellplatz, onde os Meister se puseram a andar ao longo das filas a olhá-las fixamente. Depois, com cerca de outras cinquenta mulheres, foi levada para Nerolau, perto de Karlsbad, na Boémia, a cerca de 640 quilómetros a sul de Ravensbrück, para fazerem tigelas para os soldados numa fábrica de porcelana. Pouco depois, a Siemens construiu também um subcampo em Nerolau, e Maria fabricava componentes para aviões Messerschmitt. «Era muito duro. Lembro-me de ficar sem pele, porque tínhamos de meter as peças em fornos a escaldar.» A partida para Nerolau causou agitação no campo principal. Krysia mencionou-a numa carta secreta enviada para casa em que dizia: «Em 25 de março, várias dúzias de polacas foram enviadas para Karlsbad, uma fábrica de louça.» Na mesma carta, anunciava: «Em 30 de abril, mais cinco polacas foram mortas a tiro.» Pedia também um dicionário de francês, porque tinha chegado um grande grupo de francesas. No grupo de francesas encontravam-se Micheline Maurel, uma professora de literatura de Toulon, e Denise Tourtay, uma estudante de Grenoble, ambas capturadas em rusgas aleatórias para apanhar resistentes. Mal o seu grupo saiu da quarentena, também elas foram mandadas para a Appellplatz de Ravensbrück para serem examinadas por Meister. Esperaram onze horas sem comer até chegarem médicos para lhes examinarem as mãos e os pés, por razões que elas não compreendiam. «Escolheram-nos tal e qual como se fôssemos vacas numa feira de gado», recordou Micheline. «Até nos mandaram abrir a boca para nos olharem para os dentes.» A seguir, foi «Schnell, schnell», e berraramlhes e bateram-lhes para elas correrem até à estação, onde foram amontoadas em vagões de gado e levadas para Neubrandenburg, a cerca de cinquenta quilómetros a norte — «um local abandonado e

esquecido onde ninguém nos encontrará nunca». A introdução dos subcampos era o passo mais recente nos planos de Himmler de transformar o seu império de campos de concentração num centro de produção de armamento. O ministro do Armamento, Albert Speer, diria mais tarde que Himmler simplesmente estava a tentar apoderar-se de mais poder e dinheiro — «para edificar um estado dentro do estado», transferindo a produção para os seus campos. O certo é que o Reichsführer queria fazer render o investimento. Tal como no caso da Siemens, o custo do aluguer de mão de obra escrava nos campos satélite foi cuidadosamente calculado entre a indústria e a SS. A diferença era que, com os satélites tão distantes do campo principal, as empresas providenciavam o alojamento e a alimentação, sendo o seu custo deduzido do aluguer dos prisioneiros. Os contratos eram tão pormenorizados que numa das cláusulas do acordo entre Ravensbrück e a empresa Filmfabrik Agfa especificavase que a SS forneceria o vestuário das mulheres e a empresa os lenços de cabeça. Por vezes, havia alguma flexibilidade; por exemplo, se fosse requerida uma produção mais elevada, seria fornecida comida melhor às mulheres. E, tal como no caso da Siemens, quando a gerência considerasse que uma mulher estava demasiado exausta, «louca» ou doente para trabalhar, estava previsto no contrato que ela fosse automaticamente devolvida ao campo principal e que a SS a substituísse por outra. O aparecimento dos Meister na Appellplatz na primeira metade de 1943 provavelmente anunciou a mudança mais significativa na vida diária do campo desde a sua abertura quatro anos antes. A partir desse momento, as prisioneiras podiam receber ordem para se perfilarem no exterior a qualquer momento e serem conduzidas a destinos desconhecidos. No regresso dos seus grupos de trabalho ao fim do dia, as mulheres descobriam que amigas, irmãs, mães e filhas tinham desaparecido do campo e que, muitas vezes, nunca mais saberiam delas. No entanto, como algumas prisioneiras descobriram rapidamente,

também havia vantagens em trabalhar em subcampos. Há já algum tempo que as coelhas procuravam melhores maneiras de fazerem chegar as suas cartas ao exterior. Desde os protestos em massa de março, os médicos de Karl Gebhardt tinham passado a fazer as suas experiências em cães — os animais sacrificados eram vistos a serem levados para a Revier e a serem trazidos de lá — e as experiências em polacas pareciam ter sido suspensas, «se devido aos protestos ou à publicidade que lhes tinha sido dada não sabemos», escreveu Krysia. Mas aquelas mulheres ainda tinham muito a contar ao mundo e o espaço para a sua escrita invisível era limitado, especialmente para Krysia, que tinha encetado um comentário constante sobre os acontecimentos no campo de concentração e a identificação de criminosos de guerra. «O hospital é dirigido pelo Dr. Rosenthal, pelo Dr. Schiedlausky e por uma mulher, a Dra. Oberheuser», escreveu numa caligrafia minúscula nas costas de um envelope em abril de 1943. «É um local de crime; as crianças nascidas no campo são assassinadas. As pessoas que sofrem de choque nervoso ou de doenças mentais são mortas com uma injeção — do nosso transporte, Teodozja Szych (7908).» Noutra carta, escreveu palavras à volta das margens do envelope: «Construíram um crematório no exterior do campo, para não haver provas, como em Katyn.» Era uma referência ao massacre de 20 000 polacos numa floresta perto de Katyn em 1940, que, como se saberia mais tarde, não foi obra dos Alemães, mas dos Russos. Em todas as suas cartas, torna-se claro que o que Krysia mais receava era a execução iminente de todas as coelhas, «de modo que não haverá prova» das experiências. Insta a sua família, uma e outra vez, a contar ao mundo o que se passa, e em maio de 1943 propõe uma nova maneira de o fazer: «Algo que ajudaria a proteger-nos seria uma transmissão na rádio inglesa. A única coisa que pode detê-los é a revelação do segredo ao mundo. Continuaremos até ao fim, com certeza, se eles quiserem manter-nos vivas. Sinal, lápis no embrulho.»

A alusão de Krysia à «rádio inglesa» revela que em maio de 1943 ela sabia que uma tal transmissão era possível. Certamente, as autoras das cartas secretas tinham ficado a saber da existência de uma estação clandestina de rádio chamada «SWIT», que significa Amanhecer, que transmitia de Inglaterra para a resistência clandestina na Polónia e noutras partes do mundo. A Rádio Amanhecer foi criada em outubro de 1942 por membros da resistência polaca que tinham escapado para Inglaterra e tinha ligações com o Serviço Polaco da BBC — embora fosse distinta dele. O seu objetivo era proporcionar um meio de comunicar entre si às células da resistência clandestina na Polónia, que, na sua maioria, não tinham ligações estabelecidas, assim como uma ligação ao mundo exterior. A estação recolhia notícias da Polónia recebidas de mensageiros polacos que tinham conseguido sair ou enviadas por sinais codificados através de uma estação avançada na Suécia, que em seguida retransmitia as comunicações ao governo polaco no exílio em Londres. Depois de passarem pelos censores britânicos, os textos da Rádio Amanhecer eram levados a um estúdio de gravação em Milton Bryan, perto de Bletchley Park, o centro de descodificação do governo britânico no condado de Buckingham. Os operadores da SWIT transmitiam então as notícias diariamente para a Polónia. Outras notícias mundiais eram também transmitidas para que os Polacos pudessem manter-se a par dos desenvolvimentos na guerra a nível geral. Krysia deve ter ficado a saber da «rádio inglesa» através de mulheres polacas recém-chegadas a Ravensbrück. Antes de serem detidas, escutavam as transmissões da SWIT e decerto contaram o que sabiam às suas amigas no campo de concentração. Numa outra carta para casa, em julho, Krysia anunciou também que as coelhas tinham descoberto uma maneira melhor de fazer chegar a sua própria informação «ao mundo». No princípio do verão, duas delas foram encarregadas de fazer uma viagem uma vez por semana a um subcampo a cerca de vinte quilómetros a norte de

Ravensbrück, em Neustrelitz. A sua tarefa consistia em recolher encomendas especiais de alimentos deixadas em Neustrelitz para oficiais da SS de Ravensbrück e trazê-los para o campo. Durante as suas visitas, as mulheres descobriram que ao lado do subcampo de Neustrelitz havia um campo de prisioneiros de guerra (Oflag) cheio de oficiais polacos. Ao longo das semanas, acabaram por conseguir estabelecer contacto com eles. Os homens, que como prisioneiros de guerra podiam enviar cartas através da Cruz Vermelha Internacional, ofereceram-se para enviar as cartas das coelhas recorrendo ao correio da Cruz Vermelha. Começaram por enviar as cartas das mulheres para outro campo de prisioneiros de guerra dentro da Polónia, onde as famílias das coelhas poderiam ir buscá-las. Para explicar aquela combinação, Krysia escreveu para casa num envelope do modo usual, fornecendo pormenores sobre como ir buscar as cartas, e dizendo: Os rapazes enviaram uma lista das mulheres submetidas a operações e das que foram mortas a tiro, e poemas da Grażyna Chrostowska. São tipos de confiança. Devemos muito a estes rapazes. Para além de nos ajudarem na coisa mais importante, enviar as cartas, também nos arranjaram alguns livros polacos. Mandem notícias da Polónia em mensagens escondidas em bisnagas de pasta dos dentes.

Ao longo dos meses seguintes, os rapazes do Oflag enviaram várias cartas longas e as mulheres começaram a receber cartas da família, assim como livros e muito mais. Zofia Pociłowska, uma das instigadoras do plano, explicou como funcionava: Da primeira vez que estabelecemos contacto, eles viram-nos e disseram «Vocês são raparigas polacas?», e assim começou então. Eles viram que nós vínhamos a Neustrelitz todas as segundas-feiras e começaram a deixar coisas para nós em esconderijos, como por trás das sanitas. E nós deixávamos-lhes cartas e dizíamoslhes tudo o que estava a passar-se e do que precisávamos. Eu até consegui um par de óculos. E sim, arranjámos livros — livros maravilhosos.

Havia um rapaz chamado Eugeniusz Swiderski — a quem chamavam NiuŚ. «Ele era o intermediário. Por vezes, até nos encontrávamos, mas usualmente deixávamos as nossas cartas num frasco num buraco por trás de uma sanita e quando voltávamos havia

cartas para nós.» Zofia escondia as cartas dentro das roupas e rezava para que não a revistassem quando voltasse para o campo. Um dia, as mulheres descobriram que NiuŚ lhes tinha deixado a comunhão — pequenos pedaços de pão consagrados por um padre. Perguntei a Zofia se não tinha medo. Não tínhamos muito medo — éramos novas. Só pensávamos que queríamos que o mundo soubesse o que nos estava a acontecer. Por vezes até escrevíamos tudo o que estava a acontecer e enterrávamo-lo no campo, na esperança de que fosse encontrado mais tarde. Eu tinha uma espécie de fé e de otimismo de que não seria apanhada, por isso é que não tinha medo. E não me parece que as guardas suspeitassem sequer por um minuto. Nós não dizíamos a ninguém o que fazíamos, por causa das espias.

Eu disse-lhe que tinha tido conhecimento de que ela e NiuŚ tinham tido um caso amoroso, e ela riu-se. Disse que voltou a encontrar NiuŚ anos depois, em Varsóvia, numa reunião organizada por uma das sobreviventes. «Não, não foi um caso amoroso. Mas as pessoas pegavam comigo. Nós chamávamos-lhe Apolo.» No final do verão de 1943, Ravensbrück já dera origem a mais vinte subcampos e a Appellplatz transformava-se regularmente num mercado de trabalho escravo. Segundo Lotte Silbermann, que era empregada na cantina da SS, Fritz Suhren «organizava um banquete» de cada vez que os gerentes vinham ao campo de concentração. A Bintz e a Bräuning e os outros estavam sempre lá. Consumiam-se grandes quantidades de comida e de bebida, com vinho, champanhe e aguardente a rodos. Antes de os gerentes começarem a selecionar as prisioneiras, bebiam sempre muito na cantina. Nós tínhamos sempre receio nessas ocasiões de que eles ficassem bêbedos e brindassem à fraternidade e se pusessem a olhar para as empregadas.

Durante todo esse tempo, as mulheres do Exército Vermelho observavam o mercado de escravas e perguntavam-se quando seriam escolhidas. Se o fossem, concordaram que recusariam fabricar armamento, tal como já tinha acontecido em Soest. Quando uma guarda entrou no bloco do Exército Vermelho um dia e chamou

os nomes de várias médicas, elas recearam que tivesse chegado a sua vez de irem para os subcampos, mas apenas lhes disseram para se apresentarem no hospital do campo. Em vez de trabalharem como escravas, iriam trabalhar para manter as escravas vivas. Embora prisioneiras que eram médicas trabalhassem na Revier desde os primeiros tempos, nunca tinham sido autorizadas a trabalharem como médicas. Agora, no entanto, faziam falta médicos nos campos de concentração, quer fossem prisioneiros quer não. A razão era simples: a necessidade urgente da mão de obra dos prisioneiros para o fabrico de mais armas concentrara a atenção da SS no facto de os campos de concentração matarem os seus prisioneiros simplesmente através das condições de vida atrozes que proporcionavam. Como se previa que o fornecimento de trabalhadores escravos do Leste se esgotaria, dados os reveses na guerra, Himmler ordenou em dezembro de 1942 que «a taxa de mortalidade [nos campos] tem absolutamente de ser reduzida». Por conseguinte, no início de 1943 chegaram éditos aos comandantes para melhorar as condições de higiene e construir mais e melhores blocos. As condições deveriam ser melhoradas, não só nos campos de concentração mas também nos seus hospitais, e o número de médicos aumentado. Perante os factos, a ideia de Himmler tentar melhorar a saúde dos seus prisioneiros parece absurda. Em Auschwitz, novos crematórios com câmaras de gás extra foram abertos em Birkenau, as instalações de extermínio do campo. No final de abril, o novo crematório de Ravensbrück já estava em funcionamento; a visão da chaminé a erguer-se acima do muro sul era um sinal claro de que estava prestes a verificar-se um aumento do número de mortes. Contudo, esse aumento, tanto das mortes como do trabalho, era consistente; simplesmente, as regras eram mais claras do que antes. Desde que os prisioneiros estivessem aptos para o trabalho, deveriam ser mantidos vivos. Logo que se revelassem inúteis, teriam de morrer para não se desperdiçarem recursos com a sua

alimentação e o seu alojamento. O princípio não se aplicava aos campos de morte — Sobibor, Treblinka, Belzec —, cujo único objetivo era matar judeus. No entanto, era tal a necessidade de mão de obra que em 1943 já os judeus enviados para Auschwitz estavam também a ser desviados das câmaras de gás em número crescente e postos a trabalhar, se fossem considerados suficientemente úteis. Os médicos eram agora considerados diretamente responsáveis por manterem vivos mais prisioneiros. Richard Glücks, o chefe do Inspetorado dos Campos de Concentração de Himmler, tinha até escrito diretamente a todos os médicos da SS no início de 1943 a queixar-se de que estavam a morrer demasiados prisioneiros — dos 136 000 que haviam chegado aos campos de concentração no ano anterior, 70 000 já tinham morrido. «Com uma taxa de mortalidade assim tão alta, nunca atingiremos o número de prisioneiros requeridos [para o trabalho] pelo Reichsführer.» Em 27 de abril de 1943, Himmler emitiu uma nova instrução a apelar à redução das taxas de mortalidade; de futuro, só os loucos seriam exterminados, ou, nas palavras da sua ordem, «... só os que sofram de doença mental devem ser selecionados pela comissão médica no contexto da operação 14f13. Todos os outros prisioneiros incapacitados para o trabalho (os que têm tuberculose, os acamados, etc.) estão em princípio excluídos desta operação. Aos acamados deve ser dado trabalho que possam fazer deitados. A ordem do Reichsführer deve ser escrupulosamente obedecida». Manter mais prisioneiros vivos obviamente implicava mais médicos e, como aumentava o número de médicos da SS a serem enviados para a frente de combate, fazia sentido recorrer a prisioneiros habilitados para os substituir, o que explica a razão por que as médicas do Exército Vermelho foram subitamente convocadas. Mas as médicas do Exército Vermelho em Ravensbrück não tinham tanta certeza de que devessem aceitar o trabalho; não eram só as polacas que encaravam a Revier como «um local de crime». Lyuba Konnikova declarou que recusaria. «Eu não queria fazê-lo», diria mais tarde. «Nós sabíamos que na Revier as pessoas eram espancadas,

mutiladas e exterminadas com injeções. Sabíamos que o Rosenthal e o Schiedlausky pontapeavam as prisioneiras com as suas botas.» No entanto, Yevgenia Klemm disse-lhes que havia também boas razões para aceitar aquele trabalho: poderiam usar as suas capacidades para salvar vidas e levar medicamentos à socapa. No hospital, estabeleceriam contactos por todo o campo e recolheriam informações. E as condições no hospital estavam a melhorar rapidamente no verão de 1943. Na sequência do édito de Himmler, passaram a estar disponíveis mais medicamentos e a Revier expandiu-se, de dois blocos para seis. Pouco depois de as mulheres do Exército Vermelho começarem a trabalhar ali, os odiados médicos Schiedlausky e Oberheuser deixaram Ravensbrück, e o Dr. Rosenthal foi despedido e mais tarde levado a julgamento, acusado de ter tido relações sexuais com a prisioneira parteira Gerda Quernheim, a quem tinha feito pelo menos dois abortos. No final de agosto, chegou um novo médico a Ravensbrück. Diziase que ele preferia curar a matar. Percival Treite não apresentava nenhum dos traços usuais de um médico de um campo de concentração; usava bata branca em vez de uniforme da SS e trazia um estetoscópio em vez de um chicote ou de um bastão. Tinha trinta e dois anos e era louro e magro. Não batia nem pontapeava as suas pacientes e raramente se dava ao trabalho de as insultar. Treite tinha até um ar correto e profissional — mais apropriado à Faculdade de Medicina da Universidade de Berlim, onde tinha acabado de completar os seus estudos médicos, do que à Revier de um campo de concentração. Parecia também interessado em passar os seus conhecimentos à prática. Os modos de Treite deviam-se tanto ao meio familiar de que provinha como à sua formação profissional. Para homem da SS, tinha uma árvore genealógica pouco usual: quando lhe pediram para identificar as suas raízes para o registo genealógico da SS, apareceu um ramo inglês. A sua formação era também pouco usual: criado na

crença do Exército de Salvação, marchava desde a infância com o exército de Deus. Foi o avô alemão de Percival, um batista devoto chamado Carl Treite, quem formou os laços ingleses da família. Na década de 1890, a viver no Norte da Alemanha, Carl apaixonou-se por uma jovem inglesa, Louisa Foot, de Southampton, que conheceu quando ela estava na Alemanha a trabalhar como precetora de crianças. Como Carl diria mais tarde: «Deus conduziu-me então a Inglaterra», onde se casaram, e o casal instalou-se em Lewisham, no Sudeste de Londres, e caiu sob a influência de William Booth, o fundador do quase militar Exército de Salvação. Booth usava uniforme para pregar aos pobres à porta do pub Blind Beggar e daí a pouco tempo Carl Treite estava também a instar os desfavorecidos de Londres a «sofrer pelo Senhor». Ansioso por levar a mensagem à sua terra natal, Carl e Louisa, agora com três filhos pequenos, entre eles o pai de Percival, regressaram à Alemanha, onde os sermões de Carl sobre as virtudes da disciplina e os vícios do álcool foram inicialmente criticados. Quando ele morreu, no entanto, o Exército de Salvação já tinha delegações em muitas cidades alemãs, e Percival Treite, o pai do médico, instalou-se em Kiel, onde se tornou tenente-coronel e fundou a primeira banda de sopro do Exército de Salvação alemão. O jovem Percy e a sua irmã Lily marchavam com a banda e seguiam todos os princípios da fé, que, antes de Hitler, incluíam o pacifismo e a crença na santidade da vida humana. Em meados da década de 1930, a mãe e a irmã de Percy abandonaram a Alemanha nazi para irem viver para a Suíça, onde um tio fundou outra missão do Exército de Salvação; mas, com uma carreira médica em mente, Percy ficou em Berlim. Tendo aderido ao Partido Nazi e à SS — embora tardiamente — acabaria por se especializar em ginecologia na Universidade de Berlim. Cirurgião de primeira — tinha «boas mãos» —, Treite viajou em seguida, estudando com eminentes professores e passando algum tempo em Praga e em Berna. Em 1943, estava prestes a obter uma cátedra em

Medicina em Berlim, mas antes de poder completar a sua experiência cirúrgica prática para ter as qualificações necessárias, ordenaram-lhe que ocupasse um posto em Ravensbrück. A nomeação atrasaria a sua carreira, mas ele aceitou o lugar com entusiasmo e reorganizou a Revier. Treite criou imediatamente um bloco para doenças infeciosas para o tratamento do tifo, da escarlatina e da difteria, assim como um bloco para doenças de pele e outro para disenteria. Solicitou até a construção de um laboratório de patologia e de uma morgue na cave do bloco principal da Revier, argumentando que era importante saber as causas de morte. Um sistema de locais para a mudança de pensos nos blocos foi uma tentativa de debelar o problema crescente de pernas inchadas e de furúnculos e de reduzir as filas na Revier principal. Para racionalizar o uso das camas de hospital, Treite montou um sistema de Bettkarten, cartões de cama. Às prisioneiras que faziam fila para ver o médico poderia ser dado um Bettkarte para um certo número de dias. Aos pés de cada cama estava pendurada uma tabela com a temperatura da doente, com setas a apontarem para cima ou para baixo de modo a que fosse claro quando a paciente estava suficientemente recuperada para voltar ao trabalho. Um sistema de cartões cor-de-rosa foi outra inovação: as mulheres demasiado idosas ou débeis para fazerem trabalhos pesados podiam solicitar um cartão cor-de-rosa, que lhes permitiria trabalhar dentro do seu bloco. O sistema formalizava o estatuto de «tricotadeiras», já autorizadas a trabalharem nos seus blocos, e seguia também as instruções mais recentes de Himmler de que, em vez de as prisioneiras acamadas serem exterminadas, se encontrasse trabalho útil para elas fazerem. Poucas semanas depois da chegada de Treite, a Revier estava transformada. Uma nova Oberschwester (enfermeira-chefe) chamada Elisabeth Marschall assumiu a chefia da equipa de enfermeiras do campo de concentração, que, com os seus uniformes castanhos e lenços brancos, tiveram de entrar na linha. Treite ordenou que todas as enfermeiras aprendessem técnicas básicas de lavagem das mãos

e que usassem um termómetro pendurado por um fio ao pescoço. Até mesmo Milena Jesenska, nos escritórios da Revier, ficou bem impressionada. Treite tratou Milena com amizade desde o início; reconhecendo o nome, descobriu que o seu pai era o mesmo Professor Jan Jesensky com quem ele tinha estudado cirurgia oral na Universidade de Praga. Treite não tardaria a tratar também Milena, que adoeceu de tal maneira no verão de 1943 que ficou com a certeza de que ia morrer. «Depois da sua doença, ela examinou o rosto no espelho da enfermaria e anunciou que parecia tal e qual o macaquinho doente que pertencia ao tocador de órgão que costumava parar a sua carroça junto à casa dela em Praga», disse Grete Buber-Neumann, que desde o seu regresso do bunker partilhava mais uma vez um colchão com Milena no Bloco 1. Em agosto, as amigas checas de Milena fizeram-lhe uma magnífica festa de aniversário num dos seus blocos, «como se também elas pensassem que seria o seu último». Uma mesa no quarto da Blockova estava carregada de presentes. «Todas as que a adoravam estavam lá — bailarinas, escritoras e músicas checas — e tinham-lhe feito presentes, como, por exemplo, pequenos lenços de mão bordados com os números das prisioneiras e minúsculos corações feitos de pano com o nome Milena. Já muito fraca, a Milena comoveuse até às lágrimas.» Pouco depois, Milena falou a Treite da sua doença. Segundo Grete: Ele tratou imediatamente Milena com a maior civilidade e examinou-a e diagnosticou um rim ulcerado, dizendo que a operaria, o que fez com a maior aptidão, e durante algum tempo ela recuperou algumas forças. Ela sentiu confiança nele quando ele lhe disse que durante os seus tempos de estudante em Praga assistira às lições do pai dela, e ele transferiu o respeito que sentia pelo pai para a filha.

Sob a direção de Treite, a Revier tornou-se rapidamente o local mais internacional no campo de concentração. A enfermeira checa Hanka Houskova foi admitida como «intérprete milagrosa», porque falava seis línguas. As médicas soviéticas trabalhavam em várias enfermarias, enquanto as checas dirigiam a farmácia. O gabinete dos

raios X tinha radiologistas polacas e havia jugoslavas a trabalharem no laboratório de patologia. Entre as prisioneiras que trabalhavam na Revier encontravam-se também uma parteira belga e uma enfermeira francesa. Até a Oberschwester, Marschall, falava francês. Treite andava sempre à procura de novos talentos. Por vezes, deslocava-se à Appellplatz quando chegava um novo transporte e mandava aos berros que as médicas erguessem a mão. Se uma mulher lhe causasse uma boa impressão, como foi o caso de Zdenka Nedvedova, esperava até ela acabar o período de quarentena e em seguida dirigia-se ao bloco dela e mandava que a levassem para a Revier antes de ela ser transferida para um subcampo. Zdenka Nedvedova chegou em agosto com um dos primeiros grupos de prisioneiras a serem transferidas de Auschwitz para Ravensbrück para trabalharem num novo subcampo. Filha de um eminente músico e filósofo checo, também ela tinha estudado em Praga, onde se especializara em pediatria. Foi detida em 1940 por atividade antifascista e enviada para Auschwitz, com o marido, que ali morreu de tuberculose. Embora as prisioneiras soubessem já bastante sobre Auschwitz nesta fase, a aparência das prisioneiras de Auschwitz na Lagerstrasse de Ravensbrück provocava um pasmo horrorizado. Muitas tinham sobrevivido a uma epidemia recente de tifo, que devastara o campo das mulheres em Auschwitz. «Até mesmo os guardas da SS nos observavam em silêncio, abalados pelo nosso aspeto», diria Zdenka mais tarde. «Estávamos magras e carecas, com olhos enormes, assustados, ausentes.» Para Treite, no entanto, o facto de Zdenka ter sobrevivido ao tifo tornava-a uma melhor candidata para o seu hospital: estaria imune e poderia trabalhar com prisioneiras infetadas. Para Zdenka, Ravensbrück foi uma surpresa agradável. Acima dos muros do campo de concentração, via as copas das árvores. Dentro, o campo parecia limpo. «Era muito diferente do ar despido de Auschwitz. Pensei: isto não é um campo de concentração, é um sanatório.» Na quarentena, as mulheres de Auschwitz ficaram

atónitas com a água corrente, fria, e a comida «fornecida em quantidades razoáveis». Ficaram ainda mais atónitas ao saberem que em Ravensbrück as mulheres de idade tricotavam meias de lã nos seus blocos e que havia um salão de cabeleireiro e uma boutique de roupas de moda para as mulheres da SS. À primeira vista, pareciam verificar-se menos práticas médicas horríficas — tais como experiências de esterilização — do que em Auschwitz.28 O mais incrível de tudo para Zdenka era a Revier do campo de concentração, e quando viu o alojamento das prisioneiras médicas mal queria acreditar nos seus olhos. Treite não só tinha mandado arranjar o hospital como tinha insistido nas melhores condições para as prisioneiras que ali trabalhavam. A higiene em particular deveria seguir os padrões mais elevados, especialmente porque aquelas mulheres teriam de trabalhar ao seu lado. Zdenka recordou: A roupa de cama era regularmente lavada e parecia haver um bom fornecimento de medicamentos. Deram-me dois conjuntos de roupa interior e um vestido em condições, e até podíamos tomar um duche quente. E todas parecíamos elegantes nas nossas fardas azul-escuras com pintas brancas e mangas curtas, enquanto os médicos da SS usavam batas brancas e as enfermeiras lenços brancos na cabeça. O hospital tinha aquecimento e dormíamos em camas de campanha limpas e tínhamos uma casa de banho e a nossa própria sala de jantar agradável e um pequeno jardim onde podíamos tomar banhos de sol nuas no verão. Foi uma alegria momentânea.

Nem todas as prisioneiras médicas reagiram desta maneira às suas condições luxuosas. Para algumas, o fosso entre os seus privilégios e a miséria lá fora era insuportável. A repugnância de Lyuba Konnikova pelo contraste devia estar patente no seu rosto jovem, já que a Oberschwester Marschall a acusou de insolência, chamando-lhe «vaca bolchevique», e lhe atribuía o trabalho mais sujo. Recusando-se a reconhecer que, com apenas vinte e quatro anos, Lyuba pudesse ser médica, Marschall mandava-a limpar o chão no bloco da disenteria e despejar arrastadeiras, e, uma vez cumpridas essas tarefas, ela tinha de levar o almoço à Oberschwester. Embora a reação de Lyuba fosse compreensível, quando ela falou com Yevgenia Klemm esta instou-a a não perder a esperança. A

cedência a que as médicas soviéticas tinham sido forçadas traria benefícios, disse Klemm. Só por trabalharem na Revier já tinham conseguido salvar vidas e trazer medicamentos às escondidas para os blocos. Maria Klyugman tivera até a oportunidade de suturar a perna de uma das coelhas polacas, realizando-lhe uma operação sob anestesia e removendo grandes lascas de osso da ferida. O mais importante, talvez, eram as informações que as médicas soviéticas recolhiam e traziam a Klemm. Através da rede do hospital, Maria Klyugman estava agora em contacto regular com Maria Wiedmaier, a líder comunista alemã, que lhe trazia jornais às escondidas, e Maria Petrushina, um dos elementos da «família de Moscovo», arranjara emprego no grupo das canalizações, que, juntamente com o «Sturmkolonne» — como o grupo de carpintaria de Hanna Sturm era agora conhecido —, era o mais bem informado. O facto de Klemm estar cada vez mais bem informada tornou-se vital para o bloco das soviéticas, como Zoya Savel’eva explicou: Ela sabia dizer-nos o que estava a acontecer na frente de combate e quem estava prestes a chegar ao campo. Vinha falar connosco à noite: toda a gente se apinhava à volta dela e ela tirava um jornal inteiro, como que por magia, e explicava-nos o seu conteúdo. Por vezes, lia o futuro nas cartas. As moças corriam para ela e diziam: «Vá lá, Yevgenia Lazarevna, mostre-nos o futuro», e ela ria-se e fazia-o.

Ela acreditava nas cartas?, perguntei. «Talvez. Ela acreditava em muitas coisas», disse Zoya. «Não era uma pessoa simples. Acreditava em Deus.» «Mas era comunista?» «Sim, isso também. Mas acreditava principalmente no conhecimento. Tem de compreender que o conhecimento era tudo para nós. Nós não sabíamos nada, mas a Yevgenia Lazarevna tinha o conhecimento e a fé. Dizia-nos que sobreviveríamos e que voltaríamos para casa, e como tudo se desenrolaria.» E por mais divididas que algumas das médicas se sentissem por terem de trabalhar para a SS, as prisioneiras sentiam-se encantadas. Uma outra alteração que chamou a atenção de Grete Buber-

Neumann quando saiu do bunker nesse verão foi que a Revier tinha perdido os seus terrores — em grande medida porque as prisioneiras médicas estavam a trabalhar lá. Embora algumas das mulheres favorecessem «descaradamente» as doentes da sua própria nacionalidade ou do seu grupo político, «a maioria dava o seu melhor, com grande dedicação, em circunstâncias extraordinariamente difíceis», disse Grete. Inka, uma estudante checa de Medicina, tratou Grete de um ataque de furúnculos. Grete receara dirigir-se a ela ao princípio, porque ela era uma comunista ferrenha «e com certeza me consideraria escumalha», mas Inka foi «verdadeiramente amigável» e tratou Grete com grandes cuidados. «As condições em que trabalhava eram abismais. Não tinha um consultório devidamente apetrechado e as ligaduras estavam empilhadas à sua volta com as pacientes em fila entre a montanha de beliches.» Inka e Grete deram-se tão bem que Grete regressou várias vezes, em parte para ouvir os mexericos de Inka sobre as comunistas do campo, e um dia Inka disse a Grete que havia uma nova líder comunista no campo chamada Yevgenia, que, nas palavras de Grete, «indicava a toda a gente a linha do partido». Grete nunca chegou a conhecer Yevgenia Klemm. Se tal tivesse acontecido, os seus preconceitos poderiam ter-se desvanecido. De todas as prisioneiras médicas recrutadas para a Revier de Treite no verão de 1943, foi Zdenka Nedvedova quem se tornou a mais popular. «A Zdenka, onde está a Zdenka?», era agora um grito familiar na Revier, e foi um grito que se ouviu na noite em que uma recém-chegada francesa desmaiou no seu bloco. O número de francesas tinha vindo a aumentar ao longo do ano, e em outubro Germaine Tillion chegou com um grupo de cinquenta mulheres de Paris. Germaine adoeceu imediatamente e não conseguia comer nem falar. A sua Blockova levou-a à Revier, onde ela aguardou, caída no chão, até um médico de bata branca, que mais tarde ficaria a saber que era Percival Treite, aparecer e lhe tocar com o pé — não brutalmente, mas para que ela se levantasse. «E olhando para mim

com um ar distraído, disse: “Kein Scharlach — raus” [não tem escarlatina — fora]», e ela foi enviada de volta para o seu bloco. A Blockova de Germaine contactou as prisioneiras médicas checas e à noite levaram-na a Zdenka — «ela tinha um rosto jovem e sério e cabelo branco» —, que lhe diagnosticou difteria. As mulheres não trocaram palavra, mas a médica checa tratou a etnóloga francesa — Germaine era uma conhecida especialista de tribos africanas — com um soro. Germaine foi internada na enfermaria de difteria no bloco de doenças infeciosas. Mais tarde, refletiria na sorte que tinha tido de ser internada numa das raras ocasiões em que se salvavam vidas. «E via-se o poder de pequenos grupos de mulheres corajosas, que eram capazes de salvar a vida de outra pessoa sem sequer trocarem uma palavra com ela, porque, provavelmente, nem sequer falavam a mesma língua.» Ao longo dessas semanas, continuaram a chegar prisioneiras de um número crescente de países. Incluía-se nesse número um contingente da Noruega, no qual vinha Sylvia Salvesen, uma mulher de cinquenta anos que não era médica, mas que era casada com um médico conhecido de Oslo. Ao passo que Zdenka, chegando de Auschwitz pouco antes, se sentiu agradavelmente surpreendida ao ver Ravensbrück, as mesmas cenas horrorizaram Sylvia, chegada da prisão na Noruega. No depoimento que prestou no julgamento de Hamburgo em dezembro de 1946, a descrição das suas primeiras impressões foi tão vívida que o tribunal ficou enfeitiçado pelas suas palavras: Isto para mim era como olhar para uma imagem do inferno. Porque é que eu deveria usar essa palavra? Não porque tenha visto algo de terrível a acontecer naquela altura, mas porque, pela primeira vez na minha vida, vi seres humanos que não conseguia saber se eram homens ou mulheres. Tinham a cabeça rapada, estavam magras, infelizes e imundas. Mas isso não foi o que mais me chamou a atenção. Foi a expressão nos seus olhos. Tinham aquilo a que eu chamaria olhos mortos.

Sylvia estava a perfilar-se com as outras recém-chegadas para o

seu «exame médico» quando passou uma maca com um corpo embrulhado num lençol branco. O lençol caiu para trás e ela viu o rosto de uma norueguesa de dezassete anos que tinha chegado com ela. A jovem tinha morrido de tifo. Aquele local era «como nenhum outro hospital à face da terra», pensava Sylvia, resolvendo tentar fazer alguma coisa para ajudar, quando um homem de bata branca se aproximou e ela arranjou coragem para falar, perguntando se poderiam dar-lhe trabalho ali. Treite parou, espantado, e disse: «Que impudência», mas Sylvia disse: «Não sou impudente, sou norueguesa e sou mulher de um médico. E enquanto aqui estou gostaria de ajudar.» Nesta mulher alta, elegante, com grandes olhos azuis, cabelo grisalho e um alemão impecável, Treite reconheceu uma prisioneira com alguma distinção. Ordenou-lhe que se apresentasse à Oberschwester, que a encarregou de pôr ligaduras em feridas. Ao verificar as credenciais do marido de Sylvia, Treite descobriu que o Dr. Harald Salvesen era médico do rei deposto da Noruega Haakon VII e que a família tinha fortes laços com a aristocracia britânica. Além disso, não tardou a tornar-se evidente que Sylvia também tinha contactos nas mais altas esferas da Alemanha. Uma jovem sofisticada veio visitá-la um dia, acompanhada por oficiais da Gestapo; o boato entre os guardas da SS era que a visitante tinha tido autorização do próprio Himmler para vir a Ravensbrück. Ser «de boas famílias» influenciava as decisões de Treite na nomeação de certas prisioneiras. Pouco depois de Sylvia chegar, uma prisioneira suíça no bloco da tuberculose — o Bloco 10 — foi enviada a Treite para ser diagnosticada. O seu nome era Carmen Mory, e ele perguntou: «É filha do médico suíço Mory?» Ela respondeu que sim. Treite disse a Carmen, que era jornalista, que o seu pai tratara a mãe dele na Suíça vinte anos antes, e, vendo que Carmen trabalhara antes para o Manchester Guardian, mencionou também as suas ligações com Inglaterra. Treite tratou a doença de Carmen e mais tarde usou a sua influência para lhe obter o lugar de Blockova do Bloco 10, um dos novos blocos da Revier.

Até mesmo os antecedentes familiares das russas eram de interesse. Quando Antonina Nikiforova, a patologista do Exército Vermelho, chegou alguns meses mais tarde, Treite ficou vivamente impressionado com as suas capacidades de dissecação e perguntoulhe quem a tinha ensinado. Ela estudara em Leninegrado, respondeu, e quando disse o nome do seu professor, Treite perguntou: «Era judeu?» Treite encorajava este séquito de mulheres inteligentes com afinidades a congregar-se à sua volta e gostava que elas o ajudassem no seu trabalho. «Treite entrava frequentemente na sala de operações e dizia que lhe apetecia operar», disse Zdenka. «Observava uma mulher à espera de dar à luz e sem qualquer aviso realizava uma cesariana e fazia partos com fórceps e outros instrumentos.» Por vezes, convidava Sylvia Salvesen a entrar na sala de operações só para o ver trabalhar. «Achei que poderia interessarlhe, Sylvia», disse-lhe uma vez. Para o resto das prisioneiras, as mulheres que trabalhavam na Revier eram uma elite. Nelly Langholme, uma jovem norueguesa que chegou ao mesmo tempo que Sylvia Salvesen, disse que as norueguesas comuns da classe operária tinham pouco que ver com as que trabalhavam na Revier. Sylvia, uma sua compatriota, e amiga do rei da Noruega, vivia «numa parte da classe alta do campo» e nunca ia ao bloco norueguês. «Exceto um dia, em que veio com uma grande caixa de bombons», recordou Nelly. «Eu estava deitada no terceiro colchão do beliche e recordo-me do cheiro daqueles chocolates. Mas ela não nos ofereceu nenhum.» Perguntei porque é que Sylvia teria trazido os chocolates se não tencionava oferecê-los, ao que Nelly fungou e disse que, provavelmente, Sylvia «só queria mostrar-nos que os tinha». Verdadeira ou não, a explicação de Nelly revela como os mais profundos ódios de classe podiam sobreviver no campo de concentração, mesmo entre um pequeno grupo nacional. «Penso que os recebeu de algum visitante da classe alta», disse Nelly, «e a minha amiga Margrethe ficou tão furiosa que se chegou a ela e pregou-lhe

uma bofetada.» Indubitavelmente, as mulheres da Revier desfrutavam de uma certa proteção de Treite; depois de o pessoal da SS sair da Revier ao fim do dia, as prisioneiras poderiam até arranjar uma oportunidade para se encontrarem e conversarem. Ocorreu uma dessas conversas no princípio do outono de 1943, quando, segundo a comunista checa Synka Suskova, se desencadeou uma discussão acesa envolvendo Milena. «A conversa desviou-se para a partilha de notícias da guerra lá fora e para tentarmos adivinhar se seriam os Americanos ou os Soviéticos a chegarem primeiro ao campo, e que país oferecia às pessoas um futuro melhor.» Synka recordou-se de duas polacas — não comunistas — «dizerem que esperavam liberdade dos Americanos, enquanto nós, as checas, víamos a liberdade a ser-nos dada pela União Soviética». Pela [uma das polacas] disse: «Para nós, polacos, Hitler é melhor que Estaline», ao que Hanka Houskova respondeu: «Mas isso é incrível», e todas concordámos e protestámos. «Quem anexou a Europa e assassina e extermina para onde quer que vá? Como é que podes dizer uma coisa dessas aqui, quando consegues ver tão claramente o que Hitler é?» A seguir começámos a berrar, porque estávamos enraivecidas, e Milena pôs-se de pé e apartou-nos. Estava pálida, e evidentemente a ficar doente outra vez. «Basta. Parem», disse ela. «Se a Oberschwester e os médicos vos ouvirem vai haver problemas.» E outra pessoa disse: «Milena, como é que podes falar assim? Isso é a coisa mais importante?» A Milena disse: «Aqui e agora, é», e falou num tom prosaico. Então, a Hanka disse-lhe: «Milena, não podes manter-te neutra. Tens de dizer de que lado estás. Não podes ficar a meio.» «Oh», disse Milena em voz baixa. Como mais velha, estava a tentar acalmar a jovem Hanka. «Lado? Lado? Porque é que tem de se estar de um ou do outro lado da barricada? Não, Hanichka. Tu não compreendes nada.» Mas Hanka não queria que a calassem e correu para o corredor, a berrar: «Eu não compreendo! O que é que eu não compreendo? É a ti que eu não compreendo. Milena, eu não te compreendo. A quem é que tu pertences? De que lado estás? Diz-me. Diz-nos. A quem pertences tu?»

Lyuba Konnikova soube sempre exatamente de que lado estava. Quaisquer que fossem as mudanças para melhor que Treite tivesse feito, Lyuba só via os horrores crescentes; se a Revier tinha sido reorganizada para salvar vidas, porque é que algumas pacientes em

certas enfermarias eram deixadas a morrer? As pacientes estavam tão apinhadas na enfermaria da disenteria que as que se encontravam na cama de cima, demasiado doentes para se moverem, tinham de ficar deitadas nos seus próprios excrementos até que escorressem para as que estavam por baixo. Lyuba não era a única a sentir-se revoltada com o que via na Revier de Treite. Maria Klyugman vira horrores diferentes. Como cirurgiã experiente, tinha de suturar mordidas de cães e carne espancada. As mulheres espancadas no Bock eram trazidas para a Revier com rins rebentados ou com hemorragias. Treite, no entanto, nunca estava na Revier para suturar essas mulheres espancadas, porque tinha assistido aos espancamentos: tal como os seus predecessores, um dos seus deveres era medir a pulsação das vítimas e dizer ao oficial da SS quantas mais chicotadas as mulheres poderiam suportar. No decurso de 1943, o estilo dos espancamentos piorou e foi introduzido um novo tipo de Bock. As mulheres eram obrigadas a usar calças especiais de borracha, para o caso de urinarem, e mandavamnas deitar-se de rosto para baixo na mesa, que tinha ranhuras como uma pia, estava debruada com varas de madeira e tinha estribos de ferro para as pernas, colocados abaixo do nível dos joelhos. Duas prisioneiras, usualmente de triângulo verde ou preto, colocavam a mulher nos estribos e atavam-lhe um cinto de pele à volta das espáduas. Quando começava a punição, elas seguravam as calças de borracha, puxando-as bem, enquanto um homem da SS ou outra prisioneira chicoteavam a vítima com uma chibata de couro. Perto do final do castigo, a mulher desmaiava. Em seguida, as prisioneiras de triângulo verde levantavam-na do aparelho e empurravam-na pela porta para onde outras aguardavam a sua vez, a desmaiar e a fazer chichi pelas pernas abaixo com o terror. Os novos procedimentos teriam tido a aprovação de Himmler. Todo o pessoal dos campos de concentração afirmaria mais tarde nos seus depoimentos que Himmler insistia em aprovar cada punição individual e a maneira como se processava. Um documento encontrado nos

arquivos da sede administrativa da SS por investigadores de crimes de guerra em 1945, intitulado «Açoitamento de Prisioneiras», provou essa afirmação. Confirmou uma ordem verbal emitida por Himmler em julho de 1942 em que se declarava que «as ordens para punir as prisioneiras devem ser-lhe comunicadas para aprovação». As ordens «devem vir numeradas a lápis vermelho no canto superior direito consecutivamente». Para «poupar tempo», Himmler queria também que o nome e o número de cada mulher a ser punida corporalmente constasse de uma lista separada, de modo que ele pudesse notificar a sua aprovação referindo-se apenas a um número. Em 1942, o açoitamento deveria realizar-se «com chicotadas seguidas rapidamente umas às outras com uma chibata de couro singela, sendo as chicotadas contadas. Retirar as roupas e pôr a nu certas partes do corpo é estritamente proibido». Com base nas provas de Maria Klyugman recolhidas na Revier e em depoimentos prestados por inúmeras vítimas, em 1943 Himmler tinha já atualizado o procedimento, ordenando que as chicotadas fossem aplicadas em nádegas nuas. Enquanto Maria se ocupava a suturar as suas pacientes, Lyusya Malygina, que era ginecologista, tinha a tarefa de auxiliar nos abortos feitos às Bettpolitische e de examinar as mulheres selecionadas para trabalharem em bordéis nos campos masculinos. Antes de elas partirem, ela verificava se tinham sífilis, e ordenavam-lhe que melhorasse a sua aparência pintando-lhes o cabelo e disfarçandolhes as chagas. Não eram só as médicas russas que recuavam perante o que viam na Revier. Zdenka Nedvedova sentia-se cada vez mais revoltada com as experiências de Treite, nas quais tinha de o ajudar. Um dia, Treite disse a Zdenka que apanhasse baratas, que se encontravam por toda a Revier, que as cozesse e desse o líquido três vezes por dia a pacientes que sofressem de inchaços nas pernas. A experiência não fazia sentido e era perigosa, e sem Treite ver Zdenka deitava fora aquele líquido e dava água às pacientes. Numa outra experiência, Zdenka tinha de recolher a urina de

mulheres grávidas e injetá-la noutro grupo de mulheres grávidas, mas dessa vez Treite apanhou-a a desrespeitar as suas ordens. Enfureceu-se e berrou-lhe, ameaçando que a mandaria para o bunker com vinte e cinco chicotadas, mas Zdenka manteve-se firme, dizendo que na universidade a tinham ensinado a ter respeito pelos pacientes. Treite deixou-se demover, «talvez porque ficou surpreendido com a minha falta de medo», disse ela, embora se apercebesse de que era mais provável que denunciá-la revelasse o seu trabalho científico secreto às autoridades do campo de concentração. Era claro para Zdenka que as operações e as experiências de Treite eram feitas principalmente com vista a obter uma cátedra na universidade de Berlim, o que ele não queria de modo nenhum que Ramdohr ficasse a saber. Todas as prisioneiras sabiam que Treite sentia um grande terror do chefe da Gestapo. Quando Ramdohr exigiu narcóticos para facilitar os seus interrogatórios, Treite desaprovou fortemente — ou assim o dizia —, mas era demasiado cobarde para recusar. Sylvia Salvesen sentia-se também cada vez mais horrorizada pela Revier de Treite. Pouco depois da sua chegada, viu o interior do Idiotenstübchen — ou «manicómio». Talvez fosse em resultado da ordem de abril de Himmler, de que só os loucos seriam selecionados para a morte — ou, nas suas palavras, «selecionados no contexto da operação 14f13» —, que Treite decidira reservar uma sala especial para as «loucas». Talvez fosse também uma parte da tentativa de reorganização de Treite, dado o número crescente de «idiotas». Quando, periodicamente, chegavam camiões secretamente para as levar, era mais prático ter todas as mulheres num só local. Fosse como fosse, Sylvia e as outras prisioneiras do pessoal, que dormiam na Revier, eram frequentemente acordadas pelos gritos que vinham dessa sala, que ficava ao lado da morgue; o chão era de pedra e não tinha camas nem roupa de cama. A responsável por essas mulheres era uma outra prisioneira que era médica, uma alemã chamada Dra. Curt — «uma bruta sem compaixão» —, e quando os gritos se generalizavam ia lá dentro e sedava-as. Numa dessas

noites, a Dra. Curt pediu a Sylvia que a ajudasse. «Armada com o cabo de uma vassoura, lá foi ela», disse Sylvia, que lhe perguntou o que ia fazer com o cabo da vassoura, mas ela mandou-a calar. A Dra. Curt voltou alguns minutos depois, dizendo: «As lunáticas estão descontroladas», e pediu a Sylvia e a uma outra prisioneira enfermeira que voltassem à sala com ela. Abrimos a porta e eu nunca mais me esquecerei da cena que se apresentou aos meus olhos. Seis mulheres — se é que podia chamar-se-lhes mulheres — estavam a lutar aos murros. Havia dois colchões cheios de excrementos e pratos com restos de comida com vários dias no chão. As mulheres eram praticamente esqueletos, só com camisolas interiores sujas e com chagas e nódoas negras pelo corpo todo. Uma linda jovem, uma camponesa russa, com tranças louras, estava sentada a um canto, aterrorizada, a gritar. Tinham sido os seus uivos que nos tinham acordado. Estava ali sentada como uma Nossa Senhora loura, histérica.

Sylvia já tinha visto a jovem, porque a Dra. Curt a tinha atirado ali para dentro dois dias antes, insistindo que ela estava louca. De facto, ela tinha tentado suicidar-se com uma faca nos balneários pouco depois de chegar e fora primeiro enviada para a secção geral da Revier. Aí, como tinha começado a cantar na cama uma noite, a Dra. Curt atirou-a para «este buraco insuportável». Ver a moça russa de novo, a gritar naquele horrível quartinho, desatinou a Dra. Curt, e ela atacou-a com o cabo da vassoura até lhe jorrar sangue do nariz e da boca. Eu tentei agarrar o cabo da vassoura, mas apanhei uma tal pancada no pescoço que quase desmaiei. Por fim, a Dra. Curt agarrou a moça russa e espetou-lhe a agulha. Correu para fora e tentou fechar-me a porta na cara. Penso que tencionava fechar-me ali dentro com as lunáticas.

Foi a oferta de pagamento da SS em troca do seu trabalho que finalmente convenceu Lyuba Konnikova de que já não podia tolerar o hospital do campo de concentração. Na segunda metade de 1943, a SS começou a oferecer alguns pfennigs às prisioneiras que trabalhavam no hospital para as encorajar a trabalharem mais arduamente. As francesas e as polacas já tinham recusado o pagamento e quando as médicas do Exército Vermelho ficaram a saber que também elas iam ser subornadas Lyuba saiu de rompante

da Revier, dizendo que se recusaria a aceitar. As médicas do Exército Vermelho sempre tinham tido reservas em relação ao seu trabalho no hospital. Embora o facto de não estarem a fazer armamento para o inimigo as consolasse, era óbvio que as suas competências estavam a ser exploradas para manter vivas as trabalhadoras que fabricavam armamento, e agora iam ser pagas para o fazer. A maior parte das outras médicas e enfermeiras do Exército Vermelho recusou igualmente o suborno, e Yevgenia Lazarevna apoiou-as, dizendo: «Meninas, devemos mostrar aos fascistas que não podemos ser compradas pelos marcos deles.» Quando a notícia da recusa das soviéticas chegou aos ouvidos de Ramdohr, ele ordenou que elas fossem castigadas, e a punição que escolheu foi enviá-las para os subcampos e obrigá-las a fazer armas alemãs. Lyuba Konnikova foi a primeira a ser enviada, mas ao chegar ao subcampo de Genthin, onde as mulheres trabalhavam no fabrico de armas, Lyuba recusou-se a colaborar. Mantiveram-na numa cela escura durante duas semanas e a seguir foi trazida de volta a Ravensbrück, onde foi chicoteada no Bock e torturada por Ramdohr, mas, como continuava a recusar-se a trabalhar no fabrico de armamento, foi fechada no Strafblock. Yevgenia Lazarevna Klemm soube a notícia através dos seus contactos e informou as soviéticas na reunião de domingo no bloco. Várias das mulheres recordavam-se do que ela disse: Hoje ficámos a saber que a nossa amiga Lyuba apanhou vinte e cinco chicotadas. Nunca antes prisioneiros de guerra, médicos acima de tudo, foram mandados trabalhar em fábricas de guerra, trabalhando contra o seu próprio país, forçados a trabalhar para a morte dos seus irmãos. Hoje deram essa punição a uma médica soviética, uma prisioneira, que corajosamente recusou fazer armas para o inimigo. A nossa Lyuba, a nossa camarada.

Klemm propôs em seguida que o bloco enviasse uma carta a Lyuba, a ser levada às escondidas para o Strafblock juntamente com um poema escrito para ela pela poetisa Alexandra Sokova. Houve aplausos discretos.

27 Selma era judia e ao aderir à resistência holandesa assumiu o nome e a identidade de Margareta van der Kuit, uma bebé não judia que tinha morrido à nascença. Não é possível saber ao certo o número de prisioneiras judias em Ravensbrück que nunca revelaram a sua verdadeira identidade, mas provavelmente ascende às centenas.

28 De facto, estava previsto o início de experiências de esterilização em massa em Ravensbrück no verão de 1942. Em 10 de julho de 1942, Rudolf Brandt, em nome de Himmler, escreveu uma carta oficialmente secreta a Carl Clauberg, o especialista em esterilização, pedindo-lhe que fosse a Ravensbrück «realizar a esterilização de judias segundo o seu método». Porém, Clauberg não foi, optando por fazer antes as suas experiências (naquela altura) em Auschwitz.

CAPÍTULO 19 QUEBRAR O CÍRCULO Desde o momento em que chegou a Ravensbrück, Ludwig Ramdohr desenvolveu o seu próprio estilo de terror. O oficial da Gestapo do campo gostava de trabalhar só e tinha pouco que ver com outros membros da SS. Embora nominalmente oficial da SS, raramente usava o uniforme, preferindo um fato escuro de tecido de lã. Interrogava as prisioneiras no seu gabinete e qualquer tortura que quisesse infligir processava-se ali, talvez depois do espancamento regular da SS, que ocorria no bunker nas imediações. A missão de Ramdohr era fazer as pessoas falarem. Trazia consigo uma faixa de couro, fabricada de acordo com as suas especificações, que usava para bater no rosto das mulheres. Também forçava as prisioneiras a deitarem-se de barriga para baixo numa mesa e em seguida, com a cabeça da mulher pendente da beira da mesa, agarrava-lhe o cabelo e enfiava-lhe a cabeça num balde de água até ela quase se afogar, repetindo essa ação várias vezes. Se uma mulher continuasse a recusar-se a falar, ele mandava que ela unisse as mãos e eram-lhe enfiados lápis entre os dedos. Em seguida, fazia uma pressão tão forte nas mãos dela que os seus dedos se partiam, se ela não desmaiasse antes. Mantinha os seus instrumentos de tortura fechados à chave, entre eles um caixão com buracos de ventilação que se fechavam e garras — uma espécie de dentes de metal — que penetravam no corpo. Com mais frequência, no entanto, simplesmente usava a sua chibata de pele e se, mesmo assim, a prisioneira se recusasse a falar, ele espancava-a com as mãos e batia-lhe com a cabeça contra a parede do seu gabinete. Ojcumiła Falkowska, a bailarina polaca, disse que até a guarda Binz pareceu chocada numa ocasião com a

quantidade de sangue nas paredes do gabinete de Ramdohr, dizendo que tais espancamentos não estavam autorizados pelo comandante. Ramdohr não se importava com o que o comandante pensava; só respondia perante os seus chefes da Gestapo em Berlim. Na verdade, Ramdohr era quase tão detestado pelos outros elementos da SS como pelas prisioneiras; quando foi destacado para Ravensbrück, vinha com a ordem de investigar casos de corrupção entre o pessoal, particularmente as pilhagens por atacado na oficina das peles. Ramdohr também se gabava de ter denunciado as «condições abismais», nas suas palavras, vigentes na Revier.29 Ludwig Ramdohr nem sempre fora um nacional-socialista empenhado. Nasceu em 1909 na cidade de Kassel, no centro da Alemanha, e aderiu primeiro ao Partido Social-Democrata Alemão (SPD) e não ao Partido Nazi, tendo iniciado a sua carreira numa unidade de investigação da polícia e não na SS, a força de elite de Himmler. Aparentemente, em criança Ludwig nunca evidenciou sinais de crueldade. Numa petição por clemência depois de Ramdohr ser condenado à morte, os seus amigos e a sua família afirmaram que ele mostrava grande relutância em causar dor a animais. «Quando enterrou o canário da sua avó, pôs ternamente a pequena ave numa caixa, cobriu-a com uma rosa e sepultou-a junto de uma roseira», disse um amigo da família. O juiz não estava para atender a tais petições. Ouvira provas de que em adulto Ramdohr gostava de fechar mulheres indefesas em caixotes em subterrâneos — especialmente em masmorras cheias de água e infestadas com ratazanas. A especialidade de Ramdohr, no entanto, e indubitavelmente a sua arma mais valiosa, era a sua rede pessoal de espias no campo de concentração. Nunca tinha sido difícil recrutar espias. Bastava uma fatia de pão extra ou um trabalho melhor para se encontrarem mulheres que diriam a Ramdohr tudo o que ele quisesse — quer fosse verdade quer não. As que trabalhavam bem recebiam chocolates ou outros manjares roubados das encomendas das prisioneiras. As suas

favoritas poderiam obter um casaco de peles — especialmente se também lhe concedessem favores sexuais. Uma vez recrutada, a nova Lagerspitzel ficava para sempre na lista de Ramdohr ou, por sua vez, arriscava-se a ser submetida à mesa da tortura. Uma mulher foi espancada tão violentamente depois de tentar escapar às garras de Ramdohr que cortou a garganta, tendo sido salva pelo Dr. Treite. Quaisquer mulheres que fossem espancadas por Ramdohr eram imediatamente suspeitas de serem espias. Depois da guerra, as alegações sobre quem teria trabalhado para ele multiplicaram-se. No seu julgamento, ele afirmou que tinha criado um «movimento político» sombra no campo, para desestabilizar e enganar os movimentos que já existiam, como o comunista. Na segunda metade de 1943, Ramdohr estava no auge dos seus poderes. Dentro do campo principal, afirmava ter entre cinquenta e oitenta espias, e recrutava-as também nos novos subcampos. A grande dimensão do campo significava que o sistema de espionagem de Ramdohr era mais necessário do que nunca simplesmente para manter o controlo. Além disso, à medida que o trabalho no fabrico de armamento se ia tornando mais importante, eram necessárias mais espias para denunciar as sabotadoras. Estava previsto nos contratos que a SS não só fornecesse trabalhadoras saudáveis como também de confiança. No fabrico de armamento, elas podiam causar mais danos do que os resultantes de estragar peças de vestuário dos militares; podiam sabotar as munições, danificar fusíveis ou acoplar gatilhos ao contrário. Na fábrica da Siemens, as trabalhadoras andavam a estragar bobinas cortando os arames finos e a esconder encomendas de novas partes. Havia receios específicos em relação às mulheres a este respeito. «Não é fácil controlar as mulheres, porque elas são mais enganadoras do que os homens, e porque quando escapam são melhores a esconder-se e a encontrarem maneiras de sobreviver com artimanhas sem serem detetadas», disse um dos gerentes. Essas preocupações eram exacerbadas pela falta crescente de boas guardas. Com a expansão do campo e o crescimento da rede-

satélite de subcampos, empreendiam-se novas operações de recrutamento, mas a maior parte das novas guardas estava no cumprimento do serviço militar obrigatório. «Eram muito jovens, impressionáveis, e muito pobres, e muitas suplicavam que as deixassem voltar para casa mal chegavam, embora na maior parte dos casos se adaptassem e ficassem», recordou Grete BuberNeumann. Segundo Lotte Silbermann, a empregada da cantina da SS, um grupo recrutado da linha de produção da Filmfabrik Agfa, em Wolfen, parecia particularmente desadequado ao trabalho. Essas recrutas chegaram com as roupas num estado terrível. Tiveram de esperar connosco na cantina enquanto lhes iam buscar os novos uniformes, e enquanto esperavam muitas portaram-se pior do que as piores prostitutas de rua. Eu tive de ficar ali a ver uma das novas guardas, que ia encarregar-se de nós, deitar-se em cima de uma mesa e levar o tratamento completo aplicado por um oficial da SS.

Lotte recordava-se de uma recruta em particular, chamada Ilse Hermann, que só estava interessada em arranjar marido e que a obrigava a guardar a melhor comida na cantina para servir aos seus «pretendentes» entre o pessoal do sexo masculino. Hermann também mandava Lotte escrever anúncios a pedir casamento para pôr nos jornais. Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, cujo campo ainda obtinha as suas guardas de Ravensbrück, também reparou no declínio. «As supervisoras originais eram de longe superiores às que recebemos mais tarde», escreveu nas suas memórias, porque, apesar do recrutamento feito pelas organizações de mulheres nazis, «muito poucas candidatas se ofereciam para o serviço em campos de concentração». Em vez disso, as empresas de armamento para as quais as prisioneiras eram enviadas para trabalhar viam-se obrigadas a nomear as suas próprias guardas entre o pessoal civil. Escusado será dizer, declarou Höss, que «eles não disponibilizavam as suas melhores trabalhadoras», mas, ao fim de algumas semanas de treino em Ravensbrück, «atiravam-nas para o meio das prisioneiras». Pouco depois, havia roubos, sexo com os prisioneiros e eclodiu «uma epidemia de lesbianismo». Nos grupos de

trabalho no exterior, onde o controlo era difícil, todas as supervisoras tinham cães de guarda, mas lançavam-nos às prisioneiras «para se divertirem». As guardas que cometiam essas infrações eram atiradas para o bunker ou punidas com vinte e cinco chicotadas, tal e qual como as prisioneiras. «Eu sempre tive o maior respeito pelas mulheres em geral», lamentou-se Höss, «mas em Auschwitz tive de modificar a minha opinião.» Höss queixa-se também de que Ravensbrück ficava com as melhores guardas, embora seja difícil saber o que um comandante de Auschwitz quereria dizer com «melhor». Pelo menos duas guardas de Ravensbrück tinham-se saído bem em Auschwitz. Irma Grese, a filha de um agricultor, treinada em Ravensbrück em 1942, era agora a chefe das supervisoras no anexo de extermínio de Birkenau. Maria Mandl, que chegou a Ravensbrück no início, foi nomeada chefe das guardas em Auschwitz em 1942, substituindo Langefeld, e não tardou a tornar-se a mulher com mais poder do império de Himmler. Mandl — a mulher que Maria Bielicka ouviu em Ravensbrück «em transe» a tocar piano — seria a fundadora da orquestra das prisioneiras em Auschwitz. No início do outono de 1943, Ramdohr estava já decidido a alargar ainda mais a sua rede de espias. Um grupo em que ele não tinha ainda conseguido infiltrar-se era o das mulheres do Exército Vermelho, cuja unidade se revelara em grande medida impossível de quebrar. Ele viu uma oportunidade na decisão de enviar algumas delas para trabalhar nos subcampos. Se as mulheres fossem espalhadas por subcampos distantes e afastadas da sua líder, quem quer que ela fosse, a sua unidade seria mais facilmente esmagada. Indubitavelmente, nesta fase Ramdohr já tinha espias em todos os subcampos. Anteriormente, nesse mesmo ano, a força aérea britânica, a RAF, bombardeou uma importante fábrica de aviões da Heinkel situada em Rostock, no Báltico. Para a substituir foi construída uma fábrica nas imediações, na margem de uma pequena lagoa em Barth, na ponta norte da Alemanha. No outono de 1943, os gerentes da Heinkel

começaram a ir a Ravensbrück para recrutar mulheres para a fábrica. Várias médicas e enfermeiras do Exército Vermelho foram convocadas nach vorne e selecionadas. Valentina Samoilova foi enviada para Barth no inverno, como me disse no seu espaçoso apartamento no centro de Kiev. Falámos primeiro sobre Estalinegrado, onde Valentina combateu para defender uma ponte vital nos últimos dias do cerco. «Um dia, os Alemães tinham a ponte, no outro dia eram os Soviéticos. Era assim. Foi um combate muito sangrento», disse Valentina, agora com oitenta e nove anos. Em seguida, falou de Barth. Juntamente com as outras médicas do Exército Vermelho que trabalhavam na Revier, Valentina recusou-se a aceitar os subornos da SS, disse, e soube imediatamente que seria punida. «Tínhamos contactos no escritório e disseram-nos que íamos para um lugar chamado Barth.» Outras mulheres do Exército Vermelho foram também enviadas para lá, entre elas Lyusya Malygina, Maria Klyugman, Tamara Tschajalo e uma outra médica chamada Zina Avidowa. Antes de o grupo partir, realizou-se uma reunião secreta com Yevgenia Lazarevna Klemm para acordar uma estratégia. Yevgenia Lazarevna disse-nos que devíamos protestar se nos ordenassem que fabricássemos armamento, tal como tínhamos feito em Soest, mas que não devíamos protestar tanto que acabássemos por ser mortas a tiro. Ela disse o que dizia sempre: «Mantenham-se juntas. Não quebrem o círculo. Lembrem-se disso.» E falámos sobre como nos manteríamos em contacto com ela enviando-lhe mensagens às escondidas para onde quer que fôssemos.

As mulheres foram metidas num comboio, que não se dirigiu para a costa do Báltico, mas quase para sul, o que era inesperado. Ao fim de cerca de dois dias, parámos em Buchenwald. Por isso, perguntámo-nos, o que é que estamos a fazer aqui? A seguir, chamaram-nos para sairmos do comboio e um oficial da SS percorre a nossa fila e escolhe dez das raparigas mais bemparecidas e leva-as para o pátio, e um homem — um prisioneiro alemão — vem ter connosco e tenta ser simpático e diz: «Olá, eu sou um comunista alemão», mas nós achamos que aquilo é uma provocação. Por isso eu digo-lhe: «Põe-te a andar.» A seguir, ele começa a rir-se com um oficial da SS. E depois outro prisioneiro aproxima-

se e atira-nos um pedaço de pão e dentro dele está escondido um papel pequeno. Enquanto o segundo prisioneiro fala com os guardas, nós lemos a mensagem. É um aviso para nós, a dizer: «Foram trazidas para aqui para trabalharem como prostitutas para os oficiais da SS.» Então, eu saio da linha e digo ao oficial da SS que preferia morrer a fazer isso. Nem um único homem da SS vai aproximar-se de mim. E as outras dizem o mesmo. Mas eles não acreditaram em nós. Ainda não sabiam com o que estavam a lidar, por isso levaram-nos para uma sala. Era grande. E disseramnos para tirarmos a roupa. Viriam muitos homens, disseram-nos. Olhámos umas para as outras e depois um homem da SS aproxima-se de mim e toca-me no seio e diz que eu sou linda, e eu cuspi-lhe e empurrei-o. Dizemos todas outra vez que preferimos morrer a deixar que alguém nos toque. E então eles espancam-nos por isso. A seguir meteram-nos outra vez no comboio e voltámos na outra direção.

Vários dias depois, o comboio chegou a outra pequena estação e parou novamente. As grades foram abertas e as mulheres olharam para fora. No terreno estavam os «corvos» de Ravensbrück, mas não era Ravensbrück. O ar era diferente; julgavam estar perto do mar, já que o vento trazia o cheiro a sal e a lodo. Era Barth, na ponta norte da Alemanha, junto a uma lagoa do Báltico. Enquanto as prisioneiras marchavam, começou a nevar e forçaram-nas a correr. Era o dia 23 de fevereiro de 1944, mais uma vez o dia do aniversário de Valentina. Ela fazia vinte e cinco anos. «Meninas, olhem, é um aeroporto», segreda alguém. Quando se aproximam das luzes do pequeno campo, avistam uma vedação elétrica alta, torres de vigia e casernas e depois, não muito longe, um vasto espaço plano — um aeródromo. A neve revolteia-se à volta de um hangar. Então, sempre é verdade, dizem umas às outras, foram levadas para ali para fabricar aviões de guerra alemães. Fazem-nas marchar para uma caserna baixa de tijolos. O frio é enregelante, não há aquecimento e dormem em beliches de três camas debaixo de um só cobertor. Na manhã seguinte, na Appell, estão de pé, sob a neve, quando um alemão idoso vestido à paisana chama os números de uma lista e diz em russo: «Estão prestes a fazer um trabalho importante e de responsabilidade. A gerência dará bónus de alimentos às que façam

um bom trabalho. Até poderão ir a casa de férias. Mas puniremos o trabalho desleixado muito severamente.» Ergue um dedo e berra, à moda militar: «Virar à direita, às duas, marchar.» Ninguém se mexe. As jugoslavas e as checas são as primeiras a recusar-se. Uma jovem checa simplesmente sai da fila e faz uma breve declaração, dizendo que ela e o seu grupo não farão «bombas para matar as nossas famílias». Os guardas atacam a mulher, pontapeando-a e batendo-lhe até ela cair por terra. Duas jovens jugoslavas vão socorrê-la, mas os cães são lançados às três. São todas mordidas e arrastadas pela neve, a perder sangue. Uma delas está com certeza morta, talvez as três. Agora é a vez do grupo soviético. Já o fizeram antes, podem voltar a fazê-lo. «Ninguém deve quebrar o círculo.» Essas foram as palavras de Klemm, e elas repetem-nas baixinho. Há segurança em serem muitas, dizem umas às outras, e ao lado das soviéticas encontra-se um grande grupo de ucranianas, a maior parte trabalhadoras braçais capturadas, mas também algumas mulheres da resistência que acabaram de chegar. As jovens do Exército Vermelho passam palavra às filas de ucranianas: também elas devem recusarse a trabalhar para fabricar os aviões do inimigo. As jovens ucranianas dão sinal de que também elas se recusarão. Por isso, quando chega a ordem de avançar, toda a fila se mantém imóvel, como se estivessem petrificadas ao vento gélido. Agora chega o comandante. Um homem gordo dos seus sessenta anos, furioso por ter de sair para a neve, berra até ficar com os óculos embaciados, e está corado, à procura das cabecilhas. Maro Lashki, uma das mulheres da Geórgia, chama a sua atenção. Ele berra-lhe que saia da fila e se ponha em sentido. Ela recusa. Ele berra: «Tu és uma oficial. Uma militar. Mostra algum respeito por outro oficial.» «Não vejo ninguém a quem respeitar», diz ela. «Porca russa!», guincha ele, e ataca-a, pontapeando-a várias vezes com as suas botas de biqueira de metal, até ela ficar caída sem sentidos e ser também arrastada para longe do grupo. É a vez de Valentina Samoilova ser selecionada, provavelmente —

como aconteceu em Soest — porque ela se destaca, é alta e loura. O comandante pergunta-lhe porque é que ela se recusa a trabalhar e ela diz: «Porque isto é uma fábrica de armamento.» «Sim. E então?» «Nós somos membros das forças armadas soviéticas e recusamonos a produzir armas para assassinar os nossos camaradas. Segundo as Convenções de Genebra, não podem forçar-nos a fazer tal trabalho.» Agora, o oficial gordo fica corado de raiva e uiva como um animal: «Oh, então tu lembras-te das Convenções de Genebra, então eu voute desancar até as esqueceres.» Começa a bater-lhe no seio que ela tem ferido. «E até vais esquecer o teu próprio nome quando eu acabar.» Mas não tarda a cansar-se daquilo e afasta-se, deixando as cinquenta e quatro prisioneiras de guerra soviéticas onde estão, na parada, com temperaturas abaixo de zero, até elas mudarem de ideias. Chega o fim do dia e acendem-se as luzes nas casernas. Grupos de trabalhadores forçados — homens e mulheres — passam por elas e perguntam: «Quem são estas pessoas?» «São russas. Recusam-se a trabalhar», diz alguém. «Bravo, russas», dizem os trabalhadores, e cai um pedaço de chocolate ao pé de uma das jovens. Ela baixa-se para o apanhar e um guarda esborracha-lhe o rosto. As mulheres ainda estão ali de pé quando cai a noite. A temperatura é de quase vinte graus negativos. As jovens estão com roupas finas de algodão. Tentam encostar-se à pessoa ao seu lado para se aquecerem, mas, mal uma jovem se mexe, aparece uma figura fantasmagórica de gabardine preta. Um chicote sibila e queimalhe a face. Quando chega a manhã, ainda ali estão de pé, embora várias tenham desmaiado e a neve lhes caia em cima. Então, aparece Ludwig Ramdohr. O chefe da Gestapo deve ter sido avisado do protesto às primeiras horas do dia e apressou-se a deslocar-se para norte para lidar com a situação. Avança para as mulheres acossadas

e ordena que se dispam quase totalmente e que continuem ali, com a temperatura a descer ainda mais. Ao fim de várias horas, o patrão civil alemão regressa e dirige-se a Valentina, espeta-lhe um dedo no peito e diz: «Ela.» A seguir, aponta para três outras nas imediações, entre elas Lyusya Malygina. Acende um cigarro e diz às outras mulheres que as vidas destas quatro estão nas suas mãos. Não ergue a voz. «Se continuarem a recusar-se a trabalhar, as quatro serão executadas a tiro perante os vossos olhos», diz. As quatro são levadas para o bunker, contando serem mortas a tiro, mas as mulheres que permanecem no exterior não podem permiti-lo — «A Yevgenia Lazarevna disse para não nos deixarmos matar.» Debatem o que fazer e em seguida concordam que poderiam morrer todas. Afinal, terão de trabalhar, decidem, e marcham para o hangar. Mas todas sabem que parte do acordo com Klemm era que, se fossem forçadas a trabalhar, abririam outra frente, e sabotariam os aviões alemães. «Então, fizemos aviões que explodiam no ar», diz Valentina. De todos os subcampos que abriram em 1943, Barth era com certeza o mais desolado, empoleirado na ponta norte da Alemanha numa parte da costa fustigada por tempestades e frequentemente inundada. A cidadezinha propriamente dita nunca foi acolhedora. Os livros de História local contam que foi atacada ao longo dos séculos por invasores, assolada pela cólera e pela peste negra e visitada por bruxas. Três bruxas foram até queimadas aqui em 1693. Para as prisioneiras, Barth transformou-se rapidamente num inferno pior do que Ravensbrück — uma espécie de mini-inferno, mais pequeno, mais isolado, mais brutal. A rotina diária era mais ou menos a mesma que no campo principal, mas tudo era mais duro: fazia mais frio e a chamada era uma tortura ainda maior. A comida era de pior qualidade. Uma russa recordava-se do dia em que a sopa chegou tão cheia de larvas que todo o campo saiu em protesto. A rotina era implacável, já que não havia outro trabalho a não ser

os turnos intermináveis na fábrica; doze horas por dia de tédio, a soldar pequenas molas enquanto os Meister circulavam entre as trabalhadoras com cronómetros e um guarda ficava sentado ao fundo a uma mesa, com o punho cerrado pronto a entrar em ação. A outras foi atribuído trabalho em tornos metálicos sem óculos protetores; a limalha fazia-as cegar gradualmente ou o vapor ácido corroía-lhes os pulmões e as mãos, ou ambas as coisas. Ao fim de algum tempo, Ravensbrück era recordado como um verdadeiro luxo, por comparação. As casernas do campo-mãe estavam pintadas de verde e tinham árvores a toda a volta, mas ali a paisagem era cinzenta ou negra e as casernas de tijolos pretos. No campo principal, de vez em quando era possível «organizar» um pente ou uma camisola de lã dos armazéns, mas em Barth não havia armazéns. As prisioneiras recebiam uma tigela e uma colher, mas se as perdessem não havia substituições, e as mulheres procuravam latas enferrujadas para a sopa no lixo e nos caixotes para não passarem sem a sopa. As prisioneiras andavam com os seus talheres atados à cinta com um fio. Havia mais pessoas das redondezas nos subcampos, a circularem nos arredores ou até a trabalharem ao lado dos prisioneiros, e por vezes ajudavam-nos trazendo-lhes comida às escondidas, ou de outras maneiras, mas na maior parte dos casos passavam sem lhes dar troco. O campo de concentração de Neubrandenburg, a quarenta quilómetros a sul, para onde as recém-chegadas francesas foram levadas por volta da mesma altura, era dirigido segundo as mesmas diretrizes, mas as francesas saíram-se pior, porque nenhuma estava calejada pelos combates ou pela fome como as suas camaradas eslavas. Micheline Maurel era professora numa escola em Lyon quando Valentina Samoilova combatia em Estalinegrado, e dias depois de chegar a Neubrandenburg não pensava já em protestar, mas simplesmente em manter-se viva. Como a amiga de Micheline Denise Tourtay, a estudante de Grenoble, tinha problemas de coração e não conseguia manter o ritmo de trabalho, a ração da sopa

foi-lhe retirada e ela foi tão severamente espancada no subcampo que deixou de poder trabalhar ou sequer de se manter de pé. Poucas semanas depois, ficou criticamente doente com disenteria e em seguida tifo, e morreu na Revier de Neubrandenburg. «Foi a primeira do nosso grupo a morrer», escreveu Micheline. «Só tinha vinte anos.» As Blockovas eram escolhidas pela sua crueldade. Em Neubrandenburg, uma Blockova chamada Charlotte Schuppe adorava bater nas francesas com uma concha da sopa e acordá-las de manhã com um balde de água gelada. Em Barth, as soviéticas recordavamse toda de uma Blockova alemã chamada Julie Wolk, que lhes batia e roubava comida para dar às suas favoritas e que atormentava as prisioneiras sem qualquer pretexto. Inicialmente, as guardas ali não pareciam muito diferentes das de Ravensbrück, e não tardaram a ser-lhes dadas alcunhas — o Carrasco, Baba Yaga, Olho Vesgo. No entanto, como grupo, aquelas guardas eram mais desleixadas e havia uma barbaridade especial na maneira como faziam as coisas. Uma russa viu uma guarda bater no olho de vidro de uma mulher até ele cair. Micheline Maurel viu um homem da SS dar cubos de açúcar ao seu cão enquanto perto, no poço, duas guardas seguravam a cabeça de uma prisioneira debaixo da água até ela morrer. Ao princípio, não parecia haver uma figura toda-poderosa como a de Binz para supervisionar as guardas, embora mais tarde em Barth houvesse uma guarda chamada Blondine que detinha uma espécie de poder, provavelmente porque as prisioneiras sabiam que ela trabalhava para Ramdohr. Era jovem, com «um físico desportivo» e «grande cabeleira». As prisioneiras do subcampo também sofriam mais do que as suas camaradas em Ravensbrück por terem sido apartadas das suas líderes, que eram frequentemente mulheres mais idosas e com mais probabilidade de ficarem no campo principal. As mulheres do Exército Vermelho estavam afastadas de Yevgenia Klemm. No entanto, como explicou Valentina, esforçavam-se ao máximo por se manterem em contacto com ela.

Em Ravensbrück, Klemm ouvira falar do protesto de Barth e enviou uma carta às escondidas pelo grupo seguinte de prisioneiras enviado do campo. Nesta fase, estavam sempre a chegar novas prisioneiras a Barth para substituir as doentes e as exaustas, que eram recambiadas, frequentemente nos mesmos camiões. «Nunca ficávamos sem contacto por muito tempo, o que nos ajudava. Ela ainda conseguia aconselhar-nos sobre o que fazer», disse Valentina. Nessa primeira carta, disse às jovens de Barth que tinham feito bem em decidirem trabalhar, mas que deveriam prosseguir na sua resistência envolvendo-se em sabotagem concertada. «E ela disse que tínhamos de ensinar as outras a fazer o mesmo, mas que não devíamos ser fanáticas. E que devíamos manter-nos unidas», disse Valentina. «Era sempre o conselho de Yevgenia Lazarevna, e era um bom conselho. Ensinaram-me o mesmo em criança. Se estivermos unidos, ninguém nos quebrará.» As mulheres encontraram-se então em segredo no seu bloco para planearem a sabotagem. Por exemplo, as mulheres que trabalhavam numa linha de montagem concordavam que ligariam os fios entre as partes do motor ao contrário. As mulheres noutra linha de montagem soldariam as ligações de modo a que elas se desfizessem. «Era sempre arriscado, claro, porque um supervisor da fábrica podia vir fazer verificações de surpresa», disse Valentina. «A sabotagem implicava que tínhamos sempre um pé na forca.» Mas os supervisores estavam muitas vezes distraídos e as guardas entediadas ou a namoriscarem esses mesmos supervisores. Havia civis alemães, por vezes também comunistas, empregados na fábrica como trabalhadores qualificados, e alguns tentavam ajudar as prisioneiras. Os contactos com esses homens não era fácil, mas em alturas de menos movimento era possível encontrá-los nas casas de banho, talvez, ou no regresso aos blocos, e nesses momentos podiam passar-se mensagens. Foi um desses civis que ensinou Valentina a sabotar aviões para eles «explodirem no ar». Explicou-lhe como fazer um bombardeiro parar a meio do voo fazendo buracos nas asas e enchendo-os com

aparas de metal. Como as asas eram também o depósito de combustível, as aparas rapidamente entupiam os canos do combustível, fazendo parar o motor. Valentina apanhou as aparas de metal que encontrou no chão da fábrica e escondeu-as numa minúscula caixa que meteu na vagina até chegar um momento em que pudesse entregá-la ao trabalhador civil. Não sabemos se os aviões explodiam de facto, mas a crença de que era o que acontecia deu claramente às mulheres do Exército Vermelho uma certa força. Quando Ramdohr veio investigar, elas recusaram-se a confessar. Em Barth, não havia celas no bunker, mas Ramdohr tentou tudo para as fazer falar. Só por «agirem de modo suspeito», as mulheres eram chamadas da fila e obrigadas, em pleno inverno, a ficarem em banheiras cheias de água gelada, com mais água deitada aos baldes para cima delas por outras prisioneiras. Se as outras prisioneiras não lhes deitassem a água, sabiam que receberiam o mesmo tratamento. Por vezes, uma prisioneira era usada para dar o exemplo. Lydia Rybalchenko, outra das mulheres do Exército Vermelho, foi levada um dia para uma cave subterrânea escavada debaixo de uma das casernas de tijolos. A cave só tinha espaço para duas pessoas de pé e estava cheia de água. Lydia ficou ali de pé com água pelo pescoço durante várias horas, mas continuou a recusar-se a falar e tiraram-na para fora. «Disse-nos que havia ratazanas a nadarem perto dos olhos dela», disse Valentina. Nessa altura, Ramdohr não estava só a investigar a questão da sabotagem em Barth; no subcampo de Genthin, uma jovem do Exército Vermelho chamada Vera Vanchenko, uma oficial dos serviços de espionagem, andava a estragar balas destinadas a armas alemãs. Vera descobrira como inserir a ignição da bala no cartucho virada ao contrário, e mostrara a todas as outras mulheres no seu turno como fazer o mesmo. Depois de os cartuchos estragados passarem para a sala ao lado, onde a cabeça da bala era comprimida no topo, era impossível detetar qualquer ato de sabotagem. O que Vera não sabia era que se faziam verificações aleatórias das

munições antes de elas saírem da fábrica. O lote escolhido para a verificação foi o delas, e quando todas as balas se revelaram defeituosas, Vera foi identificada como a cabecilha e despachada para Ravensbrück para ser interrogada por Ramdohr. Segundo uma prisioneira numa cela ao lado, Vera foi levada dez vezes para ser interrogada. De cada vez, recusou-se a dizer nomes e, de cada vez, regressou à cela com mais ossos partidos. Na última vez, ficou com todos os ossos das mãos partidos. Em seguida, Vera Vanchenko foi enforcada. Depois do caso Genthin, foi emitida uma ordem segundo a qual todos os sabotadores seriam enforcados. Nessa altura, Yevgenia Klemm enviou mais uma mensagem, avisando as mulheres de que não deveriam arriscar a vida. Em Barth, Ramdohr recrutou mais espias. Era cada vez mais difícil recrutar guardas, mas as espias saíam baratas e eram a melhor defesa contra a sabotagem ou o desleixo no trabalho. Um funcionário altamente colocado do Ministério do Armamento de Albert Speer acreditava que havia outras maneiras de fazer trabalhar as mulheres. «A psicologia é o segredo», disse Karl Saur. «Estas mulheres... têm primeiro de compreender que não há qualquer esperança de libertação. Depois, por puro tédio e desespero, voltar-se-ão para o trabalho.» Em Barth, contudo, a ausência de esperança levara trinta mulheres a tentarem escapar, e várias outras morreram no arame farpado. Em Barth, eram as Spitzel de Blondine que causavam o maior desespero. Daí a pouco tempo, a guarda com a «grande cabeleira» foi nomeada para dirigir a rede de espias de Ramdohr. Como toda a gente sabia que ela andava a recrutar as suas próprias informadoras dentro dos blocos, as prisioneiras sentiam que não havia lugar algum onde pudessem sentir-se seguras. No bloco russo, a odiada Blockova alemã Julie Wolk trabalhava para Blondine, o que era perigoso, diz Valentina, «porque a Wolk observava tudo o que fazíamos. Os instrumentos usados para a sabotagem — facas dobradas, parafusos velhos — tinham agora de ser escondidos mais cuidadosamente. Não podiam fazer-se planos dentro do bloco.»

Valentina descreve o procedimento para recrutar espias. «Wolk também começou a arranjar espias entre as prisioneiras no bloco. Todas sabíamos quando isso acontecia, porque uma moça era chamada pela Wolk e levada para o gabinete da Blondine. Quando a moça voltava, o seu comportamento era diferente. Obviamente, tinha ouvido coisas que a assustaram e a partir desse momento ela mantinha-se distante de nós.» Pelo menos cinco foram recrutadas dessa maneira, entre elas uma ou duas jovens do Exército Vermelho, e talvez houvesse mais. «Mas isso só levava a que quiséssemos sabotar mais.» Sempre que Ramdohr aparecia em pessoa, toda a gente suspeitava de que tinha havido uma denúncia de Blondine. Sempre a vociferar contra a sabotagem, reunia as trabalhadoras e exigia que as responsáveis confessassem. Se ninguém confessasse, ameaçava escolher ele próprio as cabecilhas e atirá-las para a cave ou dar-lhes um tiro ali mesmo. Numa ocasião, ninguém confessou e ficaram todas à espera de ver uma das espias de Blondine entrar e apontar alguém, mas em vez disso uma mulher chamada Vera Sintsova, que não tinha nada que ver com a sabotagem, deu um passo em frente e confessou-se culpada de tudo. Era um ato suicida, e Ramdohr matoua diante de todas com uma só bala na nuca. Pouco depois, as prisioneiras abriram «uma segunda frente», diz Valentina, que fala como se estivesse a travar alguma espécie de luta de insurgência nas linhas da retaguarda. A nova ação de resistência foi dirigida a partir da enfermaria em Barth, que estava rapidamente a encher-se com prisioneiras atacadas por diarreia, sarna, disenteria e tifo. As médicas soviéticas — Maria Klyugman, Tamara Tschajalo e outras — não tinham medicamentos para usar. Jovens russas e ucranianas contorciam-se com acessos de tosse, mas Klyugman e Tschajalo estavam reduzidas a estenderem-lhes frascos de compota para elas cuspirem sangue para dentro deles. Outras prisioneiras eram trazidas com ferimentos provocados pelas bombas dos Aliados que caíam perto da fábrica. Gradualmente, as médicas descobriram maneira de trazer

medicamentos às escondidas através de contactos com civis e com prisioneiros de guerra em campos de concentração nas imediações e de mensagens ao campo principal a pedir que fossem enviados medicamentos através das prisioneiras no camião seguinte. Por essa altura, havia camiões a levar e a trazer prisioneiras quase diariamente. Os gerentes da fábrica queixavam-se de que a enfermaria estava a rebentar pelas costuras e que as doentes não eram substituídas com suficiente rapidez. Blondine vinha à enfermaria e escolhia as doentes que iriam embora. «Esta, esta», dizia, e explicava-lhes que iriam para um campo de repouso. Ninguém acreditava nela: a notícia que chegava de Ravensbrück era que quando as doentes voltavam eram de novo enviadas para serem exterminadas nas câmaras de gás em Auschwitz ou noutro lugar. As médicas do Exército Vermelho tentavam fazer sair mulheres da Revier à socapa ou trocar nomes à última hora, «mas sabiam que as espias estavam a vigiar todo o tempo». A história de Valentina chegou a um período perto do final da guerra, quando a frente do Exército Vermelho se aproximava, havia aviões a sobrevoar o campo e as prisioneiras tinham mais razão para acalentar esperanças do que nunca. Valentina e Lyusya Malygina começaram a distribuir folhetos pelo campo de concentração em que diziam aos prisioneiros que a vitória se aproximava. Nas últimas semanas, os civis mostravam-se frequentemente mais dispostos a ajudarem, diz ela, trazendo-lhes papel e lápis, por exemplo. «Sabíamos agora que íamos vencer, era só uma questão de tempo.» Ramdohr não tardou a saber da distribuição dos folhetos e apareceu no campo, mais uma vez enraivecido. Ninguém confessou, embora muitas estivessem a ponto de o fazer. Mas então Zina Avidowa, uma das médicas, não conseguiu aguentar mais e correu para a vedação de arame. Valentina foi apanhada de surpresa. Estavam tão perto do fim. Zina tinha trinta e cinco anos e três filhos. O seu filho mais velho estava no exército. «O patriotismo da Zina era tão forte», diz Valentina. Mas depois começou a comportar-se de um modo estranho. Um dia, simplesmente

não conseguiu trabalhar mais no hangar. Disse: «Os meus filhos e a minha família estão em Leninegrado. Eu não posso fazer armas que os matarão.» Nós andávamos a tentar refreá-la. Persuadimo-la a manter-se calma. Julgámos que ela tinha acatado o nosso conselho e que não se mataria. Mas então, no dia seguinte, estávamos ali paradas e a sirene começou a soar e, quando toda a gente começou a dirigir-se para as casernas, ela correu na direção da vedação. A vedação ficava a dezassete metros das casernas e era eletrificada. Nós não devíamos aproximar-nos a menos de dez metros dela. Todas vimos o que aconteceu. Toda a gente se pôs a correr atrás dela. Ela olhou para trás e berrou-nos...

A voz de Valentina desvanece-se. «A Zina Avidowa não foi a única», diz ela. Quase todos os dias havia pessoas a atirarem-se para a vedação, porque era muito difícil uma pessoa aguentar a pressão. Toda a gente tinha o seu limite. Ela era bastante normal. Até nos gritou um adeus. Foi deixada na vedação toda a noite. Todas a vimos na vedação na Appell da manhã. Ainda ali. A seguir, depois de sermos levadas para o trabalho, tiraram o corpo.

Perguntei a Valentina o que Yevgenia Lazarevna pensava desses suicídios. «Era contra eles, claro», respondeu. «Discutimo-lo muitas vezes antes de partirmos. Ela dizia que nunca devíamos fazê-lo, em nenhuma circunstância. Enviou mais mensagens a dizer que o suicídio mostrava a nossa fraqueza ao inimigo.» As mulheres redobraram o seu desafio. Um dia, conseguiram trazer às escondidas um pano vermelho e fizeram uma bandeira vermelha, que penduraram de um bloco. Dessa vez, quando Ramdohr chegou, mandou instalar uma forca na praça do campo e pendurou duas cordas dela. Escolheu Valentina e Lyusya Malygina e levou-as para a cave escura, onde ficaram fechadas com as ratazanas e com o nível da água a subir à sua volta. «Ficámos ali sentadas não sei quanto tempo», diz Valentina, cuja história se torna difícil seguir neste ponto. «Estava muito escuro. Havia coisas a virem na nossa direção.» Em seguida, para e começa a falar sobre outras coisas, sobre a sua juventude e o seu patriotismo, e eu tenho de lhe perguntar o que aconteceu a seguir, mas ao princípio não há resposta. Outras prisioneiras descrevem nos seus relatos como Valentina e Lyusya foram levadas para a cave e foi dito

às outras que ninguém comeria até elas confessarem. Toda a gente viu a forca ser montada e receava o pior. Mas então Valentina começa de novo a falar e diz que ela e Lyusya foram levadas da cave para a enfermaria do campo de concentração, onde foram tratadas pelas suas amigas Tamara Tschajalo e Maria Klyugman. Não explica ao princípio o que levou à sua libertação da cave, mas depois diz que tinha caído uma bomba dos Americanos nas imediações, ferindo dezenas de pessoas. Como eram necessários médicos no hospital, ela e Lyusya foram libertadas e foilhes ordenado que ajudassem a tratar dos feridos. A forca com as duas cordas foi retirada. A história de Valentina torna-se confusa. Diz que foi atribuído um trabalho importante a Lyusya depois daqueles acontecimentos; passou a ser a principal Blockova. Pergunto a Valentina se é verdade que Lyusya Malygina se tornou informadora de Blondine, uma acusação que tinha lido em documentos do pós-guerra encontrados em arquivos russos. «Eu nunca acreditei nisso», diz Valentina. «Deram-lhe um trabalho importante no campo e tinham a esperança de obter informações dela. Mas ela era uma pessoa leal. A Malygina nunca foi uma traidora. Eu conhecia-a tão bem como a mim própria. Era uma linda moça com uns grandes olhos castanho-escuros.» Algum tempo depois do meu encontro com Valentina, dei com a versão de Blondine. Blondine chamava-se, de facto, Ilse Hermann, uma das operárias fabris da Agfa, impressionáveis e com saudades de casa, que foram vistas a chegar ao campo por Lotte Silbermann, a empregada da cantina. Foi Ilse que pediu a Lotte que lhe escrevesse o anúncio de pedido de casamento. Imediatamente a seguir à guerra, Hermann, tal como um número incontável de outras guardas, escapou à detenção e nos anos 1950 vivia em segurança na Alemanha de Leste, por trás da Cortina de Ferro. No início da década de 1960, quando pensava que tinha escapado sem mais consequências, foi detida pela Stasi, a polícia

secreta da Alemanha de Leste, que tinha encetado as suas próprias investigações e os seus próprios julgamentos de crimes de guerra nazis, quinze anos depois do fim da guerra. Com desprezo pelo número reduzido de condenações obtido pelo Ocidente, os julgamentos na Alemanha de Leste foram em parte concebidos para garantir um golpe de propaganda da Guerra Fria contra os «fascistas», mas também para fazer responder pelos seus crimes os milhares de criminosos nazis que nessa altura se escondiam na Alemanha de Leste. Depois de acusar Hermann de crimes contra a humanidade, os interrogadores da Stasi questionaram-na sobre as Spitzeltätigkeit de Ramdohr, as atividades de espionagem. As cinquenta páginas da transcrição do interrogatório da operária da Agfa pintam um retrato arrepiante de como uma jovem comum foi arrancada ao seu trabalho a bobinar película fotográfica e em seguida aliciada com chocolates a aterrorizar prisioneiras num campo remoto do inferno nazi chamado Barth. Depois de ouvir o relato de Valentina, o de Blondine tinha um poder especial para chocar, já que espelhava o que Valentina dissera praticamente em todos os pontos. Não é exatamente claro quando Ramdohr começou a tentar atrair a atenção de Blondine, provavelmente foi quando ela estava prestes a ser despedida de outro subcampo por mau comportamento. Ela receava voltar para a fábrica da Agfa e disse aos seus interrogadores da Stasi que Ramdohr tinha sido muito simpático com ela. Deu-lhe um cigarro e chocolates, o que a surpreendeu, porque tinha ouvido dizer a outras que ele era um bruto. Quando ele lhe pediu que espiasse as prisioneiras em Barth, ela concordou imediatamente. Foi-lhe dito que as soviéticas precisavam de ser «esmagadas por causarem a guerra». A principal preocupação de Ramdohr era com a sabotagem na fábrica da Heinkel; suspeitava de que as mulheres do Exército Vermelho estavam a coordená-la, mas precisava de provas. Hermann contou aos seus interrogadores que foi para Barth e rapidamente recrutou ajudantes — as suas duas colegas de quarto, assim como uma comunista alemã chamada Julie

Wolk. Era simples arranjar informadoras entre essas prisioneiras arrasadas. «Eu não tinha de lhes pagar», disse ela. As recrutas prováveis eram convidadas para o gabinete de Blondine, onde Wolk, que falava russo, se encarregava de falar com elas. Blondine também espiava outras guardas e elementos da própria SS. «Eu tinha de manter os olhos abertos e tinha de ver quem se sentava ao lado de quem na cantina.» Fazia relatórios e enviava-os a Ramdohr por correio. Ramdohr tinha dado a Hermann um nome secreto, com uma letra maiúscula e um número. Tudo deveria ser «top-secret». Ele deslocar-se-ia depois a Barth e puniria as culpadas, embora Hermann tenha dito que não sabia como. Pelos relatórios das suas espias, Ramdohr ficou a saber que a resistência em Barth estava a ser coordenada a partir do hospital do campo de concentração. Maria Klyugman e outras andavam a tentar trazer medicamentos às escondidas para dentro do hospital e a trocar os números de prisioneiras doentes selecionadas para regressarem ao campo principal pelos números de prisioneiras já mortas. Cabia a Blondine comunicar também este facto, com base no que a sua espia no hospital lhe contava.30 Ela sabia para onde se dirigiam esses camiões, porque tinha a tarefa de selecionar as mulheres «acabadas». E sabia que se destinavam às câmaras de gás ou a Belsen, como disse — «Eu sabia que as mulheres que regressavam iam para o extermínio.» O relato de Hermann revela quão eficaz estava a tornar-se a «insurgência» do Exército Vermelho em Barth. Indubitavelmente, preocupava Ramdohr, que mandou Blondine recrutar mais espias. Os seus interrogadores pediram-lhe que identificasse mais informadoras, sugerindo-lhe nomes, como, por exemplo, Klava, Hawa, Shura e Vlaja, mas ela não conseguia recordar-se deles. Pouco depois, tornou-se claro a Blondine e a Ramdohr que as prisioneiras estavam a obter informações sobre o avanço da frente soviética. De algum modo, andavam a conseguir espalhar folhetos com notícias de quão próximo se encontrava o Exército Vermelho.

«Ele disse que a influência bolchevique estava a apoderar-se de todo o campo.» Nessa altura, Blondine arranjou novas informadoras, que conheceu «num cinema», e chegaram mais chocolates enviados por Ramdohr. Os interrogadores de Hermann voltaram a tentar averiguar a identidade das suas informadoras. Apresentaram-lhe declarações para ela ler, feitas por ex-prisioneiras do Exército Vermelho em Barth, entre elas Maria Klyugman, Tamara Tschajalo e a própria Valentina Samoilova. As declarações, obtidas em Moscovo e enviadas para os Alemães de Leste, destinavam-se a ajudar na investigação e foram incluídas no dossiê da Stasi sobre Blondine. A certo ponto, segundo a transcrição do interrogatório, parte do depoimento de Valentina foi lido em voz alta a Hermann. Foi-lhe dito que Samoilova fizera uma declaração na qual «admitia que ela própria foi recrutada como “agente provocadora” em Barth e que ela, Samoilova, tinha também sugerido que se recrutasse Lyusya Malygina, que se encontrava igualmente em Barth. Às informadoras era oferecida uma alimentação melhor em troca dos seus serviços». Nesta declaração, Valentina nomeou duas vezes Lyusya Malygina como uma das informadoras da Gestapo. «Creio que uma soviética... Lyusya Malygina, trabalhou de facto para os Alemães», afirmava Valentina no depoimento, tal como foi lido a Blondine. Estas revelações nos documentos da Stasi eram perturbantes, especialmente porque contradiziam tudo o que Samoilova tinha dito sobre Lyusya Malygina. «Malygina nunca foi uma traidora, eu conhecia-a tão bem como a mim própria», tinha-me dito Valentina. Uma possível explicação é que o testemunho da ex-prisioneira foi manipulado pela Stasi para sustentar um caso predefinido. Uma outra é que tanto Valentina como Lyusya Malygina se sentiram tão aterrorizadas por Ramdohr, particularmente quando ele mandou montar a forca, que nas últimas semanas da guerra até mesmo aquelas duas mulheres de espírito forte se tornaram de facto informadoras. Algumas informações adicionais constantes do dossiê de Hermann

dão mais uma reviravolta à história. Quando mostraram à ex-guarda fotografias de Lyusya Malygina e lhe perguntaram se ela se recordava dela como informadora, Hermann disse que não se lembrava de todo de Malygina. Perguntaram-lhe várias vezes se Malygina era uma das que tinham acedido a colaborar, mas mais uma vez negou conhecêla. No entanto, quando lhe mostraram a fotografia de Valentina, Hermann imediatamente prestou a informação de que Samoilova «poderia ser a prisioneira “Valya”» — uma das suas informadoras em Barth. No nosso encontro, perguntei a Valentina se ela tinha sido interrogada depois da guerra sobre a sua colaboração com os fascistas, e ela disse-me que sim, embora nunca tenha sido formalmente acusada. «Eles viam que eu tinha as cicatrizes, por isso não podiam acusar-me de ser uma cobarde», disse ela. «Olhe: só tenho um seio, pode ver. Eu provei com o meu sangue que era inocente.» Apontou para o seio e para o ferimento que tinha sofrido em Estalinegrado. A seguir, saiu da sala e voltou com uma caixa cheia a transbordar de condecorações, que lhe tinham sido concedidas por Estaline depois da guerra. Depois de ler o testemunho de Hermann, contactei Valentina mais uma vez e perguntei-lhe como o explicava. Ela disse novamente que se recordava de ser interrogada pelos Alemães na década de 1960, mas que nunca falou contra Malygina. As declarações estavam escritas em alemão, uma língua que ela não compreendia e que, por conseguinte, não pudera verificar. Todos estes anos depois, é impossível saber exatamente o que se encontrava por trás das alegações no dossiê de Blondine. No entanto, a essência da história de Barth parece clara. Na periferia do império de Himmler, distante de Yevgenia Lazarevna Klemm, o círculo do Exército Vermelho desmoronou-se. Em Barth, os espíritos mais fortes foram quebrados, muitos deles pela fome, pela doença e pelo desespero, outros por Ludwig Ramdohr e por Blondine. Mas a história não acabou ali. Quando, depois da guerra, a polícia secreta de Estaline enveredou por acusar os prisioneiros soviéticos

regressados de campos de concentração nazis de «colaboração com os fascistas», sondaram e chantagearam os sobreviventes de todas as maneiras possíveis, tentando voltá-los uns contra os outros. Em entrevistas com sobreviventes encontrei dezenas de exemplos de tais intimidações — de amigos pressionados a trair amigos e de sobreviventes que tinham sido acusados, julgados, enviados para a Sibéria e, em pelo menos um caso, executados. Desses casos, o mais notório centrava-se no chamado julgamento dos médicos em Simferopol, na Crimeia. É provável que nunca se chegue a saber exatamente que provas levaram inicialmente às acusações de Simferopol. Os pedidos aos arquivos russos de acesso às transcrições oficiais dos julgamentos não obtiveram resposta. No entanto, graças à carta que Maria Klyugman escreveu em 1959 a Antonina Nikiforova, temos uma perceção rara de como funcionavam os tribunais de Estaline e das tragédias causadas por eles. Acusadas em Simferopol com Maria Klyugman encontravam-se Lyusya Malygina, Anna Fedchenko, Valentina Chechko e Lena Malachova, todas médicas e enfermeiras no campo de concentração. A carta de Maria começa por um breve relato da sua história pessoal. «Nasci em 1910 em Cernigov e a seguir os meus pais mudaram-se para Kiev. Eu era de uma família grande. Em 1931, fui para o instituto médico em Kiev.» Descreve a sua carreira médica, o seu trabalho na frente de combate como cirurgiã, a sua captura e o que viveu em Ravensbrück, onde, juntamente com várias outras, ao fim de alguns meses passou a trabalhar como médica na Revier do campo principal e em Barth. Depois da guerra, voltou a exercer medicina em Kiev e em Moscovo, até ser detida em 1949 pelo Ministério do Interior e metida na prisão em Simferopol a aguardar julgamento pelo Tribunal Militar de Tavrich Eskoje. «Fomos acusados de ajudar os fascistas a liquidar pessoas», escreveu Maria. «Eu fui acusada de ter injetado pessoas com doses letais de pentotal [um produto anestésico] e de ter infetado as pernas de prisioneiras com bactérias. De dar às mulheres na casa de banho

pedras preciosas para esconderem na vagina.» Por esses crimes, o tribunal condenou as mulheres a vinte e cinco anos num campo de concentração na Sibéria. O julgamento demorou dezasseis meses, e, enquanto as mulheres aguardavam o veredicto, uma delas, Lena Malachova, enforcou-se na sua cela. Maria nomeou a seguir três das acusadoras, todas elas camaradas do campo: médicas e enfermeiras. A primeira do seu grupo a ser detida — Valentina Chechko — foi a primeira acusadora. Interrogada, Chechko «começou a acusar-se a si própria e a nós de termos liquidado pessoas». Duas colegas enfermeiras, Vera Bobkova e Belolipe Tskaya, também testemunharam contra elas: «Vieram várias vezes a Simferopol como testemunhas.» Maria disse que se tinha manifestado contra as acusações em tribunal: «Disse à Chechko que ela teria de viver com as consequências de tornar órfã a filha de Malachova. Por isso, fui para a solitária por quatro semanas. Em dezembro de 1950, fui levada para um campo de concentração perto do lago Taischer, na região de Irkutsk.» As sobreviventes atuais do Exército Vermelho dizem que não sabem de qualquer boa razão para as acusadoras terem traído as suas camaradas, que tinham sido tão corajosas no campo de concentração. Chechko «perdeu a cabeça» durante o seu interrogatório. Bobkova foi intimidada e levada a fazer falsas acusações e estava sob pressão do marido para dizer o que o SMERSH quisesse. Não há dúvida de que muitas soviéticas tinham inveja das médicas e das enfermeiras, que consideravam terem privilégios especiais no campo de concentração. As correspondentes de Antonina no pós-guerra dão ocasionalmente a sua opinião. Tatyana Pignatti escreveu sobre a sua admiração por Maria Klyugman, que viu «à mesa de operações no fogo flamejante de Cernigov», mas acrescentou que no campo algumas jovens suspeitavam de que Klyugman tinha dado uma injeção fatal a uma das suas camaradas que estava a morrer de tifo, aparentemente para

a livrar da dor. A acusação não era verdade, escreveu Pignatti, a injeção tinha sido dada por uma enfermeira da SS — «mas é muito difícil livrar-se da lama». No campo, Klyugman não fez nada de errado, «mas as moças não gostavam dela por causa do seu orgulho». Quanto a Lyusya Malygina, ela e Vera Bobkova eram grandes amigas no campo de concentração, «mas a Vera foi testemunha no julgamento e a Malygina foi condenada». Pignatti não conseguia compreender, dizendo a Antonina: «Já deve ter visto como uma tempestade traz o lixo todo para a costa. A vida limpa essas pessoas como o mar limpa o lixo.»

29 No seu depoimento, Ramdohr diria mais tarde que Milena Jesenska viera ter com ele e revelara os crimes de Rosenthal e de Quernheim, incluindo injeções letais e abortos. «Ao revistar a enfermaria, eu próprio descobri um embrião humano em álcool, que, segundo a declaração de Quernheim, era seu.» Foi em resultado da investigação de Ramdohr que Rosenthal foi despedido e Quernheim detida no bunker.

30 A espia no hospital era a prisioneira suíça Carmen Mory, que naquela altura já tinha sido transferida do campo principal — onde fora Blockova do Bloco 10 — para passar os últimos meses da guerra como uma das espias de Ramdohr em Barth.

CAPÍTULO 20 TRANSPORTE NEGRO A mulher «sofisticada» que apareceu em Ravensbrück para visitar a prisioneira norueguesa Sylvia Salvesen no final do verão de 1943 era uma estudante norueguesa chamada Wanda Hjort. Loura, de olhos azuis e com apenas vinte e um anos, Wanda já visitava prisioneiros noruegueses no campo de concentração para homens de Sachsenhausen, perto de Berlim, há quase um ano. Os prisioneiros desse campo conheciam-na como «a menina dos bolos de batata», porque ela lhos trazia na mochila, feitos em casa pela sua mãe. A ideia de uma estrangeira, especialmente de uma nação inimiga, aparecer aos portões de um campo de concentração para visitar prisioneiros parecia inacreditável. Nenhum civil alemão se atrevia a aproximar-se e o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) não tinha autorização de entrada. Os únicos visitantes eram dignitários alemães e nem mesmo eles podiam avançar para além do blocomodelo. E a história torna-se ainda mais extraordinária ao sabermos que a própria Wanda era prisioneira dos nazis: vivia na Alemanha juntamente com a sua família sob uma forma rara de prisão domiciliária. O estatuto incomum de Wanda resultava da detenção do seu pai na Noruega três anos antes. Depois de as forças alemãs invadirem e em seguida ocuparem o país em abril de 1940, Johan Hjort, um eminente advogado norueguês, contestou a base legal da ocupação. Nessa altura, milhares de resistentes noruegueses estavam a ser capturados e enviados para campos de concentração, mas Hjort foi levado para uma prisão alemã, da qual não tardou a ser libertado, sendo colocado sob prisão domiciliária. Hjort tinha parentes poderosos dentro da Alemanha. O mais influente era o marido da sua irmã, um homem chamado Rudiger von

der Gloz, que era advogado de Joseph Goebbels. Quando Hjort foi detido, o seu cunhado conseguiu obter um acordo: seria permitido a Johan Hjort viver sob prisão domiciliária desde que a sua família vivesse com ele. Aquela ideia foi, com certeza, congeminada pelo próprio Himmler. Através dos seus estudos dos costumes alemães antigos, o Reichsführer descobrira a prática de Sippenhaft, uma tradição segundo a qual as tribos germânicas faziam todos os membros do clã responder pelos crimes de qualquer um deles. Wanda, carismática e com um caráter excecionalmente forte, ficou furiosa com a notícia de que ficaria sob prisão — mesmo que só domiciliária — na Alemanha nazi. Na altura da detenção do seu pai, já colaborava com a resistência, visitando noruegueses capturados que estavam detidos no campo de concentração nazi de Grini, na encosta das montanhas nos arredores de Oslo. Inicialmente, recusou-se a ir para a Alemanha, mas a preocupação com o seu pai levou-a a mudar de ideias, e com a sua mãe, o seu irmão mais novo e a sua irmã, Wanda foi viver para um pequeno bairro residencial perto de Potsdam chamado Gross Kreutz. Uma vez na Alemanha, procurou maneiras de prosseguir no seu trabalho com os prisioneiros e começou a investigar o paradeiro de noruegueses detidos em campos de concentração. Apesar de se encontrarem em prisão domiciliária e de serem vigiados por um guarda da Gestapo, os Hjort desfrutavam de um certo grau de liberdade. Desde que não se afastasse demasiado, Wanda podia viajar em comboios suburbanos. Numa sexta-feira de manhã, acompanhada pelo seu irmão mais novo, também louro e de olhos azuis, partiu para o campo de concentração mais próximo, Sachsenhausen. Ao chegar aos portões, com os caracóis louros a escaparem-se-lhe de um lenço na cabeça, aproximou-se de uma sentinela e disse no seu melhor alemão que gostaria de deixar uns embrulhos para os prisioneiros noruegueses. «O sentinela era novo como eu. Olhou-me desconfiado e pediu-me que preenchesse um impresso, dizendo que teria de perguntar ao seu chefe, mas depois sorriu-me e eu retribuí-lhe o sorriso.» O sentinela

perguntou a Wanda de onde era e ela respondeu que era de Gross Kreutz, o nome do bairro residencial onde vivia, que ele pareceu ouvir como Rote Kreutz, ou Cruz Vermelha. Como não estava a par de regras que proibissem essas visitas, o guarda permitiu-lhe que deixasse os embrulhos. Ela perguntou se poderia regressar na semana seguinte para recolher as caixas, e o guarda disse-lhe que sim, já que também não havia regras contra isso. A partir de então, Wanda Hjort aparecia todas as sextas-feiras aos portões de Sachsenhausen. Em cada visita, testemunhava maus tratos infligidos a homens aterrorizados, esqueléticos. Eles estavam obviamente a morrer à fome. Se havia uma coisa que tinha de ser feita por eles, decidiu Wanda, era assegurar-se de que receberiam embrulhos com alimentos da Cruz Vermelha. Os nazis tinham recentemente feito uma concessão aparente à Cruz Vermelha Internacional no que dizia respeito à questão dos embrulhos para prisioneiros em campos de concentração. No início de 1943, Himmler concordou que os embrulhos com alimentos da Cruz Vermelha poderiam, em teoria, ser enviados para certas categorias de prisioneiros. O CICV tinha até criado um «serviço de embrulhos», assim como a Cruz Vermelha da Suécia, da Noruega e da Dinamarca. No entanto, segundo as regras da SS, a Cruz Vermelha teria de saber o nome, o número e o campo de concentração de cada destinatário, que deveriam ser escritos nos embrulhos, ou estes não seriam entregues. Além disso, o destinatário teria de assinar um recibo. Num número diminuto de casos, a Cruz Vermelha estava de posse desses dados — talvez porque as famílias lhos tivessem comunicado — mas só a SS de Himmler sabia quem se encontrava em cada campo de concentração e os pedidos de obtenção dessa informação eram sempre recusados por Ernst Grawitz, o diretor da Cruz Vermelha nazi. Esse facto tornou o «serviço de embrulhos» quase insignificante desde o início. Wanda Hjort, no entanto, viu maneira de fazer que funcionasse. Empenhou-se em localizar o maior número possível de prisioneiros

noruegueses para criar uma base de dados com nomes e moradas. A notícia das suas visitas espalhou-se entre os prisioneiros noruegueses em Sachsenhausen, que arranjavam maneiras de lhe transmitir informações às escondidas, deixando nomes e moradas debaixo de pedras ou segredando-lhe em norueguês quando ela passava pela vedação. Em seguida, ela começou a estabelecer contacto com as famílias dos prisioneiros na Noruega. A família Hjort estava proibida de enviar cartas e todas as comunicações eram objeto de censura, mas quando Wanda experimentou levar cartas aos correios locais perto de Gross Kreutz e pedir para as enviar para a Noruega, descobriu que a chefe dos correios não tinha instruções para recusar e elas seguiram por correio normal. Não tardou a chegar um verdadeiro dilúvio de cartas, não só das famílias que ela tinha contactado mas também de outras que tinham ouvido falar do seu trabalho e estavam desesperadas por notícias de homens e de mulheres desaparecidos; os seus nomes foram então adicionados à base de dados. Wanda procurou também outros escandinavos a operarem secretamente na Alemanha, entre eles um grupo de pastores protestantes que trabalhavam com homens do mar noruegueses no porto de Hamburgo. Deu-lhes os nomes e os números que tinha recolhido e eles transmitiram-nos à Cruz Vermelha norueguesa, que pôde então começar a enviar embrulhos aos prisioneiros. Durante todo este tempo, Wanda foi ficando a saber através dos seus contactos em Sachsenhausen da existência de outros campo de concentração, desconhecidos fora da Alemanha, para onde outros nacionais noruegueses tinham sido enviados. O nome de Ravensbrück estava sempre a ser mencionado, mas o campo de concentração de mulheres não ficava nas linhas suburbanas e como no início de 1943 as linhas ferroviárias à volta de Berlim já andavam a ser bombardeadas com muita frequência, era difícil chegar até lá. No verão de 1943, Wanda recebeu uma carta da Noruega perguntando se ela tinha encontrado a «Tia Sylvia». A carta vinha assinada pelo Tio Harald. Passara pelo censor. Ao princípio, Wanda

não teve a certeza de quem poderia ser o Tio Harald, mas depois de falar com os pais tornou-se-lhe claro que era o médico norueguês Harald Salvesen, cuja esposa, Sylvia, se encontrava em Ravensbrück. Havia uma relação de parentesco distante, porque o irmão de Salvesen estava casado com uma das muitas tias de Wanda, mas ela nunca tinha conhecido pessoalmente Sylvia ou Harald. Agora tinha uma nova razão para ir a Ravensbrück e resolveu levar um embrulho a Sylvia. A linha ferroviária tinha reaberto. A viagem continuava a ser arriscada e longa, mas Wanda conseguiu chegar à estação de Fürstenberg. Foi a pé para Ravensbrück, por entre flocos de neve e enfrentando um vento gelado que soprava do rio Havel. Perto dos portões, apareceu ao seus olhos uma cena já familiar: pessoas de costas curvadas com vestuário às riscas, de pés nus dentro de socos de madeira. Saber que eram mulheres causou um choque particular a Wanda. Algumas estavam a puxar gigantescos rolos para alisar a estrada, com guardas a fazerem estalar os seus chicotes. Outras estavam a trabalhar nos campos. Wanda aproximou-se de uma sentinela no portão, mas aquilo não era Sachsenhausen: não houve sorrisos, e embora lhe aceitassem o embrulho para Sylvia, Wanda recebeu ordem de se retirar rapidamente. Mas ela tinha de voltar, e a única maneira seria abordar o guarda da Gestapo que vigiava a sua família e dizer que desejava visitar a sua tia. Sabia que era bastante provável que o seu pedido fosse transmitido ao próprio Himmler, o que era arriscado: não só era provável que ele recusasse como o pedido em si poderia chamar a atenção para todo o seu trabalho secreto. Por outro lado, se lhe permitisse entrar no campo de concentração de mulheres, Wanda estava disposta a mexer cordelinhos, mesmo os do Reichsführer. Já antes tinha pedido um favor a Himmler. Pouco depois de chegar à Alemanha, sentiu-se tão infeliz que lhe escreveu diretamente pedindo permissão para ser enviada de volta para casa. Recebeu uma resposta, formulada nos termos mais delicados, dizendo que ela poderia regressar se concordasse em renunciar a toda a atividade

política, mas Wanda não podia aceitar e permaneceu na Alemanha. O pedido para visitar a sua tia em Ravensbrück, no entanto, foi deferido. «Die Salvesen, nach vorn, aber schnell» — «Salvesen, para a frente, mas depressa», — foi como Sylvia ficou a saber da sua visita. Deram-lhe sabão e disseram-lhe que se lavasse e em seguida foi conduzida a uma sala perto do gabinete do comandante. Uma guarda ordenou-lhe que falasse em alemão e que não dissesse uma palavra sobre as condições no campo de concentração. Diante dela na sala encontravam-se um grupo de oficiais da SS e uma jovem bonita e bem vestida com uma indumentária à paisana. Enquanto Sylvia olhava para os homens da SS, aguardando receosamente as suas ordens, a jovem virou-se para ela. «Eu estava a olhar para um par de risonhos olhos azuis e uma voz jovem disse em norueguês: “Bom dia, Tia Sylvia”», ao que os guardas repetiram que elas deviam falar só em alemão. O principal receio de Wanda era que Sylvia suspeitasse de que se tratava de alguma armadilha e negasse conhecê-la. Afinal, elas nunca se tinham encontrado antes. Prosseguiu: «A Mãe manda cumprimentos», e, como viu que Sylvia parecia perplexa, explicou: «A Mãe acabou de ter notícias da Tia Helen. Ela foi ver o Tio Harald e eles estão todos bem lá em casa.» A menção daqueles nomes levou Sylvia a compreender que Wanda devia ser a filha de Johan Hjort, que era um parente distante. Ouvira dizer, ainda antes da sua própria detenção, que ele estava sob prisão domiciliária na Alemanha. Vendo que Sylvia não se recordava do seu nome e que isso pareceria estranho aos guardas alemães, Wanda disse: «Chamo-me Wanda. Já não me via há tanto tempo, Tia Sylvia, que talvez se tenha esquecido do meu nome.» «Sim, tu mudaste muito», respondeu Sylvia, que começava agora a compreender que era imperativo transmitir-lhe uma ideia do que estava a acontecer no campo de concentração. Wanda ajudou-a, dizendo: «A Mãe pediu-me que lhe perguntasse se precisa de alguma coisa que nós possamos enviar-lhe.» Sylvia olhou nervosamente para os alemães e disse: «Não sei se será permitido, mas talvez um par de

pijamas e alguma roupa interior.» Wanda explicou-lhe algo das suas próprias circunstâncias. Quando perguntou à sua «tia» se ela dormia bem, Sylvia disse que sim, «considerando que durmo com entre quatrocentas e quinhentas outras mulheres». Neste ponto, a guarda disse: «Nada sobre o campo.» Depois de tentar transmitir algo mais através de frases indiretas e de olhares, Sylvia inclinou-se para arranjar os socos de madeira e segredou: «É realmente terrível aqui», mas não soube se Wanda a ouviu. Quando Sylvia saía da sala, sentiu-se horrorizada ao ver Ludwig Ramdohr de pé atrás dela, «a devorar» Wanda com os olhos. «Talvez ela me parecesse mais nova, mais pura e mais adorável do que era na realidade — mas para mim ela tinha vindo como uma mensageira de um mundo que eu já quase tinha esquecido, como um raio de esperanças nas trevas.» A seguir, Wanda foi conduzida para o exterior e partiu, deixando um embrulho com pão e manteiga genuína. «Nunca provei nada assim tão delicioso», recordou Sylvia. O que Wanda ficou a saber através de Sylvia era muito pouco, mas tinha estabelecido um contacto vital dentro de Ravensbrück e não tardou a descobrir mais informações sobre outros campos de concentração. Quanto mais ficava a saber, no entanto, tanto mais frustrada se sentia por o mundo parecer ignorar o que estava a acontecer nos campos de concentração. Falando no seu apartamento em Oslo, explicou: Ninguém que viu o que eu vi poderia ignorá-lo. De cada vez que eu ia, sentia-me culpada pelo pouco que podia fazer. Ali estava eu, bem alimentada e bem vestida, a ver aquele terrível sofrimento. Eu achava que alguém que visse aquilo com certeza sentiria o mesmo. E foi por causa desse sentimento de culpa que continuei a ir. Ainda hoje me sinto assombrada pelo que vi. E ainda hoje me sinto culpada. A única razão por que consegui fazer aquilo foi por ser nova e ingénua e ninguém me levar a sério. Mas então também me apercebi de que, por causa disso, eu tinha a obrigação de tentar descobrir tudo o que pudesse e contá-lo ao mundo.

No outono de 1943, Wanda decidiu procurar o auxílio da delegação em Berlim do Comité Internacional da Cruz Vermelha. Foi de comboio à delegação do comité, que estava instalado numa moradia luxuosa

situada no próspero subúrbio de Wannsee. Toquei à campainha, bastante nervosa, pensando que eles não me dariam ouvidos. Mas tinha de lhes dizer o que tinha visto com os meus próprios olhos. A Cruz Vermelha teria de intervir. Era isso o que eu tinha de dizer, porque era a verdade. Na minha inocência, sentia a certeza de que eles não podiam de modo nenhum saber como era terrível, ou estariam a tentar ajudar e a contar ao mundo eles próprios.

Desde os primeiros tempos do domínio nazi, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, com sede em Genebra, os guardiães das Convenções de Genebra, não se mostrou disposto a agir contra as atrocidades nos campos de concentração nazis e opunha-se até a comunicar ao mundo o que sabia. Alguns dos seus elementos que inspecionaram alguns dos campos de concentração antes de rebentar a guerra foram levados a considerar as condições aceitáveis; outros pareciam encorajar Hitler no seu projeto alargado. Carl-Jacob Burckhardt, um dos mais destacados membros do comité e eminente professor universitário de História, visitou os primeiros campos de concentração e foi também convidado a visitar uma série de projetos por todo o Reich. Depois dessas visitas, escreveu pessoalmente a Hitler agradecendo-lhe a sua «magnífica hospitalidade» e dizendo que estava vivamente impressionado com «o espírito jubilante de cooperação» e com os «cuidados sociais» que tinha encontrado. Assinava a carta: «O seu profundamente devoto, profundamente respeitoso, profundamente grato, Carl Burckhardt». Mais tarde, quando as provas de atrocidades aumentavam, o comité de vinte e três membros — todos das famílias mais antigas e mais ricas de Genebra, filantropos e, na maioria, protestantes — optou por uma «diplomacia discreta», que assumiu a forma de cartas bajuladoras a Ernst Grawitz. A política de não intervenção manteve-se ao longo dos programas de eutanásia por gás, da perseguição crescente aos judeus, da detenção dos associais, ciganos e homossexuais e da criação de um campo de concentração para mulheres. Depois de rebentar a guerra, o CICV adotou a posição legal de que auxiliar civis detidos em campos de concentração — ou em campos

de morte — não se incluía no âmbito do seu mandato, que consistia em prestar assistência a prisioneiros de guerra fardados. Não haveria embrulhos da Cruz Vermelha para prisioneiros de campos de concentração nem se fizeram grandes tentativas de inspecionar os campos de concentração. Quaisquer propostas para o fazer eram terminantemente rejeitadas por Berlim. O que era indiscutível no mandato do CICV, no entanto, e ficou consagrado em sucessivos encontros de todo o movimento da Cruz Vermelha, era o dever de «protestar contra os horrores da guerra» e de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance «para mitigar aspetos assassinos». Por outras palavras, mesmo quando o Comité se sentia incapaz de agir, tinha poderes, tinha de facto um mandato para pelo menos denunciar as situações. A este respeito, por qualquer perspetiva que se encarasse, tinha fracassado, sendo esse fracasso ainda mais chocante dado tudo o que sabia. Como principal organismo humanitário do mundo, com contactos no terreno e em todas as capitais, o CICV recebera mais provas da catástrofe que se desenrolava do que qualquer outra organização. As provas mais abismais de todas começaram a inundar a sede do CICV desde a Solução Final acordada em Wannsee em janeiro de 1942. Os relatos do World Jewish Congress, da resistência polaca e de outros movimentos de resistência, de diplomatas, de evadidos, de igrejas, da imprensa e das organizações nacionais da Cruz Vermelha pintavam um quadro realista de genocídio. As provas mais recentes eram tão avassaladoras, particularmente as que chegavam da Polónia, que os líderes dos Aliados — até então céticos em relação às afirmações dos judeus — tinham decidido fazer uma declaração conjunta afirmando que já não havia dúvidas de que Hitler tinha começado a exterminar os judeus da Europa, «a sangue-frio» e com «bestialidade». Uma declaração similar do CICV, os protetores das Convenções de Genebra, poderia ter dado uma autoridade moral forte e independente ao protesto dos Aliados, encorajando outras pessoas — até mesmo na Alemanha — a manifestarem-se. Numa reunião de emergência realizada em novembro de 1942, o

Comité de Genebra teve uma oportunidade histórica para emitir uma tal declaração. Em discussão estava uma moção para fazer um apelo público sem precedentes, revelando ao mundo o que sabia e exigindo o seu fim imediato. Os membros a favor argumentaram que os princípios de humanidade mais fundamentais estavam a ser violados. Margaret Frick-Cramer, uma advogada e a primeira mulher a fazer parte do Comité, declarou que não falar seria uma cobardia. Outros, no entanto, repetiram os argumentos que paralisavam o Comité da Cruz Vermelha desde o início. Carl Burckhardt, que escrevera uma carta cheia de lisonjas a Hitler em 1936 e era agora o presidente efetivo do Comité, dada a doença do presidente Max Huber, argumentou que «operar nos bastidores» e «algumas cartas judiciosas» dariam mais resultados do que um apelo público. Depois de um longo debate, a proposta de um apelo público foi abandonada. Só Margaret Frick-Cramer se manteve a favor, declarando que, com o seu silêncio, o Comité «estava a abandonar os valores morais e espirituais sobre os quais tinha sido fundado». Avisou que não fazer nada naquela conjuntura seria um «ato negativo» e ameaçaria a própria existência do CICV. No entanto, a política de silêncio foi acordada, como todos os que apelassem ao organismo a partir desse momento não tardariam a saber. Quando Wanda — uma visita não convidada — bateu à porta da elegante moradia do CICV em Wannsee, estava decidida a que ouvissem o que tinha para dizer e tinha a certeza de que, quando ficassem informados, tomariam medidas para deter o horror. Pediramlhe que se sentasse e aguardasse, e por fim conduziram-na por uma escadaria monumental para uma grande sala. Estavam todos sentados à volta — todos homens de fato escuro e todos a olharem para cima, para mim — a fitarem-me. Eu disse que era norueguesa e que estivera em contacto com prisioneiros em campos de concentração. Reparei que eram todos bastante jovens. Pareceram escutar-me com atenção. Quando acabei de falar, ficaram em silêncio por uns momentos.

Presumivelmente, o silêncio significava que os homens de fato não

sabiam o que dizer. Nem mesmo o mais sénior, um delegado chamado Roland Marti, conseguira obter acesso a um só campo de concentração, muito menos entregar alimentos como aquela jovem fizera. E nunca tinham ouvido falar de alguns dos lugares de que Wanda lhes falou. Ela tinha até descoberto um campo chamado Natzweiler, na Alsácia, cuja existência era tão secreta que nem constava dos documentos nazis, mas conhecia-o através de prisioneiros de Sachsenhausen. Natzweiler tinha a designação NN — Nacht und Nebel, Noite e Nevoeiro —, o que significava que todos os prisioneiros que ali se encontravam se destinavam a desaparecer. Então, Roland Marti falou. «Disse-me que estavam a par dos problemas dos campos de concentração e que estavam em contacto com o representante da Noruega em Genebra. Disse que lhes interessava qualquer informação que eu tivesse, mas que não podiam torná-la pública e não queriam saber nada sobre como eu a tinha obtido.» Por mais comovente que fosse o apelo de Wanda Hjort aos homens da Cruz Vermelha, um apelo ainda mais surpreendente, também de uma jovem, tinha chegado às instalações em Genebra da Cruz Vermelha nesse mesmo verão. Esse apelo foi escrito dentro do próprio campo de concentração de Ravensbrück e levado secretamente para o exterior. Já há oito meses que Kryzia Czyż e a suas companheiras coelhas tinham embarcado na sua própria campanha para contar ao mundo os crimes de Ravensbrück e os seus métodos eram cada vez mais sofisticados. As coelhas sabiam que a informação estava a chegar às suas famílias em Lublin, porque os sinais secretos chegavam ao campo — uma fita azul ou um arranhão numa lata —, mas nunca podiam ter a certeza de que fora possível transmitir a informação, como esperavam, às pessoas em Londres e em Genebra que estavam em posição de fazer soar o alarme. Mesmo muito tempo depois do fim da guerra, continuou a ser difícil averiguar exatamente quanta informação secreta sobre os campos de

concentração, transmitida pela resistência polaca a Londres, chegara ao seu destino. Quando os comunistas subiram ao poder na Polónia em 1945, muito do material da resistência clandestina durante a guerra foi destruído e milhares de resistentes polacos foram detidos. No entanto, salvou-se um grande número de comunicações secretas do tempo da guerra, graças a uma decisão de preservar os ficheiros da resistência clandestina polaca em Londres, que atualmente continuam a ser guardados no Polish Underground Movement Study Trust, sediado numa casa em banda em Ealing, um subúrbio de Londres. Entre um número incontável de documentos, encontra-se um dossiê que contém comunicações em código enviadas para Londres via Suécia. Nesse dossiê, encontra-se uma mensagem datada de julho de 1943 contendo os pormenores das experiências médicas em Ravensbrück. O documento mais importante é um telegrama em código, um resumo conciso de sete linhas das longas cartas de Krysia. A mãe de Krysia, que era major no Exército Voluntário polaco (AK), transmitiu a informação contida nas cartas da sua filha ao Exército Voluntário em Varsóvia. Daí, esses pormenores foram transmitidos a uma célula polaca na Suécia, onde um militar de transmissões, com o nome de código Lawina, enviou uma mensagem para Londres. No telegrama resultante pode ler-se: «No campo de concentração para mulheres de Ravensbrück, de julho de 1942 a julho de 1943, os médicos alemães, sob as ordens do Professor Gebhardt, realizaram à força experiências em mulheres polacas, nomeadamente operações cirúrgicas a pernas, músculos e ossos, infetando-as também com tuberculose, tétano e gangrena gasosa.» Na mensagem afirma-se que havia setenta e sete vítimas, das quais cinco já tinham morrido. Esta folha de papel fino e amarelado é um testemunho da coragem das estudantes de Lublin, cujas cartas enviadas secretamente revelaram ao mundo exterior uma das mais chocantes atrocidades médicas nazis da guerra algumas semanas depois dos acontecimentos. No telegrama — provavelmente não o primeiro a chegar sobre as coelhas — identificava-se até o nazi responsável

pelas atrocidades: Karl Gebhardt. A correspondência relacionada, no entanto, revela como «o mundo» que elas tinham a esperança de levar a agir optou antes por as ignorar. Horrorizadas pelas práticas «atrozes» e «impensáveis» em Ravensbrück, as autoridades do governo polaco em Londres escreveram imediatamente ao CICV em Genebra e ao Vaticano, apelando a ambos que «interviessem contra este massacre». As experiências «não só eram contra a moralidade das crenças cristãs como contra a ética médica, que só permite que sejam usados animais para fins experimentais». Além disso, as experiências violavam os princípios da Convenção de Haia de 1907. Na correspondência polaca descreve-se em seguida a reação de Genebra: Relativamente a experiências no campo de concentração de Ravensbrück, onde várias centenas de mulheres polacas se encontram detidas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros tomou medidas para instar a Cruz Vermelha Internacional a examinar o caso para intervenção, mas não recebeu um resultado positivo. O CICV explicou que as autoridades alemãs não autorizam o seu representante a visitar este tipo de campo e insistem que tais campos não estão sujeitos às regras da Convenção de Genebra de 1929.

Com essa desculpa, Genebra recusou-se não só a intervir junto dos Alemães mas também a divulgar o que tinha ficado a saber ou a debater a questão com os governos dos Aliados ou com a nova Comissão dos Crimes de Guerra que nessa altura recolhia já provas em Nova Iorque. A reação da Cruz Vermelha é duplamente chocante, dado que não só foi informada das atrocidades como também do nome do seu perpetrador, Karl Gebhardt, um homem que sabiam perfeitamente ser um colaborador próximo de Ernst Grawitz, o presidente da Cruz Vermelha alemã e a personalidade médica mais poderosa no Terceiro Reich. Por conseguinte, como o Comité deve ter compreendido, Grawitz, o seu principal interlocutor em Berlim, o homem que lhes recusava entrada nos campos de concentração, era também o homem que tinha autorizado as atrocidades médicas descritas nos

telegramas polacos. Poucas semanas depois de chegarem a Genebra as revelações de Krysia, Grawitz autorizou novas experiências. Ao longo do início do verão de 1943, as polacas em Ravensbrück encontraram razões para acalentar a esperança de que elas tivessem terminado, mas ninguém podia ter a certeza, e quando dez coelhas foram subitamente chamadas de novo e lhes foi dito que deveriam apresentar-se para trabalharem num subcampo, todas adivinharam que se tratava de uma armadilha. Chegara-lhes informação através de amigas no Schreibstube e recusaram-se a comparecer. Dorothea Binz veio então em pessoa ao bloco ordenar às mulheres que saíssem, mas mais uma vez elas recusaram. Falaram cada uma à vez, dizendo a Binz que sabiam que iriam ser novamente objeto de experiências e que se recusariam a sair do bloco mesmo que tal significasse a sua execução. Segundo Dziuba Sokulska, a advogada de Lublin que liderara o protesto anterior e que constava da lista de dez, Binz «deu a sua palavra de honra» de que as mulheres iriam simplesmente ser enviadas um transporte de trabalho e que deviam ir ao seu gabinete para confirmar a sua identificação. «Decidimos ir, mas na condição de que fugiríamos se víssemos alguma ameaça de irem levar-nos à força», diria Dziuba mais tarde. Quando estavam diante do gabinete de Binz, perto da Revier, as mulheres foram avisadas por amigas polacas de que havia homens da SS e guardas com cães a caminho. «Ouvíamos motorizadas a chegarem e cães a ladrarem do outro lado do muro. Começámos a correr ao longo do campo como animais perseguidos para mostrar a todas as prisioneiras o que estava a acontecer. Quando voltámos para o nosso bloco, ficámos paradas entre as outras para nos escondermos.» Binz chegou com reforços. Para além de agentes da SS, vinha acompanhada por um grupo de prisioneiras polícias, que arrastaram as dez mulheres para o gabinete do trabalho, «mordendo-nos e

dando-nos murros enquanto nos arrastavam até ao bunker». O novo ataque às coelhas, já de si horrífico, foi agravado pela brutalidade daquelas colegas prisioneiras, a trabalharem como «polícias». De todas as mulheres que aceitaram colaborar com a SS, este grupo recém-formado era, naturalmente, o mais desprezado pelas prisioneiras comuns. Enquanto as dez coelhas eram arrastadas para o bunker e fechadas em celas, a «polícia» barricou as prisioneiras dentro do Bloco 15, que tinha as janelas escurecidas, sem comida nem eletricidade. Quem quisesse dissociar-se das dez poderia sair do bloco sufocante, disse Binz, mas ninguém o fez. Até mesmo as Blockovas e as Stubovas checas manifestaram o seu apoio e durante quatro dias o bloco esteve encerrado, cercado pelas prisioneiras polícias. «Subornadas por uma malga mais de sopa de Judas, cumpriam os seus deveres com grande zelo», disse Stanisława Młodkowska, uma das que ficaram detidas no bloco. Dentro do bunker, uma das dez coelhas ameaçadas, Bogna Babinska, teve a ideia de que deviam cometer suicídio em protesto contra as experiências médicas, e Dziuba concordou, mas as outras estavam contra e desistiram da ideia. Ao fim de vinte e quatro horas, as primeiras cinco no bunker foram levadas para outra cela e interrogadas uma a uma por um médico da SS que não conheciam. Numa charada bizarra, dadas as atrocidades anteriores, o médico perguntou às mulheres se acederiam a fazer «uma pequena operação». Todas recusaram, dizendo que já tinham sido operadas. O homem da SS disse então às mulheres que não era verdade. Mesmo quando elas lhe mostraram as cicatrizes, ele continuou a negá-lo, dizendo que as cicatrizes não eram de operações. Entraram outros cinco oficiais e médicos da SS, manietaram as mulheres polacas e seguraram-nas, com elas a debaterem-se e aos berros, amordaçando-as em seguida e aplicando-lhes éter até elas perderem os sentidos. Quando acordaram no dia seguinte, descobriram que as suas pernas, sujas e negras com pó e sujidade, tinham sido mais uma vez operadas enquanto estavam deitadas nas camas na cela. Foram todas transferidas para a Revier e fechadas à

chave numa enfermaria. Helena Piasecka ficou mutilada de uma forma particularmente grave; tinham-lhe injetado um líquido na medula óssea, de modo que parecia que tinha a perna a esmigalharse. Quando Helena tentou caminhar algumas semanas depois, o osso da canela partiu-se. O inverno estava a aproximar-se e mais uma vez o morticínio aumentou. As ordens dadas anteriormente nesse ano de matar só os «loucos» foram ultrapassadas por novas instruções para poupar na alimentação de bocas inúteis, especialmente das que não sobreviveriam ao inverno. Em Ravensbrück, a nova vaga de assassínios começou por ser aparente na Revier, onde se tornaram novamente comuns as injeções letais, por ordem de Treite, como observou Sylvia Salvesen, quando a sua amiga Emma Brundson, uma enfermeira da Cruz Vermelha norueguesa, adoeceu. Ela sofria de cirrose e Treite demonstrara inicialmente alguma compreensão pelo seu caso, tentando operá-la para lhe salvar a vida. Sylvia, ainda com a esperança de que a sua amiga vivesse, foi chamada um dia ao Stübchen, onde encontrou Emma deitada «encolhida na cama como se alguém lhe tivesse batido brutalmente». Estava «morta, mas ainda quente». Sylvia arregaçou a manga do casaco de Emma e encontrou uma marca de injeção com sangue e muco a escorrer dela. Uma prisioneira enfermeira disse-lhe que tinha visto uma das enfermeiras do campo de concentração a sair do Stübchen com uma seringa hipodérmica. Treite chamou Sylvia à sua presença. «A Emma morreu, Salvesen», disse ele. «É melhor assim. Não concorda?» Sylvia tinha contado doze mulheres mortas no Stübchen nesse dia. «A Emma foi a décima terceira.»31 No final do ano, as taxas de mortalidade já estavam a aumentar, não só na Revier, mas também por todo o campo. Uma prisioneira no areeiro que já não conseguia trabalhar foi assassinada a tiro ali mesmo. O número de casos de tuberculose subia em flecha; muitas das prisioneiras na oficina de costura estavam afetadas, mas a

tuberculose espalhou-se com especial rapidez na fábrica da Siemens. Segundo as prisioneiras, as cinco macas mantidas na Siemens e usadas para transportar mulheres doentes da fábrica para as instalações do campo não bastavam. Richard Mertinkat, um novo gerente civil, ficou chocado com o «patético» e «lamentável» estado de saúde das mulheres. «A Siemens podia ter intervindo para insistir em melhor alimentação e casernas decentes para as mulheres. Mas aqueles bons cavalheiros da Siemens não se davam ao trabalho de contar o número de mortas.» Rita Sprengel, que era secretária no Spulerei, recordou: «Muitas das mulheres tinham de ser riscadas das listas como incuráveis. Muitas morriam ainda antes de serem riscadas das listas — usualmente de tuberculose.» Segundo o contrato da Siemens, cada mulher riscada das listas deveria ser substituída por uma mulher saudável, mas havia falta delas, e era tal a sobrelotação que mesmo quando chegavam novas levas de trabalhadoras não havia onde as alojar. Desde setembro de 1943, tinham até começado a chegar novamente judias. Algumas eram «de raça mista», enviadas de Auschwitz para trabalharem. Outras eram as chamadas judias «protegidas» — de países aliados da Alemanha ou neutros, que se opunham ao extermínio dos seus cidadãos nas câmaras de gás. No início de janeiro, esperavam-se grandes números de França. Como a necessidade de espaço se tornava cada vez mais premente, a SS tomou medidas mais radicais para se livrar de bocas inúteis. Treite anunciou que as mulheres idosas com chagas deixariam de ter direito a ligaduras e que às que tivessem tuberculose deixaria de ser dada medicação. As prisioneiras que se encontravam há mais tempo no campo de concentração, recordando os transportes para as câmaras de gás do início de 1942, reconheceram os sinais e sabiam que mais assassínios concertados, «deixando sair um certo número pela chaminé», estavam quase de certeza a ser planeados. Desde 1942, a remoção de prisioneiros inúteis para o extermínio por gás prosseguira, com os «transportes negros» ou Himmelfahrt

(«destinados ao céu»), nos quais de tempos a tempos os camiões levavam pequenos grupos dos chamados lunáticos, assim como outros prisioneiros «inúteis», provavelmente para Auschwitz. As prisioneiras nos subcampos também estavam a par destes planos. Na Revier de Neubrandenburg, os prisioneiros estavam a ser abertamente selecionados para a morte, e em janeiro de 1944 Micheline Maurel, a professora francesa de literatura, escapou por um triz. Após dezoito meses em Neubrandenburg, a saúde de Micheline fraquejou e ela foi internada na pequena Revier do subcampo com febres altas e chagas supurantes. Ficou contente por já não estar à neve e não tardou a travar amizade com outras pacientes na pequena enfermaria. Na cama ao lado, uma jovem paciente polaca chamada Irenka estava a recuperar de febre tifoide, que a tinha deixado paralisada de uma perna. Também ali se encontrava um grupo de jovens russas, que andavam de beliche em beliche a trocar receitas e que depois eram acometidas de ataques de tosse e cuspiam sangue para frascos. Uma prisioneira que era médica do Exército Vermelho troçava de Micheline por causa dos seus «dedos dos pés capitalistas» (estavam deformados pelos saltos altos). E, embora não compreendessem francês, todas escutavam os poemas de Micheline, escritos em pedaços de papel fornecidos pela Blockova amigável, uma prisioneira tão antiga que o seu número era da casa dos 3000. Perto de meados de janeiro, Micheline viu a chefe das guardas de Neubrandenburg entrar na Revier seguida pela prisioneira médica e pela Blockova. «Ela apontou para as mulheres doentes dizendo, “Esta, esta, aquela”. Olhou para mim, que estava coberta de chagas, e desviou o olhar, enojada, mas apontou para o beliche da Irenka e disse: “Aquela”, e depois saiu.» A Blockova apontou para as escolhidas e disse que tinham sido escolhidas para serem enviadas para um campo de convalescença. «Já não vão ter de trabalhar.» Um camião fechado chegou nessa noite. «As pequenas russas tuberculosas, a coxa Irenka e um número substancial de outras foram metidas no camião. O oleado foi

amarrado e o camião partiu, a derrapar um pouco na neve.» Mais tarde, a Blockova sentou-se na cama de Micheline e começou a chorar. «Irenka. Pobre Irenka.» Micheline perguntou porque é que ela estava triste, já que Irenka ia para um lugar melhor, ao que a Blockova olhou para Micheline «desesperançada, sem responder». No campo principal, a SS fazia também tentativas de disfarçar o que estava prestes a passar-se. Segundo Carmen Mory, Treite mandou-a chamar e disse-lhe que o seu bloco, o das tuberculosas, ia todo ser enviado para um lar de convalescença, mas Mory sabia que era mentira e que estavam já selecionados mil nomes para o Himmeltransport, incluindo tanto mulheres que estavam aptas ao trabalho como tuberculosas, epiléticas, mulheres com sífilis e outras doenças, muitas delas «longe de serem incuráveis». De posse desta informação, Carmen foi falar novamente com Treite. «Perguntei-lhe se era verdade que aquele transporte se destinava às câmaras de gás de Auschwitz. Treite disse-me que eu estava louca. Não havia câmaras de gás em Auschwitz, disse ele.» Por volta da mesma altura, Germaine Tillion, a etnóloga francesa, observou secretamente o Dr. Treite enquanto ele selecionava pessoalmente uma criança para a morte. Germaine estava deitada na enfermaria de doenças infeciosas, ainda a recuperar de difteria, quando, para sua surpresa, Treite entrou. Os homens da SS raramente entravam na enfermaria, por receio de contágio, mas Treite não se mostrou receosa e dirigiu-se a um berço onde se encontrava deitada uma criança judia de dois anos. O menino — um dinamarquês, presumivelmente separado dos seus pais — tinha chegado com o transporte recente; era uma das ajudantes de Zdenka quem cuidava dele. Treite pegou delicadamente no menino para o examinar. Julgando que não estava a ser observado, Treite «demonstrou afeto pela criança e até deu ao garotinho uma maçã», mas no dia seguinte o menino desapareceu, e Germaine ficaria a saber mais tarde que nesse mesmo dia Treite tinha escrito o seu nome para a lista de Auschwitz. Como não tardou a saber-se por todo o campo de concentração

principal que iria sair um transporte para Auschwitz, quando surgiu a notícia de que todas as detentoras de cartões cor-de-rosa, independentemente da sua idade, seriam selecionadas, rebentou o pânico, e as prisioneiras que tinham suplicado que lhes fossem dados cartões cor-de-rosa suplicavam que aceitassem a sua devolução. As coelhas tinham tanta certeza do destino do transporte que decidiram mais uma vez falar ao mundo. Dessa vez, as suas revelações foram levadas às escondidas para fora do campo antes de os crimes descritos serem cometidos. Krysia escreveu para casa no dia 28 de janeiro anunciando que «estão a ser organizados transportes de doentes, o seu destino é muito provavelmente as câmaras de gás». Mais uma vez, suplicava que a informação fosse veiculada para que pudesse ser transmitida publicamente. «A lista já foi elaborada», escreveu ela. «Há mil pessoas nela.» Indicava até as categorias das pessoas que seriam assassinadas, entre elas testemunhas de Jeová, crianças judias, mulheres com doenças venéreas e também um grande número de mulheres que trabalhavam, incluindo as exaustas. Encontravam-se todas as nacionalidades na lista, entre elas francesas, russas e polacas. «É impossível tirar seja quem for da lista», dizia Krysia, embora muitas estivessem a tentar. No último dia, cada nacionalidade tentou salvar as suas compatriotas. Sylvia Salvesen suplicou à secretária de Treite que riscasse todos os nomes de norueguesas da lista ou colasse papel em branco por cima deles, escrevendo outros nomes, mas a secretária recusou-se a fazê-lo e disse-lhe que falasse diretamente com Treite. Fui ter com o Treite e supliquei-lhe que as poupasse. Ele tentou enganar-me dizendo que não tinha nada que ver com aquilo e que era a Oberschwester quem decidia. Então, eu fui ter com ela e ela perguntou-me que trabalho faziam as três. Eu disse que tricotavam. «Todas as tricotadeiras são para ir, aconteça o que acontecer», disse ela, e mandou-me sair. A partir desse momento, já ninguém queria tricotar.

As comunistas alemãs aliaram-se às austríacas e às checas e avisaram as Blockovas de confiança do partido do que iria acontecer.

Elas conseguiram tirar das listas cinquenta comunistas detentoras de cartões cor-de-rosa. «Tinham de se tomar decisões difíceis sobre quem salvar e quem indicar na sua vez», recordou uma das alemãs, Hildegard Boy-Brandt. Quando as alemãs na Revier pediram a Treite que riscasse certos nomes, ele respondeu que teriam de ir 800, fosse como fosse, e sugeriu que tentassem substituí-las por «elementos associais». «Era uma terrível responsabilidade», disse Hilde. As pessoas vinham com nomes de outras mulheres mais velhas ou com nomes de idiotas ou criminosas, e pediam aos médicos para os trocarem. Por isso, nós fizemos essa coisa tétrica, e a única coisa a dizer a nosso favor é que salvámos alguns seres humanos de valor. Se não o tivéssemos feito, teria havido uma desgraça ainda maior. Mesmo assim, não é possível descrever como aquilo nos fez sentir. Havia tantas cenas de desespero nos corredores da Revier. Havia muitas ciganas entre as selecionadas e algumas parentes vinham também e pediam para ir com elas. E nós pensávamos, meu Deus, não podemos deixar partir estes seres humanos saudáveis! Mas elas suplicavam de uma maneira que era de partir o coração: «Por favor, deixemme ir» — deixem-me ir com a minha filha, com a minha tia. Quando terminou o processo, nós ficámos num estado lastimável.

Como o tempo para completar a lista estava a esgotar-se, porque a partida do transporte estava prevista para o fim de janeiro, Treite e Marschall afadigavam-se a preencher as faltas, por vezes limitandose a escolher pessoas de um transporte recente. «O Dr. Treite parecia estar a fazer as seleções contra a sua vontade, mas Marschall parecia estar a gostar de o fazer», disse Sylvia Salvesen. Carmen Mory viu Treite e a prisioneira Eugenia von Skene debater como completar a lista a que faltava ainda uma pessoa, porque uma checa tinha sido retirada dela. «Então, o Treite disse: “E se escolhêssemos uma das criminosas velhas?”, e foi à sala dos arquivos, pegou num dossiê, leu em voz alta a ficha médica de uma alemã sifilítica e disse: “Esta serve.”» Desenrolaram-se cenas terríveis na Lagerstrasse. Germaine Tillion recordou: «Um dia, uma mulher a quem chamavam Vercigentorix [o nome de um chefe gaulês] foi selecionada quando estava mesmo ao meu lado.» No dia seguinte, Germaine olhou por uma janela do Bloco 27 e viu uma mulher a sair do Bloco 28 a debater-se com uma

guarda. «Tinha os braços acima da cabeça, como uma figura de um vaso grego.» Anise Girard, a amiga de Germaine, viu uma prisioneira russa muito jovem a ser puxada por mulheres-polícia do campo «literalmente despedaçada pelo desespero». Uma outra russa, Marina Smelyanskaya, foi vista por amigas a correr na direção das casernas das prisioneiras do Exército Vermelho a gritar que tinha sido selecionada para o transporte negro. Olga Golovina recordou como puxou Marina para dentro do bloco e lhe pintou o cabelo com sumo de cenoura, «para ela parecer menos judia», disse Olga. «A seguir, escondemo-la no sótão do bloco. À noite, ela descia e dormia entre mim e a Katzia Goreva. Mesmo antes de amanhecer, voltava a subir para o sótão.» Na Revier, as médicas soviéticas ficaram a saber que cerca de dez nomes de soviéticas tinham sido postos na lista à última hora, entre eles o de Zoya Savel’eva. Foi então a vez de Zoya correr a gritar para dentro do bloco, e quando a notícia de que outras mulheres do Exército Vermelho constavam da lista chegou aos ouvidos de Yevgenia Klemm, ela resolveu agir. As mulheres do bloco das soviéticas foram convocadas e iniciou-se um protesto contra a seleção. «Primeiro, perfilámo-nos no bloco e marchámos na direção da frente do campo. Levávamos as doentes connosco e fomos juntas», disse Olga Golovina. «Berrámos: “Não queremos que as nossas doentes sejam levadas no transporte.”» Algumas disseram que as mulheres do Exército Vermelho foram então enxotadas para o seu bloco, onde se barricaram, «e ficámos todas lado a lado, recusandonos a responder aos números que eles chamavam», disse Leonida Boyko. Homens da SS com armas, assim como algumas guardas, conseguiram arrombar as portas. «Bateram-nos e esbofetearamnos.» Leonida prosseguiu: Finalmente, conseguiram arrastar para fora as mulheres «nomeadas», enquanto nós começávamos a chamar pelo chefe do campo. Ele veio por fim e perguntou, quem fala alemão? «Eu falo», disse Klemm. «Não podem tratar-nos assim, nós somos prisioneiras de guerra. Há convenções reconhecidas sobre a conduta apropriada para

com os prisioneiros de guerra. Não há uma lei no mundo que lhe permita matar e queimar vivos seres humanos doentes e fracos. Nós estamos a protestar contra este transporte negro.»

Fritz Suhren pareceu ficar abalado e em seguida ordenou às mulheres que saíssem do bloco, «antes que eu vos mate a tiro como cães». Ao ouvirem aquilo, as mulheres saíram, mas convocaram uma greve de fome de três dias para continuar o seu protesto. A maioria das que constavam da lista foi levada, mas Zoya Savel’eva mantevese escondida no topo de um beliche. O protesto soviético não resultou na suspensão do transporte, mas sem dúvida ajudou a provocar um atraso: a partida foi adiada oito dias. É possível que o destino do transporte tenha também sido alterado devido ao protesto, porque agora a SS começou a dizer às prisioneiras que o transporte iria para Lublin e de modo nenhum para Auschwitz. «Dou-te a minha palavra de honra de oficial que o transporte vai para Lublin», disse Treite a Carmen Mory. Em Lublin, as mulheres ficariam «ao cuidado da Cruz Vermelha polaca». Uma mulher alemã repreendeu Suhren na Lagerstrasse, dizendolhe que tinha perdido seis dos seus filhos na frente de combate, «e agora você vai-me mandar para a câmara de gás». Suhren deu-lhe a sua «palavra de honra» que as mulheres que estavam de partida iam simplesmente para um lugar melhor em Lublin e seriam substituídas por trabalhadoras mais jovens. «Poderão até escrever às vossas famílias e dizer-lhes para onde foram», disse ele. O que nem Treite nem Suhren declararam foi que o tal «lugar melhor» era o campo de concentração de Majdanek, nos arredores de Lublin, ainda a funcionar em janeiro de 1944 como campo de extermínio. Em 3 de fevereiro de 1944, cerca de 900 mulheres selecionadas foram finalmente reunidas na Lagerplatz. A maior parte não fazia ideia de que tinha sido escolhida para o transporte negro, ou porquê. Uma professora francesa da Bretanha, Yvonne Le Tac, foi chamada nessa manhã do seu grupo de trabalho — a encher colchões com palha — e ordenaram-lhe que marchasse com as outras para a estação ferroviária. Yvonne nunca soube a razão, mas provavelmente foi por

ela ser grisalha; tinha sessenta e dois anos. As prisioneiras que não podiam andar foram levadas de maca. Rita Sprengel recordou que várias das mulheres da Siemens foram «enviadas para Lublin no transporte das doentes». A caminho da estação, algumas mulheres perderam os sentidos. Duas prisioneiras ajudaram a metê-las no comboio e quando essas prisioneiras voltaram disseram que as mulheres iam sessenta em cada vagão de gado, sem comida nem baldes ou qualquer outra coisa para fazerem as suas necessidades. Os vagões foram selados e o comboio partiu pela neve na direção de Majdanek. O relato de Krysia sobre o transporte foi enviado à sua família em Lublin uma semana depois. Do que ela escreve, deduz-se que as prisioneiras no campo ainda não tinham a certeza de que Lublin fosse realmente o destino, nem parece que Krysia soubesse já de Majdanek. No seu relato, diz: Em 3 fev 44 um transporte internacional de 945 mulheres — idosas, doentes e em geral incapacitadas para o trabalho — partiu alegadamente para Lublin (a ser confirmado). Havia 110 mulheres polacas (muitos nomes não sabíamos). Acrescentaram mulheres russas do Exército Vermelho, algumas deficientes da guerra. As mulheres do Exército Vermelho tentaram protestar, mas foram ameaçadas de dizimação. Algumas das mulheres estavam doentes, mas muitas eram saudáveis. Muitas tinham tuberculose, mas seria curável. Conseguimos tirar algumas das listas. Partiram, 30 em cada comboio de mercadorias. Sabemos de 40 que desmaiaram a caminho da estação.

Krysia identificou uma das polacas no transporte como Kiryllo Rozalia (número 7702), que tinha pedido antes de partir que avisassem a sua família em Lublin. Krysia escreveu a morada de Rozalia, acrescentando: «Ela estava doente, mas era curável.» Nas semanas seguintes, chegaram mais notícias a Ravensbrück sobre o destino das mulheres que tinham partido. Duas guardas que viajaram com as prisioneiras regressaram pouco depois e disseram que a viagem tinha demorado pelo menos três dias e que o comboio tivera de parar várias vezes devido à tempestade de neve. Quando os vagões se abriram em Majdanek, dezenas de prisioneiras estavam já mortas, algumas delas com o corpo gelado colado ao chão dos

vagões. Ninguém sabia quantas morreram na viagem nem o que aconteceu às sobreviventes. Mais tarde, chegaram mais notícias, por vezes de sobreviventes do transporte que se viram enviadas de volta a Ravensbrück. Uma prisioneira ficou a saber o que aconteceu à sua mãe por uma dessas regressadas. Ela disse: O pior de tudo para a minha mãe e para as outras mulheres foi a viagem. Ao longo de toda a viagem, entrava neve nas carruagens. Quando os comboios tinham de parar, as mulheres tinham de marchar pela neve profunda. Não havia nada para comer. Depois de uma marcha longa e horrível, chegaram a Lublin. A minha mãe estava nas últimas. Mataram-na imediatamente com uma injeção.

Chegaram ainda outros relatos em que se declarava que, depois de algumas semanas em Majdanek, as sobreviventes da viagem de comboio foram levadas para Auschwitz, onde a maioria desapareceu e, presumivelmente, morreu nas câmaras de gás. Um pequeno grupo de mulheres consideradas aptas para o trabalho sobreviveu e trabalhou em Auschwitz; uma ou duas desse grupo fizeram a viagem de volta para Ravensbrück. Essas mulheres puderam confirmar que a maior parte das suas camaradas levadas no comboio para Majdanek tinha de facto sido assassinada nas câmaras de gás em Auschwitz. Durante este tempo, chegaram notícias de um tipo diferente relativamente ao transporte de Majdanek. Estavam ainda a chegar novas prisioneiras da Polónia todas as semanas, entre elas mais membros da resistência clandestina. Essas mulheres disseram a amigas no campo de concentração que tinham ouvido uma transmissão na rádio inglesa sobre um transporte de mulheres de Ravensbrück enviadas por comboio para serem exterminadas por gás. A transmissão foi feita pela estação de rádio clandestina conhecida como SWIT — Rádio Amanhecer. A notícia da ocorrência dessa transmissão entusiasmou o campo, particularmente as autoras das cartas secretas. Nas suas cartas para casa, Krysia Czyż suplicara que as suas informações sobre «estes atos criminosos» fossem noticiadas na rádio inglesa, e aqui estava a primeira prova de que tal tinha sucedido. Como se sabia que os

serviços de espionagem alemães monitorizavam as estações de rádio como aquela, algumas das polacas acreditavam que a transmissão da SWIT poderia ter contribuído para a decisão da SS de adiar o transporte e de mudar de destino, de Majdanek para Auschwitz, para enganar o mundo exterior. Não se sabe a data precisa da transmissão nem se descobriu ainda a transcrição da notícia. No entanto, um pequeno número de transcrições da SWIT, arquivadas como secretas depois da guerra, apareceu recentemente em arquivos britânicos. Entre elas, há algumas relativas a Ravensbrück, incluindo uma mensagem transmitida dois meses depois do transporte de Majdanek. O material sobre Ravensbrück baseia-se usualmente em informações enviadas às escondidas pelas coelhas, e foi transmitido do estúdio da SWIT na vila de Milton Bryan, no condado de Buckingham, para células clandestinas polacas a escutarem em segredo. Em 3 de maio de 1944, às 19h10, a SWIT transmitiu dez notícias. O número três da lista tinha o seguinte cabeçalho: «Telegrama de Roosevelt: “Roosevelt, no seu telegrama ao Presidente da República polaco, declarou que a luta determinada dos Polacos contra o invasor era uma inspiração para todas as nações que combatem por um mundo melhor.”» Outras notícias diziam respeito à neutralidade da Espanha e a novos relatos de «destruição pelos Alemães da cultura polaca». O item número oito tem por título «Vivissecção em Ravensbrück»: No campo de concentração para mulheres em Ravensbrück, os Alemães estão a cometer novos crimes. As mulheres neste campo estão a ser submetidas a experiências de vivissecção e estão a ser operadas como cobaias. As autoridades fizeram listas de todas as mulheres que tiveram de se submeter a essas operações. Receia-se que esses registos estejam a ser mantidos com a finalidade de assassinar essas mulheres para obliterar todos os vestígios dos crimes. Esses receios são substanciados pelo facto de o campo estar rodeado por trincheiras e por metralhadoras. Neste momento, há cerca de 3000 polacas no campo de concentração de Ravensbrück.

O relatório prossegue com um «Aviso aos Criminosos»:

O destino das mulheres no campo de concentração de Ravensbrück é da responsabilidade de todos os Alemães: oficias e médicos da SS da administração do campo. Por consequência, a principal responsabilidade cabe ao comandante do campo, o Hauptsturmführer Suhren; ao seu ajudante, o Obersturmführer Bräuning; ao Kriminalassistent Ramdbehr [sic] e à chefe das guardas, Binz. A todos esses avisamos solenemente que, se forem cometidos assassínios em massa ou se as experiências de vivissecção prosseguirem, eles serão considerados responsáveis — eles e as suas famílias. Identificámo-los e estamos a descobrir informações específicas sobre as suas famílias. Que eles se recordem de que têm os dias contados. Encontrá-los-emos mesmo que se escondam debaixo da terra. Nenhum dos assassinos contratados de Ravensbrück escapará à justiça. A vingança será tal que futuras gerações recordá-laão. Estes crimes serão vingados com um ferro em brasa.

31 As trabalhadoras da Revier reparavam que as pacientes de Treite também andavam a morrer devido a simples erros durante operações. Treite estava a recorrer cada vez mais a assistentes sem formação. Uma delas deu a uma paciente uma anestesia que era um décimo da solução correta e a outra deu uma solução dez vezes mais forte do que o normal. Ambas as pacientes morreram. Bozena Boudova reparou também num aumento da procura de soro letal. «Eu vi o Dr. Treite na farmácia a encher uma seringa com essa solução.»

QUARTA PARTE

CAPÍTULO 21 VINGT-SEPT MILLE Em 1 de fevereiro de 1944, uma multidão de mulheres apinhava-se numa plataforma de uma estação nos arredores de Paris à espera de um comboio. Fazia frio, mas as mulheres traziam casacos de lã ou roupa de esquiar; algumas vestiam até casacos de pele. Denise Dufournier, uma jovem advogada parisiense, tinha um cobertor enrolado, tirado da cela da sua prisão, atado com uma corda entrançada. As suas amigas Suzanne Hugounencq e Christiane de Cuverville traziam sacolas feitas de lona arrancada a um colchão. Algumas mulheres tinham metido na mala pijamas de renda, caixas de pó de arroz e água de colónia, enviados às escondidas para as celas da prisão em Paris pelas suas famílias. Denise e as suas amigas levavam salsichas, queijo e pão para comerem na viagem. As três tinham-se tornado amigas ao longo dos meses passados na prisão de Fresnes, em Paris. Agora, estavam na plataforma da estação a tentar adivinhar quando voltariam para casa. Como a chegada dos Aliados era esperada o mais tardar em maio, decididamente estariam de regresso até ao Dia da Bastilha, 14 de julho, disse Christiane. Ela era filha de um general e tinha aderido a uma célula de resistência aos dezassete anos sem dizer nada aos pais; quando a mãe de Christiane descobriu que ela tinha sido detida, entrou pelo quartel-general da Gestapo em Paris e declarou: «A minha filha não é terrorista. Quero-a de volta.» Nem Christiane nem nenhuma das outras tiveram a oportunidade de dizer às suas famílias que iam partir para a Alemanha. Denise perdera os pais quando era muito nova, e, depois de passar a primeira fase da guerra com o seu irmão Bernard, que era diplomata, em Portugal, um país neutro, em 1942 decidiu subitamente — contra os conselhos do irmão — regressar a França e aderir à resistência.

Juntamente com várias outras mulheres que se encontravam ali na plataforma da estação, trabalhava com a Linha Cometa, uma rede clandestina de evasão que conduzia militares das forças aliadas para fora da França, usualmente pelos Pirenéus. Foi detida no verão de 1943. Embora aquelas mulheres se sentissem ansiosas, o seu estado de espírito não era sombrio. Sentiam-se contentes por estarem fora das prisões francesas, e o pior que esperavam na Alemanha eram trabalhos forçados, que tinham a esperança de que fossem ao ar livre. Alguém que observasse o grupo poderia pensar que pareciam mais um rancho feliz a partir para umas férias de campismo do que um grupo de prisioneiras com destino a um campo de concentração. A maioria não sabia praticamente nada sobre os campos de concentração e as que sabiam alguma coisa não acreditavam que seriam levadas para um tal lugar. Uma cantora de ópera de Orleães pôs-se a cantar uma balada escocesa e até o «groupe de comtesses» manteve o seu esprit de corps, embora várias recuassem horrorizadas ao verem uma chusma de prostitutas francesas juntar-se na plataforma. Essas mulheres tinham sido detidas por infetarem a Gestapo com doenças venéreas, disseram as condessas. Enquanto aguardavam, chegaram mais mulheres. Geneviève de Gaulle, a sobrinha do líder da França Livre, encontrava-se ali. Uma jovem elegante e reservada, Geneviève trabalhava num jornal clandestino em Paris quando foi detida, embora, evidentemente, o general não soubesse de nada. Viam-se meninas de colégios de freiras, mal saídas da escola, na sua maioria vigias ou mensageiras da resistência, ao lado de irmãs mais velhas que tinham percorrido até oitenta quilómetros por dia de bicicleta a entregar mensagens secretas. Vários elementos do circuito de resistência Prosper estavam ali; o circuito era dirigido a partir de Londres pelo SOE [Special Operations Executive], o Executivo de Operações Especiais, mas tinha sido infiltrado e dizimado. Um grupo de enfermeiras da Cruz Vermelha francesa estava ali,

uma professora da Normandia, uma bibliotecária do Quartier Latin e uma eminente especialista de História de Arte chamada Emilie Tillion. Fora detida juntamente com a sua filha Germaine, uma etnóloga, que tinha sido levada para a Alemanha em outubro do ano anterior, embora Emilie não soubesse para onde tinha ido. Algumas das mulheres na plataforma tinham sido avisadas dos riscos que corriam antes de embarcarem no trabalho de resistência. Cicely Lefort, uma mulher do SOE britânico que aterrou em França à luz do luar num pequeno avião Lysander, tinha sido informada pelos seus chefes em Baker Street de que seria morta a tiro se a detivessem. A maioria, no entanto, pouco sabia sobre os riscos, e várias, detidas em rusgas aleatórias da Gestapo, não faziam ideia do motivo por que ali estavam. Quando a locomotiva do comboio chegou, vinha a puxar vagões, não carruagens, e nas portas dos vagões estavam escritas as palavras: «Homens 40, cavalos 8.» Foram metidas sessenta mulheres em cada vagão. Um guarda pôs um balde de lata no meio e em seguida fechou as portas, trancando cada um dos vagões com uma barra de ferro e um selo de chumbo fixado por cima. Denise, Christiane e Suzanne, esmagadas juntas num dos extremos do vagão, ouviram Geneviève de Gaulle e o seu grupo desatarem a cantar — «Ce n’est qu’un au revoir mes frères» — e a seguir toda a gente cantou a Marselhesa. Por frestas nas portas vislumbravam trabalhadores ferroviários nos carris e atiraram-lhes mensagens de despedida. Cicely Lefort escreveu a morada do seu marido na Bretanha — ele era um médico francês — com uma mensagem em que dizia: «Parto para a Alemanha. C.» Enquanto o comboio avançava para a fronteira alemã, parava de vez em quando e uns soldados abriam as portas para despejar os baldes. As mulheres sentiam sede e debatiam-se no escuro com mãos, braços e pernas que eram sacudidos e colidiam. Depois de passarem a fronteira, um oficial alemão com uma chibata ordenou que saíssem todas. Denise observou que ele «não se atreveu a olharnos nos olhos com receio de ver a nossa confiança na nossa vitória

certa». Foi-lhes dada sopa na paragem seguinte e os soldados berravam «Arbeit, arbeit» e riam-se, e as mulheres riam-se também. «Ainda pensávamos que nos dirigíamos para a Silésia para trabalhar, mas depois virámos para norte e por isso pensámos, não, não pode ser isso», disse Christiane. Mais dois dias, e então, às duas da madrugada de 3 de fevereiro, alguém berrou: «Chegámos.» Saindo aos tropeções meio estonteadas, as mulheres fitaram as guardas e os cães com total incredulidade. A descrição da chegada feita pelas mulheres francesas tem um tom diferente da de muitas outras prisioneiras. Embora se sentissem chocadas com a brutalidade, o que mais recordam atualmente é a sua incapacidade de acreditar no que estavam a ver. «A realidade era tão brutal e tão dura que mal conseguíamos apreendê-la», disse Denise Dufournier. Algumas sobreviventes diriam mais tarde que acreditaram genuinamente que tinham sido levadas para ali por engano. Outras disseram que simplesmente se recusaram a ver o que estava diante delas. «Havia um aroma saudável a resina e o ar parecia salgado nos lábios», disse Denise. «Só o respirar o ar do Báltico era bom», disse Michèle Agniel. As mulheres recordam que se sentiram «meio num sonho» enquanto marchavam até aos portões do campo de concentração, e muitas tropeçavam e caíam. «As nossas trouxas tão cuidadosamente preparadas, mas emaladas à pressa, eram um empecilho», disse Denise. Nos portões, passaram «sem transição de total escuridão para uma luz que cegava». Nesse momento, alguém disse: «Oh, chegámos a um campo de concentração.» Outras disseram: «Não! Estás louca? Não pode ser verdade.» «Dentro dos portões vimos aquele “stupeur des visages” [rostos em estupor]. Era obviamente um lugar de morte. Tivemos a sensação de entrar num matadouro. Realmente, era assim. Mas nunca pensámos que íamos ficar ali», disse Anise Girard. «Está a ver», disse Christiane de Cuverville, «nós éramos “jeunes filles bien élevées” — meninas de boas famílias — e pensámos, isto não pode ser para nós.

É um engano. Virá alguém em breve e levar-nos-á para outro lugar.» Caminhando pelo campo de concentração, viram seres estranhos, famélicos, como figuras da Idade Média, carregando panelões, e então começaram a pensar que tinham todas enlouquecido. «Comam a vossa comida, eles tiram-vos tudo», disse uma dessas figuras, avançando a toda a pressa. No balneário, mandaram-nas despir. «E depois as jovens tiveram de ficar “nues devant leur mère”. Foi o pior. Nesses tempos, a humilhação para as raparigas francesas de ficarem nuas diante das suas mães era algo de terrível.» Enquanto lhes eram rapadas as cabeças, as guardas revistavam os sacos à procura de água de colónia. «Revistaram-nos entre as pernas com escovas de dentes», disse Amanda Staessart, uma belga que estava ali com a mãe. Depois do duche, foram levadas para um bloco temporário para passarem o resto da noite, apinhadas com «seres estranhos meios mortos de fome», e algumas das mulheres sentiram-se tão aterrorizadas por aqueles seres esqueléticos que berraram às guardas que «afastassem delas estes monstros», enquanto outras ofereciam aos seres esqueléticos os seus últimos bocados de comida. Algumas prisioneiras francesas que tinham chegado uns meses antes souberam que tinham amigas ou parentes no novo grupo e tentaram fazer-lhes chegar mensagens. Germaine Tillion, que chegara em outubro, ouviu dizer que a sua mãe, Emilie, estava ali. Ao nascer do dia, apareceu uma mulher com um caldeirão de sopa de beterraba, mas as mulheres francesas recusaram-se a acreditar que aquela comida era realmente para elas. Uma berrou: «Vá lá, nós não podemos comer isto, vamos comer a nossa comida e fazer um piquenique», e fizeram um piquenique, sentadas nas suas sacolas na neve, comendo o queijo e o pão que tinha sobrado da viagem. Olharam à sua volta para ver quem se atreveria a impedi-las, mas os guardas e a polícia do campo de concentração ficaram tão espantados que ninguém fez nada. As prisioneiras que passavam murmuravam «Franzosen» e fitavam-nas. Dentro do seu bloco de quarentena, as francesas continuavam a

recusar-se a acreditar que aquilo fosse real e diziam umas às outras que sairiam dali mal as autoridades se apercebessem do seu erro. Entretanto, as mulheres contavam histórias, recitavam poemas e punham-se a tentar adivinhar quando terminaria a guerra. Inventaram nomes para as «Aufseherinnen» — ou «officerines», como as francesas chamavam às guardas. «Sobreviveremos se não comermos a sopa», disse Christiane, que já tinha dores de estômago por causa dos nabos crus. Alguém olhou lá para fora por uma janela e viu prisioneiras ajoelhadas a partilharem um pedaço de pão e o que pareciam mulheres vestidas à homem a andar no caminho. A Blockova chamou-lhes «les Jules». Quando os ânimos estavam mais abatidos, bastava que uma delas dissesse: «Meninas, sonhei com sapatos ontem à noite, o que deve querer dizer que vamos regressar em breve», para imediatamente circular o boato de que já estariam livres no Dia da Bastilha e toda a gente dar vivas e rir. «Sim, tentávamos sempre rir», diz Christiane. «Está a ver, como não podíamos acreditar, rir ajudava. Lembro-me de que, quando me raparam a cabeça, alguém disse: “Mais dis donc, ei, Christiane, fica-te bem”», e ri-se. «Os outros grupos eram muito mais sérios. As polacas eram muito sérias. Lembro-me do dia pouco depois de chegarmos em que a Blockova polaca mandou que limpássemos tudo porque o Himmler vinha fazer uma inspeção. Mas nós, as francesas, recusámo-nos a mexer uma palha. Por isso, ela ficou muito zangada e disse: “O Himmler vem aí e todo o campo treme e vocês as francesas só se riem.”» A inspeção de Himmler que fez rir as francesas não está anotada na sua agenda oficial, mas a prisioneira alemã Klara Tanke recordase da visita do Reichsführer nos primeiros meses de 1944, porque ele ordenou a sua libertação «ao fim de quatro anos, seis meses e catorze dias no campo de concentração». Ele andava à procura de mulheres para trabalharem no seu gabinete em Berlim, que tinha perdido pessoal nos bombardeamentos recentes. Klara recordou:

«Ele escolheu oito mulheres louras e grandes, e eu fui uma delas.» A inspeção de Himmler deve ter coincidido com mais uma visita a Häschen, que estava à espera de um segundo bebé. Himmler tinha muita necessidade de uma pausa das pressões da guerra, particularmente na frente russa. Segundo Felix Kersten, o seu massagista, a saúde do Reichsführer já não andava boa desde janeiro. Depois de uma sessão de tratamento, Kersten anotou em 15 de janeiro de 1944 que Himmler estava «deprimido na mente assim como na saúde». Deduz-se do relato de Kersten que Himmler estava mais deprimido em relação a questões de propagação — tanto animal como vegetal —, que não estavam a correr como ele esperava. Apesar das chacinas, a população da Rússia continuava a aumentar a uma taxa de três milhões por ano. «Era como a hidra do mito grego. Se lhe cortamos a cabeça, outras sete crescem no seu lugar.» Além disso, queixou-se Himmler, os Russos tinham desenvolvido uma nova espécie de trigo que suportava temperaturas extremamente baixas, o que lhes permitira aproveitar mais terras para norte e cultivar mais trigo para alimentar as suas tropas. Não eram só as questões estratégicas alargadas, segundo Kersten, que preocupavam Himmler; andavam-lhe na mente questões de reprodução mais localizadas. Por exemplo, havia um número demasiado reduzido de oficiais da SS a casar-se e a produzir filhos. O Reichsführer SS tinha também solicitado um relatório sobre a melhor maneira de produzir meninos em vez de meninas. Se as mulheres da Alemanha passassem demasiado tempo em abrigos antiaéreos, haveria pouco tempo para a procriação, disse ele a Kersten. Os comentários de Himmler revelam que no início de 1944 até já ele tinha começado a aceitar — em privado, pelo menos — as limitações, talvez até a loucura, do projeto nazi. Tinha igualmente começado a reconhecer a possibilidade de uma derrota, falando a Kersten da necessidade de sondar os Americanos e os Britânicos, que «não tardariam a compreender o perigo da predominância dos Russos no continente» e a procurar um acordo de paz separado com a Alemanha. Himmler pediu até a Kersten que fosse à Suécia

procurar possíveis parceiros de negociação em Washington e em Londres, e para o recompensar ofereceu ao seu leal massagista a sua propriedade nas proximidades de Ravensbrück, assim como um punhado de prisioneiras — testemunhas de Jeová — para trabalharem como escravas na propriedade. No entanto, apesar dessas dúvidas privadas, em público Himmler, tal como o seu amo, exibia uma certeza absoluta numa vitória alemã. Numa série de discursos proferidos a elementos do partido e aos seu generais da SS em Posen ao longo do inverno de 1943-44, enalteceu as conquistas do Führer, particularmente o seu sucesso na «erradicação da praga dos judeus». Nesta área, Himmler gabava-se de ter de facto conseguido controlar a propagação. Explicou até, com pormenores inusitados, porque tinha sido necessário tomar a «difícil decisão» de matar não só homens judeus como mulheres e crianças judias; tinha como objetivo, disse, evitar uma nova geração de vingadores: Chegamos à questão: como é que é em relação às mulheres e às crianças? Resolvi-me, até nisto, por uma solução completamente clara. Ou seja, não me considero justificado em erradicar os homens — por assim dizer, matá-los ou ordenar que os matem — e permitir que os vingadores, sob a forma das crianças, cresçam para ameaçar os nossos filhos e os nossos netos. A difícil decisão tinha de ser tomada, para fazer que este Volk desapareça da face da terra.

No entanto, mesmo quando falava de vitória, Himmler estava a precaver-se. Começou a reunir reféns detidos nos seus campos de concentração como moeda negocial, pronto para quando se encetassem as suas negociações secretas de paz. Algumas dessas moedas negociais encontravam-se detidas em Ravensbrück. O fosso entre a teoria e a realidade via-se tão claramente no campo de concentração no início de 1944 como em qualquer outra parte do império de Himmler. O Reichsführer tinha ordenado que se reduzissem as taxas de mortalidade para manter vivos os bons trabalhadores, mas em vez disso o número de mortos estava a aumentar e andava a ser construída uma nova fornalha no crematório para dar vazão a esse número crescente de mortes.

As teorias de Himmler sobre nutrição estavam a dar maus resultados constantes. Recentemente, emitira novas regulamentações relativas à alimentação destinadas a aumentar a produtividade. Até 50 por cento dos vegetais na sopa dos prisioneiros deveriam ser crus, acrescentados pouco antes de ela ser servida; a quantidade de comida ao almoço devia ser entre um litro e um litro e um quarto de sopa — passada. Himmler insistira também que os prisioneiros deveriam ter tempo e «calma» para comerem, de modo a fazerem devidamente a digestão. No entanto, como era evidente nos corpos esqueléticos dos campos de concentração, os tubérculos crus estavam a provocar problemas, entre eles sarna e chagas. Quanto à calma das horas das refeições, os blocos estavam tão sobrelotados que não havia lugar para toda a gente se sentar. As trabalhadoras da Siemens trazidas em marcha da fábrica para o almoço mal tinham tempo de comer. Outras ordens emitidas por Himmler e destinadas a melhorar as condições de higiene do campo, e por consequência a produtividade, revelaram-se igualmente inúteis. As prisioneiras deviam ter tempo para lavar o cabelo, supostamente para evitar os piolhos, mas era quase impossível lavarem-se, e, de qualquer modo, as peças de vestuário recicladas que vinham das câmaras de gás traziam piolhos nas bainhas. Ofereciam-se ainda cupões como incentivo para trabalhar melhor, que poderiam ser usados na loja das prisioneiras, mas a loja estava vazia e os cupões tinham provocado um protesto, porque as prisioneiras objetavam a serem subornadas. Outros dois incentivos concebidos por Himmler eram tabaco e uma visita a um bordel. Nem um nem o outro se aplicavam a Ravensbrück: as mulheres estavam proibidas de consumir tabaco e eram as mulheres do campo que forneciam o incentivo nos bordéis. No início de 1944, Himmler ordenou que se abrissem bordéis em três outros campos de concentração masculinos, sendo as prostitutas, como habitualmente, fornecidas por Ravensbrück. Todavia, até mesmo a qualidade das prostitutas estava a decair, como Himmler tinha obviamente observado, já que apelou a medidas

para melhorar o seu aspeto. Nos primeiros tempos, podia contar com Ravensbrück para proporcionar um fornecimento constante de profissionais para os seus bordéis dos campos de concentração, em grande medida porque as associais alemãs eram frequentemente levadas para Ravensbrück diretamente de bordéis em funcionamento e sabiam quais eram os requisitos desse trabalho. Naquele momento, porém, até as associais alemãs que chegavam eram de «pior qualidade», o que não era surpreendente, já que muitas vezes se tratava de mulheres sem abrigo detidas por vaguearem pelas ruas de cidades alemãs bombardeadas. Himmler ordenou que os homens da SS as experimentassem antes de elas serem contratadas. Mas avizinhavam-se problemas muito mais graves. Por exemplo, o que faria o campo de concentração no futuro com o número crescente de mulheres que deixavam de ter qualquer uso? O último transporte de 850 bocas inúteis partiu de Ravensbrück em 3 de fevereiro para as levar para o campo de morte de Majdanek, mas as forças soviéticas estavam agora a aproximar-se de Majdanek e esse campo de morte estava prestes a ser encerrado. E o que havia Ravensbrück de fazer em relação ao número crescente de mulheres grávidas? Não era fácil fazer a triagem de grávidas antes de chegarem ao campo de concentração, e os médicos não podiam simplesmente realizar todos os abortos, especialmente porque o principal abortador, Rolf Rosenthal, estava agora na prisão. Rosenthal tinha sido condenado a oito anos de prisão depois de engravidar a prisioneira parteira Gerda Quernheim — pelo menos duas vezes — e em seguida realizar os abortos. Himmler analisara o seu pedido de clemência e conhecia os pormenores perturbadores. No seu apelo, Rosenthal tentou explicar a sua relação com a prisioneira Quernheim, dizendo que, durante a sua permanência no campo de concentração, se defrontou com dificuldades no seu casamento, porque ele e a sua mulher não podiam ter filhos. Segundo Quernheim, cujo testemunho Himmler também leu, o casal envolviase intimamente quando ficava só à noite na sala de operações.

Nessas ocasiões, ela oferecia-lhe uma chávena de chá, «porque ele me dizia que a mulher dele nunca fazia o jantar e não olhava por ele». Rosenthal, disse ela, tinha sido particularmente bondoso para com ela na noite em que ela ficara a saber que a sua mãe tinha sido ferida num ataque aéreo. Quando Gerda descobriu que estava grávida, não teve outra opção a não ser abortar, e Rosenthal fez-lhe o aborto. Gerda, no entanto, ficou perturbada com a interrupção da gravidez. Ansiando por manter o feto, preservou-o em álcool e guardou-o num frasco na Revier de Ravensbrück. Com certeza, nenhuma imagem por si só poderia simbolizar melhor o trágico absurdo da tentativa nazi de controlar o processo de reprodução, embora seja duvidoso que Himmler o tenha interpretado desse modo. Contudo, Himmler considerou que havia fatores atenuantes no caso e reduziu a sentença de Rosenthal de oito para seis anos, a serem passados nas celas da esquadra da polícia de Dachau. Pouco depois, Quernheim foi enviada para Auschwitz para trabalhar como parteira, mas antes passou um período no bunker de Ravensbrück. A caminho dos portões, Himmler gostava de inspecionar o bunker, que há alguns meses não só servia para punir as prisioneiras mas também como um bom lugar onde deter as suas reféns secretas e outras prisioneiras importantes que pudessem ser-lhe úteis no futuro. Em março de 1944, entre os Prominente contavam-se a amante de um ex-primeiro-ministro francês, um piloto americano, uma condessa polaca e uma dançarina de cabaré alemã. O piloto tinha saltado de paraquedas do seu avião atacado e, como aterrou nas imediações de Ravensbrück, foi levado para lá. Christiane Mabire, uma elegante parisiense, tinha sido secretária particular de Paul Reynaud, o último primeiro-ministro francês antes da guerra. A dançarina era Isa Vermehren, famosa pelos seus espetáculos de cabaré para as tropas alemãs. Isa foi detida por insultar o Führer, embora só tenha sido levada para Ravensbrück depois de um dos seus irmãos, um diplomata alemão, se ter evadido para a GrãBretanha.32

O mais proeminente dos Prominente era, provavelmente, Helmuth von Moltke, o sobrinho-bisneto do herói de guerra prussiano Helmuth von Moltke. Von Moltke júnior, um advogado que estudara em Oxford e era líder de um grupo de resistência alemão, o «Círculo Kreisau», há muito tempo que era considerado uma afronta para o Führer, embora Himmler devesse saber que não constituía uma séria ameaça. O pior que Von Moltke fizera tinha sido tentar alertar a consciência da Alemanha apelando à resistência não violenta e à implementação das Convenções de Genebra nos campos de concentração. Transmitira também informações secretas sobre crimes de guerra a amigos no Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico, oferecendo-se para fazer tudo para os ajudar, mas eles recusaram, pedindo-lhe atos e não palavras. Também detido no bunker encontrava-se um misterioso major britânico, Frank Chamier, que se recusou a dizer o seu nome a Isa Vermehren, identificando-se só como «Frank de Upwey 282», que acabaria por se revelar ser o seu número de telefone. Dos reféns polacos, a condessa polaca Karolina Lackorońska era a prisioneira de mais valor para Himmler naquela fase. Lackorońska, uma ilustre especialista de História de Arte, dava aulas na Universidade de Lwów, na Polónia, quando os Soviéticos invadiram o país em 1939. Horrorizada com o assassínio de vários professores universitários seus colegas, aderiu imediatamente à resistência polaca, primeiro contra os Soviéticos e depois contra os Alemães, até ser capturada e enviada para Ravensbrück. No entanto, não era o que Karolina tinha feito mas quem ela conhecia que era de interesse para Himmler. Quando foi detida, não só a família real italiana escreveu diretamente ao Reichsführer SS a apelar à sua libertação como, no maior secretismo, o diretor da Cruz Vermelha Internacional em Genebra, Carl Burckhardt, um amigo de longa data da condessa, que era até, segundo algumas pessoas, o amor da sua vida. Dada a recusa do CICV de aceitar um papel no auxílio aos judeus e a outros prisioneiros de campos de concentração, o apelo de Burckhardt à libertação de uma amiga pessoal era incriminador, e ele

retirou as suas cartas dos arquivos do CICV depois da guerra. No entanto, conhecem-se algumas das respostas de Himmler, que mostram que Burckhardt apelou pelo menos três vezes ao Reichsführer para que libertasse Karolina. No verão de 1942, escreveu a perguntar a Himmler onde é que Karolina estava detida, ao que Himmler respondeu dizendo que averiguaria. No outono de 1942, Burckhardt solicitou até um encontro a Himmler para discutir o seu caso. Essa intervenção revela uma especial hipocrisia da parte de Burckhardt, dado que precisamente nessa altura estava a aconselhar os seus colegas da Cruz Vermelha, na sua famosa reunião em novembro de 1942, a manterem-se em silêncio sobre os detidos nos campos de concentração. Em consequência das cartas de Burckhardt, Himmler compreendeu que Lanckorońska era uma refém valiosa e a partir do momento em que ela chegou a Ravensbrück assegurou-se de que era tratada excecionalmente bem. A sua cela estava equipada com lençóis da melhor qualidade e ornamentada com flores naturais. Ela deveria ser conhecida no campo de concentração sob o pseudónimo de «Frau Lange» e autorizada a requisitar livros da biblioteca da SS e a andar pelo bunker e no jardim por baixo da sua cela, a conversar com prisioneiros e guardas. Foi graças a este último privilégio que Karolina, uma personalidade extravagante e controversa, conseguiria mais tarde fazer uma descrição da vida no bunker de Ravensbrück. Entre as primeiras prisioneiras que ela encontrou estavam duas clarividentes que tinham sido punidas por preverem o futuro de clientes da SS e numa cela próxima encontrava-se Gerda Quernheim, que pareceu a Karolina ser uma «moça delicada e com boas maneiras» que, «ao ver o meu embrulho de comida, se encantou comigo e me contou absolutamente tudo o que sabia». Quernheim respondeu até às perguntas de Karolina sobre os abortos, admitindo que era um «assunto horrendo». Karolina conheceu também duas guardas alemãs, uma delas detida por roubar roupas de prisioneiras da Effektenkammer e a outra por lesbianismo, que, disse Karolina, era «muito comum entre as

alemãs no campo». Essa mesma lésbica falou a Karolina das prisioneiras especiais de Ramdohr, fechadas sem luz nem comida, e contou mexericos sobre Margarete Mewes, que tinha três filhos, «cada um de seu pai», e sobre Dorothea Binz, «o verdadeiro poder no campo», mas só porque ela estava a ter um caso com o delegado de Suhren, Bräuning. Os dois eram frequentemente vistos de mãos dadas quando as prisioneiras estavam a ser chicoteadas no Bock, disse a mulher, acrescentando que a roupa interior de seda que se via a secar ao lado do bunker pertencia a Binz, que a tinha roubado a uma prisioneira, e ela sabia quem era a prisioneira, mas não diria. Outra das guardas do bunker tinha a constituição de «uma Valquíria», mas era simpática e ajudava Karolina a levar comida às escondidas às prisioneiras das masmorras e às duas clarividentes. Suhren aparecia com frequência e perguntava à condessa se havia mais alguma coisa que ela quisesse, oferecendo-se para mandar vir livros da biblioteca da SS, e, quando Karolina disse que preferia Wordsworth e Tácito aos panfletos nazis do campo, o comandante permitiu-lhe que encomendasse essas obras.33 Passeando junto ao pequeno canteiro de flores no exterior, Karolina observava o pináculo da igreja de Fürstenberg e perguntavase como é que a sua «amada cultura alemã tinha sido tão degradada». As suas reflexões eram sempre perturbadas pelo cheiro que vinha da chaminé, que a lésbica alemã lhe diria mais tarde ser resultante de cabelo queimado. No jardim, ela conversava sobre os clássicos com Christianne Mabire, frequentemente vigiada por Dorothea Binz, que se deixava ficar recostada numa espreguiçadeira por perto. As observações de Lanckorońska sobre Binz são de um tom diferente das de praticamente todas as outras prisioneiras. Para a condessa, ela não constituía qualquer tipo de ameaça, parecendo quase solitária, e adotando modos subservientes para com «Frau Lange» de Himmler. Tagarelava sobre isto e aquilo, e contou à condessa polaca um dia que era cozinheira de profissão, vivia na zona e tinha vinte e dois anos.

Karolina não só não receava Binz como também o seu cão não a intimidava. Parecia a Karolina ser um rafeiro triste e magricela, não a fera monstruosa descrita por outras prisioneiras. Dava a impressão de estar sempre com fome quando Karolina passava por ele, e saltava para ela, farejando-lhe persistentemente os bolsos na esperança de encontrar comida. «Não é bonito ver como ele gosta de si?», disse Binz um dia, com um sorriso. Não sabemos se Karolina alguma vez se encontrou com Himmler nas visitas dele ao campo de concentração, mas descreve os seus «olhos sombrios, a fitarem por trás das suas lunetas», num retrato na parede do gabinete do bunker. Enquanto ela permaneceu no bunker, ele ordenou que lhe enviassem diariamente à cela uma caixa com os seus melhores tomates. Ao sair do campo de concentração, Himmler poderia observar as prisioneiras reunidas na Appell. Talvez reparasse que Ravensbrück se tinha tornado muito internacional recentemente — as letras carimbadas nos triângulos das prisioneiras indicavam que havia vinte e dois países representados. Poderia igualmente constatar que havia um número muito grande de estrelas amarelas. Quinze meses antes, Himmler gabou-se a Hitler de que a Alemanha e todos os seus campos de concentração estavam judenfrei — livres de judeus. Mas a teoria e a prática entravam de novo em conflito, porque perfiladas na Appellplatz de Ravensbrück encontravam-se agora pelo menos 400 judias: as mulheres de «raça mista» de Auschwitz e as judias «protegidas» — cidadãs de países aliados da Alemanha ou de países neutros — que tinham sido poupadas às câmaras de gás, pelo menos por agora. A maioria das judias «protegidas» era de origem húngara, romena e turca e vivia antes na Holanda ou na Bélgica. Não só estavam aquelas mulheres judias desses países ali na Appellplatz, mas também os seus filhos — os «vingadores», que Himmler afirmara no seu discurso em Posen terem «desaparecido». Uma dessas «vingadoras» era Stella Kugelman, uma criança de quatro anos com uns grandes olhos

negros. Stella recorda-se de pouco em relação à sua chegada ao campo, a não ser que era de noite e que a sua mãe, Rosa, perdeu os sentidos mal saiu do comboio. Stella também só tem recordações pontuais da sua vida no campo de concentração. Paradoxalmente, no entanto, sabe bastante sobre os seus primeiros quatro anos de vida, antes de chegar a Ravensbrück, porque tem o diário da sua mãe, no qual ela descreve quase todos os dias da vida de Stella desde o dia em que nasceu até a Gestapo ir lá a casa. Rosa Kugelman (com o apelido de solteira Klionski) era lituana e o seu marido, Louis Kugelman, era espanhol — ambos judeus. Na década de 1920, Rosa e Louis viviam em Londres, onde se conheceram. Em seguida, mudaram-se para Antuérpia, onde Stella nasceu um mês antes de começar a guerra, em 29 de julho de 1939. Dezoito meses depois, a Gestapo veio bater-lhes à porta — o primeiro acontecimento da vida de Stella de que ela se recorda. Lembra-se de um automóvel parar à porta e de «a polícia nos dizer para fazermos a mala e irmos. Recordo que era um dia de sol». Primeiro, a família foi levada para um campo de concentração na Bélgica, onde Rosa e Stella foram separadas do pai de Stella. Ele foi enviado para Buchenwald, enquanto elas foram levadas de comboio para Ravensbrück. Stella acha que se recorda de dizer à mãe no comboio: «Vamos fugir.» Como a sua mãe já estava muito doente com tuberculose e demasiado fraca para tentar escapar, fez uma festa nas longas tranças negras de Stella e tentou sorrir. Foi a visão dos cães à chegada a Fürstenberg que fez Rosa gritar, acha Stella. E quando bateram com bastões na sua mãe, ela desmaiou e foi imediatamente levada, mas Stella não sabe para onde. Vendo-a ali sozinha, alguém deve ter-lhe dado a mão e deve tê-la conduzido, acha ela, porque de algum modo, mais tarde, encontravase num bloco. Tinham-lhe cortado as tranças. Havia ali outras crianças, muitas das quais doentes. As mulheres mais velhas

olhavam por elas. E Stella lembra-se de que, quando o cabelo lhe voltou a crescer, uma mulher francesa lho penteava.

32 Uma vez em Inglaterra, o irmão de Isa, Erich, tinha começado a falar contra Hitler na BBC e também a escrever folhetos de propaganda que eram lançados sobre a Alemanha por aviões britânicos e americanos. «Em resultado disto», disse Isa, «fui detida e posta em Ravensbrück. O meu pai, a minha mãe e outro irmão foram também detidos e mandados para Sachsenhausen.»

33 Quando o exemplar de Tácito para Karolina chegou, Binz informou-a de que o comandante o tinha confiscado, porque continha «orações católicas». Perplexa, Karolina pediu para ver o livro, que era de facto um livro de sonetos de Petrarca. Explicou a Binz que não eram orações católicas, mas poemas de amor, e permitiram-lhe ficar com o livro. «Assim terminou aquele que, tenho a certeza, foi o único encontro de Binz com Petrarca», comentaria Karolina mais tarde. «Presumivelmente, foi a expressão “Madonna mia” que deu origem ao equívoco.»

CAPÍTULO 22 QUEDA «Raus, raus, Franzosensäue. Links recht, links rechts», berram as guardas, mas as francesas não conseguem marchar. Só Christiane, a filha do general, consegue acertar o passo; a maioria nem sequer tenta. Saindo da quarentena, as mulheres são levadas para os seus novos blocos nas traseiras do campo de concentração. «Links recht, links rechts.» Uma mulher desgarrada é pontapeada. «Isto aqui é o mato», diz Denise, quando se aproximam do Bloco 27. Há quem chame a esta fila de blocos — do 27 ao 31 — o bairro de lata. Com a tinta a descascar e janelas partidas, os blocos ficam distantes da parte central e estão construídos sobre terreno arenoso. Ao entrar, as mulheres estremecem. Braços cobertos com chagas estendem-se para a sopa do fim do dia. Em quarentena, as francesas tinham inicialmente recusado a sopa. Quatro semanas depois, agarram em tigelas juntamente com as outras. A tigela de Suzanne élhe arrancada. Ela faz queixa à mulher que está a servir a sopa, uma polaca, que lhe responde em francês: «Então, com que é que vais comer?» Suzanne é empurrada para o lado. «Eslava típica», diz Denise. «Só porque já cá está há quatro anos e nós não.» Alguém berra à ladra, uma russa, que responde aos berros: «Ne ponimayu, ne ponimayu.» A rapariga francesa atira-se à russa, berrando: «Ne ponimayu és tu, sua bruta», mas alguém explica que «Ne ponimayu» significa «Não compreendo». «Isto não tem piada», diz. Uma Stubova diz a Suzanne que vá procurar nos caixotes do lixo uma lata velha de um embrulho de comida de alguma prisioneira que tenha sido deitada fora. «Então há quem receba embrulhos de comida?» As francesas olham fixamente para as outras habitantes do bairro de lata, que as fitam também: «Uma tigela por um pedaço de pão?»

«Du Scheisse Franzosen», berra alguém na multidão. «Que bela receção», murmura Christine, não notando que uma mulher vestida à homem está a observá-las com um olhar esfomeado. São as Jules de que ouviram falar na quarentena. A belga Amanda Staessart pega no braço da sua mãe, prometendo que ficarão juntas. Como os seus números são consecutivos, não poderão ser separadas. Denise exclama: «Olhem para aquilo», ao avistar outro grupo de seres repelentes, mas essas falam numa espécie de francês. São aquilo a que as jeunes filles bien élevées chamam les volontaires — mulheres francesas que se tinha oferecido como «voluntárias» para ir trabalhar na Alemanha. As volontaires também tinham sido trazidas para Ravensbrück, talvez acusadas de algum «crime» — de roubar pão ou de manter relações sexuais com um alemão — ou, o que era mais provável, para serem usadas como trabalho escravo nos subcampos. «Então, também estamos com as gangsters francesas», diz Denise. No bloco ao lado — o Bloco 26 —, as mulheres também estão a fazer fila para a sopa quando uma guarda entra; é jovem, bonita e loura, e traz um bastão. «Ela tem bom aspeto», diz uma das francesas, mas nesse momento a guarda berra: «Ruhe du alte Saum ruhig toi, cochon» — «Calada, sua porca velha, calada, sua porca» —, e o bonito rosto pálido contorce-se e o seu bastão assenta numa das «voluntárias» francesas. A rapariga tinha tentado pentear o cabelo num puxo no cimo da cabeça. «Französin?» Ela acena. «Quem é esta?», pergunta a guarda loura, virando-se para a sua intérprete, uma prisioneira, que diz um nome e em seguida explica em francês, a tremer, que o cabelo deve ser penteado para trás sem volume e que quem desobedecer será espancada até à morte. Observando o efeito dessas palavras nos rostos das francesas, a guarda dá meia-volta e retira-se. A Blockova polaca berra: «Achtung, alle ins Bett» — «Atenção, todas na cama.» Os beliches estão tão juntos que para subir para a cama de cima tem de se trepar como um macaco. À noite, é impossível ir à casa de banho sem andar por cima de centenas de outras mulheres, e muitas

não se dão a esse trabalho, como é óbvio pelo fedor. Denise, Suzanne e Christiane partilham um só colchão. Há um cobertor para as três e elas ficam deitadas na cova deixada na palha pelas trabalhadoras do turno da noite que ali dormiram durante o dia. O nariz de Christiane quase toca no teto. Se estender um braço, toca na camponesa francesa na cama ao lado, que está a gritar pela filha. O que ouvem a seguir é a Blockova a berrar: «Raus, raus, Achtung», e a sirene a soar para a Appell da manhã. O campo de concentração é agora tão grande que o toque de despertar foi antecipado para as três da madrugada. É precisa uma mão forte para fazer as prisioneiras saírem dos beliches, irem para os balneários e estarem lá fora às três e meia. As 959 francesas recémchegadas perfilam-se para serem contadas com as suas camaradas: Paris, Montluc, Fresnes, Dijon e Toulon, de pé e imóveis à luz das estrelas. Os seus triângulos são vermelhos, de prisioneiras políticas, e os seus números vão do 27 030 ao 27 988. Mas não lhes deram o «F» de francesas, como às polacas, que receberam um «P», e às russas, um «R», ou, para o Exército Vermelho, «SU». Isso é deliberado, dizem elas. Os Alemães querem esmagar o orgulho nacional francês. Mas o grupo é tão grande que não tarda a ter o seu próprio nome, tornando-se o vingt-sept mille, uma referência aos números dados a este transporte, todos na casa dos 27 000. «As cabras», murmura uma das raparigas francesas quando as guardas aparecem envoltas nas suas capas pretas de tecido grosso, com os seus caracóis louros impecáveis, mesmo àquela hora. Faz frio e está a ficar ainda mais frio. Christiane é suficientemente alta para avistar toda a Lagerstrasse por cima das cabeças das outras 18 000 prisioneiras, perfiladas num grupo a perder de vista de figuras fantasmagóricas. Annie de Montfort tem a cabeça rapada, descoberta, e uma camada fina de geada cintila nela. A chama vermelha da chaminé do crematório ilumina a extremidade da Lagerstrasse. «Die Nase nach vorne, Franzosensäue», berra uma guarda. —

«Narizes para a frente, porcas francesas.» «Les vaches!», refilam as «voluntárias». As guardas dão palmadas às que batem os pés para os aquecerem. Rajadas de ar gelado trespassam as roupas finas das prisioneiras, e então um murmúrio passa de mulher em mulher na fila. «Mantenham-se firmes, les françaises», mas falta alguém e a contagem recomeça, com uma fila de corpos a caírem por terra, um a um, «como pinos atingidos por uma bola invisível». Entre as que tombam está a bibliotecária do Quartier Latin. A mulher que falta é finalmente arrastada para fora. Todas ficam a vê-la defender-se a estrebuchar contra uma figura corpulenta com uma braçadeira vermelha, que a agarra pelos cabelos, saca de um chicote e lhe aplica quatro chicotadas nas costas. A mulher já não se mexe. Estará morta? A figura desaparece no escuro. «É a Thury. A Thury? É guarda? Não, é outra prisioneira.» As mulheres ficam horrorizadas ao saberem que são também guardadas por prisioneiras. Elisabeth Thury, uma austríaca, é a chefe da «polícia do campo». «La vache», dizem as francesas, fitando Thury.34 De outra direção vem um «corvo» de bicicleta, e enquanto pedala vê uma mulher a deitar-lhe a língua de fora. É uma velha camponesa francesa e está a berrar num dialeto dos Pirenéus que nem sequer as outras francesas compreendem. O «corvo» desmonta e assenta-lhe um pontapé e ela cai por terra. «Alte Sau. Franzosensau.» É montada uma secretária na Lagerstrasse, à qual Binz está sentada a verificar a contagem. Por fim, de regresso ao seu bloco, as vingt-sept mille estão hirtas e em silêncio e desatam a soluçar. Uma mulher de idade implora a Denise que lhe massaje as mãos muito delicadamente, porque lhe doem imenso. Amanda Staessart repara que o cabelo da sua mãe ficou completamente branco. Mal acabam de tomar o «café», as mulheres voltam a marchar para fora para se juntarem às Verfügs, as trabalhadoras disponíveis, para a chamada para o trabalho. Ao trio parisiense é ordenado que cave areia. Denise sugere que tentem fazer castelos na areia para se distraírem, e quando

regressam ao fim do dia sentem-se suficientemente em forma para marchar à volta do bloco «por nenhuma outra razão a não ser para nos exibirmos». Outras prisioneiras observam atónitas as francesas, murmurando: «Franzosen.» Sempre tinha havido no campo de concentração «bairros de lata», por assim dizer — blocos mais sobrelotados e mais sujos do que os outros, usualmente mais para as traseiras, e ocupados por associais, ciganas e outras prisioneiras mais desfavorecidas. No início de 1944, a zona desfavorecida era tão grande que se tornou oficial; do 27 ao 32, os blocos estavam isolados por trás de arame farpado. O Bloco 27, construído para 200 prisioneiras, albergava agora 600, e chegavam mais mulheres todos os dias. A maior parte das russas e das ucranianas era levada para os blocos da zona degradada, assim como as judias, que estavam de novo a chegar ao campo. Todas as francesas foram automaticamente levadas para ali. Não havia exceções: as condessas, as professoras, as filhas de generais, as «voluntárias» e as prostitutas francesas eram todas «Franzosensäue». Suhren tomara medidas para que as polacas ficassem encarregadas delas, como suas Blockovas e Stubovas, pensando que elas detestavam os Franceses por eles terem deixado a Polónia indefesa em 1939. Há quatro anos, eram as polacas que se encontravam no escalão mais baixo, odiadas e desprezadas, mas ao longo do tempo muitas tinham conseguido singrar e eram agora as francesas que eram odiadas — talvez mais ainda do que as polacas alguma vez tinham sido. As verdadeiras aristocratas do campo de concentração mantinhamse afastadas dos «bairros de lata» por causa da imundície e das doenças e também devido a gangues de vigilantes. 35 Até mesmo as guardas se mantinham praticamente afastadas da zona, deixando-a nas mãos das prisioneiras polícias. Dentro dos blocos, no entanto, eram frequentemente as poderosas Puffmütter (madames de bordéis), como a «Gonorreia Wanda», que controlavam a situação.

Anja Lundholm, uma prisioneira alemã enviada para Ravensbrück em 1944, escreveria mais tarde sobre uma mulher a quem chamavam «Gonorreia WandaΩ», que tinha trabalhado num bordel militar antes da guerra e era famosa no campo por ter infetado todo um batalhão de soldados alemães com gonorreia. Wanda não foi presa por espalhar a doença, mas por estrangular o seu filho recém-nascido, atirá-lo para um caixote do lixo e berrar: «Aqui está o seu presente, meu Führer.» Personagens como Wanda eram úteis às autoridades como informadoras e também para ajudar a selecionar mulheres para os bordéis. Foi dito a Wanda que estivesse atenta a recém-chegadas que fossem «saudáveis e bem nutridas». Segundo Anja Lundholm, Gonorreia Wanda era «flácida, com um rosto inchado e um aspeto repelente, sempre rodeada por uma clique de mulheres submissas — todas alemãs com triângulos pretos ou verdes, em quem ela mandava à sua vontade». Estavam a chegar todas as semanas ao campo de concentração mulheres submissas do tipo que Wanda poderia arrebanhar para o seu séquito, usualmente outras «associais» alemãs que os ataques aéreos tinham deixado sem casa. Uma delas era Lydia Thelen. Presa pela polícia em 1943 por vadiagem na sala de espera da estação de caminhos de ferro de Colónia, disse aos interrogadores que o seu marido tinha combatido na ofensiva de Sudetenland e se encontrava agora a combater em França. Disse que o apartamento deles tinha sido destruído nos bombardeamentos dos Aliados e que tudo o que tinha se perdera. Vivia do dinheiro que lhe davam os serviços de indemnizações da guerra. Mas a polícia da cidade suspeitou de que Lydia se entregava à prostituição. Disseram que era um perigo para o Volk e enviaram-na para Ravensbrück, onde morreu em outubro de 1944. À noite, Gonorreia Wanda reunia a sua clique à sua volta para contarem histórias, recordou Anja Lundholm: «A Wanda gostava de se entreter com histórias de amor, sexo ou tragédia», e a própria Anja tornar-se-ia uma dessas contadoras de histórias. Era tão boa

contadora que Wanda a recompensava com pedaços de comida, o que tornava Anja odiada e invejada pelas outras prisioneiras do bloco. A filha do general francês, Christiane de Cuverville, que vivia ao lado dessas personagens no Bloco 27 e vive atualmente numa zona privilegiada de Paris, o 16ème arrondissement, estremece visivelmente ao recordar mulheres como Gonorreia Wanda. «Sim, havia mulheres como essa — quelle horreur.» Era la pagaille — o caos —, diz ela, e em seguida dobra as suas longas pernas, ri-se e fala sobre as Jules. «Na primeira vez que fui abordada por uma Jules, ela ofereceu-me um pedaço de chocolate. Elas vestiam calças e casacos e andavam por ali de cigarro pendurado dos lábios à procura de uma briga ou de sexo. O Bloco 27 era impossível — affreux, terrível. Uma turba que nem imagina — as russas, as ciganas e as criminosas das prisões alemãs, les Jules, les Charlies.» Ao fim dos primeiros dias no areeiro, as mãos das parisienses endureceram e ficaram com a pele cinzenta — e com as roupas, as tigelas de lata e os colchões cheios de areia. Muitas das prisioneiras do grupo do areeiro andavam agora com diarreia, porque simplesmente não conseguiam digerir a sopa de nabos crus, que, segundo Denise Dufournier, era «um líquido amarelado com um cheiro nauseabundo». As cistites tornaram-se também comuns, porque não havia água para beber — só a «mistela preta a que chamavam café». Ao fim de algumas semanas, quase todas as francesas do transporte das vingt-sept mille estavam cobertas de furúnculos e várias tinham sucumbido à tuberculose. As que disseram à chegada que não ficariam com piolhos andavam a coçar feridas na cabeça. Algumas acreditavam que se conseguissem arranjar trabalho no interior as coisas melhorariam. Toda a gente sabia que as escolhidas para trabalharem na Siemens eram mais bem alimentadas para poderem trabalhar mais, mas não pareciam encontrar-se em muito melhor estado do que as outras, saindo do turno noturno «como

fantasmas na madrugada». Como para as três parisienses, Denise, Christiane e Suzanne, a ideia de fazerem armamento alemão era o pior horror de todos, tentavam não dar nas vistas e continuavam a cavar areia. Outras simplesmente não conseguiam suportar a tortura da Appell. Numa manhã, uma mulher que estava perto de Amanda Staessart perdeu os sentidos. Quando uma guarda lançou o seu cão à mulher caída por terra, Amanda gritou: «O que é que está a fazer, sua bruta?», e por isso foi mandada para o Strafblock e posta a trabalhar na recolha de excrementos das latrinas, juntamente com a condessa Yvonne de la Rochefoucauld. Quando a condessa estava a trabalhar na Revier como enfermeira, deram-lhe uma ordem que ela não compreendeu e ela berrou: «Os Ingleses vêm aí, por isso é melhor começarem a aprender inglês. Os Alemães perderam a guerra.» Poderia ter escapado com um murro, mas Carmen Mory, a informadora de Ramdohr, ouviu-a e denuncioua. As francesas diziam que Mory parecia uma personagem de um quadro de Hieronymus Bosch. Ao inverno gélido sucedeu-se uma primavera fria e húmida. A chuva entrava pelos telhados dos blocos degradados e no trabalho a areia ensopada agarrava-se aos pés das mulheres. Denise, Christiane e Suzanne começaram a odiar a areia e o lago. Estavam cheias de furúnculos nas pernas, mas recusavam-se a ir à Revier. Tinham visto o médico — um novo homem, chamado Orendi — quando chegaram e não queriam voltar a vê-lo. Claramente, ele detestava os Franceses. Quando foram à inspeção à chegada, ele mandara-as despir e permanecer no exterior ao frio «como se fosse a coisa mais natural do mundo uma pessoa despir-se num local público, ao ar livre, com temperaturas abaixo de zero», escreveu Denise. O dentista da SS, Martin Hellinger, verificava os dentes à procura de ouro «para poder tirá-lo mais tarde». Todas as francesas tinham deixado de ter o período menstrual e algumas notavam sintomas de menopausa precoce. Foram

submetidas a testes ginecológicos para averiguar quem tinha doenças venéreas e, como eram usados os mesmos instrumentos para todas as mulheres sem serem desinfetados, muitas apanharam doenças de outras. Algumas foram obrigadas a engolir uma substância que lhes provocou borbulhas infetadas por todo o corpo. No entanto, as mulheres com mais idade e as doentes voltavam ao hospital na esperança vã de receberem tratamento. «Onde é que trabalhas?», perguntava Orendi, e se a mulher tivesse trabalho na Siemens ou na oficina de costura, talvez obtivesse um Innendienst, uma autorização para trabalhar no interior.36 Usualmente, no entanto, nas suas «consultas» na Revier, Orendi limitava-se a passar pelas doentes ou a expulsá-las ao pontapé. «Es ist für das Reich. Sie müssen arbeiten gehen, krank oder nicht.» («É para o Reich. Vocês têm de ir trabalhar, doentes ou não.») Noutros dias, passava pela fila de doentes, virava-se e sorria escarninho, tirava a arma do coldre e fazia de conta que disparava. Ria-se e berrava: «Era melhor se eu disparasse sobre umas quantas.» As mulheres gritavam e ele berrava novamente: «Porque não? Vocês vão morrer, de qualquer maneira.» Quando Amanda Staessart foi levada doente do grupo de trabalho das latrinas, ouviu dizer que a sua mãe estava na Revier. Alguém disse: «Anda ver a tua mãe, ela está muito mal.» Eu fui levada até ela e ela disse, fico melhor se me deres um bocadinho de leite. E a seguir morreu. Eu fiquei com ela. Fiquei durante horas. Veio uma enfermeira e disse-me: «Leva a tua mãe embora.» Eu tive de a arrastar para o balneário. Sim, fi-lo eu. Tive de a arrastar. Não sei como consegui. E fiquei com ela no balneário até chegar o camião. Era um camião com trinta cadáveres dentro. E puseram a minha mãe nua por cima e levaram-na embora.

Várias prisioneiras de todas as nacionalidades parecem ter notado a rapidez com que as francesas começaram a decair. Algumas diziam que a culpa era só delas. As checas resmungavam que se as francesas tivessem aprendido a lavar-se poderiam evitar a sarna, as pernas inchadas e os furúnculos. As francesas não gostavam de se lavar em água fria, disse uma mulher checa, «mas nós checas não

conhecíamos outra coisa antes da guerra». Mesmo quando adoeciam, as francesas faziam de conta que não estava a acontecer nada e diziam que estavam com falta de vitaminas. Uma médica do Exército Vermelho, Ida Grinberg, reparou que as francesas «eram muito emotivas e berravam muito». Outras diziam que as francesas passavam demasiado tempo a tentar embelezar-se, pondo gordura no rosto, fazendo laçarotes de farrapos ou combinando a roupa com mais estilo. As russas recordavam-se de que frequentemente elas conseguiam parecer «bastante chiques». Algumas das mais antigas no campo de concentração observavam que as francesas não tinham organização, não tinham liderança. De qualquer modo, não tiveram tempo de se organizarem antes de começarem a perder a saúde, e nessa altura já era demasiado tarde. As francesas não tiveram qualquer apoio à chegada: não havia Blockovas francesas para olharem por elas, ninguém na cozinha para lhes dar mais comida à socapa. Não tinham influência de qualquer espécie; chegaram demasiado tarde, quando os trabalhos melhores já estavam atribuídos. E, de qualquer modo, não queriam os trabalhos dos Alemães e desprezavam outras prisioneiras por elas trabalharem para a SS, como a condessa Karolina Lanckorońska, que se tornou Blockova do Bloco 27. Ao fim de vários meses no bunker privilegiado, Karolina Lanckorońska pediu para voltar para o campo de concentração normal, acreditando que o seu lugar era junto das outras polacas, mas em vez disso mandaram-na dirigir as francesas. Ao princípio, sentia-se entusiasmada por ir conhecer outras mulheres de «alta cultura», como sabia que eram as francesas. Em vez disso, queixouse ela, foi encontrar «uma chusma de mulheres que se recusavam a fazer fosse o que fosse para se ajudarem a si mesmas». Todas as manhãs, um grupo de cada bloco ia à Brotkammer (despensa do pão) buscar o pão para o seu bloco, mas as francesas nunca conseguiam chegar a tempo. «Tinha-se literalmente de as atirar para fora do bloco, senão passávamos todas fome», disse

Lanckorońska, embora reconhecesse que os recipientes eram pesados e que as prisioneiras francesas estavam fracas. «Mas não havia nada a fazer quanto a isso.» Além do mais, as francesas «empenhavam-se em causar problemas». Fazê-las sair para a chamada era «um trabalho horrendo», porque as «agitadoras» francesas provocavam deliberadamente a confusão na contagem, segredando «Formem filas de nove, formem filas de onze», quando sabiam perfeitamente que deviam ser filas de dez. Binz aparecia e dizia a Lanckorońska: «Natürlich die Französinnen!», e dava ordens para elas permanecerem de pé de castigo duas horas, «o que significava mais uns casos de pneumonia». Nenhuma outra prisioneira do campo de concentração observava as recém-chegadas francesas com mais atenção do que Germaine Tillion, a etnóloga francesa, e a sua amiga Anise Girard, que já se encontravam há quatro meses no campo quando as suas compatriotas do grupo das vingt-sept mille chegaram. «Quando elas entraram no campo, aquela visão foi tão otimista e alegre que nos deu esperança — eram um balão de oxigénio», disse Anise Girard. «Mas ao mesmo tempo nós estávamos cheias de receio. Elas chegaram convencidas de que a guerra estava no fim. Estavam tão mal preparadas. Foi trágico o que aconteceu.» No início de 1944, no entanto, poderia dizer-se que Germaine e Anise estavam ainda pior do que as recém-chegadas. Em fevereiro, ambas foram enviadas para um misterioso novo bloco, o Bloco 32. Ficava na parte traseira mais distante do campo, perto dos blocos degradados, mas estava ainda mais isolado, encostado a um muro. Cerca de 300 mulheres foram selecionadas sem aviso para o Bloco 32 e disseram-lhes que teriam de obedecer a um conjunto de regras inteiramente novo e severo. Não era permitido qualquer contacto com as prisioneiras do Bloco 32; havia uma zona interdita à sua volta, com a sua própria vedação de arame farpado. As prisioneiras desse bloco não tinham autorização para sair do perímetro do campo de concentração e

estavam proibidas de enviar ou de receber correio. Nenhuma delas o sabia, mas tinham sido consideradas NN — Nacht und Nebel —, o que significava que estavam destinadas a desaparecer literalmente na noite e no nevoeiro, e ninguém saberia nunca para onde. A visitante norueguesa Wanda Hjort descobriu a existência dessa sinistra categoria em 1943, quando ouviu dizer que os prisioneiros noruegueses detidos em Natzweiler, na Alsácia, eram considerados NN, e transmitiu essa informação à Cruz Vermelha Internacional. Mas ninguém sabia que em janeiro de 1944 abrira um bloco NN para mulheres em Ravensbrück. Hitler aprovou o chamado decreto «Noite e Nevoeiro» em 1942 com a intenção de aterrorizar e demover os resistentes nos países da Europa Ocidental. Nos primeiros anos da ocupação nazi, os cabecilhas da resistência eram executados, mas Hitler considerou que isso criava mártires. Ao abrigo do decreto NN, os resistentes perigosos seriam enviados para campos de concentração e executados em segredo, sem que os seus nomes e o seu paradeiro viessem alguma vez a ser conhecidos. A intenção de Hitler era que, dessa maneira, a família e os amigos dos resistentes sofressem também, vivendo numa perpétua incerteza. A certa altura, no inverno de 1944, foi aplicada a mesma ordem a um pequeno número de mulheres de Ravensbrück, na sua maioria prisioneiras da França, da Bélgica, da Holanda e da Noruega, assim como algumas jugoslavas e polacas. Também detidas no bloco NN encontravam-se as mulheres do Exército Vermelho e as coelhas polacas. Nem Germaine nem Anise compreendiam a razão para as regras da sua detenção terem subitamente mudado. «Tudo parecia aleatório», disse Anise. «Porque é que rapavam uma cabeça e não outra? Porquê matar uma mulher a tiro num dia e outra no dia seguinte? Nunca sabíamos. Por fim, compreendemos que não havia lógica em nada do que eles faziam. As nossas histórias não eram muito diferentes das de outras francesas que chegaram.» A mãe de Germaine, Emilie Tillion, que tinha chegado com as

vingt-sept mille, não foi considerada NN, embora ela e Germaine pertencessem à mesma célula de resistência. Germaine ficara horrorizada ao saber que a sua mãe tinha chegado a Ravensbrück, e agora não podia atravessar a zona interdita para a ver. Ao princípio, as mulheres do bloco NN tinham medo. «Compreendemos que eles queriam que nós ficássemos dentro do perímetro do campo para estarmos disponíveis para execução», disse Anise. Mas não parecia acontecer nada e elas descobriram que havia vantagens em ser NN. As prisioneiras eram todas «políticas», estavam bem motivadas e eram capazes de manter a ordem no bloco — «Não precisávamos que nos dissessem como fazer fila para a comida.» E as que estavam ali dentro eram poupadas aos trabalhos mais duros. Germaine Tillion arranjou até tempo para continuar a sua investigação etnológica: em vez de estudar tribos africanas, começou a estudar o campo de concentração. «O que tem de compreender sobre a Germaine é que ela tinha une enorme tête [uma grande cabeça]», disse Anise, que conheceu Germaine na plataforma da Gare de Lyon, quando ambas estavam à espera de partir para a Alemanha. Cheguei à plataforma e vi uma senhora pequena com um saco muito grande — como um saco de batatas. Ela disse-me que dentro dele trazia a sua tese sobre tribos africanas. Estava a planear trabalhar nela na Alemanha, disse, mas é claro que não fazia ideia de para onde íamos, por isso disse que ia descobrir e apontou para um dos guardas alemães. Disse: «Olha, Anise, vou-te mostrar como uma pessoa se deve comportar com um selvagem. Vou-lhe perguntar para onde vamos ser levadas. Os Alemães adoram a natureza e os animais. Vou-lhe mostrar uma fotografia bonita de uma raposa-do-deserto e ver se ele fala comigo.» Levou a fotografia ao alemão. Naturalmente, ele não sabia nada e disse-lhe que se afastasse — ela falava um alemão abominável. Mas ele adorou a raposa-do-deserto. E não era mau. Até se ofereceu para levar uma carta à minha mãe e eu descobri mais tarde que o fez.

Anise tinha planeado escapar nesse dia. «Assegurei-me de que estava com sapatos bons para correr e de que tinha um bilhete para o metro. Podia ter conseguido.» Perguntei se ela lamentava não o ter feito. Para escapar, tem de se ter muita coragem. Abandonar o grupo e correr riscos. E

eu tinha medo de que eles levassem os meus irmãos. Sabia que se uma pessoa escapasse lhe prendiam a família. Mas, sim, tenho uma sensação de culpa por não o ter feito. E depois havia a Germaine também. Eu era grande e forte. Ela era muito pequena. Não era alguém que conseguisse escapar. Era uma pessoa que pensava, não uma pessoa capaz de correr.

Por isso, Anise ajudou Germaine a levar os seus papéis para dentro do comboio e quando estavam ambas no bloco NN voltou a ajudá-la. Depois de um ataque de difteria à chegada ao campo de concentração, Germaine ficou coxa. «Por isso, ela apoiava-se em mim. Foi quando começaram a chamar-nos Dom Quixote e Sancho Pança.» A investigação de Germaine sobre tribos africanas foi imediatamente confiscada à chegada, mas os seus estudos de Ravensbrück não tardaram a absorver a sua atenção. Logo no início, observou que as prisioneiras mais débeis e isoladas eram mais déracinées, desenraizadas, do que qualquer das pessoas que ela tinha visto em África. O fosso entre as que tinham e as que não tinham — as Schmuckstücke — era mais fundo do que o fosso entre a rainha de Inglaterra e um garoto de rua londrino. Germaine não tardou a começar a coligir dados sobre as chegadas e as partidas e a tentar contar o número de mortas — «e das mortasvivas», disse Anise. Compreendeu rapidamente que Ravensbrück era um lugar de extermínio lento. Sabia que a partida do transporte de Majadanek em 3 de fevereiro tinha sido programada deliberadamente para criar espaço para a nova remessa das vingt-sept mille, que chegou mais tarde nesse mesmo dia. «Nós éramos o novo stock», disse Anise. Germaine ouviu também dizer que os transportes negros continuavam a partir do campo. A sala na Revier chamada Idiotenstübchen era regularmente despejada. Vinham camiões à noite buscar as «idiotas», mas ninguém sabia para onde iam os camiões ou quem eram as idiotas. Várias prisioneiras que trabalhavam na Revier recolhiam agora também informações sobre os transportes negros. Falavam de

mulheres a serem atiradas meio nuas para os camiões, com o número escrito a roxo nas costas. O destino desses transportes era mais misterioso do que nunca. Majdanek, o destino da última grande caravana de camiões para a morte, tinha já sido evacuado. Depois da indignação causada pelo transporte para Majdanek, as caravanas de camiões passaram a ser organizadas com muito maior secretismo. Estes transportes negros mais pequenos foram tão bem ocultados que ainda hoje pouco se sabe sobre o seu destino. Uma enfermeira alemã, a Schwester Gerda Schröder, que chegou em abril de 1944, diria mais tarde no seu depoimento: «Eu sabia que as deficientes mentais iam em transportes e que eram exterminadas, e acredito que o local do extermínio não ficava longe de Ravensbrück.» A informadora Carmen Mory sugeriu no seu depoimento que alguns dos transportes negros nem sequer chegaram a sair do campo de concentração. Na noite de um transporte negro em fevereiro, Mory estava detida numa cela no bunker e ouviu uns guardas a conversarem. «Da minha janela no bunker, eu via a chaminé do crematório, que subitamente começou a deitar fumo», disse ela. Ouviu um homem da SS a falar com uma guarda sobre o fumo e a dizer: «Estão a matar as mulheres do Idiotenstübchen.» A guarda perguntou como é que faziam isso. O homem da SS respondeu que todas as noites um camião ia ao Idiotenstübchen e eram escolhidas mulheres e levadas para o crematório. A seguir, matavam-nas «de alguma maneira» e eram queimadas. Era novidade para Mory que matassem as mulheres ali mesmo no campo. Procurou confirmar esse dado quando voltou para o seu bloco, e perguntou a outra prisioneira, uma outra informadora chamada Giolantha Prokesch, o que tinha acontecido. Segundo Mory, Prokesch confirmou grande parte da história e também lhe disse que, antes de as vítimas serem levadas, chegara uma comissão médica para fazer seleções: «Primeiro, as vítimas foram vistas por uma comissão médica, incluindo o Dr. Treite, o seu chefe, o Dr. Trommer, e um psiquiatra de Berlim. Ao longo de mais de seis horas, os

médicos selecionaram sessenta nomes, colocando uma cruz negra ao lado de cada um.» Prokesch disse a Mory que ao longo de dez dias em fevereiro tinha vindo um camião todas as noites para levar sete ou oito idiotas; por vezes, vinha duas vezes numa só noite. Quando Mory perguntou como é que as mulheres morriam, Prokesch disse que lhe tinham contado que as dos primeiros grupos eram espancadas até à morte e em seguida queimadas. Mas como Suhren se sentia preocupado por os espancamentos poderem produzir demasiado ruído, as restantes foram assassinadas primeiro com uma injeção letal e depois queimadas. As listas das vítimas foram prontamente destruídas. Em abril, as francesas já estavam a morrer mais depressa do que as prisioneiras de qualquer outra nacionalidade. Germaine Tillion diria mais tarde que a razão era simples: como não conseguiam comer a comida, perderam as forças e com elas a vontade de viver. Karolina Lanckorońska observou que havia algo «hediondo» na maneira como as francesas começaram subitamente a morrer. Pereciam sem luta. Não estrebuchavam. Muitas vezes a dormir. Cada vez com mais frequência, ao amanhecer. Mesmo antes da chamada. Uma vizinha vinha a correr com a notícia: «Madame X morreu.» «Quando?»

«Quando, não sei. Sei que estávamos a conversar as duas ao amanhecer. Levantei-me e agora encontrei o corpo dela já a arrefecer.»

34 Elisabeth Thury, uma jornalista social-democrata, foi detida em Viena no primeiro dia da guerra por atividades antinazis. Em Ravensbrück, foi selecionada para trabalhar no arquivo do armazém de roupa do campo de concentração e acabaria por ser promovida a chefe da polícia do campo em 1943. Isa Vermehren, a refém do bunker, disse que Thury tinha «sede de poder e era ordinária» e que as suas «pancadas eram temidas». Tinha «uma cabeça grande, cabelo grisalho com um penteado masculino» e por vezes conduzia um coro do campo de concentração «com um sentimentalismo selvagem». Outras prisioneiras disseram que Thury conseguiu proteger as prisioneiras de alguma violência da SS.

35 Um desses gangues era o «Comando do Espírito Santo». Segundo a prisioneira Joanna Baumann, o gangue de cinco prisioneiras «tratava de prisioneiras que roubassem outras ou as traíssem». Por exemplo, uma prostituta de Dortmund que obrigava outras a fazer trabalhos pesados foi espancada.

36 Era tal o nível de doenças na Siemens em fevereiro de 1944 que Richard Trommer, o médico-chefe, fez uma visita sem precedentes à fábrica, embora a sua intenção não fosse tratar as doentes, mas arredar as mulheres com aspeto mais débil antes de chegarem visitas importantes. «Dois dias depois da inspeção de Trommer, uma delegação de alto nível de Berlim veio inspecionar a fábrica da Siemens.»

CAPÍTULO 23 AGUENTAR Só no início de abril é que o sol de Mecklenburg começou a proporcionar algum calor e mesmo assim só se sentia no subcampo de Neubrandenburg a meio do dia. «Continuávamos a tremer horas a fio de manhã nos nossos vestidos sem mangas, ali ao vento», recordou Micheline Maurel, «mas mais tarde ficava quente e límpido. E o céu, a única real beleza de Neubrandenburg, era soberbo.» O local mais soalheiro ficava nas traseiras do barracão onde se tiravam os piolhos. Ali acocorada, onde o calor da parede e o da terra se encontravam, a amiga de Micheline, Odette, comentou: «Sim, realmente, acho que me estou a habituar a isto. Acho que agora talvez consiga aguentar mais dois meses se for necessário.» Ali por perto, as mulheres encontraram cogumelos, que colheram e esmagaram com azedas e dentes-de-leão, imaginando-os regados com azeite. As russas que as observavam sentiram-se perplexas com aquele manjar francês e colheram os cogumelos todos, de modo que quando as francesas voltaram à procura de mais já não havia nenhuns — as russas andavam a vendê-los em troca de pão. A ideia de que seriam só mais dois meses foi espalhada por recémchegadas, que diziam que poderia faltar só esse tempo para os Americanos e os Britânicos entrarem na França. Na primavera de 1944 chegou um número espantoso de prisioneiras a Ravensbrück. Só em março, deram entrada no campo 4052 mulheres — o triplo da taxa do ano anterior —, fazendo aumentar a sua população para 20 406, o tamanho de uma pequena cidade. As polacas detidas antes da chegada do Exército Vermelho constituíam ainda o maior grupo e se fosse necessária uma prova de que os Soviéticos estavam a aproximar-se, ter-se-ia uma com a chegada em março de prisioneiras do campo de concentração de

Majdanek, perto de Lublin. O Exército Vermelho encontrava-se tão perto de Lublin que Hitler ordenou que o campo fosse evacuado e que os prisioneiros fossem transportados mais para oeste. Em abril, chegou mais uma grande caravana de Paris, com 500 prisioneiras. Mais uma vez, as prisioneiras traziam a esperança de que os Britânicos e os Americanos chegariam a qualquer momento ao território continental europeu — mais um «balão de oxigénio». Saber que os exércitos dos Aliados estavam a aproximar-se, tanto de leste como de oeste, dava às prisioneiras novas forças para se aguentarem. Micheline Maurel lembra-se de que a bondade de uma estranha a ajudou a encontrar forças. Numa noite, quando estavam a servir sopa com semolina às prisioneiras — que, ao contrário da sopa de couves, ela conseguia comer —, uma mulher aproximou-se dela e disse: «“Micheline, eu acho que esta é uma sopa que pode comer. Olhe, tome também a minha.” Esvaziou a tigela dela para a minha e passou sem comida nesse dia.» A mulher sabia o nome de Micheline, mas Micheline não sabia o dela, apenas que era «uma prostituta francesa — um grupo que se mantinha à parte». Outra estranha ajudou também Denise a «aguentar-se». Por duas vezes, Denise tinha escapado à seleção para um subcampo, mas da terceira vez a sua sorte esgotou-se; foi convocada para a inspeção médica requerida, em que com certeza passaria. Enquanto aguardava os resultados na Revier, uma prisioneira enfermeira belga segredou-lhe: «Não é todos os dias que se pratica um ato de caridade, mas eu vou riscar o seu nome da lista. Será a primeira vez que farei uma coisa dessas.» A enfermeira, há pouco tempo no campo, acrescentou: «Mas não diga uma palavra, porque podia ser muito grave para mim.» Denise sentia-se preocupada com a moralidade de evitar a sua vez, já que poderia ser enviada alguma prisioneira mais débil do que ela. Mas essa preocupação não durou muito tempo e ela voltou para junto das suas amigas, Suzanne e Christiane, a cavar areia — o que, subitamente, não parecia assim tão mau: pelo menos não estavam a

fabricar armas alemãs. O mais importante é que a enfermeira belga tinha demonstrado a Denise que havia falhas no sistema. Mesmo num campo de concentração, era possível quebrar as regras. As mulheres que já estavam no campo de concentração há muito mais tempo do que Denise observavam que nunca antes tinha sido tão fácil quebrar as regras como agora, na primavera de 1944. A sobrelotação significava que a ordem estava a desmoronar-se: havia um número demasiado reduzido de guardas, as novas recrutas eram mais fáceis de enganar e durante os ataques aéreos — que ocorriam frequentemente — todo o pessoal da SS fugia amedrontado. As prisioneiras começavam a atrever-se a correr mais riscos. Em março, mais duas polacas escaparam, dessa vez de um grupo de trabalho no exterior. Mais tarde, enviaram um postal ao comandante a desejar-lhe «mais sucessos no trabalho». Numa carta enviada para casa no início de 1944, Krysia Czyż falou à família de «mudanças para melhor». «Antes, podia-se ir parar ao bloco de castigo por qualquer coisa — ou ao bunker —, mas atualmente escapamos impunes a muito. E há muitas mais coisas que se podem arranjar», disse, embora, como sempre, não houvesse medicamentos suficientes para as suas amigas mutiladas. «Podiam mandar Propidon para a perna da Nina?» Apesar da mudança bem-vinda, Krysia tinha novos receios. As cartas que enviou no início de 1944 revelam a sua ansiedade por, com o avanço da frente soviética, toda a comunicação com a Polónia — legal e ilegal — poder ser em breve cortada. Já desde janeiro que pensava em novas maneiras de manter abertos os canais de comunicação quando o Exército Vermelho chegasse a Lublin. Talvez NiuŚ, o «carteiro», pudesse encontrar um substituto, escreveu em 28 de janeiro. Tinha a certeza de que a sua carta seguinte seria a última. «Se puderem, por favor, mandem cálcio em leite em pó. Para confirmar que têm o endereço de NiuŚ, mandem pasta dos dentes. Pensamos em vocês todos. Beijo-vos e abraço-vos com todo o meu amor e despeço-me.»

Foi na chamada das Verfügbar que Denise Dufournier e as suas amigas parisienses primeiro tentaram quebrar as regras. Com o aumento da população do campo de concentração, o número de trabalhadoras disponíveis muitas vezes ultrapassava a procura, e nalguns dias as prisioneiras conseguiam arranjar maneira de não trabalharem, pura e simplesmente. Também descobriram maneira de serem transferidas para grupos de trabalho melhores. Os trabalhos mais procurados eram a jardinagem e as mudanças, mas eram difíceis de obter e, sem presença de espírito, o trio seria escolhido para os piores grupos, como o da remoção do lixo ou o da descarga de carvão das barcaças, enquanto os lugares nos grupos que catavam piolhos e carregavam cadáveres já estavam atribuídos e elas não tinham hipótese de serem escolhidas. O mais receado de todos era o grupo do carvão, que implicava entrar numa enorme cave com carvão empilhado até ao teto, trepar até ao topo e tirar carvão às pazadas, com avalanches a caírem nas cabeças das prisioneiras lá em baixo. As parisienses não tardaram a aprender truques para evitar os grupos maus. Um dos estratagemas consistia em esconder-se na fila cada vez mais longa de doentes à porta da Revier ou entre as trabalhadoras do turno noturno da Siemens, que estavam demasiado exaustas para repararem nelas enquanto esperavam para regressarem aos seus blocos para dormir. Ou então as jovens cobriam a cabeça com lenços roubados no armazém das roupas e cambaleavam como se fossem velhas e aleijadas até as chefes dos grupos de trabalho escolherem mulheres mais fortes. Um outro truque consistia em esconderem-se entre o número crescente de «cartões cor-de-rosa» — as mulheres autorizadas a trabalharem nos seus blocos. Na chamada para o trabalho, essas mulheres tinham agora um lugar especial onde se perfilarem e as muito fracas tinham autorização para se sentarem em bancos. Segundo Denise Dufournier, havia até mulheres com cartões cor-derosa «falsos», que fingiam ter alguma deficiência, e quando terminava a seleção «pegavam nos seus bancos e iam-se embora todas

despachadas». Um dia, as Verfügs parisienses foram selecionadas para o grupo da jardinagem. Munidas de enxadas e ancinhos, foram cavar junto à casa de Edmund Bräuning, o amante de Binz, e viram os seus filhos saírem para a escola de Fürstenberg com raquetes de ténis e livros. O grupo das mudanças era o melhor para circular pelas redondezas e, quando elas eram escolhidas, não permitiam que ninguém lhes tirasse o lugar. Todo o campo andava em mudanças naquela altura, com as prisioneiras a mudarem de bloco, as secretárias a mudarem de escritório e as guardas a serem transferidas, sempre para arranjar espaço para novas chegadas. Por consequência, o grupo das mudanças era muito requisitado, para mudar beliches e fogões, armários de arquivo e arrastadeiras — tudo e mais alguma coisa que coubesse nos seus carrinhos de mão de madeira, que empurravam de um lado para o outro em deslocações intermináveis. Muitas vezes, dava a impressão de que estavam a empurrar as mesmas coisas de um lado para o outro em círculos, várias vezes por semana, mas pelo menos isso significava que viam novos lugares, que nunca tinham sonhado que existissem. No cimo do campo, viram o interior dos blocos 1, 2 e 3, onde as prisioneiras privilegiadas viviam «como a rainha de Inglaterra», como disse Germaine, com o seu próprio colchão, lençóis muito bem dobrados, uma almofada para cada uma e dois cobertores azuis e brancos. No Schreibstube, viram as bem nutridas prisioneiras secretárias, que viviam nos mesmos blocos privilegiados, envergando uniformes às riscas que pareciam imaculados, em comparação com os trapos velhos vindos de Auschwitz que eram dados às «crianças de rua». Segundo as novas regras, todas as prisioneiras que usavam as roupas de mortas eram obrigadas a andar com uma grande cruz preta nas costas, para evitar mais evasões. Passando para a cozinha do campo, as mulheres das mudanças viam máquinas brilhantes e funcionárias da cozinha que «pareciam ter desprezo por tudo o que não fossem tachos e panelas», mas uma delas, Katya, simpatizou com Denise e perguntou-lhe se lhe ensinava

francês. Passavam pelos canis, que também estavam sobrelotados, especialmente porque o número de guardas com cães tinha sido aumentado — mais uma tentativa de evitar mais evasões. A mais maravilhosa das visões era a do Bekleidungswerk, o armazém das roupas, a que Christiane chamou as Galerias Lafayette. No armazém encontravam-se os bens das prisioneiras que lhes tinham sido tirados à chegada. Havia tudo o que se poderia querer, disse Christiane: roupa interior, sapatos, pratas, livros, medicamentos, muitas vezes de origem francesa ou polaca, que podiam ser facilmente «organizados» pelas prisioneiras que ali trabalhavam. Usualmente, a última paragem das mulheres das mudanças eram as instalações principais da Revier, onde frequentemente davam com a carroça dos cadáveres a começar a sua ronda. O grupo de trabalho dos cadáveres carregava primeiro os corpos da Revier antes de seguir para o bunker e daí para outros blocos, a recolher mais corpos, que empilhavam como toros de madeira junto ao crematório situado fora dos muros do campo de concentração, ao lado de um monte de cinzas. Ao fim de algumas semanas, as parisienses já tinham observado o campo de todos os ângulos. Num dia, mandaram-nas até fazer uma mudança de mobília para uma nova caserna de guardas, onde vislumbraram a vida das novas mulheres recrutadas no cumprimento de serviço obrigatório. Estas novas casernas não eram nada como os apartamentos bem equipados que tinham sido oferecidos às guardas recrutadas voluntariamente antes; estavam organizadas de forma semelhante à das casernas em que viviam as prisioneiras, com duas filas de beliches de três andares. Numa das casernas, as francesas viram beliches apinhados quase tão juntos como os delas e mesas com restos de pão seco, cigarros meio fumados e ferros para fazer caracóis. Na vez seguinte em que o grupo foi enviado à caserna das guardas, a sua tarefa foi mudar armários para que pudessem caber ainda mais recrutas. Dessa vez, as francesas encantaram-se a vasculhar os bens das alemãs, abrindo armários e atirando o seu

conteúdo — «roupas vulgares e perfume barato» — para o chão. É impossível dizer quem eram essas guardas alemãs, porque a maior parte dos seus cartões de identificação do campo de concentração foi destruída nas últimas semanas da guerra, mas um cartão pertencente a Elfried Huth chegou até aos nossos dias e revela que ela foi contratada como tratadora de cães em Ravensbrück em junho de 1944. A morada de Huth era o número 36 de Holzhauser Strasse, em Leipzig, e — incrivelmente, dado que Leipzig foi arrasada pelas bombas dos Aliados — o edifício ainda existe. Leonore Zimmermann, com oitenta e oito anos, vem à porta de um dos apartamentos e recorda o sorriso simpático de Elfriede Huth. «Oh, sim, a Elfriede era uma moça agradável — sem nada de especial —, sempre simpática. Era gorducha e tinha cabelo louro arruivado e costumava parar no nosso apartamento para dar dois dedos de conversa a caminho do trabalho. Perguntava sempre se precisávamos de alguma coisa das lojas. O pai dela era carpinteiro, mas tinha bastantes dificuldades de dinheiro, lembro-me.» Leonore diz que Elfried trabalhava como costureira para um negociante de peles judeu antes da guerra e que em 1942 os judeus de Leipzig foram forçados a marchar pelas ruas e levados para os campos de morte de Treblinka e Auschwitz. «Todos os vimos partir», diz Leonore, que tem a certeza de que Elfriede também os teria visto. «Não sabíamos para onde eles iam, mas tínhamos as nossas suspeitas.» Com o desaparecimento dos negociantes de peles, Elfriede dedicou-se à costura em casa. No seu registo indica-se que o seu emprego seguinte foi como supervisora numa das fábricas de armamento da cidade, que empregava trabalho escravo de Ravensbrück. Daí, foi recrutada para Ravensbrück. Depois de alguns dias de treino como tratadora de cães, começou a trabalhar. As prisioneiras do grupo das mudanças não eram as únicas a desprezar as guardas recrutadas que apareceram no campo em 1944. Krysia Czyż disse à sua família que as novas guardas eram cada vez menos qualificadas:

Uma chefe de um grupo de trabalho que tenha jeito pode muitas vezes dar-lhes a volta. Muitas queixam-se agora do trabalho e da comida e falam connosco, porque têm medo. Não imaginam como as guardas tentam lisonjear a cozinheira polaca para terem mais comida. Roubam espargos do quintal e maçãs do pomar. Disputam grupos de trabalho melhores e as guardas nas oficinas roubam fatias de pão dadas à meianoite às prisioneiras.

As prisioneiras ouviam as guardas falarem de como tinham perdido as suas casas nos bombardeamentos ou um pai, um irmão ou um marido na frente de combate. Até chegavam guardas grávidas, recordou Edith Sparmann, a prisioneira cabeleireira, que viu uma nova recruta grávida escolher uma prisioneira judia na Appell e pontapeá-la até ela perder os sentidos. Mais tarde, a mesma guarda veio ter com Edith e ordenou-lhe que lhe arranjasse o cabelo. «Por vezes, elas só vinham ter comigo e pediam-me que lhes fizesse um penteado», disse Edith. «Mas eu disse àquela rapariga que me recusava a arranjar-lhe o cabelo. Não gostava do que tinha visto e ela devia pensar em como o que tinha feito afetaria o bebé por nascer e o bem-estar físico e moral daquela criança. Ela ficou muito incomodada e desatou a chorar.» Lotte Silbermann, a empregada da cantina, reparou que o comportamento dos homens da SS também estava a piorar. Naquela época, havia sempre orgias embriagadas depois de o pelotão de execução — Pribill, Pfab, Schäfer e Conrad — vir à cantina receber o seu bónus de comida, que usualmente era uma febra gigante, vinho, aguardente e cigarros, «tanto quanto eles quisessem». As prisioneiras que os serviam sentiam-se aterrorizadas, disse Lotte, que se recordou de uma ocasião em que Pribill deu a volta ao balcão, pegou num pequeno revólver, «pô-lo na nuca da minha amiga Lottie Guttmann e disse: “Puxo o gatilho?” Foram-se embora e continuaram a beber noutra sala. Abriram a janela e uns a seguir aos outros vomitaram para o relvado lá fora. As testemunhas de Jeová tiveram de vir limpar aquilo». Edmundo Bräuning, o delegado de Suhren, organizava as suas orgias na cantina e as suas guardas favoritas estavam sempre presentes — particularmente Rosel Laurenzen e Dorothea Binz, que

eram «rivais ferozes pelo seu afeto», disse Lotte. «E nós tínhamos de presenciar tudo. Eles fumavam, bebiam e comiam só do melhor. Tínhamos de ir buscar as bebidas discretamente para os outros homens da SS não repararem. Era por isso que cobríamos tudo com um pano.» Num domingo de manhã, Bräuning foi ao bunker buscar um grupo de prisioneiros do sexo masculino que ali estavam detidos a aguardar a morte por enforcamento. Bräuning conduziu os homens para um camião verde e em seguida entrou nele, mas nesse momento apareceu Binz. «A Binz veio a correr e a berrar: “Esperem por mim, esperem por mim, eu também quero ir ver.”» O Kameradschaftsabend da SS — o serão da camaradagem — realizava-se uma vez por mês. Suhren dava início à festa com algumas palavras murmuradas, «mas ele não sabia falar em condições e durante o resto da noite o mestre de cerimónias era o Bräuning, mas não demorava nada a ficar completamente bêbedo, indo de mesa em mesa, sempre seguido pela Binz, porque ela era muito ciumenta — e o Bräuning era casado e pai de três filhos». A maioria dos principais homens da SS trazia a esposa nestas ocasiões, mas não Bräuning. Ao fim de pouco tempo, toda a gente estava bêbeda e perdia o autocontrolo. «Nós, as empregadas nessas ocasiões, éramos submetidas a coisas nojentas. E o Suhren mandava parar a festa, mas os outros homens continuavam a beber até de manhã.» Depois do dia de trabalho, o grupo francês das mudanças retiravase como de costume para os seus blocos degradados, onde no início do verão a falta de lei e de ordem já era crescente e um gangue ucraniano de «miúdas da rua» reclamara o seu território ao lado de um monte de armários que estavam ali a apodrecer ao sol. Dentro dos blocos, a palha furava já os colchões, fazendo os beliches parecerem «uma pocilga», mas para animar as coisas o groupe de comtesses pôs trapos vermelhos nas janelas partidas. Havia vantagens nas condições cada vez piores, até mesmo ali.

Era tal a sobrelotação dentro dos blocos que, como as guardas não cabiam entre os beliches, raramente havia inspeções e as jovens francesas podiam ter uma série de tesouros — um lenço de pescoço, uma batata dada por Katya, um lápis — escondidos no colchão. Antes de irem dormir, sentavam-se umas atrás das outras a catar piolhos da cabeça à sua frente, que esmagavam com as unhas enquanto contavam mexericos. As mulheres francesas com mais idade começaram também a organizar-se, e surgiu um grupo de intelectuais, entre elas Emilie Tillion, a mãe de Germaine, que, sentada no seu beliche, dava palestras sobre História de Arte e cultura francesa. Entretanto, Annie de Montfort (cujo nome de batismo era Arthémise DeguirmendjianShah-Vekil; os seus pais tinham fugido ao genocídio dos Arménios na Turquia em 1915) organizava seminários sobre a História da Polónia. Em 1919, Annie tinha fundado uma sociedade franco-polaca em Paris e sob a ocupação nazi cofundara — com o seu marido, Henri de Montfort — uma revista clandestina, La France Continue, o que levou à sua detenção. As intelectuais francesas juntaram-se a polacas com os mesmos interesses e criaram uma «associação internacional» dentro do campo de concentração com o objetivo de promover laços culturais entre todos os grupos de prisioneiras. O caos permitia às mulheres consolidar um sentido de comunidade maior do que nunca, disse Maria Moldenhawer, uma das organizadoras da nova associação. As «delegadas» de cada país fizeram planos para continuar o seu trabalho depois da guerra, «mas, devido à morte de alguns dos elementos mais destacados no grupo e por outras razões, isso não foi possível». Evidentemente, ao contrário do que Suhren pensava, nem todas as polacas detestavam as francesas, embora como grupo nacional elas continuassem a deixar as prisioneiras perplexas. Até mesmo a francófila Maria Moldenhawer parece ter sido incapaz de decidir o que pensar delas. Algumas das francesas eram «do pior tipo de rua», disse ela, enquanto as prisioneiras políticas francesas, «vindas de uma nação que não tinha conhecido o cativeiro, frequentemente com

muita audácia, embora pouco avisadamente, opunham-se às ordens das autoridades e com bastante bravata». Maria Moldenhawer talvez estivesse a pensar em Jacqueline d’Alincourt, um dos elementos do groupe de comtesses, que, no início do verão de 1944, teve a «audácia» de se opor às tentativas das autoridades de mandar prisioneiras francesas trabalhar para os bordéis. No verão de 1944, os três novos bordéis de campos de concentração de Himmler já estavam a funcionar, mas a escassez de boas recrutas agudizara-se; as associais alemãs que chegavam agora a Ravensbrück eram quase demasiado decrépitas para aquele trabalho. Em dezembro, as polacas tinham protestado contra as tentativas de as recrutarem,37 assim como grupos de russas e de ucranianas. Eram tais os horrores que circulavam agora sobre o que se passava nos bordéis dos campos de concentração masculinos que poucas se sentiam tentadas, mesmo que isso significasse sair de Ravensbrück, e ninguém acreditava na mentira de que seriam libertadas ao fim de seis meses. Uma mulher que regressou em 1944, após seis meses num bordel, contou a Anja Lundholm os horrores de violações e abusos sexuais que se cometiam ali. «Todas as manhãs, as prostitutas tinham de se levantar e deixar que as guardas as limpassem. A seguir ao café, os homens da SS vinham e começavam a violar e a abusar das mulheres. Aquilo continuava durante dezasseis horas por dia e só tínhamos duas horas e meia para o almoço e o jantar.» Friedericka Jandle, uma austríaca que trabalhava no Schreibstube, tinha uma amiga vienense no escritório que se oferecera como voluntária. «Ela acreditava que seria libertada se acedesse a fazê-lo. Eu tentei dissuadi-la, mas ela disse-me: «Não tenho nada a perder.» Seis meses depois, regressou. Estava acabada. Totalmente esgotada. Destruída. Ela disse que lamentava não me ter dado ouvidos.» No entanto, como as recém-chegadas francesas ainda não sabiam a verdade, a SS encontrou mulheres dispostas a aceitar a proposta

entre as volontaires e as prostitutas trazidas de bordéis franceses. «Ao princípio, elas não compreenderam, estas mulheres», disse Jacqueline d’Alincourt. Com apenas dezanove anos quando chegou — alta, elegante e proveniente de uma família aristocrática —, Jacqueline ficou horrorizada ao descobrir que não só partilhava o bloco com «camponesas russas embrutecidas e ciganas ladras» como com «todo um bordel de Rouen». «Elas não tinham qualquer formação», disse-me ela. Não tinham nada a que se agarrar — nem religião nem valores. Lembro-me de uma dessas pobres criaturas deitada no colchão a dizer: «Porque é que eu estou aqui, porque é que eu estou aqui?» Nós, as da resistência, sabíamos porque estávamos ali. Tínhamos uma superioridade de espírito, compreende? Tínhamos o desejo de não morrer na Alemanha e de voltar a ver a França. Mas aquelas criaturas não faziam ideia da razão por que estavam ali. Era uma questão de espírito. Por isso, nós as mulheres políticas reunimo-nos e decidimos fazer uma lista de todas as que se tinham oferecido para ir. E dissemos-lhes para não aceitarem esse trabalho. Dissemos: Non! Ce n’est pas question de ça! [Não! De modo nenhum!] Fomos muito severas. E vigiávamos muito atentamente o que elas faziam.

Perguntei a Jacqueline, num encontro no seu apartamento perto do Arco do Triunfo, se chegou a saber os nomes de algumas dessas prostitutas francesas — talvez as de Rouen —, mas ela pareceu ficar espantada ao ouvir a pergunta e disse que não. «Elas não escreveram as suas memórias, essas mulheres», disse ela. «E depois da guerra certamente não foram convidadas a aderir a nenhuma das associações de mulheres deportadas. Não estavam na resistência.» As prostitutas francesas de Ravensbrück estão tão completamente esquecidas como as alemãs; nem um só livro de memórias francês publicado menciona o nome de qualquer uma das prostitutas francesas ali detidas ou das volontaires, embora provavelmente houvesse milhares. Nos seus testemunhos, as resistentes podem recordar gestos de bondade ou até atos de coragem de «uma prostituta», mas mesmo nesses casos ninguém se lembrou de perguntar o nome da mulher ou de o recordar. A única exceção que se conhece é uma professora chamada

Marie-Thérèse Lefebvre. Ela recorda-se de conhecer uma prostituta chamada Simone (um pseudónimo) que chegou a Ravensbrück em meados de 1944. Tal como Marie-Thérèse, ela foi enviada para o subcampo de Zwodau, onde a puseram a trabalhar na lavandaria e de onde ela tirava peças de vestuário às escondidas para as prisioneiras se protegerem do frio. Só sabemos isso porque um dia ela deu uma camisola interior quente a Marie-Thérèse, que ficou tão agradecida que disse algumas palavras a Simone, e as duas mulheres descobriram que eram ambas de Le Havre. Marie-Thérèse recordou: Perguntei-lhe porque é que ela estava ali e ela disse que não tinha sido presa por prostituição, mas por esconder pilotos americanos no bordel onde trabalhava. Havia um quarto por cima do cabaré onde os americanos estavam escondidos, enquanto oficiais alemães estavam no quarto ao lado com mulheres. E depois ela disse-me que se tinha apaixonado por um dos pilotos, que prometeu vir encontrá-la depois de tudo acabar.

Depois da guerra, Simone não tinha qualquer interesse em contar a sua história em Le Havre, por receio de ser objeto de desprezo. No entanto, como sabemos agora, as prostitutas desempenharam um papel crucial na resistência, particularmente no que diz respeito a fugas. Os elementos da força aérea dos países aliados escondiam-se frequentemente em bordéis ao tentarem escapar de França, em particular em cidades portuárias como Le Havre e Rouen e na cidade de Toulouse, que não fica longe dos Pirenéus. Embora essas mulheres tenham corrido tantos riscos como quaisquer outras mulheres da resistência, nenhuma delas foi alguma vez objeto de reconhecimento. Foi assim que algumas conheceram os seus futuros maridos. Pouco depois de regressar a França, a seguir à guerra, MarieThérèse encontrou-se por acaso com Simone em Le Havre e esta disse-lhe que o seu piloto americano tinha voltado para a procurar. «Ela disse-me que o americano lhe tinha pedido para voltar para a América e se casar com ele. O que é que ela havia de fazer? Então, eu disse: “Tem de ir, claro. Vá para a América e comece uma nova vida!”» Através de documentos arquivados na câmara municipal de

Le Havre fica-se a saber que foi exatamente isso que Simone fez. No verão de 1946, casou-se com o piloto cuja vida salvara e foi viver com ele para a América. Em abril de 1944, os números voltaram a subir, com 4335 novas prisioneiras registadas e a taxa mensal de mortes no campo central a ascender às noventa. Entre as recém-chegadas havia um outro grupo vindo de Majdanek, incluindo mais médicas e enfermeiras do Exército Vermelho, bem como 473 ciganas transferidas de Auschwitz. Havia resistentes italianas, eslovenas, gregas, espanholas e dinamarquesas, assim como três egípcias e sete chinesas que, talvez por razões de casamento ou de viagem ou por se terem oferecido como voluntárias para auxiliar a resistência antinazi, se viram capturadas e levadas para Ravensbrück. Chegaram também outras duas mulheres britânicas. Uma ama, Mary O’Shaughnessy, estava a trabalhar para uma família na Provença quando foi detida por ajudar a esconder pilotos das forças aliadas. E uma mulher chamada Julia Barry, de ascendência húngara, foi detida na ilha de Guernsey por enviar mensagens para Londres sobre os movimentos das tropas alemãs. No final do mês, o campo continha um total de vinte e uma nacionalidades e soava uma grande mistura de línguas diferentes na Lagerstrasse; as pessoas praticamente não se compreendiam; indubitavelmente, as guardas não compreendiam as prisioneiras nem as prisioneiras compreendiam as guardas. A incapacidade das guardas de compreenderem o que diziam as prisioneiras talvez explique porque é que em meados de 1944 as prisioneiras começaram a levar cada vez mais bofetadas. Pouco depois de chegar, Mary O’Shaughnessy foi chamada ao exterior do seu bloco por uma guarda, que lhe falou em alemão, «que eu não compreendi, e depois ela deu-me uns fortes murros dos dois lados do rosto, partindo-me alguns dentes. A seguir dirigiu-se novamente para mim, enquanto eu ainda estava de pé, e deu-me um murro no rosto, partindo-me o nariz. Já vi muitas das prisioneiras a serem chicoteadas no rosto por mulheres da SS». Mary acrescentou

que os guardas de ambos os sexos baterem nas prisioneiras «era uma ocorrência demasiado comum para ser digna de nota na altura». Foi o número crescente de crianças no campo de concentração que mais alterou o seu ambiente. No início do verão de 1944, era já comum ver crianças na chamada, «por vezes vestidas como bonecas», disse Maria Moldenhawer. Algumas tinham chegado com o transporte recente de ciganas de Auschwitz; outras eram filhas das judias «protegidas» — sessenta e quatro no total — que tinham chegado da Bélgica e da Holanda. Durante a semana, as crianças permaneciam a maior parte do tempo nos seus blocos, mas aos domingos brincavam no exterior, a atirar pedras, talvez, ou a correrem umas atrás das outras. Por vezes, as guardas entravam na brincadeira. Ou então as crianças ficavam deitadas com as suas mães, observadas com tristeza por outras mães, cheias de saudades dos filhos que tinham deixado em casa. Micheline Maurel, uma poetisa com obra publicada, escrevia poemas para ajudar as mães a suportar a sua dor. Uma mulher que tinha deixado dois filhos bebés em França pediu-lhe que escrevesse um poema sobre o seu amor por eles e chorou ao ouvir as palavras. Outra jovem mãe foi encontrada lavada em lágrimas com os versos de Micheline agarrados ao peito e em ânsias pela sua filha. Algumas mães dilaceradas pela dor adotavam crianças órfãs no campo e tornaram-se as suas «mães do campo de concentração», vestindo-as com roupas bonitas e enfeitando-as com joias, «organizadas» nos armazéns. A prisioneira francesa Odette Fabius adotou uma menina cigana órfã com o cabelo negro como asa de corvo, com quem partilhava o colchão. Uma mulher belga chamada Claire van den Boom adotou Stella Kugelman, a criança de cabelo escuro que chegara de Antuérpia em janeiro, embora Stella tivesse também várias outras «mães» no campo. Mais tarde, recordar-se-ia de pelo menos quatro. No princípio do verão de 1944, Claire levou Stella a ver a sua verdadeira mãe, que se encontrava no hospital desde que chegara e

estava agora a morrer. «Era um dia cinzento, como hoje», diz Stella, que vive atualmente nos arredores de São Petersburgo. O seu pequeno e simples apartamento está cheio de bonecas. Lembro-me de que a Claire veio buscar-me um dia. E perguntou-me: «Gostavas de ver a tua mãe?» e levou-me do bloco para outro bloco onde, por trás de uma janela, a minha mãe estava sentada. Eu via-a. Ela parecia-me na mesma, mas tinha o cabelo fofo. E ela tinha feito dois pequenos brinquedos com pedaços de papel de prata. Não podíamos falar através da janela, mas ela sorriu. É claro que eu não compreendia realmente o que estava a acontecer, mas senti-me muito feliz. Vi-a uma vez mais. Dessa vez foi diferente. Alguém veio buscar-me — talvez fosse Claire novamente — e levou-me lá para fora para a Appellplatz e ficámos ali de pé e ela disse: «Olha, a tua mãe está ali.» Dessa vez, não consegui ver ninguém que se parecesse com ela — uma silhueta, talvez.

Stella pensa que aquela última ocasião só foi organizada para que a sua mãe pudesse ver a sua pequerrucha pela última vez antes de morrer. «Recordo-me de a Claire me dizer, mais tarde: “Sabes que a tua mãe foi queimada.”» Claire foi enviada para um subcampo e uma outra mãe do campo de concentração, chamada Rosanne Lascroux, cuidou de Stella durante algum tempo. Stella gostava de Rosanne. «Ela era de Paris.» Mais tarde, Rosanne anotaria as suas recordações da amizade das duas, e uma cópia foi enviada a Stella, que ela leu em voz alta: A Claire era a principal mãe do campo da Stella. Ela adorava a menina e estava sempre com ela, mas não pôde ficar com ela porque foi enviada para a Silésia para trabalhar nas minas. Foi então que a Stella começou a comer e a dormir na nossa cama. Lembro-me bem de como lhe lavávamos a cara e lhe fazíamos caracóis. Ela nunca chorava, e parecia que compreendia tudo. Era excecionalmente inteligente para a idade. Eu falava com ela em francês e ela também compreendia espanhol. Uma vez, disse-me que nunca mais queria ver os Alemães, porque sabia que eles tinham matado os seus pais. Como todas as crianças, tinha medo dos guardas, especialmente da Binz e da mulher-polícia, a Knoll,38 que andava sempre a berrar zangada às crianças.

Stella diz que não se recorda da maior parte dessas coisas. Quase tudo o que sabe sobre si no campo de concentração foi-lhe contado

por outras pessoas. Lê em voz alta uma breve mensagem que a sua mãe escreveu do campo de concentração a um amigo, Herr Lepage, na Bélgica. Herr Lepage guardou essa carta, juntamente com o terço de Rosa Kugelman, e deu ambos a Stella muito depois do fim da guerra. A carta tinha obviamente sido enviada às escondidas, já que não está escrita no papel oficial do campo de concentração. O carimbo do correio é de Fürstenberg e no topo Rosa escreveu o seu número, 25 622, e o número de Stella, 25 621. Stella lê a carta: «Envio-lhe os meus cumprimentos. Espero que a minha carta o encontre de saúde. Encontrará um embrulho com esta carta e peço-lhe um grande favor» — mas o resto da carta sofreu estragos e não é possível lê-la. Stella não sabe o que continha o embrulho ou que favor a sua mãe estava a pedir. Mas a data da carta revela que foi escrita pouco antes de ela morrer, em 14 de julho de 1944.

37 Segundo Wanda Wojtasik, quando as polacas do Bloco 15 foram postas em fila e lhes pediram que se oferecessem como voluntárias, fez-se um «silêncio ensurdecedor» até uma delas dar um passo em frente por entre vaias e assobios. Wanda liderou uma delegação para protestar junto do comandante, que «nos olhou boquiaberto e não soube o que fazer», acabando por cancelar os embrulhos das que tinham protestado. Entretanto, Irena Dragan e nove outras — na sua maioria coelhas — cortaram o cabelo à voluntária e bateram-lhe. «Eu peguei nas tesouras», disse Irena. Quatro das prisioneiras que bateram na colega receberam vinte e cinco chicotadas por «punirem» a voluntária.

38 A odiada Kapo Käthe Knoll pertencia já naquela altura à polícia do campo de concentração.

CAPÍTULO 24 CONTACTO No início do verão de 1944, Bernard Dufournier estava a começar a perder a esperança de encontrar Denise. Já se passara um ano desde a detenção da sua irmã e ele ainda não fazia ideia de onde ela se encontrava. Com os pais mortos, talvez ele se sentisse especialmente responsável pela sua única irmã, e mexeu todos os cordelinhos para a encontrar. Como diplomata, Bernard estava bem relacionado; tinha até conseguido apresentar o caso de Denise ao presidente interino da Cruz Vermelha Internacional, Carl Burckhardt, que lhe respondeu por escrito dizendo que não sabia nada sobre o paradeiro de Denise, mas: «Estamos em contacto com a Cruz Vermelha alemã e se soubermos alguma coisa informá-lo-emos.» Dado o que sabemos atualmente sobre Carl Burckhardt, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e o Holocausto, aquela resposta de duas linhas a Bernard Dufournier é arrepiante. Claramente, embora Burckhardt procedesse de acordo com as regras ao não fazer um pedido especial em nome de Bernard, usara a sua posição única para apelar diretamente a Himmler para que libertasse a sua amiga, a condessa Karolina Lanckorońska. Muito mais perturbante ainda é a facilidade com que Burckhardt, mesmo nessa altura, se refere com tanta confiança por escrito à Cruz Vermelha alemã como um organismo sério com o qual o Comité Internacional da Cruz Vermelha pudesse envolver-se em negociações. No verão de 1944, sob pressões internacionais crescentes para tomar uma posição, o CICV esforçava-se mais por enviar encomendas para prisioneiros dos campos de concentração, mas, mais uma vez, as suas tentativas eram facilmente bloqueadas por Himmler: só chegaram a Ravensbrück 250 encomendas, todas elas

pilhadas pela SS. O único campo que os delegados do CICV tinham tido autorização para inspecionar era o denominado campo-modelo de Theresienstadt. Ali, funcionários da Cruz Vermelha alemã levaram os seus visitantes suíços a ver blocos especialmente preparados e a falar com prisioneiros igualmente preparados, garantindo assim que um relatório extremamente favorável era enviado para a sede em Genebra. Entretanto, o CICV estava a ser inundado com pedidos de auxílio de parentes aterrorizados por toda a Europa. A aproximação do Dia D exacerbara os receios de que, quando os Aliados aterrassem, Hitler retaliasse contra os prisioneiros e até os chacinasse. No entanto, os parentes dos prisioneiros que escreviam para Genebra a pedir notícias descobriam todos a mesma coisa: Genebra não sabia dizerlhes nada. Enquanto as famílias tentavam estabelecer contacto com os seus parentes desaparecidos, também as mulheres em Ravensbrück tentavam cada vez mais estabelecer contacto com as suas famílias. Era claro para todas as pessoas no campo de concentração que Hitler tinha os dias contados e que a libertação estava à vista, mas as mulheres nunca tinham tido tanto medo. As recém-chegadas da Polónia traziam boas notícias sobre a evacuação dos campos de concentração no Leste à aproximação da frente soviética. No entanto, essas mesmas prisioneiras falavam também de mais atrocidades perpetradas pelos Alemães antes da evacuação dos campos. Uma polaca que chegou de Majdanek presenciara o extermínio a tiro de 17 000 judeus num só dia, em novembro. As ciganas que chegavam de Auschwitz descreviam como todo o campo dos ciganos tinha sido queimado e 20 000 homens, mulheres e crianças assassinados. As prisioneiras compreendiam muito melhor do que o mundo exterior que quando Hitler sentisse que se aproximava o fim as massacraria também ou as faria suas reféns. Se isso acontecesse, as prisioneiras não teriam para quem se voltar, porque ninguém sabia

que elas estavam ali. Cada grupo nacional procurava notícias da sua própria frente de guerra, escutando as guardas ou tentando ler de relance os jornais alemães. Ojcumiła Falkowska, a dançarina polaca, tinha um novo trabalho, a cozinhar para oficiais alemães vindos de Berlim e transferidos para instalações temporárias nos bosques de Ravensbrück. Aí, ouvia partes das notícias da BBC quando os alemães sintonizavam a rádio para essa estação e transmitia às outras o que ficava a saber. As prisioneiras que tinham a sorte de receber correspondência da família procuravam pistas nas cartas censuradas. Todos os meses, desde a sua chegada em 1943, Micheline Maurel escrevia ao pai, que vivia em Toulon, mas nunca tivera resposta. Em maio de 1944, recebeu um envelope com o carimbo dos correios de Toulon, mas descobriu ao abri-lo que o censor tinha cortado tanta coisa que só restava um canto, em que estava escrita uma palavra: «Papá.» Dois embrulhos com comida chegaram então de casa para Micheline, um a seguir ao outro. O primeiro tinha sido aberto antes de lhe chegar às mãos e só restava uma pequena lata de carne para barrar o pão e algumas tabletes de chocolate. Ela partilhou a carne com as suas amigas e escondeu os chocolates num saco debaixo do colchão para os comer no dia seguinte, mas o saco desapareceu. No embrulho seguinte vinham seis ovos, só um deles não partido, por isso ela e a sua amiga dividiram-no a meio e comeram-no cru. Outras prisioneiras tinham ouvido dizer que era agora possível receber embrulhos da Cruz Vermelha, se a Cruz Vermelha Internacional soubesse os seus nomes e números. Um grupo de polacas conseguiu transmitir os seus nomes e os seus números através de um outro grupo de prisioneiros de guerra que tinham conhecido num grupo de trabalho no exterior. Chegaram embrulhos com os seus nomes, mas, tal como todos os outros embrulhos, tinham sido revistados antes de as prisioneiras os receberem. Foram vistas guardas a comerem os chocolates da Cruz Vermelha e a fumarem cigarros americanos.

A maior parte das mulheres, no entanto, sabia que mesmo nessa altura ninguém fazia ideia de onde estavam. Com as frentes a avançarem, até mesmo a correspondência oficial seria em breve cortada e as suas famílias simplesmente pensariam que elas tinham desaparecido. Como esse era o seu maior receio, enquanto procuravam notícias as prisioneiras também procuravam maneiras de preservar as suas histórias. Muitas tentavam enterrar itens preciosos com apontamentos ou fotografias no campo de concentração na esperança de que algum dia fossem encontrados, ou contavam a sua história a uma amiga na esperança de que essa amiga sobrevivesse mesmo que elas morressem. Milena Jesenska contou a sua história a Grete Buber-Neumann muito antes de se aperceber de que ia morrer. Ao longo do inverno de 1943-44, a saúde de Milena tinha continuado a deteriorar-se: em abril, foi-lhe diagnosticado um rim ulcerado. O Dr. Treite operou-a novamente, mas era demasiado tarde. Um dia, Milena disse que queria levantar-se e ir para o escritório no hospital para ter um último vislumbre de liberdade, avistada para lá dos portões do campo de concentração, mas já estava demasiado fraca para andar. Em seguida, o seu outro rim deixou de funcionar. «Olha para a cor dos meus pés. São os pés de uma pessoa moribunda», disse ela a Grete. «Eu continuarei a viver através de ti.» Com as amigas checas e com Grete à sua volta, Milena morreu em 17 de maio de 1944. Foi-lhe atribuído um caixão e, quando o grupo da recolha dos cadáveres chegou, Grete teve autorização para acompanhar o corpo à chuva até ao crematório. Aí, dois prisioneiros do sexo masculino, ambos com triângulos verdes, «com rostos como assistentes de carrascos», tiraram o corpo e disseram a Grete: «Não tenhas medo de agarrar nela, ela já não sente nada.» O Dr. Treite escreveria mais tarde ao professor Jesensky a dizer que poderia conseguir que as cinzas de Milena fossem enviadas para Praga. Nenhum prisioneira tinha melhor razão para recear o seu desaparecimento do que as que estavam detidas no bloco NN. A

intenção expressa de Hitler era que essas prisioneiras «desaparecessem na noite e no nevoeiro». No entanto, paradoxalmente — talvez porque compreendessem que, provavelmente, não sobreviveriam —, essas mulheres fizeram mais do que quaisquer outras para preservar as suas histórias e a história do próprio campo. Muitas das mulheres NN — prisioneiras do Exército Vermelho, jugoslavas, belgas e holandesas — recolhiam informações e tentavam analisá-las. Germaine Tillion continuava a abordar a sua recolha de informações como se fosse uma investigação etnológica. Ao longo dos meses, Germaine tinha conseguido obter uma rede de informadoras abrangendo todo o campo. Não poderia tê-lo feito sem a sua auxiliar, Anise Girard, que não só lhes prestava apoio físico como era a pessoa que lhe resolvia e facilitava as coisas. Anise, que falava fluentemente alemão e era uma simpatizante do comunismo, conseguiu ganhar a confiança de algumas das «aristocratas» com mais poder e conhecimento do campo, as prisioneiras que eram secretárias. Algumas dessas mulheres já estavam no campo de concentração há tanto tempo que quase se considerava que pertenciam à SS, e comportavam-se como tal, demasiado empenhadas em sobreviver para transmitirem informações secretas. Mas outras observavam a SS «como velhas ratazanas» e transmitiam o que sabiam: listas de chegadas, de partidas, de mortas e de doentes. Por sua vez, Germaine acumulava as informações obtidas em esconderijos cuja localização não comunicava nem sequer a Anise. «Era um segredo muito grande, mas eu descobri que um dos esconderijos era debaixo de uma trave solta no telhado acima do colchão dela», diz Anise. Em pouco tempo, Germaine montou um sistema no qual as «velhas ratazanas», bem como as prisioneiras do pessoal do hospital, lhe traziam diariamente listas do campo, que ela anotava, analisava e em seguida escondia. Primeiro, recebia o número de mulheres contadas na Appell da manhã, assim como o número do campo de concentração atribuído à

última mulher a chegar. Um dia, em junho de 1944, por exemplo, Germaine descobriu que havia 30 849 mulheres no campo de concentração e que a mulher a ser registada mais recentemente recebera o número 42 158. Presumivelmente, a diferença entre os dois números representava o número de mulheres enviadas para subcampos ou transferidas para outros locais. No entanto, como Germaine não tinha maneira de obter informações sobre o número de mulheres que chegavam efetivamente aos subcampos, era difícil ter a certeza. Um segundo grupo de listas, um da Revier e outro dos serviços administrativos, indicava números de mortes, mas esses números também nunca condiziam. Num dia em maio, por exemplo, 151 mortes foram comunicadas a Germaine por contactos no hospital, em contradição com a informação de 191 mortes proveniente dos serviços administrativos do campo de concentração. Germaine deduziu que essa diferença de quarenta mortes devia representar o número de execuções, porque o hospital não registava as execuções — mas, mais uma vez, como poderia ter a certeza? E quanto a mortes no bunker? Constava que estavam novamente a aumentar. E as «velhas ratazanas» não tinham listas de mulheres enviadas nos transportes negros. Para obter informação sobre essas, Germaine via-se obrigada a depender de boatos da Revier, onde se dizia que o Idiotenstübchen estava a ser despejado talvez de duas em duas semanas. Por esta altura, a reputação de intelectual de Germaine começara a crescer e outras figuras respeitadas no campo queriam conhecê-la, entre elas Grete Buber-Neumann. Assim como Milena Jesenska tinha confiado a Grete a história da sua vida antes de morrer, também Grete queria transmitir o que sabia a uma confidente de confiança, e escolheu Germaine. Imediatamente antes do Dia D, na cama de cima de um beliche, com Anise Girard apertada entre as duas a servir de intérprete, estas duas «sábias» do campo de concentração encontraram-se. Grete falou primeiro e passou longas horas a relatar a Germaine o que tinha

vivido dos horrores do comunismo de Estaline e dos campos de concentração siberianos. Em seguida, as duas compararam a experiência de Grete com o que estava a desenrolar-se em Ravensbrück. Com as suas simpatias comunistas, Anise não acreditava que os campos de concentração de Estaline pudessem ser tão maus como Grete os descrevia. «Mas a Germaine estava convencida de que a Grete falava da realidade e reteve cada palavra na mente.» Grete tinha-lhe relatado a sua história «parágrafo a parágrafo», disse Germaine depois da guerra, recordando o encontro. «E, tal como muitas de nós, estava dominada pelo desejo de que o que ela sabia sobrevivesse.» Embora nenhum desses grupos se empenhasse tanto como as coelhas polacas em fazer que aquilo que sabiam sobrevivesse, no verão de 1944 as coelhas sentiam-se dominadas pelo receio de que, afinal, talvez o mundo não andasse a receber as informações que elas enviavam. Tinham ficado a saber que algo da sua história chegara já a Inglaterra, porque camaradas polacas recentemente chegadas ao campo de concentração tinham ouvido relatos das atrocidades em Ravensbrück transmitidos para a resistência polaca pela estação de rádio clandestina inglesa Rádio Amanhecer (SWIT). No entanto, Krysia continuava a sentir-se ansiosa em relação ao teor exato das informações que chegavam ao exterior e a quem poderia ou não tê-las recebido. Numa carta, pedia à sua família que lhe dissesse «que envelopes estão a faltar». A razão para a súbita ansiedade não é imediatamente clara, mas temos uma pista numa outra carta em que ela se refere pela primeira vez à possibilidade de receber embrulhos da Cruz Vermelha. Krysia, tal como todas as outras prisioneiras no início do verão, apercebeu-se de que certas mulheres em Ravensbrück andavam a receber embrulhos enviados pela Cruz Vermelha Internacional em Genebra. Sabia também que isso só poderia acontecer se Genebra já tivesse os seus nomes e os seus números.

Estava particularmente interessada no facto de outro grupo de polacas — não coelhas — ter recebido esses embrulhos. Tal como as coelhas, essas mulheres tinham estabelecido contacto com um grupo de prisioneiros de guerra num Oflag das imediações, que se tinham oferecido para enviar os seus nomes e números a Genebra, presumivelmente através da sua correspondência da Cruz Vermelha. Krysia diz à sua família: «Os nomes destas outras mulheres foram enviados pelos Oflags.» Como Krysia obviamente compreendia, a chegada dos embrulhos demonstrava não só às prisioneiras, mas também à SS, que a Cruz Vermelha Internacional estava de posse de uma lista dos nomes de certas mulheres que se encontravam no campo de concentração. Essa lista seria uma espécie de seguro contra o «desaparecimento». A questão que vinha à mente era: porque é que as coelhas polacas não estavam a receber embrulhos? Tinham enviado a informação do seu nome e número há mais de um ano. Essas listas não teriam sido recebidas, afinal? Não teriam sido transmitidas a Genebra? É de importância vital que sejam transmitidas, escreve Krysia, e explica porquê: Se os nomes das que fizeram operações pudessem ser dados lá [ou seja, ao CICV], seria uma grande ajuda para nós; não é uma questão de comida, mas do significado moral que os embrulhos têm. A receção dos embrulhos é meticulosamente assinada, e se fossem enviados a todas as que foram submetidas a operações, isso teria algum impacto sobre os nossos guardiães — daria a impressão de que eles [o CICV] tinham uma lista com os nossos nomes lá, o que poderia influenciar o nosso destino. Temos constantemente a sensação de que vão querer liquidar-nos por sermos provas vivas.

A seguir, Krysia pede à família que procure contactar novamente NiuŚ («Apolo»), o prisioneiro de guerra que servia de intermediário e que poderia fornecer-lhes outra cópia da lista, partindo do princípio de que a anterior se tinha extraviado. NiuŚ «tem a nossa lista», escreve ela, e parece pensar que ele tem maneira de enviar diretamente a lista a Genebra, como os rapazes do Oflag tinham feito pelas outras polacas. Krysia despede-se, dizendo: «Se a ideia dos embrulhos

puder concretizar-se, escrevam “os caprichos das meninas podem ser satisfeitos” ou “não podem ser satisfeitos” se não puder fazer-se nada.» Há uma urgência — quase pânico — em obter uma resposta, porque o Exército Vermelho está a chegar às portas de Lublin e ela pensa que a correspondência está prestes a ser interrompida. «Queridíssimos! Prevemos que o contacto convosco esteja prestes a ser cortado...» Mais uma vez, no entanto, Krysia descobre que a comunicação ainda não foi suspensa, porque há sinais claros de que chega uma resposta com notícias mais positivas, e em abril ela responde, mencionando um misterioso «primo na Suécia». Escreve: «Estou mesmo contente que tenham recebido as cartas do... NiuŚ... A correspondência com um primo da Suécia trouxe-nos ainda mais alegria.» Como Krysia sabia, o Exército Voluntário polaco usava a Suécia como base de transmissões. A sua referência à correspondência com um primo da Suécia revela que sabe agora que Varsóvia enviou a informação para a Suécia, que a remeteu ao governo polaco em Londres, que, por sua vez, a enviaria para a Cruz Vermelha Internacional em Genebra. Nessa altura, a correspondência de Krysia com a sua família foi finalmente suspensa, mas pelo menos ela teve a alegria de saber que a sua informação certamente chegara ao lugar certo e que os embrulhos da Cruz Vermelha se seguiriam. No entanto, não chegou nada da Cruz Vermelha, quer nos meses de verão quer mais tarde. Porque não? Sabemos que o CICV tinha recebido a informação, pelo que não poderia ser esse o problema. Além disso, não só tinha chegado a informação necessária sobre as jovens polacas do governo polaco em Londres (e talvez também diretamente de NiuŚ) mas também o delegado do CICV no terreno estava agora a obter confirmação das atrocidades médicas em Ravensbrück e a transmitir o que sabia a Genebra.

Em 1944, Roland Marti e os seus colegas da delegação de Berlim do CICV coligiam já um número crescente de informações sobre os crimes de guerra nazis. Entre as suas melhores fontes contavam-se prisioneiros de guerra das forças aliadas, detidos em campos de prisioneiros de guerra que se encontravam agora espalhados por toda a Alemanha e pela Polónia. Os prisioneiros de guerra estavam cada vez mais a ser usados como trabalho escravo e muitas vezes trabalhavam em fábricas ao lado de prisioneiros de campos de concentração. Por consequência, ficavam a par de muita coisa através desses prisioneiros e transmitiam o que ouviam a delegados da Cruz Vermelha, que, ao abrigo das Convenções de Genebra, visitavam regularmente os campos. Numa ocasião, um prisioneiro de guerra disse a Roland Marti que as crianças judias em Ravensbrück estavam a ser esterilizadas, e outro informador falou das experiências médicas. Em consequência, num relatório escrito para os seus chefes em Genebra em 12 de junho de 1944, Marti declarou que acabara de saber que em Ravensbrück as condições eram «trágicas». Em particular, «andam a fazer operações aos ossos e aos músculos das pernas de mulheres polacas e muitas podem mostrar as cicatrizes. E também, à menor coisa, as mulheres são mortas a tiro, e recentemente pelo menos dez ucranianas foram executadas». Os prisioneiros de guerra que transmitiram estas informações obviamente partiram do princípio de que seriam tomadas medidas ou que, pelo menos, os serviços secretos das forças aliadas seriam informados, mas estavam enganados. Marti indubitavelmente transmitiu a informação a Genebra, mas sabia que ela nunca seria tornada pública. «Esta informação parece ser certa», escreveu num relatório aos seus superiores, «mas não pode ser usada. Transmito-a para os vossos arquivos e ajudará, talvez, a lançar luz sobre a situação.» No entanto, combinada com a informação vinda do governo polaco em Londres, a pressão sobre Genebra para que reagisse de alguma maneira à questão das coelhas de Ravensbrück estava claramente a

aumentar, porque na segunda metade de 1944 o Comité decidiu pelo menos rever o caso, e uma das questões agendadas era se se deveria enviar embrulhos da Cruz Vermelha às mulheres afetadas. Dado que estavam de posse dos nomes e dos números das prisioneiras, isso era possível e desejável, especialmente porque — nas palavras de Krysia — enviar embrulhos a todas as setenta e sete coelhas «teria algum impacto sobre os nossos guardiães» e «poderia influenciar o nosso destino». No entanto, a decisão tomada pelo Comité foi de não enviar os embrulhos, provavelmente porque ter algum impacto sobre os guardiães das mulheres era muito simplesmente o oposto do que o CICV estava a tentar fazer: preservar a «neutralidade» era muito mais importante. É possível que houvesse também elementos do Comité que receavam que enviar os embrulhos ofendesse Ernst Grawitz, o chefe da Cruz Vermelha alemã. De qualquer modo, a advogada do Comité, Margaret Frick-Cramer, sentiu grande dificuldade em tomar a decisão de não enviar os embrulhos. Frick-Cramer sentiu-se tão frustrada com o grotesco absurdo da posição do Comité que propôs — talvez ironicamente, talvez a sério — que o mais importante organismo humanitário do mundo enviasse às mulheres os meios de se matarem para porem fim ao seu sofrimento. Disse: «Se não pode fazer-se nada, deveriam ser enviados às desgraçadas vítimas os meios de cometerem suicídio; isso seria talvez mais humano do que dar-lhes comida.» Contudo, enquanto o Comité Internacional da Cruz Vermelha abafava o caso das coelhas, os polacos da SWIT em Milton Bryan, no condado de Buckingham, continuavam a fazer tudo o que podiam para publicitar o tormento das mulheres. As notícias das atrocidades não só estavam a ser transmitidas da Inglaterra para a Polónia como estavam também a ser enviadas traduzidas para outras redes radiofónicas clandestinas na França, na Alemanha e noutros países. Ao fim da tarde de 19 de maio de 1944, às 19h10, o pessoal da SWIT transmitiu mais um aviso aos «criminosos de guerra» alemães.

Depois de um breve noticiário sobre o papel dos Polacos na mais recente ofensiva italiana e sobre a «união fantoche de patriotas polacos» (o novo governo pró-soviético na Polónia), a estação anunciou que «mais pormenores sombrios foram recebidos do campo de concentração de mulheres em Ravensbrück». Aparentemente com base no relato que Krysia enviara numa carta secreta com pormenores da vida diária no campo de concentração, a estação noticiou: A rotina diária começa às três da manhã. Depois de três horas reunidas ao ar livre, começa o trabalho para o resto do dia, com um intervalo de meia hora para o almoço. O trabalho consiste principalmente em partir pedra nas estradas. As mulheres são usualmente mortas a tiro de acordo com listas elaboradas. Recentemente, 176 polacas foram executadas. As mulheres são submetidas a operações cirúrgicas experimentais, tais como esterilizações e injeções. Quando, há algumas semanas, descrevemos as condições no campo, avisámos o pessoal alemão, apelámos também ao mundo livre para que desse voz a esse aviso. Desde então, a rádio britânica encarregou-se deste aviso aos criminosos alemães, repetindo-o numa série de línguas. Em vista do facto de estes crimes continuarem, repetimos o nosso apelo. Os Alemães só reagirão à força e ao medo, e talvez uma repetição do aviso faça parar as mãos do pessoal e dos cirurgiões criminosos em Ravensbrück.

Na sequência de transmissões radiofónicas anteriores, algumas polacas recém-chegadas ao campo disseram ter ouvido as transmissões «da rádio inglesa» antes da sua detenção. Depois daquela transmissão mais recente, chegaram francesas a Ravensbrück que disseram que tinham também ouvido os relatos no serviço francês da «rádio inglesa». Wanda Wojtasik, a amiga de Wanda de Lublin, recordou que inicialmente as prisioneiras francesas não acreditavam no que tinham ouvido na rádio e que ao chegarem ao campo pediram para ver as coelhas como prova. «Ao verem as nossas pernas destroçadas, esfregaram os olhos num pasmo horrorizado. Não tinham acreditado nas notícias, disseram. Quando nos viram, tentaram meter os dedos nos buracos que tínhamos nas pernas e então acreditaram.» Provavelmente, foi Ojcumiła Falkowska quem primeiro deu a notícia ao campo de concentração da invasão dos Aliados. Ojcumiła

disse que tinha ouvido a notícia às cinco da manhã de 6 de junho de 1944 na BBC enquanto preparava o pequeno-almoço para o pessoal vindo do governo de Berlim no seu campo temporário nos bosques de Ravensbrück. Segundo Karolina Lanckorońska, o Dr. Treite anunciou «em voz alta» nas consultas dessa manhã que a invasão dos Aliados tinha começado. Depois de fazer essa declaração, deu meia-volta e voltou para a sala de operações. No subcampo de Zwodau, um grupo de prisioneiras francesas ficou a saber da chegada dos Aliados pela sua Blockova polaca, cujo marido estava a prestar serviço militar num regimento polaco do exército britânico. A professora francesa Marie-Thérèse Lefebvre, cuja casa ficava na costa da Normandia, recordou: «Ela chamou-nos a todas e disse: “Ora bem, minhas senhoras, tenho notícias muito importantes para lhes contar, mas mantenham a discrição. Os Aliados chegaram a França.”» Em Neubrandenburg, a notícia chegou no momento em que as forças aéreas britânicas bombardeavam um aeródromo, e a explosão pareceu ocorrer tão perto que os beliches das prisioneiras francesas chocalharam e tremeram, e alguém disse a brincar: «Mon Dieu! Os Aliados já chegaram aqui.» No dia seguinte, ordenaram a todas as prisioneiras de Neubrandenburg que limpassem os destroços do aeródromo e, enquanto elas trabalhavam, a população local fitava-as e as crianças cuspiam. Subitamente, a Normandia parecia ficar do outro lado do mundo. A excitação provocada pela notícia do Dia D não durou muito. Para a maior parte das polacas, a captura em maio de Monte Cassino, tomada por uma brigada polaca, foi motivo de mais celebrações. E as russas estavam mais interessadas em monitorizar o rápido avanço do Exército Vermelho, que se dirigia agora para a Bielorrússia. No hospital, as palavras do Dr. Treite não tardaram a ser esquecidas. «Muitas de nós já nos tínhamos apercebido de que estaríamos demasiado exaustas para nos aguentarmos», recordou Karolina, cuja amiga francesa Dora Dreyfus estava a morrer de uma

inflamação dos pulmões. Dora ouviu a notícia e sentiu-se animada, «e falámos de como eu iria visitá-la a França depois da guerra», disse Karolina. «Mas menos de vinte e quatro horas depois, ela já nos tinha deixado.» Grete Buber-Neumann recordava que a notícia do Dia D chegou «como o primeiro prenúncio real de liberdade — estávamos a transbordar de felicidade». Se ao menos Milena estivesse viva para desfrutar do momento. «Durante muitos anos, os nossos desejos tinham sido comuns e todos os nossos planos para o futuro eram feitos juntas. Agora eu chorava na cama à noite.» O grupo francês das mudanças ficou jubilante ao ouvir a notícia, mas decidiram adiar a comemoração até os Aliados chegarem a Paris. Tal como o resto do campo, naquele momento estavam mais preocupadas com a questão da comida. Em Ravensbrück, mais do que nunca, corria-se o risco de morrer à fome, mas nos subcampos era pior, porque não estava a chegar nenhuma comida. Em Neubrandenburg, Micheline Maurel ficou na Appell por trás de uma checa recém-chegada «com carnes». «A ideia daquele monte de banhas à minha frente levou-me ao desespero. Tinha as mãos a tremer.» Nalguns dias, não havia comida nas cozinhas dos campos para dar a ninguém. Noutros dias, eram distribuídos alimentos desidratados, que faziam as pessoas sentiremse mal e ficarem ainda com mais diarreia. A verdadeira aristocracia nos campos de concentração era agora indubitavelmente constituída pelas poucas pessoas que recebiam embrulhos com comida; mantinham-se mais direitas e tinham um brilho na pele. Muitas partilhavam o que recebiam nos seus embrulhos, dividindo manjares como chocolate e queijo «até ficarem em porções do tamanho de uma noz». Depois do Dia D havia um maior número de pessoas a alimentar, porque o número de novas chegadas continuava a aumentar, e o campo de concentração começou a dar a sensação de se encontrar totalmente assoberbado. A corrida às casas de banho e às latrinas

era mais desenfreada do que nunca e as canalizações não aguentavam a sobrecarga. Como as prisioneiras que trabalhavam no Schreibtstube não conseguiam registar tantas novas chegadas, a Appell do fim do dia foi abolida e a quarentena reduzida para duas semanas para libertar mais espaço. No início de julho, chegaram mais transportes de mulheres francesas e nem todas as notícias que elas trouxeram eram boas: havia combates ferozes na Normandia e os Americanos e os Britânicos não estavam a conseguir avançar. As notícias da frente leste também não eram totalmente positivas. Na oficina de costura, havia provas concretas de chacina na Polónia, com várias prisioneiras a dizerem que encontravam dedos ou até mãos inteiras de alemães dentro das mangas dos casacos dos soldados trazidos para serem remendados e reciclados. Apareceu também uma judia húngara em Ravensbrück com a notícia de que Hitler estava a dar início a um movimento de extermínio totalmente novo, mandando capturar todos os judeus húngaros. Essa mulher, Gemma La Guardia Gluck, tinha sido capturada em Budapeste, onde o seu nome atraíra a atenção de Adolf Eichmann, o homem encarregado do extermínio dos judeus. Eichmann identificou Gemma como sendo a irmã de Fiorello La Guardia, o presidente da câmara de Nova Iorque. Os dois irmãos tinham nascido em Nova Iorque, filhos de imigrantes italianos, mas Gemma casara-se com um judeu húngaro, Hermann Gluck, e nos anos 1930 foi viver para Budapeste. Em 1934, Fiorello La Guardia foi eleito presidente da câmara de Nova Iorque, avisando num dos seus primeiros discursos que era intenção de Hitler aniquilar os judeus. Dez anos depois, a irmã de Fiorello, aos sessenta e três anos, escapou à aniquilação por ter o seu nome. Ao saber da sua captura, Himmler deu imediatamente ordens para que Gemma fosse tratada como refém, e à chegada a Ravensbrück foi alojada no Bloco 2, uma das casernas mais privilegiadas, onde não era obrigada a trabalhar e tinha o seu próprio colchão. Em quase todos os outros blocos, as prisioneiras dormiam agora três por

colchão e os beliches estavam tão juntos que as mulheres tinham de caminhar sobre dúzias de corpos até encontrarem um espaço para descerem para o chão. Como também havia beliches a atravancar as salas, não tinham onde comer ou conversar. Em agosto, começaram a vir prisioneiras de Auschwitz em maior número — usualmente judias jovens, poupadas às câmaras de gás para serem usadas como mão de obra escrava. Num transporte de Auschwitz em agosto vieram também cinquenta francesas, as únicas sobreviventes de um grupo de 250 mulheres não judias que tinham sido enviadas de Paris para Auschwitz dezoito meses antes. No grupo encontrava-se uma destacada comunista francesa chamada Marie-Claude Vaillant-Couturier, que fez o relato mais convincente sobre Auschwitz até àquele momento. A sua posição era única. Na década de 1930, Marie-Claude trabalhou como fotojornalista para o jornal francês L’Humanité e foi uma das primeiras jornalistas a fazer a reportagem dos campos de concentração de Hitler, tirando secretamente fotografias a prisioneiros do outro lado da vedação de arame farpado em Dachau e em Sachsenhausen. Quando começou a guerra, foi detida devido ao seu trabalho em publicações comunistas clandestinas e viu-se ela própria prisioneira em Auschwitz. O testemunho de Marie-Claude foi considerado tão valioso depois da guerra que a convocaram para prestar depoimento em Nuremberga. Ao chegar a Ravensbrück, contou às francesas como as suas compatriotas que tinham viajado com ela para Auschwitz foram poupadas às câmaras de gás por não serem judias, mas acrescentou que muitas delas tinham enfraquecido rapidamente e não tardaram a ser exterminadas por serem «bocas inúteis». Primeiro eram privadas de comida e de água e depois, se não morressem à fome suficientemente depressa, eram assassinadas nas câmaras de gás. Ravensbrück ficou inundado por histórias dos horrores de Auschwitz, e algumas prisioneiras reconheciam padrões familiares, prevendo que, antes do fim, seriam cometidas atrocidades similares também ali. Não eram só as mulheres que chegavam de Auschwitz ou de

outros campos de concentração a leste que tinham o pressentimento do que se avizinhava. Louise (Loulou) Le Porz, uma médica de Bordéus, chegou a Ravensbrück em junho, depois de passar pelo campo masculino de Neue Bremm, um campo de punição da Gestapo. Aí, o seu transporte ficou detido durante alguns dias e ao longo desse tempo as mulheres eram frequentemente obrigadas a marchar diante do campo dos homens, onde — deliberadamente, ao que parece — lhes era dada a oportunidade de observar o tratamento brutal a que os prisioneiros eram submetidos. Entre outras torturas, os homens eram algemados nus uns aos outros e ordenavam-lhes que saltassem para cima e para baixo e andassem de roda enquanto os guardas os chicoteavam até eles ficarem todos ensanguentados e tombarem por terra. A seguir, eram chicoteados de novo e obrigados a saltar mais até por fim vários morrerem. Loulou diria mais tarde que nunca esqueceria o choque de Neue Bremm, e que, por causa do que lá viu, sempre receou o que o futuro poderia trazer às mulheres detidas em Ravensbrück. Pouco depois de chegar o grupo de Loulou, mandaram as mulheres perfilarem-se na Appellplatz para uma seleção; nesse dia, alguns gerentes de fábricas de Leipzig iriam escolher trabalhadoras escravas. A prima de Loulou, Françoise Couëron, que tinha sido detida com ela em Bordéus, estava ao seu lado quando um homem de bata branca apareceu e perguntou se algumas das presentes eram médicas. Ao princípio, Loulou não levantou o braço — não queria ser separada de Françoise, e Leipzig devia ser melhor do que aquilo. Também não lhe agradou o ar do médico. «Mas pensei, seja como for, talvez possa ajudar de alguma maneira. E por isso pus a mão no ar.» A primeira tarefa de Loulou na Revier foi examinar as recémchegadas de Auschwitz para detetar doenças infeciosas, e ficou espantada ao ver na lista o nome Vaillant-Couturier. A família de Marie-Claude era bem conhecida em França antes da guerra, em grande medida porque um dos seus tios era o criador de Babar, o Elefante. E ela própria tornara-se famosa devido à sua atividade

fotográfica, sendo conhecida como «a senhora com a Rolleiflex». A jovem e séria médica católica Loulou pouco tinha obviamente em comum com a fervente intelectual comunista Marie-Claude. Mas quando os seus caminhos se cruzaram na Revier, puderam trocar algumas palavras e rapidamente se entenderam bem. Antes de terem uma hipótese de cimentar a sua amizade, no entanto, Loulou foi enviada para o Strafblock para ser chicoteada por ter refilado a uma guarda, que lhe tinha dado um murro por ela se encontrar no exterior durante um ataque aéreo. A guarda acusou também Loulou de ser «demasiado orgulhosa». Alta e forte, Loulou foi em seguida enviada para o trabalho da descarga de tijolos e carvão. «Lembro-me de uma moça pequena francesa chamada Raymonde Sauvage, que já não tinha forças. Por isso, eu disse-lhe, agarra-te ao meu cinto e eu puxo-te, e ela fez isso, mas foi extraordinário, porque eu não senti nada de nada. Ela tinha o peso de uma alma.» Com o calor do verão a abater-se cada vez mais intensamente, desencadeou-se uma excitação inexplicável em certas partes do campo de concentração, particularmente entre as prisioneiras políticas alemãs. Era uma sensação — nada mais do que isso ao princípio — de que antes de chegarem os exércitos de libertação o pesadelo poderia chegar a um fim muito abrupto. O povo alemão estava cada vez mais inquieto. A expectativa de vida na frente leste era de menos de três meses; quase todas as famílias tinham perdido filhos, irmãos ou pais. Os estragos causados pelas bombas estavam a tolher o país e as mulheres e as crianças tinham sido retiradas de Berlim. Havia uma crise aguda de falta de alimentos e pedia-se agora às mulheres que limpassem os escombros nas cidades. Em Fürstenberg, a população local falava agora abertamente do que aconteceria quando o Exército Vermelho tomasse a cidade, e muitas pessoas estavam já a fazer planos para fugir. Por trás do arame farpado, os campos de concentração não

estavam imunes a esta sensação geral de pânico e de inquietude. As conversas sobre uma implosão de algum tipo eram comuns entre os guardas e os funcionários civis. As sirenes de aviso de ataques aéreos soavam, atroadoras, quase todos os dias, e algumas prisioneiras foram encarregadas de cavar trincheiras à volta do campo. Não eram só os guardas que traziam notícias das ruas alemãs. Entre as recém-chegadas encontravam-se muitas prisioneiras alemãs — mulheres que tinham insultado o Führer ou que se tinham queixado da duração da guerra, ou associais detidas em rusgas. Através dessas mulheres, as prisioneiras políticas alemãs conseguiam ficar a saber bastante sobre a situação, e as que tinham melhores contactos contavam boatos de que muitos dos elementos mais próximos de Hitler se sentiam igualmente inquietos. No início do verão de 1944, Grete Buber-Neumann recebeu uma carta em código de um parente bem relacionado em que ele dizia que estava prestes a ocorrer um atentado à vida de Hitler. Grete correspondia-se regularmente com um cunhado, Bernhard, que tinha sido prisioneiro num campo de concentração nos anos 1930 e que sabia como contornar os censores. Várias pistas convenceram as mulheres de que o exército estava prestes a voltar-se contra Hitler. Bernhard claramente ouvira falar da notícia, cada vez mais insistente em círculos militares e diplomáticos, de que a revolta contra o Führer estava a atingir o seu auge. Em 20 de julho de 1944, Claus von Stauffenberg entrou numa conferência militar com o Führer no seu quartel-general militar do Leste, o Wolfsschanze, ou «toca do lobo», e colocou uma pasta contendo uma bomba debaixo da mesa, tão perto de Hitler quanto possível; mas o curso da explosão foi desviado por uma perna grossa da mesa e Hitler sobreviveu, sofrendo apenas queimaduras e o choque. Numa pequena nota de rodapé ao caso, na clínica de Hohenlychen, a alguns quilómetros de Ravensbrück, nasceu uma bebé chamada Nanette Dorothea Potthast imediatamente antes da

tentativa de assassínio — um acontecimento com alguma relevância para a conspiração. Hedwig Potthast, a amante de Heinrich Himmler, deu à luz em 3 de junho. No entanto, não é a data do nascimento de Nanette que é de interesse histórico, mas a data e o local em que foi registada — em 20 de junho, em Hohenlychen — e o facto de o pai ter estado presente. O paradeiro de Himmler na manhã em que Hitler quase foi assassinado sempre foi motivo de especulação; algumas pessoas sugeriram até que a sua ausência do local o implicava na conspiração. A certidão de nascimento de Nanette fornece provas inegáveis de que ele se encontrava em Hohenlychen nesse dia a assistir ao registo do nascimento da sua filha. Em breve, Himmler teria mais razões para regressar àquela zona. O Reichsführer foi encarregado da investigação da conspiração de 20 de julho, sendo a base da operação policial no centro de treino da SS em Drögen, a cerca de oito quilómetros de Ravensbrück. O bunker de Ravensbrück foi até usado para a detenção de muitos dos conspiradores enquanto estavam a ser interrogados. As prisioneiras recordam «uma grande agitação» quando os prisioneiros eram levados para o campo em carros com vidros fumados. Isa Vermehren, a cantora de cabaré que ocupou uma das celas privilegiadas do bunker durante quase nove meses, observou os conspiradores enquanto eles aguardavam o seu destino. O primeiro que viu foi o conde Wolf-Heinrich von Helldorf, o chefe da polícia de Berlim, o autor do plano da expulsão dos judeus de Berlim. Hitler estava tão furioso com a traição de Von Helldorf que o obrigou a assistir ao enforcamento dos seus coconspiradores antes de ser ele próprio enforcado. Um dia, Isa avistou-o no pequeno pátio no exterior. «Ele estava sentado numa cadeira ao sol, mais morto que vivo, com uma expressão de tristeza infinita no rosto.» Pouco depois, as mulheres, irmãs e filhas de Von Stauffenberg e dos seus parentes foram detidas e executadas. As parentes mais afastadas foram levadas para Ravensbrück. Perto do final de julho, um dos generais mais destacados de Hitler, Franz Halder, chegou ao bunker juntamente com a sua mulher. Embora marido e mulher

fossem mantidos em celas separadas, tinham autorização para se encontrarem para dizerem «bom dia» e «boa noite». Durante esse período, Helmuth von Moltke, o outro detido no bunker, começou a aperceber-se de que também ele estava condenado. Embora não diretamente envolvido na conspiração de 20 de julho — estava detido no bunker acusado de atos de traição não relacionados com esse —, sabia, no entanto, que a investigação de Himmler o relacionaria com os conspiradores. Discutindo o seu futuro com Isa, disse que não era revolucionário e que era contra o assassínio de Hitler. «Ele era suficientemente esperto para ver que um assassínio bem-sucedido não teria tido melhores resultados do que um assassínio fracassado», recordou Isa. «Era de opinião que tinha de ser Hitler a destruir o seu próprio sistema para não deixar aos outros nacionais-socialistas argumentos para a sua defesa.» Von Moltke disse também a Isa que as prisioneiras de Ravensbrück tinham a sua simpatia, mas que receava pelo seu futuro. «A esperança não é o meu ofício», disse uma vez. Nos últimos dias de julho, Isa observou com interesse que trouxeram «as três mulheres Hoepner — todas vestidas num puro estilo Potsdam». O general Erich Hoepner, que liderara o ataque a Moscovo integrado na Operação Barbarossa, estava já a ser interrogado em Drögen. «A tia disse-me que achava bastante irritante que isto acontecesse logo agora, quando ela e o marido tinham acabado de receber a confirmação da reserva de uma estada de três semanas nas suas termas favoritas. E agora aquilo, só por causa do seu irmão.» A filha de Hoepner perguntava-se se haveria maneira de fazer chegar uma pistola ao seu pai para ele poder suicidar-se. Ele foi julgado em 7 e 8 de agosto, e enforcado num nó de arame — uma outra execução que Hitler viu em filme. Depois disso, a irmã de Hoepner não tardou a ser libertada, mas a filha e a sua mãe foram enviadas para o Strafblock por mais quatro semanas para serem submetidas a mais punições. A mãe ressentiuse muito, e, quando Isa voltou a vê-la, tinha a cabeça rapada e estava

pálida e esquelética. «Dizia-se que o marido a tinha incriminado pesadamente no seu interrogatório.» No entanto, Frau Hoepner conseguiu encontrar amigas no Strafblock, entre elas Loulou Le Porz, a médica de Bordéus. Nessa fase, Loulou já tinha formado fortes amizades, particularmente com uma mulher francesa chamada Madame Lelong e com uma condessa polaca chamada Maria Grocholska. Como Maria falava impecavelmente francês e alemão, pôde servir de intérprete quando as Hoepner foram para o bloco e se encontraram no beliche de Loulou antes de irem dormir. Olhando para trás, diz Loulou, foi no Strafblock que ela fez as suas melhores camarades. No campo de concentração em geral não havia muitas amizades entre as várias nacionalidades, mas no Strafblock sim, talvez porque esse bloco estava isolado do resto do campo: Lá fora, por vezes as mulheres tinham a marca da educação, mas tinham-se misturado com as massas. No Strafblock podia frequentemente ficar a saber-se como se chamavam e situá-las de algum modo. Descobri que Maria Grocholska era filha de um príncipe polaco. E o marido de Madame Lelong tinha trabalhado com De Gaulle. Madame Hoepner também era adorável. Elas eram o meu grupo de catar piolhos. Catavam os piolhos do meu cabelo e das bainhas da minha roupa. Pensei na altura que ninguém iria nunca acreditar naquilo. Uma condessa e duas mulheres de generais a catarem-me os piolhos.

Um dia, as Hoepner deixaram o Strafblock e Loulou não sabia para onde tinham ido. «Mas era assim no campo. Estava-se sempre na incerteza. Alguém nos batia no ombro e não se sabia o que poderia acontecer a seguir.» No início de agosto, a incerteza alastrava por todo o campo. As polacas aguardavam desesperadamente notícias de Varsóvia, onde, constava, se tinha iniciado uma insurreição, e as francesas ouviram a notícia de que a cidade de Paris poderia ser libertada a qualquer momento, mas não havia maneira de ter a certeza. Denise Dufournier e o seu grupo parisiense de mudanças — algumas das quais tinham entretanto sido transferidas para o grupo das pinturas — foram enviadas para um outro bloco, onde a sobrelotação era tal que

dormiam quatro por cama e tinham de rastejar até aos seus colchões e de se deitarem de barriga para baixo para comer a sopa. No final de agosto, chegou mais uma grande caravana de França e essas mulheres espalharam a notícia de que Paris tinha por fim sido libertada. As veteranas do grupo das vingt-sept mille observaram estas francesas recém-chegadas com fascínio. Elas estavam bemdispostas e usavam «vestidos ridículos que tinham congeminado de alguma maneira». Uma tinha até um lenço de pescoço Hermès, e outra uma caixa de pó de arroz que tinha conseguido trazer às escondidas dos balneários. «Era como se um pouco da nossa vida anterior se tivesse esgueirado ilegalmente para dentro do campo. Uma lufada de ar da França», disse Denise. «E nós pensámos — o que importava o nosso destino se a Tricolor estava de novo a adejar sobre Paris?»

QUINTA PARTE

CAPÍTULO 25 PARIS E VARSÓVIA A 8 de agosto de 1944, com as forças americanas a apenas 160 quilómetros a oeste de Paris, três mulheres britânicas foram tiradas das suas celas na prisão de Fresnes nessa cidade, metidas num camião e levadas à Gare de l’Est. Com correntes nos tornozelos, Violette Szabo, Denise Bloch e Lilian Rolfe foram metidas num comboio para a Alemanha. Numa outra carruagem do mesmo comboio, algemados dois a dois, ia um grupo de homens britânicos. Na estação, as mulheres e os homens tinham-se reconhecido uns aos outros. Eram todos membros do Executivo de Operações Especiais (SOE) e tinham aterrado de paraquedas em França para colaborar com a resistência. Violette Szabo viu Harry Peulevé, um britânico com quem tinha feito o seu treino. Denise Bloch viu o seu líder de circuito e amante, Robert Benoist, um corredor de automóveis francês. Os agentes tinham sido capturados pouco antes do Dia D e detidos em prisões francesas pelos Alemães. Acalentaram a esperança de serem libertados pelos Americanos, provavelmente numa questão de dias. Em vez disso, juntamente com milhares de resistentes franceses capturados que estavam detidos em prisões por toda a França, foram levados para campos de concentração alemães nos últimos dias antes de as forças aliadas recapturarem Paris e reconquistarem a França. Com os Alemães a retirarem de solo francês, o Führer ordenou que todos os resistentes franceses capturados fossem enviados como escravos para fábricas alemãs. O ritmo do êxodo aumentava diariamente; nas três semanas a seguir ao Dia D, 6000 homens e mulheres franceses foram levados de comboio para a Alemanha. As viagens duravam dias, devido ao bombardeamento das linhas férreas pelos Aliados, e resultaram num número terrível de mortes. Um train

de la mort, comboio da morte, chegou a Buchenwald em julho com 530 homens franceses mortos. Durante os longos atrasos, tinham sufocado no calor ou mataram-se uns aos outros ao tentarem sair. O comboio que levava Violette Szabo, Denise Bloch e Lilian Rolfe avançava lentamente para a fronteira alemã, porque os bombardeamentos provocavam muitas paragens. Durante uma longa paragem, Violette apareceu à janela da carruagem dos homens a oferecer-lhes água. Rastejou pelo lado do comboio, ainda algemada a Denise Bloch, enquanto os guardas alemães se abrigavam durante um ataque aéreo. Quando o comboio se aproximou da fronteira em Soissons, o chefe da estação e pessoal da Cruz Vermelha tentaram persuadir o maquinista a voltar para trás, mas foram ignorados. Em Saarbrücken, num campo de concentração transitório, as mulheres encontraram Yvonne Baseden, outra agente do SOE. Seis semanas antes, nas montanhas de Jura, o seu circuito tinha recebido a primeira remessa de armas à luz do dia, atirada de um avião americano Flying Fortress, e escondeu o armamento numa quinta de laticínios por trás de pilhas de queijos gigantes. Quando uma patrulha alemã se aproximava, Yvonne, uma jovem de vinte anos, escondeuse também aí, mas foi descoberta e detida. Como as linhas férreas para Paris estavam fora de ação, meteram-na num comboio direto de Dijon para Saarbrücken. Entre as suas companheiras de viagem encontravam-se uma condessa francesa que não fazia ideia do motivo por que tinha sido detida, um grupo de «comunistas quezilentas» e uma britânica «mandona» que envergava o uniforme da Cruz Vermelha francesa. Com estes comboios a partirem, milhares de pessoas continuavam ainda nas prisões de Paris. Por entre receios de que os Alemães os massacrassem a todos nos últimos dias, os líderes da resistência apelaram a uma insurreição antes da libertação pelos Aliados. O cônsul da Suécia em Paris, Raoul Nordling, na sua qualidade de representante de um país neutro, tentou obter a permissão dos Alemães de que as prisões francesas fossem colocadas sob a proteção da Suécia e apelou à suspensão das deportações. Nessa

altura, o fornecimento de energia elétrica à cidade estava já cortado. Os maquinistas de comboios tinham convocado uma greve e a Gare de l’Est tinha sido destruída por uma bomba lançada pelos Aliados. Mas os comboios continuavam a partir. Foram recrutados maquinistas de comboios alemães e os comboios partiam de uma estação suburbana, a Gare de Pantin. Em 15 de agosto, Virginia Lake, uma americana de trinta e quatro anos, ia de pé num autocarro apinhado que atravessava a Place de la Concorde. Um mês antes, ajudara militares da força aérea dos Aliados a chegarem a lugar seguro, mas agora, juntamente com dezenas de outras resistentes, integrava uma caravana de autocarros que se dirigia para a Gare de Pantin. O condutor do autocarro, um francês, disse a Virginia que tinha passado o dia a transportar prisioneiros para a estação e que estava farto. Era como se todos os prisioneiros em Paris estivessem a ser retirados naquele dia, disse ele. «E os Aliados? Onde é que eles estão?», perguntou-lhe ela. «Estão a fazer progressos», disse ele. «Estão em Rambouillet», uma cidade a cerca de quarenta e cinco quilómetros de Paris. Na Gare de Pantin, os prisioneiros foram metidos aos sessenta em cada vagão. Funcionários da Cruz Vermelha entregavam-lhes embrulhos e asseguravam-lhes: «Nunca chegarão à Alemanha. É impossível. Vão ser libertados antes disso.» Quando o comboio saiu da estação, transportando um total de 400 mulheres e 2200 homens, incluindo 168 pilotos dos Aliados, uma tempestade de mensagens abateu-se sobre os trilhos, para serem recolhidas por transeuntes. As paragens e os desvios eram tão frequentes que os prisioneiros tinham a esperança de não chegarem à fronteira. Durante uma dessas paragens, foram obrigados a sair do comboio e a marcharem alguns quilómetros ao lado das linhas férreas bombardeadas. Uma jovem resistente francesa chamada Nicole de Witasse viu uma hipótese de escapar e atirou-se para um monte de palha, mas não tardou a ser encontrada, espancada e trazida de volta. As populações locais gritavam: «Bon courage! Vive la France!»

Mais uma vez, um chefe de estação pediu ao maquinista que parasse, mas sem resultado. Pouco depois, espreitando por entre as traves, os prisioneiros leram tabuletas em alemão e choraram. Os seus guardas descontraíram-se. Quatro horas depois, o comboio chegou a Weimar e parou. As mulheres casadas foram informadas de que podiam despedir-se dos seus maridos, que iam ser enviados para Buchenwald. Pouco depois, todas as mulheres foram metidas num comboio com destino a norte, a Ravensbrück, aonde chegaram em 21 de agosto de 1944. Em 25 de agosto, Paris foi libertada. As mulheres marcharam para o campo de concentração ao sol quente. Do outro lado dos portões, viram mulheres com aspeto de gnomos e enormes barracões verde-garrafa assentes num chão de terra negra. Tinham vindo apinhadas dentro dos vagões durante quinze horas e suplicaram por água, mas foi-lhes dito que não havia. «Tifo, tifo», diziam aquelas criaturas: a água não podia beber-se. Foi servido um pequeno jarro de um sucedâneo de café, mas como não havia chávenas, as recém-chegadas procuraram nas suas mochilas algum recipiente, chávenas ou garrafas, ou esvaziavam freneticamente frascos de compota ou de açúcar que tinham trazido e estendiam-nos para receberem uma gota de líquido castanho. Outras prisioneiras que assistiam à cena viram o açúcar e a compota derramados e tentaram recolhê-los do chão. Ao cair da noite, ainda não tinham sido atribuídos blocos às recémchegadas. O campo de concentração encontrava-se num caos, e as mulheres estavam a ser enfiadas por uma rua estreita e empurradas contra uma fila de latrinas a céu aberto. Virginia olhou para a vedação por trás dela e viu uma tabuleta com uma caveira e dois ossos cruzados por cima, um aviso de que a vedação estava eletrificada. Vinha um fedor insuportável do chão: ela estava por cima da morgue. Havia centenas de outras prisioneiras apinhadas na rua estreita e todas gritavam em línguas diferentes: neerlandês, romeno, húngaro, grego, servo-croata e muitas outras. Ao cair da noite, todas aquelas

prisioneiras foram empurradas mais para dentro do campo de concentração. Mais à frente, viam o que lhes parecia ser o topo de uma tenda gigante. Um novo grupo, com algumas das mulheres de casacos de peles, abriu caminho pela rua estreita e em seguida elas caíram por terra e ficaram ali a gemer. Outras — mães com filhos — sentavam-se em malas de couro caras e fitavam enojadas as que as rodeavam ou gemiam. Correu a notícia de que eram polacas. As francesas fitavam as polacas e as polacas fitavam as francesas. Uma ou duas sabiam falar a língua uma da outra. As polacas tinham vindo de Varsóvia, ficaram a saber as francesas, e as polacas ficaram a saber que as francesas tinham vindo de Paris. Paris estava prestes a ser libertada, disseram as francesas. Varsóvia estava a arder, disseram as polacas. No início de agosto, na altura em que os Franceses esperavam que os Americanos libertassem Paris, o exército polaco de resistência viu a sua oportunidade de reconquistar a sua cidade, mas a revolta foi esmagada. As divisões da SS de Hitler avançaram e deitaram fogo à cidade, chacinando quem encontravam. Uma menina de dezasseis anos, Krystyna Dąbrówska estava ali na rua estreita do campo de concentração; três semanas antes, vira desaparecer nas chamas a sua casa em Varsóvia. O pai de Krystyna, que era médico, escapou pelos esgotos; o seu irmão foi morto a tiro. Ela e a mãe foram enfiadas num comboio e enviadas para oeste juntamente com milhares de outras pessoas para trabalharem como escravas de Hitler. Na sua primeira noite em Ravensbrück, Krystyna acabou por encontrar um lugar para dormir depois de descer uns degraus e de se enroscar num lugar quente. Quando acordou na manhã seguinte, descobriu que tinha dormido na morgue. Outras prisioneiras do transporte de Varsóvia de Krystyna dormiram nessa primeira noite na tenda gigante. A tenda parecia bastante inofensiva quando apareceu a meio de agosto, com a sua lona branca limpa a sacudir-se na brisa. Denise

Dufournier e o grupo das pinturas viram-na ser montada, com espanto. Seria um circo, talvez, ou um centro de exposições?, diziam a brincar. Ninguém esperava que lá vivessem prisioneiras. De facto, era uma velha tenda do exército e Suhren diria mais tarde que tinha encontrado a última do seu tipo na Alemanha — tal era a sua procura noutros campos de concentração sobrelotados. Quando a tenda chegou, Suhren até ajudou a martelar as estacas. A tenda foi montada num terreno baldio entre os blocos 24 e 25. No inverno era um pântano e no verão uma lixeira, infestada com moscas. Constou que se tratava de uma medida temporária para abrigar as recém-chegadas, e sem dúvida havia essa necessidade, já que todo o espaço disponível estava agora ocupado. Na maior parte dos blocos dormiam três mulheres por colchão, mas nos blocos grandes e degradados chegavam a dormir sete em dois colchões lado a lado. As salas estavam apinhadas com prisioneiras deitadas em cima de mesas ou de bancos ou no chão. No bloco das ciganas, as mulheres agachavam-se nos lavatórios «como galinhas empoleiradas», disse Sylvia Salvesen. A morgue estava sempre tão cheia que os cadáveres eram empilhados nos balneários dos blocos até a carroça vir buscá-los. O aumento do número de chegadas era incomportável e começara a intensificar-se muito antes de chegarem as mulheres de Varsóvia. Com os Russos a avançarem pela Polónia, Hitler ordenou que todos os campos de concentração e todas as prisões nazis que se encontravam no seu caminho fossem despejados: nenhum prisioneiro do Reich deveria cair nas mãos do inimigo. Por consequência, milhares de prisioneiros tinham sido metidos em comboios para oeste, para campos de concentração mais para lá das linhas alemãs, que estavam agora todos sobrelotados com as novas chegadas. Embora os Russos ainda se encontrassem a milhas de distância do Sul da Polónia, tinham-se já iniciado os transportes de evacuação de Auschwitz e os guetos polacos estavam também a ser despejados, com alguns dos judeus aí detidos a serem também enviados para oeste.

Ao mesmo tempo, estavam ainda a chegar grandes números de prisioneiras alemãs a Ravensbrück — donas de casa que tinham sido ouvidas a duvidarem da vitória alemã, prostitutas encontradas a vaguearem pelas ruínas de Dresden, mais Bettpolitische. A seguir, chegaram os transportes mais recentes de França, antes da sua libertação pelos Aliados. E eram também esperadas em breve prisioneiras vindas do campo de concentração de Vught, no Sul da Holanda. Ao longo de todo o verão, Fritz Suhren tentou criar mais espaço, construindo novos blocos, apertando mais aqui e ali, mas em meados de agosto a infraestrutura do campo estava a desmoronar-se. Ele nem sequer dispunha de pessoal para fazer o processamento das chegadas. Segundo as regras estritas do campo, nenhuma prisioneira poderia ser admitida sem serem preenchidos formulários e lhe ser atribuído um número, razão por que as francesas e outras tiveram de esperar na rua até se poder processar a sua chegada. No entanto, quando começou o influxo de Varsóvia, a burocracia do campo de concentração finalmente entrou em colapso. A tenda aliviou um pouco a situação, mas não era suficientemente grande para alojar todas as mulheres de uma cidade. No espaço de algumas semanas, entre agosto e outubro de 1944, mais de 12 000 mulheres e crianças de Varsóvia seriam postas a caminho de Ravensbrück. No final de agosto, Suhren recusava-se já a admitir mais prisioneiras. As que aguardavam o seu registo eram mantidas numa vasta multidão inquieta do lado de fora dos portões, exaustas, esfomeadas e doentes. O chão em que se sentavam e deitavam não tardou a ser um campo de lama, excrementos e detritos humanos. As polacas do campo de concentração ansiavam por ouvir as notícias das recém-chegadas, e Krysia Czyż e Wanda Wojtasik, agora com forças suficientes para andarem, tinham sido encarregadas de guardar novas trincheiras antiaéreas, escavadas no exterior dos muros do campo de concentração como abrigos, o que lhes proporcionou a oportunidade de observar as mulheres de Varsóvia,

que foram encontrar num estado lastimável. Depois de dez horas em vagões de gado, as recém-chegadas tinham sido deixadas ao sol sem comida nem água. Krystyna e Wanda levavam-lhes baldes de água limpa e perguntavam: «Que notícias de Varsóvia?» A resposta era sempre a mesma: «Já não há Varsóvia. Não ficou nada.» Chegavam famílias inteiras e havia crianças por toda a parte, a correrem para os bosques ou a tentarem arranjar comida nas casas do pessoal da SS. Chegavam cada vez mais, e cada transporte parecia trazer uma quantidade crescente de parafernália. As mulheres sentavam-se com pilhas dos seus bens à volta, metidos em malas de viagem, em caixotes ou em malas de porão gigantes. Quando lhes perguntavam porque é que tinham trazido aquelas coisas, as mulheres diziam que os Alemães lhes tinham dito para «trazerem tudo» e que também lhes tinha sido prometida segurança. Outras traziam o que tinham pilhado. Chegaram todas as presas de uma prisão civil juntamente com freiras de vários conventos. Algumas mulheres traziam os seus cães e Grete Buber-Neumann viu uma mulher com um canário numa gaiola. Com a degradação das condições, a SS receava o alastramento de doenças e fizeram-se mais esforços para alojar as mulheres no interior para pelo menos elas poderem ser desinfetadas e aguardarem o seu registo na tenda. No entanto, dados os números envolvidos e a quantidade de bagagem a ser processada, o procedimento usual do duche e da desinfeção era impossível. Numa primeira fase, as mulheres eram rapidamente revistadas para averiguar se traziam objetos de valor antes de serem enviadas para a tenda, e, ao verem aquilo, muitas tentaram enterrar o que traziam ou esconder joias e outras peças de valor em orifícios. A maior parte dos artigos de luxo e das joias acabou por ser confiscada pelas guardas, mas era tal a quantidade de bens pessoais que foram deixadas pilhas deles junto aos balneários. «Havia crachás e alfinetes de peito e imagens da Nossa Senhora e da águia polaca, caixas de pó de arroz, relógios e vestidos de noite, missais, tachos e panelas, colheres de prata, rolos de tecidos caros,

espelhos, edredões e violinos, roupa interior linda, de seda, e lenços de camponesas — tudo à mistura», disse Karolina Lanckorońska. As prisioneiras que passavam fitavam espantadas aquelas coisas finas, e muitas deitaram a mão ao que podiam. Quando o primeiro grupo foi conduzido para dentro da tenda, disseram-lhes que era o Bloco 25. Como qualquer outro bloco, foi-lhe atribuído uma Blockova e duas Stubovas — ambas veteranas polacas do campo de concentração. A tenda estava vedada e era patrulhada por polícias do campo, como se o que acontecesse ali fosse um grande segredo, mas a tenda viria a tornar-se o segredo mais mal guardado de todos. Não tardou a começar a escorrer um líquido castanho por baixo das abas da tenda e à noite ouviam-se gritos e gemidos. Uma das Stubovas da tenda, Halina Wasilewska, fez esboços da estrutura e tomou apontamentos sobre o seu aspeto, mantendo um registo das chegadas. A tenda original, disse ela, era uma tenda do exército com cerca de dez metros por quarenta e com três metros de altura, sustentada por um par de postes centrais, o que significava que as paredes eram inclinadas a partir do centro. Não havia iluminação nem água. Sem acesso a latrinas ou a casas de banho, foram colocados caixotes de madeira com um balde dentro à volta do perímetro da tenda. As primeiras 900 ocupantes chegaram a 23 de agosto. Os problemas começaram imediatamente, porque elas não tinham sido levadas primeiro aos balneários. Estavam todas imundas e infestadas de piolhos e tinham de usar as mesmas roupas que usaram nos vagões de gado e durante o tempo passado aos portões do campo de concentração. As mulheres estavam esfomeadas, mas a distribuição de comida era quase impossível, porque não lhes tinham sido fornecidos utensílios e elas tinham de comer dos seus próprios pratos, se os tivessem — muitas vezes, só traziam frascos ou latas —, mas, sem hipótese de lavar fosse o que fosse, as panelas ficavam rançosas com a comida deixada nelas.

Só ao fim de dois dias é que as mulheres foram levadas para os balneários para tomarem um duche e nessa altura todos os pertences que tinham conseguido manter consigo foram-lhes tirados e ordenaram-lhes que vestissem vestidos de algodão do campo de concentração. Mas a seguir foram enviadas de novo para a tenda e viram-se forçadas a sentar-se ou a deitar-se na mesma palha fedorenta. Todos os dias, vinham guardas da SS revistá-las aleatoriamente, à procura de mais objetos de valor, confiscando os últimos terços, as últimas fotografias e alianças. Em meados de setembro, os dias ainda estavam quentes e abafados, mas as noites já começavam a ser frias. Começou a entrar chuva pelos lados abertos e o vento fazia abanar de tal modo os postes da tenda que toda a estrutura balouçava e a tenda quase desabava. Embora, supostamente, a tenda fosse uma zona interdita ao resto do campo de concentração, outras prisioneiras fitavam-na com repugnância crescente, dizendo: «Elas são para o esquadrão dos cadáveres», embora muitas outras tentassem ajudar. Quando se soube que as mulheres dentro da tenda estavam a morrer à fome, algumas prisioneiras que trabalhavam nas cozinhas e na administração tentaram entrar para lhes dar sopa e pão. A prisioneira austríaca Anna Hand ficou horrorizada com o que encontrou. «As mais fortes tiravam o pão às mais fracas e muitas prisioneiras não ficavam com nada. Havia mil mulheres ali dentro, apinhadas como sardinhas em lata num espaço tão pequeno que muitas só podiam ficar de cócoras. Algumas já estavam a morrer pisadas.» Durante todo esse tempo, continuavam a chegar aos portões mais mulheres da capital polaca, para além de transportes de outros locais. Um grupo do gueto de Łódź foi alojado na tenda, juntamente com as recém-chegadas de Auschwitz. Eram ainda as mulheres de Varsóvia que inundavam o campo com mais rapidez; a cidade parecia estar a chegar bairro a bairro, como se metodicamente arrancada às chamas e transplantada para ali. Dava a impressão de que toda a população de Varsóvia tinha sido detida — ricos e pobres, com ou sem estudos, mulheres de lares de terceira idade, crianças de orfanatos,

professoras, condessas e mais; todas a andarem às voltas, a tentarem encontrar mães, irmãs ou filhas separadas delas em diferentes camiões ou, o mais provável, mortas nas chamas de Varsóvia. O comportamento de algumas das compatriotas das prisioneiras políticas polacas horrorizava-as. Krysia e Wanda observaram que muitas queriam agradar aos alemães, acreditando que realmente tinham sido trazidas para ali para sua proteção. «Pareciam não fazer ideia da grave situação em que se encontravam», disse Wanda. Com o contingente mais recente chegaram carregamentos de bens pilhados pelos Alemães de casas, igrejas e escritórios saqueados em Varsóvia. O saque era tão precioso que se abriram armazéns especiais junto aos muros do campo de concentração e algumas prisioneiras foram selecionadas para os organizar. Uma das mulheres reconheceu os cortinados do seu apartamento em Varsóvia. A visão das mulheres de Varsóvia causava cada vez mais consternação entre outras prisioneiras, particularmente entre as russas. Antonina Nikiforova olhava incrédula para os casacos de peles e os estojos cheios de ouro: Trouxeram tudo, porque Hitler lhes prometera casas. Tinham-se posto sob a proteção dos fascistas e pensavam que não tinham nada em comum connosco, por isso olhavam com desdém para todas nós. Vi freiras com grandes hábitos negros e cruzes de ouro a brilharem-lhes no peito... Deitavam-se no chão, com os braços sobre a cruz, recusando-se a tirá-la. Mas pouco depois todo o campo ficou a saber como se tiram os hábitos e as cruzes às devotas. Os homens da SS faziam-nas levantarem-se ao pontapé e arrancavam-lhos. Alguns dias depois, não se distinguiam das outras prisioneiras. Só uma ou duas vezes se reparava numa mulher a erguer os olhos ao céu e a murmurar uma oração, e sabíamos que era uma «irmã».

Nos transportes subsequentes de Varsóvia chegavam cada vez mais mulheres com bebés e crianças. A visão de mulheres com bebés no campo de concentração enfurecia alguns dos homens da SS. Sara Honigmann, uma prisioneira polaca, viu um grupo de mulheres de Varsóvia de pé junto aos balneários uma manhã. Uma delas tinha um bebé ao colo. «O delegado do comandante do campo

de concentração avançou para a jovem mulher, tirou-lhe o bebé dos braços e bateu com ele contra o muro. A mãe caiu por terra a chorar.» Depois disso, outro oficial da SS ralhou ao primeiro, que sacou da arma, e o próprio comandante teve de intervir para resolver a situação. Karolina tinha obtido autorização de Dorothea Binz para circular entre os grupos e encontrou muitas mulheres tão perturbadas com o que lhes tinha acontecido que nem sequer eram capazes de responder a perguntas. Muitas delas tinham sido forçadas a deixar os filhos ou tinham assistido ao seu assassínio. Uma mulher disse a Karolina que deixara dois filhos, porque os Alemães a tinham levado à força sem eles. Uma outra segredou a Karolina que tinha visto o filho dessa mesma mulher ir pelos ares, vítima de uma bomba. Para Suhren, a chegada das crianças apresentava mais um problema logístico. Desde o inverno de 1943, quando chegou o primeiro grupo especial de judias da Bélgica e da Holanda, que o campo de concentração detinha algumas crianças pequenas, e tinham chegado mais num transporte de ciganas em julho. No entanto, na maior parte dos casos uma cuidadosa triagem evitava que crianças muito pequenas embarcassem nos comboios que se destinavam a Ravensbrück, porque não tinham préstimo para o trabalho. O grupo de prisioneiras judias transportadas de Auschwitz era o mais cuidadosamente selecionado de todos: quaisquer crianças muito pequenas teriam com certeza sido identificadas à chegada à rampa de Auschwitz e enviadas para a câmara de gás, provavelmente por Josef Mengele, o médico mais conhecido pelas suas experiências em gémeos. Em setembro, chegou a Ravensbrück uma jovem de dezasseis anos chamada Pola Wellsberg, uma judia polaca. Tinha-se deparado com Mengele em Auschwitz apenas duas semanas antes. Detida primeiro no gueto de Łódź, os seus pais e os seus quatro irmãos foram enviados para o campo de morte de Chelmno, mas Pola e a sua irmã mais nova, Chaya, sobreviveram, porque foram enviadas

para uma fábrica no gueto para fazerem calçado para os militares. Quando o gueto foi despejado em agosto de 1944, ela e a sua irmã foram levadas para Auschwitz, onde todas as pessoas de Łódź formaram fila diante de Mengele. Apontava para cada pessoa à vez e um grupo selecionado para a câmara de gás formava-se à sua esquerda e o outro, escolhido para trabalhar, à sua direita. Pola e Chaya foram mandadas para a esquerda, «mas eu fui retirada no último momento», diz Pola. Foi considerada apta para o trabalho, razão por que foi enviada para Ravensbrück. Regina Minzburg estava também em Łódź antes de ser enviada para Auschwitz, onde foi igualmente selecionada para viver — «Estávamos a caminho da câmara de gás quando, subitamente, decidiram escolher mais 500 para trabalharem. Eu tinha catorze anos, mas eles acharam que eu podia trabalhar.» Contudo, a maioria das mulheres de Varsóvia não tinha sido submetida a essa pré-seleção. Essas mulheres vinham muitas vezes diretamente das suas casas, com os seus pertences, avós e filhos — e muitas estavam grávidas. Defrontado com essa multidão crescente — muitas delas mulheres que não poderiam de maneira nenhuma trabalhar —, Fritz Suhren tinha opções limitadas. Chegavam igualmente milhares de prisioneiros vindos de Varsóvia a outros campos de concentração. O comandante do campo de concentração de Stutthof, que estava assoberbado com novas chegadas, recebeu em 14 de agosto de 1944 uma ordem de Richard Glücks, o chefe do Inspetorado dos Campos de Concentração, de acordo com a qual não deveriam ser admitidas no campo mulheres de Varsóvia com crianças com menos de catorze anos — não deviam «ser registadas nas listas». Certamente, a ordem significava que as mulheres com crianças que chegavam a Stutthof eram levadas e mortas a tiro. Parece altamente provável que uma ordem similar tenha sido enviada a Fritz Suhren. A outra solução de Suhren para a sobrelotação foi mandar vir uma tenda maior. Segundo o relato de Halina, a nova tenda tinha cerca de 20 metros de largura por 50 de comprimento, o dobro da largura da primeira, e os seus lados tinham mais de três metros de altura, com

um telhado de dois bicos. A segunda tenda tinha esgotos e uma luz, mas como não recebia luz natural era mais escura, especialmente porque a luz elétrica era fraca e mal iluminava um dos lados. Os esgotos entupiram com as primeiras chuvas. Tinha fugas mais ou menos a meio, formando, por cima do chão enlameado, uma poça permanente de cerca de cem metros quadrados. Halina comunicou várias vezes as fugas, mas os esgotos nunca chegaram a ser reparados. Desde o início que não havia palha em quantidade suficiente para todas as pessoas na segunda tenda, e continuava a não haver meios para as recém-chegadas se lavarem ou limparem os seus pratos. Havia uma latrina no exterior, mas não era possível ir lá a não ser em grupos escoltados por uma guarda. Pouco depois, a latrina avariouse. Com cerca de cem crianças com menos de doze anos a viverem na tenda, as condições tornaram-se impossíveis. Foram postos vinte baldes dentro da tenda, que eram despejados em covas cavadas mesmo junto à tenda e que rapidamente começaram a transbordar. No princípio de outubro, as noites eram já húmidas e frias. Não havia assistência médica para as doentes. O pessoal da tenda trazia água de outros blocos para lavar as crianças, mas era quase impossível. Havia um número cada vez maior de crianças e as lutas pelo espaço acentuavam-se. Poucos dias depois de ser montada a nova tenda, pelo menos duas mulheres deram à luz. Todas as noites, as outras prisioneiras ouviam terríveis gritos agudos vindos da tenda. Uma manhã, viu-se uma prisioneira a sair e a acocorar-se no exterior. Anja Lundholm viu que a mulher encostava a cabeça a um poste de madeira. O seu cabelo comprido estava todo despenteado, espalhado pela cabeça e pelos ombros. Provavelmente, era louro, mas estava grisalho de sujidade. Nos seus braços esqueléticos ela tinha alguma coisa, mas não conseguíamos ver o que era. Lentamente, cuidadosamente, ela ergueu a cabeça e viu-nos a fitá-la enquanto passávamos com a chaleira. Acenou-nos e estendeu-nos o seu

embrulho, sorrindo com um ar extasiado. Era um bebé. Ou antes, era o cadáver de um bebé.

CAPÍTULO 26 KINDERZIMMER Karolina Lanckorońska foi uma das primeiras a reparar que muitas das mulheres de Varsóvia estavam grávidas. Algumas delas já tinham outros filhos, que vinham com elas. Outras estavam à espera do seu primeiro filho. Algumas mulheres davam à luz junto aos portões do campo de concentração. Karolina perguntou a Binz se poderia amamentar os bebés de outras mulheres e Binz — talvez em sinal de compaixão — disse que sim, «com base no facto de que elas não são criminosas como nós». A presença de tantas mulheres grávidas entre as milhares que chegavam de Varsóvia não era mais surpreendente do que a presença de crianças. Como essas mulheres constituíam uma amostra representativa da população de Varsóvia, era natural que muitas se encontrassem nos vários estádios da gravidez. Não houve oportunidade de fazer o rastreio das que estavam grávidas antes de as meter em comboios. No entanto, o elevado número de grávidas era especialmente notório. Karolina reparou que muitas mulheres vomitavam. Muitas delas ainda não tinham a certeza de estarem grávidas, mas receavam que assim fosse, porque durante o ataque alemão a Varsóvia tinham sido violadas. Muitas mulheres na multidão falavam de violações, como Karolina e outras prisioneiras ouviam quando passavam por elas. Uma mulher que estava à espera junto aos portões gritava toda a noite, todas as noites. Quando Karolina lhe perguntou o que a perturbava, a mulher disse-lhe que a sua casa tinha sido saqueada e que ela tinha visto a sua filha ser violada pelas forças de Vlasov. Andrei Vlasov era um general soviético que tinha desertado e se juntara aos Alemães e que, obedecendo às ordens de Himmler, comandou brigadas de desertores russos na invasão de Varsóvia, onde violaram milhares de

mulheres, entre elas freiras e crianças em idade escolar. À chegada a Ravensbrück, muitas das grávidas de Varsóvia foram alojadas na tenda, mas sentiam-se aterrorizadas com a perspetiva do que aconteceria a seguir. Stasia Tkaczyk, uma jovem de dezoito anos grávida de dois meses, escondeu facilmente o seu estado e arriscou a partida para um subcampo integrada num grupo de trabalho. As que estavam mais perto do fim do tempo não podiam partir. Não eram só as mulheres de Varsóvia que estavam a chegar grávidas. O rastreio de novas levas de prisioneiras em geral era menos exaustivo agora, e a gravidez entre outras recém-chegadas tornou-se mais comum. Uma mulher da Bretanha que deu à luz na Lagerstrasse ficou com uma infeção e esvaiu-se em sangue até à morte. Havia também mais probabilidade de engravidar dentro do próprio campo de concentração; as prisioneiras tinham mais contactos com homens, particularmente nos subcampos, onde era frequente civis alemães e prisioneiros de guerra trabalharem ao lado das mulheres. No entanto, foi a chegada das mulheres de Varsóvia que fez subir o número de grávidas a níveis inauditos. Segundo o pessoal administrativo, uma em cada dez mulheres polacas que chegavam aos portões do campo de concentração em setembro estava grávida. Como chegou de Varsóvia um total de 12 000 mulheres até ao início de outubro, isso significava que era provável que nascessem cerca de 1200 bebés no campo de concentração ao longo dos nove meses seguintes. A necessidade de responder ao número crescente de grávidas no campo de concentração era óbvia para a SS; viam as mulheres por toda a parte e ouviam o som de bebés a chorarem tão bem como qualquer outra pessoa. Em outubro, algumas mulheres começaram a entrar em trabalho de parto na Appell, nos balneários e na tenda. Quando Leokadia Kopczynska sentiu contrações e desmaiou na Appell da manhã, as guardas, em vez de a pontapearem, permitiram às suas amigas que a levassem à Revier. Talvez tenha sido o desmaio de Leokadia na Appell que levou

Suhren a contactar Richard Glücks, do Inspetorado Central dos Campos (IKL), para solicitar mais instruções; ou talvez as novas instruções já tivessem chegado. Fosse como fosse, sabemos atualmente quais eram as novas ordens pelo que aconteceu a seguir: pela primeira vez na história do campo de concentração, o nascimento de bebés foi autorizado. Criou-se uma sala de partos na Revier com parteiras a prestarem assistência. «Fui levada para a sala de partos na Revier e dei logo à luz», recordou Leokadia. Uma parteira polaca cuidou de Leokadia e perguntou-lhe que nome queria dar à bebé. «Eu disse, chame-lhe Barbara», e a parteira segurou a bebé debaixo de uma torneira e disse: «Eu batizo-a com esta água e dou-lhe o nome Barbara.» A decisão de permitir o nascimento de bebés em Ravensbrück foi uma reviravolta extraordinária na política do campo de concentração. Uma das regras mais importantes do campo sempre fora que os nascimentos eram proibidos. Ao princípio, as mulheres que se descobria estarem grávidas eram enviadas para outro lugar para terem o bebé, que lhes era em seguida tirado para ser criado em orfanatos nazis. Mais tarde, quando o número de grávidas começou a aumentar, faziam-se abortos. Qualquer bebé que nascesse vivo era assassinado. Ao mesmo tempo, fazia-se tudo para evitar qualquer probabilidade de as mulheres enviadas para os campos de concentração engravidarem. As mulheres eram mantidas completamente à parte dos homens nos campos de concentração masculinos e os homens da SS eram severamente punidos por qualquer contacto com as prisioneiras. Não só os nascimentos eram banidos como as mulheres de Ravensbrück eram usadas como cobaias para experiências de esterilização. O grande número de mulheres que chegavam aos portões em outubro forçou por si só uma mudança nessa política. Havia simplesmente demasiados bebés para abortar. Percival Treite já passava metade do seu tempo a fazer abortos e o campo de concentração não dispunha de condições para realizar mais. Provavelmente, foi no início de outubro de 1944 que Treite anunciou a

mudança à Revier. As suas instruções às prisioneiras parteiras e médicas foram que fizessem todos os preparativos necessários para os partos. Entre as primeiras a serem informadas encontrava-se a médica checa Zdenka Nedvedova, que foi encarregada de chefiar os preparativos. Dado que Zdenka era pediatra, formada na universidade Charles de Praga, as futuras mães não poderiam estar em melhores mãos. Ao princípio, Treite pareceu encorajar genuinamente uma abordagem profissional e havia indícios de que apoiava a ideia. Quando foi dado o sinal de avançar, as enfermeiras e as médicas meteram mãos ao trabalho. «Tivemos toda a liberdade para preparar as coisas», recordou Zdenka. Em pouco tempo, estava pronta uma sala de partos limpa e bem equipada, com bastantes lençóis imaculados e água quente disponíveis, assim como papel para fraldas, boa iluminação e outros elementos essenciais. Perto, encontrava-se a sala de operações, que estaria disponível se necessário. Com base nos testemunhos, não é possível saber ao certo se Barbara foi de facto a primeira bebé a nascer. Segundo Antonina Nikiforova, a médica do Exército Vermelho, o primeiro bebé a nascer na nova sala de partos não foi uma polaca, mas uma russa chamada Victoria. Sylvia Salvesen, a norueguesa, que trabalhava na Revier como enfermeira, concordou que o primeiro bebé era russo, mas disse que era um menino chamado Nicholas. A notícia do nascimento espalhou-se pelo campo, causando grande alegria. «As pessoas diziam umas às outras: “Nasceu uma criança em Ravensbrück chamada Nicholas.”» Sylvia Salvesen prestou um depoimento no tribunal de Hamburgo em dezembro de 1946. «O Nicholas foi tratado como um príncipe», disse. «Embrulharam-no em roupas lindas, oferecidas pelas mulheres que tinham chegado ao campo com roupas de bebé que ainda não lhes tinham sido tiradas.» Seguiram-se mais nascimentos, «miraculosamente». Zdenka considerou um milagre que mães doentes e subnutridas dessem à luz

bebés com um belo peso de três ou mais quilos. Uma polaca de Varsóvia, Hanna Wasilczenko, desmaiou na Appell depois de estar de pé durante três horas, foi levada para a Revier e deu à luz um bebé com quatro quilos, a que deu o nome de Witold Grzegorz. A prisioneira austríaca Ilse Reibmayr, recrutada como parteira, disse que «era um milagre» que as parteiras na Revier pudessem de facto dar banho às parturientes. Fazíamo-lo numa grande bacia que tínhamos no consultório. Despíamo-las completamente e metíamo-las nessa bacia. Com um pano lavávamos, ensaboávamos e passávamos por água limpa as mulheres da cabeça aos pés. Arranjávamos-lhes os pés e elas vestiam uma camisa de noite branca. Pudemos encomendar camisas brancas da oficina de costura, onde toda a gente queria ajudar. A maneira como as mulheres tiveram de repente autorização para colaborar foi maravilhosa. Toda a gente andava a fazer fraldas e vestidos para nós. As futuras mães eram preparadas para o parto como se estivessem nas melhores clínicas.

O pessoal médico entre as prisioneiras continuava a sentir a preocupação de que, apesar de os bebés terem um bom peso à nascença, eles estivessem doentes, mas nos primeiros dias das suas vidas desenvolveram-se bastante normalmente. De facto, a má nutrição, que implicava um alto conteúdo de água nos tecidos, tornava os bebés bastante inchados e, por consequência, particularmente adoráveis. «Tinham um aspeto lindo», disse Ilse Reibmayr, «mas é claro que nós sabíamos que era uma ilusão.» Ilusão ou não, a maioria queria tanto acreditar que não levantou quaisquer suspeitas. De facto, lendo os testemunhos, é de assinalar o pouco que qualquer uma das prisioneiras envolvidas receava as consequências do que estava a acontecer ou se perguntava porque é que, subitamente, estavam a ser permitidos nascimentos no campo de concentração. Sylvia disse que as mulheres se perguntavam «O que é que isto quer dizer?», mas que simplesmente diziam a si mesmas que a SS estava a fazê-lo para ter «boa propaganda» numa altura em que o fim da guerra se aproximava — «para mostrarem que eram normais». De qualquer modo, o pessoal médico do campo de concentração

não tinha tempo para pensar mais no assunto: estavam demasiado ocupadas a tentar ajudar. Como Sylvia Salvesen diria em tribunal, depois do primeiro bebé chegaram mais e mais. «Um, dois, três... cerca de vinte nos primeiros tempos, e ao princípio ainda eram muito bem tratados.» Inicialmente, até se permitia às mães que se mantivessem por perto, embora elas não tivessem autorização para ver os seus bebés à noite, um período em que a sala da maternidade era fechada à chave e ninguém podia lá entrar. Ao princípio, Treite autorizou que se desse um copo de leite às mães logo a seguir ao parto, e durante algum tempo fez até vista grossa quando a cozinha mandava flocos de aveia às escondidas para a Revier para serem misturados com o leite. Também não objetava quando o seu pessoal se apressava a acorrer a partos de emergência noutras partes do campo. «Trabalhávamos dia e noite», disse Sylvia. «Eu nunca andava sem uma tesoura e linha no bolso. Com essas duas coisas, a vida de uma mulher e do seu bebé podem ser salvas.» Uma noite, ela e Zdenka foram chamadas aos balneários, onde uma jovem polaca estava a dar à luz no chão. «Tivemos de deixar a mãe. Embrulhámos o bebé num cobertor e trouxemo-lo para a Revier.» No entanto, o milagre dos nascimentos não durou muito tempo, como Sylvia diria no tribunal de Hamburgo. «Lembro-me de uma médica me dizer que dois bebés tinham morrido numa noite porque não havia enfermeiras com eles à noite e eles tinham-se virado e não conseguiam respirar.» Nesse ponto, houve uma interrupção no julgamento, com um dos advogados da defesa, o Dr. Von Metzler, a objetar à maneira como as palavras de Sylvia tinham sido traduzidas. O advogado disse que a tradução era enganadora, porque dava a entender que os bebés tinham sido «deliberadamente mortos» porque não se podiam mexer, mas a testemunha não tinha dito isso, só que eles «não podiam respirar». O principal advogado de acusação, Stephen Stewart, tentou clarificar a questão, explicando ao tribunal: «A testemunha disse, se me é permitido repeti-lo, que o bebé se virou à noite e que, como não

estava presente nenhuma enfermeira, morreu, enquanto o intérprete para alemão disse que o bebé não tinha espaço para se mexer e que por isso morreu.» Stewart prosseguiu: «Isso é satisfatório, Dr. Von Metzler?», e nesse momento todos os olhos se voltaram para o homem que evidentemente acreditava também na ilusão; porque, fosse qual fosse o erro que o tradutor tinha cometido, toda a gente no tribunal — aparentemente com a exceção de Von Metzler — sabia já que era evidente que os bebés nascidos em Ravensbrück seriam deliberadamente mortos, simplesmente porque em Ravensbrück um bebé não podia viver. Himmler sabia-o. O Reichsführer há muito que se interessava pela criação de bebés, até ao ponto de dar as suas próprias instruções sobre a supervisão e a alimentação de bebés arianos nascidos nas suas maternidades especiais, o programa SS Lebensborn. Por exemplo, no início de 1944, em cumprimento do novo racionamento alimentar, Himmler dera ordens para que os bebés do Lebensborn fossem alimentados com papas feitas com água em vez de leite. Himmler interessava-se também pela criação dos seus próprios filhos, particularmente dos dois que tinha com Hedwig Potthast. No início de outubro de 1944, apesar da sua agenda ocupada, arranjou tempo para passar um dia inteiro com Hedwig e os filhos, que se tinham mudado para uma casa em Berchtesgaden, na Baviera, o retiro alpino dos líderes nazis. No dia seguinte, Himmler confidenciou a Martin Bormann, o secretário particular de Hitler, que não atendera telefonemas, dedicando-se inteiramente a «pendurar quadros, a fazer coisas na casa e a brincar com as crianças o dia inteiro». O menino, Helge, tinha agora dois anos e a menina, Dorothea, quatro meses. Segundo uma carta escrita na altura por Gerda Bormann, a mulher de Martin Bormann, que era vizinha de Hedwig Potthast em Bechtesgaden, a nova bebé de Hedwig e Heinrich era «ridiculamente como o pai» e estava «grande e forte e é uma doçura!» Poucos dias depois dos primeiros nascimentos em Ravensbrück, Treite recebeu ordens para suspender o leite extra e os flocos de aveia que vinham da cozinha, e a partir desse momento as mães que

estavam a amamentar passaram a comer a habitual sopa de couves aguada e uma fatia de pão. Em pouco tempo, deixaram praticamente de ter leite e os bebés começaram a passar fome. Matar deliberadamente os bebés à fome era uma técnica nazi de extermínio há muito estabelecida. Essa prática foi inicialmente implementada durante o programa de eutanásia em 1939, quando se deixaram deliberadamente morrer à fome os bebés com problemas físicos ou mentais. Hermann Pfannmüller, um médico nazi e um dos primeiros defensores do infanticídio por fome, declarou em 1932 que matar à fome era «uma solução mais simples e mais natural» do que o envenenamento ou uma injeção. Concebeu um método no qual a alimentação do bebé não era subitamente suspensa, mas em que as quantidades de alimentos eram lentamente reduzidas. Era essa a solução agora praticada em Ravensbrück: embora as mães tivessem muito pouco leite, eram encorajadas a continuar a tentar amamentar, mesmo que fossem só algumas gotas. Mal as mães compreenderam que não eram capazes de alimentar os seus bebés adequadamente, desencadeou-se uma espécie de mania, com as mães a suplicarem aos gritos por ajuda para salvarem os seus filhos. Algumas encontraram maneiras de contornar o problema durante algum tempo. Leokadia Kopczynska disse que mal descobriu que não tinha leite começou a trocar o seu pão diário por água limpa da cozinha. «Enchia um biberão com a água e tentava alimentá-la.» Mas é claro que a sua bebé queria leite, não água, e recusava-se a beber, ficou desidratada e perdeu peso. Como Ilse Reibmayr explicou, a gravidez em si já tinha esgotado as mães. As mulheres de Varsóvia sofreram privações abismais na viagem para o campo de concentração e muitas foram obrigadas a viver na tenda ou a fazer trabalhos físicos árduos, com rações de fome, ao longo de todo esse período. «O feto tinha de arranjar nutrientes de um organismo que estava no limite da vida e as mulheres sofriam de uma fome tal que enlouqueciam.» Quando as mães necessitavam de produzir leite, é claro que não conseguiam. Para muitas, era o seu primeiro bebé e não tinham experiência do

que fazer. «Algumas talvez tivessem umas gotas de leite, mas a maioria não tinha nada», disse Ilse, e as mães ficaram cada vez mais desesperadas, gritando: «Salvem o meu bebé, salvem o meu bebé.» Ao fim de cerca de duas semanas, como o número de bebés na Revier já ultrapassava os vinte e não havia espaço para mais, a «sala de partos» foi transferida para o Bloco 11, onde um Kinderzimmer, quarto dos bebés, foi construído num dos lados do barracão, com a ajuda do marceneiro de Fürstenberg Helmut Kuhn. Treite recrutou novas parteiras especificamente para trabalharem no Kinderzimmer e «cuidarem» dos bebés. Dedicou bastante atenção à questão das prisioneiras a escolher, entre elas uma jovem francesa chamada Marie-Jo Wilborts. No início da guerra, Marie-Jo e os seus pais tinham escondido na sua casa na Normandia soldados britânicos que tinham ficado para trás depois da evacuação de Dunquerque. Pais e filha foram capturados, o pai de Marie-Jo foi levado para Buchenwald e no verão de 1943 ela e a sua mãe foram para Ravensbrück. Ao princípio, Marie-Jo trabalhou na fábrica da Siemens, mas em setembro de 1944 foi chamada à Revier, onde tinha a esperança de poder fazer um trabalho útil. «Então, as minhas amigas arranjaram-me e fizeram que parecesse estar à altura», disse Marie-Jo, falando na sala de estar da sua casa em Antony, um subúrbio de Paris, onde as fotografias dos seus filhos e dos seus netos enchiam as prateleiras. Quando entrou na Revier, Marie-Jo foi conduzida a uma sala onde Treite e Marschall estavam sentados a uma secretária. «Ele era louro, magro, não era malparecido e usava uma bata branca. A Oberschwester Marschall também estava de bata branca. O Treite já tinha lido a minha ficha, porque disse: “Vejo que o teu pai é pediatra. Bem, vais voltar para casa e vê-lo dentro em breve”, mas eu já sabia que o meu pai tinha morrido em Buchenwald.» Levaram Marie-Jo ao novo Kinderzimmer, no Bloco 11. Era uma zona delimitada — com cerca de quatro metros por dois metros e meio — a meio do bloco, com uma só janela e dois beliches. Nessa altura, as mulheres ainda davam à luz no hospital, mas os seus bebés

eram levados diretamente para o Kinderzimmer, onde a tarefa de Marie-Jo era ajudar a deitá-los nos colchões dos beliches. Juntamente com três outras prisioneiras — uma dinamarquesa, uma holandesa e uma jugoslava — estava encarregada de cuidar deles o melhor que pudesse. Zdenka, a pediatra checa, visitava o Kinderzimmer todos os dias. Uma enfermeira da SS, Helen, supervisionava o serviço. Os bebés eram colocados nos colchões atravessados, cinco de cada lado, disse Marie-Jo com um gesto — «como sardinhas». Mas em contraste com a situação no hospital quando os bebés tinham começado a nascer, havia pouquíssimos cobertores para eles agora. Sylvia Salvesen, que também visitava o Kinderzimmer, disse: «Tínhamos mais ou menos de roubar farrapos para lhes pôr. Tínhamos, talvez, um pequeno farrapo por bebé.» As enfermeiras também usavam farrapos como fraldas, que lavavam como podiam no balneário do bloco, mas era impossível secá-los. Por vezes, as mães tentavam lavar os farrapos dos seus bebés no café aguado que lhes davam de manhã e tentavam secar os panos na barriga quando vinham tentar dar-lhes de comer. Ao princípio, as mães tinham autorização para dormirem no mesmo bloco que os seus bebés — ao lado dos doentes —, mas ao fim de uma semana tinham de regressar aos seus blocos e vinham visitar os seus bebés e tentar dar-lhes de comer quatro vezes por dia, aguardando num corredor pela hora estipulada. No entanto, dado que as mães tinham sido mandadas de volta para o trabalho, tinham dificuldade em fazer as visitas e viviam no terror de não chegarem a horas. Como as outras mães antes delas, estas quase não tinham leite, mas mesmo assim vinham todos os dias e faziam fila lá fora, no corredor, soluçando enquanto esperavam para verem os seus bebés e tentarem amamentá-los. «O pequeno rosto bonito que a mãe tinha visto ao princípio não tardava a transformar-se num rosto de uma pessoa velha», disse Marie-Jo, «com o corpo coberto de úlceras e de chagas. A mãe era impotente para fazer fosse o que fosse.»

Uma prisioneira francesa do Bloco 11 descreveu como ouvia as mães virem ao Kinderzimmer para verem os seus bebés e como tentavam identificá-los entre todos os outros. «Contavam-nos, em todas as línguas. Ficavam de pé junto ao beliche a dizer: “Um, dois, três, quatro, cinco — foi onde o deixei, onde a deixei, por isso é o meu, é a minha.”» E em todas as línguas havia as mesmas expressões de desespero.» Uma mãe descreveu como tinha posto a mão no seu filho morto. Outra lembrava-se de pegar num bebé morto por engano. «Lembro-me da sensação do contacto com o rosto gelado. É uma sensação que nunca esquecerei.» Mantinha-se a regra de que à noite os bebés deviam ser deixados sozinhos, e eles ficavam sempre fechados à chave dentro do Kinderzimmer. Helen, a enfermeira da SS, insistia que se deixasse a janela aberta de par em par, mesmo no inverno. Hanna Wasilczenko, a mãe de Witold Grzegorz, sentiu-se horrorizada quando ouviu dizer que os bebés ficavam sozinhos à noite e por isso roubou a chave do Kinderzimmer — aparentemente, com a ajuda de Zdenka — e entrou à socapa uma noite para ver o seu menino. «Foi uma visão horrível. Ao princípio, estava bastante escuro, mas quando consegui ligar a luz, vi bichos de toda a espécie a saltarem nas camas e dentro dos ouvidos e dos narizes dos bebés. A maior parte dos bebés estava despido, porque os cobertores tinham caído. Choravam com fome e com frio e estavam cobertos de chagas. Nessas condições, os bebés viviam durante uns dias ou talvez um mês. Vitold Georg viveu dezasseis dias antes de morrer de pneumonia. Ao fim de trinta dias, os primeiros cem bebés nascidos tinham morrido todos. «Morriam sem chorarem. Simplesmente morriam», disse Marie-Jo. No Revier, Zdenka informava Treite sobre as condições no Kinderzimmer e suplicava todos os dias que dessem leite aos bebés, sugerindo que ele fosse ver com os seus próprios olhos, o que ele nunca fez. Com o número de mortes a aumentar, era a Oberschwester Marschall, mais do que Treite, que as prisioneiras cada vez mais culpavam pelo horror crescente. Há muito tempo que ela era objeto

de especial ódio na Revier. Segundo Sylvia, que a conhecia melhor do que a maior parte das pessoas, Marschall era uma das que «aceitaram sem questionar que todas estas mulheres no campo eram um fardo para a pátria. A Alemanha era tudo para ela e o Führer ia fazer que a Alemanha dominasse o mundo». Ao mesmo tempo, disse Sylvia: A Oberschwester, com a sua figura cheia e o seu rosto atraente, as suas mãos rechonchudas bem tratadas e o seu uniforme bem posto, tinha uma máscara de amabilidade e podia dar a impressão de uma enfermeira idosa e de boa índole. Surpreendi-a uma vez, encontrando-a com o bebé Nicholas nos braços — um russo, por isso um dos inimigos mais figadais da Alemanha. Mas ali estava ela a tagarelar ao bebé, que, é claro, não compreendia nada a não ser o tom amigável da sua voz. Nicholas sorriu e a enfermeira-chefe Marschall retribuiu-lhe o sorriso.

A certa altura, em outubro de 1944, constou que Marschall estava a açambarcar grandes quantidades de leite em pó no seu armário pessoal na Revier — leite roubado dos embrulhos da Cruz Vermelha para as prisioneiras. A notícia provocou a indignação das parteiras e das enfermeiras. Todas as prisioneiras sabiam que quando os embrulhos da Cruz Vermelha chegavam ao campo eram saqueados pela SS, mas foi Zdenka Nedvedova que descobriu que a própria Marschall andava a apoderar-se do leite em pó, assim como dos flocos de semolina e de aveia em quantidades que poderiam salvar muitos bebés. Quando a notícia se espalhou, Zdenka arranjou coragem para pedir a Marschall que desse o leite aos bebés que estavam a morrer, mas Marschall recusou. Negou-se até a ir ao Kinderzimmer ver a situação com os seus próprios olhos, dizendo que a encarregada era a enfermeira Helen. Segundo Marie-Jo, Helen adorava os bebés recémnascidos e costumava aparecer com bastante regularidade ao princípio para se assegurar de que tudo se processava segundo as regras. «Ela tinha um lenço de cabeça branco minúsculo e costumava dizer que lindos que eram os bebés, mas, quando eles começaram a ficar magros e enrugados, começaram a parecer pessoas velhas. Dissemos-lhe uma vez que as ratazanas andavam a atacá-los e

pedimos veneno para as controlar. E ela só se riu e saiu do quarto.» No final do outono de 1944, foi dada aos bebés uma pequena quantidade de leite em pó. Zdenka e as enfermeiras ficaram delirantes de alegria, mas a quantidade fornecida era tão reduzida que quase piorou as coisas. Além disso, não havia meios para alimentar os bebés. Como nenhuma das pessoas que faziam os embrulhos da Cruz Vermelha pensava na alimentação de bebés, não enviavam tetinas. As mulheres conseguiram trazer à socapa dois biberões e uma tetina do armazém de roupas do campo de concentração, mas era tudo. Havia agora pelo menos quarenta bebés para alimentar. Zdenka teve a ideia de roubar as luvas cirúrgicas de borracha de Treite, «e então cortámo-las e fizemos dos dedos tetinas», disse Marie-Jo, «e quando as mães vieram para dar de comer aos filhos tivemos de mandar que esperassem». Ilse Reybmayr disse que quando as mães ficaram a saber que havia a hipótese de terem acesso a leite em pó «ficaram como animais» e, quando a pequena quantidade foi apresentada, «batalharam e lutaram e berraram. A culpa não era delas. Eram forçadas a ver os seus filhos ficarem mais fracos; eram forçadas a verem-nos morrer». Perguntei a Marie-Jo como é que ela e as outras amas dos bebés conseguiam aguentar, e ela fez um sorriso triste. «Sabe, nós acreditávamos — esperávamos — que poderíamos salvar alguns deles. Achávamos que a guerra terminaria em breve e que por isso tínhamos de tentar manter esses bebés vivos até lá.» Pegou num velho livro de registos tirado às escondidas do campo de concentração e disse que ia mostrar-me «algo terrível». Era o livro de registo de nascimentos, que Zdenka tinha compilado. Registava todos os nascimentos e todas as mortes no Kinderzimmer. De cada vez que um bebé morria, tinha de se seguir um determinado procedimento, explicou Marie-Jo. Primeiro, ela ou Zdenka tinham de levar o corpo à morgue, que ficava no subsolo e era «atroz» — «Sabe que os Alemães estavam doutrinados. Viamnos a todas como ratazanas.» Depois de passarem pela morgue,

tinham de preencher um impresso declarando que o bebé tinha morrido. «A seguir, a Zdenka pegava nesses papéis e escrevia os nomes no livro, antes de levar os impressos para o escritório do campo de concentração.» Virou-se para o livro de registos de nascimentos e percorreu uma página com o dedo, apontando os nomes dos bebés nascidos. Havia 600 nomes no total, de bebés nascidos entre os meses de setembro de 1944 e abril de 1945. Desses, explicou ela, quarenta sobreviveram, «mas a maior parte desses sobreviventes foi levada para Belsen em fevereiro de 1945, onde morreram também». Zdenka conseguiu trazer o livro às escondidas no fim, e também alguns dos impressos. Os impressos verdes eram para os bebés mortos, os azuis para os deportados. «Mas nem todos morreram», disse Marie-Jo. «Nasceram bebés mesmo até ao fim, e conseguimos salvar alguns. Salvámos três bebés franceses. Havia bebés polacos e russos que também sobreviveram.»

CAPÍTULO 27 PROTESTO Depois do choque da chegada, à espera durante horas na rua estreita e malcheirosa, as mulheres francesas que vieram de Paris no final de agosto passaram dez dias em blocos de quarentena. Com elas estavam cinco mulheres do SOE britânico, assim como a americana Virginia Lake, que tinham todas chegado nos mesmos comboios. Encafuado com 600 outras mulheres de várias nacionalidades, o grupo era tratado aos berros por «mulheres alemãs e polacas servis, ansiosas por preservarem os seus privilégios», como Virginia Lake recordava as Blockovas da quarentena. Algumas das mulheres entre as recém-chegadas francesas tentavam levantar os ânimos, instando o grupo a manter-se forte. Uma jovem francesa, Jeannie Rousseau, disse-lhes que em breve seriam livres. «Conhece aquela sensação de dar boas notícias? Era assim», disse ela, recordando o passado. «Tínhamos vindo diretamente de Paris com a notícia de que a guerra estava no fim.» Ainda na quarentena, Violetta Szabo já andava a falar de escapar, como o seu treino no SOE lhe ensinara. Todas as mulheres do SOE estavam a tentar manter-se na sombra, ocultando as suas identidades, não confiando em ninguém e continuando a usar os seus pseudónimos. Sabiam que se a polícia alemã as identificasse como agentes secretas ou «comandos» poderiam contar com a morte, mas se conseguissem diluir-se na multidão como resistentes francesas comuns, teriam mais hipóteses de sobrevivência. Um dos elementos do grupo britânico, Yvonne Rudellat, foi reconhecida à chegada ao campo de concentração por um grupo de francesas do circuito de resistência Prosper, com quem ela tinha trabalhado em França. As amigas de Yvonne viram que ela não estava bem — tinha ficado com o cabelo todo branco. Tentaram

estabelecer contacto e oferecer-lhe ajuda, mas ela fingiu que não as conhecia, dizendo que o seu nome era outro. Depois de saírem de quarentena, foram mandadas cavar areia. As guardas davam-lhes mangueiradas e elas tremiam nas suas roupas de verão encharcadas. Lilian Rolfe, outra das jovens da SOE, mal conseguia segurar a pá. As outras repararam que ela «se desencorajava facilmente» e que já estava extremamente débil. As veteranas do campo de concentração olhavam para o grupo com receio. Sabiam que, paradoxalmente, era provável que as prisioneiras mais recentes estivessem mais mal preparadas para sobreviver no campo de concentração. Tal era o caos, e as condições estavam a degradar-se tão rapidamente em setembro de 1944 que a adaptação das recém-chegadas era mais difícil do que nunca. A capacidade de resistência física era também mais importante do que nunca. Como a instrutora militar polaca Maria Moldenhawer — há cinco anos no campo de concentração — recordaria mais tarde: «Ravensbrück estava por essa altura dividido em dois mundos: havia as que já estavam há muito tempo no campo e tinham tido oportunidade de criar melhores condições para si próprias e as que chegavam agora e se esforçavam pateticamente por se manterem à tona.» Ao marcharem para o trabalho e de regresso aos blocos, as recémchegadas de Paris fitavam incrédulas as carroças dos cadáveres, as mendigas acocoradas à volta do bloco da cozinha e as fornalhas do crematório a soltarem nuvens de fumo. O mais espantoso para o grupo era a cena na Appellplatz, onde um homem gordo da SS andava de bicicleta todos os dias à volta das filas de mulheres a aplicar-lhes chicotadas. Era Hans Pflaum, o novo chefe das trabalhadoras escravas. Aprenderam a chamar-lhe o «negociante de gado», e aquilo era a sua feira de gado, onde ele selecionava prisioneiras para os campos-satélite. Dizia-se no grupo que também elas seriam enviadas em breve para campos-satélite; a maioria esperava ter essa oportunidade, pensando que qualquer coisa seria melhor do que aquilo.

A rede de campos-satélite de Ravensbrück quase tinha duplicado ao longo do último ano. Em outubro de 1944, o campo de concentração de mulheres estava já a enviar mão de obra escrava para cerca de trinta e três subcampos espalhados por uma vasta área da Alemanha. Em tempos na periferia do império de campos de concentração de Himmler, Ravensbrück crescera em importância e era agora crucial para a resistência alemã, fornecendo trabalhadoras a algumas das principais fábricas de armamento no Reich. Alguns dos campossatélite eram tão distantes que tinham sido colocados sob o controlo administrativo de campos de concentração de homens como Buchenwald, Dachau e Flossenbürg, mas Ravensbrück continuava a fornecer a mão de obra feminina e as guardas. Foi para servir esses subcampos que as francesas foram levadas para Ravensbrück, juntamente com todas as outras trabalhadoras escravas que chegavam agora a rodos. Em meados de setembro, Ravensbrück encheu-se com mais um transporte de novas trabalhadoras escravas; nesse grupo, a maioria das mulheres era loura e todas usavam jardineiras azuis limpas e lenços de cabeça azuis a condizer. Essas prisioneiras holandesas tinham vindo do campo de concentração de Vught. Em 4 de setembro, quando as tropas canadianas estavam prestes a libertar o campo, as mulheres tinham sido impelidas para fora dos portões e metidas em comboios para a Alemanha. Depois da «quarentena» na tenda, muitas das holandesas foram selecionadas para um subcampo em Dachau, enquanto outras foram escolhidas para a fábrica da Siemens em Ravensbrück. De todas as fábricas de armamento de Ravensbrück, a Siemens & Halske foi sempre a mais importante. No outono de 1944, a Siemens empregava já 2300 mulheres de Ravensbrück na sua fábrica principal no campo, assim como mais de 150 civis, e um número desconhecido de trabalhadoras escravas estava também a trabalhar em subcampos. Em setembro, a empresa andava de novo à procura de

trabalhadoras em bom estado para substituir as exauridas; a Siemens tinha um contrato para fazer componentes do míssil V2, a arma milagrosa que Himmler prometera que venceria a guerra. Como sempre, havia procura de mulheres jovens com dedos finos. Há muitos meses que a Siemens empregava também adolescentes detidas como delinquentes no Campo da Juventude Uckermark, nas imediações, onde a empresa tinha construído uma filial da fábrica no início de 1944. Na feira de gado nas instalações principais do campo de concentração, estavam também agora a ser rapidamente selecionadas as recém-chegadas de quinze anos para cima. Algumas iam trabalhar para a Siemens com irmãs ou com a mãe, outras tinham perdido a mãe e muitas foram separadas das suas mães na Appellplatz e depois mandadas marchar pela colina acima. «Víamolas a chorarem baixinho, a chamarem pelas mães», disse Anni Vavak, a prisioneira austro-checa que era agora Kapo sénior na Siemens. No novo transporte da Holanda vinham também mãos ágeis. Como algumas tinham até experiência de trabalho relevante, porque tinham trabalhado numa fábrica da Philips perto de Eindhoven, foram também selecionadas para a fábrica. Para as holandesas, a Siemens parecia sem dúvida preferível a trabalhar ao ar livre, especialmente porque o inverno estava a chegar, e por isso a astuta Margareta van der Kuit, com dezanove anos, ofereceu-se como voluntária. As competências de Margareta depressa foram identificadas por um Meister da Siemens, que a promoveu a um posto em que trabalharia para ele nos serviços administrativos. Como outras antes dela, Margareta tentou falar àquele civil alemão — um homem chamado Seefeld — sobre os horrores do campo principal, na esperança de que ele pudesse ajudá-las: Ele olhou para mim e disse: «Mas vocês fizeram todas alguma coisa, não fizeram, alguma coisa ilegal. É por isso que estão aqui», como se isso justificasse tudo para ele. Então eu disse, bem, Herr Seefeld, não, nós não fizemos nada de mal, mas ele não compreendeu. Mas não era mau homem. Disse-me: «Bem, Van der Kuit, quando ficares livre vai a Berlim e diz-lhes que vais do meu mando e dão-te um bom emprego.»

Também entre as holandesas escolhidas em setembro para a fábrica da Siemens encontravam-se Corrie ten Boom e a sua irmã Betsie. Filhas de um relojoeiro de Haarlem, as mulheres, ambas cristãs devotas, foram detidas por esconderem judeus. Corrie tinha cinquenta e dois anos e Betsie cinquenta e nove quando chegaram a Ravensbrück, e Betsie estava doente. Ao princípio, as irmãs ficaram contentes por irem integrar a chamada «brigada da Siemens», porque isso significaria marchar para fora dos enormes portões de ferro e «para o mundo das árvores e da relva e de horizontes». Dada a preferência para usar jovens, é surpreendente que duas irmãs holandesas já com alguma idade tenham sido escolhidas para a Siemens, mas a empresa também necessitava de trabalhadoras para o exterior e, em vez de bobinarem arame dentro da fábrica, Corrie e Betsie tinham de empurrar onze horas por dia um carrinho de mão de ferro carregado com placas de metal ao longo de uns carris. Quando regressavam às instalações centrais do campo de concentração ao fim do dia, Betsie, a mais fraca, mal conseguia caminhar devido à exaustão. Depois da sopa da noite, as irmãs encontravam um espaço num beliche infestado de pulgas e liam discretamente uma bíblia que tinham conseguido trazer às escondidas para o campo de concentração. Betsie e Corrie traduziam os versículos neerlandeses em alemão e ouviam as suas palavras passarem de boca em boca em francês, polaco, russo, checo e de novo em neerlandês. Um grupo de católicas recitava o Magnificat. Quando as mulheres de Paris foram chamadas à feira de gado, algumas do seu grupo foram também selecionadas para a Siemens, mas chegara um pedido da fábrica Heinkel em Torgau, a 320 quilómetros a sul, e a maior parte das francesas foi enviada para lá. As mulheres estavam desejosas de partir, «especialmente porque tudo aqui parecia destinado a fazer as pessoas morrerem sem as matarem», recordou Virginia Lake. No início de setembro, estavam já num comboio a sair de Ravensbrück e a rezar para nunca mais voltarem.

Demoraram três dias de viagem em vagões de gado a chegar a Torgau, uma bonita cidade no Elbe. Ao marcharem para o subcampo, Lilian Rolfe sentiu-se desfalecida e uma francesa que se tornara sua amiga, Jacqueline Bernard, deu-lhe o braço e ajudou-a a avançar. As mulheres de Ravensbrück ficaram atónitas ao passarem por um campo de prisioneiros de guerra onde estavam detidos milhares de homens franceses. Pareciam saudáveis e contentes, o que animou as mulheres. «Não vai tardar muito», gritaram os homens. «Já atravessámos a fronteira. Os Aliados estão na Alemanha e a caminho.» Com essa notícia, uma nova vaga de júbilo perpassou as filas de mulheres. Algumas diziam que poderia demorar semanas, outras que poderiam ser dias. Hitler poderia render-se a qualquer momento, agora que sabia que tudo estava perdido. Ao entrarem pelos portões do campo de concentração, viram que as casernas pareciam limpas e bem equipadas. Cada prisioneira tinha o seu colchão e havia radiadores a vapor em cada bloco, com água corrente. Na primeira noite, até tiveram um cobertor cada uma. Na manhã seguinte, as surpresas agradáveis continuaram. Na Appell, o comandante dirigiu-se delicadamente às mulheres, falando em bom francês. «Em breve terão tudo aquilo de que precisam», disse ele. Nessa noite, deram pão fresco, sauerkraut e um pedaço de salsicha a cada uma. Vendo que as prisioneiras traziam roupa muito fina, o oficial permitiu-lhes que formassem fila na Appell seguinte agasalhadas nos seus cobertores. Lilian foi levada para o hospital, que até dispunha de medicamentos. No grupo, no entanto, havia alguma inquietude. Torgau era obviamente uma fábrica de armamento e algumas das mulheres falavam em rebelião. Segundo Virginia, foi precisamente o ambiente de limpeza e de consideração que tornou as mulheres «conscientes de novo dos seus direitos». Elaboraram-se listas de quem era a favor e de quem era contra um protesto. «Nem sequer os nazis têm o direito de nos obrigar a trabalhar em fábricas de armas», diziam as mulheres. Jeannie Rousseau, a mulher que lhes dissera no bloco de

quarentena que não tardariam a ser livres, assumiu mais uma vez a liderança, dizendo às outras mulheres que deveriam recusar-se a fazer armas. Jeannie, uma fogosa jovem de vinte e dois anos, talvez tivesse mais razão do que a maioria para se sentir assim. Anteriormente nesse mesmo ano, trabalhara para generais alemães como intérprete em França. Conseguiu de tal maneira granjear a sua confiança que pôde assistir a conversas a alto nível sobre a bomba alemã V2. Visitou até as instalações de armas de Hitler em Peenemünde. Transmitia as informações que ia obtendo aos serviços secretos britânicos, que a consideravam tão valiosa que em maio de 1944 fizeram planos para a levar a Londres para uma reunião, tirando-a da costa bretã num pequeno barco. Mas a sua evasão foi boicotada por traidores e ela foi detida pela Gestapo. Ao convocar o protesto em Torgau, Jeannie não sabia ainda que a fábrica ali localizada fazia componentes para a V2, mas sabia o suficiente para dizer ao oficial alemão que não trabalharia para ele. «Fui ter com esse homem e disse-lhe no meu maravilhoso alemão: “Nós estamos com a resistência. Não podemos aceitar trabalho em munições.” Disse-lhe que trabalharíamos, mas não para produzir armas», disse Jeannie, que também falava «um maravilhoso inglês». Vivia no Quai de Grenelle, na margem do Sena. «E então esse oficial disse só: “OK, pode arranjar-se. Se recusarem trabalhar na fábrica, podem voltar para Ravensbrück.”» Com isso, o protesto desmoronou-se. Ninguém queria regressar ao campo de concentração. Elaboraram-se novas listas em que as mulheres escreveram os seus nomes a indicar se queriam ir ou ficar. A guerra estava tão perto do fim que as armas que elas fabricassem nunca seriam usadas, diziam algumas. Outras diziam que Ravensbrück as mataria se voltassem. «Pouco convencida, assinei para ir para Ravensbrück, mas meia hora depois alguém me convenceu de que era uma loucura e tirei o meu nome da lista», recordou Virginia Lake. Jeannie dirigiu-se ao grupo. «Pus-me diante delas todas e disse, olhem, nós passámos por tantos anos difíceis. Agora, depois de todo

esse trabalho, pela primeira vez podemos impor-nos aos Alemães. Eu achei que esta era a nossa oportunidade. Eu estava ali assim diante delas todas. Está a ver, eu estava convencida de que alguém tinha de fazer alguma coisa. Alguém tinha de se erguer. Decidi fazê-lo.» «Porque você?» «Porque eu estava lá. Ponto final.» Deu uma passa num cigarro. «E porque era muito nova.» Aos oitenta e nove anos, Jeannie, agora Jeannie de Clarens, perdeu pouca da sua garra, mas faltou-lhe a voz quando falou da sua ação naquele dia em Torgau. Ela sabia que muitas mulheres — incluindo muitas francesas — tinham morrido em circunstâncias atrozes em consequência direta do protesto que ela liderou. Sabia que as camaradas a culparam na altura e que algumas ainda a culpam atualmente. «Foi muito infantil. Eu nunca cheguei a saber o nome daquele homem. Lembro-me de que havia um oficial e de que ele tinha a fábrica a seu cargo. E havia mil de nós perfiladas em sentido. Decidi que tinha chegado a altura de abrir o jogo. Disse, obviamente não sabe quem nós somos. Somos isto e somos aquilo, e disse-lhe o que tínhamos feito. Devíamos ser protegidas pelas Convenções de Genebra, disse eu.» «Como é que ele era?» Lembro-me de sentir que podia falar com ele. O meu nome é este, fulana de tal, e estou a falar pelas minhas amigas. Não faremos este trabalho. Muitas mantiveram-se em silêncio, sabe. Muitas disseram que não. E eu continuei e disse: «Vamos apanhar as vossas batatas, mas não farei as vossas bombas.» Foi quando eu disse isso que ele me atirou para a cela de castigo, e não era uma cela de castigo muito agradável, posso dizer-lhe. Ele ficou pasmado. Não imaginava que aquilo pudesse acontecer. E durante muito tempo ele não soube o que fazer com as outras. Mas mandou-me para aquela cela enquanto tentava receber ordens sobre o que fazer com as outras. Passei cerca de três semanas lá. Todas as manhãs, fustigavam-me com água fria. E batiam-me. E depois eu voltava para a cela. Na manhã seguinte, a mesma coisa.

«Teve algumas dúvidas na altura?» «Não, não tive dúvidas. Sabia que havia essa probabilidade. Não sabíamos na altura que passaríamos mais um inverno lá.»

Enquanto Jeannie estava presa na cela, as prisioneiras foram trabalhar para a fábrica de armamento, onde as condições eram terríveis. A maioria fazia invólucros de balas, que eram mergulhados por guindastes em tinas de ácido que lhes queimava as mãos e a roupa, e sufocavam com o cheiro a enxofre. Outras trabalhavam em caves abaixo do solo ligadas por carris subterrâneos. As que se tinham recusado a fazer armas foram mandadas para as cozinhas e para os campos de cultivo, enquanto o diretor do campo de concentração aguardava instruções sobre o que fazer com elas. Estavam muito melhor do que as que se encontravam na fábrica, frequentemente trabalhando ao ar livre. Virginia recordou que todas as anglo-americanas estavam lá. Não sabia todos os nomes verdadeiros das inglesas, porque elas continuavam a usar os seus pseudónimos, mas nas suas descrições das mulheres, registadas num diário, identificou três «paraquedistas» em que estava claramente incluída Violette Szabo. «Ela era jovem, encantadora e atraente. Costumava esticar as pernas como um gato, deitada no seu beliche, não longe do meu.» Denise Bloch também lá se encontrava — «Ela estava muito apaixonada por um campeão francês de corridas automóveis.»39 E Lilian Rolfe, já fora do hospital. «Perdíamos a paciência com ela por vezes. Esforçávamo-nos por fazer que comesse a pouca comida que nos davam, mas ela recusava, porque não lhe agradava. Parecia condenada desde o início.» Virginia era a única mulher de origem americana ali, mas havia duas outras americanas por casamento. Charlotte Jackson, uma suíça, era casada com um médico americano que trabalhava num hospital em Neuilly, em Paris, quando rebentou a guerra, e foi detida com o marido e o filho. Nesse grupo encontrava-se também uma francesa, Lucienne Dixon, casada com um engenheiro americano que trabalhava em França. As outras duas britânicas do SOE que tinham também chegado de Paris no final do verão — Yvonne Rudellat, a prisioneira com o cabelo branco, e uma operadora de rádio chamada Eileen Nearne — foram

inicialmente para Torgau, mas não ficaram lá. Yvonne Rudellat regressou a Ravensbrück, provavelmente demasiado doente para trabalhar. Eileen Nearne aderiu ao protesto em Torgau, mas foi em seguida selecionada para um subcampo diferente, perto de Leipzig, e levada para lá. As sete britânicas e americanas que ficaram em Torgau seriam depois mandadas trabalhar na cave dos vegetais junto aos muros do campo de concentração, onde voltaram a contactar os prisioneiros de guerra franceses. Os homens deixavam mensagens e presentes num esconderijo nos bosques — aspirina, lápis, papel e missais. Os prisioneiros de guerra tinham condições muito melhores do que as mulheres do campo de concentração. Um dia, eles forneceram às mulheres um banquete dos seus embrulhos da Cruz Vermelha — queijo Kraft, passas de uva SunMaid, açúcar Jack Frost. Disseram às mulheres que tinham montado secretamente um transmissor de rádio e ofereceram-se para enviar mensagens para Londres. Violette, Lilian e Denise deram-lhes números e um código com o qual contactar a sua sede em Baker Street, em Londres. Não sabiam se foi realmente possível enviar a mensagem. Nessa altura, Violette andava novamente a falar de fugir. «Noite após noite, o plano dela iria culminar», recordou Virginia, «mas de algum modo nunca resultava, embora ela passasse horas à espera da sua oportunidade.» No entanto, no início de outubro o grupo angloamericano foi informado de que iria deixar a cave dos vegetais e as mulheres recearam que tal significasse um regresso a Ravensbrück, mas em vez disso mandaram-nas cavar batatas. Estava a ficar mais frio, mas sentiram-se contentes por estarem ao ar livre. A floresta tornou-se amarela, vermelha e laranja. A seguir, espalharam-se mais boatos sobre um possível regresso ao campo de concentração principal, mas as ordens eram para cavar mais depressa, vinham aí as geadas. Na altura em que as prisioneiras de Torgau cavavam o solo gelado, outro grupo de mulheres francesas e britânicas chegava aos portões

de Ravensbrück. Era um pequeno transporte de apenas cinquenta mulheres, e entre elas encontravam-se Yvonne Baseden, a mulher do SOE capturada na fábrica de queijos perto de Dijon, e a sua companheira de viagem inglesa com mais idade, a mulher mandona de uniforme da Cruz Vermelha francesa. O nome dessa mulher era Mary Lindell, embora fosse também condessa de Milleville por ser casada com um conde belga. Era tal o caos nos portões quando o grupo de Yvonne e Mary chegou que elas parecem ter entrado casualmente no campo de concentração, quase sem serem vistas. Estava a anoitecer e elas tropeçaram numa tenda gigante. Segundo Mary Lindell, estava vazia e «cheia de palha limpa e cobertores». Alguém lhes disse que não podiam dormir ali, porque se aguardava um transporte de prisioneiras polacas a qualquer momento, o que talvez signifique que aquela tenda era a segunda, maior, que tinha sido montada na primeira semana de setembro. Como Mary e Yvonne a viram imediatamente antes de ficar cheia com mais prisioneiras, ainda estava limpa. Mary marchou para dentro da tenda, agarrou numa braçada de cobertores e distribuiu-os pelas suas amigas. Depois de se assegurar de que Yvonne estava bem agasalhada — Mary tinha assumido o papel de protetora da jovem —, instalaram-se todas no chão. Estava húmido e soprava uma neblina do lago, mas estavam todas tão cansadas que adormeceram. Um oficial alemão com um ar importante e uma guarda aproximaram-se e tiraram-lhes os cobertores. O oficial, que tinha uma intérprete, exigiu saber quem dera autorização às mulheres para pegarem nos cobertores. Mary pôs-se de pé de um salto e retorquiu: «Fui eu. Quem é que lhe deu o direito de pôr mulheres a dormirem assim ao relento? Nós somos prisioneiras de guerra. Estas mulheres dormiram num vagão de gado mais de duas semanas e eu vou garantir que elas ficam com os cobertores durante a noite.» O comportamento de Mary deve ter espantado as pessoas que estavam a assistir, mas não surpreendeu Yvonne, que já estava acostumada aos modos despachados da sua amiga. Nos seus

quarenta e cinco anos de vida, Mary Lindell nunca fora de mostrar medo. No início da Primeira Guerra Mundial, trabalhou como enfermeira voluntária da Cruz Vermelha e organizou enfermarias de campanha perto das linhas da frente. Entre as duas guerras, casouse com um conde belga e criou os filhos, e em 1939 ofereceu-se de novo como enfermeira voluntária à Cruz Vermelha francesa, sendo mais tarde recrutada pelos serviços de evasão britânicos, o MI9, para tirar clandestinamente militares das forças aliadas do Sudoeste da França. Vendo-se num campo de concentração nazi, parece não ter hesitado em pôr um comandante da SS no seu lugar. «Ela achava sempre que ela é que sabia», disse Yvonne Baseden. «Tinha uma personalidade difícil e ninguém gostava dela, em circunstâncias normais. Mas no campo precisava-se de alguém como ela.» Fritz Suhren, no entanto, não se deixou intimidar por die Engländerin, como chamava a Lindell. Mas interessou-lhe a qualidade do seu uniforme de sarja barateia. Depois de ela acabar de se queixar, ele inclinou-se para a frente e palpou a lapela, em seguida virou-se para Dorothea Binz e disse: «Das ist schön.» Dorothea Binz palpou também o tecido de lã. Depois de mais discussões, o grupo teve autorização para ficar com os cobertores nessa noite. No dia seguinte, Mary continuou a protestar que ela e Yvonne eram prisioneiras de guerra, mas as duas mulheres não tardaram a ser enviadas para o duche usual. Mary foi obrigada a despir o uniforme e entregaram-lhe em troca um vestido amarelo às flores todo sujo, tendo Yvonne recebido uma saia vermelha e uma blusa. Uma mulher com uma braçadeira vermelha em que estava estampado um «P» a preto aproximou-se delas. «São inglesas, e eu também», disse ela. A mulher disse que se chamava Julia Barry e que era polícia do campo. Explicou que tinha sido escolhida para esse posto por falar várias línguas. Yvonne e Mary não faziam ideia do que pensar dela. O campo de concentração parecia ser dirigido pelas prisioneiras e uma delas, aquela «inglesa», Julia Barry, trazia uma bastão e uma chibata.

No entanto, Julia Barry queria obviamente ajudar. Escondeu a medalha da Croix de Guerre da Primeira Guerra Mundial de Mary, que ela trazia no seu uniforme, e sugeriu que Mary procurasse trabalho na Revier, porque as condições eram melhores aí. O médico da SS tinha até laços com a Inglaterra. Julia Barry disse que havia também várias outras inglesas no campo de concentração e descreveu algumas delas. Algumas eram obviamente as mulheres do SOE, cujas identidades — apesar de usarem pseudónimos — Yvonne adivinhou. Mas Julia mencionou outras que não tinham nada que ver com o SOE. Interrogado depois da guerra, Fritz Suhren negou que houvesse mulheres britânicas em Ravensbrück. Foi uma das suas muitas mentiras descaradas: ele sabia que em setembro de 1944 havia no campo de concentração pelo menos vinte prisioneiras britânicas ou mulheres que eram britânicas por casamento. E não foi só die Engländerin, Mary Lindell, que lhe chamou a atenção, foi também uma mulher chamada Odette Sansom, que ele acreditava ser da família de Winston Churchill. Odette Sansom, que era de origem francesa e estava casada com um inglês, era também agente do SOE. Quando foi capturada no Sul da França em 1942, Odette estava na cama com o organizador do seu circuito do SOE, Peter Churchill, um parente muito afastado do primeiro-ministro britânico. Na esperança de que isso pudesse ajudála, Odette disse aos seus captores alemães que era «Sra. Churchill». Embora essa mentira não lhe tenha proporcionado grande proteção ao princípio, ao chegar a Ravensbrück em julho de 1944, Suhren questionou-a sobre as suas relações familiares. «Eu disse-lhe que “o meu marido” era um parente afastado do primeiro-ministro, mas vi que ele achava que eu era uma parente mais próxima do que isso», disse ela. Suhren mandou Odette para uma das celas «privilegiadas» do bunker, com uma cama, cobertores e comida da cantina da SS. Visitava-a também regularmente para se assegurar de que estava tudo bem.

Ser britânica em Ravensbrück em 1944 era indubitavelmente pouco comum, mas não inaudito. Os números de prisioneiras eram reduzidos, porque as Ilhas Britânicas não tinham sido ocupadas. Nunca chegaram a ocorrer deportações em massa. No entanto, várias centenas de homens e mulheres britânicos viram-se nos campos de concentração de Hitler. Aqueles sobre quem temos mais informações foram capturados enquanto trabalhavam com a resistência nos países ocupados no continente europeu, quer para os serviços secretos britânicos quer em células de guerrilha como as organizadas pelo SOE. Menos bem conhecidas são as centenas de homens e mulheres britânicos comuns que simplesmente se encontravam no continente europeu quando eclodiu a guerra e que foram capturados. Muitas britânicas — enfermeiras, freiras, governantas — foram capturadas na França, na Bélgica e na Holanda, onde estavam a viver e trabalhavam, talvez casadas com um francês. Em muitos dos casos, as que foram capturadas e enviadas para Ravensbrück tinham ajudado uma célula clandestina local e tinham sido apanhadas em rusgas como qualquer outro resistente. As histórias das mulheres do SOE levadas para Ravensbrück foram investigadas depois da guerra, mas a maioria das outras prisioneiras britânicas nesse campo de concentração manteve-se em grande medida anónima. Aparecem de vez em quando indícios de quem elas eram e do que lhes aconteceu mais tarde no testemunho de outros sobreviventes, em cartas ou ocasionalmente em relatórios do pós-guerra elaborados por elementos oficiais das forças aliadas que investigaram os campos de concentração. Num desses relatórios revela-se que entre o grupo variado de britânicas se encontrava uma ex-campeã de golfe britânica chamada Pat Cheramy, que trabalhou numa linha de evasão da resistência, uma enfermeira com sessenta anos chamada Mary Young e a governanta de origem irlandesa Mary O’Shaughnessy, que tinha um braço postiço e era de Leigh, no Lancashire. Duas freiras irlandesas que esconderam pilotos das forças aliadas nos seus conventos estavam também vagamente

ligadas ao grupo britânico. Havia também mulheres que diziam ser britânicas, mas que, provavelmente, não o eram. Uma delas, uma jornalista chamada Ann Sheridan, com ligações com a Suíça, era objeto de desconfiança por parte do resto do grupo por ser «demasiado próxima dos alemães». Por outro lado, Julia Barry, a polícia do campo, cuja afirmação de que era britânica era também duvidosa, era apreciada pelas outras, que diziam que ela era uma pessoa animada e «intensamente patriótica em relação a Guernsey». Julia, cujo apelido de solteira era Brichta, era filha de um judeu húngaro e a sua mãe era americana. Na década de 1930, casou-se com um inglês com o apelido Barry e foi viver nas ilhas do canal da Mancha, onde requereu por várias vezes um passaporte britânico, que lhe foi sempre recusado. Em 1942, colaborou com os serviços secretos britânicos enviando informações para Londres sobre os movimentos dos navios alemães no canal da Mancha, pelo que foi detida e enviada para Ravensbrück. A história de Julia apareceu com mais pormenores do que muitas outras depois da guerra, em parte porque ela prestou depoimento no julgamento de Hamburgo. Como polícia do campo, poderia ter-se defrontado com acusações de colaboração com a SS, mas usou o seu papel de polícia para circular por todas as partes do campo de concentração e recolher informações de importância vital. Ao mesmo tempo, tornou-se conhecida das outras britânicas porque foi a única do grupo que pareceu tentar olhar pelos interesses das outras. Usualmente, é fácil identificar as líderes entre outros grupos nacionais no campo de concentração, mas o pequeno número de britânicas parece ter sido singularmente desunido e diverso. Entre elas, só Julia Barry parece ter demonstrado alguma «solidariedade britânica» e tentado seguir o que acontecia a todas. Por exemplo, Julia soube logo que Pat Cheramy, a campeã de golfe, tinha sido atacada por uma guarda; Pat foi até ter com Julia para «me mostrar as marcas dos dentes». Julia ouviu falar de uma britânica chamada Sylvia que foi espancada tão fortemente que o seu

rosto ficou coberto de sangue. E quando esmurraram Mary O’Shaughnessy na cara de tal maneira que lhe partiram os dentes da frente, Julia também ficou a saber. Ficou igualmente a saber que, depois de Mary ser derrubada pela primeira vez, se pôs de pé e voltaram a derrubá-la à pancada e partiram-lhe o nariz com um murro. Como polícia do campo, Julia Barry via também quando chegavam e saíam mulheres britânicas do campo de concentração. Sabia que as britânicas do SOE tinham partido para Torgau em meados de setembro, e em 6 de outubro viu Violette, Denise e Lilian regressarem. As três voltaram com a americana Virginia Lake e com um grande grupo de francesas, que tinham todas participado no protesto em Torgau. Esperava-se que fossem agora punidas, embora ninguém soubesse ainda como. Entrar pelos portões de Ravensbrück foi muito pior da segunda vez. As mulheres foram tratadas como se «já pertencessem aqui» e tudo lhes era fantasmagoricamente familiar. Mesmo num só mês, as coisas tinham piorado. As guardas pareciam mais brutais, puxando cabelos, batendo nas prisioneiras com paus e «confiscando os miseráveis saquinhos que tínhamos feito com o que podíamos». As rações eram mais reduzidas e havia menos pão. A Appell da manhã era também muito pior. Às quatro da madrugada, em meados de outubro, fazia muito mais frio do que no início de setembro, e as mulheres não tinham casaco. Havia uma «cigana de cabelo preto, uma bruxa», que as enxotava ao pontapé para o frio. Ao fim de uns dias, algumas das mulheres mais novas receberam casacos, enquanto as mais velhas foram deixadas a tremer sem casaco, «mas mesmo assim agarrámo-nos ao nosso», recordou Virginia. A prisioneira norueguesa Nelly Langholm recorda-se de encontrar Violette em outubro, quando ela foi mandada trabalhar com as norueguesas no armazém dos tecidos. «Falou da sua pequena filha, e era tão linda e animada e cheia de vida.» Veio uma guarda e levou Violette, mas antes de ela ir embora ordenaram-lhe que tirasse o número e o triângulo, «o que nos pôs a todas

muito assustadas, porque isso só acontecia quando as prisioneiras iam ser mortas a tiro», disse Nelly. Yvonne Baseden também viu as mulheres quando elas regressaram em outubro. As três procuraram Yvonne no seu bloco, provavelmente por indicação de Julia Barry, e disseram-lhe que iam partir para outro subcampo. Isso explica porque Nelly viu Violette tirar o seu número. As prisioneiras recebiam sempre novos números quando iam para subcampos. Violette, Denise e Lilian contaram também algo sobre o seu tempo em Torgau: Disseram que tinham participado num protesto. Contaram-me que tinham conhecido prisioneiros de guerra e que lhes deram o nome de todas, que os prisioneiros de guerra prometeram enviar para Londres para saberem onde nós estávamos. Sentiam-se satisfeitas por irem partir para outro subcampo. Tinham tido sorte com o primeiro e esperavam voltar a ter sorte.

39 Era Robert Benoist, o agente do SOE que foi detido com Denise em França. Benoist foi levado para Buchenwald, onde foi executado em outubro, algumas semanas depois de Denise chegar a Ravensbrück. Foram também executados em Buchenwald em outubro os outros oito homens da secção francesa do SOE que tinham viajado no mesmo comboio com as mulheres do SOE.

CAPÍTULO 28 ABORDAGENS SECRETAS Se alguém em Londres recebesse mensagens enviadas pelos prisioneiros de guerra franceses em nome das três mulheres do SOE, seria Vera Atkins, a responsável administrativa que colaborara no seu treino e as enviara para França. Mas depois de as mulheres desaparecerem, a secção de transmissões do SOE em Baker Street, em Londres, manteve-se em silêncio. Pouco depois de Paris ser libertada, Vera Atkins deslocou-se a França num navio de guerra para iniciar a busca das desaparecidas. Visitou prisões francesas onde as mulheres tinham estado e viu arranhões nas paredes das celas — «Vive la France» — e calendários com datas riscadas, mas nenhum indício de para onde teriam ido. Só num caso houve uma pista. O marido de Cicely Lefort recebeu uma mensagem dela no verão de 1944 contendo um endereço: «Konz Lager, Ravensbrück, Fürstenberg, Mecklenburg.» Vera tinha ouvido falar de Ravensbrück, mas quando perguntou no Ministério da Guerra em Londres o que sabiam sobre o campo de concentração, responderam-lhe: «O campo de concentração de Ravensbrück é-nos comparativamente desconhecido e não temos qualquer registo de internadas civis britânicas em Brandenburgo neste momento.» Se os funcionários do Ministério da Guerra quisessem saber mais sobre Ravensbrück, bastar-lhes-ia dobrar a esquina e dirigir-se para uma sala de reuniões em Westminster, onde, em 4 de outubro de 1944, um grupo de líderes de mulheres escutava um relato, «trazido para este país em mão» e considerado assunto urgente na ordem de trabalhos, sobre todos os aspetos desse campo de concentração. O Comité de Ligação das Organizações Internacionais de Mulheres, que representava advogadas, pacifistas, enfermeiras, médicas e outras,

ouviu falar sobre as atrocidades médicas — «o pus é recolhido em recipientes selados» — e sobre os seus perpetradores — «dois professores de Berlim e uma médica do campo». Ficaram a saber das execuções e da tortura: «As mulheres são confinadas a uma cela escura durante 42 dias e espancadas com uma vergasta de metal.» Uma médica polaca, Barbara Grabińska, apresentou o relatório, mas não revelou quem o trouxera para o país. Talvez tenha sido Aka Kołodziejczak, uma prisioneira polaco-americana libertada em dezembro de 1943. Nascida nos Estados Unidos, Aka encontrava-se com a família em Bydgoszcz, na Polónia, quando rebentou a guerra e foi detida ao tentar fugir. Provavelmente, a sua libertação integrou-se numa troca de prisioneiros assegurada através de contactos do pai de Aka, que antes da guerra era um homem de negócios na Polónia e nos Estados Unidos. Quando foi libertada, Aka prometeu às suas camaradas falar ao mundo sobre o campo de concentração, e, no início do outono de 1944, passou por Londres a caminho dos Estados Unidos. Depois de ler o relatório, o Comité de Ligação das Mulheres enviou um telegrama ao Comité Internacional da Cruz Vermelha exprimindo o seu horror perante o que tinha ficado a saber sobre Ravensbrück e apelando ao CICV para que desse «toda a possível proteção às mulheres ali detidas». O CICV respondeu que não tinha acesso ao campo e que não podia intervir; as suas regras proibiam-no até de dar publicidade ao apelo das mulheres. Já há dois anos que o CICV tinha optado por se manter em silêncio relativamente às atrocidades nos campos de concentração nazis. Fazia também já dois anos que os líderes das forças aliadas se tinham insurgido contra «a exterminação bárbara» na Declaração Conjunta de dezembro de 1942, mas essas palavras não foram seguidas por atos para proteger as vítimas. A reação dos Aliados foi, evidentemente, prepararem-se para derrotar Hitler militarmente, mas demorou dois anos a voltar a pôr os exércitos no continente europeu e durante esse período um milhão de judeus morreu nas câmaras de gás em Auschwitz e centenas de milhares de outros foram

exterminados. Um maior conhecimento do horror não tornou mais provável a intervenção em defesa dos prisioneiros. Ao longo de 1944, as provas tinham-se tornado mais terríveis e mais incontroversas. Avançando pela Polónia e pela Ucrânia, os Soviéticos invadiram campos de morte e encontraram as câmaras de gás. Em Madjanek, encontraram milhares de corpos semicalcinados e montanhas de cabelo humano e de sapatos. Ao longo da primavera e do verão de 1944, Adolf Eichmann iniciou a captura e o assassínio por gás dos judeus da Hungria, que foi monitorizado por organizações judaicas, por enviados suecos e pela imprensa estrangeira, sendo enviados relatórios para as capitais dos países aliados. Os editores da SWIT, a estação clandestina de rádio, receberam novos relatos de grande realismo sobre Auschwitz, mas os diretores proibiram a sua transmissão, porque «A informação é tão terrível que não acreditarão nela». Churchill acreditou, considerando o extermínio «provavelmente o maior e o mais horrível crime jamais cometido em toda a história do mundo». Organizações judaicas advogavam agora o bombardeamento das câmaras de gás de Auschwitz como a única maneira de deter aquele pesadelo, uma ideia que Churchill tomou em consideração, mas a que Washington se opôs com base na convicção de que nada os deveria distrair do principal objetivo: vencer a guerra militar. Noutras capitais europeias, no entanto, andavam a ser debatidas ideias para auxiliar os prisioneiros. Algumas semanas depois de Vera Atkins se deslocar a Paris em busca das suas agentes desaparecidas, o vice-presidente da Cruz Vermelha sueca foi de avião à capital francesa. O conde Folke Bernadotte de Wisborg, neto do rei Oscar II, o último monarca a reinar sobre a Noruega e a Suécia, fracassara como homem de negócios, mas mostrava grande aptidão para o trabalho humanitário, nomeadamente na negociação bemsucedida com os Alemães para a libertação de homens da força aérea dos aliados capturados. Os Americanos ficaram tão satisfeitos que Bernadotte foi convidado

a deslocar-se a Paris em outubro de 1944 para se encontrar com o homem mais ocupado e mais poderoso do planeta, o general Dwight D. Eisenhower. Apenas cinco semanas depois de as forças aliadas libertarem Paris, o ambiente no quartel-general de Eisenhower em Versailles estava fervilhante e cheio de ânimo, segundo Bernadotte. Eisenhower aparentava uma imensa confiança na tarefa gigantesca que se avizinhava, com os seus exércitos a prepararem-se para conquistar a Alemanha. Bernadotte observou, no entanto, que os planos de guerra do general não tomavam em consideração o destino dos prisioneiros, uma questão que a Suécia discutia agora ativamente. Depois de visitar Eisenhower, Bernadotte foi ver um velho amigo, Raoul Nordling, o cônsul sueco em Paris, para debater os planos de libertação de prisioneiros suecos. As tentativas de Nordling de deter as deportações francesas antes da libertação tinham sido amplamente aplaudidas em Paris, e ele continuava a interessar-se pelos deportados. Embora no Reino Unido e nos Estados Unidos os prisioneiros fossem ainda uma preocupação distante, a França tinha perdido muitos milhares de cidadãos nos campos de concentração. Em outubro, os jornais franceses publicaram entrevistas com uma mulher libertada de Ravensbrück ao abrigo de uma troca de prisioneiros. Ela disse que as prisioneiras estavam a morrer à fome, com uma alimentação à base de sopa e de couves. Eram queimados cadáveres dia e noite num crematório. «São plantadas flores bonitas à volta dos blocos para enganar o mundo.» As famílias francesas, silenciadas sob a ocupação nazi, clamavam agora por informações, e através da sua rede privada Bernard Dufournier obteve notícias, ficando a saber em outubro que Denise se encontrava em Ravensbrück. Um diplomata espanhol em Berlim ia enviar-lhe uma encomenda, e disse a Bernard: «A minha experiência diz-me que os artigos mais desejados são uma escova dos dentes, pasta dos dentes, sabão, chocolate, Ovomaltine e leite condensado, para além de vitaminas.»

A sobrinha do general De Gaulle, Geneviève, tinha desaparecido, e agora o irmão do general, Xavier, o pai de Geneviève, que era cônsulgeral em Genebra, juntou-se a milhares de franceses que apelavam ao CICV para obterem informações. Os pedidos de informação de outras paragens mais distantes estavam também a aumentar. Em Brixton, no Sul de Londres, o pai de Violette Szabo, um taxista, pedira notícias de Violette ao Ministério da Guerra, que não lhe disse nada, e por isso ele escreveu à Cruz Vermelha britânica, que transmitiu o seu pedido de informação a Genebra. A mãe de Virginia Lake, Eleanor Roush, escreveu ao secretário de Estado americano, Cordell Hull, dizendo que Virginia desaparecera em França enquanto fazia «trabalho valioso para os Aliados», e que esperava que o seu caso tivesse «atenção prioritária». Acrescentava: «A Virginia não é judia, o que talvez seja a seu favor, dados os padrões alemães.» O pedido de informação de Eleanor Roush foi também transmitido ao CICV. Mas a todas estas questões Genebra dava a mesma resposta formal: o Comité não tinha acesso aos campos de concentração e não podia intervir. Os Suecos, no entanto, adotavam um ponto de vista diferente. Quando Folke Bernadotte e Raoul Nordling se encontraram em Paris em outubro de 1944, não só conversaram sobre a forma como a Suécia poderia intervir mas também sobre como poderia enviar uma missão à Alemanha para libertar prisioneiros dos campos de concentração. O papel da Suécia em qualquer intervenção humanitária de última hora era, até certo ponto, para seu benefício. Assumindo uma posição neutra desde o início da guerra, a Suécia descobria em 1944 que a neutralidade não era agora o mais desejável. Nessa altura, a vitória dos Aliados era praticamente certa e a extensão dos crimes de guerra da Alemanha estava progressivamente a ser revelada. Agir com rapidez para ajudar os prisioneiros era uma maneira de a Suécia começar a responder a acusações de que não tinha desempenhado um papel na libertação do mundo de Hitler e do seu aparelho nazi.

Poderia também lançar pontes para os países vizinhos. Tanto a Noruega como a Dinamarca tinham sido invadidas e ocupadas por forças nazis, sofrendo terríveis perdas, e muitas pessoas nesses países encaravam a neutralidade do seu vizinho maior como uma traição. A Noruega, em particular, tinha perdido milhares de pessoas em campos de concentração, e os diplomatas noruegueses pressionavam agora fortemente Estocolmo para que encontrasse uma maneira de libertar esses prisioneiros antes de ocorrerem ainda piores atrocidades. Havia outras razões para a intervenção. Os líderes suecos ficaram encantados por poderem substituir Genebra onde ela fracassara, e Estocolmo estava claramente numa excelente posição para liderar qualquer nova iniciativa. Não se tratava só do facto de a capital sueca ser um bom local para contactos diplomáticos discretos, mas também de os Suecos terem acesso privilegiado a informações sobre os campos de concentração, providenciadas em grande medida pela célula norueguesa de informações secretas criada por Wanda Hjort. No verão de 1944, a família Hjort, com base em Gross Kreutz, perto de Potsdam, já tinha alargado e refinado a sua recolha de informações secretas sobre os campos de concentração de Hitler. O seu grupo foi reforçado com a chegada de um jovem médico norueguês, Bjorn Heger, e pelo professor Arup Seip, o reitor da Universidade de Oslo, ambos detidos na Alemanha no mesmo regime de prisão domiciliária do pai de Wanda, Johan Hjort. O grupo tinha também estabelecido contacto com a delegação sueca em Berlim e enviava relatórios pormenorizados semanais sobre os campos de concentração para Estocolmo através da mala diplomática sueca. Desde a chegada dos Aliados no verão de 1944, a célula norueguesa recolhia relatos que indicavam que Hitler planeava liquidar os campos de concentração. Arup Seip, que tinha contactos com a resistência clandestina alemã, ficou a saber que havia preparativos para fazer ir pelos ares certos campos de concentração antes de os exércitos alemães chegarem a Berlim. No início do outono, essas informações já se multiplicavam e incentivavam os

Suecos a considerar alguma forma de salvamento. Para se conseguir obter alguma forma de salvamento geral, no entanto, Heinrich Himmler, sem cujo conhecimento nada poderia acontecer nos campos de concentração, teria de concordar. Nesta questão, mais uma vez a Suécia tinha boas informações secretas, desta vez não sobre o que estava a passar-se nos campos de concentração de Himmler, mas sobre o que estava a passar-se na mente de Himmler. Felix Kersten, o massagista e confidente de Himmler, vivia há algum tempo em Estocolmo, regressando regularmente à Alemanha para tratar as dores de estômago persistentes do seu amo. O objetivo de Kersten ao mudar para Estocolmo fora em parte para sondar as hipóteses no Ocidente — através de intermediários suecos — em nome de Himmler. Na segunda metade de 1944, a mensagem de Kersten para os Suecos já era clara: Himmler sabia que a guerra estava perdida e procurava maneiras de construir pontes com Washington e com Londres. Essas pontes só poderiam ser construídas, evidentemente, nas costas do Führer. Nas suas memórias, Kersten viria a afirmar que durante uma sessão de tratamento em setembro de 1944 Himmler declarou subitamente: «Houve demasiado derramamento de sangue.» Himmler acreditava, disse Kersten, que Churchill e Roosevelt prefeririam chegar a um acordo com a Alemanha em vez de permitirem que Estaline entrasse em Berlim e abrisse caminho à tomada da Europa pelo bolchevismo. Obviamente, o próprio Führer não toleraria qualquer discussão da sua derrota, mas nestas abordagens secretas Himmler desejava que se soubesse que no futuro — se o Führer deixasse de estar no poder — ele, Himmler, estaria em posição de discutir um acordo. As abordagens de Kersten em nome do seu amo foram rejeitadas liminarmente em Washington e em Londres, que continuavam a insistir numa rendição total. Churchill disse terminantemente: «Nada de acordos com Himmler.» No entanto, era claro para os interlocutores suecos de Kersten que este acreditava que o seu amo

tinha a intenção séria de fazer ouvir a sua mensagem e que, para mostrar boa vontade, Himmler poderia até oferecer-se para libertar alguns prisioneiros. Os Suecos não viam razão para não explorar uma tal oferta e garantir o maior número possível de libertações, embora o objetivo de Himmler de conseguir um acordo de paz separado não estivesse a obter resultados. O primeiro sinal de que Himmler talvez estivesse decidido chegou no outono de 1944, quando, através de Kersten, acedeu a negociar a libertação de polícias e de estudantes noruegueses. A libertação de outros prisioneiros mais destacados estava também na mente de Himmler no outono de 1944, mas essas libertações estavam fora do âmbito das conversações suecas. Entre esses VIP encontravam-se três reféns detidas em Ravensbrück; cada uma dessas mulheres tinha um parente muito poderoso (ou assim acreditava Himmler) em Paris, Londres ou Nova Iorque. Desde a sua chegada ao campo de concentração com as vingtsept mille em fevereiro de 1944, Geneviève de Gaulle era tratada como qualquer outra prisioneira francesa. Vivia num bloco degradado e sobrelotado, o Bloco 27, e partilhava um colchão com a britânica Pat Cheramy. Pat diria mais tarde que durante muito tempo a SS nem sequer soube quem era Geneviève — ou, se sabia, não parecia importar-se. Enquanto a Alemanha ocupasse a França, não haveria necessidade de tomar em consideração especial a sobrinha do general exilado, mas no outono previa-se já que Charles de Gaulle fosse o futuro Presidente da França e agora a sua sobrinha era um peão útil no jogo. Provavelmente, Himmler tinha sido alertado para a presença de Geneviève em resultado de uma abordagem feita ao CICV pelo seu pai pouco depois de Paris ser libertada. Daí a dias, o Reichsführer ordenou a Suhren que melhorasse o tratamento dado a Geneviève e que mandasse cuidar da sua aparência, para o caso de ela ser libertada. Depois de nove meses no campo, Geneviève tinha perdido metade do seu peso corporal e até Suhren, ao vê-la ali de pé diante dele no

seu gabinete, se sentiu abalado. «Pareceu chocado por me ver num estado assim tão débil», recordaria ela mais tarde. «Perguntou-me se tinha queixas em relação ao regime e à forma como era tratada.» Não querendo falar só de si, Geneviève aproveitou a oportunidade para protestar em nome de todo o campo contra «a maneira abominável» como as prisioneiras eram tratadas, as francesas em particular. «Os meus protestos foram recebidos com desconforto pelo comandante, que deu as seguintes ordens imediatas por telefone à Aufseherin Binz: transferir-me para um dos blocos privilegiados; darme trabalho no escritório da Revier; marcar um exame médico com o Dr. Treite.» Apesar de protestar por ser tratada com favoritismo, Geneviève viu-se agora alvo das atenções de todo o pessoal de Suhren, como se não houvesse tempo a perder para lhe melhorar a saúde. Foi-lhe imediatamente oferecida sopa de melhor qualidade e Treite internou-a no melhor bloco hospitalar. «Esta foi a primeira vez no campo em que vi pessoas doentes serem bem tratadas.» Só mais tarde Geneviève saberia a razão de tanta pressa. No dia em que foi chamada à presença de Suhren, em 3 de outubro de 1944, Himmler ofereceu Geneviève ao seu tio em troca de um alemão detido em França. Dois dias depois de Geneviève ser chamada à presença de Suhren, Odette Sansom — a SS conhecia-a como Churchill — recebeu também uma oferta de melhor tratamento. Odette encontrava-se numa cela privilegiada desde a sua chegada em julho de 1944, mas a cela, na cave do bunker, era húmida e escura. Sofria de dores nas glândulas e o cabelo caía-lhe às mão-cheias. Em 5 de outubro, Odette foi visitada na sua cela por uma enfermeira. Tal como no caso de Geneviève, havia uma súbita urgência em melhorar a sua saúde. Foi levada para a Revier, onde uma radiografia revelou que sofria de tuberculose. Alguns dias depois, Suhren veio vê-la e disse-lhe que ia ser transferida para uma cela no rés do chão. Um médico especialista examiná-la-ia nas instalações do comandante, onde receberia também um tratamento semanal de ultravioletas para deter a queda de cabelo e de raios

infravermelhos para tratar os pulmões. Enquanto Geneviève e Odette estavam a ser tratadas com todos os mimos na expectativa de uma possível libertação, a terceira refém de valor para Himmler, Gemma La Guardia Gluck, continuava a receber um tratamento preferencial no Bloco 2. Ao contrário das outras duas, no entanto, não foi alvo de novas atenções da SS em outubro de 1944. Talvez não se integrasse em qualquer acordo. O mais provável é que, vivendo no bloco privilegiado, a sua saúde se tivesse ressentido menos. De qualquer forma, fosse qual fosse o acordo que Himmler tinha em mente, nada se concretizou e nenhuma das três foi libertada. As três mulheres, pela sua parte, não contavam com isso. Nem tinham qualquer ilusão de que o seu tratamento melhorado fosse um prenúncio do fim antecipado do pesadelo de Ravensbrück; viam tão bem como quaisquer outras que as condições pioravam de dia para dia. Enquanto Geneviève estava a recuperar na Revier, em outubro seis camaradas francesas foram levadas dos seus blocos e executadas. Alguns dias antes de Odette ser transferida para uma cela melhor no bunker, viu doze mulheres serem encafuadas numa cela perto da sua, onde as deixaram sem nada para comer durante uma semana. «Vi uma rapariga russa ser levada da cela pelas suas camaradas; era só pele e osso.» Pela janela da sua nova cela no rés do chão do bunker, Odette via a chama do crematório a erguer-se a três metros de altura da chaminé todas as noites; ouvia até o crepitar do fogo. «Havia uma quantidade considerável de fumo preto e um cheiro insuportável. Quando eu tinha a janela aberta, o meu quarto enchia-se com cinzas pretas.» Os boatos de libertação de reféns e de possíveis trocas não davam nova esperança às prisioneiras comuns, que não viam quaisquer provas de que alguém no exterior se interessasse por elas ou estivesse a tentar ajudá-las. Pelo contrário, em outubro de 1944 as mulheres em Ravensbrück sentiam-se mais sós do que nunca. A maioria já quase não recebia embrulhos, todas as rações tinham sido cortadas e o correio parara. Aproximava-se o inverno e os exércitos

libertadores nem sequer estavam perto. As esperanças acalentadas no verão de que os Alemães se rendessem pareciam agora absurdas. Em vez disso, chegavam prisioneiras da Hungria em catadupa, a tenda encontrava-se mais cheia do que nunca, as instalações da morgue estavam a ser ampliadas e uma nova extensão da fábrica da Siemens estava a ser construída, com novas trabalhadoras contratadas para a fábrica cada dia e as rejeitadas recambiadas para o campo em número crescente. Em outubro, Betsie e Corrie ten Boom, as irmãs holandesas de mais idade, foram riscadas da lista da Siemens e enviadas para o trabalho de terraplanagem dentro do campo de concentração. Betsie tinha começado a cuspir sangue e só conseguia cavar quantidades minúsculas; as guardas troçavam dela, agarrando-lhe na pá e chamando-lhe «Madame Baronesa», e as prisioneiras também se riam dela. Para espanto de Corrie, Betsie também se ria. «Mas é melhor que me deixem avançar trôpega com a minha colherzinha de terra, porque senão tenho de parar completamente», disse Betsie, ao que a guarda a chicoteou com a sua chibata, deixando marcas em carne viva no pescoço de Betsie. «Não olhes para isso, Corrie», disse Betsie. «Olha antes para Jesus.»

CAPÍTULO 29 DOUTORA LOULOU Em meados de novembro de 1944, as mulheres que tinham chegado na última caravana de Paris andavam a pôr camadas de terra na neve num subcampo desolador chamado Königsberg, a 240 quilómetros a leste de Ravensbrück. A cave das batatas abrigada de Torgau, os presentes de açúcar Jack Frost, pareciam um sonho. A maioria tinha perdido a esperança de que chegasse o fim da guerra. «Em vez disso, tínhamos a esperança de que chegasse o fim do inverno, porque podíamos contar com isso», disse Virginia Lake, que escrevia agora um diário. Em Königsberg, andavam a construir um aeródromo, mas as camadas de terra não se mantinham planas sobre a neve; quando os torrões de terra gelavam, era impossível deslocá-los. Nalguns dias, a neve derretia e os torrões tinham de ser colocados na água. As prisioneiras afundavam-se na lama para os colocar corretamente. Mas depois voltava tudo a gelar e elas tinham de quebrar o gelo. De facto, era um trabalho impossível. Toda a gente sabia que o terreno nunca ficaria plano. Andavam mortas de fome e enregeladas. Só três meses depois de partirem de Paris, as mulheres ainda tinham uma pequena reserva de gordura corporal, embora ela estivesse a desaparecer rapidamente. Quando marchavam para o campo de aviação, rajadas de vento gélido trespassavam a sua roupa fina. As mulheres roubavam palha aos colchões e metiam mão-cheias nas camisolas umas das outras. No subcampo de Neubrandenburg, a oitenta quilómetros a norte de Ravensbrück, Micheline Maurel, ali detida há quase dois anos, já não tinha um grama de gordura no corpo. Também ela escrevia um diário. Na entrada de 29 de outubro pode ler-se: «Domingo: a minha ração de pão roubada no balneário.» Em 13 de novembro: «Primeira neve,

não comi nada.» Catorze de novembro: «Muito frio. Está um gelo. Tão triste.» A seguir, o seu diário para de vez e ela começou a rezar a Deus para que a deixasse morrer. Micheline tinha disenteria constante, embora não comesse nada. «Quem me dera poder deixarme ir e desaparecer completamente. De repente. Chamei pela minha mãe. Nessa altura não tinha carne, a pele pendia-me em dobras secas dos ossos.» Todos os subcampos estavam a matar, mas Königsberg era novo, um «campo de punição»; matava mais depressa. No outono de 1944, as prisioneiras tomaram consciência de que Königsberg, juntamente com os novos subcampos de Rechlin e de Malchow, eram lugares particularmente abomináveis. As mulheres que eram enviadas para esses subcampos não trabalhavam em fábricas de armamento bem equipadas como as do subcampo de Torgau. As prisioneiras faziam trabalhos forçados do pior tipo e esperava-se claramente que trabalhassem até ao seu último alento e a seguir morressem. Bastava olhar para Königsberg para ver que nada ali poderia sustentar a vida por muito tempo. As casernas abanavam ao vento e as guardas pareciam medíocres, como se também elas fossem descartáveis. Talvez nem importasse aos Alemães que o trabalho no campo de aviação fosse completado. Destinava-se apenas a quebrar as pessoas que o faziam. Até mesmo o capataz civil parecia compreendê-lo. No frio mais gélido, vendo que as prisioneiras estavam no fim das suas forças, compadeceu-se delas e permitiu-lhes que fizessem uma fogueira no campo de aviação. Podiam passar cinco minutos junto à fogueira, cada uma à vez, mas havia quem se recusasse a afastar-se do calor. «E embora o nosso capataz ameaçasse bater-nos, nunca o fez — só apagava a fogueira. Era o pior castigo que poderia dar-nos», disse Virginia. A fome não tardou a dominar Königsberg. Uma jovem caiu quando se afastava à pressa do vagão da sopa e perdeu a sua sopa toda. Toda a gente sabia o que isso significava; cederam-lhe uma, duas, três colheres da sua sopa «porque ela dava vida». Os olhos das

prisioneiras ficaram sem vida, as suas faces encovadas, a pele macilenta e os membros esqueléticos. «A Mina, uma bela e forte jovem suíça, em dois meses transformou-se numa senhora idosa corcovada, cheia de rugas e acabada; perdeu o ânimo e tinha de ser amparada como uma criança muito pequena», disse Virginia. As eslavas, mais resistentes, aguentavam mais tempo. Tinham sido selecionadas para Königsberg porque eram excedentárias nas fábricas num dia em particular, e muitas vezes essas mulheres eram rapidamente transferidas. Algumas das que se encontravam em Königsberg tinham vindo especificamente como punição. As francesas e o punhado de americanas e de britânicas estavam ali por terem aderido ao protesto em Torgau. A maior parte das mulheres enviadas para os campos de punição já tinha sido exaurida nas oficinas de costura, ou talvez na Siemens. O seu último grama de força podia agora ser espremido a cavar, a limpar o terreno e a cortar madeira. Entre as cerca de 500 mulheres em Königsberg, muitas pertenciam ao grupo do Levantamento de Varsóvia, que já tinha sido enfraquecido na tenda. Muitas enlouqueceram primeiro. Havia um canteiro de batatas ao fundo do campo, e, antes de chegar a neve, por vezes podiam-se roubar batatas. Um dia, uma polaca foi lá dissimuladamente, mas um guarda avistou-a e ordenou-lhe que voltasse para trás. «Talvez ela não tenha ouvido ou talvez estivesse meio louca. Seja como for, ele disparou-lhe para as costas e ela morreu ali mesmo no terreno», recordou Virginia. As prisioneiras que enlouqueciam juntavam-se às doentes sem esperança de cura para serem recambiadas para o campo para morrerem. Micheline Maurel recordava-se de algumas das francesas «enlouquecerem». As irmãs Marin tinham um pequeno café em Lyon. Uma delas morreu no subcampo e a outra «enlouqueceu» e foi enviada de volta para Ravensbrück. No campo principal, as prisioneiras viam frequentemente os camiões a chegarem dos subcampos. As mortas, as quase mortas e as «loucas» eram despejadas na Revier, onde se procedia à triagem.

Na primeira vez em que a médica francesa Loulou Le Porz viu essa cena estava com a sua amiga Violette Lecoq, uma enfermeira da Cruz Vermelha. Era de noite e a luz elétrica acendeu-se de repente. Estávamos junto aos grandes portões... Eu disse à Violette: «Se um dia alguém fizer um filme, têm de filmar esta cena. Esta noite. Este momento.» Porque ali estávamos nós — uma pequena enfermeira de Paris e uma jovem médica lá de longe, de Bordéus. Chega subitamente um camião e dá a volta e faz marcha atrás em direção a nós. E a parte de trás levanta-se e descarrega uma pilha de cadáveres. Nós estávamos ali porque tínhamos acabado de levar uma das nossas mortas à morgue. E subitamente vimo-nos diante de um monte de corpos. E se contarmos isto um dia, dissemos uma à outra, ninguém vai acreditar em nós. E não acreditaram. Quando voltámos, ninguém queria saber.

As mortas eram levadas para o crematório e as meio mortas eram muitas vezes enviadas para o bloco de Loulou, o Bloco 10. Muitas morreriam nos seus braços. Antes ainda de Loulou entrar no Bloco 10, pareceu-lhe óbvio que não era um bloco hospitalar, mas uma espécie de morgue. Quando começou a trabalhar, a Oberschwester Marschall disse-lhe: «Não desperdiçamos medicamentos nas tuberculosas», e não me deu nenhuns. E quando eu entrei, olhei à minha volta e vi 400 mulheres a morrerem ou já mortas, deitadas em colchões, apinhadas no bloco. E aqui estava eu, uma médica, sem nada com que as tratar. Era uma abominação. Uma antecâmara da morte. Está a ver, chamavam-lhe bloco hospitalar, mas isso era um golpe de teatro, um teatro de marionetes, e nós, as que trabalhávamos ali, éramos os fantoches deles. Ainda não estavam a usar gás, mas nós sabíamos que aqueles mulheres tinham sido selecionadas para a morte.

O hospital do campo de concentração sempre tivera o papel duplo de curar e matar, mas no outono de 1944, quando alguns subcampos estavam a ser incluídos na categoria de «campos de punição», foi tomada a decisão de diferenciar entre blocos regulares da Revier, onde as prisioneiras poderiam ser tratadas de doenças, e aqueles onde eram deixadas para morrer. Aos blocos regulares chamava-se agora blocos de trabalhadoras. Os outros blocos da Revier não tinham nome, mas as pessoas sabiam os seus números e sabiam

que eram blocos de morte. No julgamento de Hamburgo de 1946, a acusação considerou que o que aconteceu nesses blocos foi «matar por negligência». O que quer que se lhe chamasse, a morte deliberada introduzida no outono de 1944 foi um novo método concertado de assassínio de massas. Não é de estranhar que o bloco das tuberculosas fosse o primeiro bloco de morte: os nazis sempre tinham receado vivamente a tuberculose, relacionada nas suas mentes com sujidade e degeneração. No entanto, se o objetivo era a morte, porquê enviar uma prisioneira médica, uma especialista em tuberculose, para trabalhar nesse bloco? Louise «Loulou» Le Porz era filha póstuma: o seu pai foi morto nos primeiros dias da Primeira Guerra Mundial. Criada como católica pela sua mãe, Loulou soube que queria ser médica desde a mais tenra idade e escolheu como especialidade as doenças infeciosas, prestando cuidados aos pobres. Quando os Alemães entraram em Bordéus em 1940, o seu pai veio-lhe ao pensamento. Um amigo, um cirurgião no mesmo hospital, perguntou se ela queria ajudar e pô-la em contacto com uma célula de resistência que recolhia informações secretas para os Britânicos sobre os movimentos dos navios em Bordéus. Depois de Loulou ser capturada, passou três meses em prisão solitária nas celas da Gestapo na cidade antes de ser enviada para Ravensbrück. Tinha vinte e nove anos quando chegou a Ravensbrück, em junho de 1944. Loulou não fazia ideia da razão por que fora escolhida para o trabalho no Bloco 10. «As pessoas diziam que havia muita ordem nos campos de concentração, mas não era assim. Chamou-me rapidamente a atenção que, de facto, não havia lógica nem razão na maneira como as coisas aconteciam. As coisas eram bastante imprevisíveis no campo. Tem de se lembrar disso.» Ela tinha as suas suspeitas. Talvez tivesse sido nomeada porque a Blockova desse bloco, Carmen Mory, queria recrutá-la. Há motivos para crer que Loulou tinha razão.

No outono de 1944, Mory era, provavelmente, a prisioneira com mais poder no campo. Era também a mais receada e tinha várias alcunhas: Vulgaris — lobo comum; Schwarzer Engel — anjo negro; e «A Bruxa». Em tempos uma das protegidas de Treite, o seu poder aumentara desde que Ramdohr a recrutara. Mory nasceu perto de Berna em 1906, e o seu pai era um médico abastado e bem relacionado. A mãe de Carmen morreu quando ela tinha três anos. Carmen, um criança talentosa e precoce, educada em diversos colégios internos, falava várias línguas com fluência e passou a casa dos vinte anos a viajar pelas capitais europeias antes de se mudar para Berlim, nos anos 1930, e de se dedicar ao jornalismo como freelancer. Em 1938, já tinha sido recrutada pelos serviços secretos alemães e foi enviada para França para espiar os exilados comunistas alemães. Detida pelos Franceses, foi condenada à morte por um tribunal parisiense, acusada de transmitir segredos da Linha Maginot, mas a sentença foi comutada e ela foi condenada a uma pena de prisão. Quando os Alemães ocuparam a França em maio de 1940, libertaram-na e enviaram-na para Berlim, mas Mory deve ter caído em desgraça, porque em 1941 foi enviada para Ravensbrück, onde Ramdohr a considerava de valor inestimável. Até Binz a receava, principalmente porque o patrono de Mory era inimigo figadal e rival constante do amante de Binz, Edmund Bräuning, o delegado de Suhren. Por seu turno, Binz tentava manter Mory no seu lugar, mandando-a para o Bock para apanhar vinte e cinco chicotadas pelo menos numa ocasião e para o bunker durante algum tempo. Depois de Carmen ser «libertada», tanto Treite como Ramdohr apoiaram a sua nomeação como Blockova do Bloco 10. Do ponto de vista de Treite, ela era uma boa candidata, já que tivera tuberculose e, por consequência, estava imune. Para Ramdohr, Mory seria mais útil como espia se ocupasse o posto de Blockova. Em outubro de 1944, Mory tinha já obtido tanto poder como Blockova que tinha até poderes para recrutar o seu próprio pessoal. Preferia contratar as francesas, em parte, ao que parece, para estabelecer uma base de poder rival à das polacas e das austríacas,

que ela detestava, precisamente porque também elas tinham poder.40 Em outubro de 1944, tinha já garantido postos para três francesas dentro do Bloco 10, mas pretendia contratar mais; queria particularmente recrutar a francesa alta e loura que as guardas acusavam de ter ar de orgulhosa e que ela sabia ser médica, pelo dossiê no gabinete de Ramdohr. Loulou recorda-se claramente de quando Carmen Mory tentou recrutá-la; estava internada no bloco de doenças infeciosas a recuperar de escarlatina. Num belo dia, a Mory apareceu à janela junto à minha cama e começou a falar comigo. Não disse muito, mas obviamente estava a testar-me. Eu já sabia quem ela era — toda a gente sabia. Ela era muito distintiva e atraente à sua maneira — dava nas vistas, com o seu cabelo castanho sempre aos caracóis e a pele escura —, com um ar um pouco oriental. Eu não disse nada. Desconfiava-se de toda a gente no campo. Nunca se sabia como poderia acabar. E as pessoas diziam que a Mory tinha sido em tempos uma espia alemã.

A primeira tentativa de Mory de recrutar Loulou não deu em nada, provavelmente por causa da doença da francesa, mas em finais de outubro Loulou já estava completamente recuperada — era uma daquelas prisioneiras que tinham uma constituição tão forte que resistiam bem às doenças, e nem mesmo a fome que passava lhe prejudicava a saúde. «Então, a Mory veio outra vez ter comigo, e dessa vez disse-me que tinha arranjado maneira de eu trabalhar como médica no Bloco Dez», disse Loulou. Uma das razões por que Mory necessitava de Loulou no bloco era para assinar os formulários. Segundo as novas regras, todos os blocos da Revier — até mesmo os blocos da morte — tinham de ter uma prisioneira médica, pelo menos para assinar as certidões de óbito. A morte por negligência tinha de ser registada oficialmente como as outras mortes, e havia tantos desses tipos de morte naquela altura que o pessoal médico da SS não tinha tempo para assinar todos os formulários. Mory tinha recrutado outra prisioneira médica, uma jovem suíça chamada Anne Spoerry, que deveria ser capaz de desempenhar essa tarefa, mas Spoerry, veio a saber-se, não tinha as

habilitações necessárias. Spoerry, filha de um magnata dos têxteis suíço, tinha estudado Medicina em Paris, mas foi detida por atividades na resistência antes de fazer os exames finais. Por consequência, de acordo com as regras da SS não podia assinar os formulários. Mesmo assim, Mory queria manter Spoerry no bloco. Tinha-se ligado a Spoerry e as duas partilhavam um colchão no cubículo de Blockova de Mory. Delgada, com cabelo castanho curto, Anne Spoerry era conhecida pelas francesas como uma pessoa solitária, e o facto de seguir Mory para toda a parte e de assumir um nome falso, «Claude», perturbava as suas camaradas. As outras mulheres acreditavam que «Claude» estava embeiçada por Mory, embora ela própria dissesse mais tarde que estava «enfeitiçada». Loulou, que ainda se refere a Spoerry pelo seu nome do campo de concentração, diz que desde o início não confiou em «Claude». «Víamos como ela era íntima de Mory e por isso sabíamos que era perigoso ter qualquer tipo de contacto com ela.» Por conseguinte, talvez tenha sido simplesmente porque a médica mais nova não podia assinar as certidões de óbito que Mory recrutou Loulou. «Embora talvez tenha havido também outras razões», acrescenta Loulou. «A Mory só dizia meias-verdades e o resto era o que ela queria que fosse. Talvez se sentisse impressionada com o meu título: Doutora de Medicina. Descobri mais tarde que o pai dela era médico na Suíça — dizia-se que tinha matado a mãe dela, mas ninguém soube nunca ao certo.» Qualquer que fosse a razão, foi graças a Carmen Mory que Loulou, uma empenhada jovem especialista de tuberculose de Bordéus, se viu a trabalhar no primeiro bloco de morte de Ravensbrück. Quando Loulou começou a trabalhar no Bloco 10, havia já duas enfermeiras francesas a trabalharem ali: Violette Lecoq e Jacqueline Héreil. No início da guerra, Violette tratou soldados na frente de combate integrada na Cruz Vermelha francesa, em seguida aderiu a uma célula de resistência e depois de ser capturada passou um ano

em prisão solitária na prisão de Fresnes. Chegou a Ravensbrück com as vingt-sept mille. Jacqueline Héreil, também enfermeira diplomada, trabalhou para uma linha de evasão; tinha chegado em maio. As três partilhavam agora um beliche: Loulou no meio, Violette em baixo e Jacqueline em cima, com «as nossas doentes a toda a volta». Tornaram-se logo amigas e começaram a organizar os cuidados a prestar às pacientes do bloco. O cubículo privado de Mory e Spoerry ficava no meio do bloco e tinha cortinados a toda a volta. «Não as víamos muito ao princípio. Andavam pelo campo de concentração lá fora ou ficavam no seu cubículo. Não sei o que faziam lá dentro — o que lhes apetecia. De qualquer modo, não nos dizia respeito. Tínhamos de tratar das nossas pacientes e das mortas.» Sem medicamentos nem quaisquer outros recursos, havia pouco que pudessem fazer, «a não ser observar a pequena alemã que distribuía a sopa e assegurarmo-nos de que ela não a roubava». Mas é claro que tínhamos as nossas mãos, os nossos olhos e os nossos ouvidos. Por isso, usávamo-los. Dividimos o bloco e cada manhã visitávamos as nossas pacientes e escutávamo-las e falávamos com elas. Não tínhamos uma língua em comum — muitas das nossas pacientes eram polacas ou russas — mas frequentemente encontrávamos uma intérprete. E tínhamos uma espécie de linguagem gestual. Dizíamos-lhes que éramos médicas e enfermeiras e isso dava-lhes confiança, embora não tivéssemos nada para o provar, a não ser a Violette, que trazia um termómetro pendurado ao pescoço por um fio. A Oberschwester tinha-lhe dito que se ela o perdesse iria para o bunker, por isso ela tinha o bolso cheio de termómetros extra. Não fazia diferença que temperatura tinham as pacientes, porque não podíamos dar-lhes nada para a febre. Um dia, a Violette deixou-os cair a todos e riu-se a bandeiras despregadas, perguntando o que é que a Oberschwester lhe faria agora. Mas a Marschall nunca entrava no bloco, por isso não ficaria a saber. Ninguém do pessoal da SS entrava no Bloco Dez, porque tinha pavor das doentes. Era uma vantagem que tínhamos. E as nossas pacientes viam que nós não tínhamos medo delas, o que de certo modo as ajudava. As nossas mulheres doentes não tinham de se levantar para a Appell, porque não conseguiam. Esta era outra vantagem. Quando as guardas chegavam de manhã e pediam os números, nós transmitíamos-lhos à porta. Só se interessavam pelos números — sempre a contar-nos. Mas nós tínhamos a nossa lista de nomes. A Jacqueline costumava fazer a ronda todos os dias e escrever os nomes de todas as pacientes, que registava num livro, onde eu também anotava os

meus diagnósticos. Quando alguém morria, levávamos o corpo para o balneário para esperar pela carroça, mas a Jacqueline tentava sempre cortar uma madeixa do cabelo das nossas amigas mortas antes de as levarem. Guardava as madeixas com o livro para dar às famílias das mortas se voltássemos para casa. Nem sempre era fácil cortar a madeixa de cabelo, porque os corpos amontoavamse no balneário nessa altura. O livro foi tirado à Jacqueline mesmo antes do fim.

Nesta altura, no entanto, a própria Loulou já tinha memorizado um número incontável de nomes de doentes e de mortas. Ainda agora consegue recitá-los, com os nomes dos maridos e dos filhos e os seus diagnósticos. Embora Loulou diga que não havia nada que ela pudesse fazer, fez muito. Diagnosticava o problema de saúde de cada mulher e contactava a sua amiga radiologista para tirarem radiografias. Também trazia medicamentos às escondidas, com a ajuda de uma farmacêutica jugoslava que recebia medicamentos destinados ao pessoal da SS e punha alguns de lado para Loulou. «Eu poderia ter ajudado tantas mais.» Inclinou-se para a frente e subitamente animou-se, exclamando que no seu bloco havia mulheres «de tal coragem que nem imagina». Havia uma pianista brilhante chamada Geneviève Tillier, «une femme adorable», que tinha uma lesão no polegar. «Nós sabíamos que ela nunca mais voltaria a tocar, mas poderia facilmente ter sido curada.» E havia Anne-Marie Cormerais, que tinha «uma mielite transversa do pulmão, mas nenhuma lesão, e poderia certamente ter sobrevivido». Loulou recordou uma «adorável pequena bretã», Simone Jezequel — «morreu de tuberculose nos meus braços». E havia uma pequena holandesa. «Os irmãos dela vieram ver-me quando eu voltei, porque ouviram dizer que eu estivera com ela, e lembro-me de que choraram.» E Loulou ficou a conhecer as russas e as polacas no bloco igualmente bem, embora fosse mais difícil recordar os seus nomes. Criou laços especiais com uma médica do Exército Vermelho chamada Maria Czeniciuk, que sofria gravemente de tuberculose. «Não podíamos falar uma com a outra, claro, mas compreendíamonos como médicas.» A arménia por nascimento Annie de Motfort era «uma querida amiga»; morreu de exaustão «e antes mesmo da sua morte pediu à

Violette que fosse buscar as suas peles a um armazém na Rue de Rivoli onde estavam guardadas».41 E Loulou tinha muitas recordações de Madame van den Broek d’Obrenan, «uma mulher de uma certa idade» que era extremamente rica. «Vi-a na noite da sua morte. Disse que o que desejava agora era só que o seu corpo fosse levado para França... Ela tinha vindo para o campo de concentração com a criada, que morreu também, antes da patroa, acho eu.» A favorita de Loulou era, provavelmente, Mademoiselle Zimberlin, uma professora de inglês de Cluny, na Borgonha, que na resistência ajudara de alguma maneira «les parachutages» — a receção de paraquedistas vindos de Inglaterra —, mas, como era «muito discreta», Loulou nunca chegou a ouvir pormenores. De facto, MarieLouise «Zim» Zimberlin, com cinquenta e seis anos, usara os seus conhecimentos de inglês (aprendido na Escócia) para interpretar mensagens enviadas de Inglaterra sobre quando os paraquedistas estavam prestes a aterrar e em seguida levava-os às células de resistência à volta de Cluny. Loulou tinha conhecido Zim no bloco da escarlatina. «Ela era uma mulher mais velha e muito fraca, mas tinha um espírito forte. Não tinha “baissé les bras” [baixado os braços] e eu arranjei maneira de ela vir para o Bloco Dez. Pelo menos ali estaria ao abrigo do pior do campo de concentração e poderíamos olhar por ela.» Ao fim do dia, as três profissionais de saúde francesas juntavam-se na cama de cima do beliche e falavam sobre Zim, Madame de Montfort e as outras camaradas doentes. E depois inventávamos receitas e recordávamos as nossas famílias. Fiquei a saber tudo sobre o irmão de Violette, o Jacques, e a Jacqueline falava sobre a sua irmã. Tínhamos total confiança umas nas outras; mas mesmo assim não falávamos do que tínhamos feito na resistência. Era perigoso. Nunca se sabia quem poderia estar a escutar.

Mory e Spoerry estavam por perto, escondidas por trás do seu biombo. Por vezes, as outras prisioneiras mal viam Mory todo o dia, mas noutras ocasiões ela aparecia com a sua chibata e se estivesse

zangada atacava as doentes com a chibata ou com os punhos, ou cancelava-lhes a comida. Detestava particularmente as mulheres que sujavam a cama, e embora as enfermeiras francesas tentassem limpá-las o melhor que podiam, pouco podiam fazer: só havia duas arrastadeiras para todo o bloco. À medida que as semanas passavam, um número cada vez maior de pacientes morria de disenteria e de outras doenças, não só de tuberculose. «A Mory aterrorizava toda a gente», disse Loulou. A Jacqueline disse que ela até aterrorizava o Treite. Mas devo dizer que foi sempre reservada comigo. Ambas mantínhamos as distâncias. Era muito ambíguo. Muito bizarro. Ela nunca me fez pessoalmente mal. Quando foi o meu dia de anos, até assinou um postal que a Violette tinha desenhado. Nunca compreendi porque é que ela se comportava daquela maneira comigo, porque eu não tinha poder no campo, e era ela que tinha o poder. Com outras era sempre muito agressiva, particularmente para com as judias. Eu perguntava-me, porque é que ela se comporta assim?

Quem Mory e Claude tratavam pior eram as mulheres «loucas», diz Loulou. O trio francês não tinha autorização para entrar no Idiotenstübchen do Bloco 10, sobre o qual só Mory tinha controlo, embora frequentemente mandasse Claude à sala sossegar as mulheres. «A Claude faria tudo pela Mory. Eu acho que ela tinha muito medo — de tudo no campo. Algumas pessoas sentiam-se tão aterrorizadas que reagiam assim. Tornavam-se presa fácil. E não se esqueça de que a Mory tinha poder e encanto.» Loulou diz que nunca sentiu esse tipo de medo no campo. Conversávamos na marquise soalheira da sua casa de Bordéus. Perguntei-lhe porquê. «Talvez porque eu tivesse visto mais da vida. Já tinha visto morrer pessoas.» Fez uma pausa. «E tinha a minha fé. Mas tenho de dizer que houve dias no campo em que tive dificuldade em rezar.» Loulou guardou o postal de aniversário que Carmen e as outras assinaram: «À Dra. Loulou, pelos seus sorrisos e pelo seu otimismo para com todas as suas pacientes, neste pedaço de papel damos-lhe um pedaço dos nossos corações.» E o postal estava assinado:

«Violette, Jacqueline, Carmen e Claude.» O primeiro Idiotenstübchen, descrito por Sylvia Salvesen, ficava perto da Revier principal. O novo, no Bloco 10, provavelmente foi estabelecido no verão de 1944, quando aquele bloco se tornou um «bloco de morte». Sylvia viu seis mulheres na «sala das lunáticas» original; agora havia pelo menos cinquenta. Treite fazia a seleção das mulheres para essa sala, mas, como nunca mostrava os registos a ninguém, o nome das «idiotas» raramente era conhecido, a não ser que uma das prisioneiras que trabalhavam no bloco viesse a sabê-lo. Por exemplo, Carmen Mory recordava-se de uma belga chamada Nelly Decornet ser internada na sala das loucas simplesmente por ter um tique nervoso. Treite fazia experiências para averiguar o que punha as pessoas «loucas». Num caso, fez uma autópsia a uma mulher que se tinha matado atirando-se para a vedação eletrificada. A norueguesa Nelly Langholme recorda um outro tipo de experiência, que, provavelmente, foi também conduzida por Treite. No seu bloco, Nelly tornara-se amiga de uma jovem polaca que falava norueguês fluentemente. Chamava-se Joanna, e na Polónia tinha estudado língua e literatura norueguesas. Era bastante nova e muito, muito inteligente. Por isso, ficou encantada por nos conhecer a nós, norueguesas genuínas. Falámos sobre Ibsen e tornámo-nos muito boas amigas. Um dia, ela foi levada para a Revier e voltou sem cabelo e com uma enorme cicatriz. Não conseguia falar nem comer. Ela era muito, muito inteligente. Eu acho que fizeram alguma experiência para descobrir o que torna um cérebro bom e depois levaram-na para a matar.

Por vezes, as prisioneiras notavam que uma amiga ficava «louca» e subitamente desaparecia. Micheline Maurel recordava-se de isso ter acontecido às gémeas Marie e Henriette Léger. Micheline tinha-se tornado amiga das gémeas, que tinham trinta e poucos anos, quando chegaram juntas a Neubrandenburg, provavelmente na primavera de 1944. Disseram a Micheline que tinham sido presas por escreverem um livro a louvar o exército francês. «Elas eram um pouco estranhas e uma não fazia nada sem a outra, mas eram amigas da máxima confiança. Uma delas enlouqueceu e foi enviada de volta para

Ravensbrück. A seguir, a outra perdeu o juízo e também ela foi mandada de volta.» Henriette foi a primeira a ser recambiada para Ravensbrück; sabemo-lo porque o seu boletim de saúde do campo de concentração é um dos poucos ainda existentes e indica que ela morreu em 7 de junho de 1944 de tuberculose, provavelmente no Bloco 10. A sua gémea, Marie, que «não fazia nada sem a irmã», foi mandada mais tarde para o Bloco 10, para a sala das «lunáticas», e foi aí vista por Loulou Le Porz, que se lembra bem dela. Ela e a sua gémea eram filhas de um notário da Normandia. A seguir viveram em Fontainebleau. Mas a moça não era louca. Tinha, talvez, uns modos um pouco especiais. Quando se vive naquelas condições, algumas pessoas reagem de formas estranhas. Mas sempre me surpreendeu que não houvesse mais problemas mentais no campo de concentração do que havia. A resistência dava às mulheres um caráter forte, talvez fosse isso.

Treite recordou no seu julgamento que ao princípio o Idiotstübchen do Bloco 10 estava dividido em dois, um lado para as «lunáticas perigosas» e o outro para as restantes, mas quando Marie Léger foi internada ali havia já tantas «idiotas» que a divisória foi retirada para criar mais espaço; no entanto, como os números continuaram a aumentar, a sala foi transferida, dessa vez para o lado do cubículo ocupado por Mory e Spoerry. Isso não agradou a Mory, que exigiu que a mudassem, porque o Idiotenstübchen interferia com o seu espaço, embora só tivesse quatro metros por três e tivessem de caber nele cinquenta mulheres. O Idiotenstübchen tinha uma janela entaipada e não tinha mobília nem nada no chão. As rações eram metade das que recebiam as outras prisioneiras. Davam-lhes de comer duas vezes por dia, mas uma grande parte da comida entornava-se. As pacientes tinham a cabeça rapada. Cada manhã, permitiam-lhes sair uma a uma para irem aos balneários e às latrinas, acompanhadas por uma polícia do campo, usualmente com Mory e Spoerry a observarem-nas. As que saíam da fila apanhavam chicotadas e murros. Durante o resto do dia e da noite, as mulheres ficavam fechadas; tinham de fazer as suas

necessidades onde se encontravam sentadas ou de pé. Cada manhã, dois ou três cadáveres eram tirados dali e atirados diretamente para uma carroça e de duas em duas semanas um grupo de «lunáticas» era levado em camiões. Havia distúrbios constantes. Quando o ruído aumentava, Mory arrastava para fora as culpadas, chicoteava-as e mandava vir camisas de forças. Jacqueline Héreil, Violette Lecoq e Loulou Le Porz recordavam-se de em outubro de 1944 Mory ter arrastado para fora da sala uma mulher polaca que estava coberta de excrementos. Ela arrastou a mulher para o balneário, onde a encharcou com água fria durante tanto tempo que no dia seguinte ela morreu. Anne Spoerry ajudava Mory a fazer tudo aquilo. «A Claude estava sempre atrás da Mory», disse Loulou. No seu testemunho, Mory disse que foi Treite quem ordenou que fossem dadas meias rações às mulheres e que lhes rapassem a cabeça. Disse que nunca quisera encarregar-se das lunáticas, porque não era possível controlar cinquenta mulheres fechadas numa sala como aquela. Era por isso que tinha pedido as camisas de forças, mas não havia nenhumas. Tentou numa ocasião «atar as mulheres dentro de um cobertor para as controlar», mas não resultou, e elas começaram a espumar da boca. No seu testemunho, Treite teve de concordar que Mory protestara por a encarregarem das lunáticas. «Ela pediu repetidamente para ser transferida», disse ele. Perguntei a Loulou como eram realmente as coisas nessa sala e ela pareceu reticente. «As mulheres encontravam-se num estado terrível. Era repugnante. Um estado de total desgraça como não pode imaginar. Elas não podiam sair da sala. Outras prisioneiras podiam pelo menos andar pelo bloco, mas as mulheres na sala das loucas nunca podiam sair — só nos camiões que vinham buscá-las para as levar embora. Já viu os desenhos da Violette?» Pegou num bloco de desenho que estava pousado em cima da secretária e que se abriu na página intitulada «Ratazanas e Abutres». Vê como as ratazanas eram grandes. Saíam à noite no balneário onde todos os corpos estavam empilhados. E nós tentávamos escorraçá-las, mas elas voltavam

muito depressa. Uma vez, uma das nossas mortas reanimou-se. Alguém a tinha levado para ali demasiado cedo e a Violette veio a correr do balneário a gritar: «Mais dis donc! Há uma mulher morta que está sentada na casa de banho e a falar.» Havia situações que eram tão grotescas que nós tínhamos de nos rir. Mas não estávamos tranquilles.

Esfrega o polegar ao indicador. «Quando a chaminé lançava o seu fumo sentíamos o pó no ar. Sabe, era muito fino. E virávamo-nos umas para as outras e dizíamos: “Estão a ver, elas estão outra vez entre nós — as nossas camaradas.”» No final de novembro de 1944, como havia já sessenta e cinco «idiotas» ao todo apinhadas na sala, veio um camião esvaziá-la outra vez. Loulou lembra-se de uma altura, pouco depois de a sala ser despejada, em que Mory apareceu com um grupo de judias eslovacas. As mulheres tinham acabado de chegar e era óbvio o que ia acontecer, porque as guardas nem se tinham dado ao trabalho de lhes dar uniformes do campo de concentração. «Iam deixá-las morrer, ali mesmo naquela sala de fome e de sede. Era essa a realidade nessa altura.» Simplesmente não valia a pena transportá-las para outra parte ou desperdiçar comida com elas. Mas a Mory obrigou-me a examiná-las, porque tinha de haver uma médica para assinar os formulários. Então, ali estava eu, diante de cinquenta avós eslovacas que estavam prestes a morrer, e julguei que enlouquecia. O que é que eu estou a fazer aqui? Não podia falar com elas — elas só falavam iídiche. Tinham todas mais de setenta anos. Suplicámos que nos permitissem dar-lhes comida ou água, mas não tivemos autorização. Estava frio e elas não tinham nada. Não tínhamos autorização para entrar na sala e elas morreram uma a uma. Numa semana, morreram todas. E eu pensei, porque é que as examinei? Para quê? Devia ter simplesmente escrito: «Estas mulheres são avós e vão deixá-las morrer.» É a minha recordação mais abominável. Sinto-me atormentada por ela.

Semana a semana, os distúrbios na sala das idiotas pioravam, e as presentes recordavam-se de vários horrores, que nos seus testemunhos parecem combinar-se num só grande horror, já que o padrão do que acontecia mal sofria alterações. Segundo Jacqueline Héreil, numa manhã o trio francês descobriu que as «mulheres loucas» tinham andado a atacar-se umas às outras durante a noite e

uma delas tinha o rosto arranhado todo esfacelado. No que talvez tenha sido o mesmo incidente, Mory contou que, quando abriram a porta uma manhã, encontraram mulheres estranguladas; andavam a matar-se umas às outras. Alguém contou que, num outro incidente, cinco mulheres foram encontradas mortas. Mory recordou quando encabeçou um «amotinamento», dizendo a Treite que «isto não podia continuar e as condições deviam ser melhoradas». Loulou e as enfermeiras francesas recordavam-se de uma outra ocasião em que, depois de um distúrbio na «sala das loucas», Mory apelou a que se matassem todas as lunáticas. Pediu a Loulou, a Jacqueline e a Violette que a ajudassem a matá-las. Nessa ocasião, disse Violette, o bloco foi acordado por gritos terríveis durante a noite. «Nós levantámo-nos, assim como a Mory e a Spoerry, e quando entrámos vimos que os gritos vinham de uma mulher, provavelmente russa, que estava a lutar com outra por entre os corpos prostrados. Havia sessenta e sete mulheres na sala nessa noite. A Mory bateulhes com um cinto de couro, mas não conseguiu sossegá-las.» A versão de Mory era que Anne Spoerry veio ter com ela numa manhã e lhe disse que uma polaca, «Paulina», que tinha uma «força hercúlea», matara uma das outras batendo-lhe com a cabeça contra a parede. Mory foi ter com Treite e disse-lhe: «Encontrei mais duas mortas na sala», ao que Treite riu e respondeu, «Mais vale menos duas do que duas mais». Noutra ocasião, segundo Mory, Spoerry levou todas as trabalhadoras do bloco a ver outro cadáver na sala das loucas. Estava terrivelmente mutilado e tinha marcas à volta do pescoço. Parte da cabeça «tinha literalmente sido escalpada, com grandes marcas roxas por toda a parte». Spoerry examinou as mãos de Paulina e debaixo das unhas encontrou-lhe vestígios de sangue. A Oberschwester Marschall foi trazida para ver o que se passara e «achou a situação tão pavorosa como nós». Violette disse que Mory foi ter com o grupo francês e pediu o seu apoio, dizendo que as lunáticas deveriam ser mortas em vez de viverem em tais condições. «Mas nós recusámo-nos a concordar.»

Jacqueline disse que Treite apareceu então e ordenou a Mory que escolhesse as mais loucas, porque ia injetá-las. «Mory escolheu-as e as mulheres desapareceram.» Loulou não se recordava da cabeça escalpada ou dos vestígios de sangue, mas lembrava-se de Paulina, que tinha uma «voz soberba de cantora» e cantou alto toda a noite. «Estava numa espécie de alucinação. Num delírio.» Na manhã seguinte, Mory foi ter com Loulou e trazia uma seringa com alguma coisa. «Disse: “Não podemos continuar assim, temos de a executar.” Eu disse que não podia fazer isso. Ela ameaçou-me. Tentou intimidar-me. Nessa altura, a Claude ofereceu-se para o fazer. A Anne Sporrey pegou naquela seringa e injetou a Paulina mesmo no coração e ela morreu imediatamente.» Pouco depois de Paulina morrer, o Idiotenstübchen foi novamente esvaziado, mas dessa vez não foram só as «idiotas» a serem levadas, mas também muitas das pacientes da Dra. Loulou. Como sempre, as prisioneiras que trabalhavam nos serviços administrativos descobriram antes de todas as outras que estava planeado um novo transporte negro, para o qual eram necessárias listas e se fizeram planos secretos para vir uma comissão médica de Berlim supervisionar as seleções. As seleções iniciaram-se no Bloco 10 e todas as prisioneiras que constituíam o pessoal médico tiveram de estar presentes. Mantinha-se o secretismo máximo usual sobre o destino, mas dessa vez também houve mais perguntas. Não podia ser Majdanek, para onde tinha ido o último transporte com destino às câmaras de gás — esse campo estava agora nas mãos dos Russos. Também não podia ser Auschwitz: as suas câmaras de gás tinham sido desmanteladas antes da evacuação. As prisioneiras dos serviços administrativos receberam simplesmente instruções para escreverem ao lado dos nomes selecionados: «Enviada para um novo campo.» Depois de ser elaborada uma lista, realizava-se a seleção final. Violette Lecoq foi chamada a uma das grandes salas no bloco

principal da Revier, onde tinha sido colocada uma grande mesa por trás da qual se encontravam os doutores Trommer, Treite e Orendi e um «psiquiatra de Berlim». Também presentes, recordou Violette, estavam «a Oberschwester Marschall, Carmen Mory, a Dra. Le Porz, Jacqueline Héreil, Anne Spoerry e eu própria». As listas para a seleção tinham sido preparadas e agora as prisioneiras foram chamadas pelo nome. «Assim começou um desfile com o qual, com um simples gesto, as mulheres eram escolhidas para o transporte ou para regressarem ao seu bloco», disse Violette. Muitos dos nomes eram bem conhecidos do pessoal do Bloco 10. A francesa Marie Léger estava entre elas. Loulou tentou persuadir Claude a usar a sua influência junto de Mory para tirar Marie Léger da lista — só constava dela «porque a Mory a detestava». Mas Claude recusou-se a dar a sua ajuda. Julia Barry, a polícia do campo «britânica» de Guernsey, foi chamada para vigiar as mulheres no Idiotenstübchen na manhã antes da partida e recordaria mais tarde que uma delas era inglesa. «Quando elas passaram, uma jovem falou-me em inglês. Disse que se ia embora agora e que não tardaria a estar em casa. Perguntei-lhe se era inglesa e ela disse: “Claro.” Foi tudo, nunca mais voltei a vêla.» Segundo Violette Lecoq, as prisioneiras selecionadas ficaram no bloco nessa noite, e na noite seguinte, por volta das sete horas, «começámos a vesti-las». Às quatro horas na madrugada seguinte, Bräuning e Binz apareceram no bloco juntamente com a chefe da polícia do campo, a prisioneira Elisabeth Thury, e várias guardas, que começaram a arrebanhar as mulheres e a amontoá-las em camiões. Violette recebeu ordem de acompanhar o transporte até à estação, juntamente com Carmen Mory. Na estação, Violette viu as mulheres serem metidas em camiões de gado «que não continham mais nada a não ser um fardo de palha», com cerca de cinquenta apinhadas em cada camião, vigiadas por um guarda armado da SS. Uma caravana de ciganas partiu ao mesmo tempo. Mesmo então, ninguém sabia ao certo para onde iriam

as mulheres, mas Mory sabia mais do que os outros: disse à Oberschwester Marschall que tinha ouvido dizer que iam para Linz, na Áustria. No seu depoimento no julgamento em Hamburgo em 1946, Percival Treite disse inicialmente que as mulheres foram enviadas para uma clínica de recuperação em Thüringen. Questionado de novo, disse: «Supúnhamos que iam para um hospital psiquiátrico em Linz, mas mais tarde uma enfermeira disse-me que era um transporte para as câmaras de gás.» Só se soube onde exatamente em Linz se processou o extermínio por gás quando os condutores dos camiões da SS prestaram o seu depoimento num julgamento separado, relacionado com o campo de concentração de Mauthausen. Os condutores foram interrogados sobre o extermínio por gás de prisioneiros do sexo masculino no castelo de Hartheim, perto de Linz. O castelo de Hartheim foi um dos primeiros centros de eutanásia por gás, aberto em 1939, e manteve-se operacional como centro de extermínio por gás até 1944.42 Um dos condutores da SS, Georg Bloser, disse que levou tanto mulheres como homens para as câmaras de gás no castelo de Hartheim. Recolhia-os numa estação local. «Encontravam-se sempre num estado terrível. Quando eu chegava a Hartheim, o pessoal lá levava-os. Por vezes, conduziamme a uma sala de espera onde me davam uma chávena de chá.» Karl Wassner, um funcionário do crematório no campo de concentração de Gusen, perto de Ravensbrück, também acompanhava os prisioneiros até ao castelo de Hartheim, e numa ocasião, enquanto esperava, olhou para dentro da câmara de gás. «Espreitei por um postigo. Via que os prisioneiros já estavam deitados naquela sala. Era a câmara de gás e estava iluminada. Reparei que lá dentro estavam muitas mais pessoas do que as que tínhamos trazido de Gusen. Observei que havia mulheres entre elas.» Em dezembro de 1944, quando a frente russa se aproximava da Áustria, o castelo de Hartheim foi encerrado por ordem do Führer e a instituição voltou a funcionar como um hospital normal. Os incumbidos da tarefa de destruir as provas do extermínio por gás

foram um grupo de prisioneiros de Mauthausen, entre eles Adam Gołembski, que descreveu o interior do castelo. Da entrada, disse ele, penetrava-se na fortaleza. Por fim, chegavase a uma divisão para fotografias que conduzia a outra divisão que «dava a impressão de ser uma casa de banho; a porta era de ferro fundido, com borracha a toda a volta, e nela havia um pequeno postigo». Dentro havia seis chuveiros. Nessa sala, uma porta dava para outro compartimento, onde se guardavam garrafas de gás e outro equipamento. E havia ainda outra divisão escondida para lá dessa, que era claramente uma espécie de laboratório, porque tinha uma mesa grande. Quando Gołembski chegou a essa divisão, encontrou alguns papéis que pareciam ser um relatório da investigação conduzida num cadáver. Dessa divisão, outra porta levava ao crematório, com duas fornalhas. De novo fora, olhando para a esquerda da entrada, Gołembski encontrou um monte de cinzas com ossos, «o suficiente para encher sessenta baldes». Encontrou também um moinho elétrico para triturar os ossos que restavam depois de os corpos serem cremados. Finalmente, na garagem do castelo «encontrámos roupas de crianças, mulheres e homens — em quantidade suficiente para encher quatro carroças puxadas a cavalos». É impossível dizer quantos dos transportes negros de Ravensbrück foram para Schloss Hartheim, mas o transporte em novembro de 1944 de 120 mulheres — na sua maioria do Bloco 10 — provavelmente foi o maior. O pessoal de Ravensbrück saberia também que este transporte seria o último para a câmara de gás do castelo, que estava prestes a ser desmantelada de vez. A maior parte das mortes no castelo de Hartheim mantém-se anónima, já que quase todos os registos alemães sobre o castelo foram destruídos, assim como os registos do campo sobre os transportes. As únicas vítimas de Ravensbrück cujas identidades são conhecidas são as poucas cujos nomes Loulou Le Porz e o outro «pessoal» do Bloco 10 sabiam. Em 2012, tentei descobrir mais informações sobre as mulheres de

quem Loulou se recordava. Uma delas era Marie Léger e, para me ajudar na minha investigação, o filho de Loulou, Jean-Marie Liard, encontrou um exemplar do livro que levara à detenção de Henriette e Marie Léger. Encontrou-o na Bibliothèque Nationale em Paris. Intitulado Les Voix du Drapeau (As Vozes da Bandeira), o livro é uma coletânea de baladas patrióticas escritas em louvor de heróis militares franceses dos tempos passados e é dedicado «a todos aqueles cuja voz de agonia e de glória nos fala ao longo dos tempos». A introdução, escrita pelas gémeas, fala «daqueles que fertilizaram o nosso solo com o seu sangue sagrado — os heróis de Ypres e de Furnes», e implora aos leitores que se lembrem de «todas as crueldades e traições da Grande Guerra e do uso terrível de gases nessa guerra». Marie e Henriette dedicaram o seu livro «àqueles cujos pés passaram pela “estrada de sangue” abaixo».

40 Mory, em particular, odiava Elisabeth Thury, que, como chefe da polícia do campo, era a única outra prisioneira com real poder. Nos seus interrogatórios depois da guerra, Mory dedicou várias páginas a atacar Thury, implicando-a no «caso das joias francesas» — uma trapaça que envolveu o roubo de joias de prisioneiras —, no qual Thury tinha levado a melhor sobre Mory.

41 Germaine Tillion diria mais tarde que Annie de Montfort tinha chamado um «motorista imaginário» minutos antes do fim.

42 Calcula-se que cerca de 18 200 deficientes físicos e mentais alemães e austríacos tenham sido exterminados por gás no castelo de Hartheim. Uma das primeiras vítimas foi Hans Rosenberg, primo direito de Vera Atkins, a oficial do SOE, que foi levado de um hospital psiquiátrico em Viena para o castelo de Hartheim em 1940.

SEXTA PARTE

CAPÍTULO 30 HÚNGAROS Eva Fejer estava na escola em Budapeste em outubro de 1944 quando anunciaram que todas as meninas judias da sua turma tinham de ir cavar trincheiras porque os Russos vinham aí. «Fomos levadas para um campo e tivemos de começar a cavar. Dormíamos num campo de futebol ao relento. Alguns dias depois, mandaram-nos marchar para oeste.» A ordem de outubro veio do gabinete de Adolf Eichmann, o homem enviado para a Hungria depois da invasão alemã seis meses antes para implementar aquele último estádio da Solução Final, capturando os 750 000 judeus do país e enviando-os para Auschwitz. Havia pouco tempo: os Russos estavam a aproximar-se. Quando os judeus húngaros começaram a ser detidos nos finais de março de 1944, a maior parte não estava preparada. Estavam a par da chacina de outros judeus da Europa, mas até àquele momento a Hungria, um país aliado da Alemanha, estivera protegida. O pai de Eva Fejer, um destacado advogado, disse à sua família: «Não vai acontecer aqui. A lei húngara não o permitirá.» Franz Fejer era um patriota húngaro e também um patriota alemão. Toda a família falava alemão; Eva teve uma ama alemã e aos dez anos já falava fluentemente essa língua. A família não tomou quaisquer precauções. «Eu acho que os meus pais simplesmente não queriam aceitar. E o meu pai não queria assustar a família, por isso não nos avisou. Queria que desfrutássemos do que nos restava da infância.» Dessa vez, no entanto, o mundo exterior reconheceu os sinais. No momento em que Hitler invadiu a Hungria, chegou às capitais ocidentais o aviso de que os judeus húngaros estavam prestes a serem também eles exterminados. Berlim mal tentou ocultá-lo. Os Suecos enviaram delegados para emitir passaportes e documentos

de proteção para os judeus e a Cruz Vermelha Internacional tentou oferecer vestuário e alimentos aos que tinham sido forçados a ir para campos de detenção, mas, entretanto, dezenas de milhares de judeus estavam a ser enfiados em comboios com destino a Auschwitz, sendo um dos primeiros o pai de Eva. «Ele tinha sessenta e um anos, mas, como estava em boa forma», disse Eva, «nós tínhamos a esperança de que sobrevivesse. Era um ótimo patinador e um pianista brilhante. Por vezes, tinha-se a esperança de que alguém conseguisse sair numa bolha de ar ou coisa do género, mas nem uma pessoa sequer do transporte dele voltou.» Até julho de 1944, 430 000 dos 750 000 judeus da Hungria já tinham sido capturados e enviados para Auschwitz, onde todos menos cem mil foram assassinados nas câmaras de gás. Os únicos judeus húngaros que conseguiram evitar o transporte para Auschwitz foram os considerados aptos a trabalhar em fábricas de armamento, que foram enviados para campos de concentração na Alemanha. Os húngaros que chegavam a Auschwitz eram também submetidos a uma triagem destinada a determinar se poderiam ser mão de obra escrava. Em julho de 1944, quatro meses depois do início de detenção de judeus por ordem de Eichmann, as deportações foram suspensas. Miklos Horthy, o líder fantoche dos nazis em Budapeste, transferiu a sua lealdade para os Aliados, recusando-se a cooperar com mais expulsões de judeus. Os 200 000 judeus que ficaram — na sua maioria em Budapeste — pareciam ter sido poupados, entre eles Eva Fejer e a sua mãe. No início de outubro, no entanto, o governo de Fejer caiu e Eichmann mostrou-se decidido a retomar o processo. Nessa altura, os bombardeamentos dos Aliados já tinham destruído linhas férreas e comboios por toda a Hungria e a Polónia: já não podia recorrer-se ao transporte ferroviário. Além disso, a frente soviética avançava com tal rapidez que até mesmo Auschwitz, no Sul da Polónia, estava a preparar-se para a evacuação; as câmaras de gás estavam prestes a ser encerradas e o campo deixara de receber mais judeus.

Abandonar a captura de judeus, no entanto, não era uma opção que fosse contemplada; Hitler ordenara que todos os judeus fossem removidos da Hungria antes da chegada do Exército Vermelho. A única maneira de Eichmann o conseguir seria obrigar os restantes 200 000 homens, mulheres e crianças de Budapeste a uma marcha forçada para a fronteira com a Áustria, um percurso de cerca de 320 quilómetros. Foi em 16 de outubro, quando a geada já cobria o solo, que mulheres e meninas entre as idades de dezasseis e quarenta anos receberam ordem de partida. Eva conseguiu meter na sua mochila das Guias — com «Jamboree de 1939» estampado — alguma comida e peças de vestuário, que lhe tinham sido trazidas às escondidas pela sua ama alemã. Mas não conseguiu voltar a ver a sua mãe antes de partir. Eva não sofreu tanto como a maioria na marcha, diz ela. Tinha um curso de primeiros socorros e era desportiva e forte. «O meu pai costumava levar-me a aprender a fazer tudo sozinha. Consertava-me a bicicleta a primeira vez, mas eu tinha de ver o que ele fazia e consertá-la eu na vez seguinte.» Também conhecia a estrada por onde seguiam, porque a família percorria-a antes da guerra para visitar parentes do outro lado da fronteira. Ela marchava durante todo o dia e dormia em campos de futebol à noite. Fazia frio, mas Eva trazia roupa interior quente e tinha calças de esquiar no saco. A maior parte dos prisioneiros marchava com a família ou em pequenos grupos. Margit Nagy insistiu em vir com as suas filhas, Rosza e Marianne. «Eu acho que ela sabia que poderíamos morrer e queria que estivéssemos todas juntas. Fomos de mãos dadas todo o caminho», disse Rosza. As meninas que iam sozinhas eram «adotadas» por outras famílias, mas Eva preferia marchar só. Guardas da organização fascista Cruz da Seta espancavam quem se desgarrasse dos grupos. Os transeuntes ficavam a olhar fixamente para as pessoas e por vezes ofereciam-lhes comida. Nas montanhas da Suábia, um homem pôs-se a andar ao lado de Eva e a fazer-lhe perguntas sobre o seu pai.

Disse-me que foi ajudante do meu pai na Primeira Guerra Mundial e que o meu pai foi bom para ele. Disse: «Então, tu vens comigo e eu trato de que fiques bem.» Eu podia ter ido, já que ninguém estava realmente a ver. Mas julguei que só íamos para um campo de trabalho e que eu seria suficientemente forte para isso. Acreditava na minha própria força. Foi uma decisão difícil, mas eu estava preocupada com a minha mãe. Não queria que lhe acontecesse nada se eu fizesse algo de errado.

Depois de o ajudante do seu pai lhe encher o saco com marmelos, Eva prosseguiu na sua marcha. Vários dias depois, chegaram ao Danúbio e desceram por pranchas para barcos. «Havia pessoas que escorregavam e caíam das pranchas. Víamos os corpos afogados na água, mas eu continuei a andar e não caí.» Algures perto de Viena, os prisioneiros foram metidos em vagões fechados de comboios e os comboios prosseguiram viagem para oeste. «Um guarda perguntou se alguém falava alemão e eu disse logo que sim, por isso passei a ser a sua intérprete e fiquei sentada num parapeito de onde podia ver lá para fora. Como eu sabia orientar-me pelo Sol, disse às outras em que direção nos encaminhávamos.» Quando o comboio parou em Jena, a sudeste de Leipzig, os homens desceram do comboio e foram enviados para Buchenwald, mas as mulheres ficaram. «Passámos por um castelo medieval e eu pensei que tinha de levar os meus pais lá depois da guerra.» Cerca de dois dias depois, o comboio parou numa minúscula estação chamada Ravensbrück. «Eu tinha ouvido falar de Auschwitz, de Dachau e de Mauthausen, mas não de Ravensbrück.» Depois da partida da caravana de Eva de Budapeste, a fase final das marchas forçadas da Hungria acelerou-se. O tempo piorou e julga-se que dos muitos milhares de mulheres que marcharam para Ravensbrück pelo menos um terço pereceu. Um delegado da Cruz Vermelha Internacional, enviado para observar o êxodo, ficou transtornado: «A ideia de ficar ali, sem meios, impotente para fazer seja o que for, é quase impossível de suportar», escreveu no seu relatório para Genebra. As deportações de outros países do Leste com fronteira com o Reich sofreram igualmente uma aceleração. Hitler estava a aproveitar

a sua última oportunidade de esvaziar os campos de concentração e os guetos antes do avanço dos Russos. Esses judeus estavam ainda a ser deportados em comboios que cruzavam o que restava das terras ocupadas pelos nazis, frequentemente parando dias e dias em desvios ferroviários quando as linhas eram bombardeadas ou as comunicações interrompidas. Num desses comboios, encontrava-se Basia Zajączkowska, uma jovem de dezanove anos que tinha sobrevivido ao gueto de Kielce, na Polónia Central, porque trabalhava numa fábrica de pólvora. À aproximação dos Soviéticos, os trabalhadores foram enviados para Auschwitz. Basia escapou para a floresta, mas foi apanhada e enviada para Ravensbrück, porque nessa altura o campo de concentração de Auschwitz estava a começar a ser desativado. Em 2 de novembro de 1944, Himmler suspendeu o extermínio nas câmaras de gás em Auschwitz, mas no caos continuaram a aparecer alguns comboios com mais prisioneiros, entre eles um comboio da Eslováquia cujos passageiros chegaram num profundo terror, depois de ouvirem um vívido relato do que os esperava — dois homens eslovacos que escaparam de Auschwitz e conseguiram voltar para casa tinham-lhes falado das câmaras de gás antes da partida do seu transporte. À chegada a Auschwitz, uma das eslovacas perguntou até a um homem da SS onde ficavam as câmaras de gás. Ele respondeu: «Já não estão em funcionamento. Não vais ser exterminada por gás.» As eslovacas foram metidas noutro comboio, que chegou em 10 de novembro a Ravensbrück, onde, mais uma vez, contavam ser exterminadas em câmaras de gás. As mulheres foram conduzidas na direção da tenda em Ravensbrück, mas recusaram-se a entrar. «Ao entrarem na tenda, as mulheres estavam convencidas de que estavam a entrar numa câmara de gás», disse Halina Wasilewska, a Stubova da tenda. «Muitas delas pediam ao pessoal da tenda que lhes dissesse a verdade — quando poderiam esperar ser exterminadas por gás? — e não acreditaram realmente quando lhes foi assegurado que não havia câmaras de gás em Ravensbrück.

Apesar de nessa altura não haver realmente câmaras de gás em Ravensbrück.» Com a chegada de milhares de judias no final do outono de 1944, Ravensbrück ficou mais uma vez sobrelotado; a degradação e a doença alastraram-se a uma escala inimaginável. Primeiro, todas as recém-chegadas foram metidas na tenda, onde, como já não havia palha nem cobertores, as mulheres que tinham marchado à neve se viram forçadas a dormir em cima de blocos de cimento frios e húmidos. A maioria das que vieram de Budapeste tinha contraído pneumonia, gangrena e queimaduras do frio na estrada. Muitas apresentavam também sintomas de tifo e sofriam de febres altas, vómitos e diarreia. Os baldes transbordavam. A estrutura de lona fedia. As mães tentavam alimentar os filhos e alimentar-se também a si próprias. Por entre aquele horror, eclodiu um surto de tifo nunca antes visto ali. A SS procurou desesperadamente controlar aquela doença fatal vacinando não só o pessoal da SS mas também prisioneiras-chave — enfermeiras e pessoal administrativo, algumas das quais se encontravam num estado demasiado debilitado para aguentar a vacina e contraíram tifo e morreram. Foi instituída uma nova regra segundo a qual poderiam ir à consulta à Revier trinta pacientes da tenda por dia, mas esse número era demasiado reduzido e as restantes eram recambiadas para morrerem na tenda. Os cadáveres misturavam-se com as pessoas vivas e não era possível retirá-los com facilidade. Quando o grupo da recolha de cadáveres veio à tenda, recusou-se a levar os corpos, porque eles não tinham o número do campo de concentração. Muitas das prisioneiras na tenda tinham sido admitidas sem essa identificação e morreram antes de serem atribuídos os números. Segundo Halina, desencadeou-se um novo fenómeno específico da tenda — «conversas febris de pessoas agitadas, queixas, lutas por espaço para dormir, gemidos e gritos das doentes, berros na multidão a criarem uma barulheira constante e ensurdecedora, dia e noite sem

parar». No entanto, o «bloco» da tenda tinha mesmo assim de comparecer à Appell como todos os outros. As prisioneiras que não conseguiam segurar-se de pé eram deitadas de costas em filas de dez para serem contadas. Depois de permanecerem alguns dias na tenda, as primeiras húngaras a chegarem foram transferidas para blocos, sendo as mais saudáveis enviadas para fábricas de armamento em subcampos. Logo a seguir, chegou de Auschwitz um grupo de mil polacas (arianas desta vez, observou Halina), que voltou a encher a tenda. O que agravava ainda mais as coisas era que havia um número crescente de mulheres doentes a regressarem de campos-satélites. E não eram só os subcampos de Ravensbrück que enviavam as suas mulheres doentes; subcampos mais distantes, que há muito tempo tinham sido postos sob a administração de campos de concentração de homens como Buchenwald, estavam também a recambiar as suas doentes (e grávidas) para Ravensbrück. Há muitos meses que esses campos enviavam as suas trabalhadoras exaustas para Auschwitz, mas essa opção deixou de estar disponível. Mais perto, a Siemens estava também a recambiar para o campo principal um número crescente de mulheres inaptas para o trabalho. Os poucos relatórios mensais com pormenores sobre as alterações de pessoal que ainda existem revelam um aumento extraordinário dessas alterações em 1944. Em outubro, só da oficina dos últimos retoques, a empresa enviou cinquenta prisioneiras inaptas para o campo principal. Compare-se com uma média de três recambiadas dessa mesma pequena secção dezoito meses antes. As mulheres rejeitadas pela Siemens iam diretamente para os blocos da Revier ou integravam-se em grupos de trabalho no exterior. Betsie ten Boom, recambiada em outubro, trabalhou na terraplanagem durante mais algumas semanas antes de ser internada na Revier, onde morreu no início de dezembro. Corrie viu o corpo nu da sua irmã num colchão: «Uma escultura de marfim antigo, via-lhe o contorno dos dentes através da pele.» Voltou a avistar o corpo de Betsie empilhado com outros cadáveres contra a parede do balneário

da Revier, «com os olhos fechados como se a dormir e as covas fundas da fome e da doença simplesmente desaparecidas. Até o seu cabelo estava graciosamente arranjado, como se um anjo tivesse tratado dela». Para os gerentes da Siemens, substituir mulheres exaustas era mais difícil do que nunca, mas chegavam agora em catadupa ao campo jovens judias, algumas ainda ágeis e suficientemente fortes para trabalharem. Como a Siemens empregara mulheres judias nas suas fábricas em Berlim no início da guerra, antes das deportações em massa, e dava valor às suas capacidades, quando Basia Zajączkowska, a sobrevivente do gueto de Kielce, apareceu na «feira de gado», foi rapidamente posta a fabricar componentes elétricas. Durante os meses de novembro e de dezembro continuaram a chegar de leste mais mulheres judias; a maioria tinha de lutar para se manter viva na tenda. Uma adolescente chamada Sarah Mittlemann entrou na tenda e viu «mulheres a toda a volta a ter ataques de histeria e a baterem umas nas outras. Não havia espaço para ninguém sequer se deitar». Chegou um novo transporte de judias polacas que falavam iídiche, que as judias húngaras não compreendiam. Selma Okrent, outra jovem húngara, recordava-se do cheiro na tenda. Quando ela estava na fila para a sopa, alguém disse: «Se não te portares bem, também ficas a cheirar assim.» Levaram as minhas roupas e partiram-me os brincos para mos tirarem. Deram-me um triângulo vermelho e o número 79 706 e disseram-me para ter cuidado com as prisioneiras de triângulo verde, porque eram ladras. Fizeram-me trabalhar a puxar pedras e por vezes tínhamos de carregar com as mortas. Eu tinha uma saia e estava a mexer na bainha quando senti qualquer coisa nela; era a aliança de casamento de alguém.

Selma e Sarah conseguiram integrar-se em bons grupos de trabalho, assegurando-se de que os Meister as escolhiam primeiro. Foi o que Eva Fejer fez mal chegou. O homem da Daimler-Benz escolheu-a logo. «Ele perguntou quem falava alemão e eu disse que falava, e então ele disse: “Sim, tu serves”, e eu tornei-me a sua

tradutora na fábrica em Berlim.» Antes de partir de Ravensbrück, Eva avistou a sua melhor amiga, que estava a chegar no transporte seguinte de Budapeste, e gritou-lhe: «Martha, faças o que fizeres, sai daqui mal possas», mas ela não acreditou em mim e morreu. Rosza e Marianne Nagy conseguiram também «sair» para uma fábrica de armamento perto de Chemnitz, mas no último momento a sua mãe, Margit, que estava com elas desde a partida de Budapeste, foi obrigada a ficar. «Meteram-nos na parte de trás de um camião e levaram-nos, e foi essa a última vez que a vimos.» Costumavam ser as recém-chegadas que fitavam incrédulas as mulheres destroçadas no campo de concentração. Agora era o contrário. Loulou Le Porz viu um grupo de novas húngaras. «Uma correu para mim a suplicar: “Bitte Schwester, bitte Schwester.” Eu via pelo seu rosto que ela ia morrer e desatei a correr, porque não podia dizer-lho.» Ao descreverem este período, algumas sobreviventes falam de verem grupos de recém-chegadas, usualmente judias, simplesmente a vaguearem perdidas pelo campo — talvez separadas das outras prisioneiras do seu transporte. Um dia, Nelly Langholm viu um desses grupos ao voltar da cozinha, onde tinha ido buscar água para as mulheres da oficina dos tecidos. Desde o surto de tifo, a cozinha era o único local onde havia água própria para consumo. Eu tinha enchido o jarro e estava a voltar quando vi aquele grupo de mulheres — talvez fossem húngaras ou polacas. Encontravam-se num estado lastimável e tinham obviamente acabado de ser trazidas de algum lugar e era provável que já não comessem nem bebessem há dias. Viram o meu jarro de água e apinharam-se à minha volta de tal maneira que a maior parte da água se entornou, e elas atiraram-se ao chão para tocarem com os lábios numas gotas. Eu recuei e fiquei a olhar para elas. Quando me virei para ir embora, vi uma mulher no chão e fitei-a. Ela estava a dar à luz um bebé, ali mesmo, e eu fiquei a ver. Eu só tinha vinte anos e nunca tinha visto uma mulher dar à luz, e ela estava a dar à luz ali, na imundície da rua do campo de concentração.

Nelly não voltou a ver aquele grupo e não sabe para onde ele foi. «Mas o bebé não foi a lado nenhum. O bebé morreu ali mesmo. Disso tenho a certeza.»

Foi por volta dessa altura que Violette Lecoq deparou com um grupo de mulheres judias quando ia à Revier recolher fichas. Vi no pátio cinco carrinhos de mão que eram normalmente usados para acartar estrume; em cada um estava uma mulher. Eram judias que tinham tombado de exaustão na estrada no regresso do trabalho na Siemens e que tinham sido espancadas quase até à morte pelas Aufseherinnen encarregadas delas. As suas camaradas foram forçadas a pegar nelas e a levá-las de volta para o campo. A Oberschwester proibiu que lhes tocássemos. Duas delas estavam mortas quando as vi, as outras estavam prestes a morrer.

Em dezembro começou a nevar, e chegou um grupo de mulheres só envoltas em palha. As prisioneiras do campo de concentração ficaram a olhar para as mulheres de palha; assustavam-nas, e tentaram manter-se afastadas. Até Percival Treite se sentiu espantado com a visão de mulheres vestidas de palha, dizendo mais tarde que o estado em que se encontravam essas 1300 recémchegadas era o pior do que ele já alguma vez tinha visto. Eram principalmente judias húngaras que tinham sido deportadas anteriormente nesse ano e levadas primeiro para Auschwitz e daí para um subcampo chamado Frankfurt Walldorf, no Oeste da Alemanha, para trabalharem em condições atrozes na construção de um aeroporto. Quando as forças americanas chegaram a Frankfurt em novembro de 1944, o campo de concentração foi encerrado e as mulheres exaustas foram levadas para Ravensbrück. Uma das que observaram as «mulheres de palha» de perto foi Julia Barry, que descreveu o que viu no seu depoimento no julgamento de crimes de guerra de Hamburgo. Encontrava-se a patrulhar a entrada quando as viu pela primeira vez. «As mulheres chegaram vestidas só com palha, que traziam atada ao corpo.» Julia observou as mulheres muitas vezes. «Estavam constantemente a morrer pelo campo. Essas mulheres, vi-as tombarem no campo e morrerem.» Reparou também que as mulheres eram regularmente atacadas por duas prisioneiras alemãs — não por guardas — e deu-se ao trabalho de investigar. Uma, ficou a saber, era uma polaca chamada Anita. Tinha cerca de vinte e seis anos, alta, uma lésbica vestida à homem, e tinha o

cabelo cortado a essa moda. A outra prisioneira era uma rapariga alemã chamada Gerda. Era gorda, tinha cerca de vinte e dois anos, cerca de um metro e sessenta e um aspeto muito ordinário. Ambas as mulheres eram selvaticamente brutais para com as judias que chegavam e bateram-lhes sem misericórdia com paus e qualquer outra coisa que tivessem à mão em numerosas ocasiões.

Ao contrário de outras prisioneiras, Julia Barry — que era ela própria judia húngara —, em vez de recear estas recém-chegadas, tentou contactá-las. «Conheci uma senhora húngara chamada senhora Sebestyn. Ao chegar, tinha as pernas num estado terrível devido às provações que passara nas condições invernosas ao sair da Hungria.» A Sra. Sebestyn foi mandada trabalhar no exterior «e protestou que não podia ir». Mesmo assim, teve de ir «e mais tarde perdeu ambos os pés e morreu no hospital». Usualmente, os depoimentos de Julia Barry eram pormenorizados e francos, em parte porque como mulher-polícia podia observar muito do que se passava e também porque, ao contrário de outras mulheres-polícia do campo, estava mais do que disposta a descrever o que vira, que nos últimos meses de 1944 foi morte. Julia tinha a certeza de que os acontecimentos que presenciou naquela altura eram «decididamente destinados a provocar a morte». Por exemplo, nos blocos do hospital os médicos da SS «punham numa mesma cama uma paciente com um ferimento no pé e outra com tuberculose ou tifo ou outra doença contagiosa, com o resultado inevitável de ocorrerem duas mortes devidas à doença contagiosa». Julia via cadáveres por toda a parte e parece também tê-los procurado. Na cave da morte, viu cadáveres à espera de serem transportados para a fornalha. Perto do crematório, viu ouro ser extraído dos dentes das mortas. Um pouco mais tarde, viu uma tia do seu marido entre as que chegavam da Hungria. Ouvindo dizer que a sua parente tinha sido levada para um dos blocos da morte, onde deixavam as prisioneiras com disenteria sem comida até elas morrerem, foi investigar. «Tentei ir vê-la, mas a Blockova não me deixou entrar. Nunca mais voltei a ver a tia do meu marido.» Julia também ouvia o que se dizia e transmitiu o que ouvira dizer a

certas pessoas. «Lembro-me de uma mulher me dizer que o seu bebé recém-nascido tinha morrido por ser comido por ratazanas no Bloco Onze.» Numa outra ocasião, ela estava a patrulhar as imediações do crematório e ouviu falar um oficial de alta patente da SS que não reconheceu. Voltou a reparar nele uma e outra vez, por vezes com outro oficial, que também era novo no campo de concentração. Lembro-me de dois oficiais de alta patente. Um deles era um homem chamado Höss, e ouvi-o dizer uma vez que era um desperdício de carvão queimar os corpos das prisioneiras mortas, ou algo do género. Esse mesmo Höss era uma homem alto e magro, de entre quarenta e cinco e cinquenta anos, que usava sempre um casaco forrado a pele. Não era tão mau como o outro oficial, cujo nome não recordo. Esse era alto, forte, tinha entre quarenta e cinco e cinquenta anos — muito bem-parecido e bem vestido. Era um dos homens mais brutais e mais cruéis que eu vi no campo.

Pouco tempo depois, Julia viu mais dois estranhos em Ravensbrück — dessa vez, ambos médicos, que, ficou a saber, tinham vindo «de Auschwitz».

CAPÍTULO 31 UMA FESTA INFANTIL Rudolf Höss, o comandante de Auschwitz, foi transferido para Ravensbrück algumas semanas depois do encerramento das câmaras de gás em Auschwitz. Provam-no registos bancários: em 30 de novembro de 1944, «Höss, Rudolf» depositou 50 marcos num banco de Fürstenberg. Höss não foi o único chefe de Auschwitz a ser enviado para Ravensbrück nos finais de 1944. O outro homem avistado por Julia Barry, «um dos homens mais brutais e mais cruéis que eu vi», talvez fosse o especialista em extermínio por gás Otto Moll, também presente nessa altura, embora também pudesse ser Albert Sauer, um outro ex-comandante de um campo de morte. Provavelmente, um dos médicos avistados por Julia Barry era Franz Lucas, que anteriormente trabalhara na antecâmara da morte em Auschwitz; o outro poderia ser Claus Clauberg, que dirigira as experiências de esterilização de Himmler em Auschwitz. Ambos foram para Ravensbrück no inverno de 1944-45. O súbito aparecimento em Auschwitz de um grupo de exterminadores experientes era sinistro, embora a sua explicação fosse até certo ponto banal: tinham ficado sem trabalho. Os seus campos situavam-se todos mais a leste e tinham sido invadidos pelos Russos ou iriam sê-lo em breve. O programa de extermínio de Auschwitz foi suspenso em 2 de novembro; esperava-se que o Exército Vermelho chegasse a Auschwitz no princípio de janeiro. O Dr. Franz Lucas foi transferido de Auschwitz para o campo de concentração de Stutthof, perto de Danzig (Gdansk), no início de 1944, mas também Stutthof estava prestes a ser tomado. O campo de Riga-Kaiserwald, onde Albert Sauer tinha sido comandante, foi tomado quando o Exército Vermelho conquistou a Letónia em

outubro. Talvez tenha havido também uma razão simples para enviar assim tantos homens da SS desempregados para Ravensbrück: restavam poucos mais campos de concentração para onde ir. Esses eram comandados por oficiais de alta patente que não quereriam colegas ociosos no seu território. Fritz Suhren, o comandante de patente média do campo de concentração de mulheres, não se encontrava numa posição forte para se queixar, embora pareça ter-se sentido incomodado com a chegada desses homens. No entanto, a principal razão para transferir esses homens para Ravensbrück era extremamente sinistra: como especialistas em assassínios em massa, eram necessários para lançar um novo programa de extermínio. Não é coincidência que mesmo antes da sua chegada Himmler tenha emitido uma nova diretriz requerendo um aumento imediato e maciço da taxa de mortes e a construção de uma câmara de gás para atingir esse objetivo. Tal como muitas outras ordens da SS, o édito mais recente de Himmler para Ravensbrück não sobreviveu à destruição de documentos nazis e demorou algum tempo até os seus pormenores serem conhecidos. Quando os primeiros e mais importantes julgamentos de crimes de guerra em Ravensbrück se realizaram em Hamburgo em 1946 e 1947, os factos do extermínio foram certamente revelados, mas não foram apresentadas provas de que a ordem de matar tivesse vindo diretamente de Himmler. De facto, o conteúdo da diretriz ter-se-ia perdido completamente para a História se não fosse Anni Rudroff, uma médica austríaca, que leu a ordem quando trabalhava como secretária para Edmund Bräuning no quartel-general do campo de concentração. Em 1948, quando o último julgamento de Ravensbrück estava a ser preparado, Anni foi encontrada no setor soviético de Berlim por um investigador britânico de crimes de guerra que procurava provas contra Artur Conrad, o carrasco, que ela tinha conhecido no quartel-general. Numa declaração breve mas condenatória, Annie descreveu o papel de Conrad na execução a tiro de mulheres polacas. Numa espécie de

aparte, mencionou a ordem de Himmler. De 5 de janeiro a 16 de dezembro de 1944 trabalhei nos serviços administrativos do campo de concentração. Em outubro, chegou uma ordem de Himmler, que o Schutzhaftlagerführer Bräuning deixou na secretária e que eu li pessoalmente. A ordem era dirigida ao comandante e declarava: «No seu campo, com efeito retroativo de seis meses, têm de morrer 2000 pessoas por mês; Reichsführer SS.» O Schutzhaftlagerführer Bräuning recebeu ordem de construir as câmaras de gás.

Pode dizer-se que o depoimento de Anni Rudroff é o testemunho mais importante sobre Ravensbrück, mostrando que nesses últimos meses da guerra Himmler ordenou pessoalmente que se iniciasse um programa de extermínio em massa no campo de concentração de mulheres. Talvez porque o testemunho de Anni apareceu numa fase tardia da investigação, porque não foi apresentado com grande fanfarra ou porque ela própria desapareceu em seguida — assim como Edmund Bräuning —, a revelação recebeu pouca atenção. Indubitavelmente, não há motivo para duvidar da sua veracidade. O investigador britânico que recolheu o depoimento de Anni sentiu-se claramente impressionado com ela. «Ela jurou, ou antes, afirmou solenemente, a sua veracidade, já que não pertencia a qualquer religião», declarou o major Jozef Liniewski. De qualquer modo, todas as prisioneiras sabiam que devia ter sido emitida uma ordem como essa, porque muito antes de se iniciar o extermínio por gás observaram um aumento maciço das mortes. Além disso, assim como tinha procedido à microgestão de todas os estádios da evolução do campo de concentração, era inteiramente natural que Himmler ordenasse pessoalmente o início do extermínio. Nenhuma prisioneira poderia ter inventado a sua formulação. Himmler queria muito mais do que 2000 mulheres mortas por mês, mas para disfarçar a extensão da chacina requerida camuflou os factos com um pedantismo burocrático característico, ordenando que as mortes tivessem um «efeito retroativo de seis meses». A razão para Himmler ordenar o extermínio é também bem clara. Ravensbrück encontrava-se num estado de descontrolo; as doenças alastravam e ameaçavam também a SS e a comunidade mais

alargada. A ordem tinha de ser restabelecida antes de chegar um novo influxo de mulheres de Auschwitz, cuja evacuação estava prevista para daí a semanas. De que outra forma poderia retomar-se o controlo sem um extermínio em massa? As bocas inúteis já não podiam ser enviadas para câmaras de gás noutros campos. Majdanek e o castelo de Hartheim já tinham encerrado e as câmaras de gás de Auschwitz estavam desativadas. Noutros campos de concentração, já liquidados antes da chegada dos Russos — em Stutthof, por exemplo —, o extermínio em massa processara-se em grande medida através de execuções a tiro ou por afogamento no Báltico. Em Ravensbrück, no entanto, com homens como Höss à mão, o extermínio iria fazer-se por gás. Uma série de campos de concentração localizados em solo alemão — Sachsenhausen, por exemplo — já tinha em tempos posto a funcionar as suas próprias câmaras ou camiões de gás, mas Ravensbrück tornou-se agora o único campo de concentração a ser equipado com uma câmara de gás pela primeira vez, para levar a cabo o extermínio em massa no local nos meses finais da guerra. Tudo o que acontecia naquela fase resultava claramente da ordem vista por Anni Rudroff. A capacidade do crematório foi aumentada. Desbravou-se um espaço onde as vítimas poderiam ser mantidas enquanto se processava o extermínio por gás; o local escolhido foi o Campo de Juventude de Uckermark, a cerca de oitocentos metros e escondido nos bosques. No início de dezembro, o Campo de Juventude já tinha sido evacuado; as adolescentes e as mulheres jovens foram libertadas ou enviadas para Ravensbrück. Ao mesmo tempo, iniciou-se a construção de novas casernas para alojar as trabalhadoras da Siemens; no futuro, passariam a dormir na própria fábrica. Isso era necessário para que as mulheres da Siemens não passassem pela câmara de gás, que se localizaria perto do crematório junto ao muro sul — por outras palavras, ao longo da estrada que elas percorriam para ir para o trabalho. O testemunho não revela exatamente quem chefiou a instalação da

câmara de gás e precisamente quando. Existem provas que sugerem que já desde outubro de 1944 — por volta da mesma altura em que chegou a ordem de matar de Himmler — estava delineado um plano para construir uma sofisticada câmara de gás de betão armado. Um eletricista chamado Walter Jahn, prisioneiro no campo dos homens, disse que o encarregaram de elaborar os planos. Essa câmara seria construída contra o muro norte do campo de concentração, disfarçada de Neue Wäscherei — o novo balneário. Jahn, um comunista alemão preso em 1941, era um improvável arquiteto de câmaras de gás, mas era um talentoso eletricista cuja competência já tinha sido aproveitada pela SS para projetos que incluíam consertar os rádios dos carros de Oswald Pohl. Foi enquanto prestava o seu depoimento no julgamento de Pohl que ele descreveu os seus planos para a câmara de gás, cuja construção foi adiada, disse ele, aparentemente por falta de materiais, que era difícil obter nesta fase da guerra. Houve também alguma disputa sobre quais os elementos da SS que deveriam supervisionar a construção. Um outro facto interessante revelado por Anni Rudroff foi que Edmund Bräuning se recusou a implementar a ordem de Himmler de organizar o extermínio por gás, e sabemos que ele deixou o campo de concentração em janeiro sob uma nuvem negra numa altura em que a própria Anni estava fechada no bunker, presumivelmente porque sabia demasiado. Por consequência, foram certamente Rudolf Höss, Albert Sauer e Otto Moll que entre si selecionaram o novo local junto ao crematório e concordaram — pelo menos como solução provisória, enquanto o Neue Wäscherei estava a ser construído — que se edificasse uma estrutura simples que não exigisse materiais de construção. Essa câmara de gás temporária seria feita a partir de um velho barracão de ferramentas. Foi Hanna Sturm quem construiu as divisórias e martelou os pregos. Enquanto o fazia, viu botijas de gás Zyklon B (ácido prússico) pousadas ao lado do barracão. Depois de Hanna completar o seu trabalho, seguiu-se o grupo das pinturas, como a francesa Suzanne Hugounencq explicou: «Passámos diante do crematório, em frente do qual se encontravam

corpos à espera de serem queimados», recordou. «Nessa manhã, havia uns homens muito importantes da SS por ali, com vozes altas e barrigas gordas, e tinham a arrogância de pessoas com grande poder.» A chefe civil do grupo das pinturas recebeu instruções dos homens gordos — «muito submissamente, mas com apreensão» — e a tarefa de pintar o barracão coube a Suzanne e a duas alemãs. Dentro do barracão encontravam-se grandes barris com químicos usados para diluir a tinta. «Quando os homens da SS foram embora, fez-se um silêncio sinistro. Tínhamos de meter mãos à obra. Tínhamos de esvaziar o barracão de todos aqueles materiais. O barracão devia ter uns quatro metros de largura por seis de comprimento. Tinha uma porta grande e uma janela do lado esquerdo que deixava entrar a luz. Pelo lado de fora tinha duas portadas. Era como uma garagem para um carro, talvez.» As mulheres regressaram no dia seguinte, altura em que as portadas da janela já tinham sido pregadas com uma trave e algo tinha sido afixado à parede. Os três grandes chefes vieram inspecionar. «Um sugeriu que fossem feitos dois buracos com cerca de cinco centímetros de diâmetro, e foram também feitos dois buracos na parede do bloco. Uma tampa especial vedante foi colocada por cima para garantir que tudo ficava hermeticamente selado. A nossa tarefa era tapar todas as frestas e todos os buracos com mástique, que não era fácil de ver na escuridão total em que tínhamos de trabalhar.» Depois de o grupo das pinturas terminar o seu trabalho, também aquela câmara de gás «temporária» ficou suspensa por algum tempo. Talvez Höss e a sua equipa ainda contassem que o edifício de betão armado desenhado por Jahn fosse construído. O mais provável era que simplesmente quisessem experimentar outro método de extermínio de massas primeiro — um método com o qual também estavam familiarizados. Embora matar prisioneiras a tiro fosse comum em Ravensbrück nos últimos quatro anos, o número mensal de mortes raramente

excedia as quarenta, tendo essas mortes até à data sido consideradas execuções, já que as vítimas eram «condenadas à morte» por um «crime». A escala das matanças que começaram nessa altura, no entanto, era completamente diferente — cinquenta por noite. Chamavam-se matanças, não execuções, e eram feitas em tal secretismo que nos nossos dias muitas questões continuam sem resposta. É em parte através de Percival Treite, que, como médico do campo de concentração, tinha de estar presente, que temos acesso a alguns pormenores fiáveis. Antes do seu julgamento, em 1946, Treite falou abertamente sobre as matanças a tiro, mas só para seu benefício: depois de observar a matança uma vez, disse ele, recusou-se a estar presente de novo, e esperava que isso contasse a seu favor perante os juízes. O testemunho de Treite sobre as matanças processou-se em três estádios. Numa declaração feita às forças britânicas em 4 de maio de 1945 — cinco dias depois de se entregar — disse que o extermínio em Ravensbrück começou com mortes a tiro em massa no inverno de 1944-45. «Ao princípio, cinquenta prisioneiras eram executadas diariamente diante do crematório com um tiro no pescoço», disse ele. Tinha de estar presente um médico porque «uma bala nem sempre mata a prisioneira imediatamente». Num segundo depoimento, em 14 de agosto de 1946, explicou que as vítimas nem sempre eram as prisioneiras velhas e as doentes, mas também «jovens aptas ao trabalho», que eram levadas para um local perto do crematório e alvejadas na nuca com uma arma de pequeno calibre a curta distância — o Genickschuss. Processava-se sempre à primeira luz da manhã, disse Treite. «A luz da madrugada era suficiente para os carrascos verem o que estavam a fazer.» A seguir, dois prisioneiros do campo de concentração dos homens levavam as vítimas para o crematório, onde Treite aguardava para «cumprir a minha tarefa de certificar o óbito». Hellinger arrancava os chumbos e as coroas de ouro dos dentes «e os corpos eram queimados». Em mais um depoimento

prestado em 2 de outubro de 1946, Treite falou de uma ocasião em que cinquenta prisioneiras foram trazidas do Campo da Juventude para serem mortas a tiro de espingarda duas a duas. Treite sustentou que não recordava quem dava as ordens, mas era provável que fosse o homem de Auschwitz Otto Moll. Os carrascos de Ravensbrück disseram que Moll chefiava a operação e até trouxe a sua própria equipa de assassinos, o que enfureceu a equipa local. Walter Schenk, o chefe do crematório de Ravensbrück, queixou-se de que, enquanto se processavam as matanças, o grupo de Auschwitz «dormia no meu crematório». Moll e os seus camaradas da SS com certeza prefeririam o Genickschuss como método para matar a tiro. Já o tinham praticado antes — notoriamente, para matar centenas de milhares de prisioneiros de guerra soviéticos. Era rápido e eficaz — podia despachar-se um prisioneiro com um tiro no pescoço a cada trinta segundos e em seguida o corpo era levado para ser queimado. O sistema era mais limpo do que matar em massa a tiro de espingarda, e mais económico em termos de munições. Treite afirmou claramente que a matança se processava «perto do crematório». Quando se recorria ao tiro na nuca, provavelmente realizava-se na chamada carreira de tiro. Esse espaço, uma ruela com cerca de vinte metros de comprimento e dois de largura, situavase entre duas paredes altas — uma da parte de trás do bunker e outra que dava para as garagens. Um dos extremos da rua situava-se perto do crematório. A rua já fora usada antes para execuções a pequena escala e, obviamente, tinha vantagens; as paredes altas que a ladeavam neutralizavam qualquer risco de atingir acidentalmente quem estivesse a assistir e excluíam qualquer hipótese de escapar. Também excluiriam a possibilidade de haver testemunhas, para além de abafarem o som, o que explica em parte porque é que nem uma só prisioneira parece ter ouvido quaisquer disparos. Existem indícios de que, quando a sobrelotação do campo de concentração se intensificou, algumas recém-chegadas — da Hungria, por exemplo, ou de outros subcampos — nunca chegaram a

ser registadas em Ravensbrück, mas foram diretamente levadas para serem mortas a tiro ou então detidas temporariamente no Campo da Juventude recentemente esvaziado, e em seguida mortas a tiro. Um sistema desses explicaria também porque é que as prisioneiras secretárias dos serviços administrativos, na sua maioria fontes fiáveis de informação, pouco dizem sobre as primeiras matanças a tiro, embora todas ouvissem Conrad, o carrasco de Ravensbrück, gabarse de como «derrubava as mulheres com a coronha da sua arma». De qualquer modo, com a aproximação do Natal, as secretárias e outras prisioneiras influentes tinham outras coisas a ocuparem os seus pensamentos. No início de dezembro, as prisioneiras importantes andavam a planear uma festa de Natal para as crianças. A ideia surgiu entre as alemãs e as checas, mas não tardou a espalhar-se. Em anos anteriores, as prisioneiras cristãs, bem como algumas não religiosas e até judias, tinham comemorado o Natal de alguma forma, cantando nos seus blocos e enfeitando-os. Só as soviéticas ignoravam as comemorações, e muitas pareciam não saber nada sobre aquela «festa que acontecia perto do fim do ano». Em 1944, as comemorações planeadas eram mais alargadas do que nunca, em grande medida porque havia um número muito maior de crianças no campo de concentração. Um ano antes, as únicas crianças ali eram as sessenta e quatro com menos de doze anos que chegaram, na maior parte dos casos da Bélgica e da Holanda, com as famílias judias «protegidas» e algumas outras desgarradas. Desde essa altura, tinham chegado mais crianças ciganas de Auschwitz, crianças polacas durante o influxo que se seguiu ao Levantamento de Varsóvia e, no outono, vieram crianças com as judias húngaras e eslovacas. Havia também pequenos números de crianças russas, romenas, jugoslavas, francesas e gregas, vindas de todos os cantos da guerra e levadas para Ravensbrück. No inverno de 1944 viam-se crianças por todo o campo, a brincarem sossegadas nas esquinas dos blocos, a fugirem

aterrorizadas dos cães de guarda ou acocoradas na lama, tendo todas — tal como as adultas recém-chegadas — uma cruz preta nas costas do vestuário para as identificar como prisioneiras. As crianças ciganas encantavam toda a gente e andavam à rédea solta pela Lagerstrasse a vender coisas — cigarros roubados dos bolsos de oficiais da SS, lenços de seda das «Galeries Lafayette», restos da cozinha. Um dia, ofereceram para venda um exemplar de Le Misanthrope de Molière a uma prisioneira francesa; a vendedora cigana disse que era de Lille. Algumas professoras polacas organizaram aulas nos blocos para mais de setenta crianças polacas em idade escolar e as Blockovas traziam comida extra para as crianças às escondidas. Em dezembro de 1944, a Blockova do Bloco 27, Ann Sheridan, contou quarenta crianças só no seu bloco, assim como setenta mulheres grávidas. Ann era a misteriosa mulher «britânica» que as sobreviventes criticaram depois da guerra por ser demasiado próxima dos Alemães. Nunca ficou explicado o que queriam dizer com isso, mas, a fazer fé no testemunho de Ann, ela deu bom uso a essa influência. Todos os dias persuadia o pessoal da cozinha do campo de concentração a dar às crianças do seu bloco uma ração extra de leite, «embora por vezes fossem as mães que o bebiam». As crianças viviam nos blocos com as suas mães, se as tivessem, ou com mães adotivas do campo de concentração. Os instintos das mulheres para com os rapazes mais velhos nem sempre eram muito maternais. Menachem Kallus, um menino judeu de dez anos que chegou da Holanda com os judeus «protegidos» em janeiro de 1944, recorda que as mulheres do Exército Vermelho do seu bloco se interessavam por rapazes da sua idade: «Nós éramos os únicos homens. Elas vinham meter-se connosco. Foi a nossa primeira experiência sexual. Era inofensivo. Elas ensinavam-nos. Mas os alemães viram o que estava a acontecer e transferiram-nos para o campo dos homens.» A chegada de mais e mais crianças encorajava mais mulheres a tornarem-se «mães do campo de concentração», e competiam para

adotar os órfãos mais bonitos. A russa Ekatarina Speranskaya recordou que foi adotada pela Tia Nastasya. «Ela disse-me para não falar com mais ninguém e só respirar o ar. Dormíamos juntas na cama de baixo do beliche.» Ekatarina pensa que, provavelmente, a Tia Nastasya tinha filhos em casa «ou os tinha perdido de alguma maneira». As mães do campo nunca duravam muito tempo; em dezembro de 1944, Stella Kugelman já ia na sua quinta mãe. Frequentemente, adoeciam ou eram transferidas para um subcampo, como aconteceu à enfermeira holandesa Claire van den Boom, provavelmente a mãe do campo preferida de Stella. Claire foi transferida para a fábrica de armamento subterrânea em Berndorf em setembro, depois de Carmen Mory a denunciar por ela levar comida às escondidas às pacientes do Bloco 10. Desde então, uma austríaca chamada Frau Strassner, a mulher de um ex-presidente do Supremo Tribunal de Viena, cuidava de Stella, e Karolina Lanckorońska ajudava-a. Ajudava Stella a escrever cartas ao seu pai, que, como tinham descoberto, se encontrava em Buchenwald. As crianças foram a inspiração para a festa, embora, como Sylvia Salvesen observou, não fossem «como imaginamos as crianças — a fome, o sofrimento, o choque e o terror marcavam-nas a todas». As adultas não conseguiam adivinhar a sua idade. «Crianças que pareciam ter quatro anos tinham oito e as de doze pareciam crianças de oito anos», disse Sylvia. Muitas não sabiam a data do seu nascimento ou o seu nome. Uma criança russa, Nadia Bolanov, capturada com a sua avó, estava só no mundo quando foi levada de Auschwitz para Ravensbrück. «Eu era como um pequeno animal, muito assustada», recorda. Na segunda semana de dezembro os preparativos para a festa de Natal já estavam bem encaminhados, envolvendo todas as prisioneiras nos serviços administrativos, nos blocos e na Revier. A comunista alemã Hildegard Boy-Brandt dirigia o espetáculo de fantoches, enquanto a enfermeira belga Emmi Gorlich organizava os presentes, e as checas criaram um coro infantil. Planeou-se um

«homem do Natal» como uma espécie de Pai Natal secular, para não afastar as comunistas. Com o avanço dos preparativos, consolidavam-se novos laços entre os diferentes grupos nacionais, e formou-se um comité de planeamento com representantes de onze nações. Era tal a excitação que outros grupos aderiram também, entre eles o das polacas e o das francesas. Toda a gente parecia querer ajudar nos preparativos, fazendo pequenos brinquedos e enfeites. As organizadoras tinham a esperança de que a festa das crianças viesse a ser um símbolo de cooperação e de reconciliação — «um símbolo para o futuro». No inverno de 1944 ouvia-se cada vez mais falar por todo o campo de concentração da necessidade de reconciliação depois da guerra, especialmente entre as comunistas alemãs, que sabiam que, entre as novas prisioneiras vindas de países estrangeiros, elas eram muitas vezes odiadas só por serem alemãs. Grete Buber-Neumann recorda que para muitas mulheres estrangeiras «todos os Alemães eram o mesmo que a SS e, como odiavam a SS, também odiavam os Alemães». Grete observou que nos últimos anos até mesmo as comunistas estrangeiras no campo partilhavam frequentemente essa opinião. «Consideravam as comunistas alemãs indignas, e as comunistas alemãs não faziam qualquer tentativa de se defenderem.» Essas fraturas talvez tenham causado, em parte, a discórdia que irrompeu no seio do comité da festa de Natal. As polacas não gostavam de que as comunistas alemãs lhes dissessem o que fazer e bastante rapidamente decidiram afastar-se e fazer a sua própria festa num dia diferente. Outros grupos afastaram-se também e realizaram os seus eventos separadamente. Apesar dos desacordos, no entanto, acabou por se acordar uma data por volta do Ano Novo para a festa principal, e Dorothea Binz — para espanto de todas — acedeu a autorizar que as organizadoras ocupassem todo um bloco — o Bloco 22 — para o evento. Estipulou que só as crianças fossem admitidas, juntamente com as vinte organizadoras. Nenhuma mãe ou mãe do campo poderia assistir. Nos últimos dias, os preparativos eram frenéticos. Uma artista

checa fez os fantoches e o grupo do trabalho florestal «organizou» uma árvore, que foi enfeitada com papel metálico obtido por uma trabalhadora da Siemens. As prisioneiras francesas fizeram brinquedos com farrapos e cada criança iria receber um pequeno embrulho e um grande prato de pão com manteiga, «organizado» na cozinha. Os presentes das crianças conteriam cinco torrões de açúcar doados pelas norueguesas e pelas belgas — as únicas prisioneiras que recebiam embrulhos com alimentos nessa altura — e seriam embrulhados em envelopes dos armazéns. Sylvia Salvesen passou todos os serões durante três semanas a desenhar em cada embrulho uma imagem de uma criança norueguesa de esquis, com um gorro vermelho com borlas, de pé junto a uma pequena casa norueguesa com um pinhal a toda a volta. De alguma maneira, conseguiu arranjar lápis de cor vermelhos, amarelos e azuis. Logo que a festa teve início, no entanto, as coisas começaram a correr mal. Sylvia estava à porta a deixar entrar as crianças. «A maioria era como esqueletos famélicos e algumas estavam tão fracas que tiveram de ser levadas ao colo para as cadeiras.» As crianças foram instaladas em frente do palco. Bräuning disse umas palavras e ele e Binz ficaram para cantarem «O Tannebaum», tendo as crianças começado a chorar. Como o choro continuava, Binz e Bräuning saíram de rompante. Quando o espetáculo de fantoches começou, as crianças não sabiam o que fazer. «Não tinham forças para se rirem. Tinham-se esquecido de como rir», disse Sylvia, e muitas ficaram assustadas com os fantoches, particularmente com os cães. «Uma ou duas gemeram debilmente com terror quando a personagem Punch, com sinos no boné, apareceu no palco dos fantoches. Uma ou duas berraram histericamente e tiveram de ser levadas para fora da sala. As mais velhas aplaudiam depois de cada cena, mas as mais pequenas olhavam para cima, aterrorizadas com o som das palmas, que sem dúvida lhes recordava a pancada que tinham apanhado.» Mais tarde, quando a comida foi servida, as crianças atiraram-se a ela «como lobos», mas não conseguiram comê-la, porque os seus

estômagos não a toleravam. «A maior parte só conseguiu dar duas dentadas. Começaram a rolar lágrimas pelas suas faces magras, deixando pequenas tiras brancas na sua pele suja.» Embora as organizadoras tenham feito relatos da festa das crianças depois da guerra, a visão das crianças sempre foi algo obscura. A maior parte das que assistiram à festa não viveu mais do que dois meses depois dela. Do punhado que saiu vivo do campo, poucas falaram alguma vez sobre a festa. As que o fizeram têm recordações muito diferentes das das organizadoras. Naomi Moscovitch tinha sete anos na altura. Houve uma festa, recorda. E ela estava lá, porque pertencia ao coro infantil. Naomi Moscovitch era uma das sessenta e quatro crianças judias que chegaram a Ravensbrück vindas da Holanda no inverno de 194344. Vive atualmente em Netanya, a norte de Telavive — é uma mulher que dá nas vistas, com longos cabelos aos caracóis, um estilo de vestuário solto, à oriental, e um sorriso aberto e caloroso. A sua irmã mais nova, Chaya, mais pequena e loura, tinha também vindo para falar comigo, mas não se recorda de nada, diz, porque só tinha um ano quando chegou ao campo de concentração. A mãe das duas era de origem eslovaca e o pai era húngaro. Antes da guerra, ele era cantor numa sinagoga em Bratislava — «tinha uma voz maravilhosa» — e em 1938 foi escolhido como cantor de uma sinagoga grande, e nova, em Amesterdão, e toda a família se mudou para essa cidade, daí terem sido detidos na Holanda. «Como o meu pai tinha documentação húngara, e a Hungria estava do lado dos Alemães, nós ficámos bem», diz Naomi, com o que quer dizer que não foram metidos em comboios para os campos de morte. O seu pai foi enviado para Buchenwald e Naomi, Chaya e o seu irmão Yair, na altura com onze anos, foram com a mãe para Ravensbrück, ao mesmo tempo que Stella Kugelman. Embora constituíssem o primeiro grupo significativo de crianças no campo, foram tratadas como as outras prisioneiras, diz Naomi. A única diferença é que recebemos uma tigela e duas colheres — uma a mais, porque éramos quatro pessoas. Lembro-me de entrar no bloco pela primeira vez e de

perguntar à minha mãe quem eram aqueles homens, porque nunca tinha visto pessoas sem cabelo. A minha mãe devia ser muito corajosa e muito forte. Ela tinha trinta e sete anos. Chamava-se Frieda Moscovitch e manteve-nos aos três. Ficava horas a fio com a bebé nos braços na Appell e nessa idade começam a nascer os dentes às crianças e ela fartava-se de chorar. A comida era terrível, um pedaço de pão para o dia todo e uma tigela de sopa, mas ela conseguia arranjar papas de aveia de alguma maneira e, quando eu tive tifo, ela trouxe-me uma maçã. Nunca cheguei a saber como ela arranjou aquela maçã. O meu irmão ficou tão magro que um dia disse: «Olha, consigo ver à transparência pelas minhas mãos.»

Quando Naomi apanhou tifo, foi internada num bloco do hospital, e recorda-se de uma judia deitada na cama a berrar em alemão: «Eu vou matar quem se aproximar de mim.» Naomi, que sabia um pouco de alemão, tentou acalmá-la. «A mulher na cama do meu outro lado morreu. Acordei uma manhã e ela estava imóvel. Morta. Mas nós habituávamo-nos a isso. Não, não me incomodava nada nem me assombrava. Era só que alguém estava ali e a seguir estava morta.» As crianças brincavam principalmente dentro do bloco, «só a saltar pela janela, coisas como essa. Não havia brinquedos. Brincávamos numa espécie de campo, lembro-me, perto da vedação, e diziam-nos para não nos aproximarmos demasiado. E alguém se atirou contra a vedação e morreu e nós deixámos de ter autorização para brincar lá». Naomi recorda-se de alguns grandes acontecimentos: de as ciganas chegarem no verão, por exemplo, e de lhe dizerem que elas eram ladras. «Entraram no nosso bloco e eu lembro-me de pensar que eram muito escuras. Nós éramos morenas, mas elas eram mais escuras. Não sei se eram realmente ladras, mas sei que a minha mãe fez um saquinho para guardar a nossa tigela e as nossas colheres e escondia-o debaixo da almofada.» No outono de 1944, as húngaras chegaram e toda a gente ficou espantada com o estado em que elas se encontravam. «Era uma visão terrível, elas não tinham tido qualquer tipo de preparação, ao contrário de nós. Nós já tínhamos estado num campo antes de chegarmos ali — na Holanda —, mas elas tinham vindo diretamente de casa ou do gueto. Estavam em choque total e imundas.» Chaya

interrompe para perguntar algo sobre o campo e explica que está sempre a aprender coisas novas, «porque nunca soube nada na altura — só que estava lá, mas onde é que eu estava? Só me lembro de me sentar no chão. Quando saí, não sabia nada sobre a maior parte das coisas normais. As pessoas faziam pouco de mim e diziam: “Oh, sabes, ela é assim por causa do campo de concentração.”» Quando os grandes grupos da Hungria e da Eslováquia começaram a chegar, a sua mãe, como era eslovaca e o marido era húngaro, ia ver se conhecia alguém, «e é claro que falava em húngaro». Um dia, encontrou a irmã do seu marido, a Tia Chaya (tinham dado o nome da tia a Chaya), na tenda. E por isso a minha mãe disse à nossa tia que não conseguíamos tirá-la de lá, mas que lhe traríamos coisas quando pudéssemos. Um dia, o meu irmão chega e diz: «Acho que estão a matar a Tia Chaya.» Por isso, a minha mãe foi ver, e, por a minha tia ter tentado sair daquela tenda, espancaram-na fortemente, e conseguimos tirá-la de lá de alguma maneira. Não me pergunte como. Também não sei como é que a minha mãe conseguiu isso, mas a Tia Chaya veio para o bloco viver connosco, por isso ficámos juntos como uma família a partir dessa altura.

Depois de Naomi falar durante mais algum tempo, fez uma pausa e olhou para mim, como se houvesse algo específico que quisesse dizer. A seguir, perguntou-me se eu sabia alguma coisa sobre o coro das crianças. Eu disse que não. Bem, eu estava nesse coro. Foi no final de quarenta e quatro e fizeram uma caserna para as crianças. Disseram no Natal que íamos para lá e aprendemos canções de Natal em alemão. Tanto o meu irmão como eu estávamos nesse coro. Ambos cantávamos bem, como o nosso pai. E fomos à tal caserna e havia uma grande árvore de Natal e disseram que depois de cantarmos faziam uma festa e nos davam alguma coisa. Por isso, nós cantámos em frente dos alemães e das mulheres com os cães. Depois de acabarem as canções, a minha mãe veio pôr-se do lado de fora junto à janela, e eu não me lembro exatamente de como aquilo aconteceu, mas ela deve ter berrado ao meu irmão e disse que tínhamos de sair imediatamente, porque aquela não era a nossa religião e não podíamos ficar para a festa e tínhamos de voltar com ela para o bloco. E o meu irmão pegou-me na mão e saltámos pela janela. Eu não sabia, mas foi depois disso que disseram que tudo explodiu e a caserna foi pelas ares. Por isso, a minha mãe salvou-nos. E no sítio onde estava a caserna, no dia seguinte só havia

água toda gelada. Não pensei naquilo, só que onde estava antes a caserna já não havia nada. Quando me encontrei com alguns dos outros meninos anos mais tarde, disse que estava naquele coro e eles disseram, «mas como é que isso é possível, como é que sobreviveste?». Esses outros disseram-me que os alemães atiraram granadas de mão pela janela e foi assim que quiseram acabar com todas as crianças.

Perguntei a Naomi se pensa que aquilo realmente aconteceu, que fizeram ir as crianças pelo ar numa explosão na caserna na festa de Natal. «Isso é o que recordo que aconteceu e o que as pessoas dizem. Não consigo explicar tudo, mas é o que sei. E em Belsen também foi terrível.» Ela referiu-se ao que aconteceu às crianças de Ravensbrück que foram levadas para Belsen algumas semanas depois da festa. «Fazia frio e nós estávamos em cima de sacos no chão, sem camas, sem nada. As pessoas morriam a toda a volta. E lembro-me de a minha mãe ficar com tifo e de a minha tia dizer, olhem, nós temos três crianças e toda a gente que atira fora um cadáver do bloco devia ter direito a mais um bocado de pão.» Perguntei se Naomi tinha falado muito sobre a bomba na caserna quando regressou à Holanda depois da guerra. A maior parte das pessoas na Holanda não tinha estado em campos de concentração, disse ela, e «não se falava sobre isso com crianças da nossa idade. Muitas pessoas não querem falar sobre o que aconteceu nos campos de concentração. O meu irmão nunca falou do assunto, nem sequer comigo, e recusa-se a falar mesmo agora». O relato de Naomi Moscovitch da bomba lançada na festa de Natal de Ravensbrück não é sustentado por nenhum testemunho escrito, mas vários outros sobreviventes que eram crianças na altura recordam algo semelhante. Stella também acredita que a história é verdadeira. Stella diz que não foi à festa porque estava doente e não pôde ir. O que sabe foi-lhe contado pela sua última mãe do campo de concentração, uma russa chamada Tia Olympiada, que ajudou Stella nos dias finais. A Tia Olympiada disse-lhe que tinha tido um filho e que «o tinha perdido na bomba». Stella não sabia mais do que isso, mas tem a certeza de que a Tia Olympiada se referia à bomba na

festa das crianças. Depois da guerra, Stella encontrou-se com algumas das adultas que organizaram a festa, entre elas a comunista alemã Erika Buchmann. «A Erika dizia-me: “Mas, Stella, tu deves lembrar-te de como te demos pão e tudo na festa”, mas eu não me lembrava de nada disso.» Como não chegou até aos nossos dias qualquer prova escrita do lançamento da bomba e as adultas não falaram disso, é difícil acreditar na história, e no entanto, como é assim que as crianças da altura recordam o que aconteceu, para elas, claramente, é verdade. Os horrores por que essas mesmas crianças passaram nas semanas que se seguiram foram muito piores e estão mais bem documentados. O primeiro começou alguns dias depois da festa de Natal. Nos últimos dias de dezembro, as prisioneiras na Revier começaram a falar sobre outro dos novos homens de Auschwitz, um dos dois médicos. Ele era «um homem pequeno a quem chamavam “o professor”», disse Sylvia Salvesen, e pouco depois de ele chegar as crianças ciganas começaram a ser chamadas para serem esterilizadas. Diziam às suas mães que se dessem a sua anuência à operação seriam libertadas. O homem era Claus Clauberg, o médico a quem Himmler tinha ordenado no início da guerra que encontrasse um meio de proceder à esterilização em massa, como parte da tentativa de criar uma raça superior. Clauberg conduziu experiências durante três anos em Auschwitz, mutilando e matando centenas de mulheres, mas todas essas experiências tinham fracassado. Naquele momento, no que ele devia saber serem os últimos meses da guerra, queria fazer outra vez experiências em novo «material» em Ravensbrück. Na Revier, circulava a notícia de que Treite iria fazer as operações sob a supervisão de Clauberg. Segundo Sylvia Salvesen, a secretária de Treite, uma belga chamada Emmi Gorlich, subitamente, «ficou pálida como a morte, com olheiras escuras — ela sabia o que ia acontecer». Todas as prisioneiras que trabalhavam na Revier

disseram a Emmi que suplicasse a Treite que não cooperasse com Clauberg. «E através da divisória fina ouvimo-la suplicar-lhe. Ergueram-se vozes, a porta abriu-se de repente, mas o Dr. Treite saiu de rompante, dizendo: “Ordens de Berlim.”» Emmi Gorlich diria mais tarde que a esterilização começou com crianças entre os oito e os dez anos de idade. Todas as ciganas entraram na sala. Eram crianças pequenas. Chamavam-me quando eu passava por elas. Fui tentar arranjar açúcar; elas não sabiam o que ia acontecer. Uma amiga minha, uma médica austríaca, ajudava muitas vezes nas operações. Era obrigada a fazê-lo. Eu disse-lhe que não devia fazer aquilo, eles podiam matá-la. Ela voltou muito pálida, a dizer que o Dr. Treite a tinha mandado embora.

Segundo Zdenka Nedvedova, Clauberg realizava as esterilizações vaporizando uma substância sob pressão para dentro do útero da criança e observando o seu efeito mas trompas de Falópio através de um ecrã de raios X. Sylvia lembra-se de virem à Revier duas meninas ciganas, com oito e dez anos — ambas chamadas Elisabeth. «Estavam a perguntar: “Nós já estamos esterilizadas, porque é que fomos chamadas?” Puseram-nas na sala atrás de mim e eu pedi para falar com o Dr. Treite para lhe pedir que não fizesse mais nada àquelas crianças. O Dr. Treite disse novamente: “Não vale a pena. São ordens de Berlim.” Uma criança saiu a chorar de uma maneira histérica.» Zdenka disse que os gritos da criança de oito anos continuaram durante duas horas depois de ela ser operada. Com um número crescente de crianças a serem esterilizadas, as prisioneiras dos blocos vizinhos ouviam-nas também a gritar e a chorar. As prisioneiras que trabalhavam com o pessoal médico tentavam cada vez mais desesperadamente encontrar uma maneira de fazer parar aquilo, e uma enfermeira alemã chamada Gerda Schröder, que viera recentemente integrar a equipa, ofereceu-se para ajudar. «Suplicámos-lhe que lhes desse pelo menos um analgésico, o que ela fez», disse Zdenka. Mais tarde, levámos as crianças da sala dos raios X e pusemo-las em camas num

pequeno quarto de tratamento, onde ficaram a sangrar do útero. Os seus pobres corpinhos de mulher constituíam uma visão perturbante, e pelo menos duas das pequenas mártires morreram. Nestes casos, ambas as crianças sofreram mais inflamação do abdómen, o que significa que morreram com dores terríveis.

De acordo com estatísticas descobertas mais tarde nos registos alemães, entre o Natal de 1944 e fevereiro de 1945 500 ciganas foram esterilizadas em Ravensbrück, 200 das quais eram ainda meninas.

CAPÍTULO 32 A MARCHA DA MORTE Grete Buber-Neumann disse que podia sempre adivinhar-se quais eram as mulheres que chegavam a Ravensbrück de Auschwitz, porque tinham uma dureza especial — em particular as que sobreviveram à marcha da morte de janeiro de 1945. As judias entre as 20 000 mulheres deixadas em Auschwitz no final ainda ali estavam porque tiveram a «sorte» de serem jovens e saudáveis quando chegaram e, por consequência, foram selecionadas para trabalhar. Allegra Benvenisti tinha dezoito anos quando chegou a Auschwitz vinda de Salónica, na Grécia, com os pais, as irmãs, os irmãos e os primos. Na primeira seleção, o oficial da SS apontou-lhe para que se dirigisse para um lado, enquanto quase todos os outros membros da sua família foram para o outro lado, para a câmara de gás. Como Allegra notou, muitas dessas jovens saudáveis morriam de doenças ao fim de duas ou três semanas. Também ela adoeceu e quase morreu, mas uma enfermeira ucraniana salvou-a tirando-a às escondidas do bloco do hospital antes de um camião levar todas as doentes — «mortas ou vivas». Susi Bachar, outra grega, também foi selecionada para trabalhar, juntamente com as suas duas irmãs. Uma morreu pouco depois de tifo e a outra de disenteria. Ao longo do verão de 1944, Susi, Allegra e outras prisioneiras «trabalhadoras» viram Auschwitz atingir o auge do seu poder, com o extermínio de 400 000 húngaros em apenas dois meses. Mas durante o outono o ritmo de comboios que chegavam com vítimas para o extermínio começou a abrandar, com o avanço dos Soviéticos e o campo de concentração a preparar-se para a evacuação. Em outubro, os que ainda estavam vivos em Auschwitz atreviam-se a ter a esperança de sobreviver, especialmente quando, em 2 de novembro, as fornalhas deixaram de deitar fumo. Lydia Vago recordava-se de

um patrão civil de uma fábrica onde ela trabalhava lhe segredar: «Vê lá se consegues voltar para casa agora — já não há chaminés.» Para Lydia, a sua casa era na cidade de Gheorgheni, nas montanhas da Transilvânia, na Roménia, onde o seu pai era médico e a sua mãe dentista. Toda a família — judeus originários da Hungria — tinha sido capturada em 1944, e Lydia, aos vinte anos, foi parar a Auschwitz com Aniko, a sua irmã mais nova. Perto do final desse ano, os blocos e as ruas de Auschwitz começaram a ficar menos povoados, com os prisioneiros a serem transferidos para campos de concentração na Alemanha. Alguns dos guardas mais odiados também partiram, entre eles Irma Grese, a filha de um agricultor que tinha sido treinada em Ravensbrück e ascendera ao posto de chefe das guardas em Birkenau. Agora, Grese e várias outras guardas de Ravensbrück foram transferidas para Belsen. Com menos guardas, Maria Rundo, uma estudante polaca, recordou um «período idílico» em Auschwitz no final do outono, com os prisioneiros a terem mais liberdade de movimentos e, até certo ponto, a serem deixados por sua própria conta. Os fracos, os velhos e os doentes foram para o anterior campo de ciganos, onde Maria arranjou trabalho como enfermeira. «Estávamos a salvar os doentes com as nossas próprias mãos; fazíamos-lhes sopa, dávamos-lhes banho e penteávamo-los, tirávamos-lhes os piolhos.» Ali, até nasciam bebés, a quem eram prestados os cuidados necessários. As distinções entre judeus e não-judeus começaram a atenuar-se. Uma médica judia polaca, Alina Brewda, recordou que a tinham mandado viver num bloco de judias e «arianas». «Antes, havia uma regra estrita para nos manter separados, mas agora estávamos a viver juntos.» Os bordéis foram encerrados e uma das prostitutas pediu a Alina que a tratasse, porque estava a morrer. Em troca, deu a Alina um vestido de malha preto, sapatos de feltro e um casaco quente, que lhe foram muito úteis na marcha que se seguiria. Em janeiro de 1945, com os Russos a apenas alguns dias de Auschwitz, a SS começou a preparar-se freneticamente para a evacuação. Não tardou a tornar-se claro que quem estivesse apto a

caminhar seria forçado a marchar, mas quem estivesse demasiado fraco seria assassinado. Quando se aproximou o momento de partir, os guardas começaram a dizimar os doentes e os moribundos a tiro. Prepararam-se também para fazer ir pelos ares o campo de concentração. Lydia Vago, que tinha adoecido, estava na enfermaria e recordou-se de ouvir uma enfermeira berrar-lhe que saísse imediatamente. Lydia saiu da Revier e quando se afastava viu chegar um camião para levar para serem mortos a tiro os doentes que estivessem demasiado débeis para andarem. Em 18 de janeiro, o trabalho prosseguia normalmente, incluindo a construção de um novo bloco. Ao cair da noite, chegou o aviso de evacuação. Maria Rundo recordava-se de faltar a luz no hospital onde ela trabalhava e de a seguir as luzes voltarem a acender-se e um homem da SS ordenar às enfermeiras que recolhessem todas as fichas das pessoas doentes, que levou consigo. Na Lagerstrasse, havia pessoas a berrarem que quem conseguisse andar devia regressar aos seus blocos, porque ia dar-se início à evacuação. Estava a nevar e quando os prisioneiros começaram a correr de volta para os seus blocos os que estavam demasiado doentes para marcharem entraram em pânico. «Não havia dúvida sobre o seu destino, porque a SS não permitira que os doentes fossem libertados», disse Lydia Vago. Alguns não queriam partir, na esperança de saudarem os seus libertadores soviéticos. Alina Brewda, a médica judia, escondeu-se com os doentes, mas um oficial da SS encontrou-a e enxotou-a. Alguns dirigiram-se para os armazéns de vestuário e pegaram no que podiam para se manterem agasalhados — cobertores, casacos, camisolas. Allegra, a jovem de Salónica, estava no turno da noite na fábrica quando se ouviu a chamada. Não teve tempo de comer nem de procurar roupas quentes e foi diretamente para a fila que se formava naquela altura junto aos portões. Lydia Vago teve ainda tempo de entrar na farmácia da pequena Revier da fábrica e meter aspirinas e gaze no seu pequeno saco feito de tecido de uniforme azul-acinzentado. Ela e a sua irmã Aniko levaram roupas e cobertores

extra atados em fardos às costas, com o fio bem agarrado nas mãos. Ao fim da tarde do dia da evacuação, os selecionados para partirem reuniram-se junto aos portões: homens, mulheres, judeus e não-judeus, Kapos e não-Kapos. Tinham dito às crianças que não poderiam partir, mas algumas vieram. Imediatamente antes de se abrirem os portões, os guardas entregaram a cada prisioneiro um pão e disseram-lhes que formassem uma fila, com as mulheres atrás. Aquela não era a primeira marcha de morte. Nos primeiros anos da guerra, os nazis obrigaram os judeus a marcharem para guetos e soldados do Exército Vermelho para campos de concentração. No verão e no outono de 1944, fizeram marchar muitos milhares de húngaros para a Alemanha. Mas aquela marcha forçada para fora dos portões do campo de concentração e para a noite de neve de cerca de 60 000 sobreviventes de Auschwitz débeis e aterrorizados, 20 000 dos quais mulheres, com a artilharia a soar a apenas cinco quilómetros, ultrapassou todas as outras em horror. Lydia manteve-se junto de Aniko. Era de importância vital que não se perdessem uma da outra na multidão, que começava agora a pôrse em marcha. Os guardas berravam: «Alles antreten» — Em fila, alinhem-se. Saiam. Os cães ladravam. Soou um alerta de ataque aéreo e durante uns minutos apagaram-se todas as luzes, mergulhando o campo de concentração na escuridão. As pessoas pensaram esconder-se, mas de que valia, se o campo ia pelos ares? Enquanto os prisioneiros se afastavam, sabiam que o Exército Vermelho estava perto, porque viam as «velas de Estaline» — os mísseis soviéticos Katyusha — a iluminarem o céu. A fila avançou lentamente pela estrada coberta de neve, com os homens à frente, as mulheres atrás e pessoal armado da SS de todos os lados. A temperatura descia em flecha. Alina Brewda recordava-se de os guardas lhes ordenarem que corressem, aguilhoando os prisioneiros com as suas baionetas. Alguns corriam, mas outros tropeçavam. Pouco depois, viram os primeiros homens mortos prostrados na neve, alvejados por terem caído. Não tardaram a ver também mulheres mortas a tiro. Allegra estava sempre a escorregar,

porque a neve colava-se aos seus socos de madeira. Quando Alina não conseguia acompanhar o ritmo da marcha, algumas prisioneiras mais fortes seguravam-na por baixo dos braços e levavam-na, de modo que ela «corria» entre elas mal tocando no chão. A certa altura, abrandaram um pouco o ritmo da marcha. O pessoal da SS estava mais calmo depois de se distanciar um pouco mais dos Russos. Os prisioneiros começaram a ser ultrapassados por guardas em motorizadas ou em viaturas. O grupo de trabalhadoras da fábrica tentou manter-se junto, mas não tardou a misturar-se com as fileiras maciças de prisioneiras de Birkenau. Irmãs, primas, amigas, todas receavam perder-se umas das outras. Sabiam que ficar sozinha entre a multidão que avançava aos atropelos significaria a morte. Nos primeiros dias, os guardas permitiram-lhes que descansassem algumas vezes e que fizessem as suas necessidades na berma da estrada. Mas receavam adormecer ali acocoradas, e morrerem geladas. Já tinham comido o seu pão e tudo aquilo a que tinham conseguido deitar a mão antes de partir do campo de concentração. «Por isso, comemos neve», disse Maria Rundo, que reparou em grupos de cadáveres de homens, com o uniforme às riscas, perto de onde parou. «Tinham-lhes aberto o crânio mesmo no topo da cabeça com uma faca e tirado o cérebro. Supúnhamos que os homens da SS o teriam feito com paus compridos, com uma espécie de bola de madeira na ponta. Havia guardas da SS na marcha que estavam armados com paus desses.» Depois disso, Maria tentou não voltar a olhar para o chão. «Fingia que era tudo um conto de fadas e olhava antes para o pôr do Sol e para o nascer do Sol.» Soavam repetidamente tiros por trás delas, quando a SS executava os que se desgarravam do grupo. Os prisioneiros passavam agora por cima de cadáveres espalhados ao longo da estrada, que eram mortos a tiro quando escorregavam e caíam. Lydia viu um rapaz de olhos azuis aos seus pés e passou por cima dele. Uma jovem e a sua mãe levaram em braços uma irmã mais nova, exausta, até já não terem forças para carregar com ela. «Por isso sacrificámo-la e ela morreu.» Sabiam que os guardas a tinham matado, porque ouviram o

tiro segundos depois. Ao fim de três dias, perderam a conta ao tempo. No grupo da fábrica de Lydia e de Aniko, calculava-se que o número de prisioneiras já baixara de 500 para 300. Por vezes, pareciam estar a avançar aos tropeções com milhares de pessoas, outras vezes só com um pequeno grupo, separadas temporariamente da multidão em vagas. Na maior parte das vezes, tentavam dormir à noite em celeiros, mas frequentemente não havia espaço, e muitos deitavam-se na estrada e morriam gelados. Alguns prisioneiros conseguiram até fugir, chegando a quintas nas redondezas onde eram escondidos por polacos. Outros eram encontrados e mortos a tiro. Uma vez, os guardas mandaram Lydia e Aniko para um pequeno celeiro com palha macia e seca, onde elas dormiram durante algumas horas. Pensaram esconder-se na palha e pedir aos agricultores polacos que lhes dessem abrigo, mas na manhã seguinte vieram os alemães e espetaram as suas baionetas na palha, disparando sobre quem encontravam. Noutra ocasião, descansaram num curral de gado onde as vacas estavam a ser mungidas. Os camponeses deram aos prisioneiros tigelas cheias de leite fresco e morno. Allegra recordava-se de uma outra noite em que os homens da SS as fizeram marchar para um celeiro, com um guarda a levar uma lata de gasolina. Os prisioneiros pensaram que a SS ia queimá-los vivos, «mas eu estava demasiado cansada para me preocupar». Por isso, deitou-se no celeiro e, para seu espanto, encontrou ao seu lado a sua prima Berry, que já não via desde a sua chegada a Auschwitz. Berry tinha trabalhado no «Canadá», o armazém onde se guardavam as roupas e os bens pessoais das vítimas da câmara de gás. Deu a Allegra algumas peças de vestuário quentes que tinha trazido do «Canadá». «Jurámos que não deixaríamos que ninguém nos separasse outra vez, e nos dias seguintes marchámos na fila agarradas uma à outra.» Havia cada vez mais prisioneiros desgarrados a serem mortos a tiro. A certa altura, Allegra disse a Berry que não era capaz de continuar

— «Eles que me matem a tiro.» Berry animou-a a continuar. Mais adiante, os papéis inverteram-se, com Allegra a encorajar Berry. A certa altura, uma amiga chamada Diamante veio juntar-se às jovens e levou Berry ao colo durante algum tempo. Ao fim de dois ou três dias, a SS dividiu a coluna interminável, com os homens a marcharem por estradas diferentes na direção de Mauthausen, Buchenwald ou Gross-Rosen. As mulheres prosseguiram na direção de Ravensbrück, a 670 quilómetros a noroeste de Auschwitz. No entanto, a SS perdia-se com frequência nos terrenos inóspitos polacos. Quando a notícia do caos nas estradas polacas chegou à sede da SS em Berlim, Rudolf Höss, o excomandante de Auschwitz, foi enviado para avaliar a evacuação. Nas suas memórias, Höss disse que ficou surpreendido ao descobrir que as forças avançadas blindadas dos Russos já se estendiam do lado leste do Oder, enquanto em todas as estradas e em todos os caminhos a oeste do rio encontrou prisioneiros a avançarem aos tropeções pela neve funda, sem comida. Encontrou primeiro homens destinados ao campo de concentração de GrossRosen, «mas a maior parte dos militares recrutados encarregados dessas colunas de cadáveres que avançavam aos tropeções não fazia ideia de como lá chegar.» Na sua primeira noite encontrou um número incontável de cadáveres de prisioneiros que tinham acabado de ser mortos a tiro e que ainda estavam a esvair-se em sangue. O grupo de Allegra e Berry marchou mais 400 quilómetros para oeste e em seguida para norte, passando por Praga e daí para a Alemanha, onde os ataques eram de grande intensidade. Passaram uma noite num campo com cadáveres de pessoas e de cavalos e no dia seguinte os guardas encurralaram-nas dentro de vagões de um comboio. Antes de o comboio partir: Avistei pães no chão. Não sei como arranjei forças para correr e roubar dois pães e voltar a correr para junto de Berry para lhos dar. Peguei num cobertor de um morto e trepámos para o vagão aberto, mantendo o pão escondido. Cobrimo-nos com o cobertor e durante a noite, enquanto o comboio avançava por entre a tempestade de neve, comemos o pão e também comemos a neve que caía no cobertor. Viajámos desta maneira durante a noite e na tarde do dia seguinte chegámos a Ravensbrück.

Alina Brewda, a médica judia, foi metida num comboio com vagões fechados que se dirigiu para noroeste passando por Hamburgo e depois voltou para Berlim, onde as prisioneiras viram milhas após milhas de ruínas «e rejubilaram». Os guardas meteram o grupo de Lydia e Aniko em vagões de gado abertos em Loslau, na Silésia, só com espaço para se manterem de pé. Aniko estava com uma chaga infetada, causada pelo fio do seu saco improvisado, que lhe tinha feito um corte na carne. «Estávamos debaixo de neve», recordou Lydia. «Estávamos como sardinhas postas de pé. Cair era impossível, embora não conseguíssemos sentir os nossos pés dormentes, que não tinham força para nos sustentar. Já alguma vez ouviu falar de seres humanos a morrerem de pé? Foi o que aconteceu nos comboios da morte.» Lydia e Aniko iam de pé perto da parte da frente do vagão, onde o guarda da SS estava sentado num banco com o seu pastor-alemão aos pés. O cão levantou-se e Lydia rastejou para debaixo dele e deitou-se para se aquecer. Tinha a certeza de que o guarda mandaria o cão mordê-la ou que dispararia sobre ela. Mas ele só se queixou: «Assim, o meu cão não tem espaço», e disse-lhe que se afastasse. «Viajámos assim durante toda a noite e na tarde seguinte chegámos a Ravensbrück.» As mulheres de Auschwitz chegaram a Ravensbrück em diferentes grupos ao longo de vários dias, perto do final de janeiro de 1945. Walter Schenk, o chefe do crematório, recordou que havia tantas mortas entre elas que as fornalhas não davam vazão ao número de cadáveres e, por isso, foi também usado o crematório de Fürstenberg para os queimar. Continuavam a chegar mais transportes. «Mulheres mortas de pé, meio geladas, tombavam dos camiões», disse Lydia sobre as prisioneiras do seu comboio. Havia um número incontável de mortas, levadas diretamente para serem cremadas. Aos portões, os guardas fizeram aquilo que, inicialmente, Lydia e Aniko julgaram ser uma seleção. Em vez disso, «uma mulher pequena e feia à mesa do controlo, com as faces e os lábios pintados de vermelho, limitou-se a mandá-las entrar». Lydia disse: «Tentávamos

adivinhar se iriam matar-nos na câmara de gás ou a tiro.» As duas irmãs receavam que a ferida de Aniko estivesse agora tão infetada que a levassem para a matarem. «Quero ir para a mãe», gemia ela. Os guardas mandaram quase todas as mulheres para a tenda ao princípio, onde elas se acocoraram na lama. Pouco depois, Allegra foi transferida para uma camarata e apoderou-se de uma «cama» de quatro tábuas estreitas, sentindo que «se tivesse de me sentar na lama um momento mais, morreria». Quando chegou o pão, ela desviou a sua atenção por um segundo e uma rapariga tirou-lhe uma das tábuas. «Comecei a bater nessa rapariga, a puxar a tábua e a berrar-lhe: “Eu não vou morrer.” A Berry... berrou-me: “Tu estás a matá-la”, e eu disse outra vez: “Eu não vou morrer.”» Alina Brewda encontrava-se entre as recém-chegadas forçadas a dormir sob a neve. Zdenka Nedvedova, a médica checa do campo de concentração, que tinha chegado de Auschwitz seis meses antes, veio ver as prisioneiras da marcha da morte: Estava tudo branco com a neve quando elas entraram em catadupa — milhares delas; tantas que os guardas não conseguiam fazer a triagem nem separá-las de outras prisioneiras que entravam com elas e perguntavam o que tinha acontecido e procuravam amigas que tinham perdido. Falaram da sua terrível viagem e de como tinham deixado Auschwitz a arder. Quando fomos para a cama, elas ainda estavam lá fora, e quando acordámos ainda ali estavam também — com auréolas de gelo à volta dos rostos.

Lydia e Aniko foram «metidas à pazada» na tenda, onde Lydia tentou proteger a mão infetada de Aniko quando a sopa foi distribuída às vagas de pessoas. Alguém com uma concha deitou sopa para a tigela que Lydia trazia atada à cintura por um fio e as duas jovens partilharam-na. Aniko parecia agora estar à beira da morte devido à sua chaga infetada, e as guardas e as Kapos evitavam-na por causa do fedor da ferida. Alguém a mandou à Revier, onde foi tratada, e voltou com uma ligadura limpa, mas a tenda estava tão imunda que não tardaram a ficar infestadas por piolhos, «como em Birkenau». Ao fim de vários dias, quando Lydia e Aniko já julgavam que tinham

sido abandonadas para morrer, foram subitamente chamadas para ser feito o seu registo. Não as preocupava que tal significasse que tinham sido selecionadas, porque nesse caso, com certeza, a SS têlas-ia selecionado à entrada. Mandaram Lydia pôr-se de pé num aparelho para a medir. «Porque é que subitamente eles tinham curiosidade em saber que altura eu tinha?» A seguir, as jovens receberam os seus novos números do campo de concentração num pedaço de tecido branco: 99 626 para Lydia e 99 627 para Aniko. Pouco depois, a SS enviou Lydia e Aniko para «um lugar nos bosques chamado Judenlager, Campo da Juventude», e pô-las a trabalhar a encher colchões com palha. «Havia algo de estranho naquele Campo da Juventude que não conseguíamos compreender», disse Lydia. Algumas mulheres pequenas de cinzento andavam por ali à pressa em silêncio. Quem eram e ao que andavam? E como nós não éramos vigiadas muito apertadamente, eu abri uma porta, por curiosidade. Uma sala grande estava apinhada de mulheres sentadas no chão. Perguntei de onde eram e uma delas disse que era de Budapeste. Olhei à minha volta, horrorizada, a pensar na minha avó, que tinha deixado em Budapeste. Apressei-me a sair e abri a porta a seguir. Era uma divisão muito pequena contendo vários cadáveres nus.

Lydia e Aniko só ficaram uns dias no Campo da Juventude, onde recebiam uma tigela extra de sopa todos os dias. Anos depois, Lydia ficaria a saber que tinham andado a encher colchões com palha para o novo campo de extermínio de Ravensbrück.

CAPÍTULO 33 CAMPO DA JUVENTUDE Enquanto Lydia Vago via mulheres a morrerem no Campo da Juventude de Uckermark, Cicely Lefort e Mary Young ouviam boatos de que o novo campo eram um lugar muito melhor, com uma enfermaria bem equipada e bons tratamentos. Algumas pessoas chamavam-lhe até clínica de recuperação. Sylvia Salvesen, a funcionária norueguesa da Revier, e outras diziam que já antes tinham ouvido conversas semelhantes; todas as mudanças em Ravensbrück tinham sempre sido para pior. A seguir, espalhou-se um novo boato; nos blocos degradados ouviu-se dizer que no novo campo nem sequer teriam de trabalhar ou de se levantar para a Appell da manhã. Em meados de janeiro, com temperaturas de trinta graus negativos, algumas mulheres começavam agora a oferecer-se como voluntárias para serem transferidas. Cicely Lefort e Mary Young apareceram à janela de Sylvia na Revier. Precisavam de conversar. Tinham-se inscrito numa lista para um novo campo, disseram. Como Sylvia sabia, as duas estavam a viver num dos blocos mais sobrelotados. A noruguesa tornara-se recentemente amiga delas, particularmente de Mary, que estava muito fraca. Aos sessenta e dois anos, tinha o corpo delgado curvado de exaustão, as pernas inchadas e febre. Cicely, a mulher do SOE, em tempos atlética, alta e vigorosa, estava agora também curvada e esquelética. Treite operara-a no outono a úlceras no estômago e às pernas inchadas, mas agora ela tinha crises agudas de diarreia. Tinham ouvido notícias «excelentes» do novo lugar; se pelo menos conseguissem evitar ser convocadas, talvez conseguissem resistir. Seria uma questão de semanas, não seria? Sylvia não concordava que era boa ideia irem para lá?, perguntou Cicely. «Ela saiu-se com tudo isto à pressa, nervosa e

excitada. Tinha uma expressão de terror nos olhos e aguardava nervosamente a minha resposta.» Sylvia tentou avisá-las, mas elas não quiseram dar-lhe ouvidos, o mesmo se passando com centenas de outras prisioneiras que também viam o Campo da Juventude como a sua única oportunidade de se aguentarem até à libertação. Em meados de janeiro, a Segunda Frente Bielorussa do general Konstantin Rokossovsky, avançando pelo Leste da Prússia ao longo da costa do Báltico, estava apenas a 640 quilómetros de Ravensbrück. No Ocidente, os Aliados tinham esmagado o contra-ataque da Wehrmacht na batalha do Bulge e estavam a avançar na direção do Reno. Nada assustava mais as mulheres do que a perspetiva de morrer nessas últimas semanas, antes da chegada dos seus libertadores. Dentro de Ravensbrück multiplicavam-se os sinais de que o fim estava iminente. Alguém tinha montado um rádio em segredo, e as notícias dos avanços dos Aliados eram comunicadas à noite entre os blocos. Os ataques aéreos eram frequentes, os guardas tinham os nervos em franja e as mulheres do Exército Vermelho empertigavamse, a prepararem-se para a chegada dos Soviéticos. As rações tinham voltado a ser reduzidas. Nalguns dias, a sopa parecia ser feita só com urtigas ou com manjerona e praticamente sem batatas. Nessa altura, espalhou-se outro boato. No Campo da Juventude, haveria batatas «duas vezes por dia». Não foi por coincidência que, na altura em que os mitos sobre o Campo da Juventude começaram a disseminar-se, apareceu a figura alta e delgada de Johann Schwarzhuber na Lagerstrasse. Mais um homem sem trabalho em Auschwitz, Schwarzhuber chegou a Ravensbrück no início de janeiro para concretizar as ordens que Bräuning se recusara a implementar. No seu depoimento mais tarde, Schwarzhuber mostrar-se-ia confuso em relação a nomes e a datas e daria uma versão mais atenuada de muitos dos acontecimentos. No entanto, para um homem da SS, o seu testemunho foi bastante informativo: parecia

mais disposto do que os seus camaradas a dar uma sensação real de como os acontecimentos se teriam desenrolado. Por exemplo, uma conversa com Fritz Suhren que ele reproduz, na qual recebeu instruções para iniciar o extermínio por gás, soa fortemente verdadeira. Pouco depois de chegar ao campo, disse o Obersturmführer Schwarzhuber, ele e o médico-chefe, Richard Trommer, foram chamados ao gabinete do comandante. «Suhren disse-nos que tinha recebido uma ordem do Reichsführer Himmler em que se declarava que todas as mulheres que estivessem doentes ou fossem incapazes de marchar deveriam ser exterminadas.» Até essa altura, as mortes ainda se processavam por execução a tiro, sob as ordens de Moll. «Este método não parecia avançar com suficiente rapidez para os gostos do comandante. Ele disse na minha presença: “Não está a avançar com suficiente rapidez, teremos de usar outros métodos.”» Artur Conrad, o chefe do esquadrão de execução do campo de concentração, andava a dizer a mesma coisa aos seus colegas no edifício central. «Ele disse: “As mulheres não estão a morrer com suficiente rapidez. Tem de se fazer alguma coisa em relação a isso”», recordou Karla Kampf, uma secretária austríaca. Treite afirmaria mais tarde que também ele tinha ouvido dizer que a razão por que se optou pelo extermínio por gás foi «as mortes a tiro não estarem a avançar com suficiente rapidez». Contudo, ninguém sugeriu que devessem deixar de se matar as prisioneiras a tiro — ambos os métodos de extermínio eram agora usados. Um dos trabalhadores do crematório, um prisioneiro chamado Horst Schmidt, recordou que, quando começou a trabalhar no crematório no final de janeiro, todas as noites cerca de cinquenta mulheres eram mortas a tiro e trazidas para serem queimadas — a mesma taxa diária indicada por Treite. «Ocasionalmente, algumas das vítimas ainda estavam vivas e apanhavam outro tiro antes da cremação. Estavam dois médicos presentes e um deles extraía os dentes de ouro.» Segundo a estimativa de Schmidt, pelo menos 600 mulheres foram

mortas a tiro do fim de janeiro ao fim de fevereiro de 1945. Ele não sabia se esse método continuou a ser usado depois de fevereiro — só se manteve naquele trabalho por duas semanas —, mas recordava-se de outro trabalhador vir ter com ele pouco depois de ele ter deixado de trabalhar no crematório e de lhe dizer: «Agora temos gás.» Entretanto, Walter Schenk, o chefe do grupo de trabalho do crematório, recebera instruções específicas de Schwarzhuber. «Ele disse-me: “Vamos começar a operação.” Eu disse: “De que tipo?” Ele disse: “Vais ficar a saber quando começarmos a usar gás.” Eu disse que já tinha demasiado trabalho. Ele disse: “Não sejas estúpido. Não te vai afetar. Vai haver uma equipa de Auschwitz para o gás e para queimar os corpos.”» Quando compreendeu inicialmente o que significava «outros métodos», disse Schwarzhuber no seu depoimento em tribunal, tentou resistir. «Eu disse ao comandante do campo que estava contente por ter saído de Auschwitz e que não queria participar naquilo uma segunda vez.» Johann Schwarzhuber era filho de um tipógrafo da Baviera e alistou-se na SS aos vinte e um anos. Aprendeu a ser duro em Dachau, antes de o transferirem para Theresienstadt e para Auschwitz. A partir de 1942, passaria a supervisionar todo o programa de extermínio por gás no centro de extermínio de Birkenau. Com maçãs do rosto salientes e pálpebras pesadas, Schwarzhuber era conhecido entre as mulheres como «um SS lascivo e escarninho», embora aparentemente tivesse um casamento feliz, com dois meninos que eram vistos frequentemente a correr na brincadeira por Auschwitz. Quando um deles desapareceu um dia, Schwarzhuber temeu que tivesse sido levado para a câmara de gás. A partir desse momento, os dois meninos passaram a usar uma tabuleta ao pescoço com as palavras «filho do SS Schwarzhuber». Os colegas de Schwarzhuber diziam que ele não era tão duro como outros oficiais da SS. Ajudou a dirigir a orquestra masculina de

prisioneiros e também levou prisioneiros de guerra russos a executarem danças folclóricas enquanto a família dele assistia do outro lado da vedação. Gostava dos ciganos e costumava passar algum tempo a falar com eles. Um oficial da SS declarou que tinha ouvido Schwarzhuber dizer na cara a Rudolf Höss que não se tinha «alistado na SS para matar judeus». Höss não menciona esse incidente nas suas memórias da prisão de 1947, mas recorda que Schwarzhuber se tinha sentido muito afetado pelo extermínio por gás dos ciganos de Auschwitz. «Schwarzhuber disse-me que nenhum extermínio de judeus tinha sido tão difícil, e tinha sido particularmente duro para ele porque conhecia bem muitos daqueles prisioneiros e tinha uma boa relação com eles.» Um outro guarda de Auschwitz disse que era bastante comum ver Schwarzhuber «bêbedo e a chorar» quando os prisioneiros eram levados para a câmara de gás. Por mais relutância que Schwarzhuber possa ter sentido de desempenhar aquela tarefa uma segunda vez em Ravensbrück, deve ter reconhecido que havia enormes diferenças entre a operação de Auschwitz e o que iria acontecer ali. O objetivo de 2000 mortes por mês em Ravensbrück exigido por Himmler em outubro de 1944 («retroativamente») era minúsculo em comparação com o número de mortes nas câmaras de gás em Auschwitz, que se calcula atualmente que tenha ascendido a mais de um milhão. As condições em Ravensbrück eram primitivas, se comparadas com a sofisticação do complexo de extermínio de Birkenau. Em Auschwitz, a vasta maioria dos que foram exterminados por gás era judia. Em Ravensbrück, foram assassinadas maioritariamente não-judias, sendo o critério de seleção a mulher em questão estar doente ou ser incapaz de marchar, como Suhren explicou. As judias enquadravam-se claramente nessa categoria, especialmente porque a chegada recente de prisioneiras de Auschwitz e de húngaras tinha feito aumentar os seus números de uma média de uma em cada dez para cerca de uma em cada cinco da população total do campo de concentração, que em meados de janeiro era de cerca de 45 000.

Mas ser judia não era nessa altura uma razão para ser selecionada para a câmara de gás, como fora em Auschwitz e nos outros campos de morte. Efetivamente, todo o contexto do extermínio por gás em Ravensbrück era novo. Pela primeira vez, o extermínio nazi não tinha um objetivo ideológico declarado; era impossível à SS persuadir-se a si própria ou a outros de que o que estava a fazer-se ali era limpar o reservatório genético ou contribuir para o progresso da raça superior. Em Ravensbrück, o extermínio por gás nos últimos meses da guerra fez-se para ganhar espaço e poupar comida, reduzindo ao mesmo tempo o número de prisioneiras que poderiam cair nas mãos do inimigo. Quem conseguisse marchar, poderia ser retirada a seu tempo; as que não estivessem capazes de o fazer iriam para a câmara de gás. Além disso, esse extermínio ocorreria num campo de concentração em solo alemão. Como o programa de extermínio de Ravensbrück tinha objetivos diferentes, colocava problemas diferentes ao seu supervisor. Talvez o problema mais importante para Johann Schwarzhuber fosse como manter as mulheres calmas enquanto se processava o extermínio. Himmler e os seus oficiais da SS tinham compreendido que o extermínio por gás a grande escala só poderia ser bem sucedido se as vítimas não soubessem o que estava a passar-se, e, por consequência, se mantivessem calmas. Em Auschwitz, tinha sido fácil preservar a calma. A maior parte das vítimas judias, mesmo no final, não sabia praticamente nada sobre o que iria acontecer-lhe. Os judeus chegavam do gueto ou de outros campos de concentração e eram separados imediatamente dos que se consideravam aptos para o trabalho e encaminhados para a câmara de gás sem terem tempo de fazer perguntas sobre o que estava a acontecer. Em Ravensbrück, no entanto, não seria fácil isolar as selecionadas para a câmara de gás do resto do campo de concentração. Não iriam em caravanas de comboios, como em Auschwitz, mas seriam escolhidas de entre uma multidão já existente. Além disso, as vítimas

de Ravensbrück só podiam ser exterminadas em pequenos grupos, o que demorava algum tempo, porque a câmara de gás temporária tinha uma capacidade limitada, e, por conseguinte, enquanto as selecionadas aguardavam o seu destino, podia espalhar-se o pânico. As seleções anteriores em Ravensbrück para os transportes negros que levavam prisioneiras para serem exterminadas noutro lugar tinham-se desenrolado num ambiente de relativa calma; mas essas seleções anteriores eram mais pequenas, e visavam até certo ponto grupos definidos — as chamadas «lunáticas», as gravemente doentes, as judias —, que podiam ser separados antecipadamente do resto. As outras prisioneiras «normais» podiam dizer a si mesmas que estavam a salvo das seleções para o transporte negro e que, por conseguinte, não tinham nada a temer. Até mesmo em Ravensbrück essas seleções tinham sido camufladas, e quando os preparativos eram mal disfarçados — como no caso do transporte para a morte em Majdanek — irrompia o pânico. Por todas essas razões, Schwarzhuber compreendia bem a necessidade de uma camuflagem muito cuidadosa. Assim, ainda antes de se iniciar a seleção, inundou o campo de concentração com boatos e mentiras para fazer as mais vulneráveis acreditarem que iam para um lugar melhor. Essas mulheres desesperadas eram tão fáceis de enganar que Schwarzhuber não tardou a persuadir centenas de prisioneiras a porem-se na fila para se oferecerem como voluntárias para a morte. Antes de tudo começar, no entanto, precisava de pessoal — de homens e de mulheres em quem pudesse confiar. Podia com certeza confiar no Sonderkommando, o grupo especial de trabalho que operaria a câmara de gás, porque trouxe esse grupo de onze prisioneiros do sexo masculino com ele de Auschwitz. Alguns prisioneiros diriam mais tarde que Schwarzhuber trouxe também algumas componentes da câmara de gás de Auschwitz. Para trabalhar com a sua equipa da câmara de gás, ele precisava também de apoio em Ravensbrück, tanto de homens como de mulheres. Em Auschwitz-Birkenau, tendera a empregar pessoas que

não se encontrassem há muito tempo no campo de concentração, para que não estivessem «fixas nas suas ideias» e não fossem próximas dos prisioneiros. Foi uma tática que empregou também em Ravensbrück. Poucos dias depois de chegar, Schwarzhuber recrutou Ruth Neudeck, uma mulher recomendada por Albert Sauer, que, segundo Schwarzhuber, era agora vice-comandante. Ruth Neudeck, uma loura alta de trinta e dois anos que tinha chegado a Ravensbrück só três meses antes, trabalhou primeiro no escritório da contabilidade do campo de concentração, mas após uma curta doença foi transferida para o Bloco 27, onde chamou a atenção de Sauer. Ele reparou que ela gostava de bater nas prisioneiras e ofereceu-lhe uma chibata com um punho de prata. Loulou Le Porz descrevê-la-ia mais tarde. «Grande. Com um aspeto vulgar. Ordinária. Andava sempre empertigada. Ouvi dizer que era viúva. Não tinha filhos. Vivia com a mãe.» Neudeck foi rapidamente promovida ao trabalho no Strafblock, e, depois de a observar em ação, Schwarzhuber recrutou-a para a sua equipa. Para trabalhar ao seu lado escolheu um punhado de outras guardas, assim como dois contínuos do hospital da SS — provavelmente também de Auschwitz — chamados Koehler e Rapp. Este grupo iria ser empregado no novo anexo, o Campo da Juventude. Neudeck seria a chefe das guardas do Campo da Juventude. Quando Lydia Vago, a prisioneira que tinha vindo de Auschwitz na marcha da morte, foi enviada para trabalhar no Campo da Juventude em meados de janeiro de 1945, descobriu que aquele era já um local de morte. As húngaras que viu tinham obviamente sido deixadas ali para morrer. Nessa fase, o objetivo do novo campo ainda não tinha sido definido; por agora, provavelmente estava a ser usado como um espaço temporário para onde atirar as prisioneiras excedentárias e as deixar a morrer ou as matar a tiro. Em finais de janeiro, no entanto, Johann Schwarzhuber já tinha delineado mais completamente o seu

plano de extermínio e decidira quais os papéis que o Campo da Juventude e o seu pessoal desempenhariam. Dada a prioridade definida de evitar o pânico, não só circulavam boatos e mentiras sobre a ida para uma clínica de recuperação como foi concebido um plano, muito provavelmente por Schwarzhuber, segundo o qual as mulheres a exterminar na câmara de gás não seriam selecionadas diretamente do campo principal. Em vez disso, a seleção processar-se-ia por fases. Primeiro, as mulheres escolhidas para irem para a «clínica de recuperação» ou para o «campo de concentração melhor», assim como outras escolhidas pela SS, seriam reunidas, talvez 200 de cada vez, em blocos nas traseiras do complexo de Ravensbrück. Essa zona — onde se encontravam os blocos degradados — já estava vedada, mas a vedação foi agora reforçada e a zona passaria em breve a ser conhecida como a «zona da morte». Quaisquer que fossem os receios que as mulheres detidas ali pudessem desenvolver, não lhes seria possível comunicar com mais ninguém noutras partes do campo de concentração. Num dado momento, as mulheres selecionadas receberiam ordens para marcharem para fora da zona de morte através de um portão ao fundo ao lado direito, e percorreriam os cerca de 800 metros pelos bosques até ao Campo da Juventude. Aí, seriam mantidas durante algum tempo. Outros grupos semelhantes seriam trazidos para ali. Realizar-se-ia então mais uma ronda de seleções no Campo da Juventude e as escolhidas nessa segunda ronda seriam levadas para a câmara de gás. Tal implicava mais uma deslocação, dessa vez de camião, até à câmara de gás junto ao crematório, ao lado do muro da parte sul. Num certo sentido, o plano faria as vítimas completar um círculo, mas teria a vantagem de as confundir, mantendo ao mesmo tempo fora da vista as selecionadas para o extermínio por gás. Manter as selecionadas fora da vista atenuaria também as preocupações do pessoal do campo de concentração, que não teria de ser informado do que se passava, pelo menos inicialmente, se o descontentamento se manifestasse também na suas fileiras. As

prisioneiras médicas e enfermeiras nos blocos do hospital eram a fonte mais provável de protesto, porque já andavam aterradas com a perspetiva de mais transportes negros. Até dois médicos da SS tinham dado sinais de rebelião: Percival Treite recusara-se a assistir às execuções em massa que Otto Moll estava ainda a levar a cabo, e o outro novo médico, Franz Lucas, que chegou em dezembro, recusou-se também. Para ludibriar o pessoal médico — tanto prisioneiras como membros da SS — Schwarzhuber congeminou uma charada com atores e adereços. Enviou uma prisioneira médica francesa chamada Dora Revier ao Campo da Juventude antes de chegar o primeiro grupo de prisioneiras, dando-lhe medicamentos e uma série de instruções inventadas para montar uma enfermaria. Acompanharamna duas enfermeiras. Nessa altura, espalhou-se o boato de que o novo campo era realmente uma clínica de recuperação. De facto, aquela mentira foi tão eficaz que inicialmente enganou até algum do pessoal mais experiente da Revier, incluindo Loulou Le Porz, a médica do Bloco 10, e Erika Buchmann, a comunista alemã que nessa altura tomara já o lugar da Blockova Carmen Mory. Segundo Buchmann, também Treite pareceu acreditar naquela charada. Entrou no Bloco 10 uma manhã e pediu a lista das prisioneiras que estavam mais gravemente doentes, explicando que iriam ser «transferidas para outro lugar para receberem melhor tratamento». As transferências a que ele se referia eram provavelmente as da primeira leva de prisioneiras para o Campo da Juventude. Os testemunhos divergem em relação à data em que tal ocorreu. Erika Buchmann disse que Treite fez o pedido em 20 de janeiro, pelo que as primeiras mulheres devem ter partido pouco depois desse dia. Erika compilou imediatamente a lista, «sem o mais ligeiro receio sobre o que poderia significar, tendo em conta as terríveis condições no Bloco Dez». Ao mesmo tempo, as guardas começaram a chamar as prisioneiras com cartões cor-de-rosa e a selecionar elementos para o novo campo.

Na administração, as secretária «velhas ratazanas» — «secretárias da morte», era o que lhes chamavam em Auschwitz — elaboravam as listas sem qualquer hesitação. Com certeza sabiam o que se passava, depois de terem compilados tantas listas para os transportes negros desde 1941. A comunista austríaca Hermine Salvini recordava-se de, quando o primeiro grupo partiu, lhe ter sido dito para anotar ao lado dos seus nomes: «transferida para o novo campo». Ela disse que as secretárias não faziam ideia das condições vigentes nesse campo. «Até ficámos contentes por as mulheres de idade irem para um lugar onde as condições eram boas e onde se dedicariam a tricotar e não fariam trabalhos pesados.» A enfermeira belga Renée Govers, no entanto, teve receios desde o início. Quando as doentes da Revier principal foram levadas para integrar o grupo e ela tentou dar a uma das mulheres um casaco mais quente, uma das guardas de Schwarzhuber berrou a Renée: «Sua idiota. Ela não vai precisar disso agora.» A suspeita demorou ainda vários dias depois da primeira partida a começar a espalhar-se. Sylvia Salvesen ouviu falar das condições no Campo da Juventude a uma testemunha de Jeová que lá foi fazer um recado e regressou com a notícia de que as prisioneiras estavam a passar fome, lhes tinham tirado a roupa e as tinham deixado em temperaturas abaixo de zero. Dora Revier, a médica francesa, e uma das enfermeiras que foram com ela regressaram em estado de choque ao fim de uma semana, trazendo os medicamentos por usar. A alegada Revier era uma caserna vazia sem colchões nem sequer água corrente. Dora queixou-se imediatamente a Treite, que respondeu que o Campo da Juventude não era da sua responsabilidade: Schwarzhuber estava encarregado dele. Sylvia foi procurar Cicely e Mary para tentar evitar que partissem, mas chegou demasiado tarde, elas já estavam do outro lado do arame farpado na zona de morte ao fundo do campo de concentração, à espera da partida. Encontrava-se com elas uma terceira mulher britânica, Mary O’Shaughnessy.

Mary O’Shaughnessy soube que estava destinada ao Campo da Juventude mal as guardas começaram a chamar as detentoras de cartões cor-de-rosa; fora-lhe atribuído um cartão cor-de-rosa porque tinha um braço postiço. Mary, de uma família imigrante de origem irlandesa, criada em Leigh, perto de Wigan, aprendeu a viver com a sua incapacidade desde muito pequena. Na adolescência, partiu para França para trabalhar como governanta e procurar a aventura e a independência. Na sequência da rendição da França em junho de 1940, Mary ofereceu-se para colaborar com a célula de resistência local, escondendo militares britânicos que tentavam escapar pelos Pirenéus. Em Ravensbrück, o seu braço postiço valia-lhe frequentemente espancamentos pelas guardas, mas pelo menos era poupada aos trabalhos mais duros, e, ao fim de nove meses no campo de concentração, ainda se encontrava em melhor estado de saúde do que as suas duas amigas britânicas. Mary Young, a enfermeira escocesa, continuava a enfraquecer. Mary, uma mulher minúscula e magra, era filha de um empregado de uma mercearia de Aberdeen, e em 1909 foi para França como enfermeira particular e em seguida serviu nos hospitais de campanha por trás das trincheiras. Instalou-se em Paris, onde em 1942 foi detida por suspeita de ajudar pilotos britânicos a escapar, e chegou a Ravensbrück em fevereiro de 1944. A amiga mais íntima de Mary no campo de concentração era Cicely Lefort, a mulher do SOE de quarenta e seis anos que tinha chegado no mesmo transporte de Paris. Nos anos 1930, Cicely, uma velejadora de primeira, viajou para França em busca de aventura e apaixonou-se por um médico francês chamado Alex Lefort. Ele tinha um iate, em que velejava pela costa da Bretanha. Casaram-se e, quando a guerra eclodiu, Alex encorajou Cicely a regressar a Inglaterra e a oferecer-se como voluntária para o SOE, dados os seus conhecimentos sobre a França e a costa francesa. Foi Alex quem comunicou ao SOE em Londres que Cicely se encontrava em Ravensbrück, depois de receber uma carta dela com o endereço desse campo de concentração. Durante os seus primeiros meses no

campo de concentração, Cicely manteve-se em contacto com o marido através do correio oficial de Ravensbrück, mas no verão de 1944 recebeu uma carta de Alex a pedir o divórcio. Destroçada, Cicely encontrou maneira de fazer novo testamento no campo, excluindo o marido dele; encontrou até uma médica do campo de concentração para servir de testemunha. O grupo, em que se incluíam as britânicas, que aguardava a partida para o Campo da Juventude — provavelmente o segundo grupo a partir até àquela altura — era muito diversificado, com quase todas as nacionalidades e todas as idades representadas. Romana Szweda, uma professora polaca, tinha sido uma das primeiras prisioneiras polacas a chegar a Ravensbrück e ajudara a construir as primeiras estradas. No início de 1945, adoeceu e encontrava-se na Revier quando os oficiais da SS vieram fazer a seleção para o Campo da Juventude. Várias prisioneiras alemãs de longa data aguardavam também a partida. Frau Rissel, de Wiesbaden, contava ser libertada em janeiro, mas as guardas forçaram-na a ficar de pé no exterior do bloco administrativo ao frio durante várias horas enquanto esperava pelos seus documentos. Ficou com queimaduras do frio no rosto e em vez de ir para casa estava agora por trás do arame farpado. Frau Thüringer, que tinha perdido três filhos na frente de combate, só recentemente tinha sido detida, devido a alegações espúrias de que teria falado contra Hitler; talvez tenha sido selecionada por ter o cabelo grisalho, que usava em totós. Outra alemã, Gisela Krüger, tinha artrite numa perna, que o Dr. Treite decidiu — desnecessariamente — amputar. Também ela estava destinada ao Campo da Juventude. Encontravam-se igualmente na lista algumas recém-chegadas da Hungria, entre elas Klara Hasse, que tinha perdido o pé direito na marcha forçada de Budapeste. Entre cerca de setenta holandesas encontravam-se várias que tinham trabalhado na fábrica da Siemens antes de adoecerem. Dezenas de polacas do Levantamento de

Varsóvia encontravam-se ali, assim como sobreviventes da marcha da morte de Auschwitz, selecionadas da tenda em Ravensbrück. Alguns membros da mesma família ofereceram-se como voluntárias para o grupo do Campo da Juventude para não se separarem. Entre elas contavam-se as irmãs francesas Tambour, que tinham trabalhado no malfadado circuito Prosper do SOE, perto de Paris. Madeleine Tambour estava gravemente doente e, quando foi selecionada a sua irmã Germaine, ofereceu-se como voluntária para a acompanhar, tendo ouvido os boatos sobre a comida e as condições melhores no novo campo. Continuavam a circular boatos sobre cobertores extra e colchões individuais entre as prisioneiras destinadas ao Campo da Juventude, que não podiam deixar de sentir alguma esperança. A simples perspetiva de partir do campo principal e caminhar por entre as árvores dava às mulheres algum ânimo. Neeltje Epker, uma parteira holandesa e veterana de Ravensbrück, exprimiu-o assim: «Embora tivéssemos a experiência de que não devíamos acreditar nessas coisas todas, nunca imaginámos que eles nos estavam a contar mentiras assim tão flagrantes ou que pudessem ser assim tão cruéis. Nunca imaginámos que nos iam assassinar.» Irma Trksak, uma prisioneira austro-checa do grupo, recordava o mesmo estado de espírito de esperança tímida: «Está a ver, nós queríamos tanto acreditar. E a nossa única hipótese nessa altura era acreditar num milagre.» De qualquer modo, a maioria sabia que não tinha qualquer hipótese de ser retirada da lista; as mulheres selecionadas não possuíam qualquer tipo de influência no campo de concentração. Ilse Gohrig, outra holandesa, simplesmente aceitou o seu destino, assim como muitas outras: «Fui enviada para o Campo da Juventude porque era tricotadeira. Não era Kapo. Eu nunca seria Kapo, porque sabia que as Kapos eram do pior tipo. Fui escolhida para ir para lá. Não tentei ficar, porque decidi fazer o que Deus tinha decidido que era o meu destino.»

Chegaram as ordens de formarem filas de cinco e os portões nas traseiras do complexo abriram-se. À frente, havia um caminho que penetrava nos bosques. «Mais tarde, chamar-lhes-íamos “os pequenos bosques da morte [Todeswäldchen]”», recordou Janina Habich, uma das polacas. As que conseguiam andar avançavam a custo pela neve, algumas delas a empurrarem ou a puxarem carroças com mulheres amputadas e outras incapacitadas. Demoraram mais de uma hora a percorrer os oitocentos metros até ao Campo da Juventude. Quando por fim o avistaram, aquele grupo de cinco casernas baixas e cinzentas rodeadas por arame farpado pareceu desconcertantemente pequeno, mas os pinheiros a cintilarem com neve causaram uma impressão agradável em algumas das mulheres. Quando lá chegaram, Cicely e as duas Marys foram encafuadas num dos blocos mais pequenos com cerca de setenta outras mulheres, sem espaço para se sentarem ou deitarem. As guardas deram a entender que se tratava de uma situação temporária, enquanto o seu alojamento permanente estava a ser aprontado. Em vez disso, ficaram naquela sala durante três dias. Nos dois primeiros dias, não lhes deram comida nem água, e ninguém podia sair para fazer as suas necessidades; o chão não tardou a ficar coberto de urina e excrementos. Alina Brewda, a médica judia que tinha vindo na marcha da morte de Auschwitz, recordou que estendeu o braço para fora da janela e agarrou em neve para saciar a sede e se lavar. Mary O’Shaughnessy disse que durante aquelas primeiras quarenta e oito horas pelo menos três mulheres no seu bloco morreram, tendo os seus corpos permanecido ali. Outras setenta mulheres foram fechadas numa sala ao lado, onde várias berravam loucamente até desmaiarem, «presumivelmente de exaustão», segundo Mary. Ao terceiro dia, as guardas distribuíram um pouco de sopa aguada e um pedaço de pão antes de transferirem as mulheres para um bloco maior, juntamente com várias centenas de outras prisioneiras. Aí, havia uma espécie de camas — tábuas pregadas à parede. As guardas deram a cada mulher um só cobertor e um colchão de palha,

encharcados por terem estado à neve. Com o calor dos corpos, os colchões secaram, mas ficaram infestados de piolhos. Continuava a não haver como se lavarem e as latrinas eram uma vala aberta com doze metros de comprimento no outro extremo do campo de concentração. Neeltje Epker, a parteira holandesa, recordava-se de que as mulheres dormiam às quatro e às cinco por tábua, com o Campo da Juventude sobrelotado com cerca de 800 mulheres. O espaço entre uma tábua e a que ficava por cima era tão pequeno que as prisioneiras mal conseguiam entrar para as camas. «Toda a gente tinha um espaço de quarenta centímetros.» A alimentação era metade da ração dada no campo principal: meio litro de sopa aguada de couves ou de nabos ao almoço e cem gramas de pão. Um dos incentivos para ser transferida para o Campo da Juventude era a inexistência prometida da Appell, mas por volta do quarto dia as mulheres foram acordadas às 3h30 da madrugada e forçadas a perfilarem-se no exterior, ao ar gélido, durante seis horas. Algumas desmaiaram e morreram. Na noite seguinte, as guardas confiscaram os cobertores e os casacos das mulheres na Appell das três da madrugada. Estavam de pé no meio de uma tempestade de neve quando lhes tiraram os casacos, recordou Neeltje Epker. Leonarda Frelich, outra das prisioneiras da marcha da morte de Auschwitz, recordava-se de ter ficado de pé durante sete horas. «Muitas desmaiavam, mas mesmo assim o grupo não teve autorização para voltar para os blocos.» Quando por fim as mulheres puderam voltar para dentro, as guardas abriram as janelas de par em par. As prisioneiras adoeciam rapidamente, com diarreia severa e inchaços causados pela fome e pela exaustão. Poucas tinham forças para chegarem à latrina imunda, mas Stijntje Tol, de Amesterdão, encaminhou-se a custo para lá e viu uma pilha de roupas confiscadas nas traseiras do barracão. «Quando nos perfilámos para a Appell seguinte, só trazíamos vestidos finos, em temperaturas que desciam agora aos vinte e cinco graus negativos.» Durante todo esse tempo, mais mulheres chegavam do

campo principal. As cinco casernas de madeira estavam a encher-se rapidamente, enquanto na última caserna, usada como morgue, se empilhavam os cadáveres. Por volta de 5 de fevereiro, a chefe das guardas, Ruth Neudeck, organizou uma chamada especial. Em vez de mandar as prisioneiras formarem filas como habitualmente, chamou números de uma lista que tinha na mão, ordenando às mulheres que se afastassem para um lado. Neudeck usava a sua chibata com punho de prata em qualquer mulher que não reagisse com suficiente rapidez ou os trabalhadores sanitários Koehler e Rapp arrastavam as mulheres para a frente. Neudeck diria mais tarde que naquela fase não sabia para onde iam as vítimas selecionadas. Schwarzhuber dera-lhe a lista, que tinha escrito na parte de cima: «Schonungslager Mittwerda» — «Campo de Repouso Mittwerda». Dessas listas de Mittwerda, como viriam a ser conhecidas, constavam os nomes das prisioneiras destinadas à câmara de gás. A charada de Schwarzhuber significava que as prisioneiras, e possivelmente a própria Neudeck, podiam partilhar a ilusão passageira de que existia um campo de repouso chamado Mittwerda. Nos serviços administrativos do campo principal, as novas listas provocaram grande surpresa entre as prisioneiras secretárias. Ao contrário de anteriores listas de transportes negros, aquelas tinham de ser assinadas por Suhren. As secretárias, acostumadas a eufemismo como «transferida para outro campo», sentiram-se perplexas com a referência de Schwarzhuber a um lugar chamado Mittwerda. A ordem era tão específica que algumas pensaram que realmente se referia a algum lugar melhor. Mas depois alguém se lembrou de procurar esse lugar no mapa. Mittwerda ficava muito para leste de Ravensbrück, na Silésia, e já tinha caído em poder dos Russos. Schwarzhuber — alcunhado «o Deus amantíssimo de Ravensbrück» — devia saber que aquela sua mentira mais recente seria descoberta pelas prisioneiras secretárias e que Ruth Neudeck e todas as outras pessoas descobririam muito em breve o que significava.

A chibata com punho de prata — algumas pessoas chamavam-lhe bengala ou vergasta — era a primeira coisa em que se reparava em Neudeck, embora Leonarda Frelich também recordasse que a mulher que a empunhava era elegante e bonita. Aparecendo com essa vergasta, percorria as filas, usando o seu punho curvo como uma espécie de gancho à volta do pescoço das prisioneiras selecionadas para as tirar da fila. Qualquer resistência era recebida com murros; a prisioneira era atirada para o chão e pontapeada. Frelich recordavase também de que usualmente havia dois homens ao lado de Neudeck e que um deles estava sempre bêbedo. Usualmente, Neudeck trazia uma lista, mas, como Mary O’Shaughnessy observou, em certas ocasiões ela e os homens da SS simplesmente escolhiam mulheres que parecessem estar mais doentes, «olhando-lhes para as pernas para ver se estavam inchadas e para os olhos para ver se tinham alguma vida. Se elas não se mexessem com suficiente rapidez, ela batia-lhes com a chibata que trazia sempre na mão». Janina Habich recordava-se de ver Neudeck a percorrer as filas de um lado para o outro «com o seu bastão fino e preto com um punho de prata que ela punha à volta do pescoço de uma prisioneira enquanto dizia “Links” [esquerda]». Várias outras prisioneiras prestaram testemunhos semelhantes depois da guerra, acrescentando com frequência: «Vi isto com os meus próprios olhos.» Mas não havia perigo de se duvidar dos testemunhos das sobreviventes, porque, ao contrário da maioria das outras guardas, Ruth Neudeck admitiu tudo aquilo de que a acusaram e mais. «Eu tinha de bater nas prisioneiras de vez em quando por causa da falta de disciplina», disse ela. «Dava-lhes sempre uma ou duas vergastadas com a chibata. Não podia bater-lhes com a mão, porque elas estavam sempre infestadas de piolhos. No bloco de punição, também batia em três ou quatro prisioneiras por dia, porque elas não queriam ir trabalhar.» Os advogados de Neudeck tentaram a certa altura alegar um erro de identificação, sugerindo que era outra pessoa, não ela, que

empunhava a chibata de punho de prata. Mas Neudeck não estava pelos ajustes. Disse ao tribunal: «Durante a segunda metade de janeiro, recebi do Sturmbannführer Sauer um bastão que tinha um punho de prata. Nunca o emprestei a mais ninguém e tanto quanto recordo mais ninguém no campo tinha algo semelhante ou com um punho de prata.» Depois de o grupo selecionado ser chamado, as vítimas eram apartadas e em seguida marchavam para um bloco grande conhecido como o ginásio; era de facto um ginásio quando o campo albergava adolescentes, mas agora funcionava como uma antecâmara da zona de extermínio. Sabemos poucos pormenores sobre o que acontecia ali dentro, mas as Kapos e as prisioneiras secretárias falaram das «tragédias terríveis que ali se desenrolavam». Essas prisioneiras Kapos estavam encarregadas da maior parte da gestão do dia a dia do Campo da Juventude, em troca de privilégios, tal como acontecia no campo principal. Uma das Kapos, Józefa Majkowskla-Kruszyńska, chegada de Auschwitz-Birkenau no verão anterior, foi colocada no grupo de recolha dos cadáveres do Campo da Juventude, que era «algo como o Sonderkommando em Birkenau». Por vezes, ia ao ginásio remover os corpos de mulheres que morriam ainda antes de serem enviadas para a câmara de gás. Uma vez, ordenaram-lhe que extraísse os dentes de ouro às mortas, mas, como ela recusou, foi uma pessoa chamada Dra. Vera a fazê-lo. Rapp, o homem da SS, estava sempre bêbedo, disse Józefa, e Lotte Sonntag, a prisioneira mensageira, andava sempre a bater, mas Neudeck era a pior. Usualmente, era antes do anoitecer que Neudeck ordenava às detidas que saíssem do ginásio e formassem filas. Apesar da neve, eram então obrigadas a tirar toda a roupa. Por vezes, Mary O’ Shaughnessy assistia à cena por uma fresta na parede do seu barracão. Quando as prisioneiras já estavam despidas, uma jovem de cabelo escuro envergando uma bata branca aproximava-se do grupo. Essa jovem, a «Dra. Vera», escrevia o número do campo de concentração das mulheres em tinta indelével no antebraço esquerdo

delas ou no peito. A seguir, as guardas permitiam às prisioneiras que vestissem uma peça de roupa — usualmente uma camisa fina ou um vestido de algodão. As prisioneiras permanecima no exterior por mais duas ou três horas até cair a noite. Nessa altura, chegava um camião, conduzido por Josef Bertl, o chefe dos transportes. Koehler e Rapp apareciam, assim como Neudeck. Mandavam as mulheres entrar para o camião. Se elas resistissem, as guardas atiravam-nas para dentro do camião, com os seus gritos a ecoarem pelo Campo da Juventude. As outras prisioneiras espreitavam pelas janelas e por frestas, vendo Koehler e Rapp pontapear as mulheres que oferecessem resistência; ou então Neudeck berrava e chicoteava as mulheres ou pontapeavaas com as suas botas de biqueira de metal. Aquelas cenas repetiam-se na maior parte das noites. Neeltje Epker assistiu à partida do primeiro grupo de holandesas, com os seus números berrados ao acaso. Elas eram mulheres que todas nós conhecíamos de Haia, de Brabant, de Friesland. Nem sequer puderam levar o seu pedaço de pão. Vimo-las aparecer nuas na praça onde tinham entregado as camisas, os vestidos, as calcinhas e os sapatos. À tarde, com berros altos e chicotadas, o pessoal da SS forçou-as a entrar em camiões de caixa aberta para a sua última viagem. Ainda me lembro dos rostos de algumas delas — a senhora Dessauvagie, a senhora Zandstra, as duas irmãs Gorter, a senhora Storm e a senhora Grinsveen. E uma delas conseguiu pedir-nos aos gritos que disséssemos às famílias o que tinha acontecido, e pediu para dizermos ao mundo que elas «não se arrependiam de terem cometido aquilo a que os Alemães chamavam um crime».

Numa outra noite, a alemã chamada Gisela Krüger viu uma jovem russa, Haina Tschernitschenko, ser levada. «Ela coxeava por causa de uma fratura e recusou-se a ir. Por isso, o homem da SS bateu-lhe com o seu chicote até finalmente ela ser atirada para dentro do camião e a levarem embora.» Romana Szweda viu uma jovem polaca com um braço e uma perna amputados ser levada. «A Neudeck agarrou na jovem pela cabeça e atirou-a para dentro do camião. O Rapp e o Koehler estavam sempre lá para garantirem que as vítimas eram metidas no camião e que a doutora Vera tinha escrito

corretamente os números certos em todos os braços.» O verdadeiro nome da Dra. Vera era Vera Salvequart, uma mulher de vinte e seis anos, filha de mãe checa e de pai alemão. Era outra das escolhidas por Schwarzhuber. Depois de chegar a Ravensbrück em dezembro de 1944, Salvequart passou as suas primeiras três semanas na degradação gélida da tenda. Treite, sempre atento a prisioneiras que fossem médicas ou enfermeiras, descobriu que ela tinha estudado Medicina na universidade de Praga e enviou-a como enfermeira para o bloco do tifo, onde se encontravam cerca de 1500 mulheres a morrer. Mais tarde, Schwarzhuber reparou nela e enviou-a para o Campo da Juventude com Dora Revier e uma outra enfermeira. Deixou-a lá sozinha quando as outras regressaram ao campo principal. A história pessoal de Salvequart apresentava algumas semelhanças com a de Carmen Mory. Antes de ir para Ravensbrück, teve vários pseudónimos, e talvez fosse espia e também prostituta; em variadas ocasiões, foi procurada pela polícia na França, na Dinamarca, na Polónia e na Áustria. Para os fins de Schwarzhuber, as suas maiores qualidades talvez fossem o seu sorriso pronto e os seus modos aparentemente delicados: com esses atributos conseguia obter a confiança das vítimas. Na versão de Salvequart, ela não quis o trabalho no Campo da Juventude, mas outras prisioneiras disseram que ela não se importava nada de o fazer, especialmente porque Schwarzhuber lhe enviava um embrulho da Cruz Vermelha todas as semanas e lhe permitia ir até ao campo de concentração de homens na vizinhança. Salvequart afirmou igualmente que desde o início Koehler e Rapp a vigiavam e lhe diziam que não falasse sobre o que via, «ou eu apanhava um tiro». Como o único elemento do pessoal médico no Campo da Juventude, inicialmente a «Dra. Vera» viveu sozinha num dos lados da Revier até algumas outras ajudantes virem juntar-se a ela. A Revier do Campo da Juventude era mais um bloco de madeira

simples, dividido em duas partes. Havia uma espécie de balneário e um barracão chamado a divisão das ambulâncias. O outro lado, conhecido como a sala de espera, estava vazio. Os deveres de Vera nos primeiros tempos do programa de extermínio eram simples: tinha de preencher as certidões de óbito de todas as vítimas e contar os corpos. Numa ocasião, os números não condiziam e ela teve de voltar a contar todos os cadáveres. A Dra. Vera também estava encarregada de, sempre que possível, contactar os parentes próximos das vítimas e de os informar de que poderiam receber as cinzas das mortas em troca do pagamento de uma taxa. Extraía todas as coroas e chumbos de ouro dos dentes dos cadáveres, usando alicates especiais, e entregava-os a Koehler e a Rapp. Essas tarefas tomavam-lhe muito dos seu tempo, já que desde o início morriam entre trinta e quarenta mulheres por dia no Campo da Juventude, só de fome, frio e doença. Quando começou o extermínio por gás, ela ia ao ginásio todos os fins de tarde escrever o número das prisioneiras em tinta indelével nos seus braços ou registar a sua saída nas listas antes de o camião as levar. No campo principal, Suhren — ainda a tentar cumprir a meta estipulada por Himmler — dizia que o extermínio não estava a processarse com suficiente rapidez. As execuções a tiro em massa levadas a cabo por Moll e os seus homens prosseguiam, mas eles não estavam a conseguir acelerar o processo. Com uma capacidade limitada dentro da câmara de gás, tiveram de se encontrar novas maneiras de aumentar o número de mortes. A sequência ao longo das semanas seguintes nem sempre é clara, mas a certa altura, em finais de janeiro ou no início de fevereiro de 1945, Schwarzhuber emitiu uma ordem segundo a qual todas as prisioneiras do Campo da Juventude, já com uma alimentação de fome, passariam a receber metade da ração. Essa medida resultou num novo surto de diarreia e de disenteria, fazendo aumentar o número de mortes de quarenta para sessenta por dia. Por volta desta altura, a sala de espera da Revier tornou-se uma sala de fome, onde

as prisioneiras que estavam à beira da morte eram fechadas e lhes eram negadas comida e água. As guardas encafuavam entre setenta e oitenta mulheres nela, com um só balde a servir de latrina. Tinham de se deitar no chão e Koehler e Rapp tomavam apontamentos periodicamente para monitorizar o tempo que demoravam a morrerem. Slavequart levou a Oberschwester Marschall numa visita um dia com a «sua amiga», a prisioneira holandesa Ragna Fischer. Vera disse que aproveitou a oportunidade para perguntar se poderia ir embora, mas Marschall disse-lhe que a matariam a tiro se ela voltasse a fazer esse pedido. «Ela disse, isto é um campo de concentração, não é uma clínica de recuperação.» Treite também fez uma visita, mas, segundo Vera, fugiu quando ela lhe mostrou a sala onde matavam as vítimas à fome. No seu julgamento, Treite confirmou que no Campo da Juventude «as mulheres eram postas num regime de meias rações e obrigadas a ficarem imóveis de pé durante cinco ou seis horas por dia ao ar livre. Isso destinava-se claramente a matar grandes números de prisioneiras». Calculou que morriam cerca de cinquenta mulheres por dia dessa maneira. Assim como a ordem de matar pela fome foi aplicada no Campo da Juventude, também o Dr. Trommer introduziu o envenenamento em massa como outro método de matar, mas, segundo o testemunho de Salvequart, eram Koehler e Rapp quem administrava o veneno, não ela. Salvequart disse que a primeira vez que se verificou um envenenamento foi logo depois de um grupo de novas prisioneiras ter chegado do campo principal. Às três da madrugada, «quando o transporte de aniquilamento chegou como de costume», Rapp ordenou abruptamente a Vera que não riscasse os nomes da lista, mas que esperasse. Ela recordou: «Mandaram as mulheres fazer uma fila ao longo do corredor da Revier e a seguir o Koehler percorreu a fila dizendo: “Esta mulher está demasiado fraca, esta mulher é inútil”, como se estivessem à procura de quem ainda tivesse alguma força.» Os dois homens selecionaram uma polaca alta chamada Irena

Szyjkowska, que sofria de «hidropsia», pernas inchadas, um problema de saúde pouco grave. Koehler e Rapp mandaram Irena, que era casada com um general polaco, entrar no balneário da Revier e devolveram a lista de admissões a Vera para ela prosseguir a verificação. Em seguida, Koehler foi à zona das ambulâncias buscar uma caneca e uma colher. «Eu vi-o tirar uma colher de um pó branco e voltar ao balneário.» Ao fim de alguns minutos, chamaram Vera ao balneário. Irena estava deitada de costas, com Koehler ajoelhado sobre os joelhos dela e a segurar-lhe as mãos. Os homens ordenaram a Vera que apertasse o nariz de Irena enquanto tentavam abrir-lhe a boca à força. Vera disse que recusou e que fugiu, enquanto Irena gritava: «Porque é que estão a tentar assassinarme?» As prisioneiras que se encontravam no exterior do bloco ouviram os gritos de Irena. Vera afirmou que foi ter com Neudeck para lhe comunicar o sucedido e para pedir novamente para ser transferida, mas Neudeck disse que não havia nada a fazer. Salvequart regressou ao balneário, onde Rapp lhe ordenou que vigiasse Irena e comunicasse as suas observações. «Eram cerca das dez da noite e eu fui olhar por ela. Ela falou comigo e disse-me que o marido estava num campo de concentração na Alemanha e pediu-me para contar ao filho, que era editor de um jornal suíço, a maneira como ela tinha morrido.» Ao longo de toda a noite, Irena sofreu convulsões e não conseguia respirar. «Saía-lhe espuma da boca e dos ouvidos. Morreu cerca de três horas depois. Eu estive sozinha com ela durante todo esse tempo. A única assistência que pude prestar-lhe foi dar-lhe um chá de camomila.» Vera disse que Rapp veio de manhã e levou embora o corpo. Koehler pôs na sua reserva pessoal de drogas a maior parte do resto do veneno, cerca de 35 gramas. «Eu guardei algum para cometer suicídio, porque me tinha sido dito que não sairia viva do campo.» Salvequart argumentou no seu julgamento que sempre que se queixava sobre o que acontecia era punida, por exemplo «sendo obrigada a extrair dentes de ouro sem luvas». Também negou que

recebesse embrulhos de Schwarzhuber, dizendo que só falara com ele três vezes, «a primeira vez para me queixar sobre uma praga de ratazanas na morgue, mas ele não ajudou». Vera protestou que suspeitavam de que envenenava as prisioneiras por ser a única pessoa que era vista a entrar e a sair da Revier e porque usava uma bata branca de médica. Disse que compreendia porque é que ninguém confiava nela, «porque eu vivia onde matavam as pessoas... Mas nunca disse a ninguém que era médica. Disse que só tinha estudado Medicina durante um ano. Não há testemunhas oculares de que eu matasse pessoas». Gisela Krüger, a prisioneira alemã cuja perna Treite amputou, era uma das muitas testemunhas oculares que viu Vera matar pessoas. Gisela escrevia um diário, com descrições dos acontecimentos na Revier bastante diferentes das de Salvequart. Segundo Gisela, ela foi levada, com entre vinte e cinco e quarenta outras inválidas, diretamente para a Revier do Campo da Juventude à sua chegada no início de fevereiro. Pouco depois, Suhren apareceu e comentou: «Bom material para queimar no crematório. Podemos poupar na lenha.» Em 7 de fevereiro, Gisela escreveu: «Há pouco para comer e nenhuns medicamentos, mas a Vera tem um pó, possivelmente para a diarreia, mas as que tomam “o pó” adormecem e nunca mais acordam. Estou muito preocupada. Tenho uma dor no lado direito, mas não digo nada por causa do “pó”.» Em 8 de fevereiro, Gisela escreveu: «Todas as amputadas têm de ir num transporte. Meu Deus, para onde? Tive uma discussão com o Rapp, o homem da SS. Estou na lista das amputadas.» Gisela diz que, em seguida, o homem da SS a tirou da lista das amputadas, talvez porque ele era um bocado «simples» ou porque Vera lho pediu. «A Vera estava do meu lado», diz Gisela. Vera estava do lado de Gisela aparentemente porque Gisela se ofereceu para a ajudar com a papelada. Salvequart tinha outras ajudantes e «favoritas» que a ajudavam de várias maneiras, por exemplo confecionando o seu vestuário. Gisela disse que, como Vera

estava obviamente assoberbada de trabalho, «eu escrevia as listas das condenadas à morte. Só na Revier tínhamos entre 150 e 180 pacientes, com 50 a morrerem todos os dias. A Vera ia de bloco em bloco à procura de novas vítimas. Eu vi anéis de ouro a serem tirados dos dedos e coroas de ouro das bocas das vítimas.» Gisela explicou como ao longo dos dias a Revier se ia enchendo com prisioneiras. Enquanto os camiões removiam as prisioneiras dos blocos, as pacientes da Revier morriam por injeção ou sob o efeito do pó administrado por Vera e pelos dois homens da SS. A Sra. Rissel, a alemã de Wiesbaden com queimaduras do frio, recebeu de Vera duas doses de pó. Uma outra prisioneira que recebeu o pó foi a húngara que tinha perdido um pé na marcha de Budapeste. Sofria horrivelmente de dores no pé, que não estava ligado. «Agora, sai-lhe sangue da boca e do nariz, mas ela já deixou tudo isso para trás», escreveu Gisela. As mulheres que recusavam o pó de Vera eram frequentemente espancadas até abrirem a boca, e «ela enfiava-lho». Noutras ocasiões, «despachava-as com injeções letais». Koehler e Rapp mataram a tiro duas mulheres que recusaram o pó três vezes. Gisela descreveu também como Frau Thüringer, a alemã que tinha perdido três filhos na frente de combate, gritou a alguns trabalhadores civis da fábrica da Siemens que viu passar junto ao Campo da Juventude quando se dirigia para a vala da latrina. «Ajudem-nos, ajudem-nos, vão-nos matar aqui», suplicou. Os homens da Siemens continuaram a andar e no dia seguinte Frau Thüringer estava morta, assassinada numa viela perto da latrina. «Foi reconhecida pelos cabelos compridos em totós.» No dia seguinte chegou uma carta para Frau Thüringer do seu marido, em que ele escrevia que «a guerra vai acabar em breve e tudo ficará bem de novo». Por vezes, mães e filhas eram assassinadas juntas. Gisela recordava uma mãe inválida na Revier com a sua filha de dezassete anos, que era surda e não conseguia comunicar com as pessoas. Vera deu o pó a ambas. A mãe morreu bastante depressa. A filha durou mais quarenta e oito horas e recebeu mais uma dose. Mesmo

assim, não morria. Salvequart deu-lhe então uma injeção letal diretamente no coração, dizendo, quando Gisela estava por perto: «Esta mexe-me com os nervos.» Outra das «favoritas» de Vera era uma prisioneira francesa chamada Irène Ottelard. Irène estava tão incapacitada que, quando selecionada para o Campo da Juventude no início de fevereiro, foi arrastada pelo caminho enlameado na floresta numa carroça com dezasseis outras prisioneiras doentes. «Demorou muito tempo a chegar lá», disse ao tribunal de Hamburgo, «porque a estrada era muito má e estava a chover e fazia muito frio.» À chegada, Irène foi alojada num bloco normal, onde «a maioria das prisioneiras tinha disenteria e, por isso, não podiam mexer-se e iam simplesmente morrer. Foram ali deixadas sem qualquer tipo de assistência.» Irène foi transferida para a Revier com cerca de outras trinta prisioneiras. Dormia numa cama com a sua amiga Madame Gabianuit e recordava que a Revier tinha um «balneário com um bom lavatório de louça». Mas quando entrou no balneário viu três ou quatro mulheres ali deitadas no chão. «Estavam completamente nuas e gemiam e queixavam-se. Penso que eram polacas. Só conseguia ouvir “água”, mas era tudo.» Mais tarde, Irène ouviu dizer que Salvequart tinha injetado as mulheres. «Vi-a sair do balneário com uma seringa. Vi-a dar uma espécie de pó branco.» No seu testemunho em Hamburgo, Irène declarou que Salvequart dizia às mulheres que elas precisavam do pó branco para recuperar as forças, porque iriam partir «num transporte». «A grande maioria das que o tomavam dormia e ressonava e por volta das três ou quatro da madrugada estava morta. Até a minha amiga, Madame Gabianuit, tomou o pó branco e eu vi-a morta ao meu lado.» A amiga de Irène Madame Ridondellu sofria de disenteria aguda e foi-lhe dito que se sujasse a cama mais uma vez lhe dariam uma injeção. Ela não conseguiu evitar sujar a cama uma outra vez. «Mais tarde, ouvi-a gritar: “Irène, mataram-me”, e nunca mais vi essa senhora.» Muitas outras prisioneiras, particularmente as que trabalhavam como Kapos, mensageiras ou funcionárias administrativas, viram a

Dra. Vera matar prisioneiras. Lotte Sonntag, a mensageira austríaca do campo de concentração, disse que Salvequart lhe tinha contado que eram administradas cinquenta injeções letais todos os dias. A seguir, mostrou o pó a Lotte. Quando se espalhou a notícia de que o pó branco implicava uma morte certa, Salvequart encontrou novas maneiras de levar as prisioneiras a tomar o pó. Uma prisioneira vinda de Auschwitz, Gerda Backasch, descreveu como uma mulher desconhecida do pessoal lhe deu uma fatia de pão com manteiga e mel uma manhã. Espantada, Gerda ofereceu metade a uma amiga. Nesse momento, Salvequart, que estava no exterior do bloco, bateu na janela e disse a Gerda que não o comesse, porque estava envenenado. A mulher do grupo de recolha de cadáveres, Józefa MajkowskaKruszynnska, foi um dia buscar cadáveres à Revier e encontrou o corpo da sua cunhada, Stanisława Pzlotko. Józefa descobriu que tinham dado a Stanisława o pão com mel que continha o pó branco. Depois disso, mantive-me atenta e nunca mais comi pão preparado por outros. Também avisei as minhas desgraçadas colegas prisioneiras. Nem todas quiseram acreditar em mim. Um dia, ofereceram-nos pão e mel, e doze das cento e vinte prisioneiras do bloco que estavam comigo recusaram-se a comê-lo, e só as doze sobreviveram. As outras foram todas envenenadas e morreram. Quando a Vera descobriu que tínhamos sobrevivido, trouxe-nos pão, mel e margarina ainda nas suas embalagens. Disse que eram rações extra pelo trabalho pesado que fazíamos. Eu estava cheia de fome, especialmente ao ver a comida que tinha ali diante de mim. Por fim, cortei um pedaço de pão e barrei-o com margarina e mel. As minhas camaradas fizeram o mesmo. Pouco depois, senti-me doente. Tinha febre e comecei a tremer. Duas das minhas camaradas que também comeram o pão tinham uma espuma vermelha a sair-lhes da boca. As prisioneiras que estavam a ver sugeriram que eu bebesse a minha própria urina. Ultrapassei a aversão e bebi-a. Depois disso, repeti essa terapia e não tardei a esvaziar o estômago. Alguém me deu três chávenas de leite para beber. As minhas amigas que comeram o pão morreram nessa noite.

Os envenenamentos prosseguiam, as seleções para o extermínio por gás aumentavam e Mary O’Shaughnessy começou a viver num receio constante do bastão de Neudeck. Dado que tinha um braço postiço e era portadora de cartão cor-de-rosa, estava convencida de

que não tardaria a ser selecionada. Ao fim de cerca de duas semanas, no entanto, foi o número de Cicely Lefort a ser chamado. Claramente, o seu nome tinha aparecido na «lista Mittwerda» desse dia. «Estávamos perfiladas nesse dia na Appell quando dois guardas da SS vieram com uma lista. Neudeck estava presente. Ela falou com o homem da SS e ele chamou a Cicely. No caso da Cicely, não havia razão para a seleção. Ela não tinha cartão cor-de-rosa nem qualquer incapacidade particular. O seu aspeto físico era melhor do que o de muitas outras.» Como muitas outras prisioneiras no Campo da Juventude, Mary O’Shaughnessy já compreendia naquela altura que, em grande medida, as listas eram elaboradas aleatoriamente. A própria Neudeck escolhia pessoas, só porque lhe apetecia. Quando as seleções começaram, as prisioneiras não sabiam para onde iam os camiões, mas ouviam conversas. As guardas e as Kapos diziam umas às outras: «Ela vai deixar de sentir isso em breve» ou «Ela não vai precisar de cobertor lá para onde vai». A holandesa Stijntje Tol dirigia-se para a vala da latrina um dia quando encontrou uma prisioneira jugoslava que trabalhava no ginásio. «Ela disse-me: “Esta noite, foram levadas cerca de 500.” Falámos em alemão e eu perguntei para onde tinham ido essas 500 e ela disse: “Zur Himmelfahrt [Na viagem para o céu].”» Pouco depois, no entanto — e certamente muito antes de Cicely Lefort ser selecionada —, toda a gente sabia que o céu era a câmara de gás, porque todo o campo falava disso, até mesmo as guardas. Durante as investigações alemãs realizadas nos anos 1960 e 1970, essas mesmas guardas negaram saber fosse o que fosse, agarrandose à desculpa da Mittwerda para explicar a sua ignorância ou recorrendo a outras mentiras. No seu julgamento em Hamburgo, Josef Bertl, o condutor dos camiões, disse que «não estava interessado» no que acontecia às prisioneiras do Campo da Juventude e «não perguntava». Ruth Neudeck, no entanto, identificou Bertl como o condutor,

dizendo que Schwarzhuber lhe ordenara que tivesse um camião diário pronto para Uckermark, «e todos os dias ele chegava no camião ao campo às seis da tarde». Bertl devia saber que os transportes iam para a câmara de gás, disse Neudeck, por causa do que Schwarzhuber lhe dizia. «Ouvi Schwarzhuber falar com ele um dia, dizendo: “Bertl, estás ao corrente do extermínio por gás, esta noite outra vez.”» Neudeck descreveu do seu ponto de vista o que acontecia quando o camião chegava ao Campo da Juventude. «Ao princípio, eu ficava cá em baixo para contar as prisioneiras, para não haver demasiadas ou demasiado poucas. Acontecia de facto que uma filha quisesse viajar com a sua mãe ou vice-versa.» Neudeck disse que usualmente ela, Rapp e Koehler tinham de bater nas mulheres para as fazerem entrar no camião. «O Rapp e o amigo dele ficavam também muitas vezes na parte de trás do camião para as prisioneiras não saltarem para fora.» Em seguida, o camião dirigia-se para o campo principal, levando as prisioneiras, Neudeck e outras guardas e Rapp e Koehler. Virava à esquerda na direção do crematório e da câmara de gás, parando sempre a cinquenta metros do seu destino. Rapp dava-se bem com Alfred Cott, o homem encarregado do crematório, e dois usualmente tiravam duas mulheres cada um do camião e conduziam-nas para dentro do edifício. Neudeck e as suas colegas guardas ficavam junto ao camião até as últimas prisioneiras serem descarregadas. Numa das primeiras viagens, disse ela, Rapp explicou-lhe o que aconteceria a seguir. «Eu já estava em Uckermark há três ou quatro dias quando Rapp me disse que as mulheres que estávamos a selecionar eram exterminadas por gás no crematório de Ravensbrück. Rapp disse-me que quando o pequeno número de vítimas [selecionadas num determinado dia] não compensava usar gás, as mulheres eram simplesmente mortas a tiro no crematório». Nessas ocasiões, disse Neudeck, «eu mesma e outras guardas ouvíamos os disparos. Contudo, no geral, a maior parte das prisioneiras era exterminada por

gás». Com os seus modos francos do costume, Neudeck disse ao tribunal que Mittwerda era «uma invenção de Schwarzhuber, para as prisioneiras não saberem que iam ser exterminadas por gás.» Não sabia dizer ao tribunal o que se passava dentro da câmara de gás porque não tinha autorização para se aproximar, o que parece tê-la irritado. Mas o próprio Schwarzhuber fez uma descrição singularmente pormenorizada numa declaração no julgamento. Embora tenha minimizado os números, de um modo geral o seu testemunho estava correto. Disse: A câmara de gás tinha cerca de nove metros por 4,5 e capacidade para cerca de 150 pessoas. Ficava a cerca de cinco metros do crematório. As prisioneiras tinham de se despir num abrigo situado a três metros da câmara de gás, de onde eram levadas para a câmara através de uma pequena divisão. Eu assisti a um extermínio por gás. Empurraram 150 mulheres de uma só vez para dentro da câmara de gás. O Hauptscharführer Moll ordenou-lhes que se despissem e disse-lhes que íamos tratarlhes dos piolhos. Um prisioneiro com uma máscara de gás subiu ao telhado e atirou uma botija de gás pela abertura, que fechou muito depressa. Ouvi os gemidos e os gritos. Ao fim de uns dois ou três minutos, fez-se silêncio na câmara. Eu não sabia se as mulheres estavam mortas ou só atordoadas. Não estava lá quando abriram as portas.

CAPÍTULO 34 ESCONDER-SE Quando as coisas no Campo da Juventude de Uckermark começaram a correr sem sobressaltos, a SS fez poucos esforços para evitar que a notícia dos horrores chegassem ao campo principal. As mensageiras andavam entre Ravensbrück e o Campo da Juventude a transmitirem mensagens e a levarem listas das prisioneiras mortas ou selecionadas para serem exterminadas. Havia pilhas permanentes de peças de vestuário ensanguentadas na Effektenkammer. As testemunhas de Jeová, sempre dispostas a fazerem recados, conseguiram obter um fornecimento de óleo de fígado de bacalhau e entregaram-no na Revier de Uckermark. Regressaram com histórias de pó branco e de envenenamentos. A SS exigia às Blockovas do Campo da Juventude que transmitissem os números contados em cada Appell às secretárias do campo principal, que em seguida verificavam esses dados nos seus registos. Em meados de fevereiro, com as seleções a aumentarem, já tinham sido exterminadas por gás cerca de 1500 mulheres. «Quando verificámos os números de mortas, compreendemos abismadas o que se estava a passar lá», disse Hermine Salvini, a prisioneira austríaca que estava agora encarregada de coligir os números do campo de concentração. As prisioneiras dos blocos degradados, aqueles que estavam encostados ao muro interior no lado sul do campo principal, ouviam os camiões pararem junto ao crematório, que ficava do outro lado. Ao princípio, as prisioneiras perguntavam-se porque é que os motores ficavam a trabalhar durante tanto tempo, mas alguém disse que era para encobrir os gritos da câmara de gás. O bunker, do outro lado do crematório, ficava agora frequentemente envolto num fumo fedorento que penetrava nas celas. Uma prisioneira que estava a fazer a limpeza do bunker contou um

dia a Geneviève de Gaulle que tinham metido os corpos demasiado juntos nos fornos e a chaminé incendiara-se. Walter Schenk, o chefe do crematório — que tinha sido bombeiro antes da guerra —, deu uma outra explicação para as chamas. Para queimar a pilha cada vez maior de corpos, a temperatura tinha sido aumentada e o resultado foi que na noite de 25 de fevereiro o telhado do crematório se incendiou. Schenk declarou que era impossível dizer quantos corpos eram queimados naquela altura, porque ele era unicamente responsável por queimar os corpos durante o dia e esses não eram os das vítimas do extermínio por gás. «Esses corpos eram queimados à noite. Eram queimados pelo grupo de Auschwitz. Eu tinha de fazer a requisição do carvão para os queimar. Em fevereiro de 1945, o consumo aumentou.» O plano para ocultar o que se passava das mulheres que trabalhavam na Siemens transferindo as suas camaratas para a fábrica também tinham fracassado. As mulheres apreciavam o seu novo alojamento limpo: a comida na cozinha da Siemens era melhor, a fábrica tinha o seu próprio médico e a sua própria enfermaria e todas as prisioneiras ficaram encantadas por não terem de marchar entre o campo de concentração e a fábrica todos os dias. No entanto, devido à localização da fábrica, empoleirada numa colina, as prisioneiras podiam ver o que se passava lá em baixo. Sem sequer saírem da fábrica, todas ouviam o ruído dos camiões a percorrerem os caminhos enlameados. E as que quisessem espreitar por entre as árvores — despidas no inverno — veriam as pequenas torres de vigia de madeira do Campo da Juventude à distância e poderiam observar os camiões, carregados com mulheres meio nuas, a dirigirem-se para a câmara de gás. Imediatamente antes de chegarem ao sopé da colina da Siemens, os camiões viravam na direção dos muros do campo principal e paravam junto à câmara de gás e ao crematório, que ficavam só a cerca de 300 metros. «Frequentemente, eu punha-me a contar os veículos carregados com corpos; iam uns atrás dos outros, seguindo sempre o mesmo percurso», recordou a austro-checa Anni Vavak.

«Dissemos às guardas no campo da Siemens, que andavam a ocultar esses factos dos trabalhadores civis, e ficaram com o cabelo em pé de medo.» Yvonne Useldinger, uma luxemburguesa que começou a trabalhar na Siemens em janeiro de 1945, escrevia um diário. Em 29 de fevereiro, registou o seguinte: «O transporte de extermínio para Uckermark passou pelo nosso campo. O sol brilhava quente.» As mulheres da Siemens também ficavam a saber notícias das seleções através dos seus contactos no campo principal, onde as prisioneiras estavam cada vez mais bem informadas. A polaca Irena Dragana até se ofereceu para ir fazer um recado ao Campo da Juventude para ver com os seus próprios olhos. Irena era uma estudante polaca de Varsóvia. Ao fim de quatro anos em Ravensbrück, incluindo temporadas no bunker, já era «veterana» no campo e não se chocava facilmente. Portadora de um número na casa dos 7000, tinha aquilo a que chamava um estatuto de «Verfüg honorária», o que significava que conseguia faltar à chamada para o trabalho casual quase sem que ninguém se importasse, particularmente durante os caóticos meses finais da guerra. «Por vezes, fazia de conta que era trabalhadora do turno da noite», recordou ela. «Não me importava com nada, porque pensava que estava destinada a morrer.» Um dia, no início de março de 1945, quando Irena estava sentada no seu bloco, uma Kapo veio pedir voluntárias para irem com uma carroça buscar cobertores ao Campo da Juventude. Irena pôs o braço no ar. Uma caminhada pelos bosques levou-a até aos portões, e a primeira coisa que viu foi um grupo de mulheres de pé diante dos blocos. «Estavam a tremer de frio e havia montes de cobertores ao lado delas no chão, que tinham sido levados três semanas antes. Elas não tinham permissão para lhes mexerem e dormiam sem cobertores.» Irena começou a falar com as mulheres, que lhe perguntaram quanta comida é que as prisioneiras no campo principal recebiam.

«Berraram que tinham fome. Começaram a dar-me pedaços de papel com os nomes das pessoas que conheciam no campo principal, para elas as ajudarem. Num pedaço de papel alguém tinha escrito que queria pão porque tinha fome, mas não tinha nome.» Irena foi procurar uma Blockova polaca que ela sabia que estava a trabalhar no Campo da Juventude. A Blockova disse-lhe que a maior parte das mulheres que chegaram nos primeiros transportes já tinha morrido. As que ela ainda tinha a seu cargo andavam quase nuas e ela não tinha roupas para lhes dar. «Por isso, vestia-as com papel e com palha tirada dos colchões. Eu vi uma mulher vestida assim, que me lembrou um peixe apanhado numa rede.» Enquanto Irena conversava com a sua amiga, Neudeck apareceu, e fez-se silêncio. «Ela estava a sorrir e trazia uma bengala na mão com uma ponta de níquel dobrada, e aproximou-se das mulheres que estavam de pé diante do bloco e começou a apontar para elas.» A Blockova perguntou porque é que ela estava a selecionar mulheres agora, já que não era a hora habitual. A Neudeck disse que elas iam tricotar e mandou-as pôr-se à sombra de uma árvore onde já estava por terra uma mulher morta, que parecia mais um monturo do que uma mulher... à distância, viam-se outros cadáveres, quase nus. Enquanto a Neudeck estava a escolher, algumas mulheres tentavam sorrir-lhe, e a Neudeck disse-lhes: «Porque é que vocês me sorriem?», e fê-las irem para a sombra das árvores com as outras.

Quando Irena estava a meter os cobertores nas carroças, viu outra polaca sua conhecida que estava a trabalhar ali no Campo da Juventude e falou com ela. «Ela disse-me que durante a noite tinha havido um ataque aéreo e ela tinha saído para as traseiras da cozinha para ver se encontrava umas cascas de batata para comer. Viu camiões ali e acocorou-se e viu homens da SS saírem e entrarem no bloco da Revier. Viu raparigas novas com os pés e a cabeça ligados a serem trazidas cá para fora.» A sua conhecida explicou que as raparigas eram prisioneiras de subcampos que tinham sofrido ferimentos graves em ataques aéreos e estavam agora incapacitadas para o trabalho. Os gerentes da suas

fábricas tinham recambiado as jovens para Ravensbrück para as matarem. Certamente não tinham sido registadas no campo principal e estavam a ser exterminadas ali mesmo, num camião especialmente adaptado à câmara de gás. As polacas conheciam esses camiões, que os nazis usaram amplamente por toda a Polónia durante os primeiros anos da ocupação. A conhecida de Irena descreveu o seu funcionamento ali no Campo da Juventude. Jovens com ligaduras eram empurradas para fora da Revier e para dentro do camião pela SS. Quando o camião ficava cheio, era fechado. O camião era completamente coberto. O homem da SS atirava uma lata para dentro, pela pequena janela junto ao motor, e só se ouvia o tilintar da lata a bater nalguma coisa. Demorava cerca de um minuto. Havia um silêncio de morte. Havia vários camiões assim.

Irena teve de partir do Campo da Juventude à pressa, porque a sua amiga já tinha recolhido todas as roupas do crematório e estava à sua espera. «Havia tantos piolhos nas roupas que parecia que alguém os tinha atirado para cima delas às pazadas.» Em Ravensbrück, Irena regressou ao seu bloco e contou a toda a gente o que tinha visto. Daí a pouco, a notícia já circulava por todo o campo de concentração. Tinham agora passado quatro meses desde a ordem de Himmler de encerrar as câmaras de gás de Auschwitz — ou, nas palavras de Höss, «descontinuar os extermínios de judeus». Com o fim dos campos de morte no Leste, no entanto, o uso de gás não foi inteiramente «descontinuado»: em meados de fevereiro de 1945, pelo menos 1500 mulheres, judias e não judias, tinham já sido exterminadas por gás no campo de morte mais recente de Himmler, ali mesmo em solo alemão. Que o assassínio em massa continuasse mesmo naquela fase não era surpresa para as pessoas que tinham experiência direta do aparelho nazi. No seu depoimento em Nuremberga, Marie-Claude Vaillant-Couturier, que foi prisioneira em Auschwitz e em Ravensbrück, descreveu o programa de extermínio em Ravensbrück como «o impulso sistemático e implacável de usar seres humanos como escravos e de os matar quando já não podiam trabalhar mais».

Rudolf Höss, o ex-comandante de Auschwitz, falou do «impulso implacável de matar». Enquanto aguardava a sua execução, Höss escreveu que esse impulso foi acalentado durante tanto tempo na psique nazi que acabou por seguir o seu próprio curso, impossível de extinguir. No que dizia respeito às prisioneiras, o principal objetivo da sua morte era a destruição de provas do que acontecera ali muito antes da chegada dos Aliados. Algumas prisioneiras receavam que fossem todas exterminadas antes desse momento. Outras diziam que era impossível. Depois de ouvirem boatos sobre o que acontecera no campo de concentração de Stutthof, onde algumas semanas antes 5000 prisioneiros de ambos os sexos tinham sido obrigados a entrar pelo Báltico e em seguida mortos a tiros de metralhadora, algumas mulheres diziam que seriam todas mortas a tiro no mar. No entanto, embora aquele frenesim de extermínio mergulhasse o campo em novas profundezas de desespero, trouxe ao mesmo tempo, entre algumas das prisioneiras, uma vaga de coragem e de esperança. Como aquela aniquilação não deixava qualquer dúvida de que os Alemães sabiam que o fim estava muito próximo, tanto mais sentido fazia que as prisioneiras tentassem aguentar-se. As que ainda tinham alguns restos de força sabiam que havia alguma probabilidade de saírem vivas, desde que conseguissem suportar a fome, a doença e a brutalidade casual. Era óbvio que a SS e as guardas sabiam que a guerra estava perdida. Grete Buber-Neumann entrava por vezes à socapa nos escritórios da SS antes da Appell e olhava para o mapa da Europa a grande escala que estava na parede. Nele havia pequenas bandeiras a assinalar a situação nas frentes de combate — já não de acordo com os relatórios oficiais alemães, mas colocadas de acordo com as notícias recebidas em transmissões radiofónicas do inimigo. «Durante o dia, líamos-lhes no rosto quais eram as notícias, e à medida que elas iam piorando eles iam ficando cada vez mais deprimidos», recordou Grete. A disciplina continuava a desmoronar-se. Quem soubesse como,

podia até faltar à Appell, e muitas vezes as que compareciam ficavam por ali de pé a tagarelar ou a ler o jornal. Quando sova uma sirene de aviso de ataque aéreo, os guardas corriam a abrigar-se. «A ordem por todo o campo tinha-se desmoronado completamente», disse Maria Moldenhawer, a instrutora militar polaca, que quase parecia sentir saudades dos velhos tempos de disciplina estrita. Germaine Tillion teve até a oportunidade de levar à cena uma opereta, que andava a compor secretamente há meses. Parodiando Orfeu no Inferno, a opereta, que Germaine disse ser uma tentativa de ajudar as prisioneiras a «resistirem rindo», chamava-se Le Verfügbar Aux Enfers [O Verfügbar nos Infernos] e foi levada à cena secretamente nas traseiras de um bloco. Um coro de Verfügs cantou sobre «um campo-modelo com todos os confortos, água, gás, eletricidade — acima de tudo gás». Na Siemens, as relações com os trabalhadores civis da fábrica começaram a melhorar. «Solidarizavam-se mais connosco, porque também estavam a ser forçados a trabalharem. Também lhes faltava comida», disse Basia Zajączkowska, a sobrevivente do gueto de Kielce. Em geral, as guardas pareciam estar menos presentes no campo principal e mais dispostas a permitir que as Blockovas, as Kapos e a polícia do campo assumissem o controlo. A austríaca Elisabeth Thury, a chefe das mulheres-polícia do campo, tornou-se mais destacada; Dorothea Binz passou a ver-se menos. Foi o comportamento do novo médico da SS, Franz Lucas, que mais dramaticamente se alterou naqueles meses finais. Tal como muitos dos outros recém-chegados da SS, o seu posto anterior tinha sido em Auschwitz, e, tal como os outros, estivera intimamente envolvido nas atrocidades, designadamente na seleção de prisioneiros para a câmara de gás. Loulou Le Porz não viu qualquer razão para confiar em Lucas quando ele chegou: «Usava o mesmo uniforme da SS, o mesmo boné.» Mas Loulou não tardou a notar que Lucas começou rapidamente a comportar-se de modo diferente dos outros médicos. «Trazia-nos medicamentos e por vezes examinava

uma paciente. O Treite costumava tocar-lhes com a bota.» Um dia, Lucas examinou uma jovem holandesa que sofria de tuberculose e que também estava grávida. «Ele mostrou uma real atenção para com a pequena holandesa, e, quando o bebé nasceu, até lhe trouxe leite. A pobre mulher deu à luz, mas morreu pouco depois, e nem sequer chegámos a saber o nome dela. E pouco depois o bebé morreu também.» Por volta da mesma altura em que Vera Salvequart andava a distribuir o pó branco no Campo da Juventude, estava a ser conduzida uma experiência de envenenamento no campo principal, no Bloco 10. A Schwester Martha Haake ordenou a Loulou e à nova Blockova, Erika Buchmann, que a seguissem a uma parte do bloco onde se encontravam deitadas as mulheres criticamente doentes. Haake disse às prisioneiras que tinha um pó especial que as ajudaria a dormir e pediu voluntárias para o tomar. Loulou soube instintivamente que Haake tencionava envenenar as mulheres. Tentou dar-lhes a entender que não deveriam oferecer-se como voluntárias, mas sem sucesso; algumas mulheres tomaram até uma dose dupla do pó. Haake retirou-se depois de pedir a Loulou que observasse a reação das mulheres. Meia hora depois de adormecerem, começaram a vomitar um muco vermelho. Na manhã seguinte, Loulou e Erika encontraram cinco mulheres mortas. As outras gemiam e estavam à beira da morte, com sangue a jorrar-lhes da boca, do nariz e dos ouvidos. Lucas foi chamado e mostrou-se furioso. Algumas prisioneiras na parte principal da Revier ouviram-no protestar a Marschall, Trommer e Treite. Mais tarde, Lucas disse a Loulou e a Erika que as experiências tinham sido «ordenadas de Berlim» e que não sabia nada sobre elas. Também Sylvia Salvesen tomara consciência da disposição de Lucas para ajudar. Em janeiro, Lucas informou Sylvia que a sua jovem «parente» norueguesa Wanda Hjort e o seu pai tinham voltado a visitar o campo. Não lhes deram autorização para verem Sylvia, mas deixaram embrulhos com medicamentos. Lucas entregou os medicamentos a Sylvia e ofereceu-se para servir como intermediário

com os Hjorts. Estava a abrir-se um número cada vez maior de canais de comunicação entre as prisioneiras e o mundo exterior. As polacas receberam uma carta de Aka Kołodziejczak, a sua amiga que tinha sido libertada no início de 1944 e estava agora na América, e ficaram a saber algo do que Aka fizera para divulgar a história delas nos Estados Unidos.43 Por fim, um número significativo de prisioneiras estava a receber embrulhos. Denise Dufournier recebeu um embrulho do seu irmão Bernard — conseguido através do amigo espanhol de Bernard que era diplomata em Berlim. Esse mesmo espanhol serviu-se dos seus contactos com a Cruz Vermelha para obter acesso ao campo de concentração. Um dia em janeiro, para sua grande surpresa, Denise foi chamada nach vorne e disseram-lhe que tinha uma visita. Ali estava o amigo do seu irmão, que pôde dar a notícia a Bernard de que, pelo menos, ela estava viva. Subitamente, as coelhas começaram também a receber pequenos embrulhos, contendo latas de sardinhas e «bênçãos» religiosas — pequenas medalhas — que algumas acreditavam terem vindo do Papa em resposta às suas cartas secretas. De facto, os embrulhos parecem ter vindo de missões católicas de Portugal, um país neutro, que, provavelmente, tinham ficado a saber das provações das mulheres através de missões polacas que recebiam as notícias da SWIT. No início de 1945, circulavam em Ravensbrück boatos de que algumas prisioneiras importantes poderiam ser trocadas por alemães detidos em campos dos Aliados. As secretárias do Schreibstube viram passar papéis na secretária do comandante. Murmurava-se que Geneviève de Gaulle e Gemma La Guardia Gluck poderiam ser libertadas em breve. Os sinais continuavam a ser contraditórios. Elisabeth Thury, a chefe das mulheres-polícia do campo, disse um dia a Sylvia Salvesen que recebera ordens para compilar uma lista da intelligentsia no campo que supostamente iria ser usada como refém. Esse plano não parece ter tido resultados. Vários dias depois, um grupo de reféns

importantes que estavam detidos no bunker há algum tempo foi levado e executado a tiro. Entre eles encontrava-se Helmuth von Moltke, o pacifista alemão e líder do Círculo Kreisau da resistência. Entretanto, Suhren mandou chamar ao seu gabinete a condessa polaca Karolina Lanckorońska. O comandante quis saber como é que ela estava de saúde e perguntou-lhe se tinha comida e vestuário suficientes. «Comportou-se como um lojista a tentar vender a sua mercadoria», disse ela. «Eu disse que não havia nada de que necessitasse. Ao ouvir aquilo, ele ficou impaciente e repetiu a pergunta. Por fim, fui levada de volta para o meu bloco.» A sensação de que o mundo lá fora estava a atirar boias de salvação a Ravensbrück, embora numa altura em que as seleções para o Campo da Juventude se intensificavam, animou algumas das prisioneiras e encorajou-as a correrem maiores riscos. As mulheres do Exército Vermelho apresentaram um protesto a Suhren quando ouviram dizer que tinha chegado ao campo um grupo de crianças russas para serem mortas. Suhren autorizou que não se matassem as crianças, desde que fossem mantidas no bloco soviético. Quando se realizou mais uma seleção no Bloco 10, Loulou Le Porz e as suas amigas Marie-Claude Vaillant-Couturier e Jacqueline d’Alincourt debateram se também elas deveriam abordar Suhren e apresentar-lhe o seu protesto. As três mulheres encontraram-se durante o período do passeio na Lagerstrasse no domingo seguinte e falaram sobre o que deveria ser feito. Loulou recordou: Estávamos todas em choque. Começávamos a compreender que eles estavam decididos a aniquilar todas as nossas doentes e, provavelmente, a aniquilar-nos também a nós. Jacqueline queria ir diretamente ao comandante apresentar um protesto, e teria ido ter com o Suhren de bandeira francesa desfraldada se pudesse. Mas eu pensei, e se me mandam para o Strafblock e deixo de poder cuidar das minhas doentes? A Marie-Claude também foi cautelosa. Por isso, decidimos não protestar, mas ajudar as nossas prisioneiras à nossa maneira.

No bloco NN, algumas das coelhas atreviam-se até a ter a esperança de poderem afinal voltar para casa, simplesmente porque ainda não as tinham matado a tiro. Mais do que qualquer outro grupo,

as coelhas sempre tinham tido razões para acreditar que iriam ser mortas, porque vivas eram provas incriminatórias. Pelo sim, pelo não, uma delas tinha recentemente obtido uma máquina fotográfica no mercado negro do campo de concentração e persuadira Germaine Tillion a tirar fotografias das suas pernas como prova documental, se a execução final chegasse a verificar-se. Wanda Wojtasik, no entanto, acreditava que se a SS as quisesse matar já o teria feito. «Tínhamos começado a permitir-nos pensar na perspetiva da liberdade», disse Wanda. E Krysia Czyż, que já não podia escrever cartas secretas para casa, passava o seu tempo a desenhar mapas intrincados com as estradas ao longo das quais tencionava caminhar para casa, até Lublin. Por conseguinte, quando em 4 de fevereiro chegou uma mensageira com a notícia de que todas as coelhas deveriam permanecer dentro do bloco até instruções em contrário — era uma sentença de morte, e todas o sabiam —, o choque foi muito pior do que seria se elas nunca tivessem começado a ter esperança. «Seguiu-se um silêncio total e inimaginável quando a mensageira partiu», disse Wanda Wojtasik. Ela olhou para o rosto de Krysia, que estava cinzento — «não pálido, mas da cor das cinzas». Numa questão de segundos, a notícia espalhou-se por todo o bloco e outras prisioneiras que não tinham sido operadas foram-se abaixo, gemendo e queixando-se da injustiça. Uma camponesa chamada Lodzia começou a soluçar, o que contagiou todas as outras, e o bloco inteiro pôs-se a chorar. «Agora sabíamos que a guerra estava a aproximar-se do fim e que iríamos ser completamente exterminadas. As experiências feitas em nós e noutras eram um crime contra a humanidade, e, como testemunhas, nós tínhamos de ser destruídas», disse Wanda. Nessa noite, espalhou-se o boato de que iriam ser levadas para GrossRosen, não executadas, mas toda a gente sabia que se tratava de uma mentira, porque Gross-Rosen já tinha sido libertado. Ao longo de toda a noite, realizaram-se reuniões num ambiente febril, com as prisioneiras a debaterem o que fazer e mensagens de

apoio a chegarem em catadupa de todo o campo. Algumas prisioneiras passaram o tempo à «espera da morte» a escrever cartas aos seus entes queridos, que davam a outras prisioneiras para elas as entregarem. Outras coelhas cantavam canções patrióticas polacas. Um grupo fez planos para resistir por todos os meios possíveis. Incluía participantes ativas de protestos anteriores — Wanda, Krysia e Dziuba Sokulska — e muitas outras. As cabecilhas eram Jadwiga Kamińska e Zofia Baj, que propuseram um plano em duas fases. Primeiro, uma delegação apresentaria uma declaração a Fritz Suhren, desafiando-o a admitir que a sugestão de que as coelhas iriam para Gross-Rosen era uma mentira. Em seguida, exigiriam que o seu alegado crime fosse lido em voz alta antes de serem executadas. «Concordámos que lhe diríamos que tínhamos o dever de voltar para a nossa pátria ou, se íamos morrer, queríamos morrer como militares no campo de batalha», disse Wanda. Enquanto a declaração estivesse a ser apresentada, as outras coelhas fariam o que fosse necessário para não serem levadas e executadas, o que implicaria esconderem-se algures no campo de concentração. Um dos esquemas envolvia meterem-se clandestinamente em grupos de trabalho das Zugänge — recémchegadas — que ainda não tinham um número de registo do campo. Como sabiam por experiência que, provavelmente, a primeira tentativa de as juntar ocorreria na Appell da manhã, só tinham algumas horas para se prepararem. Para que o plano fosse bemsucedido, as coelhas precisavam de voluntárias para ocuparem o seu lugar na fila enquanto elas se escondiam. Passaram palavra imediatamente a Blockovas amigas e, quando soou a sirene, às quatro da madrugada, as voluntárias já estavam preparadas. Chegoulhes o apoio das mulheres do Exército Vermelho, também no Bloco 24, algumas das quais deram às coelhas a sua ração de sopa, dizendo: «Vão precisar de todas as vossas forças agora, raparigas.» Szura, uma eletricista soviética, prometeu desligar as luzes durante a Appell para encobrir o desaparecimento das coelhas. Duas outras jovens do Exército Vermelho procuraram Karolina Lanckorońska e

disseram-lhe: «Menina Karla, nós não entregaremos as coelhas.» «Aconteceu uma coisa incrível, inaudita — todo o campo decidiu que nós tínhamos de ser salvas», disse Dziuba Sokulska. Uma coelha seria substituída por uma médica do Exército Vermelho, outra por uma jugoslava. Uma prisioneira norueguesa disse à sua amiga coelha que insistiria em ser executada no seu lugar. «Deves ser tu a viver para contar ao mundo os crimes cometidos contra ti. Eu sou mais velha. Posso morrer», disse a norueguesa, em lágrimas. Muitas polacas disponibilizaram-se também. Uma polaca idosa chamada Wladka implorou que a deixassem substituir Wanda, dizendo que tinha cancro e que, de qualquer maneira, ia morrer em breve. Se não Wanda, então Krysia, insistiu, para que ela sobrevivesse e pudesse contar a sua história. Nem Wanda nem Krysia concordaram. Doze coelhas ofereceram-se para se esconderem primeiro, e às quatro da madrugada elas e as suas substitutas estavam prontas. Com as filas a formarem-se, as doze escapuliram-se e as suas substitutas preencheram o espaço antes de as guardas começarem a fazer a contagem. Quando começou a chamada, as prisioneiras ouviram um murmúrio de um dos extremos, seguido por vozes a berrarem: «Eles vêm buscá-las! Eles vêm buscá-las!» Wacława Andrzejak viu Suhren à distância, rodeado por guardas com cães, a descer a Lagerstrasse. Uma das guardas trazia uma folha com uma lista de nomes. A sirene ainda não tinha soado, mas o berro Arbeitsappell! — Chamada para o trabalho! — soou por entre as filas de prisioneiras e todas elas destroçaram. Algumas gritavam: «Não deixaremos que as levem.» As guardas tentaram retomar o controlo, mas nesse momento a eletricista do Exército Vermelho desligou um fusível e o campo ficou mergulhado numa escuridão de breu. Colunas de prisioneiras colidiam às cegas, enquanto mais coelhas eram apanhadas e escondidas por prisioneiras de outros blocos. As guardas recuaram, esperando que voltasse a instalar-se a ordem. Claramente, Suhren tinha-lhes ordenado que não disparassem. Quando a luz cinzenta do amanhecer apareceu, a confusão era total. Começaram a formar-se grupos de trabalho para o dia com as

prisioneiras erradas, enquanto várias coelhas conseguiram integrar os grupos de Zugänge sem número das recém-chegadas. Outras trocavam de número, impedindo assim que as guardas monitorizassem os movimentos das prisioneiras. Quando a Lagerstrasse finalmente se esvaziou, só as duas cabecilhas das cobaias, Jadwiga Kamińska e Zofia Baj, regressaram ao seu bloco original para coordenar a resistência. Ao longo das horas seguintes, levaram mensagens entre as prisioneiras escondidas e assumiram o papel de porta-vozes públicas do grupo enquanto implementavam a segunda parte do seu plano. Zofia e Jadwiga confrontaram Suhren, desafiando-o a admitir que a sua afirmação de que iria mandá-las para um outro campo era uma mentira. Seguindo o combinado, as mulheres disseram que se as coelhas iam ser executadas deveria ser «com honra». Suhren recusou-se a ceder e emitiu uma nova ordem para todas as prisioneiras comparecerem a uma chamada. Zofia e Jadwiga deram a ordem: mantenham-se escondidas. Todos os dias à hora da chamada, as mesmas substitutas ocupavam os lugares das coelhas escondidas; todos os dias, Szura conseguia desligar as luzes quando começava a contagem. Suhren instaurou chamadas extra, mais buscas e uma vigilância mais apertada das saídas do campo de concentração, mas de nada lhe valeu. Algumas coelhas partiam com as Zugänge para as fábricas de armamento a muitos quilómetros de distância; as restantes estavam espalhadas por todo o campo. Uma das coelhas, Maria Cabaj, estava escondida numa enfermaria entre as doentes e as moribundas. Ainda com dores terríveis provocadas pela sua «operação», ela receava ser rapidamente encontrada, porque não conseguia mover-se, e sentia-se aterrorizada com a perspetiva de a atirarem viva para a fornalha. Encontrou uma nova energia — «de onde, com toda a dor que eu sentia, não sei», diria mais tarde. «Só sei que, apesar de tudo, não queria morrer.» Antonina Nikiforova, a médica do Exército Vermelho, escondeu Waclawa Andrzejak numa enfermaria de tifo, registada com o nome

de uma paciente húngara que tinha acabado de morrer. Waclawa ficou ali deitada durante dois dias, aterrorizada, fingindo-se inconsciente. Quando se atrevia a olhar, presenciava horrores piores do que qualquer um dos que vira no bloco das cobaias. «Entre quarenta e sessenta mulheres morriam à minha volta todos os dias. Havia mulheres ali que não eram mais do que esqueletos. Estavam a morrer à fome e comiam o que lhes davam, mas não conseguiam digerir nada, porque excretavam tudo de seguida. O cheiro na enfermaria era quase insuportável.» Ao princípio, Waclawa não se atrevia a ir à casa de banho. Por fim, arranjou coragem, mas encontrou-a apinhada de cadáveres. «Ao fim de alguns dias, tornei-me indiferente à visão daqueles cadáveres nus que tinham morrido de disenteria ou de tifo, e habituei-me a lavar-me sem olhar para eles.» Continuamente, davam entrada mais mulheres na enfermaria, onde se realizavam agora regularmente seleções para a câmara de gás. «Eu já não podia esconder-me lá mais tempo, porque corria o risco de ser selecionada, ou então de perder o juízo.» Por esse motivo, Waclawa regressou ao seu bloco, onde outras coelhas estavam escondidas nos espaços entre as traves do soalho e nos alicerces de terra. Também Maria Cabaj ficou abismada com as condições na Revier. «Um dia, senti que já não conseguia suportar mais aquilo e voltei para o meu bloco. Fico aqui nem que isso signifique o meu fim, disse para comigo.» Wanda Wojtasik comparou as manobras das coelhas a um «jogo de escondidas tenebroso. As palavras “Eles vêm atrás das coelhas” eram compreendidas por todas e os avisos chegavam instantaneamente.» Leokadia Kwiecińska, uma outra coelha, recordava esses últimos meses como um «sonho estranho e incompreensível — um sonho trágico, mas que tinha os seus aspetos cómicos». Normalmente, as coelhas orgulhavam-se da sua «postura escorreita» e da sua aparência cuidada. Agora, «como se uma varinha mágica tivesse sido agitada», disfarçavam-se para ficarem

«parecidas com as massas», ao mesmo tempo que se esforçavam por esconder as suas pernas desfiguradas. Joanna Szydłowska cortou o seu magnífico cabelo comprido. Wanda e Krysia vestiram-se como Goldstücke, atando lenços debaixo do queixo «à moda da Ucrânia», entrançando o cabelo na testa e esgaravatando o chão à procura de comida. Krysia parecia subitamente muito diferente. «Sem os óculos, tinha um rostozinho agradável e um ar excessivamente sério e de incerteza», disse Leokadia. Como Leokadia não conseguia andar sem os óculos, cobria metade do rosto com um lenço preto. Ao longo das duas semanas seguintes, enquanto as coelhas continuavam a viver «como animais acossados», nenhuma delas foi traída ou capturada. Algumas prisioneiras reparavam que as guardas também não pareciam apressar-se a tentar encontrá-las, recuando, «talvez porque estivessem a começar a pensar em si mesmas e em como escapar com vida». Em seguida, houve uma nova iniciativa de Suhren. Claramente exasperado, chamou uma das coelhas, Maria Plater-Skassa, e ofereceu-lhe a possibilidade de assinar uma declaração afirmando que as suas cicatrizes tinham sido causadas por um acidente trivial numa oficina, não por experiências. Se ela assinasse, ele libertá-la-ia. Ela recusou. Ladeada pelas mulheres da «delegação», Jadwiga Kamińska e Zofia Baj, Maria disse a Suhren que ele devia compreender que todo o mundo sabia agora os seus nomes e que matá-las simplesmente acentuaria a gravidade do seu crime. Suhren deu a entender em seguida que estava consciente de que a notícia tinha sido divulgada. Em princípio, não teria dificuldade em executar sessenta mulheres, disse, exceto no caso das coelhas, porque «os pormenores são conhecidos na América, na Grã-Bretanha e, o que é mais importante, na Alemanha». Suhren explicou que não poderia tomar uma decisão sozinho, mas perguntaria a Berlim o que fazer e «tentaria resolver a questão de uma maneira humana». Acrescentou que não poderia fazê-lo imediatamente, porque «tinha outras coisas em que pensar».

Segundo um outro relato, de Janina Iwańska, foi em resultado daquele encontro com Suhren que as jovens ficaram a saber que a lista das prisioneiras a serem executadas tinha de facto sido enviada diretamente a Suhren por Karl Gebhardt, com instruções para serem exterminadas na câmara de gás. A irritação de Suhren pela interferência de Gebhardt era óbvia para as coelhas naquela altura e foi também óbvia no testemunho de Suhren depois da guerra. Claramente, ele estava ressentido por Gebhardt ter usado as «suas» prisioneiras para aquelas experiências, implicando-o no caso e manchando o seu cadastro. Agora, devido à sua amizade com o Reichsführer SS, Gebhardt estava a sobrepor-se a Suhren e a ordenar-lhe que mandasse as mulheres para a câmara de gás, o que, naquelas circunstâncias, ele não queria fazer. Nas palavras de Karolina Lanckorońska: «As raparigas foram extremamente bem-sucedidas a assustar as autoridades, especialmente a Binz, cujo nome, bem como o de Suhren e de Gebhardt, tinha já sido divulgado.» Entretanto, as outras coelhas mantinham-se escondidas, com a intensa esperança de que os Russos chegassem antes de a SS as encontrar.

43 Quando Aka chegou aos Estados Unidos, nos finais de 1944, deu entrevistas a vários jornais e a estações de rádio nas quais descreveu pormenorizadamente as condições em Ravensbrück e as experiências médicas.

CAPÍTULO 35 KÖNIGSBERG No pequeno campo de Königsberg, junto ao rio Oder, também Violette Szabo, a prisioneira britânica do SOE, se agarrava à esperança. Falava da sua bebé, Tania, a amigas no seu bloco. «Dentro de alguns meses, vou poder tê-la nos braços de novo.» Já há quase três meses que aquelas mulheres, que tinham chegado juntas de Paris em setembro de 1944, trabalhavam como escravas no campo de punição de Königsberg — a consequência de se terem recusado a fabricar armamento em Torgau. Depois de trabalharem num aeródromo gelado, estavam agora a cavar uma trincheira para uma via-férrea estreita e a colocar os carris. Agarrar os pesados tubos de aço com as mãos cheias de queimaduras do frio e avançar aos tropeções com os pés gelados era mais do que a maioria conseguia fazer. As guardas colocavam as polacas e as russas mais fortes à cabeça da fila, mas as francesas e o pequeno grupo de britânicas e americanas não conseguiam acompanhá-las. Pelo menos ao domingo podiam descansar no bloco e conversar, e foi num desses domingos que Violette se tornou amiga de Christiane Le Scornet, uma jovem francesa de dezassete anos. «A Violette tratava-me como a uma irmã mais nova», recordou Christiane. «Tinha uma lealdade e uma coragem raras.» Todas as mulheres do SOE se encontravam no bloco de Christiane. Ela recordava que Lilian Rolfe era extremamente magra e chocantemente pálida e que Denise Bloch sofria de chagas terríveis devidas a subnutrição. As três americanas — Charlotte Jackson, Lucienne Dixon e Virginia Lake — também se encontravam ali, e uma outra inglesa chamada Jenny, que mantinha as distâncias e não gostava de dizer que era britânica. Do grupo, Violette era a que se encontrava em melhor estado de saúde e as animava a todas. «Ela

falava muitas vezes da Tania. Dizia: “Ela está em Londres com os meus pais, amada e protegida.” Tinha a certeza de que voltaria a encontrar a sua menina de boa saúde em breve.» Nesse Natal, enquanto as mulheres decoravam o seu bloco com ramos de pinheiro, Violette cantou «God Save the King» e Christiane acompanhou-a. Christiane descreveu como ela se virou então para outra francesa, Mathilde, e disse: «Agora é a sua vez de cantar, ande lá, Mathilde, cante!» Mas Mathilde disse: «Eu canto quando encontrar os meus filhos e o meu marido.» Quando Christiane insistiu, Violette, com os olhos cheios de lágrimas, disse: «Deixa-a lá, Crissi. Eu compreendo-a, ela não consegue.» «A Violette era assim», disse Christiane. «Estava sempre disponível para as que estavam a sofrer mais do que ela e tentava dar-lhes coragem com a sua delicadeza e o seu sorriso.» Christiane também se lembrava da «convicção absoluta» de Violette de que a Alemanha tinha perdido. «Andava sempre a falar de como os Aliados avançavam todos os dias. «Temos de nos aguentar, temos de ser fortes», dizia ela.» Violette e todas as suas colegas prisioneiras sabiam que seriam as primeiras mulheres de Ravensbrück a serem libertadas devido à localização do subcampo. Königsberg ficava só a seis quilómetros a leste do rio Oder e encontrava-se diretamente no caminho do Exército Vermelho. Em janeiro de 1945, o exército da Primeira Frente Bielorussa iniciou o grande ataque que o conduziria a Berlim. As estradas à volta de Königsberg já se enchiam com refugiados a fugirem para oeste e os civis que trabalhavam no aeródromo começaram a fazer as malas e a partir. Janeiro era o mês mais frio em Königsberg. Todas as manhãs na Appell havia mulheres que desmaiavam na neve. Se uma amiga não as levasse à enfermaria, ficariam onde tombavam. As que ainda se aguentavam de pé só estavam agora interessadas em salvar-se a si próprias. «A primeira reação que uma pessoa tinha era: “Eu não me vou mexer, não posso ajudar ninguém, estou tão fraca que tenho de poupar a pouca força que tenho, senão caio eu”», disse Virginia Lake.

Jacqueline Bernard disse que muitas prisioneiras simplesmente ficavam cada vez mais fracas, nunca chegando a aperceber-se de que estavam a morrer. «A maioria das que morriam dessa maneira nunca chegava a ser internada no barracão do hospital, e faziam-nas ficar de pé na fila todas as manhãs ao frio cortante para a chamada para o trabalho. Muitas morriam antes de terminar a chamada.» Lilian Rolfe tombou por terra uma manhã na Appell com um ataque de tosse. Denise Bloch não pôde ajudá-la porque estava a sofrer terrivelmente com um pé infetado. Violette e Virginia Lake, as mais fortes do pequeno grupo, ajudaram a levar Lilian para a enfermaria, que já estava cheia. Suzanne Guyotat, uma jovem francesa que estava acocorada no chão perto de Lilian, recordava-se da enfermaria mais como uma pocilga do que como um hospital. Não havia nem medicamentos, nem aquecimento, nem cobertores, mas as prisioneiras lá fora ansiavam por ir para a Revier para escapar às temperaturas abaixo de zero. Janette, a amiga de Virginia, era uma delas, e com 37,7 °C de febre foi finalmente internada, mas teve alta mal lhe desceu a temperatura. As mulheres doentes que não podiam ficar na Revier eram encafuadas nos blocos normais; tinham chagas a cobrirem-lhes as pernas, o coração e os pulmões a funcionar mal e claramente já não conseguiam trabalhar. O comandante de Königsberg despachava muitas dessas bocas inúteis em camiões para Ravensbrück e não tardava a chegar a notícia de que elas tinham morrido. Furioso com o número de doentes que ainda tinha entre mãos, o comandante obrigou as que ainda restavam a ficar de pé cinco horas sob a neve na Appell, tal como acontecia no Campo da Juventude. A morte na Appell era também agora uma das armas favoritas em vários outros subcampos. As que ainda se aguentavam de pé iam para o trabalho. As mais fracas desfaleciam na neve: Suzanne Guyotat reparou que faltava uma das suas amigas e descobriu o seu corpo sem vida colado ao chão com o gelo. Num outro dia, Virginia descobriu a sua amiga Janette acocorada por trás de montes de torrões de terra a soluçar:

«Quero morrer. Não consigo aguentar mais. Quero morrer.» Virginia recordou que uma das anglo-americanas sugeriu que as mulheres do seu grupo se oferecessem como voluntárias para os grupos de trabalho na floresta, onde, dizia-se, fazia ligeiramente menos frio, porque as árvores abrigavam do vento. A longa caminhada levava-as por montes de neve que se agarrava aos socos, de tal modo que elas caminhavam sobre plataformas de neve e estavam sempre a ter de descolar os pés. Como Denise tinha o pé gangrenado, o que a impedia de andar, teve de ficar no bloco. O trabalho na floresta consistia em ajoelharem-se junto à base dos cepos de árvores cortadas anteriormente e cavarem as raízes. Chegavam a juntar-se seis prisioneiras à volta de uma só grande árvore, desaparecendo de vista à medida que cavavam e a terra se ia acumulando à sua volta. Era um trabalho muito pesado, mas era também abrigado e elas podiam conversar enquanto atacavam o chão gelado. Várias das francesas recordavam-se de verem Violette a trabalhar entre as raízes das árvores, a tagarelar. Jeannie Rousseau, a cabecilha do protesto em Torgau, disse que Violette ainda tinha a intenção de escapar, mas não conseguia decidir como. «Ela nunca se queixava, aquela rapariga. Parecia que o trabalho não a afetava, ao contrário das suas duas amigas, que se encontravam num estado terrível.» Por volta do meio-dia, as mulheres punham-se à escuta do motor distante do camião da sopa. A sua chegada significava uma disputa por um lugar na fila contra «uma manada desenfreada de polacas e russas». Uma guarda a que chamavam «La Vachère» frequentemente dava um pontapé no caldeirão e a sopa entornavase. De volta ao trabalho, falavam sobre comida: «A tua sopa era grossa? Guardamos as batatas para fazer um sanduíche hoje à noite? É melhor comer lentamente? Como é que será a sopa amanhã?» Depois perguntavam-se se conseguiriam roubar algumas beterrabas no regresso ao campo de concentração. Um dia, as mulheres encontraram uns prisioneiros de guerra na estrada; daí a pouco, estavam a receber presentes às escondidas —

bolachas e chocolates —, como em Torgau. Em meados de janeiro, Violette, Lilian e Denise foram chamadas e disseram-lhes que iam voltar para Ravensbrück. A Lilian, que ainda estava na Revier, disseram que estivesse pronta para partir no dia seguinte às cinco da manhã. «Ela estava agora muito magra e muito fraca», recordou a sua amiga Jacqueline Bernard. Christiane Le Scornet diz que Violette foi também avisada na noite anterior. Violette disse: «“Foi o rei Jorge que perguntou por nós. Eu vou vê-lo quando voltar e exijo um avião. Volto eu mesma para vos salvar.” Violette acreditava sinceramente que ia ser libertada. Partiu com Lilian e Denise. Eu fiquei tão contente por elas.» Segundo Jeannie Rousseau, «La Vachère» chamou os nomes das britânicas na Appell da manhã e Violette, Lilian e Denise marcharam para um camião que as aguardava. Jeannie recordava-se também de o trio pensar que ia ser libertado. Talvez Violette acreditasse realmente que a mensagem que entregara aos seus amigos prisioneiros de guerra em Torgau tinha chegado a Londres, que em seguida teria negociado uma troca de prisioneiros com os Alemães. Ela sabia que a sua camarada do SOE Odette Sansom estava detida no bunker como refém, juntamente com Geneviève de Gaulle. E é certo que desde o início do Ano Novo se falava de trocas de prisioneiros envolvendo um grupo de paraquedistas detidos no campo principal. Alguma desta informação poderá ter chegado a Königsberg através de prisioneiras recém-chegadas. Jeannie Rousseau recorda-se de falarem sobre uma troca presumivelmente organizada. «Achavam que iam primeiro para a Suíça, mas eu não tinha tanta certeza. Havia alguns homens nada agradáveis que tinham vindo lá de longe, de Ravensbrück, para se encarregarem delas. Eu não gostava por aí além do aspeto que aquilo tinha. E pensei, vão mas é ser mortas a tiro.» Julia Barry, a mulher de Guernsey, viu Violette, Lilian e Denise mal elas chegaram a Ravensbrück, porque as guardas as levaram diretamente para o Strafblock, onde ela estava de serviço. «Estavam todas pretas e com farrapos», disse Julia. «A Lilian mal se conseguia

mexer e estava terrivelmente doente. A Denise, também; só a Violette estava um pouco melhor. Já não comiam nem se lavavam há semanas.» As mulheres ficaram detidas no Strafblock, atrozmente sobrelotado, onde sete prisioneiras partilhavam dois colchões infestados de piolhos. Julia Barry fez o que pôde pelas prisioneiras britânicas. Foi buscar roupas, sabão e toalhas ao seu bloco e pediu a Mary Lindell que arranjasse medicamentos na Revier. Por seu turno, Mary alertou Yvonne Baseden, a outra mulher do SOE, que sofria de tuberculose e se encontrava na Revier de Ravensbrück. Yvonne ouviu dizer que no subcampo Lilian «mudara muito e estivera muito doente». Também ficou a saber que aquelas mulheres acalentavam a esperança de uma troca de reféns ou, pelo menos, de serem transferidas para outro campo de concentração. Mas Yvonne, mais do que a maioria, tinha razões para recear o pior para as suas amigas. Para além das execuções em massa que integravam o programa de extermínio, continuavam também a fazerse execuções regulares de prisioneiras «perigosas» em cumprimento de ordens vindas da sede da Gestapo em Berlim. Alguns dias antes do regresso das britânicas, quatro francesas foram executadas em Ravensbrück, provavelmente por enforcamento. Também elas eram agentes secretas; trabalhavam para a organização clandestina de De Gaulle, a BCRA (Bureau Central des Renseignments e d’Action — Gabinete Central de Informações e de Ação) e tinham aterrado de paraquedas na França ocupada vindas de bases francesas no Norte de África. Os seus casos sempre tinham andado intimamente ligados aos das mulheres do SOE britânico e foram até acorrentadas juntas durante parte da viagem inicial de comboio para Ravensbrück. À chegada, as britânicas foram levadas para subcampos, enquanto as quatro francesas ficaram em Ravensbrück, onde Yvonne se tornara amiga de uma delas, Jenny Silvani. Tal como as jovens britânicas, as francesas contavam ser executadas a tiro por serem espias, mas não aconteceu nada. No início de janeiro, talvez devido ao otimismo crescente em relação ao fim da guerra, as francesas

decidiram apresentar queixa do seu tratamento. Jenny visitou Yvonne na Revier e disse-lhe que uma camarada, Suzanne Mertzisen, se tinha dirigido a Suhren a solicitar o direito de receber embrulhos da Cruz Vermelha. Suhren adotou um tom cortês. «Julgo saber que ela foi muito bem recebida pelo oficial da SS e que lhe disseram que veriam o que poderia fazer-se», recordou Yvonne. Dois dias depois, Suzanne foi chamada à presença de Suhren, dessa vez com Jenny Silvani, que voltou a visitar Yvonne cheia de otimismo. Foram mais uma vez «muito bem recebidas e a Jenny disse-me que a SS parecia ter recebido ordens de Berlim sobre elas num telegrama azul que estava pousado na secretária do oficial, mas não fazia ideia de quais seriam essas ordens. Disseram-lhes que as suas exigências estavam a ser avaliadas e que voltariam a ser informadas sobre elas, mas que deviam estar disponíveis para serem chamadas.» Uma semana depois, Jenny foi ver Yvonne de novo e disse-lhe que tinham sido chamadas uma terceira vez. «Foi a última vez que a vi. Ouvi dizer um dia depois que as quatro moças foram vistas nos seus vestidos às riscas diante do gabinete do SS, vigiadas por um guarda da SS armado, o que não era nada usual. Levaram-nas num camião e ouvi dizer mais tarde que foram enforcadas.» Embora ninguém tenha presenciado o enforcamento, ele foi «mais ou menos confirmado», disse Yvonne, quando as roupas delas foram devolvidas. Por entre a montanha de roupas de mulheres mortas que se acumulavama na Effektenkammer, alguém encontrou a camisola cinzenta de Suzanne Mertzisen. Não tinha vestígios de balas ou de sangue. Uma alemã que trabalhava ali olhou para a camisola e pôs a mão à volta do pescoço a querer dizer «enforcada». Acamada no hospital, obviamente Yvonne sentia um interesse muito pessoal por tudo aquilo, já que sabia que também ela teria o destino das suas amigas se alguém descobrisse que ela pertencia ao SOE. Acredita que talvez tenha sido a decisão das francesas de pedir melhor tratamento que provocou a sua execução e a das britânicas. Dirigirem-se a Suhren chamou a atenção para os seus casos. As

ordens de execução a ganharem pó em Berlim, ou talvez queimadas nalguma repartição da Gestapo destruída por bombas britânicas, foram então verificadas e reativadas. Na perspetiva de Yvonne: «Só posso crer que escapei ao destino delas porque cheguei ao campo num transporte diferente, de Dijon, e sob circunstâncias diferentes, e porque durante toda a minha estada me mantive tão discreta quanto possível.» Julia Barry disse que as prisioneiras britânicas ficaram três dias no Strafblock e em seguida uma mulher-polícia do campo chamou-as ao escritório. Elas estavam demasiado doentes para andarem. Violette podia sair, disse Julia, mas não as outras duas. Alguns minutos depois, a mesma mulher-polícia voltou com uma assistente e Lilian e Denise foram levadas em macas, não para o escritório mas para o bunker. Violette foi pelo seu pé. Não as levaram para as celas das reféns, onde estavam detidas Odette e Geneviève de Gaulle, mas para as celas de punição por baixo. No seu testemunho, Barry disse que não voltou a vê-las, «mas veio ter comigo ao bunker uma mulher no dia seguinte para dizer que um dia depois elas foram mortas a tiro». Duas das mulheres, Lilian e Denise, tiveram de ser levadas de maca para o local da execução. Apesar da afirmação de Barry de que as britânicas foram mortas a tiro, algumas provas francesas depois da guerra sugerem que, tal como as suas camaradas francesas, elas talvez tenham sido enforcados. Curiosamente, não há indícios de que as suas roupas tenham sido remetidas para o campo, com ou sem manchas de sangue. Mas os Franceses perguntaram: se as «espias» francesas foram enforcadas, porque não também as britânicas, que foram executadas alguns dias depois? Além disso, por ordem de Himmler, o enforcamento tornara-se o método preferido para executar sabotadores e espiões, supostamente para funcionar como nova forma de dissuasão. Um ano depois da guerra, Johann Schwarzhuber foi detido pelos Britânicos e interrogado sobre o destino das mulheres do SOE pela sua oficial Vera Atkins, que as procurava desde que elas tinham

desaparecido em França. Schwarzhuber disse a Vera que os nomes das três mulheres figuravam numa lista elaborada pela Gestapo em Berlim de mulheres a serem executadas. Tinham-lhe ordenado que as mandasse vir de Königsberg. Num fim de dia, em finais de janeiro de 1945, foram levadas para o pequeno pátio perto do crematório e executadas a tiro. «Suhren leu em voz alta a ordem de execução; o cabo Schultz, usando uma arma de pequeno calibre na nuca, disparou sobre elas. Encontravam-se presentes o doutor Trommer e o doutor Hellinger, o dentista.» Algumas prisioneiras no Schreibstube ouviram dizer que Dorothea Binz também estava presente. Na sua declaração, Scwarzhuber disse que as roupas das mulheres foram queimadas com os seus corpos. Não o instaram a explicar a razão para as roupas não serem devolvidas à Effektenkammer para serem recicladas, como acontecia sempre. «As três foram muito corajosas», observou ele, «e eu fiquei profundamente comovido. Suhren também ficou impressionado com o porte daquelas mulheres. Ficou furioso por não ser a própria Gestapo a encarregar-se dos disparos.» Os comentários de Schwarzhuber eram obviamente uma tentativa de apresentar uma imagem dos assassínios como tendo sido devidamente realizados, de acordo com alguma espécie de procedimento militar — «Suhren leu em voz alta a ordem de execução.» No entanto, os factos trágicos dos últimos dias dessas mulheres são bem claros. Pelo menos três oficiais de alta patente da SS estavam presentes quando aquelas mulheres atormentadas foram arrastadas das suas macas e mortas a tiro ou enforcadas, não sabemos qual. Ao lado de Lilian e de Denise encontrava-se Violette, que três dias antes dissera que tinha a esperança de ser libertada «pelo rei Jorge». Em Königsberg, na última semana de janeiro, «estávamos a vernos morrer», disse Virginia Lake. Algumas mulheres voltavam do aeródromo com expressões tresloucadas e assombradas no rosto. «Lutavam por não perderem o juízo. Era como se estivessem a

debater-se para se aguentarem... só um pouco mais de tempo até chegar ajuda.» Em 30 de janeiro, o Exército Vermelho já estava tão perto de Königsberg que no campo de concentração podiam ouvir-se as suas armas. Todo o pessoal civil fez as malas da noite para o dia e partiu, com enxurradas de refugiados nas estradas à volta da floresta a dirigirem-se para oeste. Os guardas alemães andavam cada vez mais sobressaltados, enquanto as prisioneiras — particularmente as russas — rejubilavam. As prisioneiras russas falavam de dar as boas-vindas aos soldados soviéticos com grinaldas; as francesas planeavam jantares sumptuosos para celebrar a sua libertação. Chegou a notícia de que os prisioneiros de guerra franceses das imediações tinham sido libertados e estavam a marchar para oeste à frente das tropas russas. Talvez os guardas tencionassem evacuar também o subcampo de Ravensbrück, diziam algumas. Em 31 de janeiro, a chefe das guardas partiu num carro com grandes sacos de viagem e acompanhada por um jovem oficial do campo de aviação. O comandante partiu também, assim como todos os outros guardas. Já tarde da noite, as prisioneiras russas soltaramse e incendiaram o campo de aviação. Polacas, ucranianas e russas circulavam agora pelo campo, saqueando-o. As francesas assistiam, perguntando-se o que fazer, e depois juntaram-se a elas. Prisioneiras de todas as nacionalidades saquearam as instalações da SS, agarrando em tudo numa corrida louca aos despojos de guerra. Virginia e o seu grupo encontraram lenha e carvão para queimar no seu bloco. As mulheres enxameavam as cozinhas, encontrando divisões cheias até ao teto com caixotes, latas e sacos de comida. Esporadicamente vinham ao campo patrulhas militares alemãs, que faziam tentativas pouco empenhadas de controlar a situação, mas as pilhagens continuavam. As francesas e as americanas sentaram-se a comer uma refeição de pão barrado com margarina e compota. Em 1 de fevereiro, apareceram prisioneiros de guerra franceses a comunicar que os Russos estavam a dezasseis quilómetros. Segundo as francesas, os Alemães planeavam agora retirar todas as

prisioneiras à última hora. Na enfermaria, Suzanne Guyotat ouviu dizer que todas as doentes que se encontravam no hospital seriam abandonadas ali e que o edifício iria pelos ares. Outras riam-se da ideia de os Alemães se darem ao trabalho de remover as prisioneiras naquele momento. Nessa noite, as francesas organizaram um «banquete da libertação» e convidaram dois dos prisioneiros de guerra franceses. «Acordei duas ou três vezes nessa noite. Estava demasiado feliz para dormir e de cada vez que acordava comia um lanchinho de bolachas de água e sal com compota», recordou Virginia. Na manhã seguinte, as mulheres ficaram a saber que uma patrulha alemã tinha dado com o banquete e matara a tiro os dois prisioneiros de guerra franceses enquanto eles estavam sentados a uma mesa. Nesse dia, as prisioneiras alargaram as suas expedições e encontraram os alojamentos das guardas, que estavam em total desordem — garrafas de bebidas alcoólicas vazias, produtos de maquilhagem, mapas e peças de vestuário espalhados por toda a parte. Em 2 de fevereiro chegou a notícia de que os Russos estavam só a quatro quilómetros de distância. Virginia tentou fazer crepes com a comida que tinha roubado, porque era o «Jour des Rois», um feriado francês, mas Janette estava com uma disenteria terrível e não conseguiu comer. Lá fora, viam-se mulheres a cavar sepulturas para os franceses mortos a tiro quando irrompeu nova perturbação. As jovens correram para dentro para avisar as outras: «São os Alemães. A SS de Ravensbrück. Vieram buscar-nos. Ordenaram-nos que fizéssemos fila lá fora.» No exterior, as prisioneiras viam os homens de Ravensbrück descontrolados, como loucos. Tinham vindo buscar as prisioneiras, mas, receando agora serem capturados pelos Russos, estavam a descarregar o seu terror nas mulheres. Um guarda matou a tiro uma jovem chamada Monique quando ela voltava ao bloco para ir buscar alguma coisa de que se tinha esquecido. Outras eram simplesmente assassinadas por não avançarem com suficiente rapidez para os portões. As mulheres que se puseram na fila marcharam para se

afastarem das tropas russas e na direção de Ravensbrück, a 320 quilómetros a oeste, mas algumas ficaram. Suzanne Guyotat e cerca de vinte outras na Revier não puderam juntar-se à marcha de evacuação do campo de concentração. Como Suzanne receara, a SS tentou fazer ir pelos ares a Revier, mas no pânico de escapar fracassaram; a maior parte das mulheres sobreviveu. Ao longo de dois dias «ficámos ali deitadas, pobres mulheres enregeladas, a gemer, a tremer e a morrer», disse Suzanne. «Numa bela manhã — era o dia 3 de fevereiro —, três russos apareceram do lado de fora do nosso bloco. De onde tinham vindo, esses homens vitoriosos, com os seus maravilhosos barretes de pele? Avançavam cautelosamente, com as bicicletas pela mão.» Nos dias seguintes, os russos cuidaram das mulheres, alimentaramnas, aqueceram-nas e reconfortaram-nas. Um deles fez até uma cruz de madeira para Suzanne pôr na sepultura de uma amiga. As prisioneiras da marcha da morte de Königsberg chegaram a Ravensbrück uma semana depois, e a imagem daquelas mulheres esfomeadas e moribundas, apinhadas numa massa de corpos emaranhados, algumas inchadas e desfiguradas, outras esqueléticas e encolhidas, nunca mais seria esquecido por quem a presenciou. Muitas morreram durante a viagem, e os guardas matavam a tiro as que se desgarravam do grupo. As sobreviventes foram transportadas de camião na etapa final, chegando a intervalos ao longo de dois dias. Mary Lindell estava a subir a Lagerstrasse quando pararam dois camiões e uns guardas despejaram corpos no chão. Ao princípio, perguntou-se porque é que não tinham levado os cadáveres diretamente para o crematório, mas depois viu que algumas das pessoas ainda estavam vivas. Os guardas começaram a chicoteá-las para as obrigarem a andar. No dia seguinte, chegou outro camião e cerca de oitenta mulheres tombaram dele. A sua pele amarelada estava esticada sobre os ossos, tinham um olhar fixo e brilhante e tremiam ao frio. Nenhuma delas conseguia caminhar sem ajuda.

Virginia Lake — ela própria só pele e osso — olhou para a sua amiga Janette e viu «um monte sem forma deitado nos seus próprios excrementos, incapaz de falar e já sem reagir à fome ou ao frio». As francesas ouviram dizer que as suas compatriotas tinham regressado de Königsberg e foram tentar encontrar velhas amigas, recuando à visão «dos restos daquele grupo encantador de mulheres francesas», como diria Denise Dufournier. Aquelas eram as mesmas mulheres que tinham entrado em Ravensbrück seis meses antes, todas cheias de otimismo e de elegância, com os seus lenços de pescoço Hermès. Agora, «ficámos chocadas com os seus olhares abatidos». Muitas morreram deitadas na Lagerstrasse, mas era a visão das vivas que causava mais perturbação. Loulou Le Porz mal reconheceu a sua amiga Nicole de Witasse, a jovem condutora de ambulâncias da Cruz Vermelha francesa que quase conseguira escapar durante a viagem de comboio para Ravensbrück. «Aquela jovem cheia de espírito que eu tinha conhecido era agora uma velha mulher encarquilhada que mal conseguia andar e tinha muito pouco tempo de vida. Nunca mais me esqueci daquela visão. O único consolo era que os seus pais nunca chegariam a vê-la assim.» As outras prisioneiras ficaram a saber que os Russos quase tinham conseguido chegar a tempo de libertar aquelas mulheres de Königsberg. As que ainda tinham alguma força contaram-lhes que ouviram as armas dos Russos e que quando se puseram em marcha olharam para trás e viram o campo a arder. Agora, as mulheres de Ravensbrück compreenderam que as aguardava o mesmo destino — uma evacuação forçada. A recordação desses rostos de Königsberg continuaria a assombrar as mulheres do campo de concentração também por uma outra razão. Toda a gente sabia agora que o grupo francês tinha sido enviado para o campo de punição por causa do protesto que tinha organizado por se recusar a fabricar armamento em Torgau. Loulou Le Porz foi uma das que sentiam que Jeannie Rousseau cometera um trágico erro ao desencadear o protesto que provocaria aqueles

terríveis resultados. «Ela era fora do comum, impulsiva», disse Loulou. «É claro, é muito bom ter coragem, mas tem de se saber como a usar.» Os guardas conduziram as sobreviventes da marcha da morte de Königsberg para dentro da tenda e deixaram-nas ali a morrer. Virginia Lake tinha espreitado para a tenda ao chegar, em setembro, e voltara a ver os seus horrores de longe ao regressar a Ravensbrück em outubro. Agora, na sua terceira chegada, foi enfiada na estrutura malcheirosa e teve de procurar uns centímetros de espaço para si e para Janette. Ao longo dos meses, a tenda tinha mudado. Havia agora uma divisória a meio, beliches num dos lados e uma espécie de sanitas, mas a imundície e a sobrelotação eram piores do que nunca. Virginia e Janette tentaram ocupar um espaço num canto onde uma Blockova polaca tinha reservado uma zona para si própria e para o seu séquito de «penduras». A Blockova enxotou Virginia e Janette ao pontapé. Havia cadáveres por toda a parte, cobertos com o que estivesse à mão. Todas as prisioneiras tinham disenteria e poucas tinham forças para chegar até às sanitas. À noite, a situação tornava-se «assustadora, inimaginável». As mulheres que precisavam de chegar aos baldes para fazerem as suas necessidades rastejavam no escuro e passavam por cima de outros corpos. Usualmente, chegavam demasiado tarde e a imundície à volta da saída era atroz. «Os Alemães mandaram cavar buracos com cerca de 90 centímetros de diâmetro na parte de fora da tenda e viam-se várias mulheres acocoradas à volta do mesmo buraco.» Virginia via as suas amigas enfraquecer dia após dia. «Eu sabia que estava como elas. A Janette estava obviamente a morrer. O seu corpo em tempos inchado era agora um farrapo mole.» Virginia apelou à Blockova polaca para que lhe permitisse levar Janette para a Revier. Aquela «bruta forte» recusou, mas Virginia e uma amiga francesa conseguiram arrastar Janette até lá. Virginia despediu-se de Janette quando ela estava deitada numa maca num corredor, rodeada por cadáveres.

A tristeza, a tragédia e o horror daquilo tudo chocaram-me. Os olhos da Janette, que pouco antes não tinham expressão, pareciam agora brilhar com adoração quando olhou para mim. Eu sabia que ela tinha um grande afeto por mim. Perguntei-me se ela compreenderia que estava a morrer. Já não estava a sofrer. Já não estava com frio nem sentia fome.

Virginia disse-lhe que ela se encontrava agora na enfermaria, que tratariam dela e que em breve estaria em casa com a mãe. «Boa noite. Dorme bem», disse, e voltou para a tenda. Os dias arrastavam-se. «Nós estávamos fracas e apáticas e drogadas pelos horrores que nos rodeavam.» A Blockova polaca e o seu grupo impediam as outras de usarem uma espécie de balneário que havia num dos extremos da tenda, onde também se encontrava um fogão; olhava para as suas colegas da tenda como se elas fossem «intocáveis, infestadas de piolhos, imundas». Uma das «penduras» alemãs roubava as prisioneiras e batia-lhes com uma cana pesada se elas se aproximassem demasiado, porque não queria apanhar piolhos. Um dia, essa alemã reparou na aliança de casamento de Virginia e exigiu que ela lha desse. Os nós dos dedos de Virginia estavam tão inchados que ela não conseguiu tirá-la. A mulher atormentou-a até ela, em lágrimas, desabafar a uma mulher austríaca: «Eu sou americana. Ela também rouba a aliança de casamento de americanas?» A austríaca disse alguma coisa em alemão à ladra, que olhou para Virginia «como se estivesse a ver-me pela primeira vez». Ela disse a Virginia que podia ficar com a sua aliança. Vários dias depois, as guardas transferiram Virginia e um grupo das suas camarada de Königsberg para um bloco normal, onde as condições abismais pareciam paradisíacas em comparação com as da tenda. Foram até mandadas ao balneário para tomar um duche, embora, numa humilhação final, tenham rapado o cabelo a Virginia. Já não havia chamada para sair do bloco nem Appell. As mulheres mantinham-se deitadas nos beliches, apáticas, mais fracas a cada dia que passava. «Estávamos a perder as nossas amigas uma a uma e encontrávamo-nos na fronteira entre a vida e a morte», disse Virginia.

Tentavam aguentar-se, forçando-se a levantarem-se pelo menos uma vez por dia para se lavarem e procurarem comida. Uma amiga de tempos anteriores trazia mais sopa às escondidas a Virginia. Em 26 de fevereiro, cerca de uma semana depois da chegada de Virginia ao novo bloco, a Blockova berrou: «A americana que estava em Königsberg que venha imediatamente.» Virginia desceu do beliche e uma mulher deu-lhe roupas novas. Dois dias depois — em 28 de fevereiro —, a Blockova anunciou que Virginia d’Albert Lake estava a ser «chamada imediatamente». Aterrorizada, Virginia foi conduzida pelo campo para o gabinete dentro do edifício do bunker. As prisioneiras secretárias estavam sentadas às suas mesas e sorriram-lhe com interesse. Uma delas ofereceu-lhe uma cadeira. Uma guarda entrou, sorriu e explicou alguma coisa em alemão. Virginia não compreendeu uma palavra. Um oficial da SS conduziu-a depois para fora do portão para um outro edifício da administração, onde estavam sentadas duas mulheres envergando uniformes nazis. Para espanto de Virginia, a de mais alta patente perguntou-lhe o nome e a data de nascimento num inglês perfeito. A mulher mais nova disse: «Hoje à noite vai ser feliz. Vai-se embora.» Virginia foi conduzida à Revier, onde a examinaram rapidamente, e daí para a Effektenkammer, onde o pessoal estava a atirar peças de vestuário limpas a mulheres alemãs todas ocupadas a despirem-se e a vestirem-se. Mandaram Virginia meter as suas roupas sujas num balde e vestir as roupas limpas que lhe entregaram; essas peças de vestuário não tinham as grandes cruzes pretas que marcavam as roupas das prisioneiras. Lá fora, as guardas chamaram as mulheres alemãs e Virginia compreendeu que elas estavam a ser libertadas. Viu-se então de novo no gabinete do bunker, juntamente com a mulher nazi que falava inglês. A mulher pediu-lhe delicadamente: «Sente-se, se não se importa, ali, ao lado do fogão. Terá uma breve espera. O seu comboio parte às quatro e trinta.» «Mas para onde é que eu vou?» «Não tenho a certeza, mas julgo que vai para um campo da Cruz

Vermelha perto do lago Constança.» A mulher alemã disse que tinha estado em Auschwitz até há pouco tempo e falou do seu receio das forças russas que estavam a avançar. Disse a Virginia que seria melhor se fossem os Americanos a encaminhar-se naquela direção e virou-se e agitou o punho ao retrato de Hitler na parede. «Pensar que aquele homem é responsável por tudo isto.» Virginia perguntou à oficial onde ela tinha aprendido inglês. «Em Nova Iorque», disse ela. «Passei vários meses lá com uns parentes. A América é um lugar maravilhoso.» Abriu-se uma porta e entrou uma jovem com duas guardas. Era Geneviève de Gaulle. Virginia já tinha visto Geneviève e reconheceu o seu cabelo castanho liso, os seus olhos escuros e o seu sorriso fácil. Ficou a saber que seriam companheiras de viagem; a sua libertação integrava-se numa troca por prisioneiros de guerra alemães. Geneviève tinha sido chamada antes nesse dia da sua cela privilegiada no bunker e comunicaram-lhe que iria ser libertada. Tal como Virginia, deram-lhes roupas novas, entre elas o seu casaco de tecido de lã de Paris, que lhe tinha sido tirado no dia em que chegou a Ravensbrück, quase exatamente um ano antes. Geneviève descreveria mais tarde como, durante as formalidades iniciais no gabinete do campo, também ela tinha conhecido uma misteriosa oficial nazi que lhe disse que adorava Paris e lhe pediu que assinasse o seu álbum de fotografias. No gabinete do bunker, Geneviève viu duas oficiais da SS e «uma mulher terrivelmente descarnada, que parecia muito, muito velha». Na cabeça rapada da mulher despontavam uns tufos de cabelo aqui e ali. «Parecia Gandhi no fim da sua vida.» As duas prisioneiras trocaram olhares mas não se atreveram a falar uma com a outra. A seguir, Geneviève deu a mão a Virginia e juntas desceram os três degraus no exterior do bunker. Começava a amanhecer. Ladeadas por oficiais da SS e uma guarda, saíram pelo portão e para o vento e a neve.

CAPÍTULO 36 BERNADOTTE Menos de uma hora depois de partirem de Ravensbrück, Geneviève e Virginia, juntamente com três guardas da SS, embarcaram num comboio em Fürstenberg e ao fim da tarde estavam em Berlim, atravessando a custo a cidade ardida e abrigando-se em passagens subterrâneas bloqueadas com árvores tombadas, antes de apanharem um comboio para sul. Dois dias depois, chegaram a Munique. Era meia-noite e o pequeno grupo tropeçava mais uma vez em ruas com crateras e escombros e olhava para estruturas de prédios bombardeados, em silhueta contra o céu noturno. Pouco depois, encontravam-se num comboio com destino a Ulm, mas os ataques aéreos obrigaram o comboio a parar e o grupo viu-se forçado a percorrer vários quilómetros a pé para ultrapassar os carris destruídos. Passaram a noite numa estalagem onde estavam uns alemães à volta de um aparelho de rádio. Virginia recordava-se de ouvir o locutor dizer: «Encontra-se uma formação sobre Ulm. Ulm está a ser bombardeado. Uma formação está a deixar Ulm. A formação está sobre...» e subitamente o edifício abanou violentamente, tombaram cadeiras e as pessoas correram para a porta, aterrorizadas. Virginia «não sentiu medo» e não se mexeu. Quando se levantou da cadeira, viu a sua imagem num espelho e pensou: «Que criatura feia é aquela? Uma mulher, sim, mas sem ancas nem seios; grandes olhos sem lustro a fitarem de um rosto macilento.» Ao longo daqueles dias, os guardas foram-se tornando mais amigáveis e numa noite uma das guardas partilhou um quarto com Virginia e Geneviève e mostrou-lhes fotografias da sua família. À noite, «ela fechou a porta à chave e pôs a chave debaixo da almofada». Depois de uma semana de viagem, as duas mulheres foram

deixadas num centro de internamento em Liebenau, perto do lago Constança, onde estrangeiros — na sua maioria mulheres e crianças americanas e britânicas — permaneceriam até ao fim da guerra, em edifícios agradáveis em colinas, com boa comida e bons cuidados. Numa carta ao seu marido, Philippe, Virginia disse: «Meu querido, que estranho poder escrever-te. Junho passado parece tão distante que tu e a minha vida passada parecem um sonho.» Geneviève foi visitada por delegados da Cruz Vermelha de Genebra, a quem solicitou alguns pequenos «luxos» tais como «roupa interior (não de lã); um fato (não demasiado quente); uma dúzia de lenços de assoar; seis pares de meias; sabão, vitaminas e cigarros». Não se sabe se as mulheres foram informadas do motivo por que tinham sido libertadas naquela altura. A transferência de Virginia foi negociada pelo gabinete do general Eisenhower como parte de uma troca de alemães capturados. As súplicas da sua mãe americana tinham finalmente chegado à secretária de Eisenhower e, quando se estava a chegar a um acordo para a troca de um pequeno número de aliados presos por alemães detidos pelos Aliados, o nome de Virginia foi incluído na lista. A libertação de Geneviève foi solicitada pelo seu tio, o general De Gaulle, na altura Presidente provisório da França. Mais tarde, ela insistiria sempre que o seu tio não tivera nada que ver com a sua libertação e nunca teria «favorecido um membro da sua família», mas a correspondência na posse do Comité Internacional da Cruz Vermelha conta uma história diferente. O pai de Geneviève, Xavier de Gaulle, irmão de Charles de Gaulle, foi o primeiro a soar o alarme em relação à sua filha, mas o general fez saber que também ele procurava a sua libertação. Numa carta de 15 de setembro de 1944, um funcionário do CICV em Genebra escreveu à Cruz Vermelha alemã: «O comité foi informado por um dos seus delegados da ansiedade de Monsieur le Général De Gaulle quanto à sua sobrinha, Mademoiselle Geneviève de Gaulle, detida em Ravensbrück, no Bloco 122 [sic], n.º 27 372.» Na carta inquiria-se sobre a sua saúde e afirmava-se que o general «solicitava particularmente que ela fosse

enviada para a Suíça e tratada numa clínica de recuperação». As duas outras reféns valiosas de Himmler em Ravensbrück, Odette Churchill e Gemma La Guardia Gluck, continuavam por reclamar. Não há provas de que Himmler tenha sequer chegado a tentar informar os Britânicos de que uma «parente» do primeiroministro se encontrava detida em Ravensbrück, mas mesmo que Winston Churchill tivesse ficado a saber, nada teria sido feito: Odette mentira sobre o seu parentesco com Churchill. Também não há provas de que Fiorello La Guardia soubesse naquela fase que Gemma se encontrava no campo de concentração. Mesmo que o soubesse, parece improvável que ele tentasse obter a sua libertação. Até mesmo depois da guerra, quando Gemma teve de esperar muitos meses para regressar aos Estados Unidos, vivendo com dificuldades em Berlim, o seu irmão não a ajudou. Nessa altura, Fiorello La Guardia dirigia o programa de refugiados das Nações Unidas, o UNRRA [Administração das Nações Unidas para Assistência e Reabilitação]. Estava já a par do sofrimento por que passara a sua irmã e sabia que o marido dela tinha sido assassinado em Mauthausen. No entanto, La Guardia escreveu a Gemma dizendo-lhe que não podia acelerar o processo do seu regresso a casa, porque não podia abrir exceções para um membro da família. «Se qualquer tratamento preferencial te fosse aplicado, provocaria centenas de milhares de pedidos do mesmo tratamento.» A transferência de Geneviève e de Virginia para o centro de internamento de Liebenau era um outro sinal da crescente vontade de Himmler de fazer concessões relativamente a certos prisioneiros, na esperança de que tal o ajudasse a obter uma audiência em Londres e em Washington para expor as suas ideias fantasiosas de um acordo de paz separado. Quando as duas mulheres de Ravensbrück estavam a ser libertadas, os ajudantes de Himmler finalizavam os pormenores de uma libertação de prisioneiros muito mais ambiciosa, através de contactos na Suíça. Por ordem de Himmler, Walter Schellenberg, o seu chefe dos

serviços secretos, assinou um acordo em janeiro com um político suíço e simpatizante nazi, Jean-Marie Musy, pelo qual, de dois em dois meses, 1200 judeus dos cerca de 60 000 mil ainda vivos em campos de concentração nazis seriam transferidos para a Suíça em troca de cinco milhões de francos suíços por cada leva. Como Hitler se opunha veementemente a qualquer libertação de prisioneiros, Himmler estipulava que o acordo deveria manter-se secreto. O seu objetivo, mais uma vez, era uma operação de relações públicas. «A finalidade desta ação era provocar uma reação favorável na imprensa internacional, que, numa data posterior, apresentaria a Alemanha a uma luz mais favorável», disse Franz Göring, um dos assistentes de Schellenberg e o homem encarregado de executar o plano. Num relatório pormenorizado destinado a funcionários dos serviços de segurança britânicos depois da guerra, Göring proporcionou uma visão extraordinária das fantasias em que muitos líderes nazis e os seus amigos acreditavam, mesmo nessa altura, de poderem manter secretos os seus crimes ou, pelo menos, apresentá-los ao mundo a uma luz favorável. Segundo Göring (que não tinha laços de parentesco com Hermann Göring), Musy propôs também a Himmler que as mulheres de Ravensbrück fossem libertadas — tanto as judias como as não judias. O suíço disse: «A libertação destas mulheres criaria uma ótima impressão, que a seu devido curso poderia redundar a favor da Alemanha.» As tentativas de obter a libertação de judeus começaram na primeira semana de 1945, quando Göring tomou medidas para requisitar um comboio para transportar e localizar os 1200 nomes da lista de Musy. Embora Göring pertencesse à SS, era um especialista de serviços secretos estrangeiros, não familiarizado com o mundo dos campos de concentração, e parece ter ficado atónito com o que encontrou neles. Para sua surpresa, muitos dos judeus que procurava já tinham morrido ou tinham-se perdido no sistema, ou então os comandantes dos campos de concentração recusavam-se a entregálos. Göring não desistiu, e encontrou duas das judias da lista em

Ravensbrück. Charlotte Wreschner e a sua irmã Margarete, chegadas da Holanda em 1944, foram informadas em janeiro de 1945 que iriam ser libertadas. Juntamente com uma mãe e uma filha judias da Turquia e uma outra judia, foram enviadas para o campo de concentração de Theresienstadt, perto de Praga, onde estavam a ser reunidos os prisioneiros que se encontravam na lista de libertação e de onde partiria o comboio para a Suíça. Surgiu então um novo problema: segundo Göring, tinham sido dadas instruções aos comandantes para que ninguém que tivesse conhecimento da existência das câmaras de gás fosse libertado, porque as suas histórias não resultariam em «publicidade favorável». Theresienstadt tinha sido escolhido como o ponto de reunião dos prisioneiros e era o campo de concentração do qual a maioria das pessoas na lista de Musy fora selecionada, precisamente porque não havia câmaras de gás naquele «campo-modelo». Embora os prisioneiros judeus naquele campo fossem regularmente levados para as câmaras de gás de Auschwitz, os que restavam, supostamente, não estavam a par do verdadeiro horror. As mulheres de Ravensbrück, no entanto, tinham conhecimento das câmaras de gás, tanto em Ravensbrück como, através de outras prisioneiras, em Auschwitz. Ao chegar a Theresienstadt, Adolf Eichman, o autor do programa de extermínio dos judeus, interrogou pessoalmente as irmãs Wreschner para descobrir exatamente o que elas sabiam. «Tornou-se claro que estávamos isoladas e que eles não queriam permitir-nos que entrássemos no campo por receio de que soubéssemos demasiado e falássemos sobre o assunto com os prisioneiros de Theresientstadt», diria Charolotte Wreschner no seu depoimento no pós-guerra. Quando as irmãs prometeram não falar do que sabiam, Eichmann autorizou-as a conviver com as outras prisioneiras, avisando-as de que, se falassem, «iriam pela chaminé acima» elas próprias. Na confusão que se instalara, Göring apercebeu-se de que muitos outros prisioneiros da sua lista estavam a par da existência das câmaras de gás e, por consequência, não poderiam partir no seu

comboio, que nessa altura já estava à espera. Dada a falta de números, Göring convidou então outros prisioneiros em Theresienstadt a oferecerem-se como voluntários para irem para a Suíça, mas ninguém queria fazê-lo, o que o deixou espantado, até alguém lhe explicar que os prisioneiros temiam que o comboio fosse na realidade um comboio de morte destinado a Auschwitz. Foi só quando o comboio de Göring se aproximou da fronteira com a Suíça que os prisioneiros que ele tinha persuadido a aceitar o convite se descontraíram, «como se tivessem sido libertados de um pesadelo assustador». Alguns dias depois de o primeiro grupo chegar em segurança, declarava-se nos títulos dos jornais suíços que 200 destacados nazis tinham obtido asilo em resultado da libertação dos prisioneiros. Essas histórias talvez tenham sido plantadas de propósito por Ernst Kaltenbrunner, o chefe da polícia de segurança de Hitler e adversário de Himmler, para boicotar os planos de Himmler. Se foi esse o caso, Kaltenbrunner teve êxito. Hitler ficou furioso ao saber que Himmler estava a libertar prisioneiros — embora por dinheiro, que foi como Himmler procurou justificar o seu ato perante o Führer. Hitler ordenou que a partir desse momento as libertações fossem suspensas, o que impossibilitou as libertações adicionais de prisioneiras de Ravensbrück que também tinham sido discutidas com os Suíços. Embora em janeiro de 1945 o plano suíço fosse cancelado, os planos suecos para ajudar os prisioneiros ganhavam agora novo ritmo. No outono anterior, Himmler dera a entender aos Suecos, através de Felix Kersten, que poderia estar disposto a libertar polícias noruegueses. Em dezembro chegou-se a um acordo quanto a essa libertação, e cinquenta polícias noruegueses, assim como cinquenta estudantes dinamarqueses, foram entregues aos Suecos. As libertações deram razões aos Suecos para acreditar que Kersten exercia uma influência real sobre Himmler, que poderia agora ser persuadido a considerar um plano de libertação de prisioneiros muito mais alargado do que qualquer um dos propostos até à data.

No mínimo, valeria a pena explorar aquela hipótese, especialmente porque, depois do fiasco suíço em janeiro, se tornou claro que nenhum outro governo nem nenhuma outra organização internacional estavam dispostos a agir ou eram capazes de o fazer. Enquanto os Aliados se preparavam para o seu assalto final à Alemanha, as atitudes em Washington e em Londres relativamente ao destino dos prisioneiros tinham, se possível, endurecido. Esse facto estava patente numa declaração explícita emitida em dezembro de 1944 pela chefia militar conjunta dos Aliados ocidentais, o Supreme Headquarters Allied Expeditionary Force (SHAEF) [Quartel-General Supremo da Força Expedicionária Aliada]. Nessa declaração, instavam-se os prisioneiros de todas as nações a «manterem-se no seu lugar, aguardarem a chegada das forças aliadas e estarem preparados para uma repatriação ordeira depois do fim da guerra». Para quem tivesse consciência da realidade dentro dos campos de concentração de Hitler, a ideia de se «manter no seu lugar» e ainda mais de uma «repatriação ordeira» parecia irrealista na melhor das hipóteses e absurda na pior. Quando a declaração do SHAEF foi emitida, as taxas de morte em Ravensbrück aproximavam-se das 200 por dia, com o extermínio por gás a ser incrementado. Em Belsen, perto de Hanôver, os prisioneiros estavam a morrer de doenças e à fome a uma taxa de 300 por dia. No entanto, o raciocínio no quartelgeneral dos Aliados implicava que, até a Alemanha se render, os prisioneiros continuariam abandonados à sua sorte. Com as frentes militares a avançarem, no entanto, não havia nada que impedisse a Suécia, um país neutro, de elaborar os seus próprios planos; em janeiro de 1945, as ideias inicialmente apresentadas em Paris e em Estocolmo desenvolveram-se e transformaram-se numa operação de salvamento a grande escala, prevendo-se o recurso a uma frota de autocarros e de veículos militares operada por voluntários que atravessariam a fronteira da Dinamarca para a Alemanha sob a bandeira da Cruz Vermelha sueca.44 Em primeira instância, o objetivo era recolher todos os prisioneiros escandinavos — na sua maioria dinamarqueses e noruegueses, que

se julgava ascenderem aos 13 000 — e levá-los para um só campo perto da fronteira com a Dinamarca, ao cuidados dos Suecos, antes de os transferir para a Suécia, onde permaneceriam até ao fim da guerra. O salvamento de prisioneiros de outras nacionalidades posteriormente não era excluído. Alguns elementos destacados do aparelho de Estado em Estocolmo troçaram da ideia de enviar «uma bonita caravana de suecos» para a Alemanha destroçada pela guerra, e em teoria aquelas ideias eram tão ambiciosas que devem ter parecido uma fantasia. No entanto, novas informações de Kersten sobre o estado de espírito de Himmler e alguns dados obtidos sobre a situação no terreno deram a Estocolmo razões para acreditar que o plano poderia resultar. O essencial para salvar prisioneiros seria saber precisamente quem eram e onde se encontravam; para tal, era necessário um conhecimento pormenorizado sobre a localização dos campos e dos nomes e das nacionalidades das pessoas neles detidas — informações que só os Suecos possuíam, em grande medida devido ao trabalho de Wanda Hjort e do grupo de Gross Kreutz. Em meses recentes, Wanda, Bjorn Heger, o jovem médico norueguês, e outros elementos da célula tinham arriscado as suas vidas percorrendo a Alemanha, nessa fase sob fortes ataques aéreos, e obtendo todos os dados que lhes era possível sobre os prisioneiros. Utilizando as informações obtidas através dos contactos noruegueses de Wanda dentro de Sachsenhausen, estabelecendo contactos com uma rede de pastores protestantes dinamarqueses e noruegueses e reforçando laços com as células comunistas alemãs de resistência, o grupo contava já em janeiro de 1945 com uma impressionante base de dados sobre os campos de concentração. Tinham também obtido medicamentos da Cruz Vermelha dinamarquesa, que conseguiram entregar a certos campos de concentração através de intermediários de confiança. A legação sueca em Berlim fornecia-lhes apoio. Wanda e Bjorn Heger usavam um automóvel da delegação e as informações da Gross Kreutz chegavam a Estocolmo através do correio

diplomático sueco. Durante todo esse tempo, o grupo apelara a Estocolmo para que os seus planos de salvamento fossem implementados, porque não havia tempo a perder. Num relatório enviado para a Suécia, transmitiam informações específicas sobre a aniquilação iminente dos campos. Essas novas informações baseavam-se em parte numa visita a um campo de concentração feita por Wanda e pelo seu pai, Johan Hjort, ocasião em que ficaram a saber diretamente através de um informador da SS que o comandante planeava liquidar o campo «até ao mais ínfimo pormenor» logo que os Aliados se aproximassem. No relatório não se identificava o campo de concentração, mas sabemos que Wanda Hjort e o seu pai tinham visitado Ravensbrück em dezembro e tinham estado em contacto com o médico da SS ali, Franz Lucas, e com Sylvia Salvesen. Por mais valiosa que fosse a célula da Gross Kreutz, os Suecos não podiam fazer nada sem o assentimento de Himmler. Em janeiro, Kersten já assegurava Estocolmo de que o Reichsführer estava recetivo, particularmente se fosse nomeado um intermediário em quem Himmler pudesse confiar. O conde Folke Bernadotte era uma escolha óbvia. Embora algumas pessoas em Estocolmo considerassem que ele era uma personalidade de pouco peso, tinha fortes laços com a Alemanha e uns modos diplomáticos inatos. Além disso, Himmler deixar-se-ia impressionar pelo sangue real de Bernadotte e devia estar a par das suas relações estreitas com os Aliados — a mulher do conde era americana e ele encontrara-se recentemente com Eisenhower em Paris. Bernadotte estava indubitavelmente pronto a desempenhar aquele papel e desejoso de o assumir. Em 16 de fevereiro, Bernadotte deslocou-se de avião a Berlim, onde estavam a ser montadas barricadas, as pessoas formavam filas para obter alimentos, e a morte e a destruição aumentavam de dia para dia. Com a colaboração do embaixador sueco, Bernadotte procurou obter um encontro com Himmler. Aguardou três dias, avistando-se com outros nazis importantes primeiro, até lhe ser dito

que Himmler o receberia. O local escolhido foi a clínica da SS de Gebhardt, em Hohenlychen, a cerca de cem quilómetros a norte de Berlim e oito quilómetros a norte de Ravensbrück. Há muito tempo que Hohenlychen era um dos locais preferidos de Himmler para encontros e conversações secretos. O seu velho amigo Karl Gebhardt era de inteira confiança e a clínica tinha a vantagem de estar, simultaneamente, a uma distância conveniente de Berlim e ser isolada. Bernadotte foi levado de automóvel até à clínica em 20 de fevereiro. Sob o pórtico ornamentado do edifício principal da clínica, Gebhardt aguardava Bernadotte para o cumprimentar. Enquanto esperavam por Himmler, Gebhardt disse a Bernadotte que a clínica estava cheia de crianças alemãs a aguardar amputações, depois de terem sido feridas por bombas dos Aliados. Subitamente, Himmler apareceu diante dele; «com o uniforme verde da Waffen-SS sem quaisquer condecorações e com óculos de armação de massa», parecia «o típico oficial sem importância», excetuando as suas «mãos bem feitas, delicadas, que estavam cuidadosamente tratadas». Bernadotte escutou Himmler durante duas horas, enquanto ele falava da sua lealdade ao Führer e do «cavalheirismo» das forças britânicas e francesas. A situação militar era «grave, muito grave, mas não desesperada». Himmler disse a Bernadotte que nunca poderia ir contra o Führer, e que o Führer se opunha à libertação de prisioneiros. Himmler queixou-se da sua «imprensa negativa» na Suécia. Os dois trocaram anedotas. Bernadotte ofereceu a Himmler uma obra sueca do século XVII sobre inscrições rúnicas escandinavas, o que muito «tocou» Himmler. Por fim, Bernadotte viu uma oportunidade de apresentar as suas propostas de libertação dos prisioneiros. Inicialmente, Himmler «reagiu violentamente», mas Bernadotte foi paciente e acabou por o convencer, de tal modo que no final do encontro o plano do grupo de trabalho sueco de recolher os prisioneiros escandinavos dos campos de concentração acabou por ser acordado. Antes de Bernadotte partir

de Hohenlychen, Himmler assegurou-se de que ele tinha um bom motorista, avisando-o de que as estradas de regresso a Berlim eram perigosas devido às armadilhas para os tanques e às barricadas. Sossegado em relação ao motorista, Himmler disse: «Ainda bem, caso contrário poderia acontecer que os jornais suecos viessem a dizer em grandes parangonas: “Criminoso de guerra Himmler assassina o conde Bernadotte.”» A visita a Ravensbrück em dezembro de Wanda Hjort e do seu pai, a que aludem no seu relatório para Estocolmo, foi feita principalmente para entregar medicamentos recebidos da Dinamarca para Sylvia Salvesen os distribuir. O seu contacto em Ravensbrück era Franz Lucas, o médico da SS, que tinha ficado a saber dos laços de família dos Hjort com Sylvia e indicara a sua disponibilidade para os ajudar. O «interesse» de Lucas por ajudar prisioneiros era agora conhecido por toda a Revier. Recusara-se a participar nas seleções para o Campo da Juventude e protestara contra o envenenamento com o pó branco no Bloco 10. Uma noite, nos últimos dias de janeiro, chamou Sylvia Salvesen à parte na Revier e ofereceu-lhe ajuda. «Dême o endereço da sua família Hjort. Talvez eu consiga visitá-los», disse-lhe ele. Atónita, Sylvia sentou-se e escreveu a morada. No dia seguinte, Lucas voltou a procurá-la e disse-lhe que escrevesse uma carta para os Hjorts e que ele a entregaria. Ela tinha dez minutos para o fazer, disse Lucas, porque ele ia partir de vez. Extremamente ansiosa e excitada, Sylvia escreveu o que pôde e em seguida escondeu a mensagem numa caixa e, enquanto Lucas tossia no corredor lá fora, ela saiu e meteu-lha ao bolso às escondidas. A Schwester Gerda Schröder também estava presente. Fazendo de conta que não tinha visto Sylvia, Lucas virou-se para Gerda e disse: «Adeus, Irmã. Vou-me embora. Sou soldado e vou combater o inimigo, mas não combato contra prisioneiros.» Com essas palavras, partiu do campo para sempre, lançando um último olhar a Sylvia que parecia querer dizer: «Confie em mim.» Apesar da sua promessa, Lucas não entregou a carta a tempo de

ajudar Sylvia ou qualquer outra das prisioneiras. No entanto, apareceu de facto em Gross Kreutz quase quatro semanas depois — de carta na mão —, suplicando aos Hjorts que lhe dessem abrigo, porque o Exército Vermelho estava a aproximar-se. Mas Sylvia não tardou a ter nova oportunidade de escrever uma segunda carta aos Hjorts, e dessa vez Gerda Schröder ofereceu-se para a entregar. As prisioneiras já conheciam a Schwester Gerda há mais tempo do que conheciam Franz Lucas e muitas não só confiavam nela como também falavam dela como amiga. Ajudara prisioneiras em várias ocasiões, particularmente durante a recente esterilização de crianças, quando, contra as ordens da SS, administrou analgésicos às meninas afetadas. Gerda Schröder nasceu em Bad Oeynhausen, onde estudou enfermagem, e trabalhou num hospital em Berlim antes de ser transferida para Ravensbrück no início de 1944. Quando Lucas chegou, tornaram-se amantes, e é provável que Gerda o tenha encorajado a ajudar as prisioneiras. As provas existentes indicam claramente que eles debateram como ajudar Sylvia entregando uma carta em Gross Kreutz. Foi alguns dias depois de Lucas partir do campo de concentração com a primeira carta que Gerda propôs a Sylvia que escrevesse outra, que ela, Gerda, entregaria pessoalmente. Dessa vez, Sylvia teve toda a noite para redigir a carta, mas sentiu dificuldade em saber o que dizer a pessoas no exterior que não poderiam de modo nenhum compreender o que ali se passava, especialmente porque a carta poderia ser intercetada. Tentou começar pelo princípio, descrevendo como o campo de concentração tinha aumentado e como o trabalho escravo começara, mas a história dos horrores mais recentes não tardou a jorrar-lhe da caneta. No hospital: Há entre 40 e 60 mortes por dia... O campo tem tifo, colite e difteria... As prisioneiras estão a morrer à fome e vagueiam esqueletos vivos por toda a parte... Mil prisioneiras ficam de pé nuas todos os dias para serem selecionadas para o trabalho, mas vão morrer com certeza dentro de pouco tempo, e se não morrerem são exterminadas num campo cujo horror nenhumas palavras podem descrever.

Evidentemente, Sylvia compreendia, enquanto escrevia, que

Wanda precisava de saber o paradeiro das prisioneiras norueguesas. Várias tinham sido enviadas para Majdanek e daí para Auschwitz, «um campo de extermínio onde um milhão de judeus foi empurrado para as câmaras de gás... Se pode ajudar-nos, confio que seja em breve». Algumas estavam ainda em segurança em Ravensbrück, disse ela. «Ajudei a Kirsten Brunvold a arranjar emprego no hospital e a Solveig Smedsrud está a tricotar.» Mas agora mais prisioneiras estavam a ser despachadas em transportes. «Neste preciso momento recebi a informação de que seis norueguesas — Kate Johanssen, Maja Holst, Solveig Smedsrud, Live Carlmark, Singe Enger e Tora Jespersen — foram selecionadas para serem transferidas.» Sylvia escreveu que, nessa mesma noite, tinha conseguido tirar quatro da lista. «Fui aos dois blocos onde elas estão a dormir e falei com todas. Tentarei falar com o Dr. Treite e implorar-lhe que revogue a ordem.» Mas Kate Johanssen e Maja Holst estavam selecionadas para irem para Bergen-Belsen: A não ser que possamos detê-lo à última hora... Há hoje boatos de que todo o campo vai ser evacuado dentro de três semanas e sem dúvida parece que é possível acontecer seja o que for. Possivelmente, este é o último e único sinal de vida que eu poderei dar, e, se for esse o caso, por favor transmitam uma mensagem minha ao Harald e aos meus filhos. Digam que não estou de modo nenhum desesperada ou deprimida. Digam-lhes que as saudades dele e dos meus filhos foram o mais difícil de suportar. Em segundo lugar vem o meu anseio pela liberdade, o anseio de viver a minha vida sem ser escrava de outros e as minhas saudades das florestas e dos rios da Noruega. E por favor entreguem a minha mensagem — que talvez seja a última para o meu amado marido, para a minha querida velha mãe e para os meus amados filhos. Obrigada por tudo. Adeus.

Recebendo a carta de Sylvia, Gerda disse que partiria do campo de concentração no dia seguinte e não regressaria. O Dr. Trommer tinhalhe dito que ia ser transferida para o campo de concentração masculino de Mauthausen, mas Gerda recusara-se a ir. Às quatro da madrugada, Gerda partiu com a carta e dirigiu-se para Potsdam e Gross Kreutz. Conseguiu chegar à estação de Oranienburg, nos arredores de Berlim, mas os avisos de ataque

aéreo atrasaram-na. Em Potsdam, mais desvios foram anunciados, e Gerda só chegou a Gross Kreutz quando já caíra a noite. O chefe da estação não sabia nada sobre uma família norueguesa a viver na zona, mas quando Gerda mencionou cinco filhos com cabelos louros, ele apontou na direção da casa. Numa escuridão total devido aos ataques aéreos, encontrou a casa e bateu à porta. Ninguém veio abrir. No seu saco tinha a carta incriminadora. Soaram mais sirenes de aviso de ataque aéreo e apareceu uma menina pequena. Gerda perguntou se a sua família estava em casa. A menina conduziu Gerda à cave, onde a Sra. Hjort, a mãe de Wanda, e Joanna Seip, a mulher de Arup Seip, estavam sentadas à luz de uma vela de banha. Wanda, o seu pai e os outros estavam todos ausentes. Ambas as mulheres sentiram medo da estranha alemã, mas Gerda tirou a carta de Sylvia do saco e mostrou-lhes a longa lista de nomes noruegueses e elas compreenderam então a situação. Havia pouco tempo para falar, mas as mulheres escreveram algumas palavras para Gerda levar consigo e pediram-lhe que dissesse a Sylvia que o auxílio ia a caminho. Explicaram que o conde Bernadotte, da Cruz Vermelha sueca, viria à Alemanha salvar os prisioneiros escandinavos. Com as sirenes de aviso de ataque aéreo a soarem de novo, Gerda sugeriu que a Sra. Hjort e Joanna Seip talvez quisessem enviar um embrulho a Sylvia através dela, e elas juntaram botas, meias e uma barra de sabão. Gerda partiu com o embrulho e dirigiuse para Berlim. As duas mulheres norueguesas leram a carta de Sylvia com atenção. «Se pode ajudar-nos, confio que seja em breve.»

44 Bernard Dufournier ficou a saber deste plano. Em 11 de janeiro, recebeu uma carta da missão sueca em Paris, que ele tinha contactado sobre o caso de Denise, em que se dizia que o vice-presidente da Cruz Vermelha sueca «está neste momento muito interessado em fazer alguma coisa pelo campo de concentração de mulheres em Ravensbrück. Ele deseja enviar embrulhos e enviar também um delegado. Não posso prometer nada», escreveu um funcionário sueco.

CAPÍTULO 37 EMILIE Nenhuma operação de salvamento chegaria a tempo de deter o transporte de Belsen. No dia a seguir a Sylvia escrever a sua segunda carta, partiu um comboio de Ravensbrück transportando 3205 prisioneiras. Imediatamente antes da partida do comboio, o comandante de Belsen, Josef Kramer, contactou os serviços administrativos dos campos de concentração dizendo: «Por telex de 28.2.45 informaram-me de que devo receber uma primeira remessa de 2500 prisioneiras de Ravensbrück. Essa receção é impossível. Os prisioneiros estão a dormir no chão e temos uma epidemia de tifo que está a alastrar rapidamente.» Mesmo assim, o comboio partiu. O objetivo do transporte para Belsen era esvaziar Ravensbrück de todas as crianças pequenas e bebés, mães e mulheres grávidas. As crianças presentes na festa de Natal, entre 400 e 500, foram todas enviadas, menos um punhado delas. Antes da partida do comboio, o Kinderzimmer no Bloco 11 tinha sido ampliado, com filas e filas de novos berços em que se encontravam bebés moribundos, de tal modo que Zdenka Nedvedova, a pediatra checa, observando a cena um dia, gritou de angústia: «Polacos, onde está agora o vosso Deus?» O bloco foi esvaziado. As mães estavam dispostas a acreditar que qualquer mudança seria para melhor para os seus filhos, e muitas ofereceram-se como voluntárias para o transporte para Belsen. Também outras o fizeram, entre elas a coelha polaca Maria Cabaj, que entrou para o comboio às escondidas julgando que teria melhores hipóteses de sobreviver se saísse de Ravensbrück. A viagem para Belsen, a 400 quilómetros para oeste, demorou sete dias. As prisioneiras iam encafuadas em vagões de gado fechados, sem comida nem água e sem espaço para se deitarem. «Era claro o

que ia acontecer», disse Maria. «As mães não tinham leite para alimentar os seus bebés e à medida que os dias iam passando eles começaram a morrer.» Quando o comboio chegou a Belsen, todos os bebés tinham já morrido. As mulheres foram descarregadas a cerca de três quilómetros do campo e obrigadas a atravessar campos a pé. Durante a marcha, as que não conseguiam andar foram mortas a tiro. Ao chegarem à vedação do campo de concentração, as mães pousaram os pequenos corpos numa fila ao longo do arame farpado; cobriu-os a neve branca. Na manhã seguinte, já tinham desaparecido. Maria Cabaj recordou: O desespero das mães era terrível de se ver. Eu já estava dessensibilizada e indiferente. Os meus filhos já eram uma parte do passado. Nem me conseguia recordar dos seus rostos. Por vezes, perguntava-me se alguma vez tinha tido filhos, um lar, uma família. Em Belsen, havia forcas com homens pendurados, cadáveres a arderem em valas e contra o arame farpado.

Com o transporte para Belsen, iniciou-se a evacuação de Ravensbrück, e com ela a operação de limpeza. O Kinderzimmer no Bloco 11 foi esfregado e pintado de fresco. «As prisioneiras holandesas disseram que não ficaram minimamente surpreendidas», disse Karolina Lanckorońska. «Tinham vindo de um campo de concentração na Holanda que foi evacuado imediatamente antes de chegarem os Aliados. Alguns dias antes da evacuação, foi criado um bloco para crianças e as paredes foram pintadas à pressa com cenas de contos de fadas.» No início de março, a tenda desapareceu e as suas ocupantes também. Segundo Halina Wasilewska, albergava pelo menos 4000 mulheres antes de ser desmontada, embora no final ninguém soubesse quantas pessoas se encontravam dentro dela ou quantas tinham morrido, já que, com frequência, as que eram enviadas para lá não tinham número nem a sua identidade tinha sido registada. Quando por fim as Blockovas da tenda protestaram à SS que não havia maneira de aceitar mais uma só mulher que fosse na tenda, outras 500 foram empurradas para dentro dela, «literalmente, uma

das funcionárias da administração empurrou-as pela abertura com o joelho», disse Halina. Entre as imagens específicas anotadas por Halina no seu registo dos últimos dias da tenda contavam-se: O corpo de uma mulher morta desconhecida a jazer durante quatro dias diante da entrada da tenda a aguardar identificação. Uma mulher com escarlatina cuja pele se encontrava nos estádios finais de lhe sair. Suzi Perekline-Rudolphino, uma bela e saudável jovem de dezoito anos, que enlouqueceu depois de passar dois dias na tenda e foi levada para a Revier, onde morreu. Depois de a tenda ser desmontada, ficou só um terreno baldio e um monte de lixo. Um avião britânico de reconhecimento sobrevoou o campo de concentração pouco depois e fotografou-o. A imagem mostra um espaço vazio onde antes estava a tenda. Poucos dias depois, foram plantadas árvores. Na sequência do transporte para Belsen e do desmantelamento da tenda, a SS virou de novo a sua atenção para o extermínio. Agora que o Dr. Lucas tinha partido, o Dr. Treite recebeu a incumbência de se encarregar das seleções, mas, como também ele recusou, foi chamado um ex-cirurgião naval, o Dr. Adolf Winkelmann, que trabalhara no campo de concentração de Gross-Rosen pouco antes de ele ser tomado pelos Russos. «Muito alto e muito gordo, com uma vasta barriga, com ombros enormes, grossos e muito largos, um rosto inchado, olhos claros e um pescoço que se afundava nos ombros em camadas de gordura», foi como Loulou Le Porz descreveu Winkelmann. A maioria das prisioneiras não conseguia olhá-lo nos olhos, mas Loulou examinou-o e sugeriu um diagnóstico: acreditava que ele sofria de um distúrbio celular conhecido como mastocitose, que provocava furúnculos e quistos na pele. «Eu sei que não se devem julgar as pessoas pela aparência», disse ela, «mais quand même! [mesmo assim!] Ele tinha o rosto de um assassino profissional. Veio para o campo com uma

arma ao ombro.» Winkelmann nem sequer fingiu comportar-se como médico. Arrastou o seu corpanzil pela porta do Bloco 10, acompanhado por uma enfermeira da SS, em seguida sentou-se a uma mesa e exigiu que lhe mostrassem a tabela das temperaturas. «Mas nem sequer olhou para ela», disse Loulou. Não havia lógica nas suas escolhas para a morte. Selecionou mulheres francesas que facilmente teriam sobrevivido até à libertação. Decidia apenas se gostava ou não do aspeto de alguém — não mais do que isso. Era um homem muito estúpido e até pôs alemãs na sua primeira lista, muito tempo depois de terem parado de exterminar alemães por gás. Se alguma de nós protestava, ele virava-se e deitava-nos um olhar como se a dizer que nós seriamos a seguir. Tinha olhos muito pequenos de cor clara. Ouvi dizer que tinha dois filhos e que vivia com a família perto do campo.

No entanto, as prisioneiras não tardaram a reconhecer um padrão nas seleções de Winkelmann. Julia Barry reparou que ele olhava sempre para baixo, para as pernas das mulheres. Denise Dufournier disse que ele aparecia frequentemente com Hans Pflaum, o «negociante de gado», mas, ao contrário de Pflaum, «também uma besta corpulenta», Winkelmann não espancava as mulheres. «Deixava-se só ficar a olhar-lhes para as pernas.» Loulou disse que no Bloco 10 por vezes ele pedia a uma enfermeira para levantar um cobertor. «Depois, mantendo-se bem distante, virava lentamente o seu pescoço grosso, erguia os olhos e permitia-se demorá-los por um ou dois segundos numa figura prostrada e aterrorizada, particularmente nas pernas.» Winkelmann só inspecionava as pernas, porque os critérios de seleção estavam reduzidos a isso mesmo: a mulher seria capaz de andar, e, por consequência, de acompanhar a marcha de evacuação iminente? O Führer insistira que nenhum prisioneiro deveria ficar vivo nos campos de concentração quando os Russos chegassem, mas, como era já óbvio naquela fase que não haveria tempo para os exterminar a todos por gás, o resto teria de partir numa marcha forçada. Os que não fossem capazes de andar seriam mandados para a câmara de gás.

Menos de uma semana depois da chegada de Winkelmann, as secretárias do Schreibstube repararam que ele tinha duplicado o número das prisioneiras transferidas para o Campo da Juventude, de cerca de entre 50 e 60 por dia para 150 ou até mesmo 180. A maioria das que eram enviadas tinha os tornozelos e as barrigas das pernas inchadas. Winkelmann também se encarregou das seleções no Campo da Juventude, onde Ruth Neudeck estava a perder o controlo da situação. As prisioneiras começavam a ripostar e algumas tinham-se evadido. Uma húngara conseguiu voltar para as instalações centrais do campo de concentração depois de Salvequart lhe oferecer o pó branco. Esconderam-na num bloco e nunca mais foi encontrada. Segundo Hedwig Kuna, uma alemã incumbida de ser a intérprete de Neudeck, Adolf Winkelmann culpou Neudeck desses incidentes. Mal chegou ao Campo da Juventude, acusou Neudeck de escolher mulheres para a câmara de gás «que ainda tinham forças para resistir». Uma jovem de Varsóvia era ainda tão forte quando foi selecionada para ser exterminada por gás que conseguiu escapar da própria câmara de gás, voltou a correr para o Campo da Juventude e descreveu o que tinha visto. Como recordou Irma Trksak, a Stubova austro-checa: Ela disse-nos que foram levadas para uma cabana que tinha uma abertura no telhado. Disseram a todas para se deitarem e dormirem, já que era de noite, mas logo a seguir começou a entrar um gás pela abertura no telhado. Mas nem todas as mulheres morreram logo, e como aquela polaca não estava morta, conseguiu sair antes de as outras todas serem levadas para o crematório.

A mulher, aterrorizada, não sabia para onde fugir e por isso acabou por voltar para o Campo da Juventude e tentou esconder-se ali. Como as guardas não a viram ao princípio, sabendo que os cães a encontrariam a qualquer momento, ela escondeu-se numa vala para onde eram atirados os excrementos das prisioneiras, juntamente com palha húmida. «Ela achou que se escondendo ali, debaixo da palha, os cães não conseguiriam farejá-la e ela estaria em segurança»,

disse Irma. Ao princípio, os cães não a encontraram, mas um deles pôs-se ao lado da vala onde se encontrava a mulher, e uma outra prisioneira — outra Stubova checa — viu o seguinte: A Stubova berrou: «Ela está na vala, vamos queimar a palha.» Então, a Neudeck pegou fogo à palha, o que fez sair a mulher polaca. Ela foi imediatamente fechada outra vez e metida num camião para a câmara de gás no dia seguinte. Quando o camião a levou, ela gritou das traseiras: «É tudo uma mentira. Nós não vamos para Mittwerda, vamos para a câmara de gás para sermos queimadas.»

Depois daquele episódio, nem mesmo as prisioneiras mais tresloucadas do Campo da Juventude acreditavam já na ficção de Mittwerda. No início de março, começou a espalhar-se pelo Campo da Juventude o boato de que Winkelmann selecionaria quem tivesse o rosto pálido, e por isso as mulheres beliscavam as faces ou esfregavam-nas com algo que as pusesse vermelhas. Um número crescente de mulheres resistia, berrando, estrebuchando e arranhando as guardas, usualmente quando estavam a ser metidas nos camiões, com frequência juntamente com outras mulheres já mortas. «Havia cenas terríveis», disse Hedwig Kuna. Uma tarde, uma guarda jovem regressou depois de acompanhar um transporte para a câmara de gás e todo o seu corpo tremia. «Disse-me que era pavoroso e que não conseguiria fazê-lo outra vez.» Durante todo esse tempo, Mary O’Shaughnessy ainda vivia no terror de ser selecionada por causa do seu braço postiço. No início de março, a enfermeira escocesa Mary Young ouviu o seu número ser chamado. Ela já estava muito fraca e incapaz de protestar, disse Mary O’Shaughnessy. «Nessa manhã, estávamos todas a ficar loucas. Fomos todas conduzidas para fora e perfilaram-nos diante dos nossos blocos. Chegaram uns homens da SS e fizeram-nos caminhar cerca de vinte metros em filas de dez. Enquanto caminhávamos, os SS escolheram mulheres para saírem da fila. À minha frente estavam a Mary Ellen Young com uma mulher francesa, a Tambour. A Mary e a Tambour foram selecionadas pelos homens da SS.»

Tambour era Madeleine Tambour, que tinha trabalhado com o circuito britânico Prosper, perto de Paris. A sua irmã Germaine estava com ela no Campo da Juventude, mas não foi selecionada. Mary O’Shaughnessy disse que não fazia ideia do motivo por que Madeleine Tambour e Mary Young foram escolhidas daquela vez. «Não havia lógica naquilo. A Mary não parecia mais fraca do que qualquer uma das outras.» Depois de fazer as seleções no Campo da Juventude, Winkelmann regressou ao campo principal, que em março se tornou o foco do seu interesse. Durante a primeira fase do extermínio por gás, as mulheres do Bloco 10 e algumas dos outros blocos de morte foram selecionadas, mas a partir de finais de fevereiro ele passou a selecionar também «trabalhadoras» comuns de blocos de doentes. Germaine Tillion escrevia agora um diário todos os dias — «os factos mais essenciais; os que mais horrorizavam; que eram demasiado importantes para manter só na memória» —, ao mesmo tempo que continuava a coligir dados fornecidos pelas «velhas ratazanas». Pouco depois de Winkelmann chegar, depois dos primeiros transportes de evacuação, Germaine reparou que o número de prisioneiras em Ravensbrück começou a diminuir pela primeira vez. No início de fevereiro havia 46 473 mulheres contadas ali, provavelmente o número máximo atingido. No início de março, havia 37 699. No dia 2 de março foram convocadas mais mulheres para um transporte de evacuação em massa, dessa vez para o campo de concentração de Mauthausen, perto de Linz, na Áustria. O transporte levaria todas as ciganas, um grande número das mulheres idosas e doentes e também todas as prisioneiras NN. No seu diário, Germaine regista: «Este fim de tarde mil mulheres — entre as quais, todas as NN (exceto as que estão escondidas) e as ciganas com os seus filhos — foram fechadas no Strafblock.» Germaine não menciona o «facto essencial, o que mais horrorizava», de também ela ter sido enviada para o Strafblock, porque, como «NN», tanto ela como a sua amiga Anise Girard figuravam na lista para Mauthausen. Mais tarde,

explicaria que graças a uma amiga checa influente, a artista Anicha Kapilova, tanto ela como Anise foram retiradas da lista à última hora. O seu lugar foi tomado por outras que partiram na manhã seguinte encerradas dentro de vagões de gado fechados. Os relatos do que aconteceu às prisioneiras que partiram para Mauthausen só foram divulgados depois da libertação. Pelo menos 120 mulheres morreram na viagem, de sede e sufocadas. Ao saírem do comboio, as que «ainda estavam a morrer», nas palavras de uma das prisioneiras, foram «rapidamente despachadas». Ao caminhar para os portões de Mauthausen, uma mulher holandesa chamada Sabine Zuur reparou numa jovem à sua frente com um bebé num braço e uma criança pequena pela mão. Ela marchava duas filas à minha frente. Encontrava-se no fim das suas forças e estava sempre a tropeçar. Quando os guardas da SS lhe batiam, as mulheres que iam ao lado dela levantavam-na, mas ela voltava a cair. Por isso, um SS tirou-a da fila e espancou-a, deixando-a no fim da fila. As outras mulheres tiveram de tomar conta dos filhos dela. Nós sentíamo-nos aterrorizadas por podermos tropeçar e sermos espancadas assim.

Depois de Anise e Germaine serem retiradas da lista de Mauthausen, foram escondidas — Anise no bloco onde sempre estivera a mãe de Germaine, Emilie Tillion, e Germaine, que estava doente, num bloco da Revier. Espalhou-se então a notícia de que se procederia a uma Generalappell no dia seguinte. A Generalappell era uma seleção em massa na qual qualquer pessoa poderia ser escolhida para a câmara de gás, mas particularmente as mais idosas ou as mulheres com problemas nas pernas. Aos sessenta e nove anos, Emilie Tillion encontrava-se obviamente em risco, mas o mesmo poderia dizer-se de Germaine, que não só estava doente como também coxeava ainda bastante devido ao seu ataque de difteria. Enquanto Emilie permaneceu no bloco, aos cuidados de Anise, a amiga de Germaine Anicha transferiu-a às escondidas para um bloco da Revier mais seguro. Anicha sabia que Grete BuberNeumann estava naquela altura doente numa «enfermaria segura» da Revier, destinada a prisioneiras privilegiadas.

«Eu estava na enfermaria quando a Anicha abriu a janela pela parte de fora e disse toda nervosa que vinha aí uma Appell geral e que tinha de se encontrar um esconderijo para a Germaine», recordou Grete. A única outra mulher na enfermaria segura estava deitada, muito doente, na cama por baixo da de Grete, e por isso Grete pôde meter Germaine na sua cama e escondê-la debaixo dos cobertores. Lá fora, soou a sirene para a Appell e mais de 30 000 mulheres perfilaram-se ao lado dos seus blocos, enquanto Winkelmann, Suhren e um grupo de guardas e de prisioneiras polícias se aproximaram. Zdenka Nedvedova reparou numa guarda entre elas, com uma cana com quarenta centímetros de comprimento, com um gancho de prata. Cada prisioneira teve de se despir e caminhar rapidamente diante deles. Quem tivesse as pernas inchadas, o cabelo grisalho, o corpo com rugas ou outras características desse tipo tinha de se afastar para um lado. Ficámos numa chamada extraordinária na Lagerstrasse enquanto perante os nossos olhos mulheres meio nuas eram levadas de blocos do hospital e transportadas em camiões. Entre as que foram levadas lembro-me da escritora Milena Blacarova Fischerova, que sofria de tuberculose e tinha dois filhos. Ela foi levada para as câmaras de gás. Nós ficámos ali impotentes e extremamente chocadas. As mulheres que eram levadas gritavam e debatiam-se. Os camiões estavam estacionados à espera para levarem as vítimas. Por fim, as prisioneiras escolhidas foram levadas para outro bloco e para o Campo da Juventude de camião. As que sofriam de tuberculose e as «loucas» foram levadas diretamente para a câmara de gás. Eu vi-as vestidas só com uma camisa, empilhadas em camiões, e daí a uma hora observei chamas a esguicharem bem alto das chaminés e um fumo espesso e sufocante espalhou-se pelo campo.

Zdenka e muitas outras prisioneiras disseram que a polícia do campo ajudava a SS a juntar as mulheres e a perseguir e encontrar as que estavam escondidas. Certas Blockovas também ajudavam. As francesas acusariam mais tarde Karolina Lanckrorońska, a Blockova do seu bloco, o Bloco 27, de ajudar os guardas da SS a apanharem as mulheres. Enquanto prosseguia a seleção em massa, Grete e Germaine

ouviam os berros dos guardas junto aos blocos «e soubemos que todo o campo iria ser revistado», disse Grete. «Ouvimos o som de camiões a arrancarem e a partirem e vários outros sons. Ao fim de uma hora, soaram passos no corredor junto ao nosso quarto e a Germaine escondeu-se mais debaixo da roupa de cama. Entraram três homens — Treite, Trommer e Winkelmann.» «Quantas doentes há neste quarto?», perguntou Treite. Grete responde que havia duas. Treite olhou para ela e para a mulher moribunda na cama do beliche por baixo dela e em seguida virou-se com os outros e saiu. Pouco depois, a sirene soou a indicar o fim da Appell. «O rosto da Anise apareceu à janela, paralisado de terror», disse Grete. «Ela disse: “Germaine, a tua mãe foi levada para a câmara de gás”, ao que a Germaine saltou da cama, a soluçar: “A minha mãe, a minha mãe.”» A seleção tinha terminado e as mulheres regressavam aos seus blocos. Anise disse a Germaine que ela e Emilie tentaram esconderse, mas foram obrigadas a entrar na fila. Emilie foi então selecionada e metida num dos camiões de Winkelmann. As prisioneiras acreditavam que ela tinha sido levada para o Campo da Juventude e não diretamente para a câmara de gás, e Germaine tinha a esperança de que houvesse ainda uma probabilidade de a salvar. Germaine escreveu uma mensagem para a sua mãe e pediu a Micky Poirier, uma amiga que trabalhava no gabinete de Hans Pflaum, que se assegurasse de que a carta chegaria a Emilie no Campo da Juventude. Se alguém conseguia fazer chegar uma carta ao Campo da Juventude era Micheline «Micky» Poirier, uma jovem de dezanove anos que chegou a Ravensbrück em julho de 1944 e rapidamente se tornou a prisioneira francesa mais influente do campo de concentração. Em grande medida porque falava fluentemente alemão, por ter nascido na região fronteiriça da Alsácia, mas também porque era uma funcionária administrativa eficiente, Micky foi nomeada secretária de Pflaum, o que significava que conhecia o paradeiro de quase todas as prisioneiras no campo de concentração. Na mensagem de Germaine para a sua mãe lia-se: «Tenha

cuidado com a sua saúde e tente parecer contente.» Ela perguntava à mãe se tinha visto duas mulheres francesas também enviadas para o Campo da Juventude — «Tem notícias da Evelyne ou de Madame Bailly?» Enviou também um embrulho com analgésicos, uns torrões de açúcar e uma bolacha. Germaine enviou uma segunda e uma terceira cartas para a sua mãe nos dias seguintes, assim como embrulhos com pedaços de carvão para a diarreia. «Tem de raspar o carvão muito fino para não irritar o intestino», recomendou-lhe. Germaine esperava uma resposta, mas não a teve. Uma semana depois, Micky devolveu os embrulhos a Germaine, assim como as cartas, dizendo-lhe que a sua mãe tinha ido para a câmara de gás. A morte de Emilie Tillion devastou as francesas e as suas condolências multiplicaram-se, embora algumas perguntassem, e continuem a perguntar até aos dias de hoje, porque é que Germaine não ficou com a sua mãe. «Eu acho que me teria assegurado de que iria com a minha mãe para a câmara de gás, não lhe parece?», disse Loulou Le Porz, quando lhe perguntei o que recordava desse dia. Outras culpavam Karolina Lanckorońska por não salvar Emilie. Lanckorońska era Blockova do seu bloco e tinha influência junto de Binz e de Suhren. Poderia ter intercedido por ela. Anise Girard culpava-se a si própria. Tinha prometido à sua amiga Germaine que olharia por Emilie, de quem era também muito próxima. Jeannie Rousseau, a instigadora do protesto em Torgau em setembro de 1944, nessa altura já estava de volta ao campo principal e diz que não havia nada que ninguém pudesse ter feito para salvar Emilie Tillion. A Germaine estava na Revier e não podia fazer nada. A Anise estava com a Emilie e disse-lhe, olhe, não tem de ir. Eu posso escondê-la. Mas Madame Tillion disse à Anise: «Sempre olhei para a minha vida de frente. Quero olhar para a minha morte de frente.» Ela não tentou escapar. Não queria tentar. «Chegou o meu momento e tenho de o encarar.» Ela tinha de ir ver o que era. E a Anise sempre se sentiu culpada. Não o esqueceu por um segundo sequer. Sempre que fala sobre esses momentos, chora. Chora. Chora. É por isso que não deixa Germaine, nem mesmo agora.

Encontrei-me com Anise Girard duas vezes. Da segunda vez foi na casa de Germaine em Paris, em 2009. Germaine tinha cem anos e estava deitada no andar de cima, muito fraca. Anise sentava-se junto a ela, em constante vigília da sua amiga às portas da morte. Havia um retrato de Emilie pendurado na parede. Perguntei se era verdade que Karolina Lanckorońska se recusara a ajudar a evitar a seleção de Emilie. Sim, eu pensei que a Karolina salvaria a Emilie. Ela pertencia ao mesmo círculo no campo. Era professora de Arte como Madame Tillion e ambas davam palestras sobre arte no bloco. Pertenciam a um grupo de intelectuais e de mulheres de embaixadores — o milieu culturel. Mas a Lanckorońska achava a maior parte das francesas do campo detestáveis. As francesas andavam sempre a recusar-se a obedecer às suas ordens e ela tinha um pau grande com que nos batia, e dizia: «Mesdames, não têm nenhuma civilização.» Sim, ela podia ter ajudado. Estava perto de nós quando aconteceram as seleções, mas não fez nada.

Anise começou a chorar. Nunca tinha falado sobre o campo de concentração «até Faurisson», disse ela. Robert Faurisson, um estudioso nascido no Reino Unido que dava aulas na universidade de Lyon, escreveu artigos na década de 1970 questionando a existência de câmaras de gás nazis e dizendo que não havia provas da existência de uma câmara de gás em Ravensbrück. Para fundamentar as suas declarações, citava os registos do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em que não se mencionava uma câmara de gás em Ravensbrück. As declarações de Faurisson causaram escândalo por todo o mundo e provocaram grande dor entre as sobreviventes de Ravensbrück, em particular naquelas cujas famílias e amigas tinham sido exterminadas por gás. Nos anos 1970, como Germaine estava de novo ocupada a estudar tribos africanas, Anise Girard incumbiu-se da tarefa de refutar Faurisson. «Sentíamo-nos terrivelmente cansadas como velhas deportadas; quiséramos esquecer e enxotar tudo isso da nossa vida, mas quando lemos o que Faurisson dizia, tivemos de fazer alguma coisa.» Não surpreende que não houvesse menção à câmara de gás nos

arquivos da Cruz Vermelha Internacional. Himmler conseguiu enganar o CICV sobre a câmara de gás em Ravensbrück e sobre muitas outras coisas. Os factos foram confirmados antes dos julgamentos em Hamburgo no pós-guerra. Johann Schwarzhuber, o oficial da SS que dirigiu o extermínio por gás em Ravensbrück, descreveu a câmara de gás e delineou o processo de extermínio. Posteriormente, surgiriam mais testemunhos de membros da SS. Fritz Suhren, que em declarações anteriores confirmara a existência da câmara de gás, mas negara qualquer envolvimento pessoal, escapou imediatamente antes do julgamento de Hamburgo. Recapturado, compareceu perante um tribunal francês em Rastatt em 1949, onde ficou provado o seu papel nos acontecimentos. Foi até mostrada a Suhren uma «lista de Mittwerda» com a sua assinatura em baixo. A lista, datada de 6 de abril de 1945, com 450 nomes de mulheres selecionadas para a câmara de gás, tinha sido obtida por prisioneiras e trazida secretamente para ser usada como prova. Outros depoimentos de testemunhas surgiriam mais tarde, alguns deles prestados por sobreviventes do campo de concentração para homens que tinham trabalhado na câmara de gás ou nas suas imediações. Como esses sobreviventes viviam por trás da Cortina de Ferro depois da guerra, os seus testemunhos foram inicialmente quase desconhecidos no Ocidente, mas acrescentavam novos pormenores importantes. Anise descobriu o testemunho de Emanuel Kolarik, um prisioneiro checo que fazia pequenas tarefas nas imediações da câmara de gás — na limpeza e na remoção de cadáveres. Ele disse que durante o seu trabalho falava frequentemente com os homens que conduziam o processo de extermínio por gás. Esses homens eram os prisioneiros judeus de Auschwitz importados por Schwarzhuber para formar o Sonderkommando de Ravensbrück. No pátio ao lado do edifício, as mulheres recebiam uma pequena toalha e um pedaço de sabão e eram levadas para o lado esquerdo do edifício, onde tinham de se despir. Diziam-lhes que tinham de se lavar bem, porque isso era importante no campo para onde iriam. Na câmara de gás, os SS berravam-lhes: «Lavem-se bem, não há

pressa.»

Segundo Kolarik, os homens do Sonderkommando tiravam os cadáveres da câmara de gás arrastando-os com ganchos. «Muitas das mortas tinham obviamente tentado escapar ou lutado para sair no último momento, porque as mulheres mortas tinham as mãos fechadas em punho, com madeixas de cabelo, e os corpos estavam agarrados uns aos outros, de tal modo que os trabalhadores não conseguiam desembaraçá-los uns dos outros.» Quando se dirigia para um local perto da câmara de gás para fazer uma reparação, Kolarik viu um trabalhador judeu pegar nos cadáveres e empilhá-los no exterior do crematório como toros de madeira prontos a serem queimados. O trabalhador usava um avental de estopa para se proteger e no bolso do avental trazia algum pão. «Aquele prisioneiro estava tão dessensibilizado que comeu o pão que trazia no avental enquanto ia buscar mais um cadáver. Aquele espetáculo fez-me vomitar.» Kolarik chamou o seu chefe — um homem da SS — para lhe mostrar a cena e ele vomitou também. Anise descobriu igualmente indícios de que talvez tenha havido uma segunda câmara de gás em Ravensbrück. Tanto ela como Germaine sempre se tinham perguntado como é que conseguiram matar tantas pessoas na primitiva câmara de gás de madeira descrita no julgamento de Hamburgo por Schwarzhuber e por outros, dada a sua pequena capacidade. Além disso, embora alegadamente a estrutura de madeira tenha sido destruída nos primeiros dias de abril, há provas conclusivas que indicam que o extermínio por gás continuou a verificar-se depois dessa data. Outros testemunhos revelam que prosseguiu até aos finais de abril, mas onde? Foi Anise Girard quem primeiro chamou a atenção para o testemunho pouco conhecido de Walter Jahn, o eletricista de Dresden detido no campo de concentração para homens perto de Ravensbrück, que afirmou no julgamento de Oswald Pohl que era o autor dos planos para uma câmara de gás de cimento para Ravensbrück, mas que a sua construção se tinha atrasado. Os planos de Jahn eram muito diferentes da estrutura provisória de madeira da

câmara de gás que sabemos ter sido usada. A sua câmara, disse ele, encomendada por Schwarzhuber e por Höss, localizava-se junto ao muro norte, disfarçada como o Neue Wäscherei — o novo balneário. Jahn disse que foi até inspecionada por Höss, Suhren e Pohl no final de fevereiro e novamente em março, e deu a entender que tinha de facto entrado em funcionamento. «Fiz eu próprio o equipamento elétrico, incluindo o quadro», disse Jahn. A entrada parecia bastante inofensiva, «como uma sala de espera», mas lá dentro havia duas «casas de banho» com cerca de trinta chuveiros. No meio havia um exaustor com ventiladores de extração. Os ventiladores limpavam o ar envenenado. As vítimas eram tiradas para fora e atiradas para uma vala comum e os seus pertences eram removidos por camião. Desde que o testemunho de Jahn veio a lume tem sido motivo de controvérsia, porque nunca foi descoberto qualquer indício dessa câmara de gás e as sobreviventes não mencionam tal edifício, o que resultou em especulações, de que Jahn estaria a mentir ou de que a sua câmara de gás nunca terá chegado a ser usada. O local nunca foi escavado em busca de sinais dessa estrutura nem se procedeu a escavações para encontrar as valas comuns de que Jahn falou. Assim, o testemunho de Jahn não pode ser completamente invalidado. E mesmo que a sua câmara de gás nunca tenha sido usada, pode ter-se integrado num plano de extermínio por gás em Ravensbrück mais alargado do que se supõe até à data. É provável que a verdade sobre a câmara de gás de Jahn nunca chegue a ser conhecida. Mas temos efetivamente provas avassaladoras sobre outros extermínios por gás no campo de concentração. Particularmente nas últimas semanas, dezenas de prisioneiras viram uma câmara de gás móvel — descrita como uma carrinha de gás, um camião de gás e até uma carruagem de comboio — parcialmente escondida nos bosques. Algumas prisioneiras disseram que havia mais do que um veículo para o extermínio por gás. Karolina Lanckorońska falou de um autocarro. Esse veículo chegou

nos finais de março e ficou estacionado nos bosques perto do campo de concentração. «O autocarro estava pintado de verde; tinha as janelas pintadas e as rodas estavam bastante juntas umas às outras.» Num relatório enviado a Londres, baseado em entrevistas com as sobreviventes imediatamente a seguir à sua libertação, um diplomata britânico disse que as mulheres que tinha interrogado falaram de «duas câmaras de gás» — uma delas «um vagão de comboio convertido, trazido de Auschwitz». Um número incontável de sobreviventes polacas falou de «carrinhas de gás» e de «camiões de gás». A descrição de Irena Dragan de mulheres enfaixadas exterminadas por gás num camião no Campo da Juventude é uma das mais vívidas. Outras prisioneiras do Campo da Juventude falaram de ouvirem «o ruído contínuo dos motores dos veículos à noite... e uns gritos desesperados». A prisioneira secretária Erna Cassens, uma comunista alemã, declarou que ouvira dizer que era usada uma carrinha de gás quando a câmara de gás não estava a funcionar bem. «Soube-se que as mulheres eram metidas em vagões de comboio numa clareira nos bosques. Nos vagões selados era introduzido gás. Ao fim de algum tempo, os vagões eram abertos e os corpos das prisioneiras descarregados e levados para o crematório.» Mary O’ Shaughnessy acreditava que o veículo era «um vagão de comboio estacionado numa clareira algures nos bosques». Imediatamente depois da libertação, a radiologista polaca Mlada Tauforova descreveu como tinha encontrado um vagão de comboio nos bosques e redigiu um relatório sobre ele às autoridades soviéticas. Maria Apfelkammer afirmou ter visto o interior de «um vagão de gás, com a forma de um autocarro comprido». Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, recebeu ordem de desmantelar um dos camiões de gás. Diria mais tarde que não teve tempo e que ele caiu nas mãos dos Russos. Zdenka Nedvedova viu também os camiões de extermínio por gás depois da partida do pessoal da SS: «Encontrámos veículos abandonados perto do Campo da Juventude — semelhantes a camiões de mudanças — que tinham um

mecanismo que permitia que fossem bombeados gases para dentro deles.» Há outras razões para acreditar que foram usados camiões como câmaras de gás; para começar, os conhecimentos necessários para o fazer existiam no campo de concentração. O chefe dos transportes, Josef Bertl, tinha aprendido a exterminar judeus por gás em camiões quando se encontrava em Lublin nos primeiros tempos da guerra. Entre os novos chefes da SS que chegaram a Ravensbrück no inverno de 1944-45 encontrava-se Albert Sauer, que também usara camiões para o extermínio por gás na Polónia. Suhren era comandante de Sachsenhausen quando se fizeram ali experiências de utilização de câmaras de gás móveis em camiões. Todos esses homens se conheciam de anteriores postos e quase de certeza que partilharam ideias sobre como matar, especialmente já que em março e em abril o número de mortes ainda não era suficientemente elevado. Fritz Suhren disse a um colega que tinha recebido ordens diretas do Führer «para liquidar todo o campo». Para obter os melhores conselhos sobre câmaras de gás móveis. Suhren poderia recorrer ao Sturmbannführer Herbert Lange, que foi o pioneiro dessa técnica. Destacado para supervisionar o assassínio dos doentes mentais da Polónia no início da guerra, Lange operou uma frota de camiões de três toneladas, convertidos de modo a que até cem pessoas pudessem ser envenenadas de cada vez, com o monóxido de carbono do fumo do escape a ser introduzido na parte de trás do camião. Lange seria mais tarde colocado em Drögen, o quartel-general da polícia de segurança perto de Ravensbrück. Em março de 1945, ele e Suhren talvez tenham debatido a melhor maneira de exterminar as mulheres por gás em camiões. Talvez Lange ainda tivesse alguns dos seus camiões em Drögen. Dizia-se que a frota tinha regressado a Berlim, mas essa cidade não ficava longe. No seu diário de todos os dias de março, Germaine Tillion anotou «la chasse, la chasse» [a caça] e Loulou Le Porz recorda que era

assim mesmo. «Tornou-se perigoso estar na Lagerstrasse. Era “la chasse à l’homme” [a caça ao homem]. Winkelmann ou Pflaum apareciam com um camião e diziam Allez hop, e era-se levada. O que é certo é que saíamos o mínimo possível durante “la chasse”.» Depois da seleção maciça de 2 de março, as regras de la chasse não pararam de mudar. Na primeira semana de março não eram só as mulheres reunidas na zona de morte vedada por arame farpado que tinham razões para recearem a seleção. Nessa fase, os camiões desciam a Lagerstrasse, estacionavam junto a um bloco onde Winkelmann estivera a fazer seleções, e Neudeck, Koehler e Rapp saltavam para fora e empilhavam as vítimas diretamente no camião. As Blockovas e as Stubovas recebiam ordens para ajudar, assim como quem quer que fosse a passar. No início de março, três dos elementos do grupo das pinturas, Denise Dufournier, Christiane de Cuverville e Claire Davinroy, passaram pelo Bloco 11, onde estavam a ser metidas mulheres num camião. Vendo o trio francês, os guardas ordenaram-lhe que ajudassem a carregar as vítimas, e elas não se atreveram a recusar. As mulheres aterrorizadas suplicaram às jovens francesas que lhes dissessem para onde iria o camião, e as três negaram saber o seu destino. Quando se afastaram e se puseram a fitar horrorizadas o camião carregado, as três francesas aperceberam-se dos olhares dos SS a demorarem-se nelas. «Pressentimos algo fora do habitual», disse Denise, «como se os guardas não conseguissem resistir à ideia de nos agarrarem a nós também.» Olhando umas para as outras, as três afastaram-se rapidamente. Em meados de março, as seleções já não se confinavam aos blocos das doentes: ocorriam também em blocos comuns, e a qualquer momento. Uma guarda aparecia à porta de um bloco, berrava «Appell» e as mulheres tinham de se pôr em fila diante de Winkelmann, por vezes com Schwarzhuber ou Pflaum ao seu lado. Faziam-se até seleções nos blocos das privilegiadas. Gemma La Guardia Gluck, com sessenta e quatro anos, agora grisalha e débil,

foi selecionada do Bloco 2, e «gritou como uma criança», berrando: «Eu não quero ir pela chaminé do crematório acima!» Ao ouvir Gemma, a sua Blockova recordou a Fritz Suhren quem era o irmão de Gemma e ela foi retirada da lista. Também se processavam seleções na fábrica da Siemens. Margareta van der Kuit recorda-se de ver um oficial da SS ir às novas casernas: Toda a gente teve de se perfilar no exterior e o oficial chamou os números. As escolhidas eram frequentemente mulheres mais velhas, cujas filhas também estavam a trabalhar no campo da Siemens. As filhas ficaram muito preocupadas com o destino das suas mães e por isso o oficial disse-lhes que elas seriam levadas para outro lugar onde ficariam melhor e onde não teriam de trabalhar tão duramente.

Basia Zajączkowska, a judia que tinha sobrevivido ao gueto de Kielce, disse: «Nós tivemos uma seleção uma vez — apartaram as pessoas com mais idade que tinham problemas nas pernas das que estavam bem no geral. As apartadas foram remetidas [da Siemens] para Ravensbrück, para o crematório.» Uma prisioneira jugoslava chamada Vida Zavrl disse que as prisioneiras da Siemens tiveram de formar uma fila e levantar as saias diante de uma comissão, que anotou os números das selecionadas. Quem fosse considerada incapacitada para o trabalho corria o perigo de ser exterminada por gás, disse Yvonne Luseldinger, a luxemburguesa na Siemens: «As prisioneiras que eram grisalhas começaram a pintar o cabelo, mas quando chovia na chamada a tinta escorria-lhes pelo rosto.» Integradas no plano de esvaziar o campo de concentração, as seleções para subcampos — para os que se encontravam mais a oeste, mais distantes da frente russa — foram também incrementadas. Grandes números de prisioneiras foram igualmente levados para subcampos anexados a campos de concentração para homens. Entre janeiro e março, só para subcampos de Buchenwald foram transportadas 2000 mulheres de Ravensbrück, e um número ainda maior foi enviado para subcampos de Dachau e de Flossenbürg. Pflaum entrou no bloco do grupo das pinturas um dia a

chamar toda a gente para um transporte para Berlim para cavar valas. As pintoras treparam para o sótão do seu bloco e outras esconderamse espalmadas por baixo dos beliches enquanto os «negociantes de gado» andavam enraivecidos pelo bloco a fazer sair as prisioneiras à pancada. As sobreviventes do transporte para cavar valas regressaram duas semanas depois, contando que muitas tinham morrido de exaustão ou por terem sido atingidas por bombas. Dado o perigo de la chasse, muitas prisioneiras começaram a tentar ser transferidas para um subcampo, esperando ficar assim em mais segurança, só para descobrirem que as probabilidades de sobrevivência nesses campos eram de certa forma piores. Wanda Wojtasik e Krysia Czyż, as coelhas polacas, assumiram os números de prisioneiras mortas e conseguiram integrar clandestinamente uma coluna de mulheres que se dirigia para o minúsculo subcampo de Neustadt-Glewe, onde encontraram prisioneiras a morrerem à fome em vez de serem exterminadas na câmara de gás. Sem acesso a qualquer fonte de abastecimento, o campo não recebia rações e as prisioneiras eram alimentadas com sopa de cascas de batata. «Não havia camas, e o chão tinha um vasto número de corpos a cobri-lo completamente», disse Wanda. Em Neubrandenburg, Micheline Maurel morria lentamente à fome há muitos meses. Em março voltou a ficar doente e foi internada na Revier. «Toda a manhã esperávamos pela sopa. Perto dos beliches das moribundas, as que ainda conseguiam comer montavam uma emboscada.» As seleções da SS continuavam também a realizar-se nos subcampos. À noite, chegavam os camiões, os números eram lidos em voz alta, as mulheres içadas para os camiões e levadas de volta para Ravensbrück para o extermínio por gás. No final de março, também em Ravensbrück a comida estava a acabar-se. As refeições eram servidas a horas incertas e as prisioneiras organizavam os seus próprios esquadrões de segurança para proteger de ataques o grupo que distribuía a sopa. O sistema de esgotos estava praticamente avariado, os passeios pejados de

excrementos, os balneários nos blocos de doentes já não tinham espaço para mais cadáveres, a morgue estava a transbordar e o crematório a funcionar permanentemente. Foi criado um novo bloco de morte para armazenar os cadáveres excedentes. Em patrulha nas imediações, Julia Barry olhou para dentro do «bloco da morte», onde os cadáveres estavam empilhados até ao teto, «com os olhos fora das órbitas». Pflaum, Winkelman e o seu séquito percorriam o campo de concentração, selecionando pessoas quase ao acaso, mas pelo menos no caos tornou-se mais fácil às prisioneiras esconderem-se. O grupo das pinturas escondeu-se no bloco das doenças infeciosas; deitada numa cama com uma doente era o lugar mais seguro para uma pessoa se esconder. No final de março, toda a gente parecia já conhecer alguém escolhida para o Campo da Juventude ou para outro transporte; mães, irmãs, amigas andavam todas a tentar tirar nomes das listas, pô-los em listas melhores ou encontrar uma maneira de se esconder. A certa altura, em meados de março, Mary Lindell ouviu dizer que Yvonne Baseden constava de uma lista. Correu para a Lagerstrasse e encontrou Yvonne já na fila para ser levada, provavelmente para o Campo da Juventude. Yvonne estava ali, «esquelética, de olhos encovados, apática e sem esperança», e Mary foi ter com Micky, no gabinete de Pflaum, para lhe pedir ajuda. Mary tinha em tempos dado analgésicos a Micky às escondidas; agora, pediu a paga do seu favor. «Como é que ela se chama e que número tem?», perguntou Micky, e riscou o nome de Yvonne da lista. Logo que Yvonne soube que tinha sido poupada, suplicou que a sua amiga, que atualmente só recorda como Marguerite, fosse também retirada da lista. Mais uma vez, Mary fez o pedido a Micky, que «com um gesto da caneta» riscou igualmente o nome de Marguerite e disse a Mary: «Rápido, leve-as embora. Agora o risco é seu.» Mary escondeu as duas mulheres numa enfermaria segura na Revier, sob a proteção de Treite. A relação de Mary com Treite era cada vez mais próxima. Ela

escreveu sobre ele com afeto nas suas memórias, dizendo que, numa ocasião, quando Treite estava a tratá-la de uma pneumonia, a injetou com um soro. «Eu estremeci, porque toda a gente sabia que as injeções em Ravensbrück eram usualmente letais», escreveu Mary. «Mas Treite inclinou-se e segredou-me em inglês: “Está tudo bem, rainha Mary. Os selos estão intactos.”» Perto do fim do mês, Violette Lecoq, a enfermeira do Bloco 10, reparou que as regras de la chasse tinham mudado de novo. Um camião que veio ao Bloco 10 buscar doentes regressou vazio minutos depois para fazer outro carregamento. Quando o camião voltou a aparecer, Violette usou um cronómetro, «organizado» do armazém, para cronometrar a viagem de ida e volta. Durou apenas sete minutos, o tempo que levava a chegar à câmara de gás e a voltar, o que provou aquilo de que Violette já suspeitava: que as escolhidas para serem exterminadas por gás já não passavam pelo Campo da Juventude, mas iam diretamente das suas camas para a câmara de gás. Era uma «balbúrdia» no Bloco 10 perto do fim, disse Loulou Le Porz, que estava a passar uma grande parte do seu tempo a tentar transferir as suas doentes do Bloco 10 para evitar que fossem selecionadas. «A maior parte das nossas pacientes não tinha colchões de qualquer espécie nem água corrente, nada funcionava. Achávamos que estávamos no inferno. Mas a nossa estratégia era preocuparmo-nos com o nosso bloco e com as nossas pacientes. E havia coisas que subitamente também podíamos fazer — aconteciam coisas que não aconteciam antes. Lembro-me de receber um pão grande inteiro um dia. Foi incrível. Chegou um camião e alguém disse, “Queres pão?”, assim, sem mais.» Perguntei a Loulou se ela tinha a certeza de que sobreviveria até ao fim. Eu não sabia. Para mim, sempre tinha sido óbvio que ganharíamos a guerra, mas quando? Bem víamos que estavam a despachar-nos a todas. Estávamos isoladas e esquecidas pelo mundo inteiro. As pessoas não sabiam nada sobre nós. Não sabiam onde nós estávamos.

«Achavam que talvez nunca as encontrassem?» Pensávamos que poderíamos morrer, sim. As minhas pacientes estavam a morrerme nos braços. Madame de Lavalette-Montbrun disse-me que sabia que não voltaria, mas ainda sorria. Era uma fatalista. Éramos todas, nessa altura. Claude Virlogeux era professora de Física. Eu vi-a passar por mim na parte de trás de uma carroça um dia, morta. Mas tentávamos ajudar as pessoas a aguentarem-se. Num colchão tínhamos Madame Tedesco, ela era bem relacionada no mundo do teatro e dava-se muito bem com a nossa camarada Zim. Depois, Madame Tedesco morreu de exaustão nos meus braços, dizendo que voltaria a fazer tudo na mesma. Eu disse a Zim que ela ainda conseguiria aguentar-se, não demoraria muito tempo. E ela concordou que a levássemos às escondidas para um bloco mais seguro. Zim queria viver, por isso eu persuadi-a a correr aquele risco.

No final de março, o campo de concentração já era «como um misterioso planeta», disse Denise Dufournier, «onde o macabro, o ridículo e o grotesco andavam a par num fantástico caos irracional». Karolina Lanckorońska, observando as chamas do crematório a subirem mais alto a cada noite que passava, recordou-se do início da Ilíada. Continuava a dar palestras sobre Carlos Magno e arte gótica enquanto as crianças no Bloco 27 brincavam ao jogo da seleção para a câmara de gás. No bloco do Exército Vermelho, as mulheres andavam a fazer bandeiras vermelhas para pendurarem a dar as boas-vindas aos seus libertadores, enquanto o grupo das pinturas foi mandado pintar as paredes do bloco da maternidade, onde, de acordo com as listas de Zdenka, mais 135 bebés nasceram em março, dos quais 130 morreram. Algumas Blockovas até então servis tornaram-se corajosas e poderiam subitamente decidir salvar toda uma coluna de prisioneiras tirando-as da fila para a câmara de gás a pretexto de ser uma unidade necessária para o trabalho. Entretanto, por todo o campo de concentração, grupos de mulheres atormentadas — rostos desconhecidos em Ravensbrück, talvez trazidas de subcampos — eram vistas à espera de alguma coisa e em seguida a marcharem. «Por vezes, víamos passar junto ao nosso local de trabalho um pequeno grupo de mulheres que não conhecíamos», recordou Grete Buber-Neumann. «Bastante aterrorizadas, passavam a cerca de trinta

metros de nós. Supúnhamos que eram levadas diretamente para a câmara de gás.» Anna Stekolnikova, a moscovita, recorda-se de ver «mulheres numa fila à espera de serem queimadas, com trouxas de roupas». Tal era o caos que em março já nem se fez qualquer tentativa de atribuir números a essas recém-chegadas e qualquer mulher sem número estava sujeita a ser agarrada e enviada para a câmara de gás. Por isso, quando chegou a comunista alemã Änne Saefkow — transferida de uma prisão de Berlim no final do mês —, uma amiga comunista no Schreibstube atribuiu-lhe o número de uma mulher morta, 108 273. O número de Änne foi o último emitido no campo de concentração. Quando se aproximava o fim de semana da Páscoa, o tempo começou a aquecer. As ciganas sentavam-se à porta dos seus blocos ao fim da tarde a cantar e o grupo das pinturas foi mandado arrastar barcos a remos de um barracão para o lago. As guardas queriam ir andar de barco no período da Páscoa. Chegavam notícias às prisioneiras de um abrandamento do ritmo do avanço russo, mas a frente ocidental aproximava-se rapidamente. «Sabíamos que a vitória estava perto. Pensávamos que talvez só tivéssemos de nos mantermos firmes durante alguns dias», recordou Denise, cujas forças estavam subitamente a desvanecer-se; o seu patrão civil observou-o e deu-lhe batatas cozidas. Os boatos espalhavam-se e desapareciam. As secretárias do campo de concentração tinham ouvido dizer que as francesas iriam ser trocadas, mas no Campo da Juventude o único boato era que iria haver uma seleção em massa. O fim de semana da Páscoa estava a aproximar-se e a SS queria uma «limpeza» final. Várias prisioneiras registaram a sequência de acontecimentos. Em 28 de março — uma quarta-feira —, as prisioneiras do Campo da Juventude receberam ordem de formarem fila descalças. Neudeck e um homem da SS realizaram uma seleção, examinando rostos e pernas. As selecionadas foram mandadas para um lado. Entre elas estava Elise Rivet — também conhecida como Mère Elisabeth de

l’Eucharistie, uma madre superiora de Lyon, trazida para Ravensbrück por esconder resistentes no seu convento. As vítimas ficavam só em camisa e eram metidas em camiões, com os sapatos e a roupa interior deixados na estrada. Pelo menos seis mulheres morreram na fila e foram içadas para os camiões pelas pernas. Dois dias depois, em 30 de março, Sexta-Feira Santa, as guardas anunciaram mais uma seleção em massa, dessa vez no campo principal. Mandaram as mulheres pôr-se em fila, com as pernas e o tronco nus, e a seguir elas tiveram de «manter o casaco vestido» mas «tirar os sapatos». Enquanto se mantinham perfiladas para a seleção, ouviam pela primeira vez à distância as armas russas. Winkelmann apareceu. A um sinal dele, as mulheres tiveram de passar rapidamente por ele enquanto ele se dobrava pela cintura e lhes olhava para as pernas. Quando ele erguia a mão, a prisioneira era levada para um camião que aguardava. Quando o camião ficava cheio, partia para o Campo da Juventude. No Bloco 10, Violette Lecoq recebeu ordem de ajudar a meter as mulheres diretamente num camião e em seguida enxotaram-na para dentro do camião e ele partiu. No Campo da Juventude, como o seu nome não se encontrava na lista dos guardas, foi recambiada. Depois do novo influxo de prisioneiras do campo principal, sete camiões vazios chegaram ao Campo da Juventude nessa mesma tarde. Cada camião foi em seguida carregado com mulheres, pronto para ir para a câmara de gás. A seguir, mais dois camiões chegaram do campo principal, cada um deles com cerca de 250 mulheres. Ao fim da tarde, os nove camiões prepararam-se para partir, uns atrás dos outros, para a câmara de gás, mas um ataque aéreo atrasou a sua partida. Quando o ataque aéreo terminou, alguns dos camiões partiram no escuro e os restantes ficaram no Campo da Juventude e partiram para a câmara de gás no dia seguinte, 31 de março, um sábado. Houve mais extermínios por gás no Domingo de Páscoa e quando o fim de semana da Páscoa acabou todas as prisioneiras nesses camiões — cerca de 2500 — tinham sido exterminadas por gás e queimadas, e o ar estava espesso com o fumo sufocante.

No campo principal no Domingo de Páscoa surgiu mais uma ordem: todas as francesas deveriam perfilar-se junto aos portões do campo de concentração na manhã seguinte. Formaram-se grupos a debater o que aquilo quereria dizer. Algumas prisioneiras acreditavam que significava a libertação. Outras receavam um extermínio por atacado, enquanto outro grupo acreditava que iria haver uma troca de prisioneiros. Falava-se de autocarros nos bosques, não verdes, mas Autocarros Brancos — que pertenciam à Cruz Vermelha. Nesse fim de tarde do Domingo de Páscoa, as prisioneiras francesas do Campo da Juventude receberam ordem de marcharem para o campo principal e de se juntarem às outras francesas na Lagerstrasse no dia seguinte. As trabalhadoras francesas na fábrica da Siemens receberam também ordem de se juntarem à fila na segunda-feira a seguir à Páscoa. Quando o grupo das pinturas regressou ao seu bloco ao fim da tarde de domingo, encontrou um ambiente estranho. «Na sala, à luz das velas, dançavam pares languidamente ao som de um acordeão», recordou Denise. «As Jules balouçavam nos joelhos as suas pequenas, que estavam todas embonecadas. Havia um vago cheiro de humanidade sebenta no ar e nos cantos mais escuros viam-se amantes a beijarem-se. Foi a nossa última visão do Bloco Dezassete.»

CAPÍTULO 38 NELLY Enquanto os camiões faziam fila junto à câmara de gás de Ravensbrück ao longo do fim de semana de Páscoa, um pequeno avião sueco sobrevoou a costa alemã e em seguida pareceu parar no ar, e o piloto deu meia-volta e começou a sobrevoar Stralsund em círculos. Os Aliados tinham montado um ataque aéreo a Berlim durante o dia e pairava uma gigantesca nuvem de fumo no horizonte. O conde Bernadotte deslocava-se à Alemanha de avião para um segundo encontro com Heinrich Himmler, esperando persuadi-lo a autorizar que o âmbito da missão sueca de salvamento se alargasse de modo a incluir não só os prisioneiros escandinavos mas também os de outras nacionalidades. Entre os que figuravam no topo da lista de Bernadotte encontravam-se as mulheres francesas de Ravensbrück. Bernadotte preocupava-se especialmente com a situação das mulheres francesas desde que ficara a saber em primeira mão das deportações em massa, quando se encontrava em Paris no outono. O governo de De Gaulle no exílio estava também a exercer uma enorme pressão sobre Bernadotte para que ele auxiliasse os prisioneiros franceses.45 Mal o fumo se dissipou, o avião de Bernadotte prosseguiu no seu voo, aterrando no aeroporto de Tempelhof em Berlim, meia hora depois de soarem as sirenes a indicar o fim do ataque aéreo. Desde 10 de fevereiro, quando Himmler deu permissão a Bernadotte para libertar prisioneiros escandinavos e mantê-los num centro de acolhimento dirigido pelos Suecos em Neuengamme, muito se tinha conseguido já. Na segunda semana de março, já mais de cem veículos, na sua maioria pertencentes ao exército sueco — camiões, autocarros, ambulâncias e motorizadas, com militares, médicos e enfermeiras —, tinham partido do Sul da Suécia,

atravessando a Dinamarca e passando para a Alemanha. Antes da partida da caravana de veículos, as delegações britânica, americana e russa em Estocolmo foram informadas da expedição. Não levantaram objeções, mas também não ofereceram garantias de salvo-conduto, embora, quando a caravana de veículos estava prestes a embarcar no ferry de Mälmo, os Britânicos tenham enviado um pedido de última hora: todos os veículos deviam ser pintados de branco com uma cruz vermelha no tejadilho e nos lados, para poderem ser facilmente identificados pelos aviões dos Aliados. Essa transformação foi feita à pressa no ferry. Em 12 de março, a caravana instalou o seu quartel-general em Friedrichsruh, a vinte e dois quilómetros a leste de Hamburgo, perto da costa báltica, e começou imediatamente a recolher prisioneiros. No final do mês, quase 5000 homens noruegueses e dinamarqueses detidos em Sachsenhausen, em Dachau e em campos de concentração perto de Dresden tinham já sido trazidos para o centro de acolhimento no campo de Neuengamme, nas imediações do quartel-general de Friedrichsruh. A missão deparou com muitos problemas, entre os quais a falta de pessoal, de veículos e de combustível. As frentes de combate estavam a aproximar-se tão rapidamente que os autocarros — todos com pelo menos um homem da Gestapo a policiá-los — só conseguiam passar num estreito corredor. Alguns autocarros tinham sofrido ataques dos aviões dos Aliados, embora até àquele momento ninguém tivesse sido ferido. Surgiram igualmente agudos conflitos morais. De cada vez que os Suecos chegavam a um campo de concentração e enchiam os seus autocarros com escandinavos, deixavam ficar prisioneiros de outras nacionalidades. Em Neuengamme, viram-se numa posição particularmente melindrosa quando o comandante lhes disse que só se o ajudassem a ver-se livres dos prisioneiros doentes e indesejáveis poderia arranjar-se espaço no seu campo para o centro de acolhimento para os noruegueses e os dinamarqueses libertados. Após um intenso debate, os Suecos fizeram o que o comandante da

SS queria e levaram os prisioneiros «indesejáveis» nos seus autocarros da Cruz Vermelha para outro campo de concentração muito pior, onde muitos provavelmente terão morrido. A missão deparava com um outro dilema. Ao longo de março, não tinha sido possível aos autocarros de Bernadotte libertarem as mulheres de Ravensbrück. No início de março, Sylvia Salvesen fez chegar ao exterior cartas em que falava de centenas de cadáveres queimados todos os dias no campo de concentração. Sylvia avisava também que a liquidação poderia ocorrer «dentro de um período de três semanas». A estrada de Hamburgo ainda estava transitável. Os autocarros de Bernadotte poderiam pelo menos ter libertado as mulheres escandinavas de Ravensbrück. No entanto, enquanto salvavam os homens, as mulheres estavam a ter de esperar para o fim. Porquê? Nas suas memórias, Bernadotte mantém o silêncio sobre este assunto, o que acontece igualmente nos documentos do Ministério dos Negócios Estrangeiros sueco. Contudo, a resposta encontra-se, com certeza, no facto de, para levar a cabo a sua missão, Bernadotte ter de cumprir as condições impostas por Himmler e de este não ter ainda dado permissão aos Autocarros Brancos para irem a Ravensbrück. Quando Himmler e Bernadotte se encontraram pela primeira vez em 10 de fevereiro em Hohenlychen para debater a primeira fase da operação de salvamento, estava em marcha o extermínio por gás em Ravensbrück, a menos de quinze quilómetros. No final de março, a operação de extermínio já tinha atingido o seu auge. Quem viesse ao campo de concentração durante esse período teria sentido o cheiro sufocante do fumo castanho e visto camiões apinhados de corpos. A população local queixava-se até das cinzas no lago. Como nos outros campos de concentração visitados pelos Autocarros Brancos não estava a realizar-se o extermínio por gás, as operações de salvamento podiam iniciar-se. Mas Himmler decidira que Bernadotte não poderia ir a Ravensbrück até a maior parte do extermínio por gás estar concluída.

Não se sabe ao certo se Bernadotte estava a par das razões para a sua exclusão; do que não há dúvidas é que não existem provas de que ele tenha pressionado Himmler para obter permissão para ir a Ravensbrück nas primeiras semanas. O que é certo, no entanto, é que quando ele se dirigiu a Hohenlychen para o seu segundo encontro com Himmler, em 4 de abril, o ritmo do extermínio por gás no campo de concentração das mulheres já começara a abrandar. Provavelmente, as câmaras de gás móveis, em camiões, ainda se encontravam em funcionamento e poderiam ser facilmente deslocadas e escondidas nos bosques. Inicialmente, a probabilidade de novas concessões por parte de Himmler não parecia boa. Quando o Reichsführer apareceu dessa vez, estava «não só sério, mas nervoso», recordou Bernadotte. Himmler falou de novo do seu dever para com o Führer. A certa altura, quando se levantou para atender um telefonema e saiu da sala, Walter Schellenberg, que se encontrava sempre presente nesses encontros, virou-se para Bernadotte e comunicou-lhe o que andava na mente do Reichsführer. Himmler pretendia que o conde agisse como intermediário entre ele e os Aliados e fosse falar diretamente com Eisenhower para lhe dizer que Himmler desejava negociar um armistício na frente ocidental. Schellenberg disse que Himmler se sentia incapaz de fazer aquele pedido diretamente a Bernadotte e que o incumbira a ele dessa missão. Na sua resposta, Bernadotte deixou claro a Schellenberg que as potências ocidentais não negociariam com Himmler e que ele não poderia oferecer-se como intermediário. Quando Himmler regressou à sala, Bernadotte viu uma oportunidade de pedir as concessões que procurava para a operação de salvamento dos prisioneiros. Em primeiro ligar, pediu permissão para levar todos os escandinavos que já se encontravam em Neuengamme diretamente para a Dinamarca. Himmler disse que tal não era possível, porque Hitler ficaria a saber e daria o seu veto. Himmler fez a sua própria contraproposta: «Deslocar números mais pequenos talvez seja possível.» Bernadotte propôs então a libertação

de todas as mulheres norueguesas e suecas — assim como estudantes noruegueses e alguns dinamarqueses — diretamente para a Suécia. Himmler concordou. Talvez por achar que Himmler tinha feito todas as concessões que estava disposto a fazer naquele momento, Bernadotte não abusou da sua sorte pedindo que lhe entregassem também as francesas, como tencionava. Mas tinham sido obtidos ganhos significativos: em particular, o facto de os Autocarros Brancos poderem agora dirigir-se a Ravensbrück. Bernadotte transmitiu a notícia aos chefes da sua missão e a data de salvamento de Ravensbrück foi marcada para 7 de abril. Antes de os autocarros suecos partirem, no entanto, ficaram a saber que os Suíços tinham chegado primeiro ao campo de concentração das mulheres. Numa outra carta de Sylvia Salvesen, levada às escondidas para o exterior em 4 de abril, Sylvia mencionou que 400 francesas tinham sido «levadas hoje pela Cruz Vermelha Suíça Internacional». Dado que durante seis anos o Comité Internacional da Cruz Vermelha se recusara a tomar posição sobre os campos de concentração, o aparecimentos dos seus autocarros de salvamento aos portões de Ravensbrück no início de abril era, como diriam as prisioneiras, «um milagre». Em parte, era uma questão de mera rivalidade. Ao saberem que os seus rivais neutros, os Suecos, iam implementar uma dramática missão de salvamento, os Suíços não quiseram ficar-lhes atrás. Carl Burckhardt, o presidente interino do CICV, tinha em mente a sua imagem para a posteridade e solicitara um encontro com Himmler para debater a questão dos campos de concentração. Esta intervenção indicava a rapidez com que as atitudes de Genebra mudaram nas semanas finais da guerra. Os relatórios sobre o que Hitler planeara para os seus prisioneiros nos últimos dias exerceram uma pressão avassaladora sobre o CICV para agir. Ao longo dos meses de janeiro e de fevereiro, as organizações da Cruz

Vermelha de diversos países — da Checoslováquia, da Polónia, da Jugoslávia, da Grécia, da Roménia, da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos — instaram a Cruz Vermelha Internacional a assumir a liderança. A organização World Jewish Congress [Congresso Mundial Judaico] era a que mais pressão exercia, horrorizada com o destino que aguardava os judeus deixados vivos nos campos de concentração alemães. O governo provisório do general De Gaulle em França pressionou igualmente o CICV para que tomasse posição, e o Departamento de Estado norte-americano apelava a que o comité «usasse todos os meios à sua disposição». A maior parte das comunicações estava cortada e as estradas intransitáveis, mas se os Suecos conseguiam fazê-lo, porque não os Suíços? Apresentou-se uma aberta quando Himmler — mantendo tanto os Suíços como os Suecos em jogo — aceitou uma sugestão de Burckhardt de uma troca de prisioneiros: 300 francesas detidas em Ravensbrück seriam trocadas por prisioneiros civis alemães detidos em França. O acordo firmou-se no início de março, mas no caos reinante revelou-se difícil de implementar. Foi em grande medida graças à influência e aos contactos de um médico suíço que a troca chegou a realizar-se. O Dr. Hans Meyer, de trinta e dois anos e nascido em Zurique, foi nomeado delegado do CICV na Alemanha em janeiro de 1945. Aparentemente, era uma pessoa apropriada para supervisionar a troca de prisioneiros, mas o seu posto anterior tornava-o uma escolha arrepiante. Antes de integrar o CICV, trabalhara durante dois anos como médico para a SS, na clínica de Hohenlychen, onde o seu chefe era Karl Gebhardt, o homem que — como o CICV sabia — praticara atrocidades médicas em Ravensbrück. A razão por que Meyer subitamente abandonou a clínica da SS para ocupar o lugar de delegado do CICV ao aproximar-se o fim da guerra é mais fácil de compreender do que a nomeação como delegado do CICV de um homem que tinha trabalhado como médico para a SS. Meyer devia estar a par dos crimes de Gebhardt, se é que não participou neles. Naquele momento, no entanto, Meyer canalizou

o seu zelo para o auxílio ao outro lado, tentando assegurar a libertação de 300 prisioneiras de Ravensbrück, para o que os seus contactos da SS não tardaram a revelar-se indispensáveis. Quando Meyer apareceu em Ravensbrück para ultimar os preparativos, descobriu que Suhren estava ausente e que ninguém sabia nada sobre a troca de prisioneiros. Por essa altura, o ritmo do avanço do Exército Vermelho estava prestes a tornar as estradas até à fronteira com a Suíça intransitáveis. Em vista desse facto, Meyer percorreu de automóvel os oito quilómetros até Hohenlychen para averiguar se os seus velhos amigos da SS poderiam ajudá-lo a apressar as coisas. Só através de um apelo direto a Himmler — presumivelmente facilitado pelo antigo chefe de Meyer, Gebhardt — é que Meyer conseguiu dar ordens aos motoristas suíços para se aproximarem do campo de concentração, e Suhren foi finalmente instruído para libertar as mulheres. À chegada a Ravensbrück em 1 de abril, porém, os condutores dos autocarros suíços tiveram ainda de esperar. A razão dada foi que as mulheres ainda não tinham sido selecionadas e devidamente preparadas. A razão não dada era que havia ainda algum extermínio por gás e cremações a fazer. Assim, os autocarros da Cruz Vermelha suíça estacionaram a alguma distância entre as árvores e aguardaram mais três dias. No dia em que os autocarros apareceram, espalhou-se a notícia entre as francesas no campo de concentração de que toda a gente deveria comparecer na manhã seguinte junto aos portões, mas não chegou a ser confirmada. Durante toda essa noite, a excitação e o temor inundaram os blocos franceses em vagas em conflito. Alguém na administração tinha visto os autocarros da Cruz Vermelha. Tanto as trabalhadoras francesas da Siemens como as sobreviventes francesas do Campo da Juventude foram trazidas para o campo principal. Binz andava pelo campo de concentração a tentar arrumar as coisas, «como se estivesse à espera de visitas». Mandou o pessoal

da Revier fechar as janelas com vidraças partidas para que estas não se notassem. «E fechem à chave as Schmuckstücke em balneários», berrou a Oberaufseherin. Marie-Claude Vaillant-Couturier registou no seu diário nesse dia: «As doentes foram mandadas para a câmara de gás ontem e hoje recebemos por elas a sua porção de Ovomaltine como mimo da Páscoa!» Num outro bloco francês, as prisioneiras passaram o dia a conversar à volta do fogão, aquecendo as suas bebidas da Páscoa, com camiões pejados de cadáveres a continuarem a passar. «Aquela é francesa?», perguntou alguém, talvez reconhecendo um rosto. «Não, polaca», foi a resposta. «Só se pode morrer uma vez», disse uma jovem chamada Lily. «Mas não devemos morrer em Ravensbrück» — quanto a isso estavam todas de acordo. Quando as mulheres foram para os seus beliches, a Blockova berrou: «Amanhã de manhã, todas as francesas na Appell às nove.» As francesas a formarem filas era uma cena horrivelmente familiar. Realizou-se uma seleção, conduzida pelo negociante de gado. Primeiro, Pflaum escolheu 400 francesas e apartou-as para um lado. A seguir, o mesmo grupo foi informado de que voltaria a ser alvo de uma seleção. Agora, 200 foram escolhidas — mas mais uma vez ninguém sabia porque é que algumas eram escolhidas e outras não. Depois, outras prisioneiras, que não tinham sido escolhidas das duas primeiras vezes, foram informadas de que, afinal, tinham sido selecionadas, e os números voltaram a aumentar. Entre as nãoselecionadas encontravam-se as mais gravemente doentes e fracas — claramente, o espetáculo daquelas mulheres moribundas não contribuiria para uma imagem positiva da Alemanha. As prisioneiras do grupo NN (Noite e Nevoeiro) também não seriam libertadas. Muitas das prisioneiras que não foram selecionadas sentiram-se aliviadas, já que sabiam que a «seleção» acarretava a possibilidade de algo pior. Quando viram as mulheres escolhidas serem conduzidas para o Bloco 31, dentro da vedação, onde anteriormente as prisioneiras destinadas ao Campo da Juventude ficavam a aguardar a sua partida, esses receios intensificaram-se. Ali, as mulheres foram

mantidas durante quarenta e oito horas e obrigadas a passar duas vezes pelos chuveiros e, em seguida, deixadas nuas a tremer ao frio, «cheias de ansiedade, medo e esperança», até lhes serem dadas novas peças de vestuário que lhes assentavam mal. Denise Dufournier recebeu um vestido de noite, que lhe pareceu que devia ter sido usado num cabaré polaco. Em seguida, fizeram as mulheres aguardarem três dias num bloco todo molhado. Ao terceiro dia, 3 de abril, novo tormento: as mulheres foram convocadas para o exterior e Suhren fez uma chamada, no final da qual selecionou as que tinham nomes aristocráticos e ordenou que voltassem para os seus blocos. As aristocratas ficariam, mas as restantes, disse ele, seriam libertadas no dia seguinte. As aristocratas, adivinhando, corretamente, que seriam detidas como reféns, reuniram-se iradas, e um «comité» de protesto constituído por três mulheres — Christiane de Cuverville, Colette de Dumast e Jacqueline d’Alincourt — dirigiu-se a Suhren para lhe pedir uma explicação. A porta-voz foi Colette, porque era a que falava melhor alemão. «Perguntou à Binz porque é que não nos era permitido ir embora, e a Binz pareceu espantada por lhe estarem a falar daquela maneira», recordou Christiane. A chefe das guardas colocou então um papel em cima da secretária. Se as senhoras com títulos de nobreza da França acedessem a assinar aquele papel a declarar que tinham sido «bem tratadas», não seriam executadas, anunciou ela. «Ficámos horrorizadas. A Colette disse que nem por sombras o faríamos», disse Christiane. No regresso ao bloco, as três debateram se deveriam falar às outras «aristocratas» da oferta. «A Colette sugeriu que não lhes disséssemos nada. Por isso, foi o que decidimos, para o caso de haver uma ou duas que quisessem assinar», disse Jacqueline d’Allincourt. Na manhã seguinte — uma quarta-feira, 4 de abril — foi dito às prisioneiras que ainda constavam da lista que se preparassem para partir, e novos nomes foram acrescentados para preencher o lugar das que tinham sido removidas, entre elas um punhado de prisioneiras do Bloco 10. Com a ajuda de Violette Lecoq, Loulou

procurou Zim no bloco onde ela estava escondida e conseguiu ajudála a pôr-se de pé e a sair para a Appell. No último momento, Winkelmann apareceu e escolheu todas as mulheres que tivessem as pernas inchadas ou a cabeça recentemente rapada. Contudo, não reparou em Zim, e ela arranjou forças para caminhar com as outras até aos portões. Enquanto as mulheres desfilavam à saída — 299 no total, ainda em filas de cinco —, Suhren fechou os portões atrás delas e desejou ao grupo «bon voyage». Esperava que não tivessem uma «recordação desagradável» da sua estada no campo de concentração. As mulheres olharam para a estrada à sua frente. Meio escondidos por entre os pinheiros, a cerca de 1500 metros, viram uma fila de Autocarros Brancos, cada um deles com uma grande cruz vermelha pintada. Parecia que o melhor era continuarem a andar, o que fizeram, com hesitações, olhando fixamente em frente. Mais perto, viram soldados com fardas de caqui de pé ao lado dos autocarros. Um pouco mais perto ainda, viram a palavra Canadá nas mangas dos soldados. Eram prisioneiros de guerra canadianos libertados pelos Alemães para conduzirem os autocarros como parte do acordo. As francesas olharam fixamente para os autocarros e para os homens vestidos de caqui, «imóveis e atarantadas», recordou Denise. «Pensei que era um sonho», disse Loulou. «Realmente, não acreditei. Era surreal. Avançámos e vimos soldados, acho que eram canadianos, e eles choraram quando nos viram. Quando os vi a chorar, comecei a pensar que era real.» As mulheres entraram para os autocarros e os canadianos ajudaram-nas. Dentro, cada uma recebeu uma fatia de bolo e um pedaço grande de salsicha fria. Os veículos arrancaram. As mulheres foram informadas de que se dirigiam para o lago Constança e a fronteira suíça. Depois de as 299 francesas partirem, as que ficaram falavam de quem poderia ir a seguir. Sabiam que o tempo para serem salvas estava a esgotar-se. As secretárias faziam fogueiras diariamente para

queimar documentos e dossiês. A frente aproximava-se rapidamente, e, com cerca de 30 000 prisioneiras ainda detidas em Ravensbrück, o mais certo é que as ordens de evacuação — ou de fazer ir o campo pelos ares — chegassem em breve. Sylvia Salvesen tinha perdido a esperança. Já há quatro semanas que a enfermeira Gerda Schröder partira com a segunda das cartas de Sylvia levadas para o exterior às escondidas, prometendo entregála a Wanda Hjort e à célula norueguesa em Gross Kreutz. «Ela já tinha partido há mais de um mês e tinham acontecido coisas terríveis nessas semanas», recordou Sylvia. Mas então, no dia em que as francesas partiram para a Suíça — 5 de abril —, Gerda reapareceu. Veio à cama de Sylvia nessa noite, trazendo um embrulho e notícias. Sylvia ficou pasmada e delirante de alegria. Gerda sentiu-se incomodada ao ver a sua amiga, que em quatro semanas tinha ficado esquálida e com o cabelo branco. Deu a Sylvia o recado enviado pela Sra. Hjort e pela Sra. Seip, mas tinha notícias mais recentes ainda. Explicou que, depois de partir de Ravensbrück no início de março, não conseguira voltar para o campo de concentração devido aos bombardeamentos das linhas férreas. Gerda tentara voltar a Gross Kreutz, mas as linhas para Potsdam também tinham sido bombardeadas. Na segunda-feira de Páscoa, no entanto, Gerda conseguiu telefonar para Gross Kreutz e combinou encontrar-se com Wanda Hjort em Berlim. Miraculosamente, dada a confusão na cidade, Gerda e Wanda conseguiram encontrar-se. Wanda vinha acompanhada pelo professor universitário norueguês Arup Seip, um membro-chave da célula de Gross Kreutz. Encontraram-se num pequeno café perto da estação central, onde ainda chegavam comboios, embora a frente estivesse tão próxima que viam os soldados feridos a serem trazidos no S-Bahn. Por toda a cidade, as ruas estavam forradas a cartazes com os dizeres: «Berlim nunca se renderá.» Corria o boato de que Hitler se encontrava num bunker subterrâneo, disse Gerda. Toda a gente sabia que o fim estava perto. Arup Seip disse a Gerda que no dia anterior Bernadotte se

encontrara com Himmler em Hohenlychen uma segunda vez. Disselhe também que no encontro «Himmler tinha dado permissão à Cruz Vermelha para ir buscar as mulheres norueguesas e dinamarquesas a Ravensbrück». Sylvia ficou extasiada. «Nunca me esquecerei dessa noite», escreveria mais tarde. «Mandaram-me escrever outra carta com uma lista atualizada de nomes, porque o Professor Seip receava que algumas das nossas prisioneiras tivessem sido transferidas.» Gerda disse a Sylvia que escrevesse a lista imediatamente, porque Wanda planeara ir buscá-la ao campo de concentração no dia seguinte e levá-la ao grupo de trabalho sueco. Gerda não fazia ideia de como Wanda faria a perigosa viagem até ao campo: as linhas tinham sido novamente bombardeadas desde que Gerda conseguira passar. Gerda também não sabia como Wanda obteria acesso ao campo. Mas disse a Sylvia que indicara a Wanda como a encontrar nas instalações das enfermeiras, se ela conseguisse entrar pelos portões. Sylvia escreveu a terceira carta aos seus amigos noruegueses. Em termos mais claros, que ninguém dessa vez poderia interpretar erradamente, disse-lhes que as mulheres de Ravensbrück estavam a ser exterminadas por gás. Milhares foram selecionadas e enviadas para a câmara de gás. Uma série delas estava doente, mas algumas estavam bastante bem de saúde, embora tivessem mais idade. Quase bastava ter cabelo grisalho. Foram vistas as cenas mais tristes aqui. Muitas tinham pintado o cabelo com graxa dos sapatos ou fuligem. Por milagre, eu escapei.

Forneceu os nomes de noventa e seis norueguesas e vinte dinamarquesas ainda no campo. Receando que, como no caso das francesas, as mais fracas não tivessem autorização para partirem, Sylvia suplicava aos Suecos que se assegurassem de que as que estavam demasiado fracas para conseguirem andar não seriam deixadas no campo. Um grupo de francesas tinha sido libertado nesse mesmo dia, escreveu ela, aparentemente para serem trocadas por alemães. Mas muitas francesas «da intelligentsia e senhoras de boas famílias» tinham ficado retidas, o que Sylvia claramente receava

que lhe pudesse acontecer a ela. «Será terrível ficar sozinha sem nenhuma outra norueguesa», escreveu. Sylvia forneceu também o maior número possível de nomes de norueguesas que eram consideradas NN e que, por consequência, tinham sido enviadas para Mauthausen, mas não tinha a certeza de os saber todos. «Cremos que elas chegaram [a Mauthausen], mas ouvimos boatos de que metade foi selecionada à chegada e enviada para outro campo.» Outras prisioneiras na lista NN encontravam-se ainda em Ravensbrück, disse ela, e a trabalharem nas oficinas, «por isso correm menos perigo de serem escolhidas para a câmara de gás». Sylvia entregou a carta a Gerda. No dia seguinte, Gerda disse a Sylvia que Wanda conseguira chegar ao campo de concentração e que ela lhe tinha entregado a carta. Wanda trouxe a mensagem de que os autocarros da Cruz Vermelha sueca chegariam daí a alguns dias. «Deve fazer a mochila imediatamente. Tem de acreditar nisto», disse Gerda a Sylvia, e ela abraçou-a — «Uma prisioneira, a atreverse a abraçar uma enfermeira alemã.» Wanda Hjort chegara a Ravensbrück umas horas antes. Era a sua expedição mais audaciosa até à data. Como os bombardeamentos tinham desativado as linhas férreas, Wanda deslocou-se num automóvel emprestado pela legação suíça e conduzido por Bjon Heger, o médico norueguês, que tinha aderido à célula de Gross Kreutz. O par já trabalhara junto em várias missões perigosas nos últimos meses — tinham-se também tornado amantes. Wanda e Bjorn recebiam agora ajuda da delegação do CICV em Berlim, que lhes deu documentos de identificação da Cruz Vermelha suíça para poderem entrar no campo de concentração. À chegada, a sentinela da SS deixou-os entrar, pelo menos até ao edifício da administração, onde Bjorn foi entregar os embrulhos que traziam. Quando ninguém estava a olhar, Wanda conseguiu escapulir-se por uma travessa para procurar Gerda, como combinado, no bloco das enfermeiras da SS. Foi difícil. Wanda sentia que dava nas vistas, com o seu casaco grosso e quente e botas de boa qualidade. «A toda a

minha volta havia mulheres vestidas com farrapos, a puxarem carroças, com os pés nus em socos de madeira.» Wanda continuou a andar e encontrou os aposentos de Gerda quase por acaso. Havia uma cama, uma cadeira, umas flores artificiais num vaso. Não vinha ninguém e ela receava ser apanhada e pôs-se a pensar: «Se for torturada, confesso tudo — os nomes da Gerda e da Sylvia também.» Mas Gerda apareceu, a carta foi entregue e Wanda regressou para os portões do campo. Bjorn estava à espera, tentando parecer descontraído. Wanda esforçou-se por não correr. Quando partiram, o guarda olhou para o casal com uma expressão que sugeriu a Wanda que ele tinha compreendido alguma coisa — «talvez que estamos todos em perigo agora» — e deixou-os ir embora. Já no automóvel, Wanda foi-se abaixo e desatou a chorar. «Desta vez, foi de mais», diria mais tarde. «Todas aquelas mulheres — esfomeadas, humilhadas e indefesas — e muitas da minha idade.» Foram a toda a velocidade entregar a lista de nomes aos Suecos. «A Sylvia vai ser libertada», disse Zdenka às que se encontravam na Revier no dia seguinte. Estava com um casaco de tweed inglês «organizado» e abraçou a sua amiga. A Oberschwester, Elisabeth Marschall, apertou as mãos de Sylvia e pôs-se a chorar. As norueguesas nos blocos comuns não faziam ideia até àquele momento de que o seu salvamento estava iminente. Nelly Langholm e as suas amigas de Stavangen só ficaram a saber quando as mandaram para os chuveiros na noite anterior. «Mas não acreditámos», disse Nelly. No dia seguinte, saímos com as nossas roupas novas e tivemos de ir até ao portão. Vimos os autocarros e havia uns homens suecos com uniformes cinzentos com cruzes vermelhas nas mangas. Estavam mesmo junto ao portão, do lado de fora. Acho que nos disseram: «Agora, vão para a Suécia, agora vão ser livres.» Antes de partirmos, o chefão alemão veio e disse: «Meine Damen Sie sind frei — Minhas senhoras, estão livres.» Consegue imaginar? Ali estava um alemão a chamar-nos Meine Damen. Estavam mesmo a falar connosco? Já não nos chamavam «senhora» há muito tempo. Meine Damen.

E Nelly riu-se. «A Margarete disse-me: “Eu preferia que ele tivesse dito ‘Meine Schweine’.”» Nelly recordou que outras prisioneiras estavam paradas pelo campo de concentração a verem-nas partir. «Deram-nos pão para levarmos e nós aceitámos; não sabíamos quando seria a próxima vez em que teríamos alguma coisa para comer.» «Que sensação deu deixar as outras prisioneiras lá?» «Acho que sentimos pena. Não é fácil de compreender, mas se alguma coisa assim tão boa acontece, uma pessoa sente-se triste ao mesmo tempo. Muito triste.» «Puderam despedir-se?» «Não, não pudemos, porque saímos do edifício diretamente para os autocarros.» «Acharam que elas também iriam ser recolhidas?» «Não me lembro. Mas ouvimos dizer que o campo estava... que ia ser mandado pelos ares.» Partir no autocarro foi «como um milagre», disse Nelly. Eu estava com a Margareta e depois havia duas alemãs connosco no autocarro. Por isso, nós pensámos, o que é que elas estão a fazer aqui? O que é que se passa? Havia um motorista sueco e dois de motorizada à frente. Foi terrível atravessar a Alemanha. Estava-se a um mês do fim e era chocante ver uma cidade grande como Hamburgo. Acho que não vi uma casa que fosse — não uma casa inteira. Ouvíamos os tiros do oeste — os Americanos — e os Russos do outro lado. Mas encontrámos o caminho por entre aquelas ruínas. Aquelas terríveis ruínas. Porque os Alemães reparavam as estradas muito depressa, sabe. Eles também precisavam de um caminho desimpedido.

De Hamburgo, os autocarros avançaram na direção da fronteira com a Dinamarca. Nelly sorriu ao recordar. E vimos a erva, a erva verde, e já não víamos erva verde há dois anos. Então, a Margarete e eu perguntámos se podíamos descer do autocarro e ir até à erva. Queríamos fazer chichi. E queríamos fazer chichi na erva. Então, deixaram-nos sair e nós corremos pelo campo e baixámos as calcinhas. Nunca mais me esqueci da sensação da erva verde. Era uma sensação tão linda, tão fresca e suave. De liberdade, sabe.

Quando os suecos atravessaram a fronteira dinamarquesa, a 320

quilómetros a noroeste de Ravensbrück, as 299 francesas que partiram com os suíços estavam a chegar a Kreuzlingen, a cerca de 885 quilómetros para sul, na fronteira da Suíça com a Alemanha. Tinham partido três dias antes, mas a sua viagem atravessando toda a Alemanha foi mais longa e mais dura. Loulou e Jacqueline Héreil, duas das prisioneiras da equipa médica do Bloco 10, iam no autocarro a tratar das doentes, em colaboração com o médico da Cruz Vermelha Hans Meyer. Violette Lecoq, a sua camarada do Bloco 10, classificada como «NN», ficara em Ravensbrück. Ao longo de todo o caminho, as mulheres gritavam: «Já chegámos à fronteira?», só para descobrirem que tinham parado devido a mais um ataque aéreo. Zim disse a Loulou que naquele momento só lhe interessava atravessar a fronteira para poder morrer em França. Muitas outras diziam o mesmo. Em 8 de abril, na cidade de Hof, na estrada para Nuremberga, um bombardeamento deteve a caravana de autocarros todo o dia. De madrugada, os autocarros arrancaram, com uma enxurrada de pessoas na estrada empurrando carroças e carrinhos de mão, a fugirem das ruínas incendiadas da cidade. «Agora é a vez deles», disseram as francesas, olhando para baixo, para os desgraçados rostos dos alemães. «Eles são os prisioneiros agora. Para verem se gostam. E nós estamos livres.» Às nove horas nessa noite os autocarros abrandaram e pararam diante de cancelas e guaritas de sentinelas no posto fronteiriço de Keuzlingen. Luzes de focos varavam o ar húmido e frio enquanto as mulheres saíam do autocarro para uma última Appell e guardas alemães verificavam os seus documentos. A verificação demorou mais de uma hora. Do outro lado das barreiras, juntavam-se umas figuras na escuridão — enfermeiras, médicos, bons samaritanos, repórteres, padres e pessoas comuns que tinham vindo dar as boasvindas e ajudar. Os seus gritos e vivas desvaneceram-se perante a visão de tantos fantasmas silenciosos. Quando as barreira se abriram, um alemão berrou uma ordem. Isso levou a que um polícia suíço atravessasse a estrada e rosnasse: «Non, Monsieur. Já basta.

Retire-se!» Voltou-se para as mulheres e sorriu: «São livres agora.» Elas voltaram a entrar nos autocarros. Avançavam pessoas para as levantar em peso, as abraçar, lhes oferecerem presentes e comida. «Vão ter sopa e um banho quente.» Do outro lado da fronteira, pararam para passarem a noite e foram levadas para um ginásio quente onde as aguardava sopa e muito mais. Viam-se homens a chorarem enquanto figuras enfaixadas em ligaduras eram tiradas de maca dos autocarros. Seis mulheres foram levadas diretamente para o hospital, enquanto outras se deitavam em cobertores de palha fresca cobertos com lã e com pilhas de cobertores. Na manhã seguinte, chegaram alguns funcionários da sede do CICV em Genebra. Aconselharam as mulheres a não falarem sobre o campo de concentração, porque poderia ser perigoso. Em seguida, procederam a uma avaliação das necessidades. Os médicos já tinham diagnosticado disenteria, tuberculose, tifo, gangrena e subnutrição aguda, como observou um dos homens da Cruz Vermelha. «A Doutora Le Porz e quatro outras prisioneiras com qualificações médicas estão a ajudar a tratar das doentes», escreveu. As mulheres tinham chegado sem mais nada a não ser a roupa que traziam no corpo — «que, obviamente, não lhes serve». As poucas que tinham alguns pertences traziam-nos em caixas da Cruz Vermelha. «Temos algumas aqui que estão completamente rapadas.» Uma mulher arregaçou a manga para mostrar um número tatuado no braço; outras tinham pedaços de tecido com o seu número cosidos à roupa. Vieram dignitários suíços de Genebra, entre eles uma mulher que falou com Loulou. «Ela era muito elegante. Disse que pertencia a uma delegação que tinha ido ao campo e falou sobre o encantador comandante» — tratava-se de Suhren. Um coronel suíço disse a Loulou que não falasse com aquela mulher. «A doutora ainda lá tem amigas. Tudo o que lhe disser a ela será transmitido aos Alemães.» Ele disse a Loulou que aquela mulher era casada com «uma pessoa das altas esferas de Genebra».

Ao meio-dia, as mulheres foram metidas num comboio para França. Segundo os apontamentos da escolta da Cruz Vermelha, era o mesmo usado no dia anterior para levar os alemães da troca para a Alemanha, mas não existe registo de quem fossem esses alemães. Sabemos apenas que eram 450. Como só 299 francesas foram libertadas em troca, não faltava espaço no comboio, mas não havia água suficiente para limpar as casas de banho, «que se encontravam num estado lastimável, em vista dos casos de disenteria», escreveu o homem da Cruz Vermelha. Em Berna, uma mulher moribunda foi tirada do comboio. Em Annemasse, junto à fronteira, mais mulheres foram tiradas do comboio e levadas para o hospital. Uma delas era Zim. «No hospital, recobrou os sentidos. Sabia que estava em França», disse Loulou, que guardou o registo da morte de Zim e o leu em voz alta: «“Mademoiselle Marie-Louise Zimberlin. Faleceu em 13.4.45.” Viveu ainda dois dias depois de atravessar a fronteira para França. Surpreendeu-me que vivesse tanto tempo. Estava exausta e muito, muito magra. Mas ainda mantinha a sua inteligência», disse Loulou. Ao fim dos dois dias, Loulou e as outras partiram num comboio para Paris. Zim ficou no hospital em Annemasse. Não era casada, mas a sua irmã, Sophie, tinha sido alertada, e vinha de Cluny para estar com ela. Mais tarde, Sophie escreveria a Loulou descrevendo-lhe as últimas horas de Zim. «Na manhã de 13 de abril, recebi um telegrama de Annemasse dizendo para vir urgentemente. Marie-Louise vai ser repatriada. Ficámos loucos de alegria e fizemos preparativos para a trazer para casa. Recebemos outra chamada à tarde. Ela não podia ser deslocada. Nós devíamos ir a Annemasse com a máxima urgência.» Os comboios circulavam com atraso, por isso Sophie apanhou um táxi. «Fizemo-nos à estrada como loucos. Quando cheguei lá, entrei no quarto e só a reconheci pela cor dos olhos. Ela sorriu-me docemente e disse: “A minha irmã está a chegar.” Eu disse: “Aqui estou. Aqui. Sou eu. A Mimi.” Ela disse: “É um anjo.” Então, eu tirei o que lhe tinha trazido. Tinha feito uma limonada com uns belos limões.

Dei-lhe duas colheres de limonada. Subitamente, abriu os olhos e reconheceu-me. “Oh, minha chèrie, agora vejo que és tu”, e tomoume nos seus braços magros, magros.» «Eu disse-lhe: “Eu nunca comi nada nem vesti roupa nenhuma sem pensar em ti.” Ela pegou-me na mão e olhou para mim. Eu compreendi que tinha chegado o último momento e peguei na minha coragem com ambas as mãos e pronunciei os versos que me vieram à mente; Deus é amor, não há maior amor do que dar a vida pelos amigos. Disse o Credo. Ela olhou para mim com serenidade. Isto durou cerca de dez minutos, até uma enfermeira nos dizer que o coração dela já não batia.» Atravessando para França, os funcionários da Cruz Vermelha aconselharam mais uma vez as mulheres a não falarem sobre o campo de concentração, mas nada podia impedir que a história se espalhasse. No dia em que as mulheres chegaram à fronteira francesa — 11 de abril de 1945 —, o Terceiro Exército dos Estados Unidos, comandado pelo general George Patton, libertou Buchenwald. Era o primeiro campo de concentração a ser libertado pelos Aliados Ocidentais e Patton decidiu que não deveria haver mais segredos sobre os campos de concentração, apelando aos repórteres e aos jornalistas para que captassem «os horríficos pormenores». Um jovem diplomata americano enviado para elaborar um relatório sobre a chegada das prisioneiras francesas de Ravensbrück relatou esses pormenores — com o seu choque evidente em cada palavra. Descreveu «uma caravana de mártires, assustadoramente mutiladas, como esqueletos — um espetáculo aterrador... Os olhares de piedade e de horror nos rostos dos médicos responsáveis pelo exame médico diziam mais do que todos os discursos que o segredo profissional os impedia de fazerem». O relato mais significativo sobre Ravensbrück que surgiu desta caravana francesa foi feito pela única prisioneira do grupo que não era francesa: Karolina Lanckorońska. Durante as negociações da troca de prisioneiros, Carl Burckhardt, o chefe do CICV, tinha mais

uma vez apelado a Hitler para que a libertasse, e em em 2 de abril de 1945 o general da SS Ernst Kaltenbrunner escreveu a Burckhardt dizendo que Himmler acedera, na condição de a condessa manter o silêncio sobre o campo de concentração. Ou, nas palavras de Kaltenbrunner, «se conduzir lealmente» a respeito do Reich. Lanckorońska, no entanto, não tinha intenção de se manter em silêncio. Num relatório de vinte e duas páginas escrito na sua maior parte no tempo presente, descreveu a Burckhardt e ao seu Comité da Cruz Vermelha exatamente o que tinha visto, e, o que era mais importante, o que se passava ainda em Ravensbrück. Em particular, escreveu sobre o perigo que corriam ainda as coelhas polacas. «Elas estão sob ameaça de morte» e «estão escondidas no momento em que escrevo». As coelhas, «por consequência, encontram-se num perigo extremo e uma intervenção do CICV a interceder por elas é da máxima importância». Karolina disse que no momento em que escrevia a SS estava a livrar-se das provas dos seus crimes. Imediatamente antes de ser retirada, diz ela, «a câmara de gás foi desmantelada e todas as provas do que aconteceu ali destruídas». Diz também ao CICV que: «Um pouco antes de 3 de abril — o dia em que o nosso transporte partiu — apareceu uma máquina que parecia um autocarro e estava na floresta perto do campo. Era uma câmara de gás móvel e estava pintada de verde.»

45 Bernadotte tinha igualmente um interesse pessoal pela França; como descendente direto do marechal napoleónico Jean Baptiste Bernadotte, tinha sangue francês.

CAPÍTULO 39 MASUR Nos dias que se seguiram à partida das caravanas suíça e sueca, as prisioneiras que trabalhavam no exterior do campo de concentração espreitavam por entre as árvores, perguntando-se se apareceriam mais Autocarros Brancos. Não veio nenhum. Em vez disso, as mulheres viram mais câmaras de gás móveis, como o autocarro pintado de verde que Karolina Lanckorońska descreveu quando chegou à Suíça. Muitas prisioneiras confirmariam mais tarde o que Karolina disse sobre o calendário da destruição da câmara de gás principal. Segundo Zdenka Nedvedova, as mulheres de um grupo de Lidice foram as últimas prisioneiras a serem exterminadas aí. Encaminharam-se para a morte a cantar o hino nacional checo. «Depois de a câmara de gás ser destruída e o sítio arrasado, veio a visita da Cruz Vermelha Internacional», disse Zdenka. Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, que tinha ajudado a converter o barracão numa câmara de gás, ajudou a desmantelá-lo. Suhren sabia agora que o extermínio não poderia ser terminado a tempo. Na segunda semana de abril, os Americanos já tinham chegado ao Elbe, a cerca de 124 quilómetros a oeste de Berlim, enquanto as tropas do Exército Vermelho, comandadas pelo marechal Zhukov, estavam a reunir-se no Oder, prontas a atacar a capital alemã do leste. No flanco direito do marechal Zhukov, as forças do general Rokossovsky tinham tomado Danzig e marchavam para leste, pelo que Suhren teria talvez uma ou duas semanas para remover as provas de extermínio antes de Rokossovsky chegar ao campo de concentração. Contudo, embora o extermínio por gás fosse reduzido, não tinha parado. A partir daquele momento, passaria a processar-se naqueles

veículos verdes ou negros, que poderiam partir quando chegasse a ordem de evacuação. Entretanto, o processo de erradicação das provas acelerava-se. Mais árvores foram plantadas, mais blocos pintados, e cavaram-se buracos onde os corpos eram queimados, porque as três fornalhas (e as duas em Fürstenberg) não davam vazão ao seu grande número. No final de março e por abril dentro, a operação de limpeza prosseguiu com mais urgência no Campo da Juventude. Desde que o Campo da Juventude de Uckermark começou a funcionar como campo de morte, pelo menos 6000 mulheres foram enviadas para lá, a maior parte das quais já tinha sido exterminada até ao início de abril. O ritmo de chegadas já tinha abrandado. Segundo Vera Salvequart, a enfermeira do Campo da Juventude, o último transporte de aniquilação chegou nos primeiros dias de abril. Ela lembra-se porque uma jovem russa escapou e toda a gente teve de esperar até Koehler a encontrar. Perante as outras, Koehler espancou a jovem até à morte com um pau. As seleções para o extermínio por gás no Campo da Juventude prosseguiam, assim como a morte por fome e por envenenamento, mas, como o extermínio estava a demorar demasiado tempo, um número cada vez maior de prisioneiras foi enviado para subcampos ou levado de volta para o campo principal de Ravensbrück. Na perspectiva de Neeltje Epker: «O inimigo aproximava-se rapidamente e eles não conseguiam completar o seu plano.» Muitas das francesas no Campo da Juventude tinham sido recambiadas para Ravensbrück ao longo do fim de semana da Páscoa. Alguns dias depois, as guardas do Campo da Juventude fizeram uma fogueira em que queimaram documentos e livros de registos. Foi ordenado às prisioneiras polacas de um bloco que destruíssem os seus beliches, «o que fizemos com entusiasmo», disse Natalia Chodkiewicz. Em seguida, realizou-se uma selecção e Natalia, com 200 outras, marchou de volta a Ravensbrück. «Fiquei de pé com os olhos fechados e a desejar que hoje o bastão negro da chefe das guardas me escolhesse a mim», disse a polaca Janina

Habich. «Mas no fim da seleção fui recambiada para Ravensbrück.» Mary O’Shaughnessy ainda esperava diariamente ser escolhida. «Por essa altura, já pensávamos todas que estávamos a enlouquecer. O que fazíamos era aguardar na parada — ou antes, aguardar por ordens de morrer.» Realizou-se mais uma seleção em massa e foram escolhidas mulheres para serem exterminadas por gás ou, possivelmente, a tiro. Mas Mary O’Shaughnessy foi selecionada para regressar ao campo principal. Afinal, o seu braço postiço revelou-se irrelevante para a sua seleção para a vida ou para a morte, já que os selecionadores só se interessavam pelo estado das pernas das mulheres. Quando Mary se pôs na fila para regressar, Ruth Neudeck passou por ela e bateu-lhe na boca com a sua chibata de punho de prata. «Não havia razão para aquilo. Já me tinham partido dois dentes antes.» Com um grupo de cerca de 200, encaminhou-se para Ravensbrück pelos bosques, ainda a sangrar da boca. Os números no Campo da Juventude diminuíam rapidamente e chegaram prisioneiros do campo masculino para mais uma operação de limpeza das provas. Queimaram corpos que estavam a apodrecer e transformaram a sala em que as prisioneiras eram mortas à fome na Revier numa sala de hospital normal. Antes de Auschwitz ser evacuado em janeiro de 1945, a SS matou todos os Kapos que pudessem ter provas do que acontecera. Todos os Sonderkommando — os prisioneiros que tinham trabalhado nas câmaras de gás em Auschwitz e no crematório — iriam ser executados. Imediatamente antes da sua execução, os Sonderkommando de Auschwitz tinham-se rebelado. Embora a rebelião fosse reprimida, vários homens conseguiram escapar. Presumivelmente para prevenir uma rebelião similar em Ravensbrück, os onze homens que tinham trabalhado no crematório e na câmara de gás foram levados para o bunker do campo no início de abril e ficaram presos. Também no início de abril, Vera Salvequart, a enfermeira do Campo da Juventude, ficou a saber que iria ser executada a tiro.

Salvequart diria mais tarde que foi Rapp que a avisou primeiro de que ela «nunca sairia dali viva». Provavelmente, foi depois deste aviso que o seu comportamento se modificou. Quase de certeza que tinha ordens para envenenar todas as pacientes restantes na Revier. Em vez disso, comportou-se com bondade para com elas e tentou salvar algumas. «Quando os primeiros raios quentes de sol apareceram, a Vera disse às pessoas doentes que podiam ir lá para fora para o sol e arranjou maneira de as pacientes tuberculosas serem levadas para o exterior», disse Irène Ottelard. «Ia até dar passeios com as pacientes, sem os guardas da SS.» Muitas prisioneiras apreciavam a «bondade» de Vera e no dia dos seus anos — 12 de abril — deram-lhe presentes. Nessa altura, Salvequart já tinha uma série de prisioneiras a ajudá-la de várias maneiras; Frau Schaper era a sua costureira. «Ela convidava pessoas para o quarto dela e dava-lhes pão com mel dos embrulhos dela», disse Irene, mas dessa vez não havia um pó branco nos sanduíches. Em desespero, Gisela Krüger disse a Salvequart um dia: «Se este medo e esta fome não pararem em breve, é melhor eu tomar o pó», mas Salvequart recusou-se a matála, dizendo: «Ainda o podes tomar, mas tu adoras a vida.» Segundo Gisela, o pó iria ser ministrado a Frau Schaper antes do fim, mas, como ela não tinha acabado de fazer as roupas de Vera, foi poupada. Salvequart também poupou prisioneiras à morte trocando nomes na lista de condenadas à morte. «Devo dizer que o comportamento de Vera Salvequart era um paradoxo», disse Irène. «Ela salvou de facto algumas mulheres, mas matou também um grande número.» Para salvar alguém, substituía o nome da vítima pelo nome de alguém que já tivesse morrido. Mais tarde, viria a afirmar que salvara dezenas de mulheres assim, mas Gisela Krüger disse que foram só umas quatro ou cinco. As descrições da própria Salvequart dos seus últimos dias no Campo da Juventude aparecem em três depoimentos cheios de divagações, prestados em 1946 a um assíduo investigador britânico de crimes de guerra chamado Charles Kaiser. Kaiser, um judeu

austríaco que aterrou de paraquedas durante a guerra atrás das linhas de combate ao serviço do SOE, era conhecido pela sua capacidade de fazer falar as pessoas que interrogava. Salvequart disse-lhe que perto do fim eram trazidas mulheres grávidas para a Revier do Campo da Juventude para darem à luz. Na maior parte dos casos, essas mulheres eram prisioneiras judias e os seus bebés eram assassinados por Rapp. Vera tentava salvá-los, disse, escondendo-os na casa de banho. Adotou alguns e tentou criá-los, entre eles «o filho de uma judia chamada Wienert, que criei em segredo». Recebia comida para o bebé de um prisioneiro no campo masculino chamado Franz Eigenbrodt. Salvequart tinha travado amizade com Eigenbrodt quando ele veio com um grupo de trabalho fazer reparações no campo. A existência do bebé tornou-se conhecida no campo masculino, e outros prisioneiros traziam-lhe leite às escondidas. «Mas a Neudeck tirou-me a criança e atirou-a para a carroça da comida como um monte de trapo. A carroça estava suja com comida derramada. Ela também me disse: “Um pequeno judeu vai ser um judeu muito grande um dia.”» Salvequart confessou a Kaiser que depois daquilo tentou envenenar Neudeck. A chefe das guardas veio ter com ela a queixar-se de dores de cabeça e ela deulhe o pó branco, mas Neudeck não tomou uma quantidade suficiente para morrer. Depois da morte do bebé Weinert, todos os bebés que nasciam na Revier de Vera eram levados por Koehler, o colega de Rapp. Salvequart disse que nessa altura já sabia que tinha os dias contados, porque Rapp seguia-a por todo o lado a dizer que a Oberschwester suspeitava de que ela andava a alterar as listas de condenadas à morte. Numa ocasião, disse ela, foi selecionada uma lista de 180 mulheres para serem transportas para Belsen para trabalharem, mas, como as linhas dos comboios tinham sido destruídas, iriam ser mortas com um tiro na cabeça. Ela aproveitou a oportunidade para trocar vários nomes na lista por nomes de prisioneiras que já tinham morrido e a consequência foi que a mandaram apresentar-se à

Oberschwester Marschall e ao Dr. Trommer para se explicar. Como eles suspeitavam de que Salvequart estava de posse das listas originais, nas quais constavam as suas assinaturas e que, por conseguinte, os incriminariam, ordenaram-lhe que lhes entregasse os originais. Foi nessa altura que ela ouviu Trommer dizer: «Esta mulher não pode cair nas mãos do inimigo», e decidiu escapar. Um outro horror reforçou a sua decisão. Segundo Salvequart, chegou um grupo de catorze freiras polacas ao Campo da Juventude nos últimos dias da guerra. Uma delas era uma madre superiora chamada Isabella Mozynska. Salvequart disse a Kaiser que se recordava do nome porque a madre superiora pedira uns comprimidos para as suas freiras, que sofriam de diarreia. Vera deulhes os comprimidos e disse-lhes que não voltassem à Revier, porque era demasiado perigoso. A madre superiora agradeceu-lhe e ofereceu-lhe um medalhão, dizendo: «Que Deus a proteja.» Vera disse a Kaiser que tinha pendurado o medalhão numa volta e que ele podia vê-lo, se quisesse, porque se encontrava no cofre dos pertences pessoais dos prisioneiros da prisão de Hamburgo. No dia seguinte, quando ela estava numa das salas da Revier a arrumar dentes de ouro, Rapp e Koehler entraram bêbedos. O Rapp saiu da sala e o Koehler, que estava muito bêbedo, aproximou-se de mim e tentou beijar-me. Eu resisti, ele... atirou-me para cima de uma marquesa e tentou violar-me. Eu resisti com toda a minha força e mordi-o e arranhei-o e pontapeei-o. Deilhe um pontapé no abdómen, o que deve ter doído muito, porque ele fugiu para um canto da sala.

Salvequart escapou da sala e contou o que tinha acontecido a uma das guardas, Erna Kube. Como Kube ia nesse momento levar uma pilha de roupa infestada com piolhos para ser lavada em Ravensbrück, Salvequart pediu-lhe que a levasse com ela. Enquanto decorria esta conversa, Rapp foi buscar as catorze freiras e meteu-as numa cozinha desativada perto da Revier. Subitamente, ouvimos tiros. Quando eu estava a afastar-me com a Kube, fui chamada pelo Rapp. Ele ordenou-me que levasse o alicate dos dentes à cozinha. Quando entrei na cozinha, vi uma imagem horrível. Algumas das freiras estavam

mortas e outras severamente feridas pelos tiros e em grande sofrimento. Ainda me lembro da imagem horrível de uma freira cujos olhos tinham sido arrancados a tiro.

Vera correu para junto da guarda Kube e as duas voltaram para Ravensbrück, onde Salvequart se escondeu num bloco do hospital durante dois dias, até alguém denunciar o seu paradeiro a Koehler. «Eu estava a levantar um cadáver quando o Koehler entrou, por isso saltei por uma janela.» Algumas prisioneiras ajudaram-na a esconderse, primeiro nas coelheiras e depois no Bloco 19, onde a Blockova suíço-americana Ann Seymour Sheridan a manteve no sótão. Salvequart entregou a Ann uma amostra do pó branco para ela o levar clandestinamente para fora do campo e pediu-lhe que a apresentasse como prova aos Aliados. Uma análise da amostra — um veneno à base de cianeto — foi apresentada ao tribunal de Hamburgo. Tanto Koehler como Rapp perseguiam agora Salvequart. Koehler foi o primeiro a encontrá-la e levou-a de volta para o Campo da Juventude. Estava preocupado com a tentativa de violação. «O Koehler estava terrivelmente assustado por eu poder ter comunicado a questão a Schwarzhuber, porque me perguntou imediatamente se eu tinha visto o Schwarzhuber e tentou pedir-me desculpa, dizendo que estava bêbedo.» Mais uma vez, ela escapou às garras de Koehler, nessa ocasião fugindo para o campo dos homens. O seu amigo Eigenbrodt tinha conseguido fazer-lhe chegar roupas de homem às escondidas através de um grupo de prisioneiros que andavam a limpar os esgotos no Campo da Juventude e Salvequart saiu disfarçada de canalizador. Quando Kaiser perguntou a Salvequart se ela sabia o que tinha acontecido a Koehler e a Rapp, ela disse que ouvira dizer que Koehler fora enforcado por prisioneiros antes da libertação, mas não sabia o que acontecera a Rapp. À pergunta sobre o que tinha acontecido em relação às freiras polacas assassinadas, Salvequart respondeu que ouvira dizer que Ruth Neudeck «tratou do assunto». Tratar do assunto das freiras assassinadas deve ter sido uma das tarefas finais de Neudeck no Campo da Juventude, porque depois de

as últimas prisioneiras serem assassinadas ou terem regressado ao campo principal de Ravensbrück, o anexo de extermínio foi encerrado. Neudeck foi promovida a chefe e transferida para o subcampo em Barth. Salvequart continuou escondida no campo de concentração dos homens, disfarçada de homem, a aguardar a libertação. As prisioneiras do Campo da Juventude de Uckermark que começaram a chegar a Ravensbrück, provavelmente em finais de março, foram recebidas como se tivessem regressado do Além. Algumas foram levadas para a Revier e tratadas por amigas. Irène Ottelard, que ao regressar pesava 29 quilos, escreveria mais tarde: «Nunca acreditei que seria possível sentir tal alegria ao ver Ravensbrück de novo. E quando me vi nas mãos de uma médica francesa foi o paraíso.» Outras não tiveram tanta sorte. Mary O’Shaughnessy foi mandada diretamente para o caos dos blocos da zona de morte por trás do arame farpado. As condições eram pouco melhores do que as do Campo da Juventude, embora ela ficasse contente por ter um cobertor. Os métodos de extermínio do Campo da Juventude estavam também ali a ser usados. No início de abril, centenas de mulheres que sofriam de disenteria foram levadas para o Bloco 22, fechadas durante três dias sem água nem comida e sem condições para fazerem as suas necessidades, obviamente na expectativa de que morressem. Julia Barry, a mulher britânica que era polícia do campo, tentou entrar no bloco da morte, porque uma das mulheres que tinham sido levadas para lá era uma tia do seu marido, que tinha vindo da Hungria em dezembro. Mary não teve autorização para entrar, «mas espreitei por uma porta e vi corpos empilhados uns em cima dos outros, talvez cerca de trinta. Reparei particularmente num cadáver que tinha os olhos saídos das órbitas, o que creio ser devido às ratazanas com as quais o bloco estava infestado.» Mary O’Shaughnessy não tardou a ver-se novamente perante Winkelmann. As 1500 mulheres doentes e moribundas do seu bloco receberam a ordem de se despirem até à cintura e passarem por ele

a correr. Como ela ficou com o braço postiço à mostra, pensou que com certeza seria selecionada, mas a sua Blockova, Ann Sheridan, salvou-a no último momento. Reconhecendo o perigo em que Mary se encontrava, Ann conseguiu levá-la para dentro depois da contagem, juntamente com várias outras, e escondeu-as debaixo de uma cama na parte de trás do bloco. «Esta seleção aconteceu três vezes e em cada ocasião eu consegui evitá-la com a ajuda de Ann Seymour Sheridan», disse Mary O’Shaughnessy no seu testemunho no pósguerra. De novo no campo principal, as sobreviventes do Campo da Juventude eram também perseguidas pelo «negociante de gado», Pflaum, que estava decidido a enviá-las para os subcampos, por mais perto da morte que estivessem. A parteira holandesa Neeltje Epker deixou registado que vinte e cinco das setenta e nove sobreviventes holandesas do Campo da Juventude foram metidas num transporte para um subcampo; dezassete estavam tão fracas que morreram na viagem. Os ajuntamentos assumiam agora um cariz «tragicómico», observou Maria Moldenhawer. «O Pflaum entrava pessoalmente nos blocos e espreitava para debaixo das camas ou subia para os beliches mais altos, enquanto todas as pessoas que podiam se escondiam, e o Winkelmann vinha olhar para as pernas das mulheres.» Anna Hand, a secretária austríaca do campo de concentração, viu Pflaum no gabinete do trabalho por essa altura e observou que ele andava «permanentemente bêbedo». Via-o andar de bicicleta pelo campo, com as mulheres a afastarem-se à sua passagem. Os elementos comuns da SS eram agora vistos muito menos do que o habitual. «Eles não eram idiotas», disse Violette Lecoq. «Sabiam que o fim estava a chegar.» Mas o «séquito especial» de Pflaum, homens da SS com revólveres e chicotes, estavam sempre presentes, rondando os blocos de dia ou de noite e levando colunas inteiras de mulheres para um subcampo quando elas se dirigiam para o trabalho. Já não importava se chegavam lá vivas, desde que

fossem mandadas para outro sítio para as tirar do campo de concentração. As ordens de Hitler tinham sido reiteradas a Suhren: nem uma prisioneira devia cair nas mãos dos Russos. Com as frentes a avançarem, as opções de subcampos para onde enviar a prisioneiras diminuíam a cada dia que passava. Reduziam-se a uma faixa cada vez mais estreita, com o Exército Vermelho a avançar para leste, os Britânicos para noroeste e os Americanos para sudoeste. Em 15 de abril, Belsen deixou de ser uma opção viável para as prisioneiras retiradas de Ravensbrück, com as forças britânicas a chegarem ao campo e a descobrirem horrores inimagináveis. Nessa altura, como os Americanos formavam pontes sobre o Elbe e os ataques aéreos estavam a intensificar-se, os prisioneiros enfiados em camiões ou em comboios seriam provavelmente atingidos. Mesmo que as mulheres chegassem vivas a um subcampo, morreriam à fome, porque o abastecimento de alimentos tinha sido cortado. A polaca Janina Habich voltou do Campo da Juventude com 150 outras prisioneiras e passaram três dias a cavar uma trincheira à volta de Ravensbrück, sendo depois metidas em camiões para uma viagem de dois dias, por entre as bombas dos Aliados, a caminho das minas de sal em Berndorf. Ali, puseram-nas a trabalhar a 200 metros abaixo do solo no fabrico de componentes para o V2. «Naqueles primeiros dias de abril, 140 de nós ficámos detidas aqui durante dez dias e só nos davam cenouras e nabos meio podres para comer.» Eva Fejer, a adolescente húngara, foi trabalhar para uma fábrica na ponta sul de Berlim. Quando a fábrica foi bombardeada, as prisioneiras receberam ordem de limpar os escombros, «mas em vez disso escondemo-nos nas latrinas». Ali, ouviram homens da SS a debater sobre se deveriam fazer ir o edifício pelos ares, com prisioneiros e tudo, mas a decisão tomada foi obrigá-los a marchar de regresso a Berlim. «Meteram-nos no metropolitano e nós vimos todos os nomes das estações que conhecíamos de livros infantis, e os guardas disseram: “Fiquem connosco, senão são reconhecidas.” Algumas fugiram, mas eu não me atrevi. Pensei, se cheguei até este

ponto, não vou arriscar agora.» Foram metidas num comboio para Oranienburg, no limite norte de Berlim, e levadas para o campo de concentração de Sachsenhausen. Fomos levadas para os balneários e conduzidas para dentro nuas em pelo. Não sei quanto tempo nos deixaram lá. Lembro-me de que uma criança começou a gritar e nunca mais voltei a vê-la. Eu estava sentada com a cabeça entre as mãos, a pensar — o que quer que aconteça, que aconteça depressa — e veio o homem da SS e abriu a porta. Berrou: «Raus, raus!» e nós fomos metidas num camião e levadas para tomar um banho em condições e sermos lavadas. Fomos metidas noutro camião e levadas de volta a Ravensbrück e vimos muita confusão e umas peças de mobiliário a serem empacotadas e deram-nos embrulhos canadianos com cinco quilos.

As mulheres iam ser transferidas para Malchow, Barth e Torgau, três subcampos mais distantes das frentes, que não paravam de avançar, mas, no momento em que os camiões iam partir, chegaram prisioneiras de outros campos de concentração acabados de conquistar pelas forças aliadas. Muitas recordavam o regresso de camião de Rechlin, o campo de punição a 50 quilómetros a noroeste de Ravensbrück. Hermine Salvine, a secretária do escritório, disse: No camião encontravam-se corpos mortos, moribundos e vivos, todos misturados. Foram descarregados, voltados a carregar e levados para fora dos portões. Isto aconteceu já tarde, ao fim do dia. Ao longo de toda a noite saiu fumo da chaminé do crematório. De manhã, quando eu tinha de anotar o regresso da força diária [contagem das prisioneiras], fiquei a saber que tinham morrido todas.

Os transportes de evacuação eram a nova maneira de matar. Os comboios cruzavam o território, andavam às voltas e regressavam ao ponto de partida entre os campos de concentração e os subcampos, em número cada vez mais reduzido, que ainda se encontravam fora do alcance dos Aliados. Isabelle Donner chegou a Ravensbrück num camião de gado procedente de Budapeste em dezembro de 1944 e foi enviada num vagão de comboio aberto para oeste, para um campo de trabalho em Dachau em fevereiro de 1945. «O comboio foi bombardeado e o topo de dois vagões foi pelos ares, houve muitos mortos.» O grupo foi tirado do comboio e obrigado a marchar para norte e arrostou com um ataque aéreo, mas continuou a marchar para

oeste, afastando-se da frente soviética. Helen Gaweda, uma polaca, marchou de Auschwitz para Ravensbrück em dezembro de 1944 e foi levada de camião para o subcampo de Malchow, a norte de Ravensbrück, em fevereiro de 1945. Em abril de 1945, foi levada de comboio para sul, até Leipzig, e a seguir novamente a pé, à frente das tropas americanas e russas. Krystyna Dąbrówska, a jovem de dezassete anos de Varsóvia, foi retirada de um subcampo perto de Hamburgo quando os Britânicos avançavam e metida num comboio para sul, para Leipzig. Ia sentada num vagão de gado aberto ao lado de um vagão cheio de munições. Quando os aviões dos Aliados nos sobrevoavam, olhávamos para cima e pensávamos, os nossos amigos vão-nos ver nestes vagões abertos, os pilotos americanos não vão deitar as suas bombas em cima de nós, mas fizeram-no, e o nosso comboio foi bombardeado, assim como o comboio de munições. Houve tantos mortos que ninguém conseguiu contá-los. Lembro-me de ver mulheres ainda conscientes sem pernas. Não havia nada que ninguém pudesse fazer. Tentámos fugir, mas trouxeram-nos de volta e mandaram-nos marchar para outro comboio.

Rosza Nagy, a sua irmã mais nova, Marianne, e a sua mãe, Margit, percorreram a pé quase todo o caminho de Budapeste até Ravensbrück em outubro de 1944 e ficaram juntas no campo de concentração até janeiro de 1945, quando as duas jovens foram mandadas para um subcampo em Chemnitz, perto da fronteira checa, deixando ficar a sua mãe. «Quando a mãe nos viu partir, não chorou», disse Rosza. «Só disse: “Mantenham-se juntas, meninas, e ficarão bem.”» Em meados de abril, com os Russos a aproximarem-se de leste e os Americanos de oeste, foram metidas em vagões de gado fechados destinados a Mauthausen, uma viagem que as levou diretamente para entre as frentes russa e americana. «Estava bastante escuro no vagão e nós não tínhamos comida. Íamos sentadas muito juntas, sessenta por vagão, assim» — Rosza encolheu os joelhos até ao queixo. Estava sempre completamente escuro, mas eu ia de mãos dadas com a minha irmã. A mãe tinha-nos dito para nunca largarmos a mão uma da outra. Depois, as

pessoas desistiram e começaram a morrer. Por isso, tentámos empilhá-las num canto do vagão. Ouvíamos os canhões enquanto prosseguíamos viagem. Pensámos que, provavelmente, era Dresden que estavam a bombardear, porque devíamos estar perto. Não sabíamos se eram os Russos ou não.

Ao fim de alguns dias, muitas mais pessoas começaram a desistir, e Rosza tentou animar as outras prisioneiras. Eu disse, nós vamos manter-nos vivas. Em breve vamos ser livres. Tentei falar com elas para lhes dar força. Mas elas já não queriam viver. A minha irmã desistiu. Só tinha vinte anos e não era tão forte como eu. Eu era desportiva e antes andava de bicicleta e jogava ténis. A minha irmã era violoncelista e tinha uma voz linda, mas no comboio perdeu a sua força.

Depois de uma semana na escuridão do vagão, o comboio começou a atravessar a Checoslováquia. A certa altura, abrandou e parou. As portas foram abertas de rompante. Havia pessoas lá fora a quererem ajudar. Era a Cruz Vermelha checa, mas nós não conseguíamos sair. Por fim, rastejámos de joelhos, porque não conseguíamos pôr-nos de pé, e rastejámos para um campo de erva e comemos a erva. No vagão atrás de nós estavam as pessoas mortas e eles tiraram-nas de lá. Foi maravilhoso por um momento, porque pudemos respirar. E a luz do sol era tão brilhante que nos ofuscava. Foi maravilhoso ver a luz. Quando abriram a porta, foi como um milagre.

Ordenaram às mulheres que voltassem a entrar para o comboio e ele prosseguiu viagem por mais uma semana. À chegada a Mauthausen, mais de metade das passageiras estava morta. As vivas foram encurraladas numa tenda. A irmã de Rosza, Marianne, morreria em Mauthausen dois dias depois. Em Ravensbrück, toda a gente sabia que se aproximava o último ato. Em 12 de abril, as mulheres da Siemens foram confinadas às suas casernas. Dois dias depois, a fábrica da Siemens foi esvaziada, as últimas prisioneiras recambiadas para o campo principal, a postos para a evacuação, e todo o equipamento da Siemens foi carregado em barcaças e enviado para longe da linha de fogo. Algumas prisioneiras ainda tinham a esperança de que fossem os Americanos a chegar primeiro a Berlim — e, por consequência, talvez

também a Ravensbrück. Não podiam saber que em 15 de abril Eisenhower tinha dito aos seus comandantes nas pontes do Elbe, atónitos, que se mantivessem na sua posição. Contrariando todas as expectativas, o Comandante Supremo dos Aliados decidira permitir que fossem as forças soviéticas a tomar Berlim. Às três da madrugada de 16 de abril, a carga final dos Soviéticos em direção à capital iniciou-se com um ataque maciço às chamadas Portas de Berlim — os montes Seelow, a oitenta quilómetros a leste —, e foi tal o extraordinário poder de fogo que o seu ribombar foi ouvido até em Ravensbrück. Nessa manhã, prosseguiu a seleção no campo de concentração para as câmaras de gás nos camiões, e as «velhas ratazanas» continuaram como habitualmente a preencher as listas de transporte com nomes de prisioneiras, mas dois dias depois, quando chegou a notícia de que a resistência alemã em Seelow tinha entrado em colapso, o pessoal do Schreibstube recebeu ordem de queimar essas listas. Chegaram novas ordens para destruir as provas mais incriminatórias de todas — os dossiês das prisioneiras, e com eles todos os vestígios de todas as ordens que já alguma vez tinham sido emitidas em Ravensbrück. Ao princípio, foi ordenado às prisioneiras que formassem uma cadeia humana do edifício da administração do campo de concentração até ao crematório, com caixas de documentos a serem passadas de mão em mão e atiradas para as fornalhas. A guarda encarregada da biblioteca do campo de concentração, Irmgard Schröers, queimou também todos os textos nazis. Explicou à sua assistente, uma prisioneira polaca: «Os tempos mudaram e os Alemães terão de se ajustar a outros povos. Tu vais ficar livre e eu vou ser presa. Aparentemente, é assim que tem de ser.» Também o pessoal da Effektenkammer tinha recebido ordem de destruir as provas. Os pertences das prisioneiras — alianças de casamento, fotografias, cartas, todos cuidadosamente etiquetados e fechados à chave desde os primeiros tempos do campo — foram agora removidos, metidos em camiões e enviados para outro local.

Suhren revelaria mais tarde que esses bens das prisioneiras foram primeiro enviados para a fortaleza Doemitz, junto ao rio Elbe, mas quando os Americanos avançaram voltaram a ser mudados e «armazenados na vizinhança de um albergue da juventude» — embora ninguém saiba se esses bens alguma vez chegaram aí e o que lhes aconteceu. Nos seus blocos, as mulheres do Exército Vermelho estavam a fazer preparativos para a chegada dos Soviéticos — elaborando relatórios sobre o campo de concentração, desenhando mapas da zona, tudo o que pudesse ser útil aos seus libertadores soviéticos. Irma Dola tinha um irmão a combater no exército de Rokossovsky, que disse que chegaria a Ravensbrück numa questão de dias e ajustaria contas com a SS. Antonina Nikiforova falava de fazer um filme sobre tudo aquilo depois da guerra. Desencadearam-se recriminações. A chefe das mulheres-polícia do campo, Elisabeth Thury, foi acusada por algumas de tentar cair nas boas graças das mulheres do Exército Vermelho, agora que a sua vitória estava assegurada. As Blockovas que se tinham mostrado demasiado próximas da SS eram atentamente vigiadas pelas outras prisioneiras, e se necessário postas no seu lugar. Chegou uma nova guarda, chamada Zetterman. Tinha sido transferida de Belsen para Ravensbrück imediatamente antes da chegada dos Britânicos. Zetterman percorria o campo de concentração com um revólver, dando pontapés às mulheres e batendo-lhes, ameaçando-as de empregar nelas os seus métodos de Belsen. As prisioneiras perguntavam: «Mas o que vai fazer quando perder a guerra?», ao que ela resfolegava e dizia que «saberia matar-se com um tiro», e continuava a percorrer o campo aos pontapés nas prisioneiras e a bater-lhes. A maior parte das guardas não falava de vingança, mas de como iriam voltar para casa. As mochilas eram os itens mais procurados no campo, e as guardas estavam dispostas a pagar com pão e batatas às prisioneiras — que andavam a fazer as suas próprias mochilas — para as adquirirem. Também estavam interessadas em negociar com

as prisioneiras para obterem uma parte dos seus embrulhos da Cruz Vermelha. Ultimamente, a comida na cantina do pessoal escasseava, e agora, na segunda e na terceira semanas de abril, milhares de embrulhos de alimentos com cinco quilos de peso começavam a chegar ao campo enviados pela Cruz Vermelha canadiana, cheios de chocolates e de compota, de salsichas e de carne enlatada. Os embrulhos eram destinados às francesas, às judias e às polacas. No entanto, embora o pessoal da SS sempre se tivesse sentido à vontade para vasculhar os embrulhos recebidos pelas prisioneiras, parecia agora que já não era esse o caso. Subitamente, Suhren andava a verificar recibos, e encetou-se uma negociação entre as prisioneiras e a SS sobre como o conteúdo dos embrulhos deveria ser dividido. Às polacas, por exemplo, foi dito que, desde que assinassem um recibo a declarar que tinham recebido o seu embrulho, podiam, cada uma, receber um quinto — se recusassem, não receberiam nada. As prisioneiras polacas debateram aquela proposta e ao fim de algumas horas recusaram-na. Entretanto, foi oferecido às coelhas um embrulho de cinco quilos a cada uma, mas só porque Suhren estava a tentar comprar o seu silêncio. Quando as coelhas ouviram dizer que as suas compatriotas estavam a ser ludibriadas, recusaram terminantemente os embrulhos. «Então são esses os agradecimentos que eu recebo por me assegurar de que as coelhas recebem os seus embrulhos», ouviram Suhren dizer. No entanto, o conteúdo dos embrulhos acabava por chegar às mãos das prisioneiras. «Até chegámos a roubar cigarros que a SS tinha roubado dos embrulhos, por isso toda a gente andava pela Lagerstrasse a dar umas passas num cigarro», disse Zofia Sokulska. Em 14 de abril, Marie-Claude Vaillant-Couturier registou no seu diário uma conversa na qual a Oberschwester repreendeu uma enfermeira por ela roubar manteiga e chocolate do embrulho de uma prisioneira. No dia seguinte, escreveu que Dorothea Binz mostrou preocupar-se com uma prisioneira judia. A chefe das guardas perguntou a uma Stubova porque é que as judias tinham um aspeto tão pálido e doentio. «A Stubova respondeu que as mulheres tinham

recentemente regressado do Campo da Juventude e agora trabalhavam todos os dias no areeiro, ao que Binz respondeu: “Mas isso é um escândalo, fazer uma mulher trabalhar num estado desses; ela tem de descansar no seu bloco.”» «Que diferença pode fazer o avanço da frente», observou Marie-Claude. Ainda regressavam camiões dos subcampos com prisioneiras exaustas e cadáveres para serem queimados. Nessa altura, espalhou-se o boato de que tinham sido colocadas cargas explosivas por todo o campo. Ouviram-se explosões na vizinhança, quando a SS fez ir pelos ares as suas instalações na zona. O número de prisioneiras na Lagerstrasse diminuía a olhos vistos. Em 15 de abril, Gemma La Guardia Gluck foi chamada à presença de Fritz Suhren e informada de que iria ser libertada. Em 19 de abril, um grupo de cinquenta prisioneiras — na sua maioria alemãs — foi reunido para ser executado a tiro. Hermine Salvini, a prisioneira secretária, preencheu os impressos e recorda-se de que eram na sua maioria criminosas e associais alemãs, assim como russas. «Uma delas era uma mulher com tifo, que foi trazida da Revier numa maca. A maior parte dessas prisioneiras já estava no campo de concentração há muitos anos.» Alguns dias depois, a própria Hermine e 500 alemãs privilegiadas marcharam até aos portões e foram libertadas. Grete Buber-Neumann era uma dessas alemãs. Antes de partir, Grete entregou uma mensagem à sua amiga Germaine Tillion com uma lista de prisioneiras mortas e pediu a Germaine que entregasse a lista aos Aliados se conseguisse sair do campo. Como Germaine e a sua amiga Anise eram ambas NN, não lhes fora permitido partir com as 299 francesas para a Suíça. No entanto, Grete tinha a esperança de que elas conseguissem sair; tinha ouvido dizer a contactos na administração do campo que vinham a caminho mais autocarros da Cruz Vermelha. Constava também nos escritórios que um jovem oficial alemão tinha chegado ao campo e que se desencadeara uma discussão entre ele e o comandante diante dos outros guardas.

O oficial visto a discutir com Suhren era Franz Göring, o homem de Walter Schellenberg. Göring era uma das quatro pessoas do círculo de Himmler que na noite de 21 de abril ficaram a saber de um terceiro encontro secreto entre o conde Bernadotte e Himmler, durante o qual este último acedera a libertar mais alguns milhares de prisioneiras de Ravensbrück e a entregá-las à Cruz Vermelha sueca. Logo a seguir ao encontro, Göring foi encarregado de transmitir a Suhren a ordem de começar a organizar as libertações, mas Suhren recusou obedecer. O encontro mais recente entre Himmler e Bernadotte realizou-se após contactos diplomáticos renovados entre funcionários suecos e os ajudantes de Himmler. Exteriormente, Himmler continuava a aparentar absoluta lealdade para com Hitler, mas as pessoas que o rodeavam tinham a esperança de que naqueles dias finais ele quebrasse finalmente os laços que o ligavam ao Führer. Com essa hipótese em mente, Schellenberg andava a tentar desesperadamente manter abertos os canais de comunicação com o Ocidente, dizendo mais uma vez aos Suecos que o Reichsführer SS em breve estaria disposto a negociar um acordo de paz separado. Schellenberg mantinha também os Suecos interessados, dando a entender que haveria mais concessões relativamente aos prisioneiros. Felix Kersten, entretanto, andava a contar uma história similar aos seus contactos em Estocolmo e gabava-se até de ter obtido uma promessa escrita pelo próprio Himmler de que suspenderia todas as evacuações futuras e poria fim às marchas da morte. Himmler garantira a Kersten — pelo menos, era o que o massagista afirmava — que, a partir daquele momento, os prisioneiros nos campos de concentração não seriam deslocados, mantendo-se prontos para uma «evacuação ordeira» pelos Aliados. E Kersten foi ainda mais longe: Himmler estava até disposto a ajudar os prisioneiros judeus. Kersten fez então uma proposta extraordinariamente surpreendente. Sugeriu aos Suecos que se organizasse um encontro entre o Reichsführer e um alto representante dos judeus para debater a libertação dos prisioneiros judeus.

Embora Kersten tenha afirmado mais tarde que a ideia de um encontro entre Himmler e um representante judeu foi sua, os Suecos compreenderam perfeitamente que Kersten não a teria sugerido sem uma forte indicação de Himmler de que deveria fazê-lo. Por consequência, desde o início a proposta foi levada a sério em Estocolmo. O motivo de Himmler para todas estas abordagens era, como sempre, claro: mesmo naquele momento, com o Terceiro Reich a ruir, ainda se agarrava à esperança extraordinária de que os Aliados pudessem vê-lo como um homem com quem poderiam negociar, depois de o Führer desaparecer. Nesta fase final, Himmler tinha muito a perder, mas ao fazer ainda mais concessões acalentava a ilusão de que tinha algo a ganhar. Por conseguinte, envolvia-se em manobras mais desesperadas do que nunca para negociar com um representante da raça que tentara aniquilar. A notícia dessas abordagens espalhou-se rapidamente de Estocolmo para líderes judeus no estrangeiro, que andavam a exercer pressões cada vez mais fortes sobre a Suécia para que se aproveitassem todas as oportunidades de libertar mais pessoas. Como as vias da Suíça para Ravensbrück estavam agora cortadas, o que significava que os Suíços não podiam voltar, os Franceses estavam também a pressionar ainda mais os Suecos para estes agirem, particularmente depois das cenas abismais descobertas em Belsen. As descrições de mulheres mortas em Belsen — muitas das quais tinham sido levadas de Ravensbrück para lá — contavam-se entre as mais perturbantes. Um médico britânico viu «Os corpos despidos de mulheres numa pilha com entre sessenta e oitenta metros de comprimento, trinta metros de largura e um metro e vinte de altura, à vista de crianças. As valetas estavam cheia de cadáveres. Os homens tinham ido para as valetas para morrer. Milhares estavam a morrer de tifo, de tuberculose e de disenteria.» Foram também comunicados casos de canibalismo. «Não havia carne nos corpos, mas o fígado, os rins e o coração tinham sido cortados.» Para os líderes dos Aliados, estes horrores mais recentes

causaram um enorme choque. Cria-se que pelo menos um milhão de prisioneiros estava ainda vivo nos campos de concentração de Hitler em abril de 1945, todos ameaçados de massacre nos últimos dias, e a maioria a morrer das mesmas formas horríveis que tinham já sido reveladas em Belsen e em Buchenwald. No entanto, para além de missões de comandos limitadas, não foi considerada nenhuma tentativa séria de salvar ou de proteger os prisioneiros restantes. O risco para as vidas das tropas dos Aliados era demasiado elevado e, militarmente, considerava-se impossível uma missão de salvamento. A decisão de Eisenhower de não fazer avançar os seus homens para lá do Elbe — tomada em grande medida para não envolver as tropas americanas na batalha final — significava que os campos de concentração estavam fora do alcance, até mesmo de operações aéreas. Os Aliados, mesmo depois de Belsen, também não puseram a hipótese de dar assistência a Bernadotte e continuavam a recusar salvo-conduto aos Autocarros Brancos. Esta atitude de distanciamento em relação a Estocolmo devia-se, em parte, ao receio de que Estaline suspeitasse da existência de acordos nas suas costas se ouvisse falar de colaborações dos Aliados com os Suecos, mas mais importante ainda era a necessidade de se manterem concentrados em vencer a guerra. Na sua última visita, o próprio Bernadotte foi alvo de um ataque de aviões dos Aliados e teve de saltar do seu veículo para uma valeta. Para os Autocarros Brancos no terreno, a situação era agora duplamente perigosa, porque os Alemães tinham começado a camuflar os seus próprios veículos com tinta branca e cruzes vermelhas. Um Autocarro Branco foi destruído por um caça britânico, matando um sueco e um dinamarquês. Quando os Suecos apresentaram um protesto aos Aliados, a resposta em Londres foi que as mortes eram «um infortúnio», mas que os aviões a voarem a 600 quilómetros por hora não conseguiam ver o símbolo da Cruz Vermelha. «É evidente que os Suecos não compreendem como é a guerra moderna.» O governo sueco, no entanto, não se deixava demover. Se, por

entre o caos crescente, se concretizassem as ofertas de libertação de mais prisioneiros, alguém teria de estar no terreno para as aceitar, e ninguém tinha um perfil mais adequado para o fazer do que Bernadotte. Por consequência, ficou acordada uma estratégia dual em Estocolmo: em primeiro lugar, seguir o plano de Kersten de um encontro entre Himmler e um líder judeu e, em segundo lugar, enviar Bernadotte de novo à Alemanha para procurar Himmler nas ruínas em chamas de Berlim. Segundo as memórias de Bernadotte, ele partiu de Estocolmo naquela ocasião com a intenção de pela primeira vez desde o início da sua missão, pressionar Himmler para ele libertar prisioneiros não escandinavos, entre eles judeus não escandinavos. Nem os registos suecos nem as memórias de Bernadotte esclarecem como foram decididas as prioridades da missão do conde sueco. No entanto, sabemos que organizações judaicas, bem como organizações francesas e outras, andavam a pressionar cada vez mais os Suecos para que eles alargassem o âmbito da sua operação de salvamento. Bernadotte dirigia-se para um país num caos total, onde as vias de comunicação se encontravam praticamente todas cortadas e a situação no terreno mudava de hora a hora. Por entre aqueles acontecimentos caóticos, era claro para Bernadotte que, fosse qual fosse a sua incumbência, o seu único objetivo realista era encontrar Himmler nos escombros e em seguida lançar os dados o melhor que pudesse e obter a libertação do maior número possível de prisioneiros. Os Russos estavam a dias de Berlim e aquele seria com certeza o seu último encontro com o Reichsführer SS. Como era já quase impossível chegar de avião à capital alemã, Bernadotte apanhou um comboio noturno para Malmö e daí o ferry para Copenhaga e dirigiu-se para a base da Cruz Vermelha sueca na fronteira da Dinamarca com a Alemanha. Aí, fez uma paragem para os chefes da missão dos Autocarros Brancos o porem a par da situação, sendo informado de que todas as ligações com a parte sul da Alemanha estavam já cortadas. Na sua última viagem para sul, para Theresienstadt, em 15 de abril, os autocarros suecos tinham

salvado 450 judeus dinamarqueses, mas só por um triz conseguiram voltar, porque as frentes avançavam a grande velocidade. Naquela altura, os 4200 escandinavos libertados ao longo das últimas seis semanas iriam ser transportados para o outro lado da fronteira por uma armada de veículos enviados pela Dinamarca, «ao estilo de Dunquerque», constituída por noventa e quatro autocarros, ambulâncias, motorizadas e camiões, assim como dez camiões de peixe de dez toneladas. Depois de completarem esta evacuação, os Suecos estavam a planear fazer as malas e ir para casa, já que a possibilidade de mais operações de salvamento parecia remota. Nem mesmo a estrada para leste, para Ravensbrück, se manteria aberta por muito mais tempo. Bernadotte partiu imediatamente para Berlim, chegando cedo no dia 20 de abril. Houve uma pausa nos bombardeamentos e, enquanto era conduzido até à legação sueca, o conde pôde ver uma cidade silenciosa e em cinzas. Abrigando-se na cave da legação, estabeleceu contacto com Schellenberg e solicitou um encontro urgente com Himmler, mas não havia maneira de encontrar o Reichsführer. Ele estava de facto numa receção no bunker do Führer a dar os parabéns a Hitler pelo seu aniversário, juntamente com Göring e Goebbels e outros elementos do círculo interno. Bernadotte aguardou. Houve mais ataques aéreos. A festa de anos acabou, mas agora Himmler e os outros estavam embrenhados em conferência com o Führer, debatendo o que deveria fazer-se quando todas as vias terrestres para sul fossem cortadas, o que aconteceria a qualquer momento. Hitler devia partir enquanto ainda podia, disseram os que estavam ali com ele, mas ele continuava a recusar. Bernadotte, ainda a aguardar, recebeu outra mensagem de Schellenberg: Himmler recebê-lo-ia nessa noite em Hohenlychen. Ele meteu-se no automóvel da legação e dirigiu-se para norte. A viagem foi lenta, com refugiados a fugirem para oeste e a encherem a estrada. Ao fim de cerca de duas horas, Bernadotte passou mais uma vez

perto de Ravensbrück. Com as armas russas agora claramente audíveis e Katyushas a iluminarem o céu para leste, deve ter-lhe ocorrido que o campo de concentração de mulheres era agora o mais vulnerável de todos. Sabia que era provável que quaisquer novas concessões a obter de Himmler se centrassem em Ravensbrück, em grande medida porque era agora praticamente o único campo a que os seus Autocarros Brancos ainda poderiam chegar. As operações de salvamento exequíveis nos campos de concentração de Mauthausen ou de Theresienstadt, ambos ainda não libertados, teriam de ser levadas a cabo pelos Suíços, a sul. Mas é difícil dizer o que Bernadotte sentia que poderia conseguir quando se dirigia ao encontro de Himmler pela terceira vez: os indícios do próprio Bernadotte são contraditórios. O facto de durante a sua paragem na fronteira dinamarquesa ter autorizado vários dos Autocarros Brancos a dirigirem-se para a sua base na Suécia sugere que não devia ter grandes esperanças. Diria mais tarde que pressentiu que se avizinhava algo significativo, mas «nada tão importante como o que aconteceu». Em Hohenlychen, não havia ainda sinal de Himmler. Em vez dele, mais uma vez Karl Gebhardt deu as boas-vindas a Bernadotte. Os dois jantaram juntos, uma ocasião que Bernadotte descreveria mais tarde como perfeitamente agradável, dando a entender que no momento em que escrevia (um mês depois do fim da guerra) continuava a não fazer ideia dos crimes do próprio Gebhardt. Depois do jantar, como Himmler continuava sem aparecer, Gebhardt conduziu Bernadotte numa visita à clínica, que estava agora apinhada de militares feridos vindos da frente leste. «O professor Gebhardt até me convidou a assistir à operação de alguns soldados alemães», escreveu Bernadotte. Chegou em seguida uma mensagem avisando que Himmler estava atrasado e que só chegaria por volta das seis da manhã. Por isso, por entre as sirenes de alerta de ataques aéreos, Bernadotte foi dormir. Depois de sair da festa de anos do Führer e antes de se encontrar

com Bernadotte em Hohenlychen, Himmler decidiu parar para um outro encontro numa propriedade perto de Hohenlychen chamada Gut Hartzwalde. Era a propriedade que tinha dado a Felix Kersten, o seu massagista. Ali, Kersten estava também à espera para falar com o Reichsführer e lhe apresentar uma outra possível ponte para os Aliados Ocidentais, um judeu alemão chamado Norbert Masur, que era o representante na Suécia da organização World Jewish Congress. Nos últimos dias, as negociações paralelas envolvendo Kersten como intermediário tinham-se concretizado. Himmler deu luz verde a Kersten para combinar um encontro em Gut Hartzwalde entre ele e um interlocutor judeu cuja segurança pessoal durante a sua permanência na Alemanha o próprio Reichsführer SS garantiria. Himmler convencera até Kersten de que estava «disposto a enterrar o machado de guerra com os judeus». Enquanto esperava por Himmler, Masur falou com Schellenberg e com outros do séquito de Himmler, achando «estes cavalheiros», como lhes chamou, «corteses e dispostos a ajudar»; ficou particularmente bem impressionado com Franz Göring, o assistente de Schellenberg, que era «muito eficiente». Masur formou a opinião de que os homens que trabalhavam para Himmler tentariam ajudar a implementar qualquer acordo a que se chegasse. «Somos decididamente de opinião que eles não cumprirão possíveis ordens de Himmler relativamente a mais atos de violência», escreveu Masur. «Declaram que compreendem bem que todos os ultrajes — mesmo contra os judeus — são um crime contra a futura Alemanha.» Eram também, observou ele, «homens jovens que queriam viver» e que, por consequência, se comportariam de acordo com esse desejo. Os comentários de Masur estão contidos num relatório do seu encontro com Himmler que ele escreveu para o governo sueco no dia seguinte e que, por conseguinte, são notavelmente frescos e quase simultâneos. Às duas da manhã, Himmler apareceu, «impecavelmente vestido, com um uniforme imaculado e com condecorações exibidas

proeminentemente». Os seus modos eram «calmos e controlados». Masur sentiu-se aliviado por ser cumprimentado com um «Guten Tag» em vez de «Heil Hitler», e o pequeno grupo sentou-se para tomar um chá e comer uns bolos, trazidos da Suécia. Himmler lançou-se então num longo monólogo, passando em revista a história da Alemanha e justificando a política de «expulsar os judeus», embora, ao que parece, não tenha abordado a questão do seu extermínio. A certa altura, atacou as «mentiras» contadas sobre Belsen. A imprensa estrangeira andava a arrastar a Alemanha pela lama, queixou-se; os crematórios em Belsen tinham sido construídos para ajudar a dizimar epidemias, não para cometer assassínios em massa. Masur escolheu o seu momento para entregar a Himmler uma lista de nomes de prisioneiros específicos cuja libertação era exigida por destacadas famílias judias, mas que, devia saber, estavam já provavelmente mortos ou não seriam encontrados no caos dos campos de concentração. Masur apelou à suspensão de mais expulsões de judeus dos campos de concentração e a que fosse dado um bom tratamento aos que ainda restavam. Em resposta, como Masur relatou, Himmler disse que «mais nenhum judeu seria morto» e que «todas as evacuações seriam suspensas». Himmler fez então uma outra oferta específica — uma oferta com que ninguém contava: propôs a libertação de mil judias de Ravensbrück, «desde que fossem imediatamente levadas pela Cruz Vermelha». A proposta apanhou Masur de surpresa. A palavra de Himmler era, claro, «absolutamente não fiável», comentou no seu relatório no dia seguinte, e ele estava bem ciente de que «no último momento poderia haver uma ordem para o assassínio em massa de todos os judeus». Masur acrescentou: «O perigo para os não-judeus é consideravelmente menor e não é provável que qualquer líder nazi se atreva a dar uma ordem de assassínio em massa de não-judeus que pertençam a qualquer um dos países inimigos da Alemanha.» Masur pensava que era possível que Himmler «realmente quisesse fazer alguma coisa no último momento, e por consequência penso

que dará as ordens prometidas». Quanto à oferta de poupar a vida de mil judias de Ravensbrück, Masur tinha razões especiais para pensar que ela se concretizaria, porque o «eficiente» Franz Göring já lhe tinha dito que aconteceria. Göring estava já a «trabalhar nos preparativos», escreveu Masur, e as mulheres poderiam chegar à Suécia dentro de três dias. Himmler partiu de Gut Hartzwalde pouco antes do amanhecer, dizendo ao seu motorista que o levasse a Hohenlychen, onde às seis da manhã se sentou a tomar o pequeno-almoço com Bernadotte. Segundo o conde sueco, Himmler parecia agora «muito cansado e desgastado». Não conseguia parar quieto e estava sempre «a bater nos dentes» — um sinal seguro, ou assim lho tinha dito Schellenberg, de que estava nervoso. Mais uma vez, a conversa centrou-se na libertação de prisioneiros. Depois de Bernadotte procurar obter mais concessões relativamente aos prisioneiros escandinavos, Ravensbrück voltou a ser tópico da conversa. Bernadotte apresentou a sua proposta para a libertação de mulheres francesas e Himmler não só acedeu de imediato como disse a Bernadotte que ele podia «levar todas as nacionalidades». Himmler tinha acabado de aumentar maciçamente a oferta que fizera algumas horas antes a Masur. Bernadotte podia enviar os seus Autocarros Brancos para recolherem todas as prisioneiros de Ravensbrück restantes — judias e não judias — declarou. Tudo isso era possível, disse Himmler, simplesmente «porque o campo estava prestes a ser evacuado». Himmler partiu e Bernadotte dirigiu-se para o quartel-general da sua missão em Friedrichsruhe, para tentar evitar que os Autocarros Brancos partissem para a Suécia. A missão sueca estava prestes a tornar-se a maior operação de salvamento de prisioneiros da Segunda Guerra Mundial.

CAPÍTULO 40 AUTOCARROS BRANCOS Foi Franz Göring, não Bernadotte, quem primeiro entregou a mensagem aos condutores suecos. Contactara os homens da Gestapo a bordo dos autocarros, quando estes se preparavam para atravessar a fronteira para a Dinamarca, ordenando-lhes que dessem meia-volta e se dirigissem para Ravensbrück, porque havia mais trabalho a fazer. Göring, ainda em Berlim, partiu então ele próprio para o campo de concentração. Segundo o seu depoimento, prestado aos serviços secretos britânicos depois da guerra, partiu de Berlim «no último minuto» no fim da tarde de 21 de abril, quando os Russos se preparavam para tomar a cidade. Na sua viagem para norte, chegaram-lhe novas instruções de Schellenberg, de que à chegada a Ravensbrück deveria «informar o comandante do campo da decisão de Himmler e fazer os preparativos para a remoção das mulheres». Schellenberg disse a Göring que «as transferências deveriam prosseguir à maior escala possível, mesmo que haja ordens contrárias». Göring descobriria que eram as ordens de Hitler que Suhren estava a cumprir. Por volta do meio-dia de 12 de abril, Göring chegou aos portões de Ravensbrück. Seguiu-se imediatamente uma discussão «bastante longa» durante a qual Suhren aparentou «uma atitude negativa relativamente à libertação das detidas» e se recusou até a dizer-lhe quantas mulheres se encontravam no campo, afirmando que tinha «destruído os documentos e os registos por ordem do Führer». Como ficara bem claro que as prisioneiras alemãs, juntamente com as italianas, as russas e outras prisioneiras da Europa de Leste não estavam incluídas no acordo de salvamento sueco, Göring preocupava-se menos com essas. Mas para planear os transportes precisava de saber exatamente quantas prisioneiras de países

ocidentais havia, e Suhren recusava-se a dizer-lho. O comandante era vago quanto a números, e «evitava a questão», acabando por dizer que havia cerca de 9000 polacas, 1500 francesas, belgas e holandesas e cerca de 3000 «judias», embora Suhren soubesse que havia muitas mais. Suhren foi particularmente evasivo quando lhe perguntaram por duas mulheres francesas, Madame Buteau e Madame Del Marmol, ambas judias que constavam da lista especial de Masur. «Quando eu expliquei que Himmler estava particularmente interessado nessas pessoas e já tinha ordenado a sua libertação, Suhren ficou muito nervoso e ao fim de outra meia hora disse-me que ambas tinham morrido no campo de concentração algumas semanas antes.» Göring tentou fazer os preparativos para a operação de salvamento, mas o comandante recusou-se a cooperar. Quando Göring lhe perguntou porque não cooperava, Suhren respondeu que estava a obedecer a ordens do Führer de não permitir que as mulheres saíssem do campo de concentração. Exasperado, Göring conseguiu contactar Karl Brandt, o secretário pessoal de Himmler, e pediu a intervenção de Himmler. Pouco tempo depois, Brandt retribuiu a chamada, dizendo a Suhren que as ordens de Himmler eram para libertar as prisioneiras. Suhren virou-se então para Göring. «Suhren disse-me, cá entre nós, que já não sabia em que pé estavam as coisas, porque tinha recebido ordem expressa do Führer, através de Kaltenbrunner, de manter as prisioneiras no campo de concentração e de, à chegada das tropas inimigas, as liquidar a todas.» Suhren «ficou muito indeciso» e confidenciou a Göring, «entre outras coisas», que se defrontava com um outro dilema. Também no campo de concentração, disse ele, encontrava-se um grupo especial de prisioneiras que ele tinha ordens expressas de matar. As mulheres — cinquenta e quatro polacas e dezassete francesas — tinham sido «objeto de experiências». Suhren estava a referir-se às coelhas, embora não se saiba quem eram as francesas a que se referiu. Karl Gebhardt dera ordem para matar as coelhas algumas semanas antes,

mas Suhren ainda não a cumprira. Göring perguntou que tipo de experiências se tratava, e Suhren disse-lhe que as mulheres tinham sido sujeitas a experiências nos ossos e nos músculos e tinham sido injetadas com bactérias. Göring diria mais tarde que mal conseguiu acreditar. «Em seguida, mandei que me trouxessem duas mulheres para obter provas daquele caso.» Depois de ver as pernas com cicatrizes de duas mulheres — Jadwiga Kamińska e Zofia Baj —, disse a Suhren que ele não deveria, em nenhuma circunstância, matá-las «até estar disponível uma decisão de Himmler». Göring sustentaria mais tarde que não fazia ideia de que tinha sido o próprio Himmler a ordenar as experiências. De qualquer modo, depois de ver as mulheres, Göring telefonou de novo para o gabinete de Himmler, tentando obter a decisão de, «de modo nenhum essas mulheres serem liquidadas, porque outras que já tinham sido libertadas tinham conhecimento das experiências», com o que queria dizer que o mundo já estava a par do sucedido. Göring ficara a sabê-lo porque Jadwiga lho disse na cara. Jadwiga e Zofia transmitiram mais tarde a sua versão deste curioso encontro às outras coelhas, como recordou Wanda Wojtasik: Ao entrarem no gabinete de Suhren, viram um estranho vestido à paisana com uma pasta cheia de documentos. Suhren segredou qualquer coisa ao estranho e apontou para as pernas delas, dizendo que aquelas duas «não estão muito mal, mas as outras estão em muito pior forma». O estranho não disse uma palavra e limitou-se a olhar para as pernas delas. A seguir, sempre audaz, Jadwiga falou, dizendo aos dois oficiais da SS que «todo o mundo sabia das experiências», e recordou a Suhren os embrulhos que tinham chegado para elas do mundo exterior — as «bênçãos do Papa». E atreveu-se a dizer que a guerra estava praticamente acabada e que se nos matassem agora as consequências para eles seriam catastróficas...

Ao ouvir aquilo, Suhren pareceu incomodado e murmurou alguma coisa sobre «ordens de Berlim» e «chegar a um acordo» e mandouas sair. Pouco depois, Suhren, vendo Jadwiga na Lagerstrasse, deu-lhe a sua «palavra de honra» de que nada lhes aconteceria, e, «por uma

vez, acreditámos nele e começámos a rastejar para fora dos nossos buracos». De facto, o pedido de Göring de que elas fossem poupadas tinha sido deferido e Himmler rescindira a ordem de as matar a tiro. As coelhas polacas, em tempos peças de carne para os carniceiros de Himmler, eram subitamente um isco valioso a oferecer ao Ocidente. Por todo o campo de concentração, havia agora mulheres a rastejarem para fora de buracos, porque tinham ouvido dizer que vinham a caminho mais Autocarros Brancos. Quando Göring estava a falar com Suhren, uma caravana de veículos de salvamento constituída por quinze ambulâncias dinamarquesas — os Dinamarqueses tinham-se oferecido para suplementar a missão — apareceu aos portões de Ravensbrück. As ambulâncias tinham capacidade para levar no máximo 115 mulheres, e Hans Arnoldssen, o médico sueco que chefiava a caravana, recebera instruções para levar primeiro as doentes e voltar para levar mais prisioneiras. Para espanto de toda a gente, Suhren saiu do seu gabinete a largas passadas e disse a Arnoldssen que podia levar «imediatamente» todas as prisioneiras ocidentais no campo de concentração — restavam cerca de 15 000 mulheres. No decurso da sua conversa com Göring, Suhren obviamente mudou de ideias quanto às libertações, influenciado sem dúvida pela notícia de que o Exército Vermelho estava já a cercar Berlim. Agora, os Suecos não sabiam o que fazer, já que, mesmo com todos os veículos que possuíam, não poderiam de modo nenhum remover tantas mulheres imediatamente. Göring disse que tentaria requisitar um comboio, mas ninguém acreditava que ele pudesse fazê-lo, e, de qualquer modo, avisou Suhren, os Russos tinham agora cortado as vias para Berlim e poderiam chegar ao campo «numa questão de horas». Por agora, tudo o que Arnoldssen podia fazer era encher as primeiras quinze ambulâncias, solicitando que lhe entregassem primeiro as doentes. Mal deu ordens para que os veículos entrassem no campo de concentração, instalou-se o caos, com as mulheres

literalmente a tomarem de assalto os veículos. «Estavam macilentas, magras e com um ar cansado», observou, «mas a maioria conseguia pelo menos andar». Os boatos de que as doentes poderiam ser levadas primeiro desta vez eram vistos com receio no Bloco 10, porque tal normalmente significava um transporte para a câmara de gás. Na manhã em que as ambulâncias chegaram, Erika Buchmann, a Blockova, recebeu uma lista de vinte e quatro nomes de prisioneiras, todas elas gravemente doentes, e foi-lhe dito que as trouxesse para o exterior. Em vez disso, Erika escondeu o maior número possível no bloco ou disse que tinham morrido, o que reduziu a lista para dezassete. As dezassete foram conduzidas para o edifício da administração do campo de concentração e mandadas esperar, o que não era usual, e por isso Erika atreveu-se a ter a esperança de que elas fossem afinal salvas, especialmente porque nessa altura já tinha visto as prisioneiras doentes de blocos normais da Revier serem levadas para as ambulâncias. No entanto, quando a última ambulância arrancou, as dezassete mulheres do Bloco 10 foram deixadas ali. Pouco depois, recordou Erika, foram conduzidas de volta ao bloco. Voltaram enregeladas e todas molhadas da chuva, mas pelo menos voltaram. Agora todo o bloco tinha a esperança de que aquilo fosse um sinal de que realmente iriam deixá-las ir para casa da próxima vez, e as própria mulheres ficaram convencidas disso. Nessa noite, as nossas doentes oscilavam entre as maiores esperanças e o maior temor, e nós com elas. Todas compreendíamos agora que o campo inteiro tinha de ser evacuado antes da chegada do Exército Vermelho. Algumas das alemãs já tinham partido a pé. A Cruz Vermelha sueca já tinha levado algumas das doentes. Levariam as nossas?

Ao amanhecer do dia seguinte, 23 de abril, mais prisioneiras foram preparadas para o transporte sueco seguinte e as mesmas dezassete mulheres foram levadas para se perfilarem à porta do edifício da administração. Depois de ficarem ao frio na noite anterior, muitas delas estavam agora às portas da morte, disse Erika, mas não todas. Edith Glodschey, uma alemã de Königsberg, era uma das mais fortes — «Depois de tossir e cuspir sangue, punha-se outra vez muito

direita.» A cigana alemã chamada Pfaus sofria de pneumotórax, mas estava de boa saúde no geral. Marta Meseberg, uma alemã, encontrava-se em bom estado de saúde, «e só estava connosco há dois dias». Silvie Cernetic, uma resistente jugoslava, estava também «bastante forte e bem». Quando o grupo saiu do bloco pela segunda vez, a prisioneira enfermeira Nadja Bunjac acompanhou-o, o que foi tomado como mais um sinal de esperança. Amanhecia quando saíram do bloco, mas ao fim de três horas Nadja regressou, sozinha. Estava a chorar de desespero. Disse-nos que tinha tido de esperar com as pacientes todo aquele tempo ao frio terrível em frente dos escritórios. As doentes estavam deitadas no chão com os seus casacos finos. Chovia. Elas encontravam-se no pior estado que se possa imaginar. Quando o camião chegou por fim, os homens da SS que vinham nele não fizeram qualquer tentativa de disfarçar o facto de que iam assassiná-las a todas. A Nadja recebeu ordem de levar cada uma das doentes em braços para o camião. Os guardas ordenaram-lhe que as arrastasse pelo chão para ser mais fácil. E quando, fora de si, ela gritou: «Elas são seres humanos, e seres humanos doentes», os guardas limitaram-se a rir.

Erika sentiu-se então estúpida por ter sequer pensado que alguém do Bloco 10 ou dos outros blocos de doentes pudesse ser salvo. Nesse dia, Marie-Claude Vaillant-Couturier escreveu mais uma vez no seu diário: «Hoje, na Revier, selecionaram mulheres francesas doentes para um Transporte da Cruz Vermelha e as mulheres com tuberculose foram selecionadas para a câmara de gás. Foram levadas dezasseis do Bloco 10.» O facto de Marie-Claude contar dezasseis e não dezassete, a contagem de Erika, significava que uma das mulheres tinha morrido antes de chegar o camião da câmara de gás. Como era esperado, as quinze ambulâncias foram rapidamente seguidas por uma segunda caravana maior. Depois de supervisionar o regresso das ambulâncias para a segurança de Lübeck — agora a base sueca —, Hans Arnoldssen contactou Bernadotte por telefone, pedindo mais veículos com urgência e avisando que o tempo se estava rapidamente a esgotar. Uma fila de camiões e autocarros foi

organizada a toda a pressa e partiu ao amanhecer. A urgência redobrara com a notícia de que a evacuação de Sachsenhausen, na periferia norte de Berlim, se tinha iniciado. A promessa de Himmler de suspender as evacuações era uma mentira.46 Tal como fizera em janeiro, quando começou a marcha da morte em Auschwitz, Rudolf Höss foi dar uma vista de olhos às «hordas esfomeadas» que se arrastavam para fora dos portões de Sachsenhausen em mais uma «louca evacuação», como diria nas suas memórias do cárcere. Os 40 000 homens teriam de percorrer a pé 160 quilómetros para oeste, sofrendo com a fome e a morte. «Pelo menos agora o tempo estava mais quente e mais seco», observou, «mas estes prisioneiros deparavam-se com a ameaça constante de aviões dos Aliados a voarem a baixa altitude, que “disparavam sobre a estrada”». Entre os prisioneiros da marcha da morte de Sachsenhausen encontravam-se pelo menos entre 2000 e 3000 mulheres, enviadas para esse campo nas últimas semanas, muitas delas vindas de Ravensbrück. Para prevenir uma marcha da morte similar em Ravensbrück, pediu-se a um delegado do CICV que se dirigisse ao campo de concentração e solicitasse formalmente que Ravensbrück fosse passado imediatamente para o controlo da Cruz Vermelha Internacional. Ele não pôde aproximar-se. A norte de Berlim, o seu veículo foi rodeado por uma torrente de refugiados, camiões, bicicletas, animais e armas de campanha em fuga dos Russos. Viu-se forçado a dar meia-volta e tentar encontrar outro caminho, mas sabia que, provavelmente, era demasiado tarde. No campo, as mulheres esperavam por mais Autocarros Brancos dos Suecos. Jeanne Bommezjin de Rochemont, uma holandesa, vivia há semanas num pequeno esconderijo num sótão para evitar a seleção para a câmara de gás. Sentiu então suficiente confiança para sair. No seu diário, escreveu: A Cruz Vermelha vem aí para nos levar embora. As poucas holandesas e francesas que ainda restam estão loucas de excitação. Mas eu já não acredito em

boatos. É muito mais provável que acredite noutro boato, de que eles estão prestes a matar-nos a todas a tiro, e que, como o campo está rodeado pelos Aliados, o abastecimento de comida está prestes a ser cortado. Se isso for verdade, não poderemos fazer nada.

Por todo o campo, o pessoal da SS andava mais atarefado do que nunca, a limpar, a arrumar, a escovar, a pintar e a queimar, aprontando tudo para a chegada do Exército Vermelho. Tudo tinha de parecer normal antes de os Russos chegarem. Os cadáveres foram levados dos balneários, da morgue e das pilhas por todo o campo para serem queimados em valas, já que o crematório era demasiado lento. No Bloco 10, com as doentes a serem selecionadas para a câmara de gás, as guardas substituíram as vidraças partidas que durante todo o inverno tinham deixado passar o vento, a chuva e a neve, contribuindo para mais mortes de doentes. No bunker, o Bock da punição corporal foi desmantelado e queimado. As prisioneiras detidas nas celas privilegiadas como reféns úteis foram agora consideradas empecilhos inúteis e mortas a tiro. Odette Sansom (conhecida pelo apelido Churchill) continuava ainda numa cela privilegiada e observava as outras prisioneiras a serem levadas, sabendo que a sua vez não deveria tardar. Como claramente não parecia pôr-se a questão de as prisioneiras britânicas serem recolhidas pelos Suecos — nem um só nome de britânicos figurava nas listas de salvamento —, Mary Lindell encarregou-se de descobrir porquê. Depois de elaborar uma lista de mulheres britânicas, dirigiuse ao gabinete de Suhren para lhe perguntar se elas iriam ser incluídas nos transportes de salvamento. Suhren voltou-se para Binz e disse, enfadado: «Die Engländerin! Apesar da estada dela aqui, mantém-se tão arrogante como quando chegou.» «Com que autoridade continua a manter-nos aqui?», perguntou Mary. «Dá-se conta de que eu ainda posso mandá-la matar a tiro?», disse Suhren, mas antes de Mary sair do seu gabinete mudou de atitude e pediu-lhe que lhe entregasse a lista das britânicas. Disse-lhe

que as mulheres deveriam todas fazer fila junto ao gabinete de Pflaum na manhã seguinte e ele assegurar-se-ia de que receberiam passes para a sua libertação. Mary contou aquela conversa a Yvonne Baseden. Yvonne ainda se encontrava na Revier, destroçada pela tuberculose e demasiado fraca para pensar no que a oferta de Suhren poderia querer dizer. «Nessa altura, aceitava a ideia de que, provavelmente, morreria», disse ela. Algumas horas depois da conversa de Mary com Suhren, a chefe da polícia do campo, Elisabeth Thury, foi à Revier avisar Mary de que a verdadeira intenção de Suhren era matar as britânicas. Se ela as levasse no dia seguinte ao gabinete de Pflaum, como Suhren sugerira, seriam mortas a tiro. A fonte dessa informação era Micky Poirier, a francesa da Alsácia que trabalhava no escritório de Pflaum. Em vez disso, aconselhou Thury, Mary deveria confrontar Suhren novamente. Não tinha nada a perder, e Suhren, como todos os outros naquele momento, estava interessado em salvar a sua própria pele. Por isso, Mary voltou a entrar no gabinete do comandante. «Ach so, die Engländerin!», disse Suhren ao vê-la entrar. Mary retorquiu: «Bem? Em Inglaterra a nossa palavra é para se cumprir. Obviamente, têm um código de conduta diferente na Alemanha.» Suhren, vendo que ela tinha ficado a saber quais eram as suas intenções, pediu desculpa. «Lamento», disse, «mas vieram ordens de Berlim de que, afinal, não irão ser libertadas.» «Estou a ver», disse Mary. «Mas o que tenciona fazer connosco?» Suhren respondeu que as inglesas permaneceriam no campo, embora não dissesse nada sobre a intenção de as matar a tiro, dando antes a entender que seriam todas detidas como reféns, tal como Odette. Dirigiu-se para um armário grande no seu gabinete, abriu-o e mostrou a Mary pilhas de comida enlatada, obviamente roubada de embrulhos da Cruz Vermelha canadiana. «Para lhe demonstrar a minha boa-fé, dou-lhe permissão de levar esta comida para as britânicas e as americanas.» «Mas como é que espera que eu leve tantas latas?», perguntou Mary. Suhren fez um sinal a Binz, que saiu do gabinete e regressou

com várias polícias do campo trazendo grandes cestos da roupa, assim como polícias para as escoltarem, para manter à distância as mulheres esfomeadas que naquela fase andavam a vaguear pelo campo «como bestas selvagens». Antes de as mulheres partirem com a comida, Mary tirou várias latas e deixou-as na secretária de Suhren, dizendo: «Talvez o senhor venha a precisar de comida daqui a pouco tempo.» Ele pegou-lhe na mão e beijou-lha. «Isto não é para si. É para a Inglaterra.» Quando chegou a caravana seguinte da Cruz Vermelha, em 23 de abril, a Oberschwester Elisabeth Marschall exibia já um emblema da Cruz Vermelha no seu uniforme. As prisioneiras viam que havia tantos camiões e autocarros daquela vez que, com certeza, seria possível levar centenas de pessoas — algumas diziam até milhares. A holandesa Jeanne Bommezjin de Rochemont recebeu ordem de formar fila com o resto do seu bloco no corredor ao lado da Revier. A Blockova segredou-lhes que iam embora — iam partir do campo — e que, provavelmente, seriam libertadas. Jean escreveu no seu diário: Isto parece demasiado bom para ser verdade, e nós não acreditamos, não nos deixamos enganar. Depois de esperarmos algum tempo, aparecem o homem da SS, Hans Pflaum, e uma guarda. Sentam-se a uma mesa e chamam os nossos números da lista que têm à sua frente. Quando a pessoa cujo número foi chamado avança, a guarda arranca-lhe o número e o triângulo da manga. Pela primeira vez desde que chegámos estamos ali, embora ainda com os farrapos da prisão, como indivíduos e não como números.

De chicote na mão, Pflaum mandou as mulheres avançarem. «Um desfile decrépito de criaturas que mal pareciam seres humanos», escreveu Jean. «Mas para onde é que vamos?» Aterrorizadas, foram conduzidas não para os portões, mas para os bosques. Ao fim de cerca de quinze minutos, as mulheres compreenderam que estavam a dirigir-se para o campo de concentração dos homens, que se encontrava quase deserto, e o bloco para o qual foram levadas estava imundo, fétido e degradado. Simone Gournay, uma francesa, fazia também parte deste grupo e viu aparecerem «homens como fantasmas», que tentaram falar com as mulheres, mas foram

afastados à pancada pelos guardas da SS. Jeanne Bommezjin de Rochemont viu «Uma longa fila de homens, ou o que devem ter sido homens em tempos, porque agora eles são esqueletos vivos, um grupo macabro. Saúdam-nos com o olhar. Por um momento, algo como alegria ilumina-lhes as feições, alegria perante a visão de mártires como eles, as suas irmãs no sofrimento». Nessa mesma tarde, um grupo dessas prisioneiras foi levado de volta ao campo das mulheres. Jean não integrava esse grupo, mas a francesa Simone Gournay, sim. «Às quatro da manhã, marchámos em filas de cinco para a saída, a apanhar pancada e pontapés», disse Simone. Os SS agora pareciam histéricos. Berravam e davam-nos pontapés. Mesmo antes do portão [do campo dos homens], arrancaram-nos tudo o que ainda levávamos — pequenos sacos que tínhamos feito com recordações das nossas amigas que tinham morrido. Passámos por uma pilha de cadáveres. Éramos uma fila miserável de mulheres. Não pensávamos na libertação. Não pensávamos em nada. Estávamos em transe.

Voltaram a entrar no campo das mulheres e ficaram perfiladas junto aos portões à espera. Foi então que avistaram os homens altos e louros vestidos de cinzento e verde. Mandaram as mulheres marcharem para fora, e esses homens tentaram ajudá-las, «mas nós não compreendíamos e empurrámo-los». Simone demorou algum tempo a perceber quem eram aqueles homens e que o emblema azul e amarelo que traziam no ombro eram as cores da Suécia. Atarantada, entrou para um dos autocarros. «Partimos. À luz do dia, víamos a paisagem campestre. Vimos filas de carroças e pessoas com caixotes e com sacos. Era o êxodo alemão. Uma vez, tivemos de parar por causa do bombardeamento, mas ninguém ficou ferido. Depois chegámos a Lübeck e parámos para fazer um piquenique na relva. Foi a minha primeira sensação de liberdade.» Os condutores suecos também se lembravam do piquenique das mulheres. Um deles recordou: «Quando parámos, as mulheres andaram a correr à volta à procura de ervas verdes, que arrancaram

e comeram. As suas favoritas eram folhas de dente-de-leão, que tinham começado a despontar naquele tempo de primavera. Com galhos, escavavam a planta arrancando-a pela raiz, sacudiam a terra e comiam-na.» Os condutores também se recordavam de que durante o «piquenique» as mulheres lhes falaram sobre o campo de concentração e pela primeira vez a equipa de salvamento ouviu falar da câmara de gás e ficou a saber que o extermínio por gás ainda prosseguia, reforçando a sua determinação de voltar ao campo de concentração logo que pudessem. Ao mesmo tempo, chegou ao quartel-general em Lübeck a notícia de que Franz Göring estava em negociações com o Reichsbahn para requisitar um comboio. Quando os Autocarros Brancos seguintes apareceram aos portões do campo de concentração, desencadeou-se uma confusão sobre quem partiria dessa vez. Uma grande caravana de veículos com vários condutores canadianos e suecos, chefiada por um dinamarquês chamado Gösta Hallqvist, chegou em 24 de abril e partiu cedo no dia seguinte. Entre os que se encontravam a bordo estava Jeanne Bommezjin de Rochemont, a holandesa. Jean e a sua amiga Toto não dormiram na noite anterior e passaram o tempo de pé à porta da sua cabana fétida, conversando ao ar da noite. «Estamos nervosas, muito nervosas, mesmo que façamos de conta que não», escreveu ela. «Como duas crianças, brincamos ao nosso joguinho fantástico de faz de conta, como é que será voltar para casa, quem estará lá para nos receber, onde iremos. Voltámos para dentro da cabana, que é horrível, o cheiro avassalador.» À hora do almoço, as mulheres ainda estavam no campo e um par de panelas com sopa de nabos aguada e pão foram servidos. «E nós esperamos, perguntando-nos o que é que nos vai acontecer.» Por volta das cinco da tarde, ouvem um assobio e dizem-lhes para avançarem. Partimos do campo e vemo-nos a avançar na direção das câmaras de gás, e para

muitas de nós isso é mais do que é possível suportar. Algumas ficam com uma espécie de ataque nervoso, e nós temos de as acalmar e de as arrastar connosco na coluna. São só alguns minutos, mas a tensão dura horas, e já passámos para lá dos fornos de gás. Continuamos, sem nos atrevermos a pensar na liberdade... porque, se não acontecer depois de contarmos com ela, estamos perdidas. Avançamos e vemos as traseiras do campo — ali estão os armazéns, ali está a Siemens. Algumas das prisioneiras aparecem às janelas e por trás do arame farpado, olhando para nós. Pelos seus rostos, vejo que elas estão a perguntar-se o que nos vai acontecer e para onde estaremos a ser levadas. Sabem que o «transporte» usualmente significa a morte.

O grupo viu-se na estrada principal em frente do campo, diante dos alojamentos do pessoal da SS. Havia rostos às janelas a fitarem-nas. «E subitamente desencadeia-se um pandemónio; nós gritamos, choramos e damos vivas quando um camião branco, com a bandeira da Cruz Vermelha e cruzes vermelhas nas portas e no capô, aparece de uma curva na estrada. E as pessoas lá dentro sorriem-nos e acenam-nos.» Quando as prisioneiras se dirigiram para os veículos, os homens ao lado dos autocarros sorriam. Por fim, vemos homens que não nos batem, não nos berram, nem nos insultam. Estes homens ficam profundamente comovidos quando nos veem e têm lágrimas nos olhos enquanto falam connosco. Nós devíamos parecer terrivelmente destroçadas se esses homens, que com certeza estão acostumados a ver coisas terríveis, choram quando nos veem. Aparecem mais e mais veículos na estrada, todos marcados com a Cruz Vermelha. Os funcionários perguntam-nos se nos incomodará a longa viagem, se sentiremos nervos ou medo. Não sabem que durante anos encarámos a morte a cada momento de cada dia. Subitamente, quando estamos prestes a subir para os autocarros, gera-se confusão, com as pessoas a lutarem por um lugar, porque ninguém quer ser deixada ali. Mas um número substancial tem de ficar e os homens da Cruz Vermelha prometem que voltarão com mais veículos. E nós partimos, sob os olhares fixos dos homens da SS e das guardas, de quem troçamos descaradamente. Podemos rir-nos deles agora.

Quando os autocarros partiram, as mulheres viraram-se e ficaram horrorizadas ao verem aquilo que Jean descreveu como: «Um talude alto com canhões assestados sobre o campo». Como outras que tinham partido antes delas, compreendiam agora que a SS realmente planeava destruir o campo de concentração e toda a gente nele.

A caravana de Jean prosseguiu viagem pela noite dentro. Os condutores disseram às mulheres que havia risco de ataques dos Aliados: um grande número de veículos militares alemães estava nas estradas e muitos deles eram atingidos. À noite, os camiões de salvamento avançaram sem faróis, mas por sorte havia lua cheia. Por uma questão de segurança, separaram-se em dois grupos: um grupo de veículos dirigiu-se para norte pela estrada de Wismar e o outro para sul via Schwerin. Jean ia no grupo de Schwerin e, quando a caravana se aproximava da linha da frente, ficaram a saber que poderia verificar-se um ataque a qualquer momento. Os autocarros saíram da estrada para um bosque denso e as mulheres viram passar tanques e canhões na estrada principal. «O céu está tão brilhante como se fosse de dia e nós ouvimos as explosões de bombas e o atroar dos canhões, mas nada nos importa, porque estamos vivas e a aproximar-nos da liberdade», escreveu Jean. Enquanto esperavam na escuridão, as mulheres falaram com os seu protetores dinamarqueses, que lhes disseram que tinham estado em dúvida se os autocarros da Cruz Vermelha conseguiriam vir salvá-las. Quando nasceu o dia, a caravana voltou a avançar. Tudo estava bem. Os bombardeiros tinham-se afastado por agora, mas algumas horas depois tiveram de parar de novo, e dessa vez os condutores disseram a todas as mulheres que saíssem depressa e se abrigassem nos arbustos ao longo da estrada. Há aviões a caminho e vamos ser atacados. Estamos demasiado lentas para procurarmos abrigo, e realmente não acreditámos naquilo. Eles insistem connosco, dizendo-nos que corremos um perigo real, mas nós estamos céticas, porque reparámos que usualmente são fábricas que são bombardeadas e não os campos de concentração. Portanto, porque recear que uma coluna da Cruz Vermelha seja atacada? Ninguém nos tinha dito que os Alemães usam cruzes vermelhas como disfarces para os seus próprios transportes.

A rastejarem e a ajudarem-se umas às outras, as mulheres chegaram aos arbustos. Jean ficou debaixo de um arbusto com duas outras mulheres, e um pouco mais à frente viu duas outras abrigadas

debaixo de um outro arbusto. Apareceram aviões, cada vez mais baixos, e subitamente somos atacadas por metralhadoras. Por entre o rugido dos aviões, ouvimos as balas sibilantes a choverem em cima de nós. Os tiros passam tão perto que um chamusca-me o cabelo. Por um momento, sinto a amarga ironia de ser morta pelos nossos próprios Aliados na estrada para a liberdade, mas eles desaparecem e eu continuo viva. Olhando à minha volta, vejo uma cena terrível. Atrás de mim, uma mulher está a esvair-se em sangue. Um jorro de um vermelho vivo sai-lhe dos ferimentos. Tem os lábios de um branco azulado e os seus olhos ficam vítreos. Outra mulher tem um pequeno buraco no vestido, como de uma queimadura, onde foi atingida no peito. Há muitas vítimas. Há sangue e pedaços de carne por todo o lado, mas nós estamos em silêncio e calmas. Não há gritos nem gemidos. Temos de agir, e rapidamente, porque os condutores dizem-nos que eles vão voltar para nos atacar. E é o que acontece, há outro ataque, mas desta vez não é tão mau. Quando acaba, pomos os cadáveres juntos num camião com as pessoas feridas.

Mais à frente, a caravana chegou a um campo de prisioneiros de guerra franceses, onde os Autocarros Brancos puderam parar em segurança. Os condutores e o pessoal da SS estavam traumatizados e mandaram vir novos veículos e outros condutores. As mulheres aguardaram, falando com os prisioneiros de guerra franceses, que ficaram espantados com o seu aspeto e lhes perguntaram quem eram e para onde iam. Elas responderam que iam para a Suécia com a Cruz Vermelha sueca, e os franceses riram-se. «Nunca lá chegarão. Estão rodeados por todos os lados e vão acabar na linha de fogo do vosso próprio lado.» Horas mais tarde, chegaram os autocarros. Na manhã seguinte, cedo, a caravana de Jean atravessou a fronteira dinamarquesa e as mulheres viram o campo da Cruz Vermelha. «As pessoas estão a sorrir-nos e a acenar-nos. Nós sentimo-nos indescritivelmente felizes. Dão-nos papas de aveia e leite quente.» A bandeira dinamarquesa, no entanto, estava a meia haste. A segunda caravana de veículos, que seguiu pela estrada de Wismar para norte, também tinha sido atacada, e pelo menos dez mulheres tinham morrido. Ninguém sabia, nem chegou nunca a saber-se, quantas pessoas morreram na estrada de Schwerin. Segundo alguns relatos foram

nove, segundo outros, dezassete. Jeanne Bommezjin de Rochemont disse na altura que talvez fossem muitas mais. O chefe dinamarquês da caravana, Gösta Hallqvist, ficou também gravemente ferido e um condutor perdeu a vida, um canadiano chamado Eric Ringman. Ringman foi sepultado no campo da Cruz Vermelha na Dinamarca, e um pastor protestante norueguês de homens do mar fez-lhe as últimas exéquias junto à campa. Em seguida, as mulheres e os seus condutores e ajudantes prosseguiram viagem para a Suécia. Depois de mais um protesto dos Suecos, Sir Victor Mallet, o embaixador britânico em Estocolmo, telegrafou para Londres a comunicar uma série de mortes em três ataques nesse dia «por aviões britânicos a baixa altitude» a caravanas da Cruz Vermelha provenientes de Ravensbrück. «Ninguém sabe as nacionalidades, mas é possível que entre elas se encontrassem mulheres britânicas e americanas.» A notícia da carnificina na estrada de Schwerin chegou ao campo de concentração, mas pouco significou para as prisioneiras que ainda tinham a esperança de partir na próxima caravana sueca: preferiam de longe correr o risco de serem vítimas de um ataque aéreo do que encarar a perspetiva de uma marcha da morte. Os sinais de ameaça de evacuação eram visíveis por todo o campo. Suhren tinha um mapa na parede do seu gabinete onde assinalava a rota. Os últimos documentos dos serviços administrativos estavam a ser queimados e no bunker todas as celas recentemente desocupadas foram esfregadas, instalando-se cadeiras e pendurando-se espelhos nas paredes. Nas celas de punição era agora efetuada a limpeza mais importante. Desde o início de abril, com a diminuição da sua carga de trabalho, os elementos do Sonderkommando — os onze homens que trabalhavam no grupo de extermínio por gás e na cremação — tinham sido gradualmente trazidos para as celas do bunker, onde permaneceram fechados até terminarem os últimos extermínios por gás. Não se sabe a data exata do último extermínio por gás em Ravensbrück, mas Adolf Winkelmann disse ao tribunal de Hamburgo

que continuou a fazer seleções para as câmaras de gás até 24 ou 25 de abril. O testemunho de Winkelman sobre as datas condiz com o testemunho de várias prisioneiras e é também consistente com o que Mina Lepadies, uma testemunha de Jeová, revelou sobre o assassínio dos homens do Sonderkommando no seu depoimento no julgamento de 1946 em Hamburgo. Esse assassínio, disse ela, ocorreu em 25 de abril, descrevendo o que tinha acontecido. Mina trabalhava no bunker sob as ordens de Margarete Mewes, a chefe das guardas do bunker, a quem ajudava fazendo a limpeza e servindo o café e a comida aos prisioneiros. Mina desconfiou de que alguma coisa estava errada quando meteram dois homens em cada cela. A seguir, a cafeteira desapareceu. «Procurei-a por todo o lado, e quando por fim não a encontrei, arranjei outra. A Mewes veio com a cafeteira desaparecida e disse-me que lhes desse o café.» Ao princípio, Mina não suspeitou de nada, mas, como alguns dos homens se recusavam a beber, ela começou a ter suspeitas e deixou de distribuir o café. Foi Mewes quem se encarregou de o fazer, e os prisioneiros que o beberam morreram. Às dez da manhã, os seus cadáveres foram removidos. Ao meio-dia, um homem da SS veio com a sopa e disse a Mina que a servisse aos homens que ainda estavam vivos. Ela recusou e foi ele quem a serviu. Dois homens, os da cela 47, recusaram-se a comer a sopa, mas dois prisioneiros noutra cela comeram-na e ao fim da tarde também eles estavam já mortos. Nessa noite, Mina teve ordens para servir a sopa aos dois homens que ainda restavam na cela 47. Então, eu olhei para os dois homens na cela 47 e perguntei se eles queriam comer. Ambos disseram: «Sim, se fores tu a servir.» Eles estavam muito nervosos e disseram que iam ser executados, de qualquer maneira. Na manhã seguinte, a cela deles estava vazia. Tudo tinha sido levado embora. Havia um martelo na mesa e uma mancha de sangue, que alguém tinha tentado tapar com terra, mas o banco também estava coberto com manchas de sangue, assim como as paredes.

Mandaram Mina esfregar bem as celas. Foi também em 25 de abril que a maior caravana até à data, com

vinte Autocarros Brancos da Suécia, chegou finalmente a Ravensbrück para recolher mais prisioneiras. O chefe sueco da missão, Åke Svensson, previu que seria a última vez que os autocarros conseguiriam passar, porque as condições nas estradas as tornavam já quase intransitáveis. Os autocarros foram alvo de novos ataques quando se aproximavam do campo de concentração. Em Torgau, 320 quilómetros a sul, as forças russas e americanas encontraram-se nesse dia, cortando a Alemanha em duas partes. Para as prisioneiras, o dia começou com uma Appell para todas as francesas e belgas restantes, e as polacas foram conduzidas para o exterior em grupos, com as mães e os seus bebés primeiro. «Disseram-nos subitamente para trazermos os nossos bebés vestidos para a praça do campo», disse Stefania Wodzynska, que levou a sua bebé de dois meses de idade, Wanda. Disseram às mulheres que elas iam para a Suécia, e elas viram os veículos da Cruz Vermelha sueca já à espera, para lá dos portões. Stasia Tkaczyk também ali estava, trazendo ao colo Waldmar, que só tinha doze dias. Stasia, uma jovem de dezoito anos, tal como muitas das mães, tinha chegado ao campo no mês de setembro anterior depois do Levantamento de Varsóvia. Nessa altura, sabendo que estava grávida de dois meses, decidiu salvar-se a si e ao seu bebé ocultando a gravidez. Foi enviada para o subcampo de Königsberg, onde trabalhou na pista aérea gelada. Em fevereiro, grávida de seis meses mas com a sua gravidez ainda não detetada, juntou-se à marcha da morte de regresso a Ravensbrück. Foi selecionada para trabalhar numa fábrica de armamento perto de Berlim doze horas por dia, com uma alimentação de sopa de couves, a dormir numa cave e sob bombardeamentos. Em março, desmaiou no trabalho e foi enviada de novo para Ravensbrück, onde as enfermeiras checas cuidaram dela na Revier. Em 13 de abril, Waldmar nasceu. Estava muito doente, e agora Stasia estava com ele nos braços, envolto em farrapos, à espera dos autocarros. Svensson, o líder dos transportes, recordou que à medida que o dia foi avançando as seleções para os autocarros foram ficando cada

vez mais confusas e as negociações pelos lugares mais descontroladas, de tal modo que, por fim, «levámos todas as pessoas que podíamos sem perguntar mais nada». A maior discussão foi sobre as coelhas. Suhren não tinha obedecido às ordens de as matar a tiro, mas quando o sueco lhe pediu que as entregasse, ele recusou. Pelo menos três conseguiram subir para os autocarros às escondidas, entre elas a advogada de Lublin Zofia Sokulska. Foi nesta caravana de 25 de abril que o primeiro grande grupo de judias de Ravensbrück foi levado. No seu encontro com Norbert Masur quatro dias antes, Himmler tinha apresentado a sua oferta dramática de libertar mil judias de Ravensbrück e aumentara em seguida a oferta ao pequeno-almoço com Bernadotte algumas horas depois, quando disse que «todas as mulheres de Ravensbrück podiam partir, o que significava judias e não judias». As judias polacas ficaram a saber disso no dia anterior, quando, segundo a trabalhadora da Siemens Basia Zajączkowska, foi emitida uma ordem para todas as judias polacas do campo de concentração se apresentarem. «Fomos postas no Strafblock. Não havia comida nem acesso às casas de banho. Espancaram-nos selvaticamente na fila. Suspeitámos de que iam mandar-nos para o crematório, apesar dos boatos de libertação.» Erna Solewicz, uma outra judia polaca, recordou uma súbita ordem dada no seu bloco de que «todas as mulheres judias tinham de partir do campo». A Blockova levou-as nach vorne, e receberam um pedaço de pão e um embrulho da Cruz Vermelha. No dia seguinte, o primeiro desses grupos de judias foi conduzido para os portões. As guardas «arrancaram-nos as marcas e os números», disse Basia. É impossível dizer exatamente quantas judias partiram nos transportes de evacuação de Bernadotte, mas o seu número deve ter excedido substancialmente as mil oferecidas por Himmler. Suhren tinha dito a Göring que havia «3000 judias» no campo, o que deveria querer dizer que havia com certeza muitas mais. Alguns depoimentos de outras prisioneiras sugerem que pelo menos metade das mulheres levadas nos autocarros era

provavelmente judia, e muitas mais se seguiriam três dias depois, quando Franz Göring — miraculosamente — anunciou que tinha conseguido requisitar um comboio. Entretanto, durante a corrida aos lugares nos autocarros, as polacas não judias queixaram-se de que mulheres judias ocuparam os lugares que lhes estavam destinadas a elas. «As judias tomaram os autocarros de assalto, o que significou que nós não conseguimos entrar», queixou-se uma. Pela sua parte, as judias queixar-se-iam mais tarde de serem «empurradas dos autocarros» e de terem de lutar por um lugar. Frieda Zetler, uma enfermeira polaca que tinha vindo do gueto de Łódź e de Auschwitz, ia viajar num dos primeiros autocarros, mas ficou a saber mais tarde que o autocarro em que não tinha conseguido entrar era o que tinha sido bombardeado. Mas conseguiu entrar num dos autocarros de 25 de abril. As próprias judias muitas vezes não sabiam se outras mulheres eram judias ou não. Para ocultar de Hitler a libertação de judeus, Himmler ordenara que fossem todos disfarçados de polacos. E, como disse Basia Zającskowska, tiveram de arrancar as suas «marcas e números» antes de saírem do campo de concentração, de modo que quando as mulheres subiram para os autocarros nenhuma delas usava triângulos que as identificassem como judias ou como pertencendo a qualquer outro grupo. Também não se verificou qualquer tentativa de fazer contagens à chegada à Suécia: ninguém desejava proclamar as suas origens judaicas depois de tudo aquilo por que tinham passado. Como sempre no campo de concentração, havia um número incontável de mulheres que nunca tinham confessado as suas raízes judaicas pelas mesmas razões. Por exemplo, Maria Rundo, a jovem polaca que sobreviveu à marcha da morte de Auschwitz, saiu nos Autocarros Brancos, assim como a judia austríaca Margareta van der Kuit, que disfarçara a sua origem judaica desde a sua detenção em 1943. Quando Basia e o seu grupo judeu foram finalmente conduzidos para fora do campo de concentração, cada uma recebeu um embrulho da Cruz Vermelha. «Lá fora, estavam os Autocarros

Brancos da Cruz Vermelha sueca. Nós estávamos livres. Não conseguíamos acreditar e tentámos obter confirmação perguntando aos condutores, e até mesmo nos últimos momentos os guardas nos berraram e chamaram nomes.» Quando o último dos vinte autocarros começou a afastar-se, os nomes das britânicas ainda não tinham sido chamados, despertando receios de que a ameaça de as manter como reféns fosse real. Mas então, no último momento, Fritz Suhren mudou de ideias mais uma vez. As britânicas foram subitamente chamadas, renovando a esperança de que também elas fossem libertadas. Os relatos do que sucedeu variam, mas há poucas dúvidas de que foi a prisioneira francesa Maisie Renault quem primeiro chamou a atenção dos Suecos para o caso das mulheres britânicas e americanas. Maisie tinha partido numa caravana no dia anterior, mas antes de partir prometeu à sua amiga franco-americana Lucienne Dixon, que ia ficar, que comunicaria o seu nome aos condutores suecos, assim como os das outras americanas e britânicas, para que elas pudessem ser recolhidas na vez seguinte. Quando Maisie entregou a sua lista, foi a primeira vez que os Suecos ouviram falar da presença em Ravensbrück de quaisquer mulheres britânicas ou americanas. Maisie só conseguiu lembrar-se de oito nomes de cerca de vinte no total. Quando os suecos regressaram no dia seguinte e pediram a Suhren que lhes trouxesse essas oito mulheres, inicialmente ele negou a sua existência. Um dos agentes de ligação da Gestapo, um homem chamado Danziger, pressionou então Suhren a revelar a verdade e entregar as mulheres. Não foi Danziger quem conseguiu persuadir Suhren a mudar de ideias, no entanto, mas Percival Treite. Naquelas últimas semanas da guerra, várias prisioneiras tinham observado que Treite tentava cair nas boas graças das prisioneiras britânicas, presumivelmente na esperança de elas testemunharem a seu favor quando chegasse o momento. A sua hipocrisia enojou a maior parte das britânicas. Ele não fizera

nada para evitar que Mary O’Shaughnessy fosse enviada para o Campo da Juventude nem para evitar a morte na câmara de gás de Cicely Lefort ou de Mary Young. Contudo, embora a maioria encarasse Treite com repugnância, Mary Lindell — a sua «rainha Mary» — não pertencia a esse grupo. As atitudes subservientes de Mary para com Treite e os boatos maliciosos sobre os favores que ela andaria a conceder-lhe já a tinham afastado de quase todas as suas compatriotas nos últimos dias da guerra. Por outro lado, como Mary faria notar, ela tinha obtido alguns favores também, em particular no que dizia respeito a Yvonne Baseden. Sem a proteção de Treite, concedida a pedido de Mary, não pode haver grande dúvida de que Yvonne, que estava a morrer de tuberculose, teria sido mandada para a câmara de gás. Quando a questão da libertação das britânicas foi colocada a Suhren e Treite ouviu a discussão que ela provocou, ele viu a sua oportunidade de intervir e de prestar o maior favor até à data a Mary e às outras britânicas. Entrou no gabinete de Suhren e persuadiu o comandante de que libertar as britânicas serviria mais objetivos do que mantê-las reféns. Talvez, sugeriu, Mary Lindell pudesse até dizer também uma palavra a favor do comandante. Depois de escutar Treite, Suhren mandou chamar Mary Lindell. Uma voz fora da Revier berrou: «Die Engländerin Marie, die Engländerin Marie.» Mary estava sentada junto a Yvonne, que mal conseguia mover-se sem tossir e cuspir sangue e pesava só 35 quilos. Ao ouvir chamar o seu nome, Mary pôs-se de pé para sair. Yvonne tentou retê-la, receando o pior, mas Mary queria saber porque é que estava a ser chamada. Quando Mary chegou à Appellplatz, viu Suhren à espera lá fora para falar com ela. O comandante estava encostado a uma bicicleta. As suas primeiras palavras para ela foram: «Confia em mim?», ao que Mary retorquiu: «De facto, não.» Suhren disse a Mary que reunisse todas as britânicas e as levasse ao seu gabinete. Disse-lhe que o «Dr. Treite tinha sugerido que todas as inglesas e as americanas fossem libertadas». Mary divulgou a notícia ao grupo das britânicas e pouco depois elas reuniam-se todas à porta da Revier,

com a informação de que também partiriam nos Autocarros Brancos. Segundo os depoimentos de várias sobreviventes britânicas, prestados mais tarde, foi só graças a um dos líderes suecos, Sven Frykman, que não foram todas deixadas em Ravensbrück. Frykman avistou o grupo e perguntou quem eram. Ao ouvir dizer que eram britânicas e americanas, recolheu-as ele próprio e meteu-as no autocarro. A versão de Mary Lindell é ligeiramente diferente. Descreveu como, ao marcharem para os autocarros, Suhren a chamou. Aparentemente, tinha mudado de ideias mais uma vez, e disse a Mary que ela teria de ficar, afinal. Yvonne viu o que estava a acontecer e disse que não partiria se Mary não pudesse partir também. «Não sejas tola, Yvonne», disse Mary. «Vai lá, por amor de Deus, antes que seja demasiado tarde.» Nessa altura, disse Mary, Yvonne encaminhou-se para os autocarros com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Treite viu que Mary tinha sido mandada de volta para o campo de concentração. Ficou furioso e acompanhou Mary em pessoa até aos Autocarros Brancos e meteu-a ele próprio lá dentro. Yvonne tem uma recordação diferente do que se passou. Lembrase de Mary Lindell lhe dizer que ela tinha de sair da cama na Revier e ir até aos autocarros da Cruz Vermelha. «Ela disse que era a nossa última oportunidade, tínhamos de tentar ir embora.» Yvonne dirigiu-se para os portões do campo de concentração e pôs-se em fila com outras prisioneiras. Demasiado doente para ter consciência de grande coisa, não se recorda se as outras mulheres eram inglesas ou não. Só me lembro de a Mary me dizer para continuar a andar na direção dos autocarros. Foi o que eu fiz. Por isso, atraquei-me àquelas pessoas e continuei a andar e evitei qualquer contacto com as guardas ou coisa do género. Lembro-me de me sentir muito preocupada por me poderem mandar parar a qualquer momento. Tinha muito receio de não chegar ao autocarro, mas consegui entrar nele. E partimos a grande velocidade. Os condutores estavam muito preocupados com a possibilidade de não passarem, porque a frente de combate estava agora muito próxima. Soube mais tarde que parti no último autocarro.

Quando os vinte Autocarros Brancos partiram a grande velocidade,

levando 934 mulheres, mais uma vez os condutores dividiram-se em grupos por precaução. Alguns viram-se sob o fogo da artilharia russa, mas dessa vez ninguém ficou ferido. Foram distribuídos embrulhos da Cruz Vermelha e as enfermeiras tentaram tratar das doentes. Passaram por dois Autocarros Brancos tombados na berma da estrada, os que tinham sido atacados dois dias antes. Algures ao longo da viagem, uma «espia» alemã foi descoberta a bordo de um dos autocarros, e noutro nasceu um bebé. O bebé recebeu a alcunha «Per Albin», o nome do primeiro-ministro sueco. Para os condutores, aquela caravana foi «um longo pesadelo», furando caminho por entre multidões de refugiados cada vez maiores. Mas dentro dos autocarros as polacas começaram a cantar ao verem a desgraça dos Alemães, «e demos vivas e pendurámos pequenas bandeiras polacas nas janelas», disse Maria Rundo. «Quando os autocarros abrandavam, uns rapazes alemães tentavam rasgar as bandeiras e agitavam o punho.» Os autocarros aproximaram-se de comboios-hospitais alemães — tão perto que elas conseguiram falar com militares feridos. «Pediram-nos cigarros e chocolates, que lhes demos dos nossos embrulhos da Cruz Vermelha. E quando atravessámos Kiel e vimos a terrível destruição enchemo-nos de alegria.» Yvonne lembra-se de poucos pormenores sobre a viagem pela Alemanha, mas recorda-se de chegar à fronteira com a Dinamarca e de ser saudada por membros da família real dinamarquesa. E foi só depois de atravessar a fronteira e ficar em segurança que descobriu que, afinal, Mary também tinha conseguido entrar num dos autocarros. Como Treite esperava, Mary Lindell falaria mais tarde a seu favor no julgamento e apresentou um pedido de clemência quando em fevereiro de 1947 ele foi condenado à morte por enforcamento. Mary não foi a única prisioneira a pedir clemência para Treite. Entre outras encontrava-se a própria Yvonne Baseden. No seu pedido, apresentado aos juízes de Hamburgo, pode ler-se:

Acredito que o Dr. P. Treite foi em grande medida responsável pela retirada segura de prisioneiras britânicas e americanas na última caravana da Cruz Vermelha sueca em abril de 1945. Tinham sido dadas ordens para sermos mantidas como reféns e foi só através do auxílio do Dr. P. Treite e do Lagerführer que nós fomos levadas nesta última caravana. Além disso, durante a minha estada no campo de concentração, de setembro de 1944 até abril de 1945, compareci perante o Dr. P. Treite como paciente duas vezes e em ambas as ocasiões ele tratou-me bastante decentemente. Por consequência, apelo a clemência para o seu caso.

Quando perguntei a Yvonne como tinha surgido a ideia do pedido de clemência, ela explicou-me que ainda se encontrava muito fraca para assistir ao julgamento de Treite em Hamburgo em 1946, mas enquanto Treite aguardava a sua execução ela recebeu uma carta de Mary pedindo-lhe para dizer alguma coisa que o poupasse à forca. «A Mary, sem dúvida, acreditava que Treite lhe salvara a vida», disse Yvonne. «Pensa que ele lhe salvou a vida a si?» «Penso que ele se assegurou de que eu entrava naquele autocarro. De outra maneira, talvez eu não tivesse saído do campo de concentração. Estava muito fraca nessa altura.» Perguntei se achava que deveria ter sido concedida clemência a Treite, como ela pedira. «Está a ver, eu não sabia muito naquela altura. Tinha estado tão doente no campo. Sentia-me grata para com Mary e fiz o que ela me pediu.» Perguntei o que Yvonne sentira quando soube que Treite se suicidara. Duas semanas depois de os apelos de clemência serem negados, cortou os pulsos e foi encontrado morto na sua cela. Yvonne ficou em silêncio por uns momentos. «Vejo agora que ele nos ajudou para salvar a sua própria pele. Mas sem ele, provavelmente eu não estaria aqui agora.»

46 Anton Kaindl, o comandante de Sachsenhausen, revelaria mais tarde que a sua primeira ordem, recebida em 19 de abril, tinha sido de liquidar o campo fazendo embarcar todos os prisioneiros em barcaças atracadas no porto oeste de Berlim e levá-las pelo canal até ao mar do Norte para as naufragar. Recusou obedecer à ordem e disseram-lhe para, em vez disso, retirar os prisioneiros a pé.

CAPÍTULO 41 LIBERTAÇÃO «Tudo está a arder. O saque está ao rubro. Ouvem-se gritos de mulheres através de janelas abertas», escreveu o jornalista soviético Vasily Grossman ao observar o Exército Vermelho a atravessar a fronteira alemã e a avançar para Berlim nos primeiros meses de 1945. Grossman acompanhara as forças do Exército Vermelho desde Estalinegrado. As colunas soviéticas constituíam uma visão extraordinária: uma mistura do moderno e do medieval, os seus tanques com condutores de capacete preto avançavam lentamente ao lado de cossacos a cavalo, de Chevrolets a transportarem morteiros e de carroças puxadas a cavalos com o produto do saque e provisões, e até acordeonistas. Grossman vira os exércitos de Estaline derrotar as forças de Hitler, libertar cidades destruídas e tomar os campos de morte, expondo os seus segredos chocantes. Quando o Exército Vermelho atravessou para a Alemanha, porém, a disciplina dos soldados desmoronou-se. Incitados por gritos de vingança, um milhão de frontiviki [tropas da linha da frente] bêbedos começou a saquear, a assassinar e a violar. «Estão a acontecer coisas horríveis às mulheres alemãs», escreveu Grossman, que mostrava clara repugnância pelas violações, apoiadas por muitos oficiais de alta patente. As tropas violavam as mulheres e voltavam a violá-las. «Um alemão com estudos está a explicar em mau russo que a sua esposa já foi violada por dez homens hoje», escreveu Grossman. Uma mãe que ainda amamentava contou que tinha sido violada num celeiro. «Os parentes dela vieram pedir aos seus atacantes que a deixassem fazer um intervalo, porque o bebé, cheio de fome, estava a chorar o tempo todo.» As tropas soviéticas não violaram só mulheres alemãs.

Violaram polacas, francesas e até soviéticas que se atravessassem no caminho dos frontiviki. Essas vítimas eram usualmente jovens trabalhadoras escravas trazidas para ali para trabalharem em quintas e em fábricas alemãs. Em meados de abril, com as tropas soviéticas a avançarem para oeste, alguns refugiados aterrorizados, de passagem por Fürstenberg, contaram o que tinham visto; no final do mês, a maior parte dos habitantes da cidade também teve de fugir. Em Ravensbrück, as esposas e as famílias dos homens da SS já tinham sido retiradas. Muitos homens da SS andavam permanentemente bêbedos e falavam abertamente da necessidade de se encaminharem para a relativa segurança das linhas americanas ou, melhor ainda, desaparecerem. Muitos tinham já feito as malas com roupa à paisana e escolhido uma identificação não militar. Suhren, no entanto, vacilava sobre quando dar a ordem de evacuação. Com vários milhares de prisioneiras ainda no campo, o comandante não sabia o que fazer. As instruções claras do Führer eram de as retirar a todas e de matar as que não conseguissem andar. Nenhuma prisioneira deveria cair nas mãos do inimigo. Mas com o corte das comunicações com Berlim e com Hitler escondido no seu bunker, Suhren não tinha novas ordens. Os seus superiores — Höss, Glück, o próprio Himmler — estavam a fugir das frentes que avançavam, e já não podiam ser contactados. Como comandante de um dos poucos campos de concentração ainda não tomados, Suhren encontrava-se sozinho. O destino das últimas mulheres em Ravensbrück estava nas suas mãos. Os Autocarros Brancos suecos já tinham levado a maior parte das prisioneiras de países da Europa Ocidental e muitas polacas e judias. Restavam as russas, as alemãs, as austríacas e as mulheres da Europa de Leste, entre elas ainda um grande número de judias. Muitas dessas prisioneiras previam que Suhren ordenaria um massacre. Outras acreditavam que o campo estava minado ou que realmente as fariam marchar até à costa do Báltico — a única rota

para escapar —, as meteriam em barcos e as afogariam. Quanto às mulheres demasiado fracas para andarem, Suhren ameaçara muitas vezes matar a tiro quem não conseguisse acompanhar a evacuação. Em 27 de abril chegou a notícia de que as forças da Segunda Frente Bielorussa de Rokossovsky tinham tomado Prenzlau, a oitenta quilómetros a leste. O exército alemão fez então explodir depósitos de combustível e bases militares à volta de Fürstenberg, pronto para a retirada final. Os homens de Suhren começaram a pegar fogo a oficinas nas traseiras do complexo e o próprio Suhren e Binz foram vistos, «pretos de fuligem e suor», a queimarem freneticamente mais papéis. Hans Pflaum andava de bicicleta por todo o campo a selecionar mais mulheres para serem exterminadas. «Pflaum enxotava as prisioneiras fracas e doentes dos seus blocos e depois matava-as a tiro na Lagerstrasse», disse Zdenka Nedvedova. Prosseguiam outros extermínios de última hora. Uma prisioneira alemã, Annie Sinderman, recordou um grupo de mulheres trazido imediatamente antes do fim. «Estavam deitadas no chão da casa de banho a gemer e a queixar-se.» Essas mulheres não voltaram a ser vistas, diz Anni. Possivelmente, foram assassinadas na câmara de gás de um camião ou simplesmente executadas a tiro. Odette Sansom, ainda detida como refém na sua cela no bunker, viu prisioneiras vivas a serem conduzidas para o crematório. «Eu ouviaas gritar e debater-se e ouvi as portas da fornalha a abrirem-se e a fecharem-se. Depois não voltei a ver as mulheres.» Na questão do massacre final, Suhren não conseguia decidir até que ponto ir. Marie-Claude Vaillant-Couturier registou no seu diário que as ordens «mudavam de duas em duas horas». A SS anunciava que todas as prisioneiras que fossem incapazes de marchar seriam mortas e o campo varrido de tudo antes da chegada dos Russos, e no minuto seguinte Suhren dava ordens de deixar as doentes e de as restantes marcharem. Enquanto Pflaum andava a matar mulheres a tiro lá fora, o Dr. Treite chamou as prisioneiras médicas ao seu gabinete. Perguntou quem ficaria para cuidar das doentes até os Russos chegarem. Várias

mulheres disseram a Treite que ficariam, entre elas as destacadas comunistas Zdenka Nedvedova, Antonina Nikiforova e Marie-Claude Vaillant-Couturier. E mesmo que Suhren tencionasse matar todas as prisioneiras velhas e doentes, como destruiria os corpos a tempo? O Führer ordenara também que fossem erradicadas todas as provas antes da chegada do inimigo, mas no crematório não se conseguiam queimar cadáveres com suficiente rapidez, como a prisioneira secretária austríaca Friederike Kierdorf descobriu quando viu o seu interior. Mas depois, subitamente, foi-nos dito que pousássemos as fichas e queimássemos tudo. Foi-nos dito que o escritório deveria ser destruído e nós tivemos de levar todos os últimos dossiês em caixotes para o crematório para serem queimados. Dentro do crematório havia três fornos, que vimos agora pela primeira vez. Mas, quando ali chegámos com os caixotes, os homens que estavam a operar os fornos disseram-nos: «Não podemos queimar papel, porque estamos a queimar pessoas.» Um deles dissenos: «Queimamos dezasseis magras ou quatro gordas em cada forno.» Por isso, tivemos de levar embora os documentos e queimá-los em covas na areia.

Friederike diz que não assistiu ao incêndio do Schreibstube, mas o edifício da administração já não existia quando ela voltou lá depois da guerra. Antes de as oficinas serem também incendiadas, os homens da SS estavam decididos a deitar a mão a tudo o que pudessem. Agarraram em rolos de tecido mesmo antes de serem atingidos pelas chamas. Friederike ficou espantada quando um oficial de alta patente da SS lhe atirou para os braços um rolo de um luxuoso tecido vermelho. «Ele disse que era melhor que ficasse eu com ele do que ele cair nas mãos dos Russos. Penso que se sentia protetor em relação a mim. Disse que tinha uma filha como eu — eu era muito jovem.» O SS «protetor» entregou-lhe em seguida peças de vestuário à civil e disselhe que se integrasse na primeira caravana de homens da SS e de guardas que ao fim da tarde do dia 27 de abril se preparava para abandonar o campo de concentração. Suhren tomara por fim uma decisão. «Os homens da SS tinham cavalos e carroças que roubaram aos

lavradores e um dos oficiais pôs-me numa carroça», disse Friederike. «Havia entre oito e dez carroças e as malas dos SS iam na primeira.» Ela sentia-se assustada por estar com os homens da SS. «Todos estavam carregados de bens roubados — a maior parte joias. Perguntaram-me porque é que eu não trazia joias. Não compreendiam porque é que eu não tinha tirado nenhuma.» Quando a caravana se fez à estrada, Suhren passou por ela de automóvel, berrando: «Vão para Malchow o mais depressa possível.» Suhren tinha escolhido o subcampo de Malchow, a cerca de setenta quilómetros a noroeste, porque não seria tomado nos próximos dias e, provavelmente, encontrava-se no caminho dos Americanos — ou assim julgava ele. Às primeiras horas de sábado, 28 de abril, teve início o êxodo principal de Ravensbrück. No dia anterior, à meia-noite e meia, Suhren visitou Odette na sua cela no bunker. «Ficou à porta e fez um gesto com o dedo a indicar uma garganta a ser cortada.» Odette julgou que a sua vez de ser liquidada tinha chegado. «Ele disse-me para preparar as minhas coisas e estar pronta para partir do campo na manhã seguinte, cedo.» Às oito da manhã, veio um homem da SS ordenar-lhe que saísse para a Lagerstrasse. Suhren apareceu e meteu-a numa carrinha prisional cujos passageiros Prominente incluíam um comandante naval italiano, o ministro da Guerra lituano, um barão polaco e duas aristocratas francesas. O grupo foi enviado para Malchow para aguardar até Suhren chegar. Ao longo de todo o dia seguinte, os guardas reuniram grandes grupos de prisioneiras junto aos portões. O pessoal da cozinha e dos escritórios partiu antes do nascer do dia e seguiram-se as prisioneiras comuns. As que se recusassem eram perseguidas por Pflaum, agora com cães. Uma francesa que foi encontrada escondida no sótão de um bloco foi morta à pancada com um martelo. Quando a adolescente austríaca Fritzi Jaroslavsky se juntou a uma das colunas, viu Suhren passar de automóvel, a dizer às mulheres para se dirigirem para Malchow. «Mas não estávamos ainda longe

quando os aviões russos voaram muito baixo e nós dispersámos em todas as direções.» Fritzi e o seu grupo chegaram a uma pequena cidade onde se abrigaram numa casa vazia. «Depois, depressa nos apercebemos de que estávamos livres, por isso demos meia-volta e regressámos a Fürstenberg, onde pensávamos que estaríamos mais seguras.» Johanna Sultan, de Kiel, tinha partido com um grupo anterior que foi também atacado por aviões de combate russos. Toda a gente tentou abrigar-se — guardas, cães e prisioneiras. Depois, seguiram por caminhos a corta-mato, tentando esconder-se dos aviões debaixo de árvores, mas elas ainda não tinham folhas e os aviões atacaram de novo enquanto as mulheres atravessavam a custo vastos campos lavrados, com o solo gelado. Toda a gente dispersou e, para além de uma guarda, todo o pessoal da SS fugiu. A seguir, a guarda fugiu também e as prisioneiras ficaram sozinhas. «Encontrámos um camponês ucraniano no campo que nos indicou o caminho para uma quinta nas imediações, onde chegou um grupo de francesas que também tinham escapado. Escondemo-nos todas ali e esperámos que os Russos ou os Americanos chegassem. Muitos outros guardas da SS escaparam da marcha para Malchow mudando rapidamente de roupa e fugindo para norte. Os homens tinham a esperança de desaparecer no fluxo de refugiados ou de encontrar o caminho para a fronteira dinamarquesa. Muitas das guardas simplesmente dirigiram-se para casa. Depois de abandonarem a marcha, Margarete Rabe e uma sua colega foram para a casa do tio de Margarete na cidade vizinha de Schwerin. Em Ravensbrück, as prisioneiras estavam agora a sair pelos portões em caudal. Maria Apfelkammer partiu com outras 300 ou 400 prisioneiras, em filas de cinco. O número de elementos da SS reduzia-se rapidamente. Na sua maioria, os guardas da escolta eram «homens velhos com armas saídas de um museu», como diria uma das prisioneiras. Eram membros do Volkssturm, uma milícia recrutada criada no mês de outubro anterior. Artur Conrad, o carrasco da SS, seguia na retaguarda da coluna de Apfelkammer para Malchow,

dizendo que conduziria as mulheres até às linhas americanas. «Ao fim de cerca de três horas, descansámos por pouco tempo na berma da estrada. Duas mulheres sentadas em pedras disseram que já não conseguiam continuar, por isso Conrad matou-as. A seguir matou várias outras desgarradas.» Marcharam todo o dia, dormiram num celeiro e depois marcharam outra vez. Uma checa, Stefanie Jokesch, passou a segunda noite num bosque. Não se lembrava de tiros, mas recordava que muitas mulheres «se deitaram e morreram». No terceiro dia, ela fugiu. «Mas não havia para onde ir. Eu estava no meio de uma terra de ninguém, por isso escondi-me numas árvores.» Naqueles últimos dias de abril, não era só o campo principal que estava a ser despejado; o mesmo se passava em todos os restantes subcampos de Ravensbrück, muitos dos quais estavam espalhados por aquela faixa da Alemanha ainda não conquistada. A trezentos e vinte quilómetros a sul, Eileen Nearne, a mulher do SOE britânico, detida num subcampo perto de Leipzig, fugiu de uma coluna de evacuação e andava também a esconder-se por entre as árvores, perguntando-se a que distância estariam os Americanos. Ainda mais para sul, já em território checo, Maria Bielicka, retirada do subcampo de Neurolau, marchava com uma coluna de prisioneiros pelas montanhas de Sudeten. Tinham a esperança de chegar às linhas americanas, embora ela receasse que fosse mais provável que a matassem a tiro. Os Russos estavam a poucos quilómetros para leste e os Americanos a poucos quilómetros para oeste, mas ninguém sabia bem onde. Muitas mulheres já tinham morrido na estrada, porque não conseguiam continuar, e outras foram mortas a tiro. Depois, puseram-nos num armazém gigante de cerveja para passar a noite. O pessoal da SS não sabia para onde ir ou o que fazer connosco.

Nos subcampos, as evacuações finais foram frequentemente mais caóticas do que em Ravensbrück. Em Neubrandenburg em 26 de abril, os guardas disseram a toda a gente para parar de trabalhar, porque ambas as frentes dos Aliados estavam a aproximar-se. As francesas ficaram sentadas durante dois dias nos seus beliches,

apostando se seriam os Americanos ou os Russos os primeiros a chegar, enquanto as prisioneiras russas saqueavam as cozinhas. «Por todo o nosso bloco ouvia-se mastigar», recordou Micheline Maurel. «Num beliche próximo, uma russa estava a comer esparguete cru. Fez um sorriso rasgado e ofereceu-me uma mão-cheia.» Mas depois uma guarda disparou sobre as mulheres que estavam a roubar sacos de farinha e subitamente ouviu-se «Raus, raus, schnell!», e entraram tiros pela janela. Quando as mulheres estavam a ser reunidas no exterior, Micheline pisou algo macio, um minúsculo pacote de margarina, e pegou nele. «Estava a tombar a noite. Chovia e as armas ribombavam quando os portões exteriores se abriram de par em par.» Ela agarrou o braço da sua amiga Michelle e disse-lhe que não conseguiria de maneira nenhuma marchar. «Tu consegues. Tu vais marchar», disse-lhe Michelle, e foi o que ela fez, dizendo a si mesma: «Continua a andar, não pares, não olhes à volta, não fales, não penses.» Ao nascer do dia, Micheline pegou na margarina e comeu-a com Michelle. A seguir, voltaram a pôr-se em marcha e caminharam todo o dia. Chovia, a linha do horizonte estava em fogo e a guarda Edith Fraede vinha na retaguarda, num camião com um canhão. Nessa noite dormiram num celeiro húmido, onde morreram várias mulheres exaustas, entre elas Marthe Mourbel, uma professora universitária de Filosofia de Angers. Ela poderia ter sobrevivido se tivesse ficado no campo: no dia a seguir à evacuação, uma ambulância da Cruz Vermelha sueca apareceu em Neubrandenburg e salvou as mulheres deixadas na enfermaria. Colunas de prisioneiras em marcha cruzavam terra de ninguém, exaustas e enlouquecidas pela sede e pela fome. «Uma mãe parou e começou a arrancar erva para comer», recordou Lise Lesèvre. «A filha saltou das filas que marchavam para ajudar a mãe e os guardas mataram ambas.» Mais para trás, um camião da Cruz Vermelha tinha parado com embrulhos com alimentos para a mesma coluna, e continuou a distribuí-los mesmo quando soaram os tiros. As prisioneiras em marcha depararam com muitas outras cenas

tétricas de morte. Perto de Rostock, na costa báltica, um grupo de mulheres que tinha escapado a uma coluna encontrou um grande número de homens com vestuário às riscas mortos, pendurados de árvores. Ao longo da estrada para Malchow viam-se dezenas de corpos de mulheres assassinadas a tiro por Conrad e a sua equipa. Umas mulheres que correram para os campos de cultivo para procurar batatas foram alvejadas, assim como um grupo que assaltou um veículo da SS para procurar pão. Fritz Suhren matou a tiro uma prisioneira que parou para pegar numa ponta de cigarro na estrada. As mulheres retiradas de um subcampo perto de Leipzig foram conduzidas para um campo onde havia filas de homens com uniformes às riscas de um campo de concentração deitados de barriga para baixo. Eram prisioneiros de um subcampo de Buchenwald que, aparentemente, tinham sido levados para ali e em seguida executados em massa. «Fomos obrigadas a passar por cima dos cadáveres para chegar ao local onde íamos descansar do outro lado do campo», recordou uma mulher. «Não conseguíamos evitar pisar os corpos.» Uma esquadra de aviões sobrevoou-as. Toda a gente dispersou, mas os aviões inclinaram as asas e começaram a voar em círculos antes de ganharem outra vez altitude, «e acima das nossas cabeças havia um clarão de cor, com bandeiras a flutuarem para nos fazer saber que os nossos amigos nos tinham reconhecido. Depois, puseram-nos a marchar outra vez». Apesar dos terrores daquela terra de ninguém, com os Aliados tão perto, as hipóteses de escapar nunca tinham parecido tão grandes. Enfiadas no armazém de cerveja nas montanhas do Sudeten, Maria Bielicka e as suas amigas decidiram arriscar. Trepámos para dentro dos barris de cerveja vazios para nos escondermos e depois ficámos à espera. De manhã, ouvímos os homens da SS berrar: «Raus raus, schnell schnell», e os cães a ladrar. Depois partiram, mas um homem voltou com o seu cão e eu tinha a orelha esmagada contra o peito da minha amiga e ouvia o coração dela a fazer «bum, bum», e pensei, meu Deus, o mundo inteiro pode ouvir isto, mas depois ele foi-se embora, deixando-nos a nós e a todas as doentes. Esperámos várias horas, e ouvíamos as mulheres doentes a pedirem água em todas

as línguas, água, Wasser, Wasser. Havia muitas, e estavam a morrer. Depois, os homens da SS voltaram e mataram-nas a tiro.

Os homens da SS não encontraram Maria e as suas amigas, que esperaram mais umas horas, escondidas dentro dos barris, e depois saíram. Em certos subcampos, os guardas fugiram antes de começar a evacuação. Em Genthin, os prisioneiros, deixados sozinhos, vingaram-se matando os patrões civis da fábrica. «Lembro-me de ver por terra, mortos, dois dos nossos gerentes da fábrica, civis, ainda de bata branca», disse a prisioneira russa Evdokia Domina. Eles não eram más pessoas. Depois, alguém abriu os portões e nós saímos, sem mais. Encontrámos uma casa onde ficar e alguém nos deu um cavalo, mas não sabíamos montar a cavalo, por isso fomos a pé e vimos lugares queimados e incendiados. Pensámos só em nos dirigirmos para leste. Entrávamos em casas abandonadas e encontrávamos quartos com camas em que dormir. E era tão agradável, com lençóis e edredões. Comíamos a comida e nunca lavávamos os pratos, só pegávamos noutros.

Pouco depois, os guardas já escapavam por terras de ninguém mais depressa do que as prisioneiras. Havia montes de fardas deixadas nas bermas das estradas pelas guardas e os homens da SS mudavam dos seus uniformes para roupas à civil e fugiam também. As prisioneiras olhavam de súbito à sua volta e viam que estavam livres. Ekatarina Speranskaya encontrava-se com um grupo de russas que se dirigiam para norte quando uma delas berrou: «“Raparigas! São animais? Não passam de gado? Já nem sequer há guardas e ainda continuam todas a marchar.” E nós olhámos à nossa volta e outras berraram: “Hurra, camaradas, fomos libertadas.”» No entanto, esta primeira «liberdade» não significava libertação, como muitas mulheres ficariam a saber. Pelo menos um grupo de mulheres foi atingido por engano por armas americanas quando se aproximava das linhas dos Estados Unidos. As polacas receavam ir dar às linhas russas. Krystyna Zając foi uma das primeiras a encontrar soldados russos. Mal nos viram, começaram a perseguir-nos. Um russo disse que queria dançar

comigo. Depois tentaram violar-nos. Eu caí. Eles até tentaram agarrar a minha mãe e violá-la. Nós dissemos que éramos polacas, não alemãs, e que éramos prisioneiras, mas eles não queriam saber. Depois, à noite, mataram uma mãe que estava a proteger a filha. Por fim, encontrámos um lugar seguro numa casa alemã.

Em 29 de abril, eram cada vez mais as prisioneiras que ainda restavam em Ravensbrück a dar ordens, com o exército soviético a aproximar-se. Treite foi mais uma vez à Revier insistir com Zdenka para que ela partisse, mas ela recusou. Ele disse-lhe então que a partir daquele momento ela teria a seu cargo todas as doentes deixadas no campo de concentração, uma decisão que irritou Antonina Nikiforova, que acreditava que essa função deveria passar para ela, que era a médica mais graduada do Exército Vermelho. Antonina e as outras médicas e enfermeiras tinham contado pelo menos 1500 mulheres no campo de concentração que estavam demasiado doentes para andarem, muitas delas à beira da morte. Vinte e duas mulheres encontradas nas traseiras do Bloco 32 eram «pouco mais do que restos humanos», escreveu Marie-Claude no seu diário. «Transferimo-las para a Revier, mas duvido que sobrevivam.» Kamila Janovic, uma enfermeira polaca, disse que nos dias antes da chegada dos Russos morreu um número desconhecido de mulheres e viam-se pilhas de cadáveres por toda a parte, que eram roídos pelas ratazanas, mas não havia tempo para os sepultar. Como a energia elétrica tinha sido desligada, as prisioneiras organizaram uma fila para passar baldes de água de mão em mão até aos blocos da Revier. Na cozinha, Marta Baranowska, a líder da Cruz Vermelha polaca, assumiu o comando. «Hoje de manhã, a Binz apareceu na cozinha e perguntou à Marta se havia comida para as guardas que tinham ficado no campo e que não tinham nada para comer», escreveu Marie-Claude. «A Marta disse à Binz que tudo o que tínhamos era para as doentes e que a Binz teria de ir perguntar à cantina da SS — como as coisas estão a mudar.» As guardas tinham ainda autoridade suficiente para ordenar às últimas prisioneiras que marchassem para fora dos portões do campo de concentração, mas era tal a confusão que várias conseguiram

esconder-se à última hora, entre elas Rosa Thälmann, a mulher do ex-presidente do Partido Comunista Alemão. Algumas camaradas comunistas conseguiram tirá-la do campo e escondê-la numa casa e Fürstenberg. Este último grupo de prisioneiras em marcha era constituído principalmente por russas e incluía todas as mulheres do Exército Vermelho, assim como as crianças que viviam nos seus blocos. Olga Golovina apropriou-se da carroça usada para transportar as panelas da sopa e usou-a para transportar várias crianças pequenas, arrastando-o para fora do campo. Stella Kugelman, que tinha cinco anos quando foi retirada do campo, diz atualmente que não se consegue recordar com exatidão de como é que ela e as outras crianças saíram. Recorda-se de que as crianças rapidamente se viram separadas das adultas, possivelmente depois de um ataque aéreo. A seguir, uma mulher chamada «Tia Olympiada» olhou por elas. «Lembro-me de subitamente estar ao ar livre numa estrada, e penso que a Tia Olympiada nos encontrou ali e decidiu tomar conta de nós. Eu não a conhecia do campo de concentração. Ela voltou a meter-nos na carroça e empurrou-nos e mais tarde encontrou comida para nos dar.» Em vez de se dirigirem para Malchow, a noroeste de Ravensbrück, os Volkssturm, com a assistência de alguns guardas da SS, conduziram as prisioneiras do Exército Vermelho para norte na direção do mar, diretamente na linha do avanço soviético. «As estradas estavam cheias de pessoas e de carroças», disse Yekaterina Boyko. «E quando nós vimos que íamos na direção do Báltico, pensámos que íamos ser levadas para África como escravas.» Georgia Tanewa, a búlgara, marchava perto de Yevgenia Lazarevna Klemm. Em 1943, Klemm tinha passado ordens pela fila quando as mulheres do Exército Vermelho marchavam para oeste para a Alemanha; em 1945, retomou esse papel de comando enquanto marchavam na direção dos seus libertadores. «Os nossos guardas eram homens de idade que pareciam ter vestido o uniforme

só para aquela ocasião», disse Georgia, que atualmente vive em Berlim Leste. «Mas a Yevgenia Lazarevna era realmente quem estava no comando. Ela dizia: “Mantenham-se juntas, meninas, façam o que eu digo, continuem a marchar.” Por isso, nós marchávamos estrada fora com os nossos socos de madeira. Claque, claque, claque» — e Georgia martela a mesa com a mão para imitar o som. Em Fürstenberg, passámos por belas casas vazias — tínhamo-nos esquecido do que era a civilização. E depois pensámos, o que é que estes velhos homens [Volkssturm] vão fazer connosco? Não nos vão matar nesta pequena cidade. Eles sabiam que a guerra estava perdida e, provavelmente, estavam a pensar, o que é que vamos fazer com este bando fedorento de mulheres a morrerem à fome? Depois pensámos que talvez eles nos levassem para uma prisão grande ou coisa do género. E quando nos apercebemos de que nos dirigíamos para norte, pensámos: «Ah! Estão a fazer-nos marchar para o mar para nos afogarem.»

Georgia acreditava que isso poderia acontecer? Isso era no que eu acreditava pessoalmente, sim. O mar ficava de facto muito longe, mas nós não sabíamos isso. Depois, subitamente, já estávamos a marchar há várias horas quando olhámos à nossa volta e não havia soldados, mas ainda matraqueávamos a estrada com os nossos socos, claque, claque, claque. Não havia mais ninguém na estrada a não ser nós. Continuámos a olhar à nossa volta e não acontecia nada. Não sabíamos onde estávamos e só havia campos de cultivo a toda a volta.

A metade da frente da coluna continuou pela estrada fora na esperança de encontrar a frente russa. As mulheres que se encontravam mais perto de Yevgenia Lazarevna perguntaram-lhe o que fazer. «Ela disse que tínhamos de encontrar um bosque e de nos escondermos», diz Georgia. Corremos como loucas por esse campo lavrado e depois havia um muro na beira de um bosque e pusemo-nos a correr em cima de caruma. Havia agulhas de pinheiro por toda a parte e nós estávamos na floresta e olhámos à nossa volta e havia olhos a toda a volta e depois os olhos saltaram e descobrimos que eram de prisioneiros de Sachsenhausen que se estavam a esconder. Por isso, deitámo-nos na caruma e descansámos e foi maravilhoso.

Quando Georgia acordou, viu um rapaz na estrada.

Eu falava alguma coisa de alemão e por isso pedi água ao rapaz. Ele levou-me a uma vila e encontrámos um poço e alguns potes. Demos uma volta pela vila e as pessoas escondidas nas suas casas julgavam que nós íamos matá-las, mas é claro que nem tal nos passava pela cabeça. Estava tudo vazio. Kaput. Perguntámos ao rapaz para onde ia a estrada e ele disse Neustrelitz. Ele disse que o exército soviético estava em Neustrelitz, por isso encaminhámo-nos para Neustrelitz.

No caminho, algumas das mulheres foram apanhadas por fogo cruzado. «Eu estava deitada no chão e fui atingida por um estilhaço», disse Ekaterina Speranskaya. A seguir, lembro-me dos tanques e de imensos cadáveres, e foi então que ouvi falar russo e vi os nossos soldados. Quando se aproximaram, o capitão russo disse: «Meu Deus, de onde é que vocês são? Ergueram-se da sepultura?» E quando nós avançámos com os nossos uniformes às riscas, todas sujas e cansadas, eles começaram a rir-se e a chorar e a dizer «irmãs», e acolheram-nos e deram-nos comida e assim continuámos até Neustrelitz.

Ao meio-dia de 29 de abril, as últimas prisioneiras a saírem do campo marcharam para fora dos portões de Ravensbrück. Fritz Suhren andou ao longo das colunas de evacuação e em seguida regressou a Ravensbrück, onde foi visto a caminhar nervoso de um lado para o outro ao lado dos portões. «Então, subitamente, ordenou aos guardas: “Fechem os portões. As que ainda estiverem dentro, matem-nas a tiro.” Ouvi eu mesma esta declaração diabólica», recordou Elfriede Meier. Se Suhren deu de facto esta ordem, ela não foi cumprida. Zdenka recorda um gesto de despedida diferente: «Ele mandou-me dois grandes sacos de sal, alguns sacos de farinha bafienta e uma prateleira de pães com que, supostamente, devíamos alimentar as doentes.» Marie-Claude disse que as últimas instruções de Suhren foram que as prisioneiras restantes deveriam cavar uma vala para enterrar os cadáveres que não fossem queimados, «e depois devíamos encher a vala em condições e fazer uma cruz para pôr em cima. E pensar que alguns dias antes as mulheres estavam ainda a ser exterminadas por gás». A meio da tarde, Fritz Suhren e todo o contingente da SS — entre ele Binz — já tinham partido para Malchow em camiões e em

automóveis ou em carroças puxadas a cavalo. Mal o pessoal da SS partiu, as prisioneiras começaram a explorar o seu campo de concentração. Encontraram pilhas de embrulhos da Cruz Vermelha nas caves dos edifícios centrais e nas casas dos SS; alguns tinham sido vasculhados, outros deixados por abrir. Uma cave estava cheia de açúcar, leite em pó, flocos de aveia, pão sueco, conservas, sabão, pasta de dentes, tudo com rótulos suecos, menos os cigarros, que eram americanos. A seguir, as mulheres inspecionaram o crematório, onde se empilhavam cadáveres parcialmente queimados, e espreitaram para a câmara de gás semidestruída, onde viram latas vazias de químicos com o nome Zyklon. Encontraram também oito caixotes de documentos, que puseram de lado para entregar aos Russos. Foi nessa altura, ao caminharem pelos bosques, que as mulheres encontraram os restos dos camiões com câmaras de gás, que Zdenka comparou a camiões de mudanças, com «um mecanismo que permitia que os gases do tubo de escape fossem bombeados para dentro». Disse que foram encontrados perto do Campo da Juventude. Aventurando-se até ao campo de concentração dos homens, também evacuado, encontraram cerca de 400 homens doentes que tinham sido deixados ali. «Viviam sem água há uma semana e estavam a morrer à fome e à sede», escreveu Marie-Claude. «Não pareciam homens, mas fantasmas, e o sofrimento tinha-os enlouquecido. Ninguém, mas ninguém mesmo, poderia descrevê-lo — ninguém acreditaria naquilo. Fizemos o que podíamos para os ajudar, mas nós próprias tínhamos tão pouco.» Em 30 de abril, as mulheres acordaram com o ribombar da artilharia russa, progressivamente mais atroador, com as rajadas de metralhadora tão perto que o céu por cima do muro à volta do campo estava todo iluminado. «Umas mulheres correram em pânico para a Lagerstrasse e uma delas ergueu os braços para o céu, com o cabelo todo desgrenhado, e ajoelhou-se no meio da estrada, a rezar aos berros», disse Zdenka. Um pequeno grupo saiu pelos portões para

descobrir a que distância se encontrava o Exército Vermelho. Outras prepararam camas para soldados soviéticos feridos e fizeram uma bandeira vermelha para pendurarem dos portões do campo de concentração quando soubessem que a libertação estava assegurada. Algumas ainda receavam que os Alemães fizessem ir o campo pelos ares. «Saímos um dia e não se ouviu a sirene, por isso dissemos, vamos lá preparar-nos para irmos pelos ares, vamo-nos despedir», disse Maria Vlasenko, uma das enfermeiras de Odessa, que tinha ficado. O primeiro soldado do Exército Vermelho a entrar pelos portões de Ravensbrück foi um jovem montado num cavalo branco e com um barrete de pele dourada — ou assim recordava Zdenka Nedvedova. Marie-Claude disse que ele veio de bicicleta: «Às 11h30, a guarda avançada do Exército Vermelho chegou, e ao ver o primeiro ciclista a entrar pelos portões do campo encheram-se-me os olhos de lágrimas e recordei as minhas lágrimas de raiva quando vi o primeiro motociclista alemão passar pela Place de l’Opéra cinco anos antes.» Antonina Nikiforova também viu o ciclista. «Toda a gente que conseguia correr veio cá para fora para o saudar.» A seguir, os Russos entraram pelos portões, em tanques e noutros veículos. «Corremos para eles e beijámo-los e enchemo-los de cigarros até eles nos dizerem para pararmos. “Estão loucas?”, berraram eles, “Já basta que nos beijem!”. E nós rodeámo-los e olhámo-los fixamente e chorámos. Ali estavam eles, todos cobertos de poeira, mas para nós eram a coisa mais preciosa do mundo.» Maria Goborotsova, de Tbilisi, na Geórgia, disse que os soldados «pareceram aterrorizados quando viram o estado em que nos encontrávamos. A seguir, disseram: “Meninas, vamos matar um porco e comer.”». Maria Vlasenko viu um comandante de um tanque saltar do seu veículo e encaminhar-se para elas. «Ele perguntou-nos, “Há aqui alguém de Maykop?”, que era a sua cidade natal. Ele tinha perdido a irmã, disse. E então a irmã dele deu um passo em frente. Ele mal a conseguia reconhecer e pôs-se a chorar.»

Segundo um testemunho do Exército Vermelho, os primeiros soldados chegaram de motorizada. Alexander Mednikov, um capitão da Segunda Frente Bielorussa, informou que uma patrulha de reconhecimento estava a passar perto de Fürstenberg quando viu um muro alto encimado por filas de arame farpado. «Os nossos artilheiros de submetralhadoras desceram das suas motorizadas e um deles, acidentalmente, tocou no arame com a mão e apanhou um forte choque elétrico [o que sugere que a eletricidade não tinha sido desligada, afinal] que o deitou por terra.» Alguns homens armados, provavelmente idosos da milícia de Volkssturm, estavam ainda a defender o campo de concentração. «Os nossos homens prosseguiram nas suas motorizadas ao longo do muro e deram com o portão, que também tinha um denso emaranhado de arame farpado por cima. E subitamente, do outro lado, uma metralhadora começou a matraquear. Os nossos homens já tinham compreendido que tipo de local era aquele e decidiram entrar, ao que os homens de Hitler fugiram e tentaram esconder-se por trás de uns barracões.» Minutos depois, o coronel Mikhail Stakhanov chegou num tanque: Depois de combater por toda a Rússia e pela Polónia, participei por acaso também na libertação do campo de concentração para mulheres de Ravensbrück. Passámos por cima do arame farpado nos nossos tanques e arrombámos os portões do campo. E depois parámos. Era impossível avançar, porque uma massa humana rodeava os tanques; as mulheres metiam-se debaixo dos nossos tanques e punham-se em cima deles, berravam e choravam. Não tinham fim. Tinham um aspeto horrível, de fatomacaco, esqueléticas; não pareciam seres humanos. Havia 3000 doentes, tão doentes que era impossível levá-las embora, estavam demasiado fracas.

Provavelmente, foi no dia a seguir à chegada da guarda avançada que Yaacov Drabkin apareceu em Ravensbrück. Conduzindo um jipe com altifalantes, Drabkin entrou pelos portões do campo de concentração, olhou rapidamente à sua volta e em seguida deu meiavolta e saiu; andava à procura de alguém. Drabkin era um jovem oficial político judeu integrado no 49.º exército da Segunda Frente Bielorussa. A sua função consistia em

recolher informações secretas e divulgar propaganda para minar a moral do inimigo. No final de abril, Drabkin estava colocado na pequena cidade de Gransee, a dezasseis quilómetros a sul de Fürstenberg. «Lembro-me de comemorar o meu aniversário no dia em que atravessámos o Oder, por isso deve ter sido alguns dias depois disso que ouvi falar de Ravensbrück. Não me parece que soubéssemos da existência do campo de mulheres antes, embora tivéssemos passado por Auschwitz, Majdanek e todos os outros campos. Para um judeu, evidentemente, era muito duro ver todas estas coisas.» Uma vez na Alemanha, Drabkin recolheu informações de adolescentes russos e ucranianos trazidos como mão de obra escrava para quintas e agora fluentes em alemão. «Passavam-nos recados a dizer, este alemão é bom tipo, não o matem, ou, este costumava tratar-nos mal, matem-no.» Os rapazes deram bastantes informações sobre Ravensbrück a Drabkin, que ele transmitiu ao seu quartel-general. Os seus superiores ordenaram-lhe que se dirigisse imediatamente ao campo de concentração e tentasse encontrar Rosa Thälmann. Os Soviéticos sabiam já que Ernst Thälmann, em tempos líder do Partido Comunista Alemão, tinha sido executado em Buchenwald. «Ainda tinham a esperança de encontrar a sua mulher viva, queriam saber o que ela sabia», disse Drabkin, sentado no seu gabinete forrado a livros em Moscovo. Como não conseguiu encontrar Rosa em Ravensbrück, percorreu Fürstenberg no jipe a chamar pelo seu nome nas ruas vazias através do altifalante. Os alemães tinham todos fugido. Demorei algumas horas, mas acabei por a encontrar. Ela tinha sido escondida numa pequena casa numa ruela. Encontrava-se em muito mau estado — esquelética, quase morta, como todas as outras. Ainda trazia vestidas as roupas da prisão. Já sabia que o marido tinha morrido e só queria saber o que tinha acontecido à sua filha.

Irma Thälmann, de vinte e seis anos, tinha sido levada para o subcampo de Neubrandenburg algumas semanas antes. Rosa não

sabia se a filha estava viva ou morta. As minhas instruções eram dizer-lhe que o nosso comandante ficara satisfeito por ela ter sobrevivido e faria tudo para a ajudar. Queríamos saber o que ela poderia dizer-nos sobre o campo, o partido, certas pessoas em quem estávamos interessados. Mas ela não conseguiu dizer-me nada, estava demasiado perturbada. Sentia-se aterrorizada com a possibilidade de algo que ela dissesse poder pôr a sua filha em perigo de alguma maneira. Era uma minúscula figura encolhida.

Qual foi a reação de Yaacov quando viu Rosa? «É difícil dizer», explicou ele, comovido com a recordação. «Uma mistura de compaixão e de pena.» Drabkin e o resto da guarda avançada soviética não tardaram a prosseguir para oeste, prometendo às prisioneiras que as unidades do Exército Vermelho na retaguarda trariam abastecimentos e pessoal médico para as ajudar. Enquanto esperavam, durante mais dois ou três dias, as mulheres penduraram a sua bandeira vermelha por cima da entrada, «para anunciar ao mundo que éramos livres», disse Antonina. As checas pediram «permissão» a Antonina para pendurarem a sua bandeira nacional no seu bloco e daí a pouco todas as nações tinham as suas bandeiras desfraldadas. Antonina descreveu como toda a gente redobrou os esforços para ajudar as doentes, elaborando gráficos de calorias, procurando comida e colchões, tentando começar uma limpeza geral. Não mencionou que tanto no campo de concentração como fora dele havia soldados russos a violarem sistematicamente prisioneiras e civis alemãs. A violência sexual do Exército Vermelho em Ravensbrück foi testemunhada por Ilse Heinrich, uma associal alemã que estava demasiado fraca para sair da cama quando chegou a guarda avançada soviética. Algumas horas depois, Ilse e outras prisioneiras acamadas viram soldados soviéticos bêbedos e decididos a violar até mesmo as mulheres que estavam doentes e a morrer. «E depois começou», disse ela. «Eu só tinha um pensamento naquela altura — morrer, porque era pouco mais do que um cadáver. Mais tarde, quando os oficiais mais graduados chegaram e montaram quartel no

campo, tivemos alguma paz e ordem. Mas primeiro tivemos de passar por aquilo! Foi o pior. E meio morta como eu estava.» É difícil dizer com exatidão quantas violações ocorreram dentro das instalações principais do campo de concentração de Ravensbrück. Muitas das vítimas — como Ilse Heinrich disse, já meio mortas — não sobreviveram tempo suficiente depois da guerra para falar do assunto. Antonina, a médica mais graduada do Exército Vermelho que tinha ficado no campo, aparentemente nunca o mencionou, nem as outras prisioneiras comunistas proeminentes. Só Zdenka optou por falar do assunto mais tarde, revelando que não só as doentes e as moribundas foram violadas como também mulheres no bloco de maternidade do campo. Após a evacuação, dezenas de mulheres numa fase demasiado avançada da gravidez para marcharem ficaram no campo, assim como mulheres com bebés recém-nascidos, todas alojadas no mesmo bloco. Pouco depois da chegada dos libertadores do Exército Vermelho, uma dessas mulheres correu para Zdenka aos gritos. «Ela gritou que os soldados tinham vindo e se tinham fechado no bloco e tentado violar as mulheres.» Zdenka foi ter imediatamente com o oficial superior soviético, o major Sergei Bulanov — um médico, que era muito respeitado —, implorando a sua ajuda. Bulanov deve ter averiguado que os homens tinham feito muito mais do que ameaçar as mulheres, porque pouco depois as prisioneiras ouviram tiros. «E na manhã seguinte ficámos a saber que os soldados tinham sido executados», recordou Zdenka. «Na altura, pensámos que aquela punição talvez tenha sido demasiado dura.» Embora muitas soviéticas mais velhas sentissem relutância em falar da sua violação, as sobreviventes mais jovens sentem-se menos constrangidas atualmente. Nadia Vasilyeva era uma das enfermeiras da Cruz Vermelha que se viram encurraladas pelos Alemães nos penhascos da Crimeia. Três anos depois, em Neustrelitz, a noroeste de Ravensbrück, ela e dezenas de outras mulheres do Exército Vermelho foram novamente encurraladas, dessa vez pelos seus próprios libertadores soviéticos, decididos a levar a cabo violações em massa.

Nadia era uma das que acompanhavam Yevgenia Lazarevna Klemm na estrada para Neustrelitz, onde se depararam com mais soldados russos. «Ao princípio, saudaram-nos como a irmãs», disse Nadia. «Lembro-me de que um soldado veio ter comigo e disse: “Está tudo bem agora; podes vir connosco.” Nós vimos os nossos tanques na estrada e ficámos a transbordar de júbilo.» Pouco depois, o comportamento dos soldados alterou-se. Já era de noite quando a coluna chegou a Neustrelitz, e «eles começaram a andar ao nosso lado, a perseguir-nos e a provocar-nos, e não nos deixavam em paz. A seguir, transformaram-se em animais. Estavam bêbedos». Tornou-se óbvio que as mulheres não tinham onde dormir na cidade. Havia muitas outras mulheres aqui também, não só as moças do Exército Vermelho, por isso fomos levadas para um grande edifício, como um armazém. Fomos conduzidas para uma grande divisão e durante todo o tempo eles assediaram-nos, mas nós estávamos cansadas e precisávamos de dormir, por isso entrámos nessa divisão. Era no primeiro andar. Os soldados seguiram-nos. Nós fechámos a porta, tentando mantê-los de fora. A Yevgenia Lazarevna tentou barricar-nos dentro da divisão. Eles berraram-nos que saíssemos. Pediam as mulheres mais novas. Era aterrorizador. Eu era uma das mais novas no grupo. Depois eles disseram: «Quem for virgem venha cá para fora ter connosco.» Começaram aos murros à porta e eu vi um homem a balouçar-se contra a janela e a cair dentro da sala, bêbedo. Estavam a começar a arrombar a porta e a Yevgenia Lazarevna tentou fazer tudo o que podia para nos proteger, dizendo-lhes que nós éramos mulheres do Exército Vermelho que tínhamos estado na frente de combate em Estalinegrado, em Leninegrado e na Crimeia. Tínhamos estado no campo de concentração durante dois anos. «Podem matar-me, mas não toquem nas moças», disse ela.

Uma outra das enfermeiras de Odessa, Ilena Barsukova, lembra-se das mulheres a gritarem e a chorarem e de Yevgenia Lazarevna a apelar à calma e a tentar fazer ver a razão aos soldados. Mas não conseguiu deter todos, e vários entraram. Depois veio um major e enxotou os bêbedos e a Yevgenia Lazarevna suplicou-lhe que ficasse e nos protegesse dos nossos soldados. E ele concordou. Então, na manhã seguinte, o oficial no comando veio e restaurou a ordem. Todas as moças ali teriam sido violadas nessa noite em Neustrelitz se não fosse a Yevgenia Lazarevna. Ela

defendeu-nos de todas as maneiras que pôde. Mas eu conheço muitas moças que foram violadas pelos nossos soldados; até mesmo moças que ficaram no campo de concentração foram violadas, e não só no nosso grupo.

Olga Golovina, a operadora de rádio do Exército Vermelho, agora a viver em Moscovo, descreveu como o seu grupo, que se tinha separado da coluna de Yevgenia Lazarevna, se encontrou numa vila deserta já tomada por soldados soviéticos. Atribuíram-nos uma casa e deram-nos comida, mas depois os soldados começaram a meter-se connosco. Já não tinham uma mulher há séculos. A minha amiga Masha era muito forte, como um homem, e defendeu-nos e enxotou-os. Fomos ter com o comandante para nos queixarmos e ele deu-nos dois soldados, que montaram guarda. Ficaram sentados lá fora ao princípio, mas depois nós tivemos pena deles e convidámo-los a entrar e tomar um chá. De manhã, eles disseram-nos que só agora se apercebiam do que tínhamos passado. «Uma de vocês estava a cantar no sono e outra a gritar alto e outra a soluçar. O que ouvimos pôs-nos os cabelos em pé», disseram eles.

Outras mulheres não arranjaram desculpas para os violadores soviéticos. «Estavam a exigir pagamento pela libertação», disse Ilena Barsukova. «Os Alemães nunca violaram as prisioneiras, porque nós éramos porcas russas, mas os nossos próprios soldados violaramnos. Ficámos indignadas por eles se comportarem assim. Estaline tinha dito que nenhum soldado devia ser feito prisioneiro, por isso eles sentiam que podiam tratar-nos como lixo.» Tal como as mulheres russas, também durante muito anos as sobreviventes polacas sentiram relutância em falar sobre as violações do Exército Vermelho. «Sentíamo-nos aterrorizadas pelos nossos libertadores russos», disse Krystyna Zając. «Mas não podíamos falar sobre isso mais tarde por causa dos comunistas, que nessa altura já tinham subido ao poder na Polónia.» Contudo, sobreviventes polacas, jugoslavas, checas e francesas deixaram relatos da sua violação mal chegaram às linhas soviéticas. Falaram de serem «perseguidas», «capturadas» ou «encurraladas» e em seguida violadas. Nas suas memórias, Wanda Wojtasik, uma das coelhas, diz que era impossível encontrar um só russo sem ser violada. Quando ela, Krysia e as suas amigas de Lublin tentavam encaminhar-se para leste

na direção das suas casas, foram atacadas a cada passo. Por vezes, a abordagem começava com atitudes românticas de «homens bemparecidos», mas essas abordagens não tardavam a degenerar em assédios e em seguida violações. Wanda não disse se foi ela própria violada, mas descreve episódios em que uns soldados saltaram para cima de amigas, as atacaram em casas onde elas estavam abrigadas ou as arrastavam para detrás de árvores, de onde elas reapareciam a soluçar e a gritar. «Ao fim de algum tempo, deixámos de aceitar boleias e não nos atrevíamos a aproximarmo-nos de nenhuma vila, e quando dormíamos alguém ficava sempre de vigia.» Izabela Rek, uma das coelhas cujas pernas foram gravemente mutiladas, não tinha esperança de escapar aos soldados soviéticos. Com a ajuda das amigas, Izabela tentou escapar para os bosques. Estávamos a caminhar na direção de um rio e subitamente os soldados russos chegaram. Um soldado disse-me que não me preocupasse, mas as outras foram arrastadas e eu ouvia-as gritar muito aflitas ali perto; a chorarem e a berrarem. Depois, eles atacaram-nos a todas e violaram-nos, embora soubessem que éramos prisioneiras. Quando denunciámos o que tinha acontecido a outro grupo de soldados, eles disseram, venham connosco e nós olhámos por vocês. Duas raparigas foram com eles, mas nunca mais voltámos a vê-las.

A professora francesa Micheline Maurel, que no final da guerra pesava só 35 quilos e estava destroçada pela disenteria e pela sarna, descreveu pormenorizadamente as violações sistemáticas. Em 1 de maio, Micheline viu pela primeira vez um soldado do Exército Vermelho. «Um sujeito grande e forte, bem-disposto e bemparecido», entrou no terreiro do celeiro onde ela e as suas amigas Michelle e Renée se escondiam depois de terem escapado da marcha de evacuação de Neubrandenburg. «Ele imediatamente violou a Michelle e depois partiu, atravessando o campo a correr com balas a voarem ao seu lado.» Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto procuravam comida na cidade em chamas de Waren, Michelle e Renée foram ambas novamente violadas várias vezes por russos que estavam abrigados em casas saqueadas. No segundo dia à «libertação», as três amigas ainda estavam

escondidas no mesmo celeiro quando chegou uma companhia de cossacos. «Pareciam tal e qual as imagens que vemos deles — homens soberbos, com barretes altos de astracã, casacos compridos cintados e botas com esporas, montados em cavalos magníficos a trotar pelo terreiro da quinta. Trouxeram-nos um gramofone e puseram a tocar música de dança. Ofereceram-nos vodca em grandes copos e isso atenuou as nossas dores.» Micheline diz que a única razão por que ela não foi violada foi porque persuadiu os soldados de que as suas chagas eram fatais e infeciosas. Mas a sua amiga Michelle não tinha chagas. «Eu tentei protegê-la, mas não serviu de nada», disse Micheline. «Nem era realmente uma questão de proteção, porque os Russos não tinham má intenção, qualquer espécie de rancor contra nós, muito pelo contrário, estavam cheios de extrema cordialidade, a transbordar de afeto, que tinham de demonstrar imediatamente. “Francesa? Tu francesa, eu russo, é tudo o mesmo! Tu és minha irmã. Anda deitar-te aqui.”» A cada dia que passava, a saúde do trio francês deteriorava-se; a cada dia que passava, mais russos atacavam as mulheres enquanto elas seguiam no seu caminho. A história era sempre a mesma. «Quer fossem louros grandes com bigodes de pontas caídas, pequenos mongóis amarelos com pernas arcadas ou soberbos cossacos morenos, a todos tínhamos de explicar: “Dois anos no campo de concentração, estamos exaustas, deixem-nos em paz.” Mas eles queriam fazer amor com as suas irmãs francesas.» Um dos russos, ao ouvir dizer que as mulheres eram sobreviventes francesas de um campo de concentração, pôs-se de pé e declarou com indignação: «Vocês são um dos países conquistadores como nós e dormem na palha, enquanto uma família alemã aqui ao lado dorme em camas.» Pegou na sua espingarda e acrescentou: «Eu vou matá-los. Vocês vão ter as camas deles.» O russo conduziu então as francesas para a casa onde uma família alemã com várias crianças estava a comer. Enquanto o russo apontava a sua espingarda aos alemães, gritando «Kaput, kaput», Micheline serviu de intérprete. O

agricultor alemão levantou-se e conduziu as mulheres para um quarto com camas. O russo despediu-se então, abraçando as mulheres francesas e levando uma das raparigas alemãs com ele. «Mais tarde, nessa mesma noite, ela regressou a casa a soluçar.» Há poucas dúvidas de que a pior violência foi infligida a mulheres alemãs. «Lembro-me de a minha mãe apertar a minha irmã pequena ao peito com força como uma espécie de gesto de proteção. Ela disse que os Russos tinham respeito por crianças pequenas», recordou Wolfgang Stegemann, nessa altura um garoto de doze anos de Fürstenberg. Os soldados alemães tinham abandonado Fürstenberg cerca de uma hora antes. «Estava tudo em silêncio, depois ouviu-se um grande ruído e os Russos entraram na vila a pé. Na sua maioria estavam bêbedos e entraram nas casas e destruíram tudo. Houve muitas atrocidades. Muitas violações.» Rudolf Rehländer, que se criou na mesma vila que Dorothea Binz, a cinco quilómetros, recordava-se do que aconteceu quando o Exército Vermelho chegou a Altglobsow. «Os primeiros entraram de roldão pelas nossas casas. Tudo foi saqueado — botas, roupas. Partiram da vila com cinco ou seis relógios no pulso. Depois começaram a violar. As primeiras tropas foram as piores. Foram os responsáveis pela maior parte das violações. Quase todas as mulheres da vila foram violadas, a não ser que conseguissem esconder-se.» Perguntei se a mãe de Dorothea ainda se encontrava na vila. Rudolf achava que sim, porque a família dele geria o bar da vila onde Rose Binz ia beber. «Eu tinha a tarefa de encher os copos e não conseguia encher o copo da Rose Binz com rapidez suficiente.» Era o mesmo por toda a parte, diz Rudolf, e praticamente não havia homens na vila naquela altura; estavam na frente de combate ou tinham fugido ou cometido suicídio. Rudolf, na altura com dezassete anos, era um dos mais velhos dos que tinham ficado, por isso ele e os outros rapazes mais crescidos tiveram de enterrar os corpos. O presidente da câmara e três outros destacados nazis da vila suicidaram-se.

Lembro-me de que estávamos a enterrar o presidente da câmara quando alguém berrou: «Venham depressa», porque tinham encontrado o Ortsbauernführer [o líder dos camponeses]. Corremos para lá e deparámo-nos com uma cena horrível. Tanto ele como a mulher tinham sido enforcados, mas os corpos tinham sido tirados da corda e estavam prostrados no chão. A mulher estava nua da cintura para baixo e tinha um pau enfiado na vagina. Estava ali deitada na floresta, e eu tive de os enterrar.

Perguntei ao oficial dos serviços secretos do Exército Vermelho Yaacov Drabkin o que pensava das atrocidades. Sim, tudo isso aconteceu. Depois do que os nossos soldados tinham visto e daquilo por que tinham passado, era difícil dizer-lhes para não matarem todos os alemães que vissem. Quando a guerra acabou, eu tive de falar com a população alemã, explicando que o Exército Vermelho não era tão mau como isso. Tive de responder perante a nação alemã por todos os nossos crimes e em resposta ouvia sempre falar das violações.

Perguntei-lhe sobre as violações das prisioneiras de Ravensbrück. Ao princípio, ele mostrou-se surpreendido que tivesse acontecido, «já que elas se encontravam num estado terrível». Disse: Deve-se compreender que foi uma guerra monstruosa terrível, terrível, e que toda a gente se tinha tornado completamente inumana. Os soldados tinham acabado de abrir caminho por entre os incêndios de Danzig. Toda a cidade estava em chamas. Depois disso, só queriam manter-se vivos até ao fim. E lembre-se de que em Fürstenberg ainda não tinha acabado. Berlim ainda não tinha sido tomada. Faltavam ainda vários dias para acabar.

No início de maio, quase todas as tropas de combate tinham já avançado de Ravensbrück, mas o major Bulanov ficou para trás para manter a ordem, mudando-se para a casa de Dorothea Binz. Ele «comportou-se decentemente» e tentou ajudar as mulheres, mas o campo de concentração estava agora num caos, com prisioneiros de ambos os sexos a vaguearem pelo complexo a saquearem e a destruírem o que encontravam. Ele e o seu pessoal não conseguiam determinar o número e a identidade das prisioneiras. Não conseguiam manter um registo das mortes. «As mulheres começaram a morrer mais depressa do que nunca depois de chegarem os Russos», disse Kamila Janovic, uma polaca que ficou no campo de concentração para ajudar. «Penso que elas se tinham esforçado tanto por se

aguentarem até à libertação que quando se descontraíram morreram.» Como não havia maneira de queimar ou sepultar os cadáveres, eles continuaram a empilhar-se. Muitas prisioneiras morreram a milhas do campo, possivelmente por comerem e beberem em quantidades excessivas que os seus corpos esqueléticos não conseguiam digerir. As prisioneiras começaram a vaguear por Fürstenberg. «Lembrome de as ver sentadas nas ruas e à sombra das árvores», disse Wolfgang Stegemann. «Pareciam muito silenciosas. Muito tímidas.» O major Bulanov ordenou à população local — nessa altura, maioritariamente mulheres — que fosse ao campo de concentração ajudar a limpar tudo e a sepultar os mortos. «Quando a minha mãe voltou, vinha muito triste e deprimida, mas nunca me disse o que tinha visto», recordou Stegemann. As tropas soviéticas trouxeram comida melhor, assim como sangue e medicamentos, e voltaram a ligar a eletricidade. Camilla Sovotna recorda-se de ver chegar um padre francês, e apareceu uma britânica chamada Pat para ajudar. Um dia, Marie-Claude foi à procura de colchões nas casas do pessoal da SS e encontrou um prisioneiro a dormir numa cama grande, «com a cabeça numa almofada de penas e coberto por um edredão de cetim cor-de-rosa». Noutro dia, entrou na casa de Suhren. Encontrou um piano e tocou durante horas. «Senti crescerem em mim esperanças e desejos que estavam enterrados há muito tempo.» A oitenta quilómetros a noroeste, Fritz Suhren estava a fugir para salvar a pele. A sua aposta no subcampo de Malchow como um último porto de abrigo seguro para a SS foi um tiro que lhe saiu pela culatra. Em 2 de maio, era já claro que eram as tropas do Exército Vermelho, não as americanas, que se aproximavam de Malchow, que seria tomado daí a horas. Segundo Odette, refém há quatro dias, o campo de concentração estava pejado de cadáveres, com os homens da SS a abrirem fogo periodicamente sobre os prisioneiros. Quando mais prisioneiros chegaram em enxurrada e a carnificina

aumentou, Odette pediu a Suhren que abrisse os portões e deixasse partir toda a gente. Ela descreveu ao seu biógrafo a cena junto ao gabinete de Suhren. Na rádio ouvia-se a notícia de que Berlim tinha sido tomada, os Alemães tinham-se rendido em Itália e os Britânicos tinham tomado Lübeck. Dentro do gabinete, Odette encontrou Suhren em lágrimas. «Adolf Hitler, o Führer da Alemanha, está morto. Morreu como um herói na linha da frente do combate», disse-lhe Suhren, «com os lábios a tremerem com a dor incontrolável.» Suhren disse a Odette que entrasse para o seu Mercedes-Benz preto, juntamente com duas polacas que tinham trabalhado para ele em Ravensbrück e o seu cão branco Lotti. Partiram, escoltados por homens da SS armados em viaturas à frente e atrás. Ao fim de cerca de duas horas, os automóveis pararam junto a um bosque. «Ele [Suhren] abriu a mala, tirou um braçado de documentos oficiais, foi até junto às árvores e fez uma fogueira. Eram registos de Ravensbrück. Quando os papéis arderam, espalhou as cinzas com o pé, assegurando-se de que não restava nada.» Em seguida, Suhren voltou-se para Odette e disse: «E já está. Tem fome?» Apresentou-lhe sanduíches «embrulhados num guardanapo branco», um frasco de cerejas cristalizadas e uma garrafa de vinho. Mostrou-lhe o rótulo — Nuits-Saint-George — e disse: «Aí tem. Um verdadeiro Borgonha francês.» A caravana prosseguiu viagem e ao fim de algum tempo Suhren disse a Odette que ia levá-la aos Americanos. Ela não acreditou em Suhren e disse-lhe que quando os Americanos vissem a escolta da SS abririam fogo, «e seremos todos mortos». Suhren respondeu: «Tem toda a razão», e parou para dizer aos outros carros que mantivessem uma boa distância do dele. Chegaram à pequena vila de Rostoff depois de anoitecer. Odette viu um grupo de militares com uniformes que não lhe eram familiares num ponto onde a estrada estreitava. «Um deles pôs uma arma na dobra do braço, parou no meio da estrada e gritou a mandar parar o automóvel.» Num inglês estropiado, Suhren disse ao soldado americano: «Esta é Frau Churchill. Ela é parente de Winston

Churchill, o primeiro-ministro de Inglaterra.» Odette contou que em seguida saiu do automóvel e acrescentou: «E este é Fritz Suhren, o comandante do campo de concentração de Ravensbrück. Por favor, façam-no vosso prisioneiro.» Enquanto os Aliados avançavam, conquistando a última faixa de território, as prisioneiras que vagueavam em terras de ninguém deparavam subitamente com tropas americanas, russas, francesas e britânicas. Em 5 de maio, os subcampos restantes tinham já sido libertados, com a exceção de Neurolau, nas montanhas de Sudeten. Ali, nesse dia, Maria Bielicka e as suas camaradas polacas ainda aguardavam o fim da guerra. Depois de os guardas da SS as deixarem escondidas no armazém de cerveja, Maria e o seu grupo regressaram a Neurolau. Sabiam que, provavelmente, o gerente alemão da fábrica de porcelana ainda se encontrava aí, mas também calculavam que todos os guardas da SS deviam ter fugido. Neurolau parecia o lugar mais seguro para aguardar a libertação. Do outro lado das montanhas de Sudeten, a alguns quilómetros de Neurolau, estava em curso uma das batalhas finais da guerra na Europa. As forças americanas tinham cercado mais de cem mil soldados alemães, incluindo duas divisões panzer, cujos comandantes se recusavam a render-se. «Não fazíamos ideia do que se estava a passar», disse Maria. Começámos a perguntar-nos se a guerra alguma vez terminaria. Então, um dia descobrimos, de alguma maneira, que estava acabada, e, chorando como loucas, decidimos que não íamos ficar ali sentadas mais tempo. Descobrimos que os Russos só estavam a catorze quilómetros de distância e não queríamos cair nas mãos deles. Mas tínhamos de agir depressa se queríamos chegar aos Americanos a tempo. Então, eu fui ter com o diretor da fábrica e disse: «Para amanhã preciso de um camião e de um condutor, de trinta pães e de três sacos de batatas.» Ele acedeu, mas perguntou se eu podia mandar o camião de volta com o condutor quando já não precisasse dele. Ele disse que os Russos não tardariam a chegar e quereriam verificar o inventário e ele ficaria metido em trabalhos se faltasse o camião. O estúpido do homem devia ter escapado no camião em vez de se preocupar com aquilo.

Perguntei-lhe o que aconteceu ao homem. Não sei nem me interessa. Provavelmente, foi morto a tiro. Mas nós conseguimos o camião. E, sabe, antes de partirmos ele convidou-nos para vermos a sua exposição de porcelana fina. Lembro-me que eles nos mostrou um lindo serviço de jantar feito antes da guerra para o nosso Presidente, com a Águia Polaca. Queria mostrar que estava do nosso lado. A seguir, desejou-nos felicidades e tentou dar-me um aperto de mão. Eu disse: «Não, recuso-me a fazê-lo.» Era demasiado tarde para isso.

O condutor do camião levou cerca de trinta mulheres a cinco quilómetros de distância e deixou-as num cruzamento, regressando para transportar um segundo grupo. «Ali paradas, vimos subitamente um soldado americano. Ele estava sentado sozinho na berma da estrada a fumar, assim, sem mais», disse Maria, imitando alguém a dar uma passa lenta num cigarro. Dirigimo-nos para ele e ele disse: «Mas quem é que vocês são?» Nós dissemos: «Somos de um campo de concentração.» Ele disse: «O que é isso?» Nós estávamos a falar em inglês, mas pouco depois descobrimos que ele era um polaco de Chicago. Ele disse: «Oh, meu Deus, o que é que eu faço com vocês? Têm fome?»

A seguir, olhou mais uma vez para nós e disse: «Olhem, não podemos fazer nada por vocês hoje, estamos muito ocupados. Acabámos de fazer prisioneiros cerca de um milhão de alemães.» Depois, o americano pôs-se de pé e disse: «Cheguem aqui um minuto.» Pensámos que aquilo era estranho e ele levou-nos ao cimo da colina e apontou para baixo e nós pusemo-nos a olhar para um mar de alemães. Ele disse-nos que era a totalidade do Sétimo Exército de Hitler. Tinham acabado de se render. Havia montes deles até onde a vista alcançava. Estavam deitados, sentados, de pé. Havia tanques e montanhas de munições. E ali estávamos nós, com as nossas roupas de prisioneiras, de pé a olhar para eles. Pode imaginar o nosso júbilo.

EPÍLOGO Em 28 de abril, sob um céu tempestuoso, o ferry do meio-dia proveniente de Copenhaga atracou nas docas de Malmö, e as primeiras prisioneiras libertadas de Ravensbrück pelos Autocarros Brancos de Bernadotte desembarcaram. «Todas com farrapos finos, com calçado de cartão e de madeira e pedaços disto e daquilo», escreveu um jornalista. Algumas vinham em macas. Outras traziam caixas da Cruz Vermelha e pequenos embrulhos com listas das mortas. Ann Sheridan trazia um frasco de veneno tirado às escondidas do Campo da Juventude. Uma holandesa, Anne Hendrix, trazia o seu bebé de dois meses a dormir num caixote. Uma vez em terra, as mulheres olharam em frente e viram uma série de tendas, das quais apareceram homens de bata branca que lhes pediram que se despissem; as mulheres desataram aos gritos, aterrorizadas. Dentro das tendas, foi-lhes aplicado um produto desinfetante e pediram-lhes que se pusessem debaixo dos chuveiros. «Nós pensámos, que pesadelo é este outra vez?», recorda Yvonne Baseden. Pela sua parte, os médicos que examinaram as mulheres à chegada sentiram-se horrorizados com o que viram. Um deles recordou como uma mulher gritou quando o viu — um homem de bata branca. Gritava sem parar: «Eu não quero ser queimada, eu não quero ser queimada.» Algumas das enfermeiras desmaiaram. Na primeira noite, as mulheres ficaram alojadas na citadela de Malmö, parte da qual albergava um museu; Yvonne viu-se a dormir por baixo de um dinossauro. Quando George Clutton, o segundo-secretário da legação britânica em Estocolmo, chegou para registar a chegada do contingente britânico, as mulheres estavam a recuperar as forças e saudaram-no com crachás da bandeira inglesa, a Union Jack, que Lady Mallet, a mulher do embaixador britânico na Suécia, lhes tinha enviado.

Algumas tinham feito caracóis no cabelo e adquirido malas de mão e joias, oferecidas pela população de Malmö. Para o jovem diplomata, as mulheres britânicas constituíam uma visão espantosa. Julia Barry, a polícia do campo húngara, era «uma senhora muito bem-disposta e pateticamente patriótica em relação às ilhas do canal. A sua principal ansiedade é regressar à sua ilha e encontrar as três garrafas de xerez que escondeu no seu piano imediatamente antes de ser detida», observou Clutton. Barbara Chatenay tinha «obviamente sofrido muito», mas estava «bem-disposta e serena». Tinha sido selecionada por duas vezes para a câmara de gás, disse a Clutton, mas depois de protestar que não podiam exterminar por gás uma mulher inglesa, foi poupada em ambas as vezes. A mais digna de nota era a condessa Françoise de Laverney, que «sofreu seis semanas de prisão solitária, durante as quais só lhe deram de comer uma vez por semana. Estava muito debilitada, mas absolutamente positiva. Tinha em sua posse um valioso anel de diamantes, uma pulseira de diamantes e um alfinete de diamantes que dizia ter mantido escondidos dos Alemães engolindo-os constantemente». Clutton disse que as mulheres mostravam um «júbilo pela vida que nunca encontrei em nenhum outro ser humano», acrescentando que tal poderia dever-se à sensação de «triunfo sobre a morte e o mal». Certamente por saberem que tinham sobrevivido por pura sorte. Observou que outras britânicas não tiveram a mesma sorte. Uma Miss Jackson foi assassinada no Campo da Juventude e uma Sra. Gould, de Jersey, foi «exterminada por gás e cremada». Clutton ouviu falar de uma irlandesa «que morreu à fome no Bloco 22», e soube que Pat Cheramy, a campeã de golfe britânica, foi «mandada para Mauthausen. Destino desconhecido». Mary Young, a enfermeira escocesa, «foi morta no Campo da Juventude, demasiado doente para resistir». A notícia do assassínio das mulheres do SOE foi comunicada a Baker Street. Pensava-se que uma das mulheres do grupo, Yvonne Rudellat, tinha partido no último transporte para Belsen.

Clutton tinha igualmente ordens para elaborar um relatório sobre o próprio campo de concentração, o que era difícil, já que os relatos das mulheres «davam um efeito de telescópio retroativo», mas encontrou «uma mulher francesa muito inteligente chamada Germaine Tillion» em cujas informações poderia confiar. Germaine, que começou a comunicar a sua análise do campo mal chegou a local seguro, informou Clutton sobre o trabalho escravo, dizendo que implicava «dar às prisioneiras só comida suficiente para as manter vivas durante o tempo em que pudessem ser úteis e depois matá-las e substituí-las por outra pessoa». Quando o relatório de Clutton aterrou nas secretárias do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Londres, provocou poucos comentários sobre as histórias notáveis daquelas mulheres britânicas arrancadas a Ravensbrück. Havia muito mais a dizer sobre se seria apropriado o Tesouro Público abrir os cordões à bolsa para demonstrar a sua apreciação a Sven Frykman, o motorista sueco responsável por conduzir as britânicas para a liberdade. Após uma série de mensagens oficiais sobre a questão, chegou-se à conclusão de que seria melhor dar a Frykman um relógio de ouro. Na Alemanha, o campo de concentração estava a esvaziar-se rapidamente. Em meados de maio, as últimas sobreviventes estavam já a encaminhar-se para casa — algumas foram a pé para Praga, Varsóvia ou até Viena, juntando-se aos milhões de refugiados, exprisioneiros e soldados alemães capturados nas estradas da Europa. Micheline Maurel e a sua amiga Michelle fizeram parar uma carroça com uma bandeira francesa desfraldada e conseguiram uma boleia. Ao chegarem a um campo americano, meteram-se numa longa fila de homens à espera de sopa. Um soldado americano avistou-as, pegoulhes na mão e levou-as para a frente da fila, dizendo: «As senhoras primeiro.» Micheline tentou agradecer-lhe, mas desatou a chorar. Mães por toda a Europa choravam ao verem as suas filhas aparecerem subitamente à porta de casa, mas muitas sobreviventes

não tinham casa para onde ir. As ciganas que chegaram às suas terras natais na Áustria encontraram vilas inteiras destruídas. Muitas pessoas esperaram em casa, mas ninguém regressou. O judeu espanhol Louis Kugelman, libertado de Buchenwald, ficou a saber que a sua mulher tinha morrido em Ravensbrück e que a sua filha de cinco anos, Stella, tinha desaparecido sem deixar rasto; começou a procurá-la. As russas foram quem teve de esperar mais tempo para regressar. Foram todas detidas nos chamados «campos de filtragem», onde se viram obrigadas a submeterem-se a verificações conduzidas pelo SMERSH, que tinha já começado a procurar «traidores». Antonina Nikiforova foi uma das suas primeiras vítimas. Enquanto aguardava a sua repatriação, Antonina passou o tempo a recolher mais materiais para o seu livro, mas essa iniciativa chegou aos ouvidos do SMERSH, que confiscou os seus apontamentos e o manuscrito e os usou para inventar provas de que ela era uma colaboradora nazi. Em seguida, persuadiram Valentina Chechko, a camarada de Antonina, a acusá-la. Num depoimento prestado ao SMERSH em 15 de junho de 1945, Chechko declarou que Antonina Nikiforova «participou na seleção de pessoas para o extermínio» em Ravensbrück e que «por duas vezes deu veneno a pessoas doentes». Valentina confessou também que ela própria tinha selecionado pessoas para serem exterminadas. Tratava-se da mesma Valentina Chechko que mais tarde seria julgada em Simferopol e que acusaria outras camaradas. Num outro campo de filtragem, Yevgenia Klemm aguardou a sua vez trabalhando como tradutora para um general russo. Outras trabalharam num tribunal militar soviético onde guardas de Ravensbrück foram levados a julgamento, embora vários guardas alemães tenham sido linchados antes. No final do ano, a maior parte das mulheres russas estava já a amontoar-se em comboios para leste, levando consigo malas, sacos e sacolas, todos cheios de objetos pilhados em casas alemãs abandonadas. Ilena Barsukova recordou que Yevgenia Klemm levou mais do que qualquer outra; a sua carruagem ia cheia até ao teto com

panelas e tachos, livros, cobertores, roupas velhas. «Ela sabia que não tinha nada para onde ia voltar», recordou Ilena. «A minha mãe tinha uma vaca e uma galinha, por isso, pelo menos havia comida, mas a Yevgenia já não tinha família.» Contra a maré de refugiados da Europa, um exército de vitoriosos — diferente das forças combatentes — estava a instalar-se na Alemanha. Eram homens e mulheres, tanto civis como soldados, nomeados para instalar o governo militar, dividir a Alemanha em zonas de ocupação e perseguir os criminosos de guerra. Frizt Suhren, detido num posto americano na companhia de Odette Sansom, foi um dos primeiros criminosos de Ravensbrück a cair nas mãos dos Aliados. Ao ouvir dizer que o comandante de Ravensbrück tinha sido capturado, a agente do SOE britânico Vera Atkins deslocou-se de avião à Alemanha para o interrogar sobre as suas agentes desaparecidas. Acompanhada por um major escocês, Angus Fyffe, Vera — no seu uniforme da WAAF — entrou na sala dos interrogatórios num campo de internamento em Paderborn e encontrou Suhren, um homem anteriormente sempre elegante, de meias, ceroulas e camisa. Suhren fez a continência a Atkins, mas ela não conseguiu arrancar-lhe nada; ele negou até que houvesse britânicas em Ravensbrück para além de Odette. Nos últimos dias caóticos no campo de concentração, Suhren foise abaixo, sem acesso a novas ordens, mas naquele momento estava claramente a obedecer de novo a ordens; essas, passadas entre os homens da SS capturados que estavam detidos em campos de internamento, eram que nenhum devia admitir ter feito fosse o que fosse, para não implicar os seus camaradas. Vera interrogou a seguir duas guardas detidas no mesmo campo. Segundo Angus Fyffe, uma era «uma mulher de meia-idade de mentalidade muito baixa» e a outra «parecia meio tonta». Essas guardas confirmaram que havia mulheres britânicas no campo de concentração e Atkins e Fyffe confrontaram Suhren de novo; ele continuou a não confessar nada, mas «ficou ligeiramente

sobressaltado» à menção do crematório. «Nessa altura já estava escuro e a cela estava iluminada por uma lâmpada fluorescente, que dava a Suhren uma cor adoentada», recordou Fyffe. Pouco depois, Percival Treite apresentou a sua rendição num posto de controlo britânico, dizendo que tinha desertado do seu posto em Ravensbrück em 30 de abril «para evitar combater, porque o seu pai era um súbdito britânico». Dorothea Binz — vista pela última vez a fugir do subcampo de Malchow de bicicleta — não tardou a ser detida e ao fim de alguns meses foi levada para uma pequena prisão britânica nos bosques perto de Minden. Quando se aproximava da prisão, Binz desmaiou de medo e teve de ser levada em braços. Talvez tivesse ouvido falar do destino da sua colega de Ravensbrück Irma Grese, que também tinha prestado serviço em Auschwitz e em Belsen, e que recentemente tinha sido enforcada. Grese disse uma única palavra ao seu carrasco inglês, Albert Pierrepoint: «Schnell.» Dentro da prisão britânica, deram lã e agulhas a Binz para ela acalmar os nervos a tricotar. No outono de 1945, as atenções do mundo concentravam-se em Nuremberga, onde os Aliados estavam a julgar os principais criminosos de guerra nazis: Göring, Von Ribbentrop, Hess, Speer e outros como eles. Esses eram «os grandes conspiradores», disse Robert H. Jackson, o principal advogado de acusação dos Estados Unidos, «homens de posição e alta patente que não sujaram as próprias mãos com sangue, mas que sabiam como usar a arraia-miúda como seus instrumentos». O objetivo dos tribunais militares em Nuremberga era revelar como a conspiração nazi se tinha desenvolvido. O «grande plano» foi executado, nas palavras de Jackson, «atingindo um objetivo e depois partindo para atingir um objetivo mais ambicioso».

Quando os vinte e quatro homens «de posição e alta patente» foram levados do banco dos réus em Nuremberga, dezasseis elementos da «arraia-miúda», sete mulher e nove homens, entraram no banco dos réus do Tribunal N.º 1 de Crimes de Guerra em Hamburgo. Estava-se a 5 de dezembro de 1946 e o campo de concentração para mulheres de Ravensbrück iria ter toda a atenção sobre si no primeiro de seis casos preparados por investigadores britânicos. Localizado no setor russo da Alemanha ocupada,

Ravensbrück deveria ter sido julgado pelos Russos, mas Moscovo não mostrara interesse em o fazer. Como os Britânicos tinham um especial conhecimento do caso, em grande medida devido à investigação de Vera Atkins sobre as mulheres do SOE, a GrãBretanha encarregou-se do julgamento. O pano de fundo em Hamburgo — ruas atulhadas de escombros e com crateras de bombas — recordava Nuremberga, mas o ambiente era completamente diferente: menos grandioso, mais íntimo, mais feminino. As mulheres, entre elas três Kapos, foram as primeiras a entrar no banco dos réus; em seguida, entraram os homens, envolvendo-se em conversas animadas com os seus advogados. Cada prisioneiro trazia um número a negro num cartão branco pendurado ao pescoço. Ambos os comandantes estavam ausentes: Max Koegel tinha-se enforcado com uma tira de um cobertor. Fritz Suhren tinha escapado da sua cela dias antes do julgamento. Também outros tinham desaparecido. De qualquer modo, os que se encontravam no banco dos réus eram representativos dos crimes, especialmente porque Johann Schwarzhuber, o especialista de extermínio por gás treinado em Auschwitz, tinha recentemente caído nas mãos dos Britânicos. Indubitavelmente, as mãos de todos os acusados estavam bem manchadas de sangue, embora aqueles da «arraia-miúda» não parecessem assassinos em massa. Só daí a quinze anos a escritora americana Hannah Arendt viria a cunhar a expressão «a banalidade do mal» no seu relato do julgamento em 1961 em Jerusalém de Adolf Eichmann, mas um escritor chamado Jerrard Tickell, sentado no banco da imprensa em Hamburgo, identificou o mesmo fenómeno ali. As guardas no banco dos réus «poderiam ter saído de uma fila para o pão em qualquer cidade alemã», escreveu ele. Binz deu-se até ao trabalho de fazer uma permanente no cabelo para a ocasião. Elisabeth Marschall estava sentada «muito direita, como se tivesse uma cinta de granito», disse Tickell. As Kapos davam mais nas vistas: Carmen Mory, a Blockova do Bloco 10, tinha um

esgar no rosto e usava uma pele de raposa fulva; Vera Salvequart — «a Dra. Vera», a «enfermeira» do Campo da Juventude — tinha uma expressão de «carnalidade preguiçosa» e vestia também um casaco de peles, adquirido — ao que constava — com o produto da venda de dentes de ouro, que guardava na parte de trás de um carro que lhe foi dado por militares americanos quando ela estava em fuga. Os homens também pareciam normais. Só Percival Treite se destacava; pareceria «mais no seu elemento num consultório de Harley Street», disse Tickell, provavelmente uma pose estudada para acentuar as suas origens inglesas. Mas era precisamente a normalidade dos réus de Hamburgo que tornava aquele drama tão chocante. Em Nuremberga, o tribunal ouviu as motivações dos «grandes conspiradores», mas em Hamburgo ficaram a conhecer umas moças de província chamadas Binz e Bösel, que foram trabalhar para Ravensbrück e depois fizeram o que lhes mandavam. Quando perguntaram a Grete Bösel porque é que ela tinha cometido os seus crimes, ela respondeu: «Eu comportei-me decentemente, mas ao fim de duas semanas mudei e aceitei os métodos que eram geralmente usados.» Quando perguntaram a Dorothea Binz porque é que ela não contara a ninguém as atrocidades que tinha presenciado, ela respondeu: «Não valia a pena, porque toda a gente sabia.» Aos dezanove anos, quando começou a trabalhar no campo, Dorothea era uma página em branco. Aprendeu sobre a vida durante os seus seis anos como guarda em Ravensbrück: o mundo do campo de concentração parecia-lhe — a ela — normal. Em Nuremberga ouvira-se falar sobre «crimes contra a humanidade», ao passo que em Hamburgo os juízes ouviram falar de crimes contra mulheres, que tinham um especial poder de provocar choque — e repugnância. Os advogados da acusação sabiam-no. O jovem advogado John da Cunha, de vinte e três anos, que mal tinha começado ainda a sua carreira na advocacia, ficou fisicamente enjoado quando leu pela primeira vez os testemunhos de

Ravensbrück ao preparar-se para o caso. «Endureci ao fim de algum tempo, tornei-me menos sensível», disse-me ele. «É o que acontece.» Como os juízes — todos homens —, embora empertigados nos seus uniformes militares, ainda não tinham «endurecido», Stephen Stewart, o principal advogado de acusação, avançou cautelosamente no discurso de abertura. «Em Mecklenburg, a cerca de oitenta quilómetros a norte de Berlim, existe um grupo de lagos aos quais a fina-flor da que era então a grande capital costumava ir aos fins de semana», disse ele, antes de prosseguir falando sobre «as coisas inomináveis feitas a corpos de mulheres», como que tentando atenuar os horrores particulares que se seguiriam. Pouco depois, as «coisas inomináveis» eram expostas claramente, mas era difícil descrevê-las a quem não tivesse lá estado. Em Nuremberga, o tribunal pôde contar com filmes «que deram a volta ao estômago de todo o mundo» e com toneladas de documentos nazis apreendidos. Quase não havia fotografias em Hamburgo, e poucos documentos para além daqueles que as prisioneiras tinham conseguido trazer às escondidas. Por conseguinte, a acusação apresentou desenhos feitos pela prisioneira Violette Lecoq, «para evocar a imagem do aspeto que Ravensbrück devia ter»; entre eles contava-se o seu esboço a tinta, Agonies Juives, mostrando cinco corpos de mulheres tombados sobre cinco carrinhos de mão, como Violette os vira depois de elas desfalecerem a caminho da Siemens. «A inteligência dos juízes aceita as provas, mas a sua imaginação vacila com elas», comentou Tony Somerhough, o chefe da unidade britânica de crimes de guerra. Germaine Tillion criticaria mais tarde os julgamento, dizendo que era impossível julgar os crimes do «mundo anormal» dos campos de concentração com os parâmetros de um tribunal «normal». Os dois mundos colidiriam com toda a certeza, porque nem os juízes nem os advogados poderiam alguma vez capacitar-se plenamente dos horrores dos campos de concentração. Só os acusados e as testemunhas compreendiam o «mundo anormal», disse Germaine, o

que os tornava parceiros na partilha desse horrendo conhecimento; o resto do tribunal estava às escuras. Por exemplo, ninguém no tribunal seria capaz de imaginar o que acontecera no Idiotenstübchen (sala das idiotas), mas Loulou Le Porz, Violette Lecoq e Jacqueline Héreil partilhavam essa informação horrenda com Carmen Mory, que acusaram do banco das testemunhas, enquanto a ex-Blockova as fitava com uma expressão venenosa e despachava mensagens para os seus advogados a acusar as «cadelas francesas» de mentirem. Treite estava também a par do que se passara no Idiotenstübchen; tinha feito experiências nos cérebros das «idiotas» para ver o que as tornava «loucas», aparentemente sem se aperceber de onde residia a verdadeira loucura. Johann Schwarzhuber talvez fizesse uma ideia. Seguindo o conselho dos seus advogados, nunca prestou declarações, mas olhava muitas vezes do banco dos réus e tentava atrair o olhar de John da Cunha. «Era como se ele quisesse que eu soubesse que ele compreendia, de algum modo.» Diz-se frequentemente que os homens da SS e os seus subordinados tiveram facilidade em matar nos campos de morte da Polónia porque não chegaram a conhecer as suas vítimas, tal era a velocidade e a escala industrial dos assassínios. Mas em Ravensbrück, tão mais pequeno, e operacional durante tanto tempo, eles conheciam bem as prisioneiras. O ódio de Irene Ottelard pelo Dr. Treite era tão pessoal que no banco das testemunhas, quase cega, pediu que lhe dessem a mão e a guiassem até ao banco dos réus para poder olhá-lo nos olhos. A recusa de Treite de lhe tratar a perna infetada significara que fora selecionada para o Campo da Juventude, «onde as pessoas se prostravam e morriam». Quando lhe perguntaram como tinha sobrevivido no Campo da Juventude, ela disse: «Suponho que era o meu destino, porque era necessário que pelo menos algumas testemunhas do que aconteceu regressassem para contar a verdade. É por isso que estou viva.» Tal como em Nuremberga, em Hamburgo houve acusações de

«justiça dos vitoriosos»: só os crimes cometidos contra nacionais dos países aliados foram examinados, o que deixou um azedume duradouro entre os sobreviventes alemães. No entanto, a acusação em Hamburgo obteve resultados apreciáveis. Em pouco tempo, o tribunal coligiu o grupo mais importante de provas sobre Ravensbrück e concluiu nos termos mais claros o simples facto de que tudo no campo de concentração tinha o objetivo de matar. Do número total de prisioneiras que passaram pelo campo — segundo as estimativas da altura, 123 000 —, cerca de 90 000 morreram, foi dito em tribunal, embora esse número viesse a ser questionado. No final, disse Stewart, o campo tornou-se «uma enorme máquina de extermínio», a «prisão para mulheres mais terrível da História». O julgamento também lançou luz sobre a coragem das prisioneiras, em grande medida porque muitas das provas em que a acusação assentava tinham sido trazidas do campo de concentração às escondidas e com grande risco. Nos julgamentos médicos em Nuremberga, onde Karl Gebhardt e a sua equipa de Hohenlychen foram julgados por conduzirem experiências médicas, o caso assentou em grande medida nos documentos trazidos de Ravensbrück por Zofia Mączka, a radiologista polaca. Mas Zofia fez mais do que ajudar a condenar os culpados. O seu contributo mais memorável foi o seu depoimento cheio de convicção sobre as prisioneiras polacas. Falando como se elas tivessem surgido vitoriosas de uma batalha na linha da frente, Zofia disse que foi «o seu heroísmo, tenacidade sobre-humana e excecional força de vontade de viver que foram decisivos». As experiências não tinham provado nada em termos de ciência, mas tinham provado algo em termos de humanidade. «Os soldados que receberam a Ordem Virtuti Militari podem fazer continência orgulhosamente a Maria KuŚmierczuk», disse Zofia. Maria esteve às portas da morte quando os médicos de Gebhardt a infetaram com o vírus do tétano, mas lutou para viver. Gebhardt insistiria até ao fim que a ideia das experiências nas coelhas polacas tinha sido concebida por Himmler e que ele se limitara a cumprir ordens, mas a defesa de «cumprir ordens» tinha já

sido rejeitada no julgamento principal de Nuremberga. De qualquer modo, era já claro naquela fase que toda a gente seguira as ordens de Himmler — o Reichsführer SS tomava todas as decisões sobre o que acontecia nos campos de concentração. Se houvesse dúvidas quanto a esse ponto, a espantosa «Ordem sobre Açoitamentos» descoberta pelos Aliados, revelando que cada punição corporal deveria ser comunicada diretamente ao Reichsführer «para aprovação», forneceria a prova necessária. Himmler, no entanto, não chegou a responder pelos seus crimes, porque engoliu uma cápsula de cianeto pouco depois de ser capturado. Os julgamentos de Ravensbrück pelos Aliados prolongaram-se por dois anos. Durante esse período, Binz, Schwarzhuber, Binder, Ramdohr, Salvequart, Neudeck e Gebhardt encontravam-se entre os que foram executados. Quando Binz foi levada para a forca, deu o seu medalhão a um oficial e consta que disse: «Espero que não pensem que somos todos pessoas malvadas.» Carmen Mory foi condenada à morte, o que a levou a disparar mais uma série de cartas furiosas, desta vez ao juiz — «sua raposa britânica matreira» —, e em seguida preferiu cortar os pulsos a ser enforcada. Treite também foi condenado à morte. Foram apresentados vários pedidos de clemência, entre eles um da sua «Rainha Mary» (Mary Lindell) e um de Yvonne Baseden, mas todos foram rejeitados, e também ele cortou os pulsos. Em 1948, os Aliados já há muito tempo que tinham perdido a vontade de punir os nazis e tanto os julgamentos de crimes de guerra como o processo de «desnazificação» — através do qual apoiantes do nazismo eram responsabilizados pela sua posição anterior e lhes eram negados postos importantes — foram encerrados. No entanto, houve exceções. Fritz Suhren foi recapturado em 1949 e executado, juntamente com Hans Pflaum, o chefe do trabalho, após mais um julgamento de Ravensbrück realizado em Rastatt, em França. No entanto, a partir de 1949 a principal responsabilidade pela investigação de crimes de guerra nazis foi transferida para os novos tribunais alemães.

A razão por que os Aliados suspenderam prematuramente os julgamentos era clara: a Guerra Fria estava em curso, a Alemanha estava prestes a dividir-se em duas partes e a nova prioridade era ajudar a Alemanha Ocidental a reconstruir-se para poder aliar-se ao Ocidente na luta contra os comunistas. Entre os perpetradores de crimes nazis, os mais destacados a escaparem impunes foram os industriais alemães. Qualquer que fosse a sua cumplicidade com o horror nazi ou os seus lucros com o trabalho escravo, essas empresas eram necessárias para ajudar o Ocidente a combater a Guerra Fria. Nem um só membro do conselho de administração da Siemens ou do pessoal da Siemens em Ravensbrück foi alguma vez acusado de crimes de guerra em Ravensbrück ou em qualquer outro dos locais onde usaram trabalho escravo.47 O único processo legal movido a um funcionário da Siemens que se conhece foi um caso de desnazificação lançado em 1946 pelos Britânicos em Berlim contra Wolf-Dietrich von Witzleben, o chefe do pessoal, quando ele foi ilibado de crimes passados e de ligações nazis constantes. O caso foi reaberto em 1948 depois de algumas testemunhas comunistas apresentarem novas acusações contra a Siemens e Von Witzleben. Em 1949, com o bloqueio soviético de Berlim a intensificar-se, as acusações foram mais uma vez rejeitadas — obviamente, em parte porque não se confiava nos motivos das testemunhas comunistas — e o caso encerrado. Quando os julgamentos terminaram e as transcrições foram arquivadas em Londres, onde ficariam fechadas durante trinta anos, os advogados de acusação dos Aliados exortaram os historiadores a retomarem o assunto onde eles o tinham deixado, numa tentativa de compreender os crimes nazis. Mas a História não tardou a esquecer Ravensbrück. As sobreviventes descobriam, ao regressar, que ninguém queria ouvir falar do campo de concentração; havia muitas razões para isso. Em Londres, o Executivo de Operações Especiais foi desativado, por entre acusações de incompetência e traição, que tinham contribuído

para a captura das mulheres do SOE levadas para Ravensbrück. Para pôr termo ao escândalo, foi dito aos veteranos do SOE que não deveriam voltar a falar sobre o seu trabalho durante a guerra, o que significava que também não deveriam falar sobre os campos de concentração. As britânicas que se tinham oferecido como voluntárias para colaborarem com a resistência enquanto se encontravam em França também não encontraram ninguém interessado nas suas histórias. A governanta Mary O’Shaughnessy, que tinha sobrevivido ao Campo da Juventude, esperava escrever um livro sobre o que tinha testemunhado, mas um amigo de Fleet Street disse-lhe que o público britânico não quereria lê-lo. Regressando à sua casa em Stavanger, na costa ocidental da Noruega, Nelly Langholm tentou contar as suas experiências à família e aos amigos, «mas a minha irmã chamou-me de lado e disse-me para não voltar a falar assim, porque as pessoas pensavam que eu tinha enlouquecido». Para as francesas, havia um tabu particular em relação às atrocidades cometidas contra mulheres. Perguntavam a muitas se tinham sido violadas. A maioria não tinha sido violada, mas mesmo assim eram tratadas coletivamente como se o tivessem sido, e sentiam vergonha. «Eu era uma menina antes da guerra, não era casada e supostamente era pura. Eu não conseguia explicar aquilo por que tinha passado, por isso não dizia nada. Era mais fácil assim. Não nos orgulhávamos daquilo por que tínhamos passado», disse Christiane de Cuverville. Denise Dufournier foi para a Suíça para convalescer e escreveu as suas memórias enquanto ainda se recordava claramente dos acontecimentos, e Germaine Tillion começou a trabalhar na sua primeira história de Ravensbrück, mas a maioria das suas compatriotas manteve o silêncio. Algumas francesas acharam mais fácil inventar histórias sobre o que tinha acontecido, sabendo que as pessoas simplesmente não acreditariam na verdade. Loulou Le Porz, no entanto, teve de dizer a verdade nas suas primeiras semanas de

regresso a Paris, porque foi incumbida de fornecer informações às famílias que procuravam entes queridos desaparecidos. Um médico francês veio ter com Loulou um dia, à procura da sua irmã. «Ela tinha morrido no Bloco 10 — uma mulher de cerca de sessenta anos. Contou-me que tinha escondido homens da força aérea britânica na sua casa, mas o irmão nem sequer sabia porque é que ela tinha sido presa. Então eu contei-lhe a história toda. Ele era uma típica pessoa à moda antiga, ali empertigado com um chapéu de coco. Enquanto eu falava, vi que lhe vieram logo as lágrimas aos olhos.» Na França do pós-guerra, a tentar superar o trauma da sua colaboração com os nazis, frequentemente as histórias de verdadeiros resistentes — e os que regressaram dos campos de concentração podiam prová-lo melhor do que a maioria — não eram bem-vindas. Além disso, a resistência francesa era considerada um assunto inteiramente masculino. «Aqueles homens que não tinham feito nada andavam todos impantes pelas ruas com as suas medalhas», disse Loulou com desdém. No seu regresso a Paris, Michèle Agniel mal podia segurar-se de pé e, por consequência, recebeu uma autorização para passar à frente nas filas de racionamento. «Mas quando o fiz, um homem queixou-se, e então eu disse que tinha acabado de voltar de um campo de concentração. Ele disse: “Mais quand même, sabem fazer fila nos campos de concentração, não sabem?” Eu bati-lhe.» De regresso a Bordéus, Loulou Le Porz voltou a exercer medicina e decidiu respeitar «as suas mortas» no campo de concentração, mantendo as suas recordações só para si. «Eu tinha visto as minhas amigas morrerem tão corajosamente por entre as ratazanas e a imundície que não podia falar sobre elas agora com pessoas que não compreenderiam.» Uma pessoa sobre quem Loulou falou, no entanto, foi Anne Spoerry («Claude»), a médica suíço-francesa que se deixara «enfeitiçar» por Carmen Mory e a ajudara a espancar e a matar as «lunáticas» do Bloco 10. Spoerry recusara-se a comparecer no

julgamento de Hamburgo e chegou-se a um acordo segundo o qual ela seria julgada na Suíça, onde viria a ser ilibada. Depois do julgamento suíço, Violette Lecoq e outras francesas estavam determinadas a que ela não pudesse praticar medicina em França e obtiveram uma interdição. Spoerry partiu para o Quénia, onde viveu e trabalhou como médica, dedicando o resto da sua vida aos pobres e aos necessitados, procurando redimir-se e tentando esquecer o seu passado. Yevgenia Klemm não conseguiu nunca esquecer o seu passado. Mal regressou a Odessa, tentou reconstruir a sua vida. Tinham-lhe tirado o apartamento, mas uma colega professora deu-lhe alojamento e ela recuperou o seu posto de professora de História no Colégio de Odessa. O assédio do SMERSH não tardou a recomeçar. Em março de 1946, seis mulheres de Ravensbrück foram consideradas culpadas de colaborar com «os fascistas» por um tribunal em Leninegrado e enviadas para o exílio na Sibéria. Depois disso, todos os sobreviventes viviam aterrorizados. Stella Kugelman, com cinco anos quando a guerra terminou, foi levada pela sua última mãe do campo de concentração, a Tia Olympiada, para um orfanato nos arredores de Moscovo. A Tia Olympiada nunca mais voltou. «Ninguém vinha ver-me, porque não queriam que se soubesse que tinham estado no campo de concentração, e ninguém queria adotar-me porque eu era demasiado magra e amarelada», diz Stella. «No orfanato ensinaramnos a não rir e a não chorar e a mantermo-nos o mais silenciosas possível, para não nos acontecer nada, e foi o que eu fiz.» O terror atingiu o seu auge em 1949, quando se realizou o julgamento dos médicos em Simferopol, em resultado do qual as três médicas de Ravensbrück, Lyusya Malygina, Maria Klyugman e Anna Fedchenko, foram consideradas culpadas de colaborarem com a SS e enviadas para campos de trabalhos forçados na Sibéria. Klemm foi frequentemente interrogada durante esta investigação, mas não acusada. Contudo, no início da década de 1950 começou a

campanha de Estaline contra os «cosmopolitas» — estrangeiros e judeus — e espalhou-se o boato no colégio de Odessa de que Klemm devia ser espia, porque tinha estado no Ocidente durante a guerra. Em consequência, reduziram-lhe o horário de trabalho. Amigas suas falariam mais tarde de «acusações malvadas e injustas feitas contra Klemm» por camaradas que «trabalhavam para os órgãos» — para o «SMERSH». Em março de 1953, com a morte de Estaline, o ambiente começou a desanuviar-se, mas dentro do colégio de Odessa o assédio a Klemm intensificava-se e, no início de setembro, nas vésperas de um novo período letivo, ela recebeu a notícia de que não poderia continuar a dar aulas. Na manhã seguinte — 3 de setembro de 1953 —, Yevgenia foi encontrada morta. Tinha-se enforcado na pequena cozinha do apartamento da sua amiga. Numa nota de suicídio disse que se matara porque a tinham proibido de dar aulas e ninguém se dera ao trabalho de lhe dizer porquê. «Toda a minha vida trabalhei honestamente, com toda a minha alma e energia. E até hoje não sei o que fiz de errado... Foi por ter sido feita prisioneira pelos fascistas em Sebastopol e ter passado quase três anos num campo de morte? Sou realmente uma tal criminosa que não mereço que falem comigo? Já não posso mais viver.» Durante muitos anos, não foi possível falar do suicídio de Klemm; a maior parte das suas camaradas nunca chegou a saber que ela tinha morrido. O seu corpo foi sepultado numa campa anónima. Embora o caso das prisioneiras russas tenha sido o mais extremo, elas não foram as únicas sobreviventes a serem remetidas ao silêncio depois da guerra. Entre muitas outras que viviam por trás da Cortina de Ferro, as checas tinham de obedecer a restrições no que podiam dizer sobre Ravensbrück; não podiam de modo nenhum falar da sua querida amiga Milena Jesenska. Desprezada por ser uma traidora do comunismo, a coragem de Milena na sua oposição aos nazis antes da sua captura e a força de espírito com que resistiu no campo de concentração foram obliteradas da História do seu país.

Três anos depois do fim da guerra, o próprio local do campo de concentração, então na República Democrática Alemã (RDA), encontrava-se abandonado; montes de cinzas humanas acumulavamse ao lado de uma vala comum junto ao crematório. Um regimento de tanques soviéticos transferiu o seu quartel para os edifícios principais, destruindo as restantes casernas e arrasando o local. Um grupo de ex-prisioneiras alemãs — Mães pela Paz — dirigiu iniciativas para criar um memorial para honrar a memória das mortas, mas a realidade política da Guerra Fria implicava que só as resistentes comunistas fossem recordadas: tal como os outros campos na RDA — Buchenwald e Sachsenhausen —, Ravensbrück não tardou a tornar-se um santuário comunista oficial. A peça central do memorial era a estátua chamada Tragende, inspirada por Olga Benario, e que se considerava que representava «uma mulher forte, com sabedoria, que ajudou as suas camaradas mais fracas». Era um monumento às «nossas heroínas que lutaram»; por outras palavras, o ideal de mulher comunista. O facto de Olga ser também judia e de ter sido assassinada por ser judia não era mencionado. As prisioneiras não comunistas — assim como as ciganas, as associais e as judias — foram também em grande medida ignoradas pela História dos campos de concentração da Alemanha de Leste. Uma das principais comunistas do campo de concentração, Maria Wiedmaier, tornou-se líder de Vítimas do Fascismo (VVN), uma organização com apoio oficial que tinha poderes para decidir quem poderia ser considerado um verdadeiro «combatente contra o fascismo» e quem poderia receber auxílio e dinheiro. Mina Rupp, uma outra veterana comunista do campo de concentração, não se contava entre essas pessoas. Quando chegou ao campo de concentração, Rupp foi condenada a uma punição corporal por roubar meia cenoura e, quando foi nomeada Blockova. passou ela própria a espancar outras prisioneiras. Em 1948, Maria Wiedmaier denunciou Rupp à polícia soviética por crimes cometidos no campo de concentração. Ela confessaria no seu julgamento que selecionara prisioneiras para a câmara de gás e foi condenada a vinte

e cinco anos de trabalhos forçados numa prisão em Dresden. Em meados de 1950, Wiedmaier e várias outras «mães pela paz» trabalhavam já para a polícia secreta da Alemanha de Leste, a Stasi. Em 1956, sob o pseudónimo Olga, Wiedmaier recebeu quarenta marcos da Alemanha Ocidental e foi enviada para o outro lado da Cortina de Ferro para «observar o estado de espírito da população» em zonas de treino da NATO.48 Nos anos 1960, a Stasi encontrou guardas de Ravensbrück a viverem no Leste e organizou os seus próprios julgamentos de crimes de guerra, durante os quais os acusados foram frequentemente persuadidos a inventar novos horrores, com os tribunais do Leste a procurarem mostrar que faziam melhor trabalho no julgamento de crimes nazis do que o Ocidente. A sua posição talvez fosse compreensível; não só os Aliados tinham permitido que a maioria dos criminosos de guerra saísse em liberdade como no início da década de 1950 a maioria dos que tinham sido condenados estava já fora das prisões. Herta Oberheuser, a médica do campo de concentração, exercia novamente medicina como pediatra em Stocksee, em Schleswig-Holstein. O papel da Siemens em Ravensbrück e noutros campos de concentração permaneceu ocultado até aos anos 1960, altura em que alguns investigadores encarregados de obter indemnizações para vítimas judias descobriram os factos. Com relutância, a companhia pagou pequenas quantias para um fundo, mas não aceitou qualquer responsabilidade, alegando que tinha sido coagida. Alguns julgamentos realizados mais tarde em tribunais da Alemanha Ocidental tinham resultado num número reduzido de condenações e em sentenças patéticas. Em 1963, realizou-se em Frankfurt um julgamento de Auschwitz muito noticiado em que Franz Lucas, médico em Auschwitz, assim como em Ravensbrück, respondeu a acusações de crimes de guerra. Lucas tinha ajudado prisioneiras em Ravensbrück, e Loulou Le Porz sentiu que era seu dever testemunhar a seu favor; recordava-se em particular de como o Dr. Lucas tinha levado leite a uma grávida holandesa que viria a

morrer no parto no Bloco 10. No entanto, quando o julgamento revelou pormenores dos crimes anteriores de Lucas, incluindo a sua seleção de judeus para as câmaras de gás em Auschwitz, a sua humanidade em Ravensbrück pareceu mais uma tentativa de salvar a própria pele. No entanto, Loulou disse que não se arrependia de ter falado a favor de Lucas; a ajuda que ele tinha dado às pacientes no Bloco 10 era indubitável. Depois de ser libertado, quatro anos mais tarde, Lucas abusou da sua sorte pedindo a Loulou que lhe escrevesse uma carta de recomendação para ele poder recuperar os seus bens confiscados. Ela recusou. «Eu disse que não. Já basta. Essa questão dos seus bens não tinha nada que ver comigo.» Ao longo de todo este período, sobreviventes do Leste e do Ocidente batalhavam para manter viva a memória dos acontecimentos. Em 1955, Antonina Nikiforova regressou do exílio na Sibéria, onde tinha adotado um menino órfão, e reiniciou imediatamente a sua investigação sobre Ravensbrück, escrevendo a sobreviventes, pedindo-lhes as suas memórias do campo de concentração e tentando encontrar maneiras de fazer ouvir a sua voz. Em 1957, uma mulher desdentada exprimiu também a necessidade de fazer ouvir a sua voz. Johanna Langefeld bateu à porta da casa de Grete Buber-Neumann em Frankfurt, determinada a desabafar contando-lhe a sua história. Porém, antes de se lançar em reminiscências sobre os seus primeiros anos de vida e o campo de concentração, a ex-chefe das guardas contou a Grete a sua «odisseia» no pós-guerra, incluindo os muito anos que passara escondida na Polónia com a ajuda de ex-prisioneiras e da Igreja Católica. Depois de ser despedida de Ravensbrück em 1943 por ajudar as coelhas polacas, Langefeld foi ilibada de ofensas disciplinares por um tribunal da SS e passou o resto da guerra a viver com a irmã em Munique. Em 1946 foi detida e interrogada pelos investigadores de crimes de guerra britânicos e americanos, que a extraditaram então para a Polónia, para responder a acusações no julgamento de Auschwitz em Cracóvia em 1947. Detida numa prisão polaca, ficou a

saber através do diretor da prisão que polacas, ex-prisioneiras do campo de concentração, sabiam da sua detenção e estavam decididas a obter a sua libertação, «por causa do que tinha feito pelas polacas no campo», disse a Grete. No entanto, quando Langefeld acabou por escapar, fê-lo pelos seus próprios meios, ou assim o afirmou. Estava-se na véspera de Natal de 1947 e tinham-na incumbido de limpar as escadas da prisão. Ela aproveitou a oportunidade e fugiu pela porta da rua para as ruas escuras e cheias de neve de Cracóvia, sendo mais tarde convidada a abrigar-se num convento. Daí, foi levada para outro convento noutra cidade polaca. Atualmente, sabe-se bastante sobre o papel que a Igreja Católica desempenhou para ajudar criminosos de guerra nazis a evitar a sua captura, mas a história da evasão de Johanna Langefeld tem um elemento curioso: foram ex-prisioneiras de Ravensbrück que persuadiram a Igreja a ajudá-la. As sobreviventes polacas ainda vivas recusam-se a divulgar pormenores, mas foram certamente elas que a tiraram da prisão e a esconderam durante os dez anos seguintes. Em 1957, Langefeld sentiu «saudades de casa», disse a Grete, e queria ver o seu filho outra vez, e as suas protetoras polacas conseguiram que passasse clandestinamente para o outro lado da Cortina de Ferro. Chegou à Alemanha Ocidental em 1957, altura em que procurou Grete Buber-Neumann, para «explicar o seu comportamento». Depois de a escutar, Grete concluiu que Langefeld era «um ser humano destroçado, que está reprimida por pesados sentimentos de culpa». As duas mulheres mantiveram-se em contacto e Grete visitou Langefeld uma vez em Munique, onde ela vivia. «Ela tinha perdido a força para recomeçar a sua vida. Disse-me que gostaria de ir para a prisão, pelo menos por dois anos, para pagar pelos seus crimes.» Langefeld morreu em Augsburg em 1975. Nos anos do pós-guerra, os principais historiadores pouco fizeram para investigar pormenorizadamente as histórias dos campos de

concentração, preferindo teorizar sobre a liderança nazi e a sua subida ao poder em vez de contar o que acontecera no terreno. O campo de concentração para mulheres — sempre numa posição inferior na hierarquia da SS — não tinha qualquer espécie de interesse para os historiadores, particularmente porque não existiam documentos oficiais; a história oral não era digna de confiança. Na sequência do julgamento de Eichmann em 1961, no entanto, surgiu um novo interesse pelos campos de morte judeus e as obras sobre o Holocausto começaram a multiplicar-se. Mas isto, por sua vez, pareceu empurrar para segundo plano os campos de concentração sediados na Alemanha. No final dos anos 1960, certos historiadores em busca de novas narrativas começaram a questionar a existência de câmaras de gás em Ravensbrück. As sobreviventes de Ravensbrück sentiram-se desesperadas. Michèle Agniel estava sentada na sua casa em Paris quando a sua mãe, que tinha perdido o marido na guerra e sempre se manifestara claramente sobre os crimes de guerra, entrou e atirou com um jornal para a secretária diante dela. O jornal continha um artigo de um desses historiadores. «Ela disse: “Olha lá. Estão a dizer que nunca aconteceu. Tu já não tens o direito de te manteres em silêncio.” Tinha razão. Muitas de nós sentíamo-nos culpadas por não termos falado antes. Devíamos ter tido mais coragem.» Nesta altura, os filhos das sobreviventes começavam a fazer perguntas, mas muitos tinham dificuldade em obter respostas. Quando eu falava com sobreviventes, com frequência os seus filhos e os seus netos vinham ouvir a conversa; poucos tinham ouvido as suas mães falarem pormenorizadamente sobre a guerra. Muitas das pessoas desta segunda geração tinham sofrido sequelas, talvez por anos de separação quando as mães estiveram nos campos de concentração ou nos anos seguintes, pela perturbação causada pelo que as suas mães tinham sofrido e de que não conseguiam falar. Maria Wilgat, a filha de Krysia, a autora das cartas secretas, via a mãe ter um acesso de fúria quando ouvia falar alemão ou quando via

sálvias vermelhas, mas Krysia nunca lhe explicou o motivo. Ouvi falar de várias pessoas desta segunda geração que cometeram suicídio. Mina Rupp, a comunista alemã que confessou perante um tribunal soviético que tinha selecionado prisioneiras para a câmara de gás, foi perdoada em 1954. A sua filha cometeu suicídio por gás dois meses antes de Rupp ser libertada da prisão em Dresden. Naomi Moscovitch, uma das crianças judias que chegaram ao campo de concentração de Ravensbrück em 1943, falou de uma tragédia familiar muito diferente. Naomi foi viver para Israel depois da guerra e quando me encontrei com ela ali, falou durante muitas horas sobre Ravensbrück, descrevendo da forma mais memorável as suas recordações de uma bomba na festa de Natal das crianças em 1944. Quando eu me levantei para ir embora, conversámos ainda sobre a sua nova vida em Israel, e ela disse-me que tinha sido difícil. Perguntou-me se eu tinha ouvido falar do atentado bombista suicida à pizaria Sharro. Em 9 de agosto de 2001, um bombista suicida palestiniano e a sua cúmplice entraram nessa pizaria de Jerusalém, onde a filha de Naomi estava a fazer uma refeição com o marido e os três filhos. Toda a família pereceu nesse ataque. No início da década de 1980, uma jovem estudante da Alemanha Ocidental estava a ter dificuldade em descobrir informações sobre Ravensbrück; era um lugar que ela tinha ouvido os pais mencionar quando falavam sobre o seu avô Walter Sonntag, um dos primeiros médicos em Ravensbrück e o mais sádico de todos. No campo de concentração, o médico casou-se com a sua colega Gerda Weyand e tiveram uma filha, Heidi. Clara,49 a filha de Heidi, nasceu em 1966. Tinha cinco anos quando pressentiu pela primeira vez que havia um tabu em torno do seu avô; os pais dela falavam de como ele tinha trabalhado no campo de concentração e fora preso mais tarde, mas diziam que tinha havido um equívoco na sua identificação. «Eu não consegui descobrir mais nada. Na escola, estudámos Belsen, Dachau e os campos de morte, mas pouco sobre Ravensbrück. E o que nos ensinavam não se relacionava com a vida real. Os professores tinham de ter cuidado no que diziam. Sabiam

que os pais ou os avós dos alunos poderiam ter estado envolvidos.» O mistério sobre o seu avô incomodava Clara. Desenvolveu um eczema no rosto, que, segundo ela, se agravou à medida que a sensação de tabu se intensificava. A avó de Clara, Gerda, ainda estava viva, mas mantinha as distâncias em relação à sua própria filha, não lhe contando nada. «Por isso, a minha mãe foi criada com todas essas sensações de perda e tentou criar um mundo agradável para si mesma, dizendo que o seu pai não era tão má pessoa como isso.» Na adolescência, Clara começou ela própria a investigar, mas não sabia por onde começar. «Fui ao Bundesarchiv, mas disseram-me que tinha de ter autorização para ler fosse o que fosse. Não é fácil encontrar coisas quando não se sabe como. Eu procurava em livros, mas Ravensbrück não aparecia no índice.» O fim da Guerra Fria trouxe mudanças a Ravensbrück. Um diretor da Alemanha Ocidental foi dirigir o memorial e fizeram-se planos para abolir a exposição comunista. Encetou-se um debate sobre como o local deveria ser preservado: como cemitério, cena de crimes ou um lugar de aprendizagem e de estudo académico? As mudanças fizeram-se lentamente; os Russos só saíram em 1994 e até essa altura ninguém pôde visitar Ravensbrück. Mas em 1995, no quinquagésimo aniversário da libertação, as sobreviventes foram convidadas a fazer uma visita e muitas tiveram a oportunidade de vir de países da Europa Ocidental pela primeira vez. Nas que tinham enterrado as recordações do campo há tanto tempo, o regresso provocou uma profunda dor. Enquanto Loulou Le Porz andava pelo complexo, via mentalmente os corpos empilhados no balneário do Bloco 10 e a transbordarem da morgue. Os discursos e a multidão tagarela que se reuniu para o evento memorial constituíam um pano de fundo ridículo dessas visões das mortas, e Loulou sentiu-se aliviada quando pôde ir embora. Michèle Agniel olhou à sua volta e não conseguiu imaginar aquela pessoa — ela mais jovem — que em tempos ali estivera. «Era como

se fosse outra.» Depois da reunificação da Alemanha em 1990, foram por fim pagas pequenas somas de indemnização aos sobreviventes no Leste, o que encorajou algumas mulheres que nunca antes tinham falado sobre o campo de concentração a fazê-lo; os arquivos na Rússia e nos países do Bloco de Leste foram abertos pela primeira vez, revelando novas provas. Uma série de novos elementos viram a luz do dia também no Ocidente — cartas de um homem da SS escondidas numa chaminé; diários de mães, nunca antes lidos. A pesquisa académica sobre todos os campos de concentração multiplicou-se. Na América, um novo computador com dados de imigração ajudou os investigadores americanos de crimes de guerra a localizar Elfriede Huth, a ex-guarda e tratadora de cães no campo de concentração, que tinha entrado ilegalmente nos Estados Unidos em 1959. Huth vivia na Califórnia, onde se casara com um judeu chamado Fred Rinkel, cujos pais tinham morrido em Auschwitz. Elfriede foi extraditada para a Alemanha, mas não havia grande hipótese de um julgamento. Das cerca de 3500 guardas que passaram por Ravensbrück, só uma pequena fração chegou a ser investigada nos tribunais alemães, que nem sequer mantêm um registo do número de guardas que processaram. Provavelmente, são menos do que vinte e cinco, com um número ainda menor de condenadas. Consegui encontrar Elfriede num confortável lar de terceira idade em Willich, perto de Düsseldorf, na esperança de falar com ela sobre o campo de concentração. O seu nome aparecia ao lado de uma campainha. «Esqueça. Não há nada a dizer. Esqueça», disse ela pelo intercomunicador. O fim da Guerra Fria possibilitou à neta do Dr. Sonntag visitar o campo de concentração. «Preocupava-me que o pessoal pudesse apontar-me um dedo acusador, dizendo, “Porque é que não veio mais cedo?”, ou coisa do género, mas de facto foram muito simpáticos.» Clara descobriu muito sobre o seu avô e o campo de concentração, e notou que o eczema no rosto começava a passar. Mas precisava de saber muito mais, e deslocou-se a Londres para ler o seu testemunho

no julgamento nos Arquivos Nacionais. Ficou numa pensão a grande distância das instalações dos arquivos. «Soa a loucura, mas receei que alguém juntasse dois mais dois e se apercebesse de quem eu era.» Perguntei a Clara o que é que ela estava a tentar descobrir. As histórias das bebedeiras do seu avô sempre a tinham deixado perplexa. «Dizia-se que ele andava de bicicleta à volta da mesa de operações. Por vezes penso que não pode ser verdade. O sangue fala mais alto, sabe, e eu sempre tive a sensação de que havia algo dele em mim. Por isso, andava à procura de desculpas para ele, suponho. Quer dizer, o facto de ele beber quereria dizer que tinha consciência? Era um filho da mãe ou um bêbedo? Depois de ler aquelas coisas todas soube que era verdade.» *** Em dezembro de 2013 voltei a Ravensbrück. Fürstenberg parecia exatamente igual, carrancuda, de costas voltadas para o campo de concentração do outro lado do lago. A cidade pagou caro pela sua ligação com o campo de concentração para mulheres. O Exército Vermelho saqueou as casas e violou as mulheres à sua passagem em 1945 e depois, quando se formou a RDA, a população local foi obrigada a tornar-se comunista e a venerar o novo santuário comunista em Ravensbrück. Quando os Russos partiram da cidade, a população pediu autorização para construir um supermercado no local. O pedido foi indeferido. Nos bosques junto ao lago, o sol queimava a geada nas árvores. Tinha havido mudanças no local: fora montada uma nova exposição e ao lado do lago havia um centro de visitantes. Ravensbrück recebe agora 150 000 visitantes por ano, embora o seu campo irmão de Sachsenhausen, mais perto de Berlim, receba muitos mais — e, por consequência, também mais dinheiro. «Nós estivemos sempre nas margens da história», diz Insa Eschebach, diretora do espaço memorial. Tem havido muitas desculpas para marginalizar este campo: a sua

escala era menor do que a de muitos outros; não se encaixava facilmente na narrativa central; os documentos do campo de concentração tinham sido destruídos; estava escondido por trás da Cortina de Ferro; as prisioneiras eram só mulheres. No entanto, é precisamente porque se tratava de um campo de concentração só para mulheres que Ravensbrück deveria ter sacudido a consciência do mundo. Outros campos mostraram o que a humanidade era capaz de fazer aos homens. Os campos de morte judeus mostraram o que a humanidade era capaz de fazer a toda uma raça. Ravensbrück mostrou o que a humanidade era capaz de fazer às mulheres. A natureza e a escala das atrocidades infligidas ali às mulheres nunca antes tinham sido vistas. Ravensbrück não deveria ter de lutar «nas margens» por uma voz: foi — e é — uma história por direito próprio. Os nazis cometeram também atrocidades contra mulheres em muitos outros locais: mais de metade dos judeus assassinados nos campos de morte eram mulheres, e perto do fim da guerra as mulheres foram detidas em vários outros campos de concentração. Mas tal como Auschwitz foi a capital do crime contra os judeus, assim também Ravensbrück foi a capital do crime contra as mulheres. Profundamente enraizada na nossa memória coletiva, em todas as obras sobre todos os períodos e sobre todos os países, as atrocidades contra mulheres provocaram sempre o maior horror. Ao tratar o crime que aconteceu aí como marginal, a História comete mais um crime contra as mulheres de Ravensbrück e contra o sexo feminino. No espaço memorial atual, a história é contada de forma mais completa do que antes. Na nova exposição, capítulos em grande medida excluídos quando os comunistas controlavam a história — as associais, as prostitutas, as ciganas, as judias — estão agora incluídos, enquanto o capítulo de louvor às heroínas comunistas viu reduzido o seu destaque — talvez excessivamente. A retórica da Guerra Fria não tem cabimento no século XXI; mas as alemãs que fizeram frente a Hitler — muitas delas comunistas — foram de facto «lutadoras contra o fascismo» e deveriam ser reconhecidas como tal.

Fiquei contente ao ver que Tragende continuava ali. Com o pé erguido como se estivesse a sair do lago, Olga Benario merece o seu lugar como uma «mulher forte que ajudou a suas camaradas mais fracas». Avancei na direção do crematório. Tinham recentemente sido encontradas mais cinzas numa vala comum nas imediações. Os planos para plantar mil rosas em cima da sepultura estão suspensos devido a uma disputa sobre se esse ato constituirá uma profanação dos restos mortais. Num novo estudo académico de listas e de números que chegaram até aos nossos dias reviu-se a estimativa do número de pessoas assassinadas em Ravensbrück, reduzindo-o de 90 000, o número a que se chegou nos julgamentos de Hamburgo e que a maioria dos historiadores dos campos de concentração aceitou desde então, para o número mais preciso de 28 000. Os cálculos dos Britânicos foram demasiado grosseiros e não tomaram em consideração as libertações de prisioneiras ao longo dos anos nem as libertações de mulheres de subcampos, diz-se nesse estudo. Mas estes novos cálculos devem ser também encarados com reservas. As escavações, mais do que análises académicas, talvez produzam mais verdade — indubitavelmente produziriam mais cinzas, mais valas comuns. Todo o local é um cemitério; o próprio lago, uma sepultura. Não poderá nunca saber-se o verdadeiro número de mulheres assassinadas aqui. Muitas das vítimas — particularmente nos últimos meses — nem sequer foram registadas em listas do campo de concentração. Não se fizeram ainda tentativas de averiguar a verdade sobre as câmaras de gás em camiões e autocarros nas últimas semanas ou de escavar à volta do local da segunda câmara de gás camuflada como a Neue Wäscherei. De facto, um novo exame dos números revela o pouco que se sabe sobre os horrores, mesmo nos nossos dias. As vítimas que foram enviadas em transportes negros para as câmaras de gás devem ser contadas? Em caso afirmativo, quantas eram? Ninguém sabe. A contagem de mortes nos subcampos complica ainda mais a história.

Todos os bebés assassinados foram incluídos no número revisto de 28 000? Quantas vítimas foram assassinadas na evacuação final, quando as prisioneiras foram amontoadas em comboios com a certeza absoluta de que seriam atingidas por bombas dos Aliados? As mulheres que morreram nas marchas de morte não estão incluídas — nem as que marcharam para fora de Ravensbrück ou dos múltiplos subcampos. As que morreram nos Autocarros Brancos, atingidas pelo fogo dos Aliados, continuam por contar — ninguém sabe quantas eram. A estimativa original de 90 000 mortes era com certeza demasiado elevada. Um número entre 40 000 e 50 000 — dependendo de que mortes são incluídas — é, provavelmente, o mais aproximado da verdade. Mas importa realmente o número exato de mortes? As sobreviventes pensam que os nomes são mais importantes do que os números. «Os Alemães estavam sempre a contar-nos», disse Loulou Le Porz com desdém. «Agora, os estudiosos contam-nos outra vez. Alguns estudam-nos como se fôssemos formigas.» A autora do «Livro da Memória», Bärbel Schindler-Saefkow, acredita igualmente que os nomes têm mais importância do que os números. O seu Gedenkbuch contém agora 13 161 nomes, mas a falta de fundos obrigou-a a suspender a sua pesquisa. Dirigi-me para o campo da Siemens para ver o que tinha mudado lá, mas o caminho estava bloqueado por arame farpado. O acesso à informação da sede da empresa em Munique continua ainda, em grande medida, bloqueado. Quando abordei inicialmente a Siemens, para obter informações sobre o seu envolvimento com Ravensbrück, recebi uma brochura em papel brilhante sobre os sucessos da empresa. Mais tarde, chegoume pelo correio a história oficial da empresa, publicada em 1998. «A Siemens sentiu-se forçada a cooperar, embora com relutância, com o regime», dizia-se na introdução. Em 2013, a empresa anunciou que os seus arquivos estavam abertos, mas os poucos documentos sobre Ravensbrück disponibilizados não continham o nome de uma única

prisioneira. Quando pedi para falar com um diretor da Siemens sobre a forma como a empresa encarava atualmente o seu envolvimento com o Terceiro Reich, disseram-me que só o arquivista da empresa poderia falar sobre o passado, pelo que lhe enviei as minhas perguntas. No entanto, do topo da colina da Siemens, a que cheguei por um caminho nas traseiras, o passado da empresa em Ravensbrück está bem à vista de todos. A estrutura de uma velha oficina ainda continua de pé e no vale abaixo veem-se os velhos carris por onde se levavam e traziam componentes. Também se veem claramente os trilhos por onde os camiões levavam as mulheres para a câmara de gás quando elas eram «tiradas das listas» por se encontrarem demasiado fracas para trabalharem. Durante o caso britânico no pós-guerra de desnazificação contra o chefe do pessoal da Siemens Wolf-Dietrich von Witzleben, foram feitas alegações de que as prisioneiras eram maltratadas e de que a Siemens «fabricava fornos de gás para os campos de concentração». Um investigador britânico observou que a declaração da defesa no caso era «bastante vaga», mas não foram encontradas provas para sustentar as acusações, que foram rejeitadas. Contudo, é impossível acreditar que o pessoal da Siemens não sabia da existência dos «fornos de gás», nem que na fase final as suas trabalhadoras exaustas eram exterminadas por gás, especialmente no cimo da colina da Siemens. A chaminé do crematório situa-se a menos de 300 metros; o seu fumo fedorento soprava para cima da fábrica da Siemens. Em janeiro de 1945, a câmara de gás situava-se junto ao crematório. Anni Vavak, prisioneira austro-checa, descreveu como nos últimos meses da guerra ficava ali a observar os camiões carregados com mulheres meio nuas a virem do Campo da Juventude e a passarem pela fábrica da Siemens a caminho da câmara de gás. Quando Anni contou ao pessoal civil da Siemens o que viu, eles «estremeceram». Selma van de Perre e outras sobreviventes recordam que se realizaram seleções para a câmara de gás na própria fábrica da Siemens nos últimos meses da

guerra. Quando finalmente recebi uma resposta do arquivista da Siemens, o Dr. Frank Wittendorfer, ela assumiu a forma de uma breve declaração, que começava assim: «Durante a Segunda Guerra Mundial, as empresas industriais alemãs foram incorporadas pela ditadura nacional-socialista no sistema da “economia de guerra”.» Por outras palavras, a Siemens estava a reiterar o seu argumento de longa data de que foi «forçada a cooperar» com Hitler desde o início e que, por consequência, mesmo atualmente, não aceita qualquer tipo de responsabilidade pelos seus atos. Na declaração forneciam-se pormenores das indemnizações concedidas ao longo dos anos, sublinhando simultaneamente que a Siemens não tinha «qualquer obrigação legal» de fazer tais pagamentos. Mencionava-se que a empresa «lamentava profundamente», mas não se especificava o que lamentava. Estas palavras hipócritas eram de mau gosto e contrastavam com as reações de outras instituições alemãs que, cada vez mais nos últimos anos, têm tido a coragem de encarar o seu passado. Durante a era nazi, um doutoramento outorgado pela universidade de Heidelberga a Käthe Leichter, a socióloga judia austríaca detida em Ravensbrück e exterminada na câmara de gás de Bernburg, foi anulado. Quando o seu filho Frank solicitou que fosse reposto, o reitor da universidade, o Dr. Stefan Maul, respondeu descrevendo o caso de Käthe como «um testemunho arrepiante do passado vergonhoso do nosso país e da nossa universidade e dos muitos crimes injustificados e indizíveis cometidos». A anulação do doutoramento pelos seus antecessores era «uma violação descarada dos direitos humanos», e acrescentou: «Atualmente, em 2013, nós somos, quer o queiramos quer não, os sucessores dos que cometeram esta injustiça, dos que deixaram que ela acontecesse e abafaram o caso.» O emprego de trabalho escravo pela Siemens foi com certeza uma violação muito mais chocante dos direitos humanos, mas seria também mais dispendioso retificá-la, e quando em 1993 uma prisioneira de Ravensbrück, Waltraud Blass, tentou usar as novas leis

promulgadas desde a reunificação da Alemanha para obter o pagamento do seu salário perdido num tribunal de Munique, a Siemens recusou-se a aceitar a responsabilidade e o caso foi rejeitado. No entanto, há indícios de que algumas pessoas dentro da Siemens — para além do seu arquivista — talvez estejam dispostas a olhar para trás. Por instigação dos serviços educativos do campo de concentração e dos sindicatos da Siemens, realizam-se oficinas em Ravensbrück para estagiários da Siemens, onde eles podem estudar o campo de concentração «num ambiente que possibilita que se sintam seguros no confronto com o passado», nas palavras do diretor dos serviços educativos. Em dezembro de 2013, um diretor da Siemens solicitou um encontro com duas sobreviventes, uma delas Selma van de Perre, e, alegadamente, falou da «culpa» da sua empresa. O encontro, no entanto, realizou-se à porta fechada; a expressão de culpa foi «abafada». E embora ajudem grupos de funcionários a «sentirem-se seguros» enquanto se informam sobre o passado, lá em cima, na fábrica da Siemens, não há sequer um lugar «seguro» para as sobreviventes pararem por uns momentos, nem um lugar para se abrigarem da chuva. Não há um canteiro de rosas ali, um memorial às vítimas da Siemens. O nome Siemens não se vê em lado nenhum. Em pouco tempo, os restos do Siemenslager ficarão completamente cobertos pela vegetação. Da fábrica da Siemens dirigi-me para o Campo da Juventude por um caminho em terrenos baldios. O nevoeiro estava a ficar mais cerrado. Mais uma vez, tive dificuldade em encontrar o caminho. Uns carris ferroviários enferrujados desapareciam por entre as árvores. Mais adiante, havia uma clareira com um pequeno santuário feito de conchas, instalado pelo grupo feminista de Berlim Gedenkort em memória das adolescentes ali detidas antes de o Campo da Juventude se transformar em campo de morte, assim como das que morreriam ali mais tarde. Pilhas de blocos de cimento e folhas de zinco erguem-se do chão nas imediações. Talvez fosse um dos blocos.

Depois, subitamente, seis figuras de rede de arame apareceram por entre as árvores.50 Como fantasmas, pareciam inclinadas para a frente, como se a dar-me as boas vindas. Entre fevereiro e abril de 1945, cerca de 6000 mulheres marcharam do campo principal de Ravensbrück para estes bosques. Disseram-lhes que iriam para um lugar onde seriam mais bem tratadas, mas em vez disso levaram-nas para ali, e a maior parte foi assassinada ou levada de camião para a câmara de gás e exterminada por gás ou a tiro. O que aconteceu neste pedaço de terra desolado foi o crime mais abominável de Ravensbrück. No entanto, ninguém que por aqui passe poderia alguma vez sabê-lo. Nem sequer há razão para passar por ali; a terra, propriedade do estado de Brandenburgo (tal como o local da fábrica da Siemens) e nem sequer incorporada no local memorial de Ravensbrück, fica fora de mão. Ninguém parece querer reclamá-la a não ser as feministas da organização Gedenkort. A falta de fundos é uma das razões dadas para o facto de o Campo da Juventude parecer ter sido esquecido. Mais importante ainda é uma disputa em relação à terminologia. O diretor do campo propôs que o Campo da Juventude se chamasse um campo de extermínio, mas alguns membros do conselho judaico da Alemanha objetaram, dizendo que só os campos de morte de judeus, estabelecidos segundo os termos da Solução Final, podem ser definidos como tal.51 Mais uma vez, ninguém sabe muito bem como contar a história de Ravensbrück. Como há relutância em tomar o que aconteceu aí com a mesma seriedade com que se encaram outros crimes nazis, o local encontra-se abandonado, «nas margens». Os homens da SS que conceberam a matança final em Ravensbrück certamente ter-lhe-iam chamado extermínio — eles eram os mesmo exterminadores que tinham assassinado os judeus em Auschwitz. Ficariam satisfeitos ao verem quão bem o seu segredo tem sido guardado; há setenta anos, esconderam deliberadamente este campo de extermínio de mulheres nos bosques para que ninguém ficasse a saber da sua existência. O extermínio inventou também um nome para o local, chamando-lhe Mittwerda e fingindo

que se tratava de uma clínica de recuperação. Indubitavelmente, há diferenças em relação a extermínios anteriores: a sua escala foi mais pequena e, para poupar dinheiro, os assassinos tentaram primeiro matar o maior número possível de mulheres à fome ou deixando-as quase nuas à neve horas a fio, «sem cabelo e sem nome, sem mais forças para recordar, vazios os olhos e frio o regaço como uma rã no inverno», como Primo Levi escreveu quando nos pediu para «Considerar se isto é uma mulher». Instou os seus leitores: «Meditai que isto aconteceu. Recomendo-vos estas palavras. Contai aos vossos filhos.» Levi escreveu sobre Auschwitz, mas a sua mensagem é universal. Deveríamos sem dúvida «meditar» no que aconteceu em Ravensbrück e também dar a este campo de extermínio de mulheres o nome e o lugar na História que lhe são devidos. Em Nuremberga, Robert H. Jackson disse que a conspiração nazi «definia um objetivo e depois de o atingir partia para um objetivo mais ambicioso». Ravensbrück, que se manteve em funcionamento ao longo de toda a guerra, é um prisma útil através do qual observar a evolução desses objetivos. O campo de concentração ajudou Hitler a atingir alguns objetivos iniciais: a eliminação de «associais», criminosas, ciganas e outras bocas inúteis, incluindo as inaptas para o trabalho; o primeiro grupo dessas mulheres foi exterminado na câmara de gás de Bernburg, uma atrocidade sobre a qual o mundo atual não sabe praticamente nada. Ravensbrück desempenhou igualmente um pequeno papel no «objetivo mais ambicioso» — a aniquilação dos judeus —, fornecendo guardas e Kapos à secção feminina de Auschwitz. Nas semanas finais da guerra, Ravensbrück ocupou um lugar na ribalta, tornando-se o palco do último grande extermínio por gás realizado em campos de concentração nazis antes do fim da guerra. Ao contrário das fases iniciais do extermínio, contudo, esta matança final não tinha «objetivo», porque o projeto de criação de uma raça superior tinha sido abandonado. Por conseguinte, as prisioneiras de Ravensbrück — velhas, jovens, de nacionalidades

diferentes, não judias e judias, sem nada a uni-las a não ser o facto de serem mulheres — foram assassinadas para desocupar espaço. A seguir, foram assassinadas porque as suas pernas não eram suficientemente boas para acompanharem a marcha da morte. Na realidade, aqueles extermínios finais aconteceram porque os exterminadores não conseguiam parar. Não se tratou de uma atrocidade marginal: foi no que acabou o horror nazi — com o assassínio em massa de mulheres com a maior bestialidade, sem a desculpa de uma ideologia, por mais obscena que ela fosse, sem qualquer razão. Quando me afastei da clareira, chovia torrencialmente. Passei de novo pelas figuras de rede de arame. Será que Ravensbrück tinha permanecido tão obstinadamente «nas margens da história» devido a alguma espécie de sentimento de culpa coletiva em relação às vítimas — irmãs, mães, filhas, esposas — abandonadas ali, com o mundo a mostrar-se incapaz de as ajudar? Ou talvez os factos sejam demasiado horríveis para se contemplarem — demasiado dolorosos. Há sem dúvidas testemunhos de Uckermark que eu considerei demasiado chocantes para os revelar. Será melhor deixar estes fantasmas em paz? Indubitavelmente, é difícil saber como recordar um tal lugar, mas uma tabuleta mais clara a indicar o caminho pelos bosques pelo menos ajudaria quem quisesse visitá-lo a encontrá-lo. De regresso ao campo principal, entrei no complexo pelo portão das traseiras — o mesmo portão pelo qual as mulheres do Campo da Juventude saíam e pelo qual algumas regressaram nas últimas semanas da guerra. Em março de 1945, o último extermínio já se estendia à totalidade de Ravensbrück. No que é hoje um vasto espaço vazio pontuado por tílias, os nazis deram expressão ao seu «inexorável desejo de matar», como disse Rudolf Höss, ao longo de várias semanas. Estacionados junto às árvores enquanto os assassínios atingiam o seu clímax, encontravam-se os autocarros da Cruz Vermelha. Que melhor imagem pode haver da impotência do mundo face à carnificina

nos campos de Hitler do que a desses autocarros a aguardarem pacientemente até que os extermínios por gás terminassem para iniciar o processo de salvamento? No entanto, a missão de Bernadotte foi a única grande operação de salvamento de prisioneiros de toda a guerra. Em meados de abril de 1945, os Aliados já se aproximavam de Berlim; os Americanos tinham descoberto Buchenwald e os Britânicos tinham encontrado Belsen. Não poderia haver dúvidas sobre os horrores dos campos de concentração, e esses horrores estavam ainda a desenrolar-se em vários lugares ainda não libertados, entre eles Ravensbrück, onde as mulheres estavam a formar filas para a câmara de gás. As realidades políticas e militares, no entanto, significavam que não foi considerada qualquer mudança de estratégia que pudesse proteger os campos de concentração restantes nas últimas semanas da guerra. A negociação com Himmler relativamente aos campos de concentração também não constituía uma opção. A ordem de Churchill de «não pactuar com Himmler» garantiu que os Aliados nunca fizessem concessões no seu objetivo, que era vencer a guerra militar, esmagando os nazis e tudo o que eles representavam. Até proporcionar a passagem segura dos Autocarros Brancos de Bernadotte era uma cedência excessiva para os Aliados e foi recusada. No entanto, é impossível não seguir a história da operação de salvamento dos Autocarros Brancos sem «torcer» por eles, sabendo que com a missão de Bernadotte alguém estava por fim a pôr a vida dos prisioneiros em primeiro lugar. Indubitavelmente, Bernadotte teve de fazer cedências para concretizar a sua operação de salvamento, que se realizou de acordo com os termos definidos por Himmler. Bernadotte não só se viu obrigado a esperar pelo declínio da matança em Ravensbrück como foi impedido de salvar judeus até aos últimos dias. Se não tivesse feito cedências, no entanto, nunca teria conseguido salvar 17 000 prisioneiros. Recebeu poucos agradecimentos. Depois da guerra, continuou a ser acusado de não

ter conseguido salvar um número suficiente de judeus, embora acabasse por libertar cerca de 7000. Em 1947, Bernadotte foi nomeado mediador das Nações Unidas na guerra árabe-israelita. Em 17 de setembro de 1948, foi assassinado em Jerusalém pelo grupo militante sionista Stern Gang. Anos mais tarde, as sobreviventes queriam mais do que qualquer outra coisa que o mundo ouvisse os seus relatos sobre Ravensbrück e acreditasse neles. Sabiam que se a geração seguinte não conhecesse os factos nunca aprenderia as lições. Antonina Nikiforova gastou o que ganhou com a publicação do seu primeiro livro na compra de uma pequena dacha perto de Leninegrado, para onde se retirou para continuar a escrever. «As minhas impressões sobre o campo de concentração eram tão fortes que só conseguia aquietá-las escrevendo livros», escreveu numa carta a outra sobrevivente. Outras vítimas decidiram falar depois de décadas de silêncio. Algumas falaram comigo de coisas nunca antes mencionadas — por vezes surpreendentes. Nelly Langholm, a norueguesa de Stavanger, revelou o segredo da sua detenção. Quando os Alemães ocuparam a Noruega em 1940, Nelly, que andava na escola, chegou a casa num fim de tarde de chuva e encontrou um oficial alemão a tocar piano na sua casa. «Ele disse: “Agora começa o conto de fadas de Grimm.” Disse que se chamava Wolfgang Grimm e que tinha vindo ver-me. Eu não sabia porquê e ele recusou-se a dizer. Mas falou comigo e foi muito querido e simpático e tocou piano. E voltou no dia seguinte. E no dia seguinte. E eu apaixonei-me por ele.» Pouco depois, o tio de Nely foi vítima de uma bomba alemã e um primo foi capturado. «Por fim, apercebi-me de que não podia ser, e escrevi-lhe e disse-lhe que não voltasse à minha casa porque ele era o inimigo e eu não podia voltar a vê-lo. E então, no dia seguinte, a Gestapo veio a minha casa e prendeu-me. Disseram-me que tinham lido a carta em que eu dizia que era inimiga da Alemanha. Eu não

sabia se ele tinha entregado a carta à Gestapo ou se tinha sido o censor.» Nelly disse que, «de certo modo, parecia correto» ter sido mandada para Ravensbrück. «Eu tinha feito aquela coisa terrível, tinha-me apaixonado por um alemão, e os Alemães tinham matado a nossa família. Achei que devia ser punida.» Quando Nelly foi detida, uma das suas amigas perguntou à mãe dela porque é que tinha deixado entrar o alemão em casa. A mãe de Nelly disse à amiga da filha que ele parecia tão abatido e enregelado e molhado que ela não podia deixá-lo ali fora. «Ela era tão linda, a minha mãe. Era mesmo dela fazer isso», disse Nelly. Nos anos 1960, numa visita a Berlim, Nelly voltou a ver Wolfgang Grimm. «Ia na rua com uma amiga e subitamente vi-o. Ele estava parado como uma estátua a olhar para mim. Passei por ele e não disse nada. Não havia nada que eu pudesse dizer.» Escutando as vozes das mulheres de Ravensbrück, procurei pistas da razão para este grupo ter sobrevivido. Quase conseguia ouvir Maria Bielicka a dar murros na mesa enquanto tentava explicar porque é que o instinto de sobrevivência corria nas veias de todas as polacas, «passado de mãe para filha». Jeannie Rousseau, a francesa que transmitiu informações sobre as bombas V2 a Churchill, sobreviveu porque se recusou a não sobreviver. Em Torgau, recusou-se a fabricar armas alemãs. No campo de punição de Königsberg, recusou-se a morrer no campo aéreo gelado e conseguiu voltar para o campo principal, escondida num camião com doentes com tifo. Quando Bernadotte chegou, Jeannie estava fechada no Strafblock, mas recusou-se a ficar e persuadiu a Blockova a deixá-la sair. «Pode-se recusar o que está a acontecer. Ou aceitá-lo. Eu pertencia ao campo dos que recusam», disse ela. Perguntei-lhe como tinha tido coragem. «Não sei. Eu era nova. Pensei, se o fizer, vai resultar. Simplesmente não se podem aceitar certas coisas. Certas coisas.»

Muitas recusaram de outras maneiras; recusaram aceitar a aniquilação do que conheciam, rezando, falando, escrevendo, lendo, ensinando sempre que podiam — as professoras polacas ensinaram tão bem as suas jovens estudantes no campo de concentração que quando elas voltaram para casa obtiveram os seus diplomas. Algumas «recusaram» mantendo-se distantes dos acontecimentos, o que talvez as tenha protegido. Natalia Chodkiewicz disse: «Durante todo o tempo em que estive no campo, foi como se tivesse dupla personalidade. O meu eu real parecia estar a observar o que estava a acontecer ao meu eu físico.» Nenhuma teria sobrevivido sem sorte, particularmente no que diz respeito à saúde. Nenhuma teria sobrevivido sem amigas, famílias improvisadas, que ajudavam a manter a sanidade mental. Essas famílias parecem ter-se formado mais facilmente no campo de concentração para mulheres do que nos campos de concentração de homens. A «família» de Loulou era o Bloco 10; sentada na sua marquise, acabei por conhecer muitos dos seus elementos. Loulou era por vezes muito sombria: «Acho abominável que ainda falemos de guerra. Penso muitas vezes que não aprendemos nada.» Mas subitamente animava-se ao recordar-se da coragem das «suas doentes» e das «suas mortas». Ajudava, disse Loulou, ter um papel a desempenhar. «Como médica, eu podia auxiliar um pouco as pessoas — a viver e a morrer.» Uma vez, deu a uma jovem polaca um pouco de morfina para ela não ser levada por Winkelmann. «Eu disse-lhe que ela estava às portas da morte, por isso ele deixou-a. Ela morreu de facto, mas só daí a uns dias. E morreu no seu colchão, com alguém ao seu lado. Isso era importante. Não foi para a câmara de gás.» Quando regressou do campo de concentração, Loulou esteve quase a entrar num convento. «Já não acreditava na bondade da natureza humana. Eu tive de o aprender de novo. E fi-lo.» Fez uma pausa. «Mas demorou muito tempo.» Muitas mulheres desatavam a chorar durante a nossa conversa. Havia muitas vezes risos. Ninguém mostrou azedume. Mas —

parece-me — muitas também não perdoaram; sem dúvida, ninguém esqueceu. Num fim de semana em memória das vítimas, encontreime de novo com Wanda Wojtasik. Entrevistara pela primeira vez Wanda, uma das Kaninchen polacas mais jovens, no seu apartamento em Cracóvia. Agora, ela estava a atirar rosas para o lago em Ravensbrück. Disse-me que um dos médicos da SS, Fritz Fischer, a contactara recentemente a pedir-lhe o seu perdão. «Eu disse-lhe que não havia nada que eu pudesse perdoar-lhe. Ele teria de pedir perdão a Deus.»

47 Dois diretores da Siemens, ambos membros da SS, suicidaram-se em 1945, sem dúvida porque previam que iriam ser julgados por crimes de guerra. Otto Grade, o gerente da Siemens em Ravensbrück, desapareceu sem deixar rasto.

48 A Stasi mantinha também um dossiê sobre Grete Buber-Neumann. A sua obra seminal Under Two Dictators (1948) revelou com mais pormenores do que qualquer outra até àquela data os horrores dos campos do Gulag de Estaline e, naturalmente, foi proibida no Leste. Mesmo nos nossos dias não foi ainda traduzida para russo.

49 Não é o seu nome verdadeiro. Ela deseja manter o anonimato.

50 A organização Gedenkort também produziu as figuras de rede de arame, chamadas Maschas, e colocou-as ali.

51 A sede do organismo alemão de investigação de crimes de guerra nazis em Ludwigsberg determinou também recentemente que Ravensbrück «não foi um campo de morte». Por essa razão, esse organismo já não está a investigar crimes cometidos por guardas ou oficiais da SS em Ravensbrück; só investiga crimes em campos de morte. Absurdamente, tal significa que nenhum dos crimes ligados ao extermínio em Ravensbrück será investigado. Quando as guardas de Ravensbrück foram transferidas para «campos de morte», no entanto, aí, os seus crimes podem ser investigados, e a sede do organismo está atualmente a investigar alegados crimes cometidos por um pequeno número de guardas de Ravensbrück enquanto se encontravam ao serviço em Majdanek.

NOTAS Abreviaturas AICRC: Arquivos do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Genebra ARa: Archiv Mhanund Gedenkstätte Ravensbrück Atkins: Documentos de Vera Atkins, arquivados no Imperial War Museum [Museu Imperial da Guerra], Londres Beyond: Beyond Human Endurance; The Ravensbrück Women Tell Their Stories, editado por Wanda Symonowicz, uma compilação de testemunhos de sobreviventes. Buchamnn coll.: Compilação de Erika Buchmann, Archiv Mhanund Gedenkstätte Ravensbrück BA: Bundesarchiv Berlin BAL: Bundesarchiv Ludwigsberg BStU: Arquivos da Stasi, Berlim Czyż, cartas: Cartas e documentos de Krystyna Czyż-Wilgat (Krysia Czyż) Dictators: Under Two Dictators: Prisoner of Stalin and Hitler, por Margarete Buber-Neumann DÖW: Dokumentationsarchiv des Österrichischen Widerstandes, Viena Dreams: And I Am Afraid of My Dreams, por Wanda Poltawska FO: Registos do Foreign Office [Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico] arquivados em The National Archives [Arquivos Nacionais] GZJ: Geschichstarchiv Zeugen Jehovas, Selters/Taunus HS: Dossiês do Executivo de Operações Especiais (SOE), arquivados em The National Archives IISH: International Institute of Social History [Instituto Internacional de História Social], Amesterdão ITS: International Tracing Service, Bar Arolsen [Serviço Internacional de Pesquisa do Período Nazi] IWM: Imperial War Museum [Museu Imperial da Guerra], Londres KV: Registos dos Serviços de Segurança arquivados em The National Archives Lund: Registos do Instituto Polaco de Investigação, universidade de Lund. Trata-se de relatos pormenorizados de sobreviventes polacos que chegaram à Suécia em 1945. Nikif, docs.: Documentos de Antonina Nikiforova, Archiv Mhanund Gedenkstätte Ravensbrück NARA: National Archives and Records Administration [Arquivos Nacionais e Administração de Registos], Washington DC LAV NRW: Landesarchiv Nordrhein-Westfalen SA: Arquivos da Siemens, Munique TNA: The National Archives, Kew WL: Wiener Library [Biblioteca Wiener], Londres WO: Registos do War Office [Gabinete da Guerra] arquivados em The National Archives YV: Yad Vashem, Jerusalém PRIMEIRA PARTE Capítulo 1: Langefeld

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«O ano é...»: Buber-Neumann, Die erloschene Flamme. «Proibida a entrada»: O que Langefeld viu na sua primeira visita é reconstruído a partir de testemunhos das primeiras chegadas, por exemplo: Hanna Sturm (que chegou com o grupo avançado), Die Lebengeschichte einer Arbeiterin; Maase, WO 309/416 e BAL B1629896/9828; Gostynski, relato de testemunha ocular, WL P.III.h N.º 159; Maria Hauswirth, WL P.III.h N.º 948; memórias de Clara Rupp, ARa. Mapas iniciais e o álbum de fotografias da SS também mostram a planta, ARa. 25 menos guardas: Em finais de 1939 havia cerca de cinquenta e cinco guardas do sexo feminino e até ao final da guerra cerca de 3300 tinham trabalhado no campo de concentração. Ver Heike, Johanna Langefeld. 26 «questões femininas»: Sobre o papel e as atitudes de Langefeld, ver o seu único interrogatório conhecido, datado de 26 e 31 de dezembro de 1945, nos Arquivos Nacionais dos Estados Unidos (NARA, NAW RG 338-000-50-11). Ver também: Johannes Schwarz «Geschlechtsspezifischer Eigensinn» e o seu «Das Selbstverständnis Johanna Langefeld als SS-Oberaufseherin» em Fritz, Kavcic e Warmbold (eds.) Tatort KZ; Heike, Joahnna Langefeld; e Müller, Die Oberaufseherinnen. Langefeld foi-me descrita por várias sobreviventes, entre elas Edith Sparmann, Wojciecha Zeiske (em solteira, Buraczyńska), Maria Bielicka, Frizti Fruh (em solteira, Jaroslavsky), Irma Trksak e Barbara Reimann; Rudolf Höss dá uma imagem dela em Commandant. 27 fugiu de casa: Ver Anna-Jutta Pietsch, «Jakob-Klar-Straße i: das Elternhaus von Olga Benario», em Ilse Macek (ed.), Ausgegrenzt — Entrechtet — Deportiet: Schwabing und schwabinger Schicksale 1933 bis 1945 (Munique: Volk, 2008). Nos anos 1920, o pai de Olga, Leo, um advogado social-democrata, lutou nos tribunais de Munique pelos direitos dos trabalhadores em greve, encorajando as tendências radicais da sua filha. O homem que ela conseguiu libertar era Otto Braun, uma figura destacada dos serviços secretos do Partido Comunista Alemão. 39 «reeducar prostitutas»: Langefeld trabalhou primeiro como professora de Lavores Femininos em Neuss, perto de Düsseldorf. O seu cartão de identificação de Brauweiler (no Archiv des Landschaftsverbands Rheinland) revela que começou a trabalhar nessa casa de correção em 1935. Pormenor por cortesia de Hermann Daners. 28 «novo salvador em Adolf Hitler»: Para Langefeld, os ensinamentos de Deus pareceriam compatíveis com os ensinamentos de Hitler. No início dos anos 1930, a igreja luterana na sua cidade de Kupferdreh era já um reduto dos Deutsche Christen, os cristãos nazis fanáticos. Ver Busch, Kupferdreh und seine Geschichte. 28 «Hitler entrou hoje...»: Shirer, Berlin Diary. 29 «O que é que se passa?»: Haag, How Long the Night. 31 «Sou um tagarela incorrigível»: Diários de Himmler, citados em Padfield, Himmler. 32 «arreganhar os dentes...»: Höss, Commandant. 33 escreveu à sua irmã...: Citado em Herz, The Women’s Camp in Moringen. 34 «sei sempre...»: Citado em Koonz, Mothers in the Fatherland. 34 «como uma oferenda»: Pormenores num dossiê dos Serviços Secretos Britânicos sobre Arthur Ernest Ewert, um outro elemento da célula do Comintern. Ele era casado com Elise Saborowski Ewert (também conhecida como Sabo), que regressou no vapor com Olga; KV 2/2336. 35 debelar o escândalo: No entanto, continuaram a realizar-se protestos contra a captura de 24

Olga, como, por exemplo, uma marcha no Hyde Park, em Londres, integrada por comunistas e simpatizantes, entre eles o par do reino do Partido Trabalhista Lord Listowel. 35 «Por isso, tem de me perdoar...»: Prestes e Prestes (eds.), Anos Tormentosos. Os extratos das cartas de Olga são deste livro e também das coligidas nos documentos de Ruth Werner, a amiga e biógrafa de Olga (BA NY 4502). 36 «Asoziale»: Kriminalpolizei e dossiês pessoais da Gestapo, NRW. Ver também Schikorra, «“... ist als Asoziale anzusehen”». 38 o local era demasiado pequeno: Em Commandant, Höss descreve uma reunião no estaleiro de construção de Ravensbrück em 1938, a que assistiu com Pohl e Eicke, para debater a construção do campo de concentração. Muitas sobreviventes estavam convencidas de que o terreno no qual o campo de concentração foi construído era propriedade pessoal de Heinrich Himmler. Não apareceu ainda qualquer prova a confirmálo, mas durante uma disputa legal recente relativa a planos para construir um supermercado no local, foram encontrados documentos que revelam que o terreno pertencia à delegação da SS em Munique, onde Himmler deu os seus primeiros passos, muito antes do aparecimento do campo de concentração. Planos do terreno, ARa. 38 Doris Maase: Ficha policial, LAV NRW. Foi detida em Düsseldorf quando estava a tentar entrar em contacto com a resistência comunista clandestina. 39 cumprir a sua vocação: Interrogatório de Langefeld, 26 e 31 de dezembro de 1945, NARA, NAW RG 338-000-50-11. Outras guardas afirmaram que aceitaram o posto acreditando que o trabalho consistiria em «reeducar» mulheres; ver Pietsch, BAL B 162/981, e Zimmer, WO 309/1153. 39 «incapaz de se emendar»: Ficha policial, LAV NRW 2034/177. 39 «não fazia sentido»: Haag, How Long the Night e entrevista da autora. 40 «como ratos a pingar»: Ver relatórios em GZJ. O episódio das mangueiras apontadas às testemunhas de Jeová foi recordado com horror pela maioria das sobreviventes de Lichtenburg; ver também Haag, How Long the Night, e Maase, WO 309/416. 40 Himmler visitou: Gostynski, relato de testemunha ocular, WL P.III.h N.º 159, diz que ele fez uma visita todos os anos. Ela viu-o uma vez de perto e recordava os seus «olhos aterrorizantes... maus, frios e cinzentos». 42 Em 15 de maio: Algumas pessoas dizem que 15 de maio foi a data da abertura oficial do campo de concentração, mas que a primeira grande transferência — de 867 prisioneiras de Lichtenburg — se realizou em 18 de maio. Outras pessoas afirmam que a transferência se processou gradualmente ao longo da primeira semana. Não há certeza relativamente a este ponto. Ver Heike, Johanna Langefeld. 43 «esparsamente povoada»: Ullrich, «Für Dich», ARa. 44 Este primeiro grupo: Para descrições de chegadas, primeiros dias no campo de concentração e regras e procedimentos, ver múltiplos testemunhos, incluindo: Gostynski, relato de testemunha ocular, WL P.III.h. N.º 159; Wachstein, relatório de Viena, ARa; Ullrich, «Für Dich», ARa; Sturm, Die Lebengeschichte einer Arbeiterin, e Schwarz e Szepansky (eds.), ... und dennoch blühten Blumen. 44 «a colza está em flor»: Maria Zeh, entrevista em Walz, «Und dann kommst Du dahin an einem schönen Sommertag». Capítulo 2: Sandgrube

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os seus homens não tinham autorização: Ver Wicklein, BAL B162/9808, e Maase, BAL B162-9896/9828. 46 «O cobertor...»: Entrevista da autora. 48 «... objetos de valor mais tarde»: Entrevista da autora. 48 sífilis: Boletim de saúde do campo de concentração de Agnes Petry, ITS Bad Arolsen. O ITS obteve uma série de boletins de saúde de prisioneiras de Ravensbrück depois da guerra. Através desses boletins, que incluem até o número do campo de concentração das prisioneiras, o seu nome e a sua data de nascimento, para além de informações sobre o seu estado de saúde, foi possível confirmar a identidade de algumas das prisioneiras. 48 «974 prisioneiras»: Números citados em Strebel, Ravensbrück. 50 «Vai ser impossível...»: Koegel a Eicke, ARa. 50 «Do que me lembro a seguir...»: Wachstein, relatório de Viena, ARa. 52 «Gustav de Ferro»: Von Luenink, WO 309/416. 52 «Sê dura...»: Insa Eschebach, «Das Fotoalbum von Gertrud Rabestein», em Erpel (ed.) Im Gefolge der SS. 53 muitas vezes com cio: Depoimento em tribunal de Schiedlausky (WO 235/309). Em geral, os testemunhos contêm múltiplos relatos de sérios ferimentos causados por mordidas de cães. 54 «... renegar o seu Deus»: Berta Hartmann e Klara Schwedler, «Bei der Sandarbeit», em Hesse e Harder (eds.), «... und wenn ich...». Testemunho de Anna Kanne e de outras em relatos fornecidos por GZJ. 54 «Abdecken»: Von Luenink, WO 309/416 54 «Olhei lá para fora»: Wachstein, relatório de Viena, ARa. 55 «Gostava de ser...»: Cartas de Maase, Studienkreis Deutscher Widerstand 1933-1945. 56 encontrado Tolstoi: Sturm, Die Lebengeschichte einer Arbeiterin. 57 uma «jovem...»: Gostynski, relato de testemunha ocular, WL P.III.h N.º 159. 59 Ao chegar ao campo de concentração, Jozka: Werner, Olga Benario. 59 viviam em Burgenland: Baseei-me em relatos publicados sob pseudónimo, em Amesberger e Halbmayr, Vom Leben und Überleben. Falei também com Rudolf Sarkozi sobre a sua mãe, Paula, e com a prisioneira de etnia cigana de Burgenland Ceija Stoika, que foi primeiro enviada para Auschwitz e daí para Ravensbrück. Ver também Fridelander, The Origins of Nazi Genocide e Thurner, National Socialism and Gypsies in Austria. 61 «Um vestido multicolorido...»: Ordem de transporte da Gestapo, 20 de julho de 1939, em VVN, Olga Benario. A história da tentativa de obter a libertação de Olga é contada na correspondência da família e foi-me também explicada por Anita Leocadia Prestes. Ver também Apel, «Olga Benario — Kommunistin, Jüdin, Heldin?», em Eschebach, Jacobeit e Lanßwerd (eds.), Die Sprache des Gedenkens. 63 «Está aqui morta...»: Doris Maase assistiu também ao assassínio da cigana não identificada. WO 309/416. 64 «Suicídio por ferimentos provocados...»: Cópia de certidão de óbito, ITS/ANF/KL Ravensbrück Indiv-Unterlagen. 64 «É assim que deve ser um manicómio»: Sturm, Die Lebengeschichte einer Arbeiterin. 64 Zimmer borrava: A prisioneira Berta Maurer (e muitas outras) disse que Zimmer estava usualmente «de mau humor e bêbeda», BAL B162/9809.

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O trabalho que temos de fazer: Wachstein, relatório de Viena, ARa. Capítulo 3: Blockovas

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«Vi a Binz...»: Maase, Bal B162/9828. A filha de: Ver Duesterberg, «Vom der “Umkehr aller Weiblichkeit”» e Johannes Schwartz, «Handlungsräume einer KZ-Aufseherin». Também «Dorothea Binz — Leiterin des Zellenbaus und Oberaufseherin», em Erpel (ed.), Im Gefolge der SS. Os primeiros sinais de sadismo foram notados por muitas sobreviventes. Erika Buchmann disse que Binz batia «até ver sangue sair pelo nariz e pela boca». Também usava «o tacão das botas» para pontapear mulheres por terra. WO 235/318. 69 «tratar as ordens como»: Höss, Commandant. Sobre as mudanças de regime noutros campos de concentração no início da guerra ver Sofsky, The Order of Terror e Kogon, The Theory and Practice of Hell. 70 «prisioneiras de setembro»: Luise Mauer deixou duas importantes declarações; uma encontra-se em Ludwigsberg (BAl B162/9809) e a outra em Elling, Frauen im deutschen Widerstand. 70 «até ficarem com as mãos...»: Moldenhawer, Lund 420. Sobre as primeiras chegadas de polacas, ver também Kiedrzynksa, Ravensbrück. 72 Kapos: Para um estudo do sistema de Kapos de Ravensbrück, ver Annette Neumann, «Funktionshäftlinge im Frauenkonzentrationslager Ravensbrück», em Röhr e Bergkamp (eds.), Tod oder Überleben? 74 «Zimmer rodeava-se de...»: Depoimento de Wiedmaier, ARa. 75 «Uma judia...»: Wachstein, relatório de Viena, ARa. 76 Eram cinco da tarde: LAV NRW R RW-58/54910. 77 «Não é casada. Um metro e 38...»: LAV NRW R RW-58/637790. 77 Querida Mamã: Eckler, Die Vormundschaftsakte. 78 «judias burguesas...»: Werner, Olga Benario. A camarada de Olga Ruth Werner (cujo nome de solteira era Ursula Ruth Kuczynski) tornou-se uma das agentes secretas mais famosas da União Soviética. Com o nome de código Sonya, trabalhou depois da guerra com o espião atómico alemão Klaus Fuchs, enviando segredos nucleares britânicos e americanos para Moscovo. 82 Irmão, estiveste...: Documentos da família Leichter. 82 «A minha libertação deve ter sido»: Hirschkron, WO 309/694. 84 «A criança estava doente...»: Samulon (em solteira, Bernstein), BAL B162/9818. 68

Capítulo 4: A Visita de Himmler 85

Em 4 de janeiro de 1940: Phillip e Schnell, Kalendarium. «Um assassínio a sangue-frio»: Kersten, Memoirs. 86 «Com um pedantismo tão limitado...»: Trevor-Roper, The Last Days of Hitler. 88 «Ele deixou que as guardas...»: Erna Ludolph, «“Das war der Weg, den inch gehen wollte” — Hafterfahrungen in den Frauen-KZ Moringen Lichtenburg, Ravensbrück und andere Erinnerungen von Erna Ludolph», em Hesse e Harder (eds.), «... und wenn ich...» e muitos relatos do protesto das testemunhas de Jeová em depoimentos em tribunal e em memórias. 89 a coberto da guerra: Hitler disse em 1935 que lidaria com o problema dos doentes mentais 86

depois de eclodir a guerra. Ele «adotou o ponto de vista de que em tempos de guerra as medidas para uma solução para o problema seriam aprovadas mais facilmente e com menos fricção, visto que a oposição aberta da Igreja com que poderia contar-se não poderia então, nas circunstâncias da guerra, exercer tanta influência como em tempos de paz», disse Karl Brandt, o seu médico pessoal, no julgamento dos médicos em Nuremberga. O sinal de partida foi, segundo Brandt, uma petição em 1939 diretamente a Hitler do pai de uma criança deformada, a solicitar autorização para uma «morte compassiva». Brandt foi ver a criança em Leipzig. «Era uma criança que tinha nascido cega, uma idiota — pelo menos pareceu-me uma idiota —, e faltava-lhe uma perna e parte de um braço.» Citado em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 89 Numa das salas: Buber-Neumann, Die erloschene, Flamme. 91 Mariechen Öl e Hilde Schulleit: Phillip e Schnell, Kalendarium. 91 Himmler aprovou pessoalmente: Binz, juntamente com vários outros acusados, declarou em tribunal que cada espancamento — incluindo o número de chicotadas — tinha de ser aprovado por Himmler em pessoa. Provou-se que era verdade quando foi encontrada depois da guerra a «ordem de açoitamento» de Himmler (WO 309/217). Nos primeiros tempos, o pessoal obedecia a «ordens verbais» de Himmler em relação aos procedimentos a seguir, que seriam mais tarde registadas por escrito (ver página 321). Capítulo 5: A Dádiva de Estaline 94

Em fevereiro de 1940: Dictators. O golpe comunista: ver Sturm, Die Lebengeschichte einer Arbeiterin e depoimento (DÖW 4676 1-6). Também o testemunho de Rentmeister, 30 de abril de 1947, no julgamento no Landgericht Dresden contra Knoll, BstU Ast 32/48. Ver também Annette Neumann, «Funktionshäftlinge im Frauenkonzentrationslager Ravensbrück», em Röhr e Bergkamp (eds.), Tod oder Überleben, e Strebel, Ravensbrück. 100 exumaram o seu cadáver: Haag, How Long the Night. 101 a sua ficha da Stasi: Depois da guerra, Maria Wiedmaier e outras das prisioneiras que se reuniram no beliche de Kähe Rentmeister foram recrutadas pela Stasi para tarefas de espionagem no Ocidente. Ver página 662. 101 Barbara Reimann: entrevista da autora. 102 «Não tínhamos autorização...»: Rosa Jochmann, «Wenn der Elferblock voll gewesen ist, dan...», http://www.doew.at/erinnern/biographien/erzaehlte-geschichte/haft-1938-1945/rosajochmann-wenn-der-elferblock-voll-gewesen-ist-dann 104 Não te esqueças: Ibid. 104 Não havia nada de que as prisioneiras...: Memórias de Clara Rupp, ARa. 106 «Podia ter ido...»: Entrevista da autora. 99

Capítulo 6: Else Krug 110

Várias das mulheres: Herbermann, The Blessed Abyss. «endireitámos o que podíamos»: Declaração de Teege, «Hinter Gitter und Stacheldraht», ARa 647. 111 Disseram que eu era uma traidora: Em Schikorra, «“... ist als Asoziale anzusehen”» 112 «mas sabemos...»: LAV NRW R BR 2034/83. 110

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A história da vida de Ottile Görries: É contada num dossiê existente no Landesarchiv NRW, juntamente com a de Elisabeth Fassbender e de muitas outras «associais». Ver também Schikorra, Kontinuitäten 118 Na carta, declara-se: Correspondência em ficheiros VVB BA. 120 «Aqui está ela...»: Maase, WO 309/416, e repetido em muitos testemunhos de prisioneiras. Capítulo 7: Doutor Sonntag Uma grande parte do testemunho de Sonntag no julgamento em Hamburgo encontra-se em WO 309/416, mas também em vários outros ficheiros em TNA. 122 «Himmler partiu de Berlim...»: Witte et al. (eds.), Dienstkalender. 122 «Häschen»: Himmler, The Himmler Brothers. Alguns historiadores locais creem que a casa em Brückenthin foi construída por trabalhadores escravos. Não se sabe exatamente quando é que a terra foi comprada e Häschen se mudou para a casa. Antes de Brückenthin estar construído, Himmler talvez tenha vivido com ela numa nova quinta experimental que tinha montado, que também ficava perto de Ravensbrück e onde ele se dedicava à agropecuária. Atualmente, Brückenthin é um campo de férias para crianças; os pormenores das estadas de Himmler e Häschen aí encontram-se descritos em Schweriner Volkszeitung, 30 de junho de 2003. 124 «Há várias semanas...»: citado em Friedlander, The Origins of Nazi Genocide. 124 «O poder sobre...»: Ibid. 125 «se e como...»: Ibid. 125 encarregara o seu cirurgião-chefe: Himmler para Grawitz, 3 de fevereiro de 1940. Citado em Witte et al. (eds.), Dienstkalender. 126 «A reprodução dos...»: Ver Stoll, «Walter Sonntag». 128 «extremo prazer»: Depoimento de Buchmann, 23 de janeiro de 1948, WO 309/416. 129 «Lembro-me de uma mulher...»: Apfelkammer, BAL B162/9818. 130 «Sonntag, o grande patife...»: Declaração de Wiedmaier, 6 de julho de 1958, ARa. 130 as sobras do seu pequeno-almoço: Dictators. 131 que ele fizesse a experiência em Ravensbrück: Como foi revelado em Nuremberga, Rudolf Brandt, o médico pessoal de Himmler, escreveu a Clauberg em 10 de julho de 1942 a solicitar que ele fosse a Ravensbrück realizar experiências de esterilização em massa em judias «segundo o seu método». Brandt disse que em 1941 já «era um segredo conhecido» que Hitler planeava exterminar todos os judeus. O objetivo das experiências de esterilização era obter uma alternativa ao extermínio total. Tendo em consideração a falta de mão de obra, a ideia era preservar entre dois e três milhões de judeus capazes para o trabalho, mas esterilizá-los. Citado em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 131 Lembro-me de um dia: Depoimento de Buchmann, 23 de janeiro de 1948, WO 309/416. 132 «Nunca fui tão feliz...»: Documentos da família de Sonntag. 133 «Ouvíamo-lo entrar...»: WO 309/416. 133 Um dia, mandaram-me: Declaração de Teege, «Hinter Gitter und Stacheldraht», ARa, 647. Capítulo 8: Doutor Mennecke

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«As mulheres pareciam...»: Declaração de Teege, «Hinter Gitter und Stacheldraht», ARa, 647. 137 «No campo...»: Dictators. 137 «Já alguma vez viram...»: Hayes (ed.), The Journalism of Milena Jesenska. 139 «A mulher parou...»: Anicka Kvapilová, citado em Buber-Neumann, Milena. 141 primeira execução: Ver Kiedrzynska, Ravensbrück. 143 «quarto grande e agradável»: Chroust (ed.), Friedrich Mennecke. 143 Várias vezes por semana: Friedlander, The Origins of Nazi Genocide. 144 «acostumados às suas próprias atrocidades»: Longerich, Heinrich Himmler. 146 «os médicos da comissão visitarão em breve...»: Citado em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 146 «Minha querida Mamã...»: Chroust (ed.), Friedrich Mennecke. 149 «Tivemos de tirar...»: Citado em Strebel, Ravensbrück. 153 «uma Appel para Blockovas...»: As minhas descrições de como as prisioneiras encaravam os acontecimentos no campo de concentração na sequência da chegada de Mennecke são resultantes de entrevistas, bem como de uma série de testemunhos em WO 235/416 e WO 235/318, e de Rosa Jochamnn, «Wenn der Elferblock voll gewesen ist, dan...», http://www.doew.at/erinnern/biographien/erzaehlte-geschichte/haft-1938-1945/rosajochmann-wenn-der-elferblock-voll-gwesen-ist-dann. Também: Dictators; Herbermann, The Blessed Abyss, as memórias de Clara Rupp, ARa; declaração de Teege, «Hinter Gitter und Stacheldraht», ARa 647.; e Luise Mauer, BAL 162/9809, e em Elling, Frauen im deutschen Widerstand. 156 «Toma a minha mão...»: Dreams. Capítulo 9: Bernburg 157

«muito simples — nada»: Entrevista da autora. «Terça-feira, 13 jan...»: Witte et al. (eds.) Dienstkalender 161 «queridíssima bebé»: Chroust (ed.) Friedrich Mennecke. 164 «A guarda Zimmer...»: Falkowska, «Report to the History Commission», Institute for National Memory [Instituto de Memória Nacional], Polónia. 164 «... transporte de extermínio»: Para além do testemunho e das memórias citadas acima, a descrição dos acontecimentos imediatamente subsequentes baseia-se em declarações de Wiedmaier, ARa, de testemunhas e de guardas em testemunhos adicionais no julgamento de Hamburgo (por exemplo, Quernheim, Zimmer e Bernigau em BAL B162/9811) e Apfelkammer, BAL B162/9818. 167 «Visita de RFSS...»: Witte et al. (eds.), Dienstkalender. 170 «por isso soubemos...»: Von Skene, WO 235/316. 172 Todas as nossas esperanças: Documentos da família Leichter. 173 Herta «Sara» Cohen: LAV NRW R RW-58/54910. 176 «exemplar»: Cartas de Lina Krug em arquivos VVN, BA. 159

SEGUNDA PARTE Nesta secção recorre-se, em particular, a entrevistas a sobreviventes polacas, nomeadamente a Maria Bielicka, Wanda Półtawska (em solteira, Wojtasik), Wojciecha Zeiske

(em solteira, Buraczyńska) e Zofia Cizek (em solteira, Kawińska). Recorri igualmente a declarações de um grande número de sobreviventes polacas existentes no Instituto Polaco em Lund e atualmente arquivadas na biblioteca da universidade de Lund. Estes relatos longos e valiosíssimos foram registados ao longo de um período de meses após a libertação por iniciativa de Zygmunt Lakocinski, um historiador de arte que vivia em Lund. Foram tornados públicos em 1996. Capítulo 10: Lublin 180

«Não conseguiram arrancar-me...»: Michalik, Lund 117. «Ele tirou as roupas»: Jezierska, Lund 402. Sobre a tortura das polacas antes de chegarem ao campo de concentração ver também Wanda Kiedrzyńska, introdução a Beyond. 181 livraria de St. Adalbert: Pormenores do encontro de Krysia e Wanda, da resistência e da detenção em Lublin obtidos através de entrevistas da autora e em Dreams. 181 Michał Chrostowski: Chrostowska, Jakby Minelo Juz Wszystko e documentos no Museu de Martirologia «Pod Zegarem» (Debaixo do Relógio), uma delegação do Museu de Lublin (Muzeum Lubelskie w Lublinie). 182 «Escreva se souber alguma coisa...»: Documentos de Chrostowska, Museu de Martirologia «Pode Zegarem» (Debaixo do Relógio), uma delegação do Museu de Lublin (Muzeum Lubelskie w Lublinie). 182 escondidas na palma da mão: Entrevista da autora a Maria Wilgat. 182 partiu de Lublin um comboio: Entrevistas da autora, também Dreams e Lund, vários. 182 «Estávamos todas contentes...»: Stefaniak, Beyond. 186 Schmuckstücke: Ver também Tillion, Ravensbrück: «os detritos humanos que em Ravensbrück deitavam fora». Em Auschwitz, o termo usado para designar os mais pobres entre os pobres era Muselmann (muçulmano). O fatalismo atribuído aos muçulmanos é uma possível razão para o uso dessa palavra, diz Sofsky em The Order of Terror. Em Majdanek chamavam-lhes «burros», em Dachau «cretinos», em Mauhausen «nadadores». Sofsky diz que em Ravensbrück o termo «Muselweiber» (muçulmanas) era usado, mas eu não o encontrei no decurso da minha pesquisa. 188 a contar histórias: Wińska, Zwyciężyły Wartosci. 188 Helena Korewina: Ver Kiedrzyńska, Ravensbrück, e Dictators. 188 Verfügbare: Dreams. Também Młodkowska, Beyond. 189 implicou novas regras: Moldenhawer, Lund 420. 190 «Mas não cantem alto»: Entrevista da autora a Maria Bielicka; também Kiedrzynska, Ravensbrück. 190 moça polaca do campo: Michalik, Lund 117. 191 Gerda Quernheim. Existe um grande número de testemunhos, e de memórias de Quernheim e Rosenthal. Ver, por exemplo, WO 309/416. 192 «Ela pediu-me...»: Tanke, BAL B162/472 193 Avistávamos muitas vezes: Houseková, BAL B162/455. 193 «eu não lhe retribuí o sorriso»: LAV NRW 3997. O interrogatório de Lenie Bitterhoff (em solteira, Reinders), que foi classificada como associal, consta da sua ficha policial de criminosa. Quinta de onze filhos, era filha de um agricultor e trabalhou como criada perto de 180

Kleve. O seu marido morreu na frente de combate em 25 de outubro de 1941. Não tinha acusações anteriores e nenhum interesse pela política. 194 «Não vê...»: Dreams. 194 minúsculos presentes: Entrevista da autora. 194 Grażyna compunha: Entrevista da autora. 194 atos feios e inumanos: Dreams. Sobre o alastramento do lesbianismo, ver também: Moldenhawer, Lund 420; Młodkowska, Beyond; Morrison, Ravensbrück. 196 a começar a passar fome: Dreams; Dragan, Lund 239; Michalik, Lund 117. 197 «Langefeld tinha muito afeto...»: Kiedrzyńska, Ravensbrück. Capítulo 11: Auschwitz 199

«... confusão desastrosa»: Buber-Neumann, Die erloschene Flamme. Ao princípio, não compreendi: Entrevista da autora. 200 3 de março de 1942: Na agenda de Himmler para o dia 3 de março de 1942 está registado que ele visitou FKL Ravensbrück entre as 11h00 e as 14h00. Witte et al. (eds.), Dienstkalender. 201 todo o corpo de guardas: Ver interrogatório de Langefeld, 26 de dezembro de 1945, NARA, NAW RG 338-000-50-11; também Dictators e Strebel, Ravensbrück. 202 26 de março: Segundo Danuta Czech, a autora de uma crónica de Auschwitz, chegaram numa quinta-feira. Ver Czech, Kalendarium. 202 Existe pouca informação: A prisioneira política Klara Pförtsch foi como Kapo, e entre as guardas enviadas para Auschwitz recorda-se de Hasse e Drechsel, classificando esta última como «uma cabra horrenda» (BAL B 162/9809). 202 Philomena Müssgueller: WO 309/412. Ver relatório neste dossiê datado de 19 de março de 1947 e elaborado por investigadores americanos em que se afirma que uma mulher chamada Philomena Muesgueller [sic], também conhecida como Mimi Heller, tinha sido detida e — segundo a sua declaração — fora «oberkapo» em vários campos de concentração desde 1939. Confessou que chefiava a unidade de punição em Ravensbrück e que em Auschwitz dirigia o «infame Kommando Sauna» (o depósito de vestuário nas câmaras de gás). Nas notas aparece registado que algumas prisioneiras judias que tinham estado em Auschwitz acusavam Müssgueller de tortura e de «causar a morte». Existem também notas sobre uma possível extradição para o setor britânico para ser julgada, mas, aparentemente, não foi acusada nem julgada. Entrevistada por investigadores alemães em abril de 1965, descreveu-se como «dona de casa» a viver em Oberpfalz. Admitiu ter sido Stubova em Ravensbrück, dizendo que foi «libertada» em 1942, de facto o ano em que foi transferida para Auschwitz. Nada diz sobre Auschwitz neste último interrogatório e, aparentemente não pressionada sobre o assunto, foi-lhe permitido voltar para casa (BAL B162/9818). 203 relatos vívidos: Relatório de Luise Mauer em Elling, Frauen im deutschen Widerstand. Declaração de Teege, «Hinter Gitter und Stacheldraht», ARa 647. 203 vindas de Proprad: Czech, Kalendarium. 205 «amontoadas até ao teto»: Höss, Commandant. 207 «aproveitei a primeira oportunidade...»: Interrogatório de Langefeld, dezembro de 1945, NARA, NAW RG 338-000-50-11. Ver também Buber-Neumann, Die erloschene Flamme. 200

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Nora Hodys: Ver Langbein, People in Auschwitz. 18 de julho de 1942: Ver Höss, Commandant, e Rees, Auschwitz. 211 Gorlitz: Ver Buber-Neumann, Die erloschene Flamme, interrogatório de Langefeld, dezembro de 1945, NARA, NAW RG 338-000-50-11, e Höss, Commandant. 209

Capítulo 12: Costura A história da oficina de costura foi reconstituída a partir de um grande número de relatos de prisioneiras, entre os quais: Wiedmaier, declaração sem título sobre a oficina de costura, 29 de dezembro de 1946, ARa; Alfredine Nenninger, «Erlebnisse in Frauen-konzentrationslager Ravensbrück und bei den Wirtschaftsbetrieben der Waffen-SS», DÖW; Müller, Klempnerkolonne; Dictators; Wińska, Zwyciężyły Wartości; e testemunhos em Lund, assim como declarações de francesas e de russas. 213

vendeu brinquedos: Dąbrówska, BAL B162/9813. laços mais com a comunidade local: Strebel, Ravensbrück. 214 O trabalho de Herr Wendland: Dictators. 215 «tinha reduzido o ímpeto...»: Moldenhawer, Lund 420. 216 círculo de amigos: Ver Feldenkirchen, Siemens, a história oficial da empresa. 216 Para colmatar esta falta de pessoal: Em finais de 1940, a Siemens dependia já fortemente do trabalho de judeus em Berlim. Os trabalhadores judeus eram mantidos à parte e desfrutavam de condições de trabalho menos favoráveis do que os outros. Ibid. 217 adaptados a um trabalho de precisão: Ibid. 217 transporte de judeus da Alemanha: Quando começaram as deportações, Carl Friedrich von Siemens disse a um gerente judeu da Siemens que se sentia «incomodado» por ter de o despedir. No entanto, Siemens acrescentou que, se objetasse às políticas de Hitler, «estaria a arriscar a existência de toda a casa Siemens». Citado em ibid. 217 «encorajaria os homens...»: Himmler a Pohl, 23 de março de 1942, BA NS 19/2065. Ver também Sommer, «Warum das Schweigen?». 217 «Às escolhidas...»: Schiedlausky, WO 235/309. 218 A Texled... era dirigida profissionalmente: Ver Strebel, Ravensbrück. O testemunho em tribunal está repartido entre o primeiro caso, o principal, no qual Binder foi réu (WO 235/305-319), e o julgamento de Opitz e Graf um ano depois (WO 309/1150). 218 «trabalho de mulheres»: Citado em Iris Nachum e Dina Porat, «The History of Ravensbrück Concentration Camp as Reflected in its Changing and Expanding Functions», em Dublon-Knebel (ed.), A Holocaust Crossroads. 220 chega a notícia de que morreu: existem bastantes relatos de tais mortes. Ver, por exemplo, Ilse Gohring e Neeltje Epker, em WO 235/433 e WO 309/1150. 220 Subitamente, Schinderhannes: Ver Alfredine Nennigen, «Frauen-konzentrationslager Ravensbrück Abteilung Industriehof», DÖW, Ravensbrück f. 143. 221 Kawurek, Ryczko e Zaremba: Wińska, Zwyciężyły Wartości. 222 «Era uma espécie de lição de História...»: Dragan, Lund 239. 222 «tirava o dinheiro e o ouro...»: Wiedmaier, WO 309/42. Ela também fala de chegarem uniformes do exército «cobertos de sangue e de lama» para serem arranjados. 222 «carregado com peles de judeus»: Biega, BAL B162/9818. 223 «a levantar-nos o queixo...»: Dragan, Lund 239. 213

223

«Ainda hoje, quando...»: Michalik, Lund 117. «lindo dia de sol»: Dreams. 224 «Patriota fanática...»: Bielicka Kiedrzyńska, na sua introdução a Beyond, disse que apareceram provas de que as sentenças de morte dessas mulheres não tinham tido a concordância oficial de Odilo Globocnik, o chefe da polícia de Lublin. 225 a coser botões: Młodkowska, Beyond. 225 «grito de anseio insuportável...»: Dreams. 226 «Soube que»: Falkowska, «Report to the History Commission», Institute for National Memory, Polónia. 227 «como penitentes medievais»: Dictators. 228 «A Pola apontou um dedo...»: Dreams. 228 «um camião com prisioneiras...»: Pietsch, BAL B162/981. 228 «Às seis da tarde...»: Adamska, WO 235/318. 228 «Ficámos ali...»: Dictators. 223

Capítulo 13: Coelhas 229

«causadas por bactérias...»: Citado em MacDonald, The Assassination of Reinhard Heydrich. 230 Apertavam a si: Houzková, Und es war doch. Ver também Russell, The Scourge of the Swastika, e Uwe Naumann (ed.), Lidice: Ein böhmisches Dorf (Frankfurt: Röderberg, 1983). 231 Karl Gebhardt não tinha qualquer interesse: Interrogado pelos Americanos em outubro de 1945, Gebhardt falou com desprezo de outros médicos nazis em posições superiores, dizendo que, ao contrário dele, se tinham alistado na SS para progredirem a nível pessoal. Se ele (Gebhardt) não tivesse conduzido as experiências com sulfonamidas, elas não teriam qualquer base científica e teriam sido atribuídas a um incompetente qualquer como o Dr. Rascher, cujas experiências eram «ridículas». Para Himmler, as experiências eram simplesmente uma maneira de encontrar «um novo mecanismo» para causar boa impressão ao Führer. NARA M 1270. 232 estava «a visitar parentes...»: Citado em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 232 que nascera em Hohenlychen: Himmler, The Himmler Brothers. Foi um parto difícil, com fórceps. 233 «sua cavalgadura...»: Ostermann, Buchmann coll. 233 Wanda foi a última a ser escolhida: Os médicos disseram em Nuremberga que, durante aquilo a que chamaram esta «segunda» fase de experiências, de setembro até ao início de outubro, trinta e seis mulheres foram escolhidas, divididas em três grupos de doze. No total, setenta e quatro polacas foram submetidas a operações. Ver Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 236 «Quantas mortes...»: Ibid. Capítulo 14: Experiências Especiais 242

Kazia Kurowska: Kurowska tinha tentado escapar do campo de concentração algumas semanas antes das experiências, como se o seu instinto a estivesse a avisar do perigo iminente. Juntou-se ilegalmente a um grupo de trabalho no exterior e depois correu de uma equipa de trabalho para outra «como uma corça assustada» antes de ser apanhada. Ver

Grabowska, Beyond. espia pelos buracos das fechaduras: Mączka, Lund 228. 245 «Olhem para isto»: Dreams. 245 Gebhardt foi embora: Zofia Mączka, a médica polaca, diria mais tarde que um dia ouviu Oberheuser admitir que «havia pelo menos uma coisa boa nas operações: ganhei alguma prática em cirurgia e agora tenho probabilidade de obter uma colocação em Hohenlychen». 245 «Consigo também imaginar...»: Citado em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. A mania das experiências de Himmler tornou-se clara para Keith Mant, o patologista britânico de crimes de guerra, quando se preparava para os casos de Nuremberga. «Descobri ao ler os documentos da SS em Nuremberga durante a preparação para o julgamento dos médicos que ele [Himmler] tinha pessoalmente lido e assinado virtualmente todos os documentos relacionados com experiências em seres humanos que se encontravam nos ficheiros do quartel-general da SS.» Nota num dossiê, Atkins. 246 «características raciais nórdicas indesmentíveis...»: Mitscherlich e Miekle, Death Doctors. 246 «muito rapidamente compreenderam...»: Ibid. 247 se opusera aos testes de Stumpfegger: Testemunho de Nuremberga, citado em ibid. Pormenores dessas experiências também em Mączka, Lund 228, e relatório Mant, WO 309/416. 250 Uma garota cigana: Housková, BAL B162/455. 250 «marcas de agulhas hipodérmicas...»: Dictators. 250 principalmente para Auschwitz: No outono de 1942, as mulheres de Ravensbrück ainda não sabiam ao certo o que acontecera em Auschwitz, mas chegaram notícias com um grupo de testemunhas de Jeová «extremistas», enviadas de Ravensbrück para Auschwitz por causarem problemas e recambiadas — sem qualquer sentido — algumas semanas depois para serem executadas. Grete Buber-Neumann conseguiu falar com uma delas, que lhe disse: «Não vai acreditar, sabe, mas atiram seres humanos vivos para o fogo lá, até crianças pequenas. Principalmente judeus.» Grete não acreditou nela. Parecia delirante de febre. Tinha obviamente enlouquecido. Ver Dictators. Ao mesmo tempo que as prisioneiras judias partiam para Auschwitz em outubro de 1942, Emma Zimmer, a guarda sénior, era transferida para trabalhar aí; disse que a sua tarefa consistia em supervisionar o alojamento do pessoal da SS (WO 309/1153). 251 «Muitas vezes estavam doentes...»: Hoffmann, Buchmann col. 252 jovem ucraniana: Winkowska, Lund 285, e Grabowska, Beyond. Houve pelo menos dez destas «experiências especiais», diz Sofia Mączka (Lund 228). 252 médico russo em Kiev: Mitscherlich e Miekle, Death Doctors. 253 uma omoplata: Ibid. e Sofia Mączka, Lund 228. 253 uma dessas mulheres: Ver também Grabowska, Beyond. 243

Capítulo 15: Cura 255

Kazimiera Pobiedzińska: Ver Grabowska, Beyond, e Falkowska, «Report to the History Commission», Institute for National Memory, Polónia. 255 «essas Kapos sem escrúpulos...»: Höss, Commandant. 256 No chão: Depoimento ajuramentado de Pery Broad, 14 de dezembro de 1945, Nova Iorque-11397. Staatsarchiv Nürnberg.

257

funcionário aplicado: Durante o seu treino, os chefes da SS acharam Suhren «um pouco hesitante e inábil» e carecendo de «sentimento militar», mas a sua conduta era «irrepreensível», assim como as suas convicções nacionais-socialistas. Ver Strebel, Ravensbrück. A prisioneira alemã Isa Vermehren observou que ele tinha «uns modos cultos» (TNA TS/895). Ver também a nota da página 372. 257 corrupção da SS: A chamada «investigação» de Ramdohr centrou-se nas pilhagens do pessoal da SS na oficina das peles, mas, segundo Ella Pietsch, uma guarda particularmente observadora, não passava de um encobrimento. Uma testemunha-chave — um homem da SS pouco graduado chamado Verchy — foi morta a tiro antes de ter tempo de denunciar a situação. Ramdohr disse a Pietsch que Verhy «morreu de morte natural», mas ela não acreditou (BAL B162/981). 257 acarretou muitas mortes: Número de mortes citado em Strebel, Ravensbrück. 259 «A produção de cada prisioneira...»: Dictators. Ver também exemplos de relatórios mensais em SA, indicando a rotação de pessoal e o número rejeitado devido a «morte». Em Siemens, Feldenkirchen observa que a direção considerava a produtividade «impressionante» devido ao equipamento «exemplar» das oficinas e à «ordem que reinava no local de trabalho». 260 «a contorcer-se entre...»: Dictators. Helena Strzelecka, Lund 192, descreveu as «orgias ébrias» dos casais na Revier. Quernheim encenava «espetáculos macabros» para as prisioneiras que ia matar, dando-lhes primeiro banho e enfeitando a banheira com flores e em seguida penteando-as. 262 levar-lhes pequenos luxos às escondidas: Grabowska e Maćkowska, Beyond. 262 «Vou só tentar...»: Beyond. 263 «fez-se silêncio...»: Dreams. 264 «visão dolorosa»: Michalik, Lund 117. 264 «contar ao mundo»: Ensaio de Krysia Czyż-Wilgat (em solteira, Cycż), descrevendo a génese do plano, em Beyond, e entrevista da autora a Wanda Połtawska (em solteira, Wojtasik) e Wojciecha Zeiske (em solteira, Buraczyńska). Ver também Dreams. 266 «Parecia fora do contexto»: Entrevista da autora. 267 «Foi a única história»: Entrevista da autora. 267 A escrita de cartas começou: Czyż-Wilgat, Beyond. 271 marcha de protesto: A marcha foi-me descrita por Wojciecha Zeiske e encontra-se nos testemunhos de várias citadas acima, em particular de Pelagia Maćkowska e de Eugenia Mikulska em Beyond. 272 «não sabia nada das operações»: Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 274 uma espécie de amotinação: Cartas de Czyż. Ver também Kiedrzyńska, Ravensbrück. 275 Fiquei sentada à minha máquina de escrever: Dictators. TERCEIRA PARTE Para a história das mulheres do Exército Vermelho, entrevistei mais de trinta sobreviventes e recorri também a entrevistas realizadas por outras pessoas, em particular pela historiadora alemã Loretta Walz, que foi a primeira estudiosa de um país ocidental a trabalhar numa história oral do campo de concentração. Os testemunhos em julgamento são limitados. Os crimes contra os Russos não foram

investigados nos julgamentos do pós-guerra no Ocidente e as vítimas russas também não prestaram declarações em tribunal, o que explica em parte porque é que a sua história nunca foi contada. Realizaram-se alguns julgamentos ad hoc em Neustrelitz, perto de Ravensbrück, conduzidos pelos Soviéticos depois da libertação, mas existem poucos pormenores. Os documentos relativos a uma Comissão Investigadora Soviética de Ravensbrück apareceram recentemente em GARF, o Arquivo de Estado da Federação Russa, e são de valor incalculável, embora incompletos. Capítulo 16: O Exército Vermelho 279

«vieram ordens para mobilizar»: Entrevista da autora. Ver também Shneer, Plen, e Mednikov, Dolya Bessmertiya. 280 800 000 mulheres soviéticas: Citado em Strebel, Ravensbrück. 281 «Malygina era...»: O relato da última batalha nos rochedos da Crimeia, da travessia a nado, da marcha para oeste e da execução dos judeus baseia-se em entrevistas conduzidas por mim, assim como no relato de Leonida Boyko em Mednikov, Dolya Bessmertiya, e Konnikova, GARF. Ver também Tschajalo, relatório ao Museu Militar de Medicina, São Petersburgo. 282 «criaturas depravadas»: Citado em Strebel, Ravensbrück. Ver também Shneer, Plen. 285 usados para trabalho escravo: Entrevistas da autora. Ver também Tschajalo, relatório ao Museu Militar de Medicina, São Petersburgo, e Shneer, Plen. Capítulo 17: Yevgenia Klemm 288

Marchámos do comboio: Entrevistas da autora. Ver também Konnikova, GARF; ver também Tschajalo, relatório ao Museu Militar de Medicina, São Petersburgo; Losowaja, ARa; e documentos Nikif. 290 «estatuto de prisioneiras guerra»: Entrevistas da autora e ver abordagem em Strebel, Ravensbrück, e Favez, The Red Cross and the Holocaust. 291 russas «oficiais»: Dictators. O livro de memórias de Grete Buber-Neumann, publicado originalmente na Alemanha Ocidental em 1949, foi considerado no Leste como a obra de uma traidora fascista e não se encontra ainda traduzido em russo. 291 «Elas vinham de...»: Hajková, «Ravensbrück», Praga 1960, ARa. 291 «desprezível»: Dictators. 292 censura do pós-guerra: Em relação à luta de Nikiforova com os censores, baseei-me em entrevistas a Stella Nikiforova (em solteira, Kugelman) e a Bärbel Schindler-Saefkow. 293 nasceu em Odessa: As informações sobre a vida de Klemm baseiam-se em relatos de sobreviventes e nos documentos de Georg Loonkin, incluindo um artigo que ele escreveu em 1968 para Communist Flag. O artigo foi pioneiro, na medida em que tecia louvores ao heroísmo das mulheres soviéticas numa altura em que as prisioneiras de Hitler do Exército Vermelho ainda eram consideradas traidoras por muitas pessoas na Rússia. 294 Achei o campo: Yekaterina Olovyannikov, documentos Nikif. 294 «Já não vejo a Lyusya...»: Anna Fedchenko, documentos Nikif. 296 «roupas extremamente bonitas»: Cartas nos documentos Nikif. 296 «sempre erguidas bem alto»: Hájková, «Ravensbrück», Praga, 1960, ARa. 296 chegavam mais cada dia: A sobrelotação crescente é descrita na maior parte dos relatos

do período; ver, por exemplo, Moldenhawer, Lund 420. Ver também o álbum de fotografias da SS que mostra trabalhos de construção (ARa) e Plewe e Köhler, Baugeschichte Frauen Konzentrationslager Ravensbrück. 297 as suas Blockovas favoritas: Entre outras Blockovas despedidas e enviadas para o bunker quando Langefeld foi dispensada encontravam-se Rosa Jochmann, a sindicalista austríaca, e Helena Korewina, a condessa polaca. 297 Spitzel: Múltiplos relatos em testemunhos no julgamento de Hamburgo e BAL. Ver Apfelkammer BAL B 162/9818, e o testemunho do próprio Ramdohr, WO 309/416. 297 «a andarem de um lado para o outro...»: Dictators. 297 «bela besta»: Não se sabe com exatidão quando é que Binz se tornou oficialmente chefe das guardas. Inicialmente, partilhou essa função com uma recém-chegada ao campo de concentração, Anna Klein-Plaubel, mas esta não atraiu as atenções das prisioneiras e afirmaria em interrogatórios no pós-guerra que não tinha contacto direto com as detidas (WO 309/115). A maior parte das prisioneiras crê que Dorothea Binz passou a ser a única chefe das guardas a partir de 1943; indubitavelmente, era quem tinha mais poder. 297 Binz fez uma visita: Entrevista da autora a Ilse Halter, uma conhecida de infância de Binz. 298 «Eram quatro da madrugada...»: Documentos Nikif. 298 perfiladas ao frio e à chuva: Konnikova, GARF. Estavam sempre a ser inventadas novas formas de tortura com água. Anna Stekolnikova recordou que eram obrigadas a cavar areia do fundo do lago, metidas na água até à cintura para o fazerem. Entrevista da autora. 298 «Subitamente, de máquina para máquina...»: Documentos Nikif. 301 cantou uma ária: Tschajalo, relatório ao Museu Militar de Medicina, São Petersburgo, diz que era uma ária de Carmen. Anise Girard recordava-se de cantar uma ária com as mulheres soviéticas quando vivia no mesmo bloco. 302 «Só as proletárias...»: Hájková, «Ravensbrück», Praga, 1960, ARa, sobre a marcha, e também entrevista da autora a Galina Gorbotsova. Capítulo 18: Doutor Treite 303

doou: Strebel, Ravensbrück. Campo da Juventude: O campo de Uckermark foi construído mais ou menos ao mesmo tempo que a fábrica da Siemens, sendo a sua mão de obra também proveniente do campo de concentração para homens. Mais uma vez, o número de mortes foi chocante. Segundo afirmações de testemunhas, entre dez e quinze homens eram mortos a tiro todos os dias quando desfaleciam de fome e de exaustão ou tentavam escapar. 304 «Eu queria absolutamente...»: Vavak, «Siemens & Halske im Frauenkonzentrationslager Ravensbrück», DÖW, Ravensbrück, f. 49. 304 «É incompreensível...»: SA, ficheiro não catalogado, citado em Feldenkirchen, Siemens. 304 transferida pela SS para o campo de morte: Ehlert, BAL B162/452. 304 «Eu quis voltar...»: Strebel, Ravensbrück. 305 «Como o alojamento...»: Ibid. 305 «Sob o nosso olhar...»: Bontemps, «Siemens-Arbeitslager-Ravensbrück», ARa. 305 «Ao fim de três meses...»: Entrevista da autora. 306 «Era uma das...»: Entrevista da autora. 306 nunca chegara a parar: A oficina de costura mantinha também listas das «inúteis». WO 303

235/433. transportes negros: Schiedlausky, Wo 235/309. Ver também Tillion, Ravensbrück, e o seu depoimento em Rastatt, Archives Diplomatiques du Ministère des Affaires Étrangères, Colmar. Ver também Anise Postel-Vinay ( em solteira, Girard), «Les exterminations par gaz a Ravensbrück», em Tillion, Ravensbrück, terceira edição. 307 «Escolheram-nos...»: Maurel, Ravensbrück. 308 Os contratos: Ver Strebel, Ravensbrück; também Speer, The Slave State. 308 «se devido aos...»: Cartas de Czyż. 309 estação clandestina de rádio: A SWIT obedecia às regras do Political Warfare Executive [Executivo de Guerra Político], um serviço secreto britânico do tempo da guerra que supervisionava toda a propaganda radiofónica clandestina. Criou-se igualmente uma secção feminina da SWIT por instigação de uma advogada polaca chamada Krystyna Marek. 310 Da primeira vez: Entrevista da autora. Algumas polacas também tinham sido enviadas para trabalhar na clínica de Hohenlychen, de onde conseguiam mandar cartas através do correio normal. 311 «organizava um banquete»: Silbermann, «SS-Kantine Ravensbrück», DÖW, Ravensbrück f. 140. 312 «Com uma taxa de mortalidade assim tão alta...»: NO-10815, Staatsarchiv Nürnberg. 312 «... só os que sofram...»: Himmler, NO-1007, Staatsarchiv Nürnberg. 312 «Eu não queria fazê-lo»: Konnikova, GARF. 313 Pelo menos dois abortos: Dossiê de oficial de Rosenthal, cópia em ARa. 313 meio familiar de que provinha: Ver anuários do Exército de Salvação (várias edições), «Jubilee Memories of Lt-Col K. Treite» e outros documentos nos arquivos do Exército de Salvação em Londres. A árvore de família no dossiê de oficial de Percy Treite, BA. 314 reorganizou a Revier: Ver, por exemplo, Maria Grabska, «Bericht über das Revier Frauenkonzentrationslager Ravensbrück», ARa. 314 «Depois da sua doença...»: Dictators. 315 «Até mesmo os guardas da SS...»: Ibid. 316 «vaca bolchevique»: Konnikova, GARF. 316 carta oficialmente secreta: Citada em Mitscherlich e Mielke, Death Doctors. 317 «As condições...»: Dictators. 318 «E olhando para mim...»: Tillion, Ravensbrück. 318 Isto para mim: Salvesen, WO 235/305. 319 «nenhum outro hospital à face da terra»: Salvesen, Forgive. 319 «É filha do...»: WO 309/149. 319 «Era judeu?»: Ver relatório de Nikoforova em Buchmann coll. 319 «Treite entrava frequentemente...»: Nedvedova, declaração de Praga. 320 «Achei que poderia»: Salvesen, Forgive. 320 «Exceto um dia...»: Entrevista da autora. 320 «A conversa desviou-se para...»: Hanka Housková, memórias manuscritas, ARa. Ver também Jirásková, Kurzer Bericht über drei Entscheidungen. 321 Duas prisioneiras: Elisabeth Thury, a mulher-polícia do campo de concentração, disse 306

que em 1943 as prisioneiras que estavam encarregadas de espancar as outras viviam já numa divisão especial do bunker, WO 235/318. 321 a fazer chichi pelas pernas abaixo com o terror: Testemunhos múltiplos, por exemplo Epker, WO 309/1150, e Konnikova, GARF. 321 «Açoitamento de Prisioneiras»: WO 309/217. 322 «talvez porque ficou...»: Nedvedova, declaração de Praga. 323 «Armada com o cabo de uma vassoura...»: Salvesen, Forgive. 324 também elas iam ser subornadas: Konnikova, GARF, e ver recusa das prisioneiras francesas em Les Françaises à Ravensbrück, e também a recusa das prisioneiras polacas em testemunho de Lund. 324 «Meninas, devemos mostrar...»: Citado em Mednikov, Dolya Bessmertiya. 324 Hoje ficámos a saber: documentos Nikif. Capítulo 19: Quebrar o Círculo 325

o seu próprio estilo de terror: Declaração do próprio Ramdohr em tribunal, WO 309/416. Ao contrário do habitual nos julgamentos de homens da SS, foi condenado em testemunhos perante o tribunal pelos seus próprios colegas da SS e condenou-os também ele. Treite falou dos métodos brutais de Ramdohr, e Suhren disse que «ouvira dizer que Ramdohr era muito cruel». Testemunho de Rastatt, Archives Diplomatiques du Ministère des Affaires Étrangères, Colmar. 325 Binz pareceu chocada: Falkowska «Report to the History Comission», Institute for National Memory, Polónia. Também múltiplos relatos de atrocidades, por exemplo: Anna Hand, WO 235/318, e Vermehren, Reise durch den letzten Akt. 326 «Quando enterrou...»: WO 235/312. Em julgamentos de crimes de guerra nazis, vários homens da SS apresentaram testemunhos de bondade para com animais para substanciar pedidos de consideração de atenuantes da sua crueldade para com seres humanos. 327 rede pessoal de espias: WO 309/416. 327 «Não é fácil controlar as mulheres...»: Citado em Strebel, Ravensbrück. 327 «Eram muito jovens...»: Dictators. 327 Essas recrutas chegaram: Silbermann, «SS-Kantine Ravensbrück». 327 «As supervisoras originais...»: Höss, Commandant. 328 orquestra das prisioneiras em Auschwitz: Quando Mandl chegou a Auschwitz em 1943, já existia uma orquestra de homens e ela quis criar uma orquestra de mulheres «por uma questão de prestígio». As duas orquestras foram mantidas completamente separadas; a dos homens era de qualidade muito superior. Entrevista da autora a Anita Lasker-Wallfisch, a única violoncelista na orquestra de mulheres de Auschwitz. 330 «Meninas, olhem, é um aeroporto»: A principal narrativa de Barth baseia-se na minha entrevista em Kiev a Valentina Samoilova, da qual os seus comentários no texto são retirados, a não ser nos casos indicados em seguida. 332 cheia de larvas: Sabrodskaja, ARa. 332 mais pessoas das redondezas: Ver Elge Kaletta em Radau, Nichts ist vergessen und niemand. 333 «Foi a primeira...»: Maurel, Ravensbrück; ver também Les Françaises à Ravensbrück. 333 o Carrasco, Baba Yaga, Olho Vesgo: Homeriki, BStU.

333

olho de vidro: Evdokia Domina, entrevista da autora sobre o campo de concentração de Genthin. 333 Blondine: Para a história dos métodos de Ilse Hermann (mais tarde Göritz; também conhecida como Blondine) e de Ramdohr ver testemunho do julgamento em 1965 na RDA de três guardas, Göritz (em solteira, Hermann), Frida Wötzel e Ulla Jürss, em BStU. 333 «Nunca ficávamos sem contacto...»: Entrevista da autora. Também o seu testemunho em Buchmann coll. e Tschajalo, relatório ao Museu Militar de Medicina, São Petersburgo. Os contactos entre Klemm e mulheres do Exército Vermelho noutros subcampos são mencionados em várias entrevistas conduzidas pela autora. 334 Vera Vanchenko: Documentos Nikif, particularmente cartas de Antonina Kholina, na prisão com ela e mais tarde em Ravensbrück. Também entrevista da autora a Stella Kugelman-Nikiforova. 335 «A psicologia é o segredo»: Citado em Strebel, Ravensbrück. 335 Julie Wolk: Ver abaixo, «Report on Julie Wolk», Praga, 1945. Buchmann coll. 336 correu para a vedação de arame: documentos Nikif e Pikula, Buchmann coll. 337 pendurou duas cordas dela: O que aconteceu a seguir é reconstituído a partir de vários relatos que variam nos seus pormenores, mas a grande maioria das sobreviventes está de acordo que em consequência dos protestos tanto Samoilova como Malygina foram submetidas a torturas com água e ameaçadas com a forca, ao que uma, ou possivelmente ambas, desistiu da sua resistência. 338 interrogadores da Stasi: As respostas de Ilse Göritz (em solteira, Hermann; também conhecida como Blondine) aos interrogatórios da Stasi não só lançam luz sobre o que aconteceu em Barth como sobre a determinação dos interrogadores da Stasi de obter informações sobre o círculos de espias de Ramdohr. Göritz foi interrogada dezoito vezes entre 6 de março de 1964 e 25 de maio de 1965, na prisão de Rostock, na RDA, e de cada vez foram-lhe arrancados mais alguns pormenores (ver BStU, ZUV 1). As declarações de Göritz devem ser lidas contra o pano de fundo da Guerra Fria e tendo em mente que os seus interrogadores queriam que ela retratasse mais vincadamente os crimes de guerra nazis; ver Angelika von Meyer, «“Ich wollte eine Uniform tragen”: der “Rostocker Prozess” in den Unterlagen des Ministeriums für Staatssicherheit», em Erpel (ed.) Im Gefolge der SS. No entanto, os pormenores que ela fornece da sua rotina diária banal no cumprimento das ordens de Ramdohr para esmagar as prisioneiras soviéticas, combinados com testemunhos condizentes das própria prisioneiras, proporcionam uma imagem vívida do extermínio da mão de obra escrava do subcampo e da resistência desesperada das mulheres do Exército Vermelho em Barth. 339 se destinavam... a Belsen: Interrogatório de Göritz, 16 de abril de 1964, BStU ZUV 1. 340 «admitia que ela própria»: Interrogatório de Göritz, 18 de dezembro de 1964, BStU ZUV 1. 340 «Creio que uma soviética...»: Declaração de Samoilova à Stasi, 17 de julho de 1964, BStU ZUV 1. Quando entrevistei Samoilova, não tinha visto a sua «confissão» à Stasi em que, aparentemente, admite ter-se tornado «Spitzel». Contactei Valentina mais uma vez e pedi-lhe a sua reação. Valentina repetiu que se recordava do interrogatório da Stasi, mas que nunca tinha dito nada contra Malygina; como não sabia alemão, não pôde verificar o que tinha ficado registado por escrito na altura. 342 «à mesa de operações...»: Carta de 1956, documentos Nikif. A própria Tatyana Pignatti

era objeto da suspeita de várias camaradas, entre elas Antonina Nikiforova, de que teria trabalhado depois da guerra «para os órgãos» (ou seja, o SMERSh). Antonina disse a Stella Kugelman-Nikoforova que Pignatti fora uma das que denunciarm pessoas. «Tinha de se ter cuidado com a Pignatti», disse ela a Stella quando se encontraram em São Petersburgo. «Comportava-se bem no campo de concentração, mas depois modificou-se. Talvez tenha sido perseguida e se tenha fartado. Quem sabe.» Ver nota da página 660, a seguir, sobre os laços de família de Stella com Antonina no pós-guerra. Capítulo 20: Transporte Negro 343

«a menina dos bolos de batata»: Entrevista da autora a Wanda Heger (em solteira, Hjort), Nelly Langholm e sobreviventes norueguesas. Ver também Heger, Tous les Vendredis, e Persson, Escape from the Third Reich. 343 Sippenhaft: Ver Padfield, Himmler. 346 «Die Salvesen...»: Salvesen, Forgive. 348 Toquei à campainha: Entrevista da autora. 348 «magnífica hospitalidade»: Citado em Moorehead, Dunant’s Dream. 348 cartas bajuladoras: Favez, The Red Cross and the Holocaust. 349 até então céticos: A Declaração Conjunta dos Aliados, emitida em 17 de dezembro de 1942, não só foi apoiada pela Grã-Bretanha, pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética como por oito governos no exílio e pelo Comité Nacional Francês do general De Gaulle. Para debate ver Gilbert, Auschwitz and the Allies. 349 reunião de emergência: Para um relato vívido desta reunião, ver Moorehead, Dunant’s Dream. 350 a designação NN: Wanda foi uma das primeiras pessoas, se não mesmo a primeira, a divulgarem no Ocidente a notícia da ordem Nacht und Nebel. Entrevista da autora. 351 «No campo de concentração...»: Coleção do Polish Study Trust 3.16, nota de 30 de julho de 1943 relativa a sinal recebido em 29 de julho de 1943. 351 Relativamente a experiências: Coleção do Polish Study Trust 3.16, nota de 8 de maio de 1943. Ver também a nota de 22 de maio de 1943 na mesma coleção, que mostra que foi igualmente dirigido um apelo ao Papa pela embaixada polaca no Vaticano, pedindo a Sua Santidade que interviesse a favor das várias centenas de mulheres polacas detidas em Ravensbrück. 352 «Ouvíamos motorizadas...»: Sokulska, Lund. Ver também Wińska, Zwyciężyły Wartości, Kiedrzyńska, Ravensbrück, e Dąbrówska, BAL B162/9813. 353 sopa de Judas: Młodkowska, Beyond. 353 o osso da canela partiu-se: Sokulska, Lund. 353 «encolhida na cama...»: Salvesen, Forgive. 354 as taxas de mortalidade... a aumentar: As taxas de mortalidade eram também elevadas nas mulheres a quem eram feitos abortos tardios e sem cuidados mínimos e que eram suscetíveis à tuberculose. E o estado de saúde das prisioneiras que chegavam de novo era pior do que nunca. Uma polaca que chegou em 1943 veio algemada pelo caminho, mas os seus pulsos estavam tão magros «que as algemas me caíram» e os tamancos dados no campo de concentração eram «tão pesados que eu não conseguia levantá-los do chão». Cieplak, Lund 143.

354

cinco macas: Sprengel, «Wie Siemens an Häftlingen verdiente». «patético»: Citado em Strebel, Ravensbrück. 354 «Muitas das mulheres tinham de ser...»: Sprengel, ARa; também em Strebel, Ravensbrück. 355 «dedos dos pés capitalistas»: Maurel, Ravensbrück. 355 Segundo Carmen Mory: WO 309/419. 355 «Perguntei-lhe se...»: Alguns dos testemunhos mais credíveis de Mory, particularmente a sua descrição dos transportes negros, surgiram durante um interrogatório pormenorizado conduzido pela Comissão de Crimes de Guerra da Bélgica em 1946; encontra-se arquivada uma cópia em WO 309/419. 356 «demonstrou afeto...»: Tillion, Ravensbrück. 356 «transportes de doentes...»: Cartas de Czyż. 356 Fui ter com o Treite: Salvesen, Forgive. Para pormenores sobre as seleções, e o papel de Treite nas seleções, ver também declarações e transcrições do julgamento em WO 235/317 e 318 e relatório Mant, WO 309/416. 357 «decisões difíceis...»: Boy-Brandt, «Überlick über die Reviertätigeit vom März 1942-Ende 1945», Buchmann coll. 357 «Um dia, uma mulher...»: Tillion, Ravensbrück. 358 «A seguir, escondemo-la...»: Entrevista da autora. 358 «Bateram-nos...»: Citado em Mednikov, Dolya Bessmertiya. 358 «Dou-te a minha palavra de honra...»: Mory, WO 309/419. 358 Yvonne Le Tac: Testemunho em Fonds (fundo) Tillion, Musée de la Résistance e de la Déportation, Besançon. 359 «para Lublin...»: Sprengel, ARa. 359 Em 3 fevereiro 44: Cartas de Czyż. 359 Mais tarde, chegaram mais notícias: Zofija Daniejel-Osojnik, relatório em ARa. Anna Hand, uma das polacas que eram prisioneiras secretárias, disse que era tal o caos do transporte de Majdanek que ninguém sabia «das 800» que tinham finalmente partido, e uma guarda chamada Laurenzen deslocou-se a Madjanek para averiguar. «Com um sangue-frio arrepiante, ela transmite a notícia de que das 800 prisioneiras dezasseis morreram durante a viagem nos vagões de gado. Os vagões tinham sido deixados por abrir num desvio durante vários dias. As mulheres não tinham cobertores, tinham muito pouca palha e não lhes deram comida nem água. Não tinham onde fazer as necessidades.» WO 235/318. 361 «Vivissecção em Ravensbrück»: FO 371/39396. 354

QUARTA PARTE Capítulo 21: Vingt-sept Mille 368

A inspeção de Himmler: Tanke, BAL B162/472 «deprimido na mente...»: Kersten, Memoirs. 372 depois de um dos seus irmãos: O relato de Isa da deserção do seu irmão e de como ela levou à sua detenção é feito numa longa declaração a investigadores britânicos em Capri em maio de 1945. Isa viu-se em Capri com um grupo de outros reféns de países aliados (Prominente) que tinham sido levados às escondidas da Alemanha para a Áustria sob 369

escolta da SS nos últimos dias da guerra, e foram libertados pelos Britânicos, que os levaram para Capri para serem interrogados imediatamente. Ver declarações de Vermehren, TNA TS 26/895. 372 no maior secretismo: A carta de Himmler a Burkhardt, datada de 21 de julho de 1942, em resposta à carta de Burkhardt de 1 de junho de 1942, encontra-se nos arquivos ITS (TID 800 176). Para correspondência posterior, ver Favez, The Red Cross and the Holocaust, e abaixo, p. 576. 376 judias «protegidas»: Sobre judias «protegidas» ver Buber Agassi, Jewish Women Prisoners of Ravensbrück. Capítulo 22: Queda 379

«Gonorreia» Wanda: Lundholm, Das Höllentor. «Comando do Espírito Santo»: Baumann, BAL 162/448. 382 «É para o Reich»: WO 309/416 382 «Alguém disse: “Anda ver...”»: Entrevista da autora. 382 «eram muito emotivas»: Entrevista da autora. 382 uma visita sem precedentes: Relatório mensal da Siemens, 23 de fevereiro de 1944, SA: 383 «alta cultura»: Lanckorońska, Those Who Trespass Against Us. 385 Cheguei à plataforma: Entrevista da autora. 386 «Da minha janela...»: WO 309/149 387 «prontamente destruídas»: Germaine Tillion disse no seu testemunho no julgamento de Rastatt que recebeu informações das secretárias do campo de concentração e de outras que indicavam que cerca de sessenta pequenos «transportes negros» partiram do campo em 1943 e 1944. Tillion, «Procès Verbal», 11 de junho de 1949, Tribunal General de Rastatt; arquivado nos Archives Diplomatiques du Ministère des Affaires Étrangères, Colmar. 379

Capítulo 23: Aguentar 392

«Oh, sim, a Elfriede...»: Entrevista da autora. «Por vezes, elas...»: Entrevista da autora. 393 «pô-lo na nuca...»: Silbermann, «SS-Kantine Ravensbrück», DÖW, Ravensbrück f. 140. 394 «associação internacional»: Moldenhawer, Lund 420. 395 «Todas as manhãs...»: Lundholm, Das Höllentor. 395 «Ela acreditava...»: Entrevista da autora. 395 «Ao princípio...»: Entrevista da autora. 397 «... deu-me uns fortes murros...»: Declaração de Mary O’Shaughnessy, Atkins. 393

Capítulo 24: Contactos 400

«Estamos em contacto...»: Documentos da família Dufournier, por cortesia de Caroline McAdam Clark. 401 oficiais alemães retirados: Falkowska disse que «o grande gabinete de Eichamnn» foi transferido para ali; por outras palavras, o pessoal de parte do notório departamento de assuntos judaicos de Eichmannn, 1 VB4 do RSHA (Sede da Segurança do Reich) foi

retirado para os bosques de Ravensbrück. Report. As prisioneiras que tinham a sorte: Maurel, Ravensbrück. 402 «Olha para a cor...»: Buber-Neumann, Dictators. 403 «Mas a Germaine...»: Entrevista da autora. 404 «Os nomes destas outras mulheres...»: Cartas de Czyż. 405 «Se a ideia...»: Carta particular citada em ibid. 406 as condições eram «trágicas»: Nota em Favez, The Red Cross and the Holocaust. 407 A rotina diária: FO 371/39395. 407 «Ao verem as nossas...»: Dreams. Ver também Kiedrzyńska, Ravensbrück. 408 invasão dos Aliados: Falkowska, «Report to the History Commission», Institute for National Memory, Polónia. 408 «em voz alta»: Lanckorońska, Those Who Trespass Against Us. 408 «Ora bem, minhas senhoras...»: Entrevista da autora. 409 Apareceu também uma judia húngara: La Guardia Gluck, Fiorello’s Sister, e notas do seu dossiê do ITS. 410 No grupo encontrava-se: Vaillant-Couturier, testemunho de Nuremberga, atas de 28 de janeiro de 1946, Staatsarchiv, Nürnberg. 411 «Mas pensei...»: Entrevista da autora. 412 Numa pequena nota de rodapé: Bundsarchiv Koblenz, N 1126/38. 412 carros com vidros fumados: Schinke, BAL N162/9817. 413 «estava sentado numa cadeira...»: Vermehren, Reise durch den letzten Akt. 414 Lá fora, por vezes as mulheres: Entrevista da autora. 414 «vestidos ridículos...»: Dufournier, La Maison des Mortes. 401

QUINTA PARTE Capítulo 25: Paris e Varsóvia 417

train de la mort: Livre Mémorial. «E os Aliados?...»: Litoff (ed.), An American Heroine in the French Resistance. 420 Uma menina de dezasseis anos: Krystyna Dąbrówska, entrevista da autora e o seu ensaio não publicado, «Through the Concentration Camp to Freedom». 421 «Que notícias de Varsóvia?»: Entrevista da autora a Poltawska e Dreams. 422 «Havia crachás...»: Lanckorońska, Those Who Trespass Against Us. 422 A tenda original: Relatório de Wasilewska sobre a tenda, «Block 25, Zelt», Lund 434. 423 «As mais fortes tiravam...»: Hand, BAL B192/9819. 423 «Pareciam não fazer ideia...»: Dreams. 425 Tinha-se deparado com Mengele: Wellsberg e Minsburg, entrevistas da autora; também testemunho em YV. 425 não deviam ser «registadas nas listas»: Arquivos do campo de concentração de Stutthof, AMSt. I-IIB7, citado em Hördler, Ordnung und Inferno. 426 O seu cabelo comprido: Lundholm, Das Höllentor. 418

Capítulo 26: Kinderzimmer

427

«com base no facto...»: Lanckorońska, Those Who Trespass Against Us. Stasia Tkaczyk: Entrevista da autora. 428 sentiu contrações: Relato de Kopczynska em Die Frauen von Ravensbrück (1980), um filme realizado por Loretta Walz. Ver também Ravensbrückerinnen (Berlim: Heintrich, 1995). 428 permitir o nascimento de bebés: Os pormenores dos nascimentos foram obtidos nas minhas entrevistas a Marie-Jo Chombart de Lawe (em solteira, Wilborts); Nedvedova, declaração de Praga e WO 235/317; Sylvia Salvesen, WO 235/305 e Forgive; Ilse Reibmayer, entrevistada por Loretta Walz, e em DÖW; declarações de Anna Weng Seidermann em WO 235/318 e Nikiforova, Plus Jamais. 431 «pendurar quadros...»: Himmler, The Himmler Brothers. 431 Matar deliberadamente os bebés à fome: Ver Friedlander, The Origins of Nazi Genocide. 431 Hermann Pfanmüller: Ibid. 433 «Contavam-nos, em todas as línguas»: Citado em Les Françaises à Ravensbrück. 434 «Foi uma visão horrível...»: Citado em Strebel, Ravensbrück. 434 «Morriam sem chorarem...»: Entrevista da autora. 427

Capítulo 27: Protesto 436

«Conhece aquela sensação...»: Entrevista da autora. As outras repararam: Testemunho de Anne-Marie de Bernard, nos arquivos de Loire et Cher, 55.j.4, e de Marguerite Flamencourt, HS 6/440. Tanto Bernard como Flamencourt pertenciam ao malfadado circuito britânico Prosper. 437 «Ravensbrück estava por essa altura...»: Moldenhawer, Lund 420. 437 A rede de campos-satélite: Ver Tillion, Ravensbrück, sobre a multiplicação de transportes para campos-satélite. 443 «cheia de palha...»: Wynne, No Drums, No Trumpets. 444 «Ela achava sempre...»: Entrevista da autora. 445 «Eu disse-lhe...»: WO 235/318. Foi atribuído o pseudónimo de «Shurey» a Odette no campo de concentração, provavelmente «para que as outras não soubessem que havia uma pessoa importante no campo», pensava ela. 445 «demasiado próxima dos alemães»: FO 371/50982. Ver também Julia Barry no mesmo, e o seu testemunho em Atkins e WO 235/318. As histórias das «britânicas» — incluindo Sheridan — vieram também à luz em cartas que elas escreveram a Aubrey Radnall Davis, um colecionador de autógrafos, depois da guerra. 446 «já pertencessem aqui»: Litoff (ed.), An American Heroine in the French Resistance. 447 «Falou da...»: Entrevista da autora. 436

Capítulo 28: Abordagens Secretas 448

Vera Atkins deslocou-se a: Ver Sarah Helm, A Life in Secrets: The Story of Vera Atkins and the Lost Agents of SOE (Londres: Little, Brown, 2005) 448 «trazido para este país em mão»: Dos arquivos do Comité de Ligação da Women’s International Organization, IISH. 448-9 Nascida nos Estados Unidos: As informações sobre Aka Kołodziejczak foram gentilmente fornecidas pela sua irmã Irena Lisiecki no Michigan, e vieram também de Maria

Bielicka. as suas regras proibiam-no: Minutas nos arquivos do Comité de Ligação da Women’s International Organization, IISH 449 «A informação é tão terrível...»: Minutas da reunião n.º 133 dos diretores da estação polaca para debater as transmissões polacas da BBC, E.i, 1, 148, Poland, BBC Written Archives [Polónia, Arquivos Escritos da BBC], Caversham. 449 «provavelmente o maior...»: Churchill a Anthony Eden, 11 de julho de 1944, facsimile, Churchill Papers, Churchill Archives Centre, Cambridge. 451 Quando Folke Bernadotte e Raoul Nordling se encontraram em Paris: Bernadotte, The Fall of the Curtain. 451 Havia outras razões: Sobre abordagens iniciais ver também Persson, Escape from the Third Reich. 452 «Nada de acordos com Himmler»: Citado em ibid. 453 «Pareceu chocado...»: De Gaulle, WO 235/318. 454 «Vi uma rapariga russa...»: WO 235/318; ver também Tickell, Odette. 455 «Madame Baronesa»: Ten Boom, The Hiding Place. 449

Capítulo 29: Doutora Loulou Para a história do Bloco 10, baseei-me em longas entrevistas com a Dra. Louise Liard (em solteira, Le Porz) na sua casa em Bordéus, assim como no seu testemunho e no seu arquivo particular. Os depoimentos sobre o Bloco 10 prestados no julgamento de Hamburgo são extensos e encontram-se na sua maioria em WO 235/317, WO 235/318 e WO 309/416. 456

«Em vez disso, tínhamos a esperança...»: Litoff (ed.), An American Heroine in the French Resistance. 456 «Domingo: a minha ração de pão...»: Maurel, Ravensbrück. 458 Era de noite: Entrevista da autora. Loulou não foi de modo nenhum a única prisioneira a falar de fazer um filme. Muitas outras, entre elas Käthe Leichter, Antonina Nikoforova e Milena Jesenska, pensavam que um filme seria a única maneira de fazer as pessoas acreditarem no que tinha acontecido em Ravensbrück. 459 «matar por negligência»: Relatório Mant, WO 309/416. 463 uma professora de inglês: Tal como as polacas, um grande número de prisioneiras francesas eram professoras, provavelmente porque eram úteis à resistência como mensageiras — podiam movimentar-se sem dar nas vistas e tinham bons contactos. 465 Chamava-se Joanna: Entrevista da autora. 465 «Elas eram um pouco estranhas...»: Maurel, Ravensbrück. 466 No seu testemunho: Declarações de Mory em tribunal (particularmente à comissão belga, WO 309/419); também Spoerry, Lecoq e Héreil em WO 235/318 e relatório de Spoerry de maio de 1945 ao CICV. 467 a atacar-se umas às outras: Ver Le Porz, Héreil, Lecoq e Mory, WO 235/317 e 318. 469 «porque a Mory a detestava»: WO 235/318. 469 «Quando elas passaram...»: Barry, WO 309/417, e carta, Atkins. SEXTA PARTE Capítulo 30: Húngaras

475

«Fomos levadas...»: Entrevista da autora. numa minúscula estação: Em 1944, as linhas férreas foram prolongadas de Fürstenberg até à vila de Ravensbrück, onde abriu uma pequena estação, para ficar mais perto do campo de concentração. 478 Num desses comboios: Zajączkowska, Lund 50. 478 «Ao entrarem na tenda...»: Wasielewska, Lund. 478 tifo: Ver Nedvedova, declaração de Praga. Nedvedova fala também de uma epidemia de difteria quando se realizaram inoculações. Nalguns casos, a difteria provocou paralisia: «Coube-me a mim obter injeções de estricnina de modo que os casos de difteria com paralisia também foram curados.» 479 «uma escultura...»: Ten Boom, The Hiding Place. 480 «mulheres a toda a volta...»: Mittelmann, YV. 480 «Se não te portares bem...»: Okrent, YV. 480 «Meteram-nos...»: Entrevista da autora. 481 Eu tinha enchido o jarro: Entrevista da autora. 481 Vi no pátio: Lecoq, WO 235/318. 482 «As mulheres chegaram...»: Barry, WO 235/318. 477

Capítulo 31: Uma Festa Infantil 484

registos bancários: Cópias em ARa. Höss tinha também sido nomeado chefe do Gabinete D do WVHA (Inspetorado dos Campos de Concentração), um cargo que acumulava com o seu trabalho em Ravensbrück. 484 pareça ter-se sentido incomodado: Ver as três declarações de Suhren em 1946, WO 235/318. Suhren afirma ter passado o comando de Ravensbrück a Sauer durante várias semanas no início de 1945 (quando começaram os extermínios), porque teve de se ausentar para tratar da desativação dos subcampos. Era-lhe fácil fazer tais afirmações, porque Sauer já tinha morrido em combate durante a batalha por Berlim. O papel direto de Suhren no extermínio seria descrito por Johann Schwarzhuber — ver declarações de 15 e 30 de agosto de 1946, WO 235/309 — e surgiria no julgamento de Rastatt. 485 os factos do extermínio: Por exemplo, Schwarzhuber, WO 235/309. 485 De 5 de janeiro: WO 309/693 e WO 235/526. 485 «Ela jurou...»: WO 235/526. 487 Essa câmara seria construída: Jahn prestou um depoimento aos investigadores americanos sobre os campos de concentração para homens e para mulheres, incluindo o extermínio por gás, logo em 9 de maio de 1945. NARA, Memorando, Walter Jahn, Atrocities Committed in the Ravensbrück Concentration Camp. Para o seu testemunho posterior sobre o edifício de pedra da câmara de gás — incluindo a planta — ver Staatsarchiv Nürnberg NO-3109. 487 por falta de materiais: Charlotte Müller, uma prisioneira alemã, tinha até sido enviada a Berlim para trazer barro e tijolos. 487 Houve também alguma disputa: No seu depoimento de 1946, Suhren mais uma vez atribuiu a culpa a Sauer, dizendo que ele tinha instalado as câmaras de gás na sua ausência em cumprimento de ordens de August Heissmeyer, um funcionário administrativo superior da SS.

487

Foi Hanna Sturm: Sturm, Die Lebensgeschichte einer Arbeiterin. Zyklon B: Falava-se muito no Schreibstube sobre encomendas de Zyklon B nessa altura, embora ninguém soubesse ao certo se era para matar pessoas ou piolhos. «Conrad decidiu a quantidade e assinou as encomendas», disse uma prisioneira secretária (WO 235/526). 487 «Passámos diante...»: Citado em Anise-Postel-Vinay (em solteira, Girard), «Les exterminations par gaz à Ravensbrück», em Tillion, Ravensbrück (3.ª edição). 488 «Ao princípio...»: Declaração de Treite, 5 de maio de 1945, WO 235/309. 488 «jovens aptas ao trabalho»: WO 235/309. 488 «A luz da madrugada era suficiente...»: Ibid. 489 «festa que acontecia...»: Nota em documentos Nikif. 490 professoras polacas organizaram aulas: Kiedrzyńska, Ravensbrück. 490 setenta mulheres grávidas: A partir de novembro, começaram a registar-se cerca de cem nascimentos por mês, segundo Gerda Schröder, a enfermeira alemã do campo de concentração. A maior parte morria de pneumonia. WO 235/318. 490 «Nós éramos os únicos homens...» Entrevista da autora. 491 não fossem «como imaginamos as crianças»: Salvesen, Forgive; ver também Müller, Die Klempnerkolonne, sobre a festa. 493 «tinha uma voz maravilhosa»: Entrevista da autora. 496 «o tinha perdido na bomba»: Entrevista da autora. 496 a comunista alemã Erika Buchmann: Erika tinha sido libertada em 1941, mas foi novamente trazida para o campo um ano depois, acusada mais uma vez de «traição». No seu regresso, foi nomeada Blockova do Strafblock e depois do Bloco 10. 496 «um homem pequeno a quem chamavam o “professor”»: Salvesen, Forgive. 496 Todas as ciganas: WO 235/317. Existem mais provas substanciais sobre a esterilização de crianças. Ver relatório Mant, WO 309/416, e Winkowska (secretária de Treite), Lund 285. Registaram-se outros tipos de experiências médicas em prisioneiras até aos últimos dias. Ver testemunhos das experiências chocantes do Dr. Trommer em prisioneiros russos do sexo masculino na cave do Kommandantur (WO 235/526). Várias mulheres de Varsóvia afirmariam mais tarde que foram vítimas de experiências ginecológicas e Treite falou de experiências com cianeto (WO 235/317), mas a verdadeira extensão das experiências nunca será conhecida. 487

Capítulo 32: A Marcha da Morte Várias mulheres que testemunharam os últimos dias em Auschwitz e em seguida partiram na marcha da morte para Ravensbrück deixaram relatos em Yad Vashem, entre eles os de Lydia Vago e de Allegra Benvenisti. O relato de Maria Rundo encontra-se em Lund 189. A história de Alina Brewda é contada em I Shall Fear No Evil, de R. J. Minney. O relato de Rudolf Höss é retirado das suas memórias, Commandant of Auschwitz. Entrevistei também sobreviventes, entre as quais a bielorussa Valentina Makarova. Capítulo 33: Campo da Juventude Para o relato do Campo da Juventude e do extermínio por gás recorri a quase todos os testemunhos de Hamburgo, mas o material mais importante encontra-se no primeiro julgamento (na série que começa em WO 235/305), em que Schwarzhuber e Salvequart foram acusados, e no julgamento de Rith Neudeck (WO 235/516a). Baseei-me também em testemunhos em Rastatt e nos depoimentos prestados a investigadores alemães nos anos

1970, quando se realizou uma nova investigação do Campo da Juventude. Ver série BAL B162.9810. A maior parte dos testemunhos e das memórias de sobreviventes deste período contém relatos de seleções e de extermínios por gás. Surpreendentemente, várias prisioneiras sobreviveram ao Campo da Juventude e regressaram para contar a sua história. Entrevistei uma delas, Irma Trksak. 505

notícias «excelentes»: Salvesen, Forgive. «Suhren disse-nos»: WO 235/309. 507 «Agora temos gás»: WO 309/421. 507 «filho do SS Schwarzhuber»: Langbein, People in Auschwitz. 510 dois contínuos do hospital da SS: Sabe-se muito pouco sobre esses homens. Franz Koehler era eslovaco, Rapp (cujo nome próprio nunca é mencionado), jugoslavo. Ambos desapareceram depois da guerra. 511 «transferidas para outro lugar...»: WO 235/318. 513 a pedir o divórcio: Atkins. 514 «Embora tivéssemos a experiência...»: WO 235/318. 514 «Está a ver, nós queríamos...»: Entrevista da autora. Para mais testemunhos de outras vítimas neste grupo, ver Lund, BAL e TNA. 515 «presumivelmente de exaustão»: O testemunho de Mary O’Shaughnessy sobre o Campo da Juventude é o mais valioso. Ela começou a escrever o seu relato quase imediatamente depois de ser libertada e em seguida fez uma série de declarações para o julgamento de Hamburgo. Os pormenores mais vívidos encontram-se no seu relato manuscrito de seis páginas (WO 235/516a). Ver também WO 309/417 e Atkins. 516 «Campo de Repouso Mittwerda»: WO 235/516a. 519 «ou eu apanhava um tiro»: WO 235/317. 519 «passariam a receber metade da ração...»: Declaração de 5 de maio de 1945, WO 235/309. 522 «Demorou muito tempo...»: WO 235/317. 523 Depois disso, mantive-me atenta: BAL B162/9814. 506

Capítulo 34: Esconder-se 526

«Quando verificámos...»: WO 235/318. «Esses corpos...»: WO 235/526. 527 «Frequentemente, eu punha-me a contar...»: Vavak, «Siemens & Halske im Frauenkonzentrationslager Ravensbrück», DÖW, Ravensbrück ficheiro 49. 527 «O transporte de extermínio...»: Diário de Useldinger, ARa. 528 «Ela estava a sorrir...»: Dragan, Lund 239. 530 Foi o comportamento do novo médico: Várias prisioneiras falaram da ajuda de Lucas, particularmente Loulou Le Porz e Salvesen em Forgive. 531 Aka Kołodziejczak: Entrevista da autora a Mary Bielicka, e Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 531 Denise Dufournier recebeu um embrulho: Do seu ensaio autobiográfico escrito antes de La Maison des Mortes. Um exemplar do ensaio foi-me gentilmente cedido pela sua filha, Caroline McAdam Clark. 527

531

deu entrevistas: Aka deu entrevistas à revista Time e a Hearst Press, que as publicaram com títulos tais como ELA GRITOU DURANTE TODA A NOITE. Numa entrevista à rádio em Nova Iorque em fevereiro de 1945, perguntaram a Aka: «Tudo o que ouvimos sobre a crueldade dos Alemães para com as mulheres e as crianças é de facto verdade?» 532 foi levado e executado a tiro: Frank Chamier — «Frank de Upwey 282» (ver página 372) — provavelmente foi torturado e executado nessa altura. Que se saiba, Chamier foi o único agente do MI6 que aterrou de paraquedas na Alemanha durante a guerra. Foi capturado ao aterrar e interrogado, possivelmente na esquadra da polícia de segurança em Drogen, a oito quilómetros de Ravensbrück, razão por que o prenderam numa cela nesse campo de concentração. Sobre a história de Chamier, o seu torturador alemão e o encobrimento britânico da sua morte no período do pós-guerra, ver Sarah Helm, «The Wartime Hero Abandoned by MI6», Observer, 21 de maio de 2005, e «A Nazi in Her Majesty’s Secret Service», Sunday Times Magazine, 7 de agosto de 2005. 533 a desenhar mapas intrincados: Os desenhos de Krysya estão expostos no Museu de Martirologia (Debaixo do Relógio), uma delegação do Museu de Lublin (Muzeum Lubelskie w Lublinie). 534 Aconteceu uma coisa incrível, inaudita: Este relato da forma como as prisioneiras se esconderam é retirado do testemunho de Sokulska (WO 235/318), de Dreams e de vários outros testemunhos de prisioneiras polacas. 535 «Eles vêm buscá-las!...»: A melhor descrição do tumulto encontra-se em Kiedrzynska, Ravensbrück. Ver também Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 535 mergulhado numa escuridão de breu: Lanckorońska diz que, se não fosse a presença de espírito e a coragem das mulheres do Exército Vermelho que provocaram o curto-circuito no momento crucial, a tentativa de se esconderem poderia ter fracassado. Ver ibid., e também as descrições do drama em Beyond e em Dreams. As mesmas fontes contêm o relato da «nova iniciativa» de Suhren e a sua subsequente retirada. 537 Suhren explicou: Numa declaração no pós-guerra, Suhren disse que, uma vez, recusara um pedido de Gebhardt para ele lhe entregar «material humano» para experiências e que, em consequência disso, Gebhardt o insultou e disse que falaria ao Reichsführer e faria com que o despedissem. «Irritado e um pouco assustado», Suhren pediu então desculpa a Gebhardt e acabou por se ver forçado a «obter seres humanos» para ele. WO 235/318. 537 «As raparigas foram extremamente bem-sucedidas...»: No seu «Report of the Camp of Ravensbrück», escrito e entregue enquanto decorriam ainda os acontecimentos, Lanckorońska disse também que o principal motivo da SS para se encontrar com as coelhas naquela altura era a obtenção de informações sobre Aka Kołodziejczak. Sabiam que Aka andava a falar sobre as experiências nos Estados Unidos e que eram conhecidos nomes da SS. «Além disso, as recém-chegadas ao campo estavam bem informadas sobre o assunto, que tinha sido amplamente comentado na rádio de Londres» — uma referência às transmissões radiofónicas da SWIT. Capítulo 35: Königsberg Para a descrição das últimas semanas em Königsberg, baseei-me particularmente em An American Heroine in the French Resistance, o livro de memórias de Virginia Lake, na carta de 1946 de Jacqueline Bernard sobre Lilian Rolfe e numa carta que me foi enviada em 2008 por Christian Cizaire, recordando a sua amizade com Violette Lecoq. 539

mais como uma pocilga: Guyotat, Königsberg sur Oder.

540

«Quero morrer...»: Litoff (ed.), An American Heroine in the French Resistance. «Estavam todas pretas...»: Barry, WO 309/417 e Atkins. 542 «Foi a última vez...»: Testemunho de Baseden para o julgamento de Hamburgo; ela estava demasiado doente para comparecer (HS 437); e entrevistas da autora. Para pormenores sobre os paraquedistas franceses ver Tillion, Ravensbrück, e testemunho no Musée de la Résistance et de la Déportation, Besançon. 543 «Suhren leu em voz alta...»: Declaração de Schwarzhuber, em Atkins e WO 235/309. 546 «dos restos daquele grupo...»; Dufournier, La Maison des Mortes. 549 «uma mulher terrivelmente descarnada...»: de Gaulle-Anthonioz, Dawn of Hope. 541

Capítulo 36: Bernadotte 550

«Que criatura feia...»: Litoff (ed.), An American Heroine in the French Resistance. «O comité foi informado...»: «Note à l’intention de Monsieur Berber», 15 de setembro de 1944, AICRC, B G 44/CP-227 023. 551 «Se qualquer tratamento preferencial...»: La Guardia Gluck, Fiorello’s Sister. 552 «A finalidade desta ação...»: KV 2/98. 555 «uma bonita caravana...»: Citado em Persson, Escape from the Third Reich. 555 através do correio diplomático sueco, «até ao mais ínfimo pormenor»: Ver Persson, Escape from the Third Reich, e Heger, Tous les Vendredis. Wanda Heger (em solteira, Hjort) descreve como a Suécia, um país neutro, através da sua legação em Berlim, demonstrou um «zelo extraordinário» ao pôr a sua célula norueguesa Gross Kreutz em contacto com a legação norueguesa em Estocolmo. As autoridades norueguesas tinham começado a encarar a célula como o seu próprio «comité secreto em Berlim». 555 tinham visitado Ravensbrück em dezembro: Johan Hjort, BAL B 162/27217. 556 «com o uniforme verde da Waffen-SS...»: Bernadotte, The Fall of the Curtain. 557 Gerda Schröder: A enfermeira alemã do campo de concentração é uma figura fugidia. Uma das poucas mulheres alemãs ao serviço da SS de quem todas as prisioneiras gostavam e que até admiravam, não foi chamada a prestar depoimento em Hamburgo, mas prestou uma declaração a Vera Atkins, dizendo que tinha trabalhado como enfermeira num bloco operatório antes da guerra e que foi transferida «à força» para Ravensbrück. Prestou assistência a Treite nas suas operações experimentais, incluindo esterilizações e abortos «em alemãs e ciganas debilitadas»: WO 235/318. Em cartas escritas por Gerda depois da guerra a Sylvia Salvesen, que continuou a ser sua amiga íntima, revela a sua angústia: «Eu não era uma prisioneira, mas estava detida. Tinha as mãos atadas, mas tentei ajudar.» Arquivos Salvesen, Norges Hjemmefrontmuseet. 557 «Adeus, Irmã...»: Salvesen, Forgive. 557 «suplicando aos Hjorts que lhe dessem abrigo...»: Johan Hjort disse que Lucas apareceu em Gross Kreutz por volta de 23 de abril, pedindo refúgio. Sabendo que os Americanos tinham parado no Elbe, receava cair nas mãos dos Soviéticos. Hjort escondeu Lucas durante alguns dias e depois deu-lhe uma velha bicicleta e o médico do SS partiu nela. BAL B162/27217. 551

Capítulo 37: Emilie 560

«Os prisioneiros estão a dormir...»: Citado em Strebel, Ravensbrück.

560

«Era claro...»: Cabaj, Beyond. Os testemunhos do transporte de Belsen são dos mais horríficos. Stanisława Michalik, em ibid., diz que as mulheres chegavam tão fracas que «bastava uma pancada forte para alguém cair por terra morta. Acontecia o mesmo a mulheres e a crianças». 561 «As prisioneiras holandesas...»: Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 561 «... com o joelho»: Wasilewska, Lund 434. 562 «Muito alto...»: Entrevista da autora. 563 Ela disse-nos: Entrevista da autora. 564 «Nessa manhã...»: WO 235/516a e testemunhos relacionados, TNA. 564 escrevia agora um diário: Tillion, Ravensbrück. 565 Ela marchava: Citado em Strebel, Ravensbrück. 565 «Eu estava na enfermaria...»: Dictators, e Tillion, Ravensbrück. 566 Ficámos numa chamada: Nedvedova, declaração de Praga. 569 No pátio: Emanuel Kolarik, «Tábor u jezera», Roudnice 1945. 570 «Fiz eu próprio o equipamento elétrico...»: Declaração de Jahn, NO-3109-311, Staatsarchiv Nürnberg. 570 «O autocarro...»: Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 570 um diplomata britânico: FO 371/50982. 570 «duas câmaras de gás»: Barry, WO 235/318. 570 de «carrinhas de gás» e de «camiões de gás»: Para exemplos de testemunhos sobre veículos para o extermínio por gás ver: Erna Cassens, BAL B162/9816, Dragan, Lund 239; O’ Shaughnessy, WO 309/690; Tauforova, GARF; Sturm, Die Lebengeschichte einer Arbeiterin e WO 309/416; e Nedvedova, declaração de Praga. 571 «para liquidar todo o campo»: KV 2/98. 572 «Pressentimos algo fora do habitual»: Dufournier, ensaio autobiográfico, documentos da família Dufournier. 572 «gritou como uma criança»: La Guardia Gluck, Fiorello’s Sister. 572 Toda a gente teve de se perfilar: Entrevista da autora. 573 «Nós tivemos uma seleção...»: Zajączkowska, Lund 50. 574 «esquelética, de olhos encovados...»: Wynne, No Drums, No Trumpets. 576 «limpeza» final: Ver múltiplos testemunhos nos documentos do julgamento de Hamburgo, por exemplo WO 235/516a, do julgamento dos guardas do Campo da Juventude. Ver também: Tillion, Ravensbrück; Nedvedova, declaração de Praga; testemunhos em Lund; Les Françaises à Ravensbrück; e Dufournier, La Maison des Mortes. Capítulo 38: Nelly 579

fez chegar ao exterior cartas: Wanda Hjort diz atualmente que naquela altura Bernadotte já tinha plena consciência do conteúdo das cartas de Sylvia. Entrevista da autora. 580 «não só sério, mas nervoso»: Bernadotte, The Fall of the Curtain. 582 Antes de integrar o CICV: Sobre o papel de Meyer, ver o seu relatório e dossiê pessoal, AICRC, BRH 1991 000.491/DP 4066; também entrevista da autora a Loulou le Porz. 582 «As doentes foram mandadas...»: Citado em Les Françaises à Ravensbrück.

583

«Perguntou à Binz...»: Entrevista da autora. «bon voyage»: Segundo Denise Dufournier, em La Maison des Mortes, antes de Suhren se despedir, o pessoal alemão do campo de concentração entregou a cada uma das prisioneiras de partida 250 gramas de manteiga, uma embalagem de bolos e uma porção grande de salsicha fria. 586 tinham-se também tornado amantes: Heger, Tous les Vendredis. Wanda e Bjorn Heger casaram-se no verão de 1945. 587 No dia seguinte, saímos: Entrevista da autora. 589 «A Doutora Le Porz...»: Ver relatórios dos elementos da escolta do CICV, o Dr. Auguste Jost e Mademoiselle Jung, que receberam as prisioneiras libertadas na fronteira suíça e as acompanharam até ao comboio para França, em AICRC, BRH 1991 000/390. 589 «uma pessoa das altas esferas...»: Entrevista da autora. 591 «uma caravana de mártires...»: O agente especial Edward A. Chadwell estava colocado numa unidade americana de investigação de crimes de guerra em Lyon, na França, quando o encarregaram de comunicar as chegadas de Ravensbrück. Chadwell notou que as mulheres contavam os horrores passados com «uma completa ausência de emoção e de sentimento feminino». Comunicou que: «É impossível sentir a emoção delas quando falam da morte das mães ou das irmãs que estavam lá com elas ou da morte dos seus maridos.» Pareciam estar ainda em estado de choque, mas a maioria «tinha um ânimo esplêndido e continuava decidida a lutar pelo seu país; algumas perguntaram até o que fazer para se oferecerem como voluntárias». Dossiê de crimes de guerra NARA. 591 «se conduzir lealmente»: Carta do general da SS Ernest Kaltenbrunner ao presidente do CICV, 2 de abril de 1945, reproduzida em Lanckorońska, Those Who Trespass Against Us. 591 «Elas estão sob ameaça de morte»: Lanckorońska, «Report of the Camp of Ravensbrück», AICRC. 584

Capítulo 39: Masur 592

«Depois de a câmara de gás...»: Nedvedova, declaração de Praga. «Fiquei de pé com os olhos fechados...»: BAL B162/9814. 594 «Quando os primeiros raios quentes...»: Ottelard, WO 235/310. 594 depoimentos cheios de divagações: WO 235/317. 599 Quando os aviões dos Aliados: Entrevista da autora. 600 «Quando a mãe nos viu...»: Entrevista da autora. 601 Eisenhower tinha dito: Sobre os Americanos no Elbe, ver Beevor, Berlin. 601 Suhren revelaria mais tarde: WO 235/318. 603 «Então são esses os agradecimentos...»: Sokulska, WO 235/318. 603 «“Mas isso é um escândalo...”»: Les Françaises à Ravensbrück. 603 «Uma delas era uma mulher...»: Salvini, WO 235/318. 604 «evacuação ordeira»: Kersten, Memoirs. 605 missões de comandos: Estava previsto que essas missões fossem levadas a cabo por forças especiais da Operação Vicarage e por equipas da SAARF (Special Allied Airborne Reconnaissance Force) [Força Especial Aliada Aérea de Reconhecimento], que desceriam de paraquedas nos campos de concentração para avisar a SS de que os Aliados estavam a aproximar-se, na esperança de evitar mais atrocidades. Uma ou duas dessas missões em 593

campos de concentração de prisioneiros de guerra tiveram um relativo sucesso. Ver Foot e Langley, MI9. 605 recusar salvo-conduto: Os Suecos informaram os Britânicos sobre as rotas e as datas das caravanas. Em 5 de março, os Britânicos prometeram que os seus aviões receberiam instruções para evitar ataques às caravanas suecas, mas não foram apresentadas garantias concretas. Em 8 de março, os Britânicos disseram aos Suecos que o governo estava «em princípio de acordo com a iniciativa, mas não podia dar-lhes um salvoconduto», acrescentando que os suecos que entrassem na Alemanha o fariam «por sua conta e risco». Citado em Persson, Escape from the Third Reich. Ver também correspondência em FO 371/48047. 605 Quando os Suecos apresentaram um protesto: Ver telegramas do FO, FO 371/48047. 608 «disposto a enterrar o machado de guerra...»: Kersten, Memoirs. 608 «estes cavalheiros»: Relatório de Masur, 23 de abril de 1945, Arquivos Centrais Sionistas, Jerusalém. 609 «muito cansado e desgastado»: Bernadotte, The Fall of the Curtain. Capítulo 40: Autocarros Brancos 610

«no último minuto»: KV 2/98 «... as liquidar a todas»: Ibid. 611 Ao entrarem no gabinete de Suhren: Dreams. A data e os pormenores do que aconteceu a seguir nem sempre são claros; a sequência dos acontecimentos narrada aqui foi reconstituída a partir de relatos de condutores suecos citados em Persson, Escape from the Third Reich, do relatório de Fritz Göring ao MI5 (TNA KV 2/98) e de testemunhos de prisioneiras, entre elas Buchmann, Vaillant-Couturier e Nedvedova, assim como de delegados do CICV e das pessoas que partiram nos autocarros. 614 Ele não pôde aproximar-se: O delegado Albert de Cocatrix acabou por chegar ao campo de concentração e deixou-nos uma descrição surrealista dos seus últimos dias, depois de fazer uma visita acompanhado por Suhren, que conseguiu enganá-lo magistralmente. «Antes de partir do campo, pensei em pedir a Suhren que me mostrasse a câmara de gás e o crematório. Não o fiz...» Relatório sobre a visita a Ravensbrück entre 20 e 23 de abril de 1945 (data precisa por esclarecer), AICRC, G 44/13-o.o2. 615 A Cruz Vermelha vem aí: Diário de Jeanne Bommezjin de Rochemont, IWM 06/25/1. 615 «Die Engländerin!...»: Wynne, No Drums, No Trumpets. 616 Isto parece demasiado bom: IWM 06/25/1. 617 «homens como fantasmas»: Les Françaises à Ravensbrück. 620 e subitamente somos atacadas: No seu relatório sobre os ataques (e o segundo na estrada de Wismar), o líder da missão sueca Sven Frykman disse que seguiram os voos de reconhecimento pelos aviões e que ambos foram «inteiramente intencionais, os aviões provavelmente britânicos». Frykman apelou a que fossem apresentados «protestos enérgicos» aos Britânicos, aos Americanos e aos Franceses. Citado em Persson, Escape from the Third Reich. 621 Depois de mais um protesto dos Suecos: FO 371/48047. Em 1 de maio, Mallet escreveu aos Suecos «lamentando» os ataques «alegadamente» britânicos e recordando aos Suecos os avisos anteriormente emitidos (ou seja, que não poderia ser-lhes garantida uma passagem segura). Carta a C. Günther, 1 de maio de 1945, SRA/UDA, HP 1619. 611

622

Então, eu olhei: Citado em Tillion, Ravensbrück. «Disseram-nos subitamente...»: Lund. 623 «levámos todas as pessoas que podíamos...»: Persson, Escape from the Third Reich. 623 «Fomos postas...»: Lund. 623 «todas as judias...»: Ibid. 624 Quando Maisie entregou: Renault, La Grande Misère. 625 mandou chamar Mary Lindell: Wynne, No Drums, No Trumpets. 625 Sven Frykman: O papel de Sven Frykman na identificação e na recolha das prisioneiras britânicas que, de outro modo, teriam ficado no campo de concentração é também destacado em relatórios de diplomatas britânicos em FCO 371/50982. 626 Só me lembro: Entrevista da autora. 627 Acredito que: WO 235/308. 622

Capítulo 41: Libertação 628

«Tudo está a arder...»: Grossman, A Writer at War. «Eu ouvia-as...»: WO 235/318. 632 Os Russos estavam a poucos quilómetros: Entrevista da autora. 632 «Por todo o nosso bloco...»: Maurel, Ravensbrück. 634 Eles não eram más pessoas: Entrevista da autora. 636 Em Fürstenberg, passámos: Entrevista da autora. 639 «Meninas, vamos matar um porco...»: Entrevista da autora. 639 «Os nossos artilheiros de submetralhadoras...»: Mednikov, Dolya Bessmertiya. 639 Depois de combater por toda: «À la Guerre Comme à la Guerre», entrevista a Michael Ivanovich Stakhanov, agora coronel aposentado, pela jornalista Natalia Eryomenkova, em Russkaya Gazeta n.º 17/2005. 640 «Lembro-me de comemorar...»: Entrevista da autora. 642 Havia muitas outras: Entrevista da autora. 643 Depois veio um major: Entrevista da autora. 643 Atribuíram-nos uma casa: Entrevista da autora. 644 «homens bem-parecidos»: Dreams. 644 Estávamos a caminhar: Entrevista da autora. 644 «Um sujeito grande e forte...»: Maurel, Ravensbrück. 646 Lembro-me de que estávamos a enterrar: Entrevista da autora. 646 Sim, tudo isso aconteceu: Entrevista da autora. A fuga de Odette com Suhren é descrita em Tickell, Odette, e na sua declaração de maio de 1946 (WO 235/318). 648 Começámos a perguntar-nos: Entrevista da autora. 629

EPÍLOGO 650

«Eu não quero ser queimada...»: Relatório Mant, WO 309/416. Ao ver chegar as prisioneiras, um diplomata americano enviou um telegrama para Washington a descrever as mulheres «num estado abismal... mortas de fome e espancadas. Ficaram ainda 5000 em Ravensbrück e as refugiadas acreditam que os Alemães as exterminarão em massa

quando o campo de concentração for ameaçado. Muitas vidas poderiam salvar-se se o campo pudesse ser tomado num ataque-surpresa». Telegrama 1621 de S. Johnson em Estocolmo para o secretário de Estado, Washington, DC, recebido em 1 de maio de 1945, NARA. 650-1 «uma senhora muito bem-disposta...»: FO 372/50982. 651 último transporte para Belsen: Yvonne Rudelat, a mulher do circuito Prosper, morreu em Belsen alguns dias depois da libertação. Cerca de 15 000 homens, mulheres e crianças morreram em Belsen nas duas semanas a seguir à libertação, muitos de tifo e de fome. Pouco depois de chegar a Malmö, Yvonne Baseden foi enviada de avião para a Escócia e daí partiu de comboio para Londres, onde foi recebida por Vera Atkins na estação de Euston. Eileen Neame, a outra mulher do SOE em Ravensbrück, que nos últimos dias escapara de uma marcha de evacuação perto de Leipzig, chegou às linhas americanas e acabou por regressar a casa. Faleceu em Torquay em 2010. Para a história da procura de mulheres do SOE desaparecidas ver Sarah Helm, A Life in Secrets: The Story of Vera Atkins and the Lost Agents of SOE (Londres: Little, Brown, 2005). 652 «participou na seleção...» : Chechko, GARF. 653 «Nessa altura...»: Entrevista da autora e diários de Fyffe. Entrevistei Angus Fyffe sobre Vera Atkins na sua casa na Escócia em 2003. Ele leu também extratos dos seus extensos diários em que, com um humor sardónico, contava como, quando era um jovem major, procurou criminosos de guerra por entre os escombros da Alemanha do pós-guerra. Os diários encontram-se agora no IWM. 654 «poderiam ter saído...»: Tickell, Odette. Num diário que escreveu durante o julgamento, Sylvia Salvesen descreve Winkelmann «sentado com a cabeça entre as mãos» e Marshall mostrando «raiva e desespero», enquanto Carmen Mory «parece insolente e por vezes rise histericamente». Arquivos Salvesen, Norges Hjemmefrontmuseet. 655 adquirido — ao que constava — com o produto da venda de dentes de ouro: A história extraordinária das peripécias rocambolescas de Salvequart durante a sua fuga dos perseguidores de criminosos de guerra no caos da Alemanha ocupada pelos Aliados (incluindo a sua contratação pelos serviços de contraespionagem americanos e a chantagem de suspeitos nazis — ver os documentos de Atkins) só se equipara às aventuras de Mory. Mory foi contratada pelos serviços secretos britânicos e colocada como informadora num campo de refugiados da ONU, até um jovem investigador chamado Hugh Trevor-Roper descobrir a sua verdadeira história, descrevendo-a como «uma pessoa mesmo muito indesejável». Ficheiros de investigação TNA. 658 Nem um só membro: O diretor da Siemens, Hermann von Siemens, foi detido pelos Americanos em 1945 e ficou preso até 1948, embora a sua detenção não estivesse relacionada com o seu papel na Siemens, mas com o seu posto no Deutsche Bank. Foi libertado sem ser acusado. 660 Anne Spoerry: Segundo uma nota manuscrita numa página da transcrição do julgamento de Hamburgo, Hélène Roussel, uma sobrevivente francesa, compareceu perante um «tribunal de honra» em Paris em 1946, onde Spoerry foi sumariamente julgada por exFranceses Livres. WO 235/317. 660 «Ninguém vinha ver-me...»: Aos dezoito anos, Stella deixou o orfanato e procurou o seu pai, que tinha voltado a casar-se e estava a viver no Brasil. Nessa altura, Antonina Nikiforova tinha-se já tornado amiga de Stella, e esta casou-se com o filho adotivo de Antonina, Arkady. Foi viver com Arkady no apartamento de Antonina em São Petersburgo,

onde ainda reside. «Toda a minha vida...»: Documentos de Georg Loonkin. 662 «combatente contra o fascismo»: Rupp e Wiedmaier, ficheiros de BStU. 662 Com relutância, a empresa pagou...»: Benjamin Ferencz, um antigo advogado de acusação em Nuremberga, descreve a sua batalha para conseguir que a Siemens pagasse as indemnizações em Less Than Slaves. 663 sentenças patéticas: Na Alemanha Ocidental, entre 1949 e 1989 não houve julgamentos relativos a crimes cometidos por guardas do sexo feminino em Ravensbrück. Algumas guardas do sexo feminino foram julgadas no julgamento de Majdanek, em Düsseldorf, entre 1975 e 1981. Uma delas, Hermine Braunsteiner, encontrada em Nova Iorque pelo caçador de nazis Simon Wiesenthal, foi condenada a prisão perpétua, mas libertada em 1996 por razões de saúde. Faleceu em 1999. 664 questionar a existência de câmaras de gás: Em 1968, a historiadora francesa Olga Wormser-Migot apresentou um estudo sobre os campos de concentração nazis em que sustentava não haver provas de que tivessem existido câmaras de gás em território alemão. 667 «Esqueça...»: Ver Sarah Helm, «The Nazi Guard’s Untold Love Story», Sunday Times Magazine, 5 de agosto de 2007. 669 com certeza demasiado elevada: Sobre pormenores de como os advogados de acusação britânicos concluíram que o número de mortes foi 90 000, ver o relatório interino sobre a investigação de Ravensbrück, WO 235/316. 661

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AGRADECIMENTOS A minha intenção neste livro era contar a história de Ravensbrück primariamente através das vozes das próprias mulheres, mas o tempo começava já a esgotar-se. A minha tarefa inicial consistiu em encontrar as últimas sobreviventes. Para tal, necessitava de guias, e os meus primeiros agradecimentos vão para eles. As sobreviventes na Rússia e no Leste seriam com certeza as mais difíceis de encontrar, em certa medida porque poucos nomes eram conhecidos. Encontrei-me pela primeira vez com a Dra. Bärbel SchindlerSaefkow na sua horta soalheira em Berlim Leste, a curta distância da mansão Karlhorst, onde as forças nazis se renderam ao Exército Vermelho em 9 de maio de 1945. Bärbel, filha de uma sobrevivente comunista, criou-se na Alemanha de Leste, vivendo e respirando a história de Ravensbrück, e as sobreviventes da Europa de Leste tornaram-se a sua «família». As suas histórias ganharam vida pela primeira vez aos meus olhos enquanto eu estava sentada a uma mesa na horta de Bärbel e daí segui pistas que me levaram a Moscovo, a São Petersburgo, a Kiev e a Donetsk. Bärbel ajudou-me das mais variadas formas até aos últimos dias da minha investigação. As mulheres polacas fora-me apresentadas por Wanda Poltawska, que me convidou a falar com ela em Cracóvia e me pôs em contacto com outras sobreviventes, entre elas outras «coelhas» polacas, que fui encontrar em Gdansk, em Lublin e em Varsóvia. Pude contar com a assistência de Anna Pomianowska, tradutora, companheira e guia. A historiadora polaca Eugenia Maresch facultou-me os nomes de sobreviventes polacas a viverem no Reino Unido e, mais tarde, encontrou testemunhos de um valor incalculável nos Arquivos Nacionais. Tive o meu primeiro contacto com as sobreviventes francesas através da Dra. Annette Chalut, a presidente do Comité Internacional de Ravensbrück, e de Denise Vernay, a secretária-geral do

organismo francês de sobreviventes L’Association Nationale des Anciennes Déportées et Internees de la Résistance (ADIR), que me conduziria a dezenas de sobreviventes francesas. Fiquei particularmente grata nos primeiros tempos a Anise Postel-Vinay, Christiane Reme, Michèle Agniel, Françoise Robin e Marie-Jo Chombart de Lauwe pela sua hospitalidade e pelos seus conselhos e por me encaminharem para outras, e para Richard de Courson. Em Israel, encontrei-me com Irith Dublon-Knebel, que me aconselhou não só sobre as sobreviventes judias mas também sobre o lugar de Ravensbrück na história do Holocausto. Na Holanda, pude contar com a assistência de Joke van Dijk-Bording. Selma van de Perre, uma sobrevivente de Ravensbrück e minha vizinha na zona ocidental de Londres, auxiliou-me num número incontável de questões, particularmente sobre a Siemens. Relativamente aos contactos e ao contexto de prisioneiras austríacas, tenho uma dívida de gratidão para com Brigitte Halbmayr e Helga Amesberger, cuja investigação sobre os ciganos Sinti e Roma de Burgenland foi particularmente valiosa, em grande medida porque esse grupo foi o mais difícil de contactar. Gerhard Baumgartner deu-me conselhos valiosos sobre a história austríaca, assim como Gerhard Unger, no Dokumentationsarchiv des Österreichischen Widerstandes, em Viena. Desde o início e em cada fase posterior, o auxílio do pessoal do Memorial de Ravensbrück foi de um valor incalculável. Sinto-me particularmente grata a Insa Eschebach, a diretora do Memorial, pelo seu apoio, a Alyn Bessman pela sua excelente investigação e pelas suas respostas incansáveis às minhas questões e a Matthias Heyl pelas suas sugestões sobre temas a seguir. Gostaria também de agradecer a Sabine Arend, Monika Herzog, Cordula Hundertmark, Janna Lölke, Britta Pawelke e Monika Schnell por me aconselharem relativamente aos arquivos e às coleções do Memorial, e a Sigrid Jacobeit, a anterior diretora do Memorial, pelos seus conselhos. Na minha busca por sobreviventes e testemunhos, desfrutei da assistência de muitos guias locais, assim como de tradutores, que frequentemente se revelaram tão empenhados na história como eu.

Lyuba Vinogradova, jornalista e escritora russa, subiu aos últimos andares de prédios de apartamentos em Moscovo e enfiou-se pelo labiríntico metropolitano de São Petersburgo uma e outra vez, enquanto procurávamos sobreviventes e testemunhos. Marina Sapritsky (agora Nahum) traduziu e deu conselhos enquanto percorríamos estradas poeirentas em vilas do mar Negro à procura de velhas senhoras que não tinham sido avisadas da nossa chegada, mas que nos acolheram, encheram as suas mesas de comida e falaram sobre Ravensbrück, frequentemente pela primeira vez. Ilena Izugrafova fez viagens noturnas de autocarro comigo atravessando a Ucrânia e depois esperou junto a portas fechadas durante horas e horas, com a certeza de que elas acabariam por se abrir — o que frequentemente aconteceu. Muitas pessoas me foram ajudando ao longo do percurso, entre elas Vyacheslav Gorlinsky, um sobrevivente de Buchenwald com oitenta e cinco anos, que, como se encarregara da tarefa de entregar pequenos pagamentos a sobreviventes na zona de Odessa, sabia os nomes e as moradas de todas as mulheres. E gostaria de agradecer a Vova Chaplin, do Museu Judaico de Odessa, que explorou os arquivos e os cemitérios da cidade para me ajudar e até encontrou o túmulo de Yevgenia Klemm. Tenho uma enorme dívida de gratidão para com Georg Loonkin, um ex-jornalista soviético, que investigou a vida de Klemm e me facultou o seu dossiê contendo a história de uma das mulheres mais notáveis do campo de concentração. William Bland fez um ótimo trabalho de tradução de materiais dos arquivos russos. Na Alemanha, tive o apoio muito substancial de vários tradutores e investigadores, acima de tudo Henning Fischer, que me auxiliou do princípio ao fim em todos os aspetos da história, não só na tradução como na investigação, no aconselhamento, na revisão de provas e nas respostas a um número incontável de perguntas. A investigação empenhada e as observações de Beate Smandek nas fases iniciais foram de valor inestimável. Helmut Ettinger ofereceu-se para traduzir em numerosas ocasiões e fez sempre mais, completando o pano de fundo e o contexto e abrindo portas. Pela sua ajuda relativamente ao

material polaco estou tremendamente grata a Barbara Janic, que me cedeu o seu tempo lendo e traduzindo livros e testemunhos. Eu não poderia ter feito justiça à história das prisioneiras polacas sem Barbara, que também leu as provas finais. Muitas outras pessoas me prestaram gentilmente assistência em vários estádios, entre elas Andrew Smith, Tanja Röckemann, Sophia Schniederat, Tomasz Malkuszewski, Agnes Fedorowicz, Zakhar Ishov, Daniel Knebel e Esther Hecht, que traduziram e me ajudaram a seguir pistas. Gostaria também de agradecer a Nikita Petrov e ao seu pessoal no organismo de direitos humanos Memorial em Moscovo, assim como a Len Blavatnik e a Eugeniusz Smolar por me apresentarem pessoas na Ucrânia e na Polónia, respetivamente. Ninguém seguiu as pistas de Ravensbrück com mais amplitude e assiduidade para meu benefício do que o historiador da Segunda Guerra Mundial Stephen Tyas. Com um instinto inultrapassável, Steve vasculhou arquivos na Alemanha e no Reino Unido, encontrando testemunhos que, com frequência, não eram anteriormente conhecidos. Não só «escavou» nos arquivos como no mato da floresta de Mecklenburg, ao percorrermos terrenos em busca da casa de Himmler em Brückenthin ou ao vaguearmos pelos bosques desolados de Uckermark antes de fazermos 6000 quilómetros de estrada de regresso a Calais para apanharmos o ferry da meia-noite. Muitas das pessoas que me deram o seu auxílio eram filhos ou parentes das sobreviventes. Anita Leocadia Prestes, a filha de Olga Benario, aconselhou-me e mostrou-me as cartas da sua mãe. Judith Buber Agassi falou sobre a sua mãe, Grete Buber-Neumann, e proporcionou-me perspetivas sobre a história das prisioneiras judias, enquanto Tania Szabo partilhou as recordações que tem da sua mãe, Violette e os materiais da sua própria investigação. Estou também grata a Marlene Rolf, a filha de Ilse Gostynski; a Caroline McAdam Clark, filha de Denise Dufournier; a Franz Leichter e a Kathy Leichter, filho e neta de Käthe Leichter; e a Irena Lisiecki, irmã de Aka Koloziejczak. Maria Wilgat, filha de Krysia Czyż, e o irmão de Kryzia, Wieslaw, falaram sobre as cartas secretas de Krysia, e Maria

disponibilizou-me cópias de todas as cartas da sua mãe. Estou agradecida à neta do médico da SS Walter Sonntag, que acedeu a falar comigo sobre ele e sobre a vida dela e me disponibilizou as suas cartas. Jean-Marie Liard, filho da Dra. Louise Liard-Le Porz, não só me transmitiu conselhos e fez traduções como cedeu o seu tempo para fazer pesquisa e leu a primeira versão deste livro, corrigindo erros e fazendo sugestões pelas quais lhe estou imensamente grata. Dezenas de pessoas prestaram a sua colaboração em diferentes estádios: Wolfgang Stegemann e Wolfgang Jacobeit falaram sobre Fürstenberg; Keith Janes ajudou-me a encontrar as mulheres de Comet Line; Anna-Jutta Pietsch falou sobre Olga Benario; Michael Pinto Duschinsky falou sobre a Siemens. Nikolay Borodatin tentou, com grande perícia e em pouquíssimo tempo, explicar como era a vida no período das purgas de Estaline. Devo também agradecer a David Coulson, a Hella Pick, ao padre Edward Corbould, a Martyn Cox, a Michael Hegglin, a John Hemingway e a Krzysiak Luskasz. Ian Sayers e Peter Hore auxiliaram-me nos pormenores sobre as sobreviventes britânicas, e Fiona Watson, dos arquivos do serviço nacional de saúde da região de Grampian, e Richard Hunter, dos arquivos da cidade de Edimburgo, ajudaram-me a identificar as origens de Mary Young, que foi exterminada na câmara de gás de Ravensbrück. Foi particularmente difícil obter pormenores sobre Mary, assim como sobre outras britânicas menos bem conhecidas. A falta de reconhecimento da coragem e do sofrimento destas mulheres deveria envergonhar o seu país. Para as histórias das vítimas do SOE e o contexto geral, fiquei mais uma vez agradecida ao Professor Dr. Michael Foot, a Duncan Stuart, a Gillina Bennett, a Francis Suttill e a Tim Mant, que já me tinham prestado o seu auxílio no meu primeiro livro sobre Vera Atkins. Utilizei materiais, fotografias e memórias de John da Cunha, que integrou a equipa da acusação em Hamburgo. As minhas primeiras conversas com John foram, de muitas maneiras, a inspiração para este livro.

Foi um enorme prazer conhecer pessoalmente Wanda Hjort, que trouxe auxílio às prisioneiras de Ravensbrück e desempenhou um papel crucial na operação de salvamento Autocarros Brancos liderada pelo conde Bernadotte. Estou também grata ao historiador sueco Sune Persson, a Ricki Neumann e a Bertil Bernadotte pelas informações sobre a história dos Autocarros Brancos. Vários historiadores alemães aconselharam-me sobre aspetos específicos da história do campo de concentração: o estudo exaustivo de Ravensbrück da autoria de Bernhard Strebel foi um recurso essencial. Sinto-me particularmente grata a Stefan Hördler, cujo trabalho sobre a SS em Ravensbrück, em Lichtenburg e noutros campos de concentração foi pioneiro e que se prontificou a enviar-me materiais, a trocar correspondência e a encontrar-se comigo para conversarmos. Johannes Schwarz, Simone Erpel, Christa Schikorra, Linde Apel, Loretta Walz, Irmtraud Heike, Susanne Willems e Grit Philipp são alguns dos outros historiadores que me prestaram o seu auxílio. Para o contexto histórico mais alargado, estou grata a Sir Martin Gilbert, que disponibilizou generosamente o seu tempo para conversar comigo e me fez sugestões. Gostaria também de agradecer a Anne Applebaum, Antony Beevor, David Cesarani, Richard Evans, Peter Longerich e a Nikolaus Wachsmann, que me aconselharam. Lord Weidenfeld facultou-me as suas memórias únicas sobre o período e Anita Lasker-Wallfisch, uma sobrevivente de Auschwitz, acedeu gentilmente a falar-me sobre o tempo que passou nesse campo de concentração. Entre outras pessoas cuja assistência prezo contam-se o jornalista Andrew Gimson, a colunista Joan Smith, o professor catedrático de Inglês Philip Davis, a biógrafa Nancy Wood e o político e escritor Denis MacShane. Há um número incontável de outras pessoas que me emprestaram livros, procuraram bibliografia, me forneceram nomes e testemunhos encontrados enquanto faziam pesquisa para os seus livros ou simplesmente me encorajaram em momentos difíceis.

Há demasiados nomes para eu os mencionar todos aqui; estou grata a todos eles. O material para esta obra provém de arquivos e de bibliotecas numa dúzia de países e estou grata aos arquivistas pelos seus conselhos e pela sua ajuda. No Reino Unido tive particularmente apoio do pessoal dos National Archives, da London Library, da Weiner Library, do Imperial War Museum, do Polish Study Trust, do Polish Institute and Library e de BBC Written Archives, em Caversham. Em França contei com a assistência do pessoal do Musée de La Resistance em Besançon e da Bibliothèque de Documentation Internationale Contemporaine (BDIC) em Paris e na Alemanha do Bundesarchiv em Ludwigsberg, dos Arquivos da Stasi em Berlim e do Landesarchiv Nordrhein-Westfalen Staatsarchiv. Gostaria de agradecer a Frank Wittendorfer, dos Arquivos da Siemens, em Munique, e a Barbara Oratowska, do Muzeum Martyrologii «Pod Zegarem» em Lublin. No ITS (International Tracing Service) em Bad Arolsen, recebi a ajuda de Reto Meister e do seu pessoal, e no CICV (Comité Internacional da Cruz Vermelha) em Genebra, do seu arquivista-chefe Fabrizio Bensi. Em Jerusalém, Alexander Avram em Yad Vashem deu-me conselhos de grande valor. Estou também grata a Brigitta Lindholm da biblioteca da universidade de Lund, ao pessoal do Hjemmefrontmseet em Oslo e a Gro Kvanvig, do Stiftelsen Arkiver, e Kristiansand. A minha gratidão para com as sobreviventes de Ravensbrück é, evidentemente, incomensurável. Estou-lhes grata não só pelas suas memórias, pela sua paciência e pela sua inspiração, mas também pela sua hospitalidade e pela sua amizade quando lhes pedi — por vezes uma e outra vez — para recordarem um passado doloroso. Entre essas mulheres que conheci encontravam-se as que combateram em Estalinegrado, defenderam a Crimeia, aterraram de paraquedas na França ocupada pelos nazis, fitaram Hitler nos olhos, fizeram uma permanente ao cabelo de Dorothea Binz e marcharam em protesto ao comandante de um campo de concentração. Senti-me

honrada por conhecer cada uma delas; cada história enriqueceu a minha vida. Gostaria de exprimir a minha especial gratidão a Yvonne Baseden, com quem me encontrei muitas vezes, e cuja modéstia em relação à sua coragem notável me causou uma profunda impressão. Anise Postel-Vinay (em solteira, Girard) proporcionou-me a análise mais incisiva do regime da SS e do grupo francês. A paraquedista do Exército Vermelho Olga Golovina falou com humor, mas apertou-me a mão num aperto de aço. Loulou Le Porz não só foi um verdadeiro oráculo sobre Ravensbrück, mas também uma amiga, e proporcionou-me a confirmação de que a humanidade pode superar a maior degradação. Recordarei Jeannie de Clarens (em solteira, Rousseau) pela sua pura coragem. Não esquecerei as lágrimas nos olhos de Zofia Cisek (em solteira, Kawińska) enquanto recordava as mortes de colegas coelhas, a incapacidade de sorrir de Stella Nikoforova (em solteira, Kugelmann), nem o puro encanto de Nelly Langholm por ter saído viva. Todas elas me concederam muitas, muitas horas do seu tempo. Embora esteja grata pelo auxílio que me foi prestado na minha investigação, o apoio durante a fase de escrita foi também de valor inestimável. Gostaria de agradecer a todos quantos me aconselharam nos primeiros rascunhos, entre eles Katrina Barnicoat, Tony Rennell e Bernardo Futscher Pereira. Estou particularmente grata pelas sugestões e pelo apoio de Richard Tomlinson, que me aconselhou sobre o primeiro rascunho, fez um número incontável de sugestões e esteve sempre disponível para me ajudar. Esforcei-me por ser exata, mas é inevitável que haja erros no texto e espero que, se tal ocorrer, os meus leitores me alertem para que possam fazer-se as devidas correções. Gostaria de agradecer à minha agente Natasha Fairweather pelo seu apoio constante e aos meus editores na Little, Brown, Ursula Mackenzie e Tim Whiting, que aguardaram pacientemente, oferecendo-me a sua orientação ao longo do percurso. Estou também grata a Ronit Wagman, a minha editora na Doubleday, e a Zoe Gullen

na Little, Brown, pelas suas sugestões e pelo seu encorajamento. Nos últimos meses, Zoe Gullen encarregou-se da tarefa de editar o texto final, o que fez com uma competência, uma capacidade de avaliação e uma paciência admiráveis. Devo muito à minha família. Sentir-me-ei sempre grata ao meu pai, que foi médico nos campos de batalha da Normandia e cuja curiosidade sobre o mundo e paixão pela literatura me atraíram inicialmente para a escrita, e à minha mãe, que prestou serviço como Wren na Royal Navy. As minhas filhas, Jessica e Rosamund, ajudaram-me de todas as maneiras possíveis. A escrita deste livro não foi fácil e as palavras não teriam aparecido na página sem o auxílio do meu marido, Jonathan, que falou da história comigo, leu todos os capítulos mais do que uma vez, reviu o texto e me deu conselhos e encorajamento a cada passo. Sinceramente, duvido de que um outro autor alguma vez tenha tido um tal apoio do seu cônjuge. Devo-lhe os meus agradecimentos mais profundos.