Sacher-Masoch: o frio e o cruel
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Table of contents :
Sumário
Prólogo
Sade, Masoch e suas linguagens
O papel das descrições
Até onde vai a complementariedade entre Sade e Masoch
Masoch e as três mulheres
Pai e mãe
Os elementos romanescos de Masoch
A lei, o humor e a ironia
Do contrato ao rito
A psicanálise
O que é instinto de morte?
Supereu sádico e eu masoquista
Notas
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Gilles Deleuze

Sacher-Masoch o frio e o cruel Tradução Jorge Bastos Revisão técnica Roberto Machado professor titular do Depto. de Filosofia, UFRJ

Sumário

Prólogo

Sade, Masoch e suas linguagens A classificação de um distúrbio. Primeira função erótica da linguagem: palavras de ordem e descrições. Segunda função em Sade: a demonstração, o elemento impessoal e a Ideia da razão. Segunda função em Masoch: a dialética, o elemento impessoal e o Ideal da imaginação. O papel das descrições A decência de Masoch. O processo do negativo e a ideia de negação em Sade: as duas naturezas. Sade e a repetição aceleradora. “O instinto” de morte. O processo de denegação e o ideal do suspense em Masoch: o fetiche. Masoch e a repetição suspensiva. Até onde vai a complementariedade entre Sade e Masoch Ambições comparadas das duas obras. Haverá um masoquismo dos personagens de Sade e um sadismo dos personagens de Masoch? O tema de um encontro exterior entre o sádico e o masoquista. O encontro interior e os três argumentos nos quais se funda a crença na unidade sadomasoquista. Masoch e as três mulheres A mãe heterista, a mãe edipiana, a mãe oral. “Fria, maternal, severa…”. A frieza segundo Masoch e a apatia segundo Sade. Masoch e Bachofen. A catástrofe glacial.

Pai e mãe O problema do papel do pai no masoquismo. Função do pai no sadismo e em Sade. Anulação do pai no masoquismo e em Masoch. A série das três mulheres e o triunfo da mãe oral. A mãe boa. O Terceiro e o retorno alucinatório do pai. O contrato e a anulação. Os elementos romanescos de Masoch O elemento estético de Masoch. A espera e o suspense. A fantasia. A necessidade de uma psicanálise formal. O elemento jurídico de Masoch: o contrato. O contrato e a lei em Masoch, a instituição em Sade como crítica absoluta do contrato e da lei. A lei, o humor e a ironia Os dois aspectos da imagem clássica da lei: ironia e humor. Subversão desses dois aspectos na consciência moderna. A nova ironia e a subversão da lei em Sade. O novo humor e a pseudo-obediência à lei em Masoch. Do contrato ao rito Relações do contrato e da lei. A transferência da lei para a mãe oral: incesto e segundo nascimento. Os três ritos de Masoch: caça, agricultura e o segundo nascimento. Caim e Cristo: Deus morreu. Por que o segundo nascimento é essencial. A semelhança do pai e o papel do sentimento de culpa no masoquismo: “bate-se num pai”. Caráter formal e dramático do masoquismo. A psicanálise A primeira interpretação de Freud: o reviramento e os outros fatores. Insuficiência da forma “sadismo revirado”. A segunda interpretação e o problema da “desintricação”.

O que é instinto de morte? O princípio de prazer não tem exceção. Princípio empírico e princípio transcendental. Eros, Tânatos e a repetição. Duas formas de dessexualização ou de desintricação: neurose e sublimação. Repetição, prazer e dor. Supereu sádico e eu masoquista Triunfo do supereu e estado do eu no sadismo: a ironia. Triunfo do eu e estado do supereu no masoquismo: o humor. Recapitulação das características diferenciais do sadismo e do masoquismo. O eu, o supereu, sua cisão estrutural e o instinto de morte: imaginação e pensamento. Conclusão sobre a “incompossibilidade” do sadismo e do masoquismo. Notas

Prólogo

As principais informações que temos sobre a vida de Sacher-Masoch vieram de seu secretário, Schlichtegroll (autor de Sacher-Masoch und der Masochismus [SacherMasoch e o masoquismo]), e de sua primeira mulher, que assumiu o nome da heroína de A Vênus das Peles, Wanda (Wanda von Sacher-Masoch, autora de Meine Lebensbeichte [Confissão da minha vida]). O livro de Wanda é muito bonito, mas foi severamente julgado pelos biógrafos posteriores — que, no entanto, muitas vezes simplesmente o plagiaram. Tudo porque Wanda apresenta uma imagem inocente demais de si mesma. Queriam-na sádica, já que Masoch era masoquista. Mas não é a melhor forma de se colocar o problema. Leopold von Sacher-Masoch nasceu em 1835, na cidade de Lemberg, na região da Galícia. Tinha ascendentes eslavos, espanhóis e boêmios. Os antepassados foram funcionários do Império AustroHúngaro. O pai era chefe de polícia de Lemberg. As cenas de motins e de prisão que presenciou quando criança marcaram-no profundamente. Sua obra inteira permaneceu influenciada por problemas de minorias, nacionalismos e movimentos revolucionários no império: contos galicianos, judeus, húngaros e prussianos… Ele muitas vezes descreveria a organização da comuna agrícola e a dupla luta dos camponeses contra a administração austríaca, mas sobretudo contra os proprietários locais. Foi um entusiasta do pan-eslavismo. Seus ídolos, além de Goethe, foram Puchkin e Lermontov. Ele inclusive era chamado “o Turgueniev da Pequena-Rússia”.

Masoch foi de início professor de história em Graz e começou a carreira literária com romances históricos. O sucesso veio rápido. A mulher divorciada (1870) foi um dos seus primeiros romances de gênero e teve grande repercussão, inclusive nos Estados Unidos. Na França, Hachette, Calmann-Lévy e Flammarion publicaram traduções dos romances e contos. Uma de suas tradutoras chegou a apresentá-lo como um moralista severo, autor de romances folclóricos e históricos, sem a menor alusão ao caráter erótico de sua obra. Sem dúvida suas fantasias passavam mais facilmente como atributos da alma eslava. E deve-se levar em conta ainda uma razão mais geral: as condições de “censura” e de tolerância no século XIX eram muito diferentes das nossas; tolerava-se mais a sexualidade difusa, com menores precisões orgânicas e psíquicas. Masoch fala uma linguagem em que o folclórico, o histórico, o político, o místico e o erótico, o nacional e o perverso, se misturam estreitamente, formando uma nebulosa para o açoite. Foi então sem prazer algum que viu Krafft-Ebing usar o seu nome para designar uma perversão. Masoch foi um autor célebre e honrado, que fez uma viagem triunfante a Paris em 1886, foi condecorado e homenageado pelo jornal Le Figaro e pela Revue des Deux Mondes. Os gostos amorosos de Masoch são célebres: brincar de urso ou de bandido; ser caçado, amarrado, sofrer castigos, humilhações e até fortes dores físicas causadas por uma mulher opulenta vestindo peles e empunhando o chicote; fantasiar-se de serviçal, juntar fetiches e disfarces; colocar anúncios classificados, assinar “contrato” com a mulher amada e, se preciso for, prostituí-la. Uma primeira aventura, com Anna von Kottowitz, inspirou A mulher divorciada; uma outra, com Fanny von Pistor, A Vênus das Peles. Depois, uma jovem, Aurore Rümelin, entrou em contato com ele, em condições epistolares ambíguas,

assumiu o pseudônimo de Wanda e acabaram se casando, em 1873. Tornou-se a companheira ao mesmo tempo dócil, exigente e dedicada. Mas o destino de Masoch era o de se decepcionar, como se a força do disfarce fosse também a do mal-entendido: ele sempre buscou introduzir um terceiro na relação, aquele a quem chama “o Grego”. Com Anna von Kottowitz, descobriu-se que um pseudoconde polonês era, na verdade, um ajudante de farmácia procurado por roubo e perigosamente doente. Com Aurore-Wanda teve início uma curiosa aventura que parece ter tido como herói Ludwig II da Baviera, conforme ela narra em seu livro. Neste caso específico, uma vez mais, os duplos, as máscaras, as encenações de ambos os lados desenvolvem um balé extraordinário que desanda para a decepção. E finalmente a aventura com Armand, de Le Figaro — também muito bem narrada por Wanda em sua Confissão, exceto pelo que o próprio leitor pode imaginar: foi o episódio que determinou a viagem de 1886 a Paris, mas que marcou também o fim da união do casal. Masoch voltou a se casar em 1887, com a governanta de seus filhos. Um romance de Myriam Harry, Siona à Berlin, traça um interessante retrato de Masoch em seu retiro final. Ele morreu em 1895, lamentando o esquecimento em que sua obra já havia caído. É, no entanto, uma obra importante e insólita, por ele concebida como um ciclo, ou melhor, uma série de ciclos. O ciclo principal se intitula O legado de Caim e devia tratar de seis temas: amor, propriedade, dinheiro, Estado, guerra e morte (apenas as duas primeiras partes foram concluídas, mas nelas os demais já se encontravam presentes). Os contos folclóricos ou nacionais formam ciclos secundários. Principalmente dois romances noir que estão entre os melhores de Masoch e dizem respeito a seitas místicas da Galícia, chegando a um nível de angústia e de tensão raramente igualado: A pescadora de almas e A mãe de

Deus. O que significa a expressão “legado de Caim”? Pretende, primeiramente, dar conta da herança de crimes e sofrimentos que pesam sobre a humanidade. Mas a crueldade é apenas uma aparência sobre um fundo mais secreto: a frieza da natureza, a estepe, a imagem gélida da mãe, em que Caim descobre seu próprio destino. E o frio dessa mãe severa é sobretudo uma transmutação da crueldade da qual sairá o novo homem. Existe, então, um “signo” de Caim que mostra como se deve usar o “legado”. De Caim a Cristo, é o mesmo signo que leva ao Homem na cruz, “sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem disputas, sem trabalho e que morre por vontade própria, personificando a ideia de humanidade”… A obra de Masoch capta as forças do romantismo alemão. Acredito que nunca escritor algum havia utilizado como ele as possibilidades da fantasia e do suspense. E com uma maneira muito particular de, ao mesmo tempo, “dessexualizar” o amor e sexualizar toda a história da humanidade. O destino de Masoch é duplamente injusto. E não apenas por seu nome servir para designar o masoquismo, pelo contrário. Primeiramente por sua obra ter caído no esquecimento, ao mesmo tempo em que seu nome ganhava um uso corrente. Livros sobre o sadismo em que os autores parecem completamente ignorar a obra de Sade sem dúvida são publicados. Mas são cada vez mais raros e Sade é cada vez mais profundamente conhecido, com a reflexão clínica sobre o sadismo beneficiando-se diretamente da reflexão literária sobre Sade e vice-versa. Com relação a Masoch, porém, desconhecer sua obra continua sendo surpreendentemente comum, mesmo nos melhores livros sobre masoquismo. Não seria de se supor, no entanto, que Masoch e Sade não são apenas casos genéricos entre outros, mas que ambos têm algo essencial a nos ensinar, um sobre o masoquismo e o outro sobre o sadismo? Há uma segunda razão que torna dupla a injustiça do destino de

Masoch. É que, clinicamente, ele serve de complemento a Sade. Não seria por essa razão que quem se interessou por Sade não teve interesse particular por Masoch? De forma apressada, achou-se que basta inverter os signos, subverter as pulsões e pensar na grande unidade dos contrários para se obter Masoch a partir de Sade. O tema da unidade sadomasoquista, da entidade sadomasoquista, foi muito prejudicial a Masoch. Ele não somente foi injustamente esquecido, mas ganhou uma injusta complementariedade, uma injusta unidade dialética. Pois basta ler Masoch para sentir que seu universo nada tem a ver com o de Sade. Não são apenas técnicas diferentes, mas também problemas e preocupações, projetos absolutamente diversos. Não serve como argumento o fato de que a psicanálise há muito tempo já demonstrou a possibilidade e a realidade das transformações sadismo/masoquismo. O que está em questão é a própria unidade do chamado sadomasoquismo. A medicina faz distinção entre síndrome e sintoma: os sintomas são sinais específicos de determinada doença, enquanto as síndromes são unidades de junção, ou de cruzamento, remetendo a linhagens causais bem diferentes, a contextos variáveis. É possível que a entidade sadomasoquista seja, ela própria, uma síndrome, que deveria então ser dissociada em duas linhagens irredutíveis. Repetiu-se tanto que o mesmo sujeito é sádico e masoquista, que acabamos acreditando. É preciso recomeçar tudo, e recomeçar pelas leituras de Sade e de Masoch. Sendo o julgamento clínico cheio de preconceitos, devemos recomeçar tudo, e de um ponto situado fora da clínica, o ponto literário, a partir do qual, aliás, foram denominadas as perversões em questão. Não por acaso o nome de dois escritores serviu à designação; pode ser que a crítica (no sentido literário) e a clínica (no sentido médico) estejam fadadas a entrar em novas relações, num

ensino recíproco. A sintomatologia diz sempre respeito à arte. As especificidades clínicas do sadismo e do masoquismo não são separáveis dos valores literários próprios de Sade e de Masoch. E, em vez de uma dialética que apressadamente reúne contrários, deve-se buscar uma crítica e uma clínica capazes de resgatar os mecanismos realmente diferenciais, assim como as originalidades artísticas.

Sacher-Masoch o frio e o cruel

“É idealista demais… e, por isso, cruel.” Dostoievski, Humilhados e ofendidos  

Sade, Masoch e suas linguagens Para que serve a literatura? Os nomes de Sade e de Masoch, pelo menos, servem para designar duas perversões básicas. São prodigiosos exemplos de eficácia literária. Em qual sentido? Pode acontecer de doentes típicos darem seus nomes a doenças; no mais das vezes, porém, são os médicos (síndrome de Roger, mal de Parkinson…). As condições de tais denominações devem ser analisadas de perto. O médico não inventou a doença. Mas separou sintomas até então associados, agrupou outros antes dissociados, ou seja, constituiu um quadro clínico profundamente original. Por isso a história da medicina é no mínimo dupla. Há uma história das doenças, que desaparecem, regridem, retornam ou mudam de forma, segundo o estado das sociedades e os progressos da terapêutica. Mas, imbricada nessa história, existe uma outra que é a da sintomatologia, e que ora precede, ora segue as transformações da terapêutica ou da doença: batizam-se, desbatizam-se, agrupam-se de outra forma os sintomas. Desse ponto de vista, o progresso geralmente se faz no sentido de uma maior especificação, indicando uma sintomatologia mais refinada (é claro que a peste e a lepra eram antigamente mais frequentes, não apenas por razões históricas e sociais, mas porque se agrupavam sob seu nome várias perturbações que atualmente lhe foram dissociadas). Os grandes clínicos são os maiores médicos. Quando um médico dá o seu nome a uma doença, trata-se

de um ato ao mesmo tempo linguístico e semiológico dos mais importantes, na medida em que se liga um nome próprio a um conjunto de signos, ou se faz com que um nome próprio conote signos. Seriam Sade e Masoch, nesse sentido, grandes clínicos? É difícil considerar o sadismo e o masoquismo como se considera a lepra, a peste, o mal de Parkinson. A palavra “doença” não convém aqui. Mas não resta dúvida de que Sade e Masoch apresentam a seus leitores quadros inigualáveis de sintomas e de signos. Quando Krafft-Ebing fala de masoquismo, está dando o mérito a Masoch pela renovação de uma entidade clínica, definindo-a menos pelo vínculo dor–prazer sexual que por comportamentos mais profundos de escravidão e de humilhação (e, afinal, existem casos de masoquismo sem algolagnia e até algolagnias sem masoquismo).1 E devemos ainda nos perguntar se, comparado a Sade, Masoch não define uma sintomatologia ainda mais refinada, tornando possível uma dissociação de distúrbios antes confundidos. Em todo caso, “doentes” ou clínicos, e as duas coisas ao mesmo tempo, Sade e Masoch são também grandes antropólogos, à maneira daqueles que sabem incluir em suas obras toda uma concepção do homem, da cultura e da natureza, toda uma nova linguagem — grandes artistas, à maneira daqueles que sabem extrair novas formas e criar novos modos de sentir e de pensar. É verdade que a violência é aquilo que não fala, que pouco fala, e a sexualidade, aquilo de que, em princípio, pouco se fala. O pudor não está ligado a nenhum pavor biológico. Se estivesse, não se formularia como se formula: receio menos ser tocada do que vista, e vista do que comentada. O que significa então essa conjunção de violência e de sexualidade numa linguagem tão abundante, tão provocante quanto as de Sade e de Masoch? Como dar conta dessa violência que fala de erotismo? Georges

Bataille, num texto que deveria ter anulado todas as discussões sobre as relações do nazismo com a literatura de Sade, explica que a linguagem de Sade é paradoxal por ser essencialmente a de uma vítima. Apenas as vítimas podem descrever torturas; os carrascos necessariamente empregam a linguagem hipócrita da ordem e do poder estabelecidos: Como regra geral, o carrasco não emprega a linguagem da violência que ele exerce em nome de um poder estabelecido, emprega a do poder, que aparentemente o desculpa, o justifica e fundamenta sua posição. O violento é levado a se calar e se adapta à trapaça … Desse modo, a atitude de Sade opõe-se à do carrasco, estando inclusive em perfeita contradição com relação a ela. Escrevendo e recusando a trapaça, Sade deixa-a para personagens que realmente só poderiam ser silenciosos, mas que ele utiliza para dirigir a outros homens um discurso paradoxal.2 Deveria-se daí concluir que a linguagem de Masoch é igualmente paradoxal? Pois nela as vítimas também falam como o carrasco que são para si mesmas e com a hipocrisia própria do carrasco. Chama-se literatura pornográfica uma literatura reduzida a algumas “palavras de ordem” (faça isso, aquilo…), seguidas de descrições obscenas. Violência e erotismo estariam nelas reunidas, então, mas de maneira rudimentar. Em Sade e em Masoch, as palavras de ordem são abundantes, proferidas pelo libertino cruel ou pela mulher despótica, assim como as descrições (apesar de, comparativamente, não terem o mesmo sentido nem a mesma obscenidade nas duas obras). Parece que, tanto para Masoch quanto para Sade, a linguagem adquire seu pleno valor agindo diretamente sobre a sensualidade. Em Sade, Os 120 dias de Sodoma organiza-se a partir das

narrativas que os libertinos ouvem de “historiadoras”; e nenhuma iniciativa dos personagens, pelo menos em princípio, deve preceder as narrações. Pois o poder das palavras culmina quando comanda a repetição dos corpos, e “as sensações comunicadas pelo órgão da audição são as que mais agradam e cujas impressões são mais vivas”. Em Masoch, tanto em sua vida como em sua obra, é preciso que os casos amorosos sejam desencadeados por cartas anônimas ou pseudônimos e anúncios classificados; é preciso que sejam regulamentados por contratos que os formalizem, que os verbalizem; e as coisas devem ser ditas, prometidas, anunciadas, cuidadosamente descritas antes de se realizarem. No entanto, se a obra de Sade e a de Masoch não podem passar por pornográficas, merecendo um nome mais alto, como o de “pornologia”, é porque, em ambas, a linguagem erótica não se reduz às funções elementares de mando e de descrição. Assiste-se em Sade ao mais surpreendente desenvolvimento da faculdade demonstrativa. A demonstração como função superior da linguagem aparece entre duas cenas descritas, enquanto os libertinos descansam, entre uma palavra de ordem e outra. Ouve-se um libertino ler um rigoroso panfleto, desenvolver teorias inesgotáveis, elaborar uma Constituição. Ou então ele se põe a conversar, a discutir com a vítima. Momentos assim são frequentes, sobretudo em Justine: cada um dos algozes toma-a como ouvinte e confidente. Mas a intenção de convencer é apenas aparente. O libertino pode dar a impressão de que procura convencer ou persuadir; pode inclusive realizar obra “professoral”, formando uma nova recruta (como em A filosofia na alcova). Porém, nada está mais distante do sádico do que a intenção de persuadir ou convencer, ou seja, qualquer intenção pedagógica. É de outra coisa que se trata: de mostrar que o próprio raciocínio é uma violência, e que está do lado dos violentos,

com todo o seu rigor, toda a sua serenidade, toda a sua calma. Não se trata sequer de mostrar, mas de demonstrar, uma demonstração que se confunde com a solidão perfeita e a onipotência de quem demonstra. Trata-se de demonstrar a identidade entre a violência e a demonstração. Assim o raciocínio deixa de ter que ser compartilhado com o ouvinte, a quem se dirige apenas o prazer, isto é, com o objeto do qual se obtém o prazer. As violências pelas quais as vítimas passam são apenas a imagem de uma violência maior que a demonstração testemunha. Entre seus cúmplices ou suas vítimas, cada raciocinador raciocina dentro do círculo absoluto da sua solidão e da sua unicidade — mesmo que todos os libertinos tenham o mesmo raciocínio. Sob todos os aspectos, veremos, o “professor” sádico se opõe ao “educador” masoquista. Mais uma vez, Bataille é incisivo ao se referir a Sade: “É uma linguagem que desmente a relação daquele que fala com aqueles a quem se dirige.” E, sendo verdade que essa linguagem é a mais alta realização da função demonstrativa na relação da violência com o erotismo, o outro aspecto — palavras de ordem e descrições — ganha uma nova significação. Ele subsiste, mas mergulha no elemento demonstrativo, flutua nele, existe somente em relação a ele. As descrições e a atitude dos corpos passam a representar o papel apenas de figuras sensíveis, ilustrando as demonstrações abomináveis; e as palavras de ordem, os imperativos lançados pelos libertinos são, por sua vez, como enunciados de problemas que se remetem ao encadeamento mais profundo dos teoremas sádicos. “Demonstrei teoricamente,” diz Noirceuil, “convençamonos agora pela prática …”. É preciso então distinguir duas espécies de fatores, que formam uma dupla linguagem: o fator imperativo e descritivo, representando o elemento pessoal, pondo em ordem e descrevendo as violências

pessoais do sádico com os seus gostos particulares; mas também um fator mais elevado que designa o elemento impessoal do sadismo e identifica essa violência impessoal com uma Ideia da razão pura, com uma demonstração terrível, capaz de subordinar a si o outro elemento. Surge em Sade um estranho espinosismo — um naturalismo e um mecanicismo imbuídos de espírito matemático. A esse espírito deve-se relacionar a infinita repetição, o processo quantitativo reiterado que multiplica figuras e soma vítimas, para de novo transpor os milhares de círculos de um raciocínio sempre solitário. Krafft-Ebing, nesse sentido, pressentiu o essencial: Há casos em que o elemento pessoal se retira quase completamente … O interessado tem excitações sexuais batendo em rapazes e moças, mas algo puramente impessoal ressalta bem mais … Enquanto a maior parte dos indivíduos, nessa categoria, faz incidir o sentimento de poder sobre pessoas determinadas, assistimos aqui a um sadismo pronunciado que se move, em grande parte, por desenhos geográficos ou matemáticos …3 Em Masoch, da mesma forma, as palavras de ordem e as descrições se superam para alcançar uma linguagem mais elevada. Nele, porém, tudo é persuasão e educação. Não estamos mais diante de um carrasco que se apodera de uma vítima e goza à custa dela, com um prazer inversamente proporcional ao seu consentimento e ao quanto ela é persuadida. Estamos diante de uma vítima em busca de um carrasco e que precisa formá-lo, persuadi-lo e a ele se aliar para a mais estranha empreitada. Por isso os anúncios classificados são parte da linguagem masoquista e não existem no verdadeiro sadismo. Por isso também o masoquista elabora contratos, enquanto o sádico abomina e rasga todo tipo de contrato. O sádico precisa de instituições

e o masoquista, de relações contratuais. A Idade Média, com profundidade, distinguia dois tipos de satanismo, ou duas perversões fundamentais: uma por possessão e outra por pacto de aliança. É o sádico que pensa em termos de possessão instituída e o masoquista, em termos de aliança contratada. A possessão é a loucura própria do sadismo; o pacto, a do masoquismo. O masoquista precisa formar a mulher déspota. Precisa persuadi-la, fazê-la “assinar”. Ele é essencialmente educador. E corre os riscos de fracasso inerentes à tarefa pedagógica. Em todos os romances de Masoch, a mulher persuadida mantém uma última dúvida, um temor: aceitar um papel que lhe é imposto, mas que ela talvez não saiba representar, pecando por excesso ou por falta. Em A mulher divorciada, a heroína exclama: “O ideal de Julian era uma mulher cruel, uma mulher como Catarina a Grande, e eu, infelizmente, era covarde e fraca…” E Wanda, em A Vênus das Peles: “Tenho medo de não conseguir, mas quero tentar, por você, meu bem-amado” — ou ainda: “Cuidado para que eu não tome gosto.” A empreitada pedagógica dos heróis de Masoch, a submissão à mulher, os tormentos que eles sofrem, a morte por que passam são momentos de ascensão ao Ideal. A mulher divorciada tem como subtítulo “o calvário de um idealista”. Séverin, o herói de A Vênus das Peles, elabora sua doutrina, o “suprassensualismo”, e toma como divisa as palavras de Mefisto para Fausto: “Ó sensual sedutor, suprassensual, uma mocinha te carrega como bem entende!” (“Übersinnlich”, no texto de Goethe, não é “suprassensível”, é “suprassensual”, “supracarnal”, conforme uma alta tradição teológica em que Sinnlichkeit designa a carne, a sensualitas.) Que o masoquismo procure suas garantias históricas e culturais nas provações de iniciação místico-idealistas não é nada surpreendente. A contemplação do corpo nu de uma mulher só é possível dentro de condições místicas: é assim que se passa em A

Vênus das Peles. Mais claramente ainda, uma cena de A mulher divorciada mostra como o herói, Julian, levado por um inquietante amigo, deseja pela primeira vez ver sua amante nua. Ele primeiro alega uma “necessidade de observação”, mas vê-se tomado por um sentimento religioso, “nada sensual” (são os dois momentos fundamentais do fetichismo). Do corpo à obra de arte, da obra de arte às Ideias, há toda uma ascensão que se faz à base de chicotadas. Um espírito dialético impele Masoch. Em A Vênus, tudo começa com um sonho durante uma leitura interrompida de Hegel. Mas trata-se sobretudo de Platão; da mesma maneira que há espinosismo em Sade, e uma razão demonstrativa, há platonismo em Masoch, e uma imaginação dialética. Uma novela de Masoch se intitula O amor de Platão; foi o que deu margem à aventura com Ludwig II.4 E não é apenas a ascensão ao inteligível que parece platônica, é toda uma técnica de reviramento, de deslocamento e de disfarce, de desdobramento dialético. Na aventura com Ludwig II, Masoch não sabe de início se o seu correspondente é um homem ou uma mulher; não sabe no final se ele é um ou dois; durante a aventura, não sabe que papel será o da sua mulher — mas está disposto a tudo, como dialético que aproveita a ocasião, kairós. Platão mostrava que Sócrates parecia ser o amante, porém mais profundamente revelava-se o amado. De outra maneira, o herói masoquista parece educado, formado pela mulher autoritária, porém mais profundamente é ele que a forma e a traveste, soprando-lhe também as palavras duras que deve dizer. É a vítima que fala através do carrasco, sem comedimento. A dialética não significa simplesmente uma circulação do discurso, mas transferências e deslocamentos desse tipo, que fazem com que a mesma cena seja simultaneamente representada em diversos níveis, seguindo inversões e desdobramentos na distribuição dos papéis e da linguagem.

É bem verdade que a literatura pornológica se propõe antes de tudo a colocar a linguagem em relação com o seu próprio limite, com uma espécie de “não linguagem” (a violência que não fala, o erotismo de que não se fala). Mas ela só pode realizar realmente essa tarefa com um desdobramento interior da linguagem: é preciso que a linguagem imperativa e descritiva se supere, indo a uma função mais elevada. É preciso que o elemento pessoal se reflita e passe para o impessoal. Quando Sade evoca uma razão analítica universal para explicar o que há de mais particular dentro do desejo, que não se veja nisso apenas a simples marca da cultura do século XVIII em sua obra: é preciso que a particularidade e o desejo correspondente sejam também uma Ideia da razão pura. E quando Masoch invoca um espírito dialético, o de Mefisto e o de Platão reunidos, que não se veja nisso apenas a marca do romantismo em sua obra. Nesse ponto, ainda, a particularidade deve se refletir num Ideal impessoal do espírito dialético. Em Sade, a função imperativa e descritiva da linguagem se supera, indo à pura função demonstrativa e instituidora; em Masoch, ela se supera também, indo a uma função dialética, mítica e persuasiva. Essa divisão toca no essencial das duas perversões; é a dupla reflexão do monstro.

O papel das descrições Dessas duas funções superiores, a função demonstrativa de Sade e a função dialética de Masoch, decorre uma grande diferença do ponto de vista das descrições, do seu papel e do seu valor. Vimos que as descrições na obra de Sade vêm relacionadas a uma demonstração mais profunda, mas ainda mantêm uma independência relativa, no estado de figuras livres; portanto, elas são obscenas em si mesmas. Sade necessita desse elemento provocador. Em Masoch isso não acontece. Sem dúvida a maior obscenidade pode estar presente nas ameaças, nos anúncios publicados e nos contratos; mas ela não é necessária. Deve-se inclusive reconhecer que a obra de Sacher-Masoch, em geral, guarda uma extraordinária decência. O mais intransigente dos censores nada pode criticar em A Vênus das Peles, a menos que queira questionar uma certa atmosfera e a impressão de asfixia que se manifestam em todos os romances do autor. Em inúmeras das suas novelas, foi fácil para Masoch fazer com que as fantasias masoquistas passassem por costumes nacionais e folclóricos, ou brincadeiras inocentes de crianças, ou jogos de linguagem de mulheres que amam, ou ainda exigências morais e patrióticas. Seguindo um velho costume, no calor de um banquete, homens bebem nos sapatos das mulheres (“A pantufa de Safo”); mocinhas pedem a seus apaixonados que se fantasiem de urso ou de cachorro e se deixem atrelar a uma carrocinha (A pescadora de almas); uma mulher apaixonada e travessa finge usar um papel assinado em branco por seu amante (A folha branca); de forma mais séria e para salvar a sua cidade, uma patriota entrega aos turcos o próprio marido como escravo e a si mesma ao paxá (A Judith de Bialopol). Sem dúvida já aparece em todos esses casos, para o homem humilhado de diferentes formas, uma espécie de

“ganho secundário” propriamente masoquista. Acrescentese que Masoch pode apresentar em tons cor-de-rosa uma grande parte da sua obra, justificando o masoquismo pelas mais diversas motivações ou por exigência de situações fatais e dilacerantes. (Sade, pelo contrário, não engana ninguém quando tenta esse procedimento.) Por esse motivo, Masoch não foi um autor maldito, mas festejado e homenageado. Inclusive, a parte inalienável do masoquismo não deixou de parecer simples expressão do folclore eslavo e da alma da Pequena-Rússia. O Turgueniev da Pequena-Rússia, como era chamado. Poderia perfeitamente ser visto como uma espécie de condessa de Ségur. É verdade que ele próprio fornece a versão negra da sua obra: A Vênus das Peles, A mãe de Deus, Fonte da juventude, A hiena da Pussta devolvem à motivação masoquista seu rigor e sua pureza originais. Negras ou corde-rosa, as descrições, entretanto, nunca deixam de ser marcadas pela decência. O corpo da mulher-carrasco mantém-se coberto de peles; o da vítima permanece numa estranha indeterminação, rompida somente pelos golpes que recebe. Como explicar esse duplo “deslocamento” da descrição? Voltamos à questão: por que a função demonstrativa da linguagem, em Sade, implica descrições obscenas, enquanto a função dialética, em Masoch, parece excluí-las ou pelo menos não comportá-las essencialmente? O que está em jogo na obra de Sade é a negação em toda a sua extensão, em toda a sua profundidade. Dois níveis, porém, devem ser discriminados: o negativo como processo parcial e a negação pura como Ideia totalizante. Esses níveis correspondem à distinção sadista das duas naturezas, cuja importância Klossowski demonstrou. A natureza segunda é uma natureza sujeitada às suas próprias regras e às suas próprias leis: o negativo, nela, está em todos os lugares, mas nem tudo nela é negação. As destruições são ainda o inverso de criações ou de

metamorfoses; a desordem é uma outra ordem, a putrefação da morte é igualmente composição da vida. O negativo está então em todos os lugares, mas apenas como processo parcial de morte e de destruição. Daí a decepção do herói sádico, já que essa natureza parece deixar claro que o crime absoluto é impossível: “Sim, abomino a natureza…” E não vai se consolar nem mesmo achando que a dor dos outros lhe dá prazer: esse prazer do eu significa também que o negativo é alcançado apenas como o inverso de uma positividade. E a individuação, tanto quanto a conservação de um reino ou de uma espécie, confirma os limites estreitos da natureza segunda. A esta última opõese a ideia de natureza primeira, portadora da negação pura, acima dos reinos e das leis, e que estaria inclusive liberta da necessidade de criar, de conservar e de individuar: sem fundo além de qualquer fundo, delírio original, caos primordial feito unicamente de moléculas furiosas e dilacerantes. Como diz o papa a Juliette, “o criminoso que conseguisse sacudir os três reinos ao mesmo tempo, aniquilando-os e às suas faculdades produtivas, seria quem melhor teria servido à natureza”. Mas essa natureza original não pode ser dada: só a natureza segunda forma o mundo da experiência, e a negação só se dá nos processos parciais do negativo. Por isso a natureza original é, necessariamente, objeto de uma Ideia, sendo a pura negação um delírio, mas um delírio da razão como tal. O racionalismo não está absolutamente “cravado” na obra de Sade; ele precisou ir até a ideia de um delírio próprio à razão. Podemos observar que a distinção das duas naturezas corresponde à dos elementos e a inaugura: o elemento pessoal, que encarna a potência derivada do negativo, representando a maneira como o eu sádico participa ainda da natureza segunda e produz atos de violência ao imitá-la; e o elemento impessoal, que remete à natureza primeira como à ideia delirante de negação, que

representa a maneira com que o sádico nega a natureza segunda assim como a seu próprio eu. Em Os 120 dias de Sodoma, o libertino se declara excitado não pelos “objetos que aqui estão”, mas pelo Objeto que não está, isto é, a “ideia do mal”. Ora, essa ideia de algo que não está, a ideia do Não ou da negação, que não é dada nem possível de ser dada na experiência, só pode ser objeto de demonstração (como o matemático fala de verdades que guardam todo seu sentido mesmo enquanto dormimos, e mesmo não existindo na natureza). E por isso, também, os heróis sádicos se desesperam e se enfurecem, vendo seus crimes reais tão diminutos, em comparação àquela ideia que eles só podem atingir pela onipotência do raciocínio. Sonham com um crime universal e impessoal ou, como diz Clairwil, um crime “cujo efeito perpétuo continue sua ação, até mesmo quando eu não agisse mais, de modo que não haveria um só instante de minha vida em que, mesmo dormindo, eu não fosse causa de alguma desordem”. Trata-se então, para o libertino, de preencher a distância entre os dois elementos, aquele de que ele dispõe e aquele que ele pensa, o derivado e o original, o pessoal e o impessoal. Um sistema como o de Saint-Fond (dentre todos os personagens de Sade, o que desenvolve mais profundamente o puro delírio da razão) pergunta-se em quais condições “uma dor B”, provocada na natureza segunda, poderia de direito repercutir e se reproduzir ao infinito na natureza primeira. Este é o sentido da repetição em Sade, e da monotonia sádica. Na prática, contudo, o libertino vê-se reduzido a ilustrar sua demonstração total por processos indutivos parciais, tirados dessa natureza segunda: ele não pode senão acelerar e condensar os movimentos da violência parcial. Tal aceleração se faz pela multiplicação das vítimas e das suas dores. Quanto à condensação, ela implica que a violência não se dissipe seguindo inspirações e esforços,

que ela nem mesmo se deixe dirigir por prazeres esperados que nos manteriam presos à natureza segunda. Ela deve ser conduzida com sangue-frio e condensada por sua frieza própria — a frieza do pensamento como pensamento demonstrativo. É a famosa apatia do libertino, o sangue-frio do pornologista que Sade opõe ao deplorável “entusiasmo” do pornográfico. O entusiasmo é precisamente o que ele critica em Rétif de La Bretonne; e ele não deixa de ter razão ao dizer (como sempre insistiu em suas justificativas públicas) que ele, Sade, pelo menos nunca mostrou o vício sob forma agradável nem alegre: mostrou-o apático. Sem dúvida, dessa apatia decorre um prazer intenso, mas, afinal, não é mais o prazer de um eu que participa da natureza segunda (mesmo que seja um eu criminoso, participando de uma natureza criminosa), é, pelo contrário, o prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e até mesmo de negar o próprio eu. Em poucas palavras, é um prazer de demonstração. Se considerarmos os meios de que o sádico dispõe para fazer sua demonstração, veremos que a função demonstrativa está subordinada à função descritiva, acelera-a e a condensa friamente, mas não pode de forma alguma abster-se dela. Deve haver uma descrição quantitativa e qualitativa minuciosa. Tal precisão incide em dois pontos: os atos cruéis e os atos repugnantes que o sangue-frio do libertino torna fontes de prazer. “Duas irregularidades entre nós já te impressionaram”, diz o monge Clément em Justine; “te admiras da sensação excitante que coisas vulgarmente consideradas fétidas e impuras produzem em nossos confrades, e te surpreende igualmente que nossas faculdades voluptuosas possam ser motivadas por ações que, ao que te parece, trazem só a marca da ferocidade …” Nos dois casos, é pela descrição e pela repetição aceleradora e condensadora que a função demonstrativa alcança seu efeito mais alto, ficando claro

que a presença das descrições obscenas se fundamenta plenamente no conceito do negativo e da negação em Sade. Em Além do princípio de prazer, Freud distingue as pulsões de vida das pulsões de morte, Eros e Tânatos. Mas essa distinção só pode ser compreendida através de uma outra, mais profunda: entre as próprias pulsões de morte ou de destruição e o instinto de morte. Pois as pulsões de morte e de destruição são dadas ou apresentadas no inconsciente, mas sempre misturadas às pulsões de vida. A combinação com Eros é uma espécie de condição para a “apresentação” de Tânatos. De tal forma que a destruição, o negativo na destruição, apresenta-se necessariamente como o inverso de uma construção ou de uma unificação submetida ao princípio de prazer. É nesse sentido que Freud pôde sustentar que não se encontra o Não (a negação pura) no inconsciente, uma vez que os contrários nele coincidem. Quando falamos de instinto de morte, em contrapartida, designamos Tânatos em estado puro. Ora, Tânatos, como tal, não pode ser dado na vida psíquica, nem mesmo no inconsciente: como disse Freud, em textos admiráveis, ele é essencialmente silencioso. No entanto, devemos mencioná-lo. Mencioná-lo porque, conforme veremos, ele é determinável como fundamento, e mais do que isso, da vida psíquica. Mencioná-lo, pois tudo depende disso — mas Freud esclarece que só podemos mencioná-lo de maneira especulativa ou mítica. Para designá-lo, pelo menos em francês, deve-se manter a denominação “instinto”, única capaz de sugerir uma tal transcendência ou designar semelhante princípio “transcendental”. Essa distinção entre as pulsões de morte ou de destruição e o instinto de morte parece corresponder à distinção sadista das duas naturezas ou dos dois elementos. O herói sádico desponta como aquele que se incumbe de pensar o instinto de morte (a negação pura), sob espécies demonstrativas, e ele só pode fazer isso multiplicando e

condensando o movimento das pulsões negativas ou destrutivas parciais. Mas então a questão passa a ser: não existiria ainda uma outra “maneira”, além da maneira sádica especulativa? Encontramos em Freud a análise de resistências que, a títulos bem diversos, implicam um processo de denegação (a Verneinung, a Verwerfung, a Verleugnung cuja importância Jacques Lacan mostrou). Pode-se achar que a denegação, em geral, é mais superficial que a negação ou mesmo que a destruição parcial. Mas não é assim; trata-se de uma operação totalmente diversa. Talvez se deva compreender a denegação como ponto de partida de uma operação que não consiste em negar nem mesmo em destruir, mas, sobretudo, em contestar a fundamentação do que é, em afetar o que é com uma espécie de suspensão e neutralização capazes de nos abrir, para além do que é dado, uma nova perspectiva não dada. O melhor exemplo evocado por Freud é o do fetichismo: o fetiche é a imagem ou o substituto de um falo feminino, quer dizer, um meio pelo qual se denega que à mulher falta o pênis. O fetichista, por exemplo, elege como fetiche o último objeto que viu, em criança, antes de se aperceber da ausência (o sapato, por exemplo, para um olhar que sobe a partir do pé); e o retorno a esse objeto, a esse ponto de partida, lhe permitiria manter, de direito, a existência do órgão contestado. O fetiche, então, de forma alguma seria um símbolo, mas algo como um plano fixo e estático, uma imagem parada, uma fotografia a que se volta para conjurar as consequências importunas do movimento, as descobertas importunas de determinada exploração: representaria aquele último momento em que ainda se podia acreditar… Nesse sentido, parece que o fetichismo é, de início, denegação (não, não falta pênis à mulher); em segundo lugar, neutralização defensiva (pois, contrariamente ao que se passa numa negação, o

conhecimento da situação real subsiste, mas é de certa forma suspenso, neutralizado); e, em terceiro lugar, neutralização protetora, idealizadora (pois, por sua vez, a crença num falo feminino põe-se por si mesma à prova, fazendo valer os direitos do ideal contra o real, neutralizase ou se suspende no ideal, para mais eficazmente anular os ataques que o conhecimento da realidade poderia lhe trazer). O fetichismo, assim definido pelo processo de denegação e de suspense, é parte essencial do masoquismo. A questão “É parte também do sadismo?” é muito complexa. É certo que muitos assassinatos sádicos são acompanhados por rituais (por exemplo, rasgões brutais de roupas que não se explicam pela luta); mas seria errado falar de ambivalência sadomasoquista, tratando-se da relação que o fetichista possa eventualmente apresentar com o fetiche. Seria uma forma fácil de se obter uma entidade sádica masoquista. É uma tendência frequente confundir duas violências bem diversas: uma violência possível com relação ao fetiche e uma outra violência que incide somente sobre a escolha e a constituição do fetiche enquanto tal (como acontece com os “cortadores de tranças”).a Tenho a impressão, em todo caso, de que o fetichismo integra o sadismo apenas de maneira secundária e deformada: na medida em que rompe sua relação única essencial com a denegação e o suspense, para passar a um contexto inteiramente diverso, o do negativo e da negação, servindo para a condensação sádica. Por outro lado, não existe masoquismo sem fetichismo em seu primeiro sentido. A maneira como Masoch define seu idealismo ou “suprassensualismo” parece à primeira vista banal: não se trata, diz ele em A mulher divorciada, de acreditar que o mundo é perfeito, mas, pelo contrário, de “criar asas” e escapar do mundo pelo sonho. Não se trata então de negar o mundo ou de destruí-lo, tampouco de

idealizá-lo; trata-se de denegá-lo, de deixá-lo em suspenso pela denegação, para se abrir a um ideal, por sua vez suspenso na fantasia. Contesta-se a fundamentação do real para fazer surgir um puro fundamento ideal: é uma operação inteiramente conforme ao espírito jurídico do masoquismo. Que esse processo conduza essencialmente ao fetichismo não é surpreendente. Os principais fetiches de Masoch e dos seus heróis são as peles, os sapatos, o próprio chicote, alguns capacetes estranhos com que ele gostava de “enfeitar” as mulheres, as roupas de fantasia em A Vênus das Peles. Na cena de A mulher divorciada que citamos mais acima, vê-se aparecer a dupla dimensão do fetiche e a dupla suspensão que lhe corresponde: uma parte do sujeito conhece a realidade, mas deixa em suspenso esse conhecimento, enquanto a outra parte deixa a si mesma em suspenso no ideal. Desejo de observação científica e depois contemplação mística. Mais ainda, o processo de denegação masoquista vai tão longe que afeta o prazer sexual enquanto tal: protelado ao máximo, o prazer implica uma denegação que permite ao masoquista, no momento mesmo do seu gozo, denegar-lhe a realidade para se identificar com o “novo homem sem sexualidade”. Nos romances de Masoch, tudo culmina no suspense. Não é exagero dizer que ele introduziu no romance a arte do suspense como força motriz romanesca em estado puro: não apenas porque os ritos masoquistas de suplício e de sofrimento implicam verdadeiras suspensões físicas (o herói é dependurado, crucificado, suspenso), mas porque a mulher-carrasco assume poses estáticas que a identificam com uma estátua, um retrato ou uma foto. E porque ela suspende o gesto da chicotada ou o de entreabrir o casaco de peles. E porque ela se reflete num espelho que congela seu gesto. Veremos que essas cenas “fotográficas”, essas imagens refletidas e paralisadas, têm grande importância, e de um duplo ponto de vista: o do masoquismo em geral e

o da arte de Masoch em particular. Constituem uma das contribuições criadoras de Masoch ao romance. É também numa espécie de cascata paralisada que as mesmas cenas, em Masoch, são retomadas em planos diferentes: assim é em A Vênus, no ponto em que a grande cena da mulhercarrasco é sonhada, representada, posta seriamente em ação, distribuída e deslocada para personagens diversos. O suspense estético e dramático em Masoch opõe-se à reiteração mecânica e acumuladora, tal como ela se apresenta em Sade. E, de fato, observa-se que a arte do suspense sempre nos coloca do lado da vítima, leva-nos a nos identificarmos com ela, enquanto a acumulação e a precipitação na repetição nos transportam para o lado dos carrascos, nos levam a uma identificação com o carrasco sádico. A repetição, portanto, tem no sadismo e no masoquismo duas formas inteiramente diferentes, encontrando o seu sentido na aceleração e condensação sádicas, ou na “fixidez” e suspense masoquistas. Isto já explicaria a ausência de descrições obscenas em Masoch. A função descritiva subsiste, mas a obscenidade é denegada e suspensa, com as descrições de certa forma deslocadas do objeto propriamente para o fetiche, de uma parte do objeto para outra, de uma parte do sujeito para outra. Apenas subsiste uma carregada e estranha atmosfera, como um perfume pesado demais, que se espalha no suspense e resiste a todos os deslocamentos. De Masoch, ao contrário de Sade, pode-se dizer que nunca ninguém foi tão longe com tanta decência. Esse é o outro aspecto da criação romanesca de Masoch: um romance de atmosfera, uma arte de sugestão. Os cenários de Sade, os castelos sádicos se encontram sob as leis brutais da sombra e da luz, que aceleram os gestos dos seus cruéis habitantes. Mas os cenários de Masoch, com pesadas tapeçarias, entulhamento íntimo, boudoirs e quartos de vestir, fazem reinar um claro-escuro em que se destacam

apenas os gestos e os sofrimentos em suspense. Em Masoch e em Sade há duas artes, tanto quanto duas linguagens inteiramente diferentes. Tentemos resumir essas primeiras diferenças: na obra de Sade as palavras de ordem e as descrições se superam, buscando uma função demonstrativa mais elevada; essa função demonstrativa repousa no conjunto do negativo como processo ativo e da negação como Ideia da razão pura; ela opera conservando e acelerando a descrição, saturando-a de obscenidade. Na obra de Masoch, palavras de ordem e descrições se superam também, buscando uma função mítica ou dialética mais elevada; essa função repousa no conjunto da denegação como processo reativo e no suspense, como Ideal da imaginação pura; tanto assim que as descrições subsistem, mas deslocadas, fixadas, tornadas sugestivas e decentes. A distinção fundamental entre o sadismo e o masoquismo vem à tona nos dois processos comparados: do negativo e da negação, por um lado; da denegação e do suspensivo, por outro. Se o primeiro representa a maneira especulativa e analítica de captar o instinto de morte, uma vez que ele não pode nunca ser dado, o segundo representa a maneira inteiramente diferente, mítica e dialética, imaginária.

a Cortar uma trança, nesse sentido, não parece de forma alguma

implicar qualquer hostilidade com relação ao fetiche; é antes uma condição para a constituição do fetiche (isolação, suspense). Não podemos aludir aos cortadores de tranças sem apontar um problema de psiquiatria, historicamente importante. Psychopathia sexualis, de Krafft-Ebing, revista por Moll, é a grande compilação dos mais abomináveis casos de perversão, para uso de médicos e juristas, como seu subtítulo indica. Atentados e crimes, bestialidades, estripamentos e necrofilias são relatados, sempre com o necessário sangue-frio científico, sem nenhuma paixão nem julgamento de valor. Contudo, em determinado ponto o tom muda: “Um perigoso fetichista de tranças espalhava medo em Berlim…” E

segue o comentário: “São pessoas tão perigosas que seria absolutamente necessário interná-las num asilo, até uma eventual cura. De maneira alguma merecem uma piedade ilimitada …, e, quando penso na imensa dor causada a uma família em que a filha foi privada dos seus belos cabelos, fico absolutamente impossibilitado de compreender que não se conserve indefinidamente tais pessoas num asilo … Esperemos que a nova lei penal traga uma melhoria com relação a isto.” (p.830) Uma tal explosão de indignação, contra uma perversão no entanto modesta e sem tanta gravidade, leva-nos a crer que fortes motivações pessoais inspiraram o autor a se desviar do seu método científico ordinário. Pode-se então concluir que, na altura dessa observação 396, os nervos do psiquiatra se abalaram — o que deve servir de lição para todo mundo.

Até onde vai a complementariedade entre Sade e Masoch Com Sade e Masoch, a literatura serve para nomear não o mundo, pois isto já estava feito, mas uma espécie de duplo do mundo, capaz de acolher sua violência e seu excesso. Em geral se diz que o que há de excessivo numa excitação é, de certa maneira, erotizado. Daí a vocação do erotismo para servir de espelho ao mundo, refletindo seus excessos, extrair suas violências, propondo-se a “espiritualizá-las” e tendo essa tarefa facilitada por colocá-la a serviço dos sentidos (Sade, em A filosofia na alcova, distingue duas espécies de maldades, uma estúpida e disseminada no mundo, outra depurada, refletida, que se tornou “inteligente” de tanto ser sensualizada). E as palavras dessa literatura, por sua vez, formam na linguagem uma espécie de duplo da linguagem, capaz de fazê-la agir diretamente sobre os sentidos. O mundo de Sade é, de fato, um duplo perverso, em que se admite que todo o movimento da natureza e da história se acha refletido, desde as origens até a revolução de 1789. No fundo do seu castelo isolado e amuralhado, os heróis de Sade pretendem reconstituir o mundo e reproduzir a “história do coração”. Evocam a natureza e o costume; recolhem todas as forças de ambos, seja na África, na Ásia, na Antiguidade, em toda parte, para daí extrair a verdade sensível ou a finalidade propriamente sensual. Ironicamente, chegam inclusive a fornecer o ânimo que ainda faltava aos franceses para se tornarem “republicanos”. Há uma mesma ambição em Masoch: toda a natureza e toda a história devem se refletir no duplo perverso, desde as origens até as revoluções de 1848 no Império Austríaco. “O amor cruel através das idades…” As minorias do Império Austríaco são para Masoch uma inesgotável reserva de costumes e de destinos (daí os contos

galicianos, húngaros, poloneses, judeus, prussianos que formam a maior parte da sua obra). Sob o título geral O legado de Caim, Masoch concebeu uma obra “total”, um ciclo de novelas representando a história natural da humanidade, comportando seis grandes temas: o amor, a propriedade, o dinheiro, o Estado, a guerra e a morte. Cada uma dessas forças deveria ser trazida à sua crueldade sensível imediata; e sob o signo de Caim, no espelho de Caim, ficaria claro que os grandes príncipes, os generais e os diplomatas merecem a prisão e a forca, tanto quanto os assassinos.5 E Masoch imaginava faltar aos eslavos uma bela déspota, uma czarina terrível, para assegurar o triunfo das revoluções de 1848 e unificar o pan-eslavismo… Eslavos, mais um esforço se quiserem ser revolucionários. Até onde vai a cumplicidade, a complementariedade entre Sade e Masoch? A entidade sadomasoquista não foi inventada por Freud, podemos encontrá-la em Krafft-Ebing, em Havelock Ellis, em Féré. O fato de haver uma estranha relação entre o prazer em fazer o mal e o prazer em sofrêlo, os memorialistas e os médicos já o haviam pressentido. E bem mais: o “encontro” do sadismo com o masoquismo, o apelo que eles fazem um ao outro parece claramente inscrito tanto na obra de Sade quanto na de Masoch. Há uma espécie de masoquismo nos personagens de Sade: em Os 120 dias de Sodoma, são descritos suplícios e humilhações que os libertinos infligem a si próprios. O sádico gosta tanto de ser chicoteado quanto de chicotear; Saint-Fond, em Juliette, é atacado e flagelado por homens que ele próprio encarregara disso; e Borghèse vocifera: “Eu bem queria que meus descaminhos me levassem, como se fosse a última das criaturas, ao destino que merece o abandono; inclusive o cadafalso seria para mim o trono das volúpias.” De maneira inversa, há uma espécie de sadismo no masoquismo: no final das suas provações, Séverin, o herói de A Vênus das Peles, se diz curado; ele chicoteia e

tortura as mulheres, e se quer “martelo” em vez de “bigorna”. Mas já é possível notar que, em ambos os casos, a transformação se dá no fim da experiência. O sadismo de Séverin é uma conclusão: parece que, de tanto expiar e satisfazer a necessidade de expiação, o herói masoquista aceita, finalmente, fazer o que as punições deviam impedir. Expostos, os sofrimentos e os castigos tornam possível o exercício do mal que deviam proibir. O “masoquismo” do herói sádico, por sua vez, surge no final dos exercícios sádicos, como limite extremo e sanção de infâmia gloriosa que vem coroá-los. O libertino não teme que façam com ele o que ele faz aos outros. As dores que lhe infligem são prazeres últimos, e não porque venham satisfazer uma necessidade de expiação ou qualquer sentimento de culpa, mas, pelo contrário, porque o confirmam num poder inalienável e lhe garantem uma certeza suprema. Sob injúrias e humilhações, em plena dor, o libertino não expia, mas, diz Sade, “goza em seu interior por ter ido longe o bastante, a ponto de merecer ser assim tratado”. Maurice Blanchot sublinhou todas as consequências de tal paroxismo: “É por isso que, apesar da analogia das descrições, parece justo deixar a Sacher-Masoch a paternidade do masoquismo e a Sade, a do sadismo. Nos heróis de Sade, o prazer do aviltamento nunca altera o controle que eles têm, e a abjeção coloca-os mais alto; todos esses sentimentos que se chamam vergonha, remorso, gosto pelo castigo lhes são estranhos.”6 Parece então difícil falar, em geral, da transformação do sadismo em masoquismo, e vice-versa. Nota-se, sobretudo, uma dupla produção paradoxal: produção humorística de um certo sadismo, no final do masoquismo, e produção irônica de um certo masoquismo no final do sadismo. Mas é improvável que o sadismo do masoquista seja o de Sade, e o masoquismo do sádico, o de Masoch. O

sadismo do masoquismo impõe-se de tanto expiar; e o masoquismo do sadismo, apenas sob a condição de não expiar. Precipitadamente afirmada, a unidade sadomasoquista corre o risco de ser uma síndrome grosseira, não respondendo às exigências de uma verdadeira sintomatologia. Não faria o sadomasoquismo parte dos distúrbios de que falávamos antes, que têm apenas uma coerência aparente, mas devem ser dissociados, com quadros clínicos exclusivos para cada um? Não se deve, de modo precipitado, achar que se deu cabo dos problemas de sintomas. Às vezes temos de voltar à estaca zero, para dissociar uma síndrome que confundia e arbitrariamente unia sintomas bem diversos. Foi nesse sentido que antes perguntamos se não haveria, em Masoch, um grande clínico, tendo ido mais longe que o próprio Sade e trazendo todo tipo de razões e intuições capazes de dissociar a pseudounidade. Na base da crença na unidade, não existiriam, antes de tudo, equívocos e facilidades deploráveis? Pois pode parecer evidente que um sádico e um masoquista devam se encontrar. O fato de um gostar de fazer sofrer e o outro, de sofrer parece definir uma tal complementariedade que seria pena o encontro não se produzir. Conta-se como anedota que um sádico e um masoquista se encontram; o masoquista diz: “Bata em mim”, e o sádico responde: “Não bato.” Dentre tantas anedotas esta é particularmente estúpida: não apenas por ser impossível, mas por estar repleta de uma tola pretensão na avaliação do mundo das perversões. De qualquer forma, ela é impossível. Nunca um sádico de verdade aceitaria uma vítima masoquista (em Justine, uma das vítimas dos monges assinala: “Eles querem ter certeza de que seus crimes custarão lágrimas; mandariam embora alguém que voluntariamente se entregasse a eles”). Mas um masoquista também não aceitaria um carrasco realmente sádico. Sem dúvida ele

precisa, para a mulher-carrasco, que ela tenha algo assim em sua natureza; mas ele quer formar essa “natureza”, educá-la, persuadi-la de acordo com o seu projeto secreto, que fracassaria completamente com uma sádica. Wanda Sacher-Masoch erradamente se espantou ao ver que Sacher-Masoch não se interessava por uma amiga sádica; e os críticos, de modo inverso, erram achando que Wanda mente ao se descrever, não sem malícia e certa inabilidade, atribuindo-se uma imagem vagamente inocente. Sem dúvida há personagens sádicos que têm um papel no conjunto da situação masoquista. Os romances de Masoch, veremos, oferecem vários exemplos. Mas esse papel nunca é direto e só pode ser compreendido numa situação conjuntural preexistente. A mulher-carrasco desconfia do personagem sádico que lhe propõe ajuda, como se pressentisse a incompatibilidade das duas atividades. Em A pescadora de almas, a heroína Dragomira deixa claro, ao responder ao cruel conde Boguslav Soltyk, que achava ser ela própria sádica e cruel: “Você causa o sofrimento por crueldade, enquanto que eu castigo e mato em nome de Deus, sem piedade, mas sem ódio.” Na verdade, tendemos a facilmente negligenciar essa evidência: se a mulher-carrasco no masoquismo não pode ser sádica, é precisamente por estar dentro do masoquismo, por ser parte da situação masoquista, um elemento realizado da fantasia masoquista: ela pertence ao masoquismo. Não que tenha os mesmos gostos que a vítima, não nesse sentido, mas por ter um “sadismo” que nunca se encontra no sádico, e que funciona como o duplo ou o reflexo do masoquismo. Pode-se dizer o mesmo do sadismo: a vítima não pode ser masoquista, não apenas porque o libertino fica despeitado se ela tiver prazer, mas porque a vítima do sádico pertence inteiramente ao sadismo, integra a situação e estranhamente se coloca como o duplo do carrasco sádico (prova disso, em Sade, os

dois grandes livros que se autorrefletem, e em que a corrompida e a virtuosa, Juliette e Justine, são irmãs). Quando se misturam sadismo e masoquismo, são abstraídas duas entidades, a sádica, independentemente do seu mundo, e a masoquista, independentemente do seu, e achase simples que as duas abstrações se componham juntas, uma vez privadas de sua Umwelt, de sua carne e de seu sangue. Está fora de cogitação dizer que a vítima do sádico é também sádica; assim como “a” carrasco do masoquista é masoquista também. Mas devemos recusar a alternativa mantida por Krafft-Ebing: A mulher-carrasco é uma verdadeira sádica ou finge ser. Defendemos que a mulhercarrasco pertence totalmente ao masoquismo, ela certamente não é um personagem masoquista, mas é um puro elemento do masoquismo. Ao distinguir numa perversão o sujeito (a pessoa) e o elemento (a essência), podemos compreender como alguém escapa de seu destino subjetivo, mas só parcialmente, mantendo o papel de elemento na situação a seu gosto. A mulher-carrasco escapa de seu próprio masoquismo tornando-se “masoquizante” na situação. O erro é acreditar que ela é sádica ou até mesmo que se faça de sádica. O erro é acreditar que o personagem masoquista encontra, como num feliz acaso, um personagem sádico. Cada sujeito de determinada perversão precisa do “elemento” da mesma perversão, e não de um sujeito de outra perversão. Toda vez que se faz uma observação sobre um tipo de mulhercarrasco no contexto do masoquismo, percebemos que ela não é sádica de verdade nem falsa sádica, mas algo bem diferente, que pertence essencialmente ao masoquismo sem realizar sua subjetividade, encarnando o elemento do “fazer sofrer” numa perspectiva exclusivamente masoquista. Daí os heróis de Masoch e o próprio Masoch estarem sempre em busca de uma certa “natureza” de

mulher, difícil de se encontrar: o masoquista-sujeito precisa de uma certa “essência” do masoquismo, realizada numa natureza de mulher que renuncia a seu próprio masoquismo subjetivo; ele absolutamente não tem necessidade de um outro sujeito sádico. Na verdade, quando se fala de sadomasoquismo não se faz simplesmente alusão a um encontro externo entre pessoas. Nada impede, porém, que o tema de um encontro externo continue a agir, nem que seja apenas a título de “chiste” flutuando no inconsciente. Como Freud desenvolveu e renovou a ideia de sadomasoquismo, ao retomá-la? O primeiro argumento apresentado foi o de um encontro interior, no mesmo sujeito, entre instintos e pulsões. “Aquele que, nas relações sexuais, tem prazer em infligir dor é capaz também de gozar com a dor que ele mesmo pode vir a sentir. Um sádico é sempre, ao mesmo tempo, um masoquista, o que não impede que o lado ativo ou o lado passivo da perversão possa predominar e caracterizar a atividade sexual que prevalece.”7 O segundo argumento é o de uma identidade de experiência: o sádico, enquanto tal, só poderia ter prazer em causar dor porque, anteriormente, teria vivido a experiência física de uma ligação entre o prazer e a dor sentidos por ele próprio. Esse argumento torna-se ainda mais curioso porque Freud o enuncia na perspectiva da sua primeira tese, com o sadismo precedendo o masoquismo. Mas ele distingue duas espécies de sadismo: um de pura agressividade, que procura somente o triunfo; e outro hedonista, que busca a dor alheia. É entre os dois que se insere a experiência do masoquista, a relação vivida do seu prazer com a própria dor: o sádico nunca teria a ideia de encontrar prazer na dor do outro se não tivesse sentido antes, “masoquistamente”, a relação da sua dor com o prazer.8 De modo que o primeiro esquema de Freud é mais complexo do que parece, pondo em jogo a seguinte ordem: sadismo de

agressividade – retorno contra si mesmo – experiência masoquista – sadismo hedonista (por projeção e regressão). Podemos observar que o argumento de identidade de experiência já era evocado pelos libertinos de Sade, que com isso traziam sua contribuição à pretensa unidade sadomasoquista. Coube a Noirceuil explicar que o libertino sente a própria dor em relação à excitação do seu “fluido nervoso”: por que, então, nos surpreendermos se um homem com tais características “imagina atiçar o objeto que serve a seu prazer pelos meios que a ele próprio afetam”? O terceiro argumento é transformista: consiste em mostrar que as pulsões sexuais, tanto em suas finalidades quanto em seus objetos, podem passar uma à outra ou diretamente se transformar (reviramento em seu contrário, reviramento contra si…). Nesse ponto, é ainda mais curioso que Freud tenha, em geral, uma atitude extremamente reservada diante do transformismo: por um lado, ele não acredita em tendência evolutiva; e por outro, o dualismo que ele sempre haveria de manter em sua teoria das pulsões acaba singularmente limitando a possibilidade das transformações, que jamais se fazem entre um grupo e outro de pulsões. Assim, em O eu e o isso, ele explicitamente recusa a hipótese de uma transformação direta do amor em ódio e do ódio em amor, porque esses instintos dependem de pulsões qualitativamente distintas (Eros e Tânatos). Freud, aliás, está bem mais próximo de Geoffroy Saint-Hilaire do que de Darwin. Fórmulas como “ninguém se torna perverso, apenas continua” são calcadas em Geoffroy, referindo-se aos monstros; e os dois grandes conceitos de fixação e de regressão vêm diretamente da teratologia de Geoffroy (“parada do desenvolvimento” e “retrogradação”). Ora, o ponto de vista de Geoffroy exclui qualquer evolução como transformação direta: existe apenas uma hierarquia de tipos e de formas possíveis, na

qual os seres param mais ou menos cedo e à qual regressam mais ou menos profundamente. Do mesmo modo em Freud: as combinações das duas espécies de pulsões representam toda uma hierarquia de figuras, na ordem das quais os indivíduos param mais ou menos cedo e às quais eles mais ou menos regressam. Torna-se ainda mais notável que, a propósito das perversões, Freud pareça aceitar todo um polimorfismo e possibilidades de evolução e de transformação direta, que fora daí ele recusa, no domínio das formações neuróticas e das formações culturais. Tudo isso para dizer que o tema de uma unidade sadomasoquista, pelos argumentos de Freud, é problemático. Até mesmo a noção de pulsão parcial é perigosa quanto a isso, pois tende a nos levar a esquecer a especificidade dos tipos de comportamento sexual. Esquecemos que toda a energia disponível de um sujeito encontra-se mobilizada em alguma determinada perversão. Sádico ou masoquista, provavelmente cada um deles atua dentro de um drama suficiente e completo, com personagens diferentes e sem nada que possa fazê-los se comunicar, nem do interior nem no exterior. Bem ou mal, somente o normal se comunica. Do ponto de vista das perversões, é um erro comum confundir as formações, as expressões concretas e específicas, com uma “grade” abstrata, como uma matéria libidinosa comum que nos faria passar de uma expressão a outra. É um fato, ao que dizem, que uma mesma pessoa sente prazer nas dores que inflige e naquelas que sofre. Mais ainda: é um fato, ao que dizem, que a pessoa que gosta de fazer sofrer sente, no mais profundo de si, a relação do prazer com o seu próprio sofrimento. A questão é saber se tais “fatos” não são abstrações. Abstrai-se a relação prazer–dor das condições formais concretas em que ela se estabelece. Considera-se a mistura prazer–dor como uma espécie de matéria neutra, comum ao sadismo e ao masoquismo. Isola-se inclusive uma

relação mais particular, “seu prazer–sua própria dor”, que se supõe igualmente vivida, identicamente vivida pelo sádico e pelo masoquista, independentemente das formas concretas de que ela resulta nos dois casos. Não seria por abstração que se parte assim de uma “matéria” comum, que antecipadamente justifica todas as evoluções e transformações? Se for verdade (e não é improvável que seja) que o sádico também sente prazer nas dores que sofre, sentiria ele esse prazer da mesma maneira que o masoquista? E se o masoquista também sente prazer nas dores que inflige, seria da maneira sádica? Voltamos sempre ao problema da síndrome: há síndromes que são apenas um nome em comum para distúrbios irredutíveis. Em biologia, aprende-se o quanto se deve tomar cuidado antes de afirmar a existência de uma linha de evolução. Uma analogia de órgãos não implica necessariamente a passagem de um para outro; e é deplorável “fazer evolucionismo”, encadeando numa mesma linha resultados aproximadamente contínuos, mas que implicam formações irredutíveis, heterogêneas. Um olho, por exemplo, pode ser produzido de várias maneiras independentes, no fim de séries divergentes, como resultado análogo de mecanismos inteiramente diferentes. Não aconteceria o mesmo com relação ao sadismo e ao masoquismo, assim como com o complexo prazer–dor enquanto órgão que se supõe comum? O sadismo e o masoquismo não seriam de tal forma que o encontro deles se daria apenas no plano da analogia, com processo e formação inteiramente diferentes? O órgão que eles têm em comum, seu “olho”, não seria vesgo?

Masoch e as três mulheres As heroínas de Masoch têm em comum as formas opulentas e musculosas, o caráter altivo, a vontade imperiosa, uma certa crueldade, mesmo na ternura ou na ingenuidade. A cortesã oriental, a terrível czarina, a revolucionária húngara ou polonesa, a criada-patroa, a camponesa sármata, a mística gelada, a mocinha de boa família, todas vêm dessa mesma base. “Que seja princesa ou camponesa, que se vista com pele de arminho ou de carneiro, é sempre essa mulher das peles e do chicote que torna o homem seu escravo. É ela a minha criatura e, ao mesmo tempo, a verdadeira mulher sármata.”9 Mas, sob essa aparente monotonia, surgem três tipos, tratados por Masoch de forma bem diferente. O primeiro tipo é o da mulher pagã, a grega, a hetera ou Afrodite, geradora de desordem. Ela vive, é o que ela mesma diz, para o amor e a beleza, no instante. Sensual, ama quem lhe agrada e se entrega a quem ama. Quer a independência da mulher e a brevidade das relações amorosas. Evoca a igualdade entre os sexos: ela é hermafrodita. Mas é Afrodite, o princípio feminino, quem tem ganho de causa e, como Ônfale, efemina e veste Hércules com roupas femininas. Para ela, a igualdade é apenas o ponto crítico em que o domínio passa para o seu lado: “O homem treme assim que a mulher se iguala a ele.” Moderna, ela denuncia no casamento, na moral, na Igreja e no Estado as invenções masculinas a serem destruídas. É ainda quem surge num sonho, logo no início de A Vênus. E quem expõe sua longa profissão de fé, no início de A mulher divorciada. Em A sereia, ela aparece sob os traços de Zénobie, “soberana e coquete”, para abalar uma família patriarcal, inspirando nas mulheres da casa o desejo de

dominar, sujeitando o pai, cortando os cabelos do filho num curioso batismo e travestindo todo mundo. No outro extremo, o terceiro tipo é a sádica. Ela gosta de fazer sofrer, de torturar. Mas é notável que ela aja compelida por um homem, ou pelo menos em relação com um homem, correndo sempre o risco de se tornar vítima. Tudo se passa como se a grega primitiva encontrasse o seu grego, seu elemento apolíneo, sua pulsão viril sádica. Masoch fala frequentemente do personagem que ele chama de o Grego, ou mesmo Apolo, e que sobrevém como um terceiro, incitando a mulher a se comportar sadicamente. Em Fonte da juventude, a condessa Elisabeth Nadasdy suplicia jovens, em companhia do seu amante, o terrível Ipolkar, usando uma das raras máquinas que aparecem na obra de Masoch (uma mulher de aço, nos braços da qual o paciente é amarrado “e a bela inanimada começou sua obra, centenas de lâminas saíram do seu peito, dos seus braços, das suas pernas e dos seus pés …”). Em A hiena da Pussta, Anna Klauer exerce seu sadismo aliada ao chefe de um grupo de bandidos. Até mesmo A pescadora de almas, Dragomira, encarregada de castigar o sádico Boguslav Soltyk, se deixa persuadir de que é “da mesma raça [dele]” e pactua com ele. Em A Vênus, Wanda, a heroína, começa se imaginando a grega e acaba se acreditando sádica. No início, de fato, ela se identifica com a mulher do sonho, ela é a Hermafrodita. Numa bela fala, declara: A sensualidade serena dos gregos é para mim uma alegria isenta de dores, um ideal que tento realizar em minha vida. Pois não acredito nesse amor que o cristianismo e os modernos cavaleiros do espírito pregam. Sim, olhe bem para mim, sou pior que uma herege, sou uma pagã … Fracassaram todas as tentativas que buscaram — com cerimônias sagradas,

juras e contratos — garantir a duração do que há de mais movediço em toda a mobilidade do ser humano, o amor. Poderiam vocês me negar que o nosso mundo cristão entrou em decomposição? No final do romance, porém, ela se comporta como a sádica. Sob a influência do Grego, faz com que Séverin seja chicoteado pelo próprio Grego: Morro de vergonha e desespero. E o mais ignominioso é que sinto uma espécie de prazer fantástico e suprassensual nessa situação lamentável, entregue ao chicote de Apolo e desprezado pelo riso cruel de minha Vênus. Mas Apolo me livra de toda poesia e, golpe após golpe, afinal, trincando os dentes com impotente raiva, praguejo contra mim e contra minha imaginação voluptuosa, contra a mulher e contra o amor. É no sadismo, então, que o romance termina: Wanda foge com o Grego cruel, rumo a novas crueldades, enquanto Séverin se torna também sádico, ou, como ele diz, “martelo”. Fica claro, no entanto, que nem a mulher-hermafrodita nem a sádica representam o ideal de Masoch. Em A mulher divorciada, a pagã igualitária não é a heroína, mas a amiga da heroína; e as duas amigas, diz Masoch, são como “dois extremos”. Em A sereia, a imperiosa Zénobie, a hetera que traz a desordem, é vencida no final pela jovem Natalie, não menos imperiosa, mas de um gênero completamente diferente. No outro polo, a sádica também não satisfaz: em A pescadora de almas, Dragomira, por um lado, não tem um temperamento sádico, e, por outro, ao se aliar a Soltyk, ela decai, perde a razão de ser, deixa-se vencer e matar pela jovem Anitta, que representa um tipo mais conforme e mais fiel ao sonho de Masoch. Em A Vênus, vê-se bem que, mesmo que tudo tenha começado com o tema da hetera, e

que tudo termine sob o tema sádico, o essencial acontece entre os dois pontos, num outro elemento. Esses dois temas, na verdade, não exprimem o ideal masoquista, e sim os limites entre os quais esse ideal se movimenta e se suspende, como a oscilação de um pêndulo. Exprimem o limite em que o masoquismo ainda não começou o seu jogo e o limite em que o masoquismo perde sua razão de ser. Mais do que isso: do lado da própria mulher-carrasco, esses limites exteriores exprimem uma mescla de medo, de repugnância e de atração, significando que a heroína nunca está segura de poder se manter no papel que o masoquista lhe insufla, e pressente correr o risco, a cada instante, de cair no heterismo primitivo ou desaguar no sadismo final. Desse modo, Anna, em A mulher divorciada, declara-se fraca demais, caprichosa demais — capricho heterista — para cumprir o ideal de Julian. E Wanda, em A Vênus, só se torna sádica por não poder mais manter o papel que Séverin lhe impõe (“Você mesmo sufocou meus sentimentos com sua devoção romanesca e sua louca paixão …”). Qual, então, entre esses dois limites, é o elemento masoquista essencial, onde tudo que é importante transcorre? Qual é então o segundo tipo de mulher, entre a hetera e a sádica? Seria preciso juntar todas as anotações de Masoch para esboçar esse retrato fantástico e fantasístico. Num conto cor-de-rosa, “A estética do feio”, ele descreve da seguinte maneira uma mãe de família: “Uma mulher imponente, com ar severo, traços acentuados, olhar frio; nem por isso deixa de acalentar sua pequena ninhada.” E “Martscha”: “Como uma indiana ou uma tártara do deserto mongol, Martscha possuía, ao mesmo tempo, o coração meigo de uma pomba e os instintos cruéis da raça felina.” E “Lola”, que gosta de torturar os animais e deseja assistir ou até participar de execuções: “Apesar dos seus gostos tão peculiares, essa moça não era brutal nem excêntrica; sendo, pelo contrário,

razoável, meiga, e parecendo inclusive tão terna e delicada quanto uma sentimental.” Em A mãe de Deus, Mardonna, meiga e alegre, no entanto severa, fria e hábil em suplícios. “Seu belo rosto estava inflamado de raiva, mas seu olho grande e azul brilhava com doçura.” Já Vera Baranova é uma enfermeira altiva com o coração gélido, que ternamente fica noiva de um moribundo e acaba também morrendo na neve. “Ao luar”, enfim, entrega-nos o segredo da natureza: a própria natureza é fria, maternal e severa. É essa a trindade do sonho masoquista: frio-maternal-severo, gélido-sentimental-cruel. Essas determinações bastam para distinguir a mulher-carrasco de seus “duplos”, heterista e sádico. A sensualidade é substituída pela sentimentalidade suprassensual; a frieza e seus gelos substituem o calor e o fogo; uma rigorosa ordem, a desordem. No entanto, o herói sádico, tanto quanto o ideal feminino de Masoch, exige de si mesmo uma frieza essencial, que Sade denomina “apatia”. Mas um dos nossos problemas principais é precisamente saber se, do ponto de vista da crueldade propriamente, não há uma diferença radical entre a apatia sádica e a frieza do ideal masoquista, e se, ainda aí, uma assimilação precipitada não alimenta a abstração sadomasoquista. Não é absolutamente a mesma frieza. Uma, a da apatia sádica, se exerce essencialmente contra o sentimento. Todos os sentimentos, mesmo e sobretudo o de fazer mal, são denunciados como implicando uma perigosa dispersão, impedindo a energia de se condensar, de se precipitar no elemento puro da sensualidade impessoal demonstrativa. “Trate de tirar prazeres de tudo o que alarma seu coração…” Todos os entusiasmos, inclusive e principalmente o do mal, estão condenados por nos ligar à natureza segunda, revelando-se ainda como restos de bondade em nós. Os personagens sadistas são alvo da desconfiança dos verdadeiros libertinos, por manifestarem tendências que, mesmo em

pleno mal e voltadas para o mal, deixam que se perceba que poderiam ser “convertidos ao primeiro contratempo”. A frieza do ideal masoquista tem um sentido bem diferente: não mais negação do sentimento, e sim denegação da sensualidade. Tudo se passa, dessa vez, como se a sentimentalidade assumisse o papel superior do elemento impessoal, e a sensualidade nos mantivesse prisioneiros das particularidades e das imperfeições da natureza segunda. O ideal masoquista tem como função o triunfo da sentimentalidade no gelo e pelo frio. De certa maneira, o frio recalca a sensualidade pagã e mantém a distância a sensualidade sádica. A sensualidade é denegada, deixando de existir como sensualidade; e por isso Masoch anuncia o nascimento de um novo homem “sem amor sexual”. O frio masoquista é um ponto de congelamento, de transmutação (dialética). Divina latência que corresponde à catástrofe glacial. O que subsiste sob o frio é a sentimentalidade suprassensual, rodeada de gelo e protegida por peles; e essa sentimentalidade, por sua vez, brilha através do gelo como princípio de uma ordem geratriz, como cólera e crueldade específicas. Daí essa trindade de frieza, sentimentalidade e crueldade. O frio é, ao mesmo tempo, meio protetor e medium, casulo e veículo: ele protege a sentimentalidade suprassensual como vida interior e a exprime como ordem exterior, como Cólera e Severidade. Masoch leu o seu contemporâneo Bachofen, grande etnólogo e jurista hegeliano. Não teria sido nessa leitura, assim como na de Hegel, que o sonho inicial de A Vênus teve seu ponto de partida? Bachofen distinguia três etapas. A primeira é a etapa heterista, afrodítica, formada no caos de pântanos luxuriantes, feita de relações múltiplas e caprichosas entre a mulher e os homens, mas onde o princípio feminino domina, com o pai sendo “Ninguém” (essa etapa, particularmente representada pelas cortesãs reinantes da Ásia, sobreviveria em instituições como a

prostituição sagrada). O segundo momento, demetérico, tem sua aurora nas sociedades de amazonas; instaura uma ordem ginecocrática e agrícola severa, em que os pântanos são secos; o pai e o marido adquirem uma posição, mas sempre sob a dominação da mulher. Finalmente, o sistema patriarcal ou apolíneo se impõe, mas fazendo degenerar o matriarcado nas formas corrompidas amazônicas ou até dionisíacas.10 Nessas três etapas, encontram-se facilmente os três tipos femininos de Masoch: o primeiro e o terceiro foram colocados por ele como limites entre os quais o segundo oscila, com seu esplendor e sua perfeição precários. A fantasia encontra aqui o que precisa: uma estrutura teórica, ideológica, que a valoriza como concepção geral da natureza humana e do mundo. Definindo a arte do romance, Masoch dizia ser preciso ir da “figura” ao “problema”: partir da fantasia obsedante para se alçar até o problema, até a estrutura teórica em que o problema se coloca.11 Como se passa do ideal grego ao ideal masoquista, da desordem e da sensualidade heterista à nova ordem, à sentimentalidade ginecocrática? Evidentemente pela catástrofe glacial, que simultaneamente dá conta do recalque da sensualidade e do brilho da severidade. Na fantasia masoquista, as peles mantêm sua função utilitária: “menos por pudor do que por medo de apanhar um resfriado”… “Em nossos países abstratos do Norte, em nosso mundo cristão gelado, Vênus tem de se esconder num bom casaco de peles se não quiser se resfriar.” As heroínas de Masoch frequentemente espirram. “Corpo de mármore”, “mulher de pedra”, “Vênus de gelo” são as expressões favoritas de Masoch; e seus personagens muitas vezes fazem sua aprendizagem com alguma estátua fria, sob o luar. A mulher do sonho, no início de A Vênus, exprime em sua fala a nostalgia romântica do mundo grego como mundo perdido:

O amor como alegria perfeita e serenidade divina nada vale para vocês, homens modernos, filhos da reflexão. Para vocês, ele é um desastre. Quando querem ser naturais, tornam-se grosseiros … Permaneçam em suas brumas nórdicas e no incenso do cristianismo; deixem o nosso mundo pagão descansar sob a lava vulcânica e as ruínas; sem nada exumar de nós. Não foi para vocês que Pompeia, com nossas moradas, termas e templos, foi construída. Vocês não têm necessidade dos deuses! Aqui, com vocês, morremos de frio! Ela exprime o essencial: a catástrofe glacial recobriu o mundo grego e tornou impossível a Grega. Fez-se um duplo recuo: ao homem resta apenas sua natureza grosseira, e ele só vale pela reflexão; a mulher tornou-se sentimental face à reflexão, e severa contra a grosseria. A frieza, o gelo, tudo fez: tornou a sentimentalidade objeto da reflexão do homem e a crueldade, o castigo de sua grosseria. Nessa fria aliança, a sentimentalidade e a crueldade femininas fazem o homem refletir, e é o que constitui o ideal masoquista. Tanto em Masoch como em Sade existem duas naturezas, mas repartidas de modo bem diferente. A natureza grosseira passa a ser marcada pela particularidade do capricho: violência e malícia, ódio e destruição, desordem e sensualidade estão sempre presentes. Mais além, contudo, começa a grande natureza impessoal e refletida, sentimental e suprassensual. No prólogo de Contos galicianos, um “errante” acusa a má natureza. E a própria natureza responde, dizendo não nos ser hostil, não nos odiar nem mesmo na morte, mas apenas nos apresentar, sempre, seu triplo rosto frio, maternal, severo… A natureza é a própria estepe. As descrições que Masoch faz da estepe são belíssimas. Sobretudo a das páginas iniciais de “Frinko Balaban”: na identidade da

estepe, do mar e da mãe, trata-se sempre de mostrar que a estepe é o que sepulta o mundo grego da sensualidade e, ao mesmo tempo, repele o mundo moderno do sadismo, como potência de resfriamento que transforma o desejo e transmuta a crueldade. É o messianismo, o idealismo da estepe. Nem por isso vamos achar que a crueldade do ideal masoquista seja menor que a crueldade primitiva ou a sádica, menor que a crueldade de capricho ou a crueldade de maldade. É verdade que o masoquismo dá sempre uma impressão de teatralidade que não se encontra no sadismo. Mas o caráter teatral não significa que as dores sejam fingidas ou supérfluas, nem que a crueldade ambiente seja menor (os registros masoquistas relatam verdadeiros suplícios). O que define o masoquismo e a sua teatralidade é mais a forma singular da crueldade concentrada na mulher-carrasco; essa crueldade do Ideal, esse ponto específico do congelamento e da idealização. As três mulheres, segundo Masoch, correspondem às imagens fundamentais da mãe: a mãe primitiva, uterina, heterista, mãe das cloacas e dos pântanos, e a mãe edipiana, imagem da amante que vai estar em relação com o pai sádico, seja como vítima, seja como cúmplice — mas entre as duas, a mãe oral, mãe das estepes e grande nutriz, portadora da morte. Essa segunda mãe pode, da mesma forma, aparecer por último, pois, oral e muda, tem a última palavra. É assim que Freud a apresenta em “O tema dos três escrínios”, seguindo inúmeros temas mitológicos e folclóricos: “A mãe propriamente, a amante que o homem escolhe à sua imagem e, enfim, a Terra-Mãe que o toma de volta … Das filhas do destino, apenas a terceira, a silenciosa deusa da morte, o recolhe em seus braços.” Mas seu verdadeiro lugar é entre as outras duas, apesar de ela necessariamente ser deslocada por alguma inevitável ilusão de perspectiva. Acredito, no que se refere a esse ponto de vista, que a tese geral de Bergler é inteiramente

fundamentada: o elemento próprio do masoquismo é a mãe oral12 — o ideal de frieza, de solicitude e de morte, entre a mãe uterina e a mãe edipiana. Torna-se ainda mais importante saber por que, então, tantos psicanalistas querem, a todo custo, reencontrar a imagem do pai disfarçada no ideal masoquista e desmascarar a presença paterna na mulher-carrasco?

Pai e mãe Para se convencer do papel do pai, não basta dizer que o masoquista tende a muito facilmente incriminar a mãe e exibir um conflito materno, e que tanta espontaneidade é suspeita. São argumentos que têm o inconveniente de conceber todas as resistências por meio do recalque; aliás, o deslocamento que consistisse em passar de uma mãe para outra seria igualmente eficaz para confundir as pistas. Não basta tampouco lembrar a musculatura ou as peles da mulher-carrasco como provas de uma imagem compósita. Na verdade, seria preciso que sérios argumentos fenomenológicos ou sintomatológicos comprovassem a presença do pai. Mas, pelo contrário, são dadas como satisfatórias razões que pressupõem toda uma etiologia e, com isso, toda a pseudounidade entre o sadismo e o masoquismo. Supõe-se que a imagem do pai é determinante no masoquismo por ela ser determinante no sadismo, e que se deve encontrar num o que age no outro, dadas as inversões, as projeções e as misturas propriamente masoquistas. Parte-se então da ideia de que o masoquista se coloca no lugar do pai e quer se apossar da potência viril (etapa sádica). Em seguida, um primeiro sentimento de culpa, um primeiro medo da castração como castigo, o faria renunciar a essa tarefa ativa, para tomar o lugar da mãe e se oferecer ao pai. Mas, com isso, ele cairia numa segunda culpa, num segundo medo da castração, implicada dessa vez na iniciativa passiva; e, assim, o masoquista substitui o desejo de uma relação amorosa com o pai pelo “desejo de ser espancado”, o que não só representa uma punição mais leve, como se equivale à própria relação amorosa. Por que, no entanto, é a mãe que bate e não o pai? Por várias razões: primeiramente pela necessidade de afastar qualquer possibilidade homossexual patente demais;

depois, pela necessidade de conservar a primeira etapa, em que a mãe era o objeto cobiçado, mas ao mesmo tempo acrescentando-se o gesto punitivo do pai; e, por último, pela necessidade de reunir tudo numa demonstração que só se dirige ao pai (“Está vendo? Eu não queria tomar o seu lugar, é ela que me machuca, me castrando ou batendo em mim…”). Nessa sucessão de momentos, parece que o pai só continua a ser o personagem determinante porque tratamos o masoquismo como uma combinação de elementos muito abstratos, capazes de passar uns para os outros, de se transformar uns nos outros. Trata-se de um desconhecimento da situação concreta de conjunto, quer dizer, do universo de determinada perversão: uma etiologia precipitada impede a sintomatologia de fazer valer os seus direitos num diagnóstico realmente diferencial. Mesmo noções como as de castração e culpa são utilizadas facilmente demais, pois servem para subverter situações e fazer mundos realmente estranhos se comunicarem no abstrato. Tomam-se meios de equivalência e de tradução por sistemas de passagem e de transição. A ponto de um psicanalista profundo como Reik declarar: “Toda vez que tivemos a possibilidade de estudar algum caso particular, encontramos o pai ou o seu representante escondido na imagem da mulher que inflige o castigo.” Semelhante declaração exigiria um esclarecimento quanto ao que se entende por “escondido”, e em quais condições alguma coisa ou alguém se esconde na relação dos sintomas e das causas. O mesmo autor acrescenta: “Tendo considerado, controlado, pesado tudo isso, resta, no entanto, uma dúvida… Será que a camada mais antiga do masoquismo como fantasia e como ação não remontaria, afinal, à relação mãe–filho como a uma realidade histórica?” Mesmo assim, ele mantém o que diz ser a sua “impressão” concernindo ao papel determinante e constante do pai.13

Estaria se exprimindo como sintomatologista, como etiologista ou como criador abstrato de combinações? Volta a questão: a crença no papel do pai, na interpretação do masoquismo, não viria do preconceito sadomasoquista, e somente deste preconceito? É certo que o tema paterno e patriarcal é dominante no sadismo. As heroínas são numerosas nos romances de Sade, mas todas as suas ações, os prazeres que têm juntas e as atividades que concebem imitam o homem, exigem o olhar e a presidência do homem e são a ele dedicadas. O andrógino de Sade é feito da união incestuosa da filha com o pai. Sem dúvida encontramos em Sade tanto parricidas quanto matricidas. Mas não da mesma maneira. A mãe é identificada com a natureza segunda, formada por moléculas “medulosas”, submetida às leis da criação, da conservação e da reprodução. O pai, pelo contrário, só pertence a tal natureza por conservadorismo social. Em si próprio, ele se vincula à natureza primeira, acima dos reinos e das leis, constituída por moléculas furiosas ou despedaçantes, trazendo a desordem e a anarquia: pater sive Natura prima. O pai então só é assassinado por se afastar da sua natureza e da sua função, enquanto a mãe, quanto mais fiel for às suas, mais facilmente será assassinada. A fantasia sádica repousa sobre um tema que Klossowski analisou profundamente: o pai destruidor da própria família, levando a filha a supliciar e assassinar a mãe.14 É como se, de certa forma, no sadismo a imagem edipiana da mulher explodisse: a mãe assume o papel de vítima por excelência, sendo a filha promovida ao estado de cúmplice incestuosa. Com a família e a própria lei marcadas pela característica maternal da natureza segunda, o pai não pode ser pai se não se colocar acima das leis, dissolvendo a família e prostituindo seus familiares. Ele representa a natureza como potência original anárquica, que não pode ser devolvida a si mesma

senão pela destruição das leis e das criaturas segundas que a ele estão submetidas. Por esse motivo, o sádico não recua diante da sua finalidade, que é o fim efetivo de toda procriação, por ele denunciada como concorrente da natureza primeira. E as heroínas sádicas só existem pela união sodomita com o pai, numa aliança fundamental dirigida contra a mãe. Sob todos os aspectos, o sadismo apresenta uma negação ativa da mãe e uma expansão do papel do pai, o pai acima das leis… Freud indicava duas saídas, em A dissolução do complexo de Édipo: a saída ativa sádica, em que a criança se identifica com o pai, e a saída masoquista passiva, em que ela, ao contrário, assume o lugar da mãe e quer ser amada pelo pai. A teoria das pulsões parciais torna possível a coexistência dessas determinações e, desse modo, alimenta a crença na unidade sadomasoquista (Freud diz do Homem dos Lobos: “No sadismo, ele se apegava firmemente à sua identificação mais antiga com o pai; no masoquismo, o pai era escolhido como objeto sexual”). Entretanto, quando nos dizem que o verdadeiro personagem que espanca, no masoquismo, é o pai, devemos igualmente perguntar: e quem, antes de tudo, está sendo espancado? Onde está o pai escondido? Não estaria, antes, no espancado? O masoquista se sente culpado, procura ser espancado e expia; mas o quê e por quê? Não seria precisamente a imagem do pai, nele, que é miniaturizada, espancada, ridicularizada e humilhada? Não seria a semelhança com o pai que ele expia, a semelhança do pai? Não seria, o pai humilhado, a fórmula do masoquismo? Se assim for, o pai seria antes o espancado do que o espancador… Na fantasia das três mães, efetivamente, um ponto muito importante aparece: a triplicação da mãe tem como efeito transferir simbolicamente todas as funções paternas para imagens de mulher; o pai é excluído, anulado. Na maior parte dos romances de Masoch, uma

cena de caça é minuciosamente descrita: a mulher ideal caça um urso ou um lobo e retira a sua pele. A cena pode ser interpretada como expressão da luta e do triunfo da mulher contra o homem. Na verdade, não é o que se passa: quando o masoquismo começa, esse triunfo já se estabeleceu. O(A) urso(a) e a pele têm já uma significação feminina exclusiva. A mãe primitiva heterista é que foi caçada e escorchada, aquela anterior ao nascimento — com vantagem para a mãe oral, em prol de um renascimento, de um segundo nascimento partenogenético em que, como veremos, o pai não tem papel algum. É verdade que o homem ressurge no outro polo, nas imediações da mãe edipiana: uma aliança se faz entre a terceira mãe e o homem sádico — é o caso de Elisabeth e Ipolkar em Fonte da juventude, de Dragomira e Boguslav em A pescadora de almas, de Wanda e o Grego em A Vênus. Mas essa reintrodução do homem só é compatível com o masoquismo na medida em que a mãe edipiana mantém seus direitos e sua integridade: não somente o homem aparece sob uma forma efeminada e travestida (o Grego em A Vênus), mas, contrariamente ao que se passa no sadismo, é a imagem da mãe que é cúmplice, sendo a jovem essencialmente vítima (em Fonte da juventude, o herói masoquista deixa Elisabeth degolar Gisele, a jovem que ele ama). Se acontece de o homem sádico triunfar, como no final da Vênus, é para mostrar que o masoquismo já acabou, e que, pela linguagem de Platão, ele deve fugir ou morrer, sem jamais se unir a seu contrário, o sadismo. Mas a transferência das funções paternas nas três imagens da mãe é só um primeiro aspecto da fantasia, que encontra seu pleno sentido num outro elemento: a condensação de todas as funções, agora maternas, na segunda mãe, a mãe oral, a “boa mãe”. É um erro relacionar o masoquismo ao tema da mãe ruim. Mães ruins existem no masoquismo: a mãe uterina, a mãe edipiana, os

dois extremos do pêndulo. Mas o movimento inteiro do masoquismo consiste em idealizar as funções das mães ruins, comparando-as à boa mãe. Por exemplo, a prostituição pertence naturalmente à mãe uterina heterista. O herói sádico também faz dela uma instituição com a qual ele destrói a mãe edipiana e transforma a filha em cúmplice. Ao se encontrar em Masoch e no masoquismo um gosto análogo em prostituir a mulher, procurou-se ver nessa analogia, mais uma vez de forma precipitada, a prova de comunhão das naturezas. Pois no masoquismo o importante é que a função da prostituta seja assumida pela mulher honesta, pela mãe como boa mãe (a mãe oral). Wanda conta que Masoch a persuadia a arranjar amantes, a responder aos anúncios em classificados e a vender o corpo. Mas ele justificava assim tal desejo: “É uma coisa maravilhosa encontrar em sua própria, honesta e boa mulher volúpias que em geral precisa-se ir buscar nas libertinas.” É necessário que a mãe, em sua função oral, limpa, boa e honesta, assuma a função da prostituição que cabe naturalmente à mãe uterina. O mesmo com relação às funções sadizantes da mãe edipiana: é preciso que o sistema das crueldades seja assumido pela boa mãe e, a partir daí, sofra profunda transformação, posto a serviço do ideal masoquista de expiação e de renascimento. Não se deve então considerar a prostituição como a característica comum de um hipotético sadomasoquismo. Em Sade, o sonho de prostituição universal, tal como aparece na “sociedade dos amigos do crime”, projeta-se numa instituição objetiva que deve assegurar ao mesmo tempo a destruição das mães e a seleção das filhas (a mãe como “miserável” e a filha como cúmplice). Em Masoch, pelo contrário, a prostituição ideal repousa num contrato privado pelo qual o herói masoquista persuade sua mulher, enquanto boa mãe, a se entregar a outros.a Com isso, admite-se que a mãe oral, como ideal do masoquista,

assume o conjunto das funções que cabem às outras imagens de mulher; e, assumindo essas funções, ela as transforma e as sublima. É por isso que tantas interpretações psicanalíticas do masoquismo referentes à “mãe ruim” nos parecerem se manter inteiramente marginais. Mas essa concentração na boa mãe oral implica um primeiro aspecto a partir do qual o pai é anulado, com seus membros e funções repartidos entre as três mulheres. Nessa condição, elas ficam com o campo livre para sua luta e sua epifania, que devem, precisamente, levar ao triunfo da mãe oral. Em suma: as três mulheres constituem uma ordem simbólica na qual ou pela qual o pai já se encontra suprimido, desde sempre. Por isso o masoquista precisa tanto do mito para exprimir essa eternidade do tempo: tudo já se encontra feito, tudo se passa entre as imagens da mãe (por exemplo, a caça e a conquista da pele). É então surpreendente ver a psicanálise, mesmo em suas mais avançadas explorações, ligar a instauração de uma ordem simbólica ao “nome do pai”. Com isso, ela não está mantendo a ideia, singularmente pouco analítica, de que a mãe é da natureza e o pai é o único princípio de cultura e representante da lei? O masoquista vive a ordem simbólica como intermaternal e coloca as condições sob as quais a mãe, nessa ordem, se confunde com a lei. Mas também não se deve falar de identificação com a mãe, no caso do masoquismo. A mãe não é absolutamente o termo de uma identificação, mas a condição do simbolismo pelo qual o masoquista se exprime. A triplicação das mães literalmente expulsou os pais do universo masoquista. Em A sereia, Masoch apresenta um jovem que deixa que acreditem que seu pai morreu, apenas por achar mais simples e mais delicado não desfazer um mal-entendido. À denegação magnificatória da mãe (“Não, à mãe não falta simbolicamente nada”), corresponde uma denegação

anulante do pai (“O pai não é nada”, ou seja, está privado de qualquer função simbólica). Deve-se então considerar mais de perto a maneira como o homem, o terceiro, é introduzido ou reintroduzido na fantasia masoquista. A busca do terceiro, do “Grego”, domina a vida e a obra de Masoch. Mas, tal como aparece em A Vênus, o Grego tem duas faces. Uma, interior à fantasia, é efeminada e travestida: o Grego é “parecido com uma mulher … Em Paris, foi visto, logo no início, vestido de mulher, e recebia muitas cartas de amor de homens”. A outra, o lado viril, marca, pelo contrário, o fim da fantasia e do exercício masoquista: quando o Grego toma o chicote e bate em Séverin, o encanto suprassensual logo desaparece, “sonho voluptuoso, mulher e amor” se dissipam. É o final sublime e humorístico do romance: Séverin renuncia ao masoquismo e torna-se sádico. Devemos daí compreender que o pai, anulado na ordem simbólica, mesmo assim continuava agindo dentro da ordem real ou vivida. Lacan enunciou uma lei profunda segundo a qual o que é abolido simbolicamente reaparece no real sob forma alucinatória.b O final de A Vênus das Peles marca tipicamente essa volta agressiva e alucinante do pai, num mundo que o havia anulado simbolicamente. Tudo nesse trecho citado indica que a realidade da cena exige um modo de apreensão alucinatório; mas que, em compensação, torna impossível a perseguição ou a continuação da fantasia. Seria então muito despropositado confundir a fantasia que atua na ordem simbólica, propriamente, com a alucinação que manifesta a revanche do vivido na ordem do real. Theodor Reik cita um caso em que toda a “magia” da cena masoquista desaparece porque o sujeito acreditou perceber na mulher pronta para bater nele algo que lhe lembrava o pai.15 (É como o final de A Vênus; menos forte, entretanto, já que no romance de Masoch a imagem do pai substituiu “realmente” a da mulher-carrasco, daí decorrendo o

supostamente definitivo abandono da aventura masoquista.) Reik comenta esse caso como se isso provasse que o pai é realmente a verdade da mulher-carrasco, estando disfarçado na imagem de mãe; e tira daí um argumento para a unidade sadomasoquista. Acreditamos, porém, que conclusões inversas também podem ser tiradas. O sujeito, diz Reik, é “desiludido”: seria preciso dizer que ele é “desfantasiado”, e, em compensação, alucinado, alucinizado. Dessa forma, longe de ser a verdade do masoquismo, longe de selar sua aliança com o sadismo, o retorno ofensivo da imagem do pai marca o perigo sempre presente que, do exterior, ameaça o mundo masoquista e destrói as “defesas” que o masoquista construiu como condições e limites para o seu mundo perverso simbólico. (Seria, na verdade, uma psicanálise “bruta” essa que eventualmente favorecesse tal destruição e tomasse como verdade interna o protesto do real exterior.) Mas o que o masoquista faz para se precaver contra um retorno desse tipo e, ao mesmo tempo, contra a realidade e a alucinação do retorno ofensivo do pai? O herói masoquista precisa utilizar um processo complexo para proteger seu mundo fantasístico e simbólico, assim como para conjurar os ataques alucinatórios do real (poderíamos igualmente falar dos ataques reais da alucinação). Veremos que esse procedimento se apresenta permanentemente no masoquismo: é o contrato, feito com a mulher, que, num momento preciso e por um tempo determinado, confere a ela todos os direitos. É pelo contrato que o masoquista conjura o perigo do pai e tenta assegurar a adequação da ordem real e do vivido temporal à ordem simbólica, na qual o pai é anulado desde sempre. Pelo contrato, quer dizer, pelo ato mais racional e mais determinado no tempo, o masoquista reencontra regiões as mais míticas e eternas, aquelas onde reinam as três imagens da mãe. Pelo contrato, o masoquista faz com que o

espanquem; mas o que ele faz espancar, humilhar e ridicularizar é a imagem do pai, a semelhança do pai, a possibilidade de uma volta ofensiva do pai. Não é “uma criança”, é um pai que é espancado. O masoquista torna-se livre através de um novo nascimento em que o pai não tem papel algum. Mas como explicar que, inclusive no contrato, o masoquista apele ao Terceiro, o Grego? Que ele o aguarde tão ardentemente? Sem dúvida existe um aspecto pelo qual esse terceiro não exprime somente o perigo do retorno ofensivo do pai, mas, num sentido totalmente diverso, a chance de um novo nascimento, a projeção do novo homem que deve resultar do exercício masoquista. O terceiro reúne, então, elementos múltiplos: feminizado, ele ainda indica apenas um desdobramento da mulher; idealizado, ele prefigura a saída do masoquismo; sádico, ele representa, pelo contrário, o perigo paterno que vem perturbar a saída, interrompê-la brutalmente. De modo mais profundo, deve-se pensar nas condições de funcionamento da fantasia em geral. O masoquismo é a arte da fantasia. A fantasia atua em duas séries, em dois limites, duas “beiradas”; entre elas se estabelece uma ressonância que constitui a verdadeira vida da fantasia. É assim que a fantasia masoquista tem como beiradas simbólicas a mãe uterina e a mãe edipiana: entre as duas, indo de uma para a outra, a mãe oral, o coração da fantasia. O masoquista atua a partir desses dois extremos e os faz repercutir na mãe oral. Com isso ele confere à boa mãe uma amplitude que faz com que ela constantemente beire a imagem das suas rivais. É preciso que a mãe oral arranque da mãe uterina suas funções heteristas (prostituição), e da mãe edipiana suas funções sadizantes (castigo). E é preciso que, nas duas extremidades do seu movimento de pêndulo, a boa mãe enfrente o terceiro anônimo da mãe uterina e o terceiro sádico da mãe

edipiana. Mas precisamente, a menos que, por alguma alucinação, tudo desande, o terceiro só é desejado e convocado para ser neutralizado pela substituição da mãe uterina e da mãe edipiana pela boa mãe. A aventura com Ludwig II é exemplar com relação a isso; sua comicidade vem das encenações que se contrapõem.16 Ao receber as primeiras cartas de Anatole, Masoch espera intensamente que seja uma mulher. Mas ele tem já uma encenação pronta caso seja um homem: introduzir Wanda na história e, com a cumplicidade do terceiro, fazer com que ela desempenhe as funções heteristas ou sadizantes, mas que as desempenhe como boa mãe. É a essa encenação que Anatole, tendo outros projetos, responde com uma encenação inesperada, introduzindo por sua vez seu primo corcunda, encarregado de neutralizar a própria Wanda, contrariando todas as intenções de Masoch… É secundária a importância da pergunta sobre se o masoquismo seria feminino e passivo e o sadismo, viril e ativo. A questão pressupõe a coexistência do sadismo e do masoquismo, o reviramento de um no outro, e a sua unidade. O sadismo e o masoquismo não são compostos por pulsões parciais, mas por figuras completas. O masoquista vive em si a aliança da mãe oral com o filho, como o sádico vive a do pai com a filha. Os travestis, tanto sádicos quanto masoquistas, têm como função selar essa aliança. No caso do masoquismo, a pulsão viril está encarnada no papel do filho, enquanto a pulsão feminina se projeta no papel da mãe; mas as duas pulsões constituem uma figura, já que a feminidade se coloca deixando claro que a ela nada falta, e a virilidade se mantém suspensa na denegação (assim como a ausência do pênis não significa a falta do falo, sua presença não implica a posse do falo, pelo contrário). No masoquismo, então, uma jovem pode perfeitamente assumir o papel do filho, com relação à mãe que espanca e que possui idealmente o falo, e de quem depende o novo

nascimento. O mesmo pode ser dito do sadismo e da possibilidade de um jovem representar o papel de filha, em função de uma projeção do pai. A figura do masoquista é hermafrodita, como a do sádico é andrógina. Cada um em seu mundo dispõe de todos os elementos que tornam impossível e inútil a passagem para o outro mundo. Deve-se evitar, em todo caso, tratar o sadismo e o masoquismo como contrários exatos — exceto para dizer que os contrários se repelem, que cada um deve fugir ou morrer… Mas as relações dos contrários sugerem fortemente a possibilidade de transformação, de subversão e de unidade. Entre o sadismo e o masoquismo revela-se uma profunda dissimetria. É verdade que o sadismo apresenta uma negação ativa da mãe e uma inflação do pai (posto acima das leis), do mesmo modo que o masoquismo opera uma dupla denegação: uma denegação positiva, ideal e magnificatória da mãe (identificada com a lei) e uma denegação anuladora do pai (expulso da ordem simbólica).

a

Na narrativa de Klossowski Le souffleur encontra-se essa diferença de natureza entre as duas fantasias de prostituição, sádico e masoquista. Cf. a oposição entre “L’Hôtel de Longchamp” e “Les lois de l’hospitalité”. b Jacques Lacan.

La Psychanalyse I, p.48s. Tal como Lacan definiu, a “foraclusão”, Verwerfung, é um mecanismo que se exerce na ordem simbólica e que recai essencialmente sobre o pai, ou melhor, sobre o “nome do pai”. Lacan parece considerar esse mecanismo como original independente de qualquer etiologia maternal (a desfiguração do papel da mãe seria antes o efeito da anulação do pai na forclusão). Cf. entretanto, na perspectiva de Lacan, o artigo de Piera Aulagnier, “Remarques sur la structure psychotique”, La Psychanalyse VIII, que parece restituir à mãe um certo papel de agente simbólico ativo.

Os elementos romanescos de Masoch O primeiro elemento romanesco de Masoch é estético e plástico. Diz-se que os sentidos tornam-se “teóricos”, que o olho torna-se um olho realmente humano quando o seu objeto se torna um objeto propriamente humano, cultural, vindo do homem e a ele destinado. Um órgão torna-se humano quando toma como objeto a obra de arte. O animal inteiro sofre quando seus órgãos cessam de ser animais. Masoch pretende viver o sofrimento dessa transmutação; ele denomina sua doutrina “suprassensualismo”, para indicar o estado cultural de uma sensualidade transmutada. É a razão de, nele, os amores terem como fonte a obra de arte. A aprendizagem se faz com mulheres de pedra. As mulheres só são perturbadoras quando se confundem com estátuas frias sob o luar ou com quadros ensombreados. Toda A Vênus das Peles está sob o signo de Ticiano, pela relação mística entre a carne, as peles e o espelho. É onde se forma o vínculo entre o gelado, o cruel e o sentimental. As cenas masoquistas precisam se congelar como esculturas ou quadros, precisam dublar esculturas e quadros, desdobrar-se num espelho ou em algum reflexo (como Séverin surpreendendo sua imagem…). Os heróis de Sade não são admiradores da arte e menos ainda colecionadores. Sade, em Juliette, explica: Ah, como seria necessária a presença aqui de um artista gravador que transmitisse à posteridade esse voluptuoso e divino quadro! Mas a luxúria coroa rápido demais nossos participantes, e provavelmente não haveria tempo para o artista apreendê-la. Não é fácil para a arte, que não tem movimento, realizar uma ação que tem no movimento toda a sua alma.

A sensualidade é movimento. Sade, então, para traduzir esse movimento imediato da alma sobre a alma, conta sobretudo com o processo quantitativo de acumulação e de aceleração, mecanicamente fundado numa teoria materialista: reiteração das cenas, multiplicação em cada cena, precipitação, sobredeterminação (ao mesmo tempo: “eu parricidiava, eu incestava, eu assassinava, eu prostituía, eu sodomizava”). Já vimos por que o número, a quantidade, a precipitação quantitativa constituem a loucura própria do sadismo. Masoch, pelo contrário, tem todas as razões para acreditar na arte e nas imobilidades e reflexões da cultura. As artes plásticas, como ele as vê, eternizam o sujeito, suspendendo um gesto ou uma atitude. Aquele chicote ou aquela espada que não se abatem, esse casaco de peles que não se abre, esse salto do sapato que não completa a pisada, como se o pintor desistisse do movimento apenas para exprimir uma espera mais profunda, mais próxima das fontes da vida e da morte. O gosto pelas cenas congeladas, como fotografadas, estereotipadas ou pintadas, manifesta-se nos romances de Masoch com a máxima intensidade. Em A Vênus das Peles, cabe a um pintor dizer a Wanda: “Mulher! Deusa! … Então não sabe o que é amar, consumir-se languidamente em paixão?” E Wanda aparece, com suas peles e chicote, assumindo uma pose em suspenso, como um quadro vivo: “Vou mostrar um outro retrato meu, um retrato que eu mesma pintei, copie ele para mim…” “Copie ele para mim” exprime ao mesmo tempo a severidade da ordem e o reflexo do espelho. A experiência da espera e do suspense pertence essencialmente ao masoquismo. As cenas masoquistas comportam verdadeiros ritos de suspensão física, imobilizações por amarras, atos de pendurar, crucificar. O masoquista é moroso, porém “moroso” qualificando o prazo de retardação. Muitas vezes se disse que o complexo

prazer–dor é insuficiente para definir o masoquismo; mas a humilhação, a expiação, o castigo, a culpabilidade também não bastam. Nega-se justamente que o masoquista seja um ser estranho que encontra o seu prazer na dor. Diz-se que ele é como todo o mundo, tendo seu prazer onde os outros encontram, mas que simplesmente se acrescenta, em seu caso, como condição indispensável à obtenção do prazer, uma dor prévia, uma punição, uma humilhação. Tal mecanismo, entretanto, permanece incompreensível se não for relacionado com a forma, e sobretudo com a forma de tempo que o torna possível. Por isso, é inconveniente partir do complexo prazer–dor como matéria para todas as transformações, a começar pela pretensa transformação sadomasoquista. Na verdade, a forma do masoquismo é a espera. O masoquista vive a espera em estado puro. Pertence à pura espera desdobrar-se em dois fluxos simultâneos, um que representa o que se espera e que, essencialmente, tarda, sempre atrasado e sempre adiado, e outro que representa algo que pode acontecer, sendo também o que precipitaria a vinda do esperado. Uma forma dessas, esse ritmo de tempo com seus dois fluxos, tem como consequência necessária seu preenchimento por uma certa combinação prazer–dor. A dor realiza o que pode acontecer, ao mesmo tempo em que o prazer realiza o que se espera. O masoquista espera o prazer como algo que está essencialmente atrasado, e a dor pode acontecer como condição que torna enfim possível (física e moralmente) a vinda do prazer. Ele então atrasa o prazer, pelo tempo que for necessário para que uma dor, também esperada, o torne possível. A angústia masoquista assume então a dupla determinação de esperar infinitamente o prazer, esperando intensamente a dor que pode acontecer. A denegação, o suspense, a espera, o fetichismo e a fantasia formam a constelação propriamente masoquista. O real, como vimos, é afetado não por uma negação, mas por

uma espécie de denegação que o faz passar na fantasia. O suspense tem a mesma função com relação ao ideal e o coloca na fantasia A própria espera é a unidade ideal–real, a forma ou a temporalidade da fantasia. O fetiche é o objeto da fantasia, o objeto fantasiado por excelência. Imaginemos uma fantasia masoquista: uma mulher de short está numa bicicleta fixa, pedalando vigorosamente; o sujeito está deitado sob a bicicleta, sendo quase atingido pelos pedais vertiginosos, com as palmas das mãos coladas às panturrilhas da mulher. Todas as determinações estão aí reunidas, desde o fetichismo da panturrilha até a dupla espera representada pelo movimento dos pedais e a imobilidade da bicicleta. Não existe espera propriamente masoquista; o masoquista é sobretudo o moroso, vivendo a espera em estado puro. Como Masoch, que arranca um dente sadio, mas com a condição de que sua mulher, vestida de peles a seu lado, o olhe de forma ameaçadora. O mesmo pode-se dizer com relação à fantasia: não são tantas as fantasias masoquistas, o que existe é uma arte masoquista da fantasia. O masoquista precisa acreditar que sonha, mesmo quando não está sonhando. Jamais se encontra no sadismo semelhante disciplina da fantasia. Maurice Blanchot analisou muito bem a situação de Sade (e dos seus personagens) com relação à fantasia: “Por seu próprio sonho erótico consistir em projetar em personagens que não sonham, mas que agem realmente, o movimento irreal dos seus prazeres …, quanto mais esse erotismo for sonhado, mais ele exige uma ficção da qual o sonho tenha sido banido, em que a devassidão seja realizada e vivida.”17 Em outras palavras: Sade precisa acreditar que não sonha, mesmo quando está sonhando. O que caracteriza o uso sádico da fantasia é a força violenta de projeção, de tipo paranoico, pela qual a fantasia se torna instrumento de uma mudança essencial e súbita, introduzida no mundo

objetivo. (Por exemplo, Clairwil sonha não parar de agir com maldade no mundo, mesmo quando ela dorme.) O potencial prazer–dor próprio da fantasia realiza-se então de tal forma que a dor deve ser sentida por personagens reais, sendo o prazer o ganho do sádico enquanto puder sonhar que não está sonhando. Juliette dá os seguintes conselhos: “Fiquem quinze dias inteiros sem se preocupar com luxúrias, distraiam-se, divirtam-se com outras coisas…”, depois deitem-se no escuro, para gradualmente imaginar diferentes tipos de desvios; um deles vai impressionar mais e constituir uma espécie de ideia delirante, devendo ser colocada por escrito e depois repentinamente executada. Com isso, a fantasia adquire um poder máximo de agressão, de intervenção e de sistematização no real: a Ideia é projetada com rara violência. Ora, o uso masoquista, que consiste em neutralizar o real e suspender o ideal na interioridade pura da própria fantasia, é completamente diferente. Acredito que essa diferença de uso de certa forma determine a diferença dos conteúdos. E, assim sendo, se a relação do sádico com os fetiches for uma relação de destruição, ela deve ser interpretada pela forma da projeção nesse tipo de uso. Não estou dizendo que a destruição do fetiche implica uma crença, ela própria fetichista (como quando se pretende que a profanação implica uma crença no sagrado): são generalidades vazias. A destruição do fetiche mede a velocidade de projeção, a maneira pela qual o sonho se suprime como sonho, e pela qual a Ideia irrompe no mundo real desperto. A constituição do fetiche no masoquismo, pelo contrário, mede a força interior da fantasia, sua lentidão de espera, sua força de suspensão ou de congelamento, e a maneira pela qual o ideal e o real, juntos, são absorvidos por ele. Ao que parece, a cada vez os respectivos conteúdos do sadismo e do masoquismo vêm preencher as suas formas de agir. Que a combinação prazer–dor se distribua de uma

maneira ou de outra, que a imagem do pai ou a imagem da mãe preencha a fantasia, tudo depende primeiramente de uma forma, que só daquela maneira pode se realizar. Partindo da matéria, estamos antecipando tudo, inclusive a unidade sadomasoquista, mas também misturando tudo. Essa maneira de associação do prazer e da dor só pode ser obtida sob certas condições (a forma da espera). A outra, sob outras condições (a forma da projeção). As definições materiais do masoquismo, a partir do complexo prazer–dor, são insuficientes: como se diz em lógica, são apenas nominais e não demonstram a possibilidade daquilo que definem, a possibilidade do resultado. Mas, pior ainda, são não distintivas e abrem caminho para todas as misturas entre sadismo e masoquismo, para todas as transformações. As definições morais, a partir da culpa e da expiação, não são melhores, pois apoiam-se por sua vez na pretensa comunicação do sadismo com o masoquismo (nesse sentido, são ainda mais “morais” do que se pensa). O masoquismo de base não é material nem moral, ele é formal, unicamente formal. E os diferentes mundos da perversão exigem, em geral, que a psicanálise seja realmente uma psicanálise formal, quase dedutiva, que antes de tudo considere o formalismo das suas maneiras de agir como análogo de elementos romanescos. Nesse campo da psicanálise formal, ninguém foi tão longe quanto Theodor Reik no que diz respeito ao masoquismo. Ele apontou quatro características fundamentais: 1) a “significação especial da fantasia”, quer dizer, a forma da fantasia (a fantasia vivida por si mesma ou a cena sonhada, dramatizada, ritualizada, absolutamente indispensável ao masoquismo); 2) o “fator suspensivo” (a espera, o atraso exprimindo a maneira pela qual a angústia age sobre a tensão sexual e a impede de crescer até o orgasmo); 3) o “traço demonstrativo”, ou antes persuasivo (pelo qual o masoquista exibe o

sofrimento, o embaraço e a humilhação); 4) o “fator provocador” (o masoquista agressivamente exige a punição como aquilo que resolve a angústia e lhe proporciona o prazer proibido).18 É curioso que Reik, e outros analistas, negligencie um quinto fator, muito importante: a forma contratual na relação masoquista. Nas aventuras reais de Masoch, assim como em seus romances, no caso particular de Masoch tanto quanto na estrutura do masoquismo em geral, o contrato aparece como a forma ideal e a condição necessária da relação amorosa. Um contrato então se estabelece com a mulher-carrasco, renovando a ideia de antigos juristas segundo a qual mesmo a escravidão apoiase num pacto. Só nas aparências o masoquista está preso por correntes e amarras; é sua palavra que o prende. O contrato masoquista não exprime apenas a necessidade do consentimento da vítima, mas o dom de persuasão, o esforço pedagógico e jurídico com que a vítima adestra o carrasco. Observe-se com relação a isto, nos contratos de Masoch a que nos referimos, a evolução e a precipitação das cláusulas: enquanto um deles mantém a reciprocidade de deveres, o limite de duração, uma reserva de partes inalienáveis (o trabalho, a honradez), o outro confere à mulher maiores direitos em detrimento dos direitos do próprio sujeito, inclusive o direito de nome, de honra e até de vida. (O contrato em questão em A Vênus das Peles muda o nome de Séverin.) Nessa evolução do contrato, fica claro que a função contratual é a de estabelecer a lei, porém quanto mais estabelecida, mais a lei se torna cruel e restringe os direitos de uma das partes contratantes (no caso, a parte instigadora). O contrato masoquista tem como sentido conferir o poder simbólico da lei à imagem da mãe. Por que seria preciso um contrato, e por que semelhante evolução do contrato? Devemos procurar suas razões, mas podemos desde já constatar que não há masoquismo sem

contrato — ou sem um quase-contrato no espírito do masoquista (cf. o “pajismo” a que Krafft-Ebing faz referência). O culturalismo de Masoch tem então dois aspectos: um aspecto estético, que se desenvolve no modelo da arte e do suspense, e um aspecto jurídico, que se desenvolve no modelo do contrato e da submissão. Ora, Sade não apenas se mantém indiferente aos recursos da obra de arte: também é sem limites sua hostilidade a contratos, a qualquer apelo ao contrato, a qualquer ideia ou teoria do contrato. Todo o escárnio sádico se exerce contra o princípio do contrato. A partir desses dois pontos de vista, não basta simplesmente opor o culturalismo de Masoch ao naturalismo de Sade. Em Sade e em Masoch há igualmente naturalismo e distinção de duas naturezas. Mas essas naturezas não estão absolutamente distribuídas da mesma maneira e, sobretudo, a passagem de uma para a outra não se faz da mesma forma. Segundo Masoch, precisamente a obra de arte e o contrato servem para passar da natureza grosseira à grande natureza, sentimental e refletida. Em Sade, ao contrário, a passagem da natureza segunda para a natureza primeira não implica nenhum suspense, nenhuma estética, mas simplesmente o esforço para instaurar um mecanismo de moto-contínuo e instituições de motocontínuo. As sociedades secretas de Sade, as sociedades de libertinos são sociedades institucionais. O pensamento de Sade se exprime em termos de instituição, como o de Masoch em termos de contrato. É conhecida a distinção jurídica entre o contrato e a instituição: o primeiro, em princípio, pressupõe a vontade dos contratantes, define entre eles um sistema de direitos e deveres, não é oponível a terceiros e vale por um tempo limitado; a segunda tende a definir um estatuto de longa duração, involuntário e inalienável, constitutivo de um poder, de uma potência, cujo efeito é oponível a terceiros. Porém mais característica

ainda é a diferença entre contrato e instituição com relação àquilo que se chama lei: o contrato é realmente gerador de uma lei, mesmo que esta venha a ultrapassar e a desmentir as condições que lhe deram origem; já a instituição se apresenta por uma ordem muito diferente da ordem das leis, tornando-as inúteis e substituindo o sistema de direitos e deveres por um modelo dinâmico de ação, de poder e de força. Alguém como Saint-Just, por exemplo, reivindica muitas instituições e poucas leis, proclamando que nada poderia ser considerado já realizado na república enquanto as leis se sobrepusessem às instituições…19 Em suma: há um movimento particular do contrato que se imagina engendrando a lei, dispondo-se inclusive a se subordinar a ela e a reconhecer sua superioridade; há um movimento particular da instituição que faz a lei degenerar e julga-se superior a ela. A afinidade do pensamento de Sade com o tema da instituição (e com certos aspectos do pensamento de SaintJust) foi frequentemente sublinhada. Mas não se deve dizer apenas que os heróis de Sade colocam as instituições a serviço das suas anomalias, nem que precisam das instituições como limite que valoriza mais plenamente as suas transgressões. Sade pensa a instituição de modo mais direto e profundo. As relações desse autor com a ideologia revolucionária são complexas: ele não tem simpatia alguma pela concepção contratual do regime republicano, e menos ainda pela ideia de lei. Na revolução encontra-se o que ele odeia, a lei e o contrato. A lei e o contrato separam ainda mais os franceses da verdadeira república. Mas, justamente, o pensamento político de Sade se revela: na maneira como ele opõe a instituição à lei, e uma fundação institucional da república a uma fundação contratual. SaintJust marca claramente a relação inversa: maior número de leis na medida em que há poucas instituições (monarquia e despotismo), e maior número de instituições para menos

leis (república). Tudo se passa como se Sade não parasse de levar essa ideia ao ponto da ironia, que pode também ser onde está sendo mais sério: quais seriam as instituições comportando um número mínimo de leis, ou até mesmo lei nenhuma (leis “tão amenas e tão poucas”…)? As leis ligam as ações; elas as paralisam e moralizam. Puras instituições sem leis seriam, por natureza, modelos de ações livres, anárquicas, em moto-contínuo, em revolução permanente, em estado de constante imoralidade. A insurreição … não é absolutamente um estado moral; deve, entretanto, ser o estado permanente de uma república. Então seria tão absurdo quanto perigoso exigir daqueles que devem manter a perpétua agitação da máquina que sejam pessoalmente seres muito morais, pois o estado moral do homem é um estado de paz e de tranquilidade, enquanto o estado imoral é um estado em moto-contínuo que o aproxima da insurreição necessária dentro da qual é preciso que o republicano mantenha sempre o governo a que ele pertence. Na célebre passagem da Filosofia na alcova, “Franceses, mais um esforço se quiserem ser republicanos”, seria um erro ver uma simples aplicação paradoxal das fantasias sádicas na política. O problema ao mesmo tempo formal e político é muito mais sério e mais original. Ele consiste no seguinte: se é verdade que o contrato é uma mistificação, que a lei não passa de uma mistificação servindo ao despotismo, que a instituição é a única forma política que difere em natureza da lei e do contrato, quais devem ser as instituições perfeitas, quer dizer, aquelas que se opõem a qualquer contrato e que supõem apenas um mínimo de leis? A resposta irônica de Sade é que, em tais condições, o ateísmo, a calúnia, o roubo, a prostituição, o incesto e a sodomia — e até mesmo

o assassinato — são institucionalizáveis e, melhor ainda, são o objeto necessário para instituições ideais, para instituições em moto-contínuo. Entre outras coisas, note-se a insistência de Sade na possibilidade de se instituir a prostituição universal e a maneira como procura refutar a objeção “contratual”, invocando a não oponibilidade a terceiros. De qualquer forma parece insuficiente, para definir o pensamento político de Sade, confrontar suas tão arrebatadas declarações à sua atitude pessoal bem moderada durante a revolução. A oposição instituição– contrato e a oposição instituição–lei, daí decorrente, tornaram-se os lugares-comuns jurídicos do espírito positivista. Mas perderam o seu sentido e o seu caráter revolucionário em acordos instáveis. Para reaver o sentido dessas oposições, das escolhas e das direções que elas implicam, é preciso voltar a Sade (e também a Saint-Just, que não dava as mesmas respostas que Sade). Existe em Sade um profundo pensamento político, o da instituição revolucionária e republicana, em sua dupla oposição à lei e ao contrato. Mas esse pensamento da instituição é irônico de um extremo a outro, pois é sexual e sexualizado, armado como provocação contra qualquer tentativa contratual e legalista de se pensar a política. Não se deveria esperar de Masoch uma atitude inversa? Não mais um pensamento irônico em função da revolução de 1789, mas um pensamento humorístico com relação às revoluções de 1848? Não mais um pensamento irônico da instituição em sua oposição ao contrato e à lei, mas um pensamento humorístico do contrato e da lei em suas mútuas relações? A tal ponto que não se retomariam esses reais problemas do direito senão sob as formas pervertidas que Sade e Masoch lhes deram, tornando-os elementos romanescos numa paródia de filosofia da história.

A lei, o humor e a ironia Há uma imagem clássica da lei. Platão deu-lhe uma expressão perfeita, que se impôs no mundo cristão. Essa imagem determina um duplo estado da lei, do ponto de vista do seu princípio e do ponto de vista das suas consequências. Quanto ao princípio, a lei não é primeira. É apenas um poder segundo e delegado, depende de um princípio mais elevado que é o Bem. Se os homens soubessem o que é o Bem ou soubessem a ele se conformar, não precisariam da lei. A lei é apenas o representante do Bem num mundo que ele de certa forma abandonou. Tanto é que, do ponto de vista das consequências, obedecer às leis é o “melhor”, sendo este “melhor” a imagem do Bem. O justo se submete às leis, no país em que nasceu, no país em que vive. Ele age assim para o melhor, mesmo guardando sua liberdade de pensar — de pensar o Bem e para o Bem. Essa imagem, tão conformista em aparência, não deixa de comportar uma ironia e um humor que constituíram as condições para toda uma filosofia política, uma dupla margem de reflexão, no alto e na base da escala da lei. A morte de Sócrates é exemplar quanto a isto. Nela as leis colocam entre as mãos do condenado o seu próprio destino e lhe pedem, submetendo-se a elas, que lhes dê uma sanção refletida. Há muita ironia nesse procedimento que remonta das leis para o Bem absoluto, como um princípio necessário para fundá-las. Há muito humor no procedimento que desce das leis para o Melhor relativo, necessário para nos persuadir à obediência. Isso significa que a noção de lei não se sustenta por si só, senão pela força, e que idealmente precisa de um princípio mais elevado, assim como de uma consequência mais longínqua. Talvez seja por isso, segundo um trecho misterioso do Fédon, que os discípulos não deixam de rir ao assistirem à morte de

Sócrates. A ironia e o humor formam essencialmente o pensamento da lei. É com relação à lei que eles são exercidos e encontram seu sentido. A ironia é o jogo do pensamento que se atreve a fundar a lei num Bem infinitamente superior; o humor, o jogo do pensamento que se atreve a sancioná-la para um Melhor infinitamente mais justo. Se nos perguntarmos sob quais influências a imagem clássica da lei foi subvertida e destruída, podemos ter certeza de que não foi pela descoberta de qualquer relatividade, de qualquer variabilidade das leis. Pois tal relatividade era plenamente conhecida e compreendida na imagem clássica, sendo necessariamente parte dela. A verdadeira razão é outra. Podemos encontrar seu enunciado mais rigoroso na Crítica da razão prática, de Kant. O próprio Kant diz que a novidade do seu método é que nele a lei não depende mais do Bem: pelo contrário, o Bem depende da lei. Isso significa que a lei não tem mais que se fundar, não pode mais se fundar num princípio superior do qual tiraria o seu direito. Significa que a lei deve valer por si mesma e se fundar em si mesma, que ela não tem outra fonte senão sua própria forma. Só a partir daí pode-se, e deve-se, dizer A Lei, sem outra especificação, sem indicar um objeto. A imagem clássica só conhecia as leis, especificadas deste ou daquele jeito, a partir do âmbito do Bem e das circunstâncias do Melhor. Quando Kant, pelo contrário, fala de “a” lei moral, a palavra “moral” designa somente a determinação daquilo que permanece absolutamente indeterminado: a lei moral é a representação de uma pura forma, independente de um conteúdo e de um objeto, de um domínio e de circunstâncias. A lei moral significa A Lei, a forma da lei, excluindo qualquer princípio superior capaz de fundá-la. Nesse sentido, Kant foi um dos primeiros a romper com a imagem clássica da lei e a nos revelar uma imagem

propriamente moderna. A revolução copernicana de Kant na Crítica da razão pura consistiu em fazer girar os objetos do conhecimento em volta do sujeito; mas a da Crítica da razão prática, que consiste em fazer girar o Bem em volta da Lei, é sem dúvida muito mais importante. E sem dúvida exprimia mudanças importantes no mundo. Sem dúvida exprimia também as últimas consequências de um retorno à fé judaica para além do mundo cristão; talvez inclusive anunciasse o retorno a uma concepção pré-socrática (edipiana) da lei, para além do mundo platônico. Resta que, fazendo da Lei um fundamento último, Kant dotava o pensamento moderno de uma das suas principais dimensões: o objeto da lei se furta essencialmente.20 Outra dimensão aparece. A questão não é a do equilíbrio que Kant deu à sua descoberta dentro do seu próprio sistema (e da maneira como ele salvou o Bem). Trata-se antes de uma outra descoberta, correlata, complementar da precedente. Ao mesmo tempo em que a lei não pode mais se fundar no Bem como num princípio superior, também não deve mais ser sancionada pelo Melhor como boa vontade do justo. Pois o mais claro é que A Lei, definida por sua pura forma, sem matéria e sem objeto, sem especificação, é tal que não se sabe nem se pode saber o que ela é. Ela age sem ser conhecida. Ela define uma área de errância em que todos somos culpados, isto é, em que já transgredimos os limites antes de saber o que ela exatamente é — a exemplo de Édipo. E a culpabilidade e o castigo sequer nos fazem saber o que é a lei, deixando-a na indeterminação, que corresponde à extrema precisão do castigo. Kafka soube descrever esse mundo. E não se trata de juntar Kant a Kafka, mas apenas de desconectar dois polos que formam o pensamento moderno da lei. Efetivamente, se a lei não se funda mais num Bem prévio e superior, valendo por sua própria forma, que deixa

o conteúdo completamente indeterminado, torna-se impossível dizer que o justo obedece à lei para o melhor. Ou então: aquele que obedece à lei nem por isso é ou se sente mais justo. Pelo contrário, sente-se culpado, é previamente culpado, e ainda mais culpado por obedecer estritamente. Pela mesma operação, a lei se manifesta como lei pura e nos constitui como culpados. As duas proposições que formavam a imagem clássica desmoronam ao mesmo tempo, a do princípio e a das consequências, a da fundação pelo Bem e a da sanção pelo justo. Coube a Freud realçar esse fantástico paradoxo da consciência moral: por menos que nos sintamos mais justos nos submetendo à lei, ela “mais severamente se comporta e maior desconfiança manifesta quanto mais virtuoso for o sujeito … Rigor tão extraordinário da consciência moral, no melhor e no mais dócil dos seres …”21 No entanto, mais ainda, coube a Freud dar a explicação analítica ao paradoxo: não é a renúncia às pulsões que deriva da consciência moral, pelo contrário, é a consciência moral que se origina da renúncia. Portanto, quanto mais forte e rigorosa for a renúncia, mais a consciência moral, herdeira das pulsões, é forte e se exerce com rigor. (“A ação exercida pela renúncia sobre a consciência é tamanha que qualquer fração de agressividade que nos abstenhamos de satisfazer é retomada pelo supereu e acentua sua própria agressividade contra o eu.”) Desfaz-se então o outro paradoxo, concernindo o caráter fundamentalmente indeterminado da lei. Como diz Lacan, a lei é o mesmo que o desejo recalcado. Ela não poderia, sem contradição, determinar seu objeto ou se definir por um conteúdo sem levantar o recalque sobre o qual ela repousa. O objeto da lei e o objeto do desejo são um só, e se furtam ao mesmo tempo. Quando Freud demonstra que a identidade do objeto remete à mãe, e a identidade própria do desejo e da lei, ao pai, não está

querendo simplesmente restaurar um determinado conteúdo da lei, e sim, quase pelo contrário, mostrar como a lei, em virtude de sua fonte edipiana, é levada a necessariamente subtrair seu conteúdo, para valer como pura forma, nascida de uma dupla renúncia tanto com relação ao objeto quanto com relação ao sujeito (mãe e pai). Com isso, a ironia e o humor clássico, conforme empregados por Platão e da maneira como dominaram o pensamento das leis, veem-se subvertidos. A dupla margem representada pela fundação da lei no Bem e pela aprovação do sábio em função do Melhor vê-se reduzida a nada. Nada mais resta senão a indeterminação da lei de um lado e a precisão do castigo de outro. Mas, com isso, a ironia e o humor ganham uma nova figura, moderna. Continuam a ser um pensamento da lei, mas a pensam na indeterminação do seu conteúdo, assim como na culpabilidade daquele que a ela se submete. É evidente que Kafka dá ao humor e à ironia valores propriamente modernos com relação à mudança de estatuto da lei. Max Brod lembra que, quando Kafka leu O processo, os ouvintes gargalhavam, e o próprio Kafka também. Riso tão misterioso como o que acompanhou a morte de Sócrates. O pseudossentido do trágico aparvalha; quantos autores não deformamos, substituindo a força agressiva cômica do pensamento que os anima por um sentimento trágico pueril? Sempre houve apenas uma maneira de se pensar a lei, pela comicidade do pensamento, feita de ironia e de humor. Mas eis que com o pensamento moderno abriu-se a possibilidade de uma nova ironia e de um novo humor. A ironia e o humor passaram a se dirigir à subversão da lei. Voltamos a Sade e a Masoch. Eles representam as duas grandes iniciativas de contestação, de subversão radical da lei. Chamamos ironia o movimento que consiste em ultrapassar a lei e buscar um princípio mais elevado,

reconhecendo na lei apenas um poder segundo. Mas o que acontece quando o princípio superior deixa de existir, não havendo mais um Bem capaz de fundar a lei e justificar o poder que ela lhe delega? Sade nos ensina. A lei, sob todas as suas formas (natural, moral, política), é a regra de uma natureza segunda, sempre ligada a exigências de conservação e usurpando a verdadeira soberania. Pouco importa se, segundo uma alternativa bem conhecida, a lei é concebida como expressão da força imponente do mais forte ou, pelo contrário, a união protetora dos fracos. Pois tanto senhores quanto escravos, tanto os fortes quanto os fracos pertencem inteiramente à natureza segunda; é a união dos fracos que favorece e faz surgir o tirano, que precisa dessa união para existir. De qualquer maneira, a lei é a mistificação e não o poder delegado, é o poder usurpado, com a abominável cumplicidade dos escravos e dos senhores de escravos. Observe-se o quanto Sade denunciou o regime da lei como sendo ao mesmo tempo o regime dos tiranizados e dos tiranos. De fato, não se é tiranizado senão pela lei: “As paixões do meu vizinho são infinitamente menos temíveis que a injustiça da lei, pois as paixões desse vizinho são contidas pelas minhas, enquanto nada impede, nada contraria as injustiças da lei.” Mas também, e principalmente, só se é tirano pela lei: a tirania só prospera pela lei, e, como diz Chigi em História de Juliette: “Nunca é na anarquia que nascem os tiranos. Só os vemos se erguer à sombra das leis ou nelas se autorizando.” É o essencial do pensamento de Sade: seu ódio pelo tirano, sua maneira de mostrar que a lei torna possível o tirano. O tirano fala a linguagem das leis e não tem outra linguagem. Ele precisa da “sombra das leis”, e os personagens de Sade são imbuídos de estranha antitirania, falando como tirano algum poderia falar, como tirano algum jamais falou, instituindo uma contralinguagem.

A lei é então ultrapassada, indo-se em direção a um princípio mais elevado, mas esse princípio não é mais o Bem que a fundamentava; pelo contrário, é a Ideia de um Mal, Ser supremo em maldade, que a subverte. Subversão do platonismo e da própria lei. A superação da lei implica a descoberta de uma natureza primeira, que em todos os pontos se opõe às exigências e aos reinos da natureza segunda. Por esse motivo a Ideia do mal absoluto, tal como encarnada nessa natureza primeira, não se confunde com a tirania, que ainda pressupõe leis, e nem com qualquer composição de caprichos e de arbitrariedades. Seu modelo superior e impessoal está antes nas instituições anarquistas de moto-contínuo e de revolução permanente. Sade com frequência relembra: a lei só pode ser ultrapassada para se chegar à anarquia como instituição. E o fato de a anarquia não poder ser instituída senão entre dois regimes de leis, um antigo regime que ela abole e um novo regime que ela engendra, não impede que esse curto momento divino, quase reduzido a zero, comprove a sua diferença de natureza com relação a todas as leis. “O reino das leis é vicioso; ele é inferior ao da anarquia; a maior prova do que digo é a obrigação em que o governo se coloca de literalmente mergulhar na anarquia quando quer refazer a sua Constituição.” A lei só é ultrapassada por um princípio que a subverte e nega o seu poder. Seria insuficiente, em compensação, apresentar o personagem masoquista submisso às leis e contente com tal situação. Já se assinalou, algumas vezes, a derrisão embutida na submissão masoquista e a provocação e a força crítica que se escondem nessa aparente docilidade. O masoquista simplesmente ataca a lei por outro lado. Chamamos humor não mais o movimento que sobe da lei para um princípio mais elevado, mas o que desce da lei para as consequências. Conhecemos todas as maneiras de infringir a lei por excesso de zelo: por uma escrupulosa

aplicação pretende-se mostrar seu absurdo e alcançar, precisamente, a desordem que ela deveria proibir e coibir. Toma-se a lei ao pé da letra; não se contesta o seu caráter último ou primeiro; faz-se como se, em virtude de tal caráter, a lei reservasse para si os prazeres que ela nos proíbe. A partir daí, de tanto se observar a lei, de tanto se a aceitar, acaba-se aproveitando um pouco desses prazeres. A lei não será mais ironicamente subvertida, subindo a um princípio, mas humoristicamente infringida, obliquamente, pelo aprofundamento das consequências. Toda vez que consideramos uma fantasia ou um rito masoquista, nos surpreendemos com isto: a mais estrita aplicação da lei tem o efeito oposto ao que normalmente se espera (por exemplo, as chicotadas, em vez de punir ou de prevenir uma ereção, provocam-na, asseguram-na). É uma demonstração do absurdo. Encarando a lei como processo punitivo, o masoquista começa provocando em si mesmo a punição; nessa punição sofrida, ele paradoxalmente encontra uma razão que o autoriza e até lhe ordena sentir o prazer que a lei deveria proibir. O humor masoquista é o seguinte: a mesma lei que me proíbe de realizar um desejo, sob pena de uma punição, torna-se uma lei que coloca já de início a punição e, consequentemente, me ordena satisfazer o desejo. Theodor Reik mais uma vez analisou bem esse processo: o masoquismo não significa prazer na dor, nem mesmo na punição; no máximo, o masoquista encontra na punição ou na dor um prazer preliminar — mas em seguida ele encontra o seu verdadeiro prazer naquilo que a aplicação da punição torna possível. O masoquista deve sofrer a punição antes de sentir prazer. não se deve confundir essa sucessão temporal com uma causalidade lógica: o sofrimento não é causa do prazer, mas condição prévia indispensável para a vinda do prazer. “A inversão no tempo indica uma inversão do conteúdo … ‘Você não deve fazer isso’ transforma-se em ‘Você deve fazer isso’ … Chega-se a uma demonstração do absurdo da punição

mostrando que essa punição por um prazer proibido, precisamente, condiciona esse mesmo prazer.”a Esse procedimento se reflete em outras determinações do masoquismo, como denegação, suspense e fantasia, que são figuras do humor. Temos, então, o masoquista insolente por obsequiosidade e revoltado por submissão — ou seja, o humorista, o lógico das consequências, como o ironista sádico, é o lógico dos princípios. Partindo da ideia de que a lei não pode ser fundada no Bem, devendo se basear na própria forma, o herói sádico inventa uma nova maneira de passar da lei para um princípio mais elevado; mas esse princípio é o elemento informal de uma natureza primeira, destruidora das leis. Partindo de outra descoberta moderna — de que a lei nutre a culpabilidade daquele que a obedece —, o herói masoquista inventa um novo modo de descer da lei às consequências: ele “subverte” a culpabilidade, tornando o castigo uma condição que possibilita o prazer proibido. O masoquista, com isso, não deixa de subverter a lei — tanto quanto o sádico, só que de um outro modo. Vimos como esses dois modos procedem ideologicamente: o conteúdo edipiano, furtando-se sempre, sofre uma dupla transformação — como se a complementariedade mãe–pai fosse duas vezes quebrada, sem simetria. No caso do sadismo, é o pai que é posto acima da lei, princípio mais elevado que torna a mãe a vítima por excelência. No caso do masoquismo, a lei inteira é transportada para a mãe, que expulsa o pai da esfera simbólica.

a Theodor Reik.

Le masochisme, op.cit., p.134, 151: “O masoquista exibe tanto o castigo quanto o seu fracasso; ele com certeza mostra submissão, mas também uma invencível revolta, provando que obtém prazer, apesar do sofrimento … Ele não pode ser quebrado do exterior, tem uma capacidade infinita para suportar a punição, sabendo subconscientemente que não foi vencido.”

Do contrato ao rito Sublinhou-se algumas vezes a importância do fator angústia no masoquismo (Nacht, Reik). Realçada, a punição teria como função resolver essa angústia e tornar o prazer enfim possível (Reik). Essa explicação, entretanto, não mostra ainda em quais condições particulares a punição assume semelhante função resolutiva — nem, principalmente, como a angústia e a culpabilidade por ela implicadas são não apenas “resolvidas”, mas mais sutilmente reviradas e parodiadas, para servir ao masoquismo. Devemos analisar o que nos pareceu essencial no processo formal: a transposição da lei para a mãe, a identificação da lei com a imagem da mãe. Pois é somente sob tal condição que a punição adquire sua função original e a culpabilidade se transforma em triunfo. À primeira vista, porém, a relação com a mãe nada explicaria do “alívio” inerente ao masoquismo: não há razão alguma para se esperar maior indulgência da mãe sentimental, gélida e cruel… Podemos desde já observar que, mesmo extraindo a lei do contrato, o masoquista não procura abrandá-la, pelo contrário, sublinha sua extrema severidade. Pois mesmo sendo verdade que o contrato, em princípio, implique condições de acordo entre vontades, um prazo de duração e uma reserva de partes inalienáveis, a lei que dele se extrai tende a esquecer sua origem e anular essas condições restritivas. Por isso, há uma espécie de mistificação nas relações entre o contrato e a lei. Só podemos imaginar um contrato ou um quase-contrato na origem da sociedade se evocarmos condições que necessariamente se desmentem assim que a lei se estabelece. Pois a lei, uma vez estabelecida, opõe-se a terceiros, vale por um tempo indeterminado e não faz

reserva de parte alguma. Vimos como Masoch apontava, na sucessão pessoal dos seus contratos amorosos, esse desmentido nas relações lei–contrato: como se as cláusulas do contrato, tornando-se cada vez mais severas, já preparassem o exercício da lei que os extrapola. Se a lei tem como resultado a nossa escravidão, não se deveria colocar a escravidão no início, como objeto terrível do contrato? Deve-se inclusive dizer em geral que, no masoquismo, o contrato se torna objeto de uma caricatura que plenamente acusa a ambiguidade da sua destinação. A relação contratual, de fato, é o tipo de relação de cultura artificial, apolínea e viril, opondo-se às relações naturais e ctonianas que nos unem à mãe e à mulher. Na sociedade patriarcal, quando a mulher entra numa relação contratual, é mais a título de objeto. O contrato masoquista, ao contrário, faz-se com a mulher. Ele comporta em sua intenção paradoxal tornar uma das partes escravo e a outra parte — a mulher — senhor e carrasco. Outra vez temos uma espécie de denúncia do contrato por excesso de zelo, humor por precipitação das cláusulas, desvio radical por transposição das pessoas: o contrato fica de certa forma desmistificado, com sua intenção deliberada de escravidão e até de morte, em benefício da mulher, da mãe. Paradoxo ainda maior, tal intenção é concebida e tal benefício é concedido pela própria vítima, a parte viril. Há uma ironia de Sade com relação à revolução de 1789: não façam leis, pois nada terão feito; façam instituições em motocontínuo… Mas há um humor de Masoch, com relação às revoluções de 1848 e ao paneslavismo: façam contratos, mas com uma czarina terrível, e que se extraia daí a lei mais sentimental e também a mais glacial e mais severa (em “Coisas vividas”, Masoch expõe os problemas que agitavam os congressos pan-eslavistas: os eslavos se uniriam graças a uma Rússia livre do regime czarista ou a um Estado forte, dirigido por alguma genial czarina?).22

O que espera a vítima de semelhante contrato, levado ao paroxismo e lavrado com a mãe? A finalidade é ingênua e simples. O contrato masoquista exclui o pai e desloca para a mãe a tarefa de fazer valer e aplicar a lei paterna. No entanto, essa mãe é severa, cruel. Mas o problema não é esse. Na verdade, a mesma ameaça que, tomada do ponto de vista do pai e ligada à imagem do pai, tem como papel proibir o incesto, torna-o possível e assegura o seu sucesso quando confiada à mãe e transportada à sua imagem. A transferência, nesse caso, é bem eficaz. A castração é geralmente uma ameaça, impedindo o incesto, ou uma punição, aplicando-lhe uma sanção. É um obstáculo ou um castigo referente ao incesto. Mas do ponto de vista da imagem da mãe, pelo contrário, a castração do filho é a condição para o sucesso do incesto, que se assimila, com esse deslocamento, a um segundo nascimento em que o pai não tem papel algum. Daí a importância frequentemente notada do “coito interrompido” no masoquismo: ele permite ao masoquista identificar a atividade sexual ao mesmo tempo com um incesto e com um segundo nascimento, duplo processo de identificação que assim não se contenta em escapar da ameaça de castração, mas faz da própria castração a condição simbólica para o sucesso. O contrato masoquista, pela lei que instaura, lança-nos então nos ritos. O masoquista é um obcecado, e o rito é sua atividade própria, na medida em que representa o elemento dentro do qual a realidade é fantasiada. Nos romances de Masoch, os três grandes tipos de ritos são os ritos de caça, os ritos agrícolas e os ritos de regeneração, de renascimento. Eles retomam as três qualidades de fundo: o frio, que exige a conquista de uma pele, um troféu de caça; a agricultura, que exige uma sentimentalidade soterrada, uma fecundidade protegida, mas também uma ordem severa de trabalhos; e a própria severidade, o rigor que acompanha a regeneração. A coexistência e a interferência

desses três ritos constituem o grande mito masoquista. Todos os romances de Masoch o desenvolvem, em figuras variadas: a mulher ideal caça o urso ou o lobo, organiza ou preside uma comunidade agrícola, impõe ao homem um novo nascimento. E é este último rito que parece essencial, constituindo no mito a verdadeira finalidade dos dois outros. Em “Lobo e loba”, a personagem principal pede a seu pretendente que se deixe costurar dentro de uma pele de lobo, que viva e uive como um lobo, para ser caçado. Já se pode ver a caça ritual a serviço do renascimento. E, de fato, a caça é a operação pela qual a segunda mãe, a mãe oral, se apodera do troféu da mãe primitiva uterina e dispõe do poder de fazer renascer — um segundo nascimento tão independente do pai quanto da mãe uterina, ou seja, uma partenogênese. A Vênus das Peles descreve em detalhes um rito agrícola: as mulheres negras me levaram pelo jardim até o vinhedo que o margeia pelo sul. Entre as parreiras, tinham plantado milho, e alguns pés já ressecados ainda podiam ser vistos. Ao lado havia um arado. As negras me amarraram numa estaca e se divertiram me espetando com os seus alfinetes de cabelo dourados. Mas isso não durou muito, pois Wanda chegou, touca de arminho na cabeça e as mãos nos bolsos da jaqueta. Mandou que me desatassem e me amarrassem as mãos atrás das costas, depois que me pusessem uma canga na nuca e me atrelassem ao arado. As diabinhas negras me levaram pelo campo. Uma delas conduzia o arado, a outra me guiava puxando-me com uma rédea, a terceira me batia com o chicote e a Vênus das Peles, ao lado, contemplava a cena. Encontra-se nesse texto a presença das três imagens da mãe, as três negras. Mas a mãe oral, de certa maneira,

se duplica, aparecendo uma vez na série, como mulher entre as outras, e uma segunda vez, extraída da série, presidindo ao conjunto da série, tendo conquistado e transformado todas as funções das outras mulheres e fazendo-as servir ao tema do renascimento. Pois tudo nos fala de uma partenogênese: a aliança da vinha com o milho, ou do elemento dionisíaco com uma comunidade feminina agrícola; o arado como união com a mãe; as alfinetadas e depois as chicotadas como ativação partenogenética; o renascimento do filho, puxado pela corda.23 Sempre o mesmo tema da escolha entre as três mães, sempre o movimento pendular e a absorção da mãe uterina e da mãe edipiana na gloriosa mãe oral. É ela, a senhora da Lei — que Masoch chama lei da comuna, na qual se integram os elementos de caça, os elementos agrícolas e matriarcais. A mãe uterina, a caçadora, é também caçada, despojada. A mãe edipiana, a mãe do pastor, já integrada num sistema patriarcal (como vítima ou como cúmplice), é sacrificada. Apenas subsiste e triunfa a mãe oral, essência comum da agricultura, do matriarcado e do segundo nascimento. Daí, de um extremo a outro da obra de Masoch, o sonho do comunismo agrícola, que inspira os seus “contos azuis da felicidade” (“Marcela”, “O paraíso no Dniestr”, “A estética do feio”). O laço mais profundo se estabelece entre a comuna, a lei da comuna encarnada pela mãe oral, e o homem da comuna, que só nasce renascendo dessa mulher sozinha. Os dois grandes personagens masculinos na obra de Masoch são Caim e Cristo. O signo dos dois é o mesmo, o signo pelo qual Caim estava marcado já era o sinal da cruz, que se escrevia “x” ou “+”. Ao colocar grande parte da sua obra sob o signo de Caim, Masoch implica muitas coisas: o crime, sempre presente na natureza e na história; a imensidão dos sofrimentos (“minha punição é grande demais para ser suportada”). Mas Caim é também o

agricultor, o preferido da mãe. Eva saudou seu nascimento com gritos de alegria, mas não teve alegria por Abel, o pastor, colocado do lado do pai. O preferido da mãe chegou ao crime para romper a aliança do pai com o outro filho: ele matou a semelhança do pai e tornou Eva a deusa-mãe. (Hermann Hesse escreveu um curioso romance, Demian, onde se misturam os temas nietzchianos e masoquistas: aparece a identificação da deusa-mãe com Eva, gigante que tem na testa a marca de Caim.) Não é apenas pelos tormentos que sofreu que Caim é tão querido por Masoch, mas também pelo crime cometido. Seu crime não apresenta símbolo sadomasoquista algum. Ele pertence inteiramente ao mundo masoquista, pelo projeto que o sustenta, a fidelidade ao mundo materno que o inspira, a eleição da mãe oral e a exclusão do pai, o humor e a provocação. Seu “legado” é um “signo”. Que Caim seja punido pelo Pai marca a volta ofensiva deste último, sua volta alucinatória. Fim do primeiro episódio. Segundo episódio: Cristo. A semelhança do pai é novamente abolida (“Por que me abandonastes?”). E é a Mãe que põe o Filho na cruz. É a Virgem que, pessoalmente, põe Cristo na cruz — contribuição masoquista para a fantasia mariana, versão masoquista de “Deus morreu”. E colocando-o na cruz, num signo que o liga ao filho de Eva, ela dá prosseguimento à tarefa da deusa-mãe, da grande Mãe oral: assegura ao filho uma ressurreição como segundo nascimento partenogenético. Não é tanto o Filho que morre, mas sim Deus Pai, a semelhança do pai no filho. A cruz representa aqui a imagem materna de morte, o espelho onde o eu narcísico de Cristo (= Caim) apercebe-se do eu ideal (Cristo ressuscitado). Mas por que essas dores generalizadas? Por que essa expiação como condição para o segundo nascimento? Por que a enormidade do castigo de Caim e do suplício de Cristo? Por que essa cristologia na obra inteira de Masoch?

O importante para Sade eram as sociedades racionalistas e ateias, maçônicas e anarquistas. Para Masoch, são as seitas místicas agrícolas, como as que ele via no Império Austríaco. Dois dos seus romances falam de seitas assim: A pescadora de almas e A mãe de Deus. Estão entre os seus mais belos romances. Atmosfera tão rarefeita e sufocante, e tal intensidade no suplício consentido, só se encontra nas melhores obras de H.H. Ewers, também especialista em seitas (por exemplo, O aprendiz de feiticeiro). A mãe de Deus conta o seguinte: a heroína, Mardonna, preside sua seita, sua comuna, de forma ao mesmo tempo terna, severa e glacial. Há nela muita raiva, ordens para chicotear e lapidar; no entanto, é meiga. A seita inteira, aliás, é suave e alegre, mas severa com o pecado, hostil à desordem. Mardonna tem uma servente, Nimfodora, jovem graciosa e melancólica que faz no próprio braço um corte profundo para que a Mãe de Deus possa se banhar no sangue, bebêlo e nunca envelhecer. Sabadil ama Mardonna, mas, de outra maneira, ama também Nimfodora. Mardonna se preocupa. Sendo Mãe de Deus, ela exclama: “É o amor da Mãe de Deus que traz a redenção, que constitui um novo nascimento para o homem … Não consegui modificar tua carne, transformar teu amor carnal em afeição divina … Para ti sou apenas um juiz.” E quer o consentimento de Sabadil para o seu próprio suplício. Ela o faz ser pregado numa cruz: Nimfodora se encarrega das mãos e ela mesma, dos pés. Mardonna entra em doloroso êxtase e, quando a noite chega, Sabadil representa a Paixão: “Por que me abandonastes?” — e para Nimfodora: “Por que me traístes?” A mãe de Deus coloca seu filho na cruz precisamente para que ele se torne seu filho e goze de um nascimento que se deve apenas a ela. Em A sereia, Zénobie corta os cabelos de Théofan e exclama: “Afinal consegui fazer de ti um homem.” Em A mulher divorciada, Anna sonha estar à altura de sua missão

e chicotear Julian para afinal lhe dizer: “Passaste na prova, és um homem.” Numa belíssima novela, Masoch conta a vida de um Messias do século XVII: Sabattaí Zwi. Cabalista e fanático, Sabattaí Zwi se mortifica; casa-se com Sara, mas não consuma o casamento, “estarás a meu lado como um doce suplício”. Por ordem dos rabinos, ele a abandona por Hannah. Tudo recomeça. Casa-se finalmente com Miriam, jovem judia polonesa, mas ela toma a dianteira e o proíbe de tocá-la. Apaixonado por Miriam, parte para Constantinopla e tenta convencer o sultão de sua missão de Messias. Cidades inteiras, Salonica, Esmirna e Cairo, se envolvem. Seu nome circula por toda a Europa. Ele entra em intensa luta contra os rabinos e anuncia aos judeus a volta à Judeia. Descontente, a sultana avisa Miriam que mandará matar Sabattaí se ele não mudar de atitude. Miriam o leva para se banhar na confluência de três rios, Arda, Tuntcha e Narisso. Como não reconhecer nos três rios e nas três mulheres de Sabattaí as três imagens de mãe, em que Miriam, a mãe oral, triunfa? Miriam o faz confessar-se a ela, põe-lhe uma coroa de espinhos e o chicoteia, para afinal consumar o casamento: “Mulher, que fizestes de mim?” “Fiz de ti um homem…” No dia seguinte, convocado pelo sultão, ele abjura e torna-se muçulmano. Seus inúmeros fiéis, inclusive entre os turcos, dizem que o Messias só pode aparecer num mundo inteiramente virtuoso ou inteiramente criminoso. Sendo a apostasia o pior crime, “apostatemos para apressar a vinda do Messias”.24 O que significa esse tema constante nos romances de Masoch, “tu não és um homem, faço de ti um homem”? O que significa “tornar-se um homem”? Fica claro que não é absolutamente agir como o pai, nem tomar o seu lugar. É, pelo contrário, suprimir o seu lugar e semelhança, para fazer nascer o homem novo. Os suplícios se dirigem efetivamente contra o pai ou, no filho, contra a imagem do

pai. Diríamos que a fantasia masoquista é mais um pai é espancado do que “uma criança é espancada”. Assim, em várias novelas de Masoch, por exemplo, é o senhor que sofre suplícios durante uma revolta camponesa dirigida por uma mulher da comuna; ela o atrela ao arado ao lado de um boi, ou usa-o como banquinho (Teodora, o banco vivo). Quando o suplício se aplica ao personagem principal, ao filho ou ao apaixonado, à criança, devemos concluir que quem é espancado, o que é abjurado e sacrificado, o que é ritualmente expiado é a semelhança do pai, a sexualidade genital herdada do pai. Um pai miniaturizado, mas mesmo assim um pai. É isso a “Apostasia”. Tornar-se um homem significa então renascer da mulher apenas, ser objeto de um segundo nascimento. Por isso castração e o “amor interrompido”, que a figura, deixam de ser um obstáculo para o incesto ou um castigo contra o incesto e tornam-se a condição que possibilita a união incestuosa com a mãe, assimilada a um segundo nascimento autônomo, partenogenético. O masoquista atua simultaneamente em três processos de denegação: um que magnifica a mãe, emprestando-lhe o falo próprio para fazê-lo renascer; outro que exclui o pai como não tendo função alguma nesse segundo nascimento; e outro ainda que incide propriamente no prazer sexual, interrompendo-o e abolindo a genitalidade para transformá-lo em prazer de renascer. De Caim a Cristo, Masoch exprime o fim último de toda a sua obra: Cristo não como filho de Deus, mas como o novo Homem, isto é, com a semelhança do pai abolida, “o Homem na cruz, sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem disputas, sem trabalho…”.25 Parecia-nos impossível dar definições materiais do masoquismo. É que as combinações sensuais do prazer e da dor implicam condições que não podem ser deixadas de lado, sob pena de tudo misturar, a começar pelo próprio sadismo com o masoquismo. Mas uma definição moral do

masoquismo, por intermédio do sentimento de culpa, é também insatisfatória. No entanto, culpa e expiação são de fato profundamente vividas pelo masoquista (como também uma certa combinação prazer–dor). Ainda aí, é preciso saber de que maneira ele vive essa culpa. O uso que se faz de um sentimento ou o fato de incluí-lo em alguma paródia nunca impediu a sua profundidade. Mas com isso sua natureza muda. Quando a psicanálise supõe que o masoquista vive uma culpa com relação ao pai (como diz Reik: “A punição vem do pai; o crime, por conseguinte, deve ter sido cometido contra o pai…”), fica claro que se dá toda uma etiologia arbitrária, cujo sentido está apenas na intenção de engendrar o masoquismo a partir do sadismo. O masoquista vive no mais profundo sentimento de culpa, mas de forma alguma uma culpa sua diante do pai; pelo contrário, é a semelhança com o pai que é vivida como culpa, como objeto de expiação. Tanto que a culpabilidade no masoquismo é ao mesmo tempo a mais profunda e mais derrisória, a mais bem “revirada”. A culpabilidade é parte do triunfo masoquista. Ela torna o masoquista livre, se identifica ao humor. Não basta dizer, como Reik, que o castigo vem resolver a angústia da culpa e, desse modo, permitir o prazer proibido. Pois a culpa, em sua intensidade, não era menos humorística que o castigo em sua vivacidade. É o pai que é culpado no filho, e não o filho diante do pai. O masoquismo material se apresenta como um dado dos sentidos; o masoquismo moral, como um dado do sentimento. Mas, para além dos sentidos e do sentimento, o masoquista conta uma história, como o elemento suprapessoal que o anima. Ele é conduzido por essa história que descreve como a mãe oral triunfou, como a semelhança do pai foi abolida, como daí surgiu o Homem novo. Certamente, o masoquista usa seu corpo e sua alma para escrever essa história. Mas, nesse sentido, há um masoquismo formal antes de qualquer masoquismo físico, sensual ou material; e um masoquismo dramático antes de

qualquer masoquismo moral ou sentimental. Daí a impressão teatral, no momento mesmo em que os sentimentos são o mais profundamente vividos, as sensações e as dores o mais vivamente sentidas. Do contrato ao mito, por intermédio da lei — que vem do contrato, mas nos lança nos ritos. Pelo contrato, a aplicação da lei paterna é colocada nas mãos da mãe. E essa transferência é singularmente eficaz: é a lei inteira que muda e passa a ordenar o que supostamente proibia. É a culpabilidade que torna inocente o que ela deveria expiar; é a punição que permite o que deveria coibir. A lei inteira torna-se materna e nos conduz a regiões do inconsciente onde reinam apenas as três imagens de mulheres. O contrato representa o ato pessoal da vontade do masoquista; mas, por ele e pelos avatares da lei que se seguem, o masoquista liga-se ao elemento impessoal de um destino que se exprime através de um mito e nos ritos que acabamos de expor. O que o masoquista instaura contratualmente, num momento determinado e por um tempo determinado, é igualmente aquilo que o tempo todo está contido, ritualmente, na ordem simbólica do masoquismo. Para o masoquista, o contrato moderno, esse que ele elabora em alcovas e quartos de vestir, diz o mesmo que os mais antigos ritos, representados nos alagados e nas estepes. Os romances de Masoch refletem essa dupla história e a partir dela desenvolvem sua identidade, atual e antiga.

A psicanálise Duas concepções do sadomasoquismo aparecem sucessivamente em Freud: uma relativa à dualidade dos instintos sexuais e dos instintos do eu, outra, à dualidade dos instintos de vida e de morte. Ambas tendem a determinar uma certa entidade sadomasoquista e assegurar, dentro dessa entidade, a passagem de um elemento para o outro. Devemos questionar em que medida as duas concepções são realmente diferentes; em que medida também uma e outra implicam um “transformismo” freudiano; em que medida, enfim, a hipótese de uma dualidade dos instintos vem, nesses dois casos, limitar tal transformismo. Na primeira interpretação, o masoquismo é apresentado como derivando do sadismo por reviramento. Todo instinto comportaria componentes agressivos, necessários à realização da sua finalidade e voltados para o objeto. A agressividade dos instintos sexuais estaria na origem do sadismo. Em seu desenvolvimento, porém, ela poderia ser determinada a se voltar contra o eu propriamente. Os fatores determinantes dessa reviravolta seriam principalmente de duas espécies: a dupla agressividade contra o pai e a mãe se voltariam contra o eu por influência de uma “angústia de perda do amor” ou por influência de um sentimento de culpa (ligado à instauração do supereu). Esses dois pontos de reviramento são bem distinguidos, principalmente por Béla Grunberger, tendo um deles uma origem pré-genital e o outro uma origem edipiana.a Mas, em todos os casos, a imagem do pai e a imagem da mãe parecem ter papéis desiguais. Porque mesmo cometida pela mãe, a falta diz respeito necessariamente ao pai: é ele quem possui o pênis, é a ele que a criança quer castrar ou matar, é ele que gera o

castigo, que deve ser apaziguado pelo reviramento. Em todos os casos, a imagem do pai parece servir de pivô. Múltiplas razões, no entanto, já intervêm para mostrar que o masoquismo não pode simplesmente se definir como um sadismo revirado contra o eu. A primeira delas é a seguinte: o reviramento sempre vem acompanhado de uma dessexualização da agressividade libidinosa, isto é, do abandono dos fins propriamente sexuais. Freud deixaria claro que a formação do supereu ou da consciência moral, a vitória sobre Édipo, implica a dessexualização desse complexo. Nesse sentido, concebe-se a possibilidade de um sadismo revirado, de um supereu exercendo-se com sadismo contra o eu, sem que por isso haja masoquismo do próprio eu. Não existe masoquismo sem reativação de Édipo, sem “ressexualização” da consciência moral. O masoquismo se caracteriza não pelo sentimento de culpa, mas pelo desejo de ser punido: a punição vem resolver a culpabilidade e a angústia correspondente, e abrir a possibilidade do prazer sexual. O masoquismo se define então menos pelo reviramento do que pela ressexualização do que se revirou. Existe uma segunda razão: devemos ainda distinguir da sexualização masoquista uma “erogenidade” propriamente masoquista. Pois podemos conceber que a punição venha resolver ou satisfazer um sentimento de culpa; no entanto, ela constitui apenas um prazer preliminar, um prazer de espécie moral, que apenas faz os preparativos para o prazer sexual ou o torna possível. Como realmente sobrevem o prazer sexual associado à dor física da punição? Seria dizer que a sexualização nunca se conclui sem uma erogenidade masoquista. É preciso que haja uma base material, algo como um vínculo vivido pelo masoquista entre a dor e o prazer sexual. Freud evocava a hipótese de uma “coexcitação libidinal”, a partir da qual os processos e excitações, ultrapassando certos limites

quantitativos, seriam erotizados. Tal hipótese reconhece a existência de um fundo masoquista irredutível. Por isso Freud, desde a sua primeira interpretação, não se contentou em dizer que o masoquismo é o sadismo revirado; afirmou igualmente que o sadismo é o masoquismo projetado, já que o sádico só pode ter prazer nas dores que causa ao outro na medida em que ele, por si mesmo, viveu “masoquistamente” o vínculo prazer–dor. Mas nem por isso Freud deixa de manter a primazia do sadismo, pronto a distinguir: 1) um sadismo de pura agressividade, 2) o reviramento desse sadismo, 3) a experiência masoquista, 4) um sadismo hedonista. Entretanto, mesmo mantendo que a experiência masoquista intercalar pressuponha o reviramento da agressividade, esse reviramento é apenas uma condição para a descoberta do vínculo vivido, de forma alguma constitutivo desse vínculo, mas, pelo contrário, comprovante da existência de um abismo masoquista específico.26 Existe uma terceira razão: o reviramento contra o eu, na verdade, definiria um estágio pronominal, tal como se vê na neurose obsessiva (“eu me puno”). Mas o masoquismo implica um estágio passivo: sou punido, sou espancado… Há então uma projeção propriamente masoquista pela qual uma pessoa externa deve assumir o papel de sujeito. E sem dúvida essa terceira razão está estreitamente ligada à primeira: a ressexualização é inseparável da projeção (de modo inverso, o estágio pronominal explicita um supereu sádico que permanece dessexualizado). É nesse ponto da projeção que a psicanálise se esforça para explicar o papel aparente da imagem da mãe. Seria para o masoquista fugir das consequências da falta cometida diante do pai. Então, disse Freud, o masoquista se identificaria com a mãe para se oferecer ao pai como objeto sexual; mas, voltando ao risco de castração de que procurava fugir, ele prefere “ser espancado”, o que afasta “ser castrado” e serve, ao mesmo

tempo, como substituto regressivo de “ser amado”; com isso a mãe tomaria o papel da pessoa que espanca, por recalque da escolha homossexual. Ou então: o masoquista estaria lançando a culpa na mãe (“não sou eu, é ela que quer castrar o pai”) e aproveitando para se identificar com essa mãe má, encoberto pela projeção, e assim chegar à posse do pênis (masoquismo-perversão); ou, ao contrário, para fazer fracassar essa identificação, mantendo a projeção e se apresentando ele mesmo como vítima (masoquismo moral: “não é o pai, sou eu que sou castrado”).b Por todas essas razões, a fórmula “sadismo revirado” é insuficiente. Três outras determinações devem ser acrescentadas: 1) um sadismo ressexualizado, 2) e ressexualizado com novas bases (erogenidade), 3) um sadismo projetado. Essas determinações específicas correspondem aos três aspectos que Freud, desde sua primeira interpretação, distinguiu no masoquismo: um aspecto erógeno como base; um aspecto passivo, que deve dar conta, ao mesmo tempo e de maneira bem complexa, da projeção na mulher e da identificação com a mulher; um aspecto moral ou de culpabilidade, que já engloba o processo de ressexualização.27 Mas a questão toda é saber se essas determinações, que se acrescentam ao tema do reviramento, confirmam-no ou, ao contrário, vêm limitá-lo. Reik, por exemplo, mantém completamente a ideia de uma derivação do masoquismo a partir do sadismo. Mas acrescenta: o masoquismo “nasce da recusa que o instinto sádico inicial encontra, e se desenvolve por meio de uma fantasia sádica, agressiva ou desafiadora, que substitui a realidade. Ele permanece incompreensível enquanto acreditarmos que ele é diretamente derivado do sadismo por uma meia-volta contra o eu. Apesar do que possam objetar psicanalistas e sexólogos, insisto em que o lugar de nascimento do masoquismo é a fantasia”.28 Reik quer dizer

que o masoquista renuncia a exercer o seu sadismo; inclusive renuncia a revirá-lo contra si mesmo. Ele principalmente neutraliza o sadismo numa fantasia; substitui a ação pelo sonho; daí o caráter primordial da fantasia. E é somente sob essa condição que ele exerce ou faz exercer contra si uma violência que não pode mais ser dita sádica, já que tem como princípio uma tal suspensão. O problema todo é o de saber se podemos ainda afirmar o princípio de uma derivação quando essa derivação cessou de ser direta e desmente a hipótese de simples reviramento. Freud defende que não há transformação direta entre pulsões ou instintos qualitativamente distintos: a dualidade qualitativa dos instintos torna impossível a passagem de um para o outro. Isso se comprova com relação aos instintos sexuais e ao eu. Sem dúvida o sadismo e o masoquismo, como qualquer formação psíquica, representam, respectivamente, uma certa combinação dos dois instintos. Mas não se “passa” de uma combinação para outra, não se passa do sadismo para o masoquismo, senão por um processo de dessexualização e de ressexualização. A fantasia no masoquismo é o lugar ou o palco desse processo. Tudo se resume a saber se o mesmo sujeito pode participar de uma sexualidade sádica e de uma sexualidade masoquista, já que uma implica uma dessexualização da outra. Seria essa dessexualização um acontecimento vivido pelo masoquista (caso em que haveria passagem, ainda que indireta) ou, pelo contrário, é uma condição estrutural pressuposta pelo masoquismo e que eliminaria qualquer comunicação com o sadismo? Quando duas histórias são dadas, pode-se sempre preencher a lacuna que as separa. Mas esse preenchimento nunca forma uma história do mesmo grau das outras. Tem-se a impressão de que a teoria psicanalítica consiste em preencher a lacuna — por exemplo na maneira como a imagem do pai continuaria a

agir sob a imagem da mãe, determinando o seu papel no masoquismo. É um método que apresenta um grave inconveniente. Ele desloca todas as importâncias e toma como essenciais determinações secundárias. Por exemplo, o tema da mãe má aparece no masoquismo, mas como fenômeno marginal, estando o centro ocupado pela boa mãe. No masoquismo, é a boa mãe que possui o falo, que espanca e humilha, ou que até se prostitui. Colocando em primeiro plano a mãe má, facilmente se cria a possibilidade de reatar o vínculo com o pai e dar prosseguimento ao vínculo do sadismo com o masoquismo — enquanto a boa mãe, pelo contrário, implica uma “lacuna”, quer dizer, a anulação do pai na ordem simbólica. Outro exemplo: o sentimento de culpa tem um papel muito importante no masoquismo, mas como fenômeno de acobertamento, como sentimento de humor de uma culpa já “revirada”; a culpabilidade não é mais da criança com relação ao pai, mas do próprio pai, e da semelhança do pai na criança. Ainda aí existe uma “lacuna” que quem quer fazer o masoquismo derivar do sadismo se apressa em preencher. O erro consiste em apresentar como sendo feito aquilo que já está feito, aquilo que é suposto estar feito do ponto de vista do masoquismo. A culpabilidade só é “masoquistamente” vivida como já revirada, factícia e ostentatória; o pai só é vivido simbolicamente anulado. Ao se querer preencher as “lacunas” que separam o masoquismo do sadismo, cai-se nos mais diversos equívocos, não apenas teóricos, mas também práticos e terapêuticos. Por isso dizemos que o masoquismo não pode ser definido nem como erógeno ou sensual (dor–prazer), nem como moral ou sentimental (culpa-punição): em ambos os casos estamos nos dando uma matéria apta a toda e qualquer transformação. O masoquismo é antes de tudo formal e dramático, isto é, não chega a uma combinação de dor e prazer senão através de um formalismo particular, e só vive a culpa por intermédio de uma história específica.

No domínio da patologia, “lacunas” pertencem a cada distúrbio. É compreendendo a estrutura que elas delimitam e sobretudo evitando preenchê-las que as ilusões do transformismo podem ser evitadas e a análise do distúrbio, progredir. Essas dúvidas sobre a unidade e a comunicação sadomasoquista são reforçadas ainda quando se considera a segunda interpretação freudiana. A dualidade qualitativa tornou-se a dos instintos de vida e de morte, Eros e Tânatos. Não que o instinto de morte, que é puro princípio, possa ser dado como tal; apenas são dadas, e possíveis de serem dadas, as combinações pulsionais dos dois instintos. Mas, justamente, o instinto de morte aparece sob duas figuras diferenciadas, uma delas quando Eros assegura sua derivação voltada para o exterior (sadismo), e a outra quando Eros investe a sua impressão, o resíduo interior (masoquismo). Eia portanto a afirmação de um masoquismo erógeno, “primitivo” e sem derivar do sadismo. É verdade que em seguida voltamos a encontrar o procedimento precedente: o sadismo se revira para produzir os outros aspectos do masoquismo (passivo e moral). Mas encontramos também, e sob forma ainda mais clara, as dúvidas anteriores. Pois não apenas só passamos do sadismo para o masoquismo por um processo implicando ao mesmo tempo uma dessexualização e uma ressexualização, mas cada figura parece implicar por sua vez uma “desintricação”, e ao mesmo tempo uma combinação, dos instintos. Tanto o sadismo quanto o masoquismo, de fato, implicam, respectivamente, que uma certa quantidade de energia libidinosa seja neutralizada, dessexualizada, deslocada e posta a serviço de Tânatos (nunca, então, há transformação direta de um instinto em outro, mas “deslocamento de uma carga energética”). É a esse fenômeno que Freud chama desintricação. E aponta dois pontos fundamentais de desintricação: o narcisismo e a

formação do supereu. O problema inteiro, entretanto, está na natureza dessas desintricações e na maneira como elas se conciliam com a combinação dos instintos (intricação). Ao mesmo tempo, tudo é combinação dos dois instintos, e sempre há desintricações.

a Béla Grunberger, em “Esquisse d’une théorie psychodynamique du

masochisme” (Revue Française de Psychanalyse, 1954), recusa qualquer interpretação edipiana do masoquismo. Mas à “morte do pai edipiano” ele opõe um desejo pré-genital de castração do pai, que seria a verdadeira origem do masoquismo. De qualquer forma, ele recusa a etiologia maternal-oral. b Essa segunda explicação, proposta por Grunberger, remete o

masoquismo a uma fonte pré-edipiana.

O que é instinto de morte? De todos os textos de Freud, é sem dúvida na obra-prima Além do princípio de prazer que ele penetra o mais diretamente, e com que genialidade!, numa reflexão propriamente filosófica. A reflexão filosófica deve ser chamada “transcendental”; esse nome designa uma certa maneira de considerar o problema dos princípios. De fato, rapidamente se percebe que, por “além”, Freud não compreende absolutamente exceções ao princípio de prazer. Todas as exceções aparentes que ele cita — os desprazeres e desvios que a realidade nos impõe, os conflitos que fazem o que é prazer para alguns de nós ser desprazer para outros, os jogos com que nos esforçamos para reproduzir e dominar um acontecimento desprazível, e até mesmo os distúrbios funcionais ou os fenômenos de transferência, a partir dos quais um acontecimento absolutamente desagradável (para todos nós) é obstinadamente reproduzido — todas essas exceções são citadas como aparentes e realmente conciliáveis com o princípio de prazer. Ou seja, não há exceção ao princípio de prazer, embora haja singulares complicações do prazer propriamente. É justamente onde começa o problema; pois se nada contradiz o princípio de prazer e se tudo com ele se concilia, isso não quer dizer que ele dê conta desses elementos e processos que complicam sua aplicação. Se tudo entra na legalidade do princípio de prazer, isso não quer dizer que da mesma forma tudo saia dele. E como as exigências da realidade também não bastam para dar conta dessas complicações, que com frequência têm sua origem na fantasia, deve-se dizer que o princípio de prazer reina sobre tudo, mas não governa tudo. Não há exceção ao princípio, mas há um resíduo irredutível ao princípio; nada

é contrário ao princípio, mas há algo exterior e heterogêneo em relação a ele — um além… Aparece aqui a necessidade da reflexão filosófica. Em primeiro lugar, chama-se princípio àquilo que rege um domínio; e trata-se nesse caso de um princípio empírico ou lei. Assim, o princípio de prazer rege (sem exceção) a vida psíquica no isso. Mas uma outra questão é saber o que submete o domínio ao princípio. Um outro tipo de princípio é necessário, um princípio de segundo grau, que dê conta da submissão necessária do domínio ao princípio empírico. É esse outro princípio que se chama transcendental. O prazer é princípio porque rege a vida psíquica. Porém, qual a mais alta instância que submete a vida psíquica à dominação empírica do princípio de prazer? O filósofo Hume já observava que há prazeres na vida psíquica, como há dores; mas podem-se revirar à vontade todas as faces das ideias de prazer e de dor: nunca se extrairá daí a forma de um princípio a partir do qual busquemos o prazer e evitemos a dor. Freud diz o mesmo: naturalmente há na vida psíquica prazeres e dores, mas num ou noutro lugar, em estado livre, esparso, flutuante, “não ligado”. Que um princípio esteja organizado de tal maneira que o prazer seja sistematicamente o que se busca e a dor, o que se evita, isso é algo que exige uma explicação superior. Resumindo, há pelo menos uma coisa de que o prazer não dá conta e que lhe permanece exterior: é o valor de princípio que ele está determinado a tomar na vida psíquica. Qual é a ligação superior que faz do prazer um princípio, que lhe dá o status de princípio e lhe submete a vida psíquica? Pode-se dizer que o problema colocado por Freud é o contrário daquele que lhe é frequentemente imputado: trata-se não de exceções ao princípio de prazer, mas da fundação desse princípio. Trata-se da descoberta de um princípio transcendental: problema de “especulação”, acrescenta Freud.

A resposta de Freud é: só a ligação da excitação tornaa “resolvível” em prazer, ou seja, torna possível a sua descarga. Sem a atividade de ligação, sem dúvida há descargas e prazeres, mas esparsos, ao acaso dos encontros, sem valor sistemático. É a ligação que torna possível o prazer, como princípio, ou que funda o princípio de prazer. Aí temos, então, Eros descoberto como fundamento, sob a dupla figura da ligação: ligação energética da própria excitação, ligação biológica das células (é possível que a primeira só ocorra através da segunda, ou nela encontre condições particularmente favoráveis). E nós podemos e devemos determinar essa ligação constitutiva de Eros como “repetição”: repetição com relação à excitação; repetição do momento da vida, ou da união necessária até para os unicelulares. A especificidade de uma pesquisa transcendental é que não se pode pará-la quando se quer. Como se poderia determinar um fundamento sem sermos também precipitados ainda mais além, no sem-fundo do qual ele emerge? “Força terrível a da repetição”, diz Musil, “terrível divindade! Atração do vazio que nos carrega mais e mais para baixo como o funil de um turbilhão cujas paredes se afastam… Sabe-se bem no final: era apenas a queda profunda, pecadora num mundo em que a repetição, de grau em grau, nos leva para um pouco mais baixo.”29 Como a repetição desempenharia o papel de um certo ao mesmo tempo (ao mesmo tempo que a excitação, ao mesmo tempo que a vida) sem desempenhar também o papel de um antes, em outro ritmo e num outro desempenho (antes que a excitação venha romper a indiferença do inexcitável, antes que a vida venha romper o sono do inanimado)? Como a excitação seria ligada e, com isso, “resolvida”, se a mesma força também não tendesse a negá-la? Além de Eros, Tânatos. Além do fundo, o sem-fundo. Além da repetiçãolaço, a repetição-borracha, que apaga e que mata. Daí a

complexidade dos textos de Freud: uns sugerindo que a repetição talvez seja uma só e única força, ora demoníaca, ora salutar, que se exerce em Tânatos e em Eros; outros recusando essa hipótese e afirmando definitivamente o mais puro dualismo qualitativo entre Eros e Tânatos, como uma diferença de natureza entre a união, a construção de unidades cada vez mais vastas e a destruição; e outros mais, enfim, indicando que essa diferença qualitativa sem dúvida se estende por sobre uma diferença de ritmo e de amplitude, uma diferença nos pontos de chegada (na origem da vida ou anterior à origem…). Deve-se compreender que a repetição, tal como Freud a concebe nesses textos geniais, é em si mesma síntese do tempo, síntese “transcendental” do tempo. Ela é simultaneamente repetição do antes, do durante e do depois. Constitui no tempo o passado, o presente e até mesmo o futuro. Ao mesmo tempo, o presente, o passado e o futuro se constituem no tempo, apesar de haver entre eles uma diferença qualitativa ou de natureza, com o passado sucedendo ao presente e o presente, ao futuro. Daí os três aspectos, de um monismo, de um dualismo de natureza e de uma diferença de ritmo. E, se podemos juntar o futuro ou o depois às duas outras estruturas da repetição — o antes e o durante —, é porque essas duas estruturas correlatas só constituem a síntese do tempo abrindo e tornando possível um futuro nesse tempo: à repetição que liga e constitui o presente, à repetição que apaga e constitui o passado, junta-se, a partir das suas combinações, uma repetição que salva… ou que não salva. (Daí o papel decisivo da transferência como repetição progressiva, que libera e salva, ou fracassa.) Voltemos à experiência: a repetição que, no fundo e no sem-fundo, precede o princípio de prazer, é agora vivida como tendo sido subvertida, subordinada a esse princípio (repete-se em função de um prazer anteriormente obtido ou

a se obter). Os resultados da pesquisa transcendental são que Eros é o que torna possível a instauração do princípio empírico de prazer, mas sempre e necessariamente arrastando Tânatos consigo. Nem Eros nem Tânatos podem ser dados ou vividos. Apenas são dadas, na experiência, combinações dos dois — sendo o papel de Eros ligar a energia de Tânatos e submeter essas combinações ao princípio de prazer no isso. Por essa razão, apesar de Eros, como também Tânatos, não ser dado, pelo menos ele se faz ouvir e age. Mas Tânatos, o sem-fundo carregado por Eros, trazido à superfície, é essencialmente silencioso; e, com isso, ainda mais terrível. Daí a necessidade que vimos de manter em francês a palavra “instinto”, instinto de morte, para designar essa instância transcendente e silenciosa. Quanto às pulsões, pulsões eróticas e destrutivas, devem somente designar os componentes das combinações determinadas, quer dizer, os representantes, no determinado, de Eros e de Tânatos, os representantes diretos de Eros e os representantes indiretos de Tânatos, sempre misturados no isso. Tânatos é; e, no entanto, não há “não” no inconsciente, porque nele a destruição é sempre dada como o inverso de uma construção, no estado de uma pulsão que se combina necessariamente com a de Eros. O que significa, então, a desintricação das pulsões? É o mesmo que perguntar: o que a combinação das pulsões se torna quando se consideram não mais o isso, mas o eu, o supereu e a complementariedade deles? Freud mostrou como a constituição do eu narcísico e a formação do supereu implicavam, ambas, um fenômeno de “dessexualização”. Ou seja, uma certa quantidade de libido (energia de Eros) é neutralizada, torna-se neutra, indiferente e deslocável. A dessexualização nos dois casos parece diferir profundamente: num caso ela se confunde com um processo de idealização, que constitui talvez a força de imaginação no eu; no outro, com um processo de

identificação, que constitui talvez o poder do pensamento no supereu. Mas com relação ao princípio empírico de prazer, a dessexualização em geral tem dois efeitos possíveis: introduzir distúrbios funcionais na aplicação do princípio; ou promover uma sublimação das pulsões que ultrapassa o prazer, indo a satisfações de uma outra ordem. De qualquer maneira, seria um erro compreender a desintricação como se o princípio de prazer fosse desmentido, como se as combinações que lhe estão submetidas fossem desfeitas em proveito de uma aparição de Eros ou de Tânatos em estado puro. A desintricação significa somente, em função do eu e do supereu, a formação dessa energia deslocável no interior das combinações. O princípio de prazer não é absolutamente destronado, qualquer que seja a gravidade dos distúrbios da função encarregada de prosseguir com sua aplicação (é nesse sentido que Freud pode manter o princípio do sonho como realização de desejos, mesmo no caso de neurose traumática em que a função do sonho tenha sofrido os mais graves distúrbios). O princípio de prazer tampouco é subvertido pelas resignações que lhe são impostas pela realidade ou pelas extensões espirituais que a sublimação lhe abre. Nunca Tânatos é dado, nunca ele fala; sempre a vida se acha preenchida pelo princípio empírico de prazer e as combinações que lhe estão submetidas — apesar de a fórmula da combinação singularmente variar. Ora, não existiria ainda uma outra solução fora dos distúrbios funcionais da neurose e das extensões espirituais da sublimação? Não existiria uma via ligada não mais à complementariedade funcional do eu e do supereu, mas à sua cisão estrutural? Não seria aquela que Freud indica designando-a precisamente pelo nome de perversão? A perversão parece apresentar o seguinte fenômeno: nela a dessexualização se produz ainda mais claramente do que na neurose e na sublimação, ela inclusive age com uma

frieza incomparável; entretanto, vem acompanhada de uma ressexualização que de forma alguma a desmente, mas opera sobre novas bases, igualmente estranhas aos distúrbios funcionais e às sublimações. Tudo se passa como se o dessexualizado fosse ressexualizado como tal e de uma nova maneira. É nesse sentido que a frieza, o gelo formam o elemento essencial da estrutura perversa. Encontramos esse elemento tanto na apatia sádica quanto no ideal do frio masoquista: “teorizado” na apatia, “fantasiado” no ideal. E a força de ressexualização perversa é tanto mais forte e extensa quanto intensa tiver sido a frieza da dessexualização, e não acreditamos também que a perversão possa ser definida por uma simples ausência de integração. Sade mostra que nenhuma paixão, a ambição política, a avareza pecuniária etc. é estranha à “lubricidade”; não que ela esteja no seu princípio, mas, ao contrário, surge no final como aquilo que procede in loco à ressexualização (e Juliette, em seus conselhos sobre a força de projeção sádica, começava dizendo: “Fiquem quinze dias inteiros sem pensar em luxúrias, distraiam-se, divirtam-se com outras coisas…”). Mesmo que a frieza masoquista seja de outra espécie, nela reencontramos o processo de dessexualização como condição para a ressexualização in loco, pela qual todas as paixões do homem, as que concernem ao dinheiro, à propriedade, ao Estado, poderão se arranjar a favor do masoquista. E é exatamente o que é essencial, que a ressexualização se faça in loco, numa espécie de salto. Nem assim o princípio de prazer é destronado: mantém todo o seu poder empírico. O sádico encontra prazer na dor do outro, o masoquista encontra prazer na própria dor, esta desempenhando o papel de condição sem a qual não se obteria prazer. Nietzsche colocava a questão, eminentemente espiritualista, do sentido do sofrimento. E dava a única resposta digna: se o sofrimento, se até mesmo

a dor, tiver um sentido, isso deve estar dando prazer a alguém. Nesse caminho, existem somente três hipóteses possíveis. A hipótese normal, moral ou sublime — nossas dores dão prazer aos deuses que nos contemplam e vigiam — e duas hipóteses perversas: a dor dá prazer para quem a inflige, ou para quem a sofre. É evidente que a resposta normal é a mais fantástica, a mais psicótica das três. Mas já que o princípio de prazer mantém o seu poder na estrutura perversa como em outros pontos, o que mudou na fórmula das combinações que lhe estão submetidas? O que significa o salto in loco? O papel particular de uma função de reiteração já nos tinha aparecido anteriormente, tanto no masoquismo quanto no sadismo: acumulação e precipitação quantitativas do sadismo, suspense e congelamento qualitativos do masoquismo. Quanto a isso, corre-se o risco de o conteúdo manifesto das perversões nos esconder o mais profundo. O vínculo aparente do sadismo com a dor, o vínculo aparente do masoquismo com a dor estão, na verdade, subordinados a essa função de reiteração. Sade define o mal por uma identificação com o moto-contínuo das moléculas furiosas; Clairwil sonha com crimes que, se porventura tivessem efeito perpétuo, libertariam a repetição de qualquer hipoteca; e o sofrimento infligido, no sistema de Saint-Fond, só vale na medida em que deve se reproduzir ao infinito, sempre graças ao jogo das moléculas malfazejas. Sob outras condições, vimos que a dor masoquista está absolutamente subordinada à espera e à função de retomada e de reiteração na espera. Eis o essencial: a dor só é valorizada com relação às formas de repetição que condicionam seu uso. É o ponto que Klossowski indica, ao escrever sobre a monotonia de Sade — “Não pode haver transgressão no ato carnal se ele não for vivido como um acontecimento espiritual; mas, para se captar o seu objeto, deve-se buscar e reproduzir o acontecimento numa descrição reiterada do ato carnal. Essa descrição reiterada do ato carnal não

apenas dá conta da transgressão, ela própria é uma transgressão da linguagem pela linguagem” — ou então ao assinalar o papel da repetição sobretudo no masoquismo e nas cenas congeladas: “A vida reiterando-se para se recobrar na própria queda, como se retivesse a respiração numa apreensão instantânea de sua origem…”30 Parece, no entanto, que um tal resultado é decepcionante e se reduz à ideia de que a repetição dá prazer… Mas quanto mistério no bis repetita! Sob os tambores sádico e masoquista, encontra-se a repetição como força terrível. O que mudou foi a relação repetição– prazer. Em vez de viver a repetição como uma conduta a se ter com um prazer obtido ou a se obter, em vez de a repetição ser comandada pela ideia de se encontrar ou obter um prazer, a repetição se desencadeia, independente de qualquer prazer prévio. Ela é que se tornou ideia, ideal. E é o prazer que se torna conduta com relação à repetição, passando a acompanhá-la e segui-la como terrível força independente. O prazer e a repetição então inverteram os seus papéis: é o efeito do salto in loco, quer dizer, do duplo processo de dessexualização e ressexualização. Entre os dois, parecia que o instinto de morte ia falar; mas como o salto se dá in loco, como que num instante, é ainda o princípio de prazer que mantém a palavra. Há um misticismo do perverso: o perverso mais facilmente e melhor recupera o que ele tiver abandonado. É como numa teologia negra em que o prazer deixasse de ser a motivação da vontade, sendo essencialmente abjurado, denegado, “renunciado”, apenas para voltar como recompensa ou resultado, e como lei. A fórmula do misticismo perverso é a frieza e o conforto (a frieza da dessexualização, o conforto da ressexualização, tão evidentes nos personagens de Sade). Quanto ao embasamento na dor, por parte do sadismo e do masoquismo, não podemos compreendê-lo de verdade enquanto o considerarmos em si mesmo: a dor não

tem absolutamente um sentido sexual, mas representa, pelo contrário, a dessexualização que torna a repetição autônoma e lhe subordina in loco os prazeres da ressexualização. Dessexualiza-se e mortifica-se Eros para melhor ressexualizar Tânatos. No sadismo e no masoquismo, não há vínculos misteriosos entre dor e prazer. O mistério está em outro lugar. Está no processo de dessexualização que junta a repetição ao oposto do prazer, e, em seguida, no processo de ressexualização que age como se o prazer da repetição procedesse da dor. No sadismo, como no masoquismo, a relação com a dor é um efeito.

Supereu sádico e eu masoquista Considerando-se a gênese psicanalítica do masoquismo a partir do sadismo (e quanto a isso não há grande diferença entre as duas interpretações de Freud, visto que a primeira já reconhece a existência de um fundo masoquista irredutível e a segunda, mesmo marcando a existência de um masoquismo primário, não deixa de insistir que o caráter completo do masoquismo só é obtido pelo reviramento do sadismo), tem-se a impressão de que o sádico mostra-se singularmente privado de supereu e o masoquista, ao contrário, sofre de um supereu devorador que revira o sadismo. As outras interpretações, que dão ao masoquismo outros pontos de reviravolta que não o supereu, devem ser consideradas complementares ou variantes, conforme o caso, já que guardam a hipótese global do reviramento do sadismo e da entidade sadomasoquista. O mais simples então é considerar a linha: agressividade–reviramento contra o eu sob a instância do supereu. Estaríamos passando para o masoquismo por uma transferência da agressividade para o supereu, que inspiraria o reviramento do sadismo contra o eu. Do ponto de vista genético, temos aí o essencial da argumentação favorável à unidade do sadismo e do masoquismo. Mas trata-se de uma linha “partida” que segue imperfeitamente os sintomas. O eu masoquista só é esmagado aparentemente. Quanta derrisão, humor, irresistível revolta, quanto triunfo não se esconde sob o eu que se declara tão fraco! A fraqueza do eu é a armadilha colocada pelo masoquista, que deve levar a mulher ao ponto ideal da função que lhe é determinada. Se ao masoquista falta alguma coisa, é o supereu, de forma alguma o eu. Na projeção masoquista sobre a mulher espancadora, vê-se que o supereu só toma

uma forma exterior para se tornar ainda mais derrisório e servir às finalidades de um eu triunfante. Do sádico pode-se dizer quase o contrário: ele tem um supereu forte e esmagador, e nada mais. O sádico tem um supereu tão forte que se identificou com ele: ele é o seu próprio supereu e só encontra um eu no exterior. O que ordinariamente moraliza o supereu são a interioridade e a complementariedade de um eu sobre o qual ele exerce seu rigor, e também a componente materna, guardiã dessa complementariedade. Mas quando o supereu parte impetuoso, expulsa o eu e, com ele, a imagem materna, a sua imoralidade de base se manifesta nisso que chamamos sadismo. O sadismo não tem outras vítimas senão a mãe e o eu. Ele não tem outro eu senão no exterior: é o sentido fundamental da apatia sádica. Ele não tem outro eu senão o das suas vítimas: monstro reduzido a um supereu, supereu que realiza sua crueldade total e reencontra, num salto, sua plena sexualidade assim que deriva sua força para fora. O fato de o sádico não ter outro eu senão o de suas vítimas explica o aparente paradoxo do sadismo, seu pseudomasoquismo. O libertino gosta de sofrer as dores que inflige ao outro. Voltada para fora, a loucura de destruição vem acompanhada pela identificação com as vítimas exteriores. É esta a ironia sádica: dupla operação pela qual o sádico necessariamente projeta para fora o seu eu dissolvido e, ao mesmo tempo, vive o exterior como seu único eu. Não existe aí nenhuma unidade real com o masoquismo, nenhuma causa comum, e sim um processo original pertencente ao sadismo, um pseudomasoquismo inteira e exclusivamente sádico, que só aparente e grosseiramente coincide com o masoquismo. A ironia, de fato, é o exercício de um supereu devorador — a arte da expulsão ou da negação do eu com todas as consequências sádicas. Quanto ao masoquismo, não basta inverter esse esquema. Certo, o eu triunfa; e o supereu, por sua vez, só

pode aparecer fora, sob a figura da mulher-carrasco. Mas, justamente, o supereu não é negado, como acontece com o eu na operação sádica, o supereu aparentemente guarda o seu poder de julgar e de sancionar. Esse poder, entretanto, quanto mais guardado, mais se revela derrisório, simples disfarce para outras coisas. Se a mulher que espanca ainda encarna o supereu, é dentro de condições de derrisão radical: como se brinca com uma pele de animal ou um troféu, ao final da caçada. Pois, na verdade, o supereu está morto — mas não por efeito de uma negação ativa e sim por uma “denegação”. E a mulher espancadora só representa o supereu, superficialmente e no exterior, para torná-lo também objeto dos golpes, o espancado por excelência. Assim se explica a cumplicidade da imagem da mãe e do eu, contra a semelhança do pai no masoquismo. A semelhança do pai designa ao mesmo tempo a sexualidade genital e o supereu como agente de repressão; um, no entanto, é “esvaziado” junto com o outro. Temos aí o humor, que não é o simples contrário da ironia, mas que procede por seus próprios meios. O humor é o triunfo do eu contra o supereu: “Vê, o que quer que faça, você já está morto, só existe em estado de caricatura, e quando a mulher que me espanca o representa, é ainda você que está sendo espancado… Eu o denego já que você próprio se nega.” O eu triunfa, afirma sua autonomia na dor, seu nascimento partenogenético no final das dores, já que estas são vividas como afetando o supereu. Não acreditamos que o humor, como queria Freud, exprima um supereu forte. É verdade que Freud reconhecia a necessidade de um ganho secundário do eu, fazendo parte do humor: falou de desafio, de invulnerabilidade do eu, de triunfo do narcisismo com a cumplicidade do supereu.31 Mas esse ganho não é secundário, é a parte essencial. E seria cair na armadilha do humor tomar ao pé da letra a imagem que ele nos propõe do supereu — imagem para rir e para denegar. As

proibições do supereu tornam-se as condições sob as quais se obtém o prazer proibido. O humor é o exercício de um eu triunfante, a arte do desvio ou da denegação do supereu, com todas as suas consequências masoquistas. Daí existir um pseudossadismo no masoquismo, assim como um pseudomasoquismo no sadismo. Esse sadismo propriamente masoquista, que ataca o supereu no eu e fora do eu, nada tem a ver com o sadismo do sádico. O sadismo vai do negativo à negação: do negativo como processo parcial de destruição sempre reiterada à negação como ideia total da razão. E é exatamente o estado do supereu no sadismo que presta conta desse encaminhamento. Na medida em que o supereu sádico expulsa o eu, projetando-o na qualidade das suas vítimas, ele se coloca diante de um processo de destruição a empreender e a retomar. Na medida em que o supereu fixa ou determina um estranho “ideal do eu” — identificar-se com as vítimas —, ele contabiliza, totaliza os processos parciais, ultrapassa-os indo na direção de uma Ideia da negação pura, que constitui o frio pensamento do supereu. Por isso o supereu representa o alto ponto da dessexualização especificamente sádica: o movimento de totalizar extrai uma energia neutra ou deslocável das combinações em que o negativo só entra como parte. Mas, no ponto mais elevado dessa dessexualização, sobrevém a ressexualização total, a ressexualização do pensamento puro ou da energia neutra. Por isso a força demonstrativa, os discursos e explanações especulativos que representam essa energia não se juntam de fora à obra de Sade, mas formam o essencial do movimento in loco de que o sadismo inteiro depende. No centro do sadismo está a tarefa de sexualizar o pensamento, sexualizar o processo especulativo enquanto tal, enquanto dependente do supereu.

O masoquismo vai da denegação ao suspense: da denegação como processo que se libera da pressão do supereu ao suspense encarnando o ideal. A denegação é um processo qualitativo, que transfere para a mãe oral os direitos e a posse do falo. O suspense representa a nova qualificação do eu, o ideal de renascimento a partir desse falo materno. Entre os dois desenvolve-se uma relação qualificada da imaginação no eu, bem diferente da relação quantitativa do pensamento no supereu. Pois a denegação é uma reação da imaginação, tanto quanto a negação é um ato do pensamento. A denegação recusa o supereu e confia à mãe o poder de fazer nascer um “eu ideal”, puro, autônomo, independente do supereu. Se a denegação recai sobre a castração não é por exemplo, mas em sua origem e essência. A forma da denegação fetichista — “Não, à mãe não falta o falo” — não é uma forma especial de denegação entre outras: é o princípio do qual derivam todas as outras figuras, a anulação do pai e a rejeição da sexualidade. Do mesmo modo, a denegação em geral não é uma forma de imaginação: ela constitui o fundo da imaginação como tal, que suspende o real e encarna o ideal nesse suspense. Denegar e suspender pertencem à essência da imaginação e remetem-na ao ideal como à sua função particular. Daí a denegação ser o processo de dessexualização propriamente masoquista. O falo materno não é um órgão sexual, mas, ao contrário, o órgão ideal de uma energia neutra, ele próprio produtor de ideal, quer dizer, do eu do segundo nascimento ou do “novo homem sem amor sexual”. Se pudemos falar de elemento impessoal no masoquismo, foi em função desse desdobramento e da operação suprapessoal que o produz, apesar de ainda se tratar do eu. Mas no ponto mais elevado da dessexualização masoquista continua a se produzir simultaneamente a ressexualização no eu narcísico, que contempla a sua imagem no eu ideal através da mãe oral. Ao frio pensamento do sádico se opõe a imaginação gelada do masoquista. E, conforme as indicações de Reik, é

preciso fazer intervir a “fantasia” como lugar de origem do masoquismo. Com o sadismo, o duplo processo de dessexualização e ressexualização manifesta-se no pensamento e se exprime na força demonstrativa. Com o masoquismo, o duplo processo se manifesta na imaginação e se exprime numa força dialética (o elemento dialético está na relação eu narcísico–eu ideal, enquanto o elemento mítico é fornecido pela imagem da mãe que condiciona essa relação). Talvez seja uma má interpretação do eu, do supereu e das suas relações o que funda a ilusão genética da unidade das duas perversões. O supereu não desempenha absolutamente o papel de ponto de reviramento entre o sadismo e o masoquismo. A estrutura do supereu pertence inteiramente ao sadismo; e, se ela produz um certo masoquismo, é o masoquismo próprio do sádico, que só muito grosseiramente coincide com o masoquismo do masoquista. A estrutura do eu pertence inteiramente ao masoquismo etc. A dessexualização ou a própria desintricação de forma alguma é um modo de passagem (como quando se propõe o esquema: sadismo do eu– dessexualização no supereu–ressexualização no eu masoquista). Pois tanto o sadismo quanto o masoquismo integram e possuem sua forma particular de dessexualização e de ressexualização. A afinidade com a dor depende de condições formais inteiramente diversas nos dois casos. O instinto de morte também não é um elemento que assegure a unidade e a comunicação das duas perversões. É sem dúvida o invólucro comum do sadismo e do masoquismo, mas invólucro exterior ou transcendente, limite que guarda o seu poder de nunca ser “dado”. E, de fato, mesmo que o instinto de morte nunca seja dado, ele é pensado no supereu, à maneira sádica, e é imaginado no eu, à maneira masoquista. O que corresponde à observação de Freud de que não se pode

falar do instinto de morte senão de maneira especulativa ou mítica. Com relação ao instinto de morte, o sadismo e o masoquismo se diferenciam, não param de se diferenciar: são estruturas diferentes, e não funções transformáveis. Em suma, não é em termos de derivação genética, mas de cisão estrutural que o sadismo e o masoquismo revelam suas naturezas. Daniel Lagache insistiu recentemente na possibilidade de uma tal cisão eu–supereu: ele distingue e, se necessário, opõe o sistema eu narcísico–eu ideal, e o sistema supereu-ideal do eu. Ou o eu se lança numa iniciativa mítica de idealização, em que se serve da imagem da mãe como um espelho capaz de refletir e, ao mesmo tempo, produzir o “eu ideal”, como ideal narcísico de onipotência, ou então se lança numa iniciativa especulativa de identificação e se serve da imagem do pai para produzir um supereu capaz de determinar um “ideal do eu” como ideal de autoridade, fazendo intervir uma fonte exterior ao narcisismo.32 E, sem dúvida, esses dois polos, eu e supereu, eu ideal e ideal do eu, aos quais correspondem os dois tipos de dessexualização, podem ter um papel na estrutura de conjunto, não apenas inspirando formas de sublimação bem diversas, mas também suscitando os mais graves distúrbios funcionais (Lagache interpreta a mania como prevalência funcional do eu ideal, e a melancolia como dominação do supereu–ideal do eu). Porém mais importante ainda é a possibilidade, para esses dois polos de dessexualização, de ter um papel nas estruturas diferenciadas ou dissociadas da perversão, em favor da ressexualização perversa que confere a cada um toda uma suficiência estrutural. O masoquismo é uma história que conta como o supereu foi destruído, por quem foi destruído e em que resultou essa destruição. Acontece, porém, de o ouvinte compreender mal a história e acreditar que o supereu triunfa quando, na verdade, agoniza. É o perigo de toda história e das “lacunas” que elas comportam. O

masoquista, então, diz, com toda a força dos seus sintomas e de suas fantasias: “Era uma vez três mulheres…” E conta o combate que elas travam entre si, com o triunfo da mãe oral. Ele próprio se introduz nessa antiquíssima história, com um ato preciso que é o contrato moderno. Mas é como obtém o mais curioso efeito: ele abjura a semelhança do pai, ou a sexualidade que é a sua herança, mas ao mesmo tempo recusa a imagem do pai como autoridade repressiva que regulamenta a sexualidade e serve de princípio para o supereu. Ao supereu de instituição ele opõe a aliança contratual do eu com a mãe oral. Entre a primeira mãe e a amante, a mãe oral funciona como imagem de morte e estende ao eu o frio espelho da sua dupla abjuração. Mas a morte só pode ser imaginada como segundo nascimento, partenogênese de onde o eu sai, livre de supereu e de sexualidade. A reflexão do eu na morte produz o eu ideal, nas condições de independência ou de autonomia do masoquismo. O eu narcísico contempla o eu ideal no espelho materno da morte: é a história começada por Caim com a ajuda de Eva; continuada por Cristo com a ajuda da Virgem; retomada por Sabbataí Zwi com a ajuda de Miriam. É o visionário masoquista e a sua prodigiosa visão de “Deus morreu”. Mas o eu narcísico goza com esse desdobramento: ele se ressexualiza, na medida da dessexualização do eu ideal. É por isso que os mais fortes castigos, as dores intensas adquirem nesse contexto um papel erótico tão particular, em relação com a imagem de morte. No eu ideal, eles significam o processo de dessexualização liberto do supereu e da semelhança do pai; e no eu narcísico, a ressexualização que justamente lhe dá os prazeres que o supereu proíbe. E o sadismo também é uma história. Por sua vez, ela conta como o eu, em outro contexto e em outro combate, é espancado e expulso. Como o supereu, desencadeado, adquire um papel exclusivo, inspirado na inflação do pai.

Como a mãe e o eu se tornam vítimas preferenciais. Como a dessexualização, agora representada pelo supereu, deixa de ser moral ou moralizante assim que cessa de se exercer contra um eu interior e se volta para fora, para vítimas exteriores que têm a qualidade do eu rejeitado. Como o instinto de morte aparece então como pensamento terrível, como uma Ideia da razão demonstrativa. Como a ressexualização se produz no “ideal do eu”, no pensador sádico, que se opõe sob todos os aspectos ao visionário masoquista. Essa é uma história inteiramente diferente. Quis apenas mostrar o seguinte: pode-se falar à vontade da violência e da crueldade na vida sexual; pode-se mostrar à vontade que essa violência ou crueldade combina com a sexualidade de diversas maneiras; podem-se inventar à vontade os meios de se passar de uma combinação para outra. Diz-se que é o mesmo que gosta de causar sofrimento e sofrer; fixam-se pontos imaginários de reviravolta ou reviramento que se aplicam a um vastíssimo conjunto mal determinado. Em suma, considera-se, graças a preconceitos transformistas, que a unidade sadomasoquista é óbvia. O que quis mostrar foi que talvez, com isso, tenham se contentado com conceitos bem toscos, mal diferenciados. Para garantir a unidade do sadismo com o masoquismo, utilizam-se dois procedimentos. Por um lado, de um ponto de vista etiológico, mutilam-se o sadismo e o masoquismo de alguns dos respectivos componentes, para fazer deles transições de um para o outro (assim o supereu, componente essencial do sadismo, é, pelo contrário, apresentado como o ponto em que o sadismo se revira em masoquismo; e o mesmo acontece com o eu, componente essencial do masoquismo). Por outro lado, de um ponto de vista sintomatológico, síndromes grosseiras, vagos efeitos análogos e vagas coincidências são considerados provas da entidade sadomasoquista (por isso, um “certo” masoquismo do sádico e um “certo” sadismo do

masoquista). No entanto, qual médico trataria a febre como sintoma preciso de uma doença específica, em vez de simples síndrome indeterminada, servindo como expressão muito geral de possíveis doenças? O sadomasoquismo se inclui aí: é a síndrome da perversão em geral, que deve ser dissociada para que um diagnóstico diferencial entre em jogo. A crença na unidade sadomasoquista baseia-se não numa argumentação propriamente psicanalítica, mas numa tradição pré-freudiana, feita de assimilações apressadas e de más interpretações genetistas que a psicanálise, é verdade, se contentou em tornar mais convincentes, em vez de colocá-las em questão. Por isso a leitura de Masoch é necessária. É injusto não se ler Masoch, sendo Sade objeto de estudos tão profundos, que se inspiram tanto na crítica literária quanto na interpretação psicanalítica, estudos que também contribuem para a renovação de ambas. Igualmente injusto ler-se Sacher-Masoch pro curando apenas um simples complemento de Sade, uma espécie de prova ou verificação mostrando que do sadismo passa-se ao masoquismo, mesmo que o masoquismo, por sua vez, desemboque no sadismo. Na verdade, o gênio de Sade e o gênio de Masoch são inteiramente diferentes; seus mundos, sem comunicação; suas técnicas romanescas, sem relação alguma. Sade se exprime numa forma que reúne a obscenidade das descrições ao rigor apático das demonstrações; Masoch, numa forma que multiplica as denegações para dar nascimento, na frieza, a um suspense estético. A confrontação não deve necessariamente ser desvantajosa para Masoch. Alma eslava, com o aporte do romantismo alemão, Masoch utiliza não mais o sonho romântico, mas a fantasia e todas as forças da fantasia na literatura. Literariamente, Masoch é o mestre da fantasia e do suspense: nem que fosse apenas por essa técnica, seria já um grande escritor, que alcança a força do mito através

do folclore, como Sade soube alcançar a força demonstrativa através das descrições. Que os seus nomes tenham servido para designar as duas perversões de base deve-nos relembrar que as doenças são denominadas mais a partir dos seus sintomas que em função das suas causas. A etiologia, que é a parte científica ou experimental da medicina, deve estar subordinada à sintomatologia, que é a sua parte literária, artística. Somente sob essa condição se evita dissociar a unidade semiológica de um distúrbio e, inversamente, reunir distúrbios bem diferentes sob um nome mal fabricado, num conjunto arbitrariamente definido por causas não específicas. “Sadomasoquismo” é um desses nomes mal fabricados, um monstro semiológico. Cada vez que nos deparamos com algum sinal aparentemente comum, descobrimos tratar-se apenas de uma síndrome, dissociável em sintomas irredutíveis. Em suma: 1) a faculdade especulativodemonstrativa do sadismo, a faculdade dialéticoimaginativa do masoquismo; 2) o negativo e a negação no sadismo, a denegação e o suspensivo no masoquismo; 3) a reiteração quantitativa, o suspense qualitativo; 4) o masoquismo específico do sadismo, o sadismo específico do masoquismo, nunca um combinando com o outro; 5) a negação da mãe e a inflação do pai no sadismo, a “denegação” da mãe e a aniquilação do pai no masoquismo; 6) a oposição do papel e do sentido do fetiche nos dois casos; e o mesmo se dando com relação à fantasia; 7) o antiesteticismo do sadismo, o esteticismo do masoquismo; 8) o sentido “institucional” de um, e o sentido contratual do outro; 9) o supereu e a identificação no sadismo, o eu e a idealização no masoquismo; 10) as duas formas opostas de dessexualização e de ressexualização; e, 11) resumindo o conjunto, a diferença radical entre a apatia sádica e o frio masoquista. Essas onze proposições deveriam exprimir as

diferenças sadismo/masoquismo, tanto quanto a diferença literária dos procedimentos de Sade e de Masoch.

Notas

Sade, Masoch e suas linguagens 1. Krafft-Ebing já assinalava a possibilidade da “flagelação passiva” independente do masoquismo. Cf. Psychopathia sexualis (edição revista por Moll, 1923), trad. francesa Payot, p.300-1. 2. Georges Bataille. L’Érotisme. Paris, Minuit (Col. “Arguments”), 1957, p.209. 3. Richard von Krafft-Ebing. Psychopathia sexualis, op.cit., p.208-9. 4. Cf. “Aventura com Ludwig II”, contada por Wanda em Meine Lebensbeichte.

O papel das descrições 5. Carta de 8 jan 1869 para seu irmão Charles (citada por Wanda).

Até onde vai a complementariedade entre Sade e Masoch 6. Maurice Blanchot. Lautréamont et Sade. Paris, Minuit, Coll. “Arguments”, 1963, p.30. 7. Sigmund Freud. Trois essais sur la sexualité (1905), Collection “Idées”, NRF, p.46. [Ed. bras.: “Três ensaios sobre a sexualidade”, in ESB, vol.7. Rio de Janeiro, Imago, várias eds.] 8. Sigmund Freud. “Les pulsions et leurs destins” (1915), in Métapsychologie, NRF, p.46. [Ed. bras.: “As pulsões e suas vicissitudes”, in ESB, vol.14. Rio de Janeiro, Imago, várias eds.]

Masoch e as três mulheres 9. Cf. “Aventura com Luís II”, op.cit., p.151-74.

10. Cf. Johan Jakob Bachofen. Das Muterrecht, 1861. Pode-se citar, confirmando a influência de Bachofen, o belo livro de Pierre Gordon, L’Initiation sexuelle et l’évolution religieuse. Paris, PUF, 1946. 11. Cf. “Recordação de infância e reflexão sobre o romance”, Revue Bleue, 1888. 12. Cf. Edmund Bergler. The Basic Neurosis (1949).

Pai e mãe 13. Cf. Theodor Reik. Le masochisme, trad. fr., Payot, p.27, 1879. 14. Pierre Klossowski. “Éléments d’une étude psychanalitique sur le marquis de Sade”, Revue de Psychanalyse, 1933. 15. Theodor Reik, op.cit., p.25. 16. Cf. “Aventura com Ludwig II”, op.cit.

Os elementos romanescos de Masoch 17. Maurice Blanchot. Lautréamont et Sade, op.cit., p.35. 18. Theodor Reik, op.cit. p.45-88. 19. Tese essencial de Institutions républicaines.

A lei, o humor e a ironia 20. Sobre o caráter inapreensível do objeto da lei, cf. os comentários de Jacques Lacan, que dizem respeito ao mesmo tempo a Kant e a Sade: Kant avec Sade (Critique, 1963). 21. Sigmund Freud. Malaise dans la civilisation. Trad. fr. Denoël, p.60. [Ed. bras.: O mal-estar da civilização, in ESB, vol.21. Rio de Janeiro, Imago, várias eds.]

Do contrato ao rito 22. Revue Bleue, 1888. 23. Sobre o vínculo entre os temas agrícolas e incestuosos, e o papel do arado, cf. as brilhantes páginas de Salvador Dalí em Mythe tragique de “L’Angelus” de Millet. Paris, Pauvert.

24. O romance de Sacher-Masoch segue bem de perto a vida real de Sabattaí Zwi. Encontra-se um relato biográfico em Histoire des Juifs, de Grätz, que sublinha a importância histórica do herói (tomo V, cap.9). 25. Carta de 8 jan 1869 para seu irmão Charles.

A psicanálise 26. Cf. “Les pulsions et leurs destins”, op.cit., p.46. 27. Os três aspectos são formalmente distinguidos num artigo de 1924, “Problema econômico do masoquismo” (trad. fr. na Revue Française de Psychanalyse, 1928). Mas já estão presentes e indicados na perspectiva da primeira interpretação. 28. Theodor Reik, op.cit., p.168.

O que é instinto de morte? 29. Robert Musil. L’Homme sans qualités. trad. fr., Paris, Seuil, tomo IV, p.479. 30. Pierre Klossowski. Un si funeste désir. Paris, NRF, p.127. E La révocation de l’édit de Nantes, Paris, Minuit, p.15.

Supereu sádico e eu masoquista 31. Cf. Sigmund Freud. “O chiste e suas relações com o inconsciente”, in ESB, vol.8. Rio de Janeiro, Imago, várias eds. 32. Cf. Daniel Lagache. “La Psychanalyse et la structure de la personnalité”, La Psychanalyse n.6, p.36-47.

Coleção ESTÉTICAS direção: Roberto Machado Observações sobre “Édipo” Observações sobre “Antígona”

precedido de Hölderlin e Sófocles Friedrich Hölderlin Jean Beaufret Francis Bacon: Lógica da Sensação Gilles Deleuze Sacher-Masoch: o Frio e o Cruel Gilles Deleuze O Nascimento do Trágico Roberto Machado Nietzsche e a Polêmica sobre “O Nascimento da Tragédia” Roberto Machado (org.) Introdução à Tragédia de Sófocles Friedrich Nietzsche

Wagner em Bayreuth Friedrich Nietzsche Kallias ou Sobre a Beleza Friedrich Schiller Shakespeare, o Gênio Original Pedro Süssekind Ensaio sobre o Trágico Peter Szondi

Título original: Le froid et le cruel Tradução autorizada da primeira edição francesa, publicada em 1967 por Les Éditions de Minuit, de Paris, França Copyright © 1967, Les Éditions de Minuit Copyright da edição em língua portuguesa © 2009: Jorge Zahar Editor Ltda. rua Marquês de S. Vicente 99 – 1º | 22451-041 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2529-4750 | fax (21) 2529-4787 [email protected] | www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Rita da Costa Aguiar Ilustração da capa: Ticiano, Vênus com um espelho (c.1555). Acervo National Gallery of Art Produção do arquivo ePub: Simplíssimo Livros

  Edição digital: junho 2013 ISBN: 978-85-378-0733-0

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