RS: A economia & o poder nos anos 30

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história

A ECONOMIA & O PODER NOS ANOS 30

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ONOMIA &

OPODERNOS ANOSSO

1980

Série Documenta 5

Porto Alegre - RS

nmCADOÍM AbmiO

Capa e diagramaçao: Marco Cena Revisão: Noelci R. Jacoby

CATALOGAÇÃO NAFONTE P472

Pesavénto, Sandra Jatahy

RS: a economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980.

192p. (Série Documenta, n. 5)

CDU 981.65"193''

338(816.5ri93''

ÍNDICES ALFABÉTICOS PARA O CATÁLOGO SISTEMÁTICO: História: Rio Grande do Sul: Década de 30

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Rio Grande do Sul: História: Década de 30

981.65''193'*

Situação econômica: Rio Grande doSut Década de 30

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Rio Grande do Sul: Situação econômica: Década de 30

338(816.5)"193''

Bibliotecária responsável: Rejane Raffo Klaes - CRB- 10/586

1980

Todos os direitos reservados pela

MERCADO ABERTO - Editora e Propaganda Ltda. Rua Santos Dumont, 1186 - Fone (0512)228822 90000 - P. Alegre - RS - Cx. Postal 1432

"Para Roberto,

companheiro de todos os momentos".

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1. A REALIDADE GAÚCHA EM 1930 2. O BRASIL PÓS-30: NOVAS DIRETRIZES NUM MOMENTO

DE TRANSIÇÃO 3. A CRISE DA PECUÁRIA GAÚCHA NO PERÍODO DISCRI CIONÁRIO (1930-1934) 3.1 - As dimensões da crise (1930-1932) 3.2 —A cisão política: a "ala regional"e a"ala nacional"(1932) 3.3 —A "ala nacional" e as saídas para a crise da pecuária gaúcha (1932-1934) 4. O PERÍODO CONSTITUCIONAL: ECONOMIA E PODER (1935-1937) 5. CONCLUSÕES BIBLIOGRAFIA

9 11

42 51 51 86 105 142 184 187

INTRODUÇÃO SANDRA JATAHY PESAVENTO*

O momento histórico que se estende daRevolução de 1930 à ins talação do Estado Novo, em 1937, reveste-se de singular importância, uma vez quese trata de umaetapade transição relevante paraa História do Brasil e, naturalmente, para a do Rio Grande do Sul. Transição de uma forma de acumulação baseada na agroexportação, para aquela ba seada na indústria; transição de uma estrutura de dominação baseada na predominância absoluta das classes agrárias (cuja dimensão burguesa é maior ou menor conforme o setorou a região) paraumarecomposição da coalizão dominante de classes; transição de um Estado Oligárquico para um Estado Corporativo. Embora sendo um período crucial na realidade brasileira,marcado pelo processo revolucionário de 1930, os "anos 30", conhecidos como

o momento da "República Nova", é tema ainda pouco estudado pela historiografia gaúcha. * Professora de História do Brasil e do Rio Grande do Sul da UniversidadeFederal

do Rio Grande do Sul —UFRGS. Este trabalho foi realizado dentro do projeto de pesquisa "Análise da Economia Gaúcha de 1930 a 1960". Colaboraram para a elaboração do mesmo Adolar Koch, Ema Massera Arostegui, Maria Elizabeth Lucas e Teimo Moure.

Estado periférico, dependente do mercado nacional do país, pe cuário por excelência, com forte tradição guerreira e acentuado nível de politização, foco da dissidência oligárquica que conduziu à Revolu ção de 30, como teria se comportado o Rio Grande do Sul na República Nova?

Este trabalho não pretendeu levantar hipóteses, mas se inseriu na linha exploratório-investigativa. Procurou-se analisar a realidade rio-grandense dos "anos 30" a par tir do ângulo das relações da economia pecuária e seus representantes com o Estado gaúcho.

A partir daí, objetivou-se ter em vista algumas linhas de orienta

ção básica que nortearam as pesquisas feitas: 1) Análise da situação de crise da economia pecuária gaúcha, que somou à herança de problemas não superados da República Velha os efeitos da crise de 1929; basicamente procurou-se distinguir a problemá tica dada ao nível da criação, da charqueada e do frigorífico, envolven do, em seu conjunto, as condições de limitação da pecuária gaúcha em termos de capitalização. 2) Análise das cisões intemas da classe dominante e suas formas de atuação:

a) diferenciação em frações de classe (criadores e charqueadores); nível de oposição entre elas; formas de reagir à crise e soluções propos tas na instância econômica; seu relacionamento enquanto frações de classe com o Estado (governo local e União); b) diferenciação em facções políticas; seu posicionamento quanto ao problema econômico e o poder; articulações políticas regionais e na cionais.

3) Análise, se possível, da situação das classes dominadas rurais, embora se tenham presentes as dificuldades inerentes à sua falta de or ganização e carência de fontes escritas que expressassem seu pensamento. Não se pretendeu, no caso, esgotar o tema, mas contribuir para a

pesquisa histórica regional, abordando, dentro de uma sistemática nova, um período da história gaúcha carente de maiores estudos.

10

1. A REALIDADE GAÚCHA EM 1930

Ao aproximar-se o final da década de 20, a República Velha en contrava-se em crise. O modo capitalista de produção já se constituíra

internamente, passada a sua fase de gestaçá^o. Inserida no contexto da divisão internacional do trabalho, a economia brasileira vivenciava as

contradições eivadas de um capitalismo tardio, ou seja, aquele formado dentro das condições de dependência e de umpassado colonial escravis ta, induzido pelo centro, mas também respondendo às necessidades in ternas.

O complexo cafeeiro, responsável pela dinamização intema havi da, encontrava-se diante de um impasse: entraves se apresentavam à continuidade do processo de acumulação, bem como antepunham-se obstáculos à generalização do modo de produção por todo o contexto brasileiro^.

Oproblema da intermediação externa da economia estava acaban do por consumir todo o excedente produzido passível de ser captado internamente. Sendo assim, a economia dominante da RepúblicaVelha

- a cafeicultura capitalista -, pela sua própria estrutura e funciona mento, tanto possibilitava a acumulação quanto se apresentava como um entrave à maior diversificação econômica do país nos moldes do ca pitalismo.

i Oliveira, Francisco de. A emergencia do modo de produção de mercadorias, InrPausto, Boris. O Brasil republicano. III. SãoPaulo, DIFEL, 1975.

Dentro deste quadro, o setor de classe dominante nacional que se apresentava como hegemônico —a burguesia cafeeira —afirmava o seu poder às custas dos demais setores e através do controle do Estado.

Segundo Rowland^, o predomínio da burguesia cafeeira dependia doconsenso dos demais grupos oligárquicos, consenso este que se basea va, por um lado, nas idênticas condições de posse da terra como basedo poder econômico e político, gerando interesses semelhantes. Por outro

lado, a estrutura jurídico-administrativa da Primeira República garantia uma boa margem de autonomia para os estados frente ao poder central. Além disso, as oligarquias periféricas eram contempladas muitas vezes com altos cargos no governo central. Com referênciaao Rio Grande do

Sul, tem-se como exemplo nâb somente a passagem de Ildefonso Si mões Lopes pelo Ministério da Agricultura, como a do próprioGetülio Vargas na pasta da Fazenda.

A dissidência oligárquica tornou-se mais clara, quando, através da terceira operaçSb valorizadora, a práticada política de defesa perma nente do café foi, na década de 20, estendida ao nível federal. O fato de

ficar claro queo ônus dasustentaçáb do produto seria pago pelas demais oligarquias fez com que os seus interesses entrassem em conflito com o

centrohegemôitíco do país^. Em especial, o processo era sentidoduramente pelosestados des vinculados da economia agroeXportadora, fazendo com que o conflito se precipitasse mediante uma cisáo no interior da classe dominante.

Embora a crise dos anos 20 apresente uma gama mais variada de contradições e açáo de grupos de pressáo constituídos no decorrer da República Velha, o problema básico que interessa analisar nos marcos deste trabalho é a dissidência de cunho regional: o antagonismo de in teresses entre os grupos no poder e as oligarquias periféricas, antagonis mo esse que nSb mais encontrava saída dentro dos quadros institucio nais vigentes. Enquanto São Paulo se apresentava como o pólo nacional da acu mulação e centro da economia dominante no país, o restante da nação

vivenciava um grau desigual de desenvolvimento docapitalismo^. Desenvolvia-se em São Paulo um capitalismo induzido tanto pelas

condições externas (o sistema econômico no qual o Brasil se inseria) quanto pela diferenciação da estrutura montada internamente. Se é possível distinguir entraves e contradições neste processo ao 2 Rowland, Robeit. Classe operáriae estado de compromisso. EstudosCEBRAP 8. São Paulo, Brasiliense, jan. fev. mar. 1974. p. 9.

3 Fausto, Boris. Expansão do café e políticacafeeira. In: -. OBrasil republicano. III. São Paulo, DIFEL, 1975. p. 236 et. seq.

4 Rowland, op. cít. p. 13. 12

nível central da economia brasileira, entraves ainda maiores apresenta riam aquelas áreas subsidiárias da economia de exportaçáo, tais como o Rio Grande do Sul. Na opinifo de Rowland, ... O que se contestava não era o capitalismo agrário em si,

mas a forma pela qual, através da estrutura política, o deserivolvimento do capitalismo no estado de São Paulo se fazia às custas do sai desenvolvimento em outras regiões e com prejuí

zo da produto agrícola para o mercado interno. Ao nível da oligarquia, a revolta era de cunho predominantemente regio nalista^.

O Brasil, como um todo, na República Velha, vivenciava um mo

mento de transição para a generalização do modo capitalista de produ ção. O Rio Grande do Sul, nesse período, já apresentava setores desua economia com traços francamente capitalistas. A cultura do arroz, por exemplo, apresentava-se com utilização de mão-de-obra assalariada, em pregando técnicas de irrigação. A indústria gaúcha, por sua vez, já pos suía empresas de porte, tais como as do ramo têxtil (Renner, Cia. Fia çãoe Tecidos Porto-Alegrense, Cia. Industrial Rio-Guahyba) ou setor de alimentícios (cerveja,vinho, conservas, banha).

O complexo pecuário —criação, charqueada e frigorífico —apre sentava-se, contudo, como o setor de atividade que detinha a predomi nância nos quadros da economia estadual, cujos produtos, em con junto, obtinham mais valor na pauta das exportações.

Recolhendo os dados fornecidos pelas mensagens presidenciais®, vê-se que, de 1912 a 1929, o charque manteve-se como o primeiro pro

duto de exportação do estado, com exceção dos anos de 1926 e 1927, cedendo a primazia à banha. Dentre os produtos agrícolas, o arroz foi 0 que contribuiu com maior valor, ocupando o terceiro lugar desde 1922.

Na mensagem de 1930, Getúlio Vargas fornece dados em valor e tonelagem para os produtos que mais contribuíram para a exportação gaúcha nos anos de 1928 e 1929. Através deles, é possível ver que os produtos do complexo pecuário sobrepujam os da agricultura "capi talista" (arroz), da agricultura colonial e o conjunto dos demais pro dutos industrializados (que envolvem diferentes graus de elaboração, tecnologia, divisão social do trabalho, etc., mas cuja maior especificação não cabe nos limites deste trabalho), noque diz respeito aovalor'. Por exemplo, para o ano de 1929, os produtos pecuários adiante relacionados apresentaram o valor de 213.947:465$000, enquanto

que os agrícolas (lavoura colonial e "capitalista": arroz, fumo em fo^ Ibidem, p. 13. ^ Mensagens presidenciais de 1913a 1930. 1 Mensagem presidencial de 1930.p. 150. 13

lha, feijão, batata) perfizeram 117.467:371 $000 e os demais, referidos como "industrializados" (banha, vinho, farinha de mandioca, calçados, tecidos), totalizaram 120.077:183$000. 1929

1928

Peso (em

Valor

toneladas

(em réis)

Charque

53.836

Banha

12.694

Arroz

78.586

Couros vacuns salgados

24.482

97.220 B90$000 82.871:3125000 65.761.4345000 59.368.0125000 26.003:6015000

PRODUTOS

Fumo em folha

Feijão

9.632

39.776

Peso (em toneladas)

45.859 104.7142705000

41.617

77.771:0435000

63.714

54.042:1865000

17.228

40.025:8785000 30.614:3675000

14.539

Madeiras

41.664

Carnes congeladas

19.049

24.596:9185000 23.672:4285000 21.040:1745000 10.854:7825000 8.809:1235000 26.533:6925000

Farinha de mandioca

37.300

11.182:7275000

33.426

3.104

13.876:7315000 2.683:1195000

2.692

370 15.549

16..962:9035000

7.265

428

3.426:1055000 6.781269 5000

10.201

5.998

Lã Vinho

26.191

Produtos animais

Couros vacuns secos

Calçados Sebo Tecidos diversos

6.351

27.289

Batatas

Valor

(em réis)

35.925 5.691 22.567

15.511 58.487 7.822

803

712

26.803:3135000 24.216.-9845000 17.862:4735000 17.708:3115000 14.002:0145000 10.962:6115000 8.686:537 5000 8.557:8355000 8.348:8615000 7.761:5765000 7.408:2695000 6:007:505 5000

Como atividade dominante, contudo, a pecuária não se compor tou, tal como o café no contexto paulista, num mecanismo de acumula

ção e diversificação de capitais, irradiando para o restante da estrutura econômica gaúcha inovações no sentido do capitalismo. Importa, mesmo, tentar verificar até que ponto o capital se apo derara do campo no contexto da pecuária sulina. Fioravanti caracteriza o capitalismo agrário,

[...] donde toma forma el latifúndio que empleaa gran número de obreros asalariados que hacen el mismo papel que un obrero industrial, pues venden sufuerza de trabajo a un ter-

rateniente que es el proprietário de los médios de producción agrícolas y que obtiene en'esteprocesso una plusvalia que es Ia base de suganancia f,.,) En el modode producción capitalista, el trabajadoragrícola está desprovisto de todos los médios de producción (, . .) Es de esta manera como el capital se ha apo derado dei campo [.. .]® 8 Fioravanti, Eduardo. El concepto de modo de producción. Barcelona, Ed. Pe nínsula, 1974. p. 152-3.

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o dono da terra, no caso, não se limita a ser o proprietário da ter ra, meio de produção fundamental, mas também a utilizá-la como capi tal, isto é, fator gerador de sobretrabalho e de valor excedente sobre o valor primitivo. Ao analisar a realidade da pecuária gaúcha, se bem que para um período mais recente (década de 40), Limeira Tejo assinalava a perma nência de critérios extensivos, impedindo a circulação da riqueza: Dessa maneira, realizou-se uma riqueza estanque na nos

sa fronteira, uma vez que no seu "processus" o fator terra - is to é, o capital territorial - é quase tudo, enquanto o fator tra balho é quase nada [...] na criação de gado, a participação da

mão-de-obra é quase nula[...] Não estando, pois, a terra distri buída e não havendo, também, distribuição do trabalho, a rique za realizada não possui senão meios precários de circulação. Realmente, o gado pode subir de preço, que os efeitos dessa melhoria não se farão sentir na economia geral, pois não exis te na zona um comércio baseado na produção pecuária, nem a

capacidade de aquisição se funda no salariado que essaprodu ção engendra.'

São colocados pelo autor, como traços distintivos do atraso da pecuária sulina, a estrutura da propriedade da terra e a relação específi ca de produção existente, o quelimitava os efeitos internos sobre a eco nomiario-grandense que uma elevação do preço da mercadoria produzi da viria ocasionar.

Para efeitos de análise, será enfocado primeiramente o setor da criação em sua estmtura interna, para depois interligá-lo à atividade da charqueada e do frigorífico. A criação desenvolvia-se de forma extensiva, processando-se o au

mento da produção através do incremento dos fatores terra e gado. A propriedade da tena, altamente concentrada, apresentava-se

como umlimite paraa modernização da pecuária em moldes capitalistas. A terra, no caso, era utilizada segundo o seu tamanho, verificando-se um mínimo de inversão de capital que permitisse, sem a incorporação de novas áreas, aumentar a produtividade. Processava-se, ainda, predo minantemente, a criação de gado em campo nativo, ou seja, o sistema mediante o qual era colocado no campo tanto gado quanto este pudesse suportar. Acontecendo uma invemia rigorosa verificava-se a morte de muitos animais, passando os sobreviventes muitos meses para recuperar

o peso perdido. O resultado básico deste processo era que o gado rio-

^ Tejo, Limeira. Contribuição à crítica da economia rio-grandense. 1.A fisiono mia agropecuária. Profíncm de SãoPedro, Porto Alegre, Globo, 1945(1): 4.

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-grandense levavacerca de dnco anos para chegar ao ponto de abate, en quanto que no Prata, por exemplo, muito mais cedo o novilho (com 2 anos, 2 anos e meio) podia ser sacrificado. Tal mecanismo implicava uma demora do retomo do capital para o fazendeiro —uma vez que o rebanho constituía-se, dentro dos critérios da pecuária extensiva, na maior parte do capital do estancieiro. Por outro lado, a oconência de uma alta taxa de desfmte sem

preocupação com a preservação do rebanho implicava, igualmente, uma

forma de descapitalização para o criador. Expressão máxima da concentração da propriedade, o latifúndio pecuarista atravessara todo um movimento de renovação vivido pela pe cuária gaúcha ao longo da República Velha, sem, contudo, apresentar

alterações fundamentais na estmtura dapropriedade da tena. A preocupação com a fraca utilização do potencial produtivo da terra era sentida pelas autoridades no final da 1?República. Referindo-se a esta questão, o então Presidente do Estado, Getúlio Vargas, assim

se pronunciavaem 1929, por ocasiãoda abertura do III Congresso Rural: As grandes extensões territoriais, onde apascenta o gado, atendido por um reduzidíssimo pessoal jomaleiro, às vezes mal

alimentado e mal pago, contribuem para aumentar o pauperis-

mo das cidades, É preciso retaliar os latifúndios, dividi-los em pequenas glebas e cuidar da cultura intensiva dos campos.'" As extensas propriedades de terra, onde se verificava fraca utiliza

ção de mão-de-obra na pecuária, achavam-se na fase final do cercamento dos campos. Todavia, tanto no que diz respeito ao cercamento das proprie

dades, quanto no que toca à formação de potreiros, dividindo os cam pos em pastagens para rotação dos gados, os pecuaristas utilizavam ara

me importado, o que aumentava o custo de produção do gado. No IV Congresso Rural, o adiantado ruralista MarcialTerra apre sentou a tese "A importância dos aramados", na qual pedia o abandono

do arame farpado pelo arame liso (para garantir a boa qualidade dos couros), assim como solicitava ao governo a livre entrada do arame nas alfândegas e a garantia de um preço mínimo de vendas e baixos fretes. Num Estado iminentemente criador como é o nosso, o

arame é material indispensável, de primeira necessidade (...)

É com ele que são protegidas as propriedades rurais, a riqueza que influi poderosamente na riqueza pública, pois é do campo que, na maioria dos municípios rio-grandenses, vivem as rendas

10o Discurso do Presidente do Estado. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 maio 1929. p. 5.

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municipais, pelo imposto pecuário, e para oEstado através do imposto territorial, nas taxas de transmissão dapropriedade e noutras. ^ ^

Ocercamento, em si, era um processo que, pelo ponto de vista do proprietário, convertia-se numa maneira de consolidar olatifúndio. Por outro lado, dentro de uma perspectiva mais modemizante, afigurava-se como instrumento necessário para propiciar o avanço do capitalismo na pecuária, valorizando oscampos e garantindo o retomo dos capitais em pregados pela preservação dos rebanhos.

Cabe registrar, ainda, que um incremento fora dado à criação de ovinos, desde ainstalação dos frigoríficos estrangeiros no Estado, confe rindo um novo valor econômico a esta espécie de gado que não era

aproveitado pela charqueada. Acriação de ovinos, nocaso, representava um verdadeiro "achado" para a pecuária rio-grandense, não só por con verter a came de ovelha em matéria-prima para o frigorífico, como por não alterar a capacidade de lotação em bovinos nos campos.^ ^ Dentro da sua visão própria, o estancieiro, proprietário da terra e

do gado, operava segundo olucro mercantil, ou seja, aquele obtido pela

venda do gado no mercado. O que lhe importava, basicamente, era ga

rantir para si uma renda monetária que lhe permitisse manter ocusto da produção e comprar outros produtos de que necessitava. Considerando,

contudo, as condições dadas, de monopólio privado da terra edo gado, a diferença entre o valor da produção pecuária e o preço da produção

social média aparecia como renda da tena.

A partir da Lei de Terras de 1850, a terra no Brasil foi elevada à condição de mercadoria, institucionalizando-se a propriedade privada do solo, adquirido através da compra. Como mercadoria, a terra tinha um valor determinado. Oindivíduo, no caso, precisava pagar o preço da terra (renda territorial capitalizada) para se converter no seu proprietá rio privado. Terra e gado constituíam oinvestimento inicial e represen

tavam o capital propriamente dito nos quadros da pecuária extensiva. Todavia, um estudo sobre a bovinocultura rio-grandense, publica do pelo Banco Nacional do Comércio,^ ^ alerta para o fato de que gran

de parte do capitalismo agropecuário não tem custo monetário de aqui sição (pelo processo de herança) nem custo de reposição (pela reproduli Anais do IV Congresso Rural, 1930. Porto Alegre, Tip. Thurmann, 1930. D. 366-8.

A2 Delgado, Benetti et alii. Projeto evolução recente e situação atual da agri cultura brasileira (1930-1975). Região Sul. Rio de Janeiro, MEC-FGV, 1978. V. 5. tomo 4. p. 43.

13 Estudo econômico da bovinocultura gaúcha. Banco Nacional do Comércio.

Porto Alegre, 1968. Ap. Projeto evolução recente. Op. cit. 17

ção natural do gado). Tais elementos representariam uma redução dos custos de produção e permitiriam que a pecuária extensiva pudesse re sistir às crises do mercado. O processo instalado, entretanto, é em si mesmo contraditório, na medida em que fatores apontados anterior mente, tais como o descuido com a reposição do rebanho e a técnica da criação em campo nativo implicavam descapitalização maior. A im portação do arame para cercamento, por seu tumo, onerava os custos da unidade produtora. Dentro da realidade da estância de criação de gado rio-grandense, era possível distinguir a obtenção da renda diferencial I (RDI). Esta renda é dada em função de diferenças de produtividade das terras. A RDI manifesta-se naquelas tenas mais apropriadas à criação em função de fatores naturais (qualidade das pastagens, aguadas abun dantes) ou mesmo localização privilegiada (proximidade de centros con sumidores, vias férreas, portos). Em decorrência destes fatores, a produ tividade é maior nestas propriedades, garantindo-se um sobrelucro para os sexis proprietários, obtido através da diferença que se estabelece entre

o seu preço de produção e o preço de venda dos produtos, uma vez que

este é dado pelas condições de produção dos campos menos rentáveis.^"* Quando o latifundiário arrenda suas propriedades (parte delas ou

mesmo todas) a outrem, a ele cabe, como proprietário da terra, a RDI e ao arrendatário o lucro médio (taxa média de lucro sobre o capital investido).

Quando os dois processos se acumulam no mesmo agente social, ou seja, quando o proprietário da terra e o que investe capital na sua exploração são a mesma pessoa, ele recebe tanto o lucro médio quanto a renda da terra.

A renda diferencial II (RDII) seria aquela obtida através da inver são de capital em tecnologia no campo paraobter maior produtividade. Agindo desta forma, o arrendatário capitalista estaria tentando aumen tar o seu lucro médio, buscando conservar esta renda para si, ao mesmo

tempo que o proprietário buscarià incorporá-la também, por ocasião da renovação do contrato de arrendamento.

14"Em condições iguais de aplicação de capital, as várias classes de terreno pro porcionam rendimentos diferentes, de acordo com dois fatores —a fertilidade

natural e a localização. O valor e o preço de produção dosprodutos agrícolas, em virtude do monopólio da propriedade da terra, nãosedeterminam pelaprodu tividade média do trabalho socialmente necessário, mas pela produtividade mais

baixa, isto é, pela produtividade da pior classe de terreno em cultivo, quanto a

fertilidade ou à localização ou a ambas conjuntamente. Em conseqüência, o

trabalho aplicado a todas as classes de terrenos melhores que o pior terreno em cultivo cria um superlucro ou lucro excedente ao lucromédio, resultante precisa mente da produtividade diferencial**. Gorender, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo, Ática, 1978. p. 402.

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Contrariamente a Ia renta diferencial dei primer tipo, Ia renta de segundo tipo es menos aparente y en consecuencia

menosdiretamenteapropriable por el terrateniente, ^^ Entretanto, no caso rio-grandense, o que se verifica no comum

dos casos é tanto o arrendatário quanto o proprietário da tena (quando for ele também o explorador do campo) nSo atuarem de forma nitida mente capitalista, ou seja, nafo investirem capital no campo para obte rem maior produtividade. Nas condições específicas da pecuária sulina, elementos indicativos desta atitude seriam a utilizaçâ:o de aramados pa ra cercamento, pastagens artificiais, o uso de vermífugos, banheiros carrapaticidas, cruzamento racional do rebanho, importação de reproduto res selecionados. Tais medidas, embora presentes no Rio Grande do Sul durante a Primeira República, nSo eram difundidas por toda a classe ru ral uniforme e generalizadamente. Marcial Tena, Pedro Osório, Assis Brasil seriam elementos pro gressistas, verdadeiros empresários capitalistas, mas também náo podem ser tomados como exemplo do comportamento da classe em seu con junto.

Grande parte das vezes, o proprietário náo repassava para a moder nização da própria pecuária aquilo que auferia com o arrendamento de suas terras.

A RDI, quando obtida, não dava um cimho de capitalismo pleno à estância enquanto unidade de produção, porque apenas consagrava o tipo característico de criação desenvolvido no Estado, ou seja, o exten sivo, onde apenas as condições naturais mais propícias - os chamados campos superiores, na fronteira com o Uruguai^^ — oportunizavam uma rentabilidade maior. O arrendatário, por sua vez, se não investia capital, transformando o processo criatório, e se não estava localizado em campo de qualidade superior, ia ter que retirar parte do seu lucro

médio para passá-la ao proprietário da terra. Por outro lado, na dimi nuição dos seus rendimentos devem ser levados em conta fatores tais como uma invernia rigorosa ou a queda do preço dos produtos, provo cada pelas manobras baixistas dos frigoríficos e das charqueadas. Este duplo ônus — pagamento pelo arrendamento e rebaixa do preço do gado —explica aquilo que seria noticiado pelos jornais no pós-30: o desinteresse pelos negócios do gado e pelo arrendamento de terras na pecuária.

No que toca ás relações de produção que se desenvolviam neste processo produtivo, a questão básica é verificar até que ponto elas se Mandei, Emest. Tratado de Economia Marxista. México, Era, 1962. p. 256.

16 Lassance Cunha, Ernesto A. O Rio Grande do Sul Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1908. p. 35.

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constituíam em assalariadas. Quanto aos salários pagos no Rio Grande do Sul, Souza Brandão referia os seguintes para o final da República Velha, no ano de 1927:

[.. .] o profissional mais bem remunerado é o marceneiro, a retribuição diária oscila de 12$200 a 17$000. O peão de es

tância é o que recebe menos por serviços prestados na região da fronteira, onde diariamente lhe pagam na média 3$000; é o tipo mais rude entre os analfabetos do Estado, todavia é pe

rito no desempenho de suaprofissão. ^^ Mais adiante, o autor acrescenta, emitindo um juízo de valor a respeito da disparidade:

A diversidade da paga, quando se passa de uma região para outra, resulta de condições especiais que o meio impõe. Preferir aqui, por ganhar mais, e ali, por ganhar menos, nem sempre o saldo das retribuições é mais compensador na primei ra condição [...] Admira-me a resistência dos rústicos que desprovidos de alimentação variada, de vivenda confortável, e de vestuário apropriado às alternativas por que passa a sua vida, ora suportando o frio que gela e racha, ora expondo-se aos rigores do calor, que esbraseia superfícies imensas, onde não se vê uma árvore, mantêm o mesmo vigor no decurso da existência fadigosa do campo. ^®

Entretanto, a remuneração do peão implicava outras formas

que não o recebimento de um salário monetário fixo. Como refere MüUer, seu pagamento constituía-se em "teto, comida e alguma prata".^^

O fato de ter, com isso, outras formas de remuneração que per

mitam a reprodução da força-trabalho, implica a existência de rela ções de produção não-capitalistas na estância. O peão,no caso, poderia ser considerado força de trabalho livre nãoassalariada, fornecendo, por tanto, sobretrabalho mas não mais-valia.

Tal fato, em associação com os demais fatores aqui colocados, li mitaria a caracterização do processo de trabalho na estância como niti damente capitalista. Marcial Terra, no caso, pode ser considerado como um empresário capitalista, mas coexistia com relações de produção não-capitalistas.

Extremamente dependente do proprietário da terra,as condições de vida do peão de estância, do "proletário rural" se agravariam com o final do processo de cercamento dos campos. Sem encontrarmuitasal17 Souza Brandão. Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Grafica Sauer, 1930. p. 96-7. íbidem, p. 97-8.

l^Müller, Geraldo. Periferia e dependência nacional. São Paulo, USP, 1972. p. 23 (xerografado)

20

temativas de trabalho na zona rural sulina (criaçâfo, charqueada, arroz), tais elementos, na sua demanda pelos centros urbanos, nSo encontravam uma indústria em suficiente desenvolvimento para absorvê-los. Por ou tro lado, embora muito hábeis nas lides do campo, convertiam-se, nos centros urbanos, em mão-de-obra não especializada, sem habilitação profissional. No final da década de 20, processava-se, portanto, um êxo do rural cujos efeitos começavam a se fazer sentir no aumento das ca

madas marginais na periferia dos centros urbanos deentão.^® No que toca à charqueada sulina, é possível categorizá-la como manufatura, constituindo-se, portanto, em forma histórica de produção capitalista. A manufatura representaria a fase do desenvolvimento capi

talista em que se verifica a submissão formal do trabalho ao capital.^ ^ Na charqueada, as relações de produção seriam mais nitidamente assalariadas, produzindo a força-trabalho, em condições de alta taxa de exploração, mais-valia absoluta. Contudo, mesmocom referência ao tra balhador de charqueada, seu pagamento era algumas vezes absorvido pe lo "armazém", pertencente ao dono do estabelecimento saladeiril, onde o pessoal empregado satisfazia as suas necessidade básicas.Mediante um mecanismo de alta taxa de exploração de mão-de-obra, com jornadas de trabalho que se estendiam por 12 a 18 horas na época da safra,em con dições de absoluta falta de higiene, o trabalhador permanecia algumas vezes "empenhado" com o patrão dono do armazéme, desta forma, via diminuídos os seusrendimentos monetários.^ ^ 20 A obra de Cyro Martins, Sem Rumo, escrita em 1935, é rica em informações sobre este processo. Embora se trate de uma obra literária, é de um testemunho que pode servir como exemplificação do fenômeno que ocorria na campanha gaúcha, no final da República Velha e no transcurso da República Nova. Trata-se, contudo, ainda de uma visão "desde cima" do problema dos marginais do campo,

por mais consciente que possa se apresentar a respeito da situação da classe domi nada. O autor, natural da zona da campanha, inicia com esta obra a trilogia do ciclo do "gaúcho a pé", processo mediante o qual analisa a marginalização do homem do campo. Completam o quadro as duas obras que se seguiram. Porteira fechada, editada em 1944, e Estrada nova, publicada pela primeira vez em 1954. Cita o autor: (...) "colaboraram, agindo como elementos primários do drama a

que assistimos, a subdivisão dos campos e a mestiçagem dos rebanhos (. ..) Privado das condições de vida que lhe modelaram o caráter, o gaúcho, não dis pondo mais da fartura, do cavalo e da distância, decaiu como tipo representativo de um padrão de existência (...) Na verdade, as massas campeiras foram sendo

pouco a pouco dig)ensadas - por que não dizer, excluídas? - por desnecessárias, numa decorrência lógica do rumo que tomavam as lidas campeiras." Martins,

Cyro. Sem Rumo. PortoAlegre, Movimento, 1977. p. 22-3. 21 Marx, Karl. O Capital São Paulo, Ciências Humanas, 1978. livro 1. cap. 6 (inédito).

22 Mesmo se tratando de uma obra literária e referindo-se a um período mais recente, o livro de Pedro Wayne, Charqueada (Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1937) é rico em informações a respeito das condições de trabalho nos estabeleci-

21

Sem garantias de espécie alguma, ferindo-se e infeccionando-se na

tarefa diária, este elemento ficava desocupado na entre-safra,gravitando em tomo do estabelecimento saladeiril paralisado, sem muitas opções de trabalho na zona mral.

Na charqueada, observa-se o controle parcial dos meios de pro dução pelo saladeirista, uma vez que certos instrumentos simples, como faca, podem pertencer ao trabalhador. O processo de trabalho manufatureiro envolve uma ênfase toda especial no relacionamento da fQrça-trabalho com os meios de trabalho, na medida em que se destaca a habilidade manual do trabalhador com o seu instrumento, a ferramenta de trabalho. É essencial a destreza

pessoal na realização das várias tarefas (o "desnucador", o "despostador", o "salgador"), mas igualmente importante é o fato de que o indivíduo isolado com o seu instrumento de trabalho nada vale. A ma

nufatura imphca um conjunto de fases parciaise complementaresumas das outras na produção de uma mesma mercadoria, que é obtida através do encadeamento destas várias etapas.^ ^ Portanto, a destreza e especialização do indivíduo na realização de uma determinada tarefa só adquire sentido dentro deste processo produtivo submetido ao capital. Coexistem, com a utilização de ferra mentas simples, maquinaria mais avançada, tal como a máquina a vapor

para a extração de sub-produtos (graxa, sabão, etc.). Enquanto a criação detinha o controle da oferta do gado,a char queada, juntamente com os frigoríficos estrangeiros, tinham o contro le do preço.

No conjunto, é possível verificar que as condições internas da es

tância, conjugadas com a dependência em relação ao binômio charqueada-frigorífico, limitavam a acumulação.

A charqueada, por seu turno, que produzia, de forma arcaica e com tecnologia precária, um produto de baixa qualidade e mau aspec to, era a única forma de transformação da carne que restava em mãos nacionais. Entretanto, tinha de enfrentar, internamente, a atuação dos

frigoríficos estrangeiros e, externamente, as conseqüências de produzir um artigo de inferior qualidade para um mercado altamente competitimentos saladeirís. Tratando-se o autor de uma pessoa que trabalhou num estabe

lecimento saladeiril, como contador, a falta de material documental mais pre ciso permite empregá-lo como fonte de estudos. Maisuma vez, contudo, é um de poimento "desde cima" sobre o trabalhador. Configura-se, novamente, a difi culdade de reconstituir a história dos setores trabalhadores do campo, pela ausên

cia de testemunho escrito deixado, sendo as poucas referências encontradas

^enasaonível de uma conscientização da classe dominante do seu problema.

23 Marx, Karl. O capital Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. livro 1.

V. 1. cap. 12.

22

vo (concorrência nacional e platina do charque no mercado interno brasileiro).

Os frigoríficos estrangeiros eram típicas empresas capitalistas, uti lizando tecnologia superior, dotadas de grandes recursos financeiros e tendo um controle do mercado. Utilizavam, dentro de uma produção

mais sofisticada, mão-de-obra assalariada por um período do ano maior

do que aquele compreendido pela safra saladeiril. Ofrigorífico, inclusi ve, podia pagar maior salário, drenando mão-de-obra da charqueada para si. Todavia, o conjunto da estância, que tinha fraca utilização da força-trabalho, mais a charqueada e o frigorífico funcionando juntos não absorviam toda a mão-de-obra excedente.

Os frigoríficos estrangeiros, com suas manobras baixistas, manti nham a pecuária em permanente crise, ora elevando o preço do gado até o ponto em que as charqueadas não podiam competir, levando-as á falência, ora baixando o preço, comprejuízo para os criadores. Globalmente, a economia gaúcha, como fornecedora nacional de gêneros de primeira necessidade, tinhaparte do seuexcedente econômi co produzido captado pelo centro do país, com ascasas comissionárias

que vendiam os produtos em consignação e obtinham lucro com asdi ferenças de preço.A intermediação comercial agia comoum mecamsmo de transferência de renda do Rio Grande para o centro do país. Em sín tese, o poder de acumulação dapecuária sulina se achava truncado, tan

to no que diz respeito à produção (criação-charqueada), quanto no plano do mercado.

A possibilidade de acumular mediante a redução dos custos de produção pela via daintrodução decomponentes tecnológicos modemizantes pressupunha uma certa disponibilidade de capital de giro para in troduzir tais inovações, o que não se dava. O aumento da acumulação mediante a intensificação da utilização da força de trabalho também en contrava seus limites: a charqueada já estava operando com seu nível máximo de exploração de mão-de-obra, enquanto que a criaçao, pela

sua peculiaridade própria, tinha uma fraca utilização de força-trabalho. A obtenção de um preço maior pela mercadoria produzida nomercado eralimitada, por umlado, pelas articulações de empresas monopolistas estrangeiras de frigorificação de carnes e, por outro, pela presença dos concorrentes do charque no mercado nacional e pelo baixo poder aqui sitivo dos consumidores.

Quanto a esta questão, o interesse do centro do país era manter

uma política de preços baixos quanto aos gêneros de primeira necessi dade. Os cafeicultores haviam impostoà naçãouma política de salvação

do café que tivera como um de seus resultados a desvalorização da moe da e o encarecimento do custo de vida. Para contornar a tensão social 23

provocada, exigia-se a manutençâ:o dos preços dos gêneros alimentícios de subsistência, com o que deixaram de lucrar os estados produtores do mercado interno.

Dentro deste contexto, a principal atividade econômica do Rio

Grande apresentava-se descapitalizada, com uma série de entraves que se antepunham à sua transformaçffo plena no sentido do capitalismo. Assim como no restante do país, os 40 anos de República VeUia haviam sido, no Rio Grande do Sul, uma fase de gestação do modo de produção capitalista. Inclusive, pode ser dito que uma forma específica de capitalismo ali se desenvolvia,aquele historicamente possível de cons tituir-se dentro dos marcos de uma realidade brasileira de dependência e, mais especificamente, de uma unidade da federação subsidiária do cen tro do país. Em síntese, o complexo pecuário rio-grandense apresentava está gios diferenciados do capitalismo. O processo produtivo realizado na estância apresentava uma forma geral não especificamente capitalista, mas onde elementos de capitalismo se podiam fazer sentir. A charqueada, enquanto manufatura, era forma histórica de produção capitalista, mas se encontrava sem maiores renovações desde a introdução da má quina a vapor. Os frigoríficos, empresas nitidamente capitalistas, liga dos a grupos multinacionais, atuavam como elemento de tensão dentro do contexto geral.

Dadas, portanto, as condições básicas do complexo pecuário pre dominante no Estado, cabe centrar a anáhse na classe que por ele res pondia. Desde o surto de desenvolvimento do arroz, é possível classifi car a classe dominante do Rio Grande como agropecuarista. Todavia,

dentro dela, o setor pecuarista ainda se comportava como o elemento decisivo. Para fins desta análise, será, pois, tomado em consideração o

componente pecuário, aqui identificado como "classe dominante", ou seja, aquela que possuía o predomínio da vida econômica. Neste mo mento histórico de análise —o início dos anos 30 —esta classe predo

minante se apresentava também como hegemônica, ou seja, detinha o controle do poder político e dos mecanismos de controle social (dire ção intelectual, moral, ideologia). No final da República Velha, ambas as frações em que se dividia a classe dominante no Estado —criadores e charqueadores —se acha

vam reunidas em associações de classe, onde defendiam seus interesses

econômicos específicos e divergiam entre si quanto à preservação desses interesses.

Durante o II Congresso de Criadores, em 1928, apareceu uma proposta de criação de um Sindicato do Charque, ficando determina do que a Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul 24

(FARSUL) deveria convocar os charqueadores para que, com o apoio e incentivo do Governo do Estado, fimdassem uma organizaçâ^o desse tipo.

Como interpretar a aprovação de uma moção dessa or dem numa reunião de criadores? Antes de mais nada, convém

lembrar que, apesar dos pontos de oposição que pudessem ter os interesses dos criadores e dos charqueadores, ambos eram frações de uma mesma classe dominante, que vivia na explora ção de atividades econômicas relacionadas com a pecuária e que tinham como interesse primordial que os unia a defesa do capital Ora, sendo a charqueada a forma de exploração da car ne predominante no Estado, em mãos nacionais, era natural que, da prosperidade da charqueada, derivasse a prosperidade

do próprio criador Mesmo que o criador identificasse que o charqueador procurava pagar-lhe pelo boi o menor preço, a

charqueada, [. . . ] ainda era a forma prioritária de aproveita mento do boi Face à debilidade de acumulação local, a ativi dade charqueadora era a única forma nacional de industrializa

ção da came,^^ Em julho de 1928, foi convocado um Congresso de Charqueado res, durante o qual ficou decidida a criaçffo de um Sindicato de produ tores, com o objetivo de controlar e regularizar a exportaçâ^o do artigo, afetado no momento pelo problema da superproduçâ:o e pelos concor rentes nacionais. A proposta associativa para defesa da produção era in

centivada por Getúlio^^, que apontava esta como a melhor solução para os problemas da economia gaúcha, permitindo maiores lucros, pela eli minação do intermediário na exportação e pela possibilidade de contro le da oferta e, conseqüentemente, do preço no mercado. Desde o início do seu funcionamento, o Sindicato dos Charquea dores, com sede em Pelotas, propôs-se, segundo seus estatutos, a congre gar os saladeiristas para, em ação conjunta, promover a defesa dos inte

resses recíprocos de criadores e charqueadores^^. A prática, porém, re velou a impraticabflidade destas intenções. Os pontos de atrito que sur giram deram-se em tomo da data da matança e do preço imposto pelo Sindicato aos estancieiros na compra do gado. Segundo a visão dos criadores, o charqueador, alegando que as matanças poderiam avolumar os estoques, deixou de comprar o gado no momento certo, transferindo a data do aba-

^^Pesavento, Sandra Jatahy. República Nova Gaúcha: Charqueadas, frigoríficos e criadores. Porto Alegre, Movimento/IEL, 1980. p. 266-7.

25 Mensagem presidencial de 1928. p. 8-9. 26 Sindicato dos Xarqueadores do Rio Grande do Sul. Estatutos. Pelotas, A Uni

versal, 1928.

25

te. Quando dis^s-se a comprar o gado, ofereceu por ele um

preçoirrisório.^^

Além de contar com o patrocínio do govemo para a sua constitui ção, o Sindicato dos Charqueadores foi beneficiado com duas outras

medidas do Poder Público no sentidode beneficiar a pecuária gaúcha. A primeira delas, que precedeu a formaçáo do Sindicato, foi a criaçáo do

Banco do Rio Grande doSul pelo Decreto n? 4.079, de 22de junho de 1928, o qual foi instalado a 12 de setembro do mesmo ano. Utilizando

os recursos advindos do empréstimo extemo de 42 milhões de dólares, contraído pelo Estado com os banqueiros nova-iorquinos White, Weld & Company, Getúlio constituiu no Rio Grande um estabeleci

mento de crédito destinado a conceder empréstimos a juro baixo e prazo longo ao setor agropecuário do Estado. Referindo-se ao valor do ato do Govemo estadual, Joaquim Luís Osório mencionava em discurso por ocasifo da abertura do IV Con gresso Rural, em 1930:

No auxilio à pecuária em geral na safra de 1929, o Banco emprestou, aproximadamente, 80 mil contos de réis, sendo que dessa soma cerca de 50 mil contos foram destinados ao fi nanciamento direto do charque e 17.577 contos a empréstimos

hipotecários rurais a longo prazo. ^' A outra medida govemamental que veio atender aos interesses dos charqueadores no Estado foi o resultado da campanha levada a

efeito no Congresso pela bancada gaúcha, sob o estímulo de Getúlio,

para obter a chamada "desnacionalização docharque"^ '. Através desta mèdida, conseguida em setembro de 1928, desarti culou-se o contrabando do charque que se fazia com o recurso das cha madas "guias falsas". O produto gaúcho, que escoava por Montevidéu para ganhar o mercado brasileiro, ia acompanhado de uma guia onde se certificava a sua origem nacional, fazendo com que, ao chegar nas al fândegas brasileiras, nâo pagasse imposto de importaçáó. Mediante o recurso das "guias falsas", conseguidas na fronteira, também o charque uruguaio exportado junto com o brasileiro por Montevidéu se fazia acompanhar de um atestado que afirmava a sua origem rio-grandense ou mato-grossense. Desta forma, ao chegar nas alfândegas brasileiras, não pagava imposto também, burlando o fisco e abarrotando o mercado intemo.

27 Pesavento, op. cit., p.278. 28 Foi instalado ontem, na Biblioteca Pública, o IV Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 maio 1930. p. 9.

29 Correio doPovo, Porto Alegre, jul.a set. 1928.

26

Segundo a lei da desnacionalização, foi considerado charque es trangeiro todo aquele que transitasse por território platino na sua de manda do mercado brasileiro. Forçava-se, assim, o escoamento da pro dução gaúcha pelo porto de Rio Grande e desarmava-se o tradicional es quema de contrabando praticado pelos uruguaios. O fato do Rio Grande conseguir, pela primeira vez, enviar o char

que diretamente para Cuba, sem intermediação estrangeira, foi saudado pela opinião pública. Preocupado com o escoamento da produção das charqueadas, o governo Vargas gestionou junto ao govemo central, obtendo um aba timento de 50% nos fretes da Viação Férrea para o transporte do pro duto.

Enquanto os charqueadores eram, desta forma, beneficiados com as medidas tomadas pelo govemo estadual, os criadores, anegimentados

na FARSUL desde 1927^°, realizavam congressos onde debatiam seus principais problemas.

As propostas levadas à discussão no IV Congresso Rural do Esta do, reunido em Porto Alegre, em maio de 1930, mostram bem a per

cepção que os estancieiros —fração, por assim dizer, modemizante da classe dominante gaúcha —tinham da problemática que viviam. Já na própria convocação da FARSUL, entidade patrocinadora, notam-se as idéias de afirmação do caráter rural do Rio Grande e da necessidade da auto-suficiência pela derivação da produção e a união da classe:

Dos rurais, da sua capacidade de trabalho, do bom êxito de suas iniciativas e esforços, depende em primeiro lugar a pos sibilidade da emancipação econômica de uma região. Cada ter ra deve produzir de modo que se baste a si mesma, naquilo que for possível, e para bastar-seé necessáriaa organização da pro

dução. Reunindo-se periodicamente a classe rural, em congres sos, procurando estudar as suas necessidades, os meios de bem produzir e de bem defenderseus interesses, ela terá curadode

modo eficiente do bem-estar doRio Grande.^ ^

Dentre os principais tópicos abordados, sobressaíram aqueles relacionados com a decadência do charque e com a única solução possível para o aproveitamento da came no Rio Grande do Sul: a for mação de um frigorífico nacional. Quanto ao problema da decadência dó charque, enfatizou-se a questão da concorrência interna no fomedmento do mercado nacional, 30Esta seria a terceira fundação da FARSUL, que anteriormente já fora criada em 1909 e em 1921.

31 Anais do IV Congresso Rural. Porto Alegre, Tipografia Thurmaim, 1930.p. 3. 27

o fato do Rio Grande oferecer um produto de baixa qualidade e a má

atuação do Sindicato dos Qiarqueadores, prejudicando os criadores^ No relatório das atividades da presidência da FARSUL, Ricardo

Machado enfatizava que o Sindicato vinha se revelando ineficiente para dominar o mercado consumidor. Quando conseguia impor um bom pre ço, quem disso se aproveitava eram os concorrentes. A política altista dos preços era mantida artificialmente, mediante retençâò do estoque, ocasionando saldos de charque que iam passando de uma safra para ou tra. Sua ação vinha-se mostrando tão nefasta que fora até anunciado o fechamento da Cooperativa Pastoril Sul-Rio-Grandense, fundada em 1928, em Pelotas. Esta cooperativa "tinha por fim congregar os criado res e invemadores para, em ação conjunta, realizarem a regularização dos negócios do gado, bem como melhorar e defender a indústria pecuá ria no Rio Grande do Sul. Dentro desses objetivos, destacava-se o de

conseguir um bom preço pelo gado"^^ e proporcionar os meios de promover a industrialização da carne.

O cooperativismo surgia no final da década motivado^ por um lado, pelo próprio acúmulo de crises que, no decorrer do século, vinha enfrentando a pecuária gaúcha, e, por outro lado, pela situação de agudização dos interesses divergentes de criadores e charqueadores, tornados mais claros com o estabe lecimento do Sindicato dos Charqueadores,

Prosseguindo na sua anáUse, o presidente da FARSUL citava o conflito existente entre os interesses dos criadores e dos charqueadores,

uma vez que os fazendeiros não eram consultados sobreas questões re lativas ao preço do gado e início ou fechamento da safra, que eram fi xados arbitrariamente pelos saladeiristas, atendendo exclusivamente aos seus interesses pessoais. Em síntese, os charqueadores resolviam os seus interesses recíprocos com os criadores na ausência destes. A solução para a questão pecuária gaúcha estava na constituição de uma empresa frigorífica nacional, dirigida pelos criadores, para o beneficiamento dos gãdos. No discurso de instalação do Congresso, Joaquim Luís Osório colocou o problema da safra de 1930: conside rando-se uma oferta de 1.000.000 de cabeças de gado, os frigoríficos, segundo a previsão, abateriam 350.000 e os charqueadores 250.000

cabeças. Logo, odéficit seria de 450.000 a500.000 reses^^. Os frigoríficos estrangeiros operavam no Estado com capacidade ociosa e, transcorridauma década desde a sua instalação e funcionamen32 lbidem,p. 40-71. 33 Pesavento, op. cit., p. 281. 34 Ibidem.p.281. 35 Anais do IV Congresso Rural, op. cit., p. 16.

28

to, não abatiam mais que as empresas saladeiris. No ano de 1928, por

exemplo, para um abate de 142.423 cabeças de gado nos frigoríficos, as charqueadas apresentavam luna matança de 753.577cabeças. Quanto aos dados referentes à exportação, em 1928 o Rio Grande exportara

19.049.469 kg de carnes congeladas, no valor de 26.533:691 $000, en quanto que as charqueadas remetiam 53.836.483 kg do seu produto, num valor de 97.220:841 SOOO'®. Para compreensão destes dados, deve-se ter em conta que , no

plano do mercado internacional, ascarnes frigorificadas de procedência brasileira gozavam de menor aceitação e cotação que as platinas, que atendiam às exigências do consumo europeu, no que diz respeito ao ní vel de refinamento das raças. Por outro lado, os frigoríficos, atuando no Rio Grande do Sul, em termosde matança, aquém de suacapacidade de

produção, voltaram-se também para a atividade da charqueada, contri buindo para aquele abate tão significativo. Tal mudança de orientação

teria, no parecer de E. Silveira,^' correspondido a uma alteração na estratégia de expansão das grandes empresas frigoríficas multinacionais. Estas teriam penetrado no Brasil, em particular no Rio Grande do Sid, por ocasião da Guerra, para livrarem-se de um ambiente sócio-político contrário que estavam vivenciando na Argentina. Tendo, contudo, se normalizado a situação política na Argentina, as potências frigoríficas defrontaram-se com um problema de superprodução com relação ao consumo mundial. A solução encontrada teria sido, pois,o encaminha

mento dos frigoríficos para a atividade charqueadora. Aexplicação pa rece plausível, principalmente se se tiver em conta as tentativas do govemo argentino de controlar a ação dos frigoríficos no período em apreço.^® Entretanto, para a entrada dos frigoríficos estrangeiros no Rio Grande do Sul, contaram também as modificações nos padrões de consumo do mercado internacional gerados pela Primeira Guerra: face á elevada demanda para abastecimento dos exércitos, se oportu-

nizou a industrialização de carnes de mais baixa qualidade, permitin

do que as empresas estrangeiras buscassem aquelas áreas onde os reba nhos não se achassem com alto grau de refinamento.®' O projeto de um frigorífico no estado, formado com capitais na cionais, já fora levado a efeito uma vez, por ocasião da guerra, com o

projeto do "Frigorífico Rio Grande", empresa que, mal instalada, não 36 Diretoria Geral do Tesouro. Dados sobre produção e exportação de charque e carnescongeladas em 1928. Porto Alegre, 12 set. 1929. (manuscrito)

37 Silveira, Ênio. Empresa e satelitização no campo. Estudo de uma estância no

Rio Grande do Sul. São Paulo, USP, 1972. Ap.Projeto Evolução, op. cit. nota 12. 38 Smith, Peter H. Carne y política en IaArgentina. Buenos Ayres, Paidos, 1968. 39 Pesavento. Op. cit. nota 24. 29

conseguira encontrar condições de operar em larga escala e fora com prada pelo grupo inglês Vestey Brothers, tomando o nome de Frigorífi co Anglo em 1924. A idéia ressurgia novamente, não mais com o obje tivo anterior de abastecer o consumo nacional de carnes. Para tanto,

alvitrava-se a necessidade de uma propaganda para intensificar o con sumo intemo das cames frigorificadas. Era lembrado o caso do Uruguai, onde, em 1928, fora criado o " Rrigorífico Nacional", com o fim de impedir o monopólio estrangei ro da industrialização de cames. Para entrar em funcionamento, o frigo rífico oriental contou com os recursos de um empréstimo intemo lan çado pelo govemo e cujas ações foram compradas pelos criadores e pelo próprio Estado.

A idéia da criação de uma empresa similar no Rio Grande fora apresentada por Marcial Terra em julho de 1928, por ocasião do Con gresso que o Sindicato dos Charqueadores realizava em Porto Alegre. Da mesma forma, a idéia aparecera no II Congresso Regional Serrano, realizado em Tupanciretã de 22 a 24 de março de 1930. Na opinião do destacado ruralista Marcial Tena, impunha-se a criação de um frigorífico que fosse amparado pelo govemo do Estado, com recursos do Banco do Rio Grande do Sul e contando com a co

operação de todos os criadores. Acrescentava ainda que não se podia comparar o preço que um frigorífico podia pagar com aqueles que os charqueadores ofereciam, pois grande era a diferença no aproveitamen

to da matéria-prima"*®. Ficou decidido pelo IV Congresso Rural que uma comissão se di rigiria a Getúlio Vargas para saber como o presidente do Estado encara va a idéia da reorganização da indústria da carne e da fundação de uma Sociedade Sul-Rio-Grandense de Carnes. Quanto ao resultado da entre vista, relatava Ricardo Machado aos criadores reunidos na quinta sessão plena, realizada em 28 de maio de 1930:

Sua excelência, depois de ouvir atentamente aqueles con

gressistas, declarou que receberia com a maior satisfação as su

gestões que fizessem ao Govemo do Estado e quefaria tudo o que estivesse ao seu alcance. Entre o Dr. Getúlio Vargas e a comissão ficou resolvido que se apresente um memorialao go vemo do Estado, acompanhado de documentos precips, afim de se escolher um meio de dar execução à Fundação da Socie dade Sul-Rio-Grandense de Carnes,^*

Entre as questões menores apresentadas no IV Congresso Rural, discutiu-se a necessidade da utilização de banheiros carrapaticidas, a conveniência do uso do arame sem farpa no cercamento dos campos, 40 Anais do IV Congresso, op. cit, p. 326. 41 Ibidem, p. 344. 30

a utilização generalizada de balança para as negociações de compra e venda do gado, a defesa da criação ovina, com utilização para corte e fornecimento de lã, o incentivo à suinocultura, problemas relativos à obtenção de uma maior valorização do couro e estudos compara tivos entre as raças de corte.

O êxodo rural foi uma preocupação que também apareceu mani festa nos debates do congresso. Embora preocupado mais com o traba lhador empregado nas lides da agricultura, a tese de Nestor Fagundes (O problema das máquinas agrícolas) alerta para o problema que estava ocorrendo, falando da necessidade de conservar nas fazendas os operá rios rurais, pois

O operário que abandona os trabalhos do campo e vem para as cidades dificilmente volta às suas ocupações antigas. Mais difícil ainda é contarmos com a atração dos operários radicados nas cidades para a agricultura. Esses como aqueles, depois de se habituarem nos centros populosos, preferem su portar as mais duras misérias a abandoná-los; prova-o isto a quantidade de operários sem trabalhos, que diariamente per correm as ruas em busca de serviço. O problema do trabalhador rural, completamente desamparado pelas instituições, foi outro ponto de debate, para o qual os congressis

tas já começavam a se alertar. Umaproposta foi feita no sentido de que fosse criada uma instituição que funcionasse tal como um instituto de previdência do operário rural. Haveria uma contribuição básica de 1201000 anuais por empregado e que deveria ser suportada pelo pa trão. A tese que apresentou tal idéia fazia, contudo, uma ressalva no caso dos peões, que considerou como que á parte, estando mais pró ximos dos patrões do que o comum dos trabalhadores rurais. Argumen

tava com a "convivência íntima das fazendas de criação" e a "bondade" e "veneração" vigentes nas relaçõesentre empregadose estancieiros^^.

É claro que o IVCongresso Rural apresentava a visão que a classe dominante tinha de si mesma e de seu relacionamento com a classe do

minada, vendo as coisas do ponto de vista do capitale não do trabalho. De um modo geral, pode-se observar que os estancieiros reunidos no Congresso experimentavam grandesexpectativas para com o governo e mesmo reconhecimento pela sua atuação com relação à pecuária. Em discurso de homenagem a Getúlio Vargas, o Cel. Vicente Lucasde Lima referia:

[. . .] nota-se claramente, desde o iníciodo seu futuroso governo, a vontade plena de transformar o Rio Grande do Sul

numa imensa usina de trabalho, em grandes realizações de ca42 Ibidem,p. 286. 43 Ibidem, p. 378.

31

ráter prático, No cumprimento de tão justo anhelo, ele tem envidado todos os esforços, pró-aumento da capacidade de produção, procurando também protegê-la intransigentemen-

te[,

A pecuária principalmente tem sido o alvo predileto

de seu espirito reformador, em vista de ter ele procurado am parar carinhosamente os seus principais produtos - charque e banha, pelo auxílio desinteressado que deu à criação de sindi catos para sua defesa. Os seus propósitos são cristalinos. Tudo ele tem cuidado no sentido de normalizar os processos econô micos do Estado, pelo amparo que vai dando aos elementos capazes de efetuarem tais realizações. O Dr. Getúlio Vargas, assim procedendo, levará ao posto de salvamento, tenho cer

teza plena, o nosso justjssimo desiderato, na reunião para a vida ao tentarmos vencer as inúmeras dificuldades que se antolham no caminho das nossas naturais finalidades econô micas.^^

Respondendo às homenagens recebidas, Getúlio Vargas afirmava que,

Quando uma organização como a Federação das Associa ções Rurais, com o seu prestigio, com o seu valor econômico, com a sua significação social para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul se acerca dos poderes públicos, constitui ao governante um dever estimulá-la e ampará-la em sua finalidade.

Nestas condições, o que fiz, além de significar um especial apreço, um prestigio ao valor de suas iniciativas, entendi con tribuir com o meu esforço para a suaprosperidade, porque ela representa uma classe que tanto contribui para a riqueza do Estado.^ ^

Além das medidas já citadas que o governo do Estado empreen deu no sentido da salvação da pecuária, pode serdestacada a criação da

Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio, através do Decreto n? 2.299, de 15 de abril de 1929. A nova instituição deveria constituir-se

num órgão promotor do desenvolvimento agrícola e pecuário no Esta do. Através do seu Setor de Indústria Animal, o novo órgão destacou-se

por ter distribuído boletins e circulares, divulgando conselhos e instru ções. Pelo Decreto n? 4.345, de 15 de julho de 1929, fora criada a po lítica sanitária animal, que ficou subordinada à Secção Animal da Dire toria de Agricultura, Indústria e Comércio. Entre as suas realizações, contam-se a distribuição de 200.000 doses de vacinas, a criação de cinco inspetorias veterinárias, a criação de um posto zootécnico em Montenegro para suínos e aves e o desenvolvimento de pesquisas em microbiologia para estudo de parasitas que atacavam os animais. Em

acordo realizado com o governo federal, a Diretoria ficou encarregada 44 Ibidem,p. 30-1 45 Ibidem, p. 32. 32

de realizar a distribuição de 100 reprodutores importados pelo Minis tério da Agricultura.^® Dentre as medidas tomadas pelo governo estadual, deve ser ressal

tado ainda o Decreto n? 4.551, de 31 de julho de 1930,que prorrogou o prazo para a cobrança, semmulta, do imposto territorial no exercício daquele ano.'*' Mediante o Decreto n? 4.555, de 2 de agosto de 1930, a presidência do Estado mandava sobrestar, "ad referendum" da Assem bléia dos Representantes, "a cobrança do imposto de viaçãoe de outras taxas sobre a exportação pela fronteira uruguaia de gados de corte e de invemar".

Atendendo diretamente, neste caso, aos criadores que,frente ao declínio da safra, se apresentavam com as invemadas cheias, o gover no, como saída de emergência, oportunizava a colocação do rebanho no mercado oriental.

Ao mesmo tempo em que buscou ir ao encontro dasnecessidades dos pecuaristas, Vargas procurou atender o conflito interclasse que afe tava as duas frações da classedominante no Estado.

Considera-se que tal forma de atuação está relacionada com um projeto maior, ou seja, aquele que, através da satisfação das necessida des econômicas dos pecuaristas, buscava realizar a união política da classe rural no Estado.

Getúlio Vargas tivera no Rio Grande uma carreira ascensional: líder do Bloco Acadêmico castilhista em 1907, promotor público em

1908, deputado estadual nos períodos de 1909-1913 e 1917-1922, de putado federal em 1924 e Ministro da Fazenda de Washington Luís em 1927. Dentro do esquema vigente da política dos governadores, con

templavam-se os estados chamados grandes eleitores com altos cargos no govemo. Indicado pelo PRRpara substituir a Borges de Medeiros na presidência do Estado no mandato que se iniciaria em 1928, Getúlio concorreu só, sem que os libertadores lançassem um candidato.

Na postura de Mem de Sá, o Partido Libertador (PL) aceitou a indicação de Vargas e não apresentou candidato porque só a perspec tiva de ficarem livres de Borges de Medeiros os fazia sentirem-se gratifi cados.^'

Já Assis Brasil, em discurso proferido no Congresso Nacional em 20 de agosto de 1929, declarava que, em 1923, seu pensamento era que, uma vez afastado Borges de Medeiros do poder, era preferível que o pre46 o Rio Grande do Sul em revista. 1930.Porto Alegre, Globo, p. 14. 47 Leis, decretos e atos do Governo do Estado. 1930. p. 302. 48 Ibidem, p. 304. 49 Sá, Mem de. A politizaçSo do Rio Grande. Porto Alegre, Tabajara, 1973, p. 73.

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sidente do Estado não fosse dos libertadores, cuja agremiação ainda não se achava suficientemente sedimentada.^® Uma vez governador do Rio Grande, Getúlio Vargas representou uma nova fase do governo do PRR no sul, utilizando novas técnicas no

sentido de um maior entendimento com a oposição. Ainda é Mem de Sá quem relata a mudança de comportamento, que ia desde atos como o convite aos libertadores para irem às recepções no palácio, até possibili tar que a oposição conseguisse eleger Oscar Fontoura para intendente de D. Pedrito, cidade tradicionalmente conhecida por ser reduto de ma-

ragatos e libertadores.^ ^ Outra atitude de Vargas que evidencia a mudança de orientação do govemo quanto à oposição deu-se por ocasião das eleições para a Assembléia Estadual em março de 1929. Batista Luzardo queixara-se ao presidente do Estado que a propaganda dos libertadores havia sido cerceada pelas autoridades de São Francisco de Paula. Em resposta â reclamação da oposição, Getúlio demitira o delegado de polícia do mu nicípio onde era intendente o Cel. Elisiário Paim, chefe republicano prestigioso e irmão de Firmino Paim Filho, um dos líderes de destaque

do grupo que apoiava GetúUo.^ ^ Tais atos de conduta política, o recuo da ortodoxia positivista após a saída de Borges, o atendimento dos problemas econômicos da classe dominante pelo governo do Estado ou seu empenho em obter concessões do govemo federal, o apoio aos órgãos de classe - foram todos fatores que criaram um ambiente favorável para a aproximação política das duas facções em que se dividia o Rio Grande. Já por ocasião do banquete que a representação gaúcha ofereceu a Getúlio no Rio de Janeiro, a 10 de dezembro de 1927, quando de sua eleição para presidente do Estado, o líder Lindolfo Collor assim se pronunciou, no discurso de saudação:

[. . . ] prezais, como todos nós prezamos, as belezas das nossas convicções e sabeis respeitar, também, a inviolabilidade das convicções alheias, E não vos atormenta, por isso mesmo, o temor das lutas políticas da República [... ]Nascidos e forma dos num ambiente de competições partidárias nós sabemos que é, em grande parte, à presença do adversário que devemos a nossa presteza, na luta, e que é a necessidade da luta que au menta em nós o entusiasmo da arremetida e a constância na

50 Assis Brasil, Joaquim Francisco de. Atitude do Partido DemocráticoNacional na crise da renovação presidencial para 1930-34. Porto Alegre, Globo, 1929. p.68.

51 Sá, op. cit., p. 74.

52 Fontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e introd. de Hélgio

Trindade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. (Perfis Parlamentares 8) p. 168-9.

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defesa do cendrio de civismo que é o Partido Republicano do Rio Grande do Sul [. . . ] Combatemos porfiadamente pela vi tória dos nossos ideais, mas não desejamos o extermínio dos nossos adversários e nem quando com ele terçamos as nossas

armas lhes negamos a nossa consideração de homens. Será, por isso, mesmo o vosso governo, Dr. Getúlio Vargas, dentro do imperativo das nossas tradições, um exemplo de indispensável firmeza nas convicções do vosso partido e de tolerânciaem re lação a nossos adversários, ^^

O PRR acenava para a conciliação e a concórdia política, e Getú lio Vargas, no seu discurso de agradecimento, fixou a necessidade de ''contar com o apoio de todos os rio-grandenses/' Apesar de candidato de um partido, Vargas acentuava que governaria com este sem que os

compromissos partidários o fizessem esquecer sua tarefa de presidente do Estado.^ ^ Está implícita, aqui, a preocupação de atenuar o sectaris mo em função de princípios de concórdia, harmonia e mesmo uma

promessa de franquias públicas^ ^ e concessóes à oposição. Por outro lado, o novo presidente do Rio Grande afirmava a sua compreensão do papel do Estado, não mais se limitando "ao conceito de Spencer de mantenedor da ordem e distribuidor da justiça", mas sim um papel interventor, "amparando as indústrias, fomentando as rique

zas, estimulando a cultura, regulando o trabalho".^ ^ No discurso pronunciado por ocasião da instalação do II Congres so de Criadores em Porto Alegre, a 28 de marçode 1928, Vargas enfati zava que, para que os problemas econômicos fossem solucionados, era preciso que houvesse paz e união no Rio Grande. Referia Getúlio: As ideologias políticas que não tiverem por base de sua organização a solução de problemas econômicos dificilmente

poderão subsistir. ^'' É preciso que se enquadre toda esta articulação de formação da "Frente Única" nos marcos de um Rio Grande onde, em 1923, se de

monstrara a viabilidade política de oposição, não mais controlada in questionavelmente pela situação. Dentro deste contexto, é possível en tender que a divisão intema que existia desde o início da República en fraquecia o Rio Grande do Sul, como grande estado, colocando-o fora das pretensões ao poder central. Os libertadores, por seu turno, haviam crescido em termos de Correio do Povo, Porto Alegre, 10 dez. 1927. p. 1. 54 Ibidem.

55Correio do Povo, PortoAlegre, 11 dez. 1927. p. 1. 56 Correio doPovo, Porto Alegre, 10dez. 1927. p. 1. 57 Segundo Congresso de Criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 abr. 1928. p. 8.

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prestígio e potencialidades de açffo desde 1923. Em 1927, Assis Brasil colocara a Aliança Libertadora em coligaçâ:o com o Partido Democráti co de São Paulo, formando um partido de oposição de âmbito mais

abrangente: o Partido DemocráticoNacional.^® Tanto as articulações da oposição gaúcha, quanto a orientação da facção política dominante no Estado, que desembocaram na formação

da Frente Única Gaúcha (FUG), em 1928, e na Aliança Liberal, em 1929, devem encontrar significância dentro do contexto, já anteriormen te analisado neste capítulo, da crise da República Velha brasileira. A queda da Primeira República foi marcada pelo esgotamento da política agrário-exportadora de defesa do café, pela insatisfação social, pela ci são das oligarquias regionais ligadas às economias do mercado interno e pela introdução do elemento militar como grupo de pressão atuante e contrário ao regime. Na postura de Rowland, a alternativa que surgiu dentro do sis tema para que a cisão das oligarquias se efetivasse e a situação se preci pitasse foi a "pacificação do Rio Grande do Sul" após as eleições esta duais. A partir daí, o Rio Grande do Sul tornar-se-ia o pólo de agrega ção da dissidência oligárquica, facilitada a sua emergência no cenário

nacional pela formação da Frente Ünica.^ ^ Concluindo a análise, dentro da postura adotada, considera-se ter sido essencial para a unificação política do Rio Grande a atuação de Vargas com relação à pecuária gaúcha, indo ao encontro de suas ne cessidades. Aliás, em todas as iniciativas de renovação, atitudes do go verno e congressos realizados, ambas as facções políticas estiveram la do a lado, defendendo o setor da economia que representavam. Satisfeitos seus interesses econômicos de classe e acenando-se

para a sua integração aos quadros do poder instituído, a pacificação política estava preparada.

Sendo, na realidade, integrantes de uma mesma classe dominante, não haveria razão mais forte, de cunho ideológico, que as separasse, uma vez que possuíam os mesmos interesses econômicos.

Nesta medida, a FARSUL, na abertura do IV Congresso Rural em

1930, posicionava-se, assim como todos os órgãos de classe do Rio

Grande, em apoio à FUG e à candidatura aliancista.^ ^ A pacificação interna do Rio Grande, possibilitadora do seu in58 Love,Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo, Perspectiva, 1971. p. 242. 59 Rowland, op. cit., p. 13. 60 Pesavento, op. cit, p. 264. 61 Anais.. ., op. cit.

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gresso na concorrência presidencial, foi louvada por parlamentares, li bertadores e republicanos.

Em discurso proferido no Congresso Nacional em 20 de agosto de 1929, Assis Brasil refutava a apreciação que estava sendo feita aosliber tadores rio-grandenses, que haviam-se unido aos republicanos em nome de interesses regionais: 11

O argumento é grosseiro efraco. Não é o interesse regio nal e muito menos a preferência pelo homem que ocasional mente exerce a govemação do Estado o que explica a súbita

convergência de todos os rio-grandenses [. . . ] Os rio-granden-

ses uniram-se porque deparavam —todos ao mesmo tempo — um ideal que era comum a todos, fossem quais fossem as apa

rências que os dividiam Onde a mesma circunstância não se der, a conclusão tem de ser outra. A obediência ao ideal, quando ele arranca dos mais profundos elementos da consti tuição do povo e da raça, como é o nosso caso, domina todas as considerações secundárias, E a tradição de culto à liberdade política é a dominante da nossa história. Todos nascemos re publicanos, ainda que eventualmente alguns se tenham disper sado na teia superficial dos acontecimentos. Encarando a Frente Única como uma verdadeira "fatalidade his

tórica", eivada da soUdez com que princípios políticos ficaram arraiga

dos na formação rio-grandense, Assis Brasil justificava a união pelapre sença de um ideal mais forte. Damesma forma, encarava a participação gaúcha na Aliança Liberal: no seu entender, os governadores dos estados aliancistas ergueram-se em nome de princípios e do seupovo. "A esco lha dos governantes, tal como vinha se dando, dava-se por designação e não por eleição. Havia total desprezo à opinião pública, sendo pois um método vicioso que prejudicava a vigência da democracia". Por seu lado, João Neves da Fontoura, articulador político da re

volução, em agosto de 1922,no Congresso Nacional, também justificava a união política do Rio Grande, identificando-a nos seus princípios, com os anseios do povo brasileiro que se cristalizavam na candidatura da Aliança Liberal. Já não são dois partidos que se abraçam na ponteira de suas idéias: são as famílias, as escolas, as usinas, as estâncias, enfim, um povo inteiro, que fala pela minha palavra para dizer

que quer a candidatura gaúpha, se elafor a candidatura do Bra sil Jamais fomos tão grandes como nesta hora histórica, em que, obrigados e com as bandeiras das nossas idéias abatidas, vimos diante da Pátria inteira, que toda ela merece o nosso res peito acendrado (apoiados), dizer que há um Brasil maior, es62 AssisBrasil,op. cit., p. 80-1. 63 Ibidem, p. 10-22.

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tranho às facções e às pessoas: é o Brasil das idéias, o Brasil de amanhã.^

Prosseguindo no mesmo tom grandiloqüente, em setembro de 1929, João Neves complementava a sua idéia sobre a formação da FUG, negando o seu conteúdo regionalista e enfatizando a presença de uma grande causa como fator fundamental de união dos libertadores e repu blicanos. O Rio Grande não se constituía no momento num só partido organizado, mas sim numa aliança que abrigava duas correntes de prin cípios, irmanadas em função de uma idéia mais alta. Iguahnente, nega va a possibilidade dos libertadores apoiarem Getúlio por bairrismo, mas sim por reconhecerem nele um liberal autêntico, homem capaz de gran des atos políticos.^ ^

Na postura de João Neves, enquanto que o panorama político brasileiro se degradava cada vez mais, sob a força da violência, da arbi trariedade e da fraude, o Rio Grande do Sul, em contraste, apresenta va-se dentro dos critérios do mais puro liberalismo, pretendendo ven cer nas urnas mediante uma eleição honesta. Fique a nação com estas palavras gravadas na sua cons ciência: a Aliança Liberal nasceu de uma idéia. Vive não só

pelo apoio moral e político dos que a compõem [. . .] e dos que, dia a dia, nela se alistam, senão também pelo conjunto de objetivos doutrinários, que são a sua exclusiva razão de existir.

Assumindo cada vez mais, em seus discursos, um tom inflamado e revolucionário, no comício realizado no teatro Princesa Isabel, em Reci

fe, a 27 de janeiro de 1930, João Neves chegaria a afirmar as bases po pulares da Aliança Liberal: Ela não veio de cima, mas de baixo. Ela não se perde na

antipatia do individualismo estéril, mas socializa os seus rumos e é, queiram ou não queiram, um movimento de nascentes populares e de objetivos populares. Ontem, os políticos deixa

vam-se conduzir pela audácia dos improvisadores de soluções. Hoje, os homens públicos já se contentam em refletir no pos to de comando as imposições da periferia.

Complementando a visão que a classe dominante gaúcha apresen tava de si mesma, do momento histórico em que vivia e de sua atuação, a publicação O Rio Grande do Sul em Revista, no ano de 1930, apresen tava-se muito rica como fonte de estudo.

64 Fontoura, op. cit, p. 55. 65 Ibidem, p. 159-70. 66 Ibidem, p. 202. 67 Ibidem, p. 237.

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o momento histórico é identificado como uma verdadeira "cruza

da para dignificação do regime", nunca se descuidando o Rio Grande do seu "amor à Pátria" e de suas tradições gloriosas, que o convertiam no paladino do "liberalismo". Além do claro sentido ufanista e de atribuir ao Rio Grande o papel de regenerador do regime, nota-se a idéia de fa

zer apagar o período de dissídio político para glorificar a obra de unifi cação que permitira atingir o Catete: Volta agora, depois de uma seqüência de embates que se parou em correntes opostas a família rio-grandense, a quietude conjuntora das energias da raça. Elementos ontem dispersos,

repulsivos pelo ardor dos ideais sustentados [.. . ] realizam ho je, aqui e ali, pelos pontos mais diferentes do Rio Grande, esse milagre de união de almas que vaiasarcofagando a série de dis sídios de outrora e pondo em cada coração o ânimo resoluto

[. . . ] para a vitória de uma causa justa. Postas em linha assim as energias de um povo trabalhado pelo mesmo espírito de concórdia e lealdade, o Rio Grande caminha para a integra ção do seu grande sonho, mais forte do que nunca, porque

leva consigo sob uma bandeira única [. . . ] não a sua histó ria de lutas internas, pois que estas ficaram no passado [. . . ] mas a sua própria alma que carrega também a alma do Bra

sil [. . . ] Rio Grande, chegou a hora do teu sonho; não recua nem estaca - marcha para a concretização do teu destino

[...r O Rio Grande do Sul era apresentado quase como que impelido por um destino histórico, chamado a participar porque "as circunstân

cias atuais da política brasileira o arrastam"^^. Neste sentido, cumpria, por assim dizer, uma tradição gaúcha de socorrer a nação sempre que fosse preciso.

A figura de Getúlio Vargas, por seu turno, era elogiada como go vernante :

Vendo no Rio Grande do Sul uma fonte inesgotável de

energia produtora, mas compreendendo que esse esplêndido manancial de forças só seriaaproveitado num ambiente seguro de ordem e de paz, deu início à grandiosa obra de pacificação da família rio-grandense. ®

Em termos gerais, esta era a visão que o Rio Grande, segundo a ótica de sua classe dominante, representava a si mesmo e de seus atos; uma unificação baseada na existência de princípios mais altos; a vivên cia histórica gaúcha apontando no caminho do dever de participar e acudir a nação nos momentos angustiosos; a tradição política liberal do

68 o RioGrande do Sul emrevista. Ano 1930. PortoAlegre, Globo, p. 4. 69 lbidem,p. 58. Ibidem, p. 147.

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Rio Grande do Sul; Getúlio Vargas encarado pelos republicanos como depositário das maiores reservas morais; reconhecimento dos libertado res para com o elemento que garantira eleiçõeslivres. Todavia, por trás da visão que a classe dominante fazia circular pela sociedade, estava a inserção do Rio Grande do Sul no contexto his

tórico de sua época: dentro da crise da República Velha, um Estado de economia subsidiária, voltado para o mercado intemo, zona de um ca pitalismo incipiente que se encontrava em discordância com a orienta

ção da política econômica nacional e com a hegemonia do grupo cafeicultor paulista no poder. É, indiscutivelmente, pelo prisma das dissi dências regionais das oligarquias periféricas que deve ser entendida a participação do Rio Grande na Aliança Liberal. É ainda em função des te processo que se consubstanciava num projeto político que se deve compreender as medidas econômicas de Vargas preparando a unificação do Rio Grande. Não se quer, em absoluto, fugir à percepção que outros fenômenos influíram no processo, tais como a diferenciação internada sociedade brasileira, o surgimento de novosgrupos de pressão, a insatis fação militar, etc., mas foge ao esquemadeste trabalho uma análise mais demorada dos mesmos.

Dentro da perspectiva exposta, o Rio Grande, junto às demais oli garquias periféricas aliancistas, disputou nas umas a presidência do Bra sil, opondo ao nome do candidato oficial Júlio Prestes a chapa Getúlio Vargas - João Pessoa.

O programa da Aliança Liberal era de molde a atrair as oligarquias agrárias, inclusive o setor paulista cafeeiro, ligado ao Partido Democráti co: apoio ao nordeste, através das obras contra a seca, manutenção da política de defesa do café, mas extensão da política nutricionista a ou tros produtos. A este respeito se pronunciava Vargas: Pelo conhecimento que tenho da economia nacional e

pela direta experiência que fiz, quando Ministro da Fazenda, estou convencido da necessidade da política de valorização dos nossos produtos e amparo eficiente ao produtor. Outra não tem sido, como se sabe, a minha diretriz, no governo do Rio

Grande, onde o que se tem feito assemelha-se ao direito corporativo ou organização das classes, promovido pelo re gime fascista, no período de renovação criadora que a Itália atravessa, Não será diferente, é claro, na administração supre

ma da República, se lá me levar o voto dos meus concidadãos,

observadas as exigências e necessidades do meio maior e as pe culiaridades de cada Estado, ^

^1 Em importante entrevista, o candidato liberal Getúlio Vargas expõe os pontos essenciais do seu programa administrativo. Correio do Povo, Porto Alegre, 11 ago. 1929. p. 7.

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Além destasidéias, que se evidenciaram mais claramente no perío do da República Nova, outras foram fixadas na plataforma da Aliança Liberal, publicada em dezembro: reformajudiciária e eleitoral, represen tação minoritária e voto secreto, anulação dalei do estado de sítio e da censura, anistia aos revoltosos dos anos 20, legislação social, idéias de

reforma agrária, etc7^ Incluindo tão variados itens, o programa congregava as mais varia das tendências. Realizadas as eleiçOes e derrotado o candidato da oposi ção, ainda por algum tempo as lideranças discutiram a possibilidade ou não da revolução. Com a adesão de altos comandos militares e o apoio da oficialidade tenentista, venceu a tendência do grupo liderado por Flores da Cunha, João Neves da Fontoura e Osvaldo Aranha, que pro-

pugnava pelo recurso às armas. Tanto Love^^ como João Neves da Fon toura^"* enfatizam as hesitações de Getúlio, seu caráter dúbio e a sua tendência à protelação. Dentro do ponto de vista adotado, importa con siderar tais atitudes inseridas dentro do jogo político das oligarquias e coerentes dentro do projeto mais amplo de conquistado poder central. Apesar dos avanços e recursos do candidato liberal, suas atitudes aca bam por se coadunar com as expectativas que a classe dominante gaú cha esperavanaquele impasse da vida política do país.

A revolução, eclodida a 3 de outubro, conduziu o Brasil por no vos caminhos para enfrentar realidades diferentes das até então vigentes na República Velha que se extinguia.

72 Love,op. cit., p. 249. 73 Ibidem, p. 254-60. 74 Fontoura, João Neves úsl. Memórias, Porto Alegre, Globo, 1963. v. 2. 41

2. O BRASIL PÓS-30: NOVAS DIRETRIZES NUM MOMENTO

DE TRANSIÇÃO A crise política que se manifestou na década de 20 e se expressou no movimento revolucionário de 1930 trazia, no seu bojo, uma situação

estruturalmente desequilibrada.^ O café, como base de sustentação da economia brasileira, vinha experimentando crises sucessivas, que a po

lítica de valorizaçâ:o visava atenuar. Aos poucos, chegava ao fim a hege monia absoluta do setor cafeeiro, na medida em que a estrutura monta da ia alargando suas brechas. Demonstrava-se a inviabilidade da manu

tenção do modelo agroexportador que se esgotava como forma de acumulação interna de capital. Em outras palavras, o desenvolvimento econômico do capitalismo - entendido sempre como processo de acu

mulação privada de capital^ —cumpria uma etapa histórica no país. O café fora capaz de internalizar o processo de acumulação, mas se obstaculizava em si próprio: seu funcionamento impedia a generalização pelo país deste processo. No meio dos acontecimentos revolucionários que acabaram

por fazer cair por terra a Primeira República, a crise de 29 atingiu o Brasil. Na opinião de Fausto, 1 Fausto, Boris. A revolução de 1930. SãoPaulo, Brasiliense, 1972. p. 93-4. ^lanni, Octávio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971. p. 6.

A crise não produziu a revolução, como uma espécie de curto circuito em um sistema de pleno funcionamento e é possível mesmo especular sobre a eventualidade da queda da

República Velha, independente dela. Mas as contradições da economia cafeeira, das instituições que consagravam seu pre

domínio ganharam outra dimensão [...] A crise acelera as condições que possibilitaram o fim da supremacia da burgue sia do café, ao produzir o desencontro entre a classe e seus re

presentantespolíticos.^ Acentuando o papel da "Depressão Econômica Mundial" no mo mento em que se dá a Revolução de 1930, lanni coloca: Não só pelos efeitos ''catastróficos'* que ela provocou na

cafeicultura e, por conseqüência, no sistema político-econômi co brasileiro, em conjunto, mas também pelo fato de que "pro duziu** uma consciência mais clara dos problemas brasileiros. Todas as classes sociais, inclusive a própria burguesia associada à cafeicultura, foram obrigadas a tomar consciência - nova mente e de modo mais completo - das limitações econômico-fínanceiras inerentes a uma economia voltada fundamental

mente para o mercadoexterno.^ Eixo de sustentação da economia nacional, gerador de recursos que eram distribuídos pelo restante do contexto nacional, a crise do ca

fé desmantelava toda a vida do país, que se via flagrantemente à mercê das oscilações do seu grande único produto lançado no mercado inter nacional.

Referem Villela e Suzigan:

Quando a depressão econômica mundial atingiu o Brasil em fins de 1929, a economia já se encontrava em crise. De fa to, aos estoques de café acumulados nos anos imediatamente

anteriores pela política de defesa permanente daquele produ to, veio juntar-se a perspectiva de uma safra recorde em 1929•30.Os preços começaram a cair, acentuando-se a queda com a crise internacional de outubro. Embora fosse mantido o saldo da balança comercial, a paralização da entrada de capitais au-

gurava dificuldades com o balanço de pagamentos. Na realida de, o saldo da balança comercial nos últimos anos não chegava sequer à metade dos pagamentos da dívida externa, sem contar remessas de particulares e imigrantes. Era iminente a crise no mercado cambial. ^

Evidencia-se aqui o fenômeno referido no capítulo anterior, me diante o qual a intermediação comercial e financeira externa consumia 3 Fausto, Cp. cit, p. 97-8. 4 lanni, op. cit., p. 18. 5 Villela, Anibal Villanova & Suzigan, Wilson. Política do governo e crescimento

da economia - 1889-1945. Riode Janeiro, IPEA/INPES, [s.d.] p. 467. 43

todo o saldo da balança comercial. As reservas de ouro que o Brasil possuía advinham da exportaçâò e dos investimentos estrangeiros no país. Com a crise econômico-fínanceira eclodida em 1929, verificou-se tanto a retração do mercado inter nacional, com a conseqüente queda de preços e da exportação, quanto o recuo dos investimentos estrangeiros no Brasil, determinando o fim do crédito e das reservas/ouro da Caixa de Estabilização criada por Washington Luís. Carone fez uma análise das exportações de café do Brasil nos anos de 1925 a 1937, verificando que a tonelagem e o valor em mil réis se mantiveram praticamente os mesmos.Por uma quantidade de 13.482.000 sacas de café valendo 2.900.092 contos de réis em 1925, o Brasil passou, em 1937, à exportação de 12.123.000 sacas no valor de 2.159.431 con tos de réis. Já com relação ao valor da exportação em libras-ouro, a que da foi surpreendente: tendo auferido a quantia de 74.032.000JC em

1925, passou para 17.887.000£em 1937! Refere o autor: "a explicação está na desvalorização da nossa moeda e na queda do câmbio, o que dá

a ilusão interna de que o preçosemantém".® Tal sistemática evidencia a encampação, por parte do govemo re

volucionário, da política de salvação do café. O Conselho Nacional do Café foi criado em 1931 para a compra do produto, com o fim de esto cá-lo ou jogá-lo ao mar, enquanto que, paralelamente, o govemo emitia e realizava a depreciação cambial, para evitar o desestúnulo daquela ati vidade que era a base da economia brasileira. Desta forma, a produção continuava crescendo, a exportação se mantinha mediante retenção do estoque e a queda do valor da moeda brasileira atenuava, internamente, a baixa do preço do café no mercado internacional.

A solução, contudo, tinha os seus problemas: com tais medidas, mais a propaganda empreeendida pelo govemo para a conquista de no vos mercados, mantinha-se a produção crescendo. A desvalorização da moeda, por seu tumo, transferia para a coletividade o ônus da sustenta ção do produto. Instalado o Govemo Provisório pós-revolucionário, com Getúlio

Vargas na chefia, o problema econômico fundamental do novo regime foi procurar contornar a crise que, partindo do setor agroexportador, se propagava pelo país inteiro. Realizada a revolução por uma coalisão formada pelas oligarquias periféricas, exército e segmentos médios urbanos, havia uma gama varia da de interesses a satisfazer.

Dentre eles a própria oligarquia cafeicultora, descontente com a 6 Carone, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo, DIFEL, 1974. p. 25.

44

política econômica levada a efeito por Washington Luís, que, aferrado à sua política econômico-financeira de estabilizaçíTo cambial, negou-se a atender às solicitações dos cafeicultores, nffo emitindo e abando nando a política do café. Os cafeicultores, sendo mantida uma taxa fi xa de câmbio, recebiam cada vez menos, á medida em que, no exterior,

caíam os preços do produto. Recusando-se a tomar medidasque impe dissem a execução das hipotecas dasfazendas, nem concedendo crédito ao Instituto do Café de São Paido', os cafeicultores, em grande parte, haviam deixado de apoiar o presidente e seu sucessor, que prometia levar adiante sua política.

Às vésperas da Revolução, os cafeicultores paulistas se pronun ciavam numa revista gaúcha:

A lavoura não pode ficar à mercê de valorizações efême ras. É precisoque se lhe dê um aparelhode defesapermanente. O problemado cttfé não pode ser indefinidamente um proble ma administrativo, tem que ser mais: precisa ser um problema

mercantil [...] Dominadora como sempre, a políticaabsorve^ tudo. Quem pensa quem ordena, quem delibera é o gpvemo. E ele o Instituto. A lavoura paga [. . .] É a única prerrogativa

que se lhe não arrebata [. . . ] Outra coisa tem que serfeita, outros homens têm que ser postos na alavanca do comando,

o espírito mercantil tem que tomar o lugar do espírito polí tico [. . . ] Ouçam-nos ou não nos ouçam, estamos cumprindo o nosso dever de paulistas, amigos da lavoura, brasileiros cio

sos daprosperidade coletiva.^

Os interesses do café, realizada a Revolução, necessitavam ser atendidos, não só porque ele representava a mola mestra da economia brasileira, como porque se demonstrava ser impossível governar sem o

apoio dosetor econômico mais importante dopaís.' O problema econômico da nação não se esgotava, contudo, com o café. Havia as economias regionais e os interessesdas oligarquias perifé ricas a serem atendidos. Cada região,entretanto, apresentavaproblemas específicos, particulares à situação de cada área, afetada em maior ou menor grau pela crise. Nestas zonas periféricas, nenhuma das oligarquias se apresentava

com força suficiente para substituir-se à burguesia paulista como predo minante e hegemônica no cenário nacional. Não se tratava, no caso, de I Skldmoie, Thomas.Brasil de Getúlío Vargas a CasteüoBranco. Rio de Janeiro, Saga, 1969. p. 30.

8 O principal produto do Brasil à mercê da política. O Rio Grande em revista. Ano 1930. Porto Alegre, Globo. p. 62.

9 Rowland, Robert. Qasse operária e estado de compromisso. EstudosCEBRAP 8. Rio de Janeiro, Brasiliense, jan. fev. mar. 1974. p. 15.

45

fazer substituir-se a hegemonia paulista pela gaúcha na condução do poder central.

Porque nenhuma fração da classe dominante nacional se achava com condições de exercer com desenvoltura o predomínio e a hege monia no país, não se quer dizer que os interesses a ressalvar não fos sem os da burguesia nacional, como um todo, classe dominante que era.

Portanto, ligada à problemática econômica herdada pelo governo recém-instituído —salvar o país da crise —, achava-se a questão de en contrar uma estrutura institucional que resolvesse o problema político principal: como assegurar o domínio da classe dominante, reconciliando

os seusinteresses divergentes.^ ® O processo que se instalou pós-30 conduziu a expansão do capita lismo no país sob a forma de um novo modo de acumulação, baseado na estrutura produtora industrial. Tratando-se, pois, da continuidade

do capitalismo enquanto processo, isto implicava, necessariamente, a

manutenção da burguesia como classe dominante. É evidente que, veri ficando-se o caso de um país de capitahsmo tardio, surgido dentro dos marcos da dependência e com grandes diversidades regionais, em termos de atividade econômica e nível de desenvolvimento, haviagerado varia dos grupos dentro da classe dominante nacional, que se constituíram

nas oligarquias, base da estrutura de poder nos quadros da Velha Repú blica.

Conforme a região e o tipo de atividade, estas oligarquias assu miam uma maior ou menor feição burguesa, correspondendo ao maior

ou menor estágio do desenvolvimento do capitalismo.

^

No conjunto de todos estes interesses e problemas a atender, a ní vel de classe dominante, impunha-se a constituição de uma nova estru tura do poder. Nela, afastava-se do exercício direto do poder o setor ca-

feicultor, sem que isso implicasse a sua substituição automática por outro.

Neste sentido é que ganha força a idéia da margem de autonomia relativa do Estado, na medida em que, em determinadas situações histórico-objetivas, nenhum setor se encontra em condições suficientes para dominar e se sobrepor aos demais.

Os setores que ocupam o centro da estrutura de dominação, em nome da própria preservação de sua domináncia, cedem espaço na estru tura de poder a setores cuja extração social pode coincidir ou não com aquele centro de dominação. A situação até agora analisada aborda apenas os interesses da clas se dominante. Todavia, contam neste processo as insatisfações das ca io Rowland, op. cit, p. 19. 46

madas médias urbanas que haviam atuado como grupo de pressâò e do proletariado que, já organizado, ameaçava como força desagregadora os interesses capitalistas a manter. Como se comportou, pois, o novo govemo com relaçá^o ao pro cesso econômico em crise e às classes sociais envolvidas?

O Estado que se constituiu durante a chamada República Nova tomou medidas concretas para atenuar os efeitos da crise de 1929 sobre o café. Ao mesmo tempo, buscou diversificar a produção agrícola nacio nal, para eliminar os efeitos desastrosos da dependência exclusiva de um únido produto de exportação. Em especial, pode ser destacado o caso do algodão, que ascendeu na pauta das exportações. Acordos foram fei tos com outras potências tais como a Alemanha e o Japão, que passa ram a comprar do Brasil. No que diz respeito à indústria, não parece ter sido ela preocupação consciente, meta estabelecida do governo nesta época. Foram tomadas medidas, inclusive, contra a indústria , tal como a proibição da importação de máquinas em 1931, ou o ''Acordo de Re ciprocidade" com os Estados Unidos em 1934, mediante o qual o Brasil reduzia tarifas alfandegárias para os produtos norte-americanos, desestimulando a indústria nacional, em troca da promessa dos Estados Unidos em manter livres de direitos de entrada no país o café e a lavou

ra brasileira.^ ^ Preocupado em reter divisas ou com a manutenção de mercados para os produtos de agroexportação, indiretamente, com tais

medidas, o governo prejudicava a indústria nacional. Ao longo do pro cesso instalado p6s-30, particularmente após 1937, com o avanço do desenvolvimento capitalista, a indústria se impôs como a nova forma de acumulação de capital. A industrialização se imporia não por ser intento do govemo, de forma plenamente configurada já na etapa da República Nova, mas realmente por ser a única saída historicamente possível den

tro dos quadros do capitalismo^ ^, considerada a inviabilidade da restau ração do modelo agrário-exportador de desenvolvimento vigente pré-30. A expressão característica para explicitar este tipo específico de Estado que se constitui —Estado de Compromisso —exprime uma si tuação em que, na ausência de uma classe que sozinha empolgue o poder, com absoluto predomínio sobre as demais, se constitui um compromisso entre frações da classe dominante. Classes dominadas, no caso, ficam à margem deste compromisso e, na realidade, o pacto que se

firma entre os setores dominantes é justamente para assegurar a sua su premacia sobre o contexto social. Para tal, estabeleceu-se a necessidade 11 Bandeira, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro, Civi lização Brasileira, 1973. p. 242-3.

12 Vianna, Luís Wemeck. Liberalismo e sindicato no Brasil Rio de Janeiro, Paz

e Terra, 1976.

47

de uma elite dirigente, mediante a qual elementos oriundos das diferen tes frações da classe dominante ou elementos de outras classes sociais, cooptadas pelo aparelho do Estado, exercem a funçâò política de pre

servar os interesses históricos da classe burguesa como um todo. É por aqui que se deve entender a autonomia relativa do político em rela ção ao econômico, mas tal autonomia, no caso, "não eliminava o fato do Estado continuar sendo o guardião de uma classe econômica e so cialmente dominante"^

Não se trata, em absoluto, de caracterizar um "vazio de poder":

o poder, no caso, é ocupado por setores da classe dominante, com par ticipação de elementos da classe média, guindados ao aparelho de Es tado, que se destinam a manter os interesses globais da burguesia e do capitalismo.

É neste contexto que pode assumir um significado preciso a afir mação de lanni^^, ao caracterizar o Estado que se constitui pós-30 co mo um "Estado burguês": na medida em que proporcionará, ao longo do tempo, a expansão do modo capitalista de produção no país e que responderá às exigências de manutenção da burguesia como classe do minante.

Vigorando uma nova estrutura política, a institucionalização do novo papel do Estado seria, contudo, tarefa a construir e a impor sobre toda a nação.

Durante todo o período do Governo Provisório, tratou simultaneamente de criar os alicerces de uma nova estrutura

política, através dos interventores, e de neutralizar a oposição que lhe poderia ser movida pelos antigos detentores do poder político. Estes reclamavam providências para defender os seus interesses na conjuntura econômica instável do início da déca

da, e a resposta compatível com a necessidade política de man

ter a independência do executivo foi a criação de órgãos espe cializados no Estado I ..] A expressão de interesses regionais ou estaduais através das bancadas no legislativo substitui-se a expressão de interesses setoriais através de distintos órgãos do

executivo, que desta forma assumiu o papel de mediador en tre os interesses divergentes de setores da classe dominante. ^^

A ênfase na proliferação dos "conselhos", "institutos" e "sindica

tos" encaminhava, deste modo, a resolução dos problemas e satisfação de interesses dos diferentes setores da classe burguesa nas suas relações com o poder público, bem como atendia á preocupação de diversificar a estrutura econômica brasileira.

13 Vianna, op. cit.,p. 118. 14 lanni, op. cit., p. 13-4. 15 Rowland, op. cit., p. 17.

48

As camadas médias urbanas, por seu tumo, sentir-se-iam partici pantes na nova estrutura montada na medida em que ingressavam nas

fileiras da grande ampliaçâ:o da máquina burocrática estatal. Quanto ao operariado, foram institucionalizadas pelo Estado as relações capi tal Xtrabalho, mediante a elaboração de uma legislaçâ:o social, que im plicava a subordinaçâ^o e controle do trabalhador aos interesses da acumulação capitalista. Tanto o corporativismo como o trabalhismo devem ser, pois, entendidos como elementos despolitizadores e, portanto, úteis para a vigência de um Estado autoritário, com seu executivo cada vez mais fortalecido.

O Estado, ao mesmo tempo em que desarma a possibilidade de ação das classes trabalhadoras, contornando as divergências, assume a posição da defesa do capitalismo e, por extensão, da burguesia como um todo. Antes de 1930, apresentava-se o quadro de um governo oligárquico e de uma fração das camadas dominantes agrárias; após 1930, encontrava-se um governo para as "burguesias", no atendimento aos

problemas nacionais. À noção de um governo constituído segundo in teresses de uma oligarquia substituiu-se a vigência de uma nova estru tura política, onde a intervenção do Estado na Economia revelou-se cada vez mais, regulamentando todos os fatores. No decorrer deste processo, a indústria iria se afirmando como a nova e predominante

forma de acumulação de capital.^ ^ Dentro de um contexto onde se dava, cada vez mais, a projeção

do poder central em detrimento da estrutura oligárquica do poder e em que se diversificava a estrutura econômica brasileira como um todo, surgia a noção de integração do mercado nacional. A partir desta pers pectiva, as economias regionais, baseadas em artigos de subsistência agropecuários, eram chamadas a colaborar para suprir o abastecimento

interno do país, na sociedade urbano-industrial que se desenvolvia.^^ O Rio Grande do Sul, tradicional estado de economia periférica, for necedor do mercado interno brasileiro, aparecia com um sentido pre ciso, colaborando para a estruturação deste novo modo de acumula ção de capital que se gerava e onde o setor agropecuário tinha o papel de fornecer alimento a baixo preço.

É evidente que tal processo descrito não seconstituiu no estreito limite de 1930 a 1937, marco escolhido para a efetivação deste traba lho, nem tal projeto político ou programa de desenvolvimento econômi co apareceu como forma consciente e acabada antes da instalação do 16 Oliveira, Francisco de. Critica da razão dualista. São Paulo, Brasiliense, Estu dos CEBRAP 2, 1972. p. 9.

17 Ibidem, p. 15. 49

Estado Novo, mas é no bojo da estruturação desta nova forma de me

diação entre o político e o sócio-econômico que deve ser apreciada e analisada a crise da pecuária gaúchae as articulações da classe doihinante rio-grandense ao nível da política.

50

3. A CRISE DA PECUÁRIA GAÚCHA NO PERÍODO

DISCRICIONÁRIO (1930 - 1934) 3.1 —Asdimensões da crise (1930 -1932)

Ao se iniciar a República Nova, o Rio Grande do Sul ocupava a posição periférico-dependente mais importante do país, com sua econo mia fundamentalmente baseada na agropecuária abastecedora do merca do interno nacional e, secundariamente, do comércio internacional.

Durante a República Velha, havia-se consolidado um tipo especí fico de desenvolvimento para o contexto sulino, baseado na salvaguarda dos interesses da classe dominante regional e na consagração do papel de "celeiro do país" atribuído ao Rio Grande.

O governo instalado no Rio Grande do Sul pós-revoluçSo de 1930 mantinha a defesa desses interesses, ocupado o poder que fora por ele mentos da oligarquia regional. Como interventor federal, ocupou o car go o Gen. José Antônio Flores da Cunha, ficando com a Secretaria da

Fazenda José Antunes Maciel, ambos ligados ás atividades agropecuárias no Estado. Não se repetiu, a nível regional, a relativa independência do político com relação ao econômico, tal como no centro, na medida em

que a mesma classe que antes ocupava a hegemonia política e a predo minância econômico-social conservou os seus postos, manifestando-se apenas, em alguns casos, a ascensão de novos nomes.

Refere Müller que, dentro deste contexto econômico, a classe do minante periférico-dependente tendia a reproduzir suas condições de existência. Neste caso, os interesses fundamentais a serem preservados eram os da agropecuária e, na opinião do autor, o modelo escolhido pa ra a trajetória de desenvolvimento sulino operava como possibilitador e

inibidorao mesmo tempo.^ Oportunizava-se, no bojo do próprio modelo, a existência de uma camada industrial, mas sempre submissa, no caso, aos agropecuaristas que constituíam o grupo dominante no Estado. Tanto ao nível central como ao nível local do país, verifícava-se,até então, uma tendência que impelia ao capitalismo rural. A perspectiva histórica gaúcha se concen trava pois, em encontrar saídas para a agropecuária. Não cabe, nos limites deste trabalho, analisar o comportamento da agricultura capitalista frente a crise pós-30 e sua busca de soluções, ou as atribulações da agropecuária colonial, tradicionalmente fornece dora do centro do país dos gêneros de subsistência. O foco da análise é o setor ainda predominante no estado —a pe cuária gaúcha, colhida pelos efeitos da crise de 29 nos anos iniciais da República Nova.

O charque, forma arcaica mas ainda fundamental de aproveitamen to da carne em mãos de rio-grandenses, experimentava um decréscimo

na exportação^: Anos

Tonelagem

1927 1928

61.411

1929 1930 1931 1932

53.836 45.879 35.695 32.385 40.874

Valor

Preço por (]^uüo

(em cruzeiros)

(em mil reis)

73.530.323:00 97.220.900:00 104.713.680:00 80.273.472:000 61.670.330:000 69.556.363:000

1$397 1$805 2$283 2$248 1$694 1$701

É possível observar o declínio do preço do charque nos mercados do norte, apesar da atuação do Sindicato dos Charqueadores, que fora criado com o intuito de estabilizar o seu preço, racionalizando a expor tação.

1 Müller, Geraldo. Periferia e dependência nacional São Paulo, USP, 1972. p. 127. (Tese de mestrado, mimeografada)

^ Dados retirados a partir de: Süva, Austriclínio G. da & Guerra, Aldrovando. Exportação de charque no Rio Grande do Sul Porto Alegre, Secretaria de Admi nistração, Departamento Estadual de Estatística, 1959. p. 9.

Pimentel, Fortunato. Charqueadas e frigoríficos. [s.l.] Livraria Continente [s.d.] p. 144.

52

o Sindicato dos Charqueadores, que figurou como segundo ex portador do estado em 1929, num total de 42 exportadores, só suplan tado pela firma Joâ:o Souza Mascarenhas & Cia., passou, nos anos de 1930 a 1932, a figurar em primeiro lugar. Enquanto para os anos de 30

e 31 a firma de Mascarenhas ocupava o segundo lugar na exportação, fi cando o terceiro com a Cia. Swift do Brasil, no ano de 1932 o segundo

lugar foi ocupado pela Swift, o terceiro pela firma Luís Loréa, seguidos

porJ.S. Mascarenhas em quarto e Cia. Armour do Brasil em quinto.^ Importa atentar não só para o fato do Sindicato galgar o posto de primeiro exportador, mas para o dado da elevada exportação das com panhias estrangeiras estabelecidas no estado, que passaram a competir

com as charqueadas na fabricação do tradicional produto gaúcho. Os frigoríficos no Rio Grande continuavam a operar com capaci dade ociosa^ sendo ainda suplantados pelos estabelecimentos saladeiris'

no que toca à matança. É possível obter-se a comparação pelos dados abaixo"*: Anos

Matanças de bovinos para charque (em %)

Frio e conserva

1929 1930 1931 1932 1933

77,25 57,26 65,09 82,44 84,26

22,75 42,74

(em %)

34,91

17,56 15,74

A crise de 29, marcando a retração mundial dos mercados e a que da dos preços, iria ferir a fundo a indústria frigorífica. A manifestação da crise na indústria do frio no estado pode ser observada através do abate do frigorífico Armour, nos anos de 1930 a 1933, de bovinos e ovmos

BOVINOS

Anos

Novilhos

1930 1931 1932 1933

140.848 59.746 64.546 60.589

Vacas

Terneiros

Gado cria

38.863 6.850 15.178 14.246

35.545 40.135 31.009 21.684

721 1.822

_



Total

215.256 107.452 112.555 96.519

3 Sindicato dos Charqueadores do Rio Grande do Sul.Estatística de exportação de charque pelos portos de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre, anos de 1929 a 1932. Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes.

4 Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Departamento de Estatística. 5 Arquivo Swift-Armour S.A. Santana do Livramento. 53

OVINOS Anos

Capões

Ovelhas

Cordeiros

Total

1930 1931 1932 1933

19.281 12.664 212 558

640 859 300

125.422 144.944 80.837 45.345

145.343 158.467 81.349 45.903



No conjunto, o Frigorífico Armour teria, nos anos de 1930 a 1933, demonstrado um acentuado declínio:

1930 —360.599 cabeças 1931 —265.919 cabeças

1932 —193.904 cabeças 1933- 142.422 cabeças No que diz respeito à exportação de carnes frias de todo o Rio

Grande, os dados para a exportação de carne bovinacongelada e de car ne bovina em conserva também atestam o declínio da atividade dos fri

goríficos^ : CARNE DE BOVINO CONGELADA Anos

Quilos

Valor (em Cr$)

1930 1931 1932

47.777.333 21.597.339 8.436.852

64.228.624,00 27.846.952,00 11.419.654,00

CARNE DE BOVINO EM CONSERVA Anos

1930 1931 1932

Quilos 5.319.796 2.297.493 1.890.668

Valor (em Cr$) 9.341.480,00 4.194.986,00 3.411.753,00

Para o contexto global brasileiro, igualmente é visível o declínio da exportação de carnes congeladas ('frozenbeef") e resfriadasC*chilled beef")'':

Anos

Toneladas

1930 1931 1932

112.150 74.023 45.985

6 Pimentel,op. cit., p. 172. ^ Ibidem,p. 225. 54

Valor (em réis) 163.351:358$000 101.096:896$000 54.085:710$000

No que tange às carnes enlatadas ("corned beef'), que, junto com o "frozen beefhavia tido grande exportaçâ^o durante o período da Pri meira Guena Mundial, verificou-se uma queda no ano de 1932, como,

aliás, praticamente todos os artigos de origem animal. Enquanto este produto atingia, em 1919, a exportação de 25.398 toneladas, no valor de 42.243:491$000, no início da República Nova apresentou os se

guintes dados®: Anos

Toneladas

Valor (em réis)

1930 1931 1932

6.598 4.374 3.248

17.307:340$000 12.110:706$000 9.258:770$000

Manifestando-se a crise no frigorífico e na charqueada, ou seja, nas duas formas de aproveitamento da carne existentes no Rio Grande do Sul, a criação foi imediatamente atingida, premida pela necessidade de dar vazão à matéria-prima básica do estado. A conseqüência imediata deste processo foi a baixa do preço do gado. Referindo-se à população pecuária dos anos de 1931 a 1933, o re

latório do interventor Flores da Cunha apresentou os seguintes dados^: 1931

Espécies Bovinos

Ovinos

Suínos

Eqüinos Muares

Caprinos Total

Cabeças

Valor (em réis)

387.960 135.790

1.158.687:500$000 188.407:400$000 216.319:130$000 122.357:980$000 58.050:940$000 1.903:210$000

25.027.830

1.745.726:160$000

10.246.090 7.351.000 5.417.870 1.489.120

1932

Valor (em réis)

Espécies

Cabeças

Bovinos Ovinos

Caprinos

10.056.240 7.467.270 5.435.580 1.475.720 384.230 134.770

1.086.073:920$000 179.214:480$000 206.552.040$000 121.009:040$000 57.634:500$000 1.890:000$000

Total

24.953.810

1.652.373:980$000

Suínos

Eqüinos Muares

8 Ibidem,p. 226. 9 Relatório apresentado ao Sr. Dr. Getülio Dornelles Vargas, Presidente da Re pública, e lido perante a Assembléia Constituinte do Estado pelo então Inter ventor Federal Jpsé Antônio Flores da Cunha em 15 de abril de 1935. Porto

Alegre, Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1935. p. 87-8.

55

1933

Valor (em réis)

Espécies

Cabeças

Bovinos Ovinos

Caprinos

10.025.140 8.272.780 5.178.350 1.484.930 382.030 134.370

1.073.581:410$000 186.160:660$000 183.512:710$000 113.332:060$000 56.665:450$000 1.762:140$000

Total

25.477.600

1.615.014:430$000

Suínos

Eqüinos Muãres

Igualmente, outros produtos da pecuária sulina se viram afetados pela crise de 31-32 que abalou o mercado internacional. No que toca à lã, o seu comércio sofreu uma grande queda em

1932, segundo os dados fornecidos por Pimentel^ ®: Anos

Toneladas

Valor (em réis)

1930 1931 1932

7.362 6.991 1.772

44.078:573$000 37.791:352$000 6.277:050$000

O ano de 1932 iria também marcar um baque no comércio inter

nacional de couros e peles, como se pode ver^ ^: Anos 1930 1931 1932

. Toneladas 56.290 56.603 38.346

Valor (em réis) 142.303:017$000 158.427:538$000 95.197:254$000

Estabelecido assim o enquadramento básico no qual se inseria a pecuária gaúcha no início da Segunda República, como se situavam os representantes da classe dominante local frente á crise e qual era a sua forma de ação?

Já no final do ano de 1930, os charqueadores reuniam-se em as sembléia geral do Sindicato, sob a presidência de Rodolfo Moglia, para debater problemas tais como a regulamentação da exportação de charque, uma vez que havia grande estoque nos mercados consumidores, estando baixa a procura do artigo. Um outro problema aventado foi o

de iniciar a safra mais tarde; os frigoríficos estavam pagando cerca de 600 réis pelo quilo do boi vivo, e com este alto preço os charqueadores ficavam impossibilitados de iniciar suas matanças. Segundo o ponto de vista do Superintendente do Sindicato, Emí10 Pimentel, op. cit., p. 214. 11 Ibidem, p. 216. 56

lio Nunes, os estoques se avolumavam cada vez mais deuma safra para outra. Na sua opinião, isto se dava devido a várias causas: a paralisação dos embarques em outubro devido à revolução e a precária situação financeira dos mercados consumidores, aliada ao alto custo do fa

brico do charque, que o colocava no mercado a preços inacessíveis. No que tange aos concorrentes, colocava o Superintendente que, no mo mento, até a Bahia já se lançava, com êxito, na fabricação de charque. O produto deveria ter o seu custo reduzido ui^entemente. Para isto, deveria concorrer o governo, reduzindo os impostos sobre o sal de Cádiz e os fretes marítimos e terrestres, além de procurar implantar um

grande sindicato de todos os estados produtores com sede no Rio de

Janeiro, para controlar totalmente aexportação^ ^. Na mesma reunião, a firma Osório & Terra, de Tupanciretã, fez

ver aos charqueadores o desacertç) da política valorizadora do produto mediante a retenção dos estoques que estava sendo levada a efeito pelo Sindicato:

As nossas matanças para charque, que chegaram a su bir de um milhão de cabeças, decresceram progressivamente

para cifrar-se a 550,000 em 1929 e a 343.000 neste ano. E de notar que mesmo assim as matanças foram excessivas e todos nós sabemos o que nos custou em quebras de peso, juros exorbitantes, aumento de despesas e diferenças de preço por

apresentarmos um produto demorado ou, corno se diz na gíria, aferventado. A continuarmos nesta progressão, pouco teremos que matar em 1931 e breve chegará o dia em que o nosso charque será desnecessário para os mercados do norte, que serão supridos exclusivamente pelos Estados Centrais, pois é inegável que, à proporção que diminuirmos as nossas matanças, aumentam as deles, Quem lucrou com isso? Os charqueadores, acreditamos que não. Os exportadores que tiveram os seus negócios reduzidos, cremos que também não,

Nem se diga que nesta exposição se defende exclusivarriente os interesses da nossa classe, pois esta está tão ligada à dos criadores que a crise de uma forçosamente refletirá sobre a outra, Se as matanças para charque continuarem diminuindo,

o que se fará dos bois e vacas de desfrute do Rio Grande? Es perar pelas compras dos frigoríficos? Mas, quem pode afirrmr que eles procurarão os nossos gados na quantidade necessária para descongestionar a superprodução que será fatal com a re dução de matanças para charque?^ A postura defendida pelo grupo Osório & Terra representa uma das correntes de pensamento da classe dominante, na medida em que í 2 Interesses dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 dez. 1930. D. 8. Ibidem.

57

considerava que, enquanto se defendiam os interesses dos charqueadores, também se defendiam os da pecuária gaúcha como um todo. Tais elementos s?o representativos do setor mais dinâmico da clas se dominante local. Charqueadores e criadores atuavam nas duas frentes no sentido da modernização, tendo luna visáo mais ampla da pecuária como um todo. Em outra visâò, colocavam-se os charqueadores Pedro Irigoyen e Joáo Mascarenhas, mais identificados com a satisfaçáo ex-

dusiva dos interesses da fração de classe dos saladeiristas. Mascarenhas, inclusive, defendia a ação do Sindicato das acusações que lhe imputa vam de ter feito elevar o preço do charque até acima das possibilidades dos consumidores. Considerava correta a atitude do Sindicato de con

trolar a quantidade de charque que devia ser exportado. O problemase verificava por terem alguns charqueadores burladoeste processo, expor tando livremente desde que pagando um imposto de 100 réisao estado por quilode charque^ A perspectiva assumida pela firma Osório & Terra revela-se , no caso, dotada de um conteúdo mais modemizador, uma vez que demons tra preocupação com o processo produtivo, efetivado de forma arcaica e

deficiente. Nesta medida,sua análise da situação vivida afigura-se a mais coerente e consciente dos problemasda pecuária. Já a postura de Masca

renhas, no caso, restringe-se ao âmbito da circulação, demonstrando grande apego ao processo instalado e não oferecendo alternativa de mo dernização.

Além disso, a posição defendida por Mascarenhas fazia com que fosse herdada da República Velha a divergência entre as duas frações dos pecuaristas, considerando-se os criadores explorados pela atuação do Sindicato.

Ehirante o IV Congresso Rural do Estado, realizado em Porto Alegre em julho de 1930, a acusação dos criadores à ação nefasta do

Sindicato, controlando a oferta sem conseguir garantir preços e baixan do internamente o preço do gado, foi uma constante.' ® Quanto à própria orientação do Sindicato - controle das expor tações ou remessa livre —como já se viu, os charqueadores não eram unânimes. Enquanto Mascarenhas defendia o controle do envio do charque mediante o sistema de quotas, outra corrente de saladeiristas haveria de fazer passar, numa Assembléia Geral Extraordinária do Sin

dicato em 9 de março de 1931, a garantia de um período de exporta

ção livre, compreendido entre 1? de abril e 31 de maio. Como justifisituação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 14 dez. 1930. p. 11.

Anais do IV Congresso Rural. Farml. Porto Alegre, Tipografia Thurmann, 1930. p. 50 a 71.

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cativa, a proposta aprovada pela Assembléia do Sindicato argumenta va:

Na atualidade o embarquede carnesestá subordinado às resoluções de que de íentpo em tempo toma o Sindicato. Em conseqüência disso, o charqueador não sabe, ao movimentar as suas carnes, para que data deverá tê-las secas, quancUt po derá despachá-las da charqueada depois de prontas, nem quando serão remetidas do porto de embarque para os ntercados internos do pais, logo após a sua chegada ali ou retidas no referido porto por tempo indeterminado. Tudo isso concor re para aumentar os gastosprovenientes de elaboração e arma

zenagem, quebra de peso e, o que é pior, deterioração desse produto. ^®

Num momento de crise, o Sindicato e seus membros oscilavam

quanto às medidas a serem tomadas, ora tentando solucionar o proble mada pecuária como umtodo, oraatendendo seus interesses exclusivos. Vivenciando uma situaçSo aflitiva, o Sindicato deddíu, em dezem bro de 1930, que umacomissSb se dirigisse aointerventor federal do es tado, Gen. Flores da Cunha, parainterceder, jimto ao Governo Provisó rio, a concessáo dos seguintes favores:

1?)Abatimento de50% nosfretes da Viaçãó Férrea para o transporte dos estoques de charque destasafra; Abatimento de 20%para o transporte de charqueda fiitura safra;

Revisão das tarifas da Viação Férrea para o transpor te do gado em pé;

4?)Isenção de impostos para o salde Cádiz, importado

para o uso indistrial nas charqueadas; ^) Providências no sentido de serem empregadas as ba lanças para osgados gordos ^'

Como se pode ver, a expectativa dos "industriais" da came se concentrava na comercializaçío da mesma. Por outro lado, as esperan

ças se voltavam para as soluçOes que daria o governo, tanto na esfera estadual como na federal. Flores da Cunha, entrevistando-se com os

charqueadores em comissSò, prometeu que tudo faria no que estivesse ao seu alcance para atender os pedidos feitos.

Atendendo a algumas reivindicações dos charqueadores, o gover no do estado baixou o Decreton? 4.713, de 26 de janeiro de 1931, me

diante o qual se reduzia de $200 para $100 a taxa fixa por quÜo de charque examinado, quando destinado à exportaçSò. Na argumentaçfo Sindicato dos xarqueadoies do Rio Grande do Sul. Pr(q>osta sob forma de su gestão apresentada ao Sindicato dosCharqueadores pelo limo. Sr. Dr. AníbalLou reiro e aprovada em Assembléia Geral Extraordinária de 9 de março de 1931. Interesses de diarqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 9 dez. 1930.p. 8. 59

paia efetivaçfo do decreto, o interventor considerava a difícil sitnaçSb da indústria pecuária, "em conseqüência da baixa do preço do charque

naspraças consumidoras".^ ^ Em 20 de fevereiro de 1931, o governo lançava o Decreto n9

4.722, que criavao Serviço de Balanças e Pesagem de gado gordo, e pelo Decreto nÇ 4.742, de 19 de março de 1931, modificava-o, regulamen tando o seu funcionamento. Defendendo a medida como sendo a mais

justa para compradores e vendedores, a adoção da balança seriafiscali zadapor este novo órgão criado, que funcionaria anexo à Diretoria de Agriculturaj Indústria e Comércio da Secretariade ObrasPúblicas.

No mesmo dia, o interventor criou uma taxa e^ecial sobre os

charques magros, de segunda qualidade, quando remetidos para o mer

cado central do país além dos limites previstos para a sua expoitaçãò' Agindo desta forma. Flores da Cunha buscava controlar a exportação

do produtoem termos de qualidade e quantidade, tentandoassim evitar a queda do preço.

Ainda no mesmo ano de 1931,por ocaàSb de sua estadano Rio de Janeiro, Flores da Cunha conseguiu um aumento no preço do char que, fato louvado pelo Sindicato

Mais tarde, em julho do mesmoano, em memorialao interventor, o Sindicato solicitou que a cobrança sobre o excesso de percentagens de charque magro só se desse após 31 de dezembro, face à deman da que este tipo de artigo estava tendo no mercado. Igualmente, solici

tavam os saladeiristas que lhes fossem pagas as requisições feitas pelas forças liberais da Revolução de outubro. Tal solicitação, contudo, não teve atendimento.

No que toca ao problema dos fretes, os charqueadores argumen tavam que seu produto era muito onerado com as despesas de embarque e transportefenoviáiio, ficando de tal forma sobrecarregado que dificil mente podia competircom artigos similares de outra procedência.

Quanto ao problema do sal,abordado pelos saladeiristas, este gira va em tomo da utilização do sal estrangeiro ou nacional no fabrico do produto.

A postura dos charqueadores era de que somente o produto de Cádiz servia para ser utilizado nas charqueadas, enquanto que o nadonal poderia apenas alimentar o gado. 1^ Leis, decretos e atos do Governo do Estadodo Rio Grande do SuL 1931.p. 20. 19 Medidas de proteção à pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 fev. 1931.

5b Os Trabalhos no VCongresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 maio 1931. p. 7-8.

21a situação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1931. p.7.

60

Colocando-se como porta-voz dos charqueadores, o conhecido saladeiiista Balbino Mascarenhas assimse pronunciava: TSo incomeniente é o sal mdonal para o bom beneficio do abarque, que todos os charqueadores rio^andenses sem ex

ceção, utilizam-se exclusivamente do artigo procedente de Câdiz, embora o adquiram por maior preço. Para que não se diga existir nesta prática um fundo de prevençãocontra a mercado ria brasileira e porque têm sido publicadas análises comprovan do a excelência do sal ruicional, vamos citar um fato conclu

dente: os srs. Moreira Filhos, agentes de sal nacional e dos

maiores recebedores do artigo neste estado, são propri^rUjs

de uma charqu&ida onde trabalham só com o produto impor

tado daEspanha?"^ O alto imposto sobre o sal estrangeiro onerava o custo deproduçfo do artigo rio-grandense. Feitos os cálculos, estesó poderiaser cdocado a 2$600 no mercado, enquanto que o uruguaio, que nadapagava pelo sal de Cádiz, conseguia colocar o seuproduto no mercado interno brasileiro por 2$400 o quilo. Embora contando com o apoio de Floresda Cunha,que procura va atender náb só aos charqueadores, mas à pecuária como umtodo,os saladeiristas reclamavam providências do Governo Provisório.

A posiçSo assumida por este, nSo abaixando osimpostos sobre o sal estrangeiro e posicionando-se pelo consumo do artigo ámilar nacio nal, desagradou os charqueadores gaúchos:

O governo federal fã indeferiu o nosso pedido. Venceu

o mal entendido e exagerado protecionismo. Cometeu-se uma iniqüidade Se é preciso, mais uma vez sacrifique-se o Rio Grande do Sul Mas saibam os nossos irmãos do Norte que,

encastelados em seu egoísmo, obtiveram a contiraução desse nosso prejuízo, sem dele extraírem o menor lucro.

Quanto a este último item, argumentavam os saladeiristas, o im posto podia elevar-se que sempre seria consumido sóo sal espanhol. Re gionalmente, os charqueadores consideravam-se prejudicados em seus interesses.

Fundamentalmente, o governo central aqui se posicionava pela defesa do consumidor nadonái e da diversificaçflb da produçáó interna. Numa épocaem que a inflaçSb, decorrente emparteda políticade sus tentação do café, levava a um agravamento dascondições de vida e num momento em que se buscava regularizar as relações capital x trabalho a fim de promover a acumulação, eraimportante que se buscasse oferecer Mascarenhas, Balbino de Souza. O charque e o sal. Correio do Povo, Porto Alegre, 1? fev. 1931. p. 8.

23 Ibidem. 61

artigos de subsistência a preços baixos. No caso, a medida do governo central tanto oportunizavaque o charque estrangeiroentrasse no merca do a um preço mais conveniente, quanto obrigava o saladeirista rio•grandense a optar pelo uso do sal nacional.

Com o advento da República Nova, que, diga-se com franqueza, tem feito muito mais relativamente em seus du

zentos dias de vida do que a dos nossos antepassados em um longo período de quarenta anos, intensifica-se cada vez mais o movimento nacionalista [. . . ] Ainda há poucos dias os "Diários Associados" instituíram a semana da indústria na

cional, quando foram utilizados temas exclusivamente nacio

nais, Aqui o espírito empreendedor do General Flores da

Cunha iniciou um belo movimento de iguais fins. Não se visa, cçm tal situação, isolar o Brasil do resto do mundo, fechando-se as suas fronteiras ao mercado estrangeiro. [...] O Brasü não quer cortar as suas relações comerciais com os demais países e nem o poderia fazer, sabido como é que a maior percentagem da sua receita está precisamente nos direitos de im

portação para consumo. O que ele deseja, o que interessa à sua administração pública é sim o maior desenvolvimento nas

suas indústrias, nas suas fontes de receita pública eparticular.

Quer edeve equilibrar quanto possível a sua balança comercial, maior índice dedesenvolvimento deum povo. Essas considera

ções vêm a propósito do aproveitamento do sal de Macau e

Mossoró na indústria saladeiril. A sua aplicação no charque nao nos parece impossível diante dos exames químicos a que ele se tem ^metido e onde se constata a sua superioridade ao sal de CMiz. Compreendemos também que nenhum será o resultado de tais argumentos, por isso que o emprego do sal estrangeiro na charqueada é mais uma questão comercial, pelas possibilidades que ele dá ao melhor mercado nos países da ve lha Europa. Não deixamos de proclamar, entretanto, que éele

Igualmente umforte escoadouro do ouro parabs outros merca dos no momento preciso em que o Brasil se bate coma maior dificuldade econômica e financeira.^^

As perspectivas identificadas com a soluçãío de problemas nacio nais começavam a chocar-se com aquelas mais exclusivamente voltadas

para os problemas regionais dos charqueadores. Neste sentido, a char

queada se revelava o setor mais retrógrado na região e mais em oposi

ção com a orientação nacional. Ai^éia de complementaridade com o mercado aparecia acompanhada de divergências como centro.

Embora o Congresso Rural de 1931 afirmasse que o sal deCádiz era o único a satisfazer as exigências para a perfeita industrialização da came, para o que se requeria baixas taxas para a entrada deste produto

24 Fagundes, A A indústria do sal no Brasil. Correio doPovo, Porto Alegre, 13 mar. 1931. p. 3.

62

no país, alguns charqueadores desde esta época divergiam da opinião majoritária da classe. Marcial Terra, por exemplo, foi um dos que mais se bateu pela utilização do sal nacional para o fabrico do produto gaú cho, empregando ele mesmo artigos brasileiros no seu estabelecimento saladeiril.^^

No Congresso Rural de 1932, foi apresentada uma tese que, mais

uma vez, oportunizava o debate sobre a questão do sal. A proposta de Franklin de Almeida era acabar com a padronização do sal nacional, sendo aplicados preceitos de higiene industrial a fim de obter um pro

duto que pudesse ser utilizado nas charqueadas, com teor diferente da quele sal alimentício. Opinando sobre a tese, o Congresso Rural salien tou que os frigoríficos Swift e Armour se achavam empregando, com

sucesso, o sal nacional naelaboração desuas carnes.^ ^ Aos poucos, e principalmente pelo exemplo dado pelos frigorí ficos estrangeiros no estado, a utilização do produto nacional foi se in filtrando no meio saladeiril gaúcho. A substituição completa do pro duto estrangeiro pelo nacional,contudo, só se dariamais tarde, durante o Estado Novo.

Um outro problema que surgiu no início da República Nova,que afetou o charque rio-grandense, foi a questão do livre câmbio com o Uruguai. Alvitrando o Govemo Provisório de realizar um acordo entre o

Brasil e o Uruguai, que implicaria o livre comércio entre os dois países, o Sindicato dos Charqueadores pronunciou-se contra, argumentando que a venda do charque platino para o mercado brasileiro, livre de im postos, "importaria na ruína da indústria saladeiril e pastoril rio-grandense".^'''

O problema, aliás, tinha outras dimensões além da do charque, co

mo, por exemplo, o gado e o trigo uruguaio que penetrariam livremente

no Rio Grande, prejudicando os produtos gaúchos. Quanto aos produ tos que o Brasil venderia no Uruguai (arroz, fumo, aguardente, álcool e açúcar), a nação platina não tinha produção similar por cujos interesses devia zelar. A preocupação se estendia ainda quanto a uma possível exi gência do Uruguai de medidas que facilitariam o "trânsito pela Repúbli ca vizinha deprodutos do Rio Grande do Sul com destino aos mercados estrangeiros".^ ®Otemor dos gaúchos iamais além: era mesmo provável que, na consulta feita pelo Governo Provisório à nação quanto à efetivaPimentel, op. cit., p. 287.

26 ibidem,p. 288.

27 Interesses comerciais. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 jun. 1931. p. 8. 28o livre câmbio com o Uruguai. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 jun. 1931. p. 5.

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çío do tratado, os demais estados dessem parecer favorável, uma vez que não seriam prqudicados. Além do charque uruguaio, que chegaria livremente ao norte do país, seriam levadas também, em iguais condi ções, as carnes congeladas de frigoríficos platinos, dando com isso um

grande impulso à pecuária oriental em detrimento da produção gaúcha.2' Se esta era a perspectiva dos charqueadores, diversa era a dos arrozeiros, que facilitavam, desta forma, a colocação do seu artigo no mercado platino, desalqando o concorrente italiano. Outras opiniões favoráveis também se faziam sentir em nome de

princípios livre-cambistas, como, por exemplo, a da firma Bastos, Car valho &Cia. Criticando a baneira que se antepunha à livre entrada dos

produtos estrangeiros nopaís, sob a alegação de defender a indústria na cional, esta visão registra bem o ponto de vista do comércio importador,

cujos interesses eram diferenciados daqueles dos charqueadores.^® No tocante à livre entrada do sal de Cádiz, contudo, convergiam

os interesses dos charqueadores com osdos importadores. A demora no acerto final do Tratado Brasil-Uruguai fazia surgir

as notícias mais desencontradas a respeito. Em março de 1932, circulou a notícia de que o Govemo Provisório resolvera-se favoravelmente pela

entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio no mercado intemo brasileiro. Tal medida implicava a produção de 45.000 cabeças que dei xariam de ser abatidas no Rio Grande. Areação foi imediata. Os char queadores, através do seu Sindicato, entraram em contato com Flores da Cunha, enquanto que as opiniões correntes taxavam de "impatrióti-

ca" a medida elesiva aos interesses nãd só regionais gaúchos como de todo ocontexto nacional. Aquestão, inclusive, ia mais além:

Que não sediga à margem do dissídio que está agitando o atual momento nacional, que sua excelência quis fazer pi cuinha aos amigos divergentes do glorioso estado meridional, doPampa^^

O dissídio aludido dizia respeito às divergências que, no ano de 1932, iriam se tornar clarasentre o GovemoProvisório, sustentado pelo

interventor, e algumas oligarquias regionais, que conduziriam à Revolu ção Paulista. Em última análise, o que importa reter neste momento é que, como pano de fundo de uma disputa que se travaria no plano polí tico, encontravam-se interesses econômicos não satisfeitos das oligar-

29o livre câmbio com o Uruguai. Correio do Povo, Porto Alegre, 2juL 1931. Ç- 23Ú0 livre câmbio com o Uruguai. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 jun. 1931. •'t A entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio. Correio do Povo, Porto Alegre, 13 mar. 1931. p. 12.

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quias periféricas. No meio de todo o alarme dos charqueadores e também dos fazen deiros, "A Federação" publicava que não havia sido confirmada a notí cia da autorização do governo central da isenção de impostos para os

produtos uruguaios entrarem no país.^^ Assumindo a questão maiores proporções, o Itamarati distribuiu à imprensa um esclarecimento em junho de 1932, alegando que, em compensação, os produtos brasileiros também gozariam de isenção, além de ser obtida a supressão do imposto de ausentismo sobre os bens imóveis de pessoas não residentes no Uruguai, o que desde há muito o Rio Grande desejava.

Como se mo bastassem tais compensações, obteve a de legação brasileira que tanto o transporte do abarque como o do sal só se faça por navios de um dos dois países, o que m prática quer dizer por mvios brasileiros, e que esse contingente de importação livre só se faça ms alfândegas dos estados do norte do Brasil, a começar de Pernambuco, limitando a concor rência uruguaia a um mercado que quase não interessa aos charqueadores rio-grandenses - com a vantagem ainda de ir ba

ratear o custo da alimentação paraaquela zom do pais.^^ Invocavam-se razões de política intemacional no que tange á inten sificação do comércio entre dois países. Mais do que tudo, porém, duas coisas se estabelecem como claras: que o Governo Provisório se achava empenhado em diversificação da produção nacional e coloca ção destes produtos, equilibrando a balança comercial. Por outro lado, que as economias subsidiárias passavam, tal como a gaúcha, a cumprir um papel de baratear o custo de alimentação do trabalhador rural. Vivenciando uma situação dramática, o Sindicato alvitrava, co mo possibilidade de superação da crise, a formação de um grande sin dicato que reunisse os produtores saladeiris nacionais, em especial Ma to Grosso, Minas Gerais e São Paulo, proposta levantada em reunião e levada até Flores da Cunha em 26 de junho de 1931, para que o inter ventor intercedesse junto ao governo federal. A preocupação básica,

neste caso, era a estabilização do preço. Tendo o interventor se dirigido ao Governo Provisório, em dezembro de 1931 ainda não obtivera res

posta, com o que se frustravam mais uma vez as expectativas dos char queadores de solução governamental ao seu problema.

Uma questão novaainda se revelava para os saladeiristas: o probleA falada entrada de 4.000 toneladas de charque uruguaio. Correio do Povo, Porto Alegre, 16 mar. 1932. p. 8.

33 A Exportação de carnes do Uruguai para o Brasil. Correio doPovo, Porto Ale gre, 28 jun. 1932. p. 9.

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ma dos salários dos trabalhadores das charqueadas. Em reunião do Sin dicato, os proprietários dos estabelecimentos charqueadores colocavam que os salários deveriam ser uniformizados, uma vez que a Swift, assim como as firmas Irigoyen e Peró, de Uruguaiana, pagavammais. Contra-

-argumentava o frigorífico estrangeiro que, se assim agia, era porque seus operários trabalhavam mais e produziam mais, ganhando por hora e

não por dia.^^ Superiores financeiramente, as empresas estrangeiras ti nham o poder de canaUzar preferencialmente mão-de-obra para si e, uma vez estabelecido o contrato de trabalho, obtinham do operário maior produção.

Em síntese, a charqueada rio-grandense encontrava-se, nos primei ros anos da República Nova, operandocom velhos processos, tecnologia arcaica, produzindo um artigo de alto custo de produção, mas de baixo valor de troca, num mercado altamente competitivo. Ajustava-se muito mais ao caráter de uma manufatura do que ao de uma indústria moderna. Enfrentando uma crise crônica, os saladeiristas não arregimentavam esforços para transformar o velho processo

produtivo, mas sim pressionavam o Estado para que este solucionasse problemas surgidos na órbita da circulação. A comercialização fácil do produto era a meta a atingir; os preços compensadores e a fácil coloca

ção no mercado o objetivo último. É bem verdade que a questão do sal incidia sobre o custo da produção, mas nada era feito no sentido da re novação tecnológica, permanecendo a produção nos mesmos moldes

desde hámuitos anos. Pelo que se pode constatar, setores poderosos dos charqueadores estavam interessados namanutenção deste esquema. Se estas eram as perspectivas dos charqueadores, os criadores apresentavam-se, tal como na República Velha, a fração de classe mais

modernizante. Aconotação de modemizante referida aqui é tomada em relação ao conjunto da classe dominante do Estadocomo um todo, ob jetivando a renovação do processo produtivo na pecuária. No imediato pós-30, a crise da pecuária se acelerou. De um lado,

os estancieiros se viam a braços com o problema da situação periclitante das charqueadas; do outro, com a política baixista dos frigorí ficos. Neste sentido, algumas medidas práticas foram tomadas pelos pecuaristas.

A Associação Rural de Bagé dirigiu um memorial à FARSUL no início de 1931, solicitando as suas providências no sentido de acionar o governo estadual e federal para, de comum acordo, solucionarem a

crise da pecuária. Em especial, o fenômeno destacado era a crise pro vocada pelo frigorífico Swift nas suasmaquinações baixistas. Enquanto 34 Interesses de charqueadores. Correio doPovo, Porto Alegre, 9 dez. 1930. p. 9. 66

que, na safra de 1930, o frigorífico pagara $ 700 reis pelo quilo do no vilho vivo e $550 réis para vacas, no ano de 1931 estava oferecendo $550 a $500 réis pelo quilo do novilho e de $450 a $ 350 réis para as vacas.

As queixas contra a ação nefasta do frigorífico Swift não se limi tavam a este aspecto. O jornal "O Libertador", de Pelotas, publicou em fevereiro de 1931, uma nota de protesto dos fazendeiros de Herval, Jaguarão, Arroio Grande, Santa Vitória e Pelotas, reclamando contra a atuação da companhia que uniformizara os preços para as compras de gado, quando até então estes variavam conforme a distância da estação do embarque. Referia a nota:

Se a Companhia Swift está, como apregoam os seus corretores, animada do propósito , desmentido, aliás, pelas suas operações,

de pagar os mais altos preços, pelos nossosgados, não foi equitativa na organização da sua tabela de preços, Porque, se o fre te do boi, embarcado em Bagé, custa 29$220, e o embarcado em Piratini 15 $640, há uma diferençada 13 $580 por animal. Justo seria que 13$580 fçssem embolsados pelo criador. [...] Outra reprovável deliberáção da companhia norte-ame ricana foi a que suprimiu o negócio da carne congelada. Em conseqüência dela, o fazendeiro que se especializou numa raça, produtora de ótima qualidadede carne e abundânciade polpa, invertendo não pequeno capital em aperfeiçoaro seu rebanho, não pode vender o seu produto como de primeira ordem

Com relação ao frigorífico Armour, o preço que o mesmo estava oferecendo pelo quilo do boi vivo era $600, preçomaior do que aque le pago pelos frigoríficos uruguaios ao gado oriental na tablada de Mon

tevidéu^^. Comparativamente, pode-se daí tirar algumas conclusões: primeiro, que a crise dos frigoríficos no Prata se revelava maior do que

aquela enfrentada no estado; segundo, que, embora na presente safra o frigorífico Armour estivesse pagando um pouco mais do que a Swift, ainda representava um decréscimo em relação ao preço que a Swift ofe recia pelo gado na safra passada.

Dentro da situação que se apresentava, a reivindicação básica dos fazendeiros era de que o governo estadual buscasse melhorar os preços

que tanto os frigoríficos quanto as charqueadas estavam oferecendo pelo gado.

Conjugado a esta problemática de escoamento da matéria-prima básica mediante um preço remunerador, encontrava-se o problema da crise financeira que se ligava à crise econômica. Em defesa dos interesses da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 jan. 1931. p. 7. A Swift e os criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 fev. 1931. p. 18.

37O preço dogado. Correio doPovo, Porto Alegre, 25 jan. 1931. p. 12.

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Desde 1929 que o Rio Grande do Sul enfrentava uma crise ban

cária. O reflexo dos acontecimentos relacionados com o pânico da Bolsa de New York, em setembro de 1929, teve sua repercussâò sobre as finanças do estado, abalando inclusive a estabilidade do recém-criado Banco do Rio Grande do Sul e do tradicional Banco Pelotense e

conduzindo à falência o Banco Popular em abril de 1930.

É evidente, contudo, que a crise bancária gaúcha não se deu ape nas por efeitos externos da crise mundial, mas se conjugou a uma situa ção de agudização das condições da vida econômica do estado, com a queda do preço dos produtos pecuários. O Banco Pelotense, criado em 1906, fora formado com os capitais de criadores e charqueadores e mais

aqueles oriundos do comércio e indústria da área de imigração alemã e italiana. Além do fornecimento de crédito aos pecuaristas do estado, o Banco fora como que um instrumento do govemo Borges de Medeiros, mantendo nele o Estado grandes depósitos e fazendo uso do capital depositado no Banco segundo suasnecessidades. O Banco do Rio Grande do Sul, fundado em 1928, fora criado com parte de seu capital auferido de um empréstimo no exterior, do grupo americano White and Weld, e parte proveniente do Tesouro do

Estado, Viação Férrea e outros departamentos do governo que tinham depósitos no Pelotense na ordem de 300.000 contos, que foram retira dos para a constituição do novo Banco. Criado principalmente para

atender à demanda de crédito dos pecuaristas do estado, a formação do novo banco causou uma sangria no antigo.

Em parte devido a esta retirada de capital do Banco Pelotense pa ra o Banco do Rio Grande, em parte pelo efeito externo da crise de

1929, aos quais se acrescentavam as necessidades dos pecuaristas, come çou uma primeira corrida para o Banco Pelotense no ano de 1929, que continuou no ano seguinte. A garantia semi-oficial do govemo do esta do de que "o governo garantiria os depósitos nosbancos" evitou maior repercussão da crise sobre os demais estabelecimentos bancários.^®

Tal processo, contudo, não evitou que o Banco Popular falisse em 1930, com reflexos sobre os demais.

O início da República Nova veio dar maior agravamento à crise bancária iniciada anteriormente, pois a situação em que a pecuária sub mergiu no pós-30 sócontribuiu parao agravamento das condições finan ceiras do estado. Os "depósitos dos Charqueadores se encontravam abar

rotados e sem mercado", mas eram "amplamente financiados pelo Ban38 Oliveira, Alcibíades de. Um drama bancário. Porto Alegre, Globo, 1936. p. 117.

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CO Pelotense".'' O governo do estado, por seu turno, face ao malogro do empréstimo externo de 1928/29, resultante da recessão econômico-financeira de 29, teve de imobilizar quase que de maneira total os re cursos disponíveis no Estado, Viaçé^o Fénea e municipalidades deposita dos no Banco do Rio Grande.

Neste sentido, o Banco Pelotense ficou sem amparo governamen

tal e anunciou oficialmente a paralizaçSò de suasatividades em 6 de ja neiro de 1931.

Em suma, os bancos no Rio Grande do Sul encontravam-se em

crise e restringiam seus negócios justamente quando a demanda de capital era maior, face à baixa do preço do gadoe à precáriasituação da indústria do charque.

Tendo esta percepção da crise —atribulação da charqueada e cam panha nefasta dos frigoríficos impondo baixospreçosao gado,conjuga dos à falta de capital —os criadores de Bagé solicitaram que a FARSUL, seu órgão de classe, conseguisse do governo do Estado as seguintes me didas de emergência:

Exportação do gado em pé para fora do Estado, através da frota mercantil do Lloyd brasileiro; redução de 80% do frete cobrado pela Viação Férrea sobre o gado empée produ tos manufaturados do boi e respectivos subprodutos, demons trando que as taxas cobradas no Rio Grande erammaiores do que aquelas de São Paulo; abolição de imposto intermunicipal de exportação do gadodestinado às charqueadas efiigorificos; isenção sobre o imposto do sal de Cádiz; promoverjunto ao Banco do Estado e Banco do Brasil o financiamento da safra saladeiril; promover a exportação do charque para Cuba, jun tamente com outros cereais.*'^

Considerando os pedidos feitos, vê-se que a perspectiva destes criadores era de que o governo solucionasse a crise da pecuária. Classifi cadas como medidas de "emergência", os criadores esperavam que a so

lução do problema viesse "desde cima". A preocupação básicaera a co

locação de matéria-prima no estado ou fora dele. Se dentro do estado, queriam que a charqueada e o frigorífico tivessem os preços. Entre uma e outra atividade, posicionaram-se pela charqueada, encampandomedi das que seriam objeto da solicitação dos charqueadores, tal como o re baixamento do imposto sobre o sal de Cádiz. A sua perspectiva orienta

va-se não pela renovação do processo produtivo, mas pela dinamização do sistema de circulação. A idéia de redução do custo de produção in39 Letti, Nicanor. A gravata grená. Correio doPovo, PortoAlegre, 12 mar. 1977. (Caderno de Sábado)

^9Em defesa dos interesses da pecuária. Correto doPovo, Porto Alegre, 27 jan. 1931. p. 7.

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ddia sobre atitudes governamentais de redução de impostos e fretes.

Os pecuaristas de Bagé solicitavam tais medidas quase que ao mesmo tempo em que Flores da Cunha, considerando a difícil condi

ção dos negócios do gado, devido à falta de compradores e de obtenção de umpreço razoável, facilitou a colocação do gado no Uruguai. Median

te o Decreto n? 4.707, de 24 de janeiro de 1931, suspendeu a cobrança do imposto de viação e de outras taxas sobre a exportação de gados de corte e de invemar, que demandava a fronteira uruguaia.^ ^ O caso analisado acima, contudo, não pode sergeneralizado para todo o conjunto dos criadores gaúchos. Frente à crise que atravessavam, parte dos pecuaristas buscava uma saída que, para os efeitos deste trabalho, será considerada como tendente à plenaimplantação do capitalismo rural. Neste sentido, assaídas ditas ''avançadas" seriam aquelas que pre tenderiam a transferência de fatores produtivos da pecuária para a agri

cultura e aquelas que, ao lado da luta pelo refinamento do gado e pas tagens artificiais, colocariam empautaa formação de um frigorífico na cional dirigido por estancieiros gaúchos. Dentro desta última proposta, encontram-se não somente os

fazendeiros, mas alguns daqueles que acumulavam as duas funções es tancieiros e charqueadores, tal como Marcial Terra. É sintomático,

porém, que o projeto de implantação do frigorífico fosse sempre deba tido e pensado em termos de realização do órgão de classe dos criadores (FARSUL) e, até o final da República Nova, não esteve nas metas do Sindicato dos Charqueadores. Os estancieiros/charqueadores, no caso, identificavam-se com a fração de classe majoritária e capaz de oferecer um projeto modemizante: a dos criadores.

Nem todos os estancieiros, contudo, enquadravam-se dentro das perspectivas acima expostas, que podemserconsideradas a "vanguarda"

da classe. Como se viu, boa parte deles ainda tentava soluções arcaicas, tal como a constituição de sociedades de criadores para charquearem a carne e venderem eles mesmos o produto final. Um grande setor ainda se mantinha numa atitude de conformismo e refratariedade a inova

ções, aferrado à propriedade extensiva do solo e gado, sem beneficiar-se da onda renovadora. Não era, entretanto, apenas a exploração do centro que os fazia agir assim, mas as razões encontram-se também na

estrutura da propriedade da terra, na descapitalização e na possibilida de de, frente às crises, vegetarem muitas vezes num nível de mera sub sistência.

No que tange àquela saída modemizante —forma capitalista de 41 Leis, decretos eatos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. 1931. p.17. 70

enfrentar a crise —da transferência dos fatores produtivos para a agri

cultura, vê-se que, de 1930 a 1933, ela foi uma constante nas metas do governo e na preocupaçâfo dos setores de vanguarda, desde o governo de Vargas no estado, em 1928.

Já no IV Congresso Rural de 1930, eram sentidas pelos criadores as possibilidades que se descortinavam com o incremento da lavoura. Em especial, destacou-se a necessidade de incentivar a cultura do trigo, uma vez que grande parte das divisas era consumida na importação deste cereal. Na opinião do ruralista Juvenal Pinto, o Rio Grande do Sul oferecia condições por excelência para o plantio, tanto a fronteira sul como a região serrano-missioneira.^^ Não somente o assunto come çava a interessar os latifundiários gaúchos, como também o governo estadual, que contratara agrônomos nacionais e estrangeiros para o es

tudo da agricultura tritícola e fizera passar para a esfera estadual as es tações experimentais de administração federal que se achavam operan do de forma improdutiva no Rio Grande. Ainda com o objetivo de in crementar a lavoura, atuando de forma modemizante, o governo Var

gas, pelo Decreto n? 2.298, de 15 de abril de 1929, criara os "cam pos de cooperação", que visavam difundir as sementes selecionadas, bem como o ensino agrícola.^ ^ Complementando a medida, o Decreto n? 4.356, de 9 de agosto de 1930, estabelecia a distribuição de semen tes entre os agricultores.

Os latifundiários que estavam optando pela saída agrícola da crise da pecuária voltavam-se para a necessidade da introdução de máquinas para o beneficiamento da lavoura, que possibilitassem o "aumento do lucro líquido das culturas" e a "diminuição do emprego da mão-deobra". Este grupo, dito moderno e avançado dentro dos quadros da classe dominante, acusava o problema daqueles segmentos rotineiros

que relutavam em aceitar a máquina, não compreendendo a sua utili dade. Consideravam ainda que, para prevenir a elevação do preço da força de trabalho no campo, era prèciso dar maior expansão à intro dução das máquinas agrícolas.^"* Apesar do Decreto estadual n? 4.302, de 22 de abril de 1929, ter regulamentado o fornecimento de máquinas agrícolas no estado, os la tifundiários consideravam que, não produzindo a indústria gaúcha má quinas, os aparelhos na agricultura eram estrangeiros, que a custo de

um preço muito alto vendiam muitas vezes aparelhos superados e de qualidade inferior. Anais do IV Congresso Rural, op. cit., p. 409.

43 Rio Grande do Sul em revista. 1930, op. cit., p. 14.

44 Anais, op. cit., p. 283-6. 71

Em especial a lavoura do arroz encontrava-se mecanizada. Consti

tuindo este artigo o terceiro produto de exportaçâ^o do govemo Vargas, para ele convergiam as atenções. Seusprodutores, desde 1926, organiza dos em sindicato, procuravam manter um controle da oferta para manu tenção dos preços em nível alto. Em especial, este artigo enfrentava o problema de concorrência do artigo italiano nos portos platinos e de ou tros estados brasileiros que, como São Paulo e Bahia, estavam desenvol vendo uma cultura própria. Característica deste setor modemizante da classe dominante local

é a conhecida figura de Pedro Osório, adiantado pecuarista, charqueador e arrozeiro.

Face à crise da pecuária, que se desenvolvia em 1931-32, opiniões como esta surgiam entre os elementos ligados à criação: Precisavam aproveitar melhor as grandes extensões de campo, se a terra é boa. E, em tal caso, a agricultura, dentro de

áreas iguais, é certamente muito maiscompensadora que a cria ção pastoril^ ^

Até aqui, a saída da pecuária para a agricultura em termos de con centração dos fatores produtivos tem pressuposta a atuação de um mes mo agente social, ou seja, o pecuarista quese tornou um agricultor capi

talista. Outro caso, contudo, ocorria: aquele do pecuarista que arrenda va suas terras para que outro as explorasse, o que se podia dar em terras

de agricultura ou mesmo ainda de pecuária. Juvenal Pinto, escrevendo em 1935 sobre o fenômeno do "abandono das coxilhas" que se veri ficara no Rio Grande, manifestava que o êxodo rural não se restringia apenas aos trabalhadores rurais:

E o que está emprestando a similar acontecimento uma característica mais clamorosa e inquietante, ainda, é a circuns

tância, toda peculiar, de quea deserção mais se verifica e aden

sa, justamente, no seio daqueles que deviam demonstrar mais carinho, rnais aferro e mais amor à terra alimentadora. Ponti-

Iham, pois, a dianteira dos retirantes: donos de chácaras, de

granjas, de fazendolas, de estâncias e, muito principalmente, estes, detentores de latifúndios, donatários de vastidões intérminas, monopolizadores do solo nutriz.^^

Prosseguindo nessa análise, o autor constatava que tal processo se havia identificado após a revolução de 30, quando mais notório se tornara o absenteísmo rural. Os fazendeiros, no caso, anendavam ou

vendiam suas terras, passando a viver nos centros urbanos. Escapa-lhe, Silveira, Geraldino. A crise atual da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 14fev. 1932. p. 3.

Pinto, Juvenal José. Política rural Porto Alegre, Globo, 1935. p. 17. 72

em termos de análise, a constatação da falta de opção para uma pecuá ria descapitalizada e em permanente crise, queleva como saídao arren

damento dos campos. Quanto ao trabalhador rural, o autor justifica, até certo ponto, a sua evasão do campopara a cidade: Mourejam, pois, fora, 12 horas exaustivas a fio, desde

queraiao solatéo entardecer, ganhando, na maioria doscasos, um salário mensal, exíguo e ridículo, corri a percepção do qual não é possível prover as necessidades próprias e as dos seus, e que o traz, constantemente, atormentado de dívidas que não

podesaldar nunca,^'^ A proposta do autor era de que o governo e o latifundiário se in

tensificassem nessa tarefa de não abandono dos campos, tornando-os

produtivos. Não se posicionava contra o arrendamento, que, pelo con trário, só contribuiria para intensificar o aproveitamento da proprieda de, mas sim contra o absenteísmo do proprietário e o êxodo da força de trabalho.

Mencionava, como exemplo a seguir a experiência do Dr. João Dahne em Santa Rosa dasMissões, que facilitava ao"desafortunado mas valente caboclo" o acesso à propriedade, tornando-a produtiva. O arrendamento dos campos para a própria pecuária já era uma

prática que remontava à República Velha. Em 1913, a revista "A Es tância" relacionava o aumento do imposto territorial proposto por

Borges de Medeiros com a desvalorização dos campos e a baixa do preço nos arrendamentos. Onerado por impostos, sem numerário para repovoar seus campos, só restaria ao estancieiro vender ou arrendar sua terra, mas, sendo muito grande a oferta, produzir-se-ia a baixa do preço do campo e, conseqüentemente, do arrendamento. Afirmava o então presidente do órgão de classe União dos Criadores, o Gel. Alfredo Mo reira:

[. . .] lembraremos que não serão poucos os proprietá rios que, tendo dado seus campos em arrendamento na vigên cia dos valores atuais do imposto territorial, terão de sofrer, ao suportar uma sobrecarga deste imposto, urn embaraçoso e irremediável desequilíbrio nas rendas que daí lhes provém e com a qual, muitas vezes, somente contam parafazer face às contingências da vida.

Embora a preocupação fundamental fosse, na época, preservar-

-se contra o aumento do imposto territorial, é possível vislumbrar a idéia de que o arrendamento se afigurava como uma saída para o es tancieiro em dificuldades, que, sem condições de, por si só, explorar a Ibidem, p. 22. A Estância, Porto Alegre, maio 1913. p. 94.

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terra, a arrendava a terceiros. Todavia, mesmo esta renda lhe poderia ser diminuída, uma vez que lhe cabia, como proprietário da terra, pagar im postos em ascensão.

Os jornais da época fazem muitas referências a arrendamentos.

Em 1926, o "Coneio do Povo" noticiava o arrendamento de 65 quadras de campo, situadas em Alegrete e pertencentes a Assis Brasil, pelos

fazendeiros de Livramento, Francisco e Assis Iruleguy.^^ Da mesma forma, em 1928 o '^Correio do Povo" noticiava o arrendamento de uma

fazenda —a do Espinilho —em São Francisco de Assis, "inteiramente tapada, dividida em invemadas, banheiro carrapaticida e outras benfei torias".^ °

Todavia, muitos eram os campos que, paulatinamente, eram ar rendados também para a agricultura. Em 1928, o "Coneio do Povo" noticiava um anendamento em Santa Vitória do Palmar, com 66

quadras de sesmaria, aramada, aguadas permanentes, pastagens para invemar e criar qualquer espécie de gado e onde se acenava para a possi bilidade do plantio do arroz e outros cereais.^^ A ocupação dos latifúndios pecuaristas pela lavoura já era assina lada em 1917 pela "Revista do Comércio e Indústria de São Paulo":

No Rio Grande do Sul, dilatadas estâncias se transfor mam em campos de cultura variada, a pecuária dá lugar à la voura e as colheitas, já abundantíssimas, bastando ao consumo

interno, permitem, do mesmo modo, larga exportação,^^ Num e noutro caso —permanecendo enquanto atividade pecuária ou transferindo-se para a agricultura —ou ainda realizando as duas for mas ao mesmo tempo, o arrendamento, por um lado, proporciona o me

lhor aproveitamento da terra e da sua produtividade. Neste caso, cons tituiu-se num fator deimpulso ao capitalismo no campo. Por outrolado, apresenta um aspecto conservador, na medida em que a propriedade da terra em si não mudou, conservando-se nas mãos do latifundiário. Além

disso, o baixo rendimento da atividade criatória não estava atraindo

muito os capitais sobrantes que, preferencialmente, estavam deman dando a indústria ou a agricultura. Dentre as saídas propugnadas pelos criadores, estavam aquelas re

lacionadas com a qualidade da matéria-prima, ou seja, obtenção dame lhoria do rebanho mediante o refinamento e a introdução de pastagens forrageiras.

No que diz respeito ao rebanho, a problemática enfrentada era. Correio do Povo, Porto Alegre, 15 jun. 1926. p. 4.

50 Correio do Povo, Porto Alegre, 21 out. 1928. p. 22. 51 Correiodo Povo, Porto Alegre, 23 dez. 1928. p. 14. 52 Revista do Comércio e Indústria, SãoPaulo, março 1917(27), ano III. p. 102. 74

no início da década de 30, a sua heterogeneidade, pois, ao lado de ani

mais de raças selecionadas, predominantemente na fronteira, na faixa Uruguaiana-Jaguarão, a sena se achava com grande quantidade de gado zebu. O problema do zebu estavarelacionado diretamente à perspectiva de industrialização da carne, uma vez que o refinamento do gado objeti vava a obtenção de um novilho tipo frigorífico. O zebu, no caso,recebia

uma menor cotação ao ser vendido para o frigorífico.^ ^ Por esta época, o Rio Grande do Sul só tinha, para ser industrializado em frigorífico,

10% de gado puro e mestiço sobre o rebanho total.^^ O desfrute do mesmo já era absorvido pela Swift e Armour no estado, de modo que, ante a perspectiva de criação dé mais irni estabelecimento no gênero, punha-se em pauta a necessidade de incrementar o processo de mestiça gem.

Alvitrava-se, inclusive, que a condição mais acertada e de resulta dos mais imediatos fosse a produçãoe venda de temeiros. Vendidos em pouca idade, os temeiros tipo frigorífico, selecionados, permitiriam a

mais breve reposição de capital.^ ^ A questão do melhoramento dos rebanhos foi um dostemas deba tidos no V Congresso Rural de 1931, quando foi ressaltada a ação con

jugada entre o Ministro da Agricultura, Assis Brasil, e o interventor fe deral no estado. Flores da Cunha.

Assis Brasil mandara ceder aos fazendeiros do Rio Grande do Sul,

gratuitamente, cerca de 100 reprodutores bovinos. Ogovemo estadual, por sua vez,importaraanimais para o Posto Zootécnico de Montenegro,

para onde Assis Brasil cedera um plantei normando. Flores da Cunha projetava ainda criar lun posto zootécnico em Umguaiana e outro em

Tupanciretã, sendo que, para este último, o Ministério da Agricultura destinara um plantei charolês, e Flores da Cunha adquirira animais de tipo Hereford. Através do Decreto n? 4.813, de 15 de junho de 1931, o governo estadual aprovara o regulamento do registro genealógico do gado rio-grandense.

Enfatizando o apoio necessário que o govemo deveria prestar ao

criador. Marcial Terra apresentou um trabalho no V Congresso Rural, no qual referia que o govemo federal deveria facilitar a importação de reprodutores adquiridos no estrangeiro e que o govemo estadual deve riaintensificar estacompra de animais puro-sangue.^ ^ 53 Silveira, Geraldino. A carne. Correio doPovo. Porto Alegre, 17jan. 1931.p. 3. 54 Domingues, Hercílio. A construção de matadouros-frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 jul. 1931. p. 3.

55 Os grandes problemas da pecuária. Correio do Povo, Porto Alegre, 25 jan. 1931. p. 11.

56 Os trabalhos do V Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 maio 1931. p. 8.

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Ligada ao problema da assistência governamental à pecuária, acha-

va-se a política de combate às doenças e distribuiçaio de vacinas, que o governo estadual realizava através da Diretoria de Agricultura, Indús tria e Comércio da Secretaria de Obras Públicas.

As doenças do gado, sua possibilidade de combate e a intensifica

ção do uso da vacina, soros e banheiros canapaticidas eram problemas que afetavam os criadores e que eram enfatizados desde a República Ve lha nos Congressos Rurais.

Com uma nova força, surgia agora a idéia das pastagens forrageiras. O exemplo do Prata apontava, mais uma vez, o caminho a seguir, tal como se dera com relação à mestiçagem do gado. Embora Udando com uma realidade bem mais recente (década de 50), o trabalho de Paulo Shilling considera como um dos entraves do

desenvolvimento da pecuária gaúcha a carência de pastagens artificiais, que sacrificava o gado no inverno. No seu entender, as pastagens artifi ciais engordavam em um ano igual número de reses do que em cinco anos em campos nativos.^^

Correspondendo à preocupação de parte dos fazendeiros, o gover no estadual criou, em 1932, o Serviço de Agrostologia para dar início ao melhoramento das pastagens no estado, procurando estudar, selecio

nar e difundir as forrageiras naturais. Os estudos começaram a ser reali zados no Posto Zootécnico de Montenegro, devendo o Serviço de Agrostologia realizar estudos e distribuir informações e sementes aos in teressados.^®

Aproposta mais avançada em termos de pecuária, que implicava um esforço dos criadores para penetrarem no terreno da industrializa

ção da carne nos moldes da frigorificação, seria colocada em pauta pela vanguarda dos criadores durante o VCongresso Rural, realizado noes tado, em maio de 1931.

Em especial, a nova idéia era defendida pelos criadores dazona da serra, agremiados na Liga Pró-Engrandecimento de Cruz Alta e na Casa

Rural de Tupanciretã. Seu delegado, o destacado ruralista FortunatoPimentel, apresentou, no V Congresso, um trabalho sobre a necessidade

de instalar-se uma empresa frigorífica nacional na região da serra, a fim de abastecer mercados de consumo interno, inclusive Porto Alegre. O Frigorífico Nacional Serrano poderia também valer-se do capital estran geiro, mas desde que em igualdade de condições com o capital nacional e tendo a dirigi-lo os próprios criadores. Objetivando suprimir a figura dos intermediários na venda dos produtos, a forma de constituição da

57 Shilling, Paulo. Crise econômica no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Difusão de Cultura TécnicaEditoral, 1961. p. 92.

58Relatório..., op.cit.p. 62-3. 76

entidade seria o cooperativismo. Cada município teria a sua entrada de capital na empresa garantida por ações. A nova indústria esperava ainda

encontrar apoio para asua efetivação no Banco do Rio Grande do Sul.^^ Ao lado da idéia apresentada por Pimentel, outras comunicações

apareceram no Congresso, indicando o caminho da indústria do frio co mo a solução mais acertada. Joaquim Luís Osório, por exemplo, coloca va o problema da instalação de um frigorífico nacional em termos de exportação tanto para o exterior como para o mercado interno, haven do necessidade de estarem as carnes isentas de tributação e de poderem

utilizar-se das empresas de navegação com câmaras frigoríficas. Na opi nião de José Lopes Amoni, que apresentou trabalho sobre o assunto,a

criação de um frigorífico nacional oportunizaria a que as melhores car nes que o Rio Grande doSul produzia pudessem deixar de ser colocadas exclusivamente no estrangeiro, como até então se dava, e abastecessem também o mercado interno. No que toca ao capital necessário para o empreendimento, este criador de SantaVitória do Palmar lembrava que recentemente fora fundado no estado um estabelecimento de crédito, o

Banco do Rio Grande do Sul, com o fim profícuo de atender à agricul tura e à criação. Seu capital, contudo, não fora utilizado para a funda ção de um frigorífico nacional, substituindo a charqueada por um mo

derno processo de industrialização das cames.^® Na verdade, o Banco do Rio Grande do Sul concentrava seus re

cursos na salvação da safra do charque e na liberação dos criadores de suas dívidas. Não se converteu, portanto, num instrumento que, naque

la instância, possibilitasse a renovação do processo produtivo dacarne, mas sim como uma medida de emergência para sanar velhos problemas. No que tange ao problema da qualidade da carne vinculada ao problema do frigorífico, Gaudêncio N. Conceiçãoafirmava que o preço,

no momento, pago pela came era menordo que em 1914.Nãoera pos

sível que o frigorífico não pudesse pagar mais por carnes de boa quali dade como asoferecidas pelo Rio Grande; o problema residia no fato da baixa cotação da came brasileira ser atribuída em fimção da came que São Paulo remetia aos frigoríficos, oriunda deMato Grosso e Goiás e de baixa qualidade.

Na medida, porém, que tanto os criadores quanto os poderes pú blicos se interessassem em manter um frigorífico com capital e adminis tração nacionais, a situação se modificaria e o preçopago pela carne seO melhor passo em prol da indústria pastoril: o frigorífico nacional serrano. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 maio 1931. p. 3.

A situação do comércio de carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 5 jun. 1931. P. 7. 77

ria compensador.^^ Armando Severo, delegado de São Francisco de Paula, colocava

que o gado do Rio Grande do Sul era mais mal pago que os platinos, não pela sua inferior qualidade, mas devido à falta de concorrência, por

que as charqueadas não podiam concorrer com os frigoríficos no preço pago à matéria-prima, ficando estes, portanto, livrespara agir. Isto ocor

ria "pela diferença para menos existente entre o rendimento que um boi produz para charque e para carne frigorificada Nesta medida, a formação de um frigorífico nacional traria tanto a alta do preço do gado quanto incentivo para o estancieiro refinar seu rebanho.

Outras sugestões apareceram quanto à localização do projetado

frigorífico, tal como a que propunha que o mesmo fosse instalado em Porto Alegre.

O govemo do Estado, que se fizera representar no Congresso pelo Dr. João Fernandes Moreira,Secretário de ObrasPúblicas, enfatizou aos criadores que poderiamcontar com o apoio do poder público, destacan do que sua maior preocupação até então tinha sido amparar a pecuária,

salvando-a da crise. Em discurso pronunciado posteriormente, numa das sessões do Congresso, Flores da Cunha dissertou sobre a necessidade

da fundação de um frigorífico e do melhor aproveitamento da carne e sua exportação para o resto do país.

Em parecer da FARSUL sobre o assunto, ficou estabelecido que os criadores deveriam, através do seu órgão declasse, congregar-se para

fundar matadouros-modeio, sob a forma de cooperativas regionais liga das através da entidade e amparadas pelo govemo doestado quanto ao capital necessário. Além disso, seriam concedidos poderes à FARSUL para organizar uma comissão para estudar as probabilidades de constmção de frigoríficos no estado, elaborando umprojeto definitivo sobre os mesmos.^ ^

Enquanto que a idéia do frigorífico posicionava-se como a propos

ta mais arrojada dos estancieiros, a da constituição de matadouros-modelo implicava apenas a eliminação da figura do intermediário - charqueador, no caso—sem alteração do processo produtivo. Como tema adicional do Congresso, foi retomada a questão dos transportes, sendo reiterada a tradicional petição ao governo em torno

61 Foi instalado, anteontem, o VCongresso Rural. Correio doPovo, Porto Alegre, 26 maio 1931. p. 8-9.

62Os trabalhos do V Congresso Rural. Correio doPovo, Porto Alegre, 28 maio 1931. p. 8.

63 Ainda o V Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 31 maio 1931. p. 9.

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do barateamento dos fretes da Viaçâiò Férrea e do aparelhamento dos vagões para transporte das carnes frigorificadas. A idéia da criaçâ:o de um frigorífico rio-grandense assumiu, neste momento, o caráter de um empreendimento nacionalista, de preserva ção de uma riqueza que estava sendo monopolizada pela indústria es trangeira. A problemática em tomo do aproveitamento da carne fez, neste início da República Nova, com que passasse para um segundo plano o conflito intraclasse que opunha os charqueadores aos estancieiros, aparecendo na primeira linha a acusação aos sindicatos estran geiros que dominavam de forma absoluta o mercado da carne frigorificada. A discussão em tomo do tema atingiu, inclusive, o centro do

país, aparecendo no jornal "A Noite" um comentário sobre a situação vivida pelo Rio Grande do Sul:

Ninguém mais do que nósprecisa do concurso do capital alheio para criação e desenvolvimento de indústrias em geral, mas é indispensável que esse concurso se apresente de maneira a equilibrar os interesses dos capitais invertidoscom os da eco nomia do país. No Rio Grande do Sul instalaram doisgrandes frigoríficos Armour e Swift. Dispondo de recursosfinanceiros

sem limite, apossaram-se do mercado , onde ditam a baixado gado em pé, que adquirem dos criadores, e a alta das carnes preparadas, que entregam ao consumo público. Fica-lhes assim uma exagerada margem de lucros, semprecrescentes, e que não

é possível limitardentrodo razoável, porquea nossa legislação não oferece freios restritivos da especulação. Senhores do esta do, sem outros concorrentes nacionais, os frigoríficosgpúchos

impõem aos criadores o preço que estipulam, abstendo-se de

aquisições sempre que a oferta saifora das tabelaspréviasque organizam.

A idéia da implantação do frigorífico ressurgia, assim, com um

conteúdo nacionalista, adequado à problemática vivida pelos países de pendentes após a grande crise de 29. O interesse fundamental do Rio Grande do Sul, através da ação de sua classe dominante, eradefender a agropecuária na sua integração ao mercado nacional. A idéia da indus trialização da came adquiriu excepcional importância porque dava à classe dominante a configuração de "setor industrial", promotor efeti vo do desenvolvimento do capitalismo no sul. Além disso, possibilitava, através de uma visão modemizante, uma indústria natural que não im

plicava a negação do modelo agropecuário instalado, mas antes o refor çava. Tratava-se de dar dinamicidade ao processo de transformação da matéria-prima mais importante do estado, a carne, na qual participariam A situação do comércio de carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 3jun. 1931. p. 5.

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os mesmos agentes sociais ligados à criação de gado.

O reforço da idéia era dado na medida em que tal processo indus trial se achava, no estado, em mãos estrangeiras. O monopólio exercido pela Swift e pela Armourna frigorificação de cames e a manifesta explo ração em que mantinham a pecuária sulina contribuíam para acentuar o caráter nacionalista desencadeado, que procurava dar condições à reali zação da capitalização interna. Dentro da visão da classe dominante nas novas condições criadas na República Nova, a idéia de nacionalismo adquiriu um especial signi ficado, na medida em que se tomou uma força capaz de congregar ele mentos de classe para defesa de seus interesses contra uma exploração que, em conjunto, experimentavam com relação às empresas estrangei ras.

Ao mesmo tempo, foi capaz de dar novo sentido à integração do Rio Grande no mercado nacional, reforçando, com isto, a estmtura agropecuária montada e, ao mesmo tempo, o esquema de dominação instalado. Os criadores, no caso, não encontravam os mesmos atritos

que os charqueadores, na sua relação de subordinação ao centro. Referindo-se ao modelo segundo o qual se realizava o capitalismo no sul, Müller afirma que seu conteúdo básico achava-se

l,,] na expropriaçõo do valor do trabalho do trabalhador rural em geral não proprietário, do pequeno agricultor pro prietário e pequeno criador e dos assalariados urbanos, quer di zer, a expropriação do valor criado assume outras formas nas atividades que se prolongam aquelas do campo, nas indústrias de beneficiamento dos produtos agropecuários como carne frigorificada, enlatada e derivados, charque, lãpreparada, couros e peles, arroz e trigo descascados e trigo em farinha, farinha de

mandioca, etc,^^ Quanto às relações da produção que se exerciam na criação e na charqueada, já se viu que elas se revestiam de uma especificidade pró pria, típicas à forma de atividade e à imprecisão das mesmas dentro de uma conotação capitalista mais acentuada. Considerado como dado aceito a superexploração do trabalho nestas atividades, a representação que os elementos da classe dominante dos pecuaristas fazia do processo era justificada mediante a idealização das relações entre patrão e empre gado rural, com utilização de critérios tais como "cordialidade", convi vência mútua", "estilo comum de vida", "devotamento", "proteção". No caso da implantação de um frigorífico nacional, a idéia era pensada, inclusive, em termos de oportunização de maior emprego e Müller, op. cit., p. 128.

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utilizaçâ:o de mão-de-obra local. A comissão que se reunia para decidir quanto à nova empresa de

frigorificação^^ chegou à conclusão de que deveria se constituir uma cooperativa dos criadores gaúchos, a fim de industrializar a carne, pro movendo a construção de matadouros e frigoríficos nas regiões mais apropriadas do Rio Grande. Sugeria a comissão que fossem construídos matadouros-frigoríficos em Porto Alegre, Tupanciretã e Cacequi e câ maras frigoríficas nos portos da capital. Rio Grande e mercados de con sumo. Quanto ao capital necessário para o funcionamento das empresas, seria cobrada pelo governo estadual uma taxa que incidiria sobre a pe cuária. A importância da contribuição paga por cada criador ser-lhe-ia creditada para participar nos lucros da sociedade. Tanto o governo do estado como a FARSUL teriam representantes seus dentro da coopera tiva.

A diretoria da FARSUL, a "comissão de carnes" e o governo do estado mantiveram vários encontros para o acerto da constituição defi nitiva da nova sociedade, participando os demais criadores, pela impren sa, do debate em torno da questão. Como norma geral, divergiam quan

to à localização e o número de estabelecimentos a fundará ^ Em carta circular aos criadores, a FARSUL pediu o seu apoio à fundação da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes, mandando também ao chefe do Governo Provisório, identificado como pertencente à comu nidade pastoril sul-rio-grandense. Na resposta endereçada à diretoria da FARSUL, Getúlio Vargas solidarizou-se com os estancieiros gaúchos e sua Federação Rural, louvando o empenho do interventor federal para que a idéia do frigorífico vingasse no estado. Referia ainda Getúlio, identificando-se como "membro da coletividade rio-grandense":

Para os criadores rio-grandenses, o passo mais dificulto so e decisivo, no caso é, sem dúvida, o da obtenção do capi tal necessário a esse importante empreeendimento, parecen-

do-me que a forma cooperativa é, realmente, a mais aconse lhável ^

Além do apoio do governo central à iniciativa, os criadores conta ram com a opinião favorável de Borges de Medeiros ao movimento, além da do Gen. Ptolomeu de Assis Brasil, então interventor federal A organização da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo,

Porto Alegre, 18 jul. 1931. p. 10. A "comissão de carnes" estava formada por Joaquim Luís Osório, José Lopes

Arnoni, Marcial Terra, Gui^erme Tell Francisconi, Olímpio Guerra, Severino Lessa, Jorge Porto, Normélio Ferreira, Armando Severo e João Aquino dos Santos.

Correio do Povo, jun. a jul. 1931.

A organização da Cooperativa Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 18 jul. 1931. p. 10.

81

em Santa Catarina.

Em 24 de julho de 1931, na sede da FARSUL, os criadores reuni dos instalaram a Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes, saudada co mo "velha aspiração da classe". O governo do estado hipotecou à nova entidade seu apoio moral e material. Em nome do interventor federal, falou o Secretário de Obras

Públicas, Joâ:o Fernandes Moreira, colocando que o governo manifes taria seu apoio lançando no orçamento de 1932 um imposto adicional sobre a pecuária, que era cobrado pelos municípios. O imposto, calcula do na base de uns 5.000 contos e que incidiria sobre as populações ovinas, suínas e bovinas, constituiria um fundo destinado aos serviços

de juros e amortizações do capital a ser levantado pela Federação por

meio de empréstimo.^® Desta forma, o governo do estado teria uma atuação direta na administração da cooperativa. Face às várias opiniões para estabelecimento de frigoríficos no estado, o governo era de opinião que, primeiramente, fosse estabelecido um entreposto na capital, sendo após, na medida do possível, criados os demais. Os estatutos da nova entidade foram aprovados no início do mês de agosto de 1931, fixando a sua sede em Porto Alegre e tendo a socie dade cooperativa a duração de 30 anos. Dentre seus objetivos, destaca vam a perspectiva da defesa da produção pastoril gaúcha, sua melhoria e desenvolvimento mediante a industrialização, para o que seriaminsta

lados matadouros-modelo, frigoríficos e entrepostos. A cooperativa buscava ainda encaminhara vendados produtos e subprodutos da indús tria pecuária do estado nos mercados, promovendo a centralização dos negócios e a estandartização dos tipos. Entre outras coisas, a entidade poderia também exportar gado em pé e frigorificar produtos agrícolas. No que tange ao capital, este seria limitado quanto ao máximo e com a quantia de cem contos de réis como mínimo. Admitiria, como sócios,

criadores, invemadores ou profissionais de indústrias conexas à pe cuária.^ ^

Como presidente da nova entidade, foi escolhido o ruralista Mar

cial Terra, grande incentivador da idéia da frigorificação de carnes no Rio Grande.

Recém constituída, a Cooperativa começou a enfrentar alguns problemas, tal como o da destinação da futura produção. A nível de mercado externo, a limitação se dava pela concorrência dos frigoríficos estrangeiros e, no tocante ao mercado interno, notícias chegavam do 70 Uma velha aspiração dos criadores do Rio Grande do Sul. Correio do Povo, Porto Alegre, 24jul. 1931.p. 8. j

71 Estatutos da Cooperativa Sul-RioGrandense de Carnes Ltda. Correio doPovo,

Porto Alegre, 2 ago. 1931. p. 10.

82

Rio de Janeiro e São Paulo que também as empresas de frigorificação alienígenasestavaminvadindo a praça. A ação das empresas estrangeiras contribuía para exacerbar o as pecto nacionalista do problema, sendo apontados todos os malefícios causados pelos frigoríficos alienígenas: monopolização do mercado, manobras baixistas, descrédito ao processo de refinamento do gado, efe tuando grandes compras de zebu. Propostas mais exaltadas sugeriam medidas drásticas para regulamentação dos mercados nacionais de carnes:

1?) Reservar para os estabelecimentos explorados pelas associações de classe a faculdade de venda no pais da totalida de de suas produções.

2?) As firmas particulares, nacionais ou estrangeiras só poderão vender no pais até 15%, no máximo, da totalidade de cada espécie de mercadorias que tenham produzido; e isso, na proporção em que tiverem exportado os 85% restantes em cada classe.'^^

Nas empresas constituídas a partir das associações de classe, não poderia haver mais do que 20% de capital estrangeiro em cada uma. Opiniões mais cautelosas, contudo, também se faziam ouvir, con

siderando desaconselhável que o govemo se posicionasse contra o capi tal estrangeiro. Este, com sua superioridade técnica e financeira viera dar um impulso à produção pecuáriagaúcha, que, caso contrário, estaria até então operando na base do charque. Uma vez recebendo privilégios para estabelecer-se, era até natural que quisessem tirar partido, amplian

do seus lucros. Esta forma de encarar a situação aconselhava cautela: en quanto os frigoríficos estrangeiros tinham capital, técnica e domínio do mercado, o rio Grande estava dependente disso tudo . Era preferível começar em moldes modestos, intervindo junto aos poderes públicos para entrar em acerto com outros estados da união e até com as compa

nhias de navegação inglesas quanto ao transporte.^ ^ Outra questão continuavaainda pendente: aquela do número e lo cal de frigoríficos, não chegando os criadores a um acordo.

No que diz respeito ao capital da Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Games, foi finalmente aprovado, em 25 de novembro de 1931, um imposto sobre a população bovina, suína e ovina do estado. A taxa de

cooperação, como foi chamado, implicava na importância de 2% so bre a receita ordinária do estado e na majoração do imposto pecuário cobrado pelos municípios, montando a 300, 200 e 100 réis por cabeça

de gado bovino, suíno e lanígero.^^ 72 Pecuária, aspectos de um problema. Correio do Povo, Porto Alegre, 10 out 1931. p. 3.

73Cooperativa de carnes. Correio doPovo, Porto Alegre, 22 out. 1931. p. 3. 74 A defesa da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 nov. 1931. p. 5.

83

Embora, aos poucos, fosse constituída a nova entidade, com apoio do governo estadual e federal, a crise econômico-financeira dos criadores não fora sanada ainda. A adoção da balança para pesagem do gado, as facilidades para importar reprodutores, a suspensão da co

brança do imposto de exportação do gado de corte para o Uruguai, a distribuição de vacinas, a criação de um serviçode agrostologiae mesmo

a redução para 4% dataxa de incidência sobre alãexportada do estado,^^ todas eram medidas de socorro às condições dos fazendeiros. Contudo, não eram suficientes para renovar o processo produtivo e indicar um no vo caminho para a pecuária que não o fornecimento de carne para a ob

soleta charqueada ou a empresa estrangeira. Em suma, dentro de uma si tuação de crise, a pecuária manifestava-se descapitalizada e a problemá tica do crédito para financiamento da safra estourou no final do ano de 1931. Com o apoio de Flores da Cunha e de Assis Brasil,então Ministro da Agricultura, os criadores, através da FARSUL, pleitearam ao chefe do Governo Provisório que autorizasse ao Banco do Brasil fazer contas correntes com garantias hipotecárias e juros módicos aos fazendeiros do estado. Argumentavam que São Paulo e Pernambuco haviam consegui do, dessaforma, auxílio para o café, o açúcar e o algodão, e Minas Gerais para as suas indústrias. A esperança dos criadores na ação de Vargas fun-

dava-se inclusive na "administrarão genuinamente econômica" que vi nha imprimindo ao governo e na "solicitude e boa vontade invulgares" com que atendia ás reivindicações das classes produtoras de então. Com relação especificamente a Flores da Cunha, soUcitava-se que o mesmo intercedesse pelos criadoresjunto às instituições bancáriasdo estado pa ra que fosse facultado aos criadores saldarem seus compromissos apenas depois da safra.^ ^ Argumentavam os criadores que o auxílio à pecuária redundaria no auxílio à própria coletividade rio-grandense, uma vez que sobre a pe cuária se assentavam as bases econômicas do estado. Era, em suma, a

atividade que mais concorria para os cofres públicos. Não cabia aosfa zendeiros parcela de culpa pela aflitiva situação em que se achavam, com total falta de crédito nos bancos. Antes, o que determinara isto fora o seu zelo progressista, que os fizera imobUizar suas reservas no aumento de rebanhos e propriedades, ao qual viera se sobrepor a crise mundial.

Com o início do novo ano, os fazendeiros enfrentavam duas

sortes de expectativas: uma relacionada com o andamento dos trabaLeis, decretos e atos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. p. 193. Decreto n? 4.873, de 14 de outubro de 1931.

76 A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 dez. 1931. p. 13.

84

lhos da organização da cooperativa, que entravam agora na fase do esta belecimento das relações que a entidade manteria com o governo esta dual em face ao imposto cobrado por este e pelas prefeituras; outra,

que se relacionava com os preços que seriam oferecidos pelos frigorífi cos na próxima safra. Ao aproximar-se a época das matanças e estando os rebanhos platinos desfalcados, esperavam os fazendeiros que as em presas estrangeiras, com necessidade de utilizarem os gados de boa qua

lidade da fronteira, pagariam preços bemmelhores.^ ^ As perspectivas de bons preços não se efetivaram na safra de 1932.

Malogradas as expectativas dos estancieiros para com as compras dos fri goríficos, restava a perspectiva de atendimento do governo às necessida des de crédito para a pecuária. Em especial, a crise estava afetando so bremaneira os arrendatários, face aos compromissos assumidos com os arrendamentos e com os pagamentos do fisco. Pleiteavam estes o penhor pecuário como único meio para obter dinheiro e saldar seus compromis sos.'^®

No final do mês de março de 1932, foi finalmente assinado um contrato entre o governo do estado e os Bancos do Brasil e do Rio

Grande. Através do contrato, ficou estabelecido que seria concedido um empréstimo aos fazendeiros gaúchos até a quantia de 50.000 contos, pelo Banco do Brasil, através do Banco do Rio Grande do Sul. O em

préstimo podia ser hipotecário ou de penhor pecuário, sendo o juro de

8% anual e mais 1,4% por semestre, no prazo de quatro anos e meio.^^ Iniciando o Banco do Rio Grande do Sul a movimentar a sua

carteira hipotecária, começaram os fazendeiros a reclamar, alegando que o estabelecimento de crédito estava colocando a cotação dos bens pe cuários muito abaixo do seu valor. Não satisfeitos com a orientação do

banco, os estancieiros foram a Flores da Cunha que considerou que as reclamações eram procedentes, mas também a diretoria do banco era

digna de sua confiança. Prometeu, em suma, tentar encontrar uma solu

ção que agradasse a todos.® ® Até o final do mês de maio, contudo, já haviam sido realizados pelo Banco do Estado 34 negócios, no valor de 6.168 contos de réis,

que atingiram os municípios de Lavras, Alegrete, Cruz Alta, Tupanciretã, Júlio de Castilhos, Uruguaiana, Livramento e Cachoeira. Os pedidos de empréstimos, entretanto, continuavam a afluir e já atingiam a soma Em defesa da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 jan. 1932. p. 7.

'78 Auxílio à pecuária rio-grandense. Correio doPovo, Porto Alegre, 2 abr. 1932. Ibidem.

80Os fazendeiros rio-grandenses e o penhor pecuário. Correio do Povo, 28 abr. 1932. p. 7.

85

de 70.000 contos de réis, excedendo o limite do crédito concedido que havia sido fixado em 50.000 contos.

Em suma, na Nova República que se iniciava em 1930, o Rio Grande consolidava o "modelo" agropecuário de desenvolvimento, possibilitador da sua integração ao mercado nacional. Achando-se es te setor da economia em crise (charqueada, frigorífico e críaçâü), a classe dominante buscou saídas que implicavam, por um lado, a sua articulação maior dentro dos órgãos de classe e, por outro, em deman das crescentes de auxílio ao governo local e central. Neste contexto, a fração charqueadora apresentava-se a mais retrógrada, com iniciati vas que diziam respeito à área de circulação, enquanto que os criado res, através de sua "vanguarda", apresentavam um projeto acabado

que implicava a implantação de um frigorífico nacional. Neste empe nho, mobilizaram-se a FARSUL, o governo do estado e o Governo Provisório, através de medidas que minorassem a classe e possibilitas sem a efetivação do projeto. Instalada a CooperativaSul-Rio-Grandense de Carnes, contudo, todos os problemas decorrentes da crise dificulta vam a sua operacionalização em termos de efetivar a rápida montagem de um frigorífico.

Em meio à crise da pecuária, às expectativas que se frustravam e outras que se mantinham, teve lugar a cisão política ocorrida no estado,

relacionada com acontecimentos ligados à contra-revolução que reben taria em São Paulo contra a orientação do Governo Provisório. Na nova situação que se apresentava, os dados fundamentais a contar eram, por um lado, a permanência da crise da pecuária que a to

dos afetava indistintamente; por outro, o fator novo, diferenciador do processo ocorrido em 1930: a cisão política da classe dominante local,

posicionando-se parte dela ao lado do governo central e parte aderindo ao movimento de reação brotado em São Paulo.

3.2 —A dsâo política: a "ala regional" e a "ala nacional"(1932) O Governo Provisório, que se instalou pós-30, enfrentou toda uma sorte de problemas numa das fases mais críticas da economia bra

sileira:falia o modelo de desenvolvimento baseado na exportação de um único produto responsável pela entrada de divisas no país; por outro la do, a crise financeira de 29 retirou do Brasil as condições de renovaras fontes de financiamento extemo para a sustentação do produto. Afeta da gravemente a zona central de economia do país, as regiões periféri cas, também atingidas pela crise, reclamavam atendimento imediato para seus problemas: açúcar, algodão, pecuária, madeiras, carne, mate, 86

enfim, todo o Brasil ressentiu-se gravemente do desequilíbrio que sofre rá o sistema capitalista mundial. A questão que demandava urgência de solução era, pois, o resta belecimento do equilíbrio da economia brasileira, corrigindo as distor ções de a mesma basear-se, quase que exclusivamente, na venda de um único produto para o mercado internacional. Os demais setores da eco

nomia demandavam, também, pronto atendimento, não só apenas pela situação específica que cada um atravessava, mas pela preocupação de se obter outras formas de sustentação para o país, mediante a diversifi cação econômica.

Tratava-se, em suma, da conservação do capitalismo, já vigente no período anterior, que necessitava se expandir e encontrar novas formas de acumulação. Na medida em que se preservava o capitalismo, pressupunha-se a conservação da burguesia como um todo, na função de clas se dominante. Contudo, a crise sofrida pela economia brasileira não per mitia que nenhum setor em especial se encontrasse em condições de

afirmar a sua predominância sobre os demais.®^ Ao mesmo tempo, conservar a burguesia como predominante, a nível nacional, não sig

nificava fazer prevalecer a estrutura política do regime deposto, quan do, através de um Estado oligárquico, se exercia o poder político in contestável daqueles setores dominantes.

Em suma, a problemática básica — e origem fundamental do conflito interclasse que se manifestaria —estava em assegurar, nas no vas condições vigentes, a sobrevivência do capitalismo, a conservação da burguesia como classe dominante, mas com a submissão política

das oligarquias regionais. É dentro desta perspectiva que se admite a relativa independência do Governo Provisório, quando o Estado se torna o agente capaz de fazer prevalecer esta acomodação ou com promisso. Um Estado onde os segmentos sociais que o compõem, oriundos da própria burguesia nacional ou de elementos cooptados até a máquina administrativa para defender aqueles interesses, se apresentam como uma elite dirigente capaz de fazer prevalecer este esquema dado.

Esta situação implicava o atendimento das reivindicações das oligarquias, mas daquelas reivindicações que atendessem aos problemas econômicos das regiões periféricas, pois assim se contribuía para con-

®1 "Le fait que Vargas apparaisse comme se situant "au dessus" des classes, factions et partis, ce qui rappelle immédíatement le modèle du bonapartisme ou d' une situation "D'équüibre binaire", comme disait Engels, indique effectivement Texistence d'un équüibre de forces*'. Martins, Luciano. Politique et developpement économique, structure de pouvoir et système de décisionsau Brèsil (19301964). Paris, 1977. (tese de doutorado, xerografada) 87

tomar a crise, estimular a produção e gerar condições de expansão à economia nacional. Quando se tratou, porém, da articulação política das oligarquias, ou seja, da possibilidade das mesmas exercerem direta

mente o poder político em fimção de seus interesses específicos, não se tomou possível o entendimento de setores oligárquicos da periferia com o Estado. Ante a pressão das oligarquias, o Govemo Provisório reagiu

favoravelmente nas suas reivindicações econômicas, porque a inter mediação destes setores com o Estado, dentro da novaestmtura que se pretendeu implantar, era através dos órgãos de classe, dos níveis seto

riais. Esta atitude implicava em despolitização da oligarquia, mantendo uma margem de manobra do Executivo Central com relação às classes dominantes, que, para continuarem a exercer a sua dominação, se viam

afastadas do controle direto do poder político.^^ Acontrapartida des te processo era a submissão e desarticulação das classes dominadas, ar ma com que contaria o govemo, acenando para os perigos da "questão social" e do extremismo, para alarmar a burguesia e fazé-la concordar com a despolitização e a marcha para o autoritarismo.

Este processo só se completou com a instalação do Estado Novo, mas é possível acompanhá-lo desde os momentos iniciais da Segunda República, tendo um momento importante de análise no caso da con tra-revolução de 1932.

A postura do Govemo Provisório, embora não ainda plenamente conscientizada e definida, é possível de ser surpreendida nas palavras de Getúlio Vargas, em manifesto lido a 14 de maio de 1932 na Câmara dos Deputados: Dissertam, levianamente, os que acusam o Govemo Pro-

viário pela falta de diretrizes predeterminadas. Esquecem, po

rém, que tais diretrizes não podem ser traçadas arbitrariamen te. Elas devem originar-se e distender-se, segundo os anseios do povo e as infunções das necessidades nacionais. [. .. ] O Gover no Provisório não fez política, no sentido de submeter-se aos

postulados e às solicitações dos interesses de partidos, de clas ses ou facções. Todo seu esforço consistiu em firmar a ordem material, para tomar possível a realização dos melhoramentos

e reformas exigidas peta nova situação do país. [. . . ] Entre

as aspirações em choque, o papel do Govemo Provisório não

pode ser o de parte interessada e contendora. Cabe-lhe, apenas, coordenar esforços para tomar efetiva a obra saneadora da re

volução sob o seu duplo aspecto material e moral [. .. ] Com efeito, triunfante a revolução, impunha-se extinguir a desor-

82 Cf. Rowland, Robert. Classe operária e estado de compromisso. São Paulo, Estudos CEBRAP 8, Brasiliense, jan., fev., mar. 1974; Vianna, Luís Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 88

dem reinante, em todos os setores da administração pública,

para só depois cogitarda reconstrução política,®^ O Governo Provisório tentava, em primeiro lugar, solucionar os

problemas econômico-financeiros, tomando medidas para diversificar e estimular a produção nacional. Profundamente marcado pela crise do capitalismo, num contexto onde se revelou com maior clareza a vulne rabilidade da economia brasileira, o Brasil da República Nova experi mentava a percepção de uma problemática não apenas cafeicultora mas nacional. A idéia de atendimento aos problemas locais, de necessidade de desenvolvimento das forças produtivas do país, de molde a fazê-lo sair do impasse em que se achava, a flagrante constatação de depen

dência em que o Brasil se achava do capital internacional, seriam todos fatores que desembocariam numa idéia nacionalista ainda muito difusa e imprecisa. Tal nacionalismo se expressaria fundamentalmente, neste período, em idéias de integração nacional do mercado, preservação e desenvolvimento da produção do país nos seus vários setores e desen volvimento das "indústrias naturais", como forma única possível de en contrar uma saída fora dos moldes da agroexportação. A classe dominante era eliminada como oligarquia quanto ao exercício direto do poder, satisfazendo-se, em contrapartida, as suas exigências no nível econômico.

A questão política —que, na época, foi conscientizada pela fór mula da "reconstitucionalização do país" —foi deixada pelo Governo Provisório como que em segundo plano. O problema, contudo, tendeu a agravar-se na medida em que, para manter o Poder Executivo com uma independência relativa, foi usado o elemento tenentista.

Na opinião de Love,®^ as tendências demonstradas pelo Governo Provisório de utilização dos tenentes nos postos-chaves de mando, ocupando importantes interventorias, preocupavam os grupospolíticos tradicionais, que temiam o desmantelamento das máquinas estaduais. Parte das oligarquias periféricas começaram a experimentar um processo de reversão de expectativas, na medida em que pensavamque conduziriam a nação. Retoma-se aqui a noçãojá apresentada no capítu lo 1 de que a Revolução tivera como ceme uma cisão oligárquica. Tais grupos oligárquicos tradicionais pensavam muito mais numa mudança de homens, ou de oligarquias dirigentes, do que numa substituição da estrutura de poder vigente no país. O que ocorreu pós-30, contudo, foi a vigência de uma estrutura 83 Rio Grande do Sul em revista. 1932. Porto Alegre, Tipografia Thurmann, 1932. p. 28-30.

84 Love, Joseph. O regionalismo gaúcho. SãoPaulo, Perspectiva, 1971.p. 270. 89

econômica mais diversificada, a maior integração do mercado nacional e a afirmação maior do poder central sobre os estados. Com relação específica ao caso do Rio Grande do Sul, a Revolu

ção não alterou a hegemonia e predominância do setor agropecuário, embora imerso em crise. A reiteração do modelo agropecuário estadual implicava a consolidação da noção de constituir-se o Rio Grande em "celeiro do país", portanto integrado ao mercado nacional. Esta inte gração consolidava a manutenção da dependência econômica, embora

tal idéia não estivesse consciente para os agentes sociais neste período. O atendimento a problemas econômicos locais era feito à medida em

que a classe dominante local, incapaz de, por si só, solucionar seus problemas, pressionava o Estado, a nível local e federal.

Anível estadual, a interventoria de Flores daCunha representou a permanência dossetores ligados à agropecuária no poder. Neste sentido, o Estado cumpria a suafunção básica de regulamentar o funcionamento da sociedade e dar continuidade às relações que conservavam ossenho res de terra e gado como classe dominante. Como foi visto. Flores da Cunha procurou salvar o charque da crise e prestigiar o movimento de renovação dos criadores que pretendiam montar um frigorífico, além de outra série de medidas complementares para atender as exigências da pecuária.

Quanto ao nível federal e à satisfação das necessidades da agrope cuária sulina, viu-se que o atendimento aos problemas locais se dava na medida em que não colidissem com os interesses ditos "nacionais". Isto

se dava não em função de um setor ser prioritário sobre osdemais, mas porque realmente, no pós-30, o Govemo Provisório enfrentou uma pro blemática de nível nacional, com variados pontos a atacar. A cisão gaúcha se dará no nível político quando um setor daclas se dominante, que neste trabalho será chamado de "regional", preten deu, além da satisfação dos interesses econômicos locais, aspirar à he gemonia política ou, pelo menos, resguardar a independência do poder de mando das velhas oligarquias estaduais.

Como característico deste tipo de visão, é significativo o discurso realizado porJoão Neves daFontoura aos paulistas em 1932: Oriunda de umajornadagloriosa que sepropunha a aca bar com o poder pessoal dos Presidentes e devolver à Nação^ por um ato de força, o gozo de sua soberania inviolável, a di

tadura é o sirnbolo do mais irritante e agressivo personalismo,.. A ditadura só tem atiçado o fogo dasdivisões e dos atritos en tre os cidadãos e os Estados, Ingrata e amnésica, menoscaba os

gloriosos partidos do Rio Grande do Sul que tudo lhe deram, desde os votos de março até os soldados de outubro, A criatu ra, guindada ao poder, apunhala o criador, que apenas lhe re90

clama paz, sinceridade de propósitos, eleições livres e ordem

jurídica,^ ^ Os partidos políticos tradicionais, em suma, sentiam-se como que traídos por Getúlio Vargas, homem saído das fileiras do PRR gaúcho,

que fora guindado ao poder central pelo apoio da FUGe que agoravol tava as costas para o que eles consideravam "os ideais da Aliança Libe ral". Na verdade, a oligarquia gaúcha tinha assim frustradas as suas expectativas de substituir-se à oligarquia paulista no exercício do man do do Executivo central.

Em carta escrita a Borges de Medeiros, em 20 de julho de 1932, João Neves contribuiu para explicitar aindamaisa reversão de expecta tivas sofrida pelos rio-grandenses na República Nova: Quando, em 1928, vim para a Câmara, animava-se um

pen^mento p^andioso - dar à nossa terra o lugar queela me

recia na política do Pais, colocar um de seus filhos no Gover no, trazer para a administração os nossos métodos [... ] de ho nestidade impecável, economia e aplicação proveitosa e exata das rendas públicas. Em suma - contribuirpara, *'abrasileirando" o Rio Grande, **affluchar"o Brasil[... ] Vitoriosa a revo lução de outubro, a conduta da ditadura, saída do Rio Grande,

feita principalmente pelo Rio Grande e por ele sustentado, era o oposto dos motivos determinantes da campanha liberal Com as atitudes do Governo Provisório, o Rio Grande marchava de costas para o alvo que tinha em mira, quando aceitou a candi

datura Getúlio Vargas e,posteriormente, o desfecho armado}^ Esta parcela da classe dominante considerava-se, ao que parece, como que dona da Revolução de outubro e de Getúlio Vargas, configurando-se o chefe do Governo Provisório como um traidor da confiança

nele depositada e do movimento que o guindara ao poder. Dentro das novascondiçõesreinantes no Brasil pós-30, porém, re velava-se impraticável manter o esquema de complementaridade econô mica com o centro, conjugado à aspiração de hegemonia política. A orientação do Governo Provisório era realmente promovera integração nacional mediatizada pela subordinação ao poder central. O desenvolvi mento do capitalismo no Brasil iria, na situação pós-revolução de 30, ca da vez mais acentuar o relacionamento centro-periferia. O Sul agrope cuário assumiria um papel fimdamental de fomecer alimentos para o

consumidor nacional, permitindo, destaforma, que a acumulação pudes se se exercer em função das novas formas produtivas que iriam se imFontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e int de Hélgio Trin dade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. p. 393-4.

^ Fontoura,João Neves da. Apud Silva, Hélio. 1932: aguerra paulista. 2.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. p. 128-9.

91

pondo no centro. Tal processo, que iria se acentuar após o Estado Novo, neste momento apenas se esboçava, mas já revelava a impraticabilidade de vigência do esquema pretendido pelos grupos oligárquicos gaúchos

representados na FUG. A visão de João Neves, tomada aqui como exemplo máximo, de ve ser levada em conta com a ressalva de que o tribuno, logo no mo mento da tomada do poder, desentendeu-se com Vargas, a propósito de quem iria exercer o governo do Estado quando o presidente se afastasse rumo ao centro do país. Tendo a escolha de Getúlio recaído em Osvaldo Aranha e não em João Neves, vice-presidente do Estado e, portanto, o candidato natural a ocupar o cargo, este último passou a experimentar um grande ressentimento. Após ter cumprido o impor tante papel político de articulador das forças que apoiaram a Aliança Liberal, João Neves se tomaria o arregimentador das facções políticas que se voltariam contra Getúlio Vargas em 1932. Na postura de Hélgio Trindade:

Sua ação [. .. ] ajustava-se mais com o estilo dos regionalismos daVelha República do que com a direção centralizada e nacio nal difundida pelo Governo Provisório, sob a inspiração dos tenentes e do Ministro da Justiça Osvaldo Aranha, Tanto a visão particular de João Neves, como a da FUG, que se posicionou contra o Governo Provisório, são limitadas na medida em que se revelam incapazes de abarcar a transformação que se operava no

Brasil pós-revolucionário.®® Ora envolvendo ressentimentos pessoais, ora considerando traídos os ideais políticos da campanha liberal, colocaram-se, na verdade, como defensores de uma estrutura oligárquica de poder que se revelava impraticável de subsistir na nova realidade brasi leira, pelo menos nos moldes vigentes da República Nova. A questão política fundamental —o controle efetivo do poder — assumiu uma forma prática na reclamação pela convocação de uma

assembléia constituinte, a fim de que fosse normalizada a vida política do país. Neste processo, começou a dividir-se a opinião pública, haven do os partidários da reconstitucionalização —São Paulo, FUG, grupos de oposição mineiros —invocado os ideais liberais em nome dos quais fora feita a Revolução de outubro. A corrente dita tenentista, englo bando elementos de farda ou sem ela, identificados com o centralismo, defendiam a permanência do Governo Provisório. Dentro dessa discussão geral em torno da constituinte, assumiu relevância o problema de São Paulo, onde Getúlio decidira entregar o governo a um interventor — o tenente João Alberto —e não a algum 87 Fontoura, op. cit., nota 85, p. 39. 88 Ibidem.

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elemento do Partido Democrático que havia participado da Aliança Liberal. Aliado ao ressentimento da quebra de autonomia e hegemo nia de São Paido, colocava-se em pauta também a luta pelo controle da política do café. A fórmula de "um interventor civil e paulista para São Paulo" revelava, antes de mais nada, um inconformismo com a no

va ordem política e mesmo contra as medidas de intervenção do Estado

na Economia, tais como a criação do Conselho Nacional do Café em 1931 ou a determinação do governo de não plantar novos pés de café. Na opinião de Carone,

A situação do Rio Grande do Sul não chega a se tomar tão grave como a paulista, mas sua realidade somada com a paulista, é fundamental no processo de luta das oligarquias con tra o tenentismo.^^

As proposições paulistas, que revelam um certo inconformismo com a perda do poder, somam-se ás reivindicações das oligarquias dissi dentes do Rio Grande e de Minas. Ao lado das idéias-chave de reconsti-

tucionalização, federalismo, interventor civil e paulista, reclamam por maior poder das oligarquiasjunto ao governocentral e maior autonomia política dos estados frente à União. Segundo Rowland,

As hesitações de Vargas e de Osvaldo Aranha, diante do ''caso de São Paulo", confirmam esta intenção, assim como mostram a fragilidade política do governo, cuja permanência no poder dependia de sua capacidade de se manter como

árbitro dosconflitos que iam surgindo,^^ De um lado, impunha-se uma nova visão, que buscava a integração nacional e a manutenção do executivo central com certa margem de ma nobra frente às classes sociais. Tal visão implicava a aceitação de um autoritarismo limitado vinculado à idéia centralista.

De outro lado, as oligarquias pressionavam pela volta ao Estado legal, bradando por constituição e federalismo.

O movimento de cisão já começou a esboçar-se no próprio ano de

1931, embora só se concretizasse no seguinte. Durante o 2?Congresso do Partido Libertador (PL), em abril de 1931, os democráticos de São Paulo foram convidados a participar, recebendo a promessa do apoioli bertador às suas reivindicações.^ ^ No decorrer do ano de 1931, o "Estado do Rio Grande", órgão oficial do PL, começou a denunciar os erros do Governo Provisório: Cafona, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo, DIFEL, 1974. p. 294.

90 Rowland, op. cit., p. 17. 91 Carone, op. cit, p. 295. 93

Não combatemos, portanto, uma tirania que não existe e, se existisse, seria a maior de todas as catástrofes. Combate mos, sim, a dilação da ditadura, muito embora esta ditadura seja benigna e tolerante, porque ela traz consigo males intrín secos e inevitáveis, por mais bem intencionados que possam

ser os homensque a exercem^^ Condenando a permanência do regime discricionário, contudo, a

figura de Vargas era ainda respeitada, embora divergências fossem apontadas com relação à orientação do Governo Provisório quanto ao retardamento da volta ao estado legal. Em novembro de 1931, João Neves realizou a tarefa política de reunir em Cachoeira os grupos partidários tradicionais do Rio Grande integrantes da FUG. Para a reunião, além dos dirigentes do PRR Borges de Medeiros —e do PL — Raul Pilla —, foi convidado também o interventor Flores da Cunha. Desta reunião foi redigida uma adver tência a Getúlio, alertando-o contra os males da influência tenentista no governo.

A estes acontecimentos, seguiu-se a demissão coletiva dos gaúchos dos postos que ocupavam no centro do país: Maurício Cardoso, Lindolfo Collor, Batista Luzardo, Barros Cassai e João Neves da Fontoura re tomaram ao Rio Grande, rompendo com Vargas, após o empastelamen-

to do "Diário Carioca" por elementos tenentistas. A dsão configurava-se cada vez mais clara: reimidos sob a orienta ção de seus líderes, os gaúchos organizaram primeiro um heptálogo e após um decálogo ao chefe do Govemo Provisório, pedindo, entre ou

tras coisas, liberdade de imprensa, abertura de inquérito sobre o "Diá rio Carioca" e eleições para a Assembléia Constituinte. Ante a política contemporizadora de Getúlio, os gaúchos rompe

ram como govemo central em 29 de março de 1932.^ ^ Até este momento. Flores da Cunha ainda se mantinha ao lado da

FUG, sem definir-se ostensivamente por Vargas, participando, inclusive, do encontro doslíderes políticos gaúchos para lavrarem o heptálogo. A publicação "Rio Grande do Sul em Revista", de 1932, legítima representante da visão que a classe dominante local apresentava de si mesma, defendia a postura assumida pelo estado sulino: [. . . ] vem sendo, desde remotíssimos tempos, o Rio Grande o pioneiro destemido e desinteressado das grandes

cruzadas em defesa da Pátria e das instituições republicanas. Como, pois, acoimar o Rio Grande de egoista ou separatista? Queremos ser, é verdade, os primeiros entre os estados da União, para maior glória do Brasil [...]£*, se dúvidas houvesse Ditadura e tirania. O Estado do Rio Grande, Porto Alegre, 26 mar. 1931. p. 3.

"3 Cf. Carone, op. cit.,p. 307-8. 94

quanto ao verdadeiro significado da atitude daqueles ilustres riO'grandenses, essas dúvidas se dissiparam de todo no conda"

ve histórico de Cachoeira, em que o verbo oracular do ^ande chefe Borges de Medeiros se faz ouvir, na memorial reunião em que se encontraram os chefes dos dois grandes partidos que, unidos por laços sagrados numa conformidade admirável de vistas, traçaram o único caminho que o Rio Grande poderia e deveria seguir: o caminho da honra e dos compromissos assu midos, que outro não poderia ser senão o da volta breve ao re gime da lei, pois outro escopo, outra finalidade não teve a Re

volução de outubro,^^ Ainda nesta hora, é possível detectar que a hostilidade contra Vargas, o fato do Rio Grande ter sido traído por um de seus filhos não era tão generalizado assim. Relatava o mesmo artigo, numa prova conci liatória:

O Rio Grande que confia em Borges de Medeiros, Assis

Brasil [. . . ] não poderia deixar de ter confiança nos seus ilus tres filhos Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha, S,S, Excelências também são gaúchos, cheios de amor à sua grande terra e não poderão ficar mudos à voz do Rio Grande, que mais uma vez

traduz fielmente o sentir unânime do Povo Brasileiro [. . . Reaparece aqui a idéia de que, saído das oligarquias gaúchas, Ge túlio não poderia trair sua terra... Numa proposta conciliatória, o Governo Provisório marcou a data

das eleições para a constituinte, através do Decreto n? 21.402, de maio de 1932.

Nesta conjuntura específica, a posição que o interventor federal assumisse era de suma importância. Durante meses, contudo. Flores da

Cunha hesitou. Os elementos da FUG esperavam que, no momento chave. Flores fechasse com os grupos tradicionais da política rio-grandense^ O interventor oscilou entre reuniões com os membros da FUG e protestos de apoio a Vargas.

Por exemplo, após ter participado do encontro de Cachoeira, e mesmo de ter recebido no Palácio do Governo libertadores e republica

nos, criticando atitudes de Vargas, em 25 de maio de 1932, em nome dos partidos do Rio Grande hipotecou solidariedade ao chefe do Go verno Provisório desde que fosse dada uma solução satisfatória ao caso paulista, onde se haviam dado mudanças no secretariado. A ação do governo central, realizando substituição de homens em postos-chave, recebeu o apoio maciço do Rio Grande.

94 Rio Grande doSul em revista, op. cit, p. 13. 95 íbidem.

96 Sá, Mem de.A politização doRio Grande, Porto Alegre, Tabajara, 1973. p. 88. 97 Silva, op. cit., p. 40. 95

Ao que tudo indica, a tática de contemporizaçáo se dava dos dois lados. Enquanto agia desta forma, Getúlio procurava garantir-se con quistando a adesâ^o de Flores. Parte da oligarquia regional gaúcha, por outro lado, procurou pressionar, o governo central, exigindo que o mes mo se afastasse dos tenentes.

Elementos "radicais" da oligarquia gaúcha, coordenados por João Neves e com a adesão da oligarquia mineira, propuseram a Vargas a for mação de um "gabinete de concentração", na intenção de imporem seu controle sobre o Govemo Provisório. Em discurso pronunciado em São Paulo, João Nevesjustificaria depois esta sua posição: Desejando evitar a todo o transe a luta fratricída, empe

nhei o meu esforço animado para que a ditadura se convertesse num govemo de concentração nacional - estuário de todas as correntes da opinião brasileira - que assegurasse ao povo o direito de escolher, num pleito livre, os artífices de sua vida institucional Tranqüilidade pública e eleições próximas tal foi o binômio em que circunscrevemos o mínimo da vonta de nacional^ ^

Não tendo demonstrado Vargas receptividade ao plano e realiza do alterações no ministério consideradas incompatíveis com a proposta feita, a Frente Única Gaúcha deu conhecimento ao Govemo Provisório, em 29 de junho de 1932, que encerrava suas negociações, rompendo com o Govemo.

A partirdaí, a FUG aderiu à conspiração paulista, desencadeando-se o movimento de 9 de julho de 1932.

Mais tarde, João Neves da Fontoura alegou que parte dos rio-grandenses aderira ao movimento de julho de32não pormotivos regionais, mas tendo em vista a causa do Brasil e os compromissos assumidos.^ ^ Todavia, a atitude dos revoltosos demonstra a existência de uma forte dose de regionalismo.

Indo até a contra-revolução, coadunava-se mais com um estilo de comportamento políticovigente na velha República. Ao eclodir a revolução, apósmomentos de dubiedade e hesitação.

Flores da Cunha hipotecou solidariedade a Getúlio Vargas, afirmando que manteria a ordem no estado, custasse o que custasse. Controlou a Brigada Militar e contou ainda com o apoio da 3? Região Militar. De posse desses efetivos, pôde controlar com firmeza a rebelião no Rio Grande.

Com o fim de manter o pacto firmado entre São Paulo e Rio Gran de do Sul, alguns levantes ocorreram no estado, como o de Santa Maria, Fontoura, op. cit., nota 85, p. 393. Ibidem,p. 484-5.

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liderado pelo capitão Martim Cavalcanti, o de Vacaria, com Otacílio Fernandes, o de Soledade, chefiado pelo Gel. Carneiro, o de Júlio de Castilhos, com Marcial Terra, e aquele que mais marcou, de Serro Ale gre, onde figuravam os líderes Borges de Medeiros, Raul Pilla e Batista Luzardo.^®®

A postura de Flores foi atacada pela facção dita "regional" da classe dominante, alegando falta de lealdade aos compromissos assumi dos, optando por um governo ditatorial e impopular. O governo central, contudo, foi vitorioso. Getúlio Vargas, ou me lhor dizendo, a elite dirigente que açambarcava o poder no Governo Provisório, conseguiu impor a autoridade do governo central sobre as oligarquias periféricas revoltosas, sem que com isso descurasse do trata

mento dado ao café ou mesmo à pecuária.^ ®^ Não se tratava de destruir as oligarquias, mas eliminá-las como força política, a fim de justamente manter, nas novas condições pós-30, a supremacia da classe como um todo e a defesa da estrutura produtora montada. O relacionamento centro-periferia seria agora dado através de órgãos criados especialmente com o fim de atenderem reivindicações se toriais da economia. Eliminava-se, portanto, a figura da oligarquia como

um grupo regional de poder, influindo e pressionando o poder central. Na medida em que o governo referia-se à integração econômica nacio nal e falavaem diversificação da produção, pressupunha como elemento básico a tutela do centro sobre a periferia. A tutela se exercia não ape nas no plano político (centralismo político-administrativo), mas tam bém no econômico, através de um esquema de exploração mediante o qual o excedente econômico das regiões subsidiárias, fornecedoras de gêneros alimentícios, era captado pelo centro do país. Preparava-se, no bojo desse processo, uma nova forma de acumulação de capital que iria se centrar na indústria, nucleada no centro do país. A acumulação de capital tinha também sua viga mestra na utilização de mão-de-obra na cional remunerada a baixo preço.

No sentido de harmonizar as relações capital x trabalho e propi ciar a acumulação, foi criada a legislação trabalhista, que, contudo, não chegou até o campo. A pecuária, portanto, não experimentou este me

canismo de controle, em parte devido à própria precariedade do caráter capitalista das relações de classe e da vigência de formas de dominação ainda marcadas pelo patriarcalismo. 100 Sá, op. cit, p. 91-2.

101 (. . .) *1es querelles entre les élites —qu'elles prennent ou non Ia forme de ''revolution'' - sont restreintes au niveau politique: à aucun moment. Ia faction vainqueur n'essaie de liquider les sources de pourvoir de Ia faction vaincue. En d'autres termes: les conflits entre les élites coalisées tendent à s'epuiser, par Ia même, au niveau strictement poHtique.'' Martins, op. cit. nota 81. p. 112.

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Identificada com a postura do centro do país, definiu-se no sul, após a contra-revolução de 1932, uma facção que se poderia denominar de "nacional", na medida em que se propunha a integração da econo mia nacional ao mercado interno e dinamização da estrutura produtiva local. A tutela do centro sobre a periferia não era entendida como do minação / subordinação, mas como colaboração em prol do erguimento de uma nova estrutura política, progressista e possibilitadora de maior desenvolvimento nacional.

A vitória do govemo central implicou a extensão do poder do governo Vargas sobre todo o país. No dizer de Carmut de Souza, com

referência ao caso paulista, as démarches para a revolução de 1932 [ . . . ] refletem os percalços e as ambigüidades de uma elite econômica que, para enfrentar os problemas decorrentes da crise econômica mundial, necessitava da força de um gover no centralizador que não mais permitisse o monopólio do man do paulista no processodecisório do pais,^ No Rio Grande, o fim da revolução de 32 fragmentou a estrutura política gaúcha que estava unida desde 1928 na Frente Única. A vitória

do centro implicou o banimento dos cabeças que lideravam o movi mento de adesão à revolta paulista. João Neves, Raul Pilla, Lindolfo

Collor e Batista Luzardo exilaram-se na Argentina, tendo Flores da Cunha intercedido junto a Getúlio para que o velho chefe do PRR fosse poupado da pena do banimento.

Encenado o episódio armado, partiu do interventor federal a campanha pela "pacificação do Rio Grande", ainda no ano de 1932. Clamando por anistia e pronta reconstitucionalização. Flores, através de João Carlos Machado, começou a realizar dérmaches para a

efetivação de uma reunião em Porto Alegre, com o fim de fundar uma nova agremiação política. Ao mesmo tempo em que promovia tal en contro, Flores procurou entrar em contato com os líderes da FUG. Após entendimentos com Maurício Cardoso, então na chefia do PRR, ficou acertada a ida deste à fronteira para encontrar-se em Rivera com João Neves da Fontoura. A proposta do interventor era no sentido de "não

fundar nenhuma agremiação partidária e compor, de novo, os seus contemporâneos da Frente Única, sem quebra dos quadros dos velhos partidos".^ A idéia que Flores transmitiu ao líder do PRR era a de reunir os

líderes de ambos os partidos para, num ambiente de concórdia, trazer a normalidade de volta à vida econômica, social e política do Estado. 102 Souza, Caimut & Simões Neto, Teotònio. São Paulo e os outros. Isto é. 103 Fontoura, op. cit, nota 85, p.482.

São Paulo, 83:46-8, 26 jul. 1978.

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Para que tal se processasse. Flores ofeteda a Maurício Cardoso a Se cretaria do Interior. Cardoso garantiria, com o novo cargo, a honesti

dade das próximas eleições para a constituinte, ao mesmo tempo que era incumbido pelo interventor de realizar um ministério de "apazigua

mento" ou "concentração", reunindo todos em função dos interesses mais altos do Rio Grande e do Brasil.'

Ante a recusa dos exilados em participar de um ministério de apa ziguamento, tiveram reinicio as articulações para a constituição do novo partido. Constituído a 15 de novembro de 1932, o Partido Republicano

Liberal (PRL) foi a concretização, a nível político-partidário, da cor rente dita "nacional" que se constituíra no Estado. No PRL, congregou-se a maior parte dos "coronéis" republicanos e outros líderes políticos menores. Sua lealdade a Borges de Medeiros, aos princípios castilhistas, desapareceuem favor de sua permanência no poder pela ligação com o novo partido govemista. O PL, tradicionalmen te o partido "de fora", sofreu uma deserção menos dramática. A perda consistiu fundamentalmente em Antunes Maciel e a minoria dos liberta

dores que se opusera a Flores durante a revolução.'®® Afluíram, pois, para a constituição do PRL elementos de ambos os partidos políticos tradicionais do Rio Grande, que haviam apoiado Flores da Cunha na posição assumida perante a revolução de 1932, ou que, sem participaçãoostensiva no conflito, agpraoptavam pelo partido do governo.

Por outro lado, muitos homens de negócios, fazendeiros, industrialistas, comerciantes e profissionais liberais que se interessavam por esta bilidade, paz e favores do governo, voltaram-se parao partido do inter ventor.

O PRL recebeu a adesão ainda de um novo elemento —parte da juventude gaúcha que se encontrava desencantada com o conservantismo sódo-econômico dos partidos da FUG. O novo partido atraiu-os

com uma plataforma que atacava os problemas políticos e econômicos do seu tempo, ao mesmo tempo que acrescentava reformas políticas, re comendava mais envolvimento do Estado na esfera econômica, bem-es

tar social e educação.'®® Em princípio, o PRL não visava apenas à realidade gaúcha, mas ao contexto rio-grandense nas suas vinculações com o panorama nacional. Implicava a aceitação da política do centro, preocupadacom uma rea104íbidem, p. 486. 105 Cortês, Carlos. Gaúcho politícs in Braztt. (s.l.] University of New México Press, 1974. p. 49-50.

106íbidem, p. 50.

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lidade nacional, mas onde o Rio Grande do Sul ocupasse um lugar de destaque.

Na sessão inaugural de IS de novembro de 1932, o presidente da Assembléia, João Carlos Machado, justificou as razões que teriam leva do à formação da nova agremiação: Chegamos a uma encruzilhada em que devemos optar por uma das normas abertas: ou tomamos resolutamente o ca

minho da ordem social, política e administrativa, procurando preservar da anarquia o Rio Grande e o pais, permitindo cur so livre a todas as suas atividades, restaurando a confiança per dida, visando o restabelecimento do ritmo de trabalho indus

trial e comercial, perdido no tumulto das paixões edosentrechoques armados - ou abandonamos um e outro à aventura,

inspirada pelos ódios, pelos egoismos,pelos personalismos dissolventes, pelas ambições desenfreadas, cujas conseqüências não precisamos apontar, visto que cada um de nós sabe perfei tamente o que representa para o nosso povo como fator de pressivo e perturbador, moral e materialmente.' ° '

Em última análise, solicitava-se a criação de um partido que resta belecesse a ordem perdida, a fimde conseguir vencer a crise que afetava não só o Rio Grande, mas toda a nação. Argumentava, inclusive, com elementos muito caros à classe dominante: Agora mesmo, o Sr. General Interventor Federal no Esta

do deseja realizar a construção de umfrigorífico e de vários ra maisferroviários, velhasaspiraçõesdo Rio Grande do Sul e que intimamente consultam os interesses impessoais da coletivida de rio-grandense. Como fazê-lo, entretanto, no ambiente de apreensões e de sobressaltos a cada morhento, formado por quantos sob o império das paixões que irrompem a cada mo

mento, tentando subvertera ordem [... ]

Tratava-se de criar um organismo político que, pelo seuprograma de ação, se propusesse a melhor desenvolver as forças produtivas do es tado. A pecuária, a agricultura, o comércio, a indústria e as profissões liberais necessitavam de uma ordem social estável, de organização da vida material e pacificação política. Em suma, pelos seus propósitos, o novo partido revelava-se capaz de atrair os interesses da classe dominan te e de sua extensão, a elite culta dos profissionais liberais. No tocante aos industriais gaúchos, estes haviam recebido uma proposta do Rio de Janeiro, no sentido de organizarem um "partido econômico". Todavia, os representantes da indústria rio-grandense (A.J. Reimer, Alberto Bins, Sassi, Dahne, di Prinüo Beck), em en-

107 o Partido Republicano Liberal e o seu programa. Porto Alegre, Globo, 1933. 7. íbi]' Ibidem, p. 18.

100

trevista com Flores da Cunha, preferiram hipotecar solidariedade ao Partido Republicano Liberal, entâío em fase de organizaçâ:o. Dis cursando por ocasião da fundação do novo partido, Alberto Bins en fatizou que, no PRL, se congregariam todos aqueles que contribuíam para o aumento da produção gaúcha (industriais, pecuaristas, agricul tores): O novo partido estaria à procura de um programa de diretrizes fortemente econômicas, como, por exemplo, Hoover e Roosevelt nos U,S,A, recentemente haviam feito. Destarte, os produtores poderiam ligar-se a este partido sem dificulda des, tomando supérflua a criação de um partido econômico

especial ^ O PRL recebeu ainda a adesão dos prefeitos municipaise coman dantes de corpos de milícias. Em especial, o chefe do Governo Provisó rio, em telegrama, hipotecou solidariedade à reabilitação da vida político-partidária no estado. Criticando os velhos partidos rio-grandenses pelo seu "personalismo irritante" e louvando o patriotismo e integri dade de Flores da Cunha, Getúlio incentivou o surgimento da nova agremiação:

Uma vez que do Rio Grande parte o brado de alerta para o fiat renovador da reconstrução política do pais, é natural que apareçam no programa partidário estabelecido, dadas as

peculiaridades de sua situação geográfica e seu destino histó rico, em fórmulas precisas, os ideais coletivos. Cabe-lhe progra mar, como artigo de fé, o constante fortalecimento da unidade nacional, o predomínio de amplo sentimento de brasilidade. A par disso, é justo cogitar-se também da realização dos anhelos próprios e das aspirações locais, que em nada afetam, ao con trário, tomam mais sólidos os laços de fraternidade, quanto tem em vista, entre outros, maior aproximação dos centros consumidores nacionais, pelo desenvolvimento das cabotagens, barateamento dos fretes, desdobramento do regime portuário, distinção do sistema ferroviário e rodoviário, conjugados entre si e intimamente ligados à navegaçãofluvial, pelo aproveitamen to do nosso excepcional regime hidrográfico e estabelecimento de rumos fixos e certos ao progresso industrial, principalmente

o agrícola-pastoril ^^® Enfatizando a idéia de união e integração de mercados, e da posi ção do Rio Grande como "cooperador do progresso nacional", Getúlio Vargas manifestava o seu apoio à fundação do PRL, que vinha assim ao encontro dos interesses do govemo central.

109 Fausel, Erich. Alberto Bins, o merlense brasileiro. São Leopoldo, Rottermund, [s. d.]p.41.

110o Partido..op. cit, p. 48. 101

Após discussões entre os membros do Congresso, foram aprova dos os itens do programa partidário. O PRL se apresentava como um "partido estadual com finalidades nacionais", lutando pelo "regime li vre e democrático", pela "ordem moral e social", "estabilidade e segu rança econômica".^^^ Em termos políticos, apontava a forma republicana federativa e o sistema representativo, gozando os Estados de autonomia segundo as constituições que adotassem, sendo porém respeitados os princípios constitucionais da União.

Afirmava a idéia de uma "realidade nacional", à qual se devia manter conectado o Rio Grande, e admitia a intervenção do Estado no terreno da economia. Na verdade, a remodelação do papel do Estado no

âmbito nacional foi tema de debates nas discussões do ante-projeto do programa do PRL.^ ^^ Em termos de política econômico-ímanceira, admitia-se a arti

culação racional do orçamento: a discriminação exata das rendas e taxas e de competência fiscal da União, dos estados e dos municípios: o con trole da dívida externa e adoção de medidas para estabilizar a moeda; a socialização gradual dos serviços públicos; a regulamentação dos regi mes de aproveitamento da energia hidráulica e reserva das minas de in

teresse econômico ou militar para a propriedade do poder público fe

deral; a racionalização dos sistemas de colonização, concedendo facili dades à agricultura.

Em especial, enfatizava-se a abolição dos impostos indiretos e sua substituição pelos diretos, bem como a necessidade de reorganizar os transportes no sentido de dar-lhes maior eficácia dentro de um sistema

de menores custos. Particularmente, requisitava-se o crédito fácil e am plo em todas as suas dimensões: público, hipotecário (agrícola e pas toril), industrial, etc.

Outro ponto muito enfatizado foi o do amparo às indústrias na turais, ou seja, aquelas que no paísencontrassem condição de viabilida de e resistência. Da mesma forma, acentuava-se a necessidade da criação

de conselhos técnicos e consultorias de assessoramento do governo no

plano econômico. O artigo XXIII do programa pressupunha ainda a criação de entidades públicas autônomas para quaisquer finalidades de ordem econômica, social, financeira e profissional. Enquanto que estes eram os itens da parte econômico-financeira,

no plano da política social colocava-se a necessidade de precisar, em ter mos harmônicos, a relação capital/trabalho, de modo a possibilitar a conciliação do desenvolvimento econômico com a estabilidade social.

111 Ibidem,p. 157. 112Müller, op. cit.,nota 1,p. 136. 102

Nessa articulação, o Estado deveria gozar de um papel fundamental. Acentuavam-se questões referentes à jomada de trabalho de oito horas para manufaturas, comércio e minas, salário mínimo, assistência social, como pensão, invalidez, assistência médica e hospitalar, seguro contra invalidez e acidentes do trabalho,etc.^ ^^ Na posição de Müller, os debates para a elaboração do programa do PRL evidenciam alguns aspectos importantes. Em primeiro lugar, predominavam os interesses vinculados ao capital, mas que buscavam conexão dinâmica em termos de mercado com o trabalho, concebendo

o Estado-Nação como o limitejurídico político de acumulação legítima e básica. Dentro deste contexto, predominavam os interesses ligados à agropecuária, indústrias de beneficiamento vinculadas ao govemo. Por outro lado, o fator trabalho era incorporado à perspectivade expansão do mercado interno regional e nacional, mediante uma harmonização

das relações capitalx trabalho, via mecanismo ideológico de uma idéia nacionalista. Por último, o autor coloca a existência de uma ótica oti

mista com relação às perspectivas de desenvolvimento da formação social.

Na verdade, o Partido Republicano Liberal era tendente a agrupar

os elementos da classe dominante no Estado, porque, pela dinamização

pretendida pelas forças produtivas, destinava-se a viabilizar a acumula ção de capital. Neste sentido, é importante ressaltar a "abertura parti dária" para outros setores da burguesia (industriais, comerciantes), num processo de ampliação e diversificação de classe dominante, embo ra sob a hegemonia do setor agropecuário.

A saída histórica vislumbrada pelo setor "nacional" da classe do minante era dada pela integração econômica do sul ao mercado brasi leiro, dentro de uma nova situação onde eram componentes fundamen tais o nacionalismo e a intervenção do Estado na economia, como pos-

sibilitador do progresso. Nas palavras do próprio manifesto do PRL ao Rio Grande e ao Brasil, a nova corrente política se propunhaa conciliar os interesses das classes produtoras, do consumidor e do govemo. Quan to ao fator trabalho, o manifesto especificava sua percepção do proces so que ocorria:

O PRL não foi pedir sugestõesao proletariado, negocian do filiação política. Preferiu sujeitar ao seu exame a esperança

que nutre de ver bem compreendidas as providências que se propõe realizar, criando-lhes facilidades e compensações para

a vida áspera e extenuante em queseconsome. ^ ^ 113 Ibidem,p. 158-63. 114 Ibidem,p. 146. 115 O Partido..., op. cit, p. 176. 103

Inserida na realidade brasileira do pós-30, a incorporaçâfo do pro letariado dava-se "desde cima", nos moldes paternalistas que se afirma riam como padrâfo de conduta da era de Vargas. No que toca à questão da política social do programa do PRL,

quanto àjornada de oitohoras de trabalho, a opinião dos integrantes da classe dominante do Estado foi de que este regime diário era impraticá vel para a vida pastoril, bem como para a agricultura. As considerações levantadas a este respeito por Alberto Bins foram aprovadas pelo Con gresso, que só considerou a lei pertinente ao trabalho industrial, comer cial e de minas.

Restabelecia-se, assim, a vida política no Estado pela constituição de um novo partido, agremiação esta formada pelo contingente daclas se dominante da "ala nacional". Recusando-se a participar da normali dade da vida política do Estado que ainda se dava dentro do regime dis cricionário, parte daclasse dominante —a ala "regional" mantinha-se de lado, em ostracismo voluntário.

A classe dominante gaúcha cindira-se, mas o limite de compreen são dos fatos ocorridos deve ser buscado ao nível da rearticulação políti ca das oligarquias, ameaçadas com a perda de seu poder durante o- regi me discricionário. Aliás, a essência de constituição do PRL não era a ideologia, mas sim o próprio poder. ^^^ No geral, a orientação imprimida pelo Governo Provisório no to

cante à reorganização econômica brasileira, secundada pela atuação do interventor ao nível estadual, vinha corresponder à necessidade de ele mentos de uma e outra facção política. Da mesma forma, elementos ditos modemizantes" ou mais retrógrados, sem distinção, buscavam o apoio e os favores do govemo parasuas necessidades. O fato de criadores e charqueadores, dentro da crise da pecuária, experimentarem graus diferentes deaceitação dapolítica econômica do Govemo Provisório (capítulo 3.1) é circunstancial. Em outras palavras,

apesar de reconhecerem a necessidade de integração ao mercado, na medida em que a orientação do centro conflitava com um interesse re

gional, ao qual se sobrepunham "interesses nacionais", a dependência esubordinação era sentida e apontada, como no caso dos charqueadores, com relação ao sal. Quando, contudo, suas perspectivas e interesses se coadunavam com a orientação geral do govemo pós-30, era a idéia de complementaridade e vinculação com o centro que se revelava, solici tando-se a colaboração com o poder público. A dependência, no caso, não era então questionada.

A parte da classe dominante gaúcha que rompeu com Vargas e 116Cortes, op. cit., p. 50. 104

Flores da Cunha, portanto, nâ^o o fez em função de divergências econô micas, nem obedecendo a uma divisão das frações de classe,mas em fun ção de níveis de aspiração do poder político e formas de concepção deste poder ainda em termos oligárquicos, como quando da vigência da Primeira República.

3.3 —A ""ala nacional" e as saídas para a crise da pecuária gaúcha (1932 -1934) Desarticulada a FUG e exilados os seus líderes, ficou a "ala na

cional", agora agrupada politicamente em tomo do PRL, a orien

tar o Rio Grande. O foco de rebelião paulista fora extirpado e o poder central afirmara-se sobre os regionalismos locais exacerbados.

No plano regional, contudo, restava a necessidade de reabilita ção moral de Flores da Cunha diante do povo rio-grandense, em parte hesitante quanto à avaliação da atitude mantida pelo interventor nos acontecimentos revolucionários. Após muitas oscilações. Flores posi-

cionara-se finalmente contra a FUG e pela defesa do Governo central. Para tanto, a pedido do próprio interventor, foi organizado no Rio Grande um "Tribunal de Honra", constituído pelo desembargador Manoel André da Rocha, pelo presidente do Tribimal de Justiça, pelo Arcebispo D. João Becker, pelo Prof. Dr. Annes Dias e pelo jurista Dr. José de Almeida Martins Costa Jr. Em decisão tomada pública a 28 de abril de 1933, a comissão proclamou, "a face de Deuse dos homens", que Flores da Cunha se conduzira sempre "rigorosamente, conforme os ditames da dignidade pessoal e do cargo."^ ^ ReabiUtado e engrandecido perante o seu estado. Flores da Cunha continuou a exercer o cargo de interventor federal e procedeu às elei ções para os representantes do Rio Grande à Assembléia Constituinte, no prazo afixado previamente por Vargas. A 3 de maio de 1933, as ur nas consagraram a vitória dos candidatos do PRL.

A FUG conseguiu apenas a percentagem de 20%sobre o eleitora do que compareceu para votar.^^® O PRL, obtendo a maioria dos votos, dispunha-se, no plano polí tico, a preparar o caminho para a reconstitucionaHzação do país. No plano econômico, tratava-se de dar continuidade ao enfrentamento da crise da pecuária, que se mantinha como uma constante neste final do governo discricionário.

11^0 Rio Grande do Sul em revista. 1933. Porto Alegre, Tipografia Thurmann, 1933. p. 5.

118Ibidem, p. 8. 105

Finalmente, o govemo reconhecia a existência de uma "crise uni

versal", mediante a qual o Rio Grande sofrerá "asconseqüências inevi táveis do retraimento geral das operações mercantis". Além desta causa

geral, o governo mencionava "os efeitos ruinosos" da rebeliíTo paulista sobre a economia do Estado,

[...] provocando um verdadeiro colapso durante treze meses em todas as esferas do dinamismo comercial do pais, revestindo-se entre nós de um aspecto maisgrave, emface dos diversos levantes aqui tentados pelos aliados de São Paulo e das fre qüentes perturbações da ordem dentro do nosso território. ^ ^

Com relação à crise como um todo, portanto,as correntes oficiais

remontavam a identificação de um fenômeno global de retração do mer

cado, decorrente da depressão econômica capitalista, àqual se conjuga vam fenômenos circunstanciais, como a crise política advinda da revolu

ção de 1932. Restabelecida a ordem, a forma de "salvação" da econo mia gaúcha estava na manutenção dos vínculos com o mercado nacio nal brasileiro.

A ligação era dada não só através da técnica arcaica de transfor

mação da carne, que necessitava de amparo e controle, como através da nova proposta de frigorificação.

Se o fim a objetivar era a integração ao mercado nacional, fosse através do charque ou da carne frigorificada, o meio de obter este

desideratum" era pela prática do sindicalismo-corporativista. Seguidora da orientação do govemo central, a "ala nacionalista"

da classe dominante local identificava-se com a postura adotada pelo govemo g?tuliano.

A teoria associativa da defesa da produção já fora defendida por Vargas antes de 1930. Na abertura do II Congresso de Criadores, em 1928, Getúlio já desenvolvera a idéia da forma associativa e do reagrupamento social através da categoria de classes, segundo a profissão ou

atividade econôntíca exercida.^

Na mensagem presidencial do mes

mo ano, era reafirmada a idéia, enfatizando-se que competia ao go vemo estimular e amparar o associativismo, controlando-o mesmo. Es pecificava Vargas:

A mais eficiente dessas organizações é a que assume a

forma dos^ sindicatos. Organizados para a defesa de interesses

comuns, têm uma dupla vantagem: para os associados, a união toma-os mais fortes; para os governos, o trato direto com os

119 Relatório da Secretaria da Fazenda. Porto Alegre, Of. Gráf. d'A Federação, 1933. p. 2.

120 Segundo Congresso de Criadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 26 abr. 1928. p. 8.

106

dirigentes da classe facilita, pelo entendimento com poucos, a

satisfação do interesse de muitos. ^^^ Se, antes da Revolução de Outubro, a tendência do associativismo

já era amparada pelo governo e praticada pelas classes interessadas (FARSUL, Sindicato dos Charqueadores, dos Arrozeiros, etc.), após 1930 foi dado um novo caráter ao movimento.

Nos discursos de Vargas pós-30, o tom corporativista é muito claro, assim como a necessidade da identidade de vistas entre as orien

tações das políticas estaduais coadunando-se com a federal. Referia Vargas:

Estamos empenhados, como já foi dito, na reorganiza

ção econômico-financeira de todo o país, portanto, também, dos Estados e municípios [. . . ] Entre o GovernoProvisório e os interventores, entre estes e os prefeitos municipais, deve ha ver identidade de diretrizes na ordem financeira, administrativa e econômica}^^

Em outro discurso, proferido em 1931, o chefe do Governo Provi sório afirmava a necessidade de uma revisão do sistema econômico me

diante uma "racionalização integral", afim de tomar possível um equilí brio. Para tanto, fazia-se mister

[... ] congregar todas as classes, em uma colaboração efetivae inteligente. Ao direito cumpre dar expressão e forma a essa aliança, capaz de evitar a derrocada final Tal alevantado pro pósito será atingido, quando encontrarmos reunidos numa

mesma assembléia plutocratas e proletários, patrões e sindi calistas, todos os representantes das corporações de classe, in tegrados assim no organismo político do Estado. ^^^

Era expressada aqui, com clareza, uma tendência corporativista calcada evidentemente no modelo italiano. Sua utilização dentro do contexto brasileiro tinha uma significação bem precisa: solucionar a cri se econômica brasileira, atendendo a perspectiva de diversificação da economia; mediatizar a relação entre as classes sociais e o Estado por mecanismos que não os partidos regionais das velhas oligarquias; pro porcionar uma forma de controle do Estado sobre as classes produtoras, desarticulando-as enquanto possibilidade de se constituírem em força política. Da parte das classes dominantes, impedia-se com isso o ressur gimento do "Estado oligárquico"; da parte das classes dominadas, eliminava-se o potencial da luta de classes. Em última análise, limitava-se a 121 Mensagem presidencial de 1928, p. 8-9. 122Vargas, Getúlio. A novapolítica do Brasil Rio de Janeiro, Ed. JoséOlímpio, 1944. p. 244.

123 Silva, José Pereira da. Os melhores discursos de Getúlio Vargas. Rio de Ja neiro, Galvino Filho Editora, 1934. p. 73. 107

autonomia das classes, cerceando-se a sua capacidade de atuar a nível

político. Resguardava-se, contudo, como já fora explicitado, a preserva ção de predominância da burguesia nacional em seus vários setores, atre-

lando-se ao mecanismo estatal como fonte de recepção de favores e pro teção.

A nível de percepção que a classe dominante no Rio Grande tinha desse processo, esboçava-se uma diferença entre o cooperativismo e os sindicatos. Tinha-se como norma que as cooperativas de produção dis pensavam o capital por princípio, uma vez que ele brotaria fatalmente

da cooperação. A cooperativa tinha como fim congregar interesses indi viduais, a fim de realizar o interesse coletivo. No caso, a cooperativa de produção era a mais correta para ser praticadapelosestancieiros, já de tentores de um certo capital. Teoricamente, ela não pressupunha a con centração de capital, nem visava à realização da capitalização, mas sim a racionalização da produção e da comercialização mediante a conjuga ção de esforços individuais. Caso diferente dava-se com relação às co operativas de crédito, ideais para os pequenos proprietários, pois, neste caso, o que se visava era a integralização de um capital necessário para o incentivo da produção.

Pelo Decreto n? 22.239, de 19 de dezembro de 1932, o Governo

Provisório revogou a Lei n? 1.637, de 5 de janeiro de 1907, que regula va o funcionamento dos sindicatos profissionais e sociedades cooperati vas, por já não corresponderem às exigências do movimento. Estabele ceu-se que as sociedades cooperativas seriam de pessoas (sete ou mais)

e não de capitais. Seria limitado o número de quotas partes de capital social que cada sócio poderia deter. Os lucros seriam distribuídos pro porcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo associado com a sociedade. As cooperativas deveriam adotar obrigatoriamente estatu tos que apresentassem normas para o seu regulamento.^ Um grande problema que as cooperativas experimentavam até en tão era que a instituição pertencia a seus sócios e não à diretoria que a

administrava. A cooperativa, assim, desvirtuava-se do seu sentido precípuo e os seusmembros desinteressavam-se da organização. Complementando estas medidas, o Governo Provisório, pelo De

creto-lei n? 23.338, de 11 de janeiro de 1933, criou a Diretoria do Sin dicalismo Cooperativista, à qual se atribuiu o desenvolvimento da cam panha pelo associativismo no terreno econômico. Em 30 de dezembro

de 1933, saiu o Decreto-lei n? 23.611, que estabeleceu que as classes produtoras deveriam organizar-se sob a forma de consórcios profissio nais cooperativos, dando origem às cooperativas de produção, consu124 Sul-Coop (cooperativismo). Secretaria dos Negócios da Economia. Porto Ale gre, jan. fev. 1963, ano 16, "(78): 2.

108

mo e crédito, com o objetivo de defender os interesses dos associados. Com relação aos Sindicatos, atribuía-se-lhes uma significação po lítica, atuando junto aos poderes govemamentais como representantes de classes e profissões que eram. Referia a este respeito o '^Correio do Povo", apontando o cami nho a ser seguido pelo Rio Grande do Sul: Cooperativas têmchlas jà em número suficiente para pro var a sua eficácia econômica, social e moral; mas sobre os gru pos econômicos que se delimitam pelas regiões, convém esten der o manto protetor do grande grupo de fins políticos, que se

delimita pela profissão e este, se quiserdes, sob o grupo maior de classe que se delimita pela condição social Para que o qua dro fosse completo, criaríamos pelas regiões do Estado coope rativas de acordo com as necessidades econômicas de cada re

gião; sobre as cooperativas um sindicato de cada profissão, com direito à representação política que vale pelos interesses dessas profissões e sobre cada uma destas um sindicato de ca da uma das duas classes existentes, também com representa

ções que valem pelos interesses respectivos do capital e do tra balho. Com a representação política nos acenou o Governo Provisório, em largo descortino, realizando com esse ato a mais profunda revoluçãoporquepassouoBrasilaté hoje{...

É clara, no caso, a identificação da realidade regional com as me tas do governo central.

Cabe, neste momento, analisar como este processo de desenvolveu no Rio Grande do Sul, no setor da pecuária, ainda em crise, avaliando a atuação da classe dominante em seus órgãos de classe e em seu relacio namento com o poder local.

No que diz respeito ao valor da exportação, o charque conservava-se em primeiro lugar no Estado, com 75.217 : 214S 000 em 1933, segui do pela banha, com o valor de 51.284 : 558SOOO, e em terceiro pelo ar

roz, com o valor de 44.982 : 1985000. Já quanto à tonelagem exporta da, o charque era suplantado pelo arroz, com 79.262 toneladas, ficando no segundo lugar com 40.875 toneladas e cabendo o terceiro lugar à ba nha, com 35.683 toneladas.^

Tal colocação leva a fazer crer que o charque tinha um elevado va lor para a sua produção. Comparando, contudo, a sua trajetória quanto á exportação, verifica-se que, enquanto a tonelagem aumentava, o seu valor decaiu nos anos de 1930 a 1934. Em suma, para uma expor tação de 35.695 toneladas em 1930, com valor de 80.273:4725000, o charque passou a exportar 54.954 toneladas em 1934, num valor de 69.519:5735000.

í25 Cooperativismo e sindicalizaçào. Correio doPovo, Porto Alegre, 28jul. 1933.

U

Relatório da Secretaria da Fazenda. 1934. p. 28. 109

o preço do quilo do charque continuava a declinar nos mercados do centro e norte do país. Comparativamente, por exemplo, ao ano de 1929, quando o quilo do produto atingia $2,30, o charque correspon dia, nos anos de 1933 e 1934, ao preço de $1,50 e 1,30 o quilo, respec tivamente.^^"^

A exportação dava-se regulamentada pela ação do Sindicato dos

Charqueadores, que, contudo, não conseguia estabilizar o preço do pro duto nos mercados centrais. Acusações continuavam a pesar sobre o Sindicato, tais como a de dificultar o escoamento da produção e o de ter incentivado a expansão de charqueadas em outras unidades da fe deração.

Defendendo a atuação do Sindicato, o superintendente interino,

João de Souza Mascarenhas, em entrevista ao "Correio do Povo", argu mentava que a primeira acusação não tinha procedência, porque ora a exportação se fazia livre, ora era regulamentada pelo Sindicato, tal co mo se dera no ano de 1932. Acrescentava Mascarenhas:

Se no período de exportação regularizada os embarques foram maiores do que durante o tempo em que a exportação era livre, ninguém, com isenção de ânimo, pode afirmar que a regularização haja cooperado para tolher o escoamento da nos sa produção de charque. O baixo nível de preços nos mercados consumidores é que produz o retraimento da exportação. ^^®

Quanto à segunda acusação, Mascarenhas rebatia dizendo que a

entrada dos produtores nacionais no mercado do charque era um fenô meno que se dava desde há muito, antes da formação do Sindicato.

Quanto à grande elevação do preço do charque obtida em 1929, Masca renhas argumentava com a retração do fornecimento, neste ano, dos es

tados centrais e a seca que nãopermitiu matanças elevadas. Apesar da defesa feita pelo superintendente, as acusações contra o Sindicato se avolumavam. No congresso regional dos criadores realiza do em Bagé, os estancieiros acusavam o Sindicato de ser monopolista e que o governo, ao ampará-lo, "construíra um dique para estagnar parte

das águas damaré crescente neste momento de baixa geral".^ Defendendo a atuação do Sindicato, Balbino de Souza Mascare

nhas, em palestra proferida na XV Exposição-Feira da Sociedade Agrí cola de Pelotas, realizada a 11 de novembro de 1933, acusava os criado

res de inércia, vivendo longo tempo sem preocupação com a segurança Í27 Silva &Guerra, op. cit., nota 2,p. 9.

Í28a situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 jan. 1933. p. 3.

129 Asituação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 mar.

1933. p. 18.

110

dos lucros. As acusações que surgiam davam-se em torno da crítica à ação dos frigoríficos ou dos charqueadores. Contudo, segundo Balbino Mascarenhas,

Condenar a indústria saladeiril por ser a mais velha e a mais rotineira, condenar uma indústria que foi durante mui tas décadas o estímulo e a salvação da nossa pecuária, condenar uma indústria que ainda é o maior escoadouro dos nossos ga

dos, é o mais acabado dos contra-sensos [. . . ] parece que os seus detratores [... ] guardam na retina aquelas charqueadas, como infelizmente ainda os há em nosso Estado, aquelas char queadas que podem servir de modelos de falta de higiene e que, antes de as avistarmos, já o nosso olfato sente a sua proxi midade. Existem, porém, e são a maioria, estabelecimentos

saladeiris compatíveis com quaisquer outras fábricas em que se produzem gêneros de primeira necessidade. Se as infectas ainda funcionam, a culpa não cabe à indústria, mas a quem tem o de

verde zelarpela saúdepública e não o faz. ^ Continuando a sua defesa do produto, Balbino Mascarenhas^ afirmava que, se o charque não duraria eternamente, pelo menos se re velava improvável o seu desaparecimento próximo, como há tanto tem po se vaticinava. O charque, além disso, ainda era a forma mais econô mica de industrialização da came.

Configurava-se, pois, mais uma vez, o choque de interesses entre os criadores e os charqueadores em torno de uma única forma de trans formação da came de capital nacional existente no Estado. Os próprios charqueadores, embora buscassem defender o seu Sin dicato e encontrassem respaldo no governo do Estado, encontravam ra

zões de preocupação no que diz respeito às vendas de seu artigo. Em junho de 1934, Francisco Flores da Cunha, então presidente do Sindi cato, informou de Livramento que o "saladero" uruguaio '*Casa Blanca" iniciara matanças de 7.000 cabeçaspara enviarao Brasil, segundoo convênio Brasil-Uruguai acertado entre os dois países. O referido con vênio estabeleceu a entrada de 2.000 toneladas de charque uruguaio, distribuídos em cotas anuais, pelo prazo de três anos, a partir de 25 de

agosto de 1933.^^^ Quanto à baixa do preço do artigo nos mercados do norte, a no va queda ocorrida no ano de 1934 motivou uma reunião do Sindicato.

Na opinião dos charqueadores, a baixado preço, que se dera em função

130 Mascarenhas, Balbino. Palestra proferida na XV Exposiçâo-Feira da Sociedade Agrícola de Pelotas. 11 nov. 1933.Sindicato dosCharqueadores. Filho de João de Souza Mascarenhas, pai e filho eram proprietários de uma das maiores casas charqueadoras do Estado.

A situação dos charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 27 jun. 1934. P. 7.

111

da grande produção e da concorrência de outros estados, levaria a que os saladeiristas não mais pudessem pagar pelos gados os preços que vinham mantendo — de 150$000 a 2505000 —, implicando uma que da de 505000 por cabeça. Da mesma forma, providências foram tomadas em 1934 para que se restringissem as matanças, e foi tomada a resolução para ser criado um departamento comercial anexo ao Sindicato, com o objetivo de

criar entrepostos nos mercados de consumo.^ Com tais medidas, o Sindicato contribuía para agravar as relações entre estancieiros e saladeiristas. No tocante à ação do poder público, o Sindicato sempre contou, desde o início, com o apoio do governo do Estado, que não só mantinha estreito contato com a diretoria como

dela constava o próprio irmão do interventor federal, "Chico" Flores. A orientação do governo junto ao Sindicato prendia-se à perspec tiva de manter a ligação da economia gaúcha com o mercado nacional.

Coadunava-se com a postura dos elementos saladeiristas que defendiam a estrutura produtora montada.

Paradoxalmente a esta situação evidenciada de baixa do preço do charque nos mercados do centro e norte do país e de incapacidade das charqueadas continuarem a pagar os mesmos preços pelo gado, o ano de 1933 assistiu a uma revivência do abate paracharque no Estado e de melhoria interna dos preços alcançados pelo rebanho. O jornal "O Im parcial", de São Gabriel, assinalava, para a safra de 1933,uma oscilação no preço do gado invemado e no da arroba do charque em Rio Gran

de?

O relatório do interventor, em 1935, acusou uma elevação no

abate no Estado para o ano de 1933: 953.299 cabeças contra 902.484 em 1932. Igualmente a produção pecuária, que vinha experimentando

um decréscimo desde 1930, sofreu uma recuperação em 1933:* ^^ Safra Safra Safra Safra

de de de de

1930 - 115.566:9155000 1931 - 102.850:0165000 1932 - 98.787:6675000 1933 - 122.340:0005000

A recuperação do abate, do preço do gado e do próprio charque no porto de Rio Grande não se fez acompanhar da melhoria do preço

do charque nos mercados centrais. Isto evidencia o esquema de depen dência da economia sulina, expresso através de um de seus setores, asA importante reunião de amanliâ no Sindicato dosChaiqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 1? abr. 1934. p. 18. A Reunião de ontem do Sindicato dos

Charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 3 abr. 1934. p. 11.

i ^ OImparcial, São Gabriel, 10 mar. 1933. Apud Ribeiro, Luís Dario Teixeira.

Modernização e concentração de capitalna economia pecuária gaúcha - o caso da Cooperativa Rural Gahrielense. Porto Alegre, UFRGS, 1978. p. 53. (xerografado) Relatório. . ., op. cit., nota 9, p. 88-9. 112

sim como as reduzidas chances do Rio Grande do Sul controlar o pre

ço de seus artigos no mercado nacional, apesar da realizaçâ^o de um es forço interno neste sentido, dispendido pelos criadores e charqueadores. Aliás, esta alteraçâ:o interna do Rio Grande, no tocante à matança e ele vação de preços, deveu-se menos ao Sindicato dos Charqueadores e mais à entrada dos criadores na atividade saladeiril, na prática de uma medida já aventada anteriormente na época da República Velha —a da consti tuição de charqueadas cooperativas em âmbito regional. Competindo com as velhas charqueadas e os frigoríficos no mercado de gado, a nova entidade ofereceu ao estancieiro uma saída altemativa para o escoamen to do rebanho.

Exortando à união da classe rural, o charqueador Balbino Mascarenhas referia em 1933:

Em vez de dmdirmo-nos em facções, unamo-nos, congreguemo-nos, porque, com frigoríficos ou charqueadas, ou expor tação de gado em pé, todos nos dirigimos para a mesma meta, todos buscamos o desafogo e a defesa da pecuária, e a questão é dar saída aos nossos gados, sem importar a forma, desde que

seja lucrativa, [. . . ] Mesmo tendo em vista os frigoríficos na cionais, não nos deixemos ofuscar pela sua miragem e organizemo-nos em charqueadas cooperativas. Colhendo os benefícios da união, mais fáceis nos serão depois os empreendimentos de grande monta,^^^

A idéia de montagem de "charqueadas regionais" pelos criadores para abaterem e beneficiarem eles próprios seus gados já havia sido aventada em 1914 pelo então pecuarista João Mascarenhas, pai do char queador Balbino Mascarenhas, que agora se levantava na defesa da mes ma idéia. João Mascarenhas, que depois se tomaria dono de grande

charqueada e figura de destaque com atuação na diretoria do Sindicato, era na época apenas criador, identificado com os interesses dos fazendei

ros e denunciador das manobras levadas a efeito pelos saladeiristas. A proposta de 1914 pretendia a criação de charqueadas regionais, molda das nas packinghouses de Chicago, que visavam obter o salgamento da carne em câmaras frias, além do cozimento e enlatamento da carne que

não se prestasse para a fabricação de charque e aproveitamento maior dos subprodutos (velas, sabão, sabonete,manteiga, couros, etc.). Pressu punha-se, ainda, a criação de um fundo de reserva para formar um capi

tal a fim de constituirum frigorífico no sul do Estado.^ A proposta, ressurgindo em 1933, apontava o exemplo das char136 Mascarenhas, Balbino, op. cit.

1^^Mascarenhas, João. O Centro dei Tasajo e os criadores. A Estância. Porto Alegre, março 1914: 23.

113

queadas de criadores de Bagé e Livramento, onde os estancieiros haviam se unido para manufaturarem a carne. Referia Balbino Mascarenhas: Cada uma dessas cooperativas poderia constituir um fundo especial destinado à construção do frigorífico e esses fundos seriam anualmente arrecadados pela Federação Rural Dessa forma, os criadores, ao contribuírem para o frigorífico,

já estariam auferindo as vantagens de se terem associado} Dentro do contexto da crise pecuária no final do período discri cionário, distinguia-se, ao nível das posturas assumidas pela classe do

minante, mais de uma diretriz: uma era a posiçáo dos charqueadores, que se identificavam com a atividade saladeiril e endossavam a açffo do Sindicato a que estavam filiados; para parte deste setor, a saída mais correta para os criadores seria adotarem a charqueada como forma de beneficiamento da carne, colocando o frigorífico como uma saída a posteriori

Outra era a posiçâ:o dos criadores que assumiram esta alternativa da formação de charqueadas cooperativas para beneficiarem seus gados

e eliminarem, ao mesmo tempo, a figura do charqueador como interme diário. Esta solução foi adotada em parte pela orientação cooperativista pregada pelo governo central no pós-30 e incentivada pelo poder regio

nal, e em parte como reação dos estancieiros ante a pressão exercida pelos frigoríficos e charqueadores. Seria, é possível dizer, uma das for mas pelas quais se exteriorizava o conflito de interesses entre charquea dores e criadores. Esta alternativa assumida postergava a constituição de frigoríficos para uma etapa maisalém. A última saída para a crise da pecuária seria a daquele grupo de criadores que objetivava a montagem imediata de um frigorífico para a transformação da carne. Não se pretende retomar aqui as saídas pa ra a crise, que buscam o caminho da agricultura capitalista do arroz. De qualquer forma, as três propostas, no conjunto, visavam à manutenção da articulação básica da economia sulina com o mercado interno brasileiro. Encontravam, pois, respaldo na orientação política do PRL, hegemônico no estado. No que diz respeito às cooperativas de criadores para beneficia

mento da came sob a forma de charque, eram,apontados como exem plo, na época, as de Livramento, Bagé e Alegrete. Em Bagé, foi constituída em 1932 a Sociedade de Fazendeiros

Ltda. Surgiu, no dizer de Fortunato Fimentel,

[. . . ] num momento difícil para a pecuária rio-grandense, de uma reunião de fazendeiros com o fim de melhor apro veitamento de seus gados e abaterem por conta própria, visan138Mascarenhas, Balbino, op. cit. 114

do o máximo lucro, colocando diretamente os seus produtos nos mercados consumidores e evitando o mais possível a in

terferência de intermediários. ^ Tendo iniciado suas matanças na charqueada Santo Antônio, logo arrendou a Charqueada Industrial, de propriedade do Tesou ro do Estado. Iniciou suas atividades com 10 membros e capital de 10:000$000, abatendo 8.519 reses. No ano de 1934, a Sociedade já contava com 56 membros, capital de 1.000í)00$000 e abate de 41.401 reses.

Arrendando uma charqueada paralisada, os criadores articularam-se numa cooperativa de produção, eliminando o intermediário e poden

do pagar assim melhores preços pelo gado. Na safra de 1933, enquanto os charqueadores ofereciam 1855000 pelo boi, a Sociedade dos Fazen deiros estava pagando, em média, 270$000.^ Em março de 1933, por intermédio da FARSUL, as associações

rurais do sul do estado, realizando um Congresso de Criadores em Bagé, solicitaram que a Sociedade de Fazendeiros Ltda. ficasse isenta de im

postos municipais e estaduais. A isenção era solicitada em virtude da natureza "não comercial da sociedade", que tinha por fim "a defesa da produção", sendo um "estabelecimento propriamente de emergência, como um meio de atenuar a crise" que afetava a pecuária.^ ^ ^ A Socie dade dos Fazendeiros era apontada pelos criadores como exemplo de cooperativa de produção, cuja medida do sucessoera dada pelo aumento crescente do capital da empresa e pelaobtençãode melhores preços pa gos pelo gado. Segundo dados do jornal "O Imparcial", de São Ga briel, o preço que a Sociedade estava pagando pelo novilho na safra de 1933 (276$000) era superior mesmo àquele oferecido pelo frigorífico, que pagava menos de 210$000.^ O apelo do Congresso de Criadores de Bagé revestia-se de particu lar importância, uma vez que reuniu em assembléia representantes de Alegrete, Arroio Grande, Bagé, Caçapava, DomPedrito, Herval, Pelotas, Pinheiro Machado, Piratini, Rosário e São Gabriel, responsáveis por 35%

dorebanho gaúcho.^ Em 1934, a Sociedade dos Fazendeiros já aparecia como uma das maiores entidades exportadoras de charque do estado, com uma soma

de 32.043 fardos de charque,^

superado pela Swift, com 79.609 far-

139 Pimentel, op. cit., nota 2, p. 94.

140 O Imparcial, SãoGabriel, 10 mar. 1933. Apud Ribeiro, op. cit, nota 134. 141 A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1933. p. 9.

142o Imparcial,São Gabriel, jun. 1933. Apud Ribeiro, op. cit, nota 134. p. 55. 143 cfe. Ribeiro, op. cit, nota 134, p. 54. 144 Um fardo de charque = 100 kg (aproximadamente umarês gorda). (Instituto

Sul-Rio-Grandense de Carnes).

115

dos, e pela Armour, com 50.439 fardos. Fora esta entidade surgida em Bagé, constituiu-se a S.A. Coopera tiva Santanense, na cidade de Santana do Livramento. De 1931 a 1933, abateu na charqueada "São Paulo". Em 1934, figurava entre os grandes

exportadores de charque do Estado, comum total de 16.719 fardos.^ Em 21 de março de 1933, foi fundada em Alegrete uma coopera tiva —a Alegretense de Games Ltda. —, com o fim de realizar a produ ção da came dos municípios de Alegrete, São Francisco de Assis, Itaqui, Quaraí e Uruguaiana. Constituída inicialmente por 50 sócios, que aba tiam na charqueada "São Miguel", em Alegrete, a Cooperativa exportou, no ano de 1933, 15.181 fardos de charque. Tendo abatido neste ano

8.286 vacuns, passou, no ano seguinte, para uma matança de 14.194 animais.

Como coroamento desta alternativa cooperativista dos criadores que optaram por charquear os gados, descartando os "industriais saladeiristas" do processo econômico, foi criado, em 14 de setembro de 1933, em São Gabriel, a Sociedade Saladeiril Gabrielense Ltda. Com os

objetivos de defesa da classe, estandartização do produto, melhoramen to da embalagem e apresentação desta, a Sociedade começou a operar neste mesmo ano.

Em 1933, abateu 2.199 cabeças e, em 1934, 5.950 animais, tendo arrendado a charqueada São Gabriel.^ Em 1934, a Associação Rural de São Gabriel,então sob a direção de Egydio Brenner e Adel Bento Pereira, criou o Consórcio Profissional

Cooperativo dos Agropecuários de São Gabriel, ao qual seseguiu a fun dação da Cooperativa Rural Gabrielense Ltda. Fundada em 20 de janeiro de 1935, pela incorporação dos mem

bros da Associação Rural de São Gabriel e daCooperativa Rizícola,^^^ a nova entidade se dispunha a charquear os gados provenientes de São Gabriel e dos distritos limítrofes com os municípios de Santa Maria, São Vicente, General Vargas, São Sepé, Lavras, Dom Pedrito e Rosário. Iniciando a abater em 1935, ao arrendar uma charqueada em Aze vedo Sodré, a Cooperativa Rural Gabrielense apresentou uma matança de 10.126 cabeças, ficando em quarto lugar no abate do município. Pa ra o ano de 1934, já se apresentaria em segundolugar no abate. A So ciedade Saladeiril abateu pela última vez (1934) com uma matança de 6.774 cabeças, ficando, portanto, abaixo da nova entidade que sur gia escorada em capitais oriundos da agropecuária.

1"^^ Sindicato dos Charqueadores. Exportação do charque. Ano de 1934. Insti tuto Sul-Rio-Grandense de Carnes.

1^6 Pimentel, op.cit, nota 2,p. 100. 147 O Imparcial, São Gabriel, 25 jan. 1935. Apud Ribeiro, op. cit., nota 134, p. 59.

116

Na opinião de L.D. Ribeiro, propiciou-se a concentraçâfo de capi

tal do setor p^ário, constituindo-se a cooperativa num instrumento de modernização e empresarialização da indústria da carne. Uma vez realizada a concentração de capital, a Cooperativa comprou a charqueada Vacacaí, que, com a crise de 1929, passara a pertencer ao Banco do Rio Grande, além de adquirir um engenho de arroz.Realizava, assim, uma modernização da economia regional, que correspondia ao projeto monopolizador e progressista dos criadores locais. Pelos esta tutos da Cooperativa, previa-se o estabelecimento de charqueadas, matadouros, fábricas e engenhos para beneficiamento da produção; centralização da venda dos produtos dos cooperativados; melhoria e padronização da produção; promoção, em conjunto com o Consórcio Profissional Cooperativo Agropecuário de São Gabriel, "I) à propaga

ção do desenvolvimento da cultura dos campos e criação de colônias no território dos municípios, ü) à criação de patronatos para formação de operários aptos ao desempenho das funções agropecuárias Evidencia-se uma preocupação modemizadora, que atingia não só a diversificação da produção, como a preocupação com a mão-de-obra em termos de especialização. Embora a Cooperativa Rural Gabrielense tenha sido, dentro dos moldes da República Nova, aquele exem plo mais acabado e desenvolvido do cooperativismo dos pecuaristas, a saída da crise ainda implicava, neste momento, a manutenção de um esquema tradicional de industrializar a carne, sem maior alteração no processo produtivo. Mesmo incorporando componentes inovadores, como os acima citados, continuava o Rio Grande pecuário a produzir um artigo de baixa qualidade, sem realizar o aproveitamento integral do boi e destinando-se a um mercado altamente competitivo. Ao lado destas cooperativas de pecuaristas, outras entidades simi lares, atendendo à produção da lavoura e da agropecuária colonial, disseminavam-se pelo estado durante a nova República.

Foram fundadas a Sociedade Cooperativa de LaticíniosPelotense, em 23 de janeiro de 1932,e a Cooperativa Sul Rio-Grandense de Banha Ltda., em 13 de maio de 1933, em Cruz Alta, além de outras vitivinícolas, madeireiras, ceboleiras, de fumo, etc.

Com relação a este surto, referia o pecuarista e comentarista de assuntos rurais Dario Brossard:

Embora já tenhamos várias cooperativas no Estado, al gumas em franco progresso, correspondendo perfeitamente à finalidade que têm, embora a marcha do movimento cooperativista tenha tomado um surto animador nestes últimos anos -

148Rjbeiro, op. cit., nota 134, p. 60-6. 1"^apimentei, op. cit, nota 2, p. 268. 117

sabemos das dificuldades encontradas na formação das nossas cooperativas, principalmente pela falta de conhecimento dos seus nobres objetivos [. . . ] Produzir melhor e mais barato;

eliminar a especulação; sanear o comércio; dignificar o braço trabalhador; resolver, dentro dos princípios econômicos e da moral, a luta do capital e do trabalho; ligar produtores e con sumidores, operários e patrões nos mesmos laços de solidarie dade —tais são algumas finalidades do cooperativismo, **movi-

mento que vaiimpregnado de moraV\ ^^® Sem necessariamente se achar filiado ao PRL, o autor fazia uma

identificação do problema que se ajustava ao caso da corrente govemista, em apoio ao poder central: incentivo à produção, harmonizar a re

lação capital/trabalho. Em outras palavras, tratava-se de garantir a si tuação de predominância da classe quecontrolava o processo produtivo. Com relação à última das medidas levadas a efeito pelos pecuaris tas—a busca da saída para o frio —ela também se encaixava dentro da perspectiva cooperativista, pois se ligava à Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes, constituída em 1931.

A frigorificação da carne continuava a preocupar o governo do Estado, assim como o Govemo Provisório, que, em 29 de junho de 1932, havia baixado um decreto concedendo a redução de 30% sobre os direitos de importação devidos à maquinaria destinada à indústria do

frio, uma vez importada pelas associações de classe constituída por criadores, invernadores ou outros proprietários rurais que objetivassem o desenvolvimento da indústria e comércio de produtos derivados da came.^

Neste sentido, o decreto federal vinha ao encontro das necessida

des de importação de tecnologia, colaborando com propostas renovado ras da estrutura econômica dapecuária, desde que propostas pelas asso ciações de classe.

Preocupado com a problemática da frigorificação de cames, o govemo do Estado enviou o Dr. Mário de Oliveira, diretor do Serviço de Indústria Animal da Diretoria de Agricultura, Indústria e Comércio do Estado, como representante do Rio Grande do Sul e, ao mesmo

tempo, delegado do Governo Provisório ao VI Congresso Internacional do Frio em Buenos Aires. Dentre os problemas tratados e queo repre sentante trouxe ao Rio Grande do Sul para estudo, esteve o do novo

processo denominado quick-freezing, ou da congelação rápida. No VI Congresso Rural realizado em Porto Alegre, em julho de 1932, a tese apresentada por Franklin de Almeida enfatizou a necessi-

l^Ogrossard, Dario. Cooperativismo. Correio do Povo, Porto Alegre, 4 ago. 1933. p. 8.

151aIndústria dacarne. Correio doPovo, Porto Alegre, 20 jul. 1932. p. 8. 118

dade de conquistar os mercados nacionais, uma vez que, no internacio

nal,havia a competição dasfirmas estrangeiras.^ ^^ O mercado intemo brasileiro, contudo, já estava começando a ser abastecido pelas carnes resfriadas, mandadas pelo Rio Grande pelas em presas estrangeiras aqui estabelecidas, conforme noticiava o "Correio do Povo" em outubro de 1932.*

A preocupação com o fornecimento ao mercado intemacioiuil e as possibilidades de ingresso do Brasil neste setor foram objeto da preo cupação do rundista Fortunato Pimentel no mesmo Congresso Rural.

Pimentel acentuou a importância da exportação de carnes congeladas brasileiras para a França. Neste sentido, a zona da serra, possuidora do gado francês (cbarolês e normando), era a região mais indicada para o

abastecimento daquele país, atendendo ao gosto do consumo local.* Em termos àe abastecimento do mercado internacional, contudo, uma quesfâo passou a preocupar o Rio Grande do Sul nos fins do ano

de 1932: a celebração da Conferência de Otawa determinou que os fri goríficos do Brasil seriam orientados para a produção de conservas (corned beef), enquanto que os da Argentina e do Uruguai fomeceriam as carnes congeladas (frozen) e resfriadas (chüled). Colocava-se em pau ta, portanto, a "fatia" de mercado que restaria ao Rio Grande, quando da efetivação da indústria frigorífica com recursos locais. Dentro deste contexto, processavam-se as reuniões da Cooperati

va Sul-Rio-Grandense de Carnes,mas diversos problemasse antepunham ao andamento dos trabalhos: a Revolução de 1932 havia conturbado a situação do Estado: o presidente da Cooperativa, Marcial Terra, incompatibilizado com o governo gaúcho, achava-se no exílio. No que diz respeito à taxa de cooperaçãoe imposto sobre o gado a ser cobrado pelas municipalidades, referia Marcial Tena, em carta , que haviam sido regularizados por decreto desde dezembro de 1931, mas faltava acertar

[. . . 1 a situação jurídica da Cooperativa em face do auxttio, isto é, a assinatura de um contrato em virtude do qual, de um lado, o governo do Estado se comprometessea entregar

a importância arrecadada à Cooperativa, e do outro lado,a Co operativa se obrigava a aplicar aquela importânciapela forma que no tal documento ficasse explicitada. Da redação desse

contmto foi incumbido, mediante prévio assentimento do ge^ neral Flores da Cunha, o eminente advogado Joaquim Maurí cio Cardoso, em maio de 1932. *®®

i52correiodo Povo, PortoAlegre, 6 ago. 1932. p. 5. 153correio doPovo, Porto Alegre, 5 out 1932. p. 7. 154correio doPovo, Porto Alegre, 27ago. 1932. p. 7-10. 155A situação da pecuária rio-grandense. Correio do Povo, Porto Alegre, 24fev. 1933. p. 8.

119

Interpelado o governo pelos criadores a respeito dos problemas,

Flores da Cunha reafirmou a sua intençâ:o de construir frigoríficos na cionais, "medida essa que se impunha como única solução à crise da pe cuária rio-grandense" e que

[. . . ] não só os dinheiros arrecadados de taxa para o fundo de capital se fazia cada vez com mais rigor, como também estava pronto a entregá-lo para consecução do ob jetivo uma vez legalizada a situação entre a Cooperativa e o governo do Estado. ^^^

A questão da locahzação dos frigoríficos a serem montados pela Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes fora ultimada em 26 de feve

reiro de 1932. A comissão,composta por Aymoré Drumond de Macedo

e Mário de Oliveira, representantes do governo do Estado, e B. Marchais, pela Cooperativa, havia optado pela construção de três matadouros-frigoríficos, em Guaíba, Alegrete e Tupanciretã (ou Cruz Alta). Colocava ainda que não devia serde todo afastada a hipótese dacolocação de um frigorífico emSão Sebastião (Oom Pedrito). Em Rio Grande e Porto Alegre, seriam construídos entrepostos-frigoríficos para depósito de produtosvindos do interior do Estado.^ ^ O VII Congresso Rural, realizado em julho deste ano, trouxe os problemas da Cooperativa para a pauta das discussões. Félix Contreiras

Rodrigues, em trabalho apresentado no Congresso, afirmava que a Co operativa de Carnes não passava de uma ilusão, criando arrecadação de impostos numaépocacarente de capitais.^ ^^ A crítica à arrecadação, paga por todos os ruralistas indistintamen

te (criadores, charqueadores ou invemadores), fazia-se sentir também na voz de Balbino Mascarenhas:

Fundada há mais de dois anos (a Cooperativa) e elabora da em um concilio de que fazia parte o escol dos conhecedores e estudiosos da matéria [. . .] só lhe sentimos os efeitos quando vamos pagar qualquer imposto. Se dela dependesse a

salvação da nossa pecuária no transe que se estavapadecendo, desnecessário é dizer qual teria sido o desenlace [. . . ] Tão fracos eram os alicerces, tão pouco amadurecida estava a idéia

na classe pastoril, para uma construção eminentemente cen tralizadora, que o seu capital está sendo realizado por meio de um imposto. Um impostol Imposto, o próprio nome está dizendo, é meramente um produto da coação governamental. E, assim, essa sociedade terá acionistas entusiastas e acionistas

"úf muque". Bem sei, meus senhores, que a essaarrecadação se deu o nome de taxa, mas, se não é imposto, é taxa imposta. E l^^Ibidem.

157 a localização de frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 12 jul. 1933. p. 10.

^58cooperativismo e sindicalização. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 jul. 1933. p. 3.

120

uma imposição, tenha o rótulo que tiver, é sempre uma impo

sição. ^ A crítica, naturalmente, era facilitada na medida em que o indi

víduo acusador se posicionasse em facçao política oposta à orientadora do PRL ou que pertencesse à fração de classe dos charqueadores não identificados com o processo de renovação pelo frio. Permanecia, contudo, como dado fundamental, a carência de ca pitais entre os criadores e as suas reivindicações junto ao governo para eliminação de impostos, temas estes intensamente discutidos durante o VII Congresso Rural. A tese apresentada por Ernani Frota trazia à luz as queixas dos fazendeiros contra o imposto de renda. Até 1932, vigorava um decreto mediante o qual não estavam incluídos os campos de pastagens. To davia, em 20 de junho de 1932, o Governo Provisório baixou o Decreto n9 21.554, determinando que entrasse no cômputo do imposto também o valor dos campos de pastagens. Os estancieiros solicitavam ao inter ventor federal no Estado que pleiteasse junto ao Governo Provisório a solicitação de que o pagamento do imposto se desse sobre a renda auferida e não sobre o capital. Por outro lado, a Sociedade Agrícola Pastoril de Uruguaiana solicitava redução do imposto territorial em 30% e que o prazo de pagamento do mesmo fosse prorrogado até 30 de novembro, fim da safra das lãs. Além disso, requeria-se que os pagamentos em atraso pudessem ser pagos por quotas e isentos de multas. Com relação aos cabanheiros, requeriam-se concessões especiais, tais como a isenção por três anos do pagamento do imposto territorial e a isenção de todos os impostos municipais que incidissem sobre seu negócio; sua dívida ativa, quanto ao imposto territorial, seria paga por quotas anuais, sem multa. Como justificativa, a Sociedade Agrícola Pastoril de Uruguaiana

apresentava o seguinte quadro^

que evidenciava a desvalorização da

pecuária no município: DEMONSTRATIVO DA DESVALORIZAÇÃO DOS GADOS Espécies Touros Novilhos

Gado vacum de cria

Carneiros reprodutores Capões Ovelhas de cria

Valor em 1928

1:000$ 280$ 150$ 300$ 35$ 30$

Valorem 1933

Desvalorização (%)

600$ 130$ 60$ 150$ 20$ 12$

40 55

60

50

40 60

159Mascarenhas, Balbino, op. cit. l^OOs Trabalhos do 7? Congresso Rural. Correio do Povo, Porto Alegre, 15 jul. 1933. p. 8. 121

DEMONSTRATIVO DA DEPRECIAÇÃO DOS PRODUTOS DOGADO Preço por quilo

Espécies Carne de vaca - açougue Couros vacuns secos

Charque Lã Sebo

1928

1933

Depreciação (%)

1$200 5$500 2$800 6$000 1$400

$600 2$500 1$500 3$000 $900

50 60 50 50 35

DEMONSTRATIVO DA DESVALORIZAÇÃO DOSCAMPOS Valores por quadra de sesmaria

Classificação Campos superiores

Campos médios Campos inferiores

1928

1933

Desvalorização (%)

20:000$ 14:000$ 11:000$

14:000$ 11:000$ 8:000$

30 20 30

DEMONSTRATIVO DA BAIXA DOS ARRENDAMENTOS

Valores do arrendamento por quadra de sesmaria

Classifícação Campos superiores

Campos médios Campos inferiores

1928

1933

Baixa (%)

1:400$ 1:000$ 700$

800$ 600$ 350$

40

43

50

RENDIMENTO DOS ARRENDAMENTOS DOS CAMPOS EM 1928

Classifícação Campos superiores

Campos médios Campos inferiores

Valor da terra

por quadra 20:000$000 14:000$000 11:000$000

Valor do arrendamento

por quadra 1:400$000 1:000$000 700$000

Percentual de

rendimento

7,0

7,0 6,5

RENDIMENTO DO ARRENDAMENTO DOS CAMPOS EM 1933

Qassificação Campos superiores

Campos médios Campos inferiores

122

Valor da tena

por quadra 14:000$000 11:000$000 8:000$000

Valor do arrendamento

por quadra 800$000 600$000 350$000

Percentual de rendimento

6,0 5,5 4,5

Dos dados expostos, deduz-se que os gados foram desvalorizados, no período de 1928 a 1933, em 51%, osprodutos do gado em49%, os campos registraram em média uma queda de 27%, os arrendamentos uma baixa de 44% e os rendimentos dos arrendamentos sofreram uma

desvalorização de um terço, baixando de 7%para 5%. Quanto a este último tópico, revestia-se de singular importância

para o município de Uruguaiana, onde havia 1.400 proprietários locadores e 800 proprietários locatários. Referia o memorial de Uruguaiana: Se considerarmos que o imposto territorial absorve um

por cento do valor dos arrendamentos e que a conservação das benfeitorias requer o dispêndio de outro meio por cento sobre os mesmos, constatamos que o capital investido em campo dá o reduzido prêmio de 4%

não levando em conta o im

posto sobre a rendaf ^^ A ótica apresentada acima é, evidentemente, a do proprietário e não a do arrendatário. Não é uma ótica nitidamente capitalista, pois

esta, na realidade, não investe muito. O "reduzido prêmio de 4%" refe re-se ao rendimento do campo que se arrenda, e não do capital investido no campo.. .

Todavia, as colocações feitas e os dados apresentados evidenciam a vivência de uma situação crítica, justamente numa época em que aos

poucos se processava a melhoria do gado, das pastagens e demais ben feitorias (cercas, banheiros carrapaticidas). A situação pode parecer paradoxal, quando referida para o ano

de 1933, época em que jornais de São Gabriel noticiavam uma alta do preço do gado motivada pela ação da Sociedade de Fazendeiros de Bagé. Todavia, isto vem tornar claro que as cooperativas de produção dos estancieiros tinham ação restrita ao âmbito municipal, sem conse guir resolver a crise da pecuária como um todo.

No que tange à demanda por redução de impostos, a Sociedade Agro-Pastoril de Uruguaiana afirmava que há dois anos a classe pecuária vinha pedindo a sua diminuição. Todavia, "sua pretensão, conquanto legítima, tinha que ser adiada porque o ambiente político (dúvidas, res sentimentos) não propiciava a paz fraternal para a cooperação econô mica indispensável".^ O que na verdade se reclamava era que a paci ficação do Rio Grande fora feita, não havendo, pois, porque retardar mais as medidas que poderiam atenuar a crise da pecuária. No tocante aos impostos, o relatório do Secretário da Fazenda, em 1934, referia que, para o ano de 1933, haviam acusado diferença para menos as rendas provenientes das seguintes rubricas:* 161ibidem. 162ibidein.

163Relatório da Secretariada Fazenda de 1934. p. 2-3. 123

Diferença

Orçada

Arrecadada

10.000:000$000

7.794:854$000

2.205:145$000

11.000:000$000

10.978:205$466

21:794$000

180:000$000

178:229$800

1:770$200

9.500:000$000 10.500:000$000

8.529:142$700 9.434:899$500

970:857$300 1.065:100$500

8.000 K)00$000

6.295:951 $990

1.704:048$010

3.500:000$000 1.200:000$000

2.129:337$900 958:138$200

1.370:662$100 241:861 $800

ção rodoviária . . .

3.000:000$000

2.974:925$800

25:074$200

10. Imposto escolar e hospitalar de 15% 11. Imposto profissio

6.347:250$000

5.814:555$719

532:694$281

1.684:000$000

1.454:665$999

229:334$001

Renda dos impostos 1.Taxa de expediente

para menos

2. Imposto de consu mo

3. Imposto sobre gado abatido

4. Imposto de indús tria e profissões . . 5. Imposto territorial 6. Imposto de trans missão sobre inter-

vivos

7. Imposto de

trans

missão sobre **causa

mortis"

8. Imposto Judiciário 9. Imposto de consu mo para consolida

nal de 8%

12. Imposto de coope ração de 2,5% . . . 13. Imposto por quilo de erva-mate expor tada

1.000:000$000

948:154:350

51:845$650

70:000$000

13:642:300

56:357$700

Vê-se, pelos dados expostos, que alguns, que incidiam sobre a pecuária —como o sobre o gado abatido, territorial e cooperação —ha viam decrescido. Note-se ainda que, fora o imposto de consumo, era o territorial o que mais arrecadava para o estado. O governo atribuía esta diminuição à crise mundial da economia, ao decréscimo da exportação gaúcha para o exterior, á desvalorização da moeda e à crise política interna. Por outro lado, uma das diretrizes mais proclamadas do governo Flores da Cunha, desde 1931, fora uma política de desagravação fiscal. O PRL acentuava que o interventor federal, preocupado em devolver a dinamicidade às atividades econô micas, realizava inúmeras reduções nas taxas e impostos. No tocante à pecuária, convém recordar e acrescentar novas medidas levadas a efeito

pelo governo em seu favor: redução de 4% para 3% das taxas sobre couros vacuns e cavalares, secos, verdes e salgados, destinados á expor tação; redução de emergência do imposto sobre a lã; isenção do imposto de exportação para as carnes enlatadas ou em barris, da carne verde a 124

granel; redução da taxa sobre exames de charque. Todavia, apesar de tais medidas, elas se revelavam incapazes de remover obstáculos estruturais de uma pecuária descapitalizada, que se mantinha em crise com uma criação sem condições de auto-renovar-se de forma completa (refinamento completo do rebanho, pastagens arti ficiais, criação intensiva), destinando sua matéria-prima ou a uma charqueada sem perspectivas de renovação e em perene instabilidade ou uma indústria estrangeira de carne frigorifícada que a submetia a constantes manobras baixistas.

Enquanto esta era a situação que se mantinha no Rio Grande, São Paulo já apresentava maior distância dos gaúchos. Em entrevista conce

dida aos jornais. Marcial Terra referia suas impressões sobre a pecuária paulista. São Paulo apresentava-se como o primeiro estado brasileiro em exportação de carnes frigorificadas. Com seus quatro grandes frigorí ficos — Armour, Anglo, Continental e Frigorífico de Santos, com ma tança de 480.000 novilhos —possuía ainda charqueadas e matadouros no interior do estado, que abatiam 400.000 cabeças anuais. São Paulo podia ainda invemar, por ano, 2.000.000 de novilhos em seus campos artificiais, rebanhos estes vindos dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Só o exemplo das pastagens artificiais já basta, como

se vê, para avaliar o distanciamento da situação paulista com relação à gaúcha. Além das facilidades de transporte (estradas de ferro e de ro dagem), o estado possuía uma próspera indústria de laticínios.^ No final do ano de 1933, Flores da Cunha, na sua perspectiva

de incentivar a pecuária e condizendo com a orientação nacionalista do Governo Provisório, revogou, pelo Decreto n9 5.497, de 27 de dezembro de 1933, as Leis n9 206, de 25 de novembro de 1916, e n9 233, de 25 de novembro de 1917, que haviam concedido favores aos frigoríficos estrangeiros estabelecidos no Estado pelo prazo de 30 anos. O referido decreto passou a fixar a taxa de expediente de 2,5% sobre a exportação de carnes congeladas. Najustificativa para este ato. Flores da Cunha argumentava que, longe de atender aos interesses da pecuária, principal fonte de riqueza do Estado, as empresas estrangeiras haviam prejudicado estes interesses, uma vez que contribuíram para o desapa recimento de charqueadas sem que passassem a abater em seus estabe lecimentos as cabeças necessárias para restabelecer o equUíbrio entre a produção e o desfrute dos rebanhos gaúchos. Além disso, considerava o governo que os frigoríficos estrangeiros haviam abusado das prerroga tivas e favores concedidos pela legislação, tornando-se lesivas aos in teresses do Estado. O governo lembrava que o principal objetivo das 164a pecuária nacional. Correio do Povo, PortoAlegre, 23 nov. 1933. p. 16. 125

Leis nÇS 206 e 233 fora o de substituir a indústria do charque pela da carne frigorificada, finalidade esta que não fora alcançada, uma vez que a exportação da carne frigorificada em 1932 tivera o valor de 12.358:022$000, em 9302 toneladas, inferior à exportação do char que no ano de 1917, que representara um valor de 42.845:253$874

por 49.249 toneladas.^ ^^ A medida, contudo, causou apreensão a setores de pecuaristas. Dario Brossard, por exemplo, criticava a atitude do governo, argumen tando que uma leve reação no preço do boi fora anulada pelo ato do

interventor. Afirmava o ruralista que a conseqüência imediata seria fa talmente a baixa do preço dos gados, justamente no momento em que, mais do que qualquer outra medida, o que a pecuária precisava era de uma safra boa. Concluía D. Brossard: Não discutimos as razões de ordem moral e econômica

que levaram o governo do Estado a assinar o decreto cassando os favores concedidos aos frigoríficos, queremos reconhecer, mesmo, neste ato governamental, uma finalidade elevada e patriótica, mas não se poderá fugir ao efeito depressivo que

essa medida vai exercer sobre a safra, que se iniciara com tão animadoras promessas [. .. ] neste caso, o governo terá assu mido a obrigação moral de promover, de qualquer modo, uma compensação ao criador rio-grandense que será, no final do ajuste, o único sacrificado. ^^^

Incansável batalhador da idéia do cooperativismo, Brossard exor tava o desenvolvimento do espírito associativo como caminho necessá rio a trilhar para a defesa dos interesses da classe. A crise ora vivida, no caso, era um momento propício para estimular o movimento cooperativista. Cabia, contudo, ao Estado estimular e auxiliar os criadores. A questão do cooperativismo dos estancieiros através da entidade

já constituída —a Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Carnes- e as suas relações com o governo chegariam a seu termo no ano de 1934.

O governo, escorando-se num grupo de pecuaristas, enviou à FARSUL, em maio de 1934, um projeto de transformação da Coope rativa em Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Reunidos os fazen

deiros em Porto Alegre para opinarem, Dario Brossard, então presidente em exercício da entidade, aprovou o gesto de Flores da Cunha, qualificando-o de "sã e elevada política administrativa", merecedor de "lou vores e aplausos". Acentuou ainda que a FARSUL era uma entidade social e a Cooperativa de Carnes uma entidade comercial. Ambas

165 Os favores aos frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 29 dez. 1933. P.9.

^66oassação de favores aos frigoríficos. Correio do Povo, Porto Alegre, 5 jan. 1934. p. 10.

126

tinham finalidades paralelas, mas não entrelaçadas. Opinião contrária representou o ruralista Joaquim Luís Osório, velho republicano, argumentando que, se o Rio Grande possuía matéria-prima e transportes (através do Uoyd Brasileiro e da Navegação Brasi leira) com câmaras frigoríficas, a Cooperativa só viria trazer benefícios, eliminando o intermediário que absorvia 50% dos ganhos. Sendo, con tudo, uma instituição privada, a própria classe rural possuía membros capazes para dirigi-la, sem precisar do governo para isso. Criticando o sistema tributário, que considerou elevado, lembrou que o imposto arrecadado pelo governo para constituir o capital da sociedade coope rativa já devia estar bem alto, mas do qual não se sabiam notícias.i^'^ A opinião de Joaquim Luís Osório marcou uma vertente da opi nião dos estancieiros quanto à questão, posicionando-se contra a tutela

do governo sobre os pecuaristas com a transformação da Cooperativa em Instituto.

Uma posição intermediária da forma de encarar o problema da transformação da Cooperativa para Instituto foi aquela assumida por Anibal Di Primio Beck (PRL). Falou em nome da Cooperativa, na presi dência da qual se achava, em caráter provisório, desde a renúncia do Gen. Assis Brasil. Relatou que a Cooperativa vinha lutando com os pro blemas de integralização de capital: dos seus 444 acionistas, só 223 ha viam cumprido sua promessa de tomada de ações. Por outro lado, dificuldades legais se antepunham à reversão da tributação arrecadada em ações: o Decreto n9 22.239, de 19 de dezembro de 1932, havia proibido as cooperativas de constituírem o seu capital por subscrição ou emissão de ações. A direção da Cooperativa, então encabeçadapelo Gen. Assis Brasil, propôs ao governo do Estado uma nova solução para o caso da entidade em 9 de junho de 1933: a legitimidade do imposto seria reconhecida, mas o seu montante, em vez de reverter aos associa dos, passava a constituir o "Fundo de Patrimônio da Cooperativa". Em face da recusa do governo, a diretoria havia-se demitido.

Citava, ainda, Di Primio Beck que Marcial Terra afirmara haver muitas firmas estrangeiras interessadas em entrar com o numerário

preciso para integrar o capital, desde que fosse fiador o Estado, tal como a do Sr. Arthur Wood & Cia. Arrematava dizendo:

Temos motivos para crer que a projetada ''encampa ção** que se promove virá trazer dolorosas decepções. As sunto do interesse peculiar da classe rural, entendo que não deve ser resolvido neste ambiente estreitíssimo, em que a

maioria das sociedades não está representada diretamente, mas por meio de delegados nesta capital, o que tira a autorh

1^7 A grande reunião de ontem dos fazendeiros rio-grandenses. Correio doPovo, Porto Alegre, 16 maio 1934. p. 5.

127

dade das decisões. Em breve, em julho, deve reunir-se o VIII

Congresso Rural Não vejo por que deliberar hoje, por que opi nar pela criação do Instituto em substituição à Cooperativa fora do Congresso Geral [... ] Estamos no fim da safra A prin cipal causa que retardou os trabalhos da Cooperativa foi a anormalidade do país, que afastou da Cooperativa importantes elementos. Esta anormalidade persiste. A política absorve todos os espíritos. Não há calma para deliberar ^® A posição assumídã por Dl Primio Beck é importante na medida em que alerta para uma espécie de tática levada a efeito pelo governo que implicava um "retardamento propositado" na definição do caso da taxa de cooperação, acompanhado de uma "pressa intencional" de fazer a transformação da Cooperativa em Instituto, antes mesmo da normali zação completa da vida política do país.

A solução era apressada para antes da ultimação dos trabalhos da Constituinte no cenário federal e da próxima reunião da classe rural que realizaria em julho, como de praxe, o VIII Congresso Rural. Enquanto os criadores e o govemo estadual propunham a imedia ta transformação da entidade, outros setores de ruralistas ou nega vam totalmente a proposta ou procuravam protelar a decisão para quando estivesse reunida toda a classe rural.

As opiniões favoráveis à transformação da Cooperativa em Insti tuto, emitidas pelo Dr. Egídio Hervé, são fundamentais para a compre ensão do processo que se instalava.

O Dr. Egídio Hervé considerou ser o Instituto maiscompletoque a Cooperativa e de mais fácil manejo, situando-se como o mais apto para defender os interesses daclasse rural. Naconstituição do Instituto, o govemo, de acordo com a classe rural, lançaria os impostos e criaria um aparelho de direito público. O Instituto iria, pois, exerceruma par cela do poder público. O governo nomearia uma parte dosmembros da diretoria, dos membros do conselho de administração e do conselho fiscal, e a classe rural a outra metade. Não haveria necessidade de

contrato entre o govemo e o Instituto, pois este próprio seriauma par cela do governo. Uma vez organizado o Instituto, seus diretores ime diatamente deveriam receber os produtos das taxas e impostos, além

de terem facüitados ostrâmites para a efetivação deempréstimos. Corroborando com a postura do governo estadual, Gastão Englert

afirmava que deveriam os pecuaristas aceitar a proposta do Estado: se este achara que não era possível realizar o contrato e se a necessidade

do frigorífico se impunha, era preciso que serecorresse ao governo para que este desse o dinheiro para a suainstalação. Em carta, o presidente da FARSUL, Ricardo Machado, aconse168ibidem. 128

lhou que não deveriam os criadores lutar contra a nova instituição; ape nas era preciso que a FARSUL preservasse a sua autonomia e que toda decisão deveria ser considerada provisória até que se reimisse o pró ximo Congresso Rural. Apesar disso, foi formada uma comissão composta por Guilherme Tell Francisconi, Clarimundo Veríssimo, Homero Fleek, Alberto Pasqualini e Irio do Prado Lisboa, para decidir sobre a transformação ou não da Cooperativa em Instituto. A assembléia dos criadores deu o seu parecer favorável à criação da nova entidade, assim como a comissão designada para este fim.

É importante verificar aqui o processo de cooptação que se veri ficou. Acenando com vantagens, o governo conseguiu a adesão da maior parte dos criadores, que optaram pela tutela do Estado sobre a enti dade, para ficarem ao lado do poder constituído, da ala "nacionalista" vitoriosa que dominava o Rio Grande. Anibal di Primio Beck, por exemplo, colocou que a Cooperativa, sem o apoio do governo, não podia resolver a situação da pecuária, restando o Instituto como única solução. Di Primio Beck, no caso, mudou de opinião, aderindo ao pro jeto do governo. Aqueles que fechavam com a idéia do Instituto, é claro, beneficiar-se-iam mais. O momento dado é rico em análise, constatando-se

a manobra de um grupo, indiscutivelmente aqueles que tinham mais capital e que se preocupavam com a sua ampliação. O governo do Estado, identificado com a orientação do governo central, aplicava o princípio do intervencionismo na economia, criando instituições onde o Estado se fizesse presente ao lado dos representantes de classe. Para fazer sua proposta ser aceita, tanto se utilizara de mé todos tal como abreviar a sua resolução o mais cedo possível, antes do Congresso que reuniria toda a classe rural e permitiria a melhor orga nização das opiniões opostas, quanto se valeu de outros recursos, como

acenar com a pronta entrega da taxa e impostos arrecadados. Foi acentuado que a criação do Instituto em nada desmerecia a

criação da Cooperativa de criadores ou a atuação da FARSUL. As cooperativas, inclusive, poderiam se amparar no próprio Instituto, dan do-se o mesmo com os sindicatos. O Instituto não só apoiaria como ainda fomentaria a criação das cooperativas.

O parecer da comissão afirmou a diferença entre uma e outra entidade:

A Cooperativa era uma corporação de caráter privado, destinando-se à realização dos serviços públicos, mediante concessão e controle do Estado, O Instituto é uma derivação

diretamente estatal, uma diferenciação do próprio aparelho 129

administrativo, com autonomia e personalidade jurídicas próprias, uma criação, enfim, suigeneris, ainda não tentada e nem

sequer definida na nossa legislação. Como organização autô noma, é o Instituto absolutamente independente do poder go vernamental que nele só interfere nos casos e pela forma taxa tivamente previstos na respectiva lei constitucional De acordo com o sistema estatutário projetado, prepondera o voto da

classe rural ou dos contribuintes do imposto pecuário no órgão de direção e administração, reservando-se o Estado a maioria representativa no órgão de fiscalização.

Foi formada, a seguir, uma outra comissão pela FARSUL, a fim

de opinar sobre o projeto dos estatutos da nova instituição a ser criada, integrada por Egídio Hervé, Alberto Pasqualini, Manuel Luís Pizarro, Guilherme Tell Francisconi e Dario Brossard. A comissão, conforme

especificou, trabalhou no sentido de harmonizar as disposições esta tutárias, dando maior eficácia à representação e atuação da classe rural e assegurar a autonomia do Instituto.

Com a preocupação expressa de ''salvaguardar os interesses má ximos da classe rural, sem perder de vista os da coletividade em geral", a entidade se propunha a defender a indústria agropecuária do Estado,

melhorar as suas condições, organizar a industrialização e a venda dos seus produtos e subprodutos. Para tanto, o Instituto deveria "estabe

lecer a colaboração entre o estado e os produtores", "construir mata douros, estabelecimentos frigoríficos, fábricas para o beneficiamento, elaboração, transformação e conservação dos produtos e subprodutos da lavoura e da pecuária". Além disso, deveria "exportar a matéria-prima beneficiada", "prestar assistência aos agricultores e criadores", "organizar serviços de estatística e informações", "pugnar pela cele bração de convênios comerciais internos e externos paraincremenar a exportação", lutar "pelo melhoramento dos rebanhos, dos campos, dos

processos de produção", "fomentar a organização das classes rurais em cooperativas", etc.

No que diz respeito à representação da classe rural na entidade, estabelecia-se que asassociações rurais já existentes e filiadas à FARSUL seriam consideradas entidades representativas da classe nos municípios e teriam a prerrogativa de se representarem no Instituto. Os órgãos re presentativos da classe rural elegeriam três entre cinco diretores do Ins tituto e cinco dentre sete membros do conselho consultivo. No que tange à aplicação dos lucros, 60% seriam levados ao fundo de garantia,

30% distribuídos como bonificação aos produtores que houvessem for necido matéria-prima ao Instituto e na proporção de seu valor, e 10% 169 Foi resolvida a transformação da Cooperativa em Instituto Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 17 maio 1934. p. 9. 130

distribuídos sob a forma de prêmios aos produtores de matéria-prima superior.^ Durante a realização do VIII Congresso Rural, foi baixado o De creto n9 5.648, de 13 de julho de 1934, criando o Instituto Sul-Rio-Grandense de Games. No ato de criação, o governo argumentava que, a par das dificuldades que a pecuária rio-grandense vinha enfrentando há longos anos e a penúria a que estavam reduzidos os estabelecimentos

pastoris e indústrias correlatas, acrescentava-se a impossibilidade dos pecuaristas resolverem, por si mesmos, os problemas da classe. Consi

derando ainda ser impraticável a mudança imediata da atividade pastoril por outra e tendo em vista ser

[... ] função das públicas administrações ir ao encontro das iridústrias fundamentais dos Estados, quando não possam estas, por si mesmas, se desvencühar das peias que as oprimem, sufocam e como que aniquilam, o poder público adotava uma '^moderna forma de cooperação entre o Estado e as classes produtoras.^

Em discurso pronunciado por ocasião da inauguração do Con gresso (10 de julho de 1934), o Dr. Francisco Rodolfo Simch, Secre tário de Obras Públicas e representante do interventor federal, acen

tuou o interesse de Flores da Cunha pelo progresso do Rio Grande do Sul e, mais especificamente,por aquelespertinentes à classe à qual tinha orgulho de pertencer. O interventor acompanhava com interesse os trabalhos realizados pelos criadores para resolver o problemamagno de sua classe, mas que, apesar desse interesse, não fora possível atender tudo aquilo que se propusera realizar:

É que os superiores interesses do Estado não compor tavam soluções unilaterais, que viriam romper o equilíbrio producional do Rio Grande em detrimento de suas indústrias tomadas em conjunto e, pois, com sacrifício de todos. ^ ^

Argumentando com essa problemática mais vasta do que o pro blema da pecuária —a economia gaúcha como um todo imersa na crise

do pós-30 —e com múltiplos interesses a satisfazer —tarefa específica do Estado — o governo se eximia de uma responsabilidade maior no atendimento às necessidades dos pecuaristas constituídos na Coope

rativa Sul-kio-Grandense de Carnes. O que lhe competia —a taxa de cooperação — estava, contudo, sendo arrecadada, como demons travam os dados fornecidos^

l^Oinstituto Sul-RioGrandense de Carnes. Correio do Povo, Porto Alegre, 23 jan. 1934. p. 1.

l^lLeis, Decretos e Atos do Governo Estadual 1934.

f ^^Anais doVIII Congresso Rural. FARSUL. Porto Alegre, Globo, 1934. p. 12-3. l'73lbidem, p. 13. 131

1932:

1933: 1934:

Prefeituras Estado

1.747:477$600 946:747$110

2.724:224$7I0

Prefeituras Estado

1.960:467$681 948:154$350

2.908:622$031

Prefeituras Estado

112:928$010 356:582$600

469:510$610 6.102:357$351

Tal soma se achava em mãos do governo e seria entregue á enti dade que fosse criada para chamar a si a solução do problema maior da pecuária gaúcha; se o Instituto de Carnes se propusesse a tal, o governo

imediatamente lhe entregariaesta quantia. Além de tais considerações, o representante do interventor salien tou outras medidas estatais no tocante ao problema da pecuária: o en-

treposto-frigorífico do porto da capital, cuja construção já se iniciara. Conjuntamente com o aparelhamento do cais, seria tratada a conexão com a Viação Férrea a fim de conectar Porto Alegre com as zonas produtoras do interior. Da mesma forma, o matadouro-modelo da capital se achava em fase de concorrência.

Enquanto o interventor se fazia assim manifestar, nesta postura otimista quanto às realizações feitas e por fazer, identificando-se como pertencente à mesma classe dos criadores, o discurso do orador oficial da FARSUL, José Lopes Amoni, exortava á união da classe, sempreo cupação com dissenções políticas: Devemos reconhecer que a Federação Rural, em sua vida de atividade, preencheu um vácuo, mas é necessário também confessar que ainda não está aparelhada de todo para corres ponder às apremiantes necessidades de defesa do criador rio.-grandense [...] isto devido à ausência de espirito associativo

'da classe em geral, que não a assiste resoluta com seu apoio

decidido numa firme união de esforços [... ] Para entrarmos no domínio das realizações práticas, não é necessário abdicar de nossos direitos políticos. Os partidos, na dura experiência, nos fazem conservadores, sem por isso deixarmos de ser cons trutores e acompanhar e concorrer para o progresso do país [...] Permaneçamos nós, dentro de nossas Uléiasdoutrinárias, mas rmo seja nunca a questão política um obstáculo para a

formação da defesa da nossa classe

. .\É necessário não con

fundir os problemas políticos com os problemas econômicos da nossa vida rural Procurando os poderes públicos estabelecer uma íntima colaboração com a classe para a solução dos nossos problemas, cumpre-nos irmos ao seu encontro, marchando parelhos para essa realização. ^ 174ibideni,p. 18-9. 132

Evidenciava-se, por trás de uma situação de desinteresse, falta de espírito de cooperação, solidariedade de classe, etc., a condição funda mental de uma pecuária descapitalizada, geradora de atitudes apáticas, notabilizada pela ausência de um sentido renovador. Os pecuaristas, carentes de capital, em geral tinham necessidade do apoio governamental para a consecução de seus interesses e concre tização das metas a atingir. A "ala nacionalista", que empolgava o poder, por outro lado, punha em prática um novo padrão de conduta do Estado na realidade de pós-30. A tutela do Estado sobre a esfera econômica, coordenando, disciplinando, orientando, protegendo, in centivando as atividades produtoras em geral, não visavam apenas à salvação de uma economia nacional em crise, mas a própria reorientação das relações entre os produtores e o Estado. A legislação social cumpriu o papel de submeter o trabalho ao ca pital. A formação de cooperativas, sindicatos de produtores e institutos atrelou o capital (ou os diferentes setores da burguesia nacional) ao mecanismo estatal.

Quanto à transformação da Cooperativa em Instituto, justificava-se que a Cooperativa não era a forma mais adequada para solu cionar o problema das relações entre o Estado e a classe rural, permi tindo a conciliação entre os interesses privados e os coletivos.^ A "vanguarda" dos pecuaristas retomava agora, com maior ímpe to, a preocupação de instai^ um frigorífico nacional no Rio Grande. Além deste tema, muito debatido no VIII Congresso Rural, e do apoio à fórmula cooperativista como meio que devia complementar a orga nização das classes rurais, paralela à criação do Instituto, foi enfatizada pelos pecuaristas a medida do Governo Provisório de criação de um

Banco Rural. A notícia da assinaturado decreto de criação da nova ins tituição, que coincidiu com o Congresso, foi saudada pelos pecuaristas, que viam na medida mais uma forma de amparo da administração pú blica a seus problemas.

No artigo 69 de seus estatutos, publicados no Diário Oficial de 7 de maio de 1934, especificava-se:

O Banco terá, como um de seus objetivos principais, o

financiamento das organizações econômico-profissionais dos agentes da atividade rural em Consórcios Profissionais Coope rativos municipais, em federações estaduais e na confederação nacional desses consórcios, e realizaráoperaçõespara o auxilio à lavoura, à pecuária e das indústrias rurais, inclusive as extrativas,^'^^

nSibidem, p. 73. 176ibidem, p. 276. 133

Como se vê, o governo central abria possibilidades justamente aos produtores cooperativados, ao mesmo tempo que correspondia ao antigo anseio de crédito de uma pecuária descapitalizada, carente de recursos numa época de crise e com propostas de renovação.

Ora através de medidas como esta, ora através da imposição do Instituto, extensão do poder público na área de produção, o Governo Provisório e com ele a "ala nacionalista", hegemônica ao nível regional, contribuíam para a rearticulação das relações entre o Estado e a socie dade, disciplinando as classes dominantes para que estas preservassem a sua predominância.

Processava-se, por um lado, o avanço da esfera governamental sobre o plano econômico, demonstrando, no pós-30, a inviabilidade

do capitalismoviver ainda na etapa liberal. Por outro lado, regulamentava-se a forma de atuação das classes dominantes, através das associações de classe, no seu relacionamento com o governo, dando-lhes um con teúdo mais econômico-reivindicatório do que político propriamente dito, no sentido da luta pelo poder. No tocante ao pólo trabalho, a questão da sua regulamentação começou a preocupar os pecuaristas rio-grandenses. Já em outubro de 1932, a "Frente Sindicalista" (operária) de Pelotas, comentando a

"má vontade de alguns interessados" em não cumprir a lei social, que especificava o regime de 8 horas por jornada de trabalho, acrescentava: **Desde já, é necessário que se defina claramente que a recente lei só excluiu os trabalhadores dos campos, para o que o governo está elaborando uma legislação à parte.

O Ministério do Trabalho, objetivando regular a duração do tra balho rural, elaborou um anteprojeto, publicado no "Correio do Povo" de 24 de fevereiro de 1934 e marcou um prazo de 60 dias para receber emendas antes de sua execução. Antes que a lei fosse posta em exe cução, a Diretoria de Fomento Agrícola recomendou à Inspetoria Agrí cola Federal que, no tempo mais breve possível, recolhesse sugestões de emendas para ver se a lei era ajustável ao meio rural. O Inspetor Agrí cola Federal do Rio Grande do Sul, Dr. Luís Gomes de Freitas, enca

minhou então à FARSUL uma cópia do anteprojeto para exame. Em resposta enviada tanto ao inspetor quanto ao Ministério do Trabalho, a FARSUL fez as seguintes considerações:

19) a naturezado nossotrabalhorural, naforma atual de

produção extensiva, não pode ficar fechado dentro de um de terminado horário, e os mais importantes trabalhos da cam panha, principalmente da zona pastoril, ficariam grandemente 177interesses operários. Opinião Pública. Pelotas, 11 out. 1932. 134

prejudicados com as disposições de qualquer regulamen tação; [. ..] 29) a harmonia existente entre os empregadores e empre gados em nosso meio rural, onde não apareceu ainda, nem de leve sequer, a luta entre o capital e o trabalho;

39) o atraso com que vivem ainda os nossos homens do campo, onde campeia o analfabetismo numa porcentagem verdadeiramente assombrosa, abrangendo a quase totalidade dos empregados e grande número dos próprios empregadores - razões que impossibilitariam a justa execução de medidas que têm um alcance social completamente afastado da men talidade do meio para o qualforam criadas; 49) o hábito tradicional do nosso '"peão*' de estância que, na falta de qualquer outro divertimento ou **passa-tem-

po*\ aproveita todo descanso para dar uma chegada ao 'bo liche'', cujas conseqüências nunca serão favoráveis ao seu aper feiçoamento moral; 59) a necessidade de se fazer, no verão, os mais impor tantes trabalhos de gado pela madrugada ou à tardinha, en trando **noite a dentro", com o fim de se evitar as horas quen tes de sol, que muito sacrificam os gados; 69) e, finalmente, o encarecimento que a regulamen tação trará ao salário rural, justamente numa ocasião de crise intensa em que as condições da nossa produção rural não com portam maiores despesas; São razões que obrigam esta Federação Rural a consi derar, atualmente, prematura toda e qualquer iniciativa no

sentido da regulamentação do nosso trabalho rural ^ ® Fica clara, pela exposição feita pelo 39 vice-presidente em exer cício, Dario Brossard, e pelo secretário geral da FARSUL, Normélio Ferreira, a perspectiva do não-enquadramento do trabalhador rural dentro da legislação social, proposta esta que foi reafirmada por ocasião do VIII Congresso Rural. A problemática é encarada desde o ponto de vista do capital, julgando que não somente a regulamentação do tra balho rural viria onerar o estancieiro, pela determinação dos salários pagos, quanto viria em prejuízo da própria produção, ao fixar a jornada diária de trabalho. Como argumentos ponderáveis, eram colocados a não-existência de conflito na relação capital x trabalho, perspectiva esta adequada à visão que, nesta época, a classe dominante tinha de si mesma, posta a circular através de idéias tal como "democracia gaúcha". O encurtamento do tempo de trabalho, favorecendo o descanso, era considerado como prejudicial ao proletário do campo, contribuindo para a sua degenerescéncia moral e de costumes (o "bolicho" com a sua seqüência de jogo e bebida), além do analfabetismo ser considerado como fator de inexeqüibilidade da aplicação das leis.

l^Sibidem, p. 43-5. 135

É, no caso, uma visão característica da classe dominante pecua rista, que analisa "desde cima" a problemática do trabalho, encarando-a da perspectiva do capital (capital encarado dentro da ótica e condi cionamentos sulinos, bem entendido).

No que diz respeito aos trabalhadores rurais da pecuária (peões), não se conhece movimentação alguma dos mesmos no sentido de uma tomada de posição quanto à legislação social. Vivendo em extrema de pendência econômica, social e política dos estancieiros, desinformados, sem canais de expressão e trabalhando mediante relações não-capita-

hstas de produção, é fácil de compreender sua ausência de participação e organização. Já com relação aos trabalhadores de charqueadas e os

barraqueiros (trabalhadores em barracas de lã), o jornal pelotense "Opinião Pública" publicava a notícia de que, na primeira semana de outubro de 1932, haviam-se organizado o "Sindicato dos Trabalhadores em Indústrias Saladeiris" e o "Sindicato dos Trabalhadores em Bar

racas,^

sem que se conheça, contudo, a sua atuação posterior.

Neste caso, a maior capacidade de organização e de auto-identi-

fícação com o operariado, devem estar ligadas à presença de relações assalariadas mais nítidas e à existência de uma forma histórica de pro dução capitalista (charqueada), embora ainda na etapa de submissão formal do trabalho ao capital. Como norma geral, o ano de 1934 findou —e com ele o governo

discricionário de Flores da Cunha —com uma renovada esperança para a classe dominante na possibilidade de solução para a crise da pecuária, consubstanciada na constituição do Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes.

Em setembro, o Partido Republicano Liberal organizou o seu

19 Congresso Bienal, que visou, por um lado, um balanço retrospectivo da atuação do partido desde a sua fundação, e, por outro, o encaminha mento da candidatura de Flores da Cunha para governador do Estado na volta ao regime constitucional que se processava. O discurso de João Carlos Machado, representante do interventor federal, na sessão de instalação do Congresso, a 7 de setembro de 1934, constituiu-se num retrospecto laudatório de todas as realizações de

Flores da Cunha e precedido por um breve histórico da Constituição doPRL.

Neste ponto, J. C. Machado acentuou o ambiente de liberdade

de expressão com que fora debatido o programa do partido e o fe cundo período de paz que se seguiu à revolução de 1932, favoráveis ao desenvolvimento da produção gaúcha. Ao mesmo tempo, atacou o esvaziamento de princípios e a falta de expressão dos velhos partidos, 179opiniãoPública, Pelotas, 11 out. 1932. 136

que até o momento não estavam conseguindo conciliar seus interesses nem realizar um conclave definitivo para precisar a sua linha de atuação. Criticando os que se diziam republicanos, mas sem coragem de

pronunciar o nome de Júlio de Castilhos, ou de assumir as idéias parla mentaristas dos libertadores, João Carlos Machado atacava ao mesmo

tempo os libertadores que haviam abjurado dos seus sólidos postulados para fazerem concessões aos republicanos. Com a redemocratização em marcha nos anos de 1933 e 1934, vários líderes da FUG haviam retornado do exílio, articulando-se para as eleições, sem, contudo, chegarem a um consenso sobre a orientação que nortearia os trabalhos partidários. Para enfatizar a supremacia e o bom desempenho da "ala naciona lista" na chefia do Rio Grande, o orador desfiou uma série de realiza

ções do governo Flores da Cunha, destacando seu empenho no desen volvimento da instituição pública, saúde, criação do Instituto de Previ dência do Estado (IPE), construção de estradas de rodagem, reparação de pontes, prolongamento das vias férreas, demarcação de lotes colo niais, início da construção do frigorífico da capital, estando já assina lados os lugares do matadouro-modelo e do entreposto do leite de Porto Alegre. Além disso. Flores da Cunha empenhara-se numa polí tica de desagravação fiscal, comprimindo, ao mesmo tempo, os gastos públicos. Seu governo, enfim, havia adotado medidas de amparo e estímulo "às forças de trabalho e de capital" no Rio Grande do Sul. Terminava o líder a sua oração dizendo que, enquanto a FUG saía da [...] desordem material para a desordem moral e men tal, quebrando vínculos com o passado [...] sem idéias, sem programa, sem norte, trepidante de rancores e de anseios de extermínio,.. [...] consolidamos nós a nossa ação severa e fechada, ... cooperando com o governo do Sr. General Flores da Cunha, no trabalho ingente de prover o Estado de recursos e construções necessárias ao desdobramento inces sante do seu progresso material, moral e cultural ^®®

Destacando a ação da bancada liberal na Assembléia Nacional, o discurso pronunciado pelo deputado Augusto Simões Lopes enfatizou que, na Constituição promulgada em 16 de julho, viu-se que 85% dos postulados do PRL ali se encontravam consagrados. Na sua opinião, isto demonstrava "o sentido renovador e brasileiro" da ideologia po

lítica do PRL e consolidava "no mundo da doutrina e da ordem jurí

dica a vitória da maioria rio-grandense, já insofísmavelmente revelada nas umas".^®^

180o Partido Republicano Liberal. 1? Congresso Bienal. Porto Alegre, Selbach, 1934. p. 59.

181lbideni,p. 67. 137

Num confronto entre o programa do Partido Republicano Liberal

e a Constituição^®^ apresentado em congresso, é possível constatar a veracidade de tais afirmações, tendo sido adotada a maior parte dos

postulados referentes a temas tais como a forma de organização do poder, autonomia dos estados, sufrágio universal, uniformidades dos princípios básicos de direito processual, organização dajustiçaestadual

e federal, temporariedade de mandato, regulamentação do exercício das profissões liberais, discriminação das taxase rendas de competência da União, estados e municípios, articulação racional dos orçamentos, controle das dívidas externas da União, estados e municípios, propugnação de medidas tendentes à estabilização monetária, desenvolvi mentodo crédito, socialização gradual dosserviços públicos, regulamen tação dos regimes de aproveitamento de energias hidráulicas e reservas minerais para o poder público federal, criação de conselhos técnicos e consultivos, criação e fomento de entidades públicas autônomas para quaisquer fins de ordem econômica, social, financeira ou profissional, racionalização do sistema de colonização, reorganização dos trans portes internos, equiparação de jornaleiros e operários do estado aos

funcionários de quadro, pensões, aposentadorias, seguros e assistência médica aos funcionários públicos e suas famílias, seguro social e assis tência social, fomento e reconhecimento de sindicatos, cooperativas de consumo e produção e das associações profissionais, criação de tribu

nais e assessorias para a solução de conflitos entre patrões e operários, regime de oito horas para trabalho industrial, comercial e mineiro,

salário mínimo, estímulo aoensino técnico-profissional, etc. Em síntese, a Constituição de 1934representaria a corporifícação da maioria dos postulados propostos pelo PRL. Sob outro ponto de vista, representaria a grande identificação entre a "ala nacionalista" da política gaúcha com as perspectivas do Governo Provisório. Consi derado, pois, como importante base de apoio do poder central na Re pública Nova, foi também o voto unânime da bancada liberal que elegeu

Getúlio Vargas como presidente da República, no dia imediato ao da promulgação da Constituição, por 175 votos, ou seja, mais de dois terços dos sufrágios apurados.

Além do princípio corporativista expresso e ^ preocupação social, a Constituinte de 1934 estabeleceu maior poder para o governo central e menor poder aosestados da federação. Quanto a estaquestão, a bancada do PRL, em declaração conjunta de voto, aclarou que, embora tivesse se manifestado pela corrente federativa, aceitava a cen tralização aprovada no corpo da Constituição. Reconhecia a neces182ibidem,p. 97-125. 138

sidade do fortalecimento da autoridade do governo da União, sem que com isso precisasse desprestigiar ou enfraquecer os outros poderes da nação^ ®^. Em suma, diante das necessidades do centro, o PRL abdicava daquflo que considerava mais ''de acordo com as tradições e inequívocas tendências do espírito de nossa gente", para oportunizar a integração

essencial do contexto gaúcho à nova realidade brasileira do pós-30.Isto revela a ambigüidade do poder de Flores da Cunha, contraditório entre os interesses das oligarquias regionais e o seu enquadramento às perspec tivas de Getúlio Vargas de organizar, ao nível regional, o sistema, fa zendo-o novamente funcionar.

Uma moção de solidariedade foi remetida a Getúlio Vargas e a

seu governo, enfatizando-se que o mesmo, dentro do período discri cionário, não agia como um ditador, o mesmo valendo para Flores da Cunha na interventoria do Rio Grande.

O Congresso postulou que, no pleito eleitoral que se realizaria a 14 de outubro (eleições presidenciais), o PRL deveria vencer, tal como fizera por ocasião das eleições para a Constituinte em maio de 1933.

O nome de Flores da Cunha foi colocado por Antônio Veríssimo Ribeiro e por José de Oliveira, indicando-o para primeiro presidente constitucional do Rio Grande na Segunda República. Todavia, sua can didatura foi formalmente apresentada no discurso do Cel. Antenor Amorim, ao mesmo tempo em que foi proposta a lista de nomes para integrar a Comissão Geral do Partido.

Embora fosse ponderado que Flores da Cunhahouvera se pronun ciado a respeito do problema, dizendo não desqar permanecerna chefia do governo, preferindo retirar-se para sua vida privada ou ocupar um posto no Parlamento Nacional, o 29 Congresso do PRL lançou-o como candidato ás eleições para governador do Estado. Além das suas quali dades pessoais, muito exaltadas, foi considerado o mais indicado para executar o programa do PRL no Rio Grande do Sul. O discurso de Flores da Cunha, no encerramento do Congresso,

marcou a aceitação de sua candidatura,justificando sua atitude em ter mos de continuidade a uma poHticaque vinha mantendo há quatro anos, além de não querer desertar seus correligionários em plena jornada. Vencendo as eleições indiretas para o governo do Estado, Flores da Cunha seria empossado em 15 de abril de 1935. Os últimos meses do governo discricionário no Rio Grande foram

marcados pela confiança na obra de constituição do Instituto Sul-Rio-

183ibidein,p. 68. 139

-Grandense de Carnes, que o interventor declarou entrar agora na sua fase definitiva^

No plano do mercado internacional, boas perspectivas se descor tinavam para as carnes frigorificadas, pois, em dezembro de 1934,

o Itamarati concluíra negociações com o governo italiano para a aquisi ção de 1.500 toneladas de carnes brasileiras^ ®^.

Circulou, ainda no início do ano de 1935, que era intenção do governo britânico estabelecer um plano a longo prazo para regulamentar as importações de carne, o que implicaria uma tendência para o desen volvimento das exportações brasileiras de carnes em conserva.^ Man dada a Londres pelo governo brasileiro, a missão Souza Costa fora tratar

da importação britânica de carnes congeladas, assunto que interessava ao Rio Grande do Sul.

Enquanto boas perspectivas se descortinavam no comércio inter

nacional de carnes frigorificadas, internamente, no Rio Grande do Sul, os frigoríficos faziam com que tais alterações não repercutissem favora velmente sobre os estancieiros. Notícias publicadas no "Correio do

Povo" indicavam que, na safra em curso, o frigorífico Swift estava pa gando menos pelo g^do em 1935 do que o fizera na safrade 1934^ : Novilhos: 1934 - 500 réis a libra; 1935 - 450 réis a libra Terneiros: 1934 - 330 réis a Ubra; 1935 - 300 réis a libra Referia-se, inclusive, que, com relação a novilhos de tipo chilled,

os frigoríficos uruguaios pagavam mais que os seus congêneres do estado gaúcho. No Rio Grande, este gado selecionado ou era aprovei tado pela charqueada ou pelos frigoríficos, que pagavam bem menos do que o seu preço real. Desta forma, o frigorífico estrangeiro esta belecido no Rio Grande do Sul não estimulava o fazendeiro gaúcho no seu processo de refinamento do rebanho, contribuindo pois para a não-renovação da pecuária.^ ®®

Com relação ao charque, a situação não se evidenciava favorável na nova safra, uma vez que os mercados do norte e centro do país se achavam abarrotados com as carnes nacionais no momento em que o Uruguai se preparava para encher o mercado brasileiro, com as suas quotas asseguradas pelo tratado comercial entre o Brasil e aquele país em 10 de outubro de 1933.

184o Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes. Correio do Povo. Porto Alegre, 30 nov. 1934. p. 10.

ISScorreio do Povo, Porto Alegre, 25 jan. 1935. p.10.

ISbBrossard, Dario. Carnes congeladas. Correio do Povo, Porto Alegre, 7 dez.

1934. p, 10.

187 Apecuária brasileira e ocomércio internacional. Correio do Povo, Porto Ale l88o Chilled Beef brasileiro. Correio do Povo, Porto Alegre, 8mar. 1935. p. 10.

gre. 25 jan. 1935. p. 10.

140

Em síntese, preparavam-se o Rio Grande do Sul e o Brasil para entrarem na segunda fase de vivência da Nova República, no período constitucional que se estenderia até o golpe de 1937. A pecuária gaúcha continuava sufocada, tendo a sua matéria-

-prima básica asfixiada, por um lado, pela atuação dasempresas estran geiras e, por outro, pela situação sem saída das charqueadas tradi cionais. O governo eleito, em comum acordo com a orientação do poder central, visava reafirmar a integração do Rio Grande ao mercado nacio nal. No tocante à pecuária, a postura fundamental colocada era a de

rápida instalação de um frigorífico nacional que visasse ao abasteci mento do mercado interno, sem, porém, perder de vista o mercado ex terno, fonte geradora de divisas para o país. A nova proposta estava sendo levada adiante pelo organismo que reunia o setor modemizante da classe rural, tutelada pelo governo do Estado. A "ala nacionalista" preparava-se, assim, para cumprir a impor tante tarefa de renovação da estrutura pecuária gaúcha, dotando-a de uma forma capitalista plenamente configurada.

141

4.0 período CONSTITUCIONAL: ECONOMIA E PODER (1935-1937)

Em 15 deabril de 1935, Flores daCunha foi empossado como go vernador constitucional do Rio Grande. No seu discurso perante a As sembléia, Flores acentuou que, como chefe do Governo Provisório no Estado, "nenhum preceito legal" lhe impunha a obrigação de prestar contas de seus atos perante a Assembléia, mas que, dada a consideração que mereciam os representantes do povo rio-grandense, vinha até o le

gislativo para fazer um retrospecto de seu governo. Enfatizou que, após realizada a revolução de 1930, vários problemas haviam ameaçado o novo governo.

Nessa luta quotidiana, coube ao Rio Grande, como res-

ponsável principalpela revolução de outubro, a função defiel do equilíbrio político do governo revohicionário e garantia máxima da sua segurança e da ordempública. ^

O papel do Rio Grande foi destacado pelo governador como essencial para a manutenção da ordem, bem como a posição política assumida por ele fora a de garantir a reconstitucionalização dentro da lei e não fora dela, pela revolução, enfatizando que os governos discri^Anais da Assembléia Constituinte do Estado do Rio Grande do Sul. Sessão de

15 de abrü de 1935.Porto Alegre, Imprensa Oficial, 1935.v 2. p. 73.

donários deveriam ser encarados como ''fase transitória e de reggustamento e preparo das condições para a restauração da ordem jurídica."^ Como governante, Flores da Cunha apresentou-se como despido de ressentimentos contra os adversários políticos, procurando realizar o congraçamento de todos no serviço da causa rio-grandense. Neste sentido, considerava Flores ser o programa do PRL, majoritário na As sembléia, aquele que mais condições apresentava para promover a pros peridade gaúcha. Na Assembléia Constituinte rio-grandense, o PRL se fez repre sentar por 21 deputados, enquanto que a FUG por 11. Na opinião de Carone, Flores da Cunha representava no Estado uma forma de "domínio ambíguo", oscilando "entre tenentismo e oli garquia tradicional."^ Na verdade, oligarcas eram tanto os elementos agrupados na FUG quanto os do PRL. A distinção possível de ser feita entre eles, como se

evidenciou por ocasião do levante de 1932, configura um apego maior à forma tradicional de mando oligárquico do grupo denominado aqui de "ala regional", que constituiu a FUG, enquanto que os seguidores de Flores, agrupados no PRL, constituíram o setor "nacionalista", que

apresentava maior identificação com a orientação do Governo Provi sório. Tal aceitação não implica, todavia, em negação da perspectiva de constitucionalização por parte deste setor da oligarquia, mas sim na realização desta dentro da manutenção da ordem e do regime, impli cando no reconhecimento de um poder executivo central regulador. No plano econômico, a orientação básica do PRL de auxílio aos diferentes setores produtivos mediante a intervenção do Estado, concomitante com a formação de sindicatos, institutos e cooperativas, enquadrava-se com a perspectiva do Governo Provisório de proporcionar uma nova mediação entre as oligarquias e o poder do Estado, através das corpo rações de classe. Na orientação do poder central, tais desempenhos im plicavam a submissão política das oligarquias regionais. Esta conseqüên cia final do processo, porém, estava ausente na aceitação política da intervenção do poder central dentro da relidade brasileira, seguida

pela "ala nacional" desde 1932 e só ao longo do período constitucional se tomaria mais clara. Ou seja, o PRL, ao propor uma aceitação do poder central e do seu programa de governo, não abria mão, implici tamente, de suas prerrogativas de mando ao nível regional. Por outro lado, a perspectiva modernizante e de renovação da es trutura produtora local, encampada pelo PRL, tinha também o apoio ^Ibidem.

^Carone, Edgar. A República Nova (instituições e classes sociais). São Paulo, DIFEL, 1974. p. 320.

143

dos setores de classe dominante que constituíam a FUG. Neste caso, a perspectiva progressista não obedece a um critério de divisão polí tica no Estado.

Os níveis de aspiração econômica eram, por sua vez, atendidos pelo centro, e tanto agropecuaristas da FUG como do PRL precisavam do apoio do Estado para sair da crise. Todavia, o apoio do governo central aos problemas econômicos do sul tinha um limite, que eram os interesses ditos nacionais: diversificação econômica do país, estatização, integração do mercado brasileiro, acumulação de capital, tutela política sobre as oligarquias. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil pressupunha a subordinação das regiões periféricas ao centro do país, onde se realizava primordialmente a acumulação. Este era um limite ao pleno desenvolvimento do Rio Grande como "celeiro do país". Embora o problema fosse sentido desde muito antes de 1930, ao longo da República Velha, e pudesse adquirir maior relevância na República Nova, ao nível de consciência da classe dominante o proble ma de subordinação política aparecia em primeiro plano.

É, pois, dentro desta gama variada de cortes, separações e con junções, que se travavam no seio da classe dominante no Estado, que teve início o primeiro governo constitucional rio-grandense de pós-30. Embora as mensagens governamentais de 1936 e 1937 apontas sem uma recuperação para a pecuária nos anos de 1935 e 1936 como um "momento de ressurgimento econômico", este setor da economia

continuava a apresentar problemas. Mesmo nas palavras do deputado classista Homero Fleck, na Assembléia Constituinte, situações de crise eram configuradas. O deputado lembrava ser a pecuária o setor da eco nomia gaúcha que potencialmente mais demonstrava valor: 1.800.000 contos em terras, 1.200.000 contos em vacuns, 120.000 contos em

ovelhas, 300.000 contos em porcos, 90.000 contos em eqüinos, 40.000 contos em muares, 1.500 contos em caprinos, perfazendo a cifra total de 3.551.150 contos. Todavia, acrescentava o deputado, embora seu valor fosse grande, seu rendimento era extraordinariamente baixo, estando praticamente inexplorado. Na opinião de Homero Fleck, o lucro da pecuária orçavaem torno de 1% sobre o capital empatado, e os males que a afligiam se relacionavamcom a grande incidência de impos tos (territorial, taxa de cooperação, imposto de vendas mercantis) e o custo da produção muito alto (aquisição de reprodutores, carrapatiddas, vermífugos, sal, benfeitorias variadas e remuneração da força de trabalho). Enquanto que a indústria do charque permanecia no Rio Grande tal como era "na época da Revolução Farroupilha", o criador progredia, mas sem que pudesse obter proveito disso com a venda de seu produto. Na sua opinião, de nada estava valendo refinar o rebanho 144

se o Rio Grande do Sul continuava a produzir exclusivamente o charque. Para enfatizar a necessidade da frigoriflcação, o deputado apresen tou dados de comparação do rendimento de um boi de 500 kg, trans formado em charque ou industrializado pelo frio:

Paracharque — 110 kg de charque a 2$300 30 kg de couro a 1$800 28 kg de gordura a 1$400 Subprodutos Total

Menos custeio

253$000 54$000 39$200 7$000 3535200

75 $000 2785200

Frigorificado — 230 kg de carne a 105700 30 kg de couro a 35000 30 kg de gordura a 25000 Subprodutos

3915000 905000 605000 165000

Total

5575000

Menos custeio

1165000 4415000

Temos assim que um boi transfomado em charquevale

278$200, ao passo que daria 441^00 ao seu criador, se ti

vesse sido industrializado pelo fiio. Diferença a favor da carne - 162$800. Pelo estudo destas cifras, em 1.000.000 de bovinos abatidos, tem o Rio Grande um pr^izo anual de 162.800 contos.^

Além das eloqüentes conclusões tiradas pelo deputado, é possível observar-se o maior aproveitamento da carne em si no frigorífico (230

kg num boi de 500kgpara 110kgna charqueada), além do maior valor

obtido pela mesma quantidade de couro trabaÚiado pelas duas uni dades. Da mesma forma, o frigorífico foi capaz deextrair mais gordura e obter um duplo valor pelos subprodutos. No que diz respeito a cus teio, que se pressupõe constar de salários, manutenção de maquinaria, combustível, reposição de implementos, etc., evidencia-se o maior custo na empresa capitalista tipicamente configurada, que compensa, porém, em maior lucratividade.

Corroborando a persistência da crise, notícias de jornal apontam a depreciação dos campos e gados. Em entrevista concedida ao "Correio 4Anais, op. cit., sessão de 31 dez. 1935. p. 457-8. 145

do Povo", o presidente da Sociedade Agrícola de Pelotas, Sílvio Echenique, apontou o fraco interesse na exploração dos campos:

Anos atrás, havia sempre animada procura de campos, tanto para comprar como para arrendamentos, realizando-se

com facilidades, negócios avultados, a preços satisfatórios. Atualmente, mesmo com a deprimente redução de 40%, difi cilmente se encontra quem queira aventurar-se a inverter ca pitais e consagrar atividades na exploração dessa indústria ^

Acrescentava o ruralista que não havia melhorado o preço dos gados apesar do aviltamento da moeda e do câmbio livre que gozavam as companhias frigoríficas estrangeiras do Estado. Estas mantiveram preços baixos para o gado, enquanto aumentavam assim a margem de

lucros que já gozavam com a isenção cambial para exportação. O gover no central, que agia desta forma para beneficiar o comércio externo,

não fizera com que a liberação atingisse outros produtos da pecuária, tais como os couros, as lãs e os sebos^.

Em tentativa de solucionar este problema, a FARSUL dirigiu-se ao Conselho Federal do Comércio Exterior a fim de que a liberação cambial fosse estendida a outros produtos da pecuária. Atendido este pedido pelo governo central, conseguiu-se maior vazão para os artigos sulinos,em especial os couros e graxas*^. Da mesma forma, a FARSUL empenhou-se em salvaguardar os interesses de outro artigo pecuário gaúcho. Tendo recebido a denúncia de que o Sindicato dos Industriais Têxteis de São Paulo havia pedido ao Conselho Federal de Comércio Exterior que permitisse a entrada das

lãs estrangeiras, alegando que a produção gaúcha era vendida de ime diato, em dois meses, a FARSUL interferiu junto ao poder central. No impasse criado, o governo de Getúlio Vargas atendeu os interesses dos ovinocultores gaúchos, sendo negado o pedido dos industriais de São Paulo por deliberação do Conselho®. Nos dois casos citados, a FARSUL louvou a atitude patriótica do presidente da República, atendendo os interesses econômicos do Rio

Grande. A política do governo central, de amparo à produção nacional em termos de diversificação, no vácuo causado pela crise do café, vinha, neste momento, ao encontro das necessidades básicas da economia gaúcha.

Os problemas da criação, contudo, não se esgotavam aí. Processa-

5A crise da pecuária. Correio doPovo, Porto Alegre, 26 jul. 1935. p. 9. 6A liberação cambial e a produção rio-grandense. Correio doPovo, Porto Alegre, 3 maio 1935. p. 10.

^Anais do X Congresso Rural da FARSUL. Porto Alegre, Of. Gráf. Publicidade Americana, 1937. p. 46.

^Ibidem.

146

va-se o abandono dos campos, fato apontado por Juvenal Pinto, para o ano de 1935, e que se referia não somente ao proletariado rural como também aos donos de terra, que ou passavam a viver nas cidades ou transitavam para uma atividade agrícola mais compensadora^. No que toca à matança de charque no Estado, este, após um pe

ríodo de crescimento entre os anos de 1929 e 1933, decaiu no período em apreço, enquanto se elevou o abate para frio e conserva:^ ® Anos

Charque

Frio e conserva

1934 1935 1936 1937

81,86% 82,78% 72,56% 71,24%

18,14% 17,22% 27,44% 28,76%

Em termos de exportação do produto, este se comportou da se guinte forma, no mesmo período^ ^:

Anos

(em toneladas)

(emcruzeiros)

Valor

Preço do quüo (emcruzeiros)

54.594 69.775 54.294 61.448

69.519.573 99.758.243 83337.924 136.931.593

1,30 1,40 1,50 2,20

1934 1935 1936 1937

Qualidade

Os dados, no caso, parecem conflitar (diminuição do abate, nos anos de 1935 a 1937, e aumento da tonelagem, no ano de 1937). To davia, o aumento da tonelagem exportada pode se enquadrar dentro de uma linha de diminuição de matança, desde que diminua também o consumo interno no estado, dados que, contudo, faltam. É apreciável, porém, verificar a ascensão do preço nosmercados centrais do país. O Sindicato continuava a configurar-se como o primeiro expor tador do Estado. Sua atuação era louvada por alguns como instituição digna de aplauso.

Relatava o Boletim do Ministério do Trabalho, Indústriae Comér

cio, no ano de 1935, que havia sucesso na matança para charque no es tado (700.000 reses). Valendo-se das matanças referentes ao ano de 1932 até 1935, o artigo concluía que não tinha sentido dizer que a

^into, Juvenal José. Política rural Porto Alegre, Globo, 1935. p. 17-23. lOMaterial do Instituto Sul-Rio-Grandense de Carnes.

1ISilva, Austriclinio G. dá ât Guerra, Aldrovando. Exportação do charque no Rio

Grande do Sul. Porto Alegre, Secretaria da Administração, Departamento Esta dual de Estatística, 1959.

147

indústria do charque declinava no Rio Grande do Sul. Isto, em parte, devia-se ao fato do Rio Grande possuir a associação de classe melhor organizada no país: o Sindicato dos Charqueadores. Acrescentava que os seus presidentes, embora pudessem ser políticos, não levavam cor

política na sua direção. Unidos, levando uma orientação em conjunto, permitia-se a colocação de toda a safra do ano dentro deste período. Concluía o artigo: Finalmente, de um lado, a grande safra de gado, no Rio Grande do Sul, além da sua expansão regional, propriamente, tem uma expressão maior, regionalmente: - éo poder de com pra que, nas carnes, confere ao Rio Grande do Sul, para poder importar dos outros Estados, como, por exemplo, o açúcar de Pernambuco e as manufaturas da indústria fabril de São Paulo. ^ 2

Parece estar aqui configurada a perspectiva do centro da divisão

nacional do trabalho, ou, quando muito, o da especialização das regiões dentro de um esquema de diversificação produtiva, impHcando a acei tação, por parte do Rio Grande, do papel de produtor de gêneros ali mentícios e comprador de manufaturados. Embora exportando mais seu artigo principal, a contrapartida era o atrelamento do estado sulino ao desenvolvimento capitalista do centro do país. A melhoria do preço do charque contribuiu para incrementar o movimento cooperativista já instalado no período discricionário e me

diante o qual os criadores associavam-se para charquearem seus gados, eliminando com isso a dependência do saladeiro e do frigorífico. No final do ano de 1936, mais duas entidades desta natureza surgiram. Em 8 de novembro de 1936, era criada a Industrial Pedritense

de Carnes Ltda., e, em 26 de novembro do mesmo ano, a Cooperativa Bageense de Carnes. Esta última iniciou suas atividades em fevereiro

de 1937, abatendo na charqueada São Domingos, de propriedade do Banco da Província do Rio Grande do Sul.

Entretanto, o aumento das exportações gaúchas de charque não significava o controle rio-grandense do mercado nacional. São Paulo, no caso, além da produção industrial, passara na frente do Rio Grande na exportação de carnes congeladas e resfriadas de bovinos, além de competir na produção de charque. Pelos dados a seguir, é possível constatar a superioridade paulista com relação ao Rio Grande do Sul:^ ^

I^Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio de Janeiro, Departamento de Estatística e Publicidade, nov. 1935, ano 2(15):193.

13pimentel, Fortunato. O Rio Grande do Sule suas riquezas Porto Alegre, Li vrariaContinente, [s.d.] 67. 148

Ano de 1936

Carne congelada de bovino Game resfriada de bovino

Rio Grande do Sul

São Paulo

13.099.061 kg 9.971.586 kg

17.073.711 kg 84.855.446 kg

Embora exportando mais charque e obtendo por ele um maior valor, os saladeiristas gaúchos se veriam afetados novamente pelo "caso do sal".

A desvalorização da moeda brasileira, encarecendo o sal estran geiro, e o emprego do sal nacional pelas charqueadas dos estados cen trais haviam obrigado os charqueadores rio-grandenses a utilizá-lo.

Os primeiros exemplos do seu emprego haviam sido dados pelos frigoríficos estrangeiros Swift e Armour, além da Cooperativa Santanense. Da mesma forma, charqueadores de nome, como Pedro Osório e Evaristo Lopes dos Santos, utilizaram o sal de Mossoró com bom

proveito. O uso do produto nacional intensificou-se a partir de 1931,^ ^ mas, só no Estado Novo é que seu consumo estava realmente difun dido.

As casas de comércio importadoras do Rio Grande faziam intensa

propaganda, indicando que o produto de Mossoró era preferido pelos "grandes frigoríficos e charqueadores de São Paulo", além de ser ven

dido com sucesso no Uruguai. No seu uso pelo Prata, concorrente do Rio Grande do Sul, pode ser visto o anacronismo da situação dos gaúchos, arraigados a um costume secular.

A reclamação dos saladeiristas rio-grandenses, contudo, incidia sobre a falta de sal no Rio Grande no fim da safra, no que acusavam os importadores, e no seu alto preço. Denunciavam, ainda, que se genera lizava no Rio de Janeiro uma campanha contra os charqueadores gaúchos, porque eram contra o sal nacional, reclamação esta que partia também de outros estados como Minas Gerais e São Paulo.

Apontando que a quantidade necessária de sal no estado, por ano,

era de 125.000 toneladas, o Sindicato dos Charqueadores solicitou ao governo federal providências no sentido de que não faltasse o artigona safra de novembro de 1935 a maio de 1936, que o mesmo tivesse as mesmas propriedades do sal de Cádiz e que seu preço não ultrapassasse 240$000 nos portos gaúchos. Na hipótese de não ser possível, solici tavam os charqueadores que fosse concedida a redução dos direitos de importação sobre o produto de Cádiz. Em resposta, o governo central, tomando em consideração o pe

dido dos rio-grandenses, prometeu providenciar para a entrada do sal estrangeiro^ ^. A questão do sal. Correio do Povo, Porto Alegre, 22 ago. 1935. p. 9.

15A questãodo sal. Correio doPovo, Porto Alegre, 24 ago. 1935. p. 9. 149

A questão, contudo, permaneceu sem solução, e, em julho de 1936, por ocasião da II Conferência Nacional de Pecuária no Rio de Janeiro, a FARSUL, em ação conjunta com o Sindicato dos Charqueadores, apôs entendimentos com os salineiros, acertou com a presidência da República de que fosse criada a "Junta Controladora do Sal", órgão formado por representantes das entidades de classe estaduais, que teria o fim de controlar a distribuição deste artigo entre os criadores e charqueadores, de acordo com o preço estabelecido para os diversos es tados.^ ^

Todavia, como só o Rio Grande do Sul possuía as tais entidades

de classe, precisando que as mesmas fossem criadas nos demais estados pecuaristas, as medidas sugeridas pelo estado sulino não foram imple mentadas.

O governo central, agindo desta forma, só contemporizava, pois

tinha outros fins em vista. Como já foi colocado anteriormente, sua preocupação era, antes de mais nada, com a diversificação econômica

do país, com a proteção à produção nacional e a integração do mercado interno, numa dinâmica substitutiva de importação que permitisse re tirar o Brasil da crise, dando continuidade ao processo de acumulação de capital. Se o caso do sal era um problema que afligia os charqueadores, os criadores consideravam-se onerados em demasia com os impostos. Tanto o Sindicato Agro-Pecuário de Bagé como a Sociedade Agrí

cola de Pelotas solicitaram ao governo a eliminação do imposto de vendas mercantis. Argumentavam que não se tratava de um pedido de isenção, uma vez que os produtos naturais (couro, gado, lã) iriam pagar necessariamente este imposto após manufaturados ou revendidos.^ Sua pretensão foi atendida pela Assembléia Legislativa do Estado, que, em 3 de agosto de 1936, aprovou a isenção do imposto de consignação e vendas mercantis para os produtos da pecuária. Outra taxação que originava reclamações era a taxa de coopera ção, criada pelo governo com o intuito de arrecadar o capital necessá rio para renovação da produção pecuária. Na crítica do ruralista Dario Brossard, a demora na instalação do Instituto de Carnes não se justificava: Já lá se vão quase dois anos, sem que nada mais se tenha

feito. Apenas a taxa de cooperação, que continua de pé, indi ferente à sorte das organizações que lhe deram razão de ser, 16Anais do X Congresso Rural da FARSUL. Porto Alegre, Of. Gráf. Publicidade Americana, 1937. p. 58.

l^Brossard, Dario. A pecuária e o imposto de vendasmercantis. Coneio do Povo, Porto Alegre, 17 abr. 1936. p. 10.

150

Ora, isso não está certo. Ou instale-se o Instituto ou desapa

reça a *'taxa'\ ^® Na verdade, a problemática fundamental, que se arrastava desde a República Velha, atravessara a fase do Governo Provisório e se arras tava ainda no período constitucional, continuava a ser a da renovação da pecuária.

Convocado em outubro de 1935 um Congresso Rural Extraordi nário pela FARSUL para a reforma dos seus estatutos, o tema dos fri goríficos tomou-se o objeto central das discussões. A questão revestia-se de nova atualidade, na medida em que o Conselho Federal de Comércio Exterior fez saber que a Inglaterra tinha

intenção de estabelecer um plano a longo prazo de importação das carnes em conserva brasileiras.^^ Por outro lado, descortinavam-se amplas perspectivas para o abastecimento do mercado italiano, cujo go verno interessava-se na compra de 22.000 toneladas de carnes brasi

leiras.^® Dentro da política seguida por Vargas de relacionamento co mercial com novas potências, como a Itália, a Alemanha e o Japão, o intercâmbio se faria em bases privilegiadas e específicas. Na postura de Carone,

A diminuição, em valor, das importações e exportações, com existência de um pequeno saldo favorável às últimas, leva o governo ao uso de meios comerciais ilícitos, ou fora das normas para intensificar o intercâmbio com determinados países.'^ ^

O governo federal tinha em mente não perder nenhuma chance de penetrar em mercados, aplicando, para o caso da Alemanha e da Itália, o esquema do marco e da lira "compensados", ou seja, troca de mercadorias sem utilização de pagamento em ouro. Em 1937, a política do governo central se complementaria com as

articulações para o fornecimento de carne brasileira, conservada e con gelada, para o Japão^^. Uma missão econômica brasileira dirigiu-se a este país com produtos pecuários nacionais, inclusive sulinos, que determinaram visitas de representantes do governo japonês ao estado para efetuarem compras. O Japão já estavacomprando algodãopaulista e, agpra, se interessava por charque e produtos bovinos congelados. Face a estas condições, criadas dentro da orientação da política l^Brossard, Dario. A taxa de cooperação. Correto do Povo, Porto Alegre, 27 maio 1936. p. 10.

I^Correio do Povo, 25jan. 1935, p. 10; 22fev. 1935, p. 10. ^Ocorreio do Povo, 2 ago. 1935, p. 11;3 ago. 1935, p. 7;6 ago. 1935,p. 7. 21Carone, op. cit., p. 65. 22 o comércio de carnes com o Japão. Correio do Povo, Porto Alegre, 24 abr. 1937. p.5.

151

econômica nacional, ganhava força a idéia de frigorifícação de carnes, que ressurgia no pós-30 com o objetivo imediato de abastecimento apenas do mercado nacional. Por ocasião do Congresso Rural Extraor

dinário, o Gel. Marcial Terra passou a presidência da Cooperativa ao Dr. Protásio Vargas, deputado classista e acionista da entidade. Deci diram os ruralistas, em conjunto, representantes da FARSUL e da Cooperativa, ir em comitiva á presença do governador do Estado, a

fim de tratarem de assuntos relativos aos destinos da Cooperativa e à instalação do Instituto de Carnes.

Na ocasião. Flores da Cunha expôs a razão da demora para a concretização do Instituto. Pretendia, antes, dotar o estado de uma

infra-estrutura que o capacitasse a receber o funcionamento da nova en

tidade. Para tal, realizavam-se as construções do entreposto-frigoríflco do cais do porto e do matadouro-modelo, a compra de vagões frigo ríficos e o prolongamento da estrada de ferro do Riacho até o arra

balde de Espírito Santo, de modo que o novo matadouro pudesse ser servido por estradas de ferro e de rodagem,estando esta última obra a serviço da Brigada Militar.^^

No que diz respeito ao entreposto-frigorífico do cais do porto, o mesmo já se achava concluído e objetivava ^arelhar Porto Alegre para as atividades de importação e exportação de produtos perecíveis, em es

pecial os oriundos dazonacolonial. O entreposto frigorífico possuía 33 câmaras, com uma área total de 3.249 m^. Concluída a sua construção

pela firma Gruen & Bilfinger, foi o entreposto entregue à direção do portodacapital, que iniciou a sua exploração comercial.^"* Quanto ao matadouro-modelo, através da Lei n9 5.980, de 26 de junho de 1935, a Secretaria da Fazenda ficara autorizada a emitir

12.467 apólices no valor de 500$000 cada, aojuro de 8% ao ano, para atender às despesas paraa construção do matadouro dePorto Alegre. O projeto original previa câmaras de refrigeração a +4°C, mas, na intenção de dotá-lo de melhores condições deutilização, prqjetou-se transformar uma das câmaras previstas em câmara decongelação, para o quefoi assi nado um termo de aditamento ao primitivo contrato com a firma Dahne, Conceição & Cia.

A modificação introduzida importou numa mqoração

de 832:253$150, conforme foi autorizado em lei rfí 620, de 28 de agosto de 1935, que, somando à importância do con

trato anterior de 5A76:801$553, elevou o custo daquele estabelecimento a 6.309:054$703^^

23 A industrialização das carnes rio-grandenses. Correio do Povo, Porto Alegre, 8out. 1935. p. 12.

24Mensagem dogovernador, 1936. p. 225.

25p^entel, Fortunato. Oiarqueadas e frigoríficos [s.l] Livraria Continente,

[s.d.] p. 243. 152

Face a estas alterações técnicas, o matadouro-modelo de Porto Alegre ficou com a capacidade de fornecer 52.000 kg de carne resfriada em dois dias e 30.300 kg de carne congelada em quatro dias. Sua

capacidade de matança por hora era de 90 bovinos, 75 suínos e 75 ovi nos. Ficava habilitado a atender às necessidades de Porto Alegre e de

exportação.^ ^ Com relação à exploração do matadouro, seria aberta uma con

corrência para o que o governo esperava que a Cooperativa, a FARSUL ou o Instituto apresentassem propostas. Além, disso, o governo enco mendara cinco navios frigoríficos.

O governo estadual fixava a sua postura, desta forma, na prepa

ração das condições infra-estruturais que, a seu ver, deveriam preceder o funcionamento do Instituto de Carnes. No tocante á construção de frigoríficos pelo Estado, o governo afirmou não acreditar na sua cons trução contando apenas com a iniciativa privada, relembrando o desas tre do "Frigorífico Rio Grande" de 1917, comprado pela Anglo, que o adquirira para depois fechá-lo.^ Concluindo suas idéias. Flores da Cunha acrescentou que dese

java, para a consecução destes fins, a colaboração de todos os ruralistas, enfatizando:

Com o auxílio dos senhores, sem os senhores ou mesmo contra os senhores, o Governo do Estado resolverá o problema,

organizando o Instituto de Carnes, pois desqa, se até lã estiver

àfrente dogoverno, deixá-lo, pelomenos, encaminhado.^^ Frente á declaração taxativa do governo de processar a renovação da pecuária sob os auspícios do Estado, ambos os líderes ruralistas, Protásio Vargas e Marcial Terra, concordaram com a postura assumida, reafirmando a sua aceitação e boa vontade. Retoma-se aqui, como

lembrança, que Marcial Terra pertencia à Frente Única e Protásio Var gas aos quadros do PRL. Em se tratando da realização de interesses eco nômicos comuns à classe, a oligarquia rural esquecia mais uma vez as divergênciaspolíticas.

Complementando estas medidas de amparo e fomento da ativi dade pecuária no estado, o governo gaúcho criara, emjunhode 1935, a Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio, que, já em 1936, se ^^Mensagem do governador, 1937.p. 38^9. 27o projeto do "Frigorífico Rio Grande", levado a efeito pela União dos Cria dores, foi proposto em 1914, sendo fundado em 1917 e entrando em funciona mento em pequena escalaem junho de 1920. Em janeiro/fevereiro de 1921, foi

adquirido pela Anglo, assumindo o nome de "The Rio Grande Meat Company" e de "Frigorífico Anglo" em 1924.

28congresso Rural Extraordinário. Correio do Povo, Porto Alegre, 8 out. 1935. p.12.

153

lançava à execuçfo de um programa que implicava a contrataçâío de técnicos (agrônomos, veterinários, engenheiros de minas, químicos, economistas, etc.), além da realização de exposições-feira, participação em certames nacionais e publicação de obras orientadoras da produção agropecuária.

Foi assegurada assistência técnica através das inspetorias e de

agrônomos itinerantes, assim como foram criados laboratórios, que, a serviço da Secretaria, tinham por fim colaborar com o aperfeiçoamento dos métodos de produção e defesa sanitária animal. Na V Exposição Nacional da Pecuária realizada em 17 de julho

de 1936, no Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul conquistou 37 prê mios, dos quais dez foram conquistados por reprodutores descendentes

de animais importados pelo governo do Estado e criados no posto zootécnico das colônias.^ ^ O Rio Grande do Sul levou a dianteira sobre

os demais estados em termos de classificação dos animais de raças de corte e de leite.

Nesta questão do selecionamento de raças, o governo do Estado adquiria reprodutores importados e os colocava nos postos de monta permanentes mantidos nos postos zootécnicos do estado, que se locali

zavam na colônia (Montenegro), na fronteira (Uruguaiana) e na serra

(Tupanciretã). O governo cedia, a título de empréstimo, os reprodu tores de seus plantéis, atendendo às solicitações dos criadores de dife rentes pontos do estado.

A mensagem do governador de 1937 apontava o número de 1.246 animais de raças registrados. Não há referência se este dado (referente a animais de pedigree, animais puros por cmzamentos e animais mes tiços, entre bovinos e ovinos) reportava-se aos anos de 1935, 1936 ou 1937.

Considerando, contudo, que o Rio Grande do Sul contava, em 1935, com 10.129.000 bovinos e 8.273.000 ovinos, perfazendo, no conjunto, 18.402.000 cabeças, esta proporção de gado refinado tor na-se, na realidade, insignificante em termos percentuais, mesmo se a

ela acrescentar-se o número de bovinos (349) e de ovinos (35) de raça que os plantéis do estado possuíam (dados da mensagem de 1937). Secundando a ação do Estado, a FARSUL empenhou-se numa propaganda intensa para que os criadores gaúchos adquirissem repro

dutores bovinos paramelhorarem seus rebanhos. Paratanto, empenhouse na consecução de um crédito de até 5.000:000$000, aberto no Banco do Brasil e no Banco do Rio Grande do Sul a fim de atender cabanheiros e criadores.^®

29Mensagem dogovernador, 1937. p. 71-2. 30Anais do XCongresso Rural, op. cit, p. 75. 154

Da mesma forma, o governo do Estado, em concordância com o governo central, oportunizou um empréstimo do Banco do Brasil com garantia do Banco do Estado de 44.529:2005000 para auxílio da pe cuária.

No ano de 1935, foram aplicadas, em empréstimo especial à pe cuária, as somas de 335:0005000 no primeiro de 148.0005000 no segundo semestre.

Além deste serviço, o governo empenhava-se na questão das pas tagens artificiais. O serviço de agrostologia desenvolvia-se especial mente em Tupanciretã, onde, em 16.130 m^, experimentavam-se es

pécies gramíneas e leguminosas forrageiras.^ ^ Em julho de 1936, realizou-se ainda no Rio de Janeiro a II Con ferência Nacional da Pecuária, tendo sido o Rio Grande do Sul repre

sentado pelo então presidente da FARSUL, Anibal Di Primio Beck. No seu discurso, Di Primio Beck destacou o grande apoio de Getúlio Vargas, criador também, à classe mral e realizou a defesa das atividades agrárias, base da indústria. No caso, o mralista, que também era industrial (Cia. Fiação e Tecidos P.A.), fazia a defesa das "indústrias naturais", complemento indispensável à continuidade da 'Vocação agrí cola" do estado gaúcho. Acrescentava o ruralista:

A agricultura é a indústria mater, a indústria restaura-

dora da existência. Não há trabalho humano que supere o do ruralista, compreenda-se como tal todo aquele que retira da terra o produto do seu esforço. Com o melhoramento da agricultura, cresce a riqueza de um pais, as indústrias pros peram e o comércio se expande cada vez mais. Compete, pois, ao Estado, facilitar, promover e tomar mais racional e produ tiva a agricultura. ^^ Fixando as relações entre os produtores e o Estado, o ruralista afirmou que aqueles deveriam tomar parte ativa na discussão dos ne gócios públicos, pedindo e exigindo dos governos aquilo a que tinham direito.

Se os governos, para o bem geral da coletividade, têm a

faculdade de controlar as atividades econômicas, aos produ tores não deve ser negqdo opinarem sobre os atos e os agentes

da administração política [...] A administração dos negócios públicos não deve ser privilégio dos políticos ou letrados. Quem melhor do que nós, se acha preparado para a dire ção e gestão da economia pública? [...] Não quero, com JlMensagem do governador, 1936. p. 259. J^Anais da Assembléia Legislativa do Estado. Sessão de 20 de julho de 1936. p. 469.

155

isto, dizer que deve fazer parte do nosso programa a disputa dos altos cargos administrativos do pais, pois não é de se con cluir, do que disse acima, que os produtores ocupem, incontinenti e sem transição, o exercício das funções públicas ou políticas, quero apenas ressaltar a necessidade dos produtores também interferirem na vida política da coletividade com seus conhecimentos práticos [...] Por mais de uma vez tenho dito e afirmado ser essencial entre as atividades privadas e os poderes públicos, o estabelecimento de um sistema de cola boração recíproca que se poderá desenvolver sob uma multi plicidade de formas e aspectos, na defesa da economia e do bem-estar do país. ^^ Fica aqui expressa, nas palavras de Di Primio Beck, a identifi cação entre as orientações da política de Vargas com as da "corrente

nacionalista" do contexto gaúcho, à qual aderia a FARSUL ou, pelo menos, parte representativa dela, expressa pela palavra de seu presi dente.

Despqjavam-se as oligarquias agrárias do seu conteúdo político para conferir-lhes um novo e preciso significado econômico: os produ tores da terra, responsáveis pelo desenvolvimento do país. Através de sua dimensão econômica é que se realizaria a sua ligação com o Es tado, que se configurava como o órgão técnico-administrativo que de veria amparar as forças produtoras. A colaboração das classes produ toras com o governo seria responsável pelo desenvolvimento do país.

Homero Fleck, em discurso de saudação a Anibal DiPrimio Beck no seu retomo a Porto Alegre, complementaria esta posição, afirmando que "a economia não deve ser dirigida através da política, masa melhor e mais sólida política é aquela orientada através da economia."

A despolitização das oligarquias rurais, como meta do governo central, inclusa na proposta, ainda não era plenamente conscientizada no Rio Grande. A intervenção do Estado na economia, admitida como

elemento condutor e removedor de entraves, foi, porém, aceita. Outro sentido, aliás, não tinha o apoio da FARSUL às medidas do governo do Estado gaúcho em termos de renovação da pecuária sulina. Naverdade, sem condições de vencer, por si própria, os obstáculos que se ante punham, a pecuária descapitalizada continuava,tal como o fazia na Re pública Velha, a recorrer ao Estado para a solução de suasdificuldades. Por outro lado, a idéia da criação do Instituto de Carnes, brotada

de setores da própria classe rural, é uma prova de que a perspectiva de intervenção do governo na esfera econômicaera bem aceita por amplos setores da classe rural.

33ibidem, p. 470-1.

34Homenageni prestada, ante-ontem, ao presidente da FARSUL. Correio do Povo, Porto Alegre, 29 set. 1936. p. 9.

156

Nesta instância, a divisão política da classe dominante em dois

blocos (PRL e FUG) não ganhou a força necessária para dar-lhes uma visão diferenciada da condução do processo econômico. A idéia da constituição do Instituto, como foi vista, mereceu a aprovação e o apoio das duas correntes políticas básicas do Rio Grande.

A solução dos problemas da pecuária, conduzida pelo governo central na sua perspectiva de diversificação do processo econômico e pelo governo gaúcho na intenção de salvaguardar as atividades agrope cuárias dominantes do estado, dava-se no Rio Grande através da hege monia da "ala nacional", capaz de, nesta instância, responder ás necessi dades de pecuaristas de ambas as facções políticas do estado. Esta posição, contudo, não era homogênea. Por exemplo, logo ao serem iniciados os trabalhos da Assembléia Constituinte gaúcha, em 1935, os dois agrupamentos políticos defrontaram-se na discussão das relações entre o Estado e o processo econômico.

O deputado Edgar Luís Schneider, da Frente Ünica, argumentou que a forma adequada do governo proteger a economia era dotá-lo de liberdade econômica, não bastando a liberdade política. Acusando que, no estado, o "uso e abuso das intervenções governamentais nos setores da produção e da circulação" haviam atingido um grau intenso, o de putado oposicionista lembrava a petição encaminhada à Assembléia pelo IV Congresso das Associações Comerciais, onde, além da supressão dos impostos sobre vendas, exportação, territorial e transmissão inter-vivos, as classes econômicas do Estado pediam a inclusão, no texto da constituição que ora se elaborava, da cláusula da liberdade de indús tria, de comércio e de concorrência.^^

O deputado afirmava que, apesar de contar com defensores no Rio Grande do Sul, o estatismo na economia ia em "franca derrota"

no mundo. Neste ponto, o deputado oposicionista não estava fazendo a devida correlação com a crescente interferência do Estado no plano da economia, não somente ao nível nacional, mas também mundial, fenômeno difundido após a crise de 1929.

Na sua defesa do liberalismo econômico, o deputado da FUG não negava totalmente ao Estado qualquer interferência na vida econômica, reservando-a para o caso das obras púbUcas, ensino especializado e pro fissional, transportes, estações experimentais, laboratórios técnicos, etc., além de ser o garantidor da ordem e paz social. Fora desta função policial, só se admitia a ingerência do Estado nos casos em que o bem da coletividade demandasse a sua presença.

35Anais da Assembléia Constituinte. Sessão de 7 dejunho de 1935. 36ibidem. Sessão de 11 dejunho de 1935.p. 55. 157

A veemência da defesa do liberalismo econômico deve ser devida

mente enquadrada dentro da extração social do deputado. Edgar Luís Schneider era originário do Partido Libertador (PL) e representava os interesses do Sindicato dos Comerciantes Atacadistas. O conteúdo de

classe, no caso, encontrava ocasião propícia de manifestar-se no seu posicionamento nos quadros da FUG, minoria política dentro do Estado.

Portanto, numa identificação com os interesses do grupo econô mico ao qual era ligado, Schneider apontava os efeitos negativos da in terferência governamental na economia através do exemplo das tarifas protecionistas, que ocasionaram o encarecimento dos produtos brasi

leiros, com prejuízo do consumidor, da balança comercial e do fisco. Sua postura, contudo, não deve ser abrangente de todo o pensamento da FUG.

O Estado deveria intervir só para o benefício da coletividade e não para criar privilégios. Acrescentava o deputado da FUG, criti cando o governo:

A pretexto de amparar e proteger os principais artigos de exportação, entrou o governo do Estado a patrocinar, aberta mente, a formação de grandes institutos. Surgiram e se multi

plicaram, dessarte, os chamados sindicatos, em cujo beneficio foi instituída a isenção de taxas, que deviam recair sobre os não-sindicalizados, Todos conhecem, naturalmente, as orga nizações criadas e mantidas, assim, à sombra dos favores ofi ciais, Abraçados pelos tentáculos dessas entidades universal mente condenadas estão os produtos básicos da economia rio-grandense: a banha, o charque, o vinho, a cebola e ou tros, [. ..] Onde, porém, os objetivos que induziram o gover no do Estado a intervir, desse modo, nos domínios da econo mia rio-grandense? Tanto que se pode deduzir de conhecidas manifestações oficiais, cifravam-se os intuitos do governo:

a: I —concentração da massa dos interessados; II - standartização do produto; III - estabilização dos preços; e IV —regu larização das exportações, ^

Posicionando-se claramente contra as entidadessindicais que usu fruíam de privilégios, Schneider classificava-as de verdadeiros "mono

pólios", constituídos de intermediários que lucravam em prejuízo dos consumidores e dos produtores. Dando força a esta idéia, a Frente

Única argumentava com a derrota sofrida pelo PRL justamente nazona em que havia protegido os produtores.^® Fazendo uma ressalva específica ao Sindicato do Arroz, consi-

^^Anais daAssembléia, op.cit., p. 65. 38nos debates subseqüentes, é possível identificar esta zona como sendo a co lonial.

158

derando o único que não tinha finalidades mercantilistas e que pro tegia os produtores, Schneider acusava, entre outros, o Sindicato do Charque, que gozava de isenções, tal como a da taxa bromatológica.

Em revide às acusações da FUG, o PRL argumentava que, num período de crise, o Estado não podia cruzar os braços, mas sim intervir no sentido de "amparar e desenvolver as forças econômicas". Na opinião do deputado Romeiro da Silva, liberal, a crise das exportações rio-grandenses se dava pela concorrência de São Paulo na conquista do mercado interno, que havia diversificado sua capaci dade produtiva, ao mesmo tempo que gozava de bancas tarifas e proxi

midade geográfica de mercados de consumo. A criação de sindicatos, controlados pelo governo do Estado, tinha o objetivo ^enas de orga nizar a produção e conquistar os mercados de consumo.^ ^ Corroborando com a posição do PRL, o deputado Moysés Vellinho acentuou que a crise da indústria e do comércio vinha de longa data e encontrava raízes profundas no liberalismo econômico. A interven ção do Estado na economia vinha, portanto, sanar este mal. Neste sentido, apontava que os produtos amparados pelo governo estavam

obtendo preços compensadores.^® Enquanto o setor econômico do comércio, através da FUG, ba-

tia-se pelo liberalismo econômico e acusava o sindicato, amparado pelo governo, de ser mero intermediário entre o produtor direto e o consu

midor, isolando-os uns dos outros e impondo o preço, o PRL defendia a intervenção do Estado no terreno econômico como a única forma capaz de fazer o Rio Grande vencer a crise econômica em que vinha se deba tendo. Neste sentido, enquadrava-se com a política oficial do governo central.

Ao mesmo tempo em que era aceita, no seio dos pecuaristas, a idéia da frigorificação por intermédio do Instituto de Carnes, tal como se aceitava, aos poucos, a interferência do Estado na economia, a fração

de classe dos charqueadores atingiria, no final da República Nova, uma nova fase na sua atitude quanto ao problema pecuário. O preço do gado se elevava, tendo em vista o contrato de forne

cimento de carnes frigorificadas para a Itália e o conseqüente aumento do abate nos frigoríficos estrangeiros, que começaram a pagar bom preço aos criadores. Um boi de seis arrobas, na safra de 1935, custara ao charqueador 175$000. O preço do boi, acrescido do custo da produção do charque (mão-de-obra, transporte dentro do estado) e das despesas de fora do Rio Grande (fretes marítimos, comissão do agente embarcador, despesas 39Anais, op. cit., p. 72. 40Anais, op. cit, sessão de 15 dejunho de 1935.p. 104. 159

portuárias, danos, etc.), faziam com que, em 1935, um boi transfor mado em charque importasse em 281 $000. Fazendo os mesmos cálculos para o ano de 1936, o boi ficava, com todos os gastos correspondentes, em 402$000. Em outras pala vras, uma diferença para mais de 121$000 sobre o mesmo boi para o ano de 1935.

Mesmo considerando a melhoria do preço do charque de um ano para outro, assim como a do couro, o charqueador ainda perdia, con forme especificava o vice-presidente do Sindicato, João Fiori:

Aumento do custo do charque Melhoriado preço Venda do couro

121$000 5d$000 27$000 81$000

Abatendo-se esta importância dos 121$000, há a dife rençade 40$contra o charqueador.*^ A grande demanda de gado no Rio Grande estava sendo efetivada

pelos frigoríficos e não pelas charqueadas. Aqueles haviam, de 1935 para 1936, duplicado a sua matança; de 200.000 cabeçaspara 400.000. Diante de tal situação, João Fiori explicitava o pensamento do que o Sindicato iria fazer:

Instalar frigoríficos e abandonar o charque. Dá mais re sultado. E acredito que, dentro de cinco anos, as atuais char

queadas do Rio Grande estarão reduzidas a um terço. Não podemos continuar a explorar uma indústria em situação tão precária.*^

A perspectiva de renovação do processo produtivo, atingindo

agora a fração de classe dos charqueadores, foi surpreendida com a di vulgação da Circular n9 1.550, de 26 de agosto de 1936, do governo federal, onde se impunha a remodelação das charqueadas. Até o início da safra de 1937, deveriam ser cumpridas determinadas formalidades higiênicas nos estabelecimentos, tais como o exame daágua e a adoção de rede de esgotos subterrânea. Até o inícioda safra de 1938,exigia-se o cumprimento de outras providências, tais como o isolamento das de

pendências para elaboração de produtos industriais (graxaria, triparia, salga, depósito de couro, seboe subprodutos), mediante o levantamento de paredes de alvenaria, o mesmo ocorrendo com as dependências para elaboração de produtos comestíveis (sala de matança, espostejamento, salga e ressalga de carnes, local paratratamento de miúdos), impermea'11Vai declinar a produção de charque. Correio doPovo, Porto Aleere, 12 mar. 1936. p. 9.

'l^lbidem. 160

bilização a cimento dos pisos das dependências da sala de matança, área de tendais internos, locai de salga e ressalga das carnes, graxaria, triparia, locais de salga e depósito de couros, depósitos de sebo e subpro dutos, bases das pilhas de inverno, providas estas de canaletas circundantes e fossa retentora de salmoura. Os cunais deveriam ser convenien

temente calçados e as áreas de tendais de seca de charque impermeabi lizadas e gramadas.

Pelo nível de exigência feita, vê-se a precariedade das instalações da charqueada, sua falta de higiene e de condições apropriadas de tra balho. O resultado final deste processo era a obtenção de um pro duto de baixa qualidade, impuro e de "mau aspecto", como referiam os jornais.

As charqueadas que, pela precariedade de instalações, não pu dessem ser ajustadas ás novas condições, não teriam seu registro revali dado, mas poderiam contiriuar funcionando por dois anos, a contarde 15 de agosto de 1936, independente de qualquer reforma, desde que seus proprietários requeressem autorização para iniciar, dentro de seis meses, a construção de novas charqueadas, conforme planta padrão (item 4 da circular).

Em dezembro de 1936, contudo, novas instruções chegaram do Ministério da Agricultura, determinando que as charqueadas que não tivessem legalizado sua situação conforme o item 4 da Circular n9 1.550 não poderiam funcionar na próximasafra. A situação foi consi derada alarmante, uma vezque foi orçada a remodelação pretendida em

200 contos por charqueada."*^ Considerando o funcionamento de 40 charqueadas no estado em 1936, a soma de capitais que se inver teria seria de 3.200 contos.

Da parte do Governo Federal, a medida revelava uma preocu

pação de modernização no planodas imidades produtoras. Daparte das charqueadas rio-grandenses, a impossibilidade de atender às exigências feitas evidenciava a debilidade de acumulação de capital desta empresa

manufatureira. Uma vez solicitadas para a projetada remodelação, de monstravam não possuir um capitalsuficiente que pudesse, igualmente,

ser aplicado na reforma e, ao mesmo tempo, manter a empresa emfun cionamento (remuneração de pessoal, compra de gado, etc.).

Mais uma vez, revelava-se a precariedade da acumulação local, a descapitalização da pecuária sulina. A situação,por paradoxal que possa

parecer à primeira vista, conduzia a uma reviravolta nas per^ectivas do

"Sindicato dos Charqueadores", que se voltava para a idéia do frio. É Indústria do charque ameaçada de grave exigência. Correio do Povo^ Porto Alegre, 4 dez. 1936. p. 7.

161

lógico que, colocando a questão de outro ponto de vista, pode-se pensar que, se o capital era pouco para remodelar as charqueadas, menor seria ainda para a montagem de frigoríficos. Todavia, a tomada de cons ciência da inadequação de charqueada enquanto processo de trans

formação de carne, não oportunizando maior lucratividade, levava, neste final de República Nova, a um esforço na busca de novos rumos.

De momento, contudo, a preocupação prioritária era tentar pro telar ou contornar a medida do governo central. Tendo em vista que a safra deveria iniciar-se dentro de um mês, movimentaram-se os pecuaristas, liderados por Aníbal Di Primio Beck, que assumira a pasta de Agricultura após a saída de Raul Pilla. Ao assu mir a direção da Secretaria, Di Primio Beck promoveu uma reunião de

todas as "forças econômicas do Estado", a fim de poder delinear seu programa de ação em face dos problemas existentes. Na reunião, da qual participarama FARSUL, a Federaçãodas As sociações Comerciais e o Centro da Indústria Fabril, Di Primio Beck

disse que, após já ter assentado o encontro das classes produtoras do estado, recebera um telegrama de Getúlio Vargas, propondo uma reunião daquele gênero a fim de saber quais os problemas econômicos e pensar nos meios de solucioná-los.

Transparece, neste momento, a ação conjunta, no plano econô mico, entre as chamadas "classes produtoras", o governo central e o governo estadual, que apoiara esta reunião.

Durante a reunião, foi enfatizada "a organização do sistema re presentativo de classe, uma das mais brilhantes e expressivas conquis tas da civilização contemporânea.'"*^

Com referência ao problemado charque,foi especificado que Ge túlio Vargas havia determinado ao ministro da Agricultura para trans ferir tudo para a próxima safra, salvando, assim, a pecuária gaúcha de uma situação de falência.

Como se pode constatar, neste momento era possível observar um enquadramento entre à ação do governo central, do PRL e dos interesses econômicos e necessidades das oligarquias, inclusive da FUG. Todavia, o atendimento às reivindicações sulinas não implicava identi dade total: como zona periférica, fornecedora de gêneros alimentícios para o mercado interno a um baixo preço, o Rio Grande via seus pro blemas solucionados até o momento em que interesses regionais não

conflitassem com os interesses mais amplos da acumulação ao nível nacional. Toda vez, porém, em que o enquadramento se dava, a subor dinação econômica tendia a ser esquecida, ou, pelos menos, passava

44Mbviinentam-se as forças econômicas do Estado. Correio do Povo, Porto Alegre, 11 dez. 1936. p. 7.

162

para um segundo plano. O processo econômico, no caso, é realmente contraditório em si mesmo, pois tanto o centro tinha necessidade do sul quanto este almejava uma integração. As condições de relacionamento é que se dão em bases desiguais, assim como é, em essência, desigual o desenvolvimento do capitalismo. No momento, pois, em que há mais condições de acerto entre os interesses econômicos do centro e as reivindicações da periferia, mascarando-se a dependência, é que a classe dominante conscientiza com mais clareza os problemas que surgem ao nível político. Portanto, na medida em que, no plano econômico, estavam coin cidindo tais interesses, ao nível político inúmeras cisões e rearticulações se processavam.

Na vigência da fase constitucional da Nova República, o esquema governamental de Getúlio Vargas apresentava-se sustentado politi camente pelas oligarquias dominantes dos estados e pela maioria parla mentar na Câmara Federal, que faziam frente comum de ação. Na oposição, constituíra-se a minoria parlamentar, coordenada pelo tri buno gaúcho João Neves da Fontoura, que sistematicamente fazia a crítica da orientação governamental, qualificando-a de "ditadura sem rumo" e "traidora da revolução de 1930". O ano de 1935 foi todo ele marcado pela ação anticomunista e antiliberal do governo central, tendo o movimento repressivo seus pon

tos altos no fechamento da Aliança Nacional Libertadora, em julho, e

na desarticulação da Intentona Comunista, em novembro. Alertando enfaticamente o país contra o perigo extremista, o governo federal fez passar medidas de cunho autoritário, que implicavam o comprometi mento do jogo democrático representativo, tais como a Lei de Segu rança Nacional, o estabelecimento do estado de sítio, sua prorrogação e equiparação ao estado de guerra, etc. Acenando com o perigo do comunismo, Getúlio Vargas pôde con

tar com o apoio para as suas medidas das oligarquias tradicionais, tais como o Partido Republicano Paulista, o Partido Democrático e o PRL.

No dizer de Carone, Getúlio Vargas, para convencer Flores da Cunha a apoiá-lo no início de novembro de 1935, mandara-lhe um relatório de Filinto Müller sobre as atividades comunistas no Brasil."*^

Frente à intentqna de 1935, Flores da Cunha afirmou que suas

forças estaduais seriam capazes de reprimir qualquer revolta e pôs à disposição de Vargas 2.000 homens. A minoria parlamentar, liderada por João Neves, combateu as

medidas repressivas do governo, apontando o perigo do regime derivar novamente para um esquema discricionário. ^^Carone, op. cit., p. 90. 163

No Congresso, João Neves da Fontoura criticaria o fechamento

da Aliança Nacional Libertadora, alegando que não se tratava de uma entidade comunista, segundo seu programa. O governo, que pretendia com seu ato garantir a sobrevivência do regime democrático, fazia uma

política destinada a excitar os extremismos políticos, incitando-os uns contra os outros.^ ^

A atuação combativa da oposição, contudo, permitiu ao governo central melhor abafá-la, conduzindo á prisão, inclusive, de parlamen tares.

Apreensivos quanto ao crescente poder central e temerosos do comunismo e do integralismo. Flores da Cunha e a FUG realizaram ne gociações no Rio Grande do Sul.'*''

Na postura adotada por Carone, o fato da eleição de 14 de outu bro de 1934 para a Assembléia Estadual Constituinte não ter dado ao

PRL uma vitória tão esmagadora, quando por ocasião das eleições para a constituinte federal em 1933, teria obrigado Flores a fazer acordo

com a FUG^®. Inclusive, para aeleição indireta de governador do Es tado pela Assembléia, em 1935, os integrantes do PL e doPRR teriam

aceitado votar na candidatura de Flores da Cunha, desde que lhes fos sem cedidas duas secretarias.

Não descartando nenhuma das duas opiniões a respeito da nova 'pacificação do Rio Grande", que se processou entre janeiro e outu bro de 1936, torna-se importante analisar ambos os lados da questão. A FUG, que com os acontecimentos revolucionários de 1932 e a

formação do PRL se via excluída do governo do Estado, divisava, atra vés da fórmula conciliatória de uma gestão conjunta, uma forma de re tornar ao poder.

O PRL e o governador do Estado, por seu turno, viam na unifi cação política do Rio Grande o fortalecimento do Estado sulino, pers pectivas de maior progresso econômico pela acomodação política dos três partidos, sob a liderança dos liberais, e, muito provavelmente, in tençõeshegemônicas dentro do quadro político nacional.

A questão da origem da idéia pacificadora dividiu as opiniões. No Congresso, o deputado liberal João Carlos Machado afirmava

que Flores, desde março de 1935, havia tomado a deliberação de tratar com os membros da FUG a possibilidade de uma "reconciliação da fa mília rio-grandense".^^

^êpontoura, João Neves da. Discursos parlamentares. Sei. e int. de Hélgio Trin

dade. Brasília, Câmara dos Deputados, 1978. p. 474.

47 Cortes, Carlos. Gaúcho politics inBrazü. [s.l.] University of New México Press 1974. p. 69.

48carone,op. cit, p. 329. 49Fontoura, op. cit, p. 492. 164

Na Assembléia Legislativa do Estado, o deputado do PRL, Simões Lopes, acentuava que a idéia partira de Caio Pedro Moacyr, que a con fiara ao governador, o qual apoiara o movimento de pacificação, que objetivava unir para o trabalho e defender-se contra os inimigos da de mocracia liberal. Na sua opinião, Getúlio ignorava os démarches, en quanto que Batista Lusardo, no Rio de Janeiro, afirmava que a idéia

partira do Catete.®® Tendo sido citado na Assembléia como artífice da pacificação, Raul Pilla afirmou que nunca lhe passara pela cabeça promover a apro ximação do governo com a oposição. A iniciativa coubera ao gover nador, uma vez que Mem de Sá, seu correligionário, fora chamado para tratar deste assunto pelo líder governista João Carlos Machado.^' Em entrevista concedida á imprensa carioca em julho de 35, Flores afirmou ter sido sua a iniciativada "pacificação", sem ter havido comunicação com Vargas, inspirando-se apenas nas "tendências natu rais" de seu temperamento e no "sentimento máximo do povo gaúcho", que desejava a pacificação de seus partidos políticos tradicionais. Por outro lado. Flores negou que adotava tal medida por conveniência par tidária ou por pretender, com isso, facilitar a sua candidatura á presi dência na sucessão da Vargas.^ ^ Apoiando esta versão, o governador substituto do Estado, Darcy

Azambuja, relatava, na mensagem de 1936, que os propósitos de Flores haviam sido a pacificação e a "coordenação das forças políticas em tomo dos altos interesses do Rio Grande".^ ^

As articulações entre os líderes do PRL com os do PRR e do PL estenderam-se até dezembro de 1935. A chamada "fórmula Raul Pilla"

para o acerto partidário implicava em que o governorepartisse os cargos administrativos (secretarias de Estado, principalmente) com a qposição. Raul Pilla propunha ainda a união de todas as forças democráticascon tra o extremismo.®*

Ainda tendo em vista a preocupação com as idéias extremistas, realizou-se uma aproximação do PL com Getúlio Vargas. O encontro girou em torno da fórmula apresentada por Pilla e José Maria Santos, jornalista carioca, que objetivava formar um gabinete de concentração nacional, formado por todas as correntes oposicionistas do Brasil. Tal idéia, de amplitude nacional, era apoiada por Flores, que, no âmbito regional, estava tratando de realizar, com Pilla, um "modus vivendi" ^ÚAnais da Assembléia Legislativa, sessão de 29 dejulho de 1935.p. 83. ^1Anais daAssembléia Legislativa, sessão de 30 dejulho de 1935. p. 92. 52a palavra do Sr. Flores da Cunha à imprensa carioca. Correio do Povo. Porto Alegre, 30jul. 1935. p. 1.

53Mensagem do governador, 1936. p. 206. 54correiodo Povo, Porto Alegre, dez. 1935. 165

entre os três partidospolíticosgaúchos.^ ^ A idéia do governo central de aproximação com as oposições,

sob o pretexto do extremismo, continha a preocupação de dividir as oligarquias, enfraquecendo-as politicamente. Com relação às articu lações rio-grandenses, embora ^laudisse diretamente o acordo, reservadamente o presidente da República incumbia seu irmão. Benjamim Vargas, deputado pelo PRL, a se opor ao "modus vivendi" dentro do partido. Da mesma forma, Getúlio acenava com postos federais aos membros da FUG caso o pacto falhasse.^ ^ Dentro da própria FUG e do PRL, contudo, alguns obstáculos se antepuseram às negociações. Enquanto certos libertadores criticavam a união, lembrando a oposição a Flores no campo de batalha, velhos republicanos de nunciavam, em nome de ra&es castilhistas, a aceitação de princípios parlamentares presentes no acordo. Quanto à ala jovem do PRL, "increasingfy fmstrated by Flores' mtocratic party contrai, felt the pact would sacrifice the youthful PRL in favor of an aUiance of old cronies"J''

No plano federal, João Neves da Fontoura não aceitava o "modus vivendi" rio-grandense^^, assim como Batista Lusardo, acusando que todos os trâmites para a pacificação do Rio Grande traziam consigo a

"possibilidade material de ascender aos postos de governo"^'. Neste caso, a postura assumida por Neves, ^esar de combatida pelos parti dários da conciliação, aproximava-se mais da realidade política gaúcha, onde parte da classe dominante buscava formas de retomar ao poder. Por seu lado, a parte da oli^quia que controlava o aparelho de Estado via vantagem nesta acomodação, tanto pelo reforço político do Rio Grande quanto pela possibilidade de continuar a exercer a hegemonia. A tramitação, no caso, era possível tendo em vista tratar-se de acertos

intradasse, dos interesses econômicos vitais estarem sendo aos poucos atendidos pelo Estado e da perspectiva de fortalecerem-se contra o ex tremismo.

Em 15 de novembro de 1935, realizou-se o congresso do PL para tratar do acerto com o governo do Estado e, na mesma época, reimia-se o congresso do PRR, com o mesmo objetivo. A 17 de janeiro de 1936, foi firmado o "modus vivendi" entre os

trés partidos, sendo então fixada uma nova modalidade administrativa 5Sconeio do Povo, Porto Alegre, 6 out 193S. p. 12. Sécortés, op. cit., p. 69. 57ibidem.

SSpontoura, op. cit., p. 493. ^^Anais da Assembléia Legislativa, sessão de 29 de juDio de 193S. p. 83. 166

com a colaboração das minorias. Em cerimônia realizada na Assembléia Legislativa, Flores da Cunha travou um pacto com o velho chefe repu blicano Borges de Medeiros e o libertador Raul Pilla.

O governador do Estado atendia a uma série de pedidos da FUG, tais como garantia de liberdade de imprensa e assembléia, recontratação dos empregados públicos que tinham sido removidos por razões

políticas e estabelecimento deum efetivo sistema civil de serviços.^** Basicamente, as reformas pretendidas pelos políticos dos partidos de fora do governo abrangiam apenas questões políticas. Isto vem con figurar a problemática básica presente na negociação entre as oligar quias e a circulação do poder político. Em troca de tais concessões, a FUG passou a participar do secre tariado; Raul Pilla ocupou o cargo de secretário da Agricultura e lindolfo Collor, republicano, preencheu a pasta da Fazenda, alterações que se deram em fevereiro de 1936. Um Rio Grande do Sul unido sob o comando de Flores era um

dado que se antepunha à meta do governo central de desarticulação política das oligarquias, impedindo a volta a um esquema de poder si milar ao da República Velha.

Nessa medida, Vargas começou uma tática de minar o "modus vivendi", solapando tanto pelo lado da I^G quanto pelo próprio PRL. Quanto à FUG, Vargas promoveu encontros com os líderes Mau rício Cardoso, João Neves e Batista Lusardo, todos eles contrários ao

acerto político-administrativo que se dava no Rio Grande. A título de promover uma "política de pacificação nacional", tal como havia feito aproximações c(»n o PL, o presidente comissionou Maurício Cardoso para organizar um "ministério de compromisso", no qual a FUG de sempenharia o maior papel. Com relação ao PRL, a ação de Vargas se encontra na raiz da "dissidência liberal", que, em abril de 1937, haveria de abalar o partido governista no Rio Grande do Sul. Encabeçados por

Benjamim Vargas, imúío do presidente, e pelo jovem deputado José Loureiro da Silva, os dissidentes liberais acusaram o "modus vivendi" de ser wn acerto entre políticos da República Velha para controlar o

poder, além de se oporem ao comando autoritário de Flores na chefia do partido. Finalmente —e este é um dado muito importante —tais ele mentos optaram por uma aliança com o poder central, politicamente mais vantajosa do que o apoio ao governador do Estado.^ * Tal forma de agir, dividindo politk;amente as oligarquias locais, apoiando as oposições e enfraquecendo os governos estaduais, acabaria éOcortés, op. cit, p. 70. éllbidem.p. 70-1. 167

por abater as classes dominantes regionais, submetendo^ ao poder central.

Tais aproximações e transações de Vargas, ocorridas entre abril de 1936 e abril de 1937, tiveram duas conseqüências políticas funda

mentais para o Estado. A primeira delas foi a conscientização do go verno do Estado rio-grandense das intenções do governocentral quanto à marcha para o fediamento polítrco, resultando em preparativos béli cos de Flores da Cunha. Contando com o apoio do comando militar do Paraná, Flores arquitetou, inclusive, a possibilidade de um plano ofen sivo contra o governo central. Falhando, contudo, o suporte militar do Gen. João Guedes da Fontoura, que voltou atrás. Flores ficou na de fensiva, resguardando o contexto político sulino.^^ Mais tarde, em discurso proferido por ocasião de uma homenagem que os estudanteslhe prestaram em Porto Alegre, Flores deu a entender, justificando sua atitude, que o Rio Grande não tinha nenhumaintenção sq>aratista, pois estava perfeitamente integrado ao "seu maior e melhor mercado, que é o Brasil", mas uma vez que tentassem ofender e dimi nuir o Rio Grande, todos os gaúchos "partiriam para a defesa do seu torrão natal".*'

A outra resultante básica das articulações do governo central foi o desmantelamento do "modus vivendi" em outubro de 1936, quando

entrou em ação a dissidência liberal. Falecendo o segundo vice-presi dente da Assembléia, coube a Flores da Cunha escolher seu substituto

dentro dos quadros do PRL. Com a colaboração de membros da FUG, a dissidência liberal apresentou seu próprio candidato. A atitude da FUG obrigou CoUor e Pilla, defensores do "modus vivendi", a exone rarem-se de seus cargos em 13 de novembro de 1936, em razão da fi liaçãopartidária.O restante do PRL, fechandoem tomo do governador, permitiu que um imp&Khment contra Flores não passasse na Assem bléia.

No final de 1936, em fimção da crise política, o líder da dissi dência, Beigamin Vargas, começou a criticar violentamente o governo de Flores da Cunha, não só quanto à forma ditatorial de mando e os

conchavos políticos entre personalidades da Velha República, como também no plano econômico. Ao mesmo tempo em que o novo secretário da Agricultura Di

Primio Beck enfatizava ligações com o governo central para a solução do caso do charque, tendo a seu lado líderes pecuários de todas as orientações políticas. Benjamim Vargas criticou com veemência a ad-

ministraç%) de Flores, acusando a situação da economia gaúcha como é^Cortés, op, dt., p. 72. é3o Estado deSãoPaulo, SãoPaulo, 11 maio1937. p. 1. 168

de completo desmantelamento. Considerando que o Estado tinha um governo sem programa e sem orientação definida, o deputado pergun tava que fim fora dado à taxa de cooperação, em quanto montava e* quando o governo faria uma prestação de contas pública. No início do ano de 1937, a situação precipitou-se com o desmo ronamento do "modus vivendi".

Entrando em cena as dérmaches para as eleições presidenciais, Flores posicionou-se pela candidatura de Armando Salles de Oliveira, ex-governador de São Paulo e antigo membro do Partido Democrático e, no momento, do Partido Constitucionalista. Se, por um lado, pode parecer paradoxal o acerto entre ambos, passados poucos anos da revo

lução de 1932, por outro lado é compreensível a junção dos dois líderes neste momento da vida política nacional, em que, desmascarada a inten ção do governo de fechamento político, as oligarquias realizavam uma tentativa de recuperação do domínio político do país. Armando Salles de Oliveira, dando apoio à reação contra Vargas, enfatizava a necessidade de organização democrática dentro dos marcos de uma república presidencial. O Estado deveria ser forte, mas a solução não se encontrava nos extremismos. No contexto de pós-30, segundo Salles, o federalismo havia-se tomado mais adiantado e o "sentimento de autonomia dos Estados, vivificando-se nos embates das lutas in

ternas, constitui mais do que nunca o fundamento político, a condição de equilíbrio e de bem-estar do Brasil."^"*

Fruto das oligarquias, seu pensamento reflete traços de perma nência e de renovação, mas neste momento o que une Flores a Salles é a preocupação das oligarquias que se dão conta da ameaça que pesa sobre elas quanto à perda de seu poder político. O PRL, por unanimidade de votos do seu diretório, adotou a

candidatura de SaUes Oliveira à sucessão. Ao mesmo tempo, João Carlos Machado recebeu instmções de Flores da Cunha para que a bancada liberal gaúcha no Congresso prestigiasse a candidatura do paulista An tônio Carlos para a presidência da Câmara.^ ^ A postura assumida por Flores e pelo PRL, na questão sucessória à presidência, precipitou a separação formal da dissidência liberal, que se formalizou em abril de 1937, com o desligamento do partido do governo de nove deputados estaduais e um senador, que passaram a reforçar a oposição. Tal cisão determinou a perda do controle do PRL (que era mqoritário) no legislativo estadual, possibilitando à dissidência

liberal e á FUG fazerem passar leis que cercearam relizações do governo. 64carone, op. cit., p. 94-5. 65o Estado de SãoPaulo,SãoPaulo, 18 abr. 1937. p. 2. 169

Na Assembléia Legislativa do Estado, o deputado Alberto de Bri to, liberal, acusou a bancada da dissidência de também justificar seu rompimento pela não-concordância com a política econômica seguida pelo governo do Estado. Paralelamente, enfatizou que o PRL apoiava administrativamente Getúlio Vargas "até o seu último dia de governo",

mas não politicamente.^^ Esta afirmação, no caso, é fundamental para a comprovação da idéia de que o PRL "fechava" com Vargas quanto à direção da política econômica e administrativa, enquanto que não se coadunava com o rumo que os acontecimentos políticos iam tomando, tanto na condução do problema sucessório, quanto na evidente trilha para o autoritarismo.

Em "Manifesto Político" ao Rio Grande e à nação, publicado em "A Federação", Flores da Cunha criticou a maneira como estavam

se desenvolvendo os trabalhos para a sucessão presidencial, coordenados

por Getúlio, que mantinha em segredo o candidato de sua predileção e trazia com isso, ao país, um clima de insegurança. Justamente para dar tranqüilidade ao país é que o PRL, juntamente com o Partido Constitucionalista, lançara a candidatura de Salles de Oliveira à presidência.^ ^ Na Assembléia Legislativa gaúcha, a crítica da dissidência afir

mava-se não quanto à intervenção do governo na economia, mas à

má direção desta intervenção, notoriamente na questão dos sindicatos, acusados de serem órgãos protegidos do governo, tendo em vista as isen

ções de imposto que gozavam. A esta crítica uniu-se a do deputado da FUG Raul Pilla, que agora acusava o governo de não defender os inte resses dos produtores rio-grandenses, mas sim os dos sindicatos, aos quais os produtores se mantinham escravizados. Por outro lado, o go verno estava onerando a produção com muitas taxas, como a bromatológica, a de assistência, etc. A rigor, a dissidência liberal haveria de continuar acusando Flores de "não querer ou não poder" resolver problemas econômicos do Rio

Grande, e mesmo de não estar seguindo os princípios a que se propunha o PRL. Na realidade, o que deve ser levado em conta é que a classe dominante não tinha conscientizado integralmente o que se ocultava por detrás da aparente identidade entre as metas de Vargas para com a periferia e as possibilidades reais que a periferia tinha para desenvol ver-se no contexto de pós-30. A acentuação da subordinação econô mica, o aumento dos desníveis regionais, os problemas estruturais de uma economia descapitalizada não estavam sendo conscientizados e só

uma compreensão errônea do processo vivido permitia identificar que

o problema básico da economia gaúcha era a "má direção" de Flores no govemo do estado.

66Anais da Assembléia Legislativa, 8?sessão, 23abr. 1937. p. 164. 67o Estado de SãoPaulo, SãoPaulo, 11 maio 1937,p. 1. 170

Dentro deste princípio, unindo-se em termos de votação a dissi dência liberal mais os membros da FUG, a Assembléia declarou incons

titucionais atos do governo do Estado, tal como o seu veto á Lei n9 158, de 11 de janeiro de 1937, que instituía prêmios aos produtores de álcool, aguardente e erva-mate. Pretendiam assim os deputados, que san cionaram a lei, devolver, sob a forma de prêmios aos produtores, o di nheiro que lhes fora arrecadado nas taxas.^® Posteriormente, a Assem bléia Legislativa declarou sem efeito, pelo Decreto n9 16, os atos do go verno do Estado que haviam criado os Institutos Sul-Rio-Grandense da Banha, do Álcool e Aguardente e de Produtos Agrícolas, bem como os direitos que os Institutos do Álcool e Aguardente e de Erva-Mate tinham de cobrar e aplicar as taxas incidentes sobre os respectivos produtos.

Enquanto tais divergências ocorriam quanto a questões econô micas no Estado, provocadas pela dissidência liberal, com o respaldo da FUG, esta última também sofria defecções. O PRR, com o fim do "modus vivendi", havia se cindido, com

uma ala liderada por Maurício Cardoso (pró-Vargas) e uma liderada por Lindolfo CoUor ^pró-Flores). Posteriormente, num congresso que reu niu "jovens e progressistas republicanos", Collor formou o Partido Re publicano Castilhista (PRC). Por seu turno, o PL também sofreu uma dissidência, quando uma

ala, liderada por Bruno de Mendonça Lima, formou a União Democrá tica Nacional (UDN), enquanto que outro grupo de libertadores formou a Ação Libertadora (AL). Na luta final dos políticos da República Nova, a classe dominante achava-se extremamente fracionada no Estado, estando agrupada, con tudo, em dois grupos principais: o grupo varguista, apoiado pelo PRR, PL e dissidência liberal, endossando a candidatura de José Américo de

Almeida, e o grupo pró-Flores, apoiado pelo PRL, PRC, AL e UDN.®^ No final da Segunda República, o ataque a Flores da Cunha foi, pois, possibilitado pela cisão política gaúcha, propiciando a que parte da oligarquia rio-grandense fizesse alianças com o governo central. Politicamente, a cisão se manifestara clara, em termos de compro

metimento de parte da classe dominante gaúcha com o poder central, no novo esquema político que se avizinhava. Numa conjuntura política importante, as oligarquias realizavam barganhas, buscando nova aco modação. Deixara de ter sentido a "ala nacional", liderada pelo PRL. Em

bora no plano econômico suas realizações ainda se coadunassem com

^^Anais da Assembléia Legislativa, 19? sessão, 21 maio 1937.

"^Cortês, op. cit., p. 78-81.

171

as perspectivas de Vargas quanto à produção nacional, seu fomento,

renovação e diversificação, ao nível político, exigia-se a aniquilação do exercício direto do poder pelas oligarquias nacionais. Em acerto com o governo central, quanto às direções a serem dadas ao processo econômico, o PRL deixou de ser um colaborador de Vargas para tomar-se uma ameaça, quando, unindo-se à FUG, descortinou-se a possibilidade de fortalecimento político da oligarquia gaúcha. As críticas à orientação econômica do govemo de Flores da

Cunha, cristaüzadas na ação contra os sindicatos e os institutos promo vida pela dissidência (que, paradoxalmente, era instigada por Vargas), não atingiam, porém, o caso do Instituto de Carnes, encarado como

formade realização dos interesses dos pecuaristas no estado. Na situação em que se achava, por um lado, dependente da ação

do govemo quanto à entrega da taxa de cooperação para a efetivação do Instituto de Carnes e, por outro, das possibilidades de rearticulação da charqueada, a classe mral, como um todo —charqueadores e cria dores, independentes de filiação partidária —concentrou-se na idéia da

frigorificação. Em reuniões conjuntas com a Secretaria da Agricultura, ambas as frações de classe dirigiram-se aospoderes públicos. Ao governo do Estado soHcitaram que, de uma vez por todas, fosse o Instituto instalado. "Seriam amparados nãosó oscriadores, mas os próprios charqueadores, hoje integrados perfeitamente nesta clas

se''7o Pqj lembrado o caso da Cooperativa Pelotense de Carnes, que solicitara ao governo do estado que lhe fosse entregue a taxa de coope ração arrecadada pela prefeitura local, sob forma de empréstimo ou doação, pedido este que fora bem acolhido pelo governador do Estado. Ficou resolvido, pois, que a única solução que harmonizaria definitiva mente os interesses de ambas as frações de classe, com vantagens para a pecuária, seria a rápida instalação do Instituto, uma vez que era uma instituição que se enquadrava dentro da orientação econômica adotada

pelo governo na organização das classes produtoras. Além disso, ficou assente, entre a FARSUL e o Sindicato, que a higienização das charqueadas deveria ser feita paralelamente com a remodelação das mesmas para o aproveitamento integral do boi."^^ Em telegrama oficiado ao Ministro da Agricultura, as duas entidades rurais comprometeram-se de, no próximo Congresso Rural que se reaUzaria

em julho, estudarem as formas de tornarem exeqüível este projeto. Entre 14 e 18 de julho de 1937, realizou-se, em Porto Alegre, o X Congresso Rural da FARSUL. O discurso oficial, proferido pelo ^Olmportante reunião de criadores e charqueadores. Correio do Povo, Porto Alegre, 2 maio 1937. p. 24.

71Anais doXCongresso Rural, op. cit., p. 47. 172

republicano Joaquim Luís Osório, enfatizou o apoio que a FARSUL vinha recebendo dos governos estadual e federal e da Secretaria da Agri cultura. Como de praxe, foi acentuado o papel primordial da agrope cuária na riqueza econômica do estado, o que lhe permitia um "equi-

li'brio e estabilidade". Tal perspectiva de afirmação da vocação agrí cola e pastoril do rio Grande foi uma constante no estado de p6s-30. Como dizia Renato Costa: Não seremos nunca um concorrente das atividades in

dustriais assombrosas de São Paulo. Nem devemos aspirar a esse paralelo se, dentro dos recursos poderosos que nos oferece a pecuária e a agricultura, pudermos emparelhar em riqueza e em bem-estar material com a mais rica e a mais opulenta das

unidades da federação. O ideal, mesmo, seria a especialização produtora das regiões do país. A cada província brasileira a sua indústria primaz, apoiando-se os elementos que a consti tuem e facüitando-se, dentro do território, o intercâmbio das produções regionais.' ^

É dentro desta medida que é possível entender a interligação, o entendimento e o protecionismo entre a classe produtora pecuária sulina, seu governo estadual e as perspectivas da União, valorizando a atividade dominante local e possibilitando a sua renovação dentro dos limites de descapitalização da área ao nível regional e da distribuição dos recursos em termosde prioridade pelaUnião. A contrapartida da possibilidade de renovação era a "paz nos campos", com um proletariado rural dócil. Lembrava Osório da neces

sidade de assisti-lo com legislação protetora, tal como fora sugerido no III Congresso Rural em 1929, com a idéia de criaçãode uma "Caixa de Assistência dos Operários do Rio Grande do Sul". Afirmava o pecuarista em seu discurso:

Desnecessário será por em destaque os serviços e glórias do nosso gaúcho, na guerra e na paz, pela defesa da integri dade ck honra e liberdades públicas, para justificar o dever de