Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens
 9788584990672

Citation preview

lsnara Pereira Ivo Eduardo França Paiva Marcia Amantino

Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens

lsnara Pereira Ivo Eduardo França Paiva Marcia Amantino (ORGANIZADORES)

Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens

1ntermeios

CASA DE ARTES ELIVROS

,

a .......

Governo do Estadoda Bahia

Editora lntenneios Rua Cunha Gago, 420 I casa 1 - Pinheiros CEP 05421-001- São Paulo- SP- Brasil Fones: [11 ]2365-0744 - 94898-0000 (Tim)- 99337-6186 (Claro) www.intermeioscultural.com.br

Sumário

• RELIGIOES E RELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGENS

© lsnara Pereira Ivo 1 Eduardo França Paiva 1 Marcia Amantino 1" ediçao: outubro de 2016

• Editoração eletrónica, produção Revisão Imagem da capa

Capa

Intermeias- Casa de Artes e Livros Guilherme Mazzafera e Silva Vilhena Conquista y redución de los índios de las montanas de Paraca y Pantasma, con la representación de espacios sagrados indígenas y cristianos. Sigla XVII. Museo de América, Madrid. Livia Consentino Lopes Pereira

• CONSELHO EDITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State University) Daniel Ferrer (ITEMICNRS) Lucrécia D'Aiessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) Amália P inheiro (PUCSP) Josette Monzani (UFSCar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar) llana Wainer (USP) Walter Fagundes Morales (UESCINEPAB) lzabel Ramos de Abreu Kisil Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS)- in memoriam Alessandra Paola Caramori (UFBA) Claudia Dornbusch (USP)

7

Primeira Parte 13

"Historia de una gran seiiora christiana" - conversões, batismos, religiosidade no mundo católico e a h istoricidade dos conceitos Eduardo França Paiva

29

"Catolicismo à Africana": Costumes e vivências religiosas mestiças na África Ocidental e Centro O cidental no século XVIII Suely Creuza Cordeiro de Almeida

41

Hechicería colonial, justicia capitular y m estizajes. Santiago dei Estero (gobernación d el Tucumán, Virreinato dei Perú) en el sigla XVIII Judith Farberman

61

Um "universo" embaraçoso de relações: homen s livres, nobreza negra, escravas, mulatinhos, crioulos e cabrinhas - Salvador no século XIX Maria de Deus Manso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP 1961

Ivo, lsnara Pereira, Org.; Paiva, Eduardo França , Org.; Amantino, Marcia, Org. Religiões e religiosidades, escravidão e mestiçagens I Organização de lsnara Pereira Ivo, Eduardo França Paiva e Marcia Amantino- São Paulo: Intermeias; Vitória da Conquista : Edições UE SB, 2016. 240 p. ; 16 x 23 em.

Simpósio Internacional do Grupo Escravidão e Mestiçagens, VI. Vitória da Conquista (BA), 2012. ISBN 978-85-8499-067-2 1. História. 2. História do Brasil. 3. História Social. 4. Mobilidade Cultural. 5. Sociabilidade. 6. Dinâmicas de Mestiçagen s. 7. Religião. 8. Escravidão. 9 . Religiosidade. 10. Mestiçagem. I. Titulo . 11. Ivo , lsnara Pereir a, Organizadora. 111 . Paiva, Eduardo França, Organizador. IV. Amantino, Marcia, Organizadora. V. Almeida, Suely Creuza Cordeiro de. VI. Faberman, Jud ith. VIl. Manso, Maria de Deus. VIII. Sá, Eliane Garcindo de. IX. Almeida, Marcos Antonio de. X. Engemann, Carlos. XI. Guzmán, Florencia. XII. Freire, Jones. XIII. Silva, Edivânia Gomes da. XIV. Edições UESB. XV. Intermeias- Casa de Artes e Livros. CDU 93(81) CDD 981

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

Apresentação

Segunda parte

77

San Martín de Porres: a construção de um espaço mestiço na sociedade vice-reinal do Peru at ravés da prática religiosa Eliane Garcindo de Sá

97

Ser escravo nos conventos franciscanos Marcos Antonio de Almeida

115

Escravidão, mestiçagens e o projeto cristão dos jesuítas na Argentina colonial e no Rio de Janeiro, séculos XVI-XVIII Marcia Amantino

141

Para a Paz e para o Bem: os sacramentos do batismo e do matrimônio e a população escrava em Fazendas da Companhia de Jesus no Brasil e na Argentina (século XVIII) Carlos Engemann

163

Esclavitud, mestizaje y religiosidad en tiempos de reformas. Un análisis histórico sobre la Visita del Obispo de Tucumán en 1768 (Argentina) Florencia Guzmán

183

Devoções e Recolhimento feminino nos sertões do Brasil Setecentista Isnara Pereira Ivo

203

Batismos mestiços: mestiçagens na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão do Macaé (RJ), século XIX Jonis Freire

227

Estereótipo e silenciamento em sites de igrejas cristãs: a interdição da imagem do mestiço Edvânia Gomes da Silva

Apresentação

Cumpriram-se em 2016 onze anos de criação do Simpósio Escravidão: sociedades, culturas, economia e trabalho, sediado no Departamento de História da UFMG. Rapidamente o simpósio acabou por ser conhecido e reconhecido academicamente como Grupo Escravidão e Mestiçagens, transformado em Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e MestiçagensRGPEM, em 2015. E é sobre este alicerce que as pesquisas de seus afiliados vêm se desenvolvendo, sempre buscando discutir conceitos que giram em torno da história da escravidão e das mestiçagens. Isto não significa, entretanto, que os participantes comunguem da mesma perspectiva teórico-metodológica e se dediquem ao mesmo recorte espaço-temporal. Pelo contrário, o que atraiu e continua atraindo os pesquisadores para o grupo é exatamente a possibilidade diversa de diálogo e de trocas acadêmicas a partir dos objetos comuns de pesquisa. Além disto, o grupo tem procurado produzir histórias em perspectiva comparada, entendendo que o fazer histórico necessita de consonância com outras localidades, temporalidades e, acima de tudo, com outras historiografias. São as conexões, em maior ou menor escala, que dão sentido às análises desenvolvidas pelos pesquisadores. Este quarto livro do grupo é resultado do VI Simpósio, ocorrido em Vitória da Conquista, Bahia, em 2012. O principal objetivo deste encontro foi analisar religiôes e religiosidades em ambientes de escravidão e de mestiçagens, evocando conceitos fundamentais para a verticalização dos estudos sobre esta temática, tais como trânsitos e trocas culturais, sociabilidades, convivências e coexistências, superposições, negociações, mundialização e, como nova perspectiva, o conceito de "dinâmicas de mestiçagens':

8

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

Assim como nos Simpósios anteriores, o de Vitória da Conquista contou com a participação de pesquisadores que, mesmo não sendo especialistas da temática central, aceitaram (re)pensar seus tradicionais objetos de pesquisa a partir da escravidão, das mestiçagens, das religiões e/ou das religiosidades em perspectiva comparada. Novamente, tivemos a oportunidade de estabelecer diálogos inovadores e instigantes. A nosso juízo, alcançamos plenamente os objetivos do encontro e do grupo e o leitor poderá encontrar os resultados dessas reflexões compartilhadas já incorporados aos textos aqui incluídos. Diferentemente dos livros anteriores, nos quais os capítulos foram ordenados por períodos históricos, aqui eles foram organizados de outra maneira. Optamos por agrupá-los a partir das abordagens dos objetos de estudo realizadas pelos autores, considerando o uso dos conceitos, bem como os olhares de cada um sobre as relações entre sociedades e práticas religiosas. Assim, a primeira parte do livro engloba os textos que remetem às diferentes maneiras encontradas pelas populações coloniais, tanto das Américas quanto noutros lugares, para conviver com dogmas cristãos, fomentando, muitas vezes, sociabilidades específicas e dinâmicas de mestiçagens. Utilizando conceitos de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e dinâmicas de mestiçagens - biológicas e culturais - e demonstrando por que o conceito de sincretismo não responde mais aos impasses colocados pelas recentes pesquisas que envolvem as relações religiosas na época moderna, Eduardo França Paiva propõe pensar o universo religioso em perspectiva comparada, associando uma rainha do Rosário das Minas Gerais setecentistas a uma senhora chinesa do século XVII, convertida ao catolicismo pelos jesuítas. Os conceitos empregados nesta análise, de acordo com o autor, podem trazer aportes inovadores aos estudos sobre as práticas cotidianas dos diversos agentes que produziram essas histórias. Ele propõe, ainda, o regate na documentação coeva de conceitos que foram empregados pelas próprias populações (tais como mistura, mestiço e híbrido), que, em alguns casos, caíram em desuso ao longo do tempo. A partir daí, Paiva indica a possibilidade de conversões plenas ao catolicismo entre populações que tinham outras origens religiosas e revê, sob outros conceitos, a corriqueira adoção simultânea de práticas religiosas de distintas matrizes. Os textos que seguem procuram analisar questões muito próximas à temática das religiosidades mestiças, enfocando áreas da África e da América espanhola. Suely Creusa Cordeiro de Almeida apresenta casos de cristãos europeus, moradores de terras africanas e que, em virtude de variados tipos de contato com aquelas populações, acabaram por absorver formas locais de manifestações religiosas, inclusive o cristianismo aí praticado. A autora sugere que houve uma "mestiçagem às avessas': na medida em que parte desta nova

lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

9

maneira de vivenciar a fé foi levada por estes cristãos europeus para o Velho continente e mesmo para outras partes do império lusitano. Já a historiadora argentina Judith Farberman analisa a sociedade já bastante mestiçada da cidade de Santiago dei Estero, na Argentina, e os contatos mantidos com os pueblos de indios ao longo dos séculos XVII e XVIII, demonstrando, ainda, o acentuado declínio econômico vivenciado na região. Talvez por isto, pela grande dependência do trabalho de indígenas aldeados e pela crise de valores que vivia a população, inúmeros foram os casos de feitiçaria arrolados na documentação colonial, quase sempre ligados às mulheres índias. Onze desses processos são tratados pela autora como veículos para se chegar ao entendimento sobre a maneira como aquela sociedade lidava com essas práticas, sobre o que acreditavam ser feitiçaria e sobre o que faziam com as acusadas desse delito. Fechando esta parte do livro, a portuguesa Maria de Deus Beites Manso, ao analisar um testamento da família Kopke, originariamente produtora de vinho do Porto e, posteriormente, traficante de escravos e senhora de engenho na Bahia do século XIX, retrata trajetórias de vida de livres e escravos e as relações daí advindas. A segunda parte do livro abarca discussões sobre algumas práticas católicas vivenciadas nas Américas. Em todos os textos se podem perceber os limites destas mesmas doutrinas, o quanto foi necessária a realização de adaptações locais e como se deram as relações entre os diferentes agentes católicos e as sociedades coloniais. Analisando depoimentos presentes no Proceso Diocesano e em parte do Proceso de Beatificação de San Martín de Porres, um santo mulato nascido em Lima, no Peru, no século XVI, Eliane Garcindo de Sá apresenta um retrato daquela sociedade e de como ela se relacionava com a ideia da existência de um santo mestiço. A mestiçagem estava marcada não somente pela cor de sua pele, mas também por suas práticas curativas oriundas do conhecimento de barbeiro e de herbolário, assim como do conhecimento adquirido pelos contatos com negros e índios. Utilizando duas fontes produzidas pela necessidade de controle do cotidiano nos conventos franciscanos, as Atas Capitulares e o Livro dos Guardiães, Marcos Antonio de Almeida analisa a presença de escravos (oriundos de doações, compras e mesmo de negociações ilícitas) no convento de Salvador, ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. O autor demonstra, ainda, o convívio entre os religiosos e seus escravos, bem como as redefinições sociais surgidas a partir do que ele identifica como contradições entre a Fraternidade Universal pregada pelos franciscanos e a escravidão. O texto seguinte, de Marcia Amantino, analisa as questões que se referem à formação da mão de obra cativa dos jesuítas, entre os séculos XVI e XVIII, e

10

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

aos mecanismos utilizados para manterem elevados contingentes de escravos em suas propriedades no Rio de Janeiro e em três colégios da Província Jesuítica ~o Paraguai, a saber, Santiago dei Estero, Tucumán e La Rioja. A partir das listagens de escravos sequestrados nos momentos das expulsões dos inacianos das Américas portuguesa e espanhola, a autora constata que a maior parte desta população era formada por mestiços. A mestiçagem foi, portanto, uma d~s ~as~s .para que a Companhia de Jesus conseguisse manter seus projetos ImssiOnanos. Dando continuidade às análises sobre a Companhia de Jesus, Carlos ~ngemann reflete acerca do conteúdo da pregação dos jesuítas e do possível Impacto desta pregação sobre comportamentos e práticas cotidianas de senhores e de escravos. Analisa especificamente os sacramentos d o batismo e d~ casame~~o, utilizando documentos produzidos para a normatização da IgreJa (ConCiho de Trento, Catecismo Romano, concílios provinciais de Lima, Mé~ico e Bahia, além de textos de clérigos da Companhia) e os registros de batismo de escravos da estância Caroya, na Argentina. Para os sacramentos de matrimônios, utiliza, também, as listas de escravos apresentadas nos autos de sequestras de bens dos jesuítas no Brasil e na Argentina. Flore~cia Guzmán, outra historiadora argentina, utiliza as visitas do bispo de Tucuman, Don Manuel Abad Illana, às cidades da Governação de Tucumán e às reduções indígenas situadas nas fronteiras orientais desta região, em 1765 e em 1768. Esta documentação permitiu à autora identificar uma sociedade que vivenciava naqueles anos uma grande transformação causada, dentre outros fatores, pela expulsão dos jesuítas, ocorrida em 1767, e pela aplicação das reformas burbônicas, motivos de distúrbios sociais. Por meio dos relatos reali ~ados pelo bispo, Florencia Guszmán identifica, também , alguns casos de mestiçagens entre as populações livres e/ou escravas. Isnara Pereira Ivo analisa, para os sertões da Bahia e do norte de Minas Gerais, as devoções à Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens e à Nossa Senhora da Vitória, assim como a criação do Recolhimento de Mulheres Casa de Oração Vale de Lágrimas, vinculando-as às trajetórias de três homens um romano, um pardo e um negro português - , responsáveis pelas conquistas e controle administrativo destas localidades, durante o século XVIII. A ~utora de_monst~a co~o a trajetória de vida destas personagens estava ligada a ocupaçao da area, a abertura dos caminhos, ao aprisionamento de índios ~ à b~sca e exploração de metais e pedras preciosas às margens dos rios que mterhgavam as capitanias da Bahia e de Minas Gerais. Ainda assim, esses ho~~ns e suas famílias mestiças foram reprodutores dos dogmas e crenças cato.hcas e foram responsáveis pela criação de igrejas e recolhimentos femminos na região.

lsnara Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarcia Amantino(orgs.)

11

Jonis Freire analisa os registros de batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, situada na Província do Rio de Janeiro, ao longo do século XIX, procurando identificar as diferentes mestiçagens ocorridas entre aquela população. Curiosamente, demonstrou que as cores e/ ou qualidades dos batizandos não eram sempre as mesmas de seus pais e que estas estavam ligadas a questões de identidades culturais, sociais e jurídicas dos envolvidos. Desta forma, conclui o autor, o mosaico de cores/qualidades apresentadas marcava o lugar social daqueles ind ivíduos. Finalizando o quarto livro do Grupo Escravidão e Mestiçagem, Edvania Gomes da Silva analisa três sites de igrejas e/ou movimentos que se autodenominam cristãos pentecostais: a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Renovação Carismática Católica. Seu objetivo é o de identificar elementos usados pelos d iscursos dessas igrejas ou movimentos religiosos, a fim de verificar de que forma a imagem do mestiço é (re)construída pelo movimento pentecostal. Assim, apresentamos com orgulho este quarto livro do Grupo Escravidão e Mestiçagens e convidamos os interessad os a conhecerem um pouco mais sobre o trabalho que vimos realizando. Esperamos que as reflexões aqui apresentadas se multipliquem sob a forma de novos desafios, de novas pesquisas e de novas respostas a uma temática que tem, cada vez mais, conquistado a atenção dos pesquisadores.

Eduardo França Paiva Isnara Pereira Ivo Marcia Amantino

"Historio de una gran senora ch ristiana" conversões, batismos, religiosidade no mundo católico e a historicidade dos conceitos EDUARDO FRANÇA PAIVA

SINCR ETISMO: O CONCEITO

O universo religioso de escravos, libertos e não brancos nascidos livres nas Minas Gerais (estenda-se a indagação às áreas escravistas americanas e, talvez, ao mundo ibero-americano) pode ser devidamente estudado e compreendido se permanece inscrito na perspectiva dualista, polarizada e antagônica do esquema imposição da religião do colonizador x sincretismo religioso e resistente dos dominados? A resposta, já de certa forma prenunciada na pergunta, é não! A religiosidade construída, vivenciada e expressada por esses grupos foi algo muito mais complexo do que essa equação simplificadora e já algo "caduca" pode suscitar. O conceito de sincretismo inscreve-se, a meu ver, nesse quadro antigo e precisa ser revisado. Fruto de uma "leitura" particular do anterior racialismo que decretara a degenerescência cultural brasileira e das jovens nações americanas e das mestiçagens, que a partir de Casa Grande & Senzala (FREYRE, 1 " EDIÇÃO, 1933) foram positivadas, o sincretismo aparece como conceito que evoca reinterpretação, amálgama, superposição, mescla, fusão e resistência, usado por distintos autores e em épocas diferentes, afastandose de suas origens (misturas culturais, aculturações), mas, ao mesmo tempo, continuando vinculado a elas. '

I Serge Gruzinski, em 1999, já expressava sua desconfiança com relação à continuidade do uso do conceito de "sincretismo". Ver as críticas feitas pelo autor em GRUZINSKI, Serge. La pansée métisse. Paris: Fayard, 1999, p. 40-42.

14

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTI ÇAGENS

Melville Herskovits (que foi aluno de Franz Boas) associou o conceito à reinterpretação e à aculturação em The Myth of the Negro Past. 2 O sincretismo também apareceu aplicado ao universo da religião (que sumariava, na verdade, as dinâmicas sociais dessas jovens nações) em Artur Ramos 3 e em Roger Bastide, em 1939,4 para, em seguida, ser genericamente aplicado por estudiosos das religiões e das culturas, voltando, inclusive, com o passar dos anos, a ser tomado como sinônimo de mestiçagem.s No sentido de resistência dos "negros", o conceito foi apropriado por antropólogos, sociólogos e historiadores que adotavam perspectiva marxista, que o colocaram em oposição ao racialismo geneticista e à miscigenação/ mestiçagem culturalista de Freyre (BoAs, 2010;6 HERSKOVITS, 1941), o que se encaixava bem nos esquemas explicativos que dominaram o pensamento brasileiro entre os anos 40 e 80 do século XX. Sincretismo, então, nomeava o fenômeno no seio do qual os "negros" "enganavam" os brancos (visão simplista das sociedades escravistas), "fingindo" se converterem à religião dos senhores/ dominantes/ brancos, quando, na verdade, a usavam como fachada para cultuar seus antigos deuses africanos (visão simplista de cultura: estanque, imutável, inflexível, isto é, pura x mestiça), estabelecendo correspondências entre eles e os santos do panteão católico. Há enorme diferença entre constatar essa ocorrência e generalizar a atitude para todos os "negros': exclusivamente (não se precisando o envolvimento de crioulos, de mestiços e da enorme população forra e não branca nascida livre), como se todos esses "negros" fossem africanos e tivessem a mesma religião. Não obstante todos esses limites e imprecisões, o conceito é empregado

2. HERSKOVITS, Melville J. The Myth of the Negro Past. New York: Harper & Brothers Publishers, 1941. http://archive.org/stream/mythofthenegropa0335 15mbp#page/n5/mode/2up 3. Apêndice publicado na 2• edição (1940) de RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Etnografia religiosa. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951. [!• edição de 1934, na Civilização Brasileira, e 2• edição de 1940, na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional] 4. Segundo Arhur Ramos, no apêndice publicado na 2• edição de 1940, p. 367, o quadro de sincretismo religioso que ele elaborara é o que havia sido reproduzido em 1939 por Roger Bastide, então professor na Universidade de São Paulo. S. Para o tema do sincretismo em geral e em particular na bibliografia brasileira ver FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, São Luis: FAPEMA, 1995. [http://books.google.es/books?id=VO I LzDo6Vh8C&pg=PAS3&lpg=P A53&dq=roger+bastide+sincretismo&source=bl&ots=FretsBhsWi&sig=nihixMSVumTWUuNv IVsiBT_kH9k&sa=X&ei=zsQwUPvFHY-JhQe Vs YDJCg&redir_esc=y#v=onepage&q=roger%20 bastide%20sincretismo&f=false] 6. BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. (trad.) Petrópolis: Vozes, 2010. [ 1• edição de 1938) Ver também CASTRO, Celso. (org.) Franz Boas. Antropologia Cultural. (trad.) 6 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

15

corriqueiramente até hoje e na problemática perspectiva descrita acima. Isso ocorre nos livros didáticos de História dos ensinos Fundamental e Médio até a produção universitária, além de ser termo usual de jornalistas, artistas, religiosos, políticos e militantes de movimentos sociais. O emprego do conceito, no entanto, gera problemas que precisam ser mais bem observados pelos historiadores e, a meu juízo, evitados. Primeiramente, deve-se atentar para o fato de, ao usá-lo, imprimir uma racionalidade e um pragmatismo às religiões, crenças e práticas ditas sincréticas, que nem sempre tiveram essas características, nem se constituíram com objetivo único ou mesmo principal de ocultar dos "dominantes" sua verdadeira fé. Em paralelo, atribui-se às religiões tradicionais africanas pureza, unicidade e imutabilidade que historicamente não existiram. Mais ainda: generalizar o conceito aos "negros" do Brasil escravista significa acreditar que esse enorme e, na verdade, plural contingente humano se converteu falsamente à religião dos "opressores", o que não se passou, pelo menos de maneira absoluta, enganando esses "brancos"/proprietários (desconhecendo-se a enorme quantidade de senhores ex-escravos e não brancos nascidos livres existentes a partir do século XVIII) e missionários, tomados como ingênuos, parvos e ignorantes. Claro que esse juízo de valor subjaz muito mais nos discursos antropológicos, sociológicos e historiográficos elaborados a posteriori que no discurso de negros, crioulos e mestiços de todas as "qualidades" que viveram nessa época e que os deixaram registrados em grande quantidade de documentos. Mas isso importou pouco quando se pretendeu transformar o sincretismo religioso em uma forma de resistência dos "negros" ao sistema escravista como um todo. Foi essa a perspectiva política que preponderou até os anos 1980 do século passado, marcando boa parte dos estudos sobre escravidão realizados até esse período, incluindo alguns realizados por mim. ÜUTRAS FORMAS DE VER, NOVAS PERGUNTAS

Se, por um lado, "sincretismo" tem caído em desuso, por outro, conceitos como os de trânsito e mobilidade culturais, sociabilidade e dinâmicas de mestiçagens (biológicas e culturais) podem ajudar a pensar melhor essas crenças e práticas do passado. 7 De uma forma geral, todos eles enfocam

7. Defini e explorei esses conceitos em PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012 e Idem, "Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo ibérico".

16

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

privilegiadamente não o produto final mestiço ou pretensamente sincrético, mas o processo de conformação das práticas, a atuação dos diversos agentes históricos (as negociações e os conflitos produzidos por eles), que tinham origens, "qualidades" (índio, branco, preto, negro, crioulo, mestiço, mulato, pardo, cabra, caboclo, curiboca etc.), "condições" (livre, escravo e liberto) distintas e as historicidades do ocorrido, assim como das leituras desse ocorrido realizadas posteriormente, incluindo as historiográficas. Além desses conceitos modernos, mesmo que muito operativos, definições produzidas no passado e empregadas por autoridades e pela população precisam também ser consideradas e retomadas. Entre elas, algumas são particularmente importantes aqui, justamente porque se contrapõem ao que, posteriormente, entendeu-se como sincretismo. Neste caso estão as definições coevas de "mistura': "mestiço" e "híbrido': Mesmo que tenham estado muito mais vinculadas aos tipos humanos resultados das mesclas biológicas intensamente processadas, elas também podem ser esclarecedoras sobre os universos culturais produzidos por eles. Portanto, mais que o conceito de sincretismo, esses outros conceitos e definições me parecem ser mais adequados para serem operados hoje pelos que se dedicam a estudar aquelas sociedades do passado e, particularmente, as práticas religiosas ou religiosidades daí surgidas. Nos domínios católicos portugueses e espanhóis na América e em outras regiões onde missionários de Roma intervieram forte e profundamente, a evangelização das populações locais - nativos e migrados - foi objetivo constante, que perpassou as políticas de ocupação, povoamento e exploração desses territórios. Visto desde hoje, pode-se dizer que eles foram alcançados, ainda que nuançados pela manutenção de velhas crenças e pelo surgimento de outras, frutos das intersecções culturais fortemente ocorridas, gerando misturas, mas, também, coexistências, superposições, convivências, tudo ao mesmo tempo. Em contextos que produziram essas dinâmicas de mestiçagens - que englobaram todas as dimensões já mencionadas - cabe perguntar se houve conversões plenas ao catolicismo entre a população não branca (índios, negros, crioulos, mestiços), escravos, libertos e nascidos livres, tanto os nascidos nas conquistas, quanto os trazidos de fora, como, por exemplo, da África? A resposta é positiva. Houve e foram muitos os casos, isto é, nem todos os não brancos fingiram a conversão; muitos se tornaram exclusivamente

In: Idem & IVO, Isnara Pereira. (Orgs.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH- UFMG, 2008, p. 13-25.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.)

17

católicos fervorosos. Muitos outros já nasceram no seio de famílias católicas. Outros tantos, sem qualquer problema de cunho moral e religioso, adotaram simultaneamente o catolicismo e outras práticas religiosas (aliás, isso continua comum hoje). É importante lembrar que muitos "brancos" (europeus, filhos de casais europeus e descendentes de europeus), a priori católicos, incorporaram crenças e práticas religiosas indígenas, africanas e americanas no seu dia a dia, invertendo o sentido de uma imposição católica de cima para baixo, como geralmente se imagina e se projeta sobre as sociedades do passado escravista e mestiço nas Américas, particularmente no Brasil. Não houve impedimentos culturais e políticos intransponíveis entre a população não branca para que se passasse a acreditar e a praticar a fé católica, não obstante, claro, a obstinada resistência de aceitar parcial ou completamente a religião pregada por missionários, padres e autoridades régias. Diante desse quadro, que já foi muitas vezes chamado de "alienação" ou associado à ausência de "consciência de classe", deve-se indagar: a pretensa impossibilidade de os "oprimidos" aceitarem a religião dos "opressores': perspectiva que deu base ao emprego do conceito de sincretismo, não estaria muito mais associada a entendimentos antropológicos, sociológicos e historiográficos posteriores do que às práticas adotadas pelas populações no passado? Pensar em dinâmicas de mestiçagens pode nos auxiliar na melhor compreensão dessa complexa história, em toda sua longa extensão e diversidade. Além de permitir, como já expliquei, a análise sobre os agentes que jamais foram definidos como "mestiços" (poderíamos chamá-los de agentes ou de grupos "matrizes"), o conceito permite-nos falar das religiões "matrizes" ou pretensamente "puras" - as dimensões dos discursos e representações, vale lembrar, compõem a própria realidade histórica. Refiro-me, neste caso, ao catolicismo, ao islamismo, às religiões tradicionais africanas e indígenas, que se opunham às religiões e às religiosidades misturadas ou mestiças ou, ainda, . amencanas. O conceito de dinâmicas de mestiçagens nos ajuda, também, a mergulhar nesse universo complexo, móvel, multifacetado, polissêmico e mesclado das religiões e das religiosidades nas Américas e, particularmente, no Brasil, formado entre os séculos XVI e XIX. Ele pode, ainda, nos impulsionar a estabelecer conexões com territórios mais longínquos e aparentemente muito diferentes, como a China dos missionários jesuítas, e a comparar as mesclas de culturas processadas, as formas de evangelização, seus triunfos e malogros ocorridos nesses mundos. Vejamos um caso exemplar de conversão ao catolicismo de uma família chinesa do século XVII e as conexões possíveis com o caso de uma ex-escrava, proveniente de Angola, que se transformou em Minas Gerais em devota dos santos católicos e rainha de Nossa Senhora do ((

))

18

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

Rosário, verdadeira mediadora cultural entre universos localizados em ambos os lados do Oceano Atlântico. DONA CANDIDA

Hru E JOANNA FORRA

Em 1691 se publicou em Madri o livro escrito pelo jesuíta Felipe Cuplet, missionário na China, sobre a vida de uma senhora chinesa, neta de um Colao, posto que correspondia, segundo o autor, ao de "los primeros Ministros de Estado, y los grandes Oficiales de la Corte dei Emperador:'s Este homem importante, natural da província de Nan Kim, cidade de Xam hai, se conve~te_ra ao catolicismo nos primeiros anos do século XVII, recebendo o nome cnstao Pablo Siu, dada a semelhança de sua conversão à de São Paulo. Como na história do santo que de perseguidor passou a missionário cristão, Pablo Siu transformou-se em árduo defensor da Igreja e dos missionários jesuítas "matemáticos" depois da grande perseguição de 1615, na China, chegando a introduzi-los na corte imperial. Segundo Felipe Cuplet, ele "contibuyà no poco para el estabelecimiento de la Religión Christiana en la Chi~a". . Foi no seio da família cristã de Pablo Siu que sua neta, Dona Cand1da, nasceu, ainda na primeira metade do século XVII, sendo batizada com o nome da santa de seu dia de nascimento. Seus pais também eram cristãos e sua mãe a instruiu nos preceitos desta religião, ensinando-a, desde muito nova, a rezar 0 Rosário frequentemente. Doíi.a Candida foi a caçula de oito netos de Pablo Siu, "la última, en orden de nacimiento; mas la primera, en la virtud, y en el merito': 10 Escreveu o jesuíta Cuplet que "ya avia algunos aíi.os, que Pablo Siu era Christiano, quando le nacià esta Nieta, que avia de ser la heredera de su zelo, y de su piedad. Quando recibià el bautismo, no tenia mas que un hijo, que fue el Padre desta Seflora:''' Com educação cristã esmerada, a predileta do avô convertido, Doíi.a Candida se casou muito nova com um cavaleiro poderoso e não cristão, chamado Hiu. O papa havia permitido que isso ocorresse na China - "à los nuevos Christianos estas alianças con los Infieles; y se ha conocido por largas 9

8. H ISTO RIA DE VNA GRAN SENORA, CHRISTIANA DE LA C HINA, LLAMADA DONA CANDIDA HIÜ. DONDE, CON LA OCASION QVE SE ofrece, se explican los vsos destos Pueblos, e! estabelecimiento de la Religion, los procederes de los Missioneros, y los exercícios de piedad de los nuevos Christianos, y otras curiosidades, dignas de saberse. ESCRITA POR EL R. P. FELIPE CVPLET, DE LA Compafiia de Jesus, Missionero de la China. CON LICENCIA. EN MADRID: En la Imprenta de Antonio Roman. Aíi.o 1691, p. 2. 9. Jd., p. 2. 10. Id. , p. 7. 11. Jd., p. 6.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.)

19

experiencias, que es este medio muy oportuno para ganar à muchas personas para nuestra Santa Religion." 12 E assim foi! Persuadiu o marido, "que estava aun sepultado en las Tenieblas de la Idolatria': 13 a aceitar o batismo. Pouco depois, quando tinha 30 anos de idade, ficou viúva e viu-se em "un estado de libertad:''4 Viveu mais 43 anos como viúva virtuosa, "una fiel Copia de las Santas Viudas, de que San Pablo hizo tan excelentes ideas en dos, o tres de sus Epístolas': 15 sublinhava o autor da biografia de Doíi.a Candida, que, obviamente, procurava aproximar essa história individual e familiar à de Saulo, convertido, morto e canonizado Paulo, nome dado ao patriarca chinês. Como o avô, Doíi.a Candida foi grande defensora e colaboradora dos jesuítas na China, provendo-os de condições materiais de vida e de trabalho, o que incluiu dinheiro e bens materiais doados, além de oferecer-lhes suporte moral e religioso, um exemplo a ser seguido por outras mulheres chinesas, como era vista pelos missionários. O autor do livro, o padre Cuplet, foi seu confessor nos últimos anos de vida e, portanto, foi-lhe muito próximo. Claro que na ótica desse missionário, Doíi.a Candida Hiu era a encarnação da virtude cristã e católica: La mugeres tienen la misma piedad, mas hazen estos exercícios ('se disciplinava asperamente'] en sus casas particulares; y e! d ia antes de su Comunion, ayunan, toman disciplina, o practican alguna otra mortificacion. Mas devocion suele admirarse en estes nuevos Christianos, en estas ocasiones, que en muchos de los Christianos antiguos. Dona Candida Hiu era tan fervorosa en estos exercidos de piedad, que fue menester que la prohibisse su confesor estas austeridades por sus achaques en edad tan anciana. 16

Para o padre Cuplet, mais que uma senhora chinesa católica e virtuosa, Doíi.a Candida era o modelo universal de mulher convertida ao catolicismo e não é improvável que esta fosse realmente a avaliação da própria senhora Hiu sobre si. Minoria entre os conterrâneos, suas posses materiais certamente a ajudaram a manter a opção religiosa de seu avô e a sustentar sua crença. Embora seja especulação, não se pode duvidar que sua fé fosse autêntica, exclusiva e veemente naquele contexto desfavorável. Afinal, não foi mais ou menos esse o ambiente e essas as intenções de mártires da religião de Roma? Id., p. 12-13. Id., p. 13. 14. Jd. , p. 17. 15. Id., ibid. 16. Id., p. 36-37. 12. 13.

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

20

A receita do missionário confessor para a santidade das mulheres, na China e em qualquer outra parte, era, finalmente, um resumo das virtudes por ele atribuídas à neta do Colao convertido. Padre Cuplet inseriu na biografia de Dona Candida seu parecer fidelíssimo. Cualquier Senora debe ser santa; pero mas las mayores. Quien mas recibe, ha de volver mas. Pide mas recompensa el mayor beneficio. Ha de mostrarse mas obligado, el que se ve mas favorecido. Las mayores Sefioras han de vivir con mas Santidad, y han de esparcir mas brillantes rayos de Christianas virtudes. Son las Lumbreras de mas Grandeza dei Cielo de la Iglesia. Por eso deben alum brar mas, y lucir mas en ella. Han de emular à los Grandes Astros: pues Dios las coloco acà en la Tierra, como à los Astros Grandes allà en el Cielo:'' 7

Retrato de Dona Candida Hiu. HISTORIA DEVNA GRAN SENORA, CHRISTIANA DE LA CHINA, LLAMADA DONA CANDIDA Hlu, p. 1

Como pensar o caso de Dona Candida Hiu conectando-o ao de Joanna forra, que viveu do outro lado do planeta, um século depois? As proximidades não são evidentes. Elas são mais resultados do exercício historiográfico realizado a posteriori que práticas que se refletiam mutuamente em épocas e espaços coincidentes o u quase... Joanna, natural de Angola, veio escravizada para o Brasil em meados do século XVIII. Provavelmente não era esse o nome que tinha no "país dos 17.

Id.,

~

2 e v.

lsnara Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.)

21

negros': 18 continente no qual, aliás, conversões e reconversões religiosas eram comuns havia séculos (ressalte-se que essa mesma observação pode ser feita para os europeus que imigraram para as Américas e para os que nasceram no Novo Mundo ). Trata-se já de nome cristão, recebido provavelmente com seu batismo, embora não se saiba quando isso ocorreu. Se tudo tivesse sido feito conforme os preceitos e leis de Roma, ela teria sido batizada ainda na África, embora nem sempre ocorresse dessa forma. Isso acabava gerando dúvidas entre os religiosos instalados nas Américas, que, muitas vezes, optaram pelo batismo dos "boçais" depois que eles chegavam aos portos ou até mesmo às regiões do interior, fazendo-o, inclusive, sub conditione, isto é, dizendo d urante o ato sacramental que ele só teria valor se não houvesse um batismo anterior. 19 Depois de chegar ao Brasil, a preta Angola foi levada para as Minas Gerais, mais precisamente para a Vila de São José dei Rei (hoje, Tiradentes), e tornou-se escrava de Francisca Gomes, de quem herdou o sobrenome. Sua conversão forçada, sua inserção no mundo da Igreja e seu envolvimento íntimo com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São José del Rei certamente contribuíram para a mobilidade e ascensão social

18. Expressão antiga, de uso frequente entre cronistas, viajantes, geógrafos e escritores nos séculos XIV e XV, é aparentem ente anterior, empregada já, talvez, no século XII. Ver entre os que a empregaram AFRICANO, Juan León. Descripción general dei África y de las cosas peregrinas que allí hay. (trad.) Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004, p. 88-93; ALMADA, André Alvares d'. Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo- Verde fei to pelo Capitão André Álvares d'Almada Ano de 1594. Lisboa: Edito rial do Ministério da Educação, 1995, p. 90; AZURARA, Gomes Eanes de. Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Mira-Sintra- Mem Martins: Publicações EuropaAmérica, 1989, p. 10 1 ("... Guiné, que é a terra dos negros"), 109, 132, 133, 165 ("é chamada terra dos Negros, o u terra de Guiné, por cujo azo os homens e mulheres dela são chamados Guinéus, que quer tanto dizer como negros") , 204; BATT UTA, Ibn. A través dei Islam. (trad.) Madrid: Alianza Literaria, 2006, p. 803; DA ÁSIA DE JOÃO DE BARROS E.DE DJOGO DE COUTO. Nova edição oferecida a Sua Magestade D. Maria I. Rainha Fidelíssima &c. &c. &c. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1778, p. 70; IDRlSY. La premiere géographie de lóccident. (trad.) Présentation, notes, index, chronologie et bibliographie par Henri Bresc et Annliese Nef. Traduction du chevalier Jaubert, revue par Annliese Nef. Paris: Flammarion, 1999, p.79; KHALDQN, Ibn . Discours sur l'Histoire universe/le. Al-Muqaddirna. (trad.) Arles: Actes Sud, 2007, p. 92; PROCESO de beatificación y canonización de san Pedro Claver. Bogotá: CEJA-Centro Editorial Javeriano, 2002, p. 21 7; SAN DOVAL, Alonso de. Un tratado sobre la esclavitud. (Introducción, transàipción y traducción de Enriqueta Vila Vilar). Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 74; VIAGEM De um· piloto português do século XVI à costa de África e a São Tomé. Introdução, tradução e notas por Arlindo Manuel Caldeira. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 88; VIAGENS De Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. (trad.) Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1988, p. 26 ("terre de negri" e "paexe di negri"), 115 ("terra de negros" e "país dos Negros"), 124. 19. Sobre essa temática ver o esclarecedor livro escrito pelo jesuíta SANDOVA L, op. cit., p. 363503.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.)

23

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

22

experimentadas por ela naquela sociedade escravista. Joanna se casou com Antonio Simoens, ele também um preto forro, enviuvou e e não chegou a ter filhos, nem legítimos, nem naturais, antes do casamento. No fim de sua vida ela morava em um pequeno rancho de capim na "paragem chamada Caetitu da vizinhança da Vila de São José da Comarca do Rio das Mortes':zo Em 1761, logo antes de falecer, Joanna ditou seu testamento, como os que possuíam algo material e espiritual a legar costumavam fazer naqueles tempos; e muitos ex -escravos e, principalmente, ex-escravas assim procederam, bem com outros tantos(as) não brancos(as) nascidos(as) livres. Conforme um modelo geral de testamento seguido pelos escrivães, mas adaptado às perspectiv~s, condições e demandas de cada testador, Joanna declarou os bens que possma. Eram bens modestos, mesmo depois de incorporados os do marido já falecido. Além do rancho em que vivia e dos "trastes de caza de pouco ou nenhum valor': Joanna possuía "um par de brincos pequenos de aljôfar" e era senhora de três escravos - Miguel Mina, Dorotheia Angola e o filho dela, o crioulinho Antônio. A renda com a qual contava provinha dos trabalhos efetuados pelos cativos e, também, do dinheiro relativo aos pagamentos que recebia de Roza Mina, uma outra escrava, a quem havia passado um "papel" de coartaçã0. 2 1 A

20. Museu Regional de São João dei Rei/IBRAM. Inventários post-mortem. Caixa 98. 1761. Inventário post-mortem de Joanna Gomes. São José Del Rei. 21. Trata-se de uma prática costumeira, que existiu em várias áreas escravistas da América, mas que se intensificou entre os habitantes da capitania de Minas Gerais. A partir de acordos .fir,m ados diretamente entre proprietários e escravos, esses últimos passavam a buscar, por me10 de mumeras atividades e ocupações, as oitavas de ouro em pó e outros recursos necessários para saldarem as prestações da liberdade. A coartação era, portanto, o acordo que per~itia ao escravo ou,à escrava parcelar o valor total de sua alforria e saldar as prestações semestrais ou anuats em tres, quatr~ ou cinco anos. O arranjo, na maioria das vezes, era informal, mas em mUltos outros casos fot registrado em documento, que era chamado de Carta de Corte ou "papel': como Joanna definiu em seu testamento. Nele constavam as bases desses acordos, o grau de autonomia do coartado ou coartada e o prazo para que a dívida fosse extinta e a Carta de Alforria fosse passada ao(à) liberto(a). Milhares de homens cativos e, principalmente, de mulheres cativas se beneficiaram dessa prática. Por meio dela e de outras possibilidades de libertação muito c?_muns nas .Minas Ger~is, uma realidade bastante diversa, dinâmica e complexa formou -se na regtao. Estudet as coartaçoes em PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001; Idem , Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos. 3 ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009. Ver também FERREIRA, Roberto Guedes. Egressos do catzvezro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/ FAPERJ, 2008, p. 203-206; GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade. Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte: :ino Traço•.~011, p. .143-148; Idem, "Cartas de liberdade: registros de alforrias em Mariana no seculo XVIII . In Anazs do VII Seminário sobre a economia mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995, p. 197-218, v.1; \.

própria Joanna alcançara a libertação por meio da coartação, pois ressaltava que havia pago o "preço justo" por sua alforria à antiga e já falecida senhora, Francisca Gomes. Assim, ela deixava registrado um padrão que se repetiu muitas vezes naquela sociedade: antigas coartadas que se tornavam libertas e proprietárias de escravos (e foram muitas) tenderam a repetir o processo mas tarde e coartavam seus escravos e escravas, costume ainda não adequadamente estudado. Aliás, práticas costumeiras entre os proprietários mais ricos e brancos também marcavam o dia a dia das relações senhores/escravos entre os mais pobres. Por isso é que se encontram com regularidade na documentação casos em que antigos cativos continuavam servindo os ex-proprietários e Joanna ajudou a engrossar este grupo. Ela registrou no testamento que em sua "companhia se achava uma crioula Joanna Gomes [o mesmo nome e sobrenome da proprietária, observe-se] a qual lhe dei já há anos a Liberdade com a condição que me servirá enquanto eu for viva': E completava, declarando deixar alforriado o filho dessa escrava, o mulatinho chamado Manoel, "pelo muito amor que lhe tenho e pelo amor de Deus e pelos bons serviços que da mãe tenho recebido': Dando prosseguimento aos ditames testamentais, a preta forra de Angola declarou sua fé na Igreja e sua sujeição fiel à religião católica. E como não possuía herdeiros forçados decidiu instituir a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila de São José dei Rei como sua testamenteira e

GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e Direitos Costumeiros: Apelos Judiciais de Escravos, Forros e Livres em Minas Gerais (17 I6-1815). Dissertação (mestrado em História)- FAFICH-UFMG, 2006; RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana, Minas Gerais, no século XIX. Dissertação (mestrado em História)- FAFICH- UFMG, 2004; SOUZA, Laura de Mello e. "Coartação - problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII': In: SILVA, M. B. N. da. (org.) Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 275-295; Idem, Norma e conflito; aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 151 -174; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos; engenhos e escravos na sociedade colonial- 1550-1835. (trad.) São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988, p. 214. Alguns princípios norteadores da prática da coartação podem ser encontrados em SUESS, Paulo. (ed.) Manoel Ribeiro da Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis, São Paulo: Vozes, CEHILA, 1992. Para a América espanhola ver ANDRÉS-GALLEGO, José. La esclavitud en la América espaííola. Madrid: Ediciones Encuentro/Fundación Ignacio Larramendi, 2005, p. 62-70; AYALA, Don Manuel Josef de. Diccionario de gobierno y legis/acion de Indias. Madrid: Compafiia Ibero-Americana de Publicaciones, S. A. 1929,2 t., p. 92-94; BERNAND, Carmen. l'.'egros esc/avos y libres en las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2001; LUCENA SALMORAL, Manuel. La esclavitud en la América espaííola. Warszawa (Varsovia): CESLA, 2002, p. 222-231; ORTIZ, Fernando. Los negros esc/avos. La Habana: Edito rial de Ciencias Sociales, 1987, p. 285-290; SCOTT, Rebecca J, Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho livre 1860-1899. (trad.) Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/Ed. UNICAMP, 1991.

RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

24

herdeira universal. Para o Rosário, após serem pagas suas dívidas, deixava os demais bens, isto é, o negro Miguel (identificado como Congo no inventário post-mortem) e a negra Dorotheia. A Irmandade não tardou a dar execução aos legados de Joanna, o fazendo logo que lhe "sucedeu falecer repentinamente na noite de segunda feira [... ] do presente mês de abril", de 1761. Mas toda a generosidade e fé demonstradas por Joanna associavam-se não apenas ao perfil de boa cristã, que buscava, antes de morrer, produzir méritos suficientes para que a alma fosse salva no Juízo Final e fosse conduzida ao Paraíso, para gozar a vida eterna ao lado do Pai, como os fiéis costumavam acreditar e deixar registrada a intenção em seus testamentos. Havia um motivo a mais, que esclarecia mais sobre a trajetória da preta forra. Ela, durante anos, tinha sido a rainha do Rosário, posto muito importante entre os associados e que lhe conferia visibilidade e prestígio para além da Irmandade. De capturada na África a rainha liberta da Virgem do Rosário, devoção popular, cultural e politicamente relevante naquela sociedade, Joanna ascendera econômica e socialmente ancorada na religião dos portugueses. No testamento não apareceu qualquer indício de que sua fé fosse simulada ou que não fosse plena, não obstante os reinados do Rosário e do Congo, por vezes confundidos, estarem historiograficamente associados à manutenção de crenças religiosas africanas antigas, o que me parece, hoje, exigir mais pesquisas e reflexões por parte dos estudiosos. O fato é que antes de falecer Joanna, como os demais fieis e devotos, preocupou-se em traçar seu perfil de católica virtuosa, buscando a salvação de sua alma, a construção de uma memória a ser legada à posteridade e, também, uma boa morte. Ela não abdicou de seu passado de rainha e não hesitou ao exigir os privilégios da realeza católica já no início de seu testamento: Meu corpo será amortalhado no hábito da Santa Irmandade da Caridade da Matriz desta vila e será acompanhado pelo meu Reverendo vigário e cinco Reverendos Padres mais, a quem se pagará a Esmola costumada e será também acompanhado pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos desta vila da qual Irmandade sou Irmão e será sepultado o meu corpo dentro da Capela da mesma Senhora do Rosário, no lugar que me pertencer como Rainha que servi na Irmandade vários anos e no dia do meu falecimento ou enterramento se dirão pela minha alma seis missas de corpo presente pelas quais se dará a esmola costumada.22

lsnara PereiraIvo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

25

CoNCLUSÕEs

Os dois casos explorados neste texto impõem uma mesma indagação, guardadas todas as diferenças que os envolvem: o que significou a conversão ao catolicismo para esses personagens, cujas origens, ainda que mais remotas, das gerações anteriores, lastreavam-se em tradições religiosas e culturais eminentemente não católicas, nem mesmo cristãs? Há mais perguntas! O que teria significado SER CATÓLICO para essas pessoas e para os agrupamentos sociais aos quais elas pertenciam? O que significou nascer no seio de uma família cujo patriarca se convertera, fazendo de seus descendentes fervorosos fiéis, mas vivendo em domínios de outras religiões majoritárias e oficiais? Em que medida a conversão opcional, a incorporação das práticas religiosas familiares ou o batismo forçado determinaram a crença autêntica e plena no catolicismo ou induziram a simulações da fidelidade declarada? Respostas para essas perguntas são muito difíceis, mas isso não deve impedir a problematização historiográfica do tema. Possivelmente, são essas indagações que possibilitarão indicações e subsídios oferecidos pelas fontes. Dona Candida e Joanna Forra sumariam outros tantos casos e, também, formas de inserção social, de ascensão social, de proteção grupal e familiar. Elas significaram, ainda, a produção de eficientes mecanismos que garantiam contatos, diálogos, coexistências e convivências entre diferentes e diferenças, a construção de padrões culturais e a transformação de personagens comuns (mulheres, principalmente) em pessoas referenciais em seus grupos de · convívio, em seu tempo e nos espaços que ocuparam. Não creio que o conceito de sincretismo consiga abarcar toda a diversidade cultural e biológica que envolveu as vidas da chinesa Dona Candida e de Joanna, preta de Angola, nem as riquezas sociais expostas pelas relações estabelecidas por elas com seus pares, bem como com gente que não integrava seus universos relacionais. Já tomá-las como produtos de dinâmicas de mestiçagens (biológicas e culturais) nos permite compreender melhor os processos de conversões, manifestações de fé, práticas religiosas, crenças plenas e/ou compartilhadas, retirando-as da dimensão simplória da resistência per si ou do simulacro coletivo calculado, o que historiograficamente foi, em épocas ainda recentes, algo conveniente e, por isso, perspectiva com grande potencial de convencimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

22.

MRJIBRAM - INV. caixa 98, (20/05/1 761).

AFRICANO, Juan León. Descripción general del África y de las cosas peregrinas que allí hay. (trad.) Granada: Fundación El Legado Andalusí, 2004.

lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.)

26

27

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

ALMADA, André Álvares d: Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo -Verde feito pelo Capitão André Álvares d'Almada Ano de 1594. Lisboa: Editorial do Ministério da Educação, 1995. ANDRÉS-GALLEGO, José. La esclavitud en la América espafwla. Madrid: Ediciones Encuentro/Fundación Ignacio Larramendi, 2005. AYALA, Don Manuel Josef de. Diccionario de gobierno y legislacion de Indias. Madrid: Compaiíia Ibero-Americana de Publicaciones, S. A. 1929, 2 t. AZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do descobrimento e conquista da Guiné. Mira-Sintra- Mem Martins: Publicações Europa-América, 1989.

HERSKOVITS, Melville J. The Myth of the Negro Past. New York: Harper & Brothers Publishers, 1941. HISTORIA DE VNA GRAN SENORA, CHRISTIANA DE LA CHINA, LLAMADA DONA CANDIDA Hlu. DONDE, CON LA OCASION QVE SE ofrece, se explican los vsos destas Pueblos, el estabelecimiento de la Religion, los procederes de los Missioneros, y los exercícios de piedad de los nuevos Christianos, y otras curiosidades, dignas de saberse. ESCRITA POR EL R. P. FELIPE CVPLET, DE LA Compania de Jesus, Missionero de la China. CON LICENCIA. EN MADRID: En la Imprenta de Antonio Roman. Afio 1691.

BATTUTA, Ibn. A través del Islam. (trad.) Madrid: Alianza Literaria, 2006.

IDRISÍ. La premiere géographie de loccident. (trad.) Présentation, notes, index, chronologie et bibliographie par Henri Bresc et Annliese Nef. Traduction du chevalier Jaubert, revue par Annliese Nef. Paris: Flammarion, 1999.

BERNAND, Carmen. Negros esclavos y libres en las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2001.

KHALDÚN, Ibn. Discours sur l'Histoire universelle. Al-Muqaddima. (trad.) Arles: Actes Sud, 2007.

BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. (trad.) Petrópolis: Vozes, 2010.

LUCENA SALMORAL, Manuel. La esclavitud en la América espanola. Warszawa (Varsovia): CESLA, 2002.

CASTRO, Celso. (org.) Franz Boas. Antropologia Cultural. (trad.) 6 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010. DA ÁSIA DE JOÃO DE BARROS E DE DIOGO DE COUTO. Nova edição oferecida a Sua Magestade D. Maria L Rainha Fidelissima &c. &c. &c. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1778.

ORTIZ, Fernando. Los negros esclavos. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1987.

FERREIRA, Roberto Guedes. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c.1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008.

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Tese de Professor Titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012.

FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, São Luis: FAPEMA, 1995.

_ _ _. Escravidão e universo cultural na Colônia; Minas Gerais, 1716- 1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 27 ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.

_ _ _ . Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos. 3 ed. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009.

GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade. Estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. ___ . "Cartas de liberdade: registros de alforrias em Mariana no século XVIII': In: Anais do VII Seminário sobre a economia mineira. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 1995, p.197-218, v.l. GONÇALVES, Jener Cristiano. Justiça e Direitos Costumeiros: Apelos Judiciais de Escravos, Forros e Livres em Minas Gerais (1716-1815). Dissertação (mestrado em História)- FAFICH-UFMG, 2006. GRUZINSKI, Serge. La pansée métisse. Paris: Fayard, 1999.

_ __ . "Histórias comparadas, histórias conectadas: escravidão e mestiçagem no mundo ibérico': In: PAIVA, Eduardo França & IVO, Isnara Pereira. (Orgs.) Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2008, p. 13-25. PROCESO de beatificación y canonización de san Pedro Claver. Bogotá: CEJACentro Editorial Javeriano, 2002.

RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Etnografia religiosa. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1951.

28

RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos tribunais de Mariana, Minas Gerais, no século XIX. Dissertação (mestrado em História) - FAFICH-UFMG, 2004. SANDOVAL, Alonso de. Un tratado sobre la esclavitud. (Introducción, transcripción y traducción de Enriqueta Vila Vilar). Madrid: Alianza Editorial, 1987. [Naturaleza, policía sagrada i profana, costumbres i ritos, disciplina i catecismo evangélico de todos los etíopes, por el padre Afonso de Sandoval, natural de Toledo, de la Compafíía de ]esús, rector del Colegio de Cartagena de la Indias, terminado de escrever no início de 1623, publicado em Sevilla, em 1627, por Francisco de Lyra e conhecida mais comumente sob o título De instauranda Aethipum salute, como o próprio Sandoval a batiza na dedicatória que faz.]

"Catolicismo à Africana": costumes e vivências religiosas mestiças na África Ocidental e Centro Ocidental no século XVIII 1 SUELY CREUSA CORDEIRO DE ALMEIDA

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial- 1550-1835. (trad.) São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988. SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba; a transição para o trabalho livre- 1860-1899. (trad.) Rio de Janeiro/Campinas, Paz e Terra/Ed. UNICAMP, 1991. SOUZA, Laura de Mello e. "Coartação - problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII': In: SILVA, M. B. N. da. (org.) Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 275-295. _ _ _ . Norma e conflito; aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 151-174.

SUESS, Paulo. (ed.) Manoel Ribeiro da Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado. Discurso sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis, São Paulo: Vozes, CEHILA, 1992. VIAGEM De um piloto português do século XVI à costa de Ajrica e a São Tomé. Introdução, tradução e notas por Arlindo Manuel Caldeira. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. VIAGENS De Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. (trad.) Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1988.

Nessa pequena introdução, buscamos explicar como interpretamos e nos apropriamos da polêmica categoria da mestiçagem. Nosso olhar para a sociedade que se formou na América portuguesa apoia-se nas reflexões de Serge Gruzinski. Segund o o historiador, a mestiçagem deve ser observada através das lentes da mundialização provocada pela expansão das navegações ibéricas entre meados dos séculos XV e XVI. Esse fenômeno moderno produ ziu mundos mesclados, criando imprevisibilidades e complexidades vividas por indígenas, africanos e europeus. Estes tiveram que reaprender por analogias e a reinventar novas formas identitárias. Partindo do princípio de que nesse mundo colonial mesclado nada é inconciliável nem irreversível, concluímos que o processo de formação dessas sociedades foi gestado a partir dos jogos estabelecidos entre diferentes agentes sociais, portadores de valores e recursos diferenciados. Assim, os cativos africanos realizaram suas estratégias e fizeram suas escolhas conforme seus valores e bagagem cultural, apesar de disporem de um número bem menor de recursos para a ação do que os europeus e, até mesmo, das populações autóctones (GouvÊA; FRÁGoso, 2010). Não podemos esquecer que independente de cor da pele, da qualidade e da condição, estar em terra estranha fez diferença para quem viveu o processo (BLUTEAU, 1728, p. 448 e 449). Nesse trabalho, refletiremos sobre a experiência europeia dos ditos cristãos católicos em terras da África, e como leram e se apropriaram da bagagem cultural local. Pensamos ser possível uma "mestiçagem às avessas': I. A pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq e da FACEPE. Agradecemos ao professor Marcos Antonio de Almeida a leitura criteriosa desse trabalho. Responsabilizamos-nos, no entanto, por qualquer imprecisão.

30

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

quando os "brancos católicos" passaram a viver elementos das religiões locais, incorporando-os às suas vidas e, posteriormente, levando-os para Portugal ou outra qualquer possessão ultramarina. Talvez o leitor encontre pertinência no que exporemos ou então se surpreenderá com algumas ideias presentes neste texto, entretanto, as fontes consultadas nos têm levado a esse ponto. Utilizar a categoria da mestiçagem é adentrar em um espaço no qual a mescla como aporte metodológico deve levar o pesquisador a escolher um campo de análise, ou seja, a que campo da mestiçagem o investigador se propõe a inquirir. A mestiçagem se tornou um fazer social tal qual a política e a economia, ou seja, ela é uma parte constitutiva da construção social. Neste sentido, é legitimo que quando se envereda por uma investigação, escolhendo a mestiçagem como ferramenta para analisar o social, que se escolha em meio a seu universo de possibilidades, um campo de verticalização para a pesquisa. A mestiçagem, para falar dela a partir da modernidade, é um fenômeno a mais além daqueles já consagrados pela utilização dos historiadores como: ocidentalização, globalização e crioulização, apontados como resultados dos sistemas que envolveram "dominados" e "dominadores" e que resultaram em resistências e acomodações, espaços de liberdades e controle dos poderes. Tais imbricações complexas nos obrigam a ampliar o espectro da reflexão histórica sobre a mestiçagem no processo de colonização moderna, pois esta corrobora o fato de compreender que: As sociedades escravocratas foram formadas em suas estruturas mestiças fazendo parte das misturas senhores e escravos. No entanto, a inclinação para uma suposta pureza ou autenticidade característica das ciências sociais em uma determinada época do ocidente tornaram difíceis as reflexões sobre a mestiçagem (MARTIN, 2010, p. 17).

No entanto, não devemos entender essas sociedades como espúrias, ou empobrecidas, mas, pelo contrário, como espaços em que as dinâmicas recriaram e reinventaram ações inéditas tendo-se constantemente necessidade de "nomear o novo': Um exemplo dessa dificuldade está na definição do lugar dos indivíduos nascidos na América, resultado de uma mestiçagem biológica e cultural, para os quais não havia uma prévia definição nos mundos de onde vieram seus ascendentes (PAIVA, 2012). As sociedades nascidas da moderna globalização, inaugurada no século XVI, promoveram encontros e desencontros entre o Velho Mundo e o Novo Mundo. O que os unia enquanto seres humanos não era o problema, o desafio consistia nas diferenças que os distanciavam. O que os distinguia assustava e,

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

31

ao mesmo tempo, os fascinava. Os contatos e intercâmbios são construídos na ambivalência. Muitas vezes foram violentos, marcados pelo desejo de dominação e pela ambição. "Mas, a brutalidade não impede os artefatos de circular, os corpos de se entrelaçar, as palavras de se misturar (MARTIN, op. cit., 201 O)': A dominação consiste em impor o pensamento do dominador sem, portanto, excluir a redefinição do dominado, esse processo foi e não deixará de ser uma relação. Os encontros provocados por migrações ou intercâmbios entre índios, europeus e escravos se constituíram como um novo terreno para a construção de um "mundo novo", com paradigmas antigos e assimétricos. Todavia, há um tipo de reciprocidade, num longo e lento processo histórico, no qual todos são transformados. Em um pano de fundo de incompreensão e de humildade, de cumplicidade e solidariedade, nos mal-entendidos e nos pouco entendidos cada um constrói as suas referências onde o outro necessariamente entra, e todas essas referendas dos uns e dos outros delimitam juntas o universo mestiço que eles terão daqui por diante de compartilhar ( IBIDEM, 2010, p.17).

Dessas misturas, emerge a invenção de uma sociedade na qual todos precisam sobreviver por opção, por acaso ou por coesão. Constrói-se a sociedade, mas é preciso dar-lhe sentido, que varia segundo os grupos que a imaginam, mas que não podem ser isolados, haja vista que os mesmos são os motores de novas for.mas de ver e viver. EXPERIÊNCIAS MESTIÇAS

O Jus Patronatus (Direito de Padroado) é uma prática do Direito Germânico, segundo a qual os fundadores de igrejas possuíam com as mesmas direitos e deveres. O dever consistia em prover o que fosse necessário para o sustento do culto, da manutenção do templo ao sustento do clero. Um dúplice direito consistia na indicação dos ministros das igrejas, que seriam confirmados por quem pudesse dar-lhes a jurisdição, e no de receber os dízimos das circunscrições eclesiásticas que tivessem uma igreja titular. A origem do padroado remonta à Idade Média e está ligada ao sistema feudal e às ordens militares. Papas do século XV concederam o padroado como privilégio aos reis de Portugal, bem como às terras conquistadas, impondo-lhes, contudo, a obrigação de levar até elas a fé católica. Foi o Papa Calisto III, pela bula Inter Coetera (13/03/ 1456), que concedeu ao Vigário de Tomar, nullius dioecesis,

32

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

ou seja, jurisdição espiritual sobre as conquistas portuguesas. Esta jurisdição consistia em poder confirmar os eleitos para os benefícios eclesiásticos nas novas terras; determinar penas canônicas tais como interditos, excomunhões e deposições; visitar ou mandar visitar as referidas igrejas; enviar bispos para conferir crismas, ordenações, consagrações de altares etc., isso até q~e os bispados fossem criados. O padroado abrangia as igrejas do norte da Africa que estariam submetidas ao Rei, grão-mestre da Ordem de Cristo a partir de 1514 (RÊGO-FIGUEIRÔA; OLIVAL, op. cit., 2011). 2 As Dioceses de São Tomé e Príncipe, de Santiago de Cabo Verde e de Guiné-Bissau foram criadas por Clemente VII, em 1533, resultado do desdobramento da Arquidiocese de Funchal. Elas abrangiam, além das ilhas, o enclave entre a Guiné e a conquista de Angola. Assim, elas estavam atreladas a essas dioceses e às suas respectivas circunscrições espirituais, respeitando os direitos e deveres outorgados pelo padroado português, bem como contribuindo para o processo de ~vange~ização e vivência cotidiana do catolicismo tridentino nas possessões de Africa. E desse território espiritual que agora iremos tratar, particularmente dos problemas enfrentados pelo catolicismo vivido nas conquistas, espaços nos quais as trocas culturais redefiniram o cotidiano e as formas organizacionais das instituições para lá transplantadas. As condições do rebanho do Senhor nas conquistas portuguesas sempre acompanharam o ritmo local. A documentação consultada nos arquivos portugueses testemunha os complexos meandros de intervenções múltiplas entre "os de dentro" e "os de fora", e não nega essa afirmativa os depoimentos que foram possíveis de amealhar nos arquivos à disposição do pesquisador. fá se disse que as elites locais, formadas nas Ilhas de São Tomé e Príncipe, eram constituídas por homens negros e pardos que enriqueceram com o comércio de escravos, fosse pela compra e venda de peças, fosse participando dos negócios dos fretes ou da armação de navios. Uma população majoritariamente de cor passou a assumir os negócios político-administrativos, o senado da câmara, tendo acesso também aos provimentos eclesiásticos. Essa população foi muitas vezes designada, eufemisticamente, de "brancos da terrà' (IBIDEM, 2011. p. 125). Assim, não é de estranhar o depoimento do Ouvidor Caetano Bernardo Pimentel Castro de Mesquita, em 1773, a Martinho de Melo e Castro, que, como católico zeloso, julgava proteger a fé dos desmandos locais. Diz ele:

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

33

Na sé dessa cidade se acha m de presente, deão, chambre, e dois cônegos bra ncos. Se acham acerdiagos, mestre escola e três cônegos pretos. Mais pardos e pretos esperam ser providos nas cadeiras vagas. Já expus na presença de V. Exc. a total ignorância do oficio sacerdotal d os quais todos os clérigos pretos sofrem e, os que mais serviam a religião. E que para cativar o seu péssimo procedimento têm ent ranhável ódio aos brancos. Esse comportamento tem sido a causa dos repetidos levantes que tem destruído as religiões até ao presente. Devendo-se ter um pa rticular cuidado pela grande falta de brancos, e a liberdade em que se acham os n egros por ter emprego que se lhes tem confiado. Persuado-me que aumentando o partido dos negros na catedral com ausência de alguns brancos que nela existem, tomarão os pretos ali todas as jurisdições e governo espiritual. Têm dado para seu partido um vantajoso passo por que os moradores brancos cada dia são menos.3

O Ouvidor, em sua narrativa, deixa evidente que o clero da localidade é de cor, ávido por ampliar poder e jurisdição, aspiração que acarretava lutas, levantes e intrigas. É claro que essa violência e péssimo procedimento eram emoldurados por rituais católicos com as práticas das religiões locais, haja vista que a ignorância do aparato doutrinário do clero de cor era apontada como um elemento crucial para a corrupção das práticas do çatolicismo tridentino. Vale salientar que a situação vivida, no que tange ao cristianismo romano nas Ilhas de São Tomé e Príncipe, não era das piores, pois era um espaço geográfico plenamente ocupado pela coroa portuguesa, o mesmo não se d ava em outras áreas continentais da África. A situação das religiões na Guiné, numa povoação chamada Geba, apresenta-se ainda mais preocupante para as autoridades reinóis envolvidas com um projeto de cristianização. O Capitão-Mor da fortaleza de São Brás, Paulo José Alves, escrevendo a partir de Guiné-Bissau, para o Secretário de Estado e dos Negócios da Marinha e Ultramar Martinho de Melo e Castro faz urna meticulosa descrição das vivências espirituais do "rebanho católico" naquelas conquistas. As preocupações do dito Capitão se revelam no seguinte depoimento: •.Jutr.Js in formações posso dar a \ '. tx" pdo que vim a conhecer daqueles países e seus indevidos ritos e co ~tl!mes, 1~0 d.::c11rso de 13 anos que servi a w.:~ n r aj e~tad e nu m esmo t ontinente, sã(, as segui nles: A povoação de Geba

2. A ordem de nosso senhor Jesus Cristo foi criada em 1319, da desagregação dos Templários. Sua sede era em Tomar e tinha jurisdição canônica por concessão pontifícia sobre as terras conquistadas até a criação dos bispados. Em 1514, o poder de Tomar passa para as mãos dos reis portugueses, constituindo-se o padroado régio.

e di ~iJ n te d.: Bissau pelo~ r ios de cimJ. üf1 légua~ c ~ituada ente o gentio em

RELIGIÕESERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

34

desamparo, sem fortaleza nem ta banca ou estacada de fo rtificação e, sendo a população de cristãos seguem muitos ri tos de gentilismo pelo que os mesmos gentios os provocam a que os sigam, pois os mesmos gentios estão vendo que os cristãos tem pouca força para irem contra eles e fazem mil insultos todos os dias aos ditos cristãos. Eles governam mais a povoação que os mesmos cristãos e, por esta mesma causa, os ditos cristãos são bastante inobedientes aos comandantes da Praça de Bissau a quem são subordinados.•

Não é de estranhar que cristãos, grupo minoritário, vivendo em terra estranha e inóspita, sejam abduzidos pelos costumes e rituais locais. Assim, em terras africanas, numa povoação chamada Geba, seria muito difícil resistir e/ ou não vivenciar as experiências religiosas das populações locais, e ainda mais quando as dioceses são carentes de tudo. Não havia igrejas, curas de almas e muito menos bispos em terras africanas por longos períodos. O depoimento do Capitão-Mor nos leva a pensar que as experiências vividas marcaram cristãos, gentios e mesclaram os rituais de ambos os grupos. Esse processo não deixou, inclusive, de alçar velas e atravessar os mares para as mais variadas possessões portuguesas. Os indivíduos se transformaram nos recipientes que preservaram e levaram o novo, ou seja, a mescla, para outras partes do globo. Seguindo em direção ao sul, especificamente à cidade de Luanda, capital de Angola, na segunda metade do século XVIII, Dom Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, que era comendador da Ordem de Cristo, fazia parte do Conselho de sua majestade, além de ser Governador e Capitão General de Angola, tendo como objetivo expresso cumprir com as ordens reais, e no sentido de afiançar a propagação e a exaltação da chamada santa fé católica, tencionava garantir a extirpação do que ele nomeia de vícios gentílicos. Suas ações aparentaram ser uma tentativa evidente de coibir costumes locais que estavam fora dos padrões católicos.5 Para afirmar a pureza dos costumes, Dom Francisco Inocêncio de Souza Coutinho proíbe a realização dos entambes, rituais mesclados que se davam por ocasião da morte em Luanda e em Benguela.6 Os enlumbes seriam funerais complexos, elaborados de forma a coexistirem com os rituais católicos e

4. AHU - Guiné- Caixa 10, Doc.6-a 1770/ 1795. ''Noticia apresentada pelo Capitão - Mo r da fortaleza de S. Brás, Paulo José A lves, ao M inistro e Secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Martinho de M elo e Castro sobre Bissau e ou tros lugares da Guiné". 5. AHU- Angola - Cx 53, doc. 01, 10. 01. 1769. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Segundo Bluteau ( 1728), bando significa pregão, quando se declara publicamente um decreto ou lei ao som de caixa. 6. Idem.

lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.)

35

africanos (HEYWOOD, 2008, p. 109). Para o governador da região, a realização desse encontro de costumes não seria nada agradável ou compreensivo, pois classifica os entambes como um indício de barbárie, praticados pelos negros, e nos quais o governador podia observar, para seu horror, a participação dos brancos, cujo comparecimento a esses eventos ele atribuía a uma falta de razão e de discernimento. 7 O primeiro Bando proibindo a prática dos entambes data de 1765. Segundo esse documento, esta proihição estava associada à Lei Pragmática de 1749 e de 1759, que proibiam os lutos excessivos praticados por súditos. Dom Francisco articula o ritual a costumes herdados dos escravos e que, segundo o governador: Contraria a pureza de nossa religião [... ] não é possível que haja maior loucura, como a de fechadas as janelas e portas, cobertas as pessoas, de muitas batas negras, sem outra forma que a do artífice do tear; circundada a cabeça com uma corda, chorarem em altos e desagradáveis gritos, por muitos dias e por muitos meses, renovados os choros em certas horas, recebendo as visitas na mesma bárbara confusão. Açompanham os corpos escandalosamente a sepultura, com muitas negras chorando e persistindo em confusas lágrimas [... ]ou com torpes e repugnantes ações de lascívia[ ... ] cujo venerado obséquio do seu chamado entambe produz muita desordem e é inimigo da pureza da religião.

Elias Alexandre (1937), militar baiano e radicado em Santa Catarina, que serviu em Luanda no século XVIII e autor de uma "História de Angola", também descreve os entambes: São insuportáveis por tristes e afetados. Os lamentos são cantados pelas ruas, exprimidos no idioma do país por boca dos escravos dos defuntos. Estes como máquinas ambulantes, avisam pelo triste canto a parentela dispersa na cidade, e se o morto é cidadão excede a música e dois coros. Os semblantes de natureza carrancudos, se afeiam ainda mais, com os soluções, que servem de estribilho no fim de cada cantoria, com tudo, as lágrimas não umedecem o exterior dos olhos, a tristeza é estudada. Os entambes são celebrados com um oitavário de abom ináveis superstições, que finda santamente com uma m issa aplicada pela alma do defunto. Este ato religioso, celebrado no templo, com modéstia e tristeza, é depois em casa seguido por um batuque extenso,

7. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op. Cit., Cx 53, doc. 01 , 10. 01. 1769.

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

36

que rompe e desgasta o enojo dos parentes. Os chinguilamentos se misturam com os atos do cristianismo onde desaparece a fé misteriosa e revelada, para se unir a efeitos incertos, falsos, sobrenaturais. Os destinos fechados com o selo do silencio eterno, são anunciados por agouros ridículos, e pelos nojentos efeitos dos seus milongos (feitiços, remédios de ervanário). Os seus gangas aceitam essas misturas, os párocos são inclinados às indulgências, e bispos que resistiram só conseguiram irritar os caprichosos (CORRÊA, 1937, p. 83-88).

As religiões e os hábitos se misturaram evidenciando-se nos rituais, através dos cultos das religiões locais, que por sua vez, se inseriram nos rituais católicos vividos no cotidiano das conquistas, como revelam os depoimentos acima citados. Essa experiência de Luanda pode ser inferida também para a América portuguesa, guardadas as especificidades locais. Mas voltemos aos reclamos do Governador. Ele classifica a realização dos entambes como verdadeiro centro de desordem pública, de roubos e superstições escandalosas; "diz que lhe parece que a experiência em abusos vividos pelos pais de família" seria o suficiente para proscrever das suas casas o tão desordenado costume. 8 As proibições da realização de tais eventos não foram suficientes para arrefecer os ânimos dos frequentadores. Estes burlavam a lei, ato bem mais criminoso, na visão do governador, pois saindo da capital para realizar o tal entambe nos arrimos, locais favorecidos pelas distâncias, e que resultavam em proteção àqueles que transgrediam as leis inclusive para os escravos das ditas fazendas. 9 Em janeiro de 1769, Dom Francisco requer que se imponham penas dobradas aos frequentadores dos entambes, pois se tratava de práticas contrárias às determinações do Bando de 1765, e o governador acreditava que a severidade das leis deveria ser exercida contra as casas onde se realizavam tais eventos. 10 Para o governante de São Paulo de Assunção de Luanda, o Bando deveria ser publicado todos os meses pelos capitães-mores e cabos, em todo lugar público onde houvesse aglomerações, tomando o cuidado de traduzi-lo na língua local, a ambuda, com a finalidade de ninguém alegar desconhecer ou ignorar as determinações, devendo inclusive ser divulgadas

8. Idem. 9. Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op.Cit., idem. Arrimos eram propriedades agrícolas ao redor de Luanda. 10.

ld.

1snara Pereira Ivo IEduardo França Paiva I MarciaAmantino (orgs.)

37

primeiramente nos auditórios da capital, pois o Bando deveria ter o seu devido cumprimento. 11 Neste sentido, a redação do Bando insiste e determina que jamais se possa em algum lugar daquele reino admitir os ditos rituais infernais e que toda e qualquer pessoa que tiver notícia deve prontamente denunciá-los aos ministros eclesiais e seculares para procederem com a denúncia na forma da lei. Aquele que fizesse o contrário, ocultando os entambes, deveria ser preso e processado como se tivesse, ele mesmo, cometido os atos de celebrações gentílicas. Os capitães-mores deveriam ainda vigiar continuadamente o cumprimento dessas ordens, não permitindo os entambes e, ainda mais, nas casas ou senzalas onde o tal entambe fosse praticado todos os participantes seriam levados presos para cumprir pena nas obras reais que estivessem sendo realizadas, conforme determinavam os bandos de 1765 e 1769. 12 Mas a cultura local se mesclava continuamente, e isso era notório para além dos rituais de morte. Outra forma de hibridização concernia aos rituais de casamento. O Governador os descreve sendo iniciados por uma figura "coberta de pele de bicho, e de guizos, sinalizando para outras cerimônias que não declara por decência;' atribuindo essas práticas como dignas das "Libatas dos potentados dos sertões e de nenhum modo de uma capital de reino conquistado gloriosamente para o cristianismo:' 13 Essas e outras cerimônias podem ser inferidas pelas narrativas de Elias Alexandre, quando descreve os cerimoniais de casamento em Luanda, e que estes se davam em algumas ocasiões entre brancos e negros, aproximando e mesclando os eventos culturais e rituais. A leitura do Bando proclamado por Dom Francisco de Souza Coutinho revela a sua perplexidade diante de uma prática pagã antiga supostamente suplantada pela evangelização. Ele constata que, ao contrário, teria havido uma mistura dos rituais religiosos cristãos ibéricos com elementos da cultura dos povos conquistados, como o entambe exemplifica. Sigamos mais um exemplo: Ele descreve as práticas dos povos da região em momentos extremos, em que a fé deveria promover a preservação da vida. Segue sua narração de forma livre: Souza Coutinho menciona que foi exposto à veneração pública um ídolo com o nome de Bumba que fez com que a população deixasse de cumprir os preceitos dos dias santos que deveriam ser consagrados a Deus, assim

Id. Id. 13. AH U- Angola - Cx. 49 - Doc. 4, 09.01.1765. Bando de Francisco de Souza Coutinho, Governad or de Angola. 11. 12.

38

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

como, também, os veneradores passaram a guardar o dia imediato à lua nova anatematizando, ou seja, amaldiçoando, com superstições, as negras que participavam das adorações e dizendo que estas deveriam morrer e procurar ressuscitar. Todos esses atos considerados ilícitos seriam praticados nos mesmos dias sagrados em que a Igreja com todos os seus fiéis veneravam os sagrados mistérios da salvação. Todos esses argumentos são apresentados na documentação oficial para demonstrar o mais claro possível que era crucial a interferência do monarca, por meio de seus governadores laicos, mas também a ajuda dos eclesiásticos, pois com a exposição de poder da Igreja, todos deveriam dar conta de coibir, com a força necessária, o que o governador considerava serem atos bárbaros e costumes diabólicos. Ele ordenou então, de imediato, que se destruíssem todos os locais, os objetos, e todos os ídolos, "fosse do Bumba ou de qualquer outra ilusão destes miseráveis'~ "Pois para ele deveriam ser remetidos para as obras reais, todos os que, sendo de dia ou de noite, realizassem o que ele entendia por invocações ao demônio" ou fizessem sacrifícios aos mortos de algum animal, ou a guarda de dias imediatos à lua nova, não sendo este dia santo decretado pela Igreja. As ordens foram dadas aos capitães-mores e aos cabos, e cabia a estes fazer com que fossem cumpridas. Ficou ainda o aviso de que não se omitissem em obedecê-las. 14 Porém, todo esse esforço e cuidado se mostraram ineficientes, pois demonstraram obter pouco cumprimento e ressonância nos indivíduos de origem europeia e africana, tanto em Luanda quanto no interior. Afinal em 1780 se observavam os brancos do interior praticando rituais ditos pagãos, participando de entambes, adivinhações e adoração a ídolos, e a presença de práticas africanas junto ao centro dos rituais da Igreja ainda nos idos de 1790 foi desafiadora. Neste momento, o exercício de rituais afrocristãos comandava os sacramentos na região, tais como: funerais, casamentos e a própria comunhão (HEYWOOD, 2010, p. 110). Assim, os rituais em torno dos enterros, fossem dos africanos e seus descendentes ou não, estavam cercados de múltiplos significados. O desejo de encontrar os ancestrais e o medo de não merecer um bom lugar no alémvida levavam ao cuidado para deixar bem claro o que se queria nas realizações das cerimônias finais. No entanto, como verificamos através das fontes, o cotidiano se encarregava de misturar as crenças. Os lusos chegados aos enclaves portugueses na África misturavam ritos, doutrinas e teologia cristã, as cosmologias das experiências religiosas locais, tudo se imbricava e circulava num processo quase infinito, mesclando-se. Além da miscigenação racial, a

14.

Bando que proíbe os Entambes (a), e outras barbaridades. Op. cit., idem.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

39

miscigenação cultural. A cultura surgida em Angola, em especial nos espaços onde havia uma imposição da máquina administrativa portuguesa, englobando neste contexto o aparato religioso, era mestiça. Criou-se um conglomerado de elementos da cultura portuguesa católica, com elementos da cultura local dos mais variados matizes e temas. Se, por um lado, os encontros culturais impuseram um "jeito português de ser': como se vestir à europeia, ou até falar a língua portuguesa, a cultura colonial lusa se encarregou de se apropriar da cultura quibundo e se transformou em algo que não estava previsto nem pela Coroa e nem pela Igreja. O lento e irreversível processo de mestiçagem entre os "conquistadores" e os "conquistados". Dessa forma, acreditamos que as expressões religiosas desse grupo mestiço eram marcadas por sínteses ritualísticas amalgamadas por leituras e cosmovisões da cristandade lusa passíveis de serem lidas e reinterpretadas pelas religiões locais e vice-versa (SousA, 1996, p. 34).

R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português & latino: áulico, anatômico, architectonico... Coimbra: Collégio das Artes da Companhia de Jesus, 1728. CORRÊA, Elias Alexandre Silva. História de Angola: Lisboa, 1937. GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (Org.) Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI- XVIII. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010. GRUZINSKI, O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 . HEYWOOD. Linda M. (Org.) Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MARTIN, Denis-Constant. ''A herança musical da escravidão'~ Revista Tempo, v.14, n.28, Jan-Jun de 2010. PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e mundo do trabalho). Tese para o concurso de professor titular em História do Brasil apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. RÊGO-FIGUEIRÔA, João de; OLIVAL, Fernanda. "Cor da Pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII)". Revista Tempo. n. 30, 2011.

40

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

SOUSA, Ana Madalena Rosa Barros Trigo de. D. Francisco de Sousa Coutinho em Angola: reinterpretação de um governo 1764-1772. (Dissertação em História) Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1996.

Hechicería colonial, iusticia capitular y mestizaies. Santiago del Estero (gobernación del Tucumán, Virreinato del Perú} en el siglo XVIII JUDITH fARBERMAN

LAS HECHICERAS SANTIAGUENAS

Santiago dei Estero fue la primera fundación estable en el actual territorio argentino. Levantada en 1553 luego de tres intentos fallidos, conoció el privilegio de ser sede dei gobernador y de la diócesis dei Tucumán. La elección dei sitio donde fue emplazada no era en absoluto casual: las fuentes tempranas coinciden sobre la nutrida población indígena que habitaba las llanuras a orillas de los ríos Dulce y Salado, que recorren en paralelo la región. Estas poblaciones - designadas inicialmente como "juríes", luego como "tonocotés" y desde el siglo XVII simplemente como "índios" - contaban con abundantes reservas de alimentos y estaban bien dispuestas a concertar alianzas político militares con los recién llegados. Por esas razones (aunque no sin dificultades, dada la resistencia indígena en las tierras altas) fue desde Santiago que la conquista se extendió hacia el resto del Tucumán, valiéndole a la flamante fundación la honorable etiqueta de "Madre de ciudades': A pesar de su impulso inicial, Santiago del Estero y los pueblos de índios que la sostenían conocerían una penosa y precoz decadencia. Por eso, durante buena parte dei siglo XVII y sobre todo dei siguiente- aiíos que servirán de escenario a nuestro relato- podemos imaginar a la ciudad del río Dulce como un emplazamiento relativamente marginal de la gobernación dei Tucumán y mucho más del virreinato dei Perú. Una remota periferia colonial, cuyos miembros notables habrían ya perdido la memoria de tiempos mejores y más bien se empeiíaban en preservar sus bienes - índios

42

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

encomendados incluídos- de las tribus "infieles" que los amenazaban desde el Chaco, en las puertas mismas dei río Salada. 1 Quizás por su mala ventura o por depender demasiado estrechamente de los indígenas sometidos, en Santiago dei Estero se juzgaron desde temprano numerosos casos de hechicería, expresión tanto de la difidencia hispana hacia los índios como de las crisis internas de las reducciones. Nos lo advierten algunos documentos - como la carta del gobernador Ramírez de Velasco, orgulloso de haber quemado a cuarenta hechiceros "viejos de más de sesenta anos y algunos de más de ochentà'2 - y hasta los mismos juicios de residencia del sigla XVII (habitualmente parcos) en los que no faltan quejas de los vecinos sobre la negligencia de autoridades poco atentas a las amenazas mágicas. 3 Sin embargo, lo más llamativo es que las persecuciones, aunque con diferentes intensidades, hayan perdurado hasta bien entrado el siglo XVIII. Aunque en el archivo provincial hemos localizado solamente once expedientes judiciales contra hechiceros - que constituirán el corpus documental de este trabajo - sabemos gracias a informaciones complementarias que existieron otros numerosos episodios y hasta algunas razzias sistemáticaS.4 En suma,

1. Desde fine s d ei siglo XVII la vasta regián chaquena, limítrofe con las gobernaciones del Tucumán, Paraguay y Buenos Aires se convirtiá en una fro ntera candente. Los guaycurúes llegaron casi a las puertas de la ciudad d e Santiago del Estero y, salvo algunos paréntesis de paz, los pueblos de indios y las estancias dei Salado quedaron baj o la amenaza permanente de los "infieles", especialmen te de los de nacián abipo na. Ver LU CAIOU, Carina. Abipones en la frontera dei Chaco. Una etnografía histórica sobre e/ siglo XVIII. Buenos Aires: Sociedad Argentina d e Antropología, 2011. 2. Carta a S.M. dei gobernador dei Tucumán Juan Ramírez de Velasco, pp. 177- 194, Santiago dei Estero, 10 de diciembre de 1586, LEVILLIER Roberto. Gobernacián dei Tucumán. Papeles de gobernadores dei siglo XVI, Madrid: Imprenta de Juan Pueyo, 1920, p. 182. 3. Así por ejemplo, en e! juicio contra e! gobernador Peredo uno de los testigos sostenía que "en e! río dei Salado donde este testigo ha asistido havido algunos delitos que an cometido de echizero que corre comunente que Jes un indio llamado Bernabé de la encomienda de don Juan de Zurita y no ha visto que las justicias que corren o deben correr la campana no lo han remediado." Archivo General de Indias/ AGI. Escribanía de Cámara 874 A, 1674. Autos fechos en la ciudad de Santiago del Estero por Dn Diego Ibafu:=z de Faría fiscal de la Real Audiencia de Buenos Aires contra Dn Angel d e Peredo, gobernador que fue de la provinda de Tucumán, sus ttes, ministros y oficiales en la residencia. f. 148. 4. Como en todas partes, la persecucián de hechiceros reconociá en Santiago dei Estero un ritmo variable que atribuimos sobre todo ai ceio de determinados funcionados. Además de las citadas acciones de Ramírez d e Velasco, conservamos algunos procesos dei siglo XVIII - que luego se comentarán - debidos ai ceio de don Alonso de Alfaro. Por fin, aunque parece tratarse de una iniciativa exclusiva d ei cabildo de Santiago, fue también grande e! empeno puesto en la "caza" de 176 1, que superá la jurisdiccián santiaguena. En contraste, tanto la ausencia de procesos como la incredulidad demostrada por las justicias en otros, revelan períodos menos propicios para la atencián de denuncias o el emprendimiento de investigaciones de oficio. Cabe notar que las tres grandes persecuciones que senalamos coincidieron con un momento d e gran mortandad indígena

lsnara Pereira Ivo I Eduardo França Paiva IMarciaAmantino (orgs.)

43

no se trataba de un problema menor - más allá de que los episodios de hechicería no siempre se judicializaran y sus huellas materiales en los archivos nos resulten desvaídas - sino de una amenaza siempre presente para élites y sectores subalternos. lQué entendían por hechicería - el término que suele figurar en la carátula de los expedientes - las justicias santiagueftas del siglo XVIII? Por cierto, la asociación con las religiones indígenas en vías de demonización (característica de los primeros tiempos) parece encóntrarse ausente en el pensamiento de los jueces capitulares dieciochescos. En rigor, lo que ellos juzgaban era un conjunto de prácticas empíricas, individuales o colectivas, orientadas al maleficio o dano personal. Aunque, como se tratará más adelante, el pacto diabólico puede asomar en la confesión de alguno de los acusados, no parece ser éste el centro de la preocupación de los tribunales más crédulos. 5 Por este motivo, la mayor parte de los procesos se iniciaba a partir de la muerte misteriosa o de la enfermedad - no importaba si de un notable vecino o de un humilde esclavo- que se resistía a ser entendida en términos "naturales'~ En presencia de estos sucesos, una denuncia anônima (que decía representar el "clamor "popular") o la iniciativa de las justicias - que emprendían una investigación de oficio - iniciaban la máquina de Ias sumarias, las confesiones y las sentencias. En todo caso, las sospechas colectivas apuntaban hacia un grupo muy preciso de sujetos: mujeres, generalmente índias de encomienda.6 Este nítido perfil representaba como efecto d e epidemias en e! primer caso y con una situacián fronteriza crítica en e! segundo y en e! tercero. S. Aunque pod emos encontrar también una mixtura de ambas cosas, tal como lo sugiere la evocacián d e! jesuita Pedro Lozano que asociá "gentilidad'; idolatrías y hechicería y d efendiá la campana de Alonso de Alfaro. En sus palabras, "esta perversa canalla [de los hechiceros] fue siempre muy válida entre las naciones de esta gobernacián dei Tucumán y aún con estar hoy casi todos estinguidos, no obstante quedan vestigios de lo que sería en la gentilidad, p ues hay todavía no pocos que después d e haber abrazad o la ley de C risto profesan estrecha familiaridad con e! d emonio, con cuyo magisterio salen eminentes en e! arte mágico; unos para transformarse en varias fieras, para vengarse en tal figura de su enemigo, o tros para acometer enormes m aleficios en despiques de su odio rabioso; y don se sabe cundir más este contagio es en lo s p ueblos de Santiago dei Estero, cuyo teniente general don Alonso de Alfaro no ha m uchos anos q ue persiguió a muchos y condená a varios ai bracero para que las llamas abrasasen esta peste y se puri fic ase el aire de tan fatal contagio". LOZANO, Ped ro. Historia de la conquista dei Paraguay, Río de la Plata y Tucumán. Buenos Aires, Buenos Aires: Casa Editora Imprenta Popular, 1874 ( 1 ed. 1745), p. 430. 6. En los once procesos santiaguenos disponibles en e! archivo provincial fuero n acusadas 18 mujeres ( 16 de las cuales eran indias) y solamente 3 hombres (dos indios y un "zambo de índio"). Aunque no los estamos considerando en este artículo, otros ocho casos juzgad os en San M iguel d e Tucumán seguían e! mismo patrón, aunque son más numerosas las m ujeres mulatas. Estos datos

44

REliGIÕES EREliGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

una relativa novedad, ya que la comparación con los fragmentarias datos disponibles para los siglos XVI y XVII nos permitida inferir un proceso gradual de feminización dei delito y de despojo de sus aristas religiosas. tPodría inferirse de este cambio un deslizamiento hacia el estereotipo europeo de la hechicería? Aunque no podemos descartar! o completamente, más plausible nos parece atender a razones de orden estrictamente local. Santiago del Estero - donde la hechicería fue perseguida de manera mucho más implacable que en el resto dei Tucumán - fue precozmente adquiriendo los contornos de las sociedades de emigración. Los padrones de encomienda - únicas fuentes demográficas tempranas que poseemos - nos recuerdan con sus numerosos tributarias ausentes la movilidad masculina y también sus secuelas: el imponente número de mujeres solas, las m ás de ellas con hijos, y necesitadas de mantenerse por sus propios medios. No es casual que justamente en este grupo - "índias" sin tutela masculina, que se reconocen generalmente como hilanderas o tejedoras se h alle el m ayor número de acusadas. La importancia productiva de las mujeres en la región - donde la especialización textil se mantuvo desde los primeros tiempos de la colonia hasta el siglo XX - así como cierto poder doméstico femenino en ausencia de los hombres, quizás contribuyeron también a poner en la mira de testigos y jueces a los miembros de este grupo. Otros atributos acompanaban el perfil típico: la presunta hechicera solía coincidir con la vecina conflictiva, la de moral sexualligera, la que escondía peligrosos secretos ... Y muy particularmente coincidía con un oficio: e! de la "médica" itinerante, capaz de ofrecer a sus clientes el servido de curar, enamorar y, de ser preciso, maleficiar. Como sea, la "mala fama" que construían actividades y cualidades personales era la nota que acomunaba a las acusadas y que las volvía "temidas y respetadas" en los ámbitos en que circulaban y que, como en breve comprobaremos, rebasaban los límites de los pueblos de índios para atravesar ríos, bosques y monta.ií.as. Mantenimiento de la idenlidad india dei hechicero y viraje hacia una feminización de la actividad ... tCómo se condecía este proceso con la gradual complejidad socioétnica que la sociedad santiaguena había ido adquiriendo durante su experiencia colonial? De hecho, en 1778 la mitad de la población de nuestra cabecera pertenecía a las "castas" de origen africano: las dos repúblicas habían sido desbordadas por e! mestizaje pero Ias mulatas y las pardas sólo

se enc.yentran en detalle en FARBERMAN, )udith. Las salamancas de Lorenza. Magia, hechicería y ctiranderismo en e/ Tucumán colonial. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005, p. 114- 115.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

45

representaban una minoría entre las acusadas, mientras que espaiíolas y mestizas sólo figuraban entre las víctimas de los hechizos o entre las clientas habituales de las hechiceras. 7 Esta contradicción podría resolverse desdeiíando las clasificaciones coloniales y enfatizando en la cultura mestiza que acomunaba a todas las reas que declararon. En todo caso, lo que sigue siendo destacable es que esta cultura mestiza tu viera en Santiago tanto de "in di o" y que - como en la cercana jurisdicción de San Miguel de Tucumán estudiada por EsteJa Noli- impregnara la misma lengua en que comunicaban los esclavos negros, el vestido de los mestizos africanos, los hábitos y costumbres de la mezclada población de las campaiías. 8 Una peculiaridad que se expresaba en múltiples dimensiones, más aliá de las clasificaciones y nomenclaturas por todos aceptadas y que seguían situando en lo índio una alteridad que siglos de convivencia no habían terminado de resolver. Entre otras cosas, en Santiago "lo mestizo era índio" porque la población, especialmente la rural, se expresaba con mayor fluidez en quichua que en castellano, las actividades de recolección seguían siendo vitales en e! calendario campesino, la algarroba se mantenía como base alimentaria de los santiagueiíos y la "minga" - el trabajo comunitario que se premiaba con abundantes convites - favorecía a círculos que superaban con mucho a los legítimos moradores de las reducciones. Respecto de las actividades que nos ataiíen más específicamente, solía ser indígena la materia médica de los hechizos y, a veces, también lo eran los maestros dei arte mágico. Más aún, hasta las élites descubrían en Santiago dei Estero su rostro "aindiado': como lo entendió un gobernador dei Tucumán en su pasaje por la ciudad: Es digno de considerar con lástima y dolor la poca o ninguna crianza que los espafloles que habitan en sus haciendas de campo dan a sus hijos pues muchos aú n de los principales no saben leer ni escribir y apen as hablan el idi oma castellano, hallándose más expertos en el de los indios, de quienes

7. Del censo de 1778 sólo conocemos una síntesis publicada en LARROUY, Antonio. Documentos de/ Archivo de lndias para la historia de/ Tucumán, vol.II. Buenos Aires: Lib. E. Privai, 1927. s/ p. Es el único padrón colonial existente que abarca a todas las cabeceras tucumanas y que consigna la totalidad de las castas. 8. NOLI, Estela. Indios ladinos, criollos aindiados. Procesos de mestizaje y memoria étnica en Tucum án (siglo XVJT). Rosario: Prohistoria, 2012. Según esta autora, "este mestizaje se explica por la ruralización del grupo hispano criollo y las relacio nes fl uidas de vecindad con los pueblos cercanos, ai trasladarse San Miguel de lbatín a la Toma" (p. 14). En un proceso de mestizaje recíproco, los actores construyeron un mundo ladino y mestizo, en el que resultaba muy difícil y artificial separar "lo indio':

46

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

lo aprenden por la continua comunicación por ellos y poco o ningún trato con gente política con otros muchos inconvenientes que resultan de vivir sin sociabilidad con cuia representación se servirá V.M. mandar como más convenga a su Real Servicio. 9

Estas élites rústicas - desprovistas de un adiestramiento jurídico específico y guiadas por su "leal saber y entender" y su desconfianza hacia la "gente de haja esferà' - fueron las que desde el cabildo santiagueiio juzgaron a las "hechiceras" del siglo XVIII. Y lo hicieron con una autonomía casi total: sólo así se comprende el profuso empleo del tormento y la nula intervención de la justicia eclesiástica y dei tribunal superior de la Audiencia de Charcas. APRENDIZAJES MESTIZOS

Como es sabido, el sistema penal de Antiguo Régimen presuponía la culpabilidad dei acusado, de quien se procuraba a toda costa obtener el reconocimiento del delito. 10 Aunque algunas "pruebas materiales" - como los dispositivos mágicos o "encantos" - tenían cierta incidencia en el desarrollo de los procesos, la prueba determinante era la confesión. De este modo, todo el procedimiento judicial se orientaba a que los reos se adjudicaran los crímenes que los testigos (generalmente haciéndose eco de rumores) les atribuían. En estas confesiones distorsionadas por el miedo - y a menudo por el dolor físico - las historias y las memorias atesoradas por las sumarias se entrecruzaban con versiones alternativas, sumaban nuevos personajes y, en el intento de adecuarse a lo que el juez quería oír, se poblaban de detalles de excepcional riqueza para el historiador. En este sentido, la rusticidad de los jueces santiagueiios impidió el "dictado" de las respuestas, tan habitual en los procesos inquisitoriales: los cuestionarios seguían muy de cerca las declaraciones testificales o intentaban profundizar en las respuestas de las reas.

9. AGI, Ch arcas 21 O. EI gobernador de Tucumán informa a V.M. el estado de Ia ciudad de Santiago dei Estero, y da cuenta de haber mandado a los feudatarios de ella no vivan en los pueblos de sus encomiendas sino en la ciudad y que edifiquen en ella casas, pena de perdimiento de sus feudos, f.1. 10. En palabras de Francisco Tomás y Valiente: "todo el andamiaje está entramado en ordena Ia consecución de la prueba perfecta: la confesión dei acusado. Pues, en efecto, si ésta no se produce espontáneamente, la existencia de indícios contra un sospechoso permitía ai juez someterlo a tortura, habida cuenta de que sólo se consideraba desvelada la verdad cuando el atormentado confesaba su culpabilidad en el acto dei tormento y ratificaba su confesión después de la tortura, pero no si el torturado sostenía antes, durante y después dei tormento su inocencia". TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. E/ derecho penal de la monarquía absoluta. Siglos XVI-XVII-XVIII. Madrid: Tecnos, 1969, p. 171.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

47

lCómo podía escaparse de la implacable lluvia de cargos acumulados en las sumarias? Una estrategia muy recurrente entre las acusadas fue la de repartir sus presuntas culpas, presentes y pasadas, con otras personas a las que se tildaba de hechiceras. Así, una vez agotado el espacio de la primera confesión (en el que todo se negaba), aparecían numerosos los maestros, los cómplices, los discípulos y, eventualmente, hasta los contrabrujos. Y junto con todos ellos se desvelaban también las rencillas comunitarias, los resentimientos y enconos interpersonales que habían motivado los daiios ahora reconocidos o adjudicados a terceros. Sólo el uso del tormento acercaba al estrado al invitado de honor de la hechicera, el Demonio mismo, presente en las más desesperadas de las confesiones. 11 Es justamente la cuestión del aprendizaje la que mejor nos permite situamos en un ámbito mestizo, aunque siempre con impronta indígena. Si para los testigos la hechicería era fundamentalmente un arte heredado (los antecedentes familiares pesaban de manera determinante en la construcción del estereotipo), en sus narraciones sobre el aprendizaje los reos apelaron a otro tipo de relaciones. Así por ejemplo, la mulata Francisca seiialó que "estando en el Tucumán comunicó con un pardo llamado Domingo que andaba de médico [... ] y (éste) le persuadió a que aprendiese dho arte animándola no tuviese miedo" 12 y la índia Juana Pasteles identificó su maestra en una tal Juanita, índia conocida en Tucumán que, tras llevarla ai monte y darle "una piedra por Vacanquí': le ofreció "sacarle un chivato". 13 También dos de los escasos varones juzgados - Antonio Lluschon y Martín Sacri.~tán, índios de Guaiiagasta reconocieron haber recibido ofertas de iniciación lejos de su tierra. A Martín Sacristán (que asumió ser hechicero desde sus aiios mozos) le había enseiiado "un mulato de Córdoba llamado Bartolo en el paraje de Ingiguasse" mientras que Antonio Lluschon había sido invitado por un índio de nombre Villa Carne que le propuso acercarse sin temor a "un chivato con una bolsa colgada por el

11. Aunque en algunos cuestionarios se les preguntó a las reas acerca de si mantenían "pacto implícito o explícito con el demonio, la insistencia de los jueces terminaría por apuntar prioritariamente a la confesión de las operaciones rituales y de los procedimientos empíricos que generaban tal o cual dano concreto. Si además obtenían de la hechicera e! "encantÓ" o dispositivo mágico con e! que se suponía que ella mantenía enfermas a sus víctimas, o lograban rescatar los polvos o yuyos que servían de antídoto, tanto mejor. Así pues, el papel de! demonio se limitaba a! de gran instigador mientras que las disquisiciones teológicas quedaban fuera dei alcance y real interés de las justicias. 12. Archivo Histórico de Santiago de! Estero, AHSDE, Tribunales, leg. 5, expediente 93. Alonso de Alfaro, Auto sobre asunto criminal. 1720, f. 16. 13. AHSDE, Trib.14, 1145. Causa contra Juana Pasteles seguida por homicidio. 1715, f. 12.

48

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

pecho" y pletórica de hierbas "para contrastar las voluntades de las mujeres y tenerlas a su voluntad': 14 Esta asociación entre el eventual maestro que "tienta" ai temeroso iniciado, el demonio bajo la apariencia dei chivato y los amuletos y la entrega de hierbas y otros insumos para hechizar regresa en varias de las confesiones: una suerte de cadena en la que el aprendiz es adiestrado por un tercero que, a su vez, es el mediador dei Demonio. En todo caso, la mediación humana para acceder al verdadero maestro de los hechiceros parece imprescindible y, en una economía campesina como aquélla de la que participaban los acusados, la figura dei chivato parecía una de las más a propósito para el ocultamiento en el rebafw familiar. Hasta ahora nos hemos topado con una representación clásica dei demonio (la dei chivato) y hasta las andinas piedras vacanquí - demonizadas hasta el hartazgo en los confesionarios y catecismos dirigidos a los párrocos de indios - encajan bien en el imaginaria europeo de la hechicería (y en sus adaptaciones americanas). No faltan otras representaciones, igualmente ceiiidas a la demonología europea, que sólo surgen en los relatos obtenidos bajo tortura. Por ejemplo, la misma mulata Francisca, inquirida sobre si tenía "pacto explícito con el Demonio", sostuvo que éste la acompafl.aba a todas partes, tenía relaciones sexuales con ella y la persuadía para que no confesara sus crímenes mientras que Juana Pasteles había sellado su pacto de la manera más tradicional, con ei "ósculo infame". 15 Sin embargo, el aprendizaje del arte podía alcanzar una dimensión mucho más inquietante que la descripta en las confesiones hasta ahora resefl.adas, en las que hemos visto circular recetas, hierbas y piedras en intercambios restringidos y encuentros eventuales. En el proceso más tardío de los que hemos hallado, el iniciado en 1761 contra las indias Lorenza y Pancha, se esboza una figura bastante más compleja que la del pacto entre dos (o entre tres, si se cuenta al demonio): la de la salamanca o escuela de hechiceros.16 Seguir el rastro de la construcción de este estereotipo es el objetivo de lo que sigue.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

49

EL CAMINO HACIA LAS SALAMANCAS Hasta donde sabemos, ei término salamanca es mencionado en un único expediente colonial, e! ya citad o de 1761. En las confesiones de las indias Lorenza y Pancha - acusadas de enfermar por arte mágico a una criada dei alcaide indígena y denunciante dei hechizo - fueron descriptos tres encuentros diferentes entres localidad es concretas: Brea Pampa, Ambargasta, y Los Sauces, las d os primeras en Santiago y la otra cerca de San Miguel de Tucumán. En estas salamancas dijeron haber aprendido la hechicería Lorenza y Pancha, en compafl.ía de "los demonios" y de otros iniciados (hacia quienes la justicia extendió su campana persecutoria, instruyendo una nueva sumaria). A Brea Pampa se refirió Lorenza en su segunda confesión, cuando el rigor dei tormento pudo más que su obstinado silencio. Según sostuvo entonces, había escapado de la prisión junto con Pancha, ambas volando y conducidas por e! Demonio, para sumarse a toda una corte de hechiceros - de cinco mujeres y un hombre - todos responsables dei martírio de la criada María Antonia. 17 Lorenza declará que los complotados "dentraron a la salamanca y consertaron allí el haser daiío a todos los qe pudiesen y todos estos qe !leva nominados son hechiseros", ampliando así el potencial universo de víctimas y victimarios. Cabe destacar que, salvo Marcos Azuela - zambo y único varón de la comitiva - las mujeres seiíaladas eran indias del pueblo de Tuama, muy cercano a Brea Pampa, lugar que "está del Pueblo de Tuama cosa de una Legua pa fuera [ ... ] qe tiene un jarillar o monte espeso y qe hablan con un hombre ge parece espaõ.ol mui feo y con la cara mui peluda y qe este les ensefl.a qe con tierra o hormiga y otra qualquiera cosa qe les pida les dara para qe maten o hagan dano': 18

17.

Esta "china" de Tuama atravesó una enfermedad de varias fases. La denuncia contra Lorenza

y Pancha se debió a su súbita mudez - que no le impedía seguir acusando con gestos elocuentes

14. AHSDE, Trib.l: 10. Contra Martín, sacristán de Guanigasta. 1732, f. 10 y 11. 15. AH SDE Trib.5: 93, 1720, f. 16 y AHSDE Trib. 14: 11 45, 1715, f. 13. Según confesó Juana Pasteles "se le paró dho chivato y !lego esta confesante a vesarle el ravo, como su maestra Ie advirtió. Preguntadole q si le besaria hincada a que le dixo que sentada lo podía haser como asilo ejecutto y entonces le dijo la dha su maestra ia no es menester otras cosas" f. 13. 16. AHSDE, Trib. 13: 1025, Criminal contra Lorenza y Pancha, indias de Tuama. 1761.

- e inmovilidad de las extremidades. El alcaide forzó a las indias a curaria y éstas consiguieron que despidiera huesos y lanas por la boca y una arana "por las partes ocultas': Como la curación no resultó eficaz, el alcaide llevó la denuncia ai cabildo de la ciudad, donde María Antonia fue alojada en la casa de un vecino y, frecuentada por los notables y su servidumbre, parió un sapo. Después de ese hecho sorprendente tuvieron lugar nuevas curaciones, a cargo de Marcos Azuela, elevado por las justicias a "maestro de hechiceros': Aunque las fr iegas y masajes dei zambo le propo rcionaron a la enferma cierto alivio, sólo con la muerte de sus "médicos" consiguió reco brar su salud definitivamente. Así pues, María Antonia acompafló el proceso como una suerte de "prueba viviente" de la capacidad de dano de los hechiceros. 18. AHSDE, Trib.13:1025 (1761), f. 154.

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

50

En la ratificación del día siguiente, Lorenza negó su paso por Brea Pampa. t9 En cambio, sostuvo haber aprendido en la salamanca de AO:bargasta - distante de su pueblo de origen - y a instancias de otros personaJeS de los que, significativamente, indicó su calidad de mestizos

lsnara PereiraIvo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

51

vieron un vivorón qe sacaba la Lengua viendo a todos, y qe este le d io a la muger un papel con unos polvos el qe estaba liado con hilo colorado y cabellos y le encargó a esta declarante dha mujer qe aquellos Polvos era pa. el efecto de matar, dandoles en comida o bebida, y qe. havíabayle y can to, con Arpa y Guitarra y qe. Dha muger le dixo a esta declarante, qe. aquel vivorón pedía le diese de su sangre a lo qe esta declarante no quiso y qe entonzes,

que la Ensefió un mestizo llamado Juan Joseph Vivas, y en esa ocasión dentro un hijo de éste llamado Joseph Vivas y que entonces vinieron dos vestidos a

enojado el vivorón se suspendió [f. 60 J como qe se sen taba, y dha mujer d ixo

lo espano! mui grandes eran los Demonios, y dos Chibatos, los que heran de

al vivorón no sea qe. de miedo nos descubra y ssí yo te traere la sangre de aliá,

color e! uno pardo y el ot ro negro, los qualesablaron con Juan Joseph Vivas Y

y qe entonzes se salieron y esta declarante, y qe nunca le dió su sangre, por qe

les dijo q aesta Declar.te que bían [lban] la llevaban para Aprender el Arte, y

su marido no le d ió Lugar...

que a Juan Joseph Vibas le dieron los dos Demonios cavellos en un papelon y Vivas se los dió a esta Declarte para q con ellos matase y quede estos cavellos le dio a su tía para q muriese los q dio en Agua y lo restante de los Cavellos q quedaron quiso echar y el dho Vivas le dijo q no los echase, q se los diese para darselos a su Dueõo los q esta Declar.te se los entregó, q eran de color pardo...

Por último, las referendas a Los Sauces le pertenecen a Pancha, que declará sin tormentos. 2o A aquella salamanca habría concurrido dos veces, la primera de ellas - seis anos atrás - a partir de un encuentro casual: "viendo hiba mucha gente diciendo havía fandango siguió esta declarante, y llegado a dho parage dizeqe le propusieron, qe ya que estaba allí qe aprendiese, qe como se havía de saber, tan lexos de su tierra y que no conosiá a ninguno de los sujetos qe concurrieron''Y . En la segunda ocasián, ya nadie había tenido que tomarse el trabaJO de convenceria para sumarse al misterioso fandango. En cambio, una mujer gorda - quizás la portera de la salamanca - le hizo algunas saludables recomendaciones qe aunqe viese qualquiera cosas no tuviese miedo ni nombrase e! nombre de

lQué sacar en limpio de este conjunto de confesiones? Por empezar, es relevante el hecho de que fueran Lorenza y Pancha - y no las justicias quienes introdujeran la cuestián de las salamancas y de sus multiformes demonios. Probablemente procuraran repartir las culpas (y en el caso de Lorenza vengarse de quien la había denunciado, el alcaide indígena, tío de dos de las presuntas hechiceras) y reorientar la investigacián judicial hacia otras personas. Por cierto, dejando de lado a las jóvenes sobrinas dei alcaide, Lorenza había seflalado entre sus cámplices a mujeres que cargaban con el estigma de la mala fama y a un hombre - el zambo Marcos Azuela - portador dei ambíguo prestigio de los curanderos. 22 Así pues, los nombres no habían sido elegidos al azar y quizás por eso la justicia capitular creyá en las palabras de Lorenza y se aprestá a darles caza a los supuestos iniciados (agregando al listado original a la mujer, las hijas y las nietas dei zambo, ahora contagiados por quien devino - en una libre interpretacián de la confesián de la rea "maestro de hechiceras"). En segundo lugar, resalta el carácter secreto y festivo de los cónclaves, que recuerda al Sabbat europeo. Secreto porque los complotados preparaban allí sus venganzas y habían entregado su alma al diablo para hacerlas eficaces (o su

Jesús, María y Jph, por qe se perdería y no sabría donde estaba, qe vio mucha gente todos en cueros y esta también, qe antes de entrar se desnudaron y

19. Las ratificaciones de la confesión tenían lugar 24 horas después de aquélla y era condición para su validez prescindir de los tormentos. En general, las reas confirmabam cuanto habían dicho,

corrigiendo o agregando detalles. , 20. Las justicias beneficiaron a Pancha con este tratamiento especial al constatar que se dormta durante Jos tormentos. Esta capacidad para resistir ai dolor fue leída en clave de pacto con e! Demonio y luego atribuída al "encanto" que la india llevaba cosido en el interior de su falda Yque se encontrá después de su muerte. 21. AHSDE Trib. 13: 1025 (1761), f. 158.

22. De las mujeres senaladas por Lorenza, Gabriela era sindicada de haber "asimplado" a su marido con arte mágico mientras que Lucía le había proporcionado a la enferma un agua de porotillos gradas a la cual había expulsado huesos y cabellos. Josefa era hija de Pancha y en su confesión se cuidó de aclarar que veía muy poco a su madre. En cuanto a Marcos Azuela, las opiniones se hallaban divididas. Las indias de Tuama involucradas por Lorenza reconocieron a Marcos como médico pero no como hechicero. Por e! contrario, en los alrededores de Tilingo pueblo de indios y lugar de residencia dei zambo - los espanoles que testificaron coincidieron en la mala fama de toda la família, esposa, hijas y nietas menores incluídas. Sin embargo, no todas Ias mujeres de Azuela pudieron ser rastreadas por las justicias a pesar de la solicitud de colaboración a autoridades de otras jurisdicciones.

52

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

sangre ai Viborón que lo representaba) y festivo, porque todo transcurría entre música y baile, a la vez que la desnudez producía un "efecto de igualdad" entre participantes de calidades sociales diferentes (nótese la presencia de mestizos en la salamanca de Los Sauces y de! portero hispano en Brea Pampa). En este sentido, la distancia geográfica de las salamancas de Ambargasta y Los Sauces ayudaría a preservar el secreto - sus acólitos son personajes anónimos, los acontecimientos relatados pertenecían al pasado - mientras que la de Brea Pampa parecía más a propósito para tomar venganza de vecinos concretos .H Sin embargo, el lector habrá notado que, dejando de lado el carácter colectivo dei encuentro salamanquero, el aire de família de estas confesiones con las que citamos antes es evidente. El nexo se encuentra en la presencia de mediadores - el hombre espano! de Brea Pampa, los mestizos Joseph Vivas y su hijo, la mujer gorda de Los Sauces - que alentaban a las personas comunes y corrientes a tomarse revancha de sus ofensores aprendiendo el arte mágico y haciéndose de los necesarios ingredientes. Un arte empírico y a la vez diabólico que, de contar con el coraje suficiente para aceptar la oferta, elevada a los iniciados por encima de los comunes mortales. De alguna manera, en todos los procesos - y también en los que mencionamos antes - surgen piezas sueltas que bien podrían confluir en el puzzle de las salamancas. Sin embargo, algunos indicios parecen más consistentes que otros en la intuición de las escuelas de hechiceros. Así pues, a la luz de las confesiones de Lorenza y Pancha, resulta significativo que la índia Pascuala Asogasta fuera sospechosa por desaparecer subrepticiamente en el monte - el espacio liminal en el que se ocultaban las salamancas - y concurrir a juntas "para aprender y bailar".24 O que las índias Luisa y Antuca, madre e hija, hubieran provocado el terror de dos músicos que las habían visto caminando desnudas en dirección a una barranca que miraba al río (un buen escondrijo para una salamanca de agua). 25 De esta suerte las salamancas, aquellos espacios suspendidos en la geografía cotidiana de las personas pero sólo accesibles para algunas de ellas, merodean buena parte de los procesos coloniales aunque no se las nombre con todas las letras.

23. Po r algún mo tivo, quizás para distanciarse de las restantes indias de Tuama y delegar en Azuela e! primer lugar entre los hechiceros, en su ratificació n Lorenza negó haber aprendido en Brea Pampa. 24. AHSDE, Trib.9 bis:703 ( 1728). Pascuala, india de Asogasta. Sobre homicídio con arte de hechicería. f. 53. 25. AHSDE, Trib.1 O: 806 ( !729). Toloza Juan contra Luisa, índia. Sobre injurias.

lsnara Pereira Ivo IEduardo França PaivaIMarcia Amantino (orgs.)

53

SALAMANCAS REMOTAS Y RECIENTES

Las resonancias de las evocaciones de Lorenza y Pancha llegan hasta el presente. En efecto, la leyenda de la salamanca se encuentra entre las más populares dei noroeste argentino y de la Patagonia, es objeto de variadas producciones artísticas y los folcloristas han recogido innumerables versiones orales.26 Los núcleos principales de la leyenda mantienen aquéllos que las acusadas de Tuama desgranaron en sus confesiones: - un espacio mágico con localización geográfica concreta, el aprendizaje como obj etivo principal de los concurrentes, el pacto diabólico y la presencia física d ei demonio (Zupay), música y baile amenizando la reunión, el requisito de la desnudez para quien ingresa. También suelen mencionarse la existencia de "porteros" y, muy especialmente, se insiste en que el aprendiz debe tener mucho coraje. En efecto, no cualquiera es capaz de vender su alma renegando de su fe y de darle a la espalda a su comunidad a cambio de un saber (la brujería, pero también otros que hacen al arte de la seducción, como la ejecución de instrumentos y la dan za) ni de entrar en contacto con los animales inmundos que recorren la piei desnuda del iniciado cuando ingresa al antro mágico. La suer te dei arrepentido, o de quien revele el secreto, suele coincidir con la que la mujer gorda de Los Sauces le indicara a Pancha: su destino es "perderse" y enloquecer. Existe cierto consenso entre los folcloristas acerca dei origen hispano de la leyenda, que remite a la cueva de Salamanca, evocada en un entremés de Cervantes y en una célebre obra dei novohispano Antonio Ruiz de Alarcón Y

26. Hemos preferido reproducir un testimonio inédito, extraído de la Encuesta Nacional de Folclore de !922 que recoge varias decenas de versiones de la "leyenda de la salamanca": "A las orillas dei río en aquella barranca [. .. ] hay una cueva grande, que tiene muchos metros de largo y una puerta chica por donde se entra. Cualquiera no conoce esta puerta, pero de noche se sabe dónde es porque la indica una luz colorada que se corre po r ela ire y se posa en un sauce que está en la puerta de la "salamanca". Esta luz jamás se apaga aunque corra viento o llueva. Aliá solo entran las personas corajudas que tienen tratados con el "maldito" (Diablo) y por consiguiente no creen en Di os ni en la virgen. El cobarde no debe entrar. Hay que entrar desnudo [ .. .]. En la puerta está un cocodrilo, que es e! maldito m ismo, y el que pregunta a los que van si creen en Dios. AI entrar se ve allí animales de todas clases: chivos muy grandes, carneros, toros, víboras, "ampalaguas'; sapos, escuerzos, aranas y m uchos más [ ... ]. Mas aliá se baila con m úsicas muy lindas. Q uien entra aliá aprende lo que quiera, a bailar y zapatear, a tocar la música, a domar y hacer brujerías': Instituto Nacional de Antropologia, Encuesta Nacional de Folclore, Caja 2, Carpeta 53, Aristóbulo Bustos Navarro, Lezcanos. "La salamanca': Informante: Lo renza de Salvatierra, 85 anos. Hemos realizado un análisis exhaustivo de esta riquísim a fue nte en FARBERMAN, Judith. Magia, brujería y cultura popular. De la colonia ai siglo XX. Buenos Aires: Sudamericana, 201 O, p. 87- 13 1. 27. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de, La cueva de Salamanca, dispo nible on line en cervantes. uah .es/teatro/Entremes/entre_7,html (l 0 ed. 161 5). RUIZ DE ALARCON Y MENDOZA, Juan .

54

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

Además dei nombre, también el pacto diabólico, la cueva y el aprendizaje veloz parecen calcados de las versiones !iterarias, que bien podrían haber cruzado el océano ... Claro que, si los estudiantes salmantinos dei siglo XVII accedían a una variante culta y libresca de la magia (la quiromancia, la astrología y la nigromancia), los salamanqueros dei norte argentino se apropiaban de un saber práctico cuya posesión está destinada a provocar por igual admiración y temor. Recientemente, y apartándose dei problema de los orígenes, José Luis Grosso ha propuesto la naturaleza mestiza de la salamanca, rescatando en particular la incorporación de elementos de origen africano al estereotipo. 28 Según el autor, no es casual que los custodios de las salamancas sean negros, que el mismo Diablo tienda ser representado como negro y que el malambo (danza de origen afro) figure entre las destrezas que pueden aprenderse en el espacio mágico. Aunque el trabajo de Grosso no ha desdeiíado las fuentes históricas - en las cuales, como comprobarnos hasta ahora, lo índio está mejor representado que lo negro - el grueso de su evidencia proviene dei trabajo de campo antropológico realizado en la década de 1990. lEs posible tender un puente entre las salamancas coloniales de Lorenza y de Pancha y las actuales, un puente que vaya más aliá de las semejanzas formales entre componentes de un mismo estereotipo? Como es sabido, las mismas formas pueden ocultar significados diferentes y es nuestra aspiración historizarlos. Creemos que ese puente puede construirse y que uno de los expedientes santiagueiíos contribuye a transitado y, al mismo tiempo, a conjeturar otros nexos, aquéllos que conducen a las primeras etapas de la evangelización cuando la hechicería era aún pensada como un rótulo aplicable a las devaluadas religiones indígenas. 29 El lector ya tiene alguna noticia dei expediente al que nos referimos, puesto que el nombre de Juana Pasteles y el de su maestra Juanita fueron mencionados páginas atrás. En cambio, no nos detuvimos en las circunstancias

La cueva de Salamanca. Barcelona: Linkgua ediciones 2007 ( l. ed. 1628). Entre los folcloristas que sostienen los orígenes hispanos de las salamancas latinoamericanas (y en particular dei norte argentino) se encuentran COLUCCIO Félix; COLUCCIO, Susana., Diccionario Jolklórico argentino. Buenos Aires: Corregidor, 2006 y FORTUNY, Pablo, Supersticiones calchaquíes, Buenos Aires: Huemul, 1965. Este último autor, sin embargo, no descarta la posible derivación dei término de la voz quichua sallac manca (olla maligna). 28. GROSSO, José Luis, Indios muertos, Negros invisibles. Hegemonia, identidad y aftoranza. Córdoba: Brujas 2008, p. 181- 192. 29. GRIFFITHS, Nicholas. La cruz y la serpiente. Lima: Fondo editorial PUCP, 1998, p. 93- 130, y ESTENSSORO FUCHS, Juan Carlos. Del Paganismo a la Santidad. La incorporación de los indios dei Perú ai catolicismo. Lima: Institut Francais d ' Etudes Andines, 1998.

lsnaraPereira Ivo IEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

55

de su prisión - cuando Juana contaba ya 50 anos -, enmarcada en la razzia de don Alonso de Alfaro sobre la que es menester detenernos un momento.J0 AI igual que Lorenza y Pancha, también Juana Pasteles estaba adscripta al pueblo y encomienda de Tuama y, como ellas, abandonaba a menudo su lugar de residencia. En estos viajes - que la conducían a las inmediaciones de San Miguel de Tucumán, a la frontera con el Chaco y a otros sítios que no identificá en su confesión - Juana había multiplicado sus relaciones con otros índios e índias, algunos de las cuales hábiles hechiceros. Por supuesto que estas peligrosas relaciones fueron reveladas a partir de su segunda confesión y mediante la aplicación de tormentos, cuando ella misma se reconoció hechicera y procurá satisfacer las preguntas dei juez acerca de su iniciación y de sus víctimas pasadas y presentes. Ya se evocó el recuerdo de juventud de Juana en el Tucumán, donde su maestra Juanita le había enseiíado "a bailar, donde hubo un arpa en casa de Lasarte': Había sido en aquel fandango campesino - notemos que regresa una vez más la asociación entre la danza y la hechicería - donde recibiera el vacanquí para ser utilizado "cuando los hombres no la quisiesen" y le fuera prese~tado el chivato. Juana rehusó las ofertas de aprender a coser y a tocar la guitarra (aprendizajes también contenidos en el pacto) pero aceptó dei d~~onio unas hierbas con las que experimentá en el cuerpo de sus primeras viCtlmas. Una de ellas -el índio Pedro - fue mortal, mientras que otro índio r._ un_a muj.e~ cons igu ier~n s~lvarse gr~cias a la perícia de unos enigmáticos mdws med1cos de Ama1cha sobre qUienes no se aportan más detalles. Estos maestros y aquellas víctimas pertenecían a la etapa de iniciación de Juana, quizás coincidente con su adolescencia. En cambio, su comadre María y Juan, el hijo de ésta, índios de Matará (en las fronteras con el Chaco) eran socios más recientes, con los cuales seguía "manteniendo comunicación': Había sido su comadre quien le proporcionara a Juana un brebaje para ultimar al e_sposo que 1.~ "mar~irizaba y maltrataba" y merced al mal arte de aquella muJer y de su hiJO segUian padeciendo el cacique dei pueblo de Mopa (también sobre el río Salado) y otra india de Matará. lQué había sido dei chivato que en su juventud no se le apartaba? En la segunda confesión, y presionada por la insistencia dei juez, Juana volvió a

30. Don Alonso de Al faro llevó a cabo dos campanas contra hechiceros: una en 1715 y Ia otra entre 1720 Y 1721. De la primera campana nos han llegado tres procesos aunque sabemos que se efec.tuó por lo menos uno más contra una india de nombre Elvira. De la segunda, conservamos un umco expediente santiagueno (no obstante se manifieste en ese proceso que eran numerosas las arrestadas en e! cárcel pública) y una sumaria general contra seis mujeres de Ia jurisdicción de San Miguel de Tucumán.

56

RELIGIÕES ERELIGIOSIDADES, ESCRAVIDÃO EMESTIÇAGENS

introducir al demonio pero esta vez bajo u na nueva y reveladora apariencia que lo retrataba en "figura de índio': Era él quien se le,ha~ía ac,; rca~o mient.ras recogía leõa en el monte y que amigablemente le hab1a d1cho aq~1 andab~1s y estuvo hablando con ella y que viendo esta confesante llevar al dKho Ind10 a su casa le dijo que no, porque allí tenía su caballo, que aquí ando por enseõar a que seáis hechicera y diciendo esto le dio coro y le recibió esta confesante Y llevó a su casa:' 31 La mención del coro - al igual que la dei cebil y la del chamico, presentes en otros tramas de la confesión de Juana Pasteles - es altamente significativa por tratarse de un alucinógeno de importante circulación y uso inmemorial entre los indígenas del noroeste argentino y del Chaco. 32 Estas consumos, demonizados en las crónicas tempranas por sus vínculos con las religiones antiguas y sus especialistas rituales, regresaban en las palabras desesperadas de Juana Pasteles, quien cerraba el círculo al precisar el momento y ellugar en el que "comunicabà ' con los demás hechiceros. Era en el monte~ muy. cerca de su casa "donde se suelen juntar por tiempo de algarroba y en diChas JUntas y borracheras se les aparece el demonio en figura de índio y puesto un cuchillo bailao, cog1.endo brasas en 1as rocas." 33 Este último tramo d e la confesión resultó tan críptico para las justicias que el am anuense interrumpió la transcripción de sus detalles por "no ser esenciales ni de útil". El ejercicio de traducción se había complicado y no solame~te por "la quichua" y por la incoherencia cada vez mayor dei d esgarrado discurso de Juana, salpicado de súplicas y ayes de dolor. Lo que se había agotado era aquel terreno común construido sobre el antiguo sistema de creencias Y las más recientes y demonizadas formas de concebidas. El "diálogo" - forzado Y desigual pero diálogo al fin - se había roto porque Juana había ingresado en un imaginaria incomprensible para las justicias hispanas. , Sin embargo, este discurso oscuro ilumina y esclarece nuestra busqueda acerca de la construcción del mestizo estereotipo de la salamanca. tNo estaba acaso describiendo Juana una suerte de "p rotosalamancà '? Más aún t no representa esta "junta y borracherà ' el eslabón faltan te entre las repudiadas

3 1. AHSDE, Trib. 14: 1145 ( 1715), f. 13. 32. Sobre alucinógenos en el NOA ver Pi: REZ GOLLÁN, José Antonio; GORDI L~O., lnés. "Vilca Uturuncu. Hacia una arqueología del uso de alucinógenos en las socied ades preh1spamcas de ]os Andes dei Sur". Cuicuilco, México, n. I : I, p. 99- 140, 1994. Cabe destacar que )uana Pasteles dice recibir el coro y llevarlo a su casa pero no refiere el uso que le d io. En cambio con el chamico sostuvo liquid ar a un indio de Guaipe, en venganza por matarle una temera y un~ l~chera Y enfermar a una in dia de Matará. El cebil es propuesto como remedio para curar a esta ultima. 33. AHSDE, Trib. 14: 1145 (1 715), f. 14.

lsna ra Pereira IvoIEduardo França Paiva IMarcia Amantino (orgs.)

57

prál.:ticas de los "índios nuevos" y ese producto colonial por excelencia que era el fandango salamanquero con sus instrumentos musicales europeos y sus demonios de catecismo? Las fuentes tempranas - dei sigla XVI y XVII para el Tucumán y dei XVIII para el Chaco - que nos informao sobre estas reuniones en el monte son numerosas y suelen apuntar en dos direcciones. Por un lado, en una perspectiva común a vecinos y funcionarias coloniales, se alarman de la ausencia de "polida" de los indígenas y de la consecuente escasa productividad de su trabajo. 34 En este sentid o, la recolección de la algarroba - con cuyas vainas se preparaba la embriagante aloja pero también se alimentaba por varios meses a una población sobreexplotada - era entendida como una actividad al mismo tiempo necesaria y peligrosa. 35 Por otro lado, para el personal eclesiástico era el demonio mismo el que presidía las juntas, impidiendo el adoctrinam iento de los infieles y la sincera conversión de los "cristianos nuevos': 36 Unos y otros, sin embargo, percibían la ligazón entre el tiempo de la algarroba y los rituales que las libaciones acompaõaban y bajo cuyos auspícios las naciones indígenas entablaban (aún en tiempos coloniales) alianzas políticas y militares. 37

34. Por ejemplo, una de las razones aducid as por d gobernador de Tucumán Francisco de Barraza y Cárdenas para mudar la ciudad de Esteco desde su emplazamiento en el norte dei río Salado hacia la poco distante villa de Madrid era que "en la comarca de la dicha ciudad de esteco (los indios) están metidos entre montes y algarrobales se ocupan en borracheras lo más del aiio sin que los sacerdotes les puedan doctrina como conviene y viven en mucha ofensa de nuestro seiior y se hieren y matan y hacen otros excesos". Biblioteca Nacional, Colección Gaspar García Viiias, n•4020 ( 1605) f. 10. 35. CASTRO OLANETA, Isabel. "Transformaciones }'continuidades de sociedades indígenas en el sistema colonial. El pueblo de ind ios de Quilino a principios del siglo XVII': In: FARBERMAN, Judith; GIL MONT ERO, Raquel. Los pueb/os de indios de/ Tucumá n colonial: pervivencia y desestructuración. Berna!: Universidad Nacional de Q uilmes- Universidad Nacional de Jujuy, 2002, p. 173-202; FARBERMAN, Recolección econom ía campesina y representaciones de los montaraces en Santiago dei Estero, siglos XVI a XIX. Prohistoria, Rosario, W 1O, 2006, p. 11-26. 36. Una mención entre muchas, en este caso para la jurisdicción de Santiago del Estero: "Estavan una vez muchos indios congregados en una borrachera y una india con curiosidad de ver lo que entre ello.; pasava se puso en asecho y dio ai demonio vestido de blanco de pies a cavesa, muy regvsijado bebiendo con ellos )' cn medio, como precidiendo en aquella bestial junta, buelta la índia a su casa la fue siguiendo cl demonio y hallándola sola la saludó con su acostumbrada frace, estás aquí, y tuvo con ella muchas acciones lascivas': MAEDER, Ernesto ).A. (comp.) Cartas anuas d.: !a prm illcia de/ Paraguay. 1637- 1639, Bueno> Aires: FECIC, 1984, p. 34. 37. Re..:kntemente, desde la arqueología de nuestra region se están recuperando materiales que ' ' tgieren las modalidades de consumo de la aloja de algarroba en el monte santiaguei1o. Aún di!r;~n t e !a colonia temprana, se registran re.:ipientes de uso colectivo- probablemente empleados c11 !n, h!'aciones - y que acompanan a otrt'S pequenos para consumos cotidianos e individuales. 1A fiOti.DA, Constanza. "Espacio, cultura material )' proccsos sociales en la llan ura santiagueii< ;1;, "' ~k· ., ::n·•l