Religiões africanas no Brasil [1]

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BIBLIOTECA PIONEIRA DE CIBNCIAS SOCIAIS



ROGER BASTIDE

1:

Professor da Sorbonne

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SOCIOLOGIA

Conselho Diretor:

As Religiões Africanas

Prof, RUY OoELHO Prof, OCTAVIO IANNI Prof. LUIZ PEREIRA

no Brasil

Conselho Orientador:

Contribuição a Uma Sociologia das Interpenetrações de Civilizações

Profs.: Nestor de Alencar - Vicente Unzer de Almeida - F. Bastos de Ávila - Júlio Barbosa - Tocary Assis Bastos - Paula Beiguelman - Cândido Procópio Ferreira de Camargo - Wilson Cantoni - Fernando Henrique Cardoso - Orlando M. Carvalho Helena Maria Pereira de Carvalho - Orlando Teixeira da Costa - Levi Cruz - Mário Wagner Vieira da Cunha - A. Delorenzo Neto - Florestan Fernandes - Pinto Ferreira - Marialice Mencarini Foracchi - Frank Goldman - Augusto Guelli Netto - Juarez Brandão Lopes - Sílvio Loreto - J. V. Freitas Marcondes Maria Olga Mattar - Laudelino T. Medeiros - Djacir Menezes - Douglas Teixeira Monteiro - Evaristo de Moraes Filho Aldemar Moreira - Edmundo Acácio Moreira - Renato Jardim Moreira - Oracy Nogueira - L. A. Costa Pinto - Maria Isaura Pereira de Queiroz - João Dias Ramalho - Alberto Guerreiro Ramos - José Arthur Rios - Aziz Simão - Nelson Werneck Sodré - Henrique Stodieck - Oswaldo E. Xidieh.

PRIMEIRO VOLUME

Traduçá de MARIA ELOISA CAPELLATO e OLfVIA KRXHENBüHL

LIVRARIA PIONEIRA EDITORA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO í SAO PAULO

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Título do original francês: LES RELIGIONS AFRICAINES AU BRÉSIL

Vers une sociologie des interpénétrations de civilisations

ÍNDICE

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Copyright PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE

1960

Introdução, 9 PRIMEIRA PARTE A DUPLA HERANÇA

Capa de MÁRIO TABARIM

- - - - - - - - - - - - l·---· MUSE~ NACIONAL

OEP. OE ANTROPOLOGIA . BIBLIOTECA

~Jl laG.:

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1.

A Influência de Portugal e da África na América, 47

2.

Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras, 85

3.

O Protesto do Escravo e a Religião, 113

4.

O Elemento Religioso da Luta Racial, 141

5.

Os Dois Catolicismos, 157

6.

As Sobrevivências Religiosas Africanas, 181

7.

O Islã Negro no Brasil, 203

1

CONCLUSÕES

r 1.

1971

Todos os direitos reservados por ENIO MATHEUS GUAZZELLI & CIA. LTDA. Rua 15 ·de Novembro, 228 Telefone: 33-5421 -

4.0 andar, sala 412 São Paulo

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais, 219

'~I' Introdução m lado, a expressão mesma miséria. ela desgraça. (l)

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Ai;sim, os valôres religiosos, na Sociologia nascente, eram ligados às ~truturas sociais ou, mais exatamente, à condição dos homens em sociedade. Mas, esta ligação que constitui o objeto essencial dêste trabalho, era concebida em têrmos bem mais particulares. Uma vez que a vida social é encarada, antes de tudo comó atividade prática, ela se confunde com as fôrças da produção. É certo que o joveµi Marx nos seus primeiros escritos considerava a produção em seu sentido mais amplo produção de idéias do mesmo modo que produção material aparecendo-lhe já a religião sob a forma de uma ideologia. A medida que restringe seu conceito de produção unicamente ao setor da produção material, êsse caráter de ideologia se acentua. ( 2 ) OS marxistas têm insistido em considerar a religião o ópio do povo, a função das igrejas, debilitar a revolta operária e ligar as classes exploradas à opressão das classes dominantes. Não é êste, porém, o aspecto do marxismo que nos interessa aqui. É impossível, nos quadros da teoria marxista, fazer da religião uma simples ideologia inventada pelos senhores para melhor dominar seus escravos. A religião não é falsa por ser uma visão unilateral da realidade, a expressão dos interesses económicos da classe dominante. Este aspecto é secundário, uma reação ideológica sôbre a infra-estrutura social, sôbre a perpetuação do regime de classes. É um aspecto importante, sem dúvida, pois Marx em seus Escritos Políticos se preocupa menos,com a ação causal das técnicas de produção do que com a relação dialética oposta e, nos Escritos, são idéias "falsas" aquelas que não exprimem as realidades econômicas do momento. Mostram-se as. mais eficazes no curso dos acontecimentos históricos, .uma vez. ~1:(1) Karl MARX, "Contribution à la Critique de la PhUosophie du Droit. de Hegel", Oeuvres Phtlosophiques, t. I, ed. Costes, Qp, 94. (2)

Karl MARX, Le Capitaz, t.

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que é por meio delas que a classe dirigente pode manter um poder condenado pelos fatos. Ainda assim, não é senão um aspecto secundário. Se a religião pode ser utilizada por uma classe para melhor assegurar seu domínio, por que irá ela abandoná-Ia? A religião nasceu da "miséria do homem". Mas como? Para nós, aí está o essencial. Sem dúvida, encontramos nos marxistas tentativas mais ou menos frutíferas de relacionar a religião às técnicas de produção ou, de modo mais geral, às conjunturas econômicas, especialmente tratando-se do cristianismo primitivo ou do totemismo. Mas, tanto um como outro não são mais que soluções para abrandar um sentimento poderoso, o mêdo. No fundo, quando se analisam os principais textos marxistas sôbre a ireligião, percebe-se que, sob uma roupagem econômica nova, volta-se à 1 velha idéia dos antigos: Primus in orbe, Deos fecit temor. O que : a religião exprime não são as relações de produção entre os / homens mas, sim, o fato de que essas relações são contraditórias, o que não é geralmente reconhecido. Foi Engels quem cuidou dêste aspecto, mostrando que a religião primitiva traduz a angústia do homem em face das fôrças misteriosas de uma natureza que êle não pode domesticar; tomam elas, por isto, o aspecto de fôrças supraterrenas, enquanto a religião contemporânea exprime a angústia do homem em face de fôrças sociais, como as leis do mercado, as crises econômicas, as bancarrotas ou o desemprêgo, fôrças sociais que o proletário não pode prever o que sôbre êle se abatem de maneira inesperada e brutal, com um caráter simultâneo de estranheza e de necessida~, tomando-se, também, fôrças sobrenaturais e supra-sociais. Deus, assim, · não é mais que a imagem do capitalismo irracional. Daí, ser ' psicológica e sociológica a explicação definitiva da religião: 1 sociológica no sentido de que nasce do esfôrço fracassado do · trabalho humano em face da natureza ou das contradições de um regime; e psicológica no sentido de que êsse revés ou essas contradições agem excitando o eterno mêdo pânico ante o irracional, o incontrolável e o selvagem. Piaget louva Marx por haver, ao ter descoberto a relatividade das superestruturas em relação às infra-estruturas, aplicado conceitos ideológicos às explicações concretas nas coisas executadas em comum para assegurar a vida do grupo social em função de um determinado meio material que se prolonga em representações coletivas. ( s) (i) (3)

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Jean PIAGET, L'1:ptstémologte Génétique, t.

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cap. XII.

Não deveremos, nas páginas subseqüentes, negli~en~i~r esta \ ação comum. Mas, o marxismo, passando do soc10log1co ao 1 psicológico, voltando à explicação da religião pelo mêd~, não faz mais que insistir numa ~olução ultr.al?assada. Chega. a conclusão de que não há sentimentos rehg1osos, mas sentimentos normais fàcilmente identificáveis, que dizem respeito à consciência 'comum e da qual a religião é somente um efeito ou objeto.(4) Mesmo onde ~ ~eligião surge com.o algo aterra~c:r, onde se exprime pela angustia, ela parece surgir de um dom1mo particular e fazer-se absoluta não apenas em face do fracasso do trabalho humano mas, em tôda part~ onde a vida atinge seus pontos culminan,tes, no nascime~t~! ~a morte, no coito, onde o homem se debruça a margem da ex1stencia e é tomado de vertigem. ( 5)

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Entretanto, a presença· de fôrças religiosas não é sempre 1 uma presença de mêdo, mas também de fôrça, de paz ou de ~egx:rn ... E dizendo isso, não aludimos Un.icamente ao cristianismo atual mas também às formas primitivas da religião. Durkheim posteriormente, insistirá sôbre êste aspecto da questão. Recus~o-nos neste trabalho a pesquisar as origens da religião, o que nos faria passar da Sociologia à Filosofia (mesmo que seja Filosofia Sociológica, não deixa de ser Filosofia). Propomo-nos,: sim a estudar num caso específico, os diversos tipos de relaçõe~ qu; podem s~ estabelecer entre as estruturas sociais CU:c~usiv suas condições econômicas) e o mundo dos valôres rehg1osos, no seio do fenômeno social total. Em certos casos, veremos que essas relações podem tomar o sentido de ideologias ou, ainda, se misturarem e se tingirem de ideologias, não na acepção lata do têrmo, de produção intelectual, de "obras" da consciência coletiva, mas no sentido mais tradicional de "deformação inconsciente" ou de fantas!Jlagorias atuando sôbre as infra-estruturas econômicas.(6) Queremos analisar como e por que, em que circunstâncias opera esta distorção do "sagrado", nunca colocado como um problema a ser resolvido em têrmos de "ideologia", mas ,tóns~o como uma parcela da realidade social global. (J)urkh~~ retoma o problema pôsto por Karl Marx dando-lhé~~pofém, base mais ampla, suscetível, por isso, de conse(4) Lucien HENRY, Les Origines de la Beltgion, p, 21. (5} Van der LEEUW, L'Homme Primitif et la Beltgton, p. 1~9. (6) Georges GURVITCH, La Vocatton Actuel!e de la Soctologie, pp, 587-88 e 601 (sôbre a distinção entre obras e ideologias): Détermintsmes soctaux et Liberté Humaine, nota da p. 136 (sôbre os diversos sentidos da palavra ideologia para Marx).

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. guir mais fàcilmente nossa adesão. Recusa-se, primeiro em sua definição de religião e depois em sua crítica ao marxismo, a identificar o sentimento religioso com o de mêdo. O homem primitivo, longe de se sentir esmagado por fôrças contra as quais nada pode, "atribui-se sôbre as coisas um poder que não possui", e é esta ilusão que "o impede de se sentir por elas dominado". (7)

Em segundo lugair, recusa-se a fazer da religião um simples epifenômeno, uma pura fantasmagoria: É inadmissível que os sistemas de idéias, como as religiões, que tiveram lugar tão considerável na História, e nos quais os povos de tôdas as épocas buscam a energia que lhes é necessária para viver, sejam tão-somente tecidos de ilusões. (8)

Em suma, em Formes Élémentaires de la Vie Religieuse, não é a uma infra-estrutura econômica que a religião está ligada, mas à totalidade da estrutura social e sua organização morfológica. Mas, da mesma forma que em Marx, embora. sob forma mais requintada e complexa, o mesmo problema causal preocupa Durkheim: As concepções religiosas, longe de produzirem o meio social, são produtos dêle, e se, uma vez formadas, reagem sôbre as causas que as engendraram, esta reação nunca será muito radical. (9)

Sendo essa citação tomada ao Suicide, é o caso de perguntarmos se do Suicide a Formes Élémentaires, o pensamento de Durkheim não se modificou mais ou menos profundamente. Ao distinguir os símbolos religiosos das imagens, êste pensamento não só se afasta da religião definida como ideologia, mas ainda da religião como simples representação, que era a idéia de Suicide. A religião toma-se, pois, a expressão da sociedade, de sua estrutura e de suas tendências, da reunião ou da dispersão dos homens. ( 1º) Por certo, o equívoco não está inteiramente resolvido. Durkheim parece hesitar sempre entre a religião como "produto" e como "expressão". Os dois temas acham-se intimamente ligados e toma-se difícil separá-los. . Se essa separação é difícil é porque todo homem é um animal social e a religião se reduz à consciência da vida coletiva. DURKHEIM, Formes ÉZémentaires de Za Vie ReZigieuse, pp. 121-22. Ià., Ibià., p, 98. . DURKHEIM, Le Suicide, p. 245. (10) Talcott PARSONS, ÉZéments pour une SocioZogie ãe Z'Action, pp. 28-31, introdução de F. BOURRICAUD. (7)

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Ela é, ao mesmo tempo, o produto da comunhão e a expressão própria em que se manifesta êsse sentimento de comunhão, a saber, a distjnção entre dois mundos: o "profano" da consciência individual e o "sagrado" da consciência coletiva, exterior e superior às consciências individuais. É inútil retomar aqui mais uma vez a crítica da tese durkheimiana já várias vêzes elaborada, e bem elaborada. ( 11 ) O que nos impressiona é a descontinuidade entre os fatos citados por Durkheim e as conclusões a que chega. O que ressalta dos fatos é o contrôle do grupo sôbre as manifestações da mística,(12) é a ligação efetiva das normas de paren~s~c;> com as da vida cerim~~~.( 13) é, em uma palavra, a impossibilidade de separar a rehgiao do fenômeno social total não que esta religião seja o produto da !l'eunião dos homens 'e da formação, no seio do povo, de uma consciência coletiva. A conclusão ultrapassa os múltiplos exemplos coligidos por Durkheim em favor de sua tese, porquanto êsses exemplos mostram que a religião está sempre presente no social e não que o social cria a religião. Se Formes Élémentaires teve o mérito, ao destacar o símbolo da imagem, de eliminar certas insuficiências do marxismo, explicando, por outro lado, em última análise, êsses símbolos pelo estado da sociedade em conjunto, ela não nos deixou sair de uma investigação causal que já recusáramos aceitar por filosófica. ( 14) Por sua v~z, a Sociologia Religiosa alemã,1como a francesa, pode ser considerada uma tentativa de superar o que o marxismo, em sua forma clássica, tinha de demasiado estll'eito. E começa com Cassirer, opondo à dialética histórica o que se poderia chamar de eternidade psicológica do espírito humano. De fato, para êle, não é da sociedade que é preciso partir, mas de categorias religiosas consideradas no sentido do a priori kantiano e ver como essas categorias servem para unificar tanto a sociedade quanto o mundo. Sem dúvida, não se pode mais falar de uma causalidade temporal, a religião não senda a, Pausa da sociedade uma vez que esta é cronologicamente a.utedor àquela, porque constitui sua condição lógica. A sociedade não p~d~ se constituir senão através das categorias do pensamento mistico, do mesmo modo que a natureza em Kant se constitui (11) De Ga.ston RICHARD, L' Athéisme Dogmatique en SocioZogie BeZigleuse, Cahiers de la "Revue d'Histoire ·et de la Ph1loaoph1e Rel1g1euse" Istra, Estrasburgo, 1923, 48 pp., a G. GURVITCH, "Le Problême de la Cons~ cience Collective dana ia· Soc1olog1e", de Durkheim, Vocation ActueZZe, pp. 351-408, e PARSONS, The Structure o/ Social Action, por exemplo, p, 425. (12) Por exemplo, Formes ÉZémentaires, pp. 565-67. (13) Por exemplo, Formes ÉZémentaires, p, 359. (14) Claude Lll:VI-STRAUSS, SocioZogie au XXe StecZe, II, p. 527.

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pelas formas da sensibilidade ou das categorias do entendimento.(15) Pode-se ver também em Max Weber, antes de tudo, um .adversário de Marx, apresentando, contra êle, em seu célebre ensaio sôbre as origens do capitalismo industrial, a ação dos fatôres ideológicos sôbre os econômicos. Contudo, a Sociologia Religiosa de Max Weber não se reduz a essa obra e seria uma caricatura considerá-lo um puro idealista. Inicialmente, no ensaio a que aludimos, o protestantismo não aparece como a causa absoluta do capitalismo total, mas como uma entre muitas causas e sômente de certos aspectos do capitalismo. Weber procura, sobretudo entre o religioso e,9 econômico, um elemento de união que possa nos fazer compreender a ação eficaz desta causalidade, e êsse elemento é a ética social do calvinismo. A religião não atua diretamente sôbre a economia, mas orienta sempre o comportamento moral dos indivíduos em relação uns aos outros e são, única e exclusivamente, êsses comportamentos morais que podem modificar as relações econômicas.( 16 ) Enfim, se Max Weber em Gesammelte Aufsiitze zur Religionsoziologie insiste sôbre a ação causal da religião, em Wirtschaft und Gesellschaft é a ação contrária que, se não domina a ação causal da Economia, pelo menos domina a das classes ou dos grupos de interêsse. De fato, cada classe ou grupo social, seja o campesinato, a aristocracia, a burguesia comercial, os artesãos ou os proletários, tem sua ll'eligião própria, que é a expressão de sua situação no interior da sociedade, de sua posição de domínio ou de dependência e o mais comumente de sua mudança de situação - de sua ascensão ou de sua decadência.(17) O que opõe Max Weber ao marxismo não é ter invertido o encadeamento materialista de causas e efeitos. Weber está bastante ciente das diferenças, da complexidade do real e da variação das seqüências causais, para não reconhecer a existência de um fator econômico na Sociologia Religiosa, da mesma forma que Marx estava interessado na reação das superestruturas sôbre as infra-estruturas. A verdadeira oposição, a meu ver, reside na substituição de uma Sociologia Positiva por uma Sociologia Compreensiva. Marx, como Durkheim, estuda os fatos sociais de fora, ou se se deseja, como "coisas", ao menos como "ações'', suscetíveis de uma explicação objetiva. Weber (15) CASSIRER, Philosophie der Symbolischen Formen, II Teil: Das Mythisl!he Denken, Berlim, 1924. (16) Raymond ARON, La Sociolog!e Allemande contemporaine, pp. 137-38. (17)

Max WEBER, Wirtscha/t unã Gesellscha/t, t.

e religiões) •

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não se contenta em estabelecer correlações vanaveis entre os fatos econômicos e os místicos; êle quer compreender o significado profundo dessas correlações, o sentido do comportamentQ humano. Mas aí há um perigo e Weber não o soube evitar: o do subjetivismo. Desde que esta compreensão é feita pelo obser.vador, quer dizer, pelo sociólogo que interpreta as correlações, não se deve esquecer que êle participa de uma sociedade, que é moldado por uma dada cultura, que sua psicologia, em conseqüência, está condicionada por fatôres sociais. Da mesma forma, os "significados" dos comportamentos que êle analisa dependem de fenômenos sociais totais em que êsses comportamentos vêm à luz. Tornaremos a encontrar êsse problema da compreensão quando passarmos da Sociologia à Etnologia. A esta altura apenas diremos, para terminar nossa crítica, que não podemos aceitar que o subjetivismo weberiano penetre em nosso trabalho. Se Max Weber está mais próximo da posição marxista do problema - relações entre os fatos econômicos e os religiosos Max Scheler parece mais próximo da posição durkheimiana :.._ relações da religião com a estrutura social e não unicamente com a econômica. :i;:ste último, de fato, distingue uma Sociologia cultural e uma Sociologia real, o estudo da religião pertencendo à primeira e o de grupos e instituições à segunda; ora, se os fatôres econômicos aparecem na Sociologia real, é em terceiro lugar, depois dos raciais e políticos, cronolôgicamente anteriores do ponto de vista da sua preponderância - o que faz com que a questão colocada pelo marxismo tenha mais significação para as religiões atuais que para as primitivas. Isto dito, quais são as relações causais entre essas duas sociologias? Há, de pronto, duas ordens de causalidades independentes: o espírito determina os conteúdos ou, como disse Scheler, "o modo de ser dos conteúdos da cultura"; paralelamente, as necessidades humanas determinam a formação e a organização dos grupos ou das instituições. Entretanto, ao lado desta dupla causalidade há ligações entre o mundo da cultura e o da realidade social: mas essas, por vez, complicam-se de outra forma. O conteúdo cultural exerce uma influência manifesta sôbre as formas de organização; por exemplo, o conteúdo da fé, protestante ou católica, influi na organização adotada pelas respectivas igrejas. Contudo, o espírito não tem "eficiência causal", seja êle individual ou coletivo, ne~ ação dinâmica sôbre o real; não se pode deduzir do conteúdo ou dos valôres religiosos as relações reais dos 15

homens em sociedade. Na [ecíproca, as religiões são condicionadas sociolõgicamente pelas formas de relações existentes entre os homens e pelas de seus grupos, mas essas condições sociológicas não são mais que uma atividade de seleção. Os interêsses sociais dominantes, primeiro os biológicos, depois os políticos e, por fim, os econômicos, podem excluir certas realizações possíveis da lógica do espírito, ou favorecê-las, ou selecioná-las, mas a história real, a das instituições ou das situações sociais, é "indiferente" em relação à história da vida espiritual. O determinismo sangüíneo, por exemplo, favorecerá a religião familiar ou tribal que o determinismo político elimina:rá em seguida, mas o conteúdo das religiões tribais ou políticas depende da pura lógica causal do espírito individual ou coletivo.(18 ) Max Scheler, é verdade, estabelece um outro tipo de ligação entre a Sociologia da cultura e a da realidade. As necessidades humanas, os impulsos vitais que estão na origem dos grupos ou das instituições podem superar a barreira que separa os dois mundos a fim de penetrar no nível das idéias e dos valôres. Mas, ne~se caso, elas ou êles sofrem logo uma metamorfose, pois que são prontamente "sublimados" pelo espírito. Em suma, o autor da Sociologia do Saber compreendeu a dificuldade do problema das relações entre o que Marx chamou de "infra-estruturas" e de "superestruturas" quando são postas em têrmos de !~qüên­ cias causais. Como êle queria a todo custo manter essas seqüências, não encontrou outro recurso que o du,alismo mais intransigente, separando a lógica do espírito e a dó ..real. Em vão tentou investigar ainda assim ligações, condicionamentos recíprocos, deparando com a mesma dificuldade que Descartes, o qual, separando tão radicalmente a alma do corpo, não conseguia depois explicar sua união. Nem tudo deve ser rejeitado, cremos, nesta Sociologia Religiosa que acabamos de resumir; mas, não se torna válida somente quando tenta escapar ainda que desajeitadamente de uma explicação puramente causal? As dificuldades que encontra não provê)ll sempre do predomínio que dá à causalidade sôbre outras formas de explicação? Somos assim levados a examinar uma outra Sociologia Religiosa, radicalmente diversa da precedente.

* * * (18)

pp. 3-46.

16

Max SCHELER, Sociologia ãel Saber, trad. esp., particularmente

Parece que a Sociologia contemporânea tende a substituir as antigas ordens de seqüências, isoladas, desligadas da realidade total, por justificativas em têrmos de situações, de configurações ou de integrações. E é. assim que ~ ~elho prnblema das. relações entre os fatos econômicos e os rehg1osos, do qual partllllos, é substituído pelo das relações entre os diversos aspectos de uma mesma civilização. O causal desaparece ante o situacional. Em certa medida, êsse movimento segue as transformações da Lógica clássica que abandona a concepção aristotélica de classes ou de substâncias para substituí-la por uma Lógica das Relações ou pela Matemática dos conjuntos. Vemos, de fato, o mesmo movimento operar primeiro na Física, depois na Psicologia (com a teoria do campo de Kurt Lewin) e, por fim, na S"'ociologia. Mas, se a nova lógica, que explica as partes pelo todo e não o aparecimento de um fenômeno pela ação eficiente de um outro, criou um clima favorável a uma teoria do campo social, parece-nos que o fator determinante das novas concepções sociológicas deve ser procurado na própria evolução da Etnologia, no comêço do século XX. A grande dificuldade da Etnologia está na compreensão do "outro". O evolucionismo mascarou-a por um momento, mas, com Lévy-Bruhl, o reconhecimento da riqueza e da relatividade das civilizações fê-la reaparecer. As refações entre os homens não são da mesma natureza que as relações entre as coisas; elas t~m um significado, colocam o problema da compreensão; mas, temos o direito de interpretá-las através dos moldes de nosso próprio pensamento, talhado pela nossa sociedade ou nosso sistema de valôres sem cair no etnocentrismo? Podemos nos comunicar com o "outro" além das barreiras que as diferenças culturais erguem? Lévy-Bruhl compreendeu a dificuldade desta questão e procurou durante tôda a sua vida um método que permitisse enquadrar-nos nas atitudes mentais dos primitivos, ao invés de lhes atribuirmos as nossas.(19 ) Mas esta longa busca resultou na proclamação da "opacidade" do pensamento dos "primitivos" em relação ao do etnógrafo que procura compreendê-lo. No fim de sua vida, êste método reduzia-se ao conselho dado ao pesquisador para não se abandonar à ilusão de esclarecer o que, por natureza, nos é obscuro.( 20 ) Não era isso uma espécie de reconhecimento da impossibilidade da transfe(19) O caráter da teoria de Lll:VY-BRURL, vista como uma "sociologia compreensiva", fol evidenciado por Florestan FERNANDES, "Lévy~Bruhl e o Esplrito Cienti!ico", .Revista ãe Antropologia, S. Paulo, Brasil, II. 2, 1954, pp. 121-42. (20} Lucien Lt:VY-BRURL, Les Carnets, p. 214.

17

rência da Sociologia compreensiva a um mundo de homens pertencentes a outras civilizações que não a ocidental? Em todo caso, é assim que a Etnologia contemporânea em geral conce?eu a tentativa de Lévy-Brubl, e ela retomará, abandonando .t?da interpretação compreensiva, um método essencialmente pos1t1vo. o estudo das estruturas daqui por diante leva vantagem sôbre o das representações coletivas. E a religião será interpretada como parte desta estrutura social, muito mais do que um conjunto de representações "místicas". Desta i;n~neira, o comportamento dos indivíduos e dos grupos não é mais mterpretado de dentro mediante um esfôrço de "expatriação" do etnólo' como "coisas", ou melho~, ~orno " - "con1u. go, mas de fora, açoes gadas, complementares, recípro~as, suscetive1s. de um tratamento científico objetivo. Desta maneira, a Etnologia procura escapar ao risco do etnocentrismo e da valorização, por uma evasão da vida vivida na imobilidade quase inorgânica das estruturas, das ordens ou das organizações. Há, fora disto, fases nesta imobilização, conforme se dê ao têrmo estrutura social um sentido concreto visível, considerando o dinamismo das sociedades,( 21 ) ou . d e comporainda,' os fenômenos de "desvios" ou d e "alternativas tamento" que permitem aos modelos mais rígidos se adaptarem aos acasos da vida,( 22 ) ou, ao contrário, o sentido de regras abstratas de modelos normativos, variáveis, sem dúvida, conforme as ci~ilizações, mas se concentrando em um determinado. número de tipos formais, em ligação coi;n. a estrut_ura ~ent~l ~cor_is­ ciente, que se atinge por uma espec1e de ps1canahse mstituc10nal. (2ª) O problema da compreensão não está, porém, completamente afastado, porque a ligação dos homens ou dos grupos, dos sexos ou dos grupos de idade é definida por um sistema de símbolos inclusive precisamente os símbolos religiosos, que l~e dá um sentido. Como disse Radcliffe-Brown, a ordem social depende, em última ·análise, da existência, nos espíritos de s~us membros, d~ sentimentos que controlem os comportamentos individuais ou grupais, uns em relação aos outros. A estrutura funciona segundo modelos, valôres, idéias ou ideais que têm um significado para os seus elementos constituintes. O problema (21) com RADCL!FFE-BROWN, por exemplo, Structure anã Function in Prtmttive Society. (22) com Raymond FIRTH, por exemplo, "Social Organlzat!on and Social Ohange", J. o/ B. J. o/ G. B. anà r., 84-1954. (23) com Claude Ll!:VI-STRAUSS, por exemplo, Les Structures ~Zémen­ taires de la Parenté, cf. também do mesmo autor: Tristes Tropiques, cap.

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onde o problema da pesquisa de modelos está voluntàriamente ligado com o ultrapassar do etnocentrismo.

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da compreensão não está, portanto, eliminado, está unicamente, párece-nos, rejeitado. Pode-se-lhe dar diversas soluções. A primeira, que é a de Kardiner, nos reconduz uma vez mais ao psicológico: é a "personalidade básica" que dá significação às instifiíições sociais; nesta perspectiva, o problema das relações entre ª'Economia e a Religião, ou entre as estruturas sociais e as representações coletivas não se coloca mais no nível do sociológico, nas ações e reações das instituições entre si, mas na consciência dos indivíduos que as unem, as integram, nas suas harmonias ou com suas tensões internas e externas.( 24 ) Mas a dificuldade que Lévy-Bruhl tão bem trouxera à luz será novamente encontrada nesse caso: como o etnólogo terá certeza de penetrar êsse significado? Para não interpretar somente, ou para verificar suas hipóteses, êle poderá muito bem valer-se de testes como o de Rorschach( 25 ) mas, para quê? O significado das respostas não é válido universalmente, visto que tem tantos sentidos quanto há civilizações. A segunda solução consistirá em não ver os mitos, as representações coletivas, as crenças religiosas que como justificações ou racionalizações, nos sentidos mar. xista e freudiano dos têrmos, de realidades ocultas e mais essenciais. Quando Lévi-Strauss, por exemplo, critica Marcel Mauss por haver desejado estabelecer as regras da troca, dos presentes e contrapresentes,. das prestações e contra prestações na noção explicativa do hau, quando declara contra êle que o hau não é mais que o juízo que os indígenas fazem de seus próprios modelos culturais e que esta teoria não tem mais valor que aquêle que nós mesmos podemos fazer. Por conseguinte, faz dêle um simples epifenômeno, dissimulando estruturas inconscientes do espírito, ainda por descobrir, dando-nos um bom exemplo desta segunda solução. ( 26 ) A atitude de Lévi-Strauss. parece-nos ser a única verdadeiramente positiva em Etnologia, mas podemos nos contentar com isso? Os estudos de M. Granet sôbre a China mostram-nos, ao contrário, que as crenças religiosas excedem as leis da troca e da solidariedade, as regras fundamentais da complementariedade, a lógica das relações, para explicar a complexidade do funcionamento de modelos estruturais. A religião tem menos por função explicar essas regras da troca, essas relações entre grupos, entre os sexos ou entre grupos de idade, que atenuar os efeitos perigosos das aproximações, e é menos uma (24)

(25) 240-51. (26)

cr. Mikel DUFRENNE, La Personnalité de Base.

Abram KARDINER, The Psychological Frontiers ot Society, pp. Claude Ll!:VI-STRAUSS, Prefácio do livro de M. MAUSS, Sociologie

et Anthropologie, pp. XXXVIII-XL.

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ideologia do equilíbrio que uma solução para suas rupturas.(27) Ademais, a estrutura social inclui os mortos, os ancestrais deificados, os totens e os deuses da mesma forma que os vivos, com seus status e papéis. Os indivíduos com êles não só mantêm relações de troca, mas "participam" dêles, identificam-se com êles, como bem mostra M. Leenhardt em seus estudos sôbre os Canaques, a tal ponto que o etnólogo não pode fazer separadamente o estudo econômico da religião e da categoria do sagrado, se desejar compreender a sociedade que analisa. Uma civilização não toma seu verdadeiro sentido se não a apreendermos através de sua visão mística do mundo, que mais que sua expressão ou justificação, constitui verdadeiramente seu suporte.(2 ~) Não tem, por conseguinte, a Etnologia recursos para compreender, para apreender o "diferente"? É certo que não, já que êsse diferente é de ordem cultural, não impedindo a unidade mental da espécie humana. Se é verdade que os símbolos revelam ocultando e ocultam revelando, isto que é uma definição(29) pode se transformar em regra metodológica. De fato, essa mistura de oculto e revelado nos possibilita um meio de atingir o sentido oculto pelo que é ao mesmo tempo revelado. Compreende-se então a razão da evolução da Etnologia com a escola de M. Griaule, interessada no estudo, em profundidade, das diversas categorias do pensamento simbólico.( 3 º) As estruturas sociais não são esquecidas mas colocadas em íntima correlação com o universo dos valôres míticos ou rituais. Pode-se censurar o exagêro desta escola, mas essa censura não prové!Jl de um método demasiado positivo que se atenha apenas ao que é visível ou ligue de um só golpe as estruturas sociais normativas às estruturas inconscientes do espkito, para não ver no símbolo mais que a expressão da ligação e não seu significado? Seja o que fôr êsse problema, a Etnologia forneceu à Sociologia o meio de passar de uma Sociologia causal a uma Sociologia integrativa. Permitiu eliminar as teorias que valorizavam certos fatos, considerados privilegiados, como os da produção econômica para os marxistas ou os da ética social-religiosa para Max Weber. Mostrou-lhe que, numa sociedade, tudo se realiza, tudo age e reage sôbre tudo, e que a causa dos fenômenos sociais deve ser pesquisada nas suas inter-relações com (27) Marcel GRANET, Études Sociologiques sur la Chine, pp. 84, 166, 184, 186, etc. (28) Maurlce LEENHARDT, Do Kamo. (29) G. GURVITCH, op. cit., p. 77. (30) Marcel GRIAULE, "Réfiexlons sur les Symboles Soudanais", Cahiers Intemationaux de Sociologie, XIII, 1952, pp. 9, 29-30.

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a estrutura do conjunto. Esse processo se fêz em duas etapas. ..... . A primeira foi a aplicação de métodos descritivos da Antropo: ,. logia Cultural ao estudo da sociedade contemporânea dita "ci,. · ·:~:yilizada" (estudo de comunidade) e a segunda foi a aceitação ' .,,w\*~líit1s:;i:·í?··~. G. FREYRE, op. cit., p. 611. Alexander CALDELEUCH, Travels in South Ameríca, I, p. 25'; KOSTER, op, cit., I, p. 202; DEBRET,. em sua. Voyages Pittoresques, dá uma excelente gravura representando um dêsses casamentos, vol. m, gra-vura 15. (9) H. KOSTER, VoYages Pittoresques, II, p. 347, e sôbre a tendência· em casar mulatos escravos com pessoas mais escuras para impedir· a passagem da linha de côr, p. 372; TAUNAY, História do Café, IV, cap. 63, e· VIII, p, 174. (10) L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 74-5. (11) Oh. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI; KOSTER, ()]I. cit.~ I, p. 23; V. COARACY, O .Rio de Janeiro no Século XVIII, p. 201.

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tos, o doméstico e o nacional, preservando apenas o último, que achou nas organizações dos cantos, das nações, das reuniões de dança, dos batuques, os "nichos" apropriados, como os cha·mamos, onde pôde se ocultar e sobreviver.( 12 ) Mas como se operou a relação entre essas infra-estruturas brasileiras - confrarias e nações, criadas pelo branco e em seu proveito - e as superestruturas, valôres e representações coletivas de origem africana? Não dispomos infelizmente de documentos históricos que possam nos fornecer a solução dêsse problema: não poderemos resolvê-lo a não ser indiretamente, mais tarde, ao estudarmos a organização social dos candomblés. Contentar-nos-emos, no momento, com duas observações fundamentais. Na Africa, cada divindade, seja Xangô, Om.olu ou Oxum, tem seus sarcedotes especializados, suas confrarias, seus conventos, seus locais de culto. No Brasil, mesmo nas cidades "negras" do litoral, era impossível para cada "nação'', bem menos numerosa, reencontrar e reviver esta especialização. As seitas vão, pois, tornar-se reduzida imagem da totalidade do país perdido; quer dizer, cada candomblé terá, sob a autoridade de um único sacerdote, o dever de. render homenagens a tôdas as divindades ao mesmo tempo e sem exceção. Em lugar de confrarias especializadas, uma para Oxum, outra para Xangô e outra para Omolu, teremos apenas uma confraria, compreendendo simultâneamente as filhas de Oxum, as filhas de Xangô, etc. Por conseguinte, temos a concentração da Africa na seita. Esta, a primeira observação. Por outro lado, quando as seitas africanas foram criadas pelos negros livres, os ancestrais familiares aí puderam se introduzir, ao lado das divindades da natureza. Isto foi o que se passou, por exemplo, na Casa das Minas. Nela são adoradas, com efeito, três "famílias" de deuses: a família de Dã, ou Danbirá, isto é, da varíola; a família de Keviosô, isto é, do raio; por fim, a família de Davisé ou Dahomé, isto é, os ancestrais da família a:eal do Daomé, da qual os fundadores da "casa" eram membros. Temos, portanto, um caso em que as duas- religiões, a familiar e a nacional, sobreviveram em conjunto. Mas sua ligação numa "nação" ocasionou uma evolução das crenças, os antepassados tomaram-se iguais aos voduns tomando teolôgic12i O fenômeno da cisão entre as duas rellglões fol bem observado, do ponto de vlsta da organização dos candomblés, por M. J. HERSKOVITS, "The Soclal Organlzatlon of the Candomblé", Anais ão XXXI Congresso de Americanistas, p. 521, e, do ponto de vista do que os norte-americanos chamam de "enculturação", por E. Fr.· FRAZIER, "The Negro Famlly ln Bahla, Brazll", Amer. Social. Beview, VII, 4, p. 471.

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camente suas formas, obedecendo aos mesmos rituais, dando lugar aos mesmos transes extáticos.( 13 ) Isto significa que as novas infra-estruturas sobrepuseram-se às superestruturas e só se deixaram contaminar por elas na medida que puderam modelá-las segundo seus padrões. Mas, para compreender essas "nações", êsses batuques ou essas confrarias, é preciso recolocá-los na sociedade total da época, caracterizada pela monocultura, pela escravidão e pela grande propriedade. Tem-se dito e repetido freqüentemente que a escravidão brasileira era infinitamente mais amena que a escravidão anglo-saxônica ou francesa. Os viajantes inglêses ou americanos, que tinham conhecido a sorte trágica dos trabalhadores de seus países no início da industrialização, não deixaram de observar que a situação dos escravos, que ao menos tinham o futuro assegurado, que eram tratados quando estavam doentes, ajudados quando velhos ou fracos, era bem superior à situação dos operários europeus ou norte-americanos;( 14 ) Saint-Hilaire, por sua vez, comparando a vida dos escravos rurais com a dos camponeses franceses, declara que os primeiros são mais felizes que os segundos.(111) Não contestaremos êsses testemunhos que são todos concordantes. Exceto talvez os depoimentos dos viajantes alemães que gostavam, em geral, de acentuar os casos de torturas infligidas aos negros pelos brancos, ou casos de .assassinatos de brancos por seus escravos; mas, percebe-se que suas narrativas obedecem a uma política de desencorajar a imigração de seus compatriotas para o Brasil. ( 16 ) (13) Sôbre essas três familias e sua semelhança teológica atual, ver Nunes PEREIRA, A Casa das Minas, pp. 31-2. Octavlo da COSTA EDUARDO, The Negro in Northem Brai:il, pp. 76-80. P. VERGER, op. cit., pp. 159-60. (14) A. MAJORIBANKS, North and South America, Londres, 1854, p. 73. A. R. WALLACE, A Narrative of Traveis on the Amai:on and Rio Negro, p. 120. Hamlet CLARK, Letters Home from Spain, Algeria and Brai:il, p. 160. S. W. H. WEBOTER, Narrative of a Voyage o/ the Soutn Atlantic Ocean, p. 43. GARDNER, op. cit., p. 14. H. Charles DENT, A Year in Brai:il, p, 28. Franck BENNET, Forty Years in. Brai:il, p. 111. J. W. WELLS, Tnree Tnousand Miles tnrough Bra2il, II, p. 187. (15) SAINT-HILAIRE, Voyage dans Zes Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, cap. IV. Os testemunhos de outros viajantes franceses concordam com o seu: COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 3-9. Ferdlnand DENIS, Brésil, p. 142. H. KOSTER, Voyages Píttoresques, acentua mesmo que no Brasll os escravos dos estre.ngelros são tratados mala rudemente que os dos senhores brasllelros, p. 311. RIBEYROLLES, op. cit., não obstante seu antlescravlsmo, Teconhecla a superlorldade da sorte do escravo sôbre a. do operário europeu. Ide. PFEIFFER, V'oyage ,Autour du Monde, p. 18. (16) Por exemplo, Avé-LALLEMANT ou o e.utor anônimo de Brasilianiscne Zustande. Mas é preciso note.r também que outros viajantes alemães acentuaram a Telatlva brandura da escravidão brasllelra, como SPIX e MARTIUS, J. EMANNUEL POHL ou RUGENDAS.

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Entretanto, se não contestamos êsses testemunhos, devemos fazer um certo número de observações que limitam sua importância. A sorte dos escravos variava segundo as regiões; era melhor, por exemplo, no Rio ou na Bahia que no Maranhão ou no Pará.( 17 ) Variava também conforme as categorias de escravos: era menos severa para o vaqueiro que para o trabalhador das charqueadas, ( 18 ) para o empregado doméstico que para o trabalhador rural. ( 19 ) Todos êsses testemunhos datam principalmente do início do século XIX, época em que o tráfico negreiro começa a ser limitado, prenunciando o seu desaparecimento total. Isto fêz com que o preço dos escravos aumentasse bastante.( 2 º) Os senhores, percebendo que se tornaria no futuro cada vez mais difícil renovar seu investimento humano, coµipreenderam que cada trabalhador constituía precioso capital; apressaram-se a tomar medidas adequadas à conservação da saúde e da vida de seus escravos, a melhorar sua alimentação, a construir hospitais em suas fazendas, fazendo vir "cirurgiões", a conceder dias de repouso às mulheres parturientes ou às jovens mães durante o período de lactação, enfim, a regular o trabalho nos campos de maneira a não demandar em excesso esforços físicos de seus negros. ( 21 ) Pensamos que é preciso investigar a moderação da escravidão muito mais nessas razões econômicas que em motivos raciais, como a indolência dos brasileiros,( 22 ) ou em motivos religiosos, como a influência do catolicismo.( 28 ) Há na obra de Gilberto Freyre contradição evidente entre sua afirmação da brandura da escravidão e sua idéia de que a escravidão desenvolveu nos brancos brasileiros o gôsto do _sadismo. (24) De fato, êsse sadismo não se teria desenvolvido se não houvesse prazer em ver açoitar os negros, em pôr-lhes máscaras de ferro, em colocá-los nos troncos, em cortar as orelhas dos fugitivos capturados. Arthur Ramos consagrou todo um capítulo de um de seus livros à descrição minuciosa dos instrumentos de SAINT-HILAIRE, Voyage au::c Sou.roes ãu Rio San Francisco, p. 110. KOSTER, op. cit., II, p. 399. (18) SAINT-HI'LAIRE, Viagem ao Rio Grande ão Sul, p. 87. (19) COUTY, op. cit., pp. 83-4. (20) o lucro sôbre a venda de escravoe que era de 20 a 30% subiu então para 200 e 300%. J. DORNAS Filho, A Escraviãão no BrMil, p. 63, em nota-. (21) TAUNAY, História ão Café no Brasil, vol. m, capa. 62-69, vol. VI, capa. 9, 10, vol. VIII. cap. 17. (22) Essa é a opinião, por exemplo, de M. GARDNER em sua Viagem (17)

no Brasil, p. 12. (23)

Essa é também a opinião de CASTELNAU, citado por TAUNAY,

No Brasil ãe 1840, p. 311. D'ASSIER viu bem a causa econômica da mudança de politica dos senhores brancos (Le Brésil Contemporain, p. 160). (24) G. FREYRE, op. cit., entre a p. 301 (c!. Interpretaçlío ão Brasil, pp. 108-18) e as pp. 76-8.

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tortura utilizados no Brasil.( 25 ) Quando as idéias abolicionistas começaram a se desenvolver na classe dos "bacharéis" e dos "doutôres'', os ricos proprietários precisaram naturalmente tomar precauções para não proporcionar contra si mesmos armas aos seus piores adversários; fizeram inclusive passar de suas mãos às dos agentes do Estado, policiais ou soldados, a execução de castigos, privando-se assim de alguns de seus direitos.( 26 ) A Igreja Católica, por seu lado, que permanecera muito tempo indiferente à sorte dos africanos, tomou certo número de medidas a favor dessa classe, tais coµio a libertação de escravos pelas confrarias do Rosário, o direito do branco de comprar o escravo que lhe pedisse asilo de seu antigo senhor, que não podia opor-se a essa transferência de propriedade, etc.( 27 ) Todavia, tôdas essas medidas que µielhoraram certamente ou mitigaram a sorte dos escravos não devem nos iludir, A es. cravidão moderna não é como a escravidão antiga,( 28 ) ela não se fundamenta, como a última, na integração do homem em uma família, mas na exploração econômica de uma raça por outra, e no lucro; em outras palavras, poderíamos dizer que o indivíduo na escravidão moderna é como um assalariado de uma nova lei de fome. A escravidão pela sua própria natureza impunha insensibilidade ao senhor. Os mesmos viajantes que acentuam a relativa brandura da escravidão no Brasil, observam paradoxalmente êsse fato; que o suicídio de negros, os assassinatos e as rivalidades raciais encontram-se em maior número nas propriedades dos senhores "bons" que nas dos outros.( 29 ) Na verdade, não se podia dirigir um grupo de às vêzes várias centenas de escravos sem uma vontade de ferro. Observa-o Fernando de Azevedo, com muita precisão, baseando-se ao mesmo tempo na opinião de Max Weber e nos dados da história do Brasil. (25) Arthur RAMOS, A 111.culturaçlío Negra no BrMil, pp, 103-14. Sôbre os castigos infligidos aos escravos no Brasil, ver também d'ASSIER, op, cit., p. 96. N. SANT'ANA, Slío Paulo Histórico, II, pp. 185-92. Tavares BASTOS, Cartas ão Solitário, p. 154. FerdiD.and DENIS, op. cit., p. 146. F. BIARD, Deu::c Années au Brésil, p. 180. Vivaldo CORACY, O Rio ãe Janeiro no Século XVIII, p. 204, nos diz que em 1688 o rei de Portugal tomou medidas contra a barbárie dos senhores, mas depois que os escravos toma:am conhecimento das ordens do rei, houve uma série de rebeliões e, a pedido do governador, as recomendações reais precisaram ser revogadas. Encontrar-se-á a coleção de leis sôbre a pena a ser infligida aos negros na Coizecçlío das Leis ão Imperio ão Brasil ãe 1835, Rio, 1864, I, p. 5 e sega. Os anúnc1011 de negros fugitivos dos jornais indicam freqüentemente, como meio de reconhecê-los, cicatrizes deixadas por êsses diversos castigos. (26) GARDNER, op. cit., p. 14. SPIX e MARTIUS, Traveis in Braztz, I, p. 179. (27) KOSTER, op. cit., pp. 337-40. A. RAMOS, op. cit., p. 121. (28) A. COMTE, Cours ãe Philosophie Positive, t. V, 53,• lição, pp. 99-103. (29) COUTY, op. cit., p. 78. TSCHUDI, Beise Duroh SM-Amerika, II, pp. 76-·9.

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Certamente, para que a economia patriarcal da Casa-grande ( •.• ) pudesse sustentar-se e desenvolver-se, tinha de manter na submissão servil, por uma disciplina de ferro, bugres e africanos que constituiam dois terços e, mais tarde, a metade da população. Era uma luta de sobrevivência e de dominio. A "Casa-grande" não teria sido, no caos da sociedade colonial, êsse instrumento disciplinador da ordem, êsse poderoso elemento que foi, de aglutinação, essa fôrça centripeta que reagrupa e retém, sem êsse esfôrço tremendo que ia até a crueldade, para solidificar a armadura do sistema, constantemente ameaçado pelas tropelias dos silvícolas e pelos tumultos nas senzalas.(ªº)

Os sofrimentos que os meninos brancos infligiam aos pretinhos sujeitos a seus caprichos, os ciúmes das mulheres brancas contra as amantes negras de seus maridos das quais rasgavam os olhos, ou arrebentavam os dentes a golpes de martelo, não têm para nossa matéria senão um interêsse anedótico.( 81 ) O importante é que o escravo se ressentiu da exploração sistemática, brutal, interessada, contínua da qual era o objeto e a vítima. E não é sem razão, de fato, que um célebre provérbio faz do Brasil "o inferno do negro, o purgatório do branco e o paraíso do pmlato". O mulato livre e sobretudo a mulata voluptuosa bem podiam encontrar aqui um paraíso, o escravo negro apenas encontrando um inferno. Antonil, no fim do século XVII, lembra que para o escravo três "p" são necessários: pão, pau e pano, mas que o brasileiro começa mal, porque começa com o pau, tratando melhor seus cavalos que seus escravos. ( 82 ) O senhor achara, é verdade, uma solução para dirigir o ressentimento do negro sôbre outra pessoa que não êle, desdobrando a figura do pai-senhor em duas, o pai bom que era o proprietário, e o pai mau que era o feitor.( 88 ) A êsse último principalmente é que se deviam as piores selvagerias, e como os feitores eram escolhidos na classe dos mUlatos e dos negros livres, conseguia a classe exploradora dissociar no espírito da classe explorada a luta econômica, contra o regime servil, da luta racial, africanos contra portuguêses. Todavia, quando essa exploração diminuiu, depois da decadência das minas e durante todo o século XIX até a extinção (30) Fernando de AZEVEDO, Canaviats e Engenhos, pp. 59-60. A oplnião de Max WEBER a que alude Fernando de Azevedo encontra-se em Wirtschaft und GeseZZschaft, t. I da. tradução espanhola, p. 128 e segs. (31) Para o negrinho, objeto de tortura da criança branca, ver G. FREYRl!l, Casa-grande e Sen2ala, trad. fr., pp. 285-86, e sôbre o caso do clúme das mulheres, idem, p. 286. (32) ANTONIL, op. cit., cap. 5. (33) R. BASTIDE, "Introductlon à l'Estude de Quelques Complexes Afro-bréslllens", Bul. Bureau d' Ethnologie, Raltl, II, 5, pp. 26-7,. e SocioZogie et Psychanalyse, pp. 242-43.

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da escravidão, a estrutura social do Brasil estava justamente em fase de transição sob o efeito da urbanização. E esta nova estrutura iria ainda intensificar a separação das duas classes, a exploradora e a explorada, tornando dessa maneira caduco o efeito integrador do abrandamento dos costumes. A cidade brasileira no comêço não foi mais que o prolongainento cfoi-ê:ampos. O dono das plantações que vinha morar na capital ou nos portos trazia consigo seus gostos rurais. O sobrado urbano copiava a Casa-grande do engenho, isolava-se das outras casas por jardins, voltava a sua parte traseira à rua ( concentrando sua vida nos aposentos que davam para o pátio), defendia a µiulher branca da vista de estranhos pelas gelosias de suas janelas, pelas grades. A senzala para aí foi também levada ocupando as dependências mais úmidas ao rés-do-chão, enquanto a capela do engenho aí se transformava em altar familiar, nuµi armário embutido no salão, as portas entreabertas sôbre um fundo de ouro e de chamas de velas. Entretanto, contra êsse isolamento das casas, a _ma. que mesmo assim era um meio de comunicação entre elas e que constituía um centro de encontros, de confraternizações ou de reuniões, ac~..QQLJriunfar. Ela vai arrancar a mulher branca de sua solidão para fazê-la ouvir à sua janela as alvoradas dos estudantes, para levá-la a freqüentar os bailes e as recepções µiundanas, para ir ornada como as santas, aos camarotes dos teatros. Vai também arrancar o patriarca de seus interêsses puramente econômicos para conduzi-lo à freqüência de clubes políticos, de lojas maçônicas, das vastas sacristias das igrejas coloniais, onde se discutiam terras, cavalos e negócios do Estado. Através da rua como pelos salões, o antigo antagonismo do senhor de engenho e do português comerciante vai diminuir, acabar às vêzes em casamento da filha do senhor já meio arruinado com o filho cio português, caixa ou gerente da loja de seu pai.( 84 ) Mas se a rua perµiitiu assim aos brancos desenvolver o sentido de sua solidariedade racial, não parece ter tido o mesmo efeito no sentido da confraternização "das raças e das cUlturas". De fato, a urbanização, longe de ter ajudado a integração do negro e do branco em uma mesma sociedade, parece ter agido no sentido contrário, salvo talvez nas grandes festas populares, onde tôdas as côres se encontravam, µiisturando-se na alegria comum, e ainda nas procissões em que desfilavam juntas as con(34) Gllberto FREYRE consagrou um livro a êsse problema, Sobrados e Mucambos, bem como um dos mais importantes capítulos de Regillo e Tradiçllo, 66. Aspectos de um século de translçã.o no Nordeste do Brasil, pp. 107-94.

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frarias de negros e de brancos. Mas, mesmo aqui as raças permaneciam separadas; as confrarias do Rosário ou de São Benedito eram as primeiras, à frente do cortejo, e as irmandades dos brancos rodeavam o pálio do bispo ou do pároco; a festa, por seu lado, fazia coexistir as danças dos negros com os divertimentos dos brancos mas não ocasionando sua interpenetração. A rua agiu em rel;ção aos escravos no mesmo sentido de solidariedade étnica que vimo-la fazer aos brancos. Dizemos solidariedade étnica e não solidariedade de casta, visto que as "nações" disputavam-se por tôda parte onde se encontravam, as mulheres na fonte, os homens nas praças públicas. Dessa forma, os elementos do antigo engenho que estavam integrados num sistema unitário de produção e pela autoridade absoluta do patriarca contra as fôrças de dissolução, separam-se: a Casa-grande torna-se . o sobrado, a senzala, o mucambo; o antigo equilíbrio que existia entre a civilização rural luso-brasileira e as civilizações populares africanas é substituído pelo antagonismo entre a cultura européia do branco, adquirida nas faculdades de Direito, nas escolas de Medicina, nos seminários, e a cultura africana, que se desenvolve no interior das associações de "nações" sob a forma de retôrno às tradições religiosas ancestrais. ( 35 ) Por certo, coino há pouco dissemos, o escravo ao mesmo tempo que viu sua sorte melhorar, não mais se arrastou seminu pelos canaviais. Vestiu, para honrar seu senhor e para simbolizar sua posição social face aos vizinhos, sobrecasaca e luvas brancas, mas compreendendo, por isso mesmo, o sentimento de sua dignidade humana que a antiga servidão rural nêle tendera a abolir. A escravidão da plantação desafricanizava o negro, a escravidão urbana o reafricanizou, pondo-o em contato incessante com seus próprios centros de resistência cultural, confrarias ou nações. :E: por isso que a manutenção das religiões africanas deve ser vista definitivamente nesse dualismo de classes opostas. A luta das civilizações é sõµiente um aspecto da luta das raças ou das classes econômicas no seio de uma sociedade de estrutura escravista. O negro não podia se defender materialmente contra um regime onde todos os direitos pertenciam aos brancos; refugiou-se, pois, nos valôres místicos, os únicos que não lhe .podiam arrebatar.(3 6 ) Foi ao combate com as únicas armas que lhe restavam, a magia de seus feiticeiros e o mana de suas divindades (35) (36) sileira.

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G. FREYRE, Sobraãos e Mucambos, cap: V. A. ARINOS DE MELLO FRANCO, Conceito de Civilização Bra-

guerreiras. Mas, naturalmente, esta nova orientação dada às representações coletivas trazidas da África alteraria o seu significado. Na África as divindades eram cultuadas em benefício de tôda a comunidade, comunidade de criadores ou de camponeses; pedia-se-lhes a fecundidade dos rebanhos, das mulheres e das colheitas .. As grandes festas da Nigéria e do D~omé são ainda festas agrárias. ( 37 ) No Brasil, como pedir aos déuses a fertilidade das mulheres se elas põem no mundo apenas pequenos escravos? Melhor seria, rogar-lhes a esterilidade de suas entranhas. Como pedir aos deuses boas colheitas numa agricultura que é comercial e não mais de pura subsistência e em benefício dos brancos, isto é, da raça dos exploradores? Valeria bem mais pedir-lhes a sêca, as pragas destruidoras das plantações, já que para o escravo as colheitas abundantes se traduziriam finalmente num acréscimo de trabalho, de fadiga e de miséria. :E: assim que ocorre uma primeira seleção dos deuses; as divindades protetoras da agricultura são postas à parte, acabando por serem completamente esquecidas no século XX. Em compensação, a figura ele Ogum, o deus. da guerra, de Xangô, o deus da justiça, ou de Exu, o deus da vmgança, tomam lugar cada vez mais considerável na cogitação dos escravos, mas transformando-se: Ogum deixará de ser o patrono dos ferreiros ou o protetor dos instrumentos agrícolas de ferro, Exu não manterá, senão dificilmente, seu caráter de divindade da ordeµi cósmica para ocupar antes c!e tudo a regência da ordem social, mais exatamente, para lutar contra a desordem de uma sociedade de exploração racial. O tã-tã que se elevará nas noites sufocantes não será destinado a pedir a chuva, a prosperidade da aldeia, a grandeza da tribo, mas chamará outros mistérios para o preparo de filtros de amor que permitirão às belas mulheres negras desforrarem-se do desprêzo das patroas brancas, tomando o coração de seus maridos (segundo peças de processos sabe-se de casos em que o marido se livrou de sua espôsa para dar a direção de sua propriedade a u'a amante preta que o tomara louco de amor),(38) ou o preparo de venenos poderosos que enfraqueciam o cérebro dos senhores, fazendo-os cair em inanição e µiorrer lentamente ( chamavam-se essas plantas venenosas de "ervas para amarisar os (37) Ver, por exemplo, PARRINDER, O'J>. cit., p. 149. (38) .Revista ão Arquivo Público, Recife, 2.• semestre de 1946, Documentos extraídos dos Arquivos, p. 231 e sega.

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senhores"), ( 89 ) ou ainda para fazer abortar as mulheres grávidas para não aumentar o número de esctavos. ( 4º) Em suma, a cultura africana deixou de ser a cultura comunitária de uma sociedade global, para se tornar a cultura exclusiva de uma classe social, de um único grupo da sociedade brasileira, a de um grupo explorado econôp:iicamente e subordinado socialmente. ( 41 )

*

* * A escravidão não somente separa como une o que separa. Ela uniu as civilizações africanas que vimos arrancadas de suas infra-estruturas, mutiladas por essa separação, transformadas de civilizações comunitárias em "subculturas" de classe, com as civilizações européias da classe dirigente, o que levou ao aparecimento de novos fenômenos, o sincretismo religioso ou a mestiçagem cultural, que agora precisamos estudar. Mas, ainda aqui, p~ra compreender como opera a interpenetração das civilizações, por que canal, de que maneira, com quais efeitos, precisamos recolocá-la na situação social que a condiciona e explica. Da altura em que domina a plantação, a Casa-grande dos senhores brancos aparta-se da senzala onde os escravos vivem com suas nostalgias, suas músicas e seus deuses, o que não im., pede que as duas constituam os elementos de uma mesma realidade, a grande família escravocrata. Essa família forma um todo orgânico, de partes solidárias, isolada no mato, exatamente como um sucedâneo da vila portuguêsa. Certamente as relações que unem os membros dessa comunidade doméstica não são iguais às relações vicinais de aldeia, porquanto êsses membros são hierarquizados, o que aliás aproxima-a mais do clã feudal que da vila. As distâncias sociais serão maiores ou menores segundo o lugar que êsses membros ocuparão nesta hierarquia. Em seu ápice temos exclusivamente a família branca do senhor, proprietário dos homens e dos escravos;. abaixo, logo em seguida, os homens livres que desempenham as funções relativamente "nobres" da produção, aquêle que dirige o trabalho do engenho, o que fiscaliza a refinação do açúcar, o que faz as contas, o pequeno exército de feitores que comanda os grupos de escravos (39) A. RAMOS, o Negro Brasileiro, pp. 192-96. (40) O branco estimulava a procriação de seus escravos: a mulher que tinha pôsto no mundo 10 crianças era libertada, posteriormente o número fol diminuido para 7. Mas sabemos que, não obstante essas vantagens, a natalidade fol bastante balxa; era em parte devida às práticas antlconcepclonals e mesmo aos abortos voluntários, como forma de reslstêncla.

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T. SEPELLI, Il Sincretismo Religioso A/ro-catto!ico in Brasi!e, p. 53.

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com gritos roucos e estalidos de chicotes. Em baixo, os escravos mas êsses escravos por sua vez não formam u'a massa indiferenciada: êles se dividem em dois grupos, o grupo dos escravos domésticos que moram na Casa-grande ao lado dos senhores a cozinheira, a costureira, a fiandeira, as criadas e os criados 'de q.uarto, as amas das crianças brancas, os negros de recado ( espécie de estafetas que levavam mensagens e que uniam a propriedade às outras propriedades vizinhas), e o grupo dos escravos dos campos, penando sob o sol ardente, do amanhecer ao pôr do sol, às vêzes até mais, grupo mais numeroso como também o mais afastado do núcleo central, a Casa-grande. Esta hierarquia de posições ou de status é também uma hierarquia étnica. A família do senhor é endógama, não deixa o sangue negro correr em suas veias,. a mulher aí é escolhida segundo sua pureza racial, encarregada de dar a seu marido filhos que continuarão a linhagem, o primogênito que substituirá o chefe da família à sua morte, o caçula que será bacharel ou sace;,dote. fJ;- elas.se int~rmediária comp.unha-se de "brancos pobres que so podiam viver com a condição de se integrar numa posição de dependência aos únicos núcleos estáveis da colônia as grandes famílias senhoriais, e de mulato ou negros livres: quase completamente assimilados à civilização portuguêsa. Os escravos domésticos eram escolhidos segundo sua beleza sua inteli~ência, seus hábitos .de asseio ou de higiene entre ~s negros crioulos ou entre os mma, os nagôs, em suma, quase unicamente entre os afri~an~s ocidentais. Os escravos dos campos eram recrutados prmc1palmente entre os bantos e os semibantos. As distâncias sociais eram tanto maiores à medida que se afastava dos modelos de valôres europeus, representados pelo senhor e sua mulher. Isso fêz que a desafricanização fôsse o único meio de subir na escala social, de chegar aos postos cobiçados aquêles que davam mais liberdade, segurança e prestígio.(42) ' Nesta perspectiva a aculturação aparece sob seu verdadeiro pris~a que é o de ser uma luta pelo status social. Não é precISo pensar, sob o pretexto de que falamos de uma raça domi?ante e de um~ raça explorada, que a civilização dos brancos foi llllposta pela força e que o escravo teve assim o sentimento doloroso d~ s~a alienaçã~.. A civilização dos brancos foi desejada como tecmca da mobilidade social, como a única solução deixaC42> Todo o llvro de O. FREYRE, Casa-grande e Senzala é consagrado à análise dessa estrutura famillar. Indicamo-lo ao leitor que desejar amplos esclarecimentos.

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da, após o fracasso da insurreição, para sair de uma situação insuportável; ela foi desejada deliberadamente, sistemàticamente. Tomou duas formas, uma puramente cultural que foi a adesão ao catolicismo, a apropriação de hábitos e de formas de comportamento dos brancos, e uma forma biológica: "limpar o sangue", purificá-lo dormindo com os brancos, dando nascimento a crianças mais claras, cujos pais se ocupariam, e que seriam assim libertadas do jugo da escravidão, tendo posteriormente posição melhor na concorrência econômica. Não havia outros meios de subir socialmente numa sociedade moldada e dirigida pelo branco, a não ser purificar o sangue do estigma infame da negrura; purificar a civilização africana de sua marca de barbárie; reconhecer como somente válido o ideal estético do senhor, o da superioridade da côr branca sôbre a côr negra, e seu ideal moral, o da superioridade da ética dos brancos sôbre os costumes dos "pagãos". A importância do transe nas religiões da Africa negra enganou os primeiros etnógrafos quanto à psicologia dos prêtos. Os negros não são místicos; sua filosofia está, como por vêzes se diz, mais próxima da filosofia dos anglo-saxões que daquela dos asiáticos; é uma filosofia essencialmente utilitária e pragmática, onde o que conta é o sucesso apenas.( 43 ) O desejo do africano de ser burocrata, intelectual, funcionário, de usar pince-nez, e de ter uma Pasta Ministerial, não corresponde de modo nenhum a uma aspiração idealista, à aversão pela máquina e pelo trabalho manual, mas ao reconhecimento do status social superior dado pelos brancos a certas profissões em detrimento de outras.( 44 ) É êste utilitarismo que explica no Brasil colonial ou imperial a acomodação do negro à sua nova situação e seu esfôrço para tirar dela o máximo proveito. O recurso à fôrça não estava totalmente excluído ou desaparecido, como veremos nos capítulos subseqüentes, mas empregado somente quando circunstâncias favoráveis podiam apresentair-se. O escravo agiu ordinàriamente como a aranha, a tartaruga, o coelho ou o lagarto de suas fábulas, pela astúcia que é a arma dos fracos, uma arma que freqüen( 43)

Essa é a opinião, por exemplo, de Mary H. KINGSLEY, West

A/rican Stuãies, p. 318.

(44) E a prova está em que, na nossa sociedade industrial, o negro não teme abandonar essas profissões, quando elas lhes parecem pouco lucrativas, por oficlos "sujos" e "duros", como os serviços de mecânicos, porém mais rentáveis. Ver R. BASTIDE e F. FERNANDES, Belaçôes .Raciais, PP· 57-60, 224-26.

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temente vence os mais fortes.( 45 ) Existe todo um folclore do negro escravo do Brasil que é conhecido com o nome de "ciclo do Pai João". :Bsse ciclo é extremamente ambíguo porque formou-se com a colaboração do branco e do negro estando, dessa maneira, voltado para duas direções opostas. Do lado branco é a apologia do negro "bom" oposto ao "negro mau", ao negro quilombola ao negro assassino, ao negro revoltado, o bom negro que às vêzes canta sua tristeza ao som áspero do urucongo mas que .se submete à sua sorte, que é devotado aos seus senhores, que sem dúvida se considera como o parente pobre, mas parente assim mesmo da família senhorial. Do lado negro é a apologia do negro manhoso, que chega a reqüestar a mulher branca, a dormir na rêde de seu senhor, a tomar uma posição de comando na casa dando-se aparentemente "uma alma branca", mas que conserva num recanto secreto de seu coração o melhor de sua civilização africana, o conhecimento das plantas medicinais, dos ritos mágicos, e o nome africano dos santos católicos, isto é, o seu verdadeiro nome.( 46 ) A aculturação não é, pois, inteiramente a assimilação cultural, o desaparecimento total das civilizações nativas na grande noite destruidora da escravidão. A prova dissQ está em que, se de um lado o africano, e mais ainda o crioulo, aceitam os valôres brancos, tingindo-os de prêto, por outro lado, e simultâneamente, a aproximação das raças na organização da escravidão ocasionou uma transferência de traços culturais africanos para a civilização luso-brasileira. A criança branca era deixada, nos seus primeiros anos de vida, no meio dos negrinhos, com êles se recreando, nadando no charco do engenho, brincando de esconde-esconde nos canaviais, aprendendo a armar arapucas para passarinhos na floresta vizinha. O menino branco tinha sido alimentado por uma ama negra, que o embalara com cantigas africanas, que lhe dera seu leite com tôda a sua ternura. Continuava a depender da uma criada de (45) Silvlo ROMERO recolheu alguns dêsses contos africanos de animais na Bahia, Contos Populares ão Brasil, que Nina Rodrigues pôde comparar com os correspondentes africanos recolhidos por A. ELLIS, The Yoruba Speaktng Peoples o/ Slave Coast, p. 258 e segs. Ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 277 e sega. Por sua vez A. RAMOS consagrou a êsses contos populares de animais um capitulo de seu livro O Folclore Negro ão Brasil, cap, VI. Ver sôbre a mesma questão a tradução em português e principalmente os comentários de L. da O.AMARA OASOUDO ao livro de o. HARTT, Os Mitos Ama2ônicos àa Tartaruga, e Octavlo da COSTA EDUARDO, "Aspectos do Folclore de uma Comunidade Rural", separata do n,o CXLIV da B.A.M.S.P, (46) Sôbre o ciclo do Pai João, ver A. RAMOS, op, cit., cap, IX. DIVERSOS AUTORES, Novos Estuãos A/ro-brasiletros, p, 60. Théo BRANDAO, Folclore ãe Alagoas, pp, 121-33. Osmar GOMES, "Tradições Populares Colhidas no Baixo Sã.lo Francisco", mECO, 1.° Congresso, Anais II, 1551, p. 175 e segs,

quarto negra que, para adormecê-lo, contava histórias de Quibungo, o bicho grande que come as crianças, da môça que canta no saco ou do marinheiro casado com Calunga, rainha do mar.(47) Isso fazia com que êle se impregnasse de valôres puramente africanos na idade em que a alµia é mais plástica, mais maleável às impressões de fora e às influências estranhas. Quando estava doente, sua mamãe negra tratava-o com ervas colhidas pelo feiticeiro e ajuntava em sua corrente, às suas medalhas bentas, às suas imagens de santos dadas pela mamãe branca, outros sortilégios mais poderosos, banhados no sangue de animais sacrificados, contra o "mau-olhado" ou contra as enfermidades da primeira infância. Mais tarde, quando seu interêsse sexual começava a despertar, olhava as negras nuas banharem-se no rio, esgotava-se em jogos excitantes e mais ou menos eróticos com as pretinhas, "tornava-se homem", enfim, com a primeira negra que encontrava nos campos. Não cessará de ter amantes negras, de colocar no mundo mulatinhos, de reanimar seus sentidos amortecidos pela idade ou pelo abuso, pedindo ao feiticeiro africano, se êste se encontrasse em sua plantação, os filtros necessários. A influência da Africa não cessava com a passagem da infância à adolescência; continuav~ insidiosa, sutil, por tôda a vida, sobretudo através dêsse erotismo, essa propensão ao culto da Vênus negra. Da mesma forma, ainda que por outras razões, a espôsa branca que vivia reclusa no meio de seus escravos, a fazer confeitos ou marmeladas, a fiscalizar a costura ou a lavagem, a mandar fazer cafuné pelos hábeis dedos de suas criadas de quarto,(48) sem quase nunca sair, recebendo raramente visitas, desaparecendo mesmo na sua cozinha se algum estranho aparecesse à porta da casa, acabava por pensar, por sentir como seus escravos, a aceitar suas crenças supersticiosas, ou suas histórias mágicas, a crer em Exu quase do mesmo modo que no Diabo. Somente quando a família branca sair do engenho para ir µiorar na cidade, quando se puser em contato com as idéias européias trazidas pelos navios, com as mercadorias de Lisboa ou de Manchester, é que as fôrças de separação levarão vantagem sôbre as fôrças de fusão; mas no Brasil rural a desafricanização do negro marchou a par com a (47) Sôbre as histórias de Quibungo, ver A. RAMOS, op. ctt., cap. VII, e L. da OAMARA CASCUDO, Geografia dos Mitos Brasileiros, pp. 272-77, A história da môça no saco encontra-se em Nina RODRIGUES, op, ctt., pp. 285-87, com a correspondente africana, pp. 288-90. A. de OALUNGA, em J. da SILVA CAMPOS, "Contos e Fábulas Populares da Bahia", in BasUio de MAOALHAES, o Folk-Zore no Brasil, pp. 244-46. (48) Sôbre o cafuné, ver R. BASTIDE, Psicologia do Cafuné, Curitiba.

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africanização do bx:anCQ, dando origem simultâneamente a crianças mulatas e a uma cultura mestiça.(49) Gilberto Freyre estudou bem eµi Casa-grande e Senzala êsses diversos fenômenos, mas estudou-os do ponto de vista da civilização brasileira, e não do ponto de vista, que aqui nos preocupa, das civilizações africanas. Precisamos, pois, retomar à questão, examinando-a, se se nos permite a expressão, pela outra extremidade da luneta. O engenho de açúcar ou a grande propriedade cafeeira substituíram no Brasil a comunidade aldeã africana. Foi êsse engenho, essa grande propriedade, que viria substituir as funções da aldeia ou da linhagem, ou sejam, as funções de integração e de segurança, que iriam regular, organizar em seu seio, as relações interindividuais, formar, em uma palavra, o bloco sólido eµi que todos os papéis e todos os status sociais encontrariam seu equilíbrio, seu centro de coordenação. Não obstante as oposições de interêsses entre a classe exploradora e a classe explorada, e tôdas as tensões que essas oposições ocasionavam, o negro foi tomado, numa certa medida, pela solidariedade que o ligava ao senhor. f'.le se bateu por êle nas lutas entre os clãs familiares, assassinou mais tarde os adversários políticos de seu senhor, formou sua guarda pessoal nas disputas eleitorais. Viveu assim em duas sociedades simultâneamente, uma sociedade de classe racial, com suas confrarias, suas "nações", seus grupos de jogos, seus batuques, e uma sociedade familiar da qual dependia para não morrer de fome, para não se sentir abandonado numa terra estrangeira. Foi homem de dupla fidelidade que determinou, como conseqüência, senão a subordinação da civilização africana à européia, ao menos sua coexistência pacífica, penhor de sua futura união. Essa união mais se verifica à medida que passamos da geração dos negros "selvagens", como eram chamados os recentemente chegados da Africa, à geração dos negros crioulos, nascidos ou educados na plantação. A própria civilização, se se assenta na natureza e mesmo se responde aos instintos ou às necessidades naturais, o que nem sempre acontece, porque ela mais cria do que satisfaz necessidades, não é nunca inata e sim adquirida. O grande órgão de socialização da criança é sempre !!- família; mesmo quando nos ritos de iniciação há uma aprendizagem tribal, essa aprendizagem é do tipo escolar; não vai, pois, contra o (49) A. RAMOS, depois de ter citado a palavra de Nina RODRIGUES: "Na Bahia tôdas as classes, mesmo a superior, estll.o prontas a tornarem-se negras", diz que "a desafricanlzaçll.o gradual do negro foi acompanhada em contrapartida por uma deseuropelzaçll.o do branco no Brasil", Acultwaçllo Negra, pp. 11-2.

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grupo familiar, completa-o apenas. Ora, o negrinho, ou o mulato, nascido na plantação, recebia os cuidados de sua mãe somente durante o período de aleitamento; era cuidado às vêzes por uma mulher velha, que não mais podia trabalhar nos campos com todos os outros garotos coletivamente; bem cedo sofria a influência do senhor, do capelão, e mesmo do professor se se mostrava um pouco inteligente, principalmente se f ôsse um dos bastardos do senhor ou um filho do capelão. Foi dessa forma que os crioulos sofreram uma dupla socialização, a do grupo africano pela mãe, pela velha guardiã das criancinhas, pela senzala, e a da família branca com tôda sua autoridade e prestígio. Dêsse modo, duas civilizações iam confundir-se em seu espírito. Eis aqui o fenômeno mais curioso da escravidão, a dualida· de racial dos pais. Ela vale tanto para o pequeno branco quanto para o menino negro. O filho do senhor tinha pai branco e mãe negra. As vêzes a mãe negra educava-o ao mesmo tempo que a mãe branca; esta podia, nesse caso, lutar contra as influências africanas. Mas, amiúde também, a mulher branca casada muito jovem (15 ou 16 anos), mãe pouco depois, mal nutrida, não fazendo nunca exercícios, morria môça e a autoridade da mamãe negra cobrava então mais fôrça.( 5 º) Por seu lado, o filho do escravo, se conhecia sua mãe, não sabia freqüentemente querri era seu verdadeiro pai. Esse era no fundo, mesmo se não o fôsse biolôgicamente, o patriarca branco, o senhor de engenho. Joaquim Nabuco e Luiz Gama poderiam servir de exemplo a êsse tema da dualidade paterna. Nabuco, órfão de nascimento, era tão ligado a sua ama de côr, tão ternamente unido a ela, mesmo quando subiu à glória, grande escritor, homem político, embaixador de seu país. Homem, sem dúvida, da mais refinada civilização européia, ao ponto dos críticos literários lhe censurarem o fato de ser às vêzes mais estrangeiro que brasileiro. Seria necessário estudar psicanaliticamente sua formação, orientada pela doce mãe negra, se quisermos compreender sua sensibilidade e sua forma de inteligência. Luiz Gama teve, indubitàvelmente, um pai português que poderia tê-lo educado, mas êste não só o deixou na escravidão como ainda o vendeu a comerciantes que, em seguida, mandaram-no da Bahia para a província de São Paulo. Foi arrancado de sua mãe a quem procurou tenazmente durante tôda sua vida, sem jamais encontrá-la, mas da qual guardou o culto. Entretanto, seu verdadeiro pai será o filho de seu senhor paulista, educando-o, formando-o, fazendo-o seguir (50)

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O. FREYRE, op. cit., pp. 295-300.

seus estudos, moldando sua inteligência e suas sensibilidades. segundo normas européias. Esses dois grandes líderes do aboli-· cionismo, um por fidelidade à sua nutriz negra, o outro por fidelidade à sua mãe escrava, representam admiràvelmente, ainda que sob uma forma inversa, êsse drama da dupla paternidade,. que ainda não encontrou seu analista. Cremos, de fato, que é por meio dos conceitos psicanalíticos de "superego", de identificação, de narcisismo, muito mais doque através dos processos de imitação, de aprendizagem, de adap-· tação, de sugestão, que se pode definir os mecanismos psíquicos da aculturação. O que colaborou para unificar os elementos heterogêneos da sociedade brasileira, a propagar através de tô-· das as camadas da sociedade os mesmos valôres, foi o fato dobranco, vivendo numa família de tipo patriarcal, e o negro, num. tipo de família matriarca!, interiorizarem o mesmo pai. E interiorizando o mesmo pai, interiorizaram sua cultura, sua concepção do mundo e da vida, seus quadros de referência e suas normas. A separação que F:reud propõe entre o "ego" e o "superego" traduz-se assim principalmente para o negro, mas também para. o branco criado pela mãe negra, entre a estratificação das duas civilizações, a maternal, africana, repelida no inconsciente, onde toma o caráter "estranho" do "recalcado", sem por isso deixar de atuar no "ego'', e a dirigente, constrangedora, mesmo com uma ponta de sadismo, a civilização paterna do luso. Isso fêz com que o branco ouvisse sempre do fundo dos turbilhões, dos redemoinhos, dos abismos líquidos do inconsciente, o canto fascinador das sereias negras, e que o negro, como nôvo Narcisar inclinando-se sôbre as águas da vida para melhor se conhecer,. via-se branco. Na verdade, êsses fenômenos tornavam-se muito mais profundos e sólidos na medida em que passavam da periferia ao centro da vasta família senhorial, dos negros do campo agrupados nos quartos da senzala pouco ligados a êsse núcleo, aos negros crioulos, vivendo na Casa-grande, no mesmo ritmo que os brancos. Entretanto, todos os escravos deviam, antes de dormir, reunir-se para receber a bênção do senhor, louvá-lo por um "Bendito seja Jesus Cristo, nosso Senhor'', de maneira a perpetuar, a manter em seu interior a imagem do pai branco.( 51 ) A identificação foi, pois, mais ou menos bem sucedida segundo as classes de escravos; em umas "recalcou" as civilizações nativas; em outras, onde êsse recalcamento não foi bem realizado, deu-lhe (51) D. P. KIDDER, Beminisci!ncias mulheres e crianças. O quilombo pouco a pouco se reconstituiu e tomou o nomede Macaco. Um manuscrito anônimo nos dá também uma descrição: (33) Sôbre êsses problemas de localização geográfica e temporal d& Palmares, ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brastl, pp. 115, 126, 150 .. Alfredo BRANDAO, "Os Negros na História de Alagoas", Estuãoa Afro-brastZeiros, pp. 61, 63, 64, 66, 68, 73, 75. (34) As cifras que são de BARLEUS, Bes Gestae Maurifü., ,, p, 270, devem ser exageradas. Jean LAERT avalia a população do Grande Pa1mare8' em 1 500 habitantes. Fr, de BRITO FREYRE em 30 000, Nova Lustt4nia, p. 281. (35) Brieven en Pepieren tn Brastlian, trad. port. de Alfredo de CARVALHO, B. I. A. G. ãe Pernambuco, X, março, 1902, p. 37.

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não obstante, não estava de todo morto. Ainda e~ _1 703 o negro Camuango, que escapara aos massa~res, reconstitum um p~q.ue­ no quilombo que precisou ser d.estrmdo.( 40 ) Os _?Utros fug1tiv~s de Palmares reuniram-se aos qu1lombolas da Para1ba, em Cumbe, sendo finalmente exterminados em 1735. ( 41 ) ( 42 ) Palmares suscita tôda uma série de problemas que devemos examinar. Para começar, era êle formado de diversas etnias ou tinha unidade racial? Ayres do Casal afirma que Palmares foi fundado por 40 negros de Guiné. ( 43 ) Isso é possível para o primeiro Palmares na época da ocupação holandesa; mas, mesmo assim não se pode afirmar que os primeiros quilombolas fôssem todos negros da Africa Ocidental, porque o têrmo Guiné designava na época, como o dissemos, tôda a costa atlântica da Africa; de resto, o que significava êsse pequeno núcleo para u'a massa de 11 000 habitantes? Parece que os ousados defensores da Tróia Negra foram principalmente bantos: a velha Madalena que foi enviada como embaixatriz a Palmares era angola, ? :prisioneiro Gaspar era chefe de campo dos angolas; sem duvida, o nome de Bengola dado a um irmão do rei é a expressão de sua origem étnica e deve ser lido Bengala; o nome de Zumbi, o último rei do quilombo, é originário da língua bunda, e designa o deus da luz; as expressões de Gana, lomba, Gana Zona dadas

o' rei habita sua cidade real chamada Macaco porque aí morreu êsse animal, é a metrópole entre tôdas as cidades e lugares habitados, é fortificada por um muro de barro ( .•. ) Ai habitam os ministros da Justiça para as execuções necessárias e tôdas as instituições de qualquer república aqui são imitadas ( .•. ) Reconhecem-se todos obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a êste tem por seu rei todos os mais, tanto os naturais dos Palmares, como os vindos de fora; tem palácios, casas da sua família, é assistido de guardas e oficiais, que costumam ter as Casas Reais; é tratado com todos os respeitos de Rei e com tôdas as cerimônias de Senhor; os que chegam à sua presença põem logo o joelho no chão e batem as palmas das mãos, sinal do seu reconhecimento e protestação da sua excelência, chamam-lhe Majestade, obedecem-lhe por admiração. (36) A cidade tinha 1 500 casas e nela havia uma capela onde se encontrou uma imagem do Menino Jesus, outra de São Brás e outra de Nossa Senhora da Conceição. Mas Macaco não era a única cidade. Os quilombolas estavam distribuídos ao longo da Serra da Barriga, formando um conjunto de vilas e de povoações fortificadas, aliás federadas entre si por laços dinásticos. Houve mais de 18 expedições enviadas para destruir esta "Tróia Negra" como se lhe chamou. Mas sempre renascia de suas cinzas. A mais célebre dessas expedições foi a de Fernão Carrilho que amedrontou tão terrivelmente os africanos fugitivos, que granjeou entre êles "a fama de feiticeiro".( 37 ) Seguiu-se depois uma tentativa de paz entre os portuguêses e os quilombolas. ( 88) Mas essa paz foi apenas momentânea e completamente ilusória. Zumbi, sobrinho do rei, retomou armas. Foi preciso apelar a um antigo mestre de campo, Domingos Jorge Velho, que com seus paulistas, seus índios, os soldados do lugar e, diz-se mesmo, seis peças de artilharia, iniciou uma longa e renhida luta, que deveria terminar pela destruição mais ou menos completa de todos êsses quilombos e com a morte de Zumbi.(39 ) As terras foram distribuídas aos vencedores; os negros que não tinham sido massacrados voltaram à escravidão. Palmares, (36) R.I.H.G.B., t. 47; mais recentemente, Benjamim PERET (que rol o quilombo de Palmares, Anhembi, 66, maio, 1956, pp. 469-86) opõe-se à Idéia ·de que o remo de Palmares teve sempre êsse mesmo caráter, e teima em achar, hipotéticamente, uma evolução da forma politlca no curso de sessenta anos de existência de Palmares. (37) E. ENNES, As Guerras nos Palmares, pp. 44, 161. (38) J!:. CARNEIRO, O Quilombo àe Palmares, p. 102 e segs. (39) S. da ROCHA PITTA, História àa América Portuguésa, 2.• ed., pp, 45-6. Oliveira MARTINS, o BraBíl e as Colônias Portuguésas, 5.• ed., pp. 65-6. Rocha POMBO, História ào BraBíl, V, pp. 359-63. Nina RODRiIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 132.

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(40) Mário BEHRING, "A Morte de Zumbi", Don Casmurro, 2-8-1941. (41) Sôbre as Guerras de Palmares, ver: Documentos: BARLEUS, Res Gestae Maurítii ..·., pp. 270-71. R.I.H.G.B., II, p, 153, tomo XIV, p. 491. Revista ão Instituto ão Ceará, "Dezenove Documentos sôbre os Palmares". XVI, pp. 161-91. Francisco de BRITO FREYRE, Nova Lusitll.nia, Lisboa, 1675. J. NIEUHOFF, Remarkables Voyages anã Travels to Brazil, p. 8. Sebastião da ROCHA PITTA, História da América Portuguésa, 1.• ed., 1730. Jean BLAER "Diário de Viagem aos Palmares", R.I.H. de Pernambuco, março, 1902. Ernest~ ENNES, As Guerras nos Palmares. Coleção de documentos inéditos publicados em São Paulo, Ola. Ed. Nacional, Brasll!ana, vol. 127, 1938, 502 PP· Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida de 1675 a 1677, R.I.H.G.B., XXII, p. 303. ~· BRANDAO "Documentos Antigos Sôbre a Guerra dos Negros Palmarlnos • O Negro no BraBíl, pp. 275-89. f:stuàos Históricos ou Sociológicos: HANDELMANN História do Brasil, fim do cap. VIII. Mário MELO, Dentro da História, pp, 101-16. VARNHAGEN, História Geral ào Brasil, 3.• ed., III, p. 319. Pedro PAULINO DA FONSECA, "Memórias dos Feitos que se Deram Durante os Primeiros Anos de Guerra com os Negros Qullombolas dos Palmares, seu Destrôço em Junho de 1178", R.I.H.G.B., XXXI.X, PP 193-322. Dias CABRAL, "Narração de Alguns Sucessos Relativos à Guerra com os Negros Qullombolas dos Palmares de 1668 a 1680", R.I.H. de Alagoas, 1875, Nina RODRIGUES, Os Africanos no BraBíl, pp. 115-45. Diversos: Estudos Afro-bra8ileiros, pp. 60-77. J!:. CARNEmo. o Quilombo àos Palmares, SP, ~947, 246 pp. Benjamin PERET, "Que foi o Quilombo dos Palmares", Anhembi, n. 0 65, pp. 230-49, e 66, pp. 467-86. A essa lista pode-se acrescentar o romance de Jayme de ALTAVILLA, O Quilombo dos Palmares, mas que é preciso consultar com precaução porque o Autor mistura dados de épocas diferentes, chegando inclusive a fazer dos sacerdotes do quilombo, alufás muçulmanos! (42) A. VIDAL, "Três Séculos de Escravidão na Paraiba", Estudos Afro-braBíleíros, pp. 109-10. (43) Ayres do CASAL, Cronographia Brasileira, citado por Nina RO· DRIGUES, op. cit., p. 133.

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l aos irmãos do rei pertencem à mesma língua e são corrupções de ngana que significa Senhor; Zona e lomba devem estar ligados à palavra mona que significa irmão na língua bunda e filho na kimbunda; Ganga é também uma corrupção de nganga, Senhor Grande; Nina Rodrigues relaciona o têrmo de Zumba à expressão cazumba onde o prefixo ca denuncia a origem banto.( 44 ) O fato dos guinés terem uma mitologia bem constituída, e por isso mais resistente ao cristianismo que o vago animismo dos bantos, é mais um fator a apoiar esta argumentação. A existência de uma igreja com imagens de santos tende, pois, a confirmar que Palmares foi um quilombo banto. Um documento recente, enfim, encontrado nos Arquivos de Lisboa diz que os quilombolas chamavam suas cidades de "Angola Janga, Angola pequena".( 45 ) Mas, é evidente que êsses bantos eram recrutados entre as mais diferentes nações e disso temos um testemunho direto no fato dos habitantes de Palmares chamarem-se malungo; ora, o P. Vieira nos diz em um de seus sermões: "O espírito de associação é tão próprio e natural aos negros, que êles consideram como parentes todos os indivíduos da mesma côr e companheiros ou malungo, todos os que embarcaram no mesmo navio".( 46 ) Vimos que o navio negreiro tinha quase sempre uma carga de cativos das mais variadas tribos. Portanto, o fato de se darem o nome de malungo significava que Palmares não era uma tribo, mas um cadinho de povos, reunidos nesse navio imóvel, feito de montanhas e de rochedos, batido pelo mar verde das florestas, qual um outro oceano.( 47 ) O segundo problema que se apresenta é o da organização social de Palmares e seu significado. Espacialmente o quilombo se apresenta, como o vimos, como uma série de aldeias fortificadas, separadas umas das outras por grandes distâncias. Mas, sabemos também que havia, espalhadas entre êsses lugares, cercados de paliçadas e onde os negócios públicos eram tratados, pequenas cabanas cercadas de plantações, situadas principalmente nas orlas das florestas. Essas casas campestres eram feitas de ramos e seu teto de sapé.( 48 ) Porém, isso é tudo o que sabemos e várias explicações possíveis restam para se entender desta organização ecológica. Pode-se imaginar que havia dois tipos de casa para uma mesma família, uma urbana, se se deseja, local de residência habitual, e uma casa rural que era habitada somente na (44) (45) (46) (47) (48)

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Nina RODRIGUES, op. cit., pp. 157-60. E. ENNES, op. cit., p. 235, A. BRANDAO, op. cit., p. 67. ALTAVILLA, op. cit., p. 35. BARLEUS, op, ctt., pp. 270-71. Nina RODRIGUES, op. ctt., p. 135.

;I época das colheitas ou das plantações. O rei, diz-se, tinha seu palácio e sua casa de campo. O fato, citado por Barleus, de q~e se dançava nessas casas rústicas com gran?e barulho até à me1~: -noite não significava que elas fôssem habitadas regularmente, Jª que as danças talvez pudessem ser festas agrárias, irealizadas no início e no fim das colheitas. Do mesmo modo pode-se pensar que as cidades tinham sobre~do~uma. função _P~líti_:a e ~ilitar e que havia tôda uma orgamzaçao cu1a estratiflcaçao ~ocial se firmara: havia a capital real, com seus sacerdotes e magistrados, sua sala do conselho que era, talvez, mui simplesmente a casa dos homens· havia Sucupira, habitada pelo irmão do rei e praça forte, onde ~ preparavam os soldados para a defesa da confederação; havia as administrações dos diversos quilombolas, sedes dos potentados; e, finalmente, a massa trabalhadora rural que vivia constantemente em seus pequenos pomares, afastados uns dos outros, não indo à cidade senão em casos de ataque dos brancos. , Ao lado das informações que temos sôbre o habitat, possuimos outras relativas ao trajar dêsses negros fugitivos. Quando do envio de embaixadores dos Palmares ao governador, o aspecto dos negros de tal maneira surpreendeu aos portuguêses que êstes nos deixaram uma descrição detalhada. Eram bárbaros nus o sexo coberto, uns trazendo a barba trançada, outros com barba e bigodes postiços, outros, enfim, inteiramente barbeados. Todavia não sabemos se essas distinções correspondiam a sobrevivência~ tribais ou a diferenças de classe, de posição social, .ou, 0 que é também possível, a sobrevivências étnicas que ten~m mudado de função tomando-se critérios de estratificação social. Em todo caso, um' fato é certo, esta estratificação social e~i~en­ ciava-se no vestir; sabemos que os chefes que eram os umcos vestidos usavam trajes feitos de tecidos roubados ou comprados aos portuguêses. Parece também que eram os únicos a ter fuzis. Os outros negros eram armados de arcos e flechas, punhais ou cimitarras. ( 49 ) Sua ~conomia era complexa. Os homens se dedicavam à caça e à pesca. Laert encontrou em sua expedição armadilhas abandonadas na floresta, e Rocha Pitta nos fala de um lago abundante de peixes perto do qual foi construído u!11 quilomb?. Praticavam a agricultura, e, ao que parece, uma agricultura me10 individualista, meio coletiva. A propriedade das terras era familiar, mas tem-se a impressão de que tôda a aldeia se entregava (49)

Sõbre o traje, ver Rocha PITl'A, op.

ctt., p. 237.

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às lides agrícolas. Em verdade, Barleus nos diz que o trabalho era feito duas vêzes por ano, primeiro para a plantação e a cultura, depois para a colheita do milho. O que indica o caráter coletivo desta economia é o fato dêsses dois tipos de trabalho agrícola se processarem cerimonialmente, seguindo-se um período de repouso de 14 dias em que os habitantes se entregavam ao prazer de festas religiosas, diríamos nós, talvez mesmo de sacrifícios agrários, como hoje ainda existe entre os bantos africanos. · Dessa forma, a economia dos Palmares se opõe radicalmente à econ~mia dos co!