Re-Evolução da Psicanálise Caps. 1 a 5

Re-evolução da Psicanálise. O interesse é indicar que o pensamento psicanalítico, como qualquer pensamento que proceda e

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Re-Evolução da Psicanálise Caps. 1 a 5

Table of contents :
1. ELA CANJA ERA
2. EVOLUÇÕES DA PSICANÁLISE
3. PSICANÁLISE E PORNOLOGIA (A Transa Mística da Obscena Senhora H)
4. O LUGAR TERCEIRO DA PSICANÁLISE
5. SEM DÚVIDA SEM DÍVIDA SÓ DÁDIVA

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Oscar ALHEIROS

A VER NOVAMENTE A Re-evolução da Psicanálise

– 2022 / 2023 –

Que o DEUS compassivo e amoroso, A VERDADE, conceda a mim, e a todos que lerem este livro, que encontremos A VERDADE dentro de nós mesmos, e nos tornemos conscientes dela. Amém. MESTRE ECKHART

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Sumário 1 ELA CANJA ERA Epistemologia da NM é a de Escher: a mão que desenha a mão que a desenha – Teoria das Formações: todas as manifestações do Inconsciente interessam – Parâmetros e paradigmas do século XX são desenhados demais – A era de Lacan já era e era canja – Ordem paradigmática atual: reciprocidade na Transa entre as formações de uma pessoa e do mundo – No Quarto Império, amplia-se o campo do possível, trata-se do porvir. Ʃ Ʃ Ʃ

Análise de uma pessoa: considerar as formações em exercício e mostrar seus movimentos na pressão do Inconsciente – Escuta: o que vem de lá para cá. Ʃ Ʃ Ʃ

Teoria estrutural sabe o que é a estrutura, Teoria das Formações não sabe quais formações estão em jogo, é caso a caso – Paradigmas anteriores achavam que podiam prever o porvir – Falta de rosto do porvir apavora os não-pensantes, que correm para trás procurando um desenho para ele – Deus é imortal. Ʃ Ʃ Ʃ

Todo conhecimento é precário e provisório – Instalação de um Quarto Império implica uma virada no sintoma da língua – Nova tecnologia terá que rastrear não apenas o que a pessoa faz, mas também o que não faz. Notas: (1) Psicanalhistas – (2) Operamagna de Whitehead, Process and Reality. ↓

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2 EVOLUÇÕES DA PSICANÁLISE Pensamento psicanalítico é work in progress – Obra de arte é referência para a prática e a teoria analíticas – Abordagem ambígua de Lacan de O arrebatamento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras – Para a NM, seguindo a evolução da psicanálise, o caso Lol pode ser referido à Tanatose, e não à possessão demoníaca, histeria ou psicose – Caso Lol: fantasia sexual de ménage frustrada e arrebatamento místico abrupto. Ʃ Ʃ Ʃ

Composição de O Arrebatamento de Lol V. Stein: experiência tanática em narrativa maneirista – Evolução da psicanálise implica reconsiderar o ápice dos processos psíquicos, e não apenas as mudanças de paradigma. Ʃ Ʃ Ʃ

Fantasia Originária está no mesmo lugar da Alei – Necessário cruzamento da Mística com a Pornografia como confluência da Fantasia com Alei. Ʃ Ʃ Ʃ

Notas: (1) O interesse de Pierre Janet sobre as relações entre economia psíquica e êxtase religioso – (2) A noção medieval de Synderesis.

3 PSICANÁLISE E PORNOLOGIA (A Transa Mística da Obscena Senhora H) Algoritmo d’ALEI (Haver Desejo de não-Haver) = Fantasia Originária – Hilda Hilst, a Santa Teresa de Campinas. Ʃ Ʃ Ʃ

Hilda Hilst: a multiplicidade em fluxo, crivada pelo estado de perplexidade diante do mundo – Uma ascese floemática – Transcendentação místicoerótica dos personagens/Hilda.

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“Epistemologia” de Hilda Hilst – Estatuto místico da psicanálise – “As mãos desenhantes”, de Escher: a mão que desenha a mão que a desenha – Hilda Hilst: “olhar as coisas com o olhar que as cria”. Ʃ Ʃ Ʃ

Conhecimento é quiasmático, e não subjetivo – Hilst e Eckhart – Deus=Eu: as duas posições se desenham uma à outra – Hilda Hilst: o colapso do problema filosófico imanência / transcendência. Ʃ Ʃ Ʃ

Estatuto místico do Inconsciente e estatuto místico da psicanálise – Georges Bataille: erotismo e transgressão – Hilda Hilst: transa em Revirão entre a pornologia e o aturdimento místico de última instância. Ʃ Ʃ Ʃ

Explicitação da fantasia e do sexual como conhecimento. Ʃ Ʃ Ʃ

O viés da Hilda mística – Experiência erótica marcada pelo lugar da solidão: um Eros divino. Ʃ Ʃ Ʃ

Hilda Hilst e conceitos e/ou lógicas importantes da NM. Ʃ Ʃ Ʃ

Emergência do Quarto Império: colheita da mística – Brasil: situação de perplexidade. Ʃ Ʃ Ʃ

Notas: (1) Novilíngua – (2) Teofagia, Heterofagia.

4 O LUGAR TERCEIRO DA PSICANÁLISE Não-Haver: o simétrico fatalmente desejado por Haver que não se entrega como fatalidade requerida porque não há – Haver: anterior a qualquer partição; Ser: âmbito das formações cindidas – Psicanálise: Lugar Terceiro 5

em relação às oposições de mundo e a seus sistemas de valoração – Roteiro: (1) Retraçar o que Dany-Robert Dufour descreve como recalcamento do pensamento ternário no Ocidente. (2) Sumariar algumas das polarizações em torno do vitorioso binarismo de matriz grega. (3) Trazer o pensamento oriental à conversa – notadamente o chinês –, destacando proximidades e diferenças. (4) Considerar a razão egípcia que – junto com a chinesa, a grega e a psicanálise – compõe o tetraedro das razões desenhado por MD (2003).

5 SEM DÚVIDA SEM DÍVIDA SÓ DÁDIVA Teoria da Transa: Teoria do Conhecimento – Ipsismo: exercício de suas próprias formações – Altruísmo, mérito / demérito, agradecimento / gratidão – A lorota do outro, a veracidade – Reconhecimento, respeito, amor / ódio – Tianxiá e a política da psicanálise. ƩƩƩ

Considerações sobre o termo Idios – Ipsismo: exercício das próprias formações de uma IdioFormação (Pessoa). ƩƩƩ

Outro: paranoicamente projetado como um “alguém” transcendente – Paranoia do Terceiro Império no Ocidente: suposição de ter a posse da Verdade – Não há Geist hegeliano ou deus Logos olhando por nós – Quarto Império exige abandono do funcionamento paranoico e aceleração de postura Metanoica. ƩƩƩ

Antropofagia

(Oswald):

Modo

de

funcionamento



Heterofagia:

Antropofagia livre de resquícios do Terceiro Império. ƩƩƩ

Vontade ipsista de comer as diferenças – Funcionamento heterofágico das IdioFormações. 6

ƩƩƩ

Terceiro Império: reversão da Dádiva em Dívida – Soberania: produção perene, não transmissível diretamente, exercício pessoal intransferível – Soberania ≠ autarcia. ƩƩƩ

“São Genet”: o Soberano da Masturbação – Tesão de cada um: sempre imundo

e

sagrado

(destacado

e

validado

pela

requisição

da

HiperDeterminação que desautoriza mundo como regrador dos tesões) – Genet: O que se masturba ali? Que algoritmo ali roda? Que Revirões descreve? ƩƩƩ

Paradigma Escher: explicitação do Paradigma Sexual da psicanálise – Fato de toda relação ser sexual e fracassada funda o looping eterno da mão que desenha a mão que a desenha – Dívida de salvação (O Filho): index de um suposto saldo deficitário de todas as transas – Tesão como pura dádiva.

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1 ELA CANJA ERA A epistemologia aqui em ação é a de Escher, tal qual apresentada pela NovaMente1: a mão que desenha a mão que a desenha – sem sujeito ou objeto. Isso também diz respeito ao mundo e ao entendimento que a NM faça do mundo a cada momento. Há o mundo e a NM: a mão que desenha a de cá que desenha a de lá – no mesmo estilo epistemológico. O tema a ser tratado hoje é: ELA CANJA ERA E CANTO DO CISNE (OUTRAVEZ NOVAMENTE) Essa era já era. Essa tchurma já flupou. AKbocetudo. Se não quiser m’escutar, hikicomori pra você também. A REALIDADE come o cuzinho da História. Jeito talvez seja ser hikicomori. Vato mano cool // em fiano cool // Procurar na IdadeMedia alta e tardia os Precursores da MetaPsicologia. É preciso sempre lembrar que, do ponto de vista da Teoria das Formações da NM, interessam todas as manifestações do Inconsciente. Elas serão tomadas como formações a serem 1

A partir de agora, referida como: NM. 8

consideradas. Não há preconceito contra, por exemplo: os arquétipos, de Jung, pois são formações que ele detectou com alta repetição no campo dos sintomas; os signos do Zodíaco, que também se repetem na cultura e são formações sintomáticas que influenciam a mente das pessoas; as formações profissionais, que são cacoetes sintomáticos; os ditames culturais; quem você pensa que é... Por que se coloca a questão: ELA CANJA ERA? Se entendemos com um mínimo de clareza o mundo que está acontecendo hoje, chegamos à conclusão de que aquela Era anterior passou, já era – e era canja. Dado que os parâmetros e paradigmas de referência continuavam primordialmente em exercício e podiam ser referência razoavelmente confiável, isso tornava a coisa relativamente mais simples, muito mais simples do que acontece agora. Além do mais, as referências anteriores – que não devemos criticar, pois, a seu tempo, eram excelentes (seja Freud, Lacan ou mesmo outros intermediários que colaboraram com algumas coisas) – se montavam sobre paradigmas e parâmetros muito desenhados e com certa permanência no mundo até o final do Terceiro Império. Ora, justamente a entrada de Quarto Império que vivemos agora é Oespírito, ou seja, da relação direta com a Informação em seu estado singular de cada informação: a excessiva velocidade da comunicação e uma formação olhando para outra com noção de absoluta relatividade.

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Então, não adianta tomar determinada formação para ser paradigmática da situação atual. Por isso, Teoria das Formações. Como considerar a cada caso a formação lá em jogo? Como analisá-la, ou seja, separar com o máximo possível de clareza suas componentes? Isto, para que se esclareça que qualquer formação não passa de uma construção sintomática. Então, nessa era – que já era –, vista do ponto de vista de nossa atual problemática terrível, era canja tomar o paradigma do momento para entendimento do que ocorria. O paradigma de Freud era a emergência científica do século XIX e um pouco adiante. A operação de Lacan foi dentro da emergência científica do século XX. Freud assentado sobretudo na vertente histérica, e Lacan na vertente paranoica. Estamos hoje na vertente Progressiva, foi o Mundo que a impôs. Daí o humor da frase ELA CANJA ERA, a Era era canja. Além do fato de nosso querido Dr. Lacan estar datado. Hoje, não há disponibilidade científica senão o que se entenda como o que quer que possa sustentar uma Teoria das Formações. No passado, temos entendimentos da teoria da informação, de ordem linguística, etc., de que podemos lançar mão, mas sem estar aprisionados no paradigma a que essas coisas se referiam. Lá há muita coisa disponível enquanto pequenas construções de pensamento, mas não enquanto paradigmas. Nossa ordem paradigmática é a reciprocidade na Transa entre as formações de uma pessoa e do mundo. É isso que foi tomado com a representação da intuição de Escher. São formações transando com formações... 10

e resultando em formações, ou, também, no entendimento das formações em jogo nessa transa. Análise é isso. As ideias de informação e de cibernética, por exemplo, podem ser próximas do conceito de Art-culação na NM, mas o conjunto das formações em jogo na Teoria das Formações é bem maior. Se tomarmos a emergência do que se oferece à nossa consideração, não poderemos indicar formação alguma como paradigmática fundamental. É o que vier, é ad hoc: quais formações aparecem como componentes agoraqui? Algo claro é o Terceiro Império ter perdido a credibilidade em pensamento, só tem credibilidade política, comportamental, e justo isso é a catástrofe que dizem estar ocorrendo hoje. Não surgiu ainda uma formação capaz de legitimamente representar o Quarto Império. Ele está em processo. A barbárie aparece aí porque, na falta de rosto, as pessoas procuram e se agarram a rostos conhecidos como se fossem salvadores. Estão ferradas, pois não vai adiantar. Além disso, a ideia que temos de catástrofe – catástrofe do Terceiro Império, por exemplo – vem por via de falências na situação atual. Ainda não aconteceram as verdadeiras catástrofes, aquelas que vêm pela fundação e instauração de Quarto Império, de algo novo. Por exemplo, esse acontecimento inteiramente desconhecido que está sendo feito aqui e agora neste tipo de estudo e consideração. Há também que refazer o entendimento sobre o campo do possível, pois até o final do século XX era definido por 11

assentamento num presente, num atual. Possível é o que se desenrolará a partir da capacidade de suspensão de recalques. Nesse sentido, é performático. Definir o possível pelo atual, é defini-lo a priori. Logo não é possível, já está dado, aprisionado num sistema de recalque qualquer que esteja funcionando. Pensar assim é pouco. Possível não faz par com atual, há, sim, que fazer valer a ideia de recalque, que sempre mapeou o possível em relação ao impossível. Nem mesmo o que se chama virtual está valendo. O nome correto é: o porvir. E mais, diante de qualquer decisão em sua separação, em sua bifidização, há um campo de possibilidades que ficaram não acontecidas como recalque. Antes do acontecer, há uma decisão, algo vem, mas o outro alelo da situação se recalca. Não são virtuais, pois são absolutamente efetivas, ativas, tanto é que o Inconsciente as faz comparecer como sintoma. O Inconsciente não presta, é mau-caráter, vai à forra do que você fez, vai te perseguir. Ʃ Ʃ Ʃ

A cada consideração de um analisando como Pessoa – ou na consideração do que ocorre no mundo como Clínica Geral, que é outra coisa –, o que é a ser levado em conta são quais formações lá estão em jogo, como elas determinam os movimentos e os comportamentos, etc., e como se pode apontar essas formações como comprometidas com a situação. A tomada de consciência de 12

que essas formações estão determinando as pessoas – ou o mundo – é que, analiticamente, pode levar à decomposição em suas partes, em seus componentes. É por aí que passa a análise. Ao escutar um analisando, vê-se que, além de todas as conjugações com seu Inconsciente, ele começa a exprimir uma vertente sintomática forte no sentido do entendimento dos signos do horóscopo, por exemplo. Ele é praticamente conduzido em sua vida por esse tipo de formação. Há que escutar essas formações, entendê-las e tentar analisá-las, reduzi-las a seus componentes históricos, composicionais, significativos, etc., para a pessoa entender que está metida num campo de formações. Uma vez isso entendido, ela poderá se afastar do campo, tornar-se neutra ao máximo diante das formações que mais a determinam como organização mental. Agir assim é uma radical diferença para com toda a história da psicanálise. Trata-se, portanto, de considerar quais formações estão em exercício, como analisá-las, como mostrar seus movimentos na pressão do Inconsciente. Portanto, não é canja. Era muito mais fácil quando se projetava um paradigma de nossa cabeça sobre uma questão. A escuta precisa virar escuta mesmo, é o que vem de lá para cá. O que é isso que está como formações diante das minhas formações? Que solução se pode dar aí? Como ana-lisar isso em seus componentes mínimos? Não é preciso esforço algum de catequese, pois quando o analista consegue – o que é difícil e frequentemente recusado pelo analisando (é o que Freud chamava de resistência) – ana-lisar as 13

formações em jogo (ou seja, o simples fato de situar essas formações,

seus

componentes,

suas

sub-formações,

suas

correlações) e o analisando se permite escutar, o sintoma já está dissolvido. Ʃ Ʃ Ʃ

Quanto à consideração desse panorama anterior e da canja que lhe é inerente, a título de ilustração, podemos tomar um autor não muito conhecido entre nós, mas encarecido por Lacan e comentado por MD Magno2 em 1984, Philippe Nemo. Em seu L’Homme Structural (1977), ao tratar da propalada morte do homem, destaca três figuras dessa morte: (a) o sujeito, aquele que diz “eu”, um eu psicológico (e morto por Espinosa ao colocá-lo como “parte da natureza”); (b) o espírito (agora a oposição não é mais homem / natureza, e sim: espírito / natureza) – Hegel é quem está na ponta dessa morte; e (c) o coração, aquele que está sob o impulso do desejo, cuja raiz está no sexo (o homem é visto como dividindo suas características com a animalidade), e aí temos Freud e Foucault. Diz ele ainda que, desde a época das luzes, vivemos “num campo filosófico hegeliano, clivado por essas duas determinações do homem, ser-natureza e ser-discurso”. A proposta de seu livro é a de conceber um homem estrutural pensado não a partir do 2

MD Magno, autor da NovaMente, que, daqui por diante, será citado como: MD. 14

estruturalismo, mas da ideia de estrutura trazida por Lacan. O que vemos é que mesmo essa ideia, que parecia promissora naquele momento, estava esteada num paradigma único e bem definido e ele não tinha se dado conta do processo que estava por chegar, ainda era cedo. Ou seja, era canja. Para ver isso, basta comparar a teoria estrutural com a Teoria das Formações. Aquela sabe o que é a estrutura, esta não sabe quais formações estão em jogo. O entendimento das formações em jogo é caso a caso. Temos apenas a epistemologia de Escher: as formações, digamos, da pessoa e as formações do mundo se configurando reciprocamente. Há, portanto, o modelo do estruturalismo numa ponta e o modelo transitivo e transativo de Escher noutra. É uma história grande de acontecimentos que movimentaram o campo dos conhecimentos. No meio do caminho, a canja foi ficando rala devido alguns pedaços de articulação que colaboraram para isso. Por exemplo, cibernética, complexidade, fractais, avanços na cosmologia, estudos sobre o Primário, ora distinguindo, ora mostrando conexões em sua composição. O paradigma anterior definia, confiávamos nas distinções e definições, e o mundo parecia funcionar consoante a isso. A Teoria das Formações e o modo gnosiológico de Escher são articulações bem maiores que o embaralhamento que a segunda metade de século XX produziu tornando rala a canja. Efetivamente, o convite é à consideração do que comparece suspendendo toda suposição prévia do que seja o que comparece. 15

A ideia agora, como dito antes, é de que o porvir está em jogo, está ampliado, não se sabe mais qual é. É justamente essa falta de rosto do porvir que apavora a extrema maioria ignorante, que fica correndo para trás procurando um desenho para ele. É a resultante do momento atual enquanto apavoramento dos não-pensantes, que não têm ferramenta, formação paradigmática ou disponibilidade mental para ficar na disponibilidade da emergência das formações. Portanto, correm em busca de um rosto conhecido. A ferramenta da Pulsão freudiana, tomada como “Haver desejo de não-Haver”, seria um análogo eloquente desse não ter rosto, que é eco de um desejo não realizável em última instância. O pulsional coloca os movimentos de conhecer, de transa, sob a égide de um desejo de Impossível Absoluto, que é atrator e, ao mesmo tempo, entrega um trauma fundamental. E isso leva a falar mais dele como atrator de um porvir cujo rosto não sabemos qual é. Donde a ideia de morte de meados do século XX para cá, que retorna nas escalas em que tem comparecido desde a recente pandemia. Mesmo impensada enquanto tal, enquanto morte existente – sabemos que o psiquismo não entrega essa experiência –, ela vem atualmente sendo rondada para mostrar o Impossível aí em jogo. Isto, seja por sua presença em escalas desconhecidas anteriormente, seja como elaboração na série: “Deus morreu”; “o homem morreu”; “a arte morreu”; e “a morte morreu”. Estamos, portanto, na situação de atravessar o entendimento de que não há morte, e ao mesmo tempo a morte vem sendo reclamada como 16

metáfora ruim do Impossível. É, aliás, o que estava em Freud ao falar em pulsão de morte. Fazendo um parêntese, o Deus que morreu foi aquele boneco configurado por certa paradigmática. No sentido da NM, se quisermos ficar na tradição ocidental, é possível continuar nomeando algo como Deus, sem nada ter a ver com o boneco antigo e que mesmo ultrapassa o Deus de Espinosa. Para ele, era Deus sive Natura, para a NM é Deus sive Habere, que é antes de Natura. E se é possível nomear essa função como Deus, temos que conceber que Deus é imortal. Ele pode quase tudo, menos morrer. Haver não morre. A formulação “Deus morreu” pertence ao paradigma velho, da canja. Deus era canja, quero ver como lidar com Ele agora. Ʃ Ʃ Ʃ

A analogia das mãos de Escher – a mão que desenha a mão que a desenha –, passando para a noção genérica de formações em transa, é só o que temos. Por isso, todo conhecimento é precário e provisório. É um processo sem começo nem fim porque as formações em transa mudam. Nesse sentido, é a transa que interessa. O resultado será sempre precário, embora possa ser bastante útil e funcional. E mais, o provisório pode ter longa duração. Por isso, vira sintoma bravo e passa a ser projetado sobre o mundo. Por exemplo, a língua que utilizamos, seus morfemas, semantemas e sintagmas estão sobretudo situados nos Segundo e 17

Terceiro Impérios. É claro que há as exceções de poetas e criadores como Joyce, Pessoa, etc. Lacan já dizia que uma língua é um sintoma, e quando o poeta percebe que o sintoma impede que diga o que pretende, ele a torce. Para a instalação efetiva de um Quarto Império, a língua terá que sofrer uma verdadeira virada. Já está sofrendo, aliás. Basta observar a crescente quantidade de semantemas estrangeiros em nossa língua. A televisão expõe a cada dia inúmeros erros de português escritos e falados. Então, a língua não está apenas sendo torcida, ela está sendo desdenhada. É desconfigurada o tempo todo nos aplicativos em que as pessoas digitam com seus polegares, incluem emojis, sons, etc. Assim, em vez “minha mente”, “meu cérebro”, seria o caso de dizermos “o que acontece por aqui é...” Ou seja, aqui e agora está valendo, pois não é em todo lugar e a toda hora que está acontecendo. Aqui e agora é o nome do que é ocasional. Outro instantâneo provisório da canja que ainda vigora pode ser identificado no que a tecnologia, via algoritmo (0/1), consegue minerar da ordem sintomática das pessoas e de seus cliques, de suas entradas on-line, de suas compras e vendas, de suas manifestações de opinião. Essa mineração está, na verdade, entregando uma enorme Neo-etologia. Ela tem camadas de programação de captura dessa Neo-etologia, sempre com o propósito de auferir lucros. Operando assim, a tecnologia dá a parecer que isso se autoalimenta e que durará muito tempo ainda, pois não são visíveis as 18

possibilidades de comoção. O rumo, então, parece ser o da mudança da tecnologia para a situação não permanecer como está. Ela terá que rastrear não apenas o que a pessoa faz, mas também o que não faz, se quiser entregar algo que tenha a ver com a pessoa. É o caso de pensarmos no algoritmo que determina a fantasia de cada um, que é historicamente construído. Se alguém consegue relatar seu tesão, o que é raro, ou seja, mostra qual seria a composição do algoritmo de sua fantasia, veem-se nitidamente as peripécias pelas quais aquela pessoa passou para construir esse algoritmo que determina seu tesão. Não é qualquer um. Se fosse, todos teriam o mesmo algoritmo. Daí que LGBTQIA+etc. é besteira, pois a sexualidade de cada um é sui generis. “Lugar de fala” e coisas quetais, tudo isso vai acabar. A morte é um santo remédio, essa gente toda vai morrer. Notem que só a Teoria das Formações pode ter cacife para dizer desse modo. Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1 Há raros PSICANALISTAS e uma multidão de Psi-Canalhistas. Sofre o leigo por não saber distingui-los.

NOTA 2 Há muito que me sugiro ler a operamagna de WHITEHEAD Process and Reality. Agora finalmente me lembrei de querer. É uma tonelada de raciocínios no entanto deliciosos de curtir. Quem não quiser deglutir as 351 19

páginas, leia pelo menos a última parte (V) Final Interpretation (p. 337 a 351) com 2 Capítulos: The Ideal Opposites e God and The World. O que vamos encontrar é: 1) A Bifididade do Haver; 2) Deus = Haver – e seu clinâmen nos Seres: # “No entity can be conceived in complete abstraction from the system of the Universe”. # “He (God) is the lure for feeling, the eternal urge of desire".

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2 EVOLUÇÕES DA PSICANÁLISE O capítulo de hoje tem a ver com o subtítulo deste livro: Reevolução da Psicanálise. O interesse é indicar que o pensamento psicanalítico, como qualquer pensamento que proceda e tenha processo, é work in progress, com transformações de acordo com os momentos subsequentes. Isto, para lembrar que a psicanálise tem evoluções – ao contrário da vocação eclesiástica das instituições psicanalíticas, que acabam formando pequenas igrejas em torno de um texto, ao invés de terem atenção à tensão do pensamento quanto ao que o Inconsciente possa estar registrando a cada momento da história. No sentido de exemplificar esse processo evolutivo, tomo o livro, melhor dizendo, a própria personagem de Marguerite Duras em Le Ravissement de Lol V. Stein (1964), cuja tradução correta é O Arrebatamento de Lol V. Stein. Algumas edições por aí fizeram o erro de traduzir ravissement por deslumbramento (caso da editora Nova Fronteira, em 1986), mas não há deslumbramento, e sim arrebatamento no sentido de a pessoa ser arrebatada, levada para o alto ou para fora. O texto de Duras é interessante por dois motivos, pelo menos. Primeiro, por seu procedimento ser significante e 21

preciso quanto à descrição desse arrebatamento. Segundo, por Lacan ter feito uma homenagem a Marguerite Duras escrevendo sobre esse texto em 1965 (Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein). Sempre lembrando que, apesar de respeitar o pensamento de Lacan, a própria Duras parece não ter concordado muito com o que ele escreveu, achou meio esquisito. E veremos que, realmente, não é para concordar totalmente. Cito agora algumas frases de Lacan nesse e em outros textos seus que dão garantia ao psicanalista e ao teórico da psicanálise de sempre procurar forte referência nas obras de arte: os artistas, quando o são, quando são poetas, têm certa antena para captar os movimentos do Inconsciente e prescrevem certas formações que, bem teorizadas, são importantes para a psicanálise. Diz Lacan: “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de retirar de sua posição, se esta lhe for reconhecida como tal, é de se lembrar com Freud de que, na sua matéria, o artista o precede sempre e, portanto, ele não deve brincar de psicólogo onde o artista lhe abre o caminho”. Diz ele também que “aos analistas resta tomar conhecimento dos novos sintomas que a arte coloca na obra”, e que “há antecipação da própria obra artística relativamente à prática e à teoria analíticas”. Vê-se muito bem o quão ele não era bobo a esse respeito. Daí o interesse, além da construção teórica de Lacan, de retomar o texto de Duras hoje. E não é preciso retomá-lo muito longamente para ter o entendimento analítico, em evolução, sobre ele. 22

Duras tem outros textos mais conhecidos, como Moderato Cantabile (1958) e o roteiro do filme Hiroshima, mon amour (1959). Ela declara mesmo que “todas as mulheres de meus livros, qualquer que seja sua idade, decorrem de Lol. Isto é, de certo esquecimento delas mesmas”. Alguns autores também apontam que os personagens femininos mais notados em seus livros exibem certo estado de ausência. Em termos da evolução da psicanálise, posso pensar que se um místico, medieval ou recente, e mesmo um exorcista da Igreja Católica considerassem a personagem de Lol, certamente diriam que ela estava possuída (o místico talvez não o dissesse, mas o exorcista sim). E quero também supor que, dado o intricado do texto, se fosse considerado por Freud (que, é claro, não estava vivo quando o livro foi publicado), ela seria colocada na conta da histeria. Dentro do paradigma freudiano, não seria nada difícil colocá-la nessa conta. Já Lacan fica deveras impressionado com o texto de Duras e a personagem de Lol. Diversos autores, analistas inclusive, que consideraram o texto de Duras em intromissão com o de Lacan acabaram por fazer observações cada vez mais acirradas no sentido da psicose de Lol. Isto, como se o texto de Lacan estivesse indicando psicose para ela. Em momento algum lá comparece essa denúncia de psicose. Por quê? Porque ele era muito esperto, mesmo que em seu paradigma o ápice dos processos psíquicos fosse no sentido da psicose. Como é sabido, diferentemente do de Freud que era histérico, seu paradigma era psicótico. Sobretudo, no sentido da paranoia crítica 23

que ele aprendeu com Salvador Dalí. Paranoia esta que configura claramente o século XX. Lacan se deu conta disso e a tomou como modelo de articulação de pensamento na psicanálise. Seu texto sobre o Ravissement é de 1965 e De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose é de 1958. Ou seja, o conceito de foraclusão do Nome do Pai já estava em exercício há anos, mas não é tomado por Lacan no texto. No entanto, en passant, sabe-se lá por que, talvez por comparação, ele cita Marguerite d’Angoulême. O que d’Angoulême, aquela mística ligeiramente chegada a uma pornografia leve, está fazendo num texto sobre Lol? Ela era rainha de Navarra, influenciada por Nicolau de Cusa. Isso tudo para insinuar e mesmo indicar que, do ponto de vista da NM – que é a ferramenta que utilizo aqui –, segundo o princípio de evolução da psicanálise, não se trata de possessão demoníaca, de histeria ou de psicose. Do que se trata no caso de Lol (donde a estranheza de Duras quanto ao texto de Lacan)? O caso de Lol é referível a uma formação teórica que não consta do paradigma de Lacan. O mais próximo que ele tinha para abordá-lo era certa indicação de psicose. O que não tinha era a categoria que a NM pôde propor: a Tanatose. Indico, portanto, que o caso de Lol, no progresso da psicanálise, é descritível no campo e no conceito da Tanatose. Lembro aqui que os textos de MD a esse respeito têm início em 2003 (ela foi longamente retomada em seus SóPapos de 2019 a 2021). Pregressamente, a Tanatose foi um conceito da zoologia por ser um artifício que cabe no Primário de certos 24

animais, os quais, quando submetidos a uma extrema tensão mortal, fazem-se de mortos. No caso da NM, o que é a Tanatose? É uma afecção psíquica derivada da incompetência da pessoa em lidar com a última instância de seu movimento psíquico no regime radical d’Alei, Haver desejo de não-Haver, e, portanto, no regime radical da própria Fantasia Primordial, da Fantasia Originária – que é o que os místicos sabem fazer. Mediante algum preparo, longo, de exercícios espirituais e de certa referência teórica – religiosa, teológica... –, eles se dão conta desse processo e o exprimem de maneira artística, e mesmo quase que científica. Quando a pessoa escapa para esse processo, é arrebatada pela última instância sem preparação de alguma espécie e não se referencia a nada para esse movimento psíquico, ela cai na Tanatose. Ou seja, é arrebatada quase que para fora de si mesma e fica uma espécie de zumbi. Ela vive o cotidiano, mas, como a própria amiga de Lol no texto, Tatiana, chama a atenção, desde a infância, ela parecia estar meio ausente. Ou seja, Lol é um caso de misticismo gorado. Como é gorado, não deu certo, caiu na Tanatose e fica parecendo um morto-vivo, o que não impede que, eventualmente, tenha algumas crises violentas que podem parecer com crises psicóticas – mas não são. Ocorre que, naquele lugar do baile, T. Beach, Lol se depara com sua fantasia e, se fosse um pouco menos arrebatada e mais erotizada, partiria imediatamente para um ménage, que era tudo que queria. Mas como não tinha condições para isso, foi expulsa dessa possibilidade e posta como 25

terceiro excluído. Esse é o momento fecundo em que sua tendência mística nunca realizada a arrebata para fora de si e da situação inteira numa posição de Tanatose. Não há como confundir isso com ataques histéricos ou delírios e surtos psicóticos. Na verdade, é um tropeço não sacado do Inconsciente sem preparo e sem acolhimento: um tropeço no Haver como Nada. Daí que muitas pessoas consideradas psicóticas simplesmente estavam nesse estado. Isso é visível quando, do ponto de vista da exposição clara do processo – como em Nicolau de Cusa, Mestre Eckhart, Santa Teresa, João da Cruz e em Marguerite d’Angoulême (seja qual for o texto que ela tenha escrito) –, tomamos conhecimento de certos misticismos não muito realizados. O momento do baile, aliás, já foi um segundo momento. A fantasia já tinha se montado antes, mas agora se apresenta diante de Lol. Ela se oferece a ser realizada concretamente, é frustrada, e ela é expulsa. A cena inicial da fantasia terá se desenhado bem antes, na infância. Agora ela apenas se deparou com a possibilidade de sua realização. Ela tinha duas saídas, ou entrava na sacanagem, ou fugia para o misticismo. Não fez nenhuma delas, e caiu na Tanatose. Foi a “solução” que arranjou. Péssima, porém solução. Note-se, quanto a isso, que não é ela que narra sua história. Se fosse, virava Santa Teresa. É um terceiro que narra que aquilo teria se passado assim, pois é a impressão que ela dá. Já os místicos sabem o que buscam, só não sabem o nome, é-lhes impossível dizer

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o nome. É nesse momento aí que Duras desconfia da tese de Lacan. Ela entendeu melhor a Lol. Ʃ Ʃ Ʃ

Em termos de pensar a estrutura do livro, é possível destacar pelo menos três tempos na composição da narrativa. O narrador, Jacques Hold, é bastante esperto. Em vários momentos diz que conta, inventa, supõe. É narrativa dentro de narrativa, que vem dele com cruzamento de tempo: ora parece que o acontecido está no futuro, ora que o futuro está no passado. São jogos temporais numa narrativa em Revirão. A arrumação textual é maneirista. É a descrição de uma personagem com Tanatose, mas o modo de apresentação do quadro expõe o tempo todo as composições em avesso: Lol vendo Tatiana, Tatiana vendo Lol na inversão, Jacques Hold vendo as duas. É uma verdadeira suruba de composição na cena, com o Hotel du Bois como referência, e o leitor fica na dúvida se o que se narra está sendo fantasiado por Lol ou se, de fato, está acontecendo e é ela quem está assistindo. Ou seja, teríamos aí uma situação de experiência tanática descrita numa narrativa maneirista. Notar também que Jaques Hold, que é o narrador – como vimos a saber lá perto do meio do texto –, se integra ao personagem que nele se constitui após a visita de Lol à casa de sua amiga de infância, Tatiana. Aí ele já não é mais quem era antes, apenas amante de Tatiana, e passa a se entender irrevogavelmente como três: Lol, Tatiana e Jacques. Duras, o tempo todo, está lidando com 27

uma fantasia ternária, de ménage à trois. O arrebatamento em jogo no texto toma todos os envolvidos – Tatiana, menos – e é também arrebatamento do leitor. Ela percebeu como apontar o arrebatamento místico não realizado e tornado sintomático com impressionante clareza. E mais, aponta essa vocação mística para todas as mulheres. O que não deixou ser certa deixa para Lacan conceber seu feminino. Aliás, uma bobagem, pois São João da Cruz não era mulher. A vocação mística nada tem a ver com o sexo anatômico da pessoa. Tem a ver, sim, com Alei do psiquismo, Haver desejo de não-Haver – que vale para qualquer IdioFormação. A aproximação da fantasia borra necessariamente a linearidade temporal das ocorrências, antes e depois já não fazem sentido. Em MD, como dito antes, há a possibilidade de situar a psicanálise freudiana a partir de um paradigma histérico, e a psicanálise de Lacan a partir da psicose. Pensar assim, em termos de paradigmas, organiza bem a própria história da psicanálise, é uma forma de contá-la. Só que há mais em jogo quando se pensa em termos de ápice dos processos psíquicos, pois não é apenas uma questão teórica ou paradigmática, e sim o reconhecimento de haver extremação dos processos psíquicos. Não apenas Lacan não incluiu a Tanatose como não deu boa resposta, apesar do seminário sobre as mulheres (Mais, ainda, 1972-73), à extremação mística do psiquismo. Ou seja, a essa vontade de extrapolação das formações sintomáticas para a referência direta a simplesmente Haver como Deus. (É aí que mora 28

o tal Deus em sua radical indiferença. Esse é, aliás, o sentido preciso da palavra caridade dos cristãos. Ela foi traduzida pela pequena e média burguesia como ato de dar coisas aos pobres, mas o conceito preciso de caridade na teologia mística é a caridade de Deus, ou seja: acolhe o que quer que, acolhe o outro em sua radical Diferença. Deveria ser o lugar do analista, se houvesse). Note-se também que Lacan como bom cartesiano trabalha esse processo na relação de sujeito e objeto, o que, congruentemente, é uma atitude paranoide (em conformidade com sua teoria, é claro). Essa vocação paranoide, sobretudo francesa, de postulação de sujeito e de objeto é clara na paranoia de René Descartes, lá no século XVII. Cito uma frase dele: “Não há nada que dominemos inteiramente a não ser nossos pensamentos”. Vêse aí o que é a alma do sujeito: a alma da paranoia de Descartes. Lacan dá um pulinho para fora com seu sujeito resvalante – mas continua sujeito, continua um cacoete francês, continua a paranoia de eu aqui e o objeto lá. Isso não existe para a NM, pois a epistemologia de seu caso foi descrita – como Lacan respeita e indica – pelo artista. No caso, mais nitidamente, pela gravura de Escher: a mão que desenha a mão que a desenha. Não há sujeito ou objeto aí. É, portanto, tolice, se não for paranoia, pensar em sujeito e objeto. Ʃ Ʃ Ʃ

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A insinuação pornográfica referida à Marguerite d’Angoulême faz sentido porque, como disse antes, a Fantasia Originária está no mesmo lugar d’Alei, de Haver desejo de não-Haver. Segundo MD, é essa Fantasia Originária que é sintomaticamente substituída na história da pessoa por sua fantasia própria, a qual, aí, já está em correlação com o borromeano de Primário, Secundário e Originário. Ou seja, a fantasia de cada um não é senão decadência sintomática da Fantasia Originária. Isso é algo que fica misturado na cabeça de certos místicos. Por isso, Santa Teresa gozava daquele jeito, conforme denunciado por Bernini em sua estátua, e São João da Cruz ejaculava nas calças sem saber por que. A realização do desejo irrealizado está no mesmo lugar d’Alei. Quando Lacan, em seu texto, faz a relação com Marguerite d’Angoulême, comenta que falou dela em seu seminário A Ética da Psicanálise (1959-60) num contexto em que tratava da sublimação e de das Ding. Diz ele lá que ela não é simplesmente uma autora libertina, e sim alguém que escreveu um tratado místico e (no capítulo X) dá a referência do historiador Lucien Febvre que escreveu sobre Rabelais de quem ela era amiga. Febvre pergunta quem é d’Angoulême: a libertina que escreveu L’Heptaméron inspirada no Decamerão, de Bocaccio; a luterana que apoiou e traduziu em versos o Comentário de Lutero sobre a oração dominical; a calvinista que apoiou inicialmente o autor das Instituições; a cristã que escreveu O Espelho da Alma Pecadora; e

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deixa a resposta em aberto. Lacan, então, recomenda a leitura de Febvre e também o cita no texto sobre Lol. Os autores parecem não ter se dado conta do cruzamento necessário da mística com a pornografia. Ou seja, a confluência das, digamos, escritas tanto d’Alei do Haver quanto da Fantasia Originária, ambas no mesmíssimo lugar, e das substituições sintomáticas que se fazem. Não consta isso nas teorias de Lacan ou de Freud. Foi preciso ultrapassar o século XX, os acontecimentos nos levarem à Zorra contemporânea, para nos darmos conta. Aí está a evolução de que estou falando. Não se pode fazer igreja de um pensamento pensante. A igreja é anquilosamento de um momento do pensamento, cujo nome correto é: retardo mental. A confluência da mística com a pornografia está inserida na ascese que MD (em 1996) designa como as Quatro Vias de Aproximação do Cais Absoluto. São vertentes de extremação – pela guerra, pela mística, pelo sexo ou pela arte – que dão no mesmo lugar. São as configurações sintomáticas da reverberação d’Alei. Portanto, no exercício do misticismo de máxima abstração ou da mais deslavada putaria chega-se ao mesmo lugar do Cais Absoluto. Qualquer experiência-limite, por qualquer via, é de topar sempre com esse mesmo lugar intransponível, bífido, revirante, no qual tudo se reencena. De certo modo, aliás, a confluência da mística com a pornografia está em Georges Bataille. Não sabemos se o erotismo dele é místico ou pornográfico.

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Embora o texto de Duras não seja pornográfico, no sentido literal, é evidente o tempo todo um tesão fluindo entre os personagens, o qual não se decanta por inteiro. Daí, talvez, o aprisionamento na Tanatose. Há três movimentos nessa narrativa tomada como maneirista. Primeiro, no baile, a perda do noivo para outra mulher – mas Lol perdeu mais do que o noivo, perdeu a transa, o ménage que era seu tesão. Segundo, o estado de ausência de si, em que tenta dar uma arrumação ao que aconteceu. E terceiro, situado na posição do narrador, Jacques Hold, numa cena de olhares, de ver, de aceitar o pedido para que a transa aconteça. É quase uma encenação Marcel Duchamp, de olhar pelos furos na porta a exibição, a teatralização da fantasia que ele quer. Teatralização que Jacques faz ao narrar. Na segunda parte do texto de Duras, evidencia-se que, na transa das formações, algo se exibe, o que não significa que se resolva na vivência da personagem, pois ela continua no mesmo estado tanático. Só se resolveria se ela partisse para uma atitude lúcida de misticismo. Mas ela permaneceu enrascada no nó do arrebatamento. Na narrativa em que Jacques Hold entra inventando e relatando, temos: “Logo depois, deixou de queixar-se do que quer que fosse. Aos poucos deixou até mesmo de falar. Sua raiva envelheceu, desencorajou-se. Falou apenas para dizer que era impossível expressar o quanto era aborrecido e custoso ser Lol V. Stein. Pediam-lhe que fizesse um esforço. Não compreendia por quê, dizia. Sua dificuldade diante da busca de uma única palavra 32

parecia intransponível. Pareceu não esperar mais nada”. Ela se perdeu sintomaticamente na Tanatose sem saber do que se trata: “...ela se tornara um deserto no qual uma faculdade nômade a tinha lançado na busca interminável de quê? Não sabiam. Ela não respondia”. O tanático, aliás, também é um atrativo em outra personagem, na própria mulher, Anne-Marie Stretter, que adentra o baile e atrai o noivo de Lol. A cena é descrita assim: “Lol, momentaneamente imobilizada, [a] tinha visto avançar, [...] aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto”. E é ela que puxa todo o acontecimento para seu lado. Repetindo, o conceito de Tanatose é importante por mostrar que grande quantidade de suposições de psicose está errada. No mais, está claro que Lol não suporta seu existir, seu dia a dia, o que talvez possa ser também referido a outra personagem, esta uma pessoa real, Virginia Woolf, cuja insuportabilidade em relação às horas era evidente. Nela, o Tanático – se o conceito for cabível aí – teria ido às vias de fato, culminando em seu suicídio. Ela lidava com a vida de modo mais leve do que Lol, escreveu uma obra portentosa, mas sofria a mesma pressão de insuportabilidade do cotidiano de ser. É a possibilidade de seu problema ser de Tanatose, realizada com o suicídio. A verificar. A verificar também a experiência de arrebatamento narrada n’A Paixão Segundo G. H. (1964), de Clarice Lispector. A diferença em relação à Lol é a própria personagem, posteriormente, ter narrado, articulado, o acontecido, ter transformado aquilo em obra. 33

Fica, então, o apontamento desse aspecto da evolução da psicanálise: não apenas o paradigma mudou, desde Freud, como, sobretudo, mudou o entendimento do ápice dos processos psíquicos, a partir da exemplaridade da mística. Com isso, ressituase também a convergência da fantasia originária – que os místicos exibem em sua ascese de Deus como Nada, ou seja, Haver – com a própria Alei do psiquismo, Haver desejo de não-Haver. Uma fantasia sexual singular é, portanto, uma maneira pessoal de cumprir Alei. Marguerite Duras, de algum modo, mostrou literariamente a vicissitude tanática disso, em seu Arrebatamento. Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1 Segue mais um aspecto da evolução da psicanálise, no intuito de saltar fora das visões eclesiásticas e pensar o campo de modo “amazônico”, no sentido que indicou MD em seu falatório AmaZonas: a psicanálise de A a Z (2008). Em seu livro La Mystique Sauvage (1993), Michel Hulin dedica um capítulo às ideias de Pierre Janet sobre como a clínica psiquiátrica poderia considerar os estados de êxtase e a experiência mística, na mão contrária da mentalidade teológica, que via neles uma punição divina ou possessão demoníaca. As reflexões de Janet sobre o tema foram organizadas em seu livro De l’Angoisse à l’Extase (1926), cujo foco é o caso “Madeleine”, pseudônimo dado por Janet a uma paciente sua, atendida em Salpetrière, duas vezes. A primeira, entre 1896-1901 (ela tinha, então, 42 anos), e a segunda, entre 1903-1904. Henri Ellenberger, em seu Découverte de

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l’Histoire de l’Inconscient (1970), também comenta o interesse clínico de Janet nas experiências religiosas mais elevadas, as místicas precisamente. Tal interesse não era sem razão. A partir de notícias autobiográficas do próprio Janet, Hulin e Ellenberger informam que ele teria passado por uma profunda crise religiosa na adolescência, que o afastou dos estudos por vários meses. Imaginou, então, construir uma filosofia que reconciliasse ciência e religião. Declarou, na velhice, não ter “encontrado essa maravilha”, reconhecendo, contudo, que sua vocação psicológica teria sido uma espécie de compromisso entre sua atração pela ciência e o sentimento religioso dos primeiros anos. Parece que Janet foi sensível, de algum modo, a experiências psíquicas que, hoje, podemos situar melhor à luz da proposição do estatuto místico do Inconsciente. Uma sensibilidade provavelmente colocada à prova por situações diversas, nas quais pessoas acossadas por experiências psíquicas extremas de separação e perplexidade, podiam se perder por falta de estofo psíquico para referenciar tais experiências limite. De acordo com Ellenberger, a visão teórica de Janet sobre a economia psíquica, com uso de metáforas do mercado, como “liquidar dívidas”, “moratória”, “administração do orçamento mental” (cf. o reconhecimento da validade dessa perspectiva e seu uso por MD no falatório Economia Fundamental [2004]), o levou a considerar a conduta moral-religiosa como possuindo originalmente uma função de governança, isto é, como administração do orçamento das forças mentais, com efeitos determinantes sobre outras esferas da vida. Para Janet, a influência da religião na vida psíquica é incomensurável e a satisfação por ela gerada só pode ser suplantada pela psicoterapia científica. À luz da NM, é possível agora melhor situar a intuição de Janet quanto ao papel de governança que uma “psicoterapia científica”, ou seja, a psicanálise, pode oferecer. A reconhecer no movimento pulsional o empuxo transcendental de não-Haver, a psicanálise se coloca como Arreligião. Com isso, esclarece que religião é o 35

que acontece quando uma formação qualquer “pretende explicar, articular e mesmo governar o mundo, tendo como referência uma formação fundamental que se entroniza no lugar do Gnoma”, conforme explica MD em seu Psicanálise: Arreligião (2002). Então, é o caso de reconhecer esse movimento e sustentar a análise no sentido de exercício permanente de indiferenciação e afastamento do mundo, ascese de que os místicos são exemplares.

Curioso

que,

em

texto

dos

anos

1930,

segundo

Ellenberger, Janet tendeu a considerar os místicos como “pensadores progressistas”, que buscavam ir além das formas das crenças que lhes ofereciam a ciência e a lógica de seu tempo, abrindo caminhos novos à humanidade. Ao considerar o caso da paciente Madeleine, tanto Hulin quanto Ellenberger sugerem que a sensibilidade clínica de Janet foi fundamental para a atenção com que o tratou. Ao mesmo tempo, teria sido a singularidade desse caso que manteve Janet aberto às possibilidades de consideração clínica e teórica das relações entre psiquismo e experiências de êxtase, sem qualificá-las imediatamente como psicopatológicas, no sentido da psiquiatria de sua época. Após ter sido admitida em Salpetrière, Madeleine iniciou um Diário, em que registrava suas experiências místicas e estados de espírito. Quando saiu, depois da segunda estada no hospital, em 1904, escreveu quase todos os dias para Janet até sua morte, em 1918. Por fim, Hulin cita um trecho importante de De l’Angoisse à l’Extase, por mostrar Janet reconsiderando sua perspectiva, do pré-conceito em relação à reivindicação de “Deus” como característica fundamental do êxtase ao reconhecimento do aspecto “estrutural” do empuxo transcendental do pensamento. Cito integralmente: “Sempre me surpreendi de ver que escritores religiosos, ao analisar o êxtase a partir dos escritos dos extáticos consagrados, forneciam como característica essencial do êxtase o sentimento do divino, o sentimento de estar em Deus, de participar de Deus. Pensava 36

que eles erravam ao definir um estado psicológico pelo objeto que o sujeito se representa nesse estado, que um delírio pode ser psicologicamente o mesmo, qualquer que seja seu objeto, a perda da fortuna ou a de uma criança, e que era necessário definir o êxtase pela modificação das operações psicológicas que o constitui, independentemente do pensamento que ocupa o espírito durante esse período. A esse respeito, desejei evitar as dificuldades que os problemas religiosos sempre levantam, e estudar os êxtases leigos dos quais o êxtase extraía suas características fundamentais, mas onde o espírito pensaria em outra coisa que não fosse a vida religiosa. Reconheço hoje que me equivoquei e que esses autores tinham razão. O pensamento religioso é intimamente ligado ao extático; os verdadeiros êxtases são os religiosos. O objeto do pensamento é aqui determinado pela própria forma que o pensamento assume” (grifo meu). Não deixa de ecoar o fato de Janet ter sido analista de Raymond Roussel.

NOTA 2 A evocação do termo ápice, nesse caso, é deliberada e fundamental para sacar a evolução que a Nova Psicanálise traz. Sim, é possível falar em evolução quando se aceita que não há pensamento acabado, que um campo de conhecimento pode rever suas ficções teóricas caducas. Não há nisso gosto do novo pelo novo, a Nova Psicanálise não é uma variante recente, uma neopsicanálise, mas a psicanálise que se recompõe, NM. Para MD, avançar como conhecimento significa movimento Progressivo de abstração e é isso que permite interrogar, em nível mais abrangente, noções anteriores, portanto, defasadas pela abstração posteriormente obtida. A prática do ready-made de Marcel Duchamp pode ser considerada uma das fontes para essa operação de abstração característica da Nova Psicanálise, já que exige uma rigorosa indiferença em relação aos objetos abordados, um 37

esvaziamento de suas significações intrínsecas, a negação do valor de utilidade, uma neutralidade total. Nem a natureza das formações espontâneas nem a cultura ou o valor das formações manufaturadas, aí está o sentido da metaironia de Duchamp, assim como o sentido do Artificialismo Total da Nova Psicanálise. A partir de outras referências, Lacan entendeu que a formalização a partir do conceito de estrutura como combinatória significante, com notações lógicas e algébricas, seria o caminho mais apropriado para reescrever a psicanálise no século XX. Ao evitar configurar o Inconsciente a partir de conteúdos, ele o situa como clocherie, como ‘mancada’ (segundo a versão de MD), que comparece como função de hiância, corte, descontinuidade, lapso, rateio, mas sempre circunscrito ao “campo da fala e da linguagem”. E a lógica do significante, como operação permanente de substituições, ofereceu a Lacan a condição que faltava para seu projeto de formalização da psicanálise. A ordem metafórica, substitutiva, opera com e expõe a inconsistência irredutível que marca o falante. Assim entendidos, MD e Lacan são dois protocolos de teorização tão semelhantes quanto um alfinete e um elefante. O arrebatamento em questão no texto de Marguerite Duras não aponta para um simples desregramento dos sentidos ou para a valorização do arcaico de uma experiência qualquer. É um evento preciso e de grande interesse para a NM. Arrebatar-se é situação de exacerbação, estabelecida como afetação máxima, considerada a última instância, o ápice, da exasperação. Seu valor está justamente na radicalidade de uma experiência possível para Eu. Nessa circunstância, de extrema rarefação, em que todo esforço de significação fica aquém do que se pretende, nenhum vestígio de sujeito, indivíduo consciente ou parafernália similar, apenas “maquininha de distanciamento”, como chama MD. Estamos diante do que a Nova Psicanálise chama de Postura Mística: diferenças internas ao Haver cessam, são indiferenciadas, e a 38

exacerbação que conta é a da Diferença entre Haver e não-Haver. Após reconhecimento dessa possibilidade, o extremo ou ápice dessa exasperação torna-se referencial. O que significa pensar com e a partir dessa situação limite e, portanto, considerar que nesse “lugar” está o efetivo estatuto da psicanálise. A Nova Psicanálise reconhece tão somente duas operações, ou melhor, dois aspectos do movimento libidinal do Inconsciente, desse movimento de exasperação. As possibilidades infinitas de transações do Haver são suscitadas e dirigidas por vontade de transcendência: “transar transir”. De modo análogo, encontra-se em alguns autores da teologia mística o mesmo entendimento. A teologia medieval desenvolveu um expressivo repertório para situar a experiência de exasperação: na língua latina oculus mentis, sensus mentis, acies mentis, apex mentis, scintilla rationis, synderesis scintilla, scintilla conscientiae, principalis affectio, e seu equivalente ou análogo nas línguas renana-flamenga, bürgelin, fünkelin, gemüt, grunt; espanhola, centro, fondo del alma, centella; e francesa, pointe, cîme, faîte de l’esprit, fond. Esse esforço de descrição, com proliferação de expressões e significados diversos, ocorreu em torno do conceito de synderesis. Ao que parece, sua origem resulta da modificação da palavra grega syneidesis, consciência. Entretanto, não é equivalente à forma moderna de consciência, estritamente epistêmica, forma reduzida de interioridade, atributo de um sujeito de conhecimento que se separa e se opõe ao que conhece. Ao contrário, syn eidenai, saber com, indica uma consciência compreensiva que abrange e inclui não por estar em oposição a, mas por estar em relação com. O prefixo syn, do grego antigo, significa ‘em companhia de’, ‘junto com’ e, nesta acepção, está presente em palavras como sinergia, sincronia, sinapse, sinestesia, sintoma, sintaxe, sintonia, símbolo. Além disso, syneidesis envolve um amplo espectro de ações como zelar, 39

cuidar, guardar, tomar cuidado com, dar atenção a, assistir, observar, que remetem a consciência a um estado de circunspecção. A tradução do grego syneidesis para o latim synderesis não foi trivial. Quando o pensamento medieval passou a usar a forma substantiva do termo grego, no contexto de um cristianismo fomentado pelo vocabulário neoplatônico repleto de transcendências, gerou novas possibilidades de significação. Desse modo, em vez da forma geral de consciência, synderesis passou a designar também um estado ou função específica: scintilla conscientíae, centelha da consciência. Ocorreu que o entendimento dessa função oscilou durante toda a Idade Média e não se estabilizou em um uso conceitual unívoco. Em um sentido volitivo, por exemplo, sindérese foi descrita pela teologia dogmática como capacidade de discernimento e retificação, uma disposição para agir de determinada maneira, segundo certa direção, em concordância com princípios morais desde sempre presentes na consciência. De modo distinto, para algumas teologias místicas, a centelha da consciência é a finalidade mais elevada ou ápice da vida, a capacidade de suspender a dicotomia entre gozo e reflexão em uma experiência de união mística. Mas foi, sem dúvida, Mestre Eckhart quem conduziu essa discussão a outro patamar. Na história da mística cristã, representou uma evolução formal para esse campo. Ele expandiu e depurou o conceito de sindérese transitando entre a linguagem abstrata e precisa da teologia e a abrangência e extensão da linguagem vernacular. Embora grunt, sem equivalência imediata com alguma palavra latina, já fosse um tema recorrente no pensamento teológico e filosófico alemão, Eckhart precisou produzir uma fortuna semântica em torno desse termo. Assim, grunt expressa um “estado de consciência” além das palavras e dos pensamentos, “o estado de todos os estados”, em relação com o “ser” não diferenciado “desprovido de qualquer nome”, de “qualquer forma”, 40

“nada”. Em se tratando de regiões rarefeitas da experiência, a escolha dos termos importa mais do que nunca. Apreender esse “fundo último da alma”, não apenas como entendimento e desejo, mas como relação de identidade radical com o absoluto, transcende o vocabulário ontoteológico que só opera com as categorias de multiplicidade e de unidade do ser. Além disso, para o místico renano, a formulação de uma nova terminologia, abstrata e abrangente em suas características, precisa ter como referência o exercício e a experiência de ascese que descreve, pois essa linguagem não se reduz à sua função conceitual nem a seu valor de disseminação. Dito de outro modo, a abstração é, no plano teórico, procedimento de ascese. Nesse sentido, Eckhart vai buscar na teologia negativa o aparato de abstração necessário para situar adequadamente o ápice da consciência como experiência mística. Pode parecer desconcertante a declaração de MD que Mestre Eckhart é “precursor da teorização do Inconsciente”, mas é uma afirmação precisa porque reconhece ali a mesma problemática e a mesma decisão teórica.

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3 PSICANÁLISE E PORNOLOGIA (A Transa Mística da Obscena Senhora H) E fodes como quem morre a última conquista E ardes como desejei arder de santidade. HILDA HILST (Do Desejo, VI)

INTRODUÇÃO Como indiquei no capítulo anterior, o algoritmo d’ALEI (Haver Desejo de não-Haver), coincidente com o da Pulsão, não é senão o mesmo, também necessariamente coincidente, da Fantasia Originária que cada IdioFormação ancora em sua histórica formação sintomática (a ser destacada em sua análise). Donde as jaculações místicas de uma Teresa d’Ávila e as ejaculações eróticas de um São João da Cruz, os arroubos místicos e os tesões de uma Marguerite d’Angoulême, assim como os cruzamentos extáticos e gozosos da Mística Pornológica de nossa Santa Hilda, a Santa Teresa de Campinas, no Brasil. Donde o Estatuto Místico da Psicanálise, recuperado pela NM, a indicar que uma Análise sucedida se encaminha necessariamente para o destacamento da Fantasia do analisando,

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em conformidade com o lema de FREUD: Wo Es war, soll Ich werden. Lacan supôs equivocadamente tratar-se de um mandamento Ético, esquecendo, desde aquele momento mesmo, de responder, quanto a qualquer Ética possível, à questão duríssima de Heidegger sobre quem e como alguém estaria capacitado a propor alguma ao Mundo. Não se trata da paranoia de nenhum “dever”, muito menos kantiano, de se chegar ao ES do requisito freudiano – mas de NECESSIDADE, se é que se persegue, de verdade, a VERDADE do aparelho originário, O INCONSCIENTE por ele assim denominado: esse ES é ISSO, é Neutro, é Grau Zero, é Simplesmente HAVER, é NADA, é DEUS – LUGAR aonde se dissolvem as Formações dos Seres figurados, dos Eus imaginados. Eis O LUGAR, indicado assim por Eckhart como O Íntimo, indicado por Mallarmé como o que Há absolutamente como Lugar oferecido e dado (nome, aliás de uma antiga revista inventada por MD...). Então consideremos HILDA HILST. Ʃ Ʃ Ʃ

Começo com a primeira década de escrita em prosa da Santa Hilda de Campinas, que se denomina Teófaga incestuosa em A Obscena

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Senhora D: Fluxo-floema (1970), Kadosh (1972) e Pequenos discursos. E um grande (1977), reunidos pela própria autora em reedição com o título Ficções, em 1980. Hilda dá uma guinada em seu percurso literário (havia escrito poesia e teatro até então) e expõe, em estilo que vai sendo cinzelado, a matéria espiritual de sua ascese. Experimenta uma escrita jorro, fragmentária, surpreendendo o leitor, de supetão. As estórias, se assim posso me referir a esses textos, mostram a dor de viver, de não entender e não ser entendido, a perplexidade da busca, sua afirmação como busca de verdade, de conhecimento; prolifera expressões ora de chacota, ora inusuais para designar a transcendência, o trânsito com o divino: o cão de pedra, o grande caracol, o sem nome, o mudo sempre, o tríplice acrobata, a coisa que nunca existiu, a haste antenada vibrando em teu ouvido... São listas para designar o indesignável. Do mesmo modo que fazem Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa e Fernando Pessoa, aliás. A primeira estória de Fluxo-floema, intitulada justamente Fluxo, abre-se com a frase “Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte”. Na sequência, uma insólita fábula: era uma vez um menininho que foi colher crisântemos perto de um rio, em uma manhã de sol. Mas, vendo o crisântemo partido, sob risco de cair na água, aproximou-se da margem para pegá-lo. Ora, havia 

Uso a grafia que Hilda modificou, quando da republicação desse livro, pela Editora

Globo, aos cuidados de Alcir Pécora. Originalmente, a autora usou a grafia Quadós e, em texto homônimo, explicou: “Qad = separar, na língua das delícias”. 44

um bicho medonho que viu o menininho e torceu para que ele caísse no rio, pensando como seria bom mastigá-lo. Hilda, à la Esopo, ma non troppo, fraciona a moral da fábula: “se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio, se você é o crisântemo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado”. As páginas seguintes levam o leitor, para o mundo Umheiliche da literatura hilstiana: “dentro de mim, este que se faz agora, dentro de mim o que já se fez, dentro de mim a multidão que se fará. Alguns eu os conheço bem. Mostram a cara, assim é que eu gosto, me enfrentam, assim é que eu gosto, cospem algumas vezes na minha boca, assim é que eu gosto. Gosto de enfrentar quem se mostra. (...) Ruiska sou eu, eu me chamo Ruiska, minha mulher se chama Ruisis e meu filho se chama Rukah”. Ruiska é atormentado pelo “cornudo” que dele cobra produção: “como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas”. [Soa como um protótipo do Tio Lalau, o editor sacana d’O caderno rosa de Lori Lamby]. No jogo elocutivo entre os cacos de personagens que mal consistem, Ruiska declara: “O meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah, são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido,

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elas caminham para algum lugar, elas serão alguém, elas não podem estar aqui por nada”. Na estória “O Unicórnio”, o leitor é advertido: “sabe, uma estória deve ter mil faces, é assim como se você colocasse um coiote, por exemplo, dentro de um prisma”. Em “Gestalt”, de Pequenos discursos. E um grande, o matemático Isaiah descobre um porco, que, na verdade, era uma porca, dela cuida, com ela se casa, chamando-a de Hilde. Em “Teologia natural”, Tiô vai à cidade vender o tico de mãe que lhe restou, depois de limpá-la cuidadosamente. Em “Vicioso Kadek”, o matemático e psicólogo homônimo “espiou a curva de Möbius muitos anos, viveu prensado nela, horas pensando, também eu não tenho lado de dentro e de fora, e depois: tenho?” Em outro pequeno discurso, Jozú, encantador de ratos, vive de exibir sua arte nas ruas, mora em um poço, mas convive com pessoas que nada entendem de sua condição. Essas frações ou lampejos sintomáticos que desfilam e se entrelaçam, apoiados em recursos nominais, proliferam outros entendimentos, à medida que são conectados a outras séries: a terra, as vísceras, os excrementos; ser pétala de carne e, ao mesmo tempo, tigre, cordeiro, corça, hiena, chacal; descobrir ser um porco com vontade de ter asas vis-à-vis o incogitável, o incomensurável, o inconsumível, o inconfessável, em busca de Ninguém, em meio à multidão que aí se faz. Nesse sentido, o próprio sintagma Fluxofloema já indica essa característica inaugural da prosa hilstiana, ao evocar a ideia de vários fluxos por onde circula o floema, que, em 46

botânica, é o tecido condutor especializado no transporte da seiva que percorre o tecido das plantas. A escrita de Hilda explora a multiplicidade em fluxo, sempre, contudo, crivada pelo estado de perplexidade diante do mundo. Os lugares dessa ascese floemática – poço, oco, abismo, deserto, gruta – que sidera os cacos de personagem dos textos hilstianos remetem, muitas vezes, à tradição dos anacoretas, e se transmutam em outras metáforas: a casa a ser construída, a claraboia, a colina, o vestíbulo, o vão da escada, o escritório. São lugares de afastamento: morar no poço, por exemplo, como Jozú, é estar em situação de solidão. Isso é compatível, na história da mística cristã, com o personagem que MD lembra com frequência, Santo Antão e suas tentações, aquele que, em certo Concílio, deu garantias da existência de Deus. Para Alcir Pécora, em sua “Nota do Organizador” do livro Fluxo-floema, a multidão que há em Hilda parece falar com a mesma garganta, alternando narradores de uma cena em fluxo, e que se metamorfoseiam com muita rapidez, mal alcançando a estabilidade de um nome próprio. Este, surge, mas logo é derivado, declinado em vários outros da mesma raiz: Ruiska, Ruisis, Rukah, Osmo, Koyo, Haidum. Mas também Hiram, Hamat, Hemin, Hakan, Herot, Isaiah, Riolo, Lih, Tiô, Kadek, Lucas, KleinKu, Koyo, Jozú, Gesuelda, Guzuel, Naim, Hilde (a porca), de Pequenos discursos. E um grande. Todos, na estórias e discursos em que comparecem, dramatizam aspectos de uma experiência deceptiva, contingente e esfrangalhada. O refinamento dessa empreitada literária fica a 47

cargo da exigência a que se vê submetido o ofício da escrita, cujos análogos se reproduzem na própria ficção hilstiana: vários “personagens” vivem a angústia de exercer a arte da escrita, sobretudo por causa da seiva floemática, digamos assim, que os alimenta: a transcendentação místico-erótica. Esse fluxo hilstiano, ainda segundo o comentador, é “dialógico” e “teatral”, onde fragmentos textuais são distribuídos entre personagens “que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva”. É como se “alguém”, esse lugar de narrador, se visse determinado a falar sem vontade própria, pulando entre “personagens mal-ajambradas, incontidamente várias”, de algum modo arrastadas por uma força que tenta, fracassadamente, “alcançar o gancho celeste capaz de transcendêlas” e provar o gozo definitivo buscado. Vale lembrar de outro comentário, o de Leo Gilson Ribeiro, em sua apresentação de Ficções, que reconhece em Hilda o caminho de uma linguagem original em direção ao Absoluto. Sugere haver na prosa hilstiana uma Tao linguagem para chegar à gnose e uma insistência na busca mística de um “Indevassável”, cujo subproduto “quase acidental, inconsciente” seria essa literatura, com seu estilo. Ao leitor nenhuma concessão de tipo mundano. Ou ele segue, montado no fluxo, com recursos para acompanhá-lo, ou ele se afoga e perde tudo. “O leitor sente-se desafiado

a

imergir

nesses

ritos,

recriando

corporeamente os enigmas e imagens que brotam”. 48

quase

que

Fazendo um parêntese: dez anos depois da publicação desse livro, em 1980, como se tivessem lido Hilda Hilst (e nem tivessem entendido tanto assim), Gilles Deleuze e Félix Guattari publicam Mille Plateaux, cuja metáfora mestre é o rizoma, termo também retirado da botânica. A proposta deles é de abandonar as metáforas da raiz, da árvore, das radículas, e tomar o rizomático como o que se alastra pela superfície e se ramifica a partir de qualquer lugar. É um ponto de partida para mostrar a ideia de conexão, de heterogeneidade, dos devires e do aspecto conectável, reversível e modificável das multiplicidades, tendo em vista o problema da diferença. Fluxo-Floema é uma espécie de antecedente dessa ideia, e mesmo, talvez, com um pouco mais de profundidade. Ʃ Ʃ Ʃ

Há um trabalho de conhecimento evidente na via fluxo-floemática da prosa de Hilda, que tende a ficar progressivamente mais econômica e certeira na produção literária das duas décadas seguintes, pelo modo erudito-esculhambado como mostra a ascese mística em um Revirão surpreendente com algo da ordem do pornográfico, ou pornológico. A partir de MD e comparativamente ao que chamou de teoria do conhecimento de Escher [SóPapos 2021], podemos denominar esse trabalho de a Epistemologia de Hilda Hilst. Pergunta ela: “De onde vem este sopro que me anima / A olhar as coisas com o olhar que as cria?” Todo seu périplo, além 49

de ser uma garantia de estatuto do místico e do estatuto místico do Inconsciente, é uma garantia de função de conhecimento: o conhecimento como transa de formações. Até recentemente, estávamos acostumados a supor, se não mesmo acreditar, que o conhecimento consiste na abordagem de uma situação, com parâmetros estabelecidos, a partir de uma posição prévia que tem as condições apropriadas para conhecer a situação abordada. Várias tradições epistemológicas fixaram tais posições como sujeito e objeto, e algumas evoluíram para sua relativização, a ponto de esfacelar a posição subjetiva e dispensar, porque imanente ao processo, a suposição de haver objeto de conhecimento. Mas a teoria do conhecimento que se extrai da gravura As mãos desenhantes, de Escher, propõe uma postura completamente diferente. Ao considerar a mão que desenha a mão que a desenha como analogia, está-se afirmando que, em qualquer nível, produção ou valor, conhecimento é o que resulta da transa entre essas mãos, ou seja, da transa entre formações que produzem formações que as produzem. É um processo em metamorfose em que a mão “de lá” desenha a mão “de cá” com as informações que dispõe para abordála e, no processo, emerge a sacação de que tal abordagem já está em curso na transa, pois os recursos “de cá” ganham contorno e se transformam pela transa com o “de lá”, que, por sua vez, vai se configurando pela transa que co-moveu “lá” e “cá” a entrar em relação e assim por diante, em motu contínuo. Somente se 50

rasgássemos a gravura, poderia haver a suposição de privilégio de uma posição de configuração sobre outra. Para MD, o pensamento gráfico de Escher pode ser assim descrito: “As formações do lado de cá estão tentando desenhar formações que lhes parecem estar do lado de lá. Acontece que as formações do lado de lá, seja qual for sua realidade real, digamos assim, só expõem para formações que as podem considerar. Então, elas só se constituem mediante a constituição das formações de cá. Por isso, o conhecimento é tão difícil e tão precário, passa por formações primitivas singelas e pode chegar a formações sofisticadas. Tudo depende do que as formações de cá podem destacar nas formações de lá – as quais, nessa transa, começam progressivamente a se mostrar a novas composições mediante o funcionamento e a transação interna das formações de cá. E as formações de cá participam de um grande acervo de formações que pode se modificar à medida que as formações de lá mudam. Isto porque são consideradas por outras novas formações. Elas não mudaram, mas começam a se apresentar de outra maneira. Então, elas, que estão desenhando minha ideia daquelas formações, estão desenhadas por minhas concepções pelas formações que me constituem. Uma mão desenhando a mão que a desenha”. Repetindo o verso de Hilda, exemplar dessa postura: “De onde vem este sopro que me anima / A olhar as coisas com o olhar que as cria?” Podemos, agora, aplicar a transa Escher da mão que desenha a mão que a desenha às considerações apresentadas há pouco sobre 51

a escrita hilstiana. É como se Hilda fosse extraindo realidades dos “desenhos” recíprocos que suas estórias, com seus recursos ficcionais, vão delineando, em uma resultante acompanhável ao longo de sua obra, como também fragmentariamente ao longo de cada livro e, em cada livro, cada estória. Há um efeito de plasticidade aí: as situações vão transbordando da refrega intraestórias, inter-estórias, intra-livros e inter-livros3. Hilda, ao praticar conhecimento no sentido das mãos de Escher, mostra o quão longe a franjalidade de um processo de conhecimento pode alcançar, arrolando experiências, práticas de escrita, inspirações, influências, insistências de produção, decisões de vida, heranças de todo tipo, estudo e disciplina na lida com diversos

repertórios

literários,

filosóficos,

científicos,

sensibilidade, talento, em uma atitude despudorada de exposição. As mãos desenhantes de Hilda produzem realidades na força literária de sua obra e de sua postura, transbordando realidades na transa com o mundo no qual outras realidades em transa resultam no chamado “leitor”, outra maneira de situar o que a crítica literária 3

Nas leituras que fiz sobre a obra de Hilda, encontrei uma breve indicação que deixo

registrado. No artigo “Falando com Deus...”, de Michel Riaudel, publicado no livro Em torno de Hilda Hilst (2015), é sugerida uma “arquitetura à la Escher” presente n’O Caderno Rosa de Lori Lamby. A expressão é utilizada para indicar o recurso artificioso do livro, que deixa em aberto as camadas ficcionais da autoria do “Caderno” – se a criança (Lorinha) escreveu por conta própria ou copiou de seu pai escritor; se o pai escritor escreveu o Caderno sobre uma criança que escreve um caderno, que também é feito de outros dois cadernos, o “Caderno Negro” e o “Caderno do Sapo Liu Liu”. Não há maiores desdobramentos desse à la Escher, mas alguma implicação não passou desapercebida. 52

concebeu como “recepção”. Hilda: “ser o estilete, a mão, a tinta, a figura”; acrescenta MD: “essa construção nova que sai da articulação dos pensamentos se constitui como exemplar da realidade”. Ʃ Ʃ Ʃ

Em Hilda, não há sujeito conhecente ou objeto do conhecimento, é pura transa. É, para comparar com Escher, o olhar que configura o olhado que o configura. Tanto é assim que, em Com os Meus Olhos de Cão, ela declara: “Mas não vejo o ver. Assim é o que sinto tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito”. E diz mais: “E o teu, o teu olhar, o olhar obsceno do meu Deus”. Verifica-se aí um quiasma, o que vem reforçar que o conhecimento é quiasmático, e não subjetivo. Aliás, em Fluxo-Floema, ela faz outro quiasma dizendo de tal personagem que “é ateu como Deus”. O ateísmo é impossível no sentido histórico do termo. Um ateu é apenas um Há Teo. No início d’A Obscena Senhora D – que é quase uma oração, uma prece –, escreve Hilda: “...eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa”. É seu modo de descrever, ficcionar o exercício de Nada, o exercício de Deus, o exercício de Haver, o exercício de Ninguém: “Alguém, nome de ninguém / esse aí não é nada / esse sim é alguém”. Mostra assim esse Revirão no olhar que busca e declara estar sendo visto pelo 53

lugar de Deus. Ela diz o mesmo que Eckhart, que Deus está aqui, mostrando exemplarmente a solidão desse “íntimo” que é a identidade Deus = Eu e, junto com ela, o fracasso da imanência e da transcendência. Pois as duas posições se desenham uma à outra na condenação à afetação de requisitar o que não há: o Impossível Absoluto da desistência definitiva. Ou seja, a imanência não se aquieta de vez, pois o tesão acossa; a transcendência não se consuma de vez, pois o tesão não se extingue. A transa de última instância, é o místico – ápice do pensamento e do Inconsciente – que a desvela. Vejamos Mestre Eckhart: “Deus cobiça de ti nada mais a não ser que saias de ti mesmo, segundo teu modo de ser criatural, e deixes Deus ser Deus em ti. A menor de todas as imagens de criatura que, porventura, se forme em ti é tão grande quanto é grande Deus. Por que? Porque te impede o acesso a um Deus completo. Justamente ali onde entra esta imagem em ti, ali Deus deve retrair-se, e toda sua deidade. Onde, porém, essa imagem sai, ali entra Deus. (...). Pois então, caro homem, o que te prejudica se permites a Deus que Deus seja Deus em ti? Sai totalmente de ti mesmo por Deus e para Deus, pois assim Deus sai totalmente de si próprio por e para ti. Quando ambos saem de si, o que ali permanece é um simples Um singular” (Dos Sermões alemães, sermão 5a). Agora vejamos Hilda: “Vem apenas de mim, ó Cara Escura / Este desejo de te tocar o espírito / Ou és tu, precisante de mim e de minha carne / Que incendeias o espaço e vens muleiro / Montado 54

em ouro e sabre, clavina, cinturões / rebenque caricioso / Sobre a minha anca viva? / Ou há de ser a fome dos teus brilhos / Que torna vadeante o meu espírito / E me faz esquecer que sou apenas vício / Escureza de terra, latejante? / Vem de mim, Cara Escura, a ramagem de púrpura / Com a qual me disfarço. As facas / Com os fios sabendo à tangerina, facas / Que a cada dia preparo, no seduzir / Tua fina simetria. E vem de ti, Obscuro, / Toda cintilância que jamais me busca” (Sobre a tua grande face). Ou ainda, na prosa poética mística de Kadosh: “Perseguido / E perseguidor / Ando colado à terra. / Mas num salto, Senhor, / (a tua mão aberta / à minha espera) / Posso chegar ao alto. / (...) / Grande Perseguidor / Foge comigo. / E gozosos gozaremos / Uma única viagem. / (...) / Grande Perseguidor / Me faz teu perseguido. / (...) / Reinventar o Sem-Nome / Cem mil dias debruçado / No teu passo e travessia. / E ser / Muito mais que o vento / À volta do teu segredo. / E ser muito mais que o mar: / Ser inteiro chamamento / Ser convés e marinheiro. / Dentro de ti navegar”. Em suma, em Hilda acontece o colapso do problema filosófico imanência / transcendência. Ela diria, aliás, que imanência / transcendência é o cacete. Sua descrição é modo gnoseológico Escher, pois o vetor que assenta e, na sequência, descreve a experiência de Nada e Ninguém tem que se dizer por dentro, já que não há fora. É o alucinatório do desejo, do Deus buscado – “Olha Hillé a face de Deus / onde onde? / olha o abismo e vê / eu vejo nada” – e o Deus que está aqui. Ou seja, nada a 55

encontrar, Ele está aqui, acabo de encontrá-Lo. É o caso de lembrar que, na fraseologia cristã, há o lema: “Não me buscarias se já não me tivesses encontrado”. Vejam que é isso, é simples, não é preciso ser beato. Ʃ Ʃ Ʃ

Para considerar o estatuto místico do Inconsciente e como a NM recolhe essa exemplaridade para compor o estatuto místico da psicanálise, há um autor importantíssimo para Hilda: Georges Bataille. A máquina produtiva de Hilda é a máquina de Bataille do gasto livre, da despesa inútil, do dom sem contrapartida, de uma economia na medida do universo. E também do entendimento do erotismo como prática constante de transgressão. Lembro que Lacan divergia de Bataille quanto ao termo transgressão por achar que o erotismo fosse mais da ordem de um esgueiramento. Para ele, o caminho do desejo seria por esgueirarse, e não por transgredir. Para entender o alcance da transgressão em Bataille, é preciso considerar que, para ele, o erotismo é “a aprovação da vida até na morte” ou da vida que não se distingue mais da morte, por se tratar da intensidade levada ao extremo pelo gasto inútil. Esse empuxo é o mesmo no erotismo e na religião, conforme a tese de O erotismo. Mas não se trata de religião como ritos, dogmas, comunidades determinadas, e sim no sentido de uma experiência “que coloca o 56

espírito para além, em busca de todo o possível que ele pode abrir para si”. Ao mesmo tempo, nem a filosofia nem a ciência pode dar conta do problema que a aspiração religiosa colocou, busca que, aliás, deve ser liberada das vicissitudes históricas. Declara Bataille: “devo perseguir uma experiência solitária, sem tradição, sem rito, e sem nada que me guie, também sem nada que me embarace. Exprimo, em meu livro, uma experiência, sem apelar ao que quer que seja de particular, tendo essencialmente a preocupação de comunicar a experiência interior – quer dizer, a meus olhos, a experiência religiosa – por fora das religiões definidas”, pois “sem experiência, não poderíamos falar nem de erotismo, nem de religião”. Ora, a chave para entender o primado dessa experiência pessoal no conhecimento do erotismo ou da religião é concebê-la como igual e contraditória ao interdito e à transgressão. A sideração humana do erótico e do religioso é o que acontece entre os polos do interdito, por temer a morte, analogon genérico das experiências de discreção ou descontinuidade, que irrompem, mesmo quando insistimos em nos conservar e resistir à destruição, e da transgressão, pelo empuxo erótico de gozar a suprema alteridade. O erotismo é, portanto, a experiência interior dessa transgressão, ápice ou pas au-delà, que acontece no mesmo LUGAR do desejo e do pavor, do prazer intenso e da angústia. Por isso, o erotismo coloca tudo em questão, exibindo o desequilíbrio, a anti-homeostase, que é inerente à vida. Diria Hilda: 57

o erotismo é o fluxo-floema entrópico da busca de Deus, provada por e na experiência interior: “Eu me perco” = “Deus sou eu” = “o fundo sem fundo da alma onde Deus basta a si mesmo” = “Poderia, meu Deus, me aproximar? / Tu, na montanha. / Eu no meu sonho de estar / no resíduo dos teus sonhos?” Fica claro, então, que a transgressão em Bataille não é mera ultrapassagem de uma regra, e sim a tentativa de atingir a alteridade. Essa, sim, é a transgressão fundamental, e é a mesma tentativa do Haver em atingir o não-Haver apesar da frustração. Nesse ponto, estou com Bataille. Quando ele diz que “a experiência conduz à transgressão acabada, à transgressão bem-sucedida, que, conservando o interdito, conserva-o para dele gozar”, entendo o sentido da transgressão como Alei Haver desejo de não-Haver e a impossibilidade de sua consecução. Em Hilda há também esse mesmo sentido de transgressão como afirmação radical de um gesto, de um estilo, de uma presença, do lugar desde onde sai o que sai em seus textos, explorando a alternância entre a dicção erudita e o palavreado chulo, aplicados alternadamente ao tesão nos corpos e à sublimidade do divino, assim como alcança ares rarefeitos, pela insistência mística de transcendentação. Nem por isso deixou também de contemplar, como em Rútilo Nada (1993), a violência destrutiva e a matança que cercam os atos de mostração desse empuxo erótico transgressivo-limite, e que podem atingir a pessoa em sua existência – é preciso tomar cuidado, portanto. 58

De qualquer forma, a transgressão não é propriamente uma chave de leitura da Hilda, já que, para ela, o riocorrente, a transa em Revirão entre humor e perplexidade, entre a pornologia e o aturdimento místico de última instância, é de fácil transiência. Ela não tem o valor da transgressão de fazer birra com papai, é o caso de dizer. No máximo, ela brinca com o leitor que ou não a compreende, ou não a entenderá. Ele que se oriente e pesquise o que está sendo dito. Ʃ Ʃ Ʃ

Dez anos depois de Fluxo-Floema, como que encerrando certo experimento, temos outro livro dela, cujo título é também um sintagma extraordinário: Tu não te moves de Ti (1980). São três histórias entrelaçadas: “Tadeu (da razão)”, “Matamoros (da fantasia)”, e “Axelrod (da proporção)”. Há nesse livro um link que já joga para O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990). Em “Matamoros (da fantasia)”, temos uma narrativa de descrição da fantasia. A personagem, Matamoros, declara: desde pequenina “toquei os meninos da aldeia, me tocavam, deitava-me com eles”. É o desenho da situação erótica de uma experiência que podemos tomar como tentativa de ficcionar uma fantasia sexual. Diz, então: “oito anos apenas me faziam a idade”, que ecoa a frase inicial d’O Caderno Rosa: “Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que sei porque mamãe e papai me falaram para contar do jeito que 59

eu sei”. Registre-se também que a quarta capa da primeira edição reproduz uma foto de Hilda, datada de 1936 – seis anos de idade, portanto –, com a seguinte legenda: “Ela foi uma boa menina”. É importante que ela nos tenha deixado essa lição cristalina, freudiana, analítica, de não apenas investigar como conhecimento fundamental para uma pessoa a ordem de sua fantasia, como também de explicitar o sexual como conhecimento que nos atinge desde muito cedo. Em diversas passagens de seus textos, Freud se refere tanto à situação de a ordem de criação de qualquer pessoa estar ligada à sua experiência sexual própria nos primeiros anos da infância, quanto à amnésia posterior que acontece para muitos. Diz ele que o período sexual dos 4-5 anos é o período do florescimento intelectual. Na sequência, forças defensivas e recalcantes vão reprimir e produzir um “período de latência”. Quanto a isso, há uma expressão da Hilda que traduz bem o que aí se dá: “intelijumência”. Para aqueles que têm a sorte desse período não lhes ocorrer, possibilita-se um solo de criação em função da disponibilidade de conhecimento advinda do estar à vontade e fazer de seu lugar de fantasia um lugar de pesquisa do mundo. Na Matamoros, com outra direção, e sobretudo n’O Caderno Rosa, podemos acompanhar Hilda ficcionando, de propósito – porque é assim mesmo –, esse lugar de expressão da fantasia numa criança. Ela dá voz a isso como se fosse uma criança de oito anos, certamente por experiência

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própria. E isso é algo presente em todos os jogos ficcionais e artificiosos de seus livros. Ʃ Ʃ Ʃ

O viés da Hilda mística é explícito. Diz ela que, desde criança, queria ser santa. Pratica sempre na busca desse Deus, cuja nomeação de qualquer espécie é imediatamente transgredida e rompida em sua relação de ordem discursiva. Esse viés é evidente em seus textos ficcionais e entrevistas. Sobretudo, em Poemas Malditos, Devotos e Gozosos (1984), n’A Obscena Senhora D – A Senhora Obscena H, diríamos –, temos a descrição da mesma experiência que há em Mestre Eckhart. Trata-se da tentativa de descrever a situação à beira do abismo, à beira do Cais Absoluto – termo retomado por MD de Fernando Pessoa em sua Ode Marítima –, na situação de separação radical em relação a Mundo. Hilda explora a disjunção Mundo / Imundo como um lugar de afastamento, de experiência psíquica, em que seus personagens são lançados. A angústia e/ou a perplexidade, e/ou o simples bom humor de estar no Mundo não pertencendo ao Mundo, de estar transando com o Mundo, mas com um “olho adiáfano”, opaco, distante, separado. Diz a Sra. D que “engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o

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Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito”. Numa entrevista, Hilda comenta em tom de brincadeira que, ao chegar a um limite extremo, procuramos caminhos de salvação. Vários autores até classificam alguns desses caminhos. Um é o alcoolismo, outro a santidade – mas, diz ela, que “está muito tarde para entregar a bagaça a Deus. A santidade é boa quando se começa cedo”. E complementa que “outro caminho impressionante é o riso” – apesar de parecer patético, é um dos caminhos da salvação. Hilda o pratica exercitando o jogo irônico, rascante, ora de escárnio, ora de troça cotidiana com tudo. Outro aspecto de sua ascese mística é a sucessão de operações em Revirão em sua vida e em sua obra, uma espécie de demonstração do processo pelo qual ela própria estava passando. Por exemplo, o afastamento da vida social aos trinta e três anos para o interior, em sua chácara, em Campinas, a Casa do Sol; a presença constante em seus textos de elementos díspares do Sublime e do Grotesco, de Deus para Deus... Ela afirma que busca Deus, mas qualquer definição, qualquer desenho de Deus é escamoteado a ponto de ela transformá-Lo em Deus-porco. Isto, no sentido de todas as porcarias que se apresentam e, ao mesmo tempo, da busca desse ponto extremado e limite de sua experiência, que orienta sua produção e organiza suas sucessivas viradas até o ponto em que declara que parou de escrever, só o silêncio interessa. A solidão é tão grande que a própria literatura vira dejeto. Seu 62

silêncio final é a fase contemplativa do processo todo até seu desaparecimento. Outra virada sua foi quanto à escrita que assume o caráter pornológico: uma escritora séria que passa a ser ultra-séria. Fazer série é assim, é por completo, por inteiro. É a mesma questão que permanece em todo seu processo, buscando a mesma coisa em qualquer via. E mesmo a última instância de ficar em silêncio é o que foi anunciado na indicação da Fantasia Originária com a fórmula d’Alei. É isso que ela está dizendo. Em entrevista aos Cadernos de Literatura, perguntam-lhe “se o suicídio, de fato, já lhe passou pela cabeça”. Ela responde: “Muitas vezes, mas como não tenho revólver, vou ter que comprar e vai ser uma maçada enorme. Sempre penso que quando morrer, vão dizer: Que maçada!” É como se ela tivesse deixado que os escritores incompreendidos se matassem ou enlouquecessem. Alguns se suicidam, aliás. Diz ela também, respondendo se sua poética sempre tinha sido do desejo, que se trata “daquele suposto desejo que eu vi e senti em algum lugar. Eu vi Deus em algum lugar. É isso o que quero dizer”. – E a importância de Deus diminui também agora? “Não. Não preciso mais falar nada, entende. Quando a gente conheceu isso, não precisa mais falar, não dá mais para falar”. A pergunta continua: “Portanto, é um esgotamento da linguagem, um passe expressivo que leva ao silêncio?” E a resposta é: “É verdade, leva ao silêncio, eu fui atingida na minha

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possibilidade de falar. Lá do alto me mandam não falar. Por isso, é que estou assim”. Essa ascese e essa seriedade estão no experimento que Hilda faz e que, a partir dos anos 1970, vai alternando prosa e poesia (nomes pobres para designar o que ela faz). Em seu Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974) sua maneira de cantar o amor, a experiência erótica fica cada vez mais marcada pelo lugar da solidão. É um Eros divino, que come a carne da gente, pede o gozo, o qual vai sendo sublimado, se pudermos usar este verbo aí, através desse experimento e dos modos como vai descrevendo a experiência amorosa, da paixão, do afastamento, da solidão, acelerando a invectivação dessa ascese mística. Diz ela, em FluxoFloema, que “os laços da carne me chateiam. São laços rubros, sumarentos, são laços feitos de gordura, de náusea, de rubéola, de mijo, são laços que não se desatam, laços gordos de carne”. A partir dos anos 1980, Hilda escreve A Obscena Senhora D e, depois, Com os Meus Olhos de Cão (1986). Intercalados a esses, escreve Poemas Malditos, Gozosos e Devotos (1984). Temos, assim, uma espécie de quadra literária entre poesia e prosa – desde Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão até os Poemas Malditos, Gozosos e Devotos, e desde Com os Meus Olhos de Cão até A Obscena Senhora D – que eleva à última instância a locução de seu texto, a singularidade e a repetição de buscar, de pedir Deus. Sua transa sempre foi com o divino: “minha vontade sempre foi o trânsito com o divino”, como ela repete em suas entrevistas. 64

Depois de Com os Meus Olhos de Cão – história do matemático que tem a iluminação do satori –, ela parte para O Caderno Rosa de Lori Lamby. Na sequência, publica Contos d’Escárnio: textos grotescos (1990), Cartas de um Sedutor (1991), e a deliciosa coletânea – à qual MD se referiu como “Cantos de Foda” – de poesia intitulada Bufólicas (1992), na qual as fadas são lésbicas, chapeuzinho vermelho quer comer o lobo mau, o reizinho é gay... Ela mostra aí a verdade dos contos de fada: são poemas eróticos ilustrativos. Ʃ Ʃ Ʃ

Em Fluxo-Floema, diz Hilda – e lembra Lacan – “amodeio tudo que pode e é”. E continua: “Louvado seja esse bem-estar de assim ser”. Ou seja, louvado seja o que há: Amém. Louvado seja Deus. É a canção do louva-a-deus, que é devorado pela fêmea que o fode. Sua obra é bem-humorada e inteligente. Nela podemos ver algumas “traduções” de conceitos e/ou lógicas importantes da NM. Por exemplo, uma tradução sua para Bifididade: “Teu Deus está por aí bocejando com duas bocas. Numa, um hálito fétido, noutra uma rosa. Você escolhe a boca que quiser, meu chapa”. Outro exemplo, uma versão da Indiferenciação radical do Haver: “O divino cospe para lá e para cá sem consultar a direção do vento”. E a Senhora D pergunta: “Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido

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buraco? Escondido atrás...” Está indicando que Deus é bífido – está exigindo a Bifididade de Deus. Ʃ Ʃ Ʃ

Considero agora o contexto da obra da Hilda à luz do que já foi indicado na NM como circunstância contemporânea de crise do Terceiro Império e emergência do Quarto Império. A colheita da mística, para usar uma expressão de Bernard McGinn, nos séculos XIII e XIV, chega até o XV com Nicolau de Cusa. Ele é contemporâneo de um momento de confusão extrema, de guerras, de repactuações políticas, e vem em seguida o desenho do Renascimento: o humanismo renascentista, que vai eleger a Escolástica como vilão, deixando a mística no subterrâneo. Ela reemerge um pouco com Angelus Silesius, com Teresa d’Ávila, soror Juana de la Cruz e João da Cruz, mas fica no ar, sem conexão, pois a vaga que entra em cena são os efeitos desse desenho do Renascimento, somado aos impactos das guerras religiosas da reforma e da contrarreforma. E junto com essas cintilâncias de emergências místicas comparece o Maneirismo na resposta ao Renascimento, depois ainda vem o Barroco. O desenho do pensamento dito ocidental pela via dita científica, filosófica, portanto, é o oposto do que seria uma PróModernidade, para usar um termo de MD. O que a história e a filosofia chamam de moderno é um tempo obscuro da paranoia, das certezas, do sujeito, do objeto, da subjetividade, da consciência. 66

Daí que, na contramão, mesmo que não assumida como tal, o Brasil tem uma posição no encaminhamento nesse percurso renascentista ocidental até hoje. No conto “Axelrod (da proporção)”, de Tu não te moves de Ti, vemos que Axelrod é eixo, roda e um sobrenome – Silva –, que, como diz Hilda numa entrevista, é uma espécie de pan-brasilidade. Há uma Hilda que fala do Brasil apontando que não é possível criar-se uma nação arrumadinha, publicitária, porque “pátria é uma verdade grudada na minha sensibilidade”. À maneira de outros brasileiros no século XX (incluindo MD), ela, por ser afetada e sacar a situação de perplexidade que é viver neste país, tenta, mediante uma perplexidade cultivada, falar do Brasil, fazendo um Revirão do humor. Em Contos d’Escárnio, o narrador de nome Crasso diz a seu amigo escritor, Hans Haeckel: “...vamos escrever a quatro mãos uma história porneia, vamos inventar uma pornocracia, Brasil meu caro, (...) exaltar a terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis”. Hans, por levar a literatura a “sério”, não aceita – e se mata logo depois. Na mesma linha, em 1992, MD pergunta: “Por que há de ser sempre a riqueza da cultura brasileira sustentada pelo espólio dos linchados?” – uma pergunta que permanece para o país e para os brasileiros. Hilda e MD são brasileiros, entre outros, que, a partir de suas sensibilidades, se expressam num exercício constante de perplexidade. É esse exercício, aliás, que, em tom de manifestodisfarçado, também está em Oswald, ao propor a ideia de antropofagia como modo de encaminhar essa perplexidade. Ao 67

falar do Brasil como país da bandalheira, diz Hilda que “ser brasileiro é ser ninguém, ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo”. Assim, agora, no ponto de mutação em que nos encontramos, volta a emergir a invectiva do lugar extremado do Inconsciente. De um lado, temos a psicanálise, a literatura de Hilda, Bataille... que são a emergência da sacação do movimento místico como o movimento ápice do pensamento e ápice do Inconsciente. A obra da Hilda é o exercício literário, poético, artístico de reivindicação e de chamamento do ápice do pensamento em circunstâncias nossas de hoje. Hilda soube conviver com a zorra atual trazendo um modo bem-humorado de descrever sua vivência solitária e, de bandeja, nos transmitiu sua experiência de sacanear a paranoia. Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1 Alguns queridos caretas meus leitores me enviam críticas idiotas: 1.1 Que meus textos são cheios de termos vulgares, mesmo supostos palavrões. É verdade. A língua que falo, e na qual escrevo, é o Brasileiro contemporâneo caminhando para futureiro. É a língua que os próprios eruditos falam no cotidiano. Querem ver para onde esta novilíngua se encaminha? Basta ler as vinhetas do novo português da Televisão. Lembremos que do Latim clássico já passamos ao Latim Vulgar, isto é, popular e, ainda por cima, aos idiomas Neolatinos, dentre os quais o Português. Acham que a Língua vai ficar bem-comportada? No Quarto Império as fronteiras estão indo para o beleléu, e o Baixo Calão 68

frequentemente é mais preciso do que eruditismos de enfeite. Isto já está indo parar na Literatura, e mesmo em textos teóricos sob a égide de EXU. 1.2 que meus textos mudam frequentemente de estilo, mesmo, às vezes, de um parágrafo para o outro. Nosso Santíssimo Fernando Pessoa teve uma trabalheira do caralho para apresentar com nomes e estilos diferentes as diversas FORMAÇÕES que habitavam sua cachola. Foram centenas. Bons tempos aqueles. Agora, Quarto Império, deixamos que elas compareçam de cambulhada, quando quiserem, quando pintarem, mediante a regra de composição segundo a qual estilo é uma farsa. “O estilo é o homem” de Buffon, é o cacete. Hoje em dia, o Estilo é apenas a Caneta – que agora é eletrônica e pós-bobagem. 1.3 tem um safatlinho que denuncia, por escrito, que as “traduções” do MD, de dois Seminários de Lacan, não são recomendáveis. Fui procurar nos textos publicados pela Zahar e não encontrei nenhuma “tradução”. O que lá está escrito, com todas as letras, é: Versão Brasileira de M.D. Magno. Pois. Aliás, junto com o ZéJeca, pensa que Psicanálise é Filosofia. Né não, mermão. A Psicanálise está NovaMente em Vigor. Graças, adeus, como diz o MD.

NOTA 2 Teofagia, Heterofagia Já se falou que três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria… MÁRIO DE ANDRADE (1º Prefácio para o Macunaíma)

Teófaga incestuosa é um apelido gostoso, entre tantos outros, que a Hilda Hilst encontra para falar daquela ânsia por transcendência, daquela insistência mística que percorre sua obra. Mais especificamente, a expressão 69

figura no trecho inicial de d’A obscena senhora D. A mística pode ser descrita, no vocabulário dos especialistas, como uma “tentativa de expressar uma consciência direta da presença de Deus”. Já no vocabulário de Hilda, sem papas na língua, mais do que “consciência direta” de Sua presença, o que se quer mesmo é comê-Lo. Quanto ao “incestuosa”, sabemos, desde MD, que “incesto” e sua proibição são metáforas do Segundo Império para a impossibilidade de gozar absolutamente, mobilizadas como forma arcaica de organização social. Ah, a delícia do verbo “comer” na língua brasileira. É óbvio que essa comida almejada não é só aquela que se faz com boca, dentes e estômago. Neste nosso vernáculo sacana, Vontade de Comer coincide com Vontade de Phoder (duas possíveis traduções-Exu da Wille zur Macht de Nietzsche). A Teofagia hilstiana é incessante insistência na tentativa de atingimento da Foda Divina, ou seja, de sua própria desaparição. Aliás, não foi à toa que uma outra movimentação exemplar da mentalidade brasileira, a partir do polo Tarsila do Amaral, Raul Bopp e Oswald de Andrade – ponto alto do pensamento modernista –, quis apontar, com a analogia do comer, certo jeitinho de funcionar disseminado na sensibilidade do Brasil. Jeitinho que seria a tônica da sintomática nacional. Comer é o nosso esporte, bem mais até do que o futebol – que, a propósito, comemos dos ingleses. No Manifesto Antropófago, em vez de paixão nacionalista a configurações culturais determinadas, a alguma das diversas resultantes da hibridação brasileira, busca-se alguma descrição, assim como a assunção, daquilo que funciona como geratriz desse processo. O impulso de querer comer os outros. Foi o que se chamou de Antropofagia, a qual, naquele momento, só se conseguiu expressar por meio de formulações poéticas, mitológicas ou mesmo através de filosofemas que, frequentemente, mais obscurecem do que dão precisão a seu entendimento. 70

O desenvolvimento da Heterofagia por MD, apropriação operada a partir dos anos 1980, ao mesmo tempo simplifica e expande a ideia inicial dos antropófagos. Sai o anthropos e fica muito mais phagia: a vontade de devoração do diferente, das diferenças, é o funcionamento do Inconsciente, submetido à ALEI (Haver desejo de não-Haver). Em uma palavra (outra delícia do idioma brasileiro): Tesão. Um apetite, em última instância, absolutamente Indiferente e, por isso mesmo, aberto a Qualquer refeição. São os recalcamentos da ordem sintomática que vão, em cada caso, limitando as dietas. Não temos nisso caracterologia alguma do brasileiro, mas a acaracterologia macunaímica do Inconsciente, que acomete o Haver por inteiro e, é claro, qualquer IdioFormação. Função que terá encontrado terreno fértil na bagunça brasileira, o que exacerbou sua expressão e seus efeitos e se estabeleceu assim na sintomática nacional. É só considerar o exercício a que esta espécie foi forçada aqui desde que se formou essa algazarra. Aceleração transformática, intercruzamento de diversos fluxos de formações primárias, secundárias, com eventual eclosão de Originário, em regime de sacanagem liberada – mesmo que simultaneamente a um regime brutal de convivência, como mostrou a ciência lúcida de Gilberto Freyre, o Sade de Apipucos. Além disso, outros, mostram como o grosso dessa começão rolou bem longe de casas-grandes & senzalas, pelos sertões & veredas do país. A Teofagia de que Hilda fala poderia ser um nome para a última instância dessa Heterofagia. Se há, para esta espécie, essa Vontade de Comer as diferenças, é que há antes, de fundo, a afetação pela Diferença Radical entre Haver e não-Haver. O querer comer, gozar absolutamente desse suposto lugar de Deus, e a ciência clara de sua absoluta impossibilidade. Teofagia é querer comer o Impossível. Lembrando a transgressão de Georges 71

Bataille, é devorar o “Outro” – que, no entanto, não há. Se supomos alguma radical alteridade é só pela absoluta vontade de cair fora dessa – de Haver, o Mesmo – de uma vez por todas. Este é o fato fundamental com o qual lida a psicanálise: não tem jeito, somos uma espécie incontornavelmente teófaga. Mesmo a animalização e a neo-animalização a que frequentemente nos submetemos são subterfúgios que ocultam mal – o que é característica do recalque – qual pathos está na base. Para esta lida, a Indiferenciação – exercício de neutralização e afastamento das diferenças internas ao mundo e acirramento e aproximação da Diferença Radical na última instância – é a postura fundamental proposta. Daí seu Estatuto Místico: a psicanálise se apresenta como exercício secularizado de trato com a função mística, transcendental, teófaga, do Inconsciente. Trato que também os místicos históricos tentaram, porém muito embrenhados com toda a mitologia religiosa que os cercou – o que não impediu que se fizessem achados fundamentais, como é o caso, sobretudo, na mística ocidental, de Mestre Eckhart. Chamemos de Zeroteísmo, seguindo MD, o exercício secularizante de manutenção em vazio daquele lugar psíquico que impõe, para esta espécie, a incontornável hipotetização de “Deus” – lugar de Gnoma, onde se exasperam a exigência de não-Haver e o baque de sua impossibilidade. O Gnoma é frequentemente preenchido com formações sintomáticas da pior espécie – dessas que, superegoicamente, proliferam recalques sobre o que se pode ou não se pode comer. Zeroteísmo é sacar que, neste lugar, em vez de algum deus configurado ou configurável, o que há é deus-nenhum, Nada, Fundo sem Fundo – e só resta Haver, nosso trauma. A IdioFormação vive atravessada entre a Teofagia, impossível e inafastável, e a Heterofagia, possível, mas insaciável. Sobra comer o que temos – e o que ainda não temos (“Só me interessa o que não é meu”, conforme Oswald). Expansão, em regime de Indiferenciação, e por eventual 72

HiperDeterminação, do cardápio das possibilidades de transa e transação. Resultante daquele desassossego do qual jamais poderemos nos livrar, de querer comer justamente o que não há. Enquanto isso, a gente (no Haver) vai se comendo.

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4 O LUGAR TERCEIRO DA PSICANÁLISE ...há só um empuxo e pura perplexidade. (MD MAGNO, Psicanálise: Arreligião, 2002: 72)

Dado que a Pulsão, empuxo que afeta tanto o psiquismo da IdioFormação como tudo que há – aqui nomeado por Haver –, requer o Impossível, colhe-se desse movimento necessariamente uma quebra-de-simetria. O simétrico fatalmente desejado por Haver não se entrega como fatalidade requerida apenas porque não há. Impossível Absoluto, atrator alucinado, não-Haver produz, no entanto, o efeito da desejação perene. Se não-Haver não se apresenta, a experiência de Haver, disponível para toda IdioFormação, seria o golpe, em radical solidão, de sacar que Há. Na radicalidade dessa experiência coincidiriam o conhecimento absoluto e a ignorância absoluta: lugar onde se sabe que Há, mas também da afetação do desconhecimento de qualquer origem e destino. Conforma-se aí o lugar do mais fascinante tesão de desaparecimento e, pelo mesmo motivo, da angústia mais tremenda. Para aquém da ordem de 74

Haver, decai-se – de forma descontínua – na ordem do Ser. Enquanto o irredutível Haver é anterior a qualquer partição, o âmbito do Ser é necessariamente o das formações cindidas, posto que ressoam a quebra-de-simetria fundamental entre Haver e nãoHaver. Disso decorre que qualquer tentativa de discorrer sobre as formações do Haver já parte do fracasso da discursação inapelavelmente castrada do Ser. Consoante com o aparelho teórico montado sobre o axioma da pulsão – Haver quer não-Haver –, a Nova Psicanálise, seja na clínica de Pessoas, seja na Clínica Geral de mundo, opera a partir de certo lugar. E que sítio é esse desde onde a Nova Psicanálise se postula? Um Lugar Terceiro. Mas terceiro em relação a quê? Em relação às oposições de mundo e ao sistema de valoração que sobre elas incide. O lugar onde a Nova Psicanálise se situa é, portanto, o de Indiferenciação com recurso à HiperDeterminação, entendida como requisição de ascese informada pela rememoração da experiência bruta de Haver. Sendo talvez a postulação desse locus terceiro uma das maiores diferenças afirmativas da Nova Psicanálise, pareceu oportuno, para nossa compreensão, percorrer novamente um caminho até lá, dentre os inúmeros descritos na obra de MD. Partindo do reconhecimento de que a psicanálise é uma emergência ocidental do século XX e que, como tal, está necessariamente sobredeterminada por sua circunstância, para uma primeira limpeza do entorno do terreno, propomos: 1 - Retraçar o 75

que o filósofo francês Dany-Robert Dufour descreveu como o recalcamento do pensamento ternário no Ocidente. 2 - Sumariar algumas das polarizações que se dão em torno do vitorioso binarismo de matriz grega. 3 - Chamar o pensamento oriental para a conversa – notadamente o chinês –, destacando proximidades e diferenças. 4 - Trazer para consideração a razão egípcia que – junto com a chinesa, a grega e a psicanálise – compõe o tetraedro das razões desenhado por MD (2003).

* * * Para o primeiro passo, seguimos sugestão de MD e tomamos de empréstimo a argumentação de Les Mystères de la Trinité (1990), de Dufour, que conjectura a história do pensamento ocidental como o embate entre pensamento ternário e binário. Nos termos do autor, a vitória do pensamento binário teria se dado mediante a “erradicação do espaço mental destinado à simbolização da morte”. Se as narrativas míticas mantinham a morte na consideração – ao insistir no reconto da aventura do herói que transmuta o inescapável em decisão –, a partir da chamada “ruptura pitagórica”, como veremos na sequência, teria se dado a inclusão da natureza humana na ordem da permanência, tendo na negação da morte sua contrapartida lógica. Relembra Dufour que, no século VI a.C., uma pequena sociedade marginal rebela-se contra a ingestão de carne e as práticas sacrificiais correntes e marca posição no esvaziamento do 76

lugar destinado à simbolização da morte. Mas, fundamentalmente, a novidade pitagórica está na criação de um sistema binário de oposições que dá origem ao conceito de Número. Gerador da ideia de Proporção, o conceito de Número logra colocar contrários em acordo e abre uma via para o assentamento da natureza humana no domínio do imutável. Como sabemos, os pitagóricos encontram na música, a um só tempo matemática e sensível, o acesso por excelência dessa ascensão. Ao participar da natureza imutável do número, um novo tipo de superação da morte aparece para o homem: desembaraçado de toda variabilidade, encontra-se agora assimilado à permanência via eternidade da alma. À alma pitagórica, que tudo conhece, restaria rememorar – ideia que será retomada e expandida pelo pensamento platônico na distinção entre mundo das ideias e mundo sensível. E será justamente na figura do diálogo platônico que o pensamento binário atingirá seu desenho mais acabado. O binarismo corpo/alma, que aí se estabelece, assume posição matricial no pensamento ocidental e sela o banimento do terceiro termo. Em seus Mystères, Dufour faz ainda o acompanhamento da expansão do pensamento binário para o discurso científico, dando origem às noções como falso/verdadeiro, princípio de causalidade, dentre outros. Em contraste com a narrativa mítica – aberta, incompleta, recriadora de mundo a cada vez que se conta –, os enunciados científicos configuram-se fechados, imutáveis e válidos sempre. Por fim, Dufour mapeará o espraiamento do 77

pensamento binário ao território das ciências do homem, tendo no Estruturalismo seu ápice e autores como Lévi-Strauss, Lacan e Foucault, alguns de seus expoentes. Pontuado o papel decisivo da ruptura pitagórica no recalcamento do lugar terceiro na matriz do pensamento ocidental, passaremos brevemente em revista algumas das polarizações em torno do binarismo triunfante. E esse passo já damos a bordo do nosso próprio aparelho, notadamente a partir da distinção radical que MD faz entre Haver – o golpe discreto de “estar aqui” – e a ordem do Ser que abarcaria a falação infinita de tentar dizer o Haver. Essas duas categorias (Haver/Ser) são fundamentais para a releitura psicanalítica que MD fará das discussões medievais sobre a relação, e respectivos estatutos, de duas formas de conhecimento: Fé e Razão. Entrando, então, no percurso que nos interessa, teríamos a considerar, antes ainda do marco que Sócrates vai inscrever no debate Fé/ Razão, as premissas de Parmênides e Heráclito (VI a.C.). Para o primeiro, a fé antecederia a razão, ou seja, antes de qualquer “discorrer sobre o mundo”, Parmênides insiste no Um – nos termos da Nova Psicanálise: a experiência bruta de Haver. Com precedência sobre qualquer falação sobre o mundo, Parmênides, em nossos termos, posicionaria o golpe discreto do reconhecimento de Haver – a experiência de que Há e de que não-Haver não há. Alternativamente, o foco de Heráclito estaria no multifário, no devir, na transformação: no desenvolvimento discursivo na 78

internalidade do Haver. E a Nova Psicanálise, diante da referida polarização pré-socrática, de que lado se colocaria? Segundo nosso aparelho: na validação de ambas as premissas, feita, porém, a fundamental distinção de nível entre elas. A experiência de Haver, ou o lugar de Um, antecede e é hierarquicamente superior ao múltiplo, situado no nível do Ser. Mas eis que, na constituição da filosofia ocidental, manifestase a virada socrática (V a.C.). Nesse passo, o esforço de avançar com o pensamento se dará no sentido de fundamentar o exercício da razão como via exclusiva de acesso à verdade. Lançando mão da ferramenta dialógica, Sócrates se move para evidenciar contradições a serem eliminadas consoante com o interesse por maior precisão de conceitos – é como dizer: “se isso é verdade, o resto não é”. Aristóteles, por sua vez, discernirá alguns modos de operação dessa razão, tais como o princípio de não-contradição e a lei do terceiro excluído, que acabarão por fornecer os fundamentos da epistemologia e da lógica que, como sabemos, se tornaram as formas consagradas de saber no Ocidente. Para o que anima o presente exercício de estabelecer o lugar terceiro da psicanálise, é interessante aquilatar a inflexão resultante da castração socrática. Em nossos termos, a coisa teria se passado como a consagração de uma alelização (+ / –) que bilateriza o mundo – “rasga-o ao meio”. Um gesto que, ao excluir o terceiro termo, denega que, em alguma instância, Haver possa anotar-se como Um. 79

Saltando para a era cristã, observa-se a determinação de um Santo Agostinho (IV d.C.) em separar radicalmente fé e razão, ao passo que em São Tomás de Aquino (XIII d.C.) anotaríamos o esforço oposto de conjugação de opostos na suposição de que não há razão decente sem estar referida à fé e não tem fé que não possa ser trazida à razão. Nos termos da Nova Psicanálise, verificar-se-ia no tomismo uma auspiciosa tentativa de passar alelicamente de uma forma de conhecimento à outra. Um mapeamento mínimo de posicionamentos expressivos do embate entre fé e razão no Ocidente tem apenas o interesse de dar moldura à forma própria pela qual a Nova Psicanálise o articula. Sumariamente, como vimos, tanto fé como razão têm lugar no desenho do Revirão: a experiência de Haver, do Uno, da fé é anterior, tem precedência e é hierarquicamente superior ao âmbito do Ser, à razão, ao múltiplo, a qualquer discurso na internalidade do Haver. Mas antes de avançar, para afastar possíveis deslizamentos do termo para altares consagrados, vamos definir novamente o que, por aqui, se entende por Fé. O fundamento da fé na Nova Psicanálise é a experiência de Haver, o deparar-se com o fato bruto de que Há e da indisponibilidade radical do que não há – o que impõe inarredável desejação que, “de retorno”, será reinvestida modalmente. A fé, nesses termos, é efeito da condição de ser portado pela insistência libidinal em sua havência com endereçamento de impossível. É, portanto, cega, em vazio, à 80

revelia, fundamentada em si mesma – puro tesão –, e antecede e sobrepuja qualquer razão ou questão no âmbito do Ser. Por fim, vale lembrar que o reconhecimento dessa fé que é vetorização transcendental sem transcendente – expressão de última instância do psiquismo – é o que aponta para o Místico do estatuto da Nova Psicanálise. Voltaremos a isso brevemente no final desse percurso. Pelo momento, uma vez situada a fé, estamos em condição de deduzir razão como empréstimo ou aplicação modal dessa fé sem conteúdo na ordem do Ser – tentativa assintótica de dar conta da experiência de Haver. Passaremos agora à consideração do modo de operar oriental – notadamente do pensamento chinês – que, diversamente do modo opositório que prevaleceu no Ocidente, operaria por alternância de opostos. Na visitação do modo de operar chinês, também por indicação de MD, acompanhamos François Jullien. Em seu Tratado da Eficácia (1998), o filósofo e sinólogo francês explora a diferença entre a fonte de eficácia chinesa e a grega, matriz do pensamento ocidental. Para tentar acessar “o que funciona” na montagem chinesa, vale incluir uma contextualização mínima, no caso franqueada por Giorgio Sinedino, sinólogo brasileiro, tradutor, dentre outros, do Dao De Jing. Sinedino adverte que, na comparação entre a filosofia ocidental e o pensamento Chinês, é preciso pôr na conta que não vamos encontrar neste as mesmas categorias filosóficas que encontramos naquela – donde justamente não caber falar de uma filosofia, mas de um pensamento chinês. De 81

base

holística,

inseparável

da

religião





entendida

predominantemente como culto aos antepassados e ensinamentos dos sábios –, o pensamento chinês, seus saberes e técnicas, sempre esteve voltado para a administração – inicialmente das “federações” (ou “feudos”) e posteriormente do Império –, e a coordenação do trabalho agrário e as necessidades da guerra. Mas o que se extrai de fundamental da circunstância chinesa é o fato de que, como lá o sistema político não teria sofrido grandes rupturas, o pensamento chinês igualmente teria se constituído em continuidade, em um constante aprofundamento e refinamento – em uma palavra: em “fluxo”. Percurso radicalmente diverso do caso ocidental, marcado pela descontinuidade das formas de governo, tendo como corolário uma filosofia que se constitui por “cortes”. Voltando então ao balanço comparativo de Jullien entre pensamento chinês e a matriz da filosofia ocidental, entendemos que, para os gregos, a eficácia será pensada a partir da abstração de formas ideais – “modelos” – projetados sobre o mundo e realizados através de uma vontade que estabelece uma meta – “plano” – visando sua realização. E esse plano, ou projeto, é realizado por meio de uma agência heroica. A China, por contraste, teria outra inteligibilidade e diferentes recursos propiciadores de eficácia. Seu modo de operar deixaria advir o efeito, orientar-se-ia por não visar uma finalidade, por não buscá-la, mas recolhê-la, por deixar o efeito resultar: “Se deixar portar pela situação”. De resto, como o 82

efeito já estaria inscrito na situação inicial, tratar-se-ia de facilitarlhe a fruição e recolhê-lo. Em suma: buscar eficácia no fluxo é – diversamente do modo ocidental – operar mediante a aposta de que as situações viram por si mesmas, em alternância de opostos. A distinção entre os modos de conhecimento grego e chinês alimenta uma longa lista de resultantes específicas a cada um em termos de posturas, métodos, lógicas, estratégias e expressões artísticas e conceituais. Se o modo grego é focal, fixador de forma, se estilisticamente é clásssico e logicamente consistente, se trabalha na separação com oposições como sujeito / objeto e tem na filosofia sua forma mais acabada; o chinês é franjal, privilegia a passagem e a transformação de estados, estilisticamente é barroco e logicamente inconsistente, exige a complementaridade, como por exemplo expressa no Yin/Yang, e colhe na sabedoria de seus mestres a orientação para o caminho (Tao). Ainda sobre a diferença entre esses dois modos de operar, poderíamos dizer que o pensamento chinês recalcaria a possibilidade de forçar o outro alelo via alguma intervenção contra a situação. Então, se a filosofia poderia ser lida como operação de mutilação em nome da razão – ou seja, como impositora de recalque –, o pensamento chinês seria, alternativamente, recalcador de recalque. Parece também pertinente supor que, apesar de se querer radicalmente imanentista, o modo chinês faz a introjeção da figura do Sábio na imanência – o que não deixaria de ser uma espécie de internalização da transcendência, ao passo que o 83

Ocidente exportaria a transcendência “para fora”: seja inventando Deus ou entronizando a razão. Incluamos agora rapidamente a razão egípcia que, junto com a grega, a chinesa e a psicanálise, vai compor o que MD chamou de tetraedro das razões – um construto muito rentável para o aprofundamento da compreensão do que seja esse Lugar Terceiro da psicanálise. Na incursão à razão egípcia, segundo orientação de MD, toma-se como referência o trabalho de Nayla Farouki La Foi et la Raison: Histoire d’un Malentendu (1996), no qual empreendese o cotejamento entre razão egípcia e grega. Da mesma forma que fizemos em relação à razão chinesa, na suposição de que a prática de um povo sobredetermina em alguma medida seu modo de conhecer, valeria lembrar que tem-se aqui um povo envolvido com a criação de gado, o que teria forjado a mentalidade egípcia em termos de “comando, exigências e ordens” (MD, 2003: 131). Teocrática, mística, transcendente, revelada, postulando um Criador e invocando um Profeta como fonte de conhecimento, a razão egípcia contrasta com a grega que é transcendental, antropocêntrica, forjadora de axiomas e que tem nos filósofos a fonte de explicações. Minimamente esboçadas as três razões – grega, chinesa e egípcia – e colocadas como vértices de um triângulo segundo seus específicos modos de operar, obtém-se o tetraedro posicionando a psicanálise em um quarto vértice. Isso posto, seria justo estranhar que a psicanálise tenha acabado de “pular” do lugar terceiro para o 84

quarto. Mas esse reposicionamento deve-se apenas ao acionamento de uma outra articulação – no caso, o tetraedro das razões – dentro do mais amplo aparelho teórico em vigor na Nova Psicanálise. O que importa aqui é perceber a posição radicalmente exterior às razões articuláveis de mundo, que variam segundo as culturas, mas que não escapam do lastro sintomal – ou seja, da parciaridade de tudo quanto está subdito à ressonância da quebra-de-simetria originária. Nesse quarto vértice, digamos “externo” aos outros três, a psicanálise, dada sua possibilidade de indiferenciação fazendo recurso à HiperDeterminação, agrega soltura propiciadora de operação com qualquer uma das razões segundo o caso e a hora – ad hoc. Compreendida essa “externalidade” desde onde a psicanálise opera, e invocando uma trilha que MD recupera em um Seminário Clínico de 1990, fica claro também que o que se entende por Indiferenciação tampouco seria traduzível pela síntese hegeliana. Como sabemos, a ideia de Hegel consistiria em, a partir da alternância de teses e antíteses, obter uma síntese que as inclua e as supere. Nessa ocasião, esclarece MD que sua indiferenciação extrapola o discurso sintético – resultante almejada do processo dialético – justamente por sustentar-se na diferença externa. Não se trataria aqui, pois, de nenhuma androginia, de nenhuma coincidência de opostos por ocasião do atingimento de uma síntese, mas antes de uma Indifferentia Oppositorum – de um radical salto fora da lógica opositiva. 85

Estabelecidas essas primeiras distinções, caberia agora nos deter mais especificamente em uma não rara ambiguação entre o modo de operar chinês e a Nova Psicanálise. A questão é: se entendemos que a psicanálise opera pela indiferenciação dos valores atribuídos aos elementos de uma oposição, no que diferiria da operação suspensiva da alternância de opostos do modo chinês? O aparelho teórico da Nova Psicanálise nos disponibiliza uma variedade de trilhas para entregar essa resposta. Mas supomos possível dizer que decisivo na marcação da diferença é o destacamento axiomático que nela se faz da Pulsão que não encontra seu simétrico – donde a quebra-de-simetria que reverbera por todas as formações multifárias do Haver. Ou seja, para além das oposições, digamos “internas”, que o pensamento chinês propõe manter em suspensão e alternância, coloca-se uma segunda oposição “externa” – aqui nomeada como a de segunda potência do binário. Essa segunda oposição tem como polos Haver e não-Haver e é da ordem da experiência. Parece também justo dizer que o trauma fundamental da condenação de Haver – o bordejar do que MD chama de Cais Absoluto – não apaga os dualismos do mundo impostos pela incontornável quebra-de-simetria, mas nem por isso deixa de propiciar um afastamento temporário da imanência capaz de promover a indiferenciação das oposições “internas”. Note-se, porém, que é somente pela experiência de afastamento de mundo – em vetorização transcendental sem transcendente – que, “de 86

retorno”, é possível indiferenciar valores, ou seja, só há indiferenciação com referência à HiperDeterminação. A aposta em jogo é a de que se houve experiência de Cais Absoluto, nesse lugar de exasperação entre Haver e não-Haver, nas situações de periclitância e embaraço de mundo, ou “apenas” como exercício de ascese, seria possível fazer referência à HiperDeterminação – essa requisição de rememoração do trauma – e nas palavras de MD: “empastar totalmente a imanência” (2000: 194). Por fim, lembraríamos que, outra forma de descrever o próprio do modo de conhecer da Nova Psicanálise, seria a observância do Gnoma em vazio. Partindo da premissa, segundo MD sacada desde Freud, de que o Inconsciente é religioso, ou seja, que seu funcionamento de última instância é de vetorialização transcendental – o que não deixa de ser apenas outra forma de falar o axioma Haver quer não-Haver –, não surpreende o comparecimento da suposição de que deveria ter “algo” ali – no lugar dessa exasperação – que responda ao pedido original da pulsão – o que MD chamou de “Hipótese-Deus”. Estando o desejo de transcendentação inscrito na máquina do funcionamento psíquico da IdioFormação, mas dado também que a espécie está sob o jugo de espessa massa recalcante primária e secundária, observa-se o tamponamento do lugar do Gnoma com os mais diversos conteúdos – seja um axioma, uma sabedoria ou um deus, como dão exemplo respectivamente as razões grega, chinesa e egípcia. Quanto a essa consideração, o que se coloca como central 87

seria a sustentação da disjunção entre a experiência de Fé em vazio – o golpe de Haver – e as tentativas das variadas razões forjadas no mundo e no tempo de preenchimento do lugar de Gnoma, aí incluídas as narrativas religiosas. Retomando nosso ponto de partida, se Dufour dizia que o Ocidente recalcou o lugar terceiro da “simbolização da morte”, a Nova Psicanálise melhor diria que, nesse lugar, está-se diante da angústia do impossível da desaparição. Diante disso, as religiões dariam testemunho da tentativa de suturar a disjunção “para cima” – Deus é Causa, tudo sabe: é o dogma. A ciência e a filosofia fariam a

operação

de

suturar

“para

baixo”



entronizando,

respectivamente, a verdade científica ou o axioma filosófico. Nesse ponto, chama a atenção a engenhosidade da ferramenta teórica da Nova Psicanálise que logra colocar a Pulsão tanto como Causa quanto como conceito. Não-Haver é Causa, mas gerada pelo funcionamento interno do aparelho, como requerimento do Haver. Não-Haver é alucinado e revelado como transcendente – como que dado de “cima para baixo” –, ao mesmo tempo que se desdobra em conceito – forjado de “baixo para cima” em vetorização transcendental e gerador do axioma do aparelho.

* * * Encerramos lembrando, conforme MD, que teoria sem uso não tem valia. O que interessa é, pois, o manejo de formações propiciado pela ferramenta, a operatividade da prótese para intervenção de 88

mundos. Isso posto, qual o ganho que pode advir de posturar-se desde esse Lugar Terceiro? Certa movimentação, maior disponibilidade, relaxamento da pressão sintomal, expansão da franja, outras transas, redesenho do pólemos das formações – em suma: alguma metamorfose. Com sorte: emergência de novo. Ao longo do caminho proposto até o lugar terceiro da Psicanálise, vieram conversar Confúcio, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Sócrates, São Tomás de Aquino, Descartes, Hegel, Freud. Ressoando tantos outros incontáveis nessa falação que se entabula desde quando a espécie – que passa a chamar-se IdioFormação – deu de querer o que não tem, mas nem por isso, ou por isso mesmo, desistiu de tentar dizer. Sabedoria e filosofia se infinitizam querendo dizer absolutamente. Mas absolutamente não se diz: sabe-se. Há e sabe-se que há. Silêncio e perplexidade. Soube-se como? Empuxo: Haver desejo de não-Haver.

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5 SEM DÚVIDA SEM DÍVIDA SÓ DÁDIVA Zhao TINGYANG: TIANXIÁ (Tudo Sob o Céu) MD: TUDO QUE HÁ

Os grandes espíritos constituem verdadeiras famílias; escolha aquela onde você quer ser admitido; essa adoção lhe dará não somente seu nome, mas os seus próprios bens. EPICTETO (Les Stoïciens. Paris: Gallimard, 1962. p. 713)

Trato agora de algumas resultantes da Teoria das Formações e da Teoria do Conhecimento (esta, chama-se: Teoria da Transa). Lembrando que, na Bíblia, a transa se chama conhecer: Adão ‘conheceu’ Eva – isso, para a NM, se chama ciência (paradigma Escher). Lembrando também que, segundo o paradigma NM, toda e qualquer formação é sintomática. Sintoma é genérico. Formação é sintoma. Só o Haver não é sintomático, o resto é sintoma. O que uma análise faz é esclarecer para o analisando o concerto de suas formações, o resto é problema dele. O que direi a seguir é contra a paranoia do Terceiro Império e do cristianismo. Como vou encarecer um conceito, mostrarei primeiro as diferenças. 90

A noção de Ipseidade, em filosofia, é ‘aquilo que faz com que um ser seja ele próprio e não outro’. São as formações componentes, ou hecceidade. Outro conceito usado em filosofia é Solipsismo: só existem Eu e suas sensações, outros entes são meras impressões sem existência própria – isso se chama idealismo radical. O que é a noção de Egoísmo? Vou para a psicanálise, é referência ao Ego (conceito freudiano). Para a NM, Ego é formação ideológica e defensiva como representante de si mesmo em claro recalcamento das formações em exercício na Pessoa. Lacan dizia “mito individual do neurótico”. Falei desses conceitos porque não estou falando disso. Falarei, sim, de um conceito que não é isso. O conceito que interessa à NM é Ipsismo. Em medicina, é: a prática da masturbação – é a coisa mais séria, pois não existe outra coisa. Tomei o conceito para levá-lo a outra região. Para a NM, Ipsismo é o exercício de suas próprias formações. É o mesmo que masturbação pessoal. Quando alguém está – e sempre está – no exercício de suas formações, chama-se: Ipsismo. Portanto, trata-se de autorrealização independente das demandas de outrem. Estas são falsas, pois, se alguém as acolheu, são dele. Lacan fala em Outro, em pequeno outro, etc. A NM só tem o Mesmo. O Ipsis tem o mesmo sentido do Idios, ambos são parentes. O que é Altruísmo? É a inclusão do Estranho por sua sagração mediada pelo próprio. Ou seja, não existe altruísmo: se tomamos o Estranho e incluímos, é nosso. Não há que culpar outros 91

ou achar que somos maravilhosos por sermos “altruístas”. Observem a ação dos ditos “Santos” benfeitores e das pessoas “dadivosas”. Eles fazem tudo pelos outros – os quais têm que ficar lhes devendo: MENTIRA. Eles realizaram seus tesões e seus gozos – que não podem, honestamente, ser postos na conta dos receptores. O que somos é Ipsistas, todos o são. Considerar assim faz uma diferença enorme de Metanoia para Paranoia. Portanto, dito isso, as moções de qualquer serviço para alguém ou para algo são motivadas pelas próprias formações (sintomas, fantasias). Ninguém DEVE NADA a ninguém. Não há MÉRITO ou DEMÉRITO em realização alguma. Se estou gozando com minhas formações, por que mereceria? Cada um goza por onde pode, e isso é Ipsismo, é próprio – e não elimina as transas. Eis aí um entendimento fundamental para o Quarto Império funcionar. Dívida pessoal é coisa de Terceiro Império cristão. ORIGEM DO ENGANO (de supor altruísmo, mérito, etc.): Intenções de dominação do Segundo e do Terceiro Impérios. No Segundo Império são dívidas para com o Pai, o Dono, o “Provedor”, o que é mentira, pois tudo que ele tem é tirado do esforço de outros. No Terceiro Império, foi inventada uma dívida radical de todos para com o Salvador (que morreu na cruz para “nos” salvar). O que são AGRADECIMENTO e GRATIDÃO? A quem efetivamente se agradece? Ou a quê? Fica-se agradecido (grato) ao encontro de formações e se atribui por prosopopeia (‘atribuir-se a algo ou alguém o que é da ordem de meras formações’) ao suposto 92

gratificador. A pessoa lá está exercendo certas formações e ficamos agradecidos a ter acontecido isso. Que bom que aconteceu! Mas nada estamos devendo à tal pessoa (e esta nada nos deve). MD: “Faço a obra que faço para ninguém, faço por mim. Ninguém me deve nada: o tesão e o gozo de fazê-la é todo meu. Se tiver serventia para outros, bom proveito!” Essa área precisa ser limpa pelo Quarto Império. Aí fica honesto. O Terceiro Império tem sido desonesto. Além disso tudo, ainda há A LOROTA DO OUTRO (grande ou pequeno). A definição possível para a NM é: só há alteridade na estranheza do não-incluído. É a única alteridade que existe, pura estranheza. Dada a Transa (no sentido Escher), haverá alguma sagração do estranho. Donde: inclusão e apropriação. Quando há inclusão e apropriação em consequência da transa das formações, acabou a estranheza, acabou o outro, é o Mesmo. Então, o outro é inatingível porque é estranho. Não há Outro a quem recorrer. O Grande Outro de Lacan, aqui entre nós, é o Deus dos cristãos. Ele o abstraiu assim. E o pequeno outro é o tal objeto – que deve ser eliminado. Não há objeto algum, o que há é transa de formações: formações de lá e formações de cá. Não há nada posto diante (objetado) de mim, só formações em transa. O que é o conceito de VERACIDADE (e não de verdade)? É: inclusão das formações resultantes da transa, sempre provisória e provisional. Isso é que é veraz. Pode-se pensar que, uma vez que não há o outro, tampouco há paranoia. Há, sim, é entender que não é assim e ficar criando ideologemas de fechamento. A paranoia 93

depende de, de maneira recalcante, recalcar do veraz e atribuir a transas que não existem. Por exemplo, a paranoia do Salvador, etc. Paranoia é da ordem da neura. Se não neurotizar a transa, ela fica aberta, pois ela é sempre metanoica. Ao fazer algum recalque, cria-se um círculo de Euler e fecha-se – é isso a paranoia. Mesmo que se pense que a paranoia precisa do outro, o outro é o quê? O Estranho, é aonde não vou, é o limite. O sentido de haver paranoia é o de limitar o processo. Se fechou, circunscreveu, não tem abertura, é paranoia, a qual é a crença absoluta numa formação. Isso vale também para o conhecimento, não há como escapar dela. Mesmo eu aqui falando contra a paranoia, qual é o limite da paranoia de meu pensamento? Daqui a algum tempo, alguém poderá dizer que sou parana. Não se escapa porque há recalque e, se há recalque, fechou. Há também aí um mecanismo projetivo. Quando defino o outro como estranho, o que faço? Projeção, estou delimitando. Ninguém, em abertura, consegue pensar. Seu sintoma falará mais alto, ele sempre limita por mais que se abra, que se esgarce o processo. Há um negócio chamado Primário. E se abrisse radicalmente, perder-se-ia o pensamento. É preciso um mínimo de base sintomática para organizar algo. O Haver não tem limite. Para entender isso, basta olhar para os físicos e ver o quão estão perdidos. O telescópio espacial James Webb a cada dia traz alguma informação que desconcerta o que se achava antes. Esta é que é, aliás, a possibilidade de pensar, de trazer outras concepções. 94

O que é RECONHECIMENTO?: Como de Firma, não implica obrigação alguma, é puro e simples registro. Alguém diz algo importante, registra-se, está reconhecido. Um autor, em qualquer área, pode ser Reconhecido por sua performance, e nada mais. Podemos admirá-lo e mesmo ser agradecidos ao Haver que aquilo tenha acontecido, mas não devemos nada ao gozo do autor. O não entendimento disto cria monstros históricos que, por fanatismo acadêmico, emperram o famigerado e boicotado dito “progresso da ciência”. O que é RESPEITO? É o que se diz “a respeito de”, é mera com-sideração. Trata-se de lidar com o outro no regime de estar tratando a respeito de. A definição de respeito é exemplar no Terceiro Império, ele é hierárquico e paranoico, diz respeito a obediência. Pensar em termos de “a respeito de” é da ordem da metanoia. E o que é AMOR? O Terceiro é o Império do amor. Em termos da Teoria das Formações, amor é: encontro em algo ou em alguém de formações análogas às da própria requisição. Quando alguém as encontra, gruda, estabelece uma vinculação imediata. Amor é apego às tais formações análogas. (Por isso, pode haver suspensão do amor quando a estranheza comparece. Alguém que ama demais uma pessoa, ao ver que não era o que ele estava pensando, aquilo se arrebenta). É claro que, na transa amorosa, novas formações antes estranhas podem vir a ser incluídas, fazendo parte então do acervo sintomático. Por isso, não é solipsismo, e sim Ipsismo: há inclusão (ou rejeição) na transa. Já o ÓDIO é: 95

exacerbação

excludente

de

formações

consideradas

definitivamente estranhas. É preciso limpar de uma vez por todas a ideia de sujeito e consequentemente a de objeto, mesmo no tratamento da LINGUAGEM e da língua. Substitua-se, então, sujeito por Agente, e objeto (direto e indireto) por implicado direto e implicado indireto. É, aliás, um vício escolar, não há objeto algum. Basta ver que a língua sempre extrapola esse modelo oriundo basicamente da gramática aristotélica, que traz o substantivo e as chamadas classes gramaticais. Há um problemão aí, pois o substantivo tem que ser eliminado. Como diz MD, tudo que há é adjetivo, são formações em transa umas ao lado (ad-jetadas) das outras. A noção de substantivo é praticamente uma hipóstase ontológica: a garrafa é, João é... Estamos, desde a base, viciados no entendimento da língua. O verbo Ser é uma especiação do Haver. Ao falar que algo é, sintomatizamos, e aí acabou, fechou o sintoma. É claro que se pode falar disso que estou falando das formações, portanto é sintomático. Qualquer nomeação em nosso meio linguístico implica isso. Por fim, a POLÍTICA DA PSICANÁLISE é semelhante à política TIANXIÁ: inclusão de tudo que há. Ou seja, o Mundo do ponto de vista de Deus (=Haver). Outra coisa é a Administração das Diferenças. Daí que a tal Igualdade, hoje politicamente brandida,

é

pura

denegação.

Melhor

pensarmos

em

equacionamento e administração das diferenças na lembrança de 96

um Vínculo Absoluto – no sentido da instalação do Quarto Império. Posso dizer isso porque minha leitura dos fenômenos é Sintomal e minha referência é Psicanalítica. Assim, tenho sempre a reiterada impressão de que o caminho dos autores ao falarem em igualdade como base da política não vai a lugar algum, apesar de toda a boa vontade intelectual (coisa várias vezes apontada por MD). Vejam como o Terceiro Império, sobretudo cristão, rebaixou tudo, colocou tudo na neura. É preciso radicalizar as definições para não se deixar fagocitar pelos Segundo e Terceiro Impérios. Ʃ Ʃ Ʃ

Como disse, Ipsis tem o mesmo sentido do Idios, ambos são parentes. Estou chamando o Idios para o núcleo da teoria. Por isso, MD chamou de IdioFormação, é o Ipsismo da IdioFormação. Faço uma breve consideração linguística: Idio ou Idios (em grego) e Ipse (em latim) são morfemas que estão na composição dos vocábulos IdioFormação e Ipsismo. Idios significa o mesmo, próprio, particular e constitui morfologicamente vocábulos tais como idioma, idiossincrasia e idiota. Por exemplo, inicialmente o termo idiota não tinha sentido pejorativo como no português contemporâneo, mas mesmo no grego antigo começou a ter quando se referia à condição de homem privado, leigo em questões do Estado, um estigma de classe na sociedade grega. O participante da polis era aquele que deliberava sobre a vida coletiva e aqueles sem interesse pelo Estado eram chamados de idiótes, de onde 97

deriva o termo idiota, e é nessa tensão que circula até nossos dias. Quando chegou ao latim, idiota já tinha, ao lado da acepção primitiva de pessoa simples, sem instrução, iletrada, a de pateta, parvo, tolo. No século XIX, o vocabulário psiquiátrico se encarregou de transformar idiotia em sinônimo de retardo mental grave. No entanto, a significação relativamente branda de idiota – hoje em desuso – persistiu nas línguas que herdaram a palavra, ao lado do sentido moderno. Em meados do século XV, podia se referir aos apóstolos de Cristo como doze idiotas sem temer a Inquisição (cf. The Merriam-Webster New Book of Word Histories) e, de modo análogo, em Curiosidades Verbais, João Ribeiro, filólogo e historiador, comenta que nas aldeias portuguesas no século XVI havia juízes idiotas, simples juízes de paz e de quem não se exigia mais que os bons costumes, a experiência, a probidade. Como se pode ver, é um termo marcado por forte expressividade. Alguns vocábulos bem conhecidos que têm idios como parte integrante de sua composição morfológica: 1. Idiossincrasia: refere-se a características peculiares e distintivas de um indivíduo, comportamentos, gostos ou preferências que o tornam único. 2. Idioma: o termo idios é a radical da palavra em grego. Essa relação conecta a ideia de uma língua particular, específica de uma comunidade ou grupo, com suas próprias regras gramaticais e vocabulário. 98

3. Identidade: Idios também está associado ao conceito de identidade. Destaca a noção de individualidade e singularidade de uma pessoa, abrangendo características culturais, sociais e pessoais que a distinguem das outras. 4. Idiotés: como vimos, no contexto da antiga Grécia se referia a um indivíduo que não estava envolvido com a vida pública ou política. 5. Outros vocábulos que também se compõem com o radical idios são: idioscopia, idiolatria, idiopatia, etc. IdioFormação é termo criado por MD mediante a composição de idio+formação, para nomear a formação do Haver que tem a competência de Revirão e a possibilidade de ser afetada por HiperDeterminação, uma réplica do Haver em sua ARTiculação máxima. Trata-se de um uso do termo Idios na acepção forte do grego clássico: o Mesmo. Já no Latim clássico, o termo Ipse (a, um) significa o mesmo, o próprio, a própria, em pessoa, por si mesmo. Há o superlativo de Ipse, Ipsissimus (ele próprio em pessoa; ele próprio em carne e osso). Ipsus = ipse. Pode ser usado como pronome reflexivo ou como adjetivo demonstrativo enfatizando algo específico. Por exemplo: “Ipsis loquuntur” (Eles falam por si mesmos), “Ipsum vidimus” (Nós o vimos com nossos próprios olhos). Na linguagem cotidiana, ipse não é frequentemente utilizado, mas em contextos formais, encontramos expressões como per se, em vez de ipse, em si mesmo ou intrinsecamente. Essa expressão é usada para enfatizar 99

que algo tem uma importância ou significado próprios e não depende de outras coisas. Esse termo latino também é muito conhecido na formação verbal solipsismo (do latim solus, só, e ipse, ele mesmo), termo às vezes pejorativo, designando o isolamento da consciência individual em si mesma, tanto em relação ao mundo externo, quanto a outras consciências. Ou seja, o eu é o que existe. Há também o termo Ipseidade (do latim, ipseitas) empregado por Duns Scot para indicar a singularidade de uma coisa individual, a Hecceidade. O termo Ipsismo está aqui sendo empregado para destacar uma ideia radical e decisiva para a NM, o exercício das próprias formações de uma IdioFormação (Pessoa), sua masturbação pessoal, pois, quando se está no exercício de suas próprias formações, trata-se de autorrealização independente de quem ou do que quer que seja. MD já havia chamado o Haver de O grande masturbador, que também é título de um quadro de Salvador Dalí. Na transa das formações, segundo o modelo Escher, a mão que desenha a mão que a desenha, só há o Mesmo e a possibilidade de constante incorporação de qualquer formação que se apresente como estranha. Assim, repetindo, para NM só há alteridade na estranheza do não-incluído. Então, a única alteridade que existe é pura estranheza. Dada a transa das formações segundo o modelo da Teoria das Formações, o processo disponível para uma Pessoa é de inclusão e apropriação permanentes no exercício perene de 100

inclusão de qualquer formação. MD diz que “o trabalho analítico de anamnese do Cais Absoluto conduz a Pessoa a tornar-se (não egoísta, pois desfaz o ego a cada momento, mas) ipseísta (...): afirmação absoluta do Haver como Eu” (A Rebelião dos Anjos, p. 136). Aí já está a indicação para o que hoje precisei com o termo Ipsista. Do ponto de vista do Haver, sou sempre Idêntico, sempre o Mesmo (idios, ipsis): Eu = Haver. IdioFormação idiota. Essa é a identidade da Pessoa. Ʃ Ʃ Ʃ

Nessa sequência de considerações sobre a lorota do outro, é o caso de retomar o que MD trouxe sobre a Razão Egípcia, sobretudo a partir de 2000. É a razão que dá base aos três monoteísmos abraâmicos e que, por sua vez, esteia-se na Revelação. Esta depende da relação entre a criatura (mormente, os humanos, suposto ápice da criação naquelas mitologias e, dentre eles, o Profeta) e seu Criador. Isto é, entre cada um e o suposto Outro paranoicamente projetado como um “alguém” transcendente que rege as ocorrências do Mundo com sua Lei. Atribui-se a esse Outro, de maneira personificante, a responsabilidade sobre os dons gratuitos do Haver – bens e males –, a começar pela própria havência de cada um. Daí toda a deliração sobre castigos e recompensas conforme méritos e deméritos aos olhos desse Outrão. Cada um estaria em eterna dívida, em falta, para com Ele. A 101

princípio, esse Outrão é, tipicamente de Segundo Império. Por exemplo: Javé, o Deus-Pai dos hebreus. Com os cristãos, surge a figura de Jesus, o Filho Amado, ligado ao Pai (que, regressivamente, permanece no Terceiro Império, ainda que agora abstraído e universalizado) por via do Espírito Santo (“o amor entre Pai e Filho”), segundo o circuito da Trindade. Filho que passa a ser a ponte entre as pessoas (aquelas que o aceitam e são por ele aceitas) e o Outrão (“Ninguém chega ao Pai a não ser através de mim”, João 14:6-7). A condição para isso é também ela paranoica. Trata-se do “novo mandamento” (João 13:34): “que vos ameis uns aos outros, tal como eu vos amei, para que também vós vos ameis uns aos outros”. A dívida para com o Outrão, o Dominus transcendente remanescente do Segundo Império, estende-se para o Salvador (que teria, ‘altruisticamente’, “morrido por nós”) e, dele, para todos os demais outros – os irmãos.

Em resumo: o amor mútuo entre os outrinhos os conecta entre si (configurando a eklesia), e todos eles ao outro-intermediário, o qual, por sua vez, está diretamente conectado ao Outrão. Esse é o design do Amor (agape) como princípio conectivo paranoico do 102

Terceiro Império cristão, dependente, em todos os níveis, da alteridade, do amor e da dívida. Posteriormente, a teologia e a montagem institucional dessa Igreja adicionarão alguns tantos níveis hierárquicos a esse modelo (vide o Areopagita), povoando com mais tantas mediações a distância de cada um em relação ao Outrão. Distância que a mística radical, por outro lado, se esforçará por anular, mesmando esse suposto Outro (daí a equação eckhartiana: DEUS=EU). Do lado de fora, estão aqueles que não fazem parte da confraternidade ou koinonia cristã, não são “em Cristo”. Sabemos que não há universalidade – esta é sempre artificiosa – sem o expediente da exclusão, produção de fronteira entre internalidade e externalidade (∃x~ɸx.∀xɸx). A esses estranhos restam duas possibilidades: a incorporação à comunidade, aberta a qualquer um que se converta mediante adesão à Palavra (“Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos vós sois um em Cristo Jesus”, Gálatas 3:28), à sua lei; ou a rejeição, caso em que aquele mesmo amor aparece revirado em ódio, e a esse excluído da comunidade fica reservado o sadismo cristão figurado mormente na mitologia do inferno (“Aos covardes e descrentes e abomináveis e assassinos e fornicadores e feiticeiros e idólatras e todos os mentirosos: a parte deles [está] no lago ardendo de fogo e enxofre, que é a segunda morte”, Apocalipse 21:8) e executado como política de mundo pelas Cruzadas, Santos Ofícios e afins. 103

A despeito do que se propôs posteriormente, na progressão do Terceiro Império como secularização dessa base religiosa judaicocristã, a base paranoica da alteridade, do amor e da dívida permanece. Daí os ideologemas e filosofemas como o altruísmo, o reconhecimento do e pelo outro, a exclusão ou inclusão do outro, o sujeito e seu objeto, a intersubjetividade, a justificação perante o outro, a razão discursiva, a democracia, a rivalização e dominação do outro, a responsabilidade em relação ao outro, a solidariedade, os outros como inferno, a compreensão do outro, o outro como amigo / inimigo, o outro como opressor, o eu como um outro, etc. A psicanálise não ficou de fora, tendo herdado dessa mania de alteridade a teorização de Jacques Lacan. Para ele, “o Inconsciente é o discurso do Outro”. Mas isso era canja, como já tratei no primeiro capítulo. Outra paranoia central do Terceiro Império no Ocidente é a suposição de ter a posse da Verdade. A intenção de produzir, com o Secundário, um saber definitivo e totalizante sobre o Haver. Suposição da possibilidade de resolver a estada na havência, de uma vez por todas, pela via das discursividades da ordem do Ser. Elaborações, para a NM, invariavelmente precárias. Isso não é uma novidade cristã. Também os gregos tiveram a pretensão de estabelecer verdades, mas de maneira antropocêntrica: é o filósofo que, com seu esforço intelectual, é capaz de desvelar a ordem do kosmos, esteja ela situada neste ou noutro plano de realidade. Já para os judeus e os cristãos, a Verdade é sobretudo aquela revelada 104

pelo Outrão, que é sua sede. Aos humanos restaria receber, obedecer e disseminar. No cristianismo, há ainda a Encarnação do Logos divino, que reafirma e repactua aquela Verdade no que traz seu evangelion, sua “boa nova”. Além de “caminho”, como dito antes, Cristo se diz, ainda, “a verdade e a vida”. São religiões da lei gravada em pedra e religiões do Livro: meios em que a relativa permanência material do que é gravado ilude uma fixidez de sua verdade, como, mcluhanianamente, lembra Sloterdijk numa entrevista. Situação que muda radicalmente na era dos monitores digitais. A paranoia da Verdade proliferou uma variedade de construções fake, mas úteis para propósitos de dominação. Com esse tipo de coisa, constrói-se igreja, com sua ortodoxia e a exclusão das formações e informações indesejadas, classificadas como heréticas. No momento suposto secular e cientificista, é essa mesma paranoia que se expressa mediante o estabelecimento das epistemologias com que se busca dominar as possibilidades do conhecimento e da Verdade, ou melhor, de seu avatar positivista: a cientificidade. Mas a cobra da ideologia da Razão come o próprio rabo: prometendo o controle total dos humanos sobre sua existência e do planeta, são as ciências que nos aprofundam progressivamente no desamparo. Não há algum Geist hegeliano ou deus Logos olhando por nós. Quanto mais na ponta de um processo de conhecimento, mais profundo o estranhamento com a realidade, o

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sem chão (vide Benjamin Labatut). E também mais ricas as possibilidades de artifício. É típico do Terceiro Império o investimento na estabilização das transas, na univocidade dos sentidos e em expedientes secundários de fixação. A configuração cristã, que foi vitoriosa em seu estabelecimento, fez isso segundo um modelo particularmente denegatório. A manutenção da referência a um Outrão – religioso, científico ou qualquer outro – é resposta denegatória à derrelição inarredável para cada Ipsista. Denegação, em última instância, da ausência de qualquer garantia para a IdioFormação em seu percurso de havente. Só há o Mesmo. Tudo Que Há (TIANXIÁ) está na mesma canoa sem fundo rumo ao Impossível. A Paranoia, a projeção de alteridade, é uma maneira de fingir que há alguma coisa que não isso. Assumir que só Há o Mesmo é, portanto, assumir o sem garantias de Haver. Em última instância, essa exigência é expressão decaída da requisição de não-Haver – única Alteridade Radical para a NM, que como o nome já diz, não há. Do Haver, não há Saber algum – desses que fingem responder de uma vez por todas o que é e por quê –, mas há, sim, Conhecimento Absoluto. Toda suposição de saber é projeção sintomática da vontade de controle das formações egóicas, defesa contra a desorientação de cada havente. Por outro lado, há a faina permanente das possibilidades de conhecimento, isto é, das transações, de seus registros informacionais e de suas elaborações – ou seja, Gnômica. Esta se refere, em última instância, ao tal 106

Conhecimento Absoluto, que não é senão o reconhecimento imediato para cada Um (gnosis) de sua situação solitária e dissimétrica de havente em abismo e em radical ignorância, isto é, de seu Sexo (Resistente). A governança das transas no Quarto Império requer isto como referência. Assunção de que o Secundário não configura nenhum Saber Absoluto e nenhuma Verdade – num tempo em que ele funciona de maneira progressivamente acelerada e no vigor da Bifididade, não permitindo estabilização alguma de sentidos e verdade alguma unívoca. O Secundário é só jogo articulatório impulsionado pelo Originário e a produção de recursos e provisões para a estada em abismo da IdioFormação. Como dito antes, para a NM não há Outro, outrinho ou Outrão – são lorotas, cascatas e caôs do Terceiro Império. Alteridade é deliração paranoica sobre o fato eventual da estranheza entre formações. A Diferocracia, conceito proposto para orientar a produção de uma governança das diferenças para o Quarto Império, só pode funcionar abandonando essa mania de suposição de alteridade. Daí que a produção de aparelhos de consideração e navegação no Quarto Império exige o abandono do funcionamento paranoico e a aceleração de uma postura Metanoica. Uma capaz de considerar, com alguma Indiferenciação, as ocorrências do Mundo em termos de processo articulatório genérico de formações, pulando fora da interferência recalcante das projeções de alteridade e verdade, comprovadamente sem serventia alguma. Não será 107

instalado o Quarto Império sem esta assunção – e sem o reconhecimento definitivo de que, consequentemente, SEM DÚVIDA, NÃO HÁ DÍVIDA: a Simbólica, de que Lacan fala, está comprometida com o paradigma de Terceiro Império. Não encontra esteio no Quarto. Manter de pé a figura do Outro é manter de pé o funcionamento paranoico que reifica a estranheza entre as formações, com suas consequências xenófobas (em sentido genérico de aversão ao estranho). Busca-se aqui um concerto entre quaisquer diferenças, o que só se torna possível mediante o exercício radical de sua inclusão. Daí que posso falar numa sagração do Estranho – no que se o inclui, desaparece alteridade. Isso não significa eliminar a estranheza, mas instalar a possibilidade de coexistência e negociação em regime mesmo de estranhamento – algo como o que MD chamou de Solitariedade, referida ao Vínculo Absoluto. Eventualmente, ameniza-se o estranhamento. Aprende-se a gozar daquilo, ou, pelo menos, que gozar daquilo é uma das possibilidades do Haver, de saída tão legítima quanto qualquer outra. Uma política cuja ordem vincular esteja referida ao Respeito em regime de Unheimliche e que, a partir daí, opere a gestão, as eventuais intervenções e contenções. Ʃ Ʃ Ʃ

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No capítulo 3, eu comentava o brilhantismo dos antropófagos modernistas por terem sacado que, quando se quer saber de que se trata o Brasil, a via é fágica – é a tal Vontade de Comer ou de Phoder. E a introdução do conceito de Ipsismo traz uma boa oportunidade de reconsiderar a contribuição de MD ao entendimento da devoração, quando propõe a Heterofagia. “Antropofagia” foi o nome que aquele pequeno grupo de modernistas dissidentes achou para isso, tomando como metáfora a prática de comer pessoas dos Tupinambás que viviam na costa brasileira quando da chegada dos portugueses, no século XVI. Por meio desse link antropológico, facilmente caindo no mitológico, o que estava sendo destacado era um modo de funcionamento. Acontece que a ideia de Antropofagia ficou historicamente pespegada a uma série de filosofemas e ideologemas que atrapalham um entendimento mais preciso da operação que pretende descrever. Algumas formulações, tanto dos próprios antropófagos quanto de outros que de lá para cá trabalharam e releram a ideia, comprometem a antropofagia com elementos que mais emperram a devoração do que a explicam. Emperramentos típicos do Terceiro Império. No Ocidente, com sua configuração cristã, este foi um Império exacerbadamente paranoico. Falei antes sobre sua mania de alteridade, que, a partir da base religiosa, persiste mesmo em suas formações de pensamento supostamente secularizadas. A Antropofagia, ainda que apontando para além dele, não saiu ilesa de sua sintomática. Mesmo leituras bem 109

recentes tentam ainda enquadrá-la como algum tipo de pensamento da alteridade, e situá-la em algum programa político retardatário, que pensa o porvir tendo ainda como referência o finado Império d’Ofilho. A Heterofagia entra aí, forçando um salto de depuração abstraente. Os tempos são outros, e é possível, além de proveitoso, extrair outros resultados com outras ferramentas. Essa retomada é uma maneira de sustentar a eficácia, para a nova situação de mundo que vem se montando (isto é, o Quarto Império), daquilo que os antropófagos destacaram. Em suma: Heterofagia é a Antropofagia quando devidamente despojada dos resquícios de Terceiro Império. A Paranoia deste só faz proliferar contratempos e embaraços, produzindo obstáculos para o que importa: comer. É hora de tomar essa começão a partir da Metanoia, como um simples processamento articulatório. A intervenção dos antropófagos se deu, num primeiro nível, no sentido de investir na dissolução do complexo paranoico colonial brasileiro. O Brasil (aqui tomado como aglomerado sintomático, e não como país ou nação) é uma produção sui generis. De um lado, surgiu como foco privilegiado de um momento sem precedentes na história da coexistência das Pessoas, em regime de transação acelerada, múltipla e porosa. De outro, emergiu sob a força recalcante de formações poderosas da configuração colonial, como, por exemplo, o estar constantemente referido aos olhos de algum suposto “grande Outro”, ao qual 110

deveria prestar contas, fosse a Coroa, a Societas Iesu ou o “Ocidente” (Inglaterra, França e, mais recentemente, Estados Unidos). Seja como for, essa configuração resultou num sintoma Estacionário, quando não Regressivo, de denegação de sua situação efetiva em favor de um mau funcionamento referido a um outro hipervalorizado, ao qual supostamente tem-se contas a prestar. Resta recalcada, assim, a fatura com o exercício próprio de suas formações, tornado envergonhado e/ou culpado. Em seu lugar, o fake de ficções e instituições incompatíveis com o caso, tentando, com elas, sustentar uma imagem que não encontra ressonância no jogo efetivo. É o chamado Mazombismo, expresso em diversos modos, e que opera como impedimento da assunção da própria singularidade e de seu gozo porque supostamente inferior ao outro tomado como modelo. Os antropófagos respondem a isso dando uma banana 4. A tomada da fagia é a exposição desabusada de sua singularidade, com dois movimentos numa só tacada: 1. Derroga a inibição paranoica ao assumir o exercício do seu próprio. 2. Esse próprio consiste, por sua vez, em um movimento de apropriação, de inclusão, de começão. É preciso sacar bem esse gesto metanoico para que não acabe redundando, como é frequente nos mal

4

Gesto ecoado por MD no chamado Congresso da Banana (1985), como intervenção

sobre o (ainda hoje persistente) mazombismo dos meios psicanalíticos brasileiros, sob colonização da intelectualidade francesa ou americana. 111

entendimentos correntes, em paranoia de outro tipo. Para isso, a NM dá a clave. Segundo MD, “interessa é o que de fora se possa comer de contrabando. É isso que Oswald situa em seus textos. O brasileiro é contrabandista, no sentido da contrabanda” (Psicanálise & Polética, Seminário 1981). Isto é, topologicamente falando, o contrabando, o atravessamento, de formações de um para o outro Mesmo lado do Haver. Não há o “Outro Lado”. Isto é: não há o Outro. Querer colocar como esquema básico das transas o jogo paranoico entre euzinhos e outrinhos é o primeiro passo para moralizar o troca-troca e buscar determinar, paranoica e aprioristicamente, quais formações podem ou não podem se apropriar de quais outras, a quais delas pertence o quê, quais estão em dívida, etc. O movimento que se mostra, pelo contrário, é a sacanagem permanente do consumo e da apropriação, sem qualquer consideração de ordem moral ou jurídica. É o contrabandismo do Tesão. Daí que ela seja melhor pensada como Heterofagia: vontade de comer as diferenças, dispensando qualquer alteridade, junto com seus circuitos paranoicos. Essa começão das diferenças é Ipsista. Ou seja, dá-se como o exercício do próprio apetite de cada formação, e não como altruísmo ou alterismo de um eu/sujeito cujo desejo estaria subdito ou direcionado a um outro/objeto. É pura esfregação entre formações adjetas.

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Portanto, não há nenhuma Alterofagia de facto, ainda que, em última instância, seja o que se coloca como requisição: Haver, que é Um, quer passar a não-Haver, seu outro radical alucinado. Haveria Alterofagia caso esse outro fosse uma possibilidade, mas ele não é comível, simplesmente porque não há, é Impossível. Daí para baixo, só há o Mesmo, no seio do qual as diferenças proliferam e se distribuem como modulações de um mesmo plano homogêneo. E se comem. É a autofagia Ipsista do Haver, i.e., do Inconsciente, em todos os seus níveis. Nesse nível modal, alteridade, como disse antes, é apenas a resultante de projeções paranoicas sobre as situações de estranhamento entre formações. No que há possibilidade de inclusão, está dissolvida. Portanto, quando Oswald diz “Só me interessa o que não é meu”, isso não quer dizer que só interessa o que seja de um outro. Afinal, se não há outro, tampouco há sua propriedade. Formação não tem dono, é pegar e usar. As formações são os haveres de quaisquer outras formações. São ready-mades. Para o Inconsciente, trata-se de comer metanoicamente, sem as travas paranoicas dos direitos de propriedade. As eventuais indisponibilidades aqui e agora são apenas resultantes de recalques, também eventualmente transponíveis. Podemos dizer, ao mesmo tempo, que toda formação pertence somente ao Haver, e a nada outro. O “que não é meu”, para cada um, é só o que ainda não se comeu. As transas de poder e as arrumações políticas que organizam Mundo, necessárias para a coexistência respeitosa entre IdioFormações, são 113

já outra coisa, a qual, para ser eficaz, deve lidar com o fato de que o Tesão é assim, e não denegá-lo5. Os antropófagos mais espertos também sacaram, muito acertadamente, que esse modo de funcionar não era idiossincrasia de um grupo específico ou um “particularismo” local, diferentemente de certa abordagem que dele se quis e quer fazer. Tampouco é coisa do anthropos, um “universal antropológico”, digamos. A devoração só é brasileira e antrópica porque é, antes, plerômica. A começão aqui é entre formações, isto é, entre as diferenças, sem nenhum antropocentrismo ou antropomorfismo, muito menos humanismo. Daí também o porquê de entendermos não ser o mais preciso falar em uma antropofagia. Embora seja uma constante do Haver, é apenas nas IdioFormações, porque portam o Originário, que a Heterofagia alcança o ápice. Isso porque não se limita às transações sobredeterminadas entre as diferenças modais, mas porque, no trato imediato destas com a Diferença Radical 6, eventualmente têm hiperdeterminadas suas possibilidades de transa. A IdioFormação não tem dieta predeterminada e a todo momento, se funciona conforme seu ídios, insiste em forçar os limites do possível. 5

Para o Quarto Império, quiçá em algum momento se chegará a produzir efetivamente

uma Diferocracia, tal como propõe MD, com expedientes de organização das transas das IdioFormações a partir do fato mesmo da Heterofagia. Será o Sistema Tianxia de Tingyang um caminho fértil? Talvez tenha a melhorar com o toque brasileiro e psicanalítico. 6

Checar a nota “Teofagia, Heterofagia”, no capítulo 3. 114

Mas também não foi por acaso que o destacamento disso ocorreu no Brasil. Ter surgido como laboratório de cruzamento acelerado de diferenças marcou sua feição sintomática com uma reconhecida vocação para a Transa (e sabemos que “transa”, em bom brasileiro, é também um sinônimo de “comer”). Na sintomática brasileira, há uma exacerbação dos procedimentos heterofágicos, o que é explícito em suas mestiçagens e maneirismos. Este é um caso que, dadas as condições de sua configuração, expressa de maneira privilegiada a Heterofagia, esta função genérica das IdioFormações. Embora seja, geralmente, algo que se dê de maneira mais ou menos selvagem e desorganizada, é uma vocação também apropriada em certos movimentos de excelência e sofisticação. Essa função, até o Terceiro Império, acabou ficando, o mais frequentemente, soterrada e denegada, posto que o Secundário permaneceu até então, conforme a forma hegemônica de regência de transas, mais ou menos submetido ao investimento nas formas Estacionárias dos assentamentos, filiações e pertencimentos. Também os antropófagos sacaram que essa função é não apenas compatível, mas torna-se crucial naquilo que se mostra como forma de existência por vir. Já naquele momento, a aceleração tecnológica planetária e seus efeitos deixavam claro, para as antenas alertas, que aquele mundo de relativo assentamento de até então não duraria por mais muito tempo. Daí a intuição de que talvez a bagunça brasileira tivesse algo a contribuir com esse porvir. 115

Os antropófagos não foram os únicos, no Brasil e fora dele, a ver nessa algazarra a antecipação de um possível rumo civilizacional. Hoje, podemos entender isso como certa vocação para o Quarto Império, nascida do jogo entre a inadimplência na instalação dos assentamentos e constrangimentos secundários necessários para a produção de uma civilização aos moldes do Terceiro Império e sua condição excepcional de laboratório transformático. Vocação muitas vezes vendida, de maneira errônea, na forma de utopias e sebastianismos. Vontade de comer as diferenças nada tem a ver com isso, não é alguma panaceia, não é igualdade, fraternidade, liberdade, pax aeterna, etc. Tampouco é alguma filosofia da diferença, com sua militância pelo minoritário e seu bom-mocismo rebelde, que não deixa de ser matriz da atual paranoia Woke e das chamadas guerras culturais. Isso tudo é ainda manter a Heterofagia aprisionada no horizonte de expectativas do Terceiro Império, que expirou. A cabeça aqui é metanoica: sua utilidade é estritamente operativa. O funcionamento heterofágico da IdioFormação implica a metamorfose que os próprios movimentos da espécie impõem como exigência neste novo momento de sua existência. O Quarto Império não é a resolução dos problemas do Terceiro, é uma transição de fase que abre para outras condições de jogo, com suas próprias possibilidades. Está longe de ser trivial para esta espécie, considerada toda a bagagem de sua estupidez sintomática e 116

estacionamentos mentais, disponibilizar-se para um Império de transação dispersiva e sem balizas definitivas. Império de aceleração heterofágica por via informacional. Levemos a sério e radicalizemos a reversão proposta pelos modernistas: dado o exposto acima, o heterofágico não é “o outro” do Ocidente, o exótico, o que vem de fora. O modo ocidental é que é uma modalização, em muitos aspectos reativa, dessa base devorativa da espécie, à medida que busca estabilizá-la com xenofobias e codificações secundárias fechadas. Não precisamos comprar o susto dos europeus com o que lhes compareceu e comparece como estranho (susto esse tão grande que, depois de Staden e Montaigne, acabaram até inventando a antropologia). Mas tampouco há que ver na postura da NM algum antiocidentalismo, à maneira dos decoloniais e outros programas afins. Se quisermos jogar com prefixos, nossa preferência não é “contra-”, nem “de-” ou “des-”, nem “pós-”, mas Trans. Isto porque a Heterofagia funciona para além do circuito paranoico dos colonialismos e força sua dissolução. Essas demais posturas não interessam, não porque não haja colonialismos e colonização, e sim por buscarem lidar com essas dinâmicas de modo ainda aprisionado no mesmo circuito paranoico. Esse tipo de esquema enquadra essa dinâmica como jogo infinito de requisição de restituições, o que limita as possibilidades

de

transa

mediante

estruturas

rivalitárias

hipostasiadas. Toda situação de dissimetria é referida a um outro 117

mais poderoso que seria por ela responsável, numa espécie de paternalismo às avessas que serve, ainda que por via negativa, para tamponar o desamparo de cada um. Desamparo cuja assunção e cujo cultivo são condição para a soltura dos movimentos da Pessoa para fora das configurações colonizantes. Sustentam, assim, uma situação estacionária cuja referência oscila entre a miragem de uma resolução final, quando seria recobrada uma suposta situação original antes da dissimetria, e a melancolia distópica e destrutiva do ressentimento. Em suma, um tipo de movimento que não aponta saída para o buraco do Terceiro Império, apenas radicaliza algumas de suas tendências entrópicas e resulta numa fragmentação tribal das diferenças, com seu investimento pesado em múltiplos micro-colonialismos de enxame. Aqui, parto do seguinte fato: no Haver, em toda parte e em todos os níveis, formações colonizam formações, das formas mais brutais às mais sutis. No que falo de IdioFormações, há a possibilidade de reconfigurar o jogo e dissolver os coágulos colonizadores mais intensos, de maneira a disponibilizar maior margem de gozo, progressão e respeito às singularidades. Mas isso não é alguma restituição, alguma liquidação de dívida, nem tampouco extinção das dinâmicas de colonização entre formações. A possibilidade de produzir um aparelho de inclusão radical das diferenças e sua gestão pragmática depende do investimento produtivo no Porvir, e não no Estacionário enxugar gelo das 118

tentativas de resolver para trás. O circuito paranoico da dívida, isto é, do Terceiro Império, não oferece sua saída. Daí o Quarto Império exigir o investimento na Metanoia. Além disso, a sintomática ocidental não é mais e nem menos colonizante do que qualquer outra candidata a ocupar seu lugar, não importando sua proveniência e sua posição atual na correlação dos poderes. Apenas ela foi a vencedora nos últimos séculos, e está hoje em franco esgotamento e decadência, de modo que outras formações, antes recalcadas sob sua hegemonia, podem emergir e aumentar o acervo disponível. Afora isso, são todas formações que, como quaisquer outras, podem servir para algumas coisas e não para outras. Por exemplo, o Ocidente não oferece hoje boas ferramentas para situar um Quarto Império – mas tampouco seus rivais ressentidos. Entronizar qualquer uma delas é trocar pragmatismo por crença religiosa, o que não interessa. É preferível, pois, sondar o que é comível e útil em cada caso. Ʃ Ʃ Ʃ

Retomando alguns pontos tratados acima, lembro que Lacan dizia que a cura Psicanalítica levaria o Sujeito lá dele a não abrir mão de seu Desejo. O que digo é que, segundo a NM, NINGUÉM abre mão de seu Desejo, mesmo que o apresente compromissado de algum modo com suas Formações Estacionárias. Mediante as quais, aliás, o Analista pode entender e pontuar esse Desejo. É uma 119

INVENÇÃO do Terceiro Império a reversão da Dádiva em Dívida, escravizando o Excitador do tesão de alguém como se o Gozo deste fosse uma dádiva ao Outro. Assim: uma Pessoa se masturba porque algo ou alguém lhe deu um grande tesão, ela goza – e imbecilmente quer botar esse gozo na conta do seu estimulante, quando de fato e de direito, o tesão e o gozo são todos dela. Esse troca-troca imbecil e safado é o substrato da dominação (cristã, p. ex.). É o truque da imposição de uma falsa Dívida Simbólica que não passa de Falcatrua no Secundário. Daí que o Ipsismo traz mais uma perspectiva para a consideração da questão da Soberania, que MD aborda em 1996. Diz ele: “cura psicanalítica = produção de soberania (ainda que perene)” (p. 86). Pode-se, portanto, considerar essa produção como resultante do entendimento do concerto das formações – como funcionam, como engatam. Justamente o que se encaminha numa análise. Trata-se aí de uma soberania perene, ou seja, sempre em produção. Ela não é transmissível diretamente para ninguém, uma vez que implica o exercício pessoal intransferível de cada um que, assumindo o movimento pulsional – i.e., sabendo que a morte não há –, frequentemente se dispõe a visitar o lugar da Indiferenciação que, este sim, (não transmite, mas) empresta-lhe, marca-o com a soberania. Aí é o “lugar daquele que não quer nem saber, daquele que não está nem aí, pois reduz todos os saberes a pó de nada” (p. 95). A frequente visita a esse lugar é, para o Ipsista, o exercício máximo de suas formações: o exercício no sentido de uma 120

autorrealização perenemente referida à experiência a partir da qual pode “descer indiferentemente à lida do mundo” (p. 99). Sempre que se fala em soberania, é preciso ter claro que ela é da ordem do sintoma. Cada um tem o sagrado direito a seus sintomas – isto, quando não se trata de intervir no outro. Não há soberania do Haver. O Haver é impositivo, ponto! Falar em soberania do Brasil, por exemplo, é sintoma cultural. E mais, se fosse respeitada, a soberania não implicaria imputação alguma. Alguém tem o sagrado direito de ser um escroto, mas não o direito de sê-lo dentro do circuito. Este constitui um sintoma que coloca limite em seu “ser um escroto”. Entender isso faz parte da cura das pessoas. Elas vivem em sentimento de culpa e aceitando imputabilidades que não lhe cabem. O tesão de alguém é sagrado, mas é preciso ver se é permitido no lugar onde ele vive. Ou seja, é preciso ver qual é a transa. E tampouco permitir que se confunda soberania com autarcia, quando se ultrapassa o limite e se exerce a soberania sobre as formações em jogo. Por outro lado, é possível lutar para transformar o sintoma social para que aquele tesão seja melhor aceito. É, aliás, o que sempre aconteceu na história – e a neura acusava essa luta de perversão. Só quem fica fora – porque fica fora da situação humana – é o psicopata. Para este, não há salvação já que não tem troca, não tem empatia. Psicopata não transa, ele forja e força. Viu-se isso frequentemente na presidência de um certo país.

121

Então, se Ipsismo é o exercício das formações próprias – “o que faz com que alguém seja ele próprio e não outro” –, fará inarredável comparecimento naquilo que cada qual jacula em masturbação pessoal e intransferível. Masturbação aqui entendida não na instância primária da carne 7, mas ART-ficializada, ARTculada – aquilo que se cospe, que jacula-se, singularmente rumo às estrelas. E, por um átimo, nesse gozo aquilo se neutraliza, esvaziase lá onde Haver se esborracha na sarração mortal com seu Impossível. Claro que, melada da gosma própria, mas com a marca da experiência de “zeração”, a IdioFormação é cuspida de volta – o outro lado nunca houve mesmo – para retornar, novamente e para sempre como lhe condena ALEI: destino inexorável do Gozador, o retorno como Gozado. O que significa dizer que a IdioFormação, se há percurso de Cais Absoluto, exercitará a gradativa “monstraação” de seu tesão singular nas suas transas no seio de Haver. Aliás, o tema do Ipsismo atravessou a obra de Marcel Duchamp. Ele era um masturbador de coturno. Haja vista à parte de baixo da Mariée, onde os celibatários fazem o quê olhando para cima? Além disso, como a cópula absoluta, a consubstanciação em extinção, não é disponível, e o tesão não desiste, o pedido de engate 7

Vale precisar, contudo, que nada impede que um reviramento de tipo místico ou estético

– portanto, secreções secundárias por pressão originária – possa subproduzir concomitantes gozos primários como reza a lenda de São João da Cruz, que teria dado prova viscosa deste tipo, ou ainda o caso recente (maio de 2023) do orgasmo filarmônico de certa californiana por comoção à Quinta Sinfonia de Tchaikovsky – casos de orgasmos multiplânicos. 122

só pode reverter para dentro do Haver que é tudo que Há. Mas se deu-se experiência de defastamento radical, aquilo vai se desemaranhando e depurando um estilo – um jeitinho ipsista de cantar o Haver, de lhe propor engate: a modalização ipsista da mesma coisa que Haver faz com não-Haver. A análise seria o exercício por meio do qual depuramos nosso pedido único para transar com o Haver, por onde refinamos a cantada para ver o que Haver tem para nos oferecer. Ter tesão é querer saber lá em cima, mas – com a morte incluída e a cara quebrada – engajar-se gnomicamente no que Há para gozar do jeito que dá. MD faz a mostração de que tudo é transa de formação – acervos cutucando aspectos querendo engate, em movimento de desrecalque, de conhecimento, de inclusão de porrinhas novas dentro do Haver. Toda a movimentação gnômica são mãos de Escher punhetando o Haver para ver se aquilo goza, o que dá para gozar dali. No limite, coisa impossível, a cantada ipsista de cada singular coincidiria com a cantada masô que Haver passa no inconquistável não-Haver – ou seja, assintoticamente a fantasia singular se encaminharia para coincidir com a Fantasia Originária. Na hipotética absoluta indiferença – esvaziada de qualquer sintoma –, a Pessoa engataria em qualquer troço ou joça, por qualquer buraco, ponta, aresta, curva, umbigo ou dobra. O que ainda é muita anatomia – aquilo soprogozaria. Mas de volta: MD explicita o destacamento da Obra de Arte como o “lugar do Reviramento, da Indiferença, da Soberania” lá 123

desde 1976. É por aí que, dentre outros rendimentos, o Ipsismo se mostra via ótima para reacessar a questão da Soberania e também a da descrição do lugar onde a Fantasia Soberana da IdioFormação – na qual se flagra em operação o algoritmo mínimo, destacável em análise, do teresiano “morrer de não-morrer” de cada Pessoa – vai desaguar junto com a Fantasia Originária do Haver. Ʃ Ʃ Ʃ

Não só, mas notadamente em 1996, são elencados testemunhos de mártires com percurso endereçado ao Cais Absoluto pela via do erotismo místico como Santa Teresa e Georges Bataille. Já que, anteriormente (capítulo 3), falei de Hilda Hilst como a “Santa Teresa de Campinas”, tomo agora o Ipsismo para promover mais um anjo à galeria: “São Genet” – o Soberano da Masturbação – exuberantemente jaculado em sua Nossa Senhora das Flores (1943). Certamente não se ignora, que em Jean-Paul Sartre já “baixara” a sacação de Genet como “santo, mártir e ator” (1957). Como há, porém, bastante o que desdobrar desta sacação, referenciados à ferramenta que aqui NovaMente se emprega, avanço. É entre porra, peido e piolho que São Genet funda seu Imundo – mundo fora do mundo invocado de dentro da masmorra. É desde a mais abjeta clausura que um “espírito livre” afirma sua soberania com mão no pau, olho nos bandidos, mas mira no 124

abismo. Narra ele: “Com as mesmas pérolas com que os presos do lado fazem coroas mortuárias, fabriquei para os mais puramente criminosos dentre os detentos molduras em forma de estrela. À noite, enquanto vocês abrem suas janelas para a rua, eu viro para mim as costas do regulamento. Sorrisos e esgares, uns e outros inexoráveis, me adentram por todos os meus buracos oferecidos, seu vigor penetra em mim e me enleva. Vivo no meio destes abismos” (p. 68). Colando as fotos, que recorta de jornais descartados pelos carcereiros,

de

seus

personagens-fetiche

no

avesso

dos

regramentos do mundo prisional, Genet se abisma de pau apontado na sua ART-ficiosa produção de soberania: “Com a ajuda dos meus amantes desconhecidos vou escrever uma história. Meus heróis são eles, colados na parede, eles e eu que estou aqui trancafiado. (...) A morte deles (...) será para todos a morte daquele que, ao ouvir do juiz a sentença, se contentou em murmurar com seu sotaque da Renânia [ironicamente, o assassino homenageado partilha da proveniência de Mestre Eckhart]: ‘Eu já estou um pouco além disto’” (p. 70). Refere-se Genet aqui a um certo Weidman – “assassino encantador” que, aos vinte anos, teve o pescoço cortado pela polícia – e cuja foto é o troféu que os jornais estampam em primeira página. Faz questão de lembrar Genet que o tal “Anjo Sol”, no momento de sua execução, fez “fiau com o dedo na ponta do nariz para o carrasco enraivecido” (p. 65)

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Na conversa de MD com Georges Bataille em torno de Soberania, diz ele que Bataille, lendo o Albert Camus d’O Homem Revoltado (1951), “qualifica esse lugar da revolta como lugar de assunção e exposição do movimento de soberania, onde não se admite ser indignado, tornado in-digno pela definição de seu modo próprio de haver – que é extremo, não é mera modalidade, mas sim que é, enquanto IdioFormação, igual à ‘modalidade’ singularíssima do Haver –, lá onde se exige ser devidamente considerado como um modo de Haver tão reconhecível como outro qualquer. Ou seja, de não se ser submetido a designações em conformidade só com a sobredeterminação” (p. 97-98). Não seria outra coisa o que assintoticamente se aproximaria da cura psicanalítica – o perene remetimento à experiência de Indiferenciação como via de destacamento da singularidade. Nesse sentido, o tesão de cada um é sempre i-mundo e sagrado posto que destacado e validado pela requisição da HiperDeterminação que desautoriza mundo como regrador dos tesões. Continuando: “O mundo soberano é o mundo onde o limite da morte é suprimido. Não há morte humana capaz de atingir o soberano”, talqualmente expresso pelo “Anjo Sol” de Genet em seu deboche derradeiro. Claro que, para melhor situar a questão, será preciso alargar a consideração de Bataille de “não há morte humana” para o postulado axiomático de que “a morte não-Há”. E é esperado que, na esteira dessa conversa, outras diferenças se imponham, sendo talvez a mais importante o deslocamento entre o 126

que seja “viver soberanamente” (Bataille) e o que é posto como coisa bem outra: “viver referenciado à Soberania”, ou seja, em postura de perene produção de Indiferença Radical. Dentre os Revirões que suponho ver rodar em Genet, destaco o Místico / Libertino. Dentro daquela cela uma formação se exaspera. Segundo que modalidade? Sabe-se que a via mística opera por “renúncia”, por defastamento de mundo, por abandono do erotismo do Haver e de suas oposições internas, em encaminhamento de uma experiência direta com o Divino, de supressão da distância entre Eu e Deus; ao passo que a via libertina faz a operação justo oposta de busca de indiferenciação por “redução”, por insistência do erotismo no Haver, por esgotamento sexual do Eu como forma de obter alguma “a-pathia sexualis”. Por caminhos que se modalizam opostos, místicos e libertinos pedem a mesma cópula mortal. O Genet de “Nossa Senhora” parece juntar as duas vias – ou seja, percorrer um Revirão de alelos místico e erótico. Se sua prática é erótica – de exasperação carnal –, ela é também renunciante, posto que absolutamente solitária e i-munda – fora do mundo. Genet se retira de corpo e alma, aprofunda a clausura que as regras do mundo lhe impuseram – dobra a aposta e se coloca em lugar absolutamente inatingível. (Diverte-se mesmo pensando que nem a guerra que se trava do lado de fora dos muros da prisão pode tocá-lo.) Nem guerra, nem morte, pois como seu personagem

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Weidman, “ele já está um pouco além disso”, ali até a morte está para jogo. Nesse sentido, Genet cerra fileiras com a longa tradição do que foi nomeado sob o amplo guarda-chuva do “Espírito Livre”. Diversos movimentos, manifestações e expressões ditos hereges – pela igreja, óbvio – que se multiplicam na Idade Média Tardia europeia e que de alguma forma colocam a lei do Espírito acima da lei dos homens. Lembramos que a grega “hairesis” significa “opção, escolha” – outras que não a da ortodoxia eclesiástica, no caso. Entre os séculos XIII e XV, a Europa verá uma proliferação de irmandades, ordens terceiras, andarilhos, mendicantes, penitentes, bergardos e beguinas, dentre outros, caminhando por estradas desviantes da ortodoxia. Acontece no seio dessas emergências que algumas vertentes borram as fronteiras da lei. Se a via mística genericamente é aquela que busca o conhecimento, o contato direto – experiencial – com Deus, algumas de suas vertentes podem reivindicar um nível de liberdade que lhe seja mais condizente. E algumas dessas expressões de fato incluíram a prática do sexo livre, do assalto e mesmo do assassinato. O que está em exercício é a radicalização do mesmíssimo pedido de conjunção Eu / Deus pela via do aniquilamento pessoal, do apagamento de si em nome da fusão com Deus. E, nesse empuxo, as leis vão embora junto com o mundo, com a carne, com a própria morte. Genet justamente ama os bandidos, os ladrões, os falsários, os cafetões,

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os assassinos – são a sua turma. Uma legião que extrai sua soberania do desprezo às leis dos homens. Retomo o Ipsismo na consideração da santa fantasia genetiana. Se a fantasia enquanto ipsista – pessoal, única e intransferível – é a “impressão digital” da IdioFormação (MD, 2019): qual seria a fantasia do São Genet? O que faz a Nossa Senhora das Flores se masturbando com seus bandidos-fetiche? Qual é o pedido ali? Quer gozar de quê? Como se monta sua fantasia e como aquela Pessoa se monta como fantasia? Quais as formações componentes? Como se engatam e como funcionam naquele caso? Como aquele único, assumindo o tesão, e no concerto das suas formações, dispara seu jato para as estrelas? O que ele pede ao pau? Onde aquilo quer enfiar-se ou como quer enfiar-se Naquilo? O que se masturba aí? Que algoritmo ali roda? E que Revirões descreve? Uma primeira pista subtrai-se da leitura sartriana (Gallimard, 1957). Saca-se ali no “santo, mártir e ator”, que Genet abre o “armário de um fetichista” para dispor sua “coleção de talismãs eróticos. O Nossa Senhora das Flores – o Épico da Masturbação para Sartre – seria o exercício de sua desintoxicação, de sua cura, de seu voltar-se para fora, de sua artificialização, de sua indiferenciação. Sobre os personagens-fetiche de Genet: em primeiro lugar, não têm existência própria, nem coerência, nem integralidade, nem temporalidade determinada, são convocados e só existem – completos ou em partes – para seu gozo. Em segundo 129

lugar, misturam-se entre eles. Bem à moda da Teoria das Formações, formações de formações de formações destacam, se rearranjam e desarranjam ad hoc, ao gosto do freguês. E mais: misturam-se entre si e com o próprio Jean. Masturbador e fetiche se fundem e se subtrocam ao gosto e no ritmo masturbatório. E, nesse expediente, Genet modaliza o Revirão sado / masô que é próprio da transa entre Haver e não-Haver. Na transa ali acontece de tudo: Genet encarna Nossa Senhora das Flores. É comido por Mignon que come Divina, vira Divina. E por aí afora. Gozador e Gozado se indiferenciam em reviramento de transação perene. Ali, todo um cortejo de bichinhas, bofes, veados, pederastas, mariconas, bichonas, soldados, ladrões, cafetões, marinheiros, açougueiros, falsos moedeiros, padres se liquefarão com o próprio Genet em jorro com mira em um além mundo. Diz o texto: “Aconteceu comigo numa aurora colocar meus lábios amorosamente, embora sem nenhuma razão aparente, sobre o corrimão gelado da Rua Berthe, outra vez beijar minha mão, e depois ainda, não aguentando mais de emoção, de desejar me engolir eu mesmo voltando minha boca desmesuradamente aberta por cima de minha cabeça, fazendo passar todo meu corpo, depois o Universo, até então não ser mais senão uma bola de coisa mastigada que pouco a pouco desaparece: esse é o modo pelo qual encaro o fim do mundo. Divina se oferecia à noite a fim de ser devorada de ternura por ela mesma e jamais ser vomitada” (1951: 90). Se Santa Teresa quer fundir-se / foder-se com Deus, a cópula 130

de Genet é com ele, quer engolir-se e engolindo-se, engolir o mundo. Fodendo consigo, ele quer foder com o Haver. Sumir-se ele e Haver num impossível não-Haver. Como qualquer fantasia, a de Genet é sua resposta ipsista diante do requerimento de Haver fundir-se / foder-se com ou esvaziar-se / sumir-se em não-Haver que não há. Atravessar, destacar a fantasia na análise seria como que sacar como cada qual faz seu requerimento de não-Haver, seu jeito próprio, e não de outro, de convocar a morte que não-Há. Que feição sintomática querer não-Haver singularizou-se ali naquela Pessoa? Deriva disso que afirmar uma soberania é incluir aquela fantasia – aquela forma sagrada de gozo, aquele jeito único de pedir a morte. Trata-se de desalienar o modo soberano de morrer de não-morrer. E o que acontece desde certa cela da Maison Centrale Clairvaux é alg’HUM, já sem rosto, que ali jacula para faturar nãoHaver. Que não-Há. A condenação sendo esta e não a do cárcere. O cárcere é Haver. A condenação é à masturbação eterna. Que seja a mais ipsista possível. É o que se tem para hoje e para sempre. Amém. Ʃ Ʃ Ʃ

Nunca é demais lembrar que o Paradigma Sexual da psicanálise advém de seu Estatuto Místico. Pois é na experiência de exasperação, quando as diferenças silenciam e se indiferenciam, que se dá o reconhecimento da Quebra de Simetria, que funda 131

o sexual enquanto fracasso de toda e qualquer relação. Ora, se toda e qualquer relação é sexual e fracassada, então temos aí mais uma evidência do Ipsismo. Nesse sentido, o Paradigma Escher é explicitação do Paradigma Sexual da psicanálise, referenciado a Haver e operando no Ser. O fato de toda relação ser sexual e fracassada funda o looping eterno da mão que desenha a mão que a desenha. As resultâncias das transas que acontecem entre as mãos de Escher são gozos possíveis e compensatórios em relação ao desejado impossível. Essa realidade está dada para cada um. No entanto, é de se supor que, ao longo do périplo da espécie, o que a maioria das pessoas tem vivido é o confisco dessa disponibilidade, em nome de ordenações de todo tipo estatuídas por poderes que disso extraem todo tipo de hegemonia, recalcamentos, assassinatos psíquicos, acrescentando infinitamente à interdição. A esse respeito, sigo o que está desenvolvido no final do seminário Arte e Psicanálise, de MD, e cito um trecho esclarecedor: “Ninguém tem que fazer a concessão de emprestar a ninguém a origem do Gozo. Quando você não tem noção de que seu Gozo aqui já é compensatório, eu lhe digo que ele é maravilhoso, interdito, e lhe dou uma coisa menor. Se você tem ciência de que seu Gozo desejado é o absoluto, qualquer um que vier é pouco. Então, você será alguém que exigirá muito. A força política da descoberta psicanalítica está nisto”. Para cada um, suicidária e solitariamente,

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é o caso de assunção do que acontece na transa, na rememoração de sua havência. No caso do místico, as transas modais são indiferenciadas radicalmente, pois só interessa a experiência de NADA, reiterada pelo impossível não-Haver. O paradigma sexual deriva disso, pois a presentificação desse impossível como Quebra de Simetria – que se repete nas transas e seus reviramentos e dissimetrias menores – coloca, ao mesmo tempo, o trauma da não-relação e a condenação à transa de formações. O Terceiro Império nos ensinou que essa transa não apenas tem “dono” – os êmulos secundários de um Pai remanescente do Segundo Império –, como também renovou a dominação na base da dívida de salvação (O Filho), que passou a ser o index de um suposto saldo deficitário de todas as transas. Se o divino morreu para me salvar, então minhas ações carregam indelevelmente o déficit em relação ao salvador, déficit esse passado adiante nas transas secundárias de mundo. Como o Inconsciente trabalha com qualquer formação, desde a Quebra de Simetria e o fato bruto experiencial do gozo fracassado e

obtido

compensatoriamente, esse

déficit

instalado

sintomaticamente no Terceiro Império pretende apagar a separação e a solidão de cada Um denegatoriamente fingindo que há relação, que ela é simétrica – “somos todos irmãos” – e que depende do Grande Outro divino espelhado no Filho salvador. A dádiva vira

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dívida e todo tipo de sacanagem de dominação fica chancelada na projeção recíproca de quem deve a quem. Mas Eros não é deficitário; ao contrário, é pura dádiva, puro dispêndio. Vê-se como o cristianismo ganhou, na bandeja d’O Banquete de Platão, repaginado nas Meditações Metafísicas, de Descartes, uma formulação de Eros como “desejo daquilo de que se é carente”. No primeiro, temos a estorieta mitológica do diálogo platônico, no qual o “gênio” ou daimon que Eros é resulta das tramoias de Penia (Pobreza), que, em busca de esmolas, se acerca do recém-terminado festim de Afrodite, ao qual comparecera Poros (Recurso), que jaz embriagado; com ele Penia se deita, engendrando Eros. Aplicando a alegoria à filosofia, Sócrates conclui que Eros é o daimon entre a sabedoria e a ignorância: assim como nenhum deus filosofa por já ser sábio, ninguém que já seja sábio filosofa. Por sua vez, os ignorantes não filosofam nem desejam ser sábios, pois ignoram a própria situação de não ser bastante a condição de não saber: “Não deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso”. A concepção do desejo como falta – ainda que disfarçado na contradição socrática: “nem deus, nem homem” – se renova, no Terceiro Império cristão, mediante a formulação cartesiana do ser finito, que encontra seu limite e razão na projeção paranoica do Deus infinito e perfeito: “como seria possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma 134

ideia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza?” (Meditações Metafísicas, III). Haver tesão como pura dádiva ilumina o fato de que a dívida é que é (também) erótica em seu modo paranoico de fazer vínculos. Ao excluir que o engajamento é autorrealizante, independente das demandas de outrem, goza no possível e sempre pede mais, a dívida vive no sobressalto do retorno do recalcado, que reinscreve na transa o fato sem álibi de a vontade de gozo acossar, jogando com as formações sintomáticas, e resultar em alguma fatura (buscada desde sempre). Engatar em transas a partir da falta e da carência, cuja suplência é projetada alhures, é querer fechar a conta, e isso proporcionado no jogo dos poderes, que, de modo sádico, inventam para a pessoa uma espécie de saldo devedor eterno, cuja dependência e impossibilidade de quitação a lançam no sofrimento, dando-lhe, de graça, seu gozo masoquista. Eis o truque da religião cristã, que a mística desmontou e a Ciência de Sade de-monstrou8.

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Conforme a proposição de MD, nas seções “S/M: Revirão” e “A ciência de Sade”, no

Seminário “Psychopathia Sexualis” [1996]. 135