Raça, classe e revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos 9786587233208

Sumário Dedicatória Prefácio Um mito bem construído O poder negro Plataforma e programa do Partido dos Panteras Negras.

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Raça, classe e revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos
 9786587233208

Table of contents :
Sumário
Dedicatória
Prefácio
Um mito bem construído
O poder negro
Plataforma e programa do Partido dos Panteras Negras. O que nós
queremos. No que nós acreditamos. Por Huey Newton e Bobby Seale
Regras do Partido dos Panteras Negras
O manejo correto de uma revolução Por Huey P. Newton
Corrigindo ideias errôneas Por Wilford Holliday, a.k.a. Capitão Crutch
Sobre o anarquismo Por Huey P. Newton
Sobre o nacionalismo cultural Por Linda Harrison
O que é ultrademocratismo? Por Donald Lee Cox a.k.a. Field Marshall D.C.
Onde quer que o povo esteja Por Fred Hampton
O Partido dos Panteras Negras e o sindicalismo revolucionário Por Raymond
“Masai” Hewitt
Sobre o estabelecimento de uma Frente Única com os comunistas
Mensagem às mulheres revolucionárias Por Candi Robinson
Carta aberta a Stokely Carmichael Por Eldridge Cleaver
A plataforma e o programa de dez pontos do Partido dos Panteras Negras
Por Bobby Seale
É uma luta de classes, porra! Por Fred Hampton
Sobre a crítica a Cuba
Pelo Comitê Central do Partido dos Panteras Negras
Sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras Por Eldridge Cleaver
Os movimentos de libertação das mulheres e de libertação gay Por Huey P.
Newton
Mensagem à sessão plenária da Convenção Constitucional Revolucionária do
Povo Por Huey P. Newton
Intercomunalismo Por Huey P. Newton
Mensagem ao primeiro-ministro Kim Il-Sung sobre a fundação da República
Popular Democrática da Coreia Por Eldridge Cleaver
Eu sou nós Por Huey P. Newton
A Coalização Arco-Íris
Os Panteras Negras, os Jovens Patriotas e a Coalizão Arco-írisPor Michael
McCanne
O poder marrom
Programa e plataforma de treze pontos do Partido dos Jovens Senhores Pelo
Comitê Central do YLP
Regras de disciplina da organização dos Jovens Senhores Pelo Comitê
Central do YLO
A ideologia do Partido dos Jovens Senhores Por Gloria Gonzalez
O Partido e o indivíduo
Mulheres em uma sociedade socialista Pela União de Mulheres do Partido
dos Jovens Senhores
Jovens revolucionários chicanos Por Carlos Montes
Jovens Senhores, Palante: lições na luta Por Carlito Rovira
O poder amarelo
A emergência do poder amarelo Por Amy Uyematsu
Programa e plataforma de doze Pontos do I Wor Kuen Pelo Comitê Central
do I Wor Kuen
Breve história do I Wor Kuen Pelo Comitê Central do I Wor Kuen
O poder branco
Organizando os pobres brancos em Uptown, Chicago, Ilinois: uma história e
Prospectos da associação comunitária Join Por Peggy Terry,
Programa de onze pontos da Organização dos Jovens Patriotas Pelo Comitê
Central da organização
Caipira revolucionário: uma entrevista com Hy Thurman da Organização dos
Jovens Patriotas Por James Tracy e Hy Thurman
O poder vermelho
Leonard Peltier e a luta indígena por liberdade Por Michele Bollinger
Carta de Leonard Peltier Por Leonard Peltier

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Sumário

Dedicatória Prefácio Um mito bem construído O poder negro Plataforma e programa do Partido dos Panteras Negras. O que nós queremos. No que nós acreditamos. Por Huey Newton e Bobby Seale Regras do Partido dos Panteras Negras O manejo correto de uma revolução Por Huey P. Newton Corrigindo ideias errôneas Por Wilford Holliday, a.k.a. Capitão Crutch Sobre o anarquismo Por Huey P. Newton Sobre o nacionalismo cultural Por Linda Harrison O que é ultrademocratismo? Por Donald Lee Cox a.k.a. Field Marshall D.C. Onde quer que o povo esteja Por Fred Hampton O Partido dos Panteras Negras e o sindicalismo revolucionário Por Raymond “Masai” Hewitt Sobre o estabelecimento de uma Frente Única com os comunistas Mensagem às mulheres revolucionárias Por Candi Robinson Carta aberta a Stokely Carmichael Por Eldridge Cleaver A plataforma e o programa de dez pontos do Partido dos Panteras Negras Por Bobby Seale É uma luta de classes, porra! Por Fred Hampton Sobre a crítica a Cuba Pelo Comitê Central do Partido dos Panteras Negras Sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras Por Eldridge Cleaver Os movimentos de libertação das mulheres e de libertação gay Por Huey P. Newton Mensagem à sessão plenária da Convenção Constitucional Revolucionária do Povo Por Huey P. Newton Intercomunalismo Por Huey P. Newton Mensagem ao primeiro-ministro Kim Il-Sung sobre a fundação da República Popular Democrática da Coreia Por Eldridge Cleaver

Eu sou nós Por Huey P. Newton A Coalização Arco-Íris Os Panteras Negras, os Jovens Patriotas e a Coalizão Arco-írisPor Michael McCanne O poder marrom Programa e plataforma de treze pontos do Partido dos Jovens Senhores Pelo Comitê Central do YLP Regras de disciplina da organização dos Jovens Senhores Pelo Comitê Central do YLO A ideologia do Partido dos Jovens Senhores Por Gloria Gonzalez O Partido e o indivíduo Mulheres em uma sociedade socialista Pela União de Mulheres do Partido dos Jovens Senhores Jovens revolucionários chicanos Por Carlos Montes Jovens Senhores, Palante: lições na luta Por Carlito Rovira O poder amarelo A emergência do poder amarelo Por Amy Uyematsu Programa e plataforma de doze Pontos do I Wor Kuen Pelo Comitê Central do I Wor Kuen Breve história do I Wor Kuen Pelo Comitê Central do I Wor Kuen O poder branco Organizando os pobres brancos em Uptown, Chicago, Ilinois: uma história e Prospectos da associação comunitária Join Por Peggy Terry, Programa de onze pontos da Organização dos Jovens Patriotas Pelo Comitê Central da organização Caipira revolucionário: uma entrevista com Hy Thurman da Organização dos Jovens Patriotas Por James Tracy e Hy Thurman O poder vermelho Leonard Peltier e a luta indígena por liberdade Por Michele Bollinger Carta de Leonard Peltier Por Leonard Peltier Dedicatória

À memória de Herculano de Sousa – ensacador de café e militante comunista negro, morto na Praça da República, Santos, em 25 de agosto de 1931, na repressão de uma manifestação em memória dos quatro anos de execução dos anarquistas italo-americanos Sacco e Vanzetti. Atingido por um disparo da polícia, morreu nos braços da escritora comunista Patrícia Galvão (Pagu). Prefácio Os condenados no Império: história e memória do antirracismo revolucionário nos Estados Unidos Jones Manoel e Gabriel Landi Um mito bem construído Você, provavelmente, já ouviu a “história” de que nos Estados Unidos o marxismo nunca conseguiu ter influência significativa. Diferente da Europa com suas tradições estatistas e católicas, especialmente a França, os valores individualistas, liberais e protestantes dos Estados Unidos criaram uma barreira intransponível para a propagação do marxismo na classe operária. Essa classe trabalhadora, inclusive, não precisaria do marxismo dado seus ótimos padrões de vida, salário e condições de emprego, a materialização do Sonho Americano. Ao mesmo tempo que ouvimos esse mito, sabemos, normalmente pela escola, por matérias de jornais ou pela TV, que, em uma determinada época de sua história, os Estados Unidos, violando a tradicional “liberdade americana”, foram palco da perseguição dos comunistas ou pessoas de esquerda pelo chamado macarthismo . Esse período, contudo, passou rapidamente e não teria maiores significações políticas e históricas. A derrubada da União Soviética e o fim das democracias populares no Leste Europeu, com a vitória da democracia liberal e da economia de mercado, seriam a prova de que os Estados Unidos, o farol guia do “mundo livre” imperialista, estavam certos. A despeito de limites, falhas, problemas e imperfeições, a democracia burguesa e seus valores seria a pior forma de governo, com exceção de todas as demais – como diria Winston Churchill (ele também um democrata e defensor da liberdade). Não só a democracia liberal, e especificamente sua versão estadunidense, teria se mostrado o modelo mais adequado ao mundo, como as tentativas de construir algo superior, como uma democracia socialista, levariam à maior monstruosidade da modernidade: o totalitarismo comunista, comparável ao nazismo e ao fascismo. Na realidade, o totalitarismo comunista seria até pior que o nazifascista. Assim disse a grande guerreira contra o totalitarismo, Hannah Arendt:

Por outro lado, a prática russa [soviética] é mais “avançada” do que a nazista em um particular: a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças raciais, e a aplicação do terror segundo a procedência socioeconômica (de classe) do indivíduo foi abandonada há tempos; de sorte que qualquer pessoa na Rússia pode subitamente tornar-se vítima do terror policial. ¹ O totalitarismo comunista era tão pior que o nazifascismo que, nessa cruzada em defesa da democracia após a queda do Muro de Berlim, seria aceitável e até saudável reabilitar o czarismo russo, os grupos anticomunistas dos exércitos brancos e mesmo os nazistas, que na sua luta contra os comunistas teriam dado uma contribuição à preservação da democracia: Até algumas colaborações com os nazistas são “compreensíveis”. É assim que o cronista do Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: “A época era complexa… (o Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria provavelmente homenageado como combatente contra o  totalitarismo. ² Nesse processo de vitória da democracia burguesa, qualquer menção positiva a Stálin, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, Che Guevara ou outro líder comunista tornou-se prova de anacronismo, sedução totalitária, aceitação de genocídio. Seria a hora de todo espectro político, da esquerda à direita, aprender com a democracia, valorizar a democracia liberal. Claro, podemos criticar uns erros pontuais dos Estados Unidos, como mentir sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque e destruir o país; mentir sobre Osama Bin Laden estar escondido no Afeganistão e destruir o país; mas esses “erros” de política externa não comprometem o caráter democrático dos Estados Unidos. O caráter democrático dos Estados Unidos é tão evidente que vários setores da esquerda brasileira se empolgaram com a possibilidade de um “socialismo democrático” com Bernie Sanders. Oras, a “teoria” do “socialismo democrático”, em uma abordagem bem geral, acredita que é possível, partindo do movimento de massas e da luta institucional, transformar a democracia por dentro, alargando-a, democratizando a democracia até chegarmos ao socialismo. ³ O pressuposto desta pregação é uma democracia, ainda que mínima, já previamente existente, que possa então ser ampliada.

O mito da democracia e da liberdade estadunidense é tão forte que é imune aos fatos. Em novembro de 2019, o site G1 , da Rede Globo, noticiou um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) apontando que os Estados Unidos têm mais de 100 mil crianças presas em campos para imigrantes. O mundo tem 330 mil crianças detidas por razões de imigração, estando quase um terço delas, portanto, nos Estados Unidos. Ainda segundo a matéria do G1 , ⁴ esse país é o único do mundo a não ratificar a Convenção dos Direitos da Criança; para completar o quadro, Stephen Miller, assessor sênior da Casa Branca e responsável pela política de imigração do governo Trump, teve e-mails vazados pelo jornal The Guardian ⁵ expondo todo seu racismo e supremacismo branco. Recapitulando: 100 mil crianças presas em campos para imigrantes em situação degradante, acumulando várias denúncias, inclusive da ONU, de abusos sexuais, maus-tratos e ausência de condições básicas de higiene, resultado de uma política comandada por um notório racista e supremacista branco de um país que é o único do mundo a não assinar a Convenção dos Direitos da Criança. Já pensou se fosse Cuba, Venezuela, Irã, China ou Coreia do Norte a fazer o mesmo? A função deste Prefácio, portanto, será quebrar esses mitos e apresentar os escritos aqui presentes, a maioria inéditos em português, contextualizando historicamente o surgimento do antirracismo revolucionário, anticolonial e marxista de organizações como os Panteras Negras, Jovens Senhores, Boinas Marrons, I Wor Kuen etc. Primeiro, vamos responder à pergunta se os Estados Unidos são mesmo uma democracia, debater a história do Estado burguês anti-negro no país, buscando fazer uma avaliação crítica sobre os mitos da ideologia dominante a partir de uma de suas principais formuladoras: Hannah Arendt. Depois, procuraremos traçar algumas notas da história do marxismo no país e, por fim, debater os limites e o legado histórico da proposta revolucionária presente nos textos coligidos nesta antologia. A cor da liberdade: democracia e liberdade nos Estados Unidos Responder à pergunta se os Estados Unidos são ou não uma democracia impõe, primeiro, precisar algumas questões teóricas. A primeira consiste em afastar desde já uma concepção idealista muito presente no discurso sobre o que é a democracia. Basicamente, opera-se assim: um país é considerado uma democracia como um dado evidente, inquestionável, e, não importa o que aconteça, por mais brutal que seja qualquer fato que ocorra em seu território, não muda o caráter democrático que lhe é conferido. A democracia é, assim, concebida como um padrão ideal, nunca realizado na prática, cada vez mais distante. No entanto, essa diferença entre o mundo das ideias e a realidade, o mundo de Deus e o Mundo do Homem, não altera o diagnóstico político e as barbaridades são apenas “falhas”. Nunca se debate até que ponto qualitativo o acúmulo de falhas, desvios e erros gera uma mudança no caráter do regime para antidemocrático. Nesse sentido, países como Brasil, Israel, Colômbia e Estados Unidos são, evidentemente, democráticos, e outros, como Cuba, China e Venezuela, evidentemente, não. A realidade vira um conjunto de fatos sem importância – como batatas em

um saco de batatas – dentro de um esquema construído a priori que se sustenta sobre as bases de um idealismo cínico. Não trabalhamos com essa noção de democracia. Também recusamos as noções minimalistas e formalistas da democracia, como as de Norberto Bobbio e Karl Popper, que tendem a considerar democrático um regime político que possibilite mudança de governo sem violência e garanta o respeito às “regras do jogo”. Os problemas dessa formulação são óbvios: escolhe-se que violência é política e qual não é. Nessa perspectiva teórica, é possível afirmar que a África do Sul, no auge do apartheid , ou os Estados Unidos, na época da escravidão, eram um regime democrático, levando em conta suas eleições regulares com resultados respeitados – e, por óbvio, considerar de forma arbitrária a violência intrínseca ao apartheid e a escravidão como violências não políticas. ⁶ É necessário destacar que também recusamos o formalismo jurídico subjetivista – um derivado implícito de perspectivas teóricas como as de Bobbio e Popper. Como assim? Aparentemente, Deus, nas doze tábuas de Moisés, escreveu que o regime político precisa ser multipartidário (ainda que esse “multi”, na maioria das vezes, seja apenas resumido a dois partidos iguais programaticamente), o governo com funções tripartites (Executivo, Legislativo e Judiciário), a representação indireta, o judiciário não eleito por voto direto, os mandatos não revogáveis com soberania na prática sequestrada pelo “representante” etc. Caso esses dogmas sagrados não sejam atendidos, o país é automaticamente excomungado do Éden da democracia. Chamamos isso de formalismo jurídico subjetivista porque aqueles partidários dessa concepção nunca se preocupam em demonstrar por qual motivo um sistema de funções tripartites de governo seria mais democrático, o Judiciário não pode ser formado por voto direto ou, o melhor de todos, que o sistema precisa ser multipartidário. Essa crença é um tipo de dogma irrefletido com eficácia não demostrada em seu fundamento – o caráter mais democrático – e sustentado por uma potente rede articulada de aparelhos ideológicos (veículos de mídia, universidades, ONGs, consultorias, agências governamentais, partidos políticos etc.) e, muitas vezes, servindo de base retórica para golpes de Estado, operações de bloqueio econômico, sabotagem, assassinato, guerras e ocupações militares contra as formas desviantes do dogma liberal-capitalista de democracia.

O que então chamamos de democracia? Chamamos de democracia, no capitalismo, um regime jurídico-político com sufrágio universal, isto é, direito de votos conferido a todos; dotado de uma igualdade jurídica universal, sob a qual todos são considerados no plano formal como humanos e sujeitos de direito; e sob um padrão constitucional com algum nível de previsibilidade, segurança jurídica e liberdade de organização de partidos, eleições, sindicatos, veículos de mídia etc. Ou seja: trabalhamos com uma concepção de democracia burguesa em que, no plano jurídico-político, existe de fato uma igualdade formal e na qual a dominação de classe, com sua violência intrínseca, realiza-se, no geral , pela mediação de regras constitucionais que formam balizas mínimas de atuação (sempre, contudo, na iminência do rompimento dessas regras em caso de radicalização da luta de classes). Um padrão de democracia mínimo? Sem dúvidas. Mas é importante lembrar que estamos falando de democracia burguesa e não de democracia socialista ou poder popular. Agora vejamos, os Estados Unidos são uma democracia? Começamos com a Revolução Americana que garantiu a emancipação frente ao colonialismo inglês e formou a república. No processo de consolidação do novo Estado nacional, os lealistas, aqueles que eram contra a separação do Império inglês, foram aterrorizados e expulsos em massa do novo país. Sessenta mil desses lealistas, ou suspeitos de o serem, refugiaram-se no Canadá ou outras partes do Império para não morrerem ou serem presos. ⁷ Nesse clima de ditadura revolucionária, de Estado de exceção contra os lealistas, a Convenção do Estado de Nova York decreta que todos os fiéis à antiga metrópole seriam culpados de traição, sendo condenados à morte, e que toda liberdade de imprensa e reunião para lealistas estava proibida. ⁸ O uso de medidas de exceção pode ser justificado pela formação de um Estado nacional a partir da luta anticolonial; o problema é que essas medidas de exceção não foram temporárias, defensivas, apenas para constituir a nacionalidade. Os povos originários da América do Norte, genericamente chamados de peles-vermelhas, foram massivamente acusados de simpatias pela coroa britânica. De fato, vários grupos indígenas mantiveram uma atitude distante ou até hostil a Revolução Americana. O motivo era claro: colocavam-se contra o desejo dos colonos de avançar na expropriação das terras indígenas e descumprir os acordos de garantia de território assumidos pelo Império Britânico. Nos anos seguintes à Revolução Americana, os indígenas conheceram “destruição sistemática das plantações e aldeias”, crianças e mulheres sendo “massacradas ou queimadas vivas e vários casos de estupros contra mulheres jovens”. ⁹ O processo de extermínio dos indígenas resultou nesses números: Em 1650, os índios americanos constituíam aproximadamente 80% do total da população, tanto na América do Norte quanto na América do Sul (incluído o Brasil). Em 1825, tudo havia mudado de forma radical. Na América espanhola, os indígenas ainda constituíam 59% da população como um todo, no Brasil, contudo, eles somavam apenas 21% ao ao passo que na América do Norte perfaziam menos de 4%. ¹⁰

Claro que se pode argumentar, e com razão, que a imigração tem papel na redução do total da população indígena. Alguns, com postura cínica, podem alegar que a miscigenação e a integração cultural são responsáveis por essas cifras. A realidade, porém, é bem eloquente: estamos diante de um genocídio, um extermínio que, embora bem mais dilatado no tempo, foi mais sanguinário que a Solução Final de Adolf Hitler para os judeus. Estamos trabalhando com o “dado” de cerca de 18 milhões de pessoas exterminadas. O terrível desse genocídio se vê nos números. Em 1620, a população nativa era de 18 milhões, foi reduzida a 600 mil em 1800 e chegou a 250 mil em 1900. Em 2008, o censo demográfico dos Estados Unidos mostrou uma população de aproximadamente 325 milhões de habitantes. Entre esses, 75,1% brancos, oriundos de imigrações europeias, enquanto os nativos representavam 0,13% da população, algo como 2,5 milhões, quando no início do século XVII eram 18 milhões. Os dados revelam tudo, diz o livro sobre o maior genocídio. ¹¹ Uma gigantesca parcela da população estadunidense não vivia, concretamente, sob um regime constitucional de democracia burguesa, mas sim sob um Estado de exceção permanente com objetivos e práticas genocidas concretizadas com sucesso. Não se trata apenas de apontar que a população indígena era privada dos direitos políticos, como votar e ser eleito, e dos direitos civis, estamos falando de algo mais grave: eles não eram sequer considerados seres humanos pelo Estado criado pelos pais fundadores: ¹² Nos Estados Unidos, os peles-vermelhas eram retratados de forma cada vez mais repugnante à medida que o processo de sua aniquilação da face da Terra avança com maior impiedade. A guerra discriminatória e de aniquilação das populações coloniais, externas ou internas às metrópoles, é justificativa com o recurso à sua  desumanização. ¹³ Alguém pode argumentar que esse desejo de extermínio é coisa prémoderna, vigente em todo mundo na época, apelando a um suposto “contexto histórico”. Mas a ideologia de extermínio dos indígenas é coisa de antes da nossa era contemporânea? Theodore Roosevelt, 26 o presidente dos Estados Unidos, afirmava que “não chego ao ponto de dizer que índio bom é índio morto, mas creio que seja o caso de nove em cada dez. E não gostaria de indagar muito a fundo sobre o décimo”. ¹⁴ Essas palavras foram proferidas por Roosevelt em 1886 e, ainda que tenhamos indícios de uma mudança de posição posterior, são significativas. Thomas Jefferson, o terceiro presidente, falava em “eliminar” os indígenas. Jefferson também catalogava os povos originários dessa forma: “estes selvagens sem piedade, cujo modo bem conhecido de fazer a guerra é massacrar tudo, sem distinção de idade, de sexo, nem de condição”. ¹⁵ O general Philip Sheridan, um dos mais famosos da história dos Estados Unidos, defendia, na metade do século XIX, a “aniquilação, obliteração e completa destruição” dos indígenas. ¹⁶ O nível de brutalidade na política de extermínio foi tanta que um famoso personagem da história do século XX tomava o extermínio estadunidense como o grande exemplo para seu projeto. Esse líder era Adolf Htiler. Em

uma reportagem do Sputnik sobre o genocídio indígena, é citado o historiador estadunidense John Toland, que diz: O conceito de Hitler dos campos de concentração se deve muito a seu estudo da língua inglesa e da história dos Estados Unidos. Ele admirava os campos […] para índios no Velho Oeste, e muitas vezes elogiava, perante o círculo mais chegado, a eficácia do extermínio da população indígena da América. ¹⁷ Outro prestigiado historiador, insuspeito de qualquer simpatia comunista, afirma a grande influência da história estadunidense no projeto hitleriano de colonização e escravização na própria Europa: Hitler comprimiu toda a história imperial e o racismo total numa breve formulação: “Nosso Mississippi deve ser o Volga, não o Níger. O rio Níger, na África, já não era acessível ao imperialismo alemão desde 1918, mas a África continuava sendo fonte de imagens e nostalgia colonialistas. O Volga, no limite oriental da Europa, era onde Hitler imaginava a fronteira do poderio alemão. O Mississippi era não só o rio que corta os Estados Unidos de norte a sul pelo meio do país. Era também a linha para além da qual Thomas Jefferson queria expulsar todos os indígenas. “Quem”, perguntava Hitler, “se lembra dos peles-vermelhas?”. Para ele, a África era a fonte das referências imperiais, mas não só o lugar real do império. O leste da Europa era o lugar real, e tinha de ser refeito como a América do Norte teve de ser refeita. ¹⁸ O Estado racial estadunidense, como se sabe, não se restringiu a práticas de domínio total contra os indígenas. É fundamental sempre lembrar que existe uma lenda muito popular de que o liberalismo, no Brasil, seria mais autoritário e antidemocrático do que o “verdadeiro liberalismo”, o do Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Os que divulgam essa visão, cobrando um “verdadeiro liberalismo” no Brasil ou uma imitação do liberalismo dos países imperialistas, parecem esquecer, ou ignorar propositalmente, que com a Revolução Americana a escravidão não foi extinta. A Constituição Americana sanciona a escravidão, e o regime presidencialista do país esteve organicamente ligado a essa instituição de máxima opressão e exploração: depois da fundação da República estadunidense, por 32 anos, a presidência foi ocupada por proprietários de escravos. O sentido intrínseco da ligação entre fundação da república, liberalismo e a escravidão é bem colocada por Losurdo: A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse sucesso: “o total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330 mil no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico de mais de 6 milhões nos anos 50 do século XIX”. O que contribui de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo do poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal. ¹⁹ Grandes pensadores liberais e admiradores da República americana, como o francês Alexis de Tocqueville no seu clássico livro A democracia na América,

não só legitimavam o extermínio dos indígenas, ²⁰ como consideravam, sem problemas, a República como democrática a despeito da escravidão. Tocqueville registra que existe igualdade e liberdade no âmbito da comunidade branca, mas muitos imigrantes, indígenas e negros não desfrutavam dessa liberdade. Emerge como claro: a democracia estadunidense é um regime de base racial, uma democracia para o povo dos senhores, como diria Domenico Losurdo. Registrar a convivência da democracia burguesa nos Estados Unidos com a escravidão é pouco. É necessário negritar ainda que, no plano das relações internacionais, o império do Norte atuava como uma força de contrarrevolução no nível do continente americano, buscando manter ou restabelecer a escravidão. Em meados do século XIX, a escravidão foi restabelecida no Texas, depois do território ser roubado do México pelos Estados Unidos. ²¹ A antiga colônia francesa de São Domingos, o Haiti, conseguiu realizar sua revolução, acabar com a escravidão, o domínio dos proprietários de escravo e libertar-se do colonialismo francês. O pequeno país proclamou que, a partir daquele momento, todos os seres humanos seriam iguais e ninguém poderia ser propriedade de outrem. Desafiado pela Revolução Haitiana, “foi por esse motivo que, em 28 de fevereiro de 1806, o presidente estadunidense Thomas Jefferson proibiu todo e qualquer comércio com o Haiti. A intenção era suprimir essa república de negros livres. ²² A escravidão só foi extinta com a Guerra Civil Americana de 1861-1865. Durante a guerra, o governo de Abraham Lincoln, representando os interesses da burguesia industrial nortista e valendo-se de expedientes de Estado de exceção contra os proprietários de escravos do Sul, proclamou a abolição da escravidão. No período, como mostra Domenico Losurdo, ²³ muitos liberais apoiaram os Confederados do Sul, vendo neles os verdadeiros representantes do liberalismo, da defesa da propriedade privada, contra o “jacobinismo” de Lincoln. Enquanto isso, Marx e Engels se colocaram como firmes apoiadores da luta contra a escravidão e apontavam as vacilações da União na luta contra os latifundiários escravagistas (não passa de delírio e falsificação afirmar que Marx e Engels apoiavam a escravidão nos Estados Unidos como alguns setores do movimento negro anticomunista brasileiro fazem): Colocando-se abertamente a favor da emancipação dos escravos, Marx e Engels não se eximiram de criticar, através da imprensa, as tendências conciliadoras e tendentes à capitulação existente no próprio campo republicano nortista. Em artigos como “A destituição de Frémont”, “Crítica dos assuntos americanos” e “Crise na questão escravista”, “Tratado contra o comércio de escravos” e “Manifestações abolicionistas na América”, Marx condenava de forma contundente a indecisão e as vacilações dos círculos moderados do Partido Republicano do Norte dos Estados Unidos, sua inclinação para estabelecer compromissos com a oligarquia escravista do Sul e seu Partido Democrata. Subjaz nesses escritos o reconhecimento das limitações sócio-históricas da burguesia estadunidense, que a tornavam incapaz de realizar a “democracia americana” em sua plenitude – decantada anos antes por liberais europeus da estirpe de Alexis de Tocqueville –,

concorrendo para a manutenção de uma “república contaminada“ ( defiled republic ) na sociedade e no sistema político estadunidense pela vigência da “instituição nefanda”. Para Marx e Engels, a maneira consequente e radical de travar a guerra era através da proclamação de seu caráter abolicionista, emancipador e antioligárquico, de modo a mobilizar as massas de condição livre e aqueles que ainda permaneciam escravos para o desenvolvimento de uma guerra popular e revolucionária . ²⁴ Durante a Guerra, a guarda civil formada também por pessoas negras, exescravos, apoiada pela ditadura “jacobina” do Norte conseguiu criar um clima de liberdade para a população negra como nunca antes visto. Pela primeira vez na história, os negros e negras dos Estados Unidos passaram a desfrutar de algo próximo de um Estado de direito e direitos civis. ²⁵ Com a vitória da União, ocorreu, afinal, a conciliação com os Confederados do Sul. A despeito do caráter de mobilização popular do exército antiescravista, a guerra buscava, essencialmente, dobrar as resistências do latifúndio e afirmar a hegemonia do capital industrial e bancário nortista. Garantida essa hegemonia, a burguesia nortista permitiu o estabelecimento de uma nova forma de domínio sobre a população negra. Quando termina o período da reconstrução americana, e as tropas nortistas deixam totalmente os estados do Sul, em 1877, os proprietários brancos recuperaram seu poder político e acabaram com o pouco de liberdade política até então desfrutada pelos negros. Rapidamente, uma série de leis segregacionistas começaram a tomar corpo entre 1890 e 1910 – inicialmente no Norte e não no Sul ²⁶ –, configurando o regime de segregação racial Jim Crow. ²⁷ Esse sistema de apartheid , oficialmente, durou até 1965. Proibia não só direito de votar e ser eleito aos negros em vários estados, como criava um regime de desumanização total e alijamento de direitos básicos, como educação, saúde, transporte e emprego. É importante destacar que o regime de segregação racial não era apenas uma política estatal. A mitologia liberal gosta de imaginar regimes de exceção como um Estado total, o Grande Irmão de George Orwell, que controla toda uma sociedade indefesa; em suma, a velha e gasta oposição liberal entre Estado versus indivíduo ou sociedade. A dominação racialclassista nos Estados Unidos se configura como um complexo orgânico e dinâmico de brutalidade, violência e desumanização que articula Estado e sociedade civil com fronteiras sempre mais turvas, com a interação entre as formas legais e ilegais de opressão, de acordo com a conjuntura histórica. Vejamos alguns aspectos dessa dominação: Por mais brutais e sangrentos que fossem os distúrbios raciais, ficavam atrás dos linchamentos e das mortes por fogo. Em 1918, 64 negros foram linchados; em 1919, o número subiu para 83. Talvez o ato mais brutal tenha sido o ocorrido em Valdosta, no estado da Geórgia, em 1918. Mary Turner, uma mulher negra grávida, foi enforcada numa árvore, embebida com gasolina e queimada. Quando se balançava na corda, um homem da multidão puxou uma faca e abriu seu ventre. Seu filho caiu. Deu dois gemidos fracos – e recebeu como resposta um pontapé de um valentão, no momento em que a vida era triturada nessa forma tão minúscula. ²⁸

E: Notícias dos linchamentos eram publicadas em folhetos locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistir ao linchamento, as crianças das escolas podiam ter seu dia livre. O espetáculo podia incluir castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros de arma de fogo. As lembranças a serem adquiridas podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até as genitálias das vítimas, bem como cartões ilustrados do evento. ²⁹ Note, os linchamentos eram públicos, anunciados como eventos sociais de fundamental importância, com o conhecimento e a aprovação, oficial ou oficiosa, das autoridades do poder público. Nos Estados Unidos, um negro não deveria apenas temer a polícia, a força repressiva do Estado, mas todo e qualquer branco: o branco podia estuprar uma mulher negra e nada acontecer; espancar um negro e nada acontecer; matar e torturar com requintes de crueldade um negro e nada acontecer. Em caso de reação, em legítima defesa, o negro poderia esperar a prisão, pena de morte ou a morte pura e simples por linchamento. A situação da população negra, em vários estados do Sul e com formas diferentes e um pouco menos brutais no Norte, expressa-se objetivamente como a negação total da condição de ser humano, sujeito de direito e portador de direitos civis. ³⁰ Além da semelhança com o nazismo, a situação dos negros nos Estados Unidos se assemelha também à situação colonial denuncida por Ho Chi Minh, Fanon, Mao Tsé-Tung e vários outros líderes anticoloniais. Fanon provoca falando que, em uma situação colonial, “a infraestrutura econômica é também uma superestrutura” e que existe uma confluência entre raça e classe, “alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser sempre ligeiramente distendidas, a cada vez que aborda o problema colonial” (FANON, 2015, p. 56). No caso estadunidense, não podemos falar que alguém branco é rico, burguês, mas sem dúvida, é cidadão o branco, e não cidadão o negro; e os direitos de cidadania do branco englobavam, sem problemas, o direito de matar e molestar um negro. Outro importante líder anticolonial, o comunista Ho Chi Minh, descreve assim a situação colonial do povo anamita (Vietnã): Sr. Beck quebrou o crânio do seu motorista particular com um golpe vindo de suas próprias mãos. Sr. Bres, empreiteiro, chutou um anamita até à morte após ter amarrado seus braços e ter o deixado ser mordido pelo seu cachorro. Sr. Deffis, tesoureiro, matou seu servo anamita com um chute fortíssimo nos rins. Sr. Henry, um mecânico de Haiphong, ouviu um barulho na rua; quando abriu a porta de sua casa, uma mulher anamita entrou, seguida de um homem. Henry, pensando que era uma perseguição feita por um nativo depois de um “con-gai”, pegou seu rifle de caça e atirou no elemento. O homem, que caiu no chão duro como uma pedra, era um europeu. Questionado, Henry respondeu, “eu pensei que fosse um nativo”. ³¹ Essa denúncia feita por Ho do colonialismo francês é de 1922, vejamos o que ele fala da situação dos negros estadunidenses em 1924:

Em uma onda de ódio e bestialidade, os linchadores levam o negro a uma árvore ou algum local público. Eles o amarram em uma árvore, jogam querosene sobre seu corpo, o cobrem com material inflamável. Enquanto esperam o fogo acender, quebram seus dentes, um por um. Então, arrancam seus olhos. Pequenos tufos de cabelo crespo são arrancados de sua cabeça, levando pedaços de pele junto com eles, expondo um crânio sangrento. Pequenos pedaços de carne saem do seu corpo, já contundido após os golpes. O negro não pode mais gritar: sua língua foi inchada por um ferro em brasa. Todo seu corpo murmura, tremendo, como uma cobra esmagada. Uma facada: uma de suas orelhas cai no chão. Oh! Vejam como ele é negro! Que terrível! E as senhoras choram em seu rosto... “Acende!” – grita alguém – “o suficiente para cozinhá-lo bem devagar”, outro acrescenta. O negro é torrado, queimado, carbonizado. Mas ele merece morrer duas vezes ao invés de uma. Portanto, ele é enforcado, ou para ser mais exato, o que restou de seu corpo é enforcado. E todos aqueles que não conseguiram ajudar a incendiá-lo, agora aplaudem. Viva! Quando todos já se cansaram, o corpo é derrubado. A corda é cortada em pedaços que serão vendidos cada um por três ou cinco dólares. Lembranças e amuletos da sorte disputados entre as mulheres. ³² A semelhança entre a situação colonial e a situação do negro nos Estados Unidos é gritante. E de novo repetimos a pergunta: é possível chamar isso de democracia [burguesa]? Alguém pode argumentar que o sistema era democrático burguês para a maioria, já que a população negra nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, está longe de ser a majoritária. A afirmação é verdadeira, mas é uma verdade que se levanta apenas para esconder um fato essencial: o regime de segregação racial impõe que todos os brancos, sob pena de enfrentar a fúria do Estado racial burguês, aceitem e colaborem com o apartheid . O branco que mantinha relações aparentemente cordiais com os negros, ou pior, relações amorosas, especialmente no caso das mulheres, era acusado de traidor da sua raça. Em 29 dos 48 Estados da União, segundo um livro que trabalha com dados dos anos 50 do século XX, “é proibido não só o casamento entre pessoas brancas com as consideradas de cor, como também qualquer relação sexual entre eles”; o autor ainda destaca que alguns estados proíbem também o casamento de “mongólicos e malaios com brancos”. ³³ O racismo servia, ao mesmo tempo, para controlar as mulheres, como um instrumento do patriarcado, e legitimar e manter o apartheid , negando a “mistura de raças”, cruzando as dominações de raça, classe e gênero. A grande comunista Angela Davis aponta o papel fundamental do mito do “negro estuprador” na legitimação do regime de terror supremacista branco: Antes que os linchamentos pudessem ser consolidados como uma instituição popularmente aceita, entretanto, a barbaridade e o horror precisavam ser justificados de maneira convincente. Essas foram as circunstâncias que engendram o mito do estuprador negro – pois a acusação de estupro acabou por se tornar a mais poderosa entre as várias tentativas de legitimar os linchamentos de pessoas negras. ³⁴

Segundo Ho Chi Minh, no escrito já citado de 1924, ³⁵ “Em ³⁰ anos, ⁷⁰⁸ brancos, incluindo onze mulheres, foram linchados. Alguns por terem organizado greves, outros por defenderem a causa dos negros”. Ainda cabe destacar o nível de banalidade das “justificativas” para os linchamentos. Segundo reportagem da BBC descrevendo três casos de linchamento: […] o afro-americano Jesse Thornton foi linchado em Luverne, Alabama, em 1940 por ter se referido a um policial pelo nome, e não por “senhor”. Já em 1916, Jeff Brown foi linchado em Cedarbluff, Mississipi, por tropeçar acidentalmente em uma jovem branca enquanto corria para pegar o trem. O soldado Charles Lewis foi linchado em 1918, em Hickman, Kentucky, por se negar a esvaziar os bolsos enquanto estava vestindo seu uniforme militar. ³⁶ A partir da metade dos anos 1930, os linchamentos públicos, anunciados em jornais como festas, caem em desuso. Isso não significa, é claro, o fim dos linchamentos ou da ação de grupos como a Ku Klux Klan. A luta antirracista do final dos anos 1920 e anos 1930 – na qual desempenharam um papel fundamental comunistas que enfrentavam “cárcere, espancamento, sequestro e até morte” (LOSURDO, 2009, p. 48) – conseguiu banir esse costume macabro. Já nos anos 1950, também se fortalece a oposição à segregação racial no seio do estado burguês estadunidense, a partir da pressão de movimentos em meio aos quais, mais uma vez, os comunistas desempenham papel de destaque. Em dezembro de 1952 o ministro estadunidense da justiça enviava à Corte Suprema, que era chamada a discutir a questão da integração na escola pública, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água à propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé  democrática”. ³⁷ Ainda cabe destacar que essa população negra, submetida a um regime de dominação total – seria totalitarismo? –, durante grande parte do século XX, conviveu também com regimes de trabalho não livre mesmo após o fim da escravidão. No sistema carcerário estadunidense, os prisioneiros poderiam ser alugados ou alocados, no próprio ambiente prisional, na realização de trabalhos forçados. No fim do século XIX, o uso da força de trabalho de prisioneiros negros na construção de linhas ferroviárias foi massacrante: “morreram quase 45%” destes trabalhadores. ³⁸ A maioria de jovens à flor da vida. No mesmo período, no estado do Alabama, a mortalidade de presos alugados foi, no primeiro ano, ²⁵% de mortos, ³⁵% no ano seguinte e ⁴⁵% dois anos depois. ³⁹ Ainda mais eloquente são esses dados do século XX: Em relação ao trabalho, há ainda nos Estados Unidos extraordinário número de pessoas, calculado em cinco milhões, que o executam como trabalhos forçados, obrigados pelas circunstâncias. As leis são contornadas de tal maneira que, no final, trata-se realmente de verdadeiros trabalhos forçados, duro, obrigatório, como o dos escravos que não podiam escapar à sua execução. Naturalmente, não são os ianques brancos e protestantes que o executam, mas sim as minorias marginais de negros, mexicanos, orientais e diversas outras, não raro entrando no país ilegalmente, mesmo atravessando a nado rios das fronteiras. ⁴⁰

Não só estava posta a sobrevivência de formas de trabalho próximas a da escravidão, como de formas também brutais de desumanização. Em 1997, o presidente Clinton teve que pedir desculpas por, nos anos 1960, mais de quatrocentos homens negros terem sido usados como “cobaias humanas pelo governo. Doentes de sífilis, não foram curados porque as autoridades queriam estudar os efeitos da doença sobre uma amostra da população”. ⁴¹ O movimento dos direitos civis, iniciado nos anos ¹⁹⁵⁰, e outros vários movimentos revolucionários na mesma quadra histórica, a maioria representados nesse livro, ajudaram a derrubar a estrutura jurídico-política do apartheid . O que não significa, que fique claro, o fim do Estado racialista estadunidense. Fugiria do escopo desta Introdução tratar o que vários autores chamam de terceira era da segregação racial ou nova segregação , baseada na política penal e carcerária, e com a chamada “guerra às drogas” desempenhando papel de destaque. Essa nova segregação, forjada a partir dos anos 1970, será debatida em outro momento. Cabe agora um breve embate com a principal, ou uma das principais, apologistas dos Estados Unidos: Hannah Arendt. A banalização do racismo: Hannah Arendt e a filosofia antinegra Arendt, antes do final da Grande Guerra, enquanto escrevia seu livro As origens do totalitarismo, considerava o projeto de redigir um livro sobre o antissemitismo e sobre o imperialismo, uma pesquisa histórica sobre o “imperialismo racial”. Em ¹⁹⁴⁶, no imediato fim da guerra, a autora publica um ensaio sobre o imperialismo na Revista Comentário [Commentary Review] e avisa ao leitor que o ensaio é um prelúdio do livro sobre o mesmo tema, em produção. ⁴² Nesse período, a crítica ao nazismo se combinava com a crítica ao imperialismo racial de longa duração no Ocidente, e a União Soviética de Stálin, ao contrário, era tomada como um exemplo novo e cabal de enfrentamento e resolução dos problemas de opressão nacional, organizando populações diferentes na base da “igualdade nacional” e expressando um modelo que todo “movimento político e nacional deveria prestar atenção”. ⁴³ Quando lança seu livro As origens do totalitarismo , em 1951, Arendt continua falando do antissemitismo e do imperialismo, porém a terceira parte do livro, focada na comparação do nazismo com o socialismo soviético no período stalinista, não guarda ligação direta com as outras duas. O livro não é mais uma história do imperialismo, e especialmente do imperialismo racial. É um ataque centrado, principalmente, na União Soviética, que, como vimos na primeira citação feita neste Prefácio, seria mais repressiva que o nazismo. Se, no livro de 1951, os ventos da Guerra Fria já são claros no pensamento de Hannah Arendt, no seu livro de 1963, Sobre a revolução , a autora assume o posto de uma das principais formuladoras do mito da liberdade e democracia da Revolução Americana e dos Estados Unidos. Nesse livro, Arendt pretende fazer uma contraposição entre a Revolução Americana e a Francesa, e por tabela a Revolução Russa, e colocar a primeira como um exemplo de evento político bem-sucedido na busca da liberdade e libertação; já a Revolução Francesa – e todas as revoluções socialistas do século XX – poderiam ser classificadas como um fracasso

descambando no terror e na violência, por ter como centro de ação não a liberdade, a ação de iguais na esfera pública, mas a igualdade, a questão social. A autora, já no Prefácio, começa dizendo que o “objetivo da revolução era, e sempre foi, a liberdade”. ⁴⁴ Mas o que é essa liberdade? Para explicar isso, precisamos tomar um caminho tortuoso. Arendt considera que a revolução e a guerra são fenômenos assemelhados, ligados pela predominância da violência. A autora diz que “seria difícil negar que uma das razões pelas quais as guerras se convertem tão facilmente em revoluções e as revoluções têm mostrado essa sinistra tendência para desencadear guerras” é que a violência “constitui uma espécie de denominador comum a ambas”. ⁴⁵ Mesmo fazendo uma ponderação, ao afirmar que nem sempre a guerra e a revolução são “determinadas pela violência”, a autora, uma página depois, reforça que “a violência desempenha um papel predominante nas guerras e revoluções”. ⁴⁶ A guerra e a revolução, por sua essência violenta, são fenômenos “marginais na esfera política; pois o homem, como ser político, é dotado do poder de fala”. ⁴⁷ Em seguida, continua seu raciocínio falando que “devido a essa ausência de fala [na revolução e na guerra], a teoria política tem pouco a dizer sobre o fenômeno da violência” e firma essa posição: “uma teoria da guerra ou uma teoria da revolução, portanto, só pode tratar da justificação da violência porque essa justificação constitui seu limite político; se, em vez disso, ela chega a uma glorificação ou a uma justificação da violência enquanto tal, já não é política, e sim antipolítica”. ⁴⁸ Hannah Arendt não tem dúvidas: a política é a esfera construída pelo diálogo, a palavra, entre homens livres e iguais, e a violência, a negação da palavra, a negação da política. E mesmo com contexto político, a revolução não é “realmente política” e talvez nem sequer “ligada à política”. Nesse sentido, a revolução e a guerra negam a essência da liberdade: a relação de iguais na esfera pública. E como se conquista e se perde a liberdade? A filósofa começa dizendo que é conhecido, desde a Antiguidade, o fato de tiranos subirem ao poder com o “apoio da plebe ou dos pobres, e que a melhor oportunidade de manter o poder consiste no desejo popular de igualdade de condições”. ⁴⁹ A igualdade que Arendt defende é política, ou melhor, jurídico-política, e não socioeconômica – “igualdade de condições”. Para a autora, a busca pela igualdade de condições, ou a questão social, só começou a desempenhar um papel revolucionário quando, na era moderna, os homens “começaram a duvidar de que a distinção entre a minoria […] e as massas trabalhadoras miseráveis” não é eterna e inevitável. Essa dúvida, para a autora, surge com a experiência colonial americana. Segundo Arendt, a “América tinha se tornado o símbolo de uma sociedade sem pobreza muito antes que a era moderna” e somente depois dessa descoberta, na “humanidade europeia”, a questão social e a revolta dos pobres vieram a desempenhar um papel “genuinamente revolucionário”. ⁵⁰ Ao mesmo tempo, porém, diz que a Revolução Norte-Americana, mesmo a América do Norte colonial sendo o berço da ideia de “igualdade de condições”, não “teve grande impacto visível no continente europeu” e nem as “doutas teorias políticas dos pais fundadores” foram assimiladas como se deveria. ⁵¹

Um paradoxo? Para a autora, não. A igualdade socioeconômica da colônia americana inspirou a ideia de igualdade na Europa, mas, na Revolução Americana, a questão social “sobre a forma da terrível miséria em massa” mal chegou a “desempenhar algum papel” – a preocupação da Revolução Americana foi a “instauração de um novo corpo político”. ⁵² Os revolucionários mundo afora, contudo, ignoram a lição da Revolução Americana e se preocupam muito mais com “transformar o arcabouço da sociedade” do que “transformar a estrutura da esfera política”. Os revolucionários americanos não cometeram esse pecado, afinal, a questão social já foi resolvida no seu país. Já no Velho Mundo, a tentativa de criar essa igualdade se deu por meio da “violência” e da “carnificina da revolução”. ⁵³ Hannah Arendt, em conclusão da sua argumentação, diz que “a colonização da América do Norte e o governo republicano dos Estados Unidos constituem talvez as realizações mais importantes, e certamente as mais arrojadas, da humanidade europeia” e, em contraste, afirma que a Revolução Francesa “acabou em desastre”, ao passo que a Revolução Americana “foi um sucesso tão triunfal”. ⁵⁴ E por qual motivo, a Revolução Francesa acabou em desastre? Para a pensadora, a pobreza coloca o ser humano diante do “ditame absoluto da necessidade” e que foi sob “império da necessidade” que a multidão precipitou para ajudar a Revolução Francesa, conduzindo-a à “ruína, pois era uma multidão dos pobres”. ⁵⁵ Para a filósofa, o caminho da “liberdade rendendo-se a necessidade” levou a derrota da Revolução na França. Mais do que isso, o período mais condenado da revolução, a fase do “terror jacobino”, foi desencadeado pela “necessidade, a carência premente do povo”; ela não tem dúvidas: “não foi a conspiração de reis e tiranos, e sim a conspiração muito mais poderosa da necessidade e da pobreza que os distraiu por tempo suficiente para perder o ‘momento histórico’”. ⁵⁶ Abandonar a liberdade e visar a felicidade, a “igualdade de condições”, é responsabilidade direta de Karl Marx, a quem Arendt chama de “o maior teórico das revoluções de todos os tempos”. ⁵⁷ Marx, segundo a filósofa, errou ao pensar que “liberdade e pobreza eram incompatíveis” e que a revolta contra a miséria fosse pressuposto para a liberdade. O central dessa operação teórica de Marx para a autora, foi a ideia de “exploração”. Para ela, “o valor dessa hipótese para as ciências históricas é bastante reduzido” e “certamente não teria sobrevivido [a ideia de exploração] a mais de um século de pesquisas históricas, se não fosse por seu conteúdo revolucionário, em vez de científico”. ⁵⁸ Essa ideia de Marx, negando o caminho da liberdade às revoluções, defendendo, segundo Arendt, que o caminho da revolução era “libertar o processo vital da sociedade dos grilhões da escassez” e buscar a “abundância” foi a “doutrina politicamente mais perniciosa dos tempos modernos”. ⁵⁹ A influência de Marx foi tão deletéria que, segundo Arendt, Lênin, o líder da Revolução Russa, “não tinha nenhum conceito teórico de liberdade”. ⁶⁰ O leitor(a) pode estar sentindo falta do debate sobre a escravidão nessa comparação entre revolução nos Estados Unidos e na França. A filósofa começa afirmando, em contradição com tudo que escreveu nas quase cem

páginas anteriores, que a “ausência da questão social no cenário americano era, no final das contas, totalmente ilusória, pois a miséria sórdida e degradante estava ubiquamente presente sob a forma da escravidão” ( ibdem , p. 106). ⁶¹ Aqui, temos uma reviravolta incrível. Vale a pena voltar algumas páginas para perceber a fundo o sentido dessa afirmação citando esse trecho: Nada seria mais injusto do que tomar o sucesso da Revolução Americana como um dado indiscutível e submeter a julgamento a derrota dos homens da Revolução Francesa. O sucesso não decorre apenas da sabedoria dos fundadores da república, embora essa sabedoria, de fato, fosse de altíssimo gabarito. O aspecto a lembrar é que a Revolução Americana teve sucesso e mesmo assim não desembocou no novus ordo seaclorum , que a Constituição pôde ser estabelecida “de fato”, como “uma existência real [...], numa forma visível”, e mesmo assim não se tornou “para a liberdade o que a gramática é para a língua”. A razão para o êxito e o fracasso foi [que] o problema da pobreza estava ausente do cenário americano, mas estava presente em todas as outras partes. ⁶² A filósofa faz uma precisão afirmando que não era a pobreza que estava ausente do cenário estadunidense, mas a miséria e a indigência. E que os trabalhadores dos Estados Unidos eram pobres, mas não miseráveis. Mas voltemos ao debate sobre escravidão. Arendt faz toda uma elucubração moral sobre compaixão, cristianismo e escravidão. Em seguida diz que “mesmo à falta de dados estatísticos confiáveis podemos ter certeza de que o percentual de miséria e absoluta penúria era bem menor que nos países do Velho Mundo” – ⁶³ isto é, mesmo com a escravidão. Quem passa despercebido nos Estados Unidos, diz ela, não é o pobre “e sim o negro”; porém não era tão despercebido assim, afinal, garante Arendt, Jefferson e outros tinham “consciência do crime primordial” da escravidão sobre o qual se “fundava a sociedade americana”. ⁶⁴ Os pais fundadores, para nossa pensadora, estavam convencidos da incompatibilidade entre o “sistema escravista e a instauração da liberdade”, mas, mesmo assim, a escravidão foi mantida e ampliada. Por quê? A filósofa diz que “essa indiferença, que temos dificuldade em entender”, não era “exclusiva dos americanos” e, por isso, veja bem, a responsabilidade por ela deve ser atribuída à escravidão (uma tautologia: a indiferença para com a escravidão é produto da escravidão). Em seguida, garante que o europeu do século XVIII não agiria diferente dos pais fundadores e conclui de forma lapidar: Tanto para os europeus quanto para os americanos, a escravidão não fazia parte da questão social, de modo que a questão social, estivesse genuinamente ausente ou apenas oculta nas sombras, era inexistente para todas as finalidades práticas, e com ela fazia-se inexistente também a paixão mais forte e talvez devastadora que motivava os revolucionários: a paixão da compaixão. ⁶⁵ Em resumo, a ideia de uma ausência de questão social na América do Norte não era bem verdade por causa da escravidão, mas a escravidão não fazia parte da questão social e, mesmo assim, tínhamos mais miseráveis na

Europa que escravos nos Estados Unidos; por fim, mesmo os pais fundadores não tendo acabado com a escravidão, isso não condiciona um juízo condenatório, afinal, nisso eles eram iguais aos europeus e eram melhores em todo resto, como fica claro pelo conjunto da argumentação. Antes de levantar com nitidez nossa tese sobre do papel de Hannah Arendt na construção da mitologia da liberdade e da democracia estadunidense, cabe um apontamento sobre a lógica argumentativa da autora exposta acima. O historiador Eric Hobsbawn, na resenha de Sobre a revolução , começa afirmando que sua contribuição para pensar a Revolução Francesa é nula. Eric classifica a exposição da autora como “metafísica e normativa” e que se combina com um “antiquado idealismo filosófico às vezes plenamente explícito” (HOBSBAWN, 2015, p. 260). O historiador inglês conclui com dura ironia: “haverá leitores, sem dúvida, que acharão a obra de Hannah Arendt interessante e proveitosa, mas é improvável que entre eles se incluam os estudiosos das revoluções” ⁶⁶ Eric, contudo, não vai ao centro da questão e se limita, nos mais das vezes, a cobrar um rigor de pesquisa histórica ausente no livro de Arendt. É necessário, então, irmos além e adentrarmos o centro dos argumentos da autora. Note, a autora começa afirmando que violência é o denominador comum da guerra e da revolução e que esses se constituem como fenômenos por essência não políticos. E por qual motivo, junto da revolução e da guerra não foi colocado o colonialismo, a escravidão, o racismo, o apartheid , o trabalho forçado como fenômenos que têm a violência como sua característica essencial? Não se entende por qual motivo a escravidão, por exemplo, não é incluída. Aliás, o ano de publicação do livro, 1963, é digno de destaque. O que acontecia no mundo? Era um período de agitações revolucionárias intensas na África, na Ásia, na América Central e do Sul e no gueto negro dos Estados Unidos. Nos quatro cantos do mundo, o colonialismo era acusado de promover a desumanização, o extermínio e as formas de dominação total contra os povos. Arendt, contudo, volta-se contra a... revolução! Sua própria abordagem da guerra é de um abstracionismo incrível. Na entrada dos anos 1960, a Argélia, colonizada e explorada pela França, lutava por sua emancipação a partir de uma guerra nacional. Posso afirmar que o povo argelino que pegou em armas está no mesmo plano moral, filosófico e ético que o colonizador francês? Que ambos negam a política como palavra? A filósofa anula a categoria de guerra defensiva ou de libertação em um período da história em que, entre outras coisas, o Vietnã lutava bravamente uma guerra de libertação nacional contra o imperialismo estadunidense. Não vamos debater afirmações rebuscadas e carentes de qualquer demonstração, como que a teoria política tem pouco a dizer sobre a guerra e a revolução. Essa afirmação chega a ser risível quando lembramos de nomes como Nicolau Maquiavel ou Carl von Clausewitz. O ponto mais importante é que, ao reduzir o fenômeno da violência como denominador comum da guerra e da revolução, o pressuposto não declarado é que na política cotidiana, fora de situações de exceção, a violência não é elemento constitutivo. Guerra e revolução, por excelência, são fenômenos de exceção. Podem expressar doses condensadas e concentradas de violência? Sem

dúvidas que sim, embora nem sempre, mas o que justifica dizer que em uma situação de cotidianidade, normalidade, a violência não está presente como elemento fundamental da política? A pergunta não é respondida. Arendt também não oferece qualquer comprovação de sua afirmação de que a ideia de igualdade surgiu só com a colonização América do Norte. Em vários momentos do livro, ela realiza afirmações chocantes como esta que exigiriam contundente comprovação a partir de pesquisa e argumentos históricos – mas nada é provado. A afirmação, contudo, tem a função de reforçar um mito ideológico: a clássica ideia da “América” ⁶⁷ como o país da igualdade de oportunidade, o país onde todos, com trabalho duro e dedicação, podem subir na vida, denotando uma certa igualdade básica de condições. Aliado a isso, existe um grande ausente nessa ideia de igualdade do “Novo Mundo”: os povos originários jogados na extrema miséria, exterminados na casa dos milhões e com sua cultura e modos de vida destruídos. Arendt não examina como, para as “doutas teorias” dos pais fundadores, o indígena não era ser humano e deveria ser exterminado. Os ¹⁸ milhões de seres humanos varridos da face da terra são apagados pela filósofa. Será isso uma espécie de “banalidade do mal teórica”? Também não existe qualquer prova empírica, ou debate conceitual sobre pobreza, miséria e sua realidade nos Estados Unidos. A pensadora não sente necessidade de citar qualquer dado e toma como argumento coisas como “todos os viajantes ficaram impressionados com a ausência de miséria na América”. Bem, vários viajantes, na mesma América, também nos garantiam que os negros eram uma raça inferior e que a escravidão era um bem para eles. Mesmo não fornecendo nenhum fundamento para o centro de sua tese (isto é, a ausência da questão social na Revolução Americana) a autora faz, sem hesitar, a comparação desta com o processo francês. Para a autora, a revolução que tem a questão social como centro está destinada ao fracasso. Por qual motivo? Os miseráveis são dominados pelo reino da necessidade e não visam a liberdade. Quem pode pensar em liberdade? Os emancipados do reino da necessidade – em linguagem vulgar, os “ricos”. Arendt retoma um argumento de longa tradição no liberalismo: a incapacidade dos trabalhadores do exercício pleno da razão dada sua condição de pobreza e dependência – tema largamente debatido por Domenico Losurdo. ⁶⁸ Esse argumento foi usado por décadas para proibir ou limitar o direito de voto dos operários.

Os “pobres” não são apenas culpados pelo fracasso das revoluções, mas, como vimos, o terror da revolução decorre da predominância da questão social e não da liberdade. De novo: a garantia do não terror é entregar a política às mãos dos libertados da necessidade, a burguesia. Hannah Arendt também pressupõe que, na Revolução Americana, não aconteceu o terror político. Como vimos no começo desta Introdução, mais de 60 mil lealistas ou acusados de o serem são obrigados a fugir do novo país para não serem presos ou mortos. A aceleração do extermínio dos indígenas tem relação direta com os desdobramentos imediatos da Revolução Americana. O que não aconteceu no processo estadunidense foi o terror intenso no interior do próprio grupo revolucionário (como na França com jacobinos matando jacobinos). Mas deduzir, disso, a ausência de terror político é puro falseamento histórico. Ainda podemos acrescentar que tentar debater historicamente a tese de Arendt da questão social como o fundamento da derrota das revoluções e do terror não faz sentido. O seu argumento não é histórico, mas metafísico. É como se ela dissesse: Revolução + Liberdade = sucesso; Revolução + Questão Social = terror e fracasso. A história é apenas um derivado automático da tese filosófica. E a tese de Arendt tem tanto valor científico quanto os mitos do bom ou mal selvagem de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. Essa ausência de rigor teórico e refúgio na metafísica se expressa em toda obra. A autora diz que a categoria de exploração em Marx não sobrevive a pesquisa histórica e não tem valor científico; ou que Lênin não tinha nenhum conceito de liberdade; tudo isso sem qualquer preocupação em provar, indicar um escrito, carta ou livro para confirmar sua afirmação. Nesse padrão de trabalho, consegue com tranquilidade construir páginas e mais páginas de argumentação com base na equação Revolução Americana = sucesso = ausência da questão social para dizer que essa ausência, na realidade, era ilusória, por causa da escravidão. Contudo, rapidamente, diz que existiam mais pobres na Europa que escravos ou miseráveis nos Estados Unidos. Temos um salto lógico: não é que a questão social estava ausente nos Estados Unidos, é que era ela menos presente no país. A partir de que ponto quantitativo podemos auferir a validade da equação Revolução = Libertação = sem questão social? É pelo número de miseráveis no total da população? Pelo nível ou forma de pobreza e miséria? É inútil procurar uma resposta. Arendt, ainda enrolada com a escravidão, mente ao ocultar que os pais fundadores não consideravam a escravidão como antagônica à liberdade. Antes o contrário, a maioria dos partidários do liberalismo, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, não via qualquer contradição entre essa instituição total e a liberdade. Na página em que busca eximir os pais fundadores da permanência da escravidão, em especial Thomas Jefferson, ela não cita qualquer prova, fonte, argumento. E a única nota de rodapé da página não remete ao tema. No período de lançamento do livro, uma série de historiadores, sociológicos e militantes vinham denunciando o caráter antinegro e pró-escravidão da República estadunidense e dos pais fundadores. Sem citar ninguém, como o grande historiador e militante antirracista W. E. B. Du Bois, autor do clássico

Black Reconstruction in America , Arendt contesta o movimento negro e seus intelectuais sem provas e argumentos! Enrolada no seu labirinto de distorções históricas, idealismos e esquecimentos (que soam mais como mentiras), a conclusão de Arendt foi espetacular: os pais fundadores e os revolucionários americanos, no geral, agiram tal qual os europeus na questão da escravidão. Isso é simplesmente falso. A insistência dos críticos liberais da Revolução Francesa em atribuir à “revolução americana” a iniciativa histórica da Declaração dos Direitos do Homem confirma a que ponto o liberalismo de hoje rebaixou-se a uma vulgar apologia do Império estadunidense. Afetam esquecer uma não pequena diferença entre a concepção de direitos humanos dos chamados “ pais fundadores” dos Estados Unidos e a dos revolucionários jacobinos: aqueles mantiveram os negros na escravidão; estes aboliram-na imediatamente . Ela foi entretanto restabelecida nas colônias francesas após a queda de Robespierre. ⁶⁹ O jacobinismo não só aboliu a escravidão, como expressava tendências, ainda que contraditórias, de crítica ao colonialismo e professava algo muitos mais próximo de um verdadeiro universalismo. Não tem qualquer papel no esquema teórico de Arendt a restauração da escravidão promovida pelos Estados Unidos nos territórios tomados do México, ou a tentativa de esmagar a República haitiana. Tudo que envolve a questão negra nos Estados Unidos: escravidão, regime de segregação racial, política externa pró-escravidão e colonialista e a negação da liberdade aos brancos que não podem contestar, sob o risco de uma morte brutal, a opressão dos negros; nada disso tem qualquer significado teórico no esquema filosófico de Hannah Arendt . ⁷⁰ Estamos na presença não de uma análise histórica, sociológica ou política comparada de duas revoluções ou padrões de ação política revolucionária, mas de uma apologia dos Estados Unidos em contraste com uma condenação total da tradição revolucionária que vai da Revolução Francesa passa pela haitiana e chega na Revolução de Outubro. Essa apologia, recapitulando, tem quatro fundamentos centrais que constituem o núcleo do mito da liberdade e da democracia estadunidenses: ocultamento do extermínio dos povos originários, um massacre de cerca de 18 milhões de vidas; Mito da ausência de miséria ou pobreza extrema combinado com a ideia de um país de incrível mobilidade social para todos a depender de seu mérito; Minimização ou ocultamento da questão negra: desde a escravidão passando pelo regime de segregação racial e todas as consequências do racismo estrutural na sociedade e especialmente no sistema político; Desconsideração sobre a política externa no balanço do sistema político ou qualquer aspecto relevante da sociedade; Esses quatro elementos centrais, expressos em maior nível de abstração nessa obra de Hannah Arendt, são presentes em toda apologia, seja de

“esquerda” ou de direita, do capitalismo estadunidense, e cumprem um papel central na ideologia dominante do imperialismo – seja na época dos Panteras Negras seja na atualidade. É conhecida a comparação elogiosa dos Estados Unidos, em contraste com a condenação do “totalitarismo” soviético, mas vamos ver como fica essa comparação inserido apenas um dos elementos recalcados na análise de Arendt – e na ideologia dominante. ⁷¹ Como sabemos, para Hannah Arendt, o totalitarismo diz respeito a União Soviética e Alemanha nazista. Todo santo dia em jornais, sites de noticiais, vídeos, artigos de opinião e afins, alguém está comparando os “extremos”, a “extrema direita” e a “extrema esquerda”, como espectros aparentemente antagônicos que se aproximam; adoram não só comparar o socialismo como o nazifascismo, mas até se aventurar em “teorias” como afirmar que o fascismo é de esquerda. Essa versão mais vulgar do debate, popularmente conhecida como “teoria das ferraduras”, que de teoria não tem nada, deriva de versões mais refinadas, como a do livro As origens do totalitarismo . Mas vamos pensar juntos. Como fica a comparação da União Soviética com o nazifascismo se introduzirmos no debate a questão racial? Em 1936, no auge do stalinismo, é aprovada a nova constituição soviética. No Capítulo XI, sobre o sistema eleitoral, é dito no artigo 135 que “as eleições para os deputados serão universais: todos os cidadãos da União Soviética que tenham atingido a idade de dezoito anos, sem restrição quanto à raça , nacionalidade, religião ou qualificações de educação, residência, origem social, propriedade ou passada atividade, têm o direito de participar das eleições e de serem eleitos” (grifos nossos). Já no artigo 123, é possível ler: Direitos iguais para todos os cidadãos da União Soviética, independentemente de sua nacionalidade ou raça, em todas as esferas do Estado, seja economicamente, na vida cultural, social ou política , constituem lei irrevogável. Qualquer limitação direta ou indireta desses direitos ou inversamente, qualquer estabelecimento de privilégios, direta ou indiretamente por causa de sua raça ou nacionalidade, assim como qualquer propaganda de exclusividade nacional ou racial, de ódio ou desprezo serão punidos pela lei (grifos nossos) . ⁷² Se fossemos buscar, na perspectiva do debate da questão racial, onde estava o sistema totalitário de desumanização e exploração máxima, a resposta não seria na União Soviética. Na realidade, a comparação, como já mostramos neste Prefácio, seria entre Alemanha nazista e Estados Unidos: ambos com regimes de segregação racial e objetivos eugenista afirmados abertamente no seu ordenamento jurídico-político. A União Soviética, em contraste, avançava a frente de seu tempo e não só negava qualquer ideia de superioridade racial, como criminalizou o racismo. O Ocidente liberal só daria um passo no mesmo sentido com a Declaração Universal dos Direitos Humanos do final de ¹⁹⁴⁸, doze anos depois da União Soviética. Falar do ordenamento jurídico, mesmo significativo, é pouco. Não somos positivistas que acham que a verdade está na letra da lei. Vamos pensar o tema de forma mais concreta. Quando Josef Stálin morre, W. E. B. Du Bois, um dos maiores pensadores e militantes da história da luta antirracista, escreve um apaixonado elogio ao líder soviético. Diz Du Bois:

Joseph Stálin foi um grande homem; poucos outros homens do século XX se aproximam de sua estatura. Ele foi simples, calmo e corajoso. Ele raramente perdeu sua compostura; ponderava seus problemas devagar, tomava suas decisões com clareza e firmeza; nunca sucumbiu a ostentação nem timidamente se absteve de manter seu devido lugar com dignidade. Ele foi o filho de um servo mas permaneceu calmamente diante dos grandes sem hesitação ou nervos. Mas ele também – e essa era a maior prova de sua grandeza – conhecia o homem comum, sentia seus problemas, seguia seu destino. ⁷³ Du Bois ainda afirma que a União Soviética, sob a direção de Stálin, “colocou a Rússia na estrada para vencer o preconceito racial e construir uma nação, unindo seus 140 grupos étnicos sem destruir suas individualidades”. Para o historiador e militante, a União Soviética era contraposta positivamente com os Estados Unidos e com outros regimes racistas. ⁷⁴ Opinião isolada? O grande poeta e dramaturgo Claude McKay, em ¹⁹²³, disse “para os negros americanos, o fato incontestável e notável da Revolução Russa é que um mero punhado de judeus, muito menos em relação ao número de negros na população americana, alcançaram, através da Revolução, todos os direitos políticos e sociais que lhes foram negados sob o regime do czar”. ⁷⁵ Langston Hughes, outra personalidade de primeiro plano da cultura e da luta antirracista dos Estados Unidos, convidado a conhecer a União Soviética e gravar um filme no país, “o maior filme sobre negros já feito no mundo”, descreve assim sua experiência no país (em ¹⁹³²!): De todas as cidades no mundo em que estive, os moscovitas pareciam-me ser os mais educados com estrangeiros. Mas talvez isso seja porque nós éramos negros e, naquele tempo, com o caso Scottsboro em julgamento mundial nos jornais de todos os países (um caso em que treze garotos negros foram falsamente acusados de estuprar duas mulheres brancas), especialmente na Rússia, o pessoal saia de seu caminho para nos mostrar cortesia. Num ônibus lotado, nove em cada dez vezes, alguém me oferecera um lugar, “ negrochanski tovarish – camarada negro, sente aqui”. Nas ruas onde havia alguma fila para os jornais, cigarros ou bebidas, pessoas na fila falariam, “deixem o camarada negro ir na frente”. ⁷⁶ Paul Robeson, renomado e respeitado ator, atleta e lutador antirracista dos Estados Unidos, investigado pela perseguição anticomunista dos Estados Unidos, diz que “a humanidade nunca viu a igualdade da Constituição da União Soviética… Em primeiro lugar, devido ao significado que tem para o meu povo em geral. Em todo lugar, fora do mundo soviético, os homens negros são pessoas oprimidas e desumanamente exploradas” – e em seguida, como exemplo, cita os artigos da constituição soviética que consagram o antirracismo. ⁷⁷ Como se pode ver, para várias personalidades da luta antirracista nos Estados Unidos, não era a União Soviética a negação máxima da liberdade e da democracia, mas sim o seu país. Stálin, longe de representar um líder totalitário, simbolizava a esperança para aqueles negros e negras desejosos de escapar aos massacres, à desumanização, aos estupros e aos assassinatos. Correndo o risco de cansar o leitor, vale a pena fazer mais duas citações.

Uma negra, delegada no Congresso Internacional das mulheres contra a guerra e o fascismo, que se realiza em Paris em 1934, fica extraordinariamente impressionada com as relações de igualdade e fraternidade, apesar das diferenças de línguas e de raça, que se instauram entre os participantes dessa iniciativa promovida pelos comunistas: “Era o paraíso na terra”. Aqueles que chegam a Moscou – observa um historiador estadunidense contemporâneo – “experimentaram um sentido de liberdade inaudito no sul”. Um negro se apaixona por uma branca soviética e se casam, mesmo se depois, ao voltar à Pátria, não pode levá-la consigo, sabendo o destino que o sul aguarda aos que se mancham com a culpa da miscigenação e do abastardamento racial. ⁷⁸ E: A União Soviética de Stálin influencia poderosamente a luta dos afroamericanos (e dos povos coloniais) contra o despotismo racial. No Sul dos Estados Unidos se assiste a um fenômeno novo e preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente “imprudência” dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam, de fato, a receber o que o poder teimosamente lhes negava, a saber, uma cultura que vai muito além da instrução elementar tradicionalmente transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho semiescravo a serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou, na União Soviética de Stálin, os negros se empenham em estudar economia, política, história mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também as razões da dura sorte reservada a eles num país que se comporta como campeão da liberdade. Aqueles que frequentam tais escolas passam por uma mudança profunda: a “imprudência” censurada a eles pelo regime de white supremacy é na realidade a autoestima deles, até aquele momento impedida e espezinhada . ⁷⁹ Ainda cabe pontuar que, em 1941, a Confederação Indígena Americana, reunindo grupos de povos originários dos Estados Unidos, Canadá e América Central, presenteou Josef Stálin com o prêmio de “chefe honorário” dos povos indígenas. A honraria, um cocar feito de penas, decorado com fitas e outros adereços, era dado a líderes militares e espirituais que os grupos indígenas consideravam aliados e protetores. A escolha de Stálin foi feita a partir de votação entre os líderes de tribo e, como se pode ver, ao pensar em um aliado da luta indígena, o nome escolhido não foi Churchill ou Franklin D. Roosevelt. ⁸⁰ Antes que alguém se assuste, não se trata de negar ou esconder a dimensão repressiva e antiemancipação presente também na experiência soviética nesse momento histórico conhecido como stalinismo. A repressão e o encarceramento em massa, assim como a militarização relativa das artes e ciências humanas, por exemplo, são fenômenos por demasiado tratados (na maioria das vezes, inclusive, pessimamente abordados). Trata-se de perceber que a União Soviética não se resumia a isso e que, para legitimar operações como igualar o país nascido da Revolução de Outubro com a Alemanha nazista e como subproduto louvar a República americana ou a Europa Ocidental, é necessário forjar uma abordagem unilateral, a-histórica

e que ignore completamente a questão racial em toda sua dimensão. As mais de seiscentas páginas de As origens do totalitarismo e a ideologia dominante de apologia dos Estados Unidos são insustentáveis se colocarmos em perspectiva de reflexão a questão negra ou o colonialismo. Para concluir, é possível chamar os Estados Unidos de uma democracia burguesa? Não! Lênin afirmou que “em geral, democracia política é apenas uma das formas possíveis de superestrutura acima do capitalismo”, porém, prossegue o líder bolchevique, “o capitalismo se desenvolve no contexto de qualquer forma política e subordina a todas. É, portanto, erro teórico elementar falar da ‘impraticabilidade’ de uma das formas e de uma exigência da democracia” (LÊNIN apud KRAUSZ, ²⁰¹⁷, p. ²³⁷). A autoproclamada “terra da liberdade” é um Estado burguês imperialista que combina um regime constitucional eleitoral (com eleições indiretas para presidente, vale destacar) com uma etnocracia, um Estado racial. Tem as estruturas de uma democracia burguesa, mas sem nunca ter sido plenamente uma – e nunca o será, uma vez que o Estado racial só será destruído pela classe trabalhadora, com a revolução socialista. A vanguarda marxista do povo negro nos Estados Unidos Aos olhos dos povos de todo o mundo, a história da luta de classes e das vanguardas radicais dos Estados Unidos está soterrada por muitas camadas de fantasia hollywoodiana. O que vemos, aqui da outra ponta do porrete, ⁸¹ é apenas a violência chauvinista dos exércitos estadunidenses no estrangeiro – e nos surpreendemos quando vemos que essa mesma violência também existe dentro do país, mirando sempre os povos pobres, no geral, e os não brancos em especial. E que ela produz, incansavelmente, uma resposta radical por parte das massas. Boa parte do espanto que o Partido dos Panteras Negras – uma organização armada de militantes negros com ideias anticapitalistas – provoca internacionalmente tem raízes no desconhecimento da história das lutas operárias e lutas do povo negro nos Estados Unidos. Não poderemos, em umas poucas páginas, esmiuçar essa vasta história – em um país de proporções continentais e acentuada diversidade regional –, mas tentaremos oferecer um panorama sintético, apoiando-nos de relance sobre as trajetórias de algumas figuras e organizações. A massa explorada e oprimida do povo negro estadunidense esteve sob o olhar do movimento comunista já desde seu início. Ainda em 1847, referindo-se à “escravidão dos negros no Suriname, no Brasil, nas regiões meridionais da América do Norte”, Karl Marx já demonstrava compreender a centralidade da exploração dos negros escravizados na acumulação capitalista, não só em suas épocas originárias, mas ainda nos tempos do revolucionário alemão: A escravidão direta é o eixo da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito, etc. Sem a escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão valorizou as colônias, as colônias criaram o comércio universal, o comércio que é a condição da grande indústria. Por isso, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância. ⁸²

A Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876, a chamada I Internacional), no geral, manteve uma posição crítica ao colonialismo e, de maneira mais indireta, ao racismo. Durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, a Internacional tomou uma firme posição em defesa da União, contra o escravagismo do Sul confederado. Em sua carta ao presidente Lincoln, Marx frisa: Enquanto os operários, as verdadeiras potências políticas do Norte, permitiram que a escravatura corrompesse a sua própria república, enquanto perante o Negro – dominado e vendido sem o seu consentimento – se gabaram da elevada prerrogativa do trabalhador de pele branca de se vender a si próprio e de escolher o seu próprio amo, foram incapazes de atingir a verdadeira liberdade do trabalho ou de apoiar os seus irmãos europeus na sua luta pela emancipação; mas esta barreira ao progresso foi varrida pelo mar vermelho da guerra civil. Os operários da Europa sentemse seguros de que, assim como a Guerra da Independência Americana iniciou uma nova era de ascendência para a classe média, também a Guerra Americana Contra a Escravatura o fará para as classes operárias. Consideram uma garantia da época que está para vir que tenha caído em sorte a Abraham Lincoln, filho honesto da classe operária, guiar o seu país na luta incomparável pela salvação de uma raça agrilhoada e pela reconstrução de um mundo social. ⁸³ Mas, apesar do atento olhar teórico de Marx, fato é que os primeiros marxistas estadunidenses (majoritariamente emigrados alemães, entre os quais destacaram-se Joseph Weydemeyer, Hermann Schlüter e Friedrich Sorge) demorariam décadas para superar as barreiras que os separavam das massas trabalhadoras daquele país, em especial suas camadas negras. O movimento operário espalhava-se pelos Estados Unidos, é verdade, mas rasgado por imensas contradições raciais, e sob o predomínio crescente das alas mais chauvinistas da aristocracia operária. ⁸⁴ Esse movimento operário em pujante expansão continha, em seu interior, uma ala esquerda – mas que, longe de ser hegemônica, nesse momento como sempre depois, era fuzilada e perseguida. Em maio de 1886, a polícia abriu fogo contra os operários no Largo de Haymarket e processou dezenas de anarquistas, entre as centenas de presos do dia (episódio que daria origem às celebrações do 1o de Maio pela Internacional Socialista). Enquanto isso, no mesmo ano em que o proletariado revolucionário era derrotado em Chicago, a Federação Americana do Trabalho (AFL) ⁸⁵ era fundada por Samuel Gompers, trabalhador da indústria de cigarro que se tornaria presidente desta organização desde então até ¹⁹²⁴, de modo quase ininterrupto – uma longevidade política muito comum no sindicalismo patronal. Gompers ⁸⁶ e a direção da AFL, além de suas visões abertamente anticomunistas, também tiveram um papel de destaque na disseminação do racismo no movimento operário estadunidense. A partir de 1890, a AFL começou a dedicar-se abertamente à organização exclusiva dos trabalhadores mais qualificados, excluindo progressivamente trabalhadores negros e mulheres no geral de suas fileiras. Além disso, a Federação aprovou a manutenção da política de segregação em sindicatos filiados a ela, especialmente nos ramos ferroviário e da construção civil. ⁸⁷

Em ¹⁹⁰¹, diante da crescente imigração de trabalhadores chineses para os Estados Unidos, a AFL emitiu o panfleto intitulado Algumas razões para a exclusão dos chineses. Carne vs. Arroz. Masculinidade americana contra coolielismo ⁸⁸ asiático . ⁸⁹ Não bastasse a pressão política pela exclusão legal dos trabalhadores chineses do mercado de trabalho, a AFL organizou boicotes às indústrias que os contratassem. Fica evidente, portanto, a associação ideológica que esse sindicalismo reformista predominante estabelecia com o chauvinismo branco desde suas origens – o que ajudaria a explicar, também, a posterior associação do sindicalismo patronal à máfia italiana, especialmente nas categorias ligadas ao setor de transporte, nas quais os capangas desta ajudavam a quebrar piquetes de greves radicais e a calar sindicalistas dissidentes. Uma primeira explosão de repúdio a esses métodos sindicais se cristalizaria já em junho de 1905, com a fundação da IWW (Trabalhadores Industriais do Mundo) ⁹⁰ naquela mesma Chicago operária e revoltosa. Buscando unificar o proletariado anticapitalista e criticando a exclusão sindical dos trabalhadores menos qualificados, a convenção inaugural da IWW foi composta por figuras como Eugene V. Debs (ícone dos apoiadores contemporâneos do social-reformista Bernie Sanders), James Connolly (o revolucionário irlandês), Daniel de Leon (marxista estadunidense) ⁹¹ e Lucy Parsons (operária negra anarcocomunista e cônjuge de Albert Parsons, um dos mártires de Haymarket). Em paralelo a essas lutas no interior do movimento operário, do ponto de vista da produção intelectual, atribui-se ao jornalista negro Timothy Thomas Fortune (1856-1928) uma das primeiras expressões da aproximação de um intelectual negro com o marxismo. Em seu livro de 1884, ⁹² embora não cite Marx, Fortune critica as relações de produção capitalistas com um vocabulário que seus intérpretes dizem estar bastante influenciado pelo discurso do movimento operário socialista de Nova York. ⁹³ Mas apenas anos mais tarde, com William Edward Burghardt “W.E.B.” Du Bois (1868-1963), o marxismo seria expressamente manejado pela vanguarda intelectual negra estadunidense a fim de responder a seus dilemas. Du Bois foi um membro do pioneiro Movimento Niágara, precursor da famosa Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), ⁹⁴ cujo Conselho Du Bois presidiu desde o início por muitos anos. Fundada em ¹² de fevereiro de ¹⁹⁰⁹, a NAACP combatia em duas frentes: na frente do trabalho educativo do povo negro e na frente judicial, abrindo diversos processos contra as chamadas Leis de Jim Crow, que privavam os negros de direitos civis. A NAACP seria considerada uma das maiores organizações de defesa dos direitos civis em todo o mundo, atingindo meio milhão de sócios em ¹⁹⁵⁴. No ano seguinte, Rosa Parks, uma costureira que participava como secretária na NAACP, seria presa por recusar-se a obedecer à ordem de segregação racial em um ônibus na cidade de Montgomery, Alabama, e cuja prisão motivaria o movimento que seria denominado boicote aos ônibus de Montgomery – as primeiras fagulhas de uma ampla onda de mobilizações do povo negro estadunidense que culminaria, por fim, na obtenção de plenos direitos civis formais .

Ao longo da trajetória da NAACP, Du Bois figurou como sua ala esquerda. Em 1911, já se aproximava do Partido Socialista da América. Em 1926, após visitar a União Soviética, retornava aos Estados Unidos afirmando que o socialismo parecia oferecer um rumo para a igualdade racial. ⁹⁵ Du Bois escreveu uma série de artigos em defesa do marxismo como ciência. Além disso, crítico das igrejas negras – que, segundo Du Bois, embotavam a sensibilidade do povo negro, tornando-o passivo ao racismo –, simpatizavam também com o ateísmo do materialismo marxista. ⁹⁶ Eu não era e não sou um comunista. [...] Por outro lado, eu acreditava e ainda acredito que Karl Marx foi um dos maiores homens dos tempos modernos e que agarrou com firmeza nossas dificuldades quando disse que as bases econômicas, o modo pelo qual os homens ganham sua vida, é o fator determinante no desenvolvimento da civilização, na literatura, na religião e nos padrões básicos da cultura. ⁹⁷ Du Bois publicou mais de vinte livros ao longo de sua vida, entre os quais está o mais famoso, de 1935, Black Reconstruction in America , ⁹⁸ ainda inédito em português. Nessa brilhante obra, Du Bois combate mitos racistas da época que marcavam o balanço historiográfico da Guerra Civil, tentando oferecer uma análise marxista abrangente. Uma das contribuições pioneiras do autor consiste em destacar a importância da “greve geral dos escravos” do Sul do país, facilitando a vitória militar do Norte na Guerra Civil. Além disso, Du Bois busca pela primeira vez oferecer uma explicação teórica materialista para o chauvinismo branco do qual padece o sindicalismo estadunidense. Segundo Du Bois, o chauvinismo branco consiste em um “salário psicológico” oferecido ao proletariado branco como forma de “mitigar” sua exploração por meio de uma divisão de ordens de status no interior da própria classe trabalhadora assalariada. As reflexões de Du Bois, aprofundando as considerações de Marx na já supracitada carta, serviriam, mais tarde, como ponto de partida e diálogo para pensadores como o revolucionário martinicano Franz Fanon. ⁹⁹ A partir de 1948, com o início das perseguições anticomunistas que resultariam no macarthismo, Du Bois é afastado da presidência da NAACP, uma vez que se recusava a esconder suas simpatias pelos países socialistas e confraternizava abertamente com personalidades autodeclaradas comunistas. Investigado pelo FBI ao longo dos anos 1950 por supostas “atividades antiamericanas”, em decorrência de seu envolvimento nos protestos contra a Guerra da Coreia e contra o militarismo imperialista no geral, Du Bois guina cada vez mais à esquerda, passando a defender abertamente o comunismo. Visita Mao Tsé-Tung na China, em 1959, e, em 1961, aos 93 anos, filia-se nos Estados Unidos ao Partido Comunista. Viveu seus últimos dias de vida em Gana, a convite do governo revolucionário de Kwame Nkrumah. ¹⁰⁰ Mas, por mais à esquerda que fosse a posição ocupada por Du Bois na NAACP, sua trajetória nos ajuda a compreender os limites centristas desta instituição, que muito cedo capitularia ao anticomunismo. Não é de espantar, portanto, que a militância radical do povo negro sempre tenha passado por fora da NAACP. Assim sendo, nos anos seguintes à fundação desta, uma grande influência dos emigrados caribenhos radicalizados (à

direita e à esquerda) seria perceptível no nascente movimento negro estadunidense. Em 15 de julho de 1914, na Jamaica, Marcus Garvey fundaria a Associação Universal para o Progresso Negro (Unia), ¹⁰¹ sob o mote: “Um deus! Um objetivo! Um destino!”. Sua influência reacionária não tardaria a se fazer sentir nos Estados Unidos. ¹⁰² Mas, à esquerda, podemos nos lembrar de figuras como o caribenho Cyril Valentine Briggs (¹⁸⁸⁸-¹⁹⁶⁶), emigrado para os Estados Unidos em ¹⁹⁰⁵ que fundaria, em ¹⁹¹⁷, a Irmandade Sangue Africano (ABB), uma associação de militantes negros, especialmente jamaicanos e outros emigrados, de orientação socialista. ¹⁰³ A ABB, inicialmente ligada ao Partido Socialista Americano, muito cedo romperia com este em direção ao Partido Comunista dos Estados Unidos (no qual Briggs ingressa em 1921 e, em 1929, já ocupa posição no Comitê Central). Aqui também vale aquilo que já dissemos em outra oportunidade: conforme avançava a cisão internacional do movimento socialista, cada vez mais a ala comunista, representada pela III Internacional, representava uma alternativa antirracista e anticolonial para os socialistas insatisfeitos com o chauvinismo e o “economicismo imperialista” da II Internacional. ¹⁰⁴ Por meio dos jornais da ABB, Cyril Briggs estabeleceria ardentes polêmicas com Marcus Garvey – em especial quando, em julho de 1921, Garvey reuniuse com Kleagle Clarke, dirigente da Klu Klux Klan. Em resposta, Garvey processou Briggs por mais de uma vez, contando com o apoio dos tribunais burgueses contra o revolucionário comunista. ¹⁰⁵ O trabalho político de Briggs à frente da ABB cumpriria um papel fundamental para engrossar as fileiras negras do movimento comunista. Harry Haywood (1898-1985) – cujo irmão, Otto Haywood, ingressara no Partido Comunista dos Estados Unidos já em 1921 – é um exemplo de comunista negro recrutado a partir do trabalho de massas da ABB e da Liga da Juventude Comunista. Haywood passaria a fazer parte do Comitê Central do Partido de 1927 até 1938, após anos de estudos marxistas em Moscou. A partir de 1929, dirigiu o trabalho de agitação, propaganda e organização dos comunistas frente às massas trabalhadoras negras, em especial no Sul do país, no chamado Cinturão Negro, trabalhando especialmente na fundação de sindicatos inter-raciais, organizando os proletários agrícolas negros e combatendo os linchamentos, frequentes em um Sul cada vez mais infestado pela Klu Klux Klan. Seu livro, Negro Liberation , ¹⁰⁶ publicado em ¹⁹⁴⁸, foi o primeiro grande estudo da questão racial nos Estados Unidos elaborado sob o ponto de vista da Internacional Comunista por um revolucionário negro. Como Haywood declararia mais tarde, em sua autobiografia Black Bolshevik , ¹⁰⁷ seu trabalho sobre este livro teria sido subsidiado pelo cantor Paul Robeson com uma ajuda de cem dólares mensais. Por sua vez, Paul Robeson (1898 – 1976) foi, provavelmente, o mais notório comunista afro-americano dos anos 1940 – não só graças a sua projeção como artista, mas também por seu depoimento perante o Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso dos Estados Unidos, durante as perseguições do macarthismo. O cantor barítono, que fez parte da chamada Renascença do Harlem nos anos 1920, radicalizou-se por influência do

movimento anti-imperialista. Convidado pelo cineasta Sergei Eisenstein para visitar a União Soviética em dezembro de 1934, Robeson logo gravaria uma versão em inglês do hino deste país, em sua homenagem. Voltando aos Estados Unidos em 1936, encenaria o papel de Toussaint L’Ouverture na peça de C. L. R. James sobre a Revolução Haitiana. Em 1938, viajaria para a Espanha em plena Guerra Civil a fim de demonstrar seu apoio às tropas republicanas, cantando em hospitais e no front para ajudar a elevar o moral dos soldados. Como Robeson afirmaria em seu corajoso depoimento ao Comitê de Atividades Antiamericanas: Senhores, em primeiro lugar: onde quer que eu tenha estado no mundo, os primeiros a morrerem na luta contra o fascismo foram os comunistas. Coloquei muitas coroas de flores sobre túmulos comunistas. [...] Você quer calar todo negro que tenha coragem de se levantar pelos direitos de seu povo, pelos direitos dos trabalhadores – e eu estive em muitos piquetes com os metalúrgicos também. [...] Quando fui pela primeira vez à Rússia, em 1934... Na Rússia, eu me senti pela primeira vez como um ser humano completo. Nenhum preconceito de cor como no Mississipi. Nenhum preconceito de cor como em Washington. Foi a primeira vez que me senti um ser humano, em que não sentia a pressão da cor, como sinto nessa comissão hoje. ¹⁰⁸ É bastante visível, portanto, o impacto que as visitas à União Soviética causavam sobre a percepção da vanguarda intelectual negra estadunidense – sendo aquele um país sem segregação racial institucional e que, além disso, criminalizara o racismo já em 1936, como já observamos. Mas não só de viagens a Moscou se fez a influência das ideias marxistas sobre o povo negro estadunidense. Um exemplo da atuação destacada dos comunistas na luta em defesa do povo negro pode ser visto no caso dos Garotos Scottsboro, nove garotos negros entre 13 e 19 anos acusados no Alabama de estuprar duas mulheres brancas em um trem. Condenados à morte por um júri racista, em um julgamento relâmpago em 1931, os garotos contaram com a solidariedade irrestrita do Partido Comunista dos Estados Unidos, graças ao qual o caso chegou à Suprema Corte do país, inocentando quatro acusados e convertendo a condenação dos demais para uma pena de prisão. Em um só golpe, o Partido Comunista punha em evidência o racismo do sistema judicial burguês e combatia a bárbara pena de morte, ainda vigente em muitos estados dos Estados Unidos. Foi durante essa campanha, inclusive, que aderiu ao Partido Comunista a revolucionária Claudia “Jones” Vera Cumberbatch (1915-1964), jornalista nascida em Trindade e Tobago e emigrada para os Estados Unidos em 1924. Jones ingressaria na Liga da Juventude Comunista e, logo após, seria destacada para a equipe editorial do Daily Worker [ Diário operário ] , jornal do Partido. Eleita membro do Comitê Central em ¹⁹⁴⁸, Jones foi uma pioneira do feminismo negro marxista, com a publicação, em ¹⁹⁴⁹, de seu artigo Um fim à negligência em relação aos problemas da mulher negra! .

Presa por quatro vezes pelo crime de ser uma imigrante envolvida em atividades políticas, Jones esteve sob risco de deportação em diversas momentos, até que, finalmente, recebeu asilo político no Reino Unido. Esse breve rol de referências deve bastar para mostrar que o marxismo do Partido dos Panteras Negras não é, afinal, um raio em céu azul, mas o produto de uma longa trajetória de introdução e reformulação do marxismo no interior do movimento negro estadunidense, com grande contribuição, inclusive, do nascente movimento comunista do país. Vale lembrar, também, que em 8 de março de 1964, Malcom X rompia à esquerda com a Nação do Islã, a organização do reacionário Elijah Muhammad. ¹⁰⁹ Nessa sua cisão, Malcom se aproximava da retórica radical dos socialistas negros, denunciando a sociedade de classes e conclamando o povo negro à resistência armada aos linchamentos e à opressão que o vitimava. Todo esse desenvolvimento do pensamento revolucionário negro convergia, então, para o interior de uma ampla onda de mobilização do povo negro, deflagrada pelo evento Rosa Parks e que culminaria com a famosa Marcha a Washington (aquela na qual Martin Luther King proclamaria o famoso discurso sobre seu sonho de igualdade racial: I have a dream ), em 1963, e com a conquista dos direitos civis, em 1964. A despeito desta vitória, os anos seguintes foram anos de uma intensa ofensiva reacionária. Em 1965, Malcom X seria assassinado – e os responsáveis, em tema controverso, supostamente teriam sido membros da Nação do Islã. Em 8 de fevereiro de 1968, a morte de três estudantes em meio às manifestações em Orangeburg, na Carolina do Sul, produziriam uma onda de indignação. Em 4 de abril do mesmo ano, o assassinato de Martin Luther King também contribuiria para deflagrar uma onda de revoltas em mais de 115 cidades, notadamente em Louisville, Baltimore e Washington. Ao mesmo tempo que o movimento de massas conquistava a igualdade jurídica e política formal para o povo negro, lideranças destacadas eram assassinadas, e seguiam em alta os linchamentos contra negros, em especial no Sul, e a brutalidade policial nos centros urbanos. Não deveríamos nos espantar, então, que em 1966 tenha vindo à tona o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, pregando o armamento geral do povo negro e a mais obstinada luta direta contra a polícia reacionária – e que esse exemplo tenha se disseminado entre todos povos oprimidos dos Estados Unidos como um rastilho de pólvora. Os dilemas da revolução estadunidense Nas próximas páginas, buscamos oferecer ao público brasileiro um panorama das ideias defendidas pelos intelectuais orgânicos dos Panteras Negras (e das organizações a eles aliadas), que se valeram do marxismo como um guia de ação para a solução de suas questões teóricas e práticas. Contudo, apesar de toda sua riqueza, essa aplicação do marxismo chegou a alguns becos sem saída – o que ajuda a compreender as progressivas cisões do Partido e, finalmente, sua dissolução.

Seria preciso, antes de qualquer coisa, destacar a utilização da forma organizativa leninista pelo BPP (Black Panthers Party – Partido dos Panteras Negras). Primando pela unidade de ação e pela estratégia, o controle do Comitê Central do Partido sobre o seu jornal assegurava também a mais rigorosa unidade ideológica. Os Panteras Negras combateram duramente o liberalismo em suas fileiras, frisando de modo persistente a necessidade do centralismo democrático para a ação de uma organização revolucionária – ainda mais uma organização armada. Contudo, as concepções excessivamente centralistas que os Panteras mantinham a respeito da forma organizativa leninista (mais um centralismo militar do que um propriamente democrático) ajudam a compreender as desventuras da organização. Huey Newton em especial (que caminha para uma teorização própria, a do chamado intercomunalismo) comanda uma série de expurgos no Partido, notadamente contra suas alas mais afeitas ao marxismo de vertente maoista. Não é de espantar, portanto, que as últimas desventuras do Partido sejam tão coincidentes com as próprias desventuras pessoais de Newton, que concentrou cada vez mais atribuições e influência. ¹¹⁰ Contudo, a despeito da derrota do maoismo na luta interna do BPP, fato é que o Partido bebeu muito na fonte desta vertente leninista, não só em sua retórica (inclusive obtendo recursos para a compra de armas graças à venda do Livro vermelho de Mao ), mas em seus métodos de trabalho de massas. A partir do mote maoista segundo o qual a vanguarda revolucionária deve “servir ao povo de todo o coração”, o BPP concebeu uma série de programas que poderiam, à primeira vista, ser considerados puramente assistenciais: serviam cafés da manhã para as crianças das comunidades pobres, prestavam auxílio jurídico e médico à população, entre outras medidas. Mas, por trás do aparente assistencialismo destas medidas, os Panteras Negras buscavam demonstrar seu compromisso no combate às mazelas que afligiam o povo pobre, estabelecendo pontes para o diálogo político propriamente dito. Era preciso, eles acreditavam, primeiro demonstrar na prática toda a entrega dos revolucionários à causa do povo, para só depois passar à propaganda teórica. Também a polêmica dos Panteras com o nacionalismo cultural expressa uma aplicação criadora do marxismo. Não que o tema fosse completamente novo. Em sua época, Lênin combatera o nacionalismo cultural do Bund, organização dos social-democratas judeus na Rússia que exigia para si o monopólio da agitação política entre os proletários judeus. A partir dessa crítica, o leninismo desenvolveria uma longa polêmica contra aqueles que pregavam a “autonomia nacional-cultural” como a panaceia para a libertação dos povos oprimidos – em oposição à emancipação política plena, por meio da autodeterminação governamental de cada povo sobre si mesmo. É nesse segundo sentido que caminharam os Panteras Negras, erguendo-se sobre a tradição fundada por Harry Haywood, esse campeão comunista da autodeterminação do povo negro no Sul dos Estados Unidos. Assim, em dura luta contra o garveismo e o nacionalismo cultural representado pela Nação do Islã, os Panteras Negras podem ser considerados os grandes pioneiros da crítica ao que hoje chamamos de política identitária . ¹¹¹ Desse solo, no entanto, brotam as principais contradições do marxismo dos Panteras Negras. Ao mesmo tempo que denunciavam a impotência da performance identitária ¹¹² – que apregoava que a emancipação do povo

negro viria mediante a mera reapropriação de símbolos culturais e a completa cisão com os brancos (a esse respeito, é emblemática a Carta aberta a Stokely Carmichael, que rompeu com os Panteras justamente para aderir às alas mais sectárias e identitárias do movimento pan-africanista) –, os Panteras, eles próprios, advogavam uma concepção étnica e, portanto, relativamente “separatista” do poder popular: poder negro para o povo negro, poder marrom para o povo marrom, poder amarelo para o povo amarelo etc. Como isso poderia se coordenar, na prática, se não com a separação desses povos em diferentes territórios, soberanos uns frente aos outros, era algo que as teorizações dos Panteras Negras não podiam – e nem poderiam – resolver. É bastante sintomático, inclusive, que as palavras de ordem do “poder para o povo” ganhem progressivamente espaço entre os BPP, especialmente após a guinada identitária e a expulsão de Carmichael, formulador original da palavra de ordem do “poder negro”. Essa contradição não impediu os Panteras de, no limite dessas concepções, trabalhar pela mais ampla unidade política entre os movimentos dos povos oprimidos. Assim, buscaram aproximar-se do movimento sindical, em especial suas alas mais radicais. ¹¹³ Em diálogo com os Jovens Senhores e os Jovens Patriotas, tentaram organizar em Chicago a Coalizão Arco-Íris de Solidariedade Revolucionária, uma iniciativa tão breve quanto expressiva, que serviria de inspiração a inúmeras articulações posteriores. E, em ¹⁸ de julho de ¹⁹⁶⁹, o Partido dos Panteras Negras esteve à frente da organização da Conferência por uma Frente Única contra o Fascismo, que reuniu mais de ⁵ mil pessoas em Oakland, incluindo membros do Partido Comunista, do Partido pela Paz e a Liberdade, das Guardas Vermelhas, dos Estudantes por uma Sociedade Democrática, dos Jovens Patriotas, dos Jovens Senhores, além de movimentos de luta pela libertação das mulheres, entre outros. Apesar desses esforços por uma atuação coordenada e unificada dos movimentos populares radicalizados, a tática adotada não encontrava apoio sólido na própria concepção teórica de hegemonia de classe que os Panteras Negras defendiam. Isso fica especialmente evidente nas formulações tardias de Huey Newton e em sua análise da estrutura de classe estadunidense. Segundo Newton, o proletariado estadunidense propriamente dito era incapaz de liderar a luta revolucionária no país porque, como “a tecnologia está se desenvolvendo em um ritmo tão rápido que a automação progredirá para a cibernetização”, ¹¹⁴ esse proletariado estava fadado ao desemprego, se não ao desaparecimento – ou, nos termos de Huey, destinado a engrossar crescentemente as fileiras do lumpemproletariado. ¹¹⁵ Esta seria, portanto, a classe social cuja posição representaria o devir de imensas camadas proletárias e de pequenos proprietários, sendo, portanto, a portadora do futuro do movimento revolucionário estadunidense. Newton chega ao extremo de afirmar que “em breve o círculo dominante não precisará dos trabalhadores” – perdendo de vista toda a economia política capitalista, assentada no mais-valor extraído à força de trabalho assalariada e antecipando em anos as teorias do pós-trabalho que, hoje, cada vez mais perdem credibilidade. ¹¹⁶ De fato, Newton não se equivocava apenas ao exagerar as tendências ao desemprego estrutural massivo, deduzindo delas a posição de vanguarda do lumpemproletariado; equivocava-se também na sua própria tipologia das

classes sociais. Por isso, influenciado provavelmente pelas concepções predominantes no movimento operário reformista, Newton não via os desempregados (aos quais ele denomina exclusivamente de lumpemproletariado) como parte do proletariado, como seu exército de reserva , mas como uma outra classe. Desse modo, Huey creditava a liderança da revolução socialista precisamente às camadas da classe trabalhadora mais enfraquecidas, que estão menos diretamente em choque com a burguesia e pior posicionadas para o objetivo da expropriação e reorganização socialista dos meios de produção. ¹¹⁷ Ademais, o lumpemproletariado consiste em uma fração de classe instável, transitória, formada por elementos decaídos de diferentes camadas sociais (cujas concepções de mundo carregam consigo), e que constantemente ejeta elementos de novo para os contingentes ativos da força de trabalho (incluídas aqui as formas mais descontínuas do assalariamento, como os empregos temporários). Equilibrando-se em tal posição social precária, o lumpemproletariado certamente poderia ser um massivo aliado da classe trabalhadora organizada na revolução social, mas dificilmente lograria as condições de organização e consciência para assumir a posição de vanguarda. Do mesmo modo, a confusão da tipologia de classe manejada pelos Panteras os fez oscilar no trato com a pequena burguesia, em especial aquela negra. Em um primeiro momento, a produção teórica do BPP trata os pequenos proprietários privados quase em pé de igualdade com a grande burguesia, como se formassem uma mesma classe de exploradores do povo. Em um segundo momento, os pequenos empresários negros passam a ser vistos como aliados em potencial. Mas, retificando seu equívoco esquerdista anterior, o BPP caia agora em uma posição oportunista: em vez de perceber os limites que pressionavam a pequena burguesia negra rumo à falência e à exploração pelos grandes atravessadores e agiotas, passavam agora a ver em seu sucesso uma forma de “empoderamento”, um caminho para a revitalização econômica das comunidades negras. Segundo Newton, no primeiro de seu par de artigos intitulados Capitalismo negro reanalisado: O ponto 3 do Programa original de dez pontos do Partido dos Panteras Negras é “Queremos o fim do roubo dos capitalistas contra a comunidade negra”. Essa era nossa posição em outubro de 1966 e ainda é a nossa posição. Reconhecemos que o capitalismo não é a solução para os problemas que enfrentamos em nossas comunidades. A exploração capitalista é uma das causas básicas do nosso problema. Esse é o objetivo do Partido dos Panteras Negras, anular o capitalismo em nossas comunidades e nas comunidades oprimidas ao redor do mundo. Entretanto, muitas pessoas têm oferecido à comunidade o capitalismo negro como solução aos nossos problemas. Nós reconhecemos que as pessoas na comunidade negra não têm uma antipatia geral ao conceito de capitalismo negro, mas isso não é porque eles amam o capitalismo. De modo algum. A ideia de capitalismo negro passou a significar para muitas pessoas negras o controle das instituições na comunidade. Nós vemos dentro dessas características as sementes da negação do capitalismo negro e de todo o capitalismo em geral. O que devemos fazer, então, é aumentar as qualidades

positivas até que elas dominem as negativas e então transformem a situação. No passado, o Partido dos Panteras Negras tomou uma posição contrarrevolucionária com nossa condenação geral do capitalismo negro. Nossa estratégia deveria ter sido analisar as qualidades positivas e negativas desse fenômeno antes de fazer qualquer condenação. Embora reconheçamos, e corretamente, que o capitalismo não é solução ou resposta, nós não fizemos uma análise verdadeiramente dialética da situação. Essa “dialética” de Newton é bem parecida, em nossa opinião, com aquela que Marx criticava em Proudhon : Para o sr. Proudhon, toda categoria econômica tem dois lados – um bom, outro mau. Ele considera as categorias como o pequeno-burguês considera os grandes homens da história: Napoleão é um grande homem; fez muita coisa boa, mas, também, fez muita coisa má. O lado bom e o lado mau , a vantagem e o inconveniente , tomados em conjunto, constituem, para o sr. Proudhon, a contradição em cada categoria econômica. Problema a resolver: conservar o lado bom, eliminando o mau. ¹¹⁸ E, raciocinando assim como Proudhon e Newton, “dialeticamente”, Marx segue seu texto ironicamente aplicando tal lógica à categoria econômica da escravidão , cujos males nem precisamos expor e cujas “vantagens” Marx enumera com sarcasmo, explanando sobre a importância desta instituição para a constituição do comércio mundial... O exemplo ácido de Marx (sobre o qual já falamos anteriormente, e que é tão completamente descontextualizado pelo demagogo Carlos Moore, em sua cruzada fantasiosa para anular Marx como um pensador racista) permite escancarar os limites desse modo falsamente dialético de raciocinar. Huey Newton aponta o erro dos Panteras Negras em sua hostilidade absoluta inicial aos pequenos proprietários negros e, a fim de retificá-lo, inicia uma apologia do papel emancipatório da pequena produção privada, porque Newton ainda equipara o pequeno capitalista ao grande capitalista, sem compreender as diferenças entre a pequena produção mercantil e a grande produção burguesa. ¹¹⁹ Com isso, manejando uma tipologia de classes precária e equilibrando uma dialética formalista, Newton ofuscava o justíssimo mote utilizado por Fred Hampton, segundo o qual “não combateremos o capitalismo com capitalismo negro, mas com socialismo”. Assim, oscilando entre o lumpemproletariado e a pequena burguesia negra, o BPP foi incapaz de oferecer uma solução para os dramas do movimento operário estadunidense e de sua unificação com as lutas das camadas oprimidas da sociedade. O BPP compreendeu, acertadamente em nossa opinião, o papel de vanguarda do povo negro em meio a todo o movimento dos povos oprimidos contra o chauvinismo branco. Mas se detiveram nessa concepção, sem definir como essa hegemonia poderia refletir sobre o movimento operário como tal.

Um sintoma disso é a importância residual reservada as sessões do Partido no meio sindical. Atuando como uma força unificadora entre os movimentos dos oprimidos, neste outro campo, o da política no local de trabalho, os Panteras acabavam por expressar uma política tendente ao divisionismo: as seções sindicais negras deveriam desenvolver seu trabalho político em meio ao proletariado negro, os brancos entre os brancos etc. Reagindo ao chauvinismo branco predominante no movimento sindical, eram, contudo, incapazes de neutralizá-lo e vencê-lo. Mas se é verdade que a assim chama “ideologia dos Panteras Negras” esbarrou em uma série de obstáculos teóricos, também é verdade que foi pouco o espaço deixado à organização pela poderosa maquinaria repressiva dos Estados Unidos para desenvolver seus quadros e, com isso, suas formulações. Os assassinatos políticos de promissores dirigentes se contam às dezenas, e o caso de Fred Hampton é apenas o mais emblemático, o que nos permite questionar quais outros desenvolvimentos essa teoria poderia ter, tivessem sobrevivido muitas figuras promissoras do Partido. Isso quer dizer, então, que o marxismo dos Panteras Negras não tenha coisas a nos ensinar? Muito pelo contrário. Além de nos oferecer uma oportunidade para refletir sobre problemas teóricos que emergem da prática até os nossos dias, o Partido dos Panteras Negras nos deixa uma lição da atualidade do marxismo-leninismo, um guia teórico para a ação, que demanda das forças revolucionárias constante desenvolvimento. São justamente as contradições não resolvidas do marxismo dos Panteras Negras que dão a prova da vitalidade de suas teorizações, colocando de forma inovadora os problemas que, até hoje, está nas mãos da militância revolucionária resolver – na teoria e na prática. Bibliografia ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo . São Paulo: Companhia das Letras, 2009. _. Sobre a revolução . São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _. Crises da república . São Paulo: Perspectiva, 2017. BARROS, Douglas; MANOEL, Jones. “Vocês querem um Hitler negro? Crítica ao Black Money”. LavraPalavra , 22 jun. 2019. Disponível em: https:// lavrapalavra.com/2019/06/22/voces-querem-um-hitler-negro-critica-ao-blackmoney/. Acesso em: 7 ago. 2020. BRIGGS, Cyril. “A convenção negra”. LavraPalavra , 14 jul. 2020. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2020/07/14/a-convencao-negra/. Acesso em: 7 jul. 2020. DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe . São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. DU BOIS, W. E. B. Dusk of Dawn: An Essay Toward an Autobiography of a Race Concept . Oxford: Oxford University Press, 2007.

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Erap – Projeto de Pesquisa e Ação Econômica FBI – Bureau Federal de Inteligência Goon – Guardiões da Nação Oglala IAT – Indígenas de Todas as Tribos ICC – Comissão de Reivindicações Indígenas. IWK – I Wor Kuen Join – Empregos ou Rendimentos Agora KKK – Klu Klux Klan LPDOC – Comitê de Defesiva-Ofensiva Leonard Peltier Masa – Associação Estudantil Mexicano-Americana NAACP – Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor NCAI – Congresso Nacional dos Indígenas Americanos NIYC – Conselho Nacional da Juventude Indígena OD – Oficial de Dia OSCRO – Organização dos Direitos Civis Sioux Oglala SNCC – Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil SDS – Estudantes por uma Sociedade Democrática Swat – Armas e Táticas Especiais Ucla – Universidade de Los Angeles Califórnia Wasp – branco, anglo-saxão e protestante WRDA – Beneficiários da Seguridade Social Exigem Ação YLO – Organização dos Jovens Senhores YLP – Partido dos Jovens Senhores ¹ ¹ Hannah Arendt, As origens do totalitarismo , p. 26. ² Jean-Marie Chauvier, “Entre a nostalgia soviética e o novo patriotismo”, Le Monde Diplomatique Brasil , 1 abr. 2004. ³ “A essa altura, já se pode cogitar uma questão: onde ficam as instituições nisso tudo? Poderia o Partido Democrata fraudar suas primárias livremente, se for esse o caso, sem qualquer interferência ou qualquer problema jurídico? Na realidade, sim, porque o Judiciário americano lhe garantiu esse

direito. Em 2016, apoiadores de Sanders processaram o DNC (Comitê Nacional Democrata) pela fraude das primárias daquele ano. Em 2017, a corte decidiu que o Partido Democrata tem, sim, o direito de fraudar suas eleições internas. Em outras palavras, aquela corte não teria o poder de interferir no processo. A ideia é que, sendo o partido uma associação privada, o seu funcionamento interno não se sujeita à legislação e à interferência jurídica. Ou seja, a lisura do processo das primárias não é sequer um requisito necessário do ponto de vista jurídico e legal”. Érico Bonfim, “A morte e a morte de Bernie Sanders”, Revista Opera, 28 abr. 2020. ⁴ “Mais de 100 mil crianças estão retidas pela imigração dos Estados Unidos, diz estudo da ONU”, G1 , 18 nov. 2019. Disponível em: https:// g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/18/mais-de-100-mil-criancas-estaoretidas-pela-imigracao-dos-estados-unidos-diz-estudo-da-onu.ghtml. Acesso em: 4 jul. 2020. ⁵ Cas Mudde, “Stephen Miller is no outlier. White supremacy rules the Republican party”, The Guardian, 16 nov. 2019. Disponível em: https:// www.theguardian.com/commentisfree/2019/nov/16/stephen-miller-whitesupremacy-republican-party. Acesso em: 4 jul. 2020. ⁶ Para uma crítica sistemática da teoria democrática de Bobbio e Popper, conferir Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal , de Domenico Losurdo (Editora UFRJ/Editora Unesp, 2004). ⁷ Domenico Losurdo, Guerra e revolução. O mundo um século após outubro de 1917, p. 58. ⁸ Loc. cit. ⁹ Ibidem, p. 59. ¹⁰ Ferguson apud Losurdo, Guerra e revolução, p. 284. ¹¹ Paulo Cannabrava Filho, “Maior genocídio da história da humanidade foi feito por europeus nas Américas: 70 milhões morreram”, Diálogos do Sul , 31 maio 2019. Disponível em: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/ direitos-humanos/58765/maior-genocidio-da-humanidade-foi-feito-poreuropeus-nas-americas-70-milhoes-morreram. Acesso em: 4 ago. 2020. ¹² Designação conferida a John e Samuel Adams, George Washington, Thomas Jefferson, George Clymer, Benjamin Franklin, George Tylor e George Rea, signatários da Declaração de Independência ou redatores da Constituição dos Estados Unidos, onze anos mais tarde. ¹³ Losurdo, Guerra e revolução, p. 179. ¹⁴ Apud Losurdo, Guerra e revolução , p. 210. ¹⁵ Denis Duclos, “O império da cultura do ódio e dos delírios paranoicos”, Le Monde Diplomatique Brasil , 1 ago. 2003. ¹⁶ Alex Ross, “How American Racism Influenced Hitler”, The New York , 23 abr. 2018 (tradução nossa).

¹⁷ “Por que governo dos EUA nega o genocídio dos índios?”, Sputnik News , 18 ago. 2018. Disponível em: https://br.sputniknews.com/opiniao/ 2018081311945330-governo-dos-eua-nega-genocidio-indigena/. Acesso em: 4 ago. 2020. ¹⁸ Timothy Snyder, Terra negra: o holocausto como história e advertência , p. 37. “A interpretação hitlerista da Revolução Bolchevique como projeto judaico não era nada exótica. Winston Churchil e Woodrow Wilson entendiam-na da mesma forma, pelo menos no início. O correspondente do Times de Londres via nos judeus a força principal da conspiração bolchevique mundial. Pouco habitual era a conclusão insistente e sistemática de Hitler, segundo o qual a Alemanha poderia ganhar poder global eliminando os judeus da Europa Oriental e derrubando sua suposta fortaleza soviética. [...] Uma segunda América seria criada na Europa, depois que os alemães aprendessem a ver os outros europeus como viam os nativos americanos e os africanos, e a considerar o maior país da Europa como uma frágil colônia judaica” ( ibidem , p. 36). ¹⁹ Domenico Losurdo, Contra-história do liberalismo , p. 47. ²⁰ “Muito embora o vasto país que acabamos de descrever fosse habitado por numerosas tribos indígenas, podemos dizer com justiça que, na época do descobrimento, ainda não constituía mais que um deserto. Os índios ocupavam-no, mas não o possuíam. É pela agricultura que o homem se apropria do solo, e os primeiros habitantes da América do Norte viviam do produto da caça. Seus preconceitos implacáveis, suas indômitas paixões, seus vícios e, mais ainda talvez, suas virtudes selvagens entregavam-nos a uma destruição inevitável. A ruína desses povos começou no dia em que os europeus abordaram em suas costas; sempre continuou desde então; acaba de se consumar em nossos dias. A Providência, colocando-os no meio das riquezas do novo mundo, parecia ter-lhes concedido destas apenas um curto usufruto; de certa forma, eles só estavam ali entrementes. Costas, tão bem preparadas para o comércio e para a indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississippi, aquele continente inteiro aparecia então como o berço ainda vazio de uma grande nação” (Alexis de Tocqueville, A democracia na América . Livro I: leis e costumes , p. 33). ²¹ Domenico Losurdo (entrevista), “A luta para romper o monopólio da tecnologia é revolucionária”, Revista Opera , 28 jun. 2019. ²² Vijay Prashad, Estrela vermelha sobre o terceiro mundo , p. 29. ²³ Losurdo, Contra-história do liberalismo, p. 107-33. ²⁴ Muniz Ferreira, “Apresentação de ‘Guerra Civil nos Estados Unido (1861-1865)’”, Crítica Marxista , n. 45, 2017, p. 121. ²⁵ Cabe destacar, contudo, que Lincoln, pessoalmente, estava longe de uma posição antirracista ou algo similar a isso. Sua declaração é reveladora: “não sou, nem nunca fui favorável a algo que pudesse provocar, de qualquer forma, a igualdade social e política entre as raças branca e a negra; não sou, nem nunca fui favorável à transformação de negros em eleitores ou jurados, ou à sua aceitação para cargos públicos […]. A isso acrescentarei que existe

uma diferença física entre a raça negra e a branca que, segundo creio, para sempre impedirá que as duas raças vivam em condições de igualdade social e política” (Lincoln apud James M. Jones, Racismo e preconceito , p. 4). ²⁶ “As Leis de Jim Crow foram criadas no Norte, não no Sul. Portanto, atitude ambivalente dos nortistas com relação aos negros tem sido um pouco obscurecida pela comparação evidentemente favorável com as atitudes sulistas diante dos negros. No entanto, como hoje se vê claramente, os negros do Norte nunca foram admitidos na corrente principal da vida norteamericana” (Jones, Racismo e preconceito , p. 9). ²⁷ O termo tem origem na personagem satírica do ator Thomas Rice, “Jim Crow”, que ridicularizava o povo negro por meio de estereótipos. A expressão tornou-se uma forma pejorativa de se referir às pessoas negras. No final do século XIX, quando os estados do Sul dos Estados Unidos aprovaram leis de segregação racial, estas ficaram conhecidas como Leis Jim Crow. ²⁸ Ibidem , p. 15. ²⁹ Woodward apud Domenico Losurdo, Stálin – uma história crítica de uma lenda negra , p. 317. ³⁰ “Nos Estados Unidos, por exemplo, após a Guerra Civil, a 14a Emenda à Constituição dava aos negros o título de cidadãos e o direito ao voto. Para evitar que os sulinos a burlassem foi baixada a 15a Emenda, determinado que nem a União nem os Estados podiam impedir o direito de voto a qualquer cidadão, não importando ‘a raça, cor, ou prévia condição de servidão’. Foram aprovadas, entretanto, leis estaduais que proibiam o direito de voto aos que não fossem proprietários de certa extensão de terras. Os negros quase não possuíam terras e perderam, assim, aquele direito. Aconteceu que muitos brancos também não possuíam terras. Foi deliberado, então, que poderia votar todo aquele que pudesse ler um trecho da Constituição ou compreendesse a sua leitura, mesmo que não tivesse a porção de terras exigidas pela lei. Todos os negros, praticamente, eram analfabetos, e foram privados do direito de votar. Mas aconteceu que havia também analfabetos brancos: quanto a estes, a autoridade escolhida pelos brancos decidia que entendiam perfeitamente o texto da Constituição que lhes era lido. Tais leis não podiam ser inquinadas de inconstitucionalidade: não violam o direito de sufrágio por motivo ‘de raça, cor, ou prévia condição de servidão’. Se isso aconteceu no Sul, as coisas, no Norte, apresentavam aspectos diferentes, mas no mesmo sentido. Lá, a discriminação era contra os imigrantes. Os estados do Norte, então, estabeleceram a condição de saber ler e escrever para a conquista de direito de voto. Todas as leis discriminatórias foram mantidas pela Corte Suprema, que só liquidou a chamada ‘cláusula do avô’, que estados nortistas defendiam, exigindo-se de novos eleitores que provassem, para a conquista do direito a voto, que os seus respectivos avôs já tivessem gozado desse mesmo direito em 1860” (Nelson Werneck Sodré, Introdução à Revolução Brasileira , p. 224). ³¹ Ho Chi Minh, Escritos 1919-1969, p. 30. ³² Ibidem , p. 48.

³³ A. da Silva Mello, Estudos sobre o negro , p. 11. ³⁴ Angela Davis, Mulher, raça e classe , p. 188-9. “Quando Ida B. Wells fez a pesquisa para seu primeiro panfleto contra os linchamentos, publicado em 1895 com o título A Red Record [Um registro vermelho], ela calculou que ocorreram mais de 10 mil linchamentos entre 1865 e 1895” ( ibidem , p. 187). ³⁵ Ho Chi Minh, Escritos 1919-1969 , p. 51. ³⁶ Ángel Bermúdez, “A história brutal e quase esquecida da era de linchamentos de negros nos EUA”, BBC , 29 abr. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43915363. Acesso em: 4 ago. 2020. ³⁷ Apud Domenico Losurdo, “Revolução de Outubro e democracia no mundo”, Opera Mundi , 4 out. 2017. ³⁸ Losurdo, Stálin , p. 168. ³⁹ Ibidem , p. 169. ⁴⁰ Mello, Estudos sobre o negro , p. 21. Duas coisas aqui precisam ser pontuadas. Após os protestos pelos direitos civis, essa situação mudou, mas não desapareceu. Dois exemplos são expressivos. Em 8 de junho de 2017, o jornal The Daily Telegraph noticiou que o casal Hillary e Bill Clinton, quando o sr. Clinton ocupava o cargo de governador no estado do Arkansas (1979-1981 e 1983-1992), usava o trabalho compulsório de pessoas negras presas. Segundo os Clinton, isso era uma tradição da gestão da sede do governo, dado a “redução de custos” e que vinha de longa data – sim, de longuíssima data, da época da escravidão. Hillary Clinton também teceu comentários sobre o “QI inferior” dos presos negros e sua “incapacidade de aplicar raciocínio moral” (“Hillary and Bill Clinton used black prisoners for forced ‘slave’ labour in the Arkansas governor’s mansion”, The Daily Telegraph , 8 jun. 2017. Disponível em: https://www.dailytelegraph.com.au/ technology/hillary-and-bill-clinton-used-black-prisoners-for-forced-slavelabour-in-the-arkansas-governors-mansion/news-story/ 9af23848a5d44770b538c931c62460fe. Acesso em: 4 ago. 2020). Já no dia 11 de junho de 2000, o jornal Folha de S.Paulo abre uma notícia falando de “funcionários perfeitos” que ganham “pouco, não tiram férias, nunca fazem greve” e ganham apenas 28 centavos por hora de trabalho quando na época o salário mínimo dos Estados Unidos era de cinco dólares por hora. Esses “funcionários perfeitos” são os 500 mil presos, a imensa maioria negros, na situação de trabalho análogo a escravidão sem direitos trabalhistas, organização sindical e ganhando 5,6% do salário mínimo (“Presos americanos dão lucro a empresas”, Folha de S.Paulo , 11 jun. 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ ft1106200004.htm?. Acesso em: 4 ago. 2020). ⁴¹ Losurdo, Stálin, p. 170. ⁴² Idem , O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer , p. 127.

⁴³ Arendt apud Losurdo, Stálin , p. 12. Losurdo está citando o ensaio “Ripensare il sionismo”, presente no livro Ebraismo e modernità , de outubro de 1945. ⁴⁴ Hannah Arendt, Sobre a revolução , p. 36. ⁴⁵ Ibidem , p. 44. ⁴⁶ Ibidem , p. 45. ⁴⁷ Ibidem , p. 44. ⁴⁸ Ibidem , p. 45. ⁴⁹ Ibidem , p. 48. ⁵⁰ Ibidem , p. 50. ⁵¹ Loc. cit. ⁵² Ibidem , p. 51. ⁵³ Ibidem , p. 52. ⁵⁴ Ibidem , p. 88. ⁵⁵ Ibidem , p. 93. ⁵⁶ Ibidem , p. 94. ⁵⁷ Loc. cit. ⁵⁸ Ibidem , p. 96. ⁵⁹ Ibidem , p. 98. ⁶⁰ Ibidem , p. 101. ⁶¹ Ibidem , p. 106. ⁶² Ibidem , p. 103, grifos nossos. ⁶³ Ibidem , p. 107. ⁶⁴ Loc. cit. ⁶⁵ Ibidem , p. 107. ⁶⁶ Ibidem , p. 267. ⁶⁷ Ainda é comum, mesmo entre estudiosos, que se use os termos “América” e “americanos” para designar os Estados Unidos e seus cidadãos, respectivamente. Editorialmente, costumamos mudar os termos para Estados Unidos e estadunidense, no entanto, ao longo dos textos que apresentamos aqui, resolvemos deixar os termos como no original. Isso

porque, como se verá, os próprios militantes e autores, como se ganhassem consciência da dimensão do continente, mudam o uso e passam a acrescentar a especificação de “do Norte”. ⁶⁸ Losurdo, Contra-história do liberalismo , p. 79-102; idem , Democracia ou bonapartismo , p. 15-61. ⁶⁹ João Quartim de Moraes, “Contra a canonização da democracia”, Crítica Marxista , n. 12, 2001, p. 13, grifos nossos. ⁷⁰ Em 1970, Hannah Arendt deu uma entrevista ao escritor alemão Adelbert Reif e comentou sobre esse seu livro por nós criticado – entrevista publicada no livro Crises da república . Não só não existe qualquer autocrítica ou reavaliação de suas posições em Sobre a revolução , como a autora cai em várias contradições. Diz, por exemplo: “Nenhum destes sistemas, nem mesmo o da União Soviética, é, no entanto, verdadeiramente totalitário – embora deva admitir que não estou em posição de julgar a China” (Hannah Arendt, Crises da república , p. 191). A própria autora questiona sua análise de anos antes sobre o totalitarismo. Fala, na página 174 da mesma publicação, do racismo no Sul, mas evita qualquer tom moral, avaliação política ou filosófica e chama, com intenso eufemismo, o apartheid racial como “certas leis e disposições dos estados sulistas”. Em outro momento, diz que somente nos países ocidentais “existem obstáculos políticos e legais” que “evitam constantemente que o processo de expropriação atinja o ponto em que a vida se tornaria completamente insuportável” ( ibidem , p. 182) e some, de novo, qualquer referência a situação colonial ou a política neocolonial dos países imperialistas. Quando pensa em “monstruosidade”, cita o Leste Europeu – as democracias populares sobre protetorado da União Soviética –, mas não dedica qualquer atenção a fenômenos como o apartheid na África do Sul, a ditadura militar no Brasil, o massacre de mais de 1 milhão de vidas na Indonésia ou os países destruídos pelo imperialismo estadunidense. Por fim, diz que a “grande discussão não é só capitalismo e socialismo, mas entre países que respeitam direitos, como Suécia e Estados Unidos, e os que não, como a Espanha de Franco e a União Soviética ( ibidem , p. 185). Note que, mais uma vez, a condição negra, e ainda a condição operária (dado que, tradicionalmente, nos Estados Unidos, o sindicalismo, mesmo legal, é absurdamente perseguido e combatido) não cumpre qualquer papel na avaliação política e filosófica da autora. ⁷¹ A memória histórica muda rapidamente. Hoje poucos lembram que no auge da Guerra Fria, se os Estados Unidos acusavam a União Soviética de ausência de democracia e liberdade, a União Soviética acusava os Estados Unidos de racismo e repressão sistemática ao movimento negro: “por outro lado, os jornalistas soviéticos retrataram os Panteras Negras como uma organização progressista radical que lutava por moradia decente, assistência médica, educação e emprego para os afro-americanos e todas as pessoas oprimidas. A imprensa da União Soviética explicava como o programa político dos Panteras Negras em benefício dos pobres e seus esforços para acabar com a brutalidade policial fizeram deles e de seus aliados brancos o alvo preferencial do terror policial. Desse modo, os soviéticos colocaram a repressão aos Panteras Negras em um contexto de maiores esforços de Washington em reprimir toda a sua dissidência interna,

como visto no Massacre de Kent State em maio de 1970, quando estudantes foram mortos pela Guarda Nacional de Ohio durante uma manifestação contra a Guerra do Vietnã. A atenção voltada para a situação racial nos Estados Unidos cresceu na União Soviética a ponto de, em dezembro de 1970, os principais nomes da imprensa soviética apresentarem nas Nações Unidas uma petição com denúncias de genocídio promovido pelo Estado norte-americano contra os Panteras Negras. Após chamar os militantes do Partido de ‘bando de criminosos’, o vice-presidente dos Estados Unidos no governo Nixon, Spiro Agnew, foi denunciado pelo editor do Izvestia , Melor Sturua, por ter justificado essas medidas repressivas. Sturua argumentou que a repressão violenta aos afro-americanos e a ofensiva dos Estados Unidos no Vietnã eram manifestações de uma mesma política beligerante de racismo e genocídio, e o Izvestia publicou uma edição justapondo uma fotografia dos Panteras Negras presos com uma de prisioneiros de guerra vietnamitas sob a manchete ‘Ianques em casa e no exterior’”. (Gabriel Deslandes, “Guerra Fria dos direitos humanos: Panteras Negras x Dissidência soviética”, Revista Opera, 9 de dez.,2019). ⁷² O texto integral da Constituição Soviética de 1936 pode ser consultado em: https://www.marxists.org/portugues/stalin/biografia/ludwig/ constituicao.htm. ⁷³ W. E. B. Du Bois, “On Stalin”, National Guardian , 16 mar. 1953. Disponível em: https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/ biographies/1953/03/16.htm. Acesso em: 5 ago. 2020. ⁷⁴ Ibidem . ⁷⁵ Apud Peta Lindsay, “Black Bolsheviks and White Lies”, Liberation School , 5 oct. 2017. Disponível em: https://liberationschool.org/black-bolsheviks-andwhite-lies/. Acesso em: 5 ago. 2020. ⁷⁶ Ibidem. ⁷⁷ Ibidem . ⁷⁸ Losurdo, Stálin , p. 280-1. ⁷⁹ Loc. cit. ⁸⁰ Uma das fontes consultadas é a matéria do Sputnik de 20 de dezembro de 2019, intitulada “‘Great Joe’: How Joseph Stalin Became the Chief of the American Indians”. ⁸¹ Referência à chamada Big Stick Politic, ou Política do Porrete Grande, denominação dada ao estilo de diplomacia usado pelo presidente Theodore Roosevelt Jr. (presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909), como corolário da Doutrina Monroe (1823), segundo a qual os Estados Unidos deveriam exercer sua política externa como forma de deter as intervenções europeias, principalmente britânicas, no continente americano. Dessa maneira o país assumiu a hegemonia dentro do continente, camuflando seu imperialismo sob o discurso de uma “América para os americanos”.

⁸² Karl Marx, Miséria de Filosofia , p. 127. ⁸³ Idem, Obras Escolhidas, p. 282. ⁸⁴ Aristocracia operária é o termo utilizado por Lênin para designar as camadas de trabalhadores assalariados dos países imperialistas que, conseguindo obter melhoras parciais nas suas condições de vida como resultado dos superlucros de seus capitalistas nas colônias, passaram a apoiar a política imperialista de suas burguesias nacionais. ⁸⁵ Em inglês, American Federation of Labour. ⁸⁶ Gompers foi alvo de muitos ataques por parte de Lênin, que o considerava o maior chefe do oportunismo nos Estados Unidos. Sobre essa crítica, vide o Prefácio de Imperialismo, estágio superior do capitalismo (ensaio popular) ; ou o Capítulo VI de Esquerdismo, doença infantil do comunismo , bem como o artigo In America , de 1912 (inédito em português). ⁸⁷ Ernest Obadele-Stark, Black Unionism in the Industrial South . ⁸⁸ Em inglês, no original, coolielism . Em tradução livre: “servilismo”. A expressão data de meados do século XVII e remonta ao termo hindi qulī ( 09 09 09 09 09 15 3C 41 32 40 ), que significa “trabalhador (diarista)”. Provavelmente é um empréstimo de uma língua turcomana (por meio do persa), possivelmente uma redução do árabe ghulam, “servo”, “criado”. Da metade para o fim do século XIX nos Estados Unidos, o termo coolie e tudo que estava associado com o “estereótipo coolie ” passaram a ser usados para satirizar ou depreciar os imigrantes de origem chinesa, especialmente os operários e donos de lavanderias ou restaurantes. ⁸⁹ Philip F. Rubio, A History of Affirmative Action, 1619-2000. ⁹⁰ Em inglês, Industrial Workers of the World. ⁹¹ De Leon é citado e elogiado por Lênin algumas vezes em sua obra. Um exemplo dessa referência pode ser visto no Capítulo 6 de Esquerdismo, doença infantil do  comunismo . ⁹² T. Thomas Fortune, Black and White: Land, Labor, and Politics in the South [Negro e branco: terra, trabalho e política no sul]. ⁹³ Vide Seth Moglen, “Introduction”, em T Thomas Fortune, Black and White: Land, Labor, and Politics in the South , ou McPherson, citado por Moglen, que designa Fortune como “quase marxista”. ⁹⁴ Em inglês, National Association for the Advancement of Colored People. ⁹⁵ David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biography of a Race 1868–1919 . ⁹⁶ Ibidem , p. 549. ⁹⁷ W. E. B Du Bois, Dusk of Dawn: An Essay Toward an Autobiography of a Race Concept , p. 151.

⁹⁸ Black Reconstruction in America: An Essay Toward a History of the Part Which Black Folk Played in the Attempt to Reconstruct Democracy in America, 1860–1880 [Reconstrução negra na América: um ensaio para uma história do papel desemprenhado pela gente negra na tentativa de reconstruir a democracia na América, 1860-1880]. ⁹⁹ Para conhecer o pensamento de Fanon, vide Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista . ¹⁰⁰ Para conhecer o pensamento de Nkrumah, vide Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista . ¹⁰¹ Em inglês, Universal Negro Improvement Association. ¹⁰² Sobre o reacionarismo de Garvey, vide Cyril Briggs, A convenção negra ; Ryan Miniot, The Black Left’s War on Marcus Garvey and Garveyism ; Douglas Barros; Jones Manoel, Vocês querem um Hitler negro? Crítica ao Black Money ; Vinicius Souza, Pan-africanismo, historicidade e disputa de narrativas . ¹⁰³ Destacamos também o nome do sociólogo Oliver Cox, nascido em Trindade e Tobago em 1901 e emigrado para os Estados Unidos em 1919, famoso por sua interpretação marxista do fascismo e por sua contribuição fundadora para a teoria do sistema-mundo. ¹⁰⁴ Vide Vladímir Ilitch Uliánov Lênin, A falência da Segunda Internacional ; e, sobre as diferenças entre a II e a III Internacional em matéria de antirracismo, Jones Manoel; Gabriel Landi Fazzio (orgs.). Revolução africana: uma antologia do pensamento marxista , p. 31-45. ¹⁰⁵ Nos anos 1930, Briggs seria expulso do Partido Comunista, acusado de ser divisionista. Era época de emergência do chamado browderismo, expressão da tática centrista da Frente Popular nos Estados Unidos, que apregoava adiar a luta socialista em nome da unidade democrática antifascista – e, como consequência, exigia aos povos oprimidos que moderassem sua luta, em nome de “não afastar aliados”. Briggs retornaria ao ao Partido Comunista dos Estados Unidos em 1948 após a queda de Earl Browder de sua direção. Para a crítica da tática de Frente Popular e do browderismo, vide Francisco Martins Rodrigues, Anti-Dimitrov: meio século de derrota da revolução (1935-1985) . ¹⁰⁶ Libertação negra, em tradução livre, inédito em português. ¹⁰⁷ Bolchevique Negro, em tradução livre, publicada em 1978 e também inédito em português. Vale destacar que Haywood foi expulso do Partido Comunista dos Estados Unidos ao final dos anos 1950, acusado de ser “esquerdista”, conforme o Partido guinava para teorias revisionistas como resultado da hegemonia do krushevismo soviético sobre o movimento comunista internacional. ¹⁰⁸ Disponível em https://www.youtube.com/watch? v=VhnCrHZkgNk&ab_channel=LalSalaam.

¹⁰⁹ Figura tão importante quanto controversa na história do movimento negro nos Estados Unidos. Liderou o grupo Nação do Islã desde 1934 até sua morte, em 1975. Malcom X, que originalmente foi seu protegido, tornouse grande crítico das concepções sectárias e dos métodos reacionários de Elijah Muhammad, chamado “honorável” por seus seguidores. As críticas de Malcom provocaram revolta entre as bases da Nação do Islã, motivando o atentado que pôs um fim sangrento a sua trajetória da radicalização política. George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazi Americano, definiu Muhammad como “o Hitler do homem negro”. ¹¹⁰ Ao longo da década de 1980, uma série de escândalos envolvendo a dependência química de Huey Newton e acusações de desvio de fundos serviram de base para crises internas no BPP. ¹¹¹ Para uma crítica e uma abordagem séria da questão do identitarismo, sem as versões vulgares e simplistas muito em voga no Brasil, como as falas de Ciro Gomes sobre o tema, recomendamos o livro Armadilhas da identidade: raça e classe nos dias de hoje , de Asad Haider (Editora Veneta, 2019). ¹¹² Sobre o conceito de “ação performática”, vide Clarisse Gurgel, Ação performática: a política revolucionária entre a depressão e o êxtase . ¹¹³ Vide, nesta coletânea, o texto “O Partido dos Panteras Negras e o sindicalismo revolucionário”. ¹¹⁴ Vide, nesta coletânea, o texto “Intercomunalismo”. ¹¹⁵ O termo lumpemproletariado (do alemão lumpen , trapo, farrapo) designa a população situada socialmente abaixo do proletariado, do ponto de vista das condições de vida e de trabalho, desconectada da produção social e relegada à condição de miséria material e moral. ¹¹⁶ Conforme avança a crise capitalista e se acirram as lutas de classes, desde 2008, fica cada vez mais evidente o quanto as classes dominantes baseiam suas esperanças na salvação de suas taxas de lucro na intensificação da exploração da classe trabalhadora. Vide, a esse respeito, Gabriel Landi Fazzio, O que está em jogo na contrarreforma trabalhista na França? .

¹¹⁷ Essas ponderações, contudo, não significam dizer que o lumpemproletariado seja essencialmente reacionário, como costuma entender o marxismo vulgar. É verdade que, em suas primeiras obras, em especial em sua produção acerca das revoluções de 1848-1851, Marx e Engels emitiram duros juízos depreciativos contra o lumpemproletariado, que se deixara manobrar pelas forças reacionárias na França e na Alemanha revolucionárias. Em sua produção posterior, contudo, Marx emite um juízo mais científico, posicionando o lumpemproletariado como a camada da superpopulação relativa do exército industrial de reserva; e Engels chega a manifestar a crença na possibilidade de o lumpemproletariado acompanhar o proletariado na luta revolucionária – em especial após observar o protesto dos desempregados de Londres em fevereiro de 1886, dirigido pela Federação Social Democrática contra a campanha conservadora por tarifas protecionistas. ¹¹⁸ Marx. Miséria de Filosofia , p. 127. ¹¹⁹ Marx abordou ao longo do Livro I d’ O capital as diferenças quantitativas e qualitativas entre a pequena produção mercantil dos artesãos e a grande produção fabril dos capitalistas. Lênin, em diversas obras, também estabeleceu de modo bastante científico essa distinção (vide, por exemplo, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia ). O poder negro Plataforma e programa do Partido dos Panteras Negras. O que nós queremos. No que nós acreditamos. Por Huey Newton e Bobby Seale ¹²⁰ ¹. Queremos liberdade. Queremos o poder para determinar o destino de nossa comunidade negra. ¹²¹ Nós acreditamos que o povo negro não será livre até que nós sejamos capazes de determinar nosso destino. ¹²² ². Queremos pleno emprego para nosso povo. Nós acreditamos que o governo federal é responsável e obriga do a dar a cada homem emprego ou um rendimento garantido. Nós acreditamos que, se os empresários brancos ¹²³ americanos não nos dão pleno emprego, os meios de produção ¹²⁴ devem ser tomados dos empresários e colocados na comunidade, de modo que o povo da comunidade possa organizar e empregar todo o seu povo e dar-lhes uma vida de padrão elevado. ³. Queremos o fim do roubo de nossa comunidade negra pelo capitalista. Nós acreditamos que este governo racista tem nos roubado e agora nós demandamos a quitação do débito de quarenta acres ¹²⁵ e duas mulas. Quarenta acres e duas mulas foram prometidos cem anos atrás como restituição pelo trabalho escravo e assassinato em massa do povo negro.

Nós aceitaremos o pagamento em moeda corrente, que será distribuída às nossas muitas comunidades. Os alemães estão agora reparando os judeus em Israel pelo genocídio do povo judeu. Os alemães assassinaram ⁶ milhões de judeus. ¹²⁶ O racista americano tomou parte no massacre de mais de ⁵⁰ milhões de pessoas negras; por conseguinte, nós sentimos que fazemos uma demanda modesta. ⁴. Nós queremos moradia decente, adequada ao abrigo de seres humanos. Nós acreditamos que se os senhores de terra brancos ¹²⁷ não dão moradia decente para a nossa comunidade negra. Então a moradia e a terra devem ser transformadas em cooperativas, de modo que nossa comunidade, com auxílio governamental, possa construir e fazer moradias decentes para seu povo. ⁵. Nós queremos uma educação para nosso povo que exponha a verdadeira natureza da decadente sociedade americana. Queremos uma educação que nos ensine nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual. Nós acreditamos em um sistema educacional que dê ao nosso povo um conhecimento de si mesmo. Se um homem não tem o conhecimento de si mesmo e de sua posição na sociedade e no mundo, então tem pouca possibilidade de relacionar-se com qualquer outra coisa. ¹²⁸ ⁶. Nós queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar. ¹²⁹ Nós acreditamos que o povo negro não deve ser forçado a lutar no serviço militar para defender um governo racista que não nos protege. Nós não lutaremos contra e não mataremos os povos de cor ¹³⁰ no mundo, que, como o povo negro, estão sendo vitimizados pelo governo racista branco da América. Nós nos protegeremos da força e da violência da polícia racista e das forças armadas racista, por quaisquer meios necessários. ⁷. Nós queremos o fim imediato da brutalidade e do assassinato policial do povo negro. ¹³¹ Nós acreditamos que podemos acabar com a brutalidade da polícia em nossa comunidade negra por meio da organização de grupos negros de autodefesa que estejam dedicados a defender nossa comunidade negra da opressão e da brutalidade da polícia racista. A Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos confere o direito de portar armas. Nós, consequentemente, acreditamos que todo o povo negro deve se armar para a autodefesa. ¹³² ⁸. Nós queremos liberdade para todos os homens pretos mantidos em prisões e cadeias federais, estaduais e municipais. ¹³³ Nós acreditamos que todas as pessoas negras devem ser libertadas das muitas cadeias e prisões, porque elas não receberam um julgamento justo e imparcial. ⁹. Nós queremos que todas as pessoas negras, quando trazidas a julgamento, sejam julgadas na corte por um júri de pares do seu grupo ou por pessoas de

suas comunidades negras, como definido pela Constituição dos Estados Unidos. ¹³⁴ Nós acreditamos que as cortes devem seguir a Constituição dos Estados Unidos, de modo que as pessoas negras recebam julgamentos justos. A 14a Emenda da Constituição dos Estados Unidos dá a um homem o direito de ser julgado pelo grupo de seus pares. Um par é uma pessoa oriunda de um plano de fundo econômico, social, religioso, geográfico, ambiental, histórico e racial similar. Para fazê-lo, a corte será forçada a selecionar um júri da comunidade negra da qual o réu negro veio. Nós temos sido e estamos sendo julgados por júris só de brancos que não têm nenhuma compreensão “do raciocínio do homem médio” da comunidade negra. ¹⁰. Nós queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz. ¹³⁵ Quando, no curso dos eventos humanos, torna-se necessário para um povo dissolver os elos políticos que os conectaram com um outro e assumir, entre os poderes da terra, a posição separada e igual à qual as leis da natureza e do Deus da natureza lhes dão direito, um respeito decente pelas opiniões da humanidade exige que eles devam declarar as causas que os impelem à separação. Consideramos essas verdades como autoevidentes, de que todos os homens são criados iguais; que eles são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis; entre eles estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que, para garantir esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torna destrutiva para esses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, apoiando a sua fundação em tais princípios e organizando seus poderes de uma forma tal que lhes parece mais provável a efetivação de sua segurança e felicidade. A prudência, de fato, ditará que os governos estabelecidos há muito tempo não devam ser mudados por causas leves e transitórias; e, consequentemente, toda a experiência mostrou que a humanidade está mais disposta a sofrer, quando os males são sofríveis, do que a se corrigir abolindo as formas às quais está acostumada. Mas, quando um longo cortejo de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, evidencia um desígnio de reduzi-la sob despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, rejeitar esse governo e fornecer nova guarda à sua segurança futura. ¹²⁰ Escrito em 15 de outubro de 1966, esse documento seria publicado apenas em 15 de maio de 1967, na segunda edição do jornal O Pantera Negra , o veículo semanal do Partido. Mais tarde, seria referido simplesmente como o “Programa de dez pontos”. Em 1972, por influência de Huey P. Newton, o Partido passa a revindicar sua teoria do intercomunalismo. Essa mudança implica em uma série de alterações ao documento programático, indicadas na presente edição por meio de notas de rodapé. ¹²¹ Na edição de ¹⁹⁷², a redação passa a tratar das comunidades e povos “negros e oprimidos”, não mais apenas negros.

¹²² Na edição de 1972, ao fim do ponto, a frase é complementada por “em nossas comunidades por nós mesmos, mediante o controle pleno de todas as instituições que existem em nossas comunidades”. ¹²³ Na edição de 1972, a palavra “brancos” é suprimida. ¹²⁴ Na edição de 1972, “a tecnologia e os meios de produção”. ¹²⁵ Quarenta acres de terra correspondem a 161.874 m². ¹²⁶ Na edição de 1972, as três frases a respeito de alemães e judeus são suprimidas. ¹²⁷ Na edição de 1972, a palavra “brancos” foi suprimida, além de se fazer menção às “comunidades negras e oprimidas”. ¹²⁸ Na edição de 1972, o final da frase é alterado para “pouca possibilidade de saber qualquer outra coisa”. ¹²⁹ Na edição de 1972, todo o ponto 6 é alterado, passando a constar: “Nós queremos um serviço de saúde completamente gratuito para todos os negros e povos oprimidos. Nós acreditamos que o governo deva fornecer, sem qualquer encargo, instalações de saúde para o povo, que não apenas tratem nossas doenças, muitas das quais resultantes de nossa opressão, mas que também desenvolvam programas médicos preventivos para garantir nossa sobrevivência futura. Nós acreditamos que a educação em saúde massiva e programas de pesquisa devam ser desenvolvidos para dar a todos os negros e povos oprimidos acesso aos avanços científicos e à informação médica, de modo que possamos providenciar para nós mesmos cuidados e atenção médicas apropriadas.” ¹³⁰ Considerado no Brasil um eufemismo para designar o povo negro, a expressão “de cor”, nos Estados Unidos, é compreendida como uma expressão correta para designar os povos não brancos. ¹³¹ Na edição de 1972, são acrescentados ao fim da frase “outros povos de cor e todos povos oprimidos no interior dos Estados Unidos”. ¹³² Na edição de ¹⁹⁷², o ponto é alterado, passando a apresentar a seguinte redação: “Nós acreditamos que o governo racista e fascista dos Estados Unidos utiliza suas agências domésticas de aplicação [da lei] para levar a cabo os seus programas de opressão contra o povo negro, outros povos de cor e povos pobres dentro dos Estados Unidos. Nós acreditamos que é nosso direito, por conseguinte, defender a nós mesmos contra tais forças armadas, e que todos os negros e povos oprimidos devam estar armados para a autodefesa de nossos lares e comunidades contra essas forças policiais fascistas”. ¹³³ Na edição de 1972, todo o ponto 8 é alterado, passando a constar: “Nós queremos o fim imediato de todas as guerras de agressão. Acreditamos que os vários conflitos existentes em todo o mundo decorrem diretamente do desejo agressivo do círculo dominante e do governo dos Estados Unidos de forçar seu domínio sobre os povos oprimidos do mundo. Acreditamos que, se

o governo dos Estados Unidos ou seus lacaios não cessarem essas guerras de agressão, é direito do povo defender a si mesmo por qualquer meio necessário contra seus agressores”. ¹³⁴ Na edição de 1972, todo o ponto 9 é alterado, passando a constar: “Nós queremos liberdade para todas as pessoas negras e oprimidas mantidas em prisões e cadeias federais, estaduais, dos condados, municipais e militares. Queremos julgamentos por um júri de pares para todas as pessoas acusadas de assim chamados crimes sob a lei deste país. Acreditamos que os muitos negros e povos pobres oprimidos atualmente detidos nas prisões e cadeias dos Estados Unidos não receberam julgamentos justos e imparciais sob um sistema judicial racista e fascista e devam ser libertadas do encarceramento. Acreditamos na eliminação definitiva de todas as instituições penais desgraçadas, desumanas, porque as massas de homens e mulheres encarcerados dentro dos Estados Unidos ou pelas forças armadas dos Estados Unidos são vítimas de condições opressivas que são a verdadeira causa de seu aprisionamento. Acreditamos que, quando as pessoas são levadas a julgamento, elas devem ter a garantia, pelos Estados Unidos, de júris de seus pares, advogados de sua escolha e liberdade da prisão enquanto aguardam julgamento”. ¹³⁵ Na edição de 1972, ao fim do ponto, a frase é complementada por “e controle comunitário da tecnologia moderna”. Regras do Partido dos Panteras Negras Por Huey P. Newton e Bobby Seale ¹³⁶ Todo membro do Partido Pantera Negra em toda extensão deste país da América racista deve cumprir estas regras como membros funcionais. Membros do Comitê Central, Equipes Centrais e Equipes Locais, incluindo todos os capitães subordinados à liderança nacional, estadual e local do Partido Pantera Negra, aplicarão essas regras. A duração da suspensão ou outra ação disciplinar necessária ante a violação destas regras dependerão de decisões nacionais para comitês ou equipes nacional, estaduais ou regionais e locais em que a regra ou as regras do Partido Pantera Negra tenham sido violadas. Todo membro do Partido deve conhecê-las palavra por palavras de cor. E aplicá-las diariamente. Cada membro deve relatar qualquer violação destas regras à sua liderança ou eles serão considerados contrarrevolucionários e também estarão sujeitos à suspensão pelo Partido dos Panteras Negras. As regras são: ¹. Nenhum membro do Partido pode possuir narcóticos ou maconha enquanto estiver realizando o trabalho partidário. ². Qualquer membro encontrado utilizando narcótico será expulso do Partido. ³. Nenhum membro pode estar bêbado enquanto estiver realizando o trabalho diário do Partido.

⁴. Nenhum membro do Partido violará, em qualquer lugar, regras relacionadas ao trabalho em unidades administrativas, assembleias gerais e reuniões do Partido dos Panteras Negras. ⁵. Nenhum membro do Partido usará, apontará ou disparará uma arma de qualquer tipo desnecessariamente ou acidentalmente contra alguém. ⁶. Nenhum membro do Partido pode se juntar a nenhuma outra força armada que não o Exército de Libertação Negra. ⁷. Nenhum membro do Partido pode ter uma arma em sua posse enquanto estiver bêbado ou carregado com narcóticos ou maconha. ⁸. Nenhum membro do partido pode cometer quaisquer crimes contra outros membros do partido ou qualquer pessoa negra nem pode roubar ou tirar do povo, sequer uma agulha ou um pedaço de linha. ⁹. Quando presos, os membros dos Panteras Negras darão apenas nome e endereço e não assinarão nada. Os primeiros socorros legais devem ser entendidos por todos os membros do Partido. ¹⁰. O programa de dez pontos e a plataforma do Partido dos Panteras Negras devem ser conhecidos e compreendidos por cada membro do partido. ¹¹. Os comunicados do partido devem ser nacionais e locais. ¹². O programa ¹⁰-¹⁰-¹⁰ ¹³⁷ deve ser conhecido e entendido por todos os membros. ¹³. Todos os secretários de Finanças operarão sob a jurisdição do Ministério das Finanças. ¹⁴. Cada pessoa enviará um relatório do trabalho diário. ¹⁵. Cada líder de subseção, líder de seção, tenente e capitão deve fornecer relatórios diários do trabalho. ¹⁶. Todos os Panteras devem aprender a operar e realizar a manutenção de armas corretamente. ¹⁷. Todo membro de liderança que expulsar um membro deverá submeter esta informação ao editor do jornal, para que seja publicado no periódico e seja de conhecimento de todas as seções e células. ¹⁸. Aulas de educação política são obrigatórias em geral para a adesão como membro. ¹⁹. Apenas membros da administração, designados para suas respectivas unidades a cada dia, devem estar lá. Todos os outros devem vender jornais e realizar trabalho político na comunidade, incluindo capitães, líderes de seção etc. ²⁰. Comunicações – todas as seções devem submeter relatórios semanais por escrito à sede nacional.

²¹. Todas as células devem implementar primeiros socorros e/ou auxílio médico. ²². Todas as seções, células e componentes do Partido dos Panteras Negras devem apresentar um relatório financeiro mensal ao Ministério de Finanças e também ao Comitê Central. ²³. Todos em posição de liderança devem ler não menos que duas horas por dia para se manter a par da situação política em  transformação. ²⁴. Nenhuma seção ou célula deve aceitar doações, fundos de pobreza, dinheiro ou qualquer outra ajuda de qualquer agência governamental sem consultar a sede nacional. ²⁵. Todas as seções devem aderir à política e à ideologia estabelecidas pelo Comitê Central do Partido dos Panteras Negras. ²⁶. Todas as células devem apresentar relatórios semanais por escrito às suas seções filiais. Oito pontos de atenção ¹. Fale educadamente. ². Pague o justo pelo que comprar. ³. Devolva tudo que tomar emprestado. ⁴. Pague por qualquer coisa que danificar. ⁵. Não agrida ou xingue as pessoas. ⁶. Não danifique a propriedade ou colheita das massas pobres e oprimidas. ⁷. Não tome liberdades com as mulheres. ⁸. Se alguma vez tivermos que tomar prisioneiros, não os maltrate. Três regras principais de disciplina ¹. Obedeça ordens em todas as suas ações. ². Não tome uma única agulha ou pedaço de linha das massas pobres e oprimidas. ³. Entregue tudo o que for capturado do inimigo em confronto. ¹³⁶ Escrito em 15 de outubro de 1966, esse documento seria publicado apenas em 15 de maio de 1967, na segunda edição do jornal O Pantera Negra , o veículo semanal do Partido. ¹³⁷ O chamado Programa 10-10-10 era, na verdade, uma metodologia: um militante deveria organizar dez pessoas em uma área de dez quadras, para que cada uma destas passasse a organizar um grupo semelhante de dez pessoas, e assim exponencialmente.

O manejo correto de uma revolução Por Huey P. Newton ¹³⁸ A maioria do comportamento humano é comportamento aprendido. A maior parte das coisas que o ser humano aprende é obtida por meio de uma relação indireta com o objeto. Os humanos não agem a partir do instinto como o fazem os animais inferiores. Essas coisas aprendidas indiretamente muitas vezes estimulam respostas muito efetivas para aquilo que pode ser, depois, uma experiência direta. Neste momento, as massas negras estão manejando a resistência incorretamente. Quando os irmãos em East Oakland, tendo aprendido com Watts ¹³⁹ um método de luta de resistência, mobilizando o povo nas ruas, jogando tijolos e coquetéis molotov para destruir propriedades e criar distúrbios, eles foram arrebanhados em uma pequena área pela polícia Gestapo e imediatamente contidos pela violência brutal das tropas de choque do opressor. Ainda que esse modo de resistência seja esporádico, de curta duração e custoso, ele foi transmitido através do país para todos os guetos da nação negra. A identidade do primeiro homem que jogou um coquetel molotov não é conhecida pelas massas, mas ainda assim elas respeitam e imitam sua ação. Da mesma forma, as ações do Partido serão imitadas pelo povo – se o povo respeitar estas atividades. A principal tarefa do partido é fornecer liderança para o povo. Deve ensinar por palavras e ação os métodos estratégicos corretos de resistência prolongada. Quando o povo aprender que não é mais vantajoso para si resistir indo para as ruas em grandes números, e quando ver a vantagem nas atividades do método da guerra de guerrilha, irá rapidamente seguir este exemplo. Mas, primeiramente, ele deve respeitar o partido que está transmitindo esta mensagem. Quando o grupo de vanguarda destruir a maquinaria do opressor lidando com este em pequenos grupos de três e quatro e então escapar da força do opressor, as massas irão se impressionar e se tornarão mais propensas a aderir a esta estratégia correta. Quando as massas ouvirem que um policial Gestapo foi executado enquanto tomava seu café na esquina e que os executores revolucionários fugiram sem deixar rastro, as massas verão a validade deste tipo de resistência. Não é necessário organizar 30 milhões de pessoas negras em grupos primários de dois ou três, mas é importante para o partido mostrar ao povo como encenar uma revolução. Durante a escravidão, em que nenhum partido de vanguarda existia e as formas de comunicação eram severamente restritas e insuficientes, muitas revoltas de escravos aconteceram. Existem três formas pelas quais alguém pode aprender: por meio do estudo, da observação e da experiência. A comunidade negra é composta basicamente por ativistas. A comunidade aprende pela atividade, seja pela observação da ou participação na atividade. Aprender pelo estudo é bom,

mas aprender pela prática é o melhor modo de aprender. O partido deve se engajar em atividades que ensinarão ao povo. A comunidade negra é basicamente uma comunidade que não lê. Por conseguinte, é muito significativo que o grupo de vanguarda seja, em primeiro lugar, ativista. Sem esse conhecimento da comunidade negra, uma revolução negra na América racista é impossível. A principal função do partido é despertar o povo e ensiná-lo o método estratégico de resistir à estrutura de poder, que é preparada não apenas para combater a resistência do povo com brutalidade massiva, mas para também aniquilar completamente a população negra. Se a estrutura de poder descobrir que o povo negro possui um número “x” de armas, esta informação não estimulará a estrutura de poder a se preparar com armas, ela já está preparada. O resultado final desta educação revolucionária será positivo para o povo negro em sua resistência e negativa para a estrutura de poder em sua opressão, porque o Partido sempre exemplifica o desafio revolucionário. Se o Partido não torna o povo ciente das ferramentas e métodos de libertação, não haverá meios pelos quais o povo possa se mobilizar. A relação entre o partido de vanguarda e as massas é uma relação secundária. A relação entre os membros do partido de vanguarda é uma relação principal. Para que a maquinaria do Partido seja eficaz, é importante que os membros mantenham uma relação cara a cara uns com os outros. É impossível agregar uma maquinaria partidária funcional ou programas sem esta relação direta. Para minimizar o perigo dos Pais Tomás ¹⁴⁰ informantes e oportunistas, os membros do grupo de vanguarda devem ser revolucionários provados. O principal propósito da vanguarda deve ser elevar a consciência das massas graças a programas educacionais e outras atividades. As massas dormentes devem ser bombardeadas com a correta abordagem para a luta mediante a atividade do partido de vanguarda. Portanto, as massas devem saber que o Partido existe. O Partido deve usar todos os meios disponíveis para fazer com que estas informações se disseminem para as massas. Se as massas não têm conhecimento do Partido, então será impossível que sigam seu programa.  Um partido de vanguarda nunca é clandestino no começo de sua existência; isto limitaria sua efetividade e seus objetivos educativos. Como se pode educar o povo se o povo não o conhece e não o respeita? O partido deve existir abertamente enquanto a estrutura de poder dos cães permitir e, com alguma esperança, quando for forçado a submergir para a clandestinidade, sua mensagem já terá se espalhado pelo povo. As atividades do partido de vanguarda na legalidade terão, necessariamente, vida curta. Assim, o partido deve causar um tremendo impacto sobre o povo antes de ser levado à clandestinidade. Aí, então, o povo saberá que ele existe e buscará mais informações sobre suas atividades caso seja forçado aos subterrâneos. Muitas pessoas que posam de revolucionárias trabalham sob a noção falaciosa de que o partido de vanguarda deve ser uma organização secreta sobre a qual a estrutura de poder e as massas nada sabem, exceto por

algumas cartas ocasionais que chegam às suas casas de noite. Partidos clandestinos não podem distribuir panfletos anunciando uma reunião clandestina. Tais contradições e inconsistências não são reconhecidas pelos assim chamados revolucionários. Eles, na verdade, estão com tanto medo do próprio perigo que pedem ao povo que confronte. Os assim chamados revolucionários querem que o povo diga o que eles mesmos têm medo de dizer, que faça o que eles mesmos têm medo de fazer. Esse tipo de revolucionário é um covarde e um hipócrita. Um verdadeiro revolucionário sabe que, se ele é sincero, a morte é iminente. As coisas que ele está dizendo e fazendo são extremamente perigosas. Sem esta percepção, é inútil prosseguir como um revolucionário. Se estes impostores investigassem a história da revolução, veriam que o grupo de vanguarda sempre começa com o trabalho aberto e é levado para a clandestinidade pelo agressor. A Revolução Cubana é um exemplo: quando Fidel Castro começou a resistir ao carniceiro Batista e aos cães estadunidenses, começou falando publicamente no campus da Universidade de Havana. Posteriormente, foi levado para as montanhas. Seu impacto sobre o povo despossuído de Cuba foi tremendo e seus ensinamentos eram recebidos com muito respeito. Quando se escondeu, o povo cubano procurou por ele, indo às montanhas para encontrá-lo e a seu bando de doze. Castro manejou a luta revolucionária corretamente e, se a Revolução Chinesa for investigada, se verá que o Partido Comunista atuava bastante abertamente a fim de angariar o apoio das massas. Existem muitos mais exemplos de vitoriosas lutas revolucionárias das quais podemos aprender a abordagem correta: a Revolução no Quênia, a Revolução Argelina discutida por Fanon em Os condenados da Terra , a Revolução Russa, as obras do presidente Mao Tsé-Tung e muitas outras. As massas estão constantemente procurando por um guia, um Messias, que as liberte das mãos dos opressores. O partido de vanguarda deve exemplificar as características de uma liderança digna. Milhões e milhões de pessoas oprimidas podem não conhecer os membros do partido de vanguarda pessoalmente, mas tomarão conhecimento das suas atividades e a sua correta estratégia para a libertação por meio de um conhecimento indireto fornecido pela mídia de massas. Mas não é suficiente confiar na mídia da estrutura de poder; é de importância primordial que o partido de vanguarda desenvolva seus próprios órgãos de comunicação, tais como um jornal produzido pelo partido e, ao mesmo tempo, forneça a arte revolucionária estratégica e a destruição da maquinaria do opressor. Por exemplo: em Watts, a economia e a propriedade do opressor foram destruídas de tal maneira que não importava o quanto o opressor tentasse apagar as atividades dos irmãos negros por meio da imprensa, a natureza real e a causa real da atividade foram comunicadas a cada comunidade negra. E não importa o quanto o opressor tentasse, em sua própria mídia, distorcer e confundir a mensagem do irmão Stokely Carmichael, o povo negro por todo o país a compreendeu perfeitamente e a acolheu com prazer. O Partido dos Panteras Negras para Autodefesa ensina que, em última análise, as armas, granadas de mão, bazucas e outros equipamentos necessários para a defesa devem ser supridos pela estrutura de poder. Como

ensina o exemplo dos vietcongs , essas armas devem ser tomadas do opressor. Por conseguinte, quanto maior a preparação militar por parte do opressor, maior a disponibilidade de armas para a comunidade negra. Alguns hipócritas acreditam que, quando o povo for ensinado pelo grupo de vanguarda a se preparar para a resistência, isto apenas trará “os homens” contra o povo com maior violência e brutalidade; mas o fato é que, quando o homem se torna mais opressor, apenas eleva o fervor revolucionário. Então, se as coisas ficarem pior para os povos oprimidos, estes sentirão a necessidade da revolução e da resistência. O povo faz a revolução; os opressores, a partir de suas ações brutais, causam a resistência pelo povo. O partido de vanguarda apenas ensina os métodos corretos de resistência. A reclamação dos hipócritas de que o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa está expondo o povo a maiores sofrimentos é uma observação incorreta. Pelas rebeliões nas comunidades negras por todo o país, o povo provou que não tolerará mais nenhuma opressão dos cães policiais racistas. O povo procura agora por uma direção para ampliar e fortalecer sua luta de resistência. O partido de vanguarda exemplifica as características que os tornam dignos de liderança. ¹³⁸ Publicado em sua coluna “Em defesa da autodefesa” no jornal O Pantera Negra , em 20 de julho de 1967. ¹³⁹ Os chamados Tumultos de Watts, ocorridos em Los Angeles, Califórnia, entre 11 e 15 de agosto de 1965, tiveram início em decorrência dos abusos policiais sofridos por Marquette Frye, um homem negro estadunidense de 21 anos parado pela polícia sob a alegação de dirigir embriagado. As cifras dos distúrbios somam 34 mortes, 1.032 feridos, 3.438 detidos, 977 edificações danificadas, queimadas, saqueadas e/ou atacadas e mais de 40 milhões de dólares em danos materiais. Mais de 13 mil soldados foram mobilizados para conter a revolta, com a aplicação da lei marcial e do toque de recolher. ¹⁴⁰ Referência à obra A cabana do Pai Tomás [Uncle Tom’s Cabin], de Harriet Beecher Stowe, que representa Pai Tomás como um homem negro condescendente e infantilizado, subserviente em relação aos brancos. Corrigindo ideias errôneas Por Wilford Holliday, a.k.a. Capitão Crutch ¹⁴¹ Existem várias ideias adversas dentro do Partido dos Panteras Negras, no Exército de Libertação Negra, que entravam a aplicação da correta ideologia do Partido. Mas a não ser que estas ideias sejam plenamente corrigidas, o Exército de Libertação Negra, provavelmente, não poderá assumir as tarefas atribuídas para a grande luta revolucionária da América Negra. A fonte de tais ideias incorretas está no fato de que o Partido é majoritariamente composto por pretos das ruas do gueto, junto com elementos da pequena burguesia preta. Os líderes do Partido, no entanto, falham em travar uma luta determinada e planejada contra tais ideias incorretas e em educar (e reeducar) os membros na ideologia correta do Partido – que também é uma importante causa de sua existência e crescimento. Portanto, devo tentar ajudar a apontar algumas manifestações

de várias ideologias incorretas dentro do Partido. E conclamo todos os seus membros a ajudar na eliminação completa das ideias errôneas e métodos incorretos. ¹) O ponto de vista puramente militar é altamente desenvolvido entre alguns poucos membros: a) Alguns membros do Partido consideram os assuntos militares e políticos como opostos entre si, e se recusam a reconhecer que os assuntos militares são apenas um dos meios de realizar as tarefas políticas; b) Não compreendem que o Partido dos Panteras Negras é um corpo armado para levar a cabo as tarefas políticas da revolução. Não devemos nos confinar apenas aos combates. Mas devemos também assumir importantes tarefas como realizar propaganda entre o povo, organizar o povo, armar o povo e os auxiliá-lo a estabelecer um poder político revolucionário para o povo negro. Sem estes objetivos, o combate perde seu significado, e o Partido dos Panteras Negras perde sua razão de existir; c) Ao mesmo tempo, no trabalho de propaganda, negligenciam a importância dos grupos de propaganda. Também negligenciam a organização das massas. Portanto, tanto a propaganda quanto o trabalho organizacional são abandonados; d) Eles ficam convencidos quando ganham uma batalha e abatidos quando a perdem; e) Burocratismo egoísta: eles pensam apenas no Partido dos Panteras Negras e não percebem que uma importante tarefa do Exército de Libertação Negra é armar as massas locais. Isso é sectarismo ¹⁴² em uma forma ampliada; f) Incapacidade de ver além do ambiente limitado de dentro do Partido dos Panteras Negras. Declarações tais quais “nós, os Panteras de San Francisco”, “nós, os Panteras de Nova York” etc. Eles têm que perceber que os Panteras são todos a mesma coisa. Além disso, alguns Panteras também acreditam que não existe nenhuma outra força revolucionária. Consequentemente, o enorme vício em conservar a força e evitar ação. Isto é uma remanescência de oportunismo; g) Alguns Panteras, desconsiderando condições objetivas e subjetivas, sofrem do mal da impetuosidade revolucionária; não assumirão as dores de fazer um trabalho minucioso e planificado entre as massas. Não querem distribuir panfletos, vender jornais etc. Essas coisas parecem pequenas, ainda que sejam bastante importantes. Ainda assim, estão crivados de ilusões e querem fazer apenas grandes coisas. Isto é resquício de putschismo. ¹⁴³ As fontes do ponto de vista puramente militar são: ¹) Um baixo nível político;

²) A mentalidade de mercenários; ³) Uma confiança excessiva na força militar e uma ausência de confiança na força das massas do povo. Isso surge dos últimos três pontos. Os métodos de correção são os seguintes: ¹) Elevar o nível político do Partido por meio da educação. Ao mesmo tempo, eliminar os resquícios de oportunismo e putschismo , e desmantelar o burocratismo egoísta; ²) Intensificar o treinamento político dos oficiais e militantes. Selecionar trabalhadores e pessoas experientes na luta para entrar no Partido, enfraquecendo organizacionalmente ou até mesmo erradicando, assim, o ponto de vista puramente militar; ³) O Partido deve ativamente realizar e discutir o trabalho militar; ⁴) Elaborar regras e regulamentações partidárias que claramente definam suas tarefas, a relação entre seu aparato militar e seu aparato político e a relação entre o Partido e as massas do povo. ¹⁴¹ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 26 de outubro de 1968. ¹⁴² No original, cliquism , “espírito de clique”, sendo a palavra “clique” trazida para o inglês do francês, significando um grupo exclusivista, ensimesmado – daí nossa opção pela tradução como sectarismo, em referência à noção marxista do “espírito de seita” como desvio organizativo. ¹⁴³ Termo da literatura política, em especial marxista, originado da palavra alemã putsch , golpe. O termo diz respeito ao aventureirismo de um pequeno grupo de conspiradores que busca levar a cabo um golpe de Estado. Sobre o anarquismo Por Huey P. Newton ¹⁴⁴ Deveríamos entender que há uma diferença entre a rebelião dos anarquistas e a revolução ou libertação negra da colônia negra. Esta é uma sociedade de classes; sempre foi. Essa sociedade reacionária de classes impõe limitações aos indivíduos, não apenas em termos de sua ocupação, mas também no que diz respeito à autoexpressão, à mobilidade e a ser livre para ser realmente criativo e fazer o que quiser. A sociedade de classes impede isso. Isso é verdade não apenas para a massa da classe inferior ou subjugada. Também é verdade dentro da classe dominante, a classe mestra. Essa classe também limita a liberdade das almas individuais das pessoas que a compõem.

Nos Estados Unidos, nós temos não apenas uma sociedade de classes, também temos um sistema de castas, e o povo negro está inserido na casta mais baixa. Ele não tem mobilidade para subir a escada das classes. Ele não tem, em absoluto, o privilégio de entrar na estrutura dominante. No interior da classe dominante, estão objetando (resistindo?), porque o povo descobriu que está completamente sujeito à vontade da administração e aos manipuladores. Isto traz à tona um fenômeno muito estranho na América, qual seja, muitos dos estudantes brancos se rebelando, e os anarquistas são os rebentos desta classe alta. Certamente a maioria deles tem um plano de fundo de classe média e alguns até de classe alta. Eles veem as limitações impostas a eles e agora estão lutando, como todos os homens lutam, para obter liberdade de alma, liberdade de expressão e liberdade de movimento sem as limitações artificiais dos valores antigos. Negros e povos de cor na América, confinados no interior do sistema de castas, sofrem discriminação conjuntamente. Não é uma questão de liberdade individual, como é para os filhos das classes altas. Não chegamos ao ponto de tentar nos libertar individualmente, porque somos dominados e oprimidos como um grupo de pessoas. Parte do povo deste país – uma grande parte – pertence à juventude. Mas não como um grupo de pessoas, porque, como grupo, já são livres até certo ponto. O problema deles não é realmente um problema de grupo, porque podem se integrar facilmente à estrutura. Potencialmente, são móveis o suficiente para fazê-lo: são os instruídos, o “futuro do país” e assim por diante. Eles podem realmente ganhar uma certa quantidade de poder sobre a sociedade, integrando-se ao círculo governante. Mas eles veem que, mesmo dentro do círculo governante, ainda existem valores antigos que não têm qualquer respeito pelo individualismo. Eles se veem subjugados. Não importa em que classe estejam, eles se veem subjugados por causa da natureza dessa sociedade de classes. Portanto, a luta deles é para libertar a alma do indivíduo. Isso nos leva a outro problema. Eles estão sendo governados por uma fonte alienígena que não tem nada a ver com a liberdade de expressão individual. Eles querem escapar disso, derrubar isso, mas não veem necessidade de formar uma estrutura ou um movimento de vanguarda real e disciplinado. O raciocínio deles é que, ao estabelecer uma organização disciplinada, eles sentem que estão substituindo a estrutura antiga por outras limitações. Eles temem estar se preparando para dirigir as pessoas, limitando, portanto, o indivíduo novamente. Mas o que eles não entendem, ou parece que não entendem, é que, enquanto o complexo industrial-militar existir, a estrutura de opressão do indivíduo continuará. Um indivíduo estaria ameaçado, mesmo que conseguisse a liberdade que está buscando. Ele seria ameaçado porque haveria um grupo inferior organizado pronto para tirar sua liberdade individual a qualquer momento. Em Cuba, eles tiveram uma revolução, tinham um grupo de vanguarda que era um grupo disciplinado e perceberam que o Estado não desaparecerá até

que o imperialismo seja completamente aniquilado, estrutural e filosoficamente, ou então os pensamentos burgueses não serão modificados. Uma vez que o imperialismo seja exterminado, eles poderão ter seu estado comunista e as fronteiras estatais ou territoriais desaparecerão. Nesse país, os anarquistas parecem sentir que, se eles apenas se expressarem individualmente e tenderem a ignorar as limitações que lhes são impostas, sem liderança e sem disciplina, poderão se opor ao Estado reacionário, muito disciplinado e organizado. Isso não é verdade. Eles serão oprimidos enquanto existir o imperialismo. Você não pode se opor a um sistema como este sem opor-lhe uma organização ainda mais extremamente disciplinada e dedicada do que a estrutura à qual você se opõe. Posso entender os anarquistas desejarem ir diretamente de Estado para não Estado, mas historicamente isso é incorreto. No que me diz respeito, pensando na recente revolução francesa, ¹⁴⁵ a razão pela qual a revolta francesa fracassou é simplesmente porque os anarquistas do país, que por definição não tinham organização, não tinham pessoas que fossem confiáveis o suficiente, no que dizia respeito à massa do povo, para substituir De Gaulle e seu governo. Agora, o povo estava cético em relação ao Partido Comunista e aos outros partidos progressistas, porque estes não ladearam com o povo de vida média. Eles ficaram para trás do povo, então perderam seu respeito, e o povo procurou orientação dos estudantes e anarquistas. Mas os anarquistas não conseguiram oferecer um programa estrutural para substituir o governo De Gaulle. Então, o povo foi forçado a voltar para De Gaulle. Não foi culpa do povo, foi culpa de Cohn-Bendit e de todos os outros anarquistas que sentiram que podiam simplesmente passar de Estado para não  Estado. Neste país – voltando para casa na América do Norte, agora – podemos ladear com os radicais estudantis. Tentarmos encorajá-los e convencê-los a se organizarem e soldarem uma ferramenta de corte afiada. Para fazê-lo, eles teriam que ser disciplinados e deveriam ter, pelo menos, alguma substituição filosófica do sistema. Não quer dizer que isso, por si só, liberte o indivíduo. O indivíduo não estará livre até que o Estado não exista em absoluto e acho – não quero ser redundante – que este não pode ser substituído pelos anarquistas imediatamente. No que diz respeito aos negros, não estamos obcecados em tentar atualizar ou expressar nossas almas individuais, porque somos oprimidos não como indivíduos, mas como todo um grupo de pessoas. Nossa evolução, ou nossa libertação, baseia-se primeiro em libertar nosso grupo, libertando-o até um certo grau. Depois de obtermos nossa libertação, nosso povo não será livre. Posso imaginar no futuro que os negros se rebelarão contra a liderança organizada que os próprios negros estruturaram. Eles verão que haverá limitações, limitando seu eu individual e limitando sua liberdade de expressão. Mas isso somente depois que eles se tornarem livres como grupo. É isso que torna nosso grupo diferente dos anarquistas brancos: eles veem seu grupo como livre já, e agora lutam pela própria liberdade individual. Essa é a grande diferença. Não estamos lutando pela liberdade de nós

mesmos, estamos lutando pela liberdade de um grupo. No futuro, provavelmente, haverá uma rebelião em que os negros dirão: “Bem, nossa liderança está limitando nossa liberdade por causa da disciplina rígida. Agora que conquistamos nossa liberdade, lutaremos por nossa liberdade individualista, que não tem nada a ver com um grupo ou Estado organizado”. E o grupo será desorganizado, e deverá sê-lo. Mas, neste momento, enfatizamos a disciplina, enfatizamos a organização, não enfatizamos as drogas psicodélicas e todas as outras coisas que têm a ver apenas com a expansão individual da mente. Estamos tentando obter a verdadeira libertação de um grupo de pessoas, e isso torna a nossa luta um pouco diferente daquela dos brancos. Ora, no que é semelhante? É semelhante no fato de que nós dois estamos lutando pela liberdade. Eles não serão livres – os anarquistas brancos não serão livres – até que estejamos livres, o que torna nossa luta uma luta realmente sua. Os imperialistas e o sistema capitalista burocrático burguês não lhes dariam liberdade individual enquanto mantivessem todo um grupo de pessoas, com base na raça ou cor, oprimidas como grupo. Como eles podem esperar obter liberdade individual quando os imperialistas oprimem nações inteiras? Até obtermos a libertação como grupo, eles não obterão nenhuma libertação como pessoas individuais. Portanto, isso torna nossa luta a mesma, e devemos manter isso em perspectiva e sempre ver as semelhanças e as diferenças. Há diferenças tremendas e há uma semelhança entre os dois casos. Ambos estão lutando pela liberdade e ambos estão lutando para a libertação de seu povo, apenas um está avançado, em um grau superior ao outro. Os anarquistas estão avançados um passo acima, mas apenas na teoria. No que diz respeito à realidade das condições, eles não deveriam estar avançados acima, porque deveriam ver a necessidade de a estrutura imperialista ser varrida por grupos organizados, bem como que devemos estar organizados. ¹⁴⁴ Publicado em sua coluna “Em defesa da autodefesa” no jornal O Pantera Negra , em 16 de novembro de 1968. ¹⁴⁵ Referência às manifestações francesas de 1968. Sobre o nacionalismo cultural Por Linda Harrison ¹⁴⁶ O nacionalismo cultural é reconhecido por muitos que pensam de uma maneira revolucionária como um estágio distinto e natural pelo qual alguém passa a fim de se tornar um revolucionário. Esse não é sempre o caso, e muitas pessoas permanecem no nível do nacionalismo cultural por toda sua vida. Nos Estados Unidos, o nacionalismo cultural pode ser resumido nas palavras de James Brown: “Sou negro e tenho orgulho ”. O nacionalismo cultural se manifesta de muitas maneiras, mas todas essas manifestações estão essencialmente baseadas em um fato: uma negação e uma ignorância universal das atuais realidades políticas, sociais e econômicas e uma concentração no passado como quadro de referência.

Esse fenômeno não é único a esse estágio da revolução no qual nos encontramos nem é específico da luta por liberdade dos “cidadãos” negros dos Estados Unidos. Frantz Fanon, em Os condenados da Terra , disse, sobre esse fenômeno, que “Não há ofensiva, não há redefinição das relações. Há crispação num núcleo cada vez mais estreito, cada vez mais inerte, cada vez mais vazio.”. ¹⁴⁷ Aqueles que acreditam na teoria do “sou negro e orgulhoso” acreditam que existe uma dignidade inerente em deixar o cabelo ao natural, que um bùbá ¹⁴⁸ faz de um escravo um homem e que uma linguagem comum, o swahili , faz com que todos nós sejamos irmãos. Essas pessoas normalmente querem uma cultura enraizada na cultura africana, uma cultura que ignore a colonização e a brutalização que foram parte e parcela, por exemplo, da formação e do surgimento da língua swahili . Em outras palavras, o nacionalismo cultural ignora o político e o concreto e se concentra no mito e na fantasia. Um homem que vive sob a escravidão e qualquer uma de suas extensões raramente recupera sua dignidade rejeitando as roupas de seu escravizador; ele raramente recupera a sua dignidade exceto por um confronto em pé de igualdade com seu escravizador. Todo homem pode morrer, e essa é a única coisa que os torna iguais. Sob muitos sistemas, aqueles com dinheiro morrem menos frequentemente. Qualquer confronto que dê ao homem, não importa sua posição econômica e social, uma chance igual de morrer sob condições iguais é um avanço para aqueles que se consideram abaixo, e uma degradação e um rebaixamento para os que estão no topo. Ver-se no mesmo plano que seu escravizador é perceber que os que escravizam e oprimem não têm o direito divino de fazê-lo. Não há nada do que se orgulhar na colonização e na escravidão, e só a partir da iniciativa dos oprimidos pode surgir alguma coisa significativa e justa para sua existência. Citando Fanon: “Querer apegar-se à tradição ou reatualizar as tradições abandonadas é ir não somente contra a história mas contra seu próprio povo”. ¹⁴⁹ Os nacionalistas culturais, com seus adereços, apoiam muitos dos males que os colocaram na posição de servidão. Na ausência de plataformas e ações construtivas e corretivas, com o apoio e vantagem de “ser negro” eles passam à busca do lucro, vendendo brincos ⁴⁰⁰% acima do custo e bùbás de brechó de garagem a preços da Quinta Avenida. Um tipo de malandro ¹⁵⁰ tentando tornar-se respeitável, explorando aqueles com mentes e carteiras mais fracas. E, porque o nacionalismo cultural não tem nenhuma doutrina política como regra, os limites de ser negro e orgulhoso são estreitos. Aonde vai uma mulher depois que conseguiu deixar o cabelo ao natural – para o salão, é claro! – e paga 5,50 dólares pelo penteado, dois pelo spray de óleo capilar, dois pelo condicionador para pentear, ³,⁵⁰ pelo pente de desembaraçar e, então, para a loja de roupas atrás de uma roupa tradicional que custa entre ²⁵ e quinhentos dólares. No caminho de ida e volta dessas compras e gastos, elas ainda observam a opressão e a exploração de seu povo – em roupas diferentes.

Como o nacionalismo cultural não oferece nenhum desafio ou risco contra a ordem social vigente, o aumento no contingente de atores, estrelas de cinema, assistentes sociais, professores, oficiais de condicional e políticos “negros e orgulhosos” é imenso. A posição da burguesia e da classe superior não é um obstáculo para o “negro” e vice-versa. A estrutura de poder, depois da necessária luta, tolera e até venera esse orgulho recém-encontrado, o qual ela utiliza para vender cada produto que existe sob o sol. Ela venera e tolera qualquer coisa que seja inofensiva e não apresente qualquer ameaça à ordem existente. Até mesmo seus maiores representantes dão boas-vindas a este orgulho e o transformam em “capitalismo negro” e fenômenos relacionados. Todo mundo é negro e a burguesia continua a odiar seus irmãos e irmãs negros menos afortunados, e os oprimidos continuam a desejar. O assistente social “negro” continua a trabalhar para um sistema de assistência social degradante e os oficiais de condicional “negros” continuam a violar os direitos das pessoas em liberdade condicional sob sua supervisão. Nós não temos uma nação sem uma luta contra aqueles que nos oprimem. Não temos cultura além da cultura nascida da nossa resistência à opressão. “Nenhum sistema colonial extrai sua justificação do fato de que os territórios” e o povo “que este domina são culturalmente inexistentes. Nunca se fará o colonialismo ruborizar de vergonha esfregando perante seus olhos nossos pouco conhecidos tesouros culturais”. Os povos da África tinham culturas. Foram apenas o racismo e as necessidades e caprichos econômicos que escravizaram esses países e povos. Símios têm culturas – até que são colocados em zoológicos. A economia transcende as culturas no contexto capitalista. Isso significa dizer que o capitalismo sempre vai utilizar uma necessidade econômica, real ou imaginária, como base para a expansão. Ele vai, é claro, justificar-se com conclusões e explicações racistas sobre o progresso que estão trazendo para os “nativos” e “selvagens”, e nenhuma cultura no mundo, a não ser uma cultura revolucionária, vai parar ou deter ou destruir esse avanço. O colonialismo, a escravidão, o neocolonialismo e outras extensões do capitalismo vicejam sobre mil e uma culturas. “A cultura negro-africana, é em torno da luta dos povos que ela adquire densidade e não em torno dos cantos, dos poemas ou do folclore”. ¹⁵¹ Uma cultura que não desafie integral e positivamente as forças dominantes e exploradoras – forças políticas, econômicas e sociais – é uma cultura que é ou pré-escravidão, pré-colonial, ou completamente inventada e é, em todos os casos, completamente inútil. E o nacionalismo cultural é quase sempre baseado em racismo. Ouvimos “odeie o branquelo” e “mate o alemão”. ¹⁵² Essas declarações ignoram as análises – análises intelectuais, como aquelas feitas por Eldrige Cleaver sobre as relações entre o governo e os porcos e os fuzileiros navais etc. – e ignoram a possibilidade de aliados. Em todo caso, o nacionalismo cultural, no interior da luta, busca criar uma ideologia racista. Ser um racista na América é, com certeza, uma posição justificável, mas é uma posição deficiente para se assumir como revolucionário.

“A adesão à cultura negro-africana, à unidade cultural da África, passa primeiramente pelo apoio incondicional à luta de libertação dos povos. Não se pode querer o esplendor da cultura africana se não contribuir concretamente para a existência das condições dessa cultura […].” ¹⁵³ Como pode um nacionalista cultural alegar que ama e tem orgulho de um país e um continente que sofreu por centenas de anos sob o colonialismo e a escravidão, e ainda está sofrendo em todas as formas, espertamente disfarçadas ou abertas, dessas instituições? Como ele pode negar as realidades políticas de sua própria vida na América vestindo-se com uma bata (de cores vibrantes) para participar na cultura de um povo rasgado pela revolução e pela revolta? Como pode um nacionalista cultural proclamar a adesão às culturas da África quando a cultura da África é uma cultura revolucionária? A solidariedade com os povos revolucionários por todo o mundo fez nascer uma cultura comum a povos que não conhecem nada um do outro, exceto que sofrem sob sistemas de exploração, degradação e racismo similares; que seus povos passaram por muitas das mesmas transformações e que em nenhum caso irá o povo reconquistar sua dignidade e encontrar sua liberdade a não ser por um confronto igual e cara a cara, pelas táticas e ações revolucionárias. “Uma cultura revolucionária é a única cultura válida para os oprimidos!!” Todas as citações, exceto a última, foram tiradas de Os condenados da Terra , de Fanon. ¹⁴⁶ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 2 de fevereiro de 1969. ¹⁴⁷ Frantz Fanon. Os condenados da terra . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 199. ¹⁴⁸ Bùbá , em iorubá, designa uma peça de vestuário que cobre os membros superiores. ¹⁴⁹ Op. cit. p. 186. ¹⁵⁰ No inglês, hustler , termo comum para designar traficantes, vigaristas, trapaceiros. ¹⁵¹ Op. cit. p. 196. ¹⁵² No inglês, honky , termo pejorativo utilizado para se referir a pessoa caucasiana. ¹⁵³ Ibidim. O que é ultrademocratismo? Por Donald Lee Cox a.k.a. Field Marshall D.C. ¹⁵⁴ O ultrademocratismo ¹⁵⁵ é o individualismo se manifestando como aversão à disciplina. O nosso ministro da Defesa, Huey P. Newton, apontou em seu artigo sobre anarquistas ¹⁵⁶ e individualistas que “esta é uma sociedade de classes,

sempre foi”. A maioria das pessoas que se tornaram Panteras são da classe mais baixa. Uma das principais características desta classe é pensar e agir como indivíduos. Esta tendência foi, e é, perpetuada pela classe dominante (capitalistas) em sua retórica e em seus documentos de governo, como a Declaração de Independência, a Constituição, a Declaração de Direitos etc. Ter o povo pensando e agindo individualmente auxilia a classe dominante em sua exploração e opressão em todo o mundo e no geral, e na exploração, opressão e perpetuação do racismo contra o povo negro, em particular. Todas as leis e instituições da sociedade estão estruturadas para produzir o pensamento e a ação individual. Isso previne os povos oprimidos e explorados de enxergarem seus problemas como problemas coletivos, tais como a exploração e o racismo perpetuados contra todos os negros. Portanto, pensamento e ação coletivos são exigidos se os povos oprimidos e explorados querem travar uma luta bem-sucedida para obter sua liberdade e libertação. Uma vez que todas as coisas têm uma natureza dual, vamos examinar o que podemos chamar de aspectos positivos do individualismo por parte das massas do povo negro nesta sociedade atual. Devido à exploração, à opressão e ao racismo desta sociedade, as massas do povo negro são majoritariamente desempregadas ou subempregadas. Portanto, o povo negro desenvolveu meios de sobrevivência para além do emprego. O primeiro-ministro Stokely Carmichael diz, “você pode obter coisas de três formas: você trabalha, pede ou rouba”. Ainda que o povo negro empregue todos os três métodos para suprir desejos e necessidades, o último recebe prioridade. Muitos negros se tornaram bastante revolucionários no processo de suas práticas, se não no seu pensamento. Eles desenvolvem formas de sobreviver nesta sociedade, mas não como parte desta sociedade. Isto é feito individualmente ou em grupos muito pequenos, nunca coletivamente. Estas são as pessoas que mais facilmente vêm o Partido das Panteras Negras como um meio para mudar seu destino em particular e o destino do povo negro em geral. Quando essas pessoas entram no Partido, trazem estas tendências individualistas com elas. Dentro do Partido, essas tendências impedem que as políticas do Partido sejam realizadas de maneira satisfatória, ou que sequer sejam realizadas. Por um lado, é revolucionário por natureza um indivíduo que, tentando sobreviver na sociedade atual, segue apenas as leis e regras que lhe servem individualmente e rejeita as que não. Por outro lado, entrar no Partido e continuar a obedecer apenas às ordens e diretrizes do Partido que lhe agradam e satisfazem individualmente é contrarrevolucionário, e a isso se chama ultrademocratismo. Alguns exemplos são: “o Partido dos Panteras deveria aplicar o centralismo democrático de baixo para cima, ou deveria deixar os níveis inferiores discutirem todos os problemas primeiro e então deixar as instâncias superiores decidirem”. Em um nível individual, um Pantera recebeu a ordem de um dirigente para limpar um dos carros dos Panteras, a que respondeu dizendo: “não dirijo o carro; portanto, não vou limpá-lo”. Isto é

ultrademocratismo. Se não for erradicado, prejudicará ou destroçará completamente a organização do Partido. Alguns métodos de correção são os que seguem: (a) Educação das bases para destruir as raízes do ultrademocratismo. (b) Para assegurar a democracia sob direção centralizada; (1) a liderança deve dar a correta orientação e resolver problemas quando surgem, a fim de estabelecer a si mesma como centro de liderança; (2) a liderança deve conhecer a vida das massas e se familiarizar com a situação na base, a fim de possuir uma base objetiva para a orientação correta; (3) em nenhum âmbito no Partido as decisões devem ser tomadas casualmente ao solucionar-se problemas; (4) todas as grandes decisões e políticas adotadas pela liderança do Partido devem ser imediatamente comunicadas às bases; (5) as bases devem discutir decisões e políticas da liderança do Partido a fim de compreendê-las e decidir os métodos para aplicá-las. ¹⁵⁴ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 2 de fevereiro de 1969. ¹⁵⁵ A respeito das origens do conceito, vide o texto de Mao Tsé-Tung Sobre a eliminação das concepções erradas no seio do Partido , escrito em dezembro de 1929. ¹⁵⁶ Vide, nesta edição, o texto “Sobre o anarquismo”. Onde quer que o povo esteja Por Fred Hampton ¹⁵⁷ Poder onde quer que haja povo. Poder onde quer que haja povo. Deixem-me dar um exemplo de ensinar o povo. Basicamente, os modos pelos quais o povo aprende são a participação e a observação. Vocês sabem que muitos de nós andamos por aí zombando de nós mesmos, acreditando que as massas têm PhD, ¹⁵⁸ mas isso não é verdade. E mesmo se tivessem, não faria qualquer diferença. Porque algumas coisas precisam ser aprendidas vendo ou participando. E vocês mesmos sabem que há hoje pessoas andando pela sua comunidade que têm todos os tipos de graus de escolaridade e que deveriam estar nesta reunião, mas não estão aqui. Certo? Porque você pode ter tantos graus quanto um termômetro, se não tem nenhuma prática, então não poderá sequer atravessar a rua e mascar chiclete ao mesmo tempo. Deixe me contar-lhes como Huey P. Newton, o líder e fundador, o homem principal do Partido dos Panteras Negras, lidou com essa situação. A comunidade tinha um problema, lá na Califórnia. Havia uma intersecção de quatro vias, muitas pessoas estavam sendo mortas, atropeladas por carros, e então o povo veio à tona e enviou suas queixas ao governo. Vocês já passaram por isso. Eu sei que vocês, na comunidade, já. E eles voltaram e os porcos disseram: “Não! Vocês não podem ter nada”. Ah, eles não costumam dizer que vocês não podem ter algo. Hoje em dia eles ficaram um pouco mais cautelosos. É isso que aqueles graus no termômetro irão lhe permitir. Eles lhe dirão: “Tudo bem, lidaremos com isso. Por que vocês não voltam na próxima reunião e perdem algum tempo?”.

Eles vão lhe enrolar em digressões fúteis, e você ficará em um ciclo de insanidade, indo e voltando, indo e voltando, indo e voltando, tantas vezes que logo enlouquecerá. Então eles lhe dirão: “Está bem, pretos, o que vocês querem?”. E você se precipitará e dirá: “bom, tanto tempo se passou, nós não sabemos o que queremos”, e sairá da reunião; e eles dirão: “bem, vocês pretos tiveram sua chance, não tiveram?”. Deixe me contar o que Huey P. Newton fez. Huey Newton convocou Bobby Seale, o presidente do Partido dos Panteras Negras em âmbito nacional. Bobby Seale pegou sua 9mm, uma pistola. Huey Newton pegou seu rifle, pegou umas placas de “pare” e um martelo. Foi até a intersecção, deu seu rifle para Bobby, que estava com sua 9mm. Ele disse “Segure este rifle. Se qualquer um mexer com a gente, você estoura seu cérebro”. Ele pregou as placas de “pare”. Não houve mais acidentes, não houve mais problema. Agora, eles tinham uma outra situação. Isso não é tão bom, vejam, porque são duas pessoas lidando com um problema. Huey Newton e Bobby Seale, não importa o quão durões eles fossem, não podem lidar com o problema. Mas deixe me explicar a vocês quem são os verdadeiros heróis. Na vez seguinte, havia uma situação semelhante, em outra intersecção de quatro vias. Huey convocou Bobby, pegou sua 9mm, pegou seu rifle e seu martelo e conseguiu mais placas de “pare”. Prendeu as placas, deu o rifle para Bobby e disse a Bobby: “se qualquer um mexer com a gente enquanto estamos prendendo essas placas, proteja o povo e estoure seu cérebro”. O que o povo fez? Observou novamente. Participou naquilo. Da outra vez, havia outra intersecção de quatro vias. Problemas por lá; eles tinham acidentes e mortes. Desta vez, o povo da comunidade pegou seus rifles, seus martelos e suas placas de “pare”. Agora deixe-me mostrar a vocês como tentaremos fazer no Partido dos Panteras Negras daqui. Acabamos de voltar da zona sul. Fomos até lá. Fomos até lá e entramos em uma discussão com os porcos, ou os porcos entraram em uma discussão com a gente. Um deles disse: “bem, presidente Fred, você supostamente é tão durão, porque não vai em frente e atira alguns destes policiais? Você está sempre falando em pegar suas armas e você tem essa; porque não segue em frente e atira em alguns deles?”. Eu respondi: “Você acaba de violar uma lei. Na verdade, mesmo que você esteja usando um uniforme, não me faz qualquer diferença. Porque eu não ligo que você tenha nove uniformes e cem distintivos. Quando você pisa fora do campo da legalidade e vai para o campo da ilegalidade, então sinto que você deveria ser preso”. E eu lhe disse: “você fez o que eles chamam, na lei, de flagrante provocado, ¹⁵⁹ você tentou me induzir a fazer algo que é errado, você me encorajou, você tentou me incitar a atirar em um porco. E isso não é tranquilo, irmão; você conhece a lei, não?”.

E falei àquele porco: “você tem uma arma, porco?”. Continuei: “você tem que pôr suas mãos contra a parede. Nós estamos lhe dando voz de prisão, enquanto cidadãos”. Este idiota não sabia o que era isso. Eu afirmei: “agora fique tão calmo quanto puder e não faça muitos movimentos bruscos, porque não queremos ter que machucar você”. E falei com ele como ele sempre falou conosco, disse-lhe: “Bem, estou aqui para lhe proteger. Não se preocupe com nada, estou aqui em seu benefício”. Então falei para outro irmão ir chamar os porcos. Isso precisa ser feito como uma prisão por um cidadão. Ele chamou os porcos. Lá vêm os porcos, com suas carabinas e rifles. Eles vêm falando sobre como prenderão o presidente Fred. E eu disse “Não, seus idiotas. Este é o homem que vocês têm que prender. Foi ele que infringiu a lei”. E o que eles fizeram? Arregalaram os olhos e não puderam suportar. Sabem o que fizeram? Eles estavam tão irritados, tão nervosos, que me falaram para ir embora. E o que aconteceu? Todas aquelas pessoas estavam lá na rua 63. O que elas fizeram? Elas estavam lá por perto, rindo e falando comigo enquanto estava realizando a prisão. Elas me viram enquanto eu discutia e me ouviram enquanto eu discutia. Então, na próxima vez em que o porco estiver na rua 63, por causa do que nosso ministro de Defesa chama de observação e participação, aquele porco poderá ser detido por qualquer um! Então, o que fizemos? Estávamos por lá educando o povo. Como o educamos? Basicamente, da forma pela qual o povo aprende, pela observação e participação. E é isso que estávamos tentando fazer. É isso que temos que fazer aqui nesta comunidade. E muitas pessoas não compreendem, mas existem três coisas fundamentais que você tem que fazer sempre que tentar ter uma revolução vitoriosa. Muitas pessoas entendem a palavra revolução de maneira confusa e pensam que revolução é uma palavra ruim. Revolução não é nada mais do que, por exemplo, ter uma ferida em seu corpo e passar algo para curar a infecção. E eu estou dizendo a vocês que vivemos em uma sociedade infectada, agora mesmo. Estou dizendo a vocês que vivemos em uma sociedade doente. E qualquer um que defenda se integrar a esta sociedade doente antes dela ser desinfetada é um homem que está cometendo um crime contra o povo. Se você passa por uma sala de hospital e vê uma placa que diz “contaminado” e tenta levar as pessoas para aquela sala, então estas pessoas são bem burras, vocês me entendem; porque, se não fossem, lhe diriam que você é um líder injusto e desonesto que não pensa nos interesses de seus seguidores. E o que estamos dizendo é simplesmente que temos que tornar os líderes responsáveis pelo que fazem. Eles andam por aí falando que fulano é um Pai Tomás, então abriremos um centro cultural e para ensiná-lo o que é negritude. E estes pretos acham que estão mais conscientes do que você e eu, e Malcolm e Martin Luther King, e todo mundo junto. Com certeza. Eles são os mais conscientes, são os que inaugurarão o centro. Irão lhe dizer de onde da África vieram os ossos, lugares cujos nomes vocês não conseguem nem pronunciar. É isso. Eles lhe falarão sobre Chaka, o líder dos batus que combatem pela liberdade, e sobre Jomo Kenyatta, esses dingo-dingas . Vão desandar a falar tudo isso para

vocês. Eles sabem disso tudo. Mas o ponto é que fazem o que estão fazendo porque é benéfico e lucrativo a eles. Vejam só, as pessoas se envolvem em várias coisas que são lucrativas para elas, e temos que torná-las menos lucrativas. Temos que tornar essas coisas menos benéficas. Estou dizendo que qualquer programa que é trazido para nossa comunidade deve ser analisado pelo povo daquela comunidade. Deve ser analisado para ver se atende às necessidades relevantes daquela comunidade. Não precisamos de pretos vindo à nossa comunidade trazer suas companhias, abrindo negócios para os pretos. Existem muitos pretos em nossa comunidade que não conseguem tirar sequer migalhas dos negócios que eles vão abrir. Temos que encarar alguns fatos. Que as massas são pobres, que as massas pertencem ao que vocês chamam de classes inferiores; e, quando eu falo das massas, estou falando das massas brancas, estou falando das massas negras e das massas marrons e das amarelas também. Temos que encarar o fato de que algumas pessoas dizem que se combate o fogo melhor com o próprio fogo, mas nós dizemos que se combate melhor o fogo com água. Dizemos que não se combate racismo com racismo. Combateremos o racismo com solidariedade. Dizemos que não se combate o capitalismo com nenhum capitalismo negro; o capitalismo se combate com o socialismo. Não vamos lutar contra os porcos reacionários que vêm e vão pelas ruas sendo nós mesmos reacionários; vamos organizar e nos dedicar ao poder político revolucionário e ensinar a nós mesmos as necessidades específicas de resistência à estrutura de poder, nos armar e combater os reacionários com a REVOLUÇÃO PROLETÁRIA INTERNACIONAL. É assim que tem que ser. O povo tem que ter o poder: ele pertence ao povo. Temos que entender com bastante clareza que existe um homem em nossa comunidade chamado capitalista. Algumas vezes ele é negro e algumas vezes é branco. Mas este homem tem que ser expulso de nossa comunidade, porque qualquer um que vem para a comunidade lucrar sobre o povo, explorando-o, pode ser definido como capitalista. E não ligamos para quantos programas eles tenham, para o quão longa a sua dashiki ¹⁶⁰ seja. Porque o poder político não nasce das mangas de um dashiki ; o poder político flui do cano de uma arma. Ele flui do cano de uma arma! ¹⁶¹ Muitos de nós que andamos por aí falando de política nem sequer sabemos o que é política. Você já viu algo que puxou e levou o mais longe possível, tanto que essa coisa quase se esticou toda e se tornou outra? Se você puxar bastante essa coisa, ela se torna duas? Na verdade, algumas coisas, se você as esticar demais, vão se tornar outras coisas. Você já cozinhou algo tanto tempo que se transformou em outra coisa? Não é verdade? É sobre isso que estamos falando quando falamos em política. Que a política não é nada, mas se você esticá-la tanto que ela não pode ir além, então sabe o que tem em suas mãos? Tem uma contradição antagônica. E quando você leva essa contradição ao mais alto nível e a tensiona ao máximo possível, tem o que se chama de guerra. A política é guerra sem derramamento de sangue, e a guerra é política com

derramamento de sangue. Se você não entende isso, mesmo que seja um democrata, um republicano, um independente ou qualquer coisa que quiser, na verdade, você não é nada. Não queremos nenhum destes pretos, nem qualquer um desses alemães ou quem quer que seja, radicais ou não, ninguém falando: “Sou um candidato independente”. Isso significa que você se vende aos republicanos. Independente significa que você está disposto a ser aliciado e irá se vender para quem pagar mais. Entendem? Queremos pessoas que queiram disputar pelo Partido do Povo, porque o povo irá comandá-lo, quer eles gostem ou não. O povo provou que pode comandar. O povo o fez na China, e o fará aqui. Podem chamar isso do que quiserem, podem falar o que quiserem disso. Eles podem chamar de comunismo, e pensar que isso vai assustar alguém, mas não vai assustar ninguém. Tivemos a mesma coisa acontecendo na rota 37. Eles vieram para a rota 37, onde fica nosso programa de café da manhã para crianças, e começaram a abordar aquelas mulheres que eram um pouco mais velhas, por volta dos 58 anos – sabem, eu digo mais velhas porque eu sou jovem. Eu não tenho mais 20 anos, ¹⁶² é verdade, é verdade. Mas vejam, eles irão abordá-las e fazer lavagem cerebral nelas. E vocês não viram nada até verem uma dessas lindas irmãs, com seus cabelos meio começando a ficar cinzas, e elas não têm muitos dentes, mas estavam estraçalhando esses policiais! Estavam os estraçalhando! Os porcos chegavam nelas e falavam: “Você gosta de comunismo?”. Os porcos iam até elas e falavam “Você tem medo do comunismo?”. E as irmãs falavam “Não tenho medo, eu nunca ouvi falar nisso”. “Você gosta de socialismo?” “Não tenho medo. Nunca ouvi falar disso.” Os porcos estavam em choque, porque eles gostavam de ver estas pessoas assustadas com essas palavras. “Você gosta do capitalismo?” “Sim, bem, é algo com que eu vivo. Eu gosto.” “Você gosta do programa café da manhã para as crianças, crioula?” “Sim, eu gosto.” E os porcos dizem: “oh-oh”. Os porcos dizem: “bom, o programa café da manhã para crianças é um programa socialista. É um programa comunista”.

E a mulher disse: “Bem, vou lhe falar uma coisa, garoto. Eu conheço você desde que você era da altura do joelho de um gafanhoto, preto. E eu não sei se gosto de comunismo e não sei se gosto de socialismo. Mas sei que o programa café da manhã para as crianças alimenta meus filhos, preto. E se você puser suas mãos no programa café da manhã para as crianças, vou sair daqui e chutar sua bunda como um...” É isso que elas estavam falando. É o que estavam falando e isso é uma coisa linda. E é isso que o programa café da manhã para as crianças é. Muitas pessoas pensam que é caridade, mas o que ele faz? Leva o povo de um estágio para um outro. Qualquer programa que seja revolucionário é um programa que faz avançar. Revolução é mudança. Queridos, se vocês simplesmente continuarem mudando, antes mesmo que percebam – e, de fato, mesmo sem saber o que é socialismo; você não precisa saber o que isso é –, defenderão, participarão e apoiarão o socialismo. E muitas pessoas lhes dirão, bem, o povo não tem nenhuma teoria, eles precisam de alguma teoria. Precisam de alguma teoria mesmo se não têm qualquer prática. E o Partido dos Panteras Negras afirma que, quando um homem diz ser o tipo de homem que te faz comprar chocolates e comer as embalagens, jogando fora o chocolate, então ele seria capaz também de te fazer andar para o leste, quando o necessário seria andar para o oeste. É verdade. Se você ouvisse aquilo que o porco diz, vocês estariam lá fora no sol radiante com um guarda-chuva sobre sua cabeça. E quando estivesse chovendo, vocês sairiam de casa e deixariam seu guarda-chuva lá dentro. É isso mesmo. Vocês têm que juntar as peças. Estou dizendo que é isso que eles fazem que vocês façam. Agora, o que NÓS fazemos? Dizemos que o programa café da manhã para as crianças é um programa socialista. Ensina ao povo basicamente isso, pela prática; é assim que nos concebemos, e deixamos as pessoas praticarem esta teoria e investigarem esta teoria. O que é mais importante? Você aprende algo da mesma forma que qualquer um. Deixe-me tentar esmiuçar para vocês. Vocês dizem que este irmão aqui vai para a escola por oito anos para ser um mecânico de automóveis. E aquele professor, que costumava ser um mecânico de automóveis, diz a ele: “bom, preto, você tem que passar pelo que chamamos de treinamento profissional”. E ele diz: “Maldição, com toda essa teoria que eu tenho, tenho que ir para o treinamento profissional? Para quê?”. Ele disse: “no treinamento profissional, ele trabalha comigo. Estive aqui por vinte anos. Quando comecei a trabalhar, eles nem tinham mecânicos de automóveis. Eu não tenho nenhuma teoria, apenas tenho um monte de prática”. O que aconteceu? Um carro chegou fazendo muito barulho, um barulho esquisito. Este irmão foi pegar seu livro. Ele está na página um, ele não chegou na página duzentos. Eu estou sentado ouvindo o carro. Ele pergunta: “o que você acha que é?”.

Eu digo: “Acho que é o carburador”. Ele responde: “Não, eu não vejo em nenhum lugar daqui que diga que um carburador faz um barulho como esse”. E completa: “Como você sabe que é o carburador?”. Eu disse: “Bem, preto, cerca de vinte anos atrás, dezenove para ser exato, eu ouvi o mesmo tipo de barulho. E o que fiz foi desmontar o regulador de voltagem e não vinha de lá. Então desmontei o alternador, e não era isso. Desmontei as escovas do gerador, e não era isso também. Depois que desmontei tudo, finalmente peguei o carburador e, quando cheguei nele, descobri que era aquilo. E eu disse a mim mesmo que ‘besta, da próxima vez que você ouvir este som é melhor desmontar primeiro o carburador’’’. Como ele aprendeu? Ele aprendeu pela prática. Eu não me importo com quanta teoria você tem: se essa teoria não tem nenhuma prática aplicada a ela, então acaba sendo irrelevante. Certo? Qualquer teoria que você tem, pratique-a. E quando você a praticar, você cometerá alguns erros. Quando você cometer um erro, corrigirá essa teoria e, então, será a teoria corrigida que será capaz de ser aplicada e usada em qualquer situação. É disso que temos que ser capazes. Toda vez que falo em uma igreja, sempre tento dizer algo, sabe, sobre Martin Luther King. Eu respeito muito Martin Luther King. Penso que ele foi um dos maiores oradores que o país já produziu. E ouço qualquer um que fala bem, porque gosto de ouvir quem fale bem. Martin Luther King disse que às vezes as coisas podem parecer tenebrosas, e pode parecer tenebroso aqui na zona norte. Talvez você pensasse que a sala fosse estar lotada de pessoas, e talvez tivesse pensado que tivesse que pedir para algumas pessoas se retirarem e, ao final, pode ser que não haja tantas pessoas. Talvez algumas das pessoas que vocês pensam que deveriam estar aqui não estejam, e você pensa que, bem, se elas não estão aqui, então não será tão bom como pensamos que poderia ser. E talvez vocês pensassem que precisavam de mais pessoas do que as que temos aqui. Talvez pensem que os porcos serão capazes de pressionar vocês, e colocar pressão suficiente para esmagar seu movimento antes mesmo de ele começar. Mas Martin Luther King disse que ouviu em algum lugar que apenas quando está escuro o suficiente você pode ver as estrelas. E não estamos preocupados com estar escuro. Ele disse que o braço do universo moral é longo, mas que ele se dobra em direção ao céu. Temos Huey P. Newton na cadeia e Eldridge Cleaver na clandestinidade. E Alprentice Bunchy Carter foi assassinado; Bobby Hutton e John Huggins foram assassinados. E muitas pessoas pensam que o Partido dos Panteras Negras, em certo sentido, está desistindo. Mas vamos dizer isso: que nós nos comprometemos com o povo de um modo com que dificilmente alguém já tenha se comprometido. Nós tomamos essa decisão, ainda que alguns de nós venham do que alguns de vocês chamariam de famílias pequeno-burguesas; ainda que alguns de nós pudéssemos estar, em algum sentido, naquilo que vocês chamam de “topo da montanha”. Nós poderíamos estar integrados à sociedade

trabalhando com pessoas com as quais nós podemos nunca ter a chance de trabalhar. Talvez pudéssemos estar no topo da montanha e talvez não tivéssemos que ficar nos escondendo quando vamos falar em locais como esse. Talvez não tivéssemos que nos preocupar com tribunais, ir parar na cadeia e ficar doentes. Nós dizemos que, mesmo que todos estes luxos existam no topo da montanha, nós compreendemos que vocês e seus problemas estão bem aqui, no vale. Nós, no Partido dos Panteras Negras, por nossa dedicação e entendimento, fomos até o vale sabendo que o povo está no vale; sabendo que o nosso drama é o mesmo drama do povo no vale; sabendo que nossos inimigos estão na montanha, que nossos amigos estão no vale e que, mesmo que seja legal estar no topo da montanha, nós estamos de volta para o vale. Porque nós entendemos que existe trabalho a ser feito no vale, e quando levarmos a cabo este trabalho no vale, então teremos que ir para o topo da montanha. E estaremos indo para o topo da montanha porque tem um filho da puta no topo de montanha que está brincando de rei, e ele nos está sacaneando. E nós temos que subir ao topo da montanha não para viver seu estilo de vida e viver como ele vive. Temos que subir ao topo da montanha para fazer esse filho da puta entender, desgraça, que estamos vindo do vale! ¹⁵⁷ Discurso pronunciado na igreja batista Olivet de Chicago, em fevereiro de 1969. ¹⁵⁸ Em latim, philosophiae doctor , “doutor em filosofia”: título fornecido pelas universidades reconhecendo um grau terminal de formação nos países anglófonos. ¹⁵⁹ Em inglês, entrapment : quando o agente público induz alguém a cometer um crime que a pessoa, de outra forma, não cometeria. ¹⁶⁰ O dashiki é uma peça do vestuário masculino típica dos povos da África Ocidental, compreendida por países como Cabo Verde, Costa do Marfim, Gana, Nigéria e Senegal. ¹⁶¹ Referência aos dizeres de Mao Tsé-Tung, “o poder político brota dos canos de uma arma”, 杆子里面出政权 . ¹⁶² Fred Hampton nasceu em 30 de agosto de 1948. Quando o presente discurso foi realizado, em fevereiro de 1969, ele estava a meses de fazer 21 anos. Seria assassinado pouco depois, em 4 de dezembro, pela polícia de Chicago. O Partido dos Panteras Negras e o sindicalismo revolucionário Por Raymond “Masai” Hewitt ¹⁶³ Poder para o povo, definitivamente todo poder para os trabalhadores. O que queremos fazer: definitivamente queremos apresentar a ideologia correta do Partido dos Panteras Negras e tentar fazer dos trabalhadores uma classe para si mesma, em vez de uma classe em si mesma. Mas sabemos que isso já

foi tentado antes. Agora que os trabalhadores fizeram algumas tentativas que fracassaram, não significa que a análise da luta de classes não se aplique mais. Hoje em dia, existem muitas tentativas de aplicar qualquer outro tipo de análise, análise religiosa, análise de raça, todo tipo de idealismo e metafísica estão sendo aplicados à luta dos trabalhadores, incluindo vendilhões, lambeção de botas, beijos na bunda e facadas pelas costas. O Partido dos Pantera Negras já implementou em algumas áreas princípios revolucionários marxistas-leninistas concretos, colocou-os em prática para tornar os trabalhadores uma classe para si, para tornar os trabalhadores um forte órgão político para si. Sem teoria revolucionária, isso é impossível. Pensar que princípios revolucionários corretos cairão do céu ou que nascerão prontos nas mentes realmente beira o ridículo. Como dizem os estudantes: coisa de televisão. O Partido dos Panteras Negras está definitivamente disposto a trabalhar em cooperação para ajudar a colocar em prática qualquer coisa que leve os trabalhadores a um nível consciente e organize a luta econômica e política. Não estamos falando de um unionismo ¹⁶⁴ desenfreado, ou um separatismo por ocupação, por raça, por salário. Estamos falando de tornar os trabalhadores uma ferramenta política, uma verdadeira força política; porque o movimento estudantil recebe muita publicidade, o que eles gostam de chamar de militantes e radicais, e o chamado movimento negro militante ganha muita publicidade. Mas deve ficar bem nítido para quem fizer uma pequena pesquisa e tiver uma quantidade razoável de prática que somente os trabalhadores podem libertar os próprios trabalhadores. E para fazer isso, os trabalhadores terão que se tornar uma força política pujante, com um partido baseado em princípios revolucionários corretos para guiá-los. Agora, a posição de vanguarda de qualquer luta política não é algo que seja concedido pelos céus ou arrebatado por alguns oportunistas de sorte. A posição de vanguarda é objetivamente conquistada em dura luta e, geralmente, as organizações ou pessoas que conquistaram a posição de vanguarda só o descobrem quando percebem que estão abarrotando as prisões e os tribunais. As portas da prisão estão ficando esgarçadas de tanto bater e abrir, bater e abrir. Não haverá alternativa para os trabalhadores, exceto se tornar uma pujante força política revolucionária militante. Os estudantes não podem libertar os trabalhadores, os trabalhadores não podem libertar os estudantes. Os negros não podem libertar os brancos, os brancos não podem libertar os negros. O Partido dos Panteras Negras tem uma compreensão muito nítida desses conceitos. E nós dizemos que, para todos os trabalhadores, o primeiro ponto de demarcação, que parece ter sido esquecido neste país, é que deve haver um reconhecimento correto de que a luta primária é a luta de classes. Uma vez afastada essa linha de demarcação, os trabalhadores geralmente se voltam uns contra os outros ou, em muitos casos, tornam-se os campeões da reforma. Com o tipo de sindicatos que tivemos neste país, é compreensível o porquê desse fenômeno estranho. Outra coisa que gostaríamos de deixar nítido desde o início é que reconhecemos a necessidade de um certo grau de autodeterminação, de

autogoverno para trabalhadores negros militantes. Isso não é de forma alguma para endossar o racismo. O Partido tem uma linha muito nítida neste ponto. Mas há uma necessidade entre os negros, que são as pessoas mais oprimidas e exploradas dentro dos confinamentos desta Babilônia ¹⁶⁵ que eles chamam de América, de se autogovernar – não em um governo independente, independente em relação aos outros, mas um autogoverno geograficamente localizado no mesmo lugar. E também há uma igual necessidade para esses negros de trabalhar em uma coalizão de trabalho muito unida e em estreita comunicação com seus irmãos de classe, independentemente da cor, independentemente de você ser a favor ou contra o casamento inter-racial, se você quer morar em Beverly Hills ou Watts ou Oakland ou Washington DC, não faz diferença. A necessidade é de manutenção constante de uma linha de classe correta. E há alguns sindicatos que professam isso da boca para fora, e então levam esta linha até suas comunidades locais, por exemplo, nos arredores de Los Angeles ou de San Francisco. Esses mesmos sindicatos, que afirmam ser sindicatos operários, esquecem que um dos princípios básicos marxista-leninistas, que Lênin registrou, é que o interesse do proletariado local deve estar subordinado ao interesse do proletariado mundial. Assim advém o unionismo: eles começam a vender seus irmãos da classe trabalhadora em todo o mundo, mesmo os do outro lado da cidade. O Partido dos Panteras Negras é contra esse tipo de separatismo, oportunismo, individualismo, essa abordagem muito subjetiva de um problema que, na realidade, é um problema mundial. Os trabalhadores que vivem um inferno coletivo e tentam lidar com ele de maneira individual, os vemos como suicidas, desprovidos de sentido e politicamente muito atrasados. Portanto, quando falamos de autogoverno, isso não nega a necessidade de uma coalizão de trabalho muito estreita com os irmãos de classe, porque o principal problema nos Estados Unidos não são as contradições raciais, mas as contradições de classe. Isso ocorre assim graças à fodelança federal ¹⁶⁶ que a classe trabalhadora recebe nesse país. Este não é um direito exclusivo de nenhum grupo étnico neste país. Mas o racismo existe em um nível tão alto neste país que as pessoas precisam lidar, passo a passo, primeiro em um nível mais baixo para seguir até um mais alto. Não há necessidade de investigar se achamos ou não que deve sempre ser assim. Não, esperamos que não. Que no dia em que todos os trabalhadores pertencerem a uma associação da classe trabalhadora, quando esse dia chegar, todos ficaremos muito mais felizes. Mas até então é assim que deve ser. Outro ponto de esclarecimento é o papel dos trabalhadores radicais brancos. Os trabalhadores radicais brancos estão na posição mais adequada para combater o racismo, a ignorância e o atraso político que existem em toda a comunidade. Definitivamente, não podemos esperar que nenhum irmão trabalhador dos Caucuses dos Panteras, ¹⁶⁷ da Drum, ¹⁶⁸ ou de outros grupos revolucionários negros, atue entre os trabalhadores brancos enquanto o racismo ainda é tão intenso. Seria como eu e esses quatro irmãos aqui descendo para pôr ordem nos brancos em Mobile, Alabama. Provavelmente, seria não apenas puro suicídio, seria loucura, seria um movimento politicamente inábil; mas há um papel [que eles podem cumprir]. Descobrimos que, muitas vezes, os radicais da pátria mãe branca, entre os

trabalhadores, gostariam de adentrar a comunidade negra e fazer suas coisas, ou estar entre os trabalhadores negros e fazer suas coisas. Tais sentimentos são lindos, mas não são muito práticos. Por um lado, supor que os trabalhadores negros não têm cérebro suficiente para cuidar de si mesmos é realmente uma falácia racista, a manifestação de uma verdadeira atitude racista. Por outro lado, o propósito da classe trabalhadora como um todo pode ser melhor servido por cada um adentrando sua própria comunidade, porque esse mosaico que é passado como um crisol de raças, ¹⁶⁹ esse mosaico étnico é uma bagunça misturada. O racismo é institucionalizado a um grau em que nunca foi institucionalizado na história da humanidade; quero dizer, ele ricocheteou nos satélites e disparou por todo o mundo. Eles o canalizaram sob o oceano por meio de cabos; está nos quadrinhos, nos jornais de domingo, na televisão e no rádio. Portanto, é de um idealismo alarmante tentar ignorá-lo. Mas é muito temerário e politicamente atrasado ignorar o fato de que a luta primária é a luta de classes; isso vale tanto para negros quanto para brancos. Agora podemos começar com esse grau básico de entendimento e provavelmente poderemos realizar algo. Outra coisa que deve ser entendida é que, se nos afastarmos do unionismo, o grupo da classe trabalhadora, o grupo que professa ser favorável aos trabalhadores, terá que ter uma plataforma e um programa muito concretos e práticos. E eu diria que A plataforma e o programa de dez pontos do Partido dos Panteras Negras exemplificam o tipo de programa que um grupo revolucionário precisa. Não devemos nos limitar apenas à fábrica e separar a fábrica da comunidade; esta é uma abordagem metafísica e esta não é a nossa teoria. Acho que teremos um momento para perguntas e respostas mais tarde, então tentarei não tomar tanto do seu tempo. ¹⁶³ Publicado no jornal O Pantera Negra em 4 de maio de 1969. Masai foi ministro da Educação do Partido dos Panteras Negras de 1967 a 1973. ¹⁶⁴ Em inglês, unionism . Em sentido literal, “sindicalismo”. No contexto, contudo, o autor associa a ideia de “unionismo” à de um sindicalismo profissional e, mais adiante, de um sindicalismo mercenário, que “vende” sua base. Optamos pelo termo “unionismo” por remeter ao termo “ trade unionismo”. Esta opção foi feita, em situação semelhante, por Rubia Prates Goldoni, tradutora de Que fazer? , de Lênin, quando este se refere ao sindicalismo economicista ( trade-unionism ). ¹⁶⁵ Cidade-estado historicamente situada na região de mesmo nome, na Mesopotâmia. Na tradição bíblica, a Babilônia simboliza o mal que se opõe aos desígnios divinos; os rastafáris a converteram em um símbolo dos valores e instituições que oprimem os africanos em diáspora. No discurso dos Panteras Negras, a Babilônia é inevitavelmente associada ao imperialismo. ¹⁶⁶ Em inglês, royal fucking . ¹⁶⁷ Nos Estados Unidos, o Caucus (no plural, Caucuses) é a designação de um conselho ou reunião de membros de um movimento ou partido político específico. No caso, o termo diz respeito à organização de membros e apoiadores do Partido dos Panteras Negras no meio sindical.

¹⁶⁸ O Movimento Sindical Revolucionário Dodge (em inglês, Dodge Revolutionary Union Movement) foi uma organização de operários afroamericanos formada em maio de 1968 no interior da planta industrial de Dodge Main, da corporação Chrysler, em Detroit, Michigan. ¹⁶⁹ Em inglês, melting pot . A metáfora do caldeirão no qual se derretem elementos heterogêneos em um todo homogêneo foi utilizada nos Estados Unidos (por diversas vezes desde 1780) para descrever a assimilação de diversos povos e culturas. Sobre o estabelecimento de uma Frente Única com os comunistas ¹⁷⁰ Que objeções podem ter os oponentes da frente única e como eles expressam suas objeções? Alguns dizem: “Para os comunistas, a palavra de ordem da frente única é apenas uma manobra”. Mas se é uma manobra, respondemos: por que você não expõe a “manobra comunista” por meio da sua participação honesta em uma frente única? Declaramos francamente: “Queremos unidade de ação por parte da classe trabalhadora, para que o proletariado possa se fortalecer em sua luta contra a burguesia; para que, ao defender hoje seus interesses correntes contra os ataques do capital, contra o fascismo, o proletariado possa estar amanhã em uma posição que crie as condições preliminares para sua emancipação final”. “Os comunistas nos atacam”, dizem outros. Mas ouça, declaramos repetidamente: não atacaremos ninguém, nem pessoas, nem organizações, nem partidos que representem a frente única da classe trabalhadora contra o inimigo de classe. Mas, ao mesmo tempo, é nosso dever, no interesse do proletariado e de sua causa, criticar aquelas pessoas, organizações e partidos que impeçam a unidade de ação dos trabalhadores. “Não podemos formar uma frente única com os comunistas, pois eles têm um programa diferente”, diz um terceiro grupo. Mas vocês mesmos dizem que seu programa difere do programa dos partidos burgueses, e, no entanto, isso não impediu e não impede que vocês entrem em coalizões com esses partidos. “Os partidos democráticos burgueses são melhores aliados contra o fascismo do que os comunistas”, dizem os oponentes da frente única e os defensores da coalizão com a burguesia. Mas o que ensina a experiência da Alemanha? Os social-democratas não formaram um bloco com esses aliados “melhores”? E quais foram os resultados? “Se estabelecermos uma frente única com os comunistas, a pequena burguesia se assustará com o ‘perigo vermelho’ e debandará para os fascistas”, ouvimos isso ser dito com bastante frequência. Mas a frente única representa uma ameaça para os camponeses, os pequenos comerciantes, os artesãos, os intelectuais que labutam? Não, a frente única é uma ameaça para a grande burguesia, os magnatas financeiros, os junkers ¹⁷¹ e outros exploradores, cujo regime traz a ruína completa a todos esses estratos.

“A social-democracia é pela democracia, os comunistas são pela ditadura; portanto, não podemos formar uma frente única com os comunistas”, dizem alguns dos líderes social-democratas. Mas estamos lhe oferecendo agora uma frente única com o propósito de proclamar a ditadura do proletariado? Por enquanto, não fazemos tal proposta. “Que os comunistas reconheçam a democracia, que eles saiam em sua defesa, então estaremos prontos para uma frente única.” A isto, respondemos: “Somos adeptos da democracia soviética, da democracia dos trabalhadores, a democracia mais consistente do mundo. Mas nos países capitalistas defendemos e continuaremos a defender cada centímetro das liberdades democráticas burguesas que estão sendo atacadas pelo fascismo e pela reação burguesa, porque os interesses da luta de classes do proletariado assim o ditam”. “Mas os minúsculos partidos comunistas não contribuem em nada participando da frente única levada a cabo pelo Partido Trabalhista”, dizem, por exemplo, os líderes trabalhistas da Grã-Bretanha. Lembre-se de como os líderes social-democratas austríacos disseram o mesmo em referência ao pequeno Partido Comunista Austríaco. E o que os eventos mostraram? Não foi o Partido Social-Democrata da Áustria, liderado por Otto Bauer e Karl Renner, que mostrou estar certo, mas o minúsculo Partido Comunista da Áustria que, no momento certo, sinalizou o perigo fascista no país e pediu aos trabalhadores que lutassem. Pois toda a experiência do movimento operário mostrou que os comunistas, com toda a sua relativa insignificância em números, são a força motriz da atividade militante do proletariado. Além disso, não se deve esquecer que os partidos comunistas da Áustria ou da Grã-Bretanha não são apenas as dezenas de milhares de trabalhadores partidários do Partido, mas fazem parte do movimento comunista mundial, são seções da Internacional Comunista, cujo partido principal é o partido de um proletariado que já alcançou a vitória e governa sobre um sexto do globo. “Mas a frente única não impediu o fascismo de ser vitorioso em Sarre” ¹⁷² é outra objeção apresentada pelos oponentes da frente única. Estranha é a lógica desses senhores! Primeiro, eles não deixam pedra sobre pedra para assegurar a vitória do fascismo e, depois, regozijam-se com alegria maliciosa porque a frente única em que entraram apenas no último momento não levou à vitória dos trabalhadores. “Se quiséssemos formar uma frente única com os comunistas, teríamos que nos retirar da coalizão, e os partidos reacionários e fascistas entrariam no governo”, afirmam os líderes social-democratas que ocupam cargos em vários países. Muito bem. O Partido Social-Democrata Alemão não estava em um governo de coalizão? Estava. O Partido Social-Democrata da Áustria não estava governando? Estava. Os socialistas espanhóis não estavam no mesmo governo que a burguesia? Também estavam. A participação dos partidos social-democratas nos governos de coalizão burgueses nesses países impediu o fascismo de atacar o proletariado? Não. Consequentemente, é tão claro quanto a luz do dia que a participação dos ministros social-democratas no governo burguês não é uma barreira para o fascismo.

“Os comunistas agem como ditadores, querem prescrever e ditar tudo para nós.” Não. Não prescrevemos nada nem ditamos nada. Apenas fazemos propostas a respeito daquilo que estamos convencidos que, se realizado, atenderá aos interesses do povo trabalhador. Este não é apenas o direito, mas o dever de todos aqueles que agem em nome dos trabalhadores. Você tem medo da “ditadura” dos comunistas? Vamos discuti-lo em conjunto e escolher, juntamente com todos os trabalhadores, aquelas propostas que são mais úteis para a causa da classe  trabalhadora. Portanto, todos esses argumentos contra a frente única não contêm o menor senso crítico. São antes as desculpas frágeis dos líderes reacionários da social-democracia, que preferem sua frente única com a burguesia à frente única do proletariado. Não. Essas desculpas não se sustentam. O proletariado internacional conhece toda a amargura da tribulação causada pela cisão na classe trabalhadora e fica cada vez mais convencido de que a frente única, de que a unidade de ação do proletariado em escala nacional e internacional é necessária e perfeitamente possível. ¹⁷⁰ Publicado anonimamente no jornal O Pantera Negra , em 17 de julho de 1969. ¹⁷¹ Denominação dos membros da nobreza alemã, constituída por grandes proprietários de terras e militares de elite. Os junkers foram uma classe de proprietários feudal que se modernizou e aburguesou na transição para o capitalismo, sendo paradigmáticos da chamada via prussiana de acumulação capitalista. ¹⁷² Estado alemão. Mensagem às mulheres revolucionárias Por Candi Robinson ¹⁷³ Mulheres negras! Mulheres negras, Levantem a cabeça e olhem para frente. Nós também somos necessárias na revolução. Nós também somos fortes. Nós também somos uma ameaça para o inimigo opressivo. Nós somos revolucionárias. Nós somos a outra metade de nossos homens revolucionários. ¹⁷⁴ Nós somos suas metades iguais, seja com uma arma na mão ou batalhando nas ruas para pôr esse país em um rumo socialista. Irmãs, eduquemos nosso povo.

Combata o liberalismo e combata o chauvinismo masculino. Desperte nossos homens para o fato de que somos nem mais nem menos que eles. Somos tão revolucionárias quanto eles. Por muito tempo temos estado sozinhas. Por muito tempo temos sido mulheres sem homens, por muito tempo temos sido duplamente oprimidas, não somente pela sociedade capitalista, mas também por nossos homens. Agora já não estamos mais sós, nossos homens estão ao nosso lado. Nós, mulheres e homens revolucionários, somos um a metade do outro. Devemos continuar educando nossos homens e conduzir suas mentes desde o nível do chauvinismo masculino a um nível superior. Nossos homens precisam, querem e amarão seus filhos, que saem de nosso útero fecundo. Eles necessitam da nossa confiança e do nosso encorajamento tanto quanto precisamos dos deles. Precisam de nós para educá-los, ao povo e aos nossos filhos tanto quanto nós precisamos deles para nos educar. Irmãs, somos convocadas pela própria vida. Somos convocadas pela revolução. Somos mães de revolucionários, conosco está o futuro de nosso povo. Nós, minhas irmãs, somos mães da revolução e dentro de nosso útero está o exército do povo. Irmãs! A revolução está aqui! Tragamos o exército! Tragamos as armas! Nós, irmãs, somos mulheres revolucionárias de homens revolucionários! Somos as mães da revolução! ¹⁷³ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 9 de agosto de 1969. ¹⁷⁴ Provável referência à frase popularizada por Mao Tsé-Tung: “As mulheres sustentam a outra metade do céu”. Carta aberta a Stokely Carmichael Por Eldridge Cleaver ¹⁷⁵ A Stokely Carmichael – Conacri, Guiné Sua carta de renúncia ao cargo de primeiro-ministro do Partido dos Panteras Negras veio, penso eu, com um ano de atraso. Na verdade, desde o dia de sua indicação para essa posição – 17 de fevereiro de 1968 –, os eventos provaram que você não estava apto para a função, em primeiro lugar. Mesmo nessa época, era claro que sua posição sobre a coalizão com organizações revolucionárias brancas estava em conflito com a do Partido dos Panteras Negras. Mas pensamos que, com o tempo, até você seria capaz de se livrar da paranoia da SNCC [Comitê Não Violento de Coordenação

Estudantil] sobre o controle branco e seguir com a tarefa de construir o topo da maquinaria revolucionária que precisamos nos Estados Unidos a fim de unir todas as forças revolucionárias do país para derrubar o sistema do capitalismo, do imperialismo e do racismo. Eu sei que esses termos são chutados por aí como corpos sem vida e que é fácil permitir que as terríveis realidades por trás deles sejam obscurecidas pela repetição excessivamente frequente. Mas quando você vê a miséria na qual o povo vive como resultado das políticas dos exploradores, quando vê os efeitos da exploração nos corpos desnutridos das crianças, quando vê a fome e o desespero, então esses termos ganham vida de uma nova maneira. Já que você fez essa viagem por si mesmo e viu tudo isso com seus próprios olhos, deveria saber que o sofrimento não vê cor, que as vítimas do imperialismo, do racismo, do colonialismo e do neocolonialismo vêm em todas as cores e que estas vítimas precisam de uma unidade baseada em princípios revolucionários ao invés da cor de pele. As outras acusações que você faz em sua carta – sobre a nossa recémdescoberta ideologia, nosso dogmatismo, nossa “torção de braços” ¹⁷⁶ etc. – parecem-me ser de importância secundária porque, com exceção, talvez, do honorável Elijah Muhammad, ¹⁷⁷ você é a figura mais dogmática na cena atual, e eu nunca o vi se opor à “torção de braços” ou, aliás, pescoços. De várias maneiras, a sua carta me chocou por ser um eco e uma reencenação das acusações lançadas contra o Partido pelos lambedores de botas diante do Comitê McClellan. ¹⁷⁸ E já que você escolheu este momento para denunciar o Partido, nós – e tenho certeza que muitas pessoas de fora do Partido – devemos levar em consideração sua carta sob esse prisma. O único ponto em sua carta que eu penso que [parece] realmente [ter sido] você [a escrever] é o ponto sobre a coalizão com os brancos, porque foi o ponto em torno do qual as nossas diferenças giraram desde o início. Você nunca foi capaz de distinguir a história do Partido dos Panteras Negras da história da organização da qual você uma vez fora presidente – o Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil. É compreensível que você possa ter todo esse medo de que as organizações negras sejam controladas, ou parcialmente controladas, por brancos, porque a maior parte de seus anos no SNCC foram gastos precisamente sob estas condições. Mas o Partido dos Panteras Negras nunca esteve nesta situação. Porque nós nunca tivemos que tomar o controle da nossa organização das mãos dos brancos, nunca nos prendemos ao tipo de medo paranoico que foi desenvolvido por vocês na SNCC. Portanto, somos capazes de nos sentarmos com os brancos e forjar soluções para nossos problemas comuns sem tremer na base sobre sermos ou não controlados no processo. Sempre me pareceu que você menospreza a inteligência dos irmãos e irmãs negros e negras quando constantemente os alerta para terem cuidado com a gente branca. Afinal, você não é a única pessoa negra de toda a Babilônia a ter sido vitimada pelo racismo branco. Mas você soa como se estivesse com medo das pessoas brancas, como se ainda estivesse fugindo de apanhadores de escravos que porão as mãos sobre seu corpo e lhe jogarão em um saco. A bem da verdade, foi precisamente sua enunciação nebulosa do poder negro que forneceu à estrutura de poder uma nova arma contra nosso povo.

O Partido dos Panteras Negras tentou lhe dar uma chance de resgatar o poder negro [da mão] dos porcos que se apoderaram dele e o transformaram na fundamentação para o capitalismo negro. Com James Farner no governo Nixon, presidindo a implementação do capitalismo negro sob a palavra de ordem do poder negro, qual valor tem agora tal palavra de ordem na luta de nosso povo por libertação? O melhor que você pode fazer para combater este mal é denunciar o Partido dos Panteras Negras? Eu pensaria que a sua responsabilidade vai um pouco além disso. Mesmo que você estivesse certo quando disse que Lyndon B. Johnson nunca se levantaria pela palavra de ordem do poder negro, Nixon o fez e a está financiando com milhões de dólares. Então, agora, seus velhos amigos do poder negro estão embolsando a sua palavra de ordem. Com efeito, seu clamor por poder negro se tornou a graxa para facilitar o ingresso da burguesia negra na estrutura de poder. Ao lhe dar a posição de primeiro-ministro do Partido dos Panteras Negras, estávamos tentando lhe resgatar da burguesia negra que havia se agarrado às suas costas e montado em você como em uma mula. Agora eles roubam a bola de você e correm para o touchdown : ¹⁷⁹ seis pontos para Richard Milhous Nixon. Em fevereiro de 1968, no Comício de Aniversário pela Libertação de Huey, no qual você fez seu primeiro discurso público após retornar aos Estados Unidos de sua viagem triunfal aos países revolucionários do Terceiro Mundo, você aproveitou a ocasião para denunciar a coalizão que o Partido dos Panteras Negras havia feito com o branco Partido pela Paz e Liberdade. O que você conclamou, em vez disso, foi uma Frente Única Negra que uniria todas as forças da comunidade negra, da direita à esquerda, cerraria fileiras contra os brancos e [com a qual] partiríamos todos para a liberdade. Dentro das fileiras da sua Frente Única Negra, você queria incluir os nacionalistas culturais, os capitalistas negros e os Pai Tomás profissionais, mesmo que fossem precisamente estes três grupos que estivessem trabalhando para matar essa sua merda antes mesmo que ela fedesse a peido (lembra do que Ron Karenga causou à sua reunião em Los Angeles?). Você tinha grandes sonhos naqueles dias, Stokely, e suas visões, por fora, eram heroicas. Por dentro, no que dizia respeito aos detalhes da realidade, sua visão era cega. Você era incapaz de distinguir seus amigos de seus inimigos, porque tudo que conseguia ver era a cor de pele das pessoas. Foi essa cegueira que o levou a defender Adam Clayton Powell, ¹⁸⁰ aquele chacal do Harlem, quando ele passou a ser atacado pelos seus irmãos chacais no Congresso. E foi essa cegueira que o levou a defender aquele policial negro em Washington DC que estava sendo fodido pelos brancos que estavam acima dele no Departamento de Polícia, sob o mando dos quais ele carregava sua armada quando patrulhava a comunidade negra. Em suma, seu hábito de olhar para o mundo através de óculos de lentes negras o levaria, no âmbito doméstico, a cerrar fileiras com inimigos do povo negro como James Farmer, Whitney Young, Roy Wilkins e Ron Karenga; e, no âmbito internacional, você terminaria no mesmo saco que Papa Doc Duvalier, Joseph Mobutu e Haile Selassie. Sim, fomos contra esta merda antes e somos contra isso agora ainda mais fortemente, especialmente desde que o governo Nixon roubou de você seu programa e, penso eu, lhe excluiu. E agora você está indo libertar a África! Por onde vai começar?

Gana? Congo? Biafra? Angola? Moçambique? África do Sul? Se você não sabe disso, penso que deveria saber que irmãos em África que estão envolvidos na luta armada contra os colonialistas não gostariam de nada menos do que você arrumar sua mala cheia de souvenirs africanos e partir de volta para a Babilônia. Eles nunca perdoaram seu falatório exagerado em Dar-es-Salaam, quando você se arrogou dizer-lhes como conduzir seus assuntos. Parece-me agora que você está preso entre os extremos de sua própria retórica. Por um lado, você se removeu da luta na Babilônia e, por outro lado, você não está prestes a se converter no redentor da mãe África. Os inimigos do povo negro aprenderam algo com a história, mesmo que você não tenha, e estão descobrindo novas formas de nos dividir mais rápido do que nós estamos descobrindo novas formas de nos unir. Uma coisa que eles sabem, e que nós sabemos, e que parece que lhe escapa, é que não haverá nenhuma revolução ou libertação negra nos Estados Unidos enquanto os revolucionários negros, brancos, mexicanos, porto-riquenhos, indígenas, chineses e esquimós não estiverem dispostos ou não forem capazes de se unir em uma maquinaria funcional, que possa dar conta da situação. Suas falas e medos sobre uma coalizão prematura são absurdas, porque nenhuma coalizão contra a opressão, estabelecida por forças que possuam integridade revolucionária, jamais será prematura. Se algo, ela está muito atrasada, porque as forças da contrarrevolução estão varrendo o mundo, e isso acontece precisamente porque, no passado, o povo esteve unido sob bases que promoveram a desunião entre as raças e ignoravam princípios e análises revolucionários básicos. Você está zangado porque o Partido dos Panteras Negras se orienta com os princípios revolucionários do marxismo-leninismo, mas se olhar ao redor do mundo verá que os únicos países que se libertaram e conseguiram resistir à onda da contrarrevolução são precisamente aqueles países que possuem fortes partidos marxista-leninistas. Todos esses países que lutaram por libertação exclusivamente sobre as bases do nacionalismo caíram vitimados pelo capitalismo e pelo neocolonialismo, e, em muitos casos, encontram-se agora sob tiranias tão opressoras quanto os antigos regimes coloniais. Que você não sabe nada sobre o processo revolucionário, é evidente; que sabe menos ainda sobre os Estados Unidos e seu povo também é bastante evidente; e que sabe ainda menos sobre a humanidade do que sobre o resto é ainda mais evidente. Você fala de um “amor imortal pelo povo negro”. Um amor imortal pelo povo negro que nega a humanidade de outros povos está condenado. Foi o amor imortal do povo branco por si mesmo que os levou a negar a humanidade dos povos de cor e que despojou os próprios brancos de humanidade. Para mim, pareceria que um amor imortal pelo nosso povo deveria, no mínimo, levá-lo a uma estratégia que ajudaria a nossa luta por libertação em vez de levá-lo a uma coalizão de propósitos com o Comitê McClellan em sua tentativa de destruir o Partido dos Panteras Negras. Bem, até logo, Stokely, e se cuide. E esteja alerta com algumas pessoas brancas e com algumas pessoas negras, porque garanto que entre ambos há alguns que têm dentes e irão morder. Lembre-se do que o irmão Malcolm disse em sua autobiografia: “Nós tínhamos a melhor organização que o homem negro jamais teve nos Estados Unidos – e os pretos a arruinaram!”.

Poder ao povo! ¹⁷⁵ Publicado na revista Ramparts em setembro de 1969. ¹⁷⁶ Em inglês, arm-twisting : uma metáfora para qualquer forma de pressão, seja física ou moral. ¹⁷⁷ Figura tão importante quanto controversa na história do movimento negro nos Estados Unidos. Liderou o grupo Nação do Islã desde 1934 até sua morte, em 1975. Malcom X, que originalmente foi seu protegido, tornouse grande crítico das concepções sectárias, identitárias e dos métodos reacionários de Elijah Muhammad, chamado “honorável” por seus seguidores. As críticas de Malcom provocaram revolta entre as bases da Nação do Islã, motivando o atentado que pôs um fim sangrento à sua trajetória da radicalização política. George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazi Americano, definiu Muhammad como “o Hitler do homem negro”. ¹⁷⁸ Estabelecido em 30 de janeiro de 1957, o Comitê nomeado por seu presidente, o senador John McClellan, do Arkansas, investigava conexões entre o movimento sindical e o crime organizado. ¹⁷⁹ O touchdown é o ponto culminante em uma partida de futebol americano, quando o jogador atinge a área final de dez jardas do campo, protegida pela defesa adversária, marcando assim seis pontos para seu time e o direito de chutar a bola entre as traves. ¹⁸⁰ Adam Clayton Powell Jr. foi um pastor batista e um político democrata americano, o primeiro afro-americano a ser eleito por Nova York para o Congresso Nacional dos Estados Unidos, 1945 a 1971. A plataforma e o programa de dez pontos do Partido dos Panteras Negras Por Bobby Seale ¹⁸¹ “QUEREMOS TERRA, PÃO, HABITAÇÃO, EDUCAÇÃO, ROUPA, JUSTIÇA E PAZ...”

Hoje, isso é apenas parte do número 10 do “O que queremos” da Plataforma e programa de dez pontos do Partido dos Panteras Negras . As massas trabalhadoras exploradas e os povos pobres e oprimidos de todo o mundo querem e precisam dessas demandas por sobrevivência humana básica. O Partido dos Panteras Negras começou quando Huey e eu descrevemos os desejos e as necessidades políticas básicas e os colocamos na forma de uma plataforma e um programa com dez pontos de “O que queremos” e dez de “No que acreditamos”. Huey e eu nos sentamos lá no Escritório de Pobreza ¹⁸² onde trabalhávamos, em uma noite de outubro de ¹⁹⁶⁶, e começamos um partido político revolucionário, sabendo que o programa não era apenas algo que tínhamos pensado. O programa era um esboço dos desejos e necessidades políticas básicas que remontam à história do povo negro sofrendo a opressão exploradora da classe dominante gananciosa, cruel e capitalista da América: a plataforma e o programa nada mais são do que os quatrocentos anos de exigências gritantes de nós, negros americanos. Elas são exigências básicas de “O que queremos” e “No que acreditamos”. Naturalmente, essas demandas têm uma semelhança proletária internacional com aquelas de qualquer povo que lute contra os três níveis de opressão: os empresários gananciosos, exploradores, ricos e avarentos; os políticos enganadores, mentirosos, astutos e demagógicos; e os policiais atrozes, assassinos, brutalizantes, intimidadores, fascistas e porcos. Esses três níveis de opressão existem em praticamente todos os países onde há a exploração capitalista explícita e nos quais os círculos minoritários, mas opressivos, da classe dominante da América estão na dianteira de tudo. Eles lideram essa opressão com sua guerra imperialista, fascista, agressiva e colonialista, não apenas no exterior, mas aqui em casa na América (Babilônia), onde centenas de anos de racismo sutil e maníaco foram organizado e desenvolvido pelos ricos, gananciosos, organizado e desenvolvido em um imperialismo-fascismo doméstico. O imperialismo sobre a comunidade ¹⁸³ manifesta-se ou é facilmente visto no tocante à colonização doméstica de povos negros, chicanos, ¹⁸⁴ indianos e outros não brancos enfiados em guetos miseráveis e/ou em plantações do Sul e reservas, com os porcos assassinos, fascistas e brutalizantes ocupando as comunidades e áreas do mesmo modo como uma tropa estrangeira ocupa um território. O imperialismo doméstico desse tipo não se limita aos povos negros, marrons ¹⁸⁵ e vermelhos, especialmente nos dias de hoje, quando as massas americanas levam tempo para se lembrar da repressão fascista de milhares de policiais e guardas nacionais à Convenção Democrática em novembro passado. Além disso, nos últimos anos, em todos os principais campi de faculdades, o fascismo brutal e assassino da América apareceu contra estudantes brancos, negros e marrons e outros estudantes que tentaram usar seus “direitos democráticos” básicos para mudar as administrações racistas e protestar contra a guerra no Vietnã e a brutalidade e a pobreza nos guetos da América. O fascismo na América existe há muitos anos, antes que surgissem as formas recentes de repressão. E todo americano (e o povo negro em particular) PODE identificá-lo exatamente como é. O racismo somado ao capitalismo gesta o fascismo quando os empresários avarentos se recusam a dar o controle aos trabalhadores desempregados e a seus sindicatos. E a

história é testemunha disso desde os anos de repressão e desemprego na década de 1930 até os dias atuais, quando o povo sindicalizado trabalhará e fará greve e os povos exigirão diante de nossos olhos que também possam trabalhar. E policiais brutais aparecerão e políticos ardilosos tentarão enganar e desorientar o povo, oprimir o povo e reprimir suas ações, para dominar as próprias fábricas onde ele tem que produzir bens e riquezas que nunca recebe de volta. O fascismo prolifera quando os políticos preguiçosos, enganadores e demagógicos mentem e ludibriam o povo sobre o sofrimento ao qual o povo negro está sujeito, aos quais os povos marrons estão sujeitos, aos quais quaisquer povos de cor ou povos de grupos minoritários ou povos pobres estão sujeitos. Quando o povo se move para se manifestar ou protestar e esses trabalhadores dos direitos humanos e trabalhadores dos direitos civis são assassinados e mortos; quando bebês são bombardeados na igreja, como em 1963, em Birmingham; milhares de manifestantes são espancados e brutalizados, como em Birmingham, Alabama, em 1963. Isso por si só começa a revelar os políticos demagógicos pelo que eles são – com promessas de acabar com a pobreza, com promessas de uma “grande sociedade”, as promessas de “investigar o assunto” etc. etc. etc. Por causa da plataforma e do programa básico de dez Pontos que foram criados para lidar com a necessidade de pleno emprego para nosso povo, que as conhece de cor; que lidam com a necessidade de moradias decentes, próprias para o abrigo de seres humanos; que lidam com uma educação decente que nos ensine nossa história e nosso lugar no mundo e na sociedade; que lidam com a necessidade de julgamentos justos por nossos próprios pares ou por pessoas de nossas comunidades negras ou dos distritos em que vivemos; por causa de um programa que fala sobre terra, pão, moradia, educação, vestimenta, justiça e paz; por causa de um programa que fala sobre um plebiscito supervisionado das Nações Unidas a ser realizado em toda a colônia negra, onde os súditos coloniais participaríamos e que determinariam nossa vontade e nosso destino; por causa de um programa que afirmava que queríamos que os negros fossem isentos dos serviços militares por causa de todas as injustiças que sofremos depois de travar guerras pela classe dominante fascista (e nos recusamos a continuar morrendo por eles); porque nossa plataforma e nosso programa de dez pontos tinham neles o ponto número 7, que diz: “Queremos o fim imediato da brutalidade policial e do assassinato de negros”; porque Huey P. Newton montou esse programa e fundou essa organização com essa plataforma e esse programa de dez Pontos que descrevia os desejos e necessidades políticas básicas do povo; por causa disso; porque começamos a implementá-lo; porque fomos às ruas para começar a ensinar e educar o povo sobre os métodos estratégicos para ter esses desejos e necessidades políticas atendidos; por causa disso, Bobby Hutton foi assassinado pelos porcos fascistas de Oakland. Por causa disso, Alprentice “Bunchy” Carter e o irmão John Huggins também foram assassinados na Ucla pelos cães ciumentos, egoístas e suínos, que trabalhavam para os porcos da classe dominante. Por causa disso e por causa dessa Plataforma e programa de dez pontos , que existe pelos desejos e necessidades políticas básicas do povo negro aqui na América e de qualquer outro povo e qualquer outra luta proletária que esteja ocorrendo em todo o mundo; por causa disso tivemos

mais dois irmãos assassinados por esses porcos nacionalistas negros e nacionalistas culturais. Por causa desse programa, temos presos políticos. Temos membros mortos. Temos uma guerra acontecendo. A guerra começou há quatrocentos anos e deve ser encerrada. E somente se continuarmos avançando para a implementação da Plataforma e programa de dez pontos ; se nós nos apegarmos ao fato de que, mediante toda a luta, receberemos algum tipo de liberdade, dignidade e justiça; [só assim] será o [ponto] número 10 realizado. Dizemos no ponto 10: “queremos um pouco de terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz”. Por esse motivo, parece que morreremos, parece que estaremos no exílio e parece que teremos presos políticos. Então libertemos todos os presos políticos por causa da Plataforma e programa de dez pontos . Porque essa é a ideia, essa é a ideia que nunca pode ser detida. E (como nosso ministro da Defesa nos explicou de maneira tão eloquente em “Prisão – onde está sua vitória?”) a ideia pertence ao povo. PODER PARA O POVO! ¹⁸¹ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 18 de outubro de 1969. ¹⁸² Em inglês, Poverty Office : Bobby Seale se refere ao escritório do Centro de Combate à Pobreza dos bairros do Norte de Oakland, em que trabalhou com Huey P. Newton e Bobby Hutton, no norte de Oakland. Este programa de ação comunitária foi criado pela legislação de “Guerra à Pobreza” introduzida por Lyndon B. Johnson. ¹⁸³ Eldridge Cleaver foi o primeiro a utilizar a expressão community imperialism , imperialismo sobre a comunidade, em seu artigo de 18 de maio de 1968 no jornal O Pantera Negra . Aqui, como em diversos escritos dos teóricos do Partido dos Panteras Negras, estabelece-se uma relação de aproximação entre a exploração imperialista dos Estados Unidos no estrangeiro e a exploração e opressão dos povos oprimidos, como o povo negro, no ambiente doméstico do país. ¹⁸⁴ Abreviação de “mexicanos”. ¹⁸⁵ Optamos pela tradução literal de brown para “marrom”, não para “pardo”, uma vez que o termo se refere notadamente aos povos latinos, nãocaucasianos; e não às pessoas miscigenadas, como o segundo termo se utiliza no Brasil. É uma luta de classes, porra! Por Fred Hampton ¹⁸⁶ O que vamos tentar fazer, é que vamos tentar bater um papo e educar. Alegra-nos tentar acrescentar alguma informação a mais. E isso será difícil de fazer. A irmã [que falou antes] fez um belo discurso, na minha opinião. Chaka ¹⁸⁷ também, o vice-ministro de Informações, esse é o trabalho dele – informar. Mas vou tentar informá-los também.

Uma coisa que Chaka se esqueceu de mencionar é que irmãos e irmãs não fazem exatamente o mesmo. Nós não pedimos a qualquer irmão para engravidar ou coisa assim. Não pedimos a nenhum dos irmãos para que tenham bebês. Então isso é um pouco diferente também. Depois que nós terminarmos de falar, para aquelas pessoas entre vocês que acham que não entenderam completamente a ideologia exposta aqui até então, e as ideologias que irei expor, nós teremos um momento para perguntas e respostas. Para aquelas pessoas que têm seus sentimentos feridos por pretos falando sobre armas, nós teremos um “choraço” depois da sessão de perguntas e respostas. E para aquelas pessoas brancas que estão aqui para mostrar algum tipo de grande manifestação de síndrome de culpa e querem que as pessoas clamem seu amor por elas, depois do “choraço”, se tivermos tempo, permitiremos a todos vocês que façam um “amorzaço”. ¹⁸⁸ Então agora vamos ao que interessa. Em primeiro lugar, sobre o que algumas pessoas chamam de JULGAMENTO. Nós chamamos isso de HECATOMBE, chamamos de hecatombe. Isso se soletra h-e-c-a-t-o-m-b-e. E eu sei que há dicionários suficientes circulando por aqui que provavelmente encheriam toda a sala, então vocês podem conferir isso. Hecatombe significa um sacrifício. Normalmente, significa um sacrifício de um animal. Então gostaríamos que vocês, se quiserem fazê-lo, se as pessoas perguntarem: “vocês estiveram no julgamento?”, contem isso, que vocês compareceram à ou ouviram sobre a hecatombe, porque é isso que aquilo é. É um sacrifício público. É uma situação na qual estão tentando julgar injustamente, ilegalmente nosso presidente. Nós enxergamos isso como uma versão de 1969 da Decisão de Dred Scott. Vemos o presidente Bobby como sendo a manifestação de Dred Scott de 1857. E vemos o juiz Hoffman como sendo uma manifestação do juiz Taney em 1857. Porque, em 1857, Dred Scott era um negro, um ex-escravo – ele ainda era um escravo, porque nós somos escravos – que foi à corte e evidentemente teve algum tipo de má compreensão sobre o que ele era na sociedade americana, onde se encaixava. Ele foi à Suprema Corte para que o juiz Taney lhe respondesse e tentasse esclarecer algumas ideias equivocadas que tinham rondando sua velha cabeça. E o juiz Taney fez exatamente isso. O juiz explicou muito claramente que, “preto, você não é ninguém, você é uma propriedade, você é um escravo. Que os sistemas – o sistema legal, o sistema judicial – todos os tipos de sistemas que operam na América hoje foram estabelecidos muito antes de você chegar aqui, irmão. Porque nós o trouxermos para fazer dinheiro, para manter o que nós temos em funcionamento, esses avarentos, gananciosos homens de negócios, para manter o que nós temos funcionando”. E Dred Scott não conseguia compreender isso. Houve uma grande contestação. E, naquela época, o juiz Taney fez uma declaração que se tornou famosa. E esta declaração, talvez não nas mesmas palavras, mas por meio de ações e de prática social, está sendo expressa agora no novo edifício do Reichstag em Jackson e Dearborn. ¹⁸⁹ Esta se expressa pelo juiz Hoffman, dizendo a mesma coisa que o juiz Taney disse em ¹⁸⁵⁷. Quando ele contou a

Dred Scott que “preto, um homem negro na América não possui nenhum direito que um homem branco seja obrigado a respeitar”. E essa é a mesma coisa que o juiz Hoffman está dizendo a nosso presidente todos os dias. E nós entendemos. Vocês sabem, muitas pessoas se irritam com o Partido porque o falamos sobre uma luta de classes. E as pessoas que se irritam com isso são oportunistas, covardes e individualistas, e qualquer coisa que não revolucionários. E eles se utilizam dessas coisas como desculpas para justificar e invocar um álibi e para bonificar sua falta de participação na luta revolucionária real. Então dizem: “bem, eu não posso entrar no Partido porque os Panteras estão absortos lidando com radicais do país opressor, ou pessoas brancas, ou alemães ou o que quer que seja. Eles dizem que essas são algumas das desculpas que eu uso para negar o motivo pelo qual realmente não estou na luta”. Nós temos muitas respostas para essas pessoas. Em primeiro lugar, dizemos antes de mais nada que a prioridade dessa luta é a classe. Que Marx e Lênin, e Che Guevara e Mao Tsé-Tung e qualquer outro que já disse ou soube ou praticou qualquer coisa sobre revolução, sempre disse que a revolução é uma luta de classes. Há uma classe – a oprimida – e outra classe – a opressora. Este há de ser um fato universal. Aqueles que não o admitem são aqueles que não querem se envolver na revolução, porque sabem que, enquanto estiverem lidando com a questão racial, nunca estarão envolvidos em uma revolução. Eles podem falar sobre números, podem lhe enrolar de muitos, muitos jeitos, mas assim que você começar a falar sobre classes, então tem que começar a falar sobre armas. E isso é o que o Partido tinha que fazer. Quando o Partido começou a falar sobre luta de classes, achamos que tínhamos que falar sobre armas. Nós nunca negamos o fato de que há racismo na América, mas dissemos que o subproduto, o que decorre do capitalismo, resulta ser o racismo. Que o capitalismo vem primeiro e depois vem o racismo. Que quando eles trouxeram escravos para cá, o fizeram para ganhar dinheiro. Então, primeiro veio a ideia de que queriam fazer dinheiro, então os escravos vieram com esse objetivo. Isso significa que o capitalismo tinha que [vir antes]; em termos históricos, o racismo tinha que vir do capitalismo. Tinha que haver o capitalismo primeiro e o racismo foi um subproduto deste. Qualquer um que não admita isso está mostrando, por meio de sua não admissão e sua não participação na luta, que não é nada de uma pessoa incapaz de estabelecer um compromisso; e que a única coisa que está em jogo, para ela, é a educação que recebe nessas instituições – educação suficiente para ensiná-la alguns álibis e ensiná-la que tem que ser negro e tem que mudar seu nome. E isso é maluco. O ministro da Educação do Partido, Raymond “Masai” Hewitt, e o chefe de gabinete, David Hilliard, há pouco voltaram da África, de uma visita a Eldridge Cleaver. E disseram que os pretos por lá nunca usarão o tipo de vestimenta que alguns desses tolos africanizados daqui usam. Eles estão usando trapos, ou então usando nada. E se vocês querem se vestir como alguns povos africanos, então vocês têm que se vestir como os angolanos ou

o povo em Moçambique. Esses são os povos que estão fazendo alguma coisa. Vocês precisam se vestir como os povos que estão em lutas de libertação. Mas não, vocês não querem se africanizar assim, porque assim que se vestirem como alguém de Angola ou Moçambique, depois de vestirem o que quer seja – e isso pode ser qualquer coisa, desde trapos até alguma coisa da Saks Fifth Avenue –, ¹⁹⁰ terão que trajar também algumas cartucheiras, algumas AR-¹⁵ e algumas ³⁸mm; terão de vestir algumas Smith & Wesson e algumas Colt .⁴⁵, porque é isso que estão usando em Moçambique. E qualquer preto que corra por aqui lhe dizendo que, quando seu cabelo está longo e você está vestindo um dashiki , tem bùbas e todas essas sandálias, todas essas formas de ação, então você é revolucionário, e qualquer um que não pareça com você não o é, este homem tem de sair de sua mente. Porque sabemos que o poder político não flui da manga de um dashiki . Sabemos que o poder político nasce do cano de uma arma. E isso é verdade. Isso tem de ser verdade. Sabemos que, a fim de sermos capazes de falar sobre poder, que aquilo que você tem de ser capaz de falar sobre é a habilidade de controlar e definir os fenômenos e fazê-los agir de uma maneira desejada. Isso significa que se você não consegue controlar e definir os fenômenos e fazê-los agir da maneira desejada, então nem sequer tem nada que se assemelhe ao poder, não sabe e provavelmente nunca saberá o que é o poder. E nós sabemos o que é o poder, e sabemos quem está fazendo mal ao povo – o inimigo. E todo mundo quer falar sobre... os costeletas de porco ¹⁹¹ contarão a você em um minuto. “Os porcos não querem que você fique negro. Eles não querem que você tenha acesso aos programas de estudos negros. Não querem que você use dashikis . Não querem que aprenda sobre a terra-mãe e quais raízes comer do solo. Eles não querem isso – porque assim que você tiver isso, assim que você voltar à cultura do século XI, você ficará bem”. Veja as pessoas que retornaram à cultura do século XI. Veja as pessoas que estão usando dashikis e bùbas e pensando que isso irá libertá-las. Veja todas essas pessoas, descubra onde estão localizadas, descubra os endereços de seus escritórios, escreva-lhes uma carta e pergunte a elas, no ano passado, quantas vezes o escritório delas foi atacado. E escreva para qualquer [secção do] Partido dos Panteras Negras, em qualquer lugar dos Estados Unidos, qualquer lugar na Babilônia, e pergunte quantas vezes os porcos os atacaram. Então, quando fizer sua estimativa de ambos, perceberá do que é que os porcos não gostam. É nessa hora que você descobre aquilo de que os porcos não gostam. Nós fomos atacados três vezes desde junho. Sabemos do é que os porcos não gostam. Temos pessoas fugindo do país às centenas. Nosso ministro da Defesa está na cadeia; nosso presidente está na cadeia; nosso ministro da Informação está exilado; nosso tesoureiro, o primeiro membro do Partido, está morto. O vice-ministro da Defesa e vice-ministro da Informação, Alprentice Bunchy Carter e John Huggins, do sul da Califórnia, assassinados por costeletas de porco quando falavam sobre um programa da União de Estudantes Negros. ¹⁹² . Sabemos do que é que os porcos não gostam.

Dissemos que ninguém atiraria em um Pantera exceto um porco, porque os Panteras não representam nenhuma ameaça para ninguém que não os porcos. E se as pessoas disserem a vocês que os Panteras representam ameaças, então pergunte a elas que tipo de sentido isso faria, a não ser que seja acordar às 5h da manhã para alimentar o filho de alguém e então, às 3h da tarde, atirar nele – economizar uma refeição. Nós não precisamos fazer isso. Que sentido faria para nós abrir uma clínica gratuita na qual o único pré-requisito para receber atendimento médico é o de estar doente. E temos estudantes que estão tirando onda por aí, falando sobre estarem fazendo algo pela luta, eu quero saber: o que mais vocês poderiam fazer? E todos vocês vêm de Chicago. As pessoas estão falando sobre o Partido ter sido cooptado por gente branca. Isso é o que aquele minifascista, Stokely Carmichael, disse. Ele não é nada mais que um idiota. Na minha opinião é um idiota, porque o tenho conhecido há anos, e isso é tudo o que ele pode ser, se fica por aí queimando o filme do Partido dos Panteras Negras. Se nós fomos cooptados por gente branca, então confira as localizações de nossos escritórios, nosso programa de café da manhã, nossa clínica de saúde gratuita será aberta provavelmente neste domingo na [Rua] 16a com a Springfield. Por acaso todos não sabem onde fica a 16a com a Springfield? Não fica em Winnetka, entende. Não fica em DeKalb. Fica na Babilônia. Fica no coração da Babilônia, irmãos e irmãs. E aquela clínica gratuita foi colocada lá porque sabemos onde está o problema. Sabemos que o povo negro é o mais oprimido. E se não soubéssemos disso, então porque diabos andaríamos por aí falando sobre como a luta de libertação negra é a vanguarda para todas as lutas de libertação? Se houver algum dia qualquer libertação na terra natal, se houver qualquer libertação na colônia, então nós teremos que ser libertados pela liderança do Partido dos Panteras Negras e pela luta de libertação negra. Nós não negamos esse fato. Nós não ficamos bolados com alguém só porque esse alguém não é um Pantera. Não queremos que vocês pensem isso, porque podemos curtir Fred, digo, Everett, podemos gostar dele. Mas nós não podemos curtir Ron Karenga e LeRoi Jones. Não podemos gostar disso. Não conseguimos ver nenhuma prática social da parte deles, irmãos. Sabemos que ambos possuem nomes mais longos que meu braço. E ambos são, supostamente, tão inteligentes e tão espertos... E esse é o problema. Nós estamos falando sobre destruir o sistema, e eles têm receio de fazê-lo porque estão constantemente comprando propriedades dentro do sistema. E é meio difícil queimar na terça-feira o que você comprou na segunda-feira. Porque eles são um bando de capitalistas impenitentes. Eles nunca se arrependerão. E eles sabem mais. Nós tentamos criar desculpas para eles – “talvez eles tenham de passar por etapas, Fred”. Não, não é isso. Porque são muito mais velhos do que nós – eu tenho 21 anos. Nós somos todos jovens. Então, sobre etapas, eles não passaram por elas. Ron Karenga tem mais graus do que um termômetro. Ele está certo, ele tem mais graus do que um termômetro e continua a fazer o que está fazendo. E como enganam vocês?

Porque eles escolhem os líderes que eles querem. E promovem essas pessoas e as retratam como sendo seus líderes mas, de fato, não são líderes de ninguém. Isso é o que nós chamamos de “apologistas dos oprimidos”. Porque, depois que algo acontece, tudo o que podem fazer é apresentar apologias. Veja nos jornais. Agora eles estão desenhando imagens do presidente [Bobby Seale] acorrentado e amordaçado. Vocês não sabem que, se os noticiários, a imprensa oficial, tivesse se movido antes disso, eles poderiam ter detido o crescimento da maré fascista anos atrás? Mas eles endossaram, aderiram, apoiaram o que os fascistas estavam fazendo naquele momento. E agora isso está desabando sobre todo o povo. E um monte de pessoas pensa agora que suas mãos estão ficando sujas. Nós chamamos essas pessoas de servos ideológicos do fascismo dos Estados Unidos. E é isso o que elas são, porque servem ao fascismo ao não fazer nada a respeito dele até que a lei recaia sobre eles, só então se desculparão por isso, se arrependerão. Mas nós dizemos que esta é a mesma imprensa que querem que vejamos, que acreditemos nela e pensemos que age de boafé; a mesma imprensa que nos falou para acreditar que éramos alguém quando, de fato, não éramos ninguém. Eu penso que existe algo mais importante. Penso que o que Malcolm diz é importante. Agora relembrem. Aqueles estudantes estavam rindo de Malcolm. Vocês estão ligados? Eles estavam rindo de Malcolm. Por quê? Regis Debray diz que os revolucionários estão no futuro. Que os militantes e os costeletas de porco e toda essa gente, estudantes radicais, estão no presente, e que a maior parte do resto das pessoas tenta permanecer no passado. É por isso que, quando surge alguém que está no futuro, muitos de nós não conseguimos compreendê-lo. E a mesma coisa que vocês não compreendem em Huey P. Newton agora, não compreendiam em Malcolm quando ele estava vivo. Mas sabemos que, quando Malcolm se foi, o poço quase secou. Vocês não sentem a falta da água até que o poço seque, e ele quase secou. Huey P. Newton pôde ler, e não é como muitos de nós. Muitos de nós lemos e lemos e lemos, mas não temos nenhuma prática. Temos um monte de conhecimento em nossas cabeças, mas nunca o praticamos; e nunca cometemos quaisquer erros e os corrigimos, tornardo-nos capazes de fazer alguma coisa propriamente. Então acabamos com, como dizemos, mais graus do que um termômetro, mas não somos capazes de cruzar a rua e mascar chiclete ao mesmo tempo, porque temos todo aquele conhecimento, mas ele nunca foi exercitado, nunca foi praticado. Nós nunca o testamos com o que acontecia realmente. A isso chamamos de testar [a ideia] com a realidade objetiva. Vocês podem ter qualquer tipo de pensamento em sua mente, mas têm de testá-lo com o que está lá fora. Veem o que quero dizer? Eles nos convenceram a comprar a barra de chocolate, jogar o doce fora e comer a embalagem. Eles são as únicas pessoas no mundo, entendem, isso mesmo, que podem vender gelo para os esquimós. Podem vender perucas naturais para pretos que já têm cabelo natural. E vejam, essa é a vergonha. Eles conseguem vender para um homem de só uma perna provavelmente 24

bilhetes para um concurso de chutar o traseiro, mesmo ele sabendo que não tem razão para estar lá. Vejam, essas são as coisas que eles podem fazer por nós, e então nos fazem acreditar que o que estão dizendo é certo, que é de boa-fé, que se justifica. Nós dizemos que isso está errado, que é incorreto, que Malcolm, quando falou aos estudantes – e vocês provavelmente escutaram aquela gravação –, falou com alguns judeus, algumas pessoas ligeiras, e contou isso a elas. Vocês podem dizer: “bem, sinto que as pessoas deveriam ser capazes de andar por aí nuas, porque estupro é amor”. Isso é idealismo. Veem o que quero dizer? Vocês estão operando na metafísica. Estão operando na subjetividade, porque não a estão testando com a realidade objetiva. E o que está realmente errado é que vocês não testam. Porque, se testarem, se tornarão objetivos. Porque tão logo andem lá fora, todo um bocado de realidade objetiva predará sua bunda e violará o que quer que você tenha. Então, quando quer que isso aconteça, é porque as pessoas assumiram um monte de ideias erradas. É por causa disso que muitos de vocês não conseguem entender e concordar com um monte de coisas que dizemos. Vocês nunca tentaram. Vocês não sabem se as pessoas apoiam o programa de café da manhã, porque nunca alimentaram ninguém. Vocês não sabem nada sobre as clínicas gratuitas porque nunca perguntaram a ninguém. Vocês não sabem nada sobre o bem que uma arma faz por vocês porque nunca experimentaram uma. E nós dizemos que, se nascessem e dissessem que não gostam de peras sem nunca as provarem, vocês seriam uns mentirosos. Vocês não sabem se gostam de peras, e não podem alegar que não gostam de peras. O único jeito pelo qual qualquer um pode dizer o gosto de uma pera é se essa própria pessoa a provar. Esse é o único jeito. Isso é a realidade objetiva. É com isso que o Partido dos Panteras Negras lida. Nós não somos metafísicos, nós não somos idealistas, nós somos materialistas dialéticos. E nós lidamos com o que a realidade é, gostemos ou não. Muitas pessoas não conseguem se identificar com isso porque tudo o que fazem é amordaçado pela forma como gostariam que as coisas fossem. Nós dizemos que isso é incorreto. Vocês olham e veem como as coisas são e então lidam com elas. Andamos por aí falando que “vamos amar todo o povo negro. Nós temos um amor imortal por todo o povo negro”. E vocês sabem de uma coisa? Que se Malcolm voltasse, passaria por um milhão de homens da Klan para chegar até Stokely e arrebentaria seu traseiro maldito. Você me ouviu? Eles não permitiriam nenhuma pessoa branca lá. Mas Malcolm está morto. Agora, o que aconteceu? Qual o nome daquele tolo, James Whitmore. ¹⁹³ Ele não pintou a pele dele? Porque eles tinham nomes como 37X, 15X, mais negros do que a cor negra, e eram capazes de passar batidos por causa desse potencial ignorante que estes maníacos estão tentando incitar contra nós – “Nós vamos amar todo o povo negro, porque todo preto é um homem negro em potencial”. O homem que testemunhou contra o presidente Bobby no julgamento conspiratório em andamento em Chicago era um homem negro. O homem que enviou o presidente Bobby para julgamento por assassinato, em

Connecticut, é um homem negro. O homem que assassinou Malcolm X é um homem negro. O juiz que negou a fiança de Eldridge Cleaver depois de um homem branco a ter garantido – um preto que investigou por sua própria conta e disse, “preto, eu não acho que você deveria estar nas ruas” – era um homem negro, Thurgood Marshall, Thurgood “Nada de Bom” ¹⁹⁴ Marshall, aquele que a NAACP colocou lá. Essa é uma das coisas que ganhamos com nossos “sentaços” ¹⁹⁵ e mortes, esperando e chorando. Se Thurgood Marshall não estivesse lá, então Eldridge Cleaver provavelmente ainda poderia estar aqui com o povo. Ele é um preto, um lambedor de botas, um tonto , um idiota. Entendem? Tipo: “eu não acho que você deveria estar nas ruas”. E a gente por aí, permitindo que esses pretos nos digam que temos que amar todas pessoas negras. Vocês ouviram falar sobre o julgamento por conspiração na Zona Oeste, que eles conseguiram vencer, com Doug Andrews e Fat Crawford, quando teve o grande incêndio na região, no motim de Martin Luther King? ¹⁹⁶ Perguntem a eles! Irmãos, o que há de errado com vocês, irmãos e irmãs? Perguntem a eles se era um homem branco. Não! Porque Doug e eles nos criticam por nossa posição liberal. Eles a chamam de liberal. Então não deixam ninguém entrar nos seus bairros, exceto pessoas negras. Mas eles não sabiam. Alguém já ouviu falar sobre o Luvas, da Zona Sul de Chicago? Ele não é branco. ¹⁹⁷ Vocês acharam que Buckney era branco? ¹⁹⁸ Buckney está pegando todos os seus irmãos e todas as suas irmãzinhas e todos seus priminhos e sobrinhos, e vai continuar a pegá-los. E se vocês não fizerem nada, vai pegar seus filhos e filhas. E um monte de pretos agora vão à escola, tentando fazer um nome. Nós não escutamos ninguém andar por aí falando: “eu sou Benedict Arnold III”, porque os filhos de Benedict Arnold não querem falar que são filhos dele. Vocês ouvem pessoas falando por aí que talvez sejam filhos de Patrick Henry – pessoas que se insurgiram e disseram “me dê a liberdade ou me dê a morte”. Ou primas de Paul Revere. Revere disse “pegue suas armas, os britânicos estão chegando”. Os britânicos eram a polícia. ¹⁹⁹ Huey disse: “peguem suas armas, os porcos estão chegando”. A mesma coisa. Haverá um monte de Newtons andando por aí. Muitas de suas crianças chamarão a si mesmas de Huey P. Newton III. Elas não se chamarão de Ooga-Booga ou Karangatang Karenga, ou Mamalama Karenga – nada dessa merda. Elas não vão se chamar disso. Veja, perguntem aos porcos da Califórnia. Perguntem a eles! Vocês estão vendo? Passe-me um dos pôsteres deles, irmão. Aquele bem ali. Agora, se vocês pensam que estou mentindo, olhem para isso. Deem uma olhada para isso. Agora todas vocês irmãs daqui, digam-me o que parece melhor – um preto andando por aí de robe e bengala, parecendo com Moisés, ou sinistro assim – esse é o visual mais sinistro... Vocês podem pensar que eu sou um chauvinista, um chauvinista organizacional vocês podem dizer. Vocês podem dizer que estou embrulhado no ego do próprio Partido. Mas eu estou embrulhado na verdade. E eu acho que qualquer irmã pode verificar que esse estilo é o mais sinistro. Esses são as estrelas de cinema da Babilônia, maldição. Hã? Fodase John Wayne e todas as outras merdas.

Tudo certo. Mas, vejam, se vocês olharem bem, é nisso que nós ficamos bonitos. Nós não ligamos se os pretos usam dashikis . Entendem? Isso não vai significar nada na análise final. Mas nós estamos dizendo que vocês precisam de algumas ferramentas. Vocês já tiveram a ocasião de ter um médico chegando à sua casa, ou um encenador chegando à sua casa? Suponha que um encanador tenha chegado à sua casa, ele abriu a bolsa e tinha estetoscópios e termômetros, agulhas hipodérmicas e seringas. Vocês diriam: “você veio consertar o encanamento? Irmão, você pegou as ferramentas erradas. Alguma coisa suspeita está ocorrendo, porque você nem sequer tem as ferramentas apropriadas”. Não estou certo? Suponha que alguém venha fazer o parto de seu bebê e tenha ferramentas de encanador. Eu sei que vocês, irmãs, gritariam por suas vidas. Não, mas vocês diriam: “isso não está certo, irmão. Não podemos aceitar isso. Você tem que, entenda, vir mais de leve, tem que me apresentar alguma coisa melhor. Você precisa ter algumas ferramentas que sejam mais apropriadas para a ocasião, entende, porque não tenho quaisquer torneiras vazando ou coisa parecida”. Então quando pessoas chegam à nossa comunidade com tanques, quando chegam à Babilônia, ou a Varsóvia, ²⁰⁰ ou como quer que vocês queiram chamar, como fizeram nos conjuntos habitacionais Henry Horner – e essa é uma manifestação, uma manifestação muito clara do que está acontecendo na Babilônia –; quando eles fazem algo como aquilo, quando chegam com tanques – e aqueles tanques são ferramentas, são ferramentas de guerra –, estão declarando guerra à comunidade. E se, quando eles chegam na comunidade com tanques, vocês chegam com dashikis e nada mais que dashikis , bùbás e nada mais do que bùbás , e sandálias e nada mais que sandálias, então vocês estão no lugar errado na hora errada com as pessoas erradas. Seria melhor se voltassem para casa, se despissem, ficassem de traseiro de fora e colocasse nada mais que um coldre e uma arma e um pouco de munição. Ninguém testará vocês, entendem, assobiará para vocês ou coisa parecida. Porque isso desaparecerá a partir do minuto... qualquer tipo de atração sexual que vocês tivessem desapareceria. Porque eles estarão de olho no Sr. e na Sra. Colt .45 e na Sra. .357 Magnum. E as formas delas são as melhores formas que nós temos em toda a Babilônia para lidar com isso. E vocês, irmãos, segurando uma .357 Magnum em suas mãos, não há nada que lhe faça sentir [melhor] como [segurar] uma .357 Magnum, exceto uma dessas belas irmãs negras. Mas nós precisamos das .357 Magnum também. Quando nós sairmos por aí, seremos capazes de nos proteger. Huey P. Newton emitiu uma ordem muito tempo atrás. Foi a Ordem Executiva n. 3. Dizia que precisamos traçar a linha de demarcação. E quando os porcos avançam sobre nossas quebradas, nós temos que protegê-la pela força das armas. Porcos não avançam sobre as quebradas dos Panteras. Quando avançam sobre ela, se asseguram antes de que os Panteras estejam fora da cidade. Nós tivemos uma situação em que avançaram sobre uma quebrada de um Pantera, com três helicópteros sobre ela. É sério, é sério. Vejam, eles vêm preparados. Porque sabem que, quando estão vindo para a quebrada de

um Pantera, mesmo que tenhamos muita retórica, lidamos com o mesmo jargão básico com que o povo na Babilônia lida. São necessárias duas pessoas para dançar o tango, filho da puta. Tão logo você arrombe a porta aos chutes, vou chutá-la de volta para você. Nós não trancamos nossas portas. Apenas arranjamos algumas boas armas e deixamos as malditas [portas] abertas, e quando as pessoas chegam por lá, temos algo a oferecer que as fará ir direto para a loja de ferragens, comprar uma tranca, voltar, fechar a porta, trancá-la e manter as bundas fora daqui! Nós vamos avançar o mais rápido possível para a parte das perguntas e respostas e para as considerações das pessoas com síndrome de culpa e as que se sentem constrangidas, envergonhadas e desonradas. Nós já falamos sobre seus líderes, como LeRoi Jones e Mamalama Karangatang Karenga – um careca tarado, até onde sabemos. Isso é o que ele é. Nós achamos que, se ele vai continuar a usar dashikis , deveria parar de usar calças. Porque ele vai ficar muito mais bonito em minissaias. Isso é tudo que um filho da puta que não tem nenhuma arma precisa na Babilônia: uma minissaia. E talvez assim ele possa se dar bem, enganando bem. Porque atirando é que não vai ser. Ele não lutará contra a tentação, pois nunca assassinou ninguém que não fosse um membro dos Panteras Negras. Dê o nome de alguém. Diga uma vez em que você leu sobre o escritório de Karangatang ser atacado. A única vez que ele teve a oportunidade de usar uma arma foi contra Alprentice Bunchy Carter, um revolucionário. Este irmão tinha mais poesia revolucionária em um filho da puta só do que qualquer outro. Cultura revolucionária. John Huggins. A única vez em que eles levantaram uma arma foi contra essas pessoas. Como Huey disse na prisão: quando eles levantaram as mãos contra Bunchy e quando levantaram as mãos contra John, levantaram as mãos contra o melhor que a Babilônia possui. E vocês deveriam dizer isso. Vocês deveriam sentir isso toda vez que um irmão revolucionário morre. Vocês nunca ouviram falar no Partido sair matando pessoas por aí. Vocês sacam o que eu estou dizendo? Pensem sobre isso. Eu nem vou falar nada para vocês. Vocês pensem sobre isso por si mesmos. Nós começamos o Partido dos Panteras Negras em 1966. Eu vou contar para vocês toda a história em um minuto. Nós começamos lidando com porcos. Vocês acham que nós tínhamos medo de alguns karangatangs , ²⁰¹ alguns otários, alguns machos chauvinistas? Eles dizem a suas mulheres: “Ande atrás de mim”. A única razão para uma mulher andar atrás de um bicha como esse é para ela poder enfiar seu pé até o joelho bem fundo no rabo dele. Nós não precisamos de nenhuma cultura que não a cultura revolucionária. Estamos falando de uma cultura que te liberte. Vocês ouviram seu tenentede-campo falando sobre um incêndio na sala, não ouviram? Com o que vocês se preocupam quando há um incêndio na sala? Vocês se preocupam com água ou com fugir. Vocês não se preocupam com nada mais. Se vocês disserem: “Qual sua cultura durante um incêndio?” “Água, essa é minha cultura, irmão, essa é minha cultura”. Porque cultura é uma coisa que lhe mantêm. “Qual é a sua política?”. Fuga e água. “Qual é a sua educação?”. Fuga e água. Quando as pessoas nos perguntam sobre nossa cultura,

dizemos são armas, meu bem. Nossa cultura é arte revolucionária, tipo isso. E quando você vê esses dois irmãos que pegaram suas armas e saíram pela Babilônia, em [19]66, quando muitos de nós estávamos com medo de fazer qualquer coisa exceto nos trancar no armário e escutar [John] Coltrane – isso não é de cair o cu da bunda? E isso nos deixou pilhados e nos deixou tão negros que ficamos maus. Então isso nos deixou tão negros que nos fez sair e lançar uma acusação geral contra esse setor queima-filme do povo negro. Preto, seu cabelo não está natural. Preto, por que você não mudou seu nome? Perguntem aos porcos da Califórnia. Perguntem a eles. “Quem você teme mais? Ron Mamalama Karenga ou Huey P. Newton, que recebeu seu nome em homenagem a um político mentiroso e demagógico, Huey P.[ierce] Long [Jr]?” E os porcos não ligam para isso. Porque vocês não têm que falar seu nome se sua escopeta é uma Browning, vocês não têm que dar a ela um nome africano, porque, podem acreditar, ela atira da mesma forma. Entendem? Atira da mesma forma... Mudar seu nome não vai mudar nosso estado de coisas. A única coisa que vai mudar o estado de coisas é [a mudança de] aquilo que nos trouxe a esse estado de coisas. E essa coisa é o opressor. E ele existe em três estágios, que nós chamamos de três-em-um: homens de negócios gananciosos e avarentos; políticos demagógicos e mentirosos; e policiais reacionários racistas, porcos e fascistas. Até que vocês resolvam essas três coisas, até então seu estado de coisas permanecerá o mesmo. A única diferença será que vocês ainda estarão sob o fascismo, mas em vez de Fred estar sob o fascismo, eu seria Oogabooga sob o fascismo. Mas eu sentiria tudo da mesma forma. Em vez de eu estar indo para a câmara de gás, estaria indo para a seção africana da câmara de gás. Nós estamos tão africanizados por aqui que, se africanos viessem, vocês teriam que dar a eles um catálogo para descobrirem o que diabos estariam comprando. É isso mesmo, vocês teriam que dar-lhes um catálogo para encontrar o que diabos estariam comparando. Vocês têm pôsteres e fotos e nomes; nós estamos dando nomes às coisas e a nós mesmos que eles jamais ouviram. E nós nos dizemos africanizados. E não é, entendem? Se você é um racista, vou lhe falar uma coisa. Ou se você é um nacionalista reacionário. Os brancos são os maiores. Vá para a África do Sul e pergunte a eles. Vá em frente. Se você quer um exemplo de nacionalismo cultural, o melhor que eu posso dar a você é Papa Doc, Duvalier. No Haiti, todo o povo negro: “o que nos falta é negritude”. Papa Doc – digo, Duvalier – disse: “está certo, nos falta negritude. Vamos tirar daqui toda a gente branca”. Retiraram toda a gente branca e agora se está oprimindo toda a gente negra. Quando o povo negro se queixa disso, ele diz: “ué, maldição, do que vocês estão reclamando agora? Eu sou negro. Eu não posso fazer nada de errado, irmão. Nós já determinamos isso”. É por isso que esses apologistas como Wesley South ²⁰² vão ao ar, falando esses sofismas sobre os quais a irmã estava falando [no discurso anterior]. Jogando conversa fora, fazendo um alvoroço, na verdade. Só de papo furado, porque são uns idiotas, que apenas são aceitos em nossa comunidade por causa da cor de suas peles. E o que deveríamos fazer é expulsá-los. Pensem nisso. Temos Bobby Seale acorrentado e amordaçado no Edifício Federal. Temos James e Michael Soto, que foram assassinados em dois dias. ²⁰³ A propósito,

para todos vocês brancos que se afirmam radicais, que afirmam que apoiarão o Partido. Nós demos um passo em frente, e agora estamos dizendo que não há marxista melhor ou mais maior do que Huey P. Newton. Nem o presidente Mao Tsé-Tung nem mais ninguém. Nós dizemos que, a menos que as pessoas nos mostrem, por meio de suas práticas sociais, que se identificam com a luta na Babilônia, isso quer dizer que não são internacionalistas, não podem ser consideradas revolucionárias verdadeiramente marxista-leninistas. Nós olhamos para Kim Il-Sung. Nós vemos que o camarada marechal Kim Il-Sung da Coreia se eleva cada vez mais alto em sua prática social, assim como Mao Tsé-Tung. Se vocês conseguem se identificar com isso, legal. Se vocês não conseguem se identificar com isso, podem dar o fora com o rabo entre as pernas como fazem os frangotes, saca? É isso que nós temos a dizer. E vocês, filhos da puta, que pensam que são tão radicais e que estão tentando radicalizar tudo em Washington. Não sei o que diabos vocês poderiam radicalizar por lá, porque vocês não vão fazer nada além de andar entre os corpos de dois homens mortos, Lincoln e Washington. Sei que não vão se levantar e nem obter nenhuma reparação. E isso é tão provável quanto que Nixon vá lhes conceder alguma reparação. Se vocês conseguem 200 mil pessoas para marchar em Washington por algo que está acontecendo no Vietnã, porque diabos não conseguem 200 mil pessoas para vir para o cruzamento da Jackson com a Dearborn, no Edifício Federal, e marchar pelo presidente da Babilônia, o homem que fez mais pela Babilônia e mais pelo Vietnã do que vocês, maníacos por marchas, jamais farão. Porque vocês não estão fazendo nada por ninguém, exceto por Florsheims e Stetsons ou Stacy Adams, ²⁰⁴ e por mais ninguém, porque vocês vão furar suas solas – suas almas metafísicas e as solas de seus sapatos. ²⁰⁵ E nós dizemos que se vocês não conseguem ver o sentido nisso, então fodam-se. Porque nossa linha tem sido consistente. Conhecemos o marxismo-leninismo. Talvez pessoas que não querem se aprofundar digam que marxista-leninistas não xingam. Isso é algo que nós pegamos dos senhores de escravos. Nós sabemos que os pretos inventaram a palavra motherfucker , fodedor-demães. Nós não estávamos fodendo a mãe de ninguém. Era o mestre que fodia a mãe das pessoas. Nós inventamos a palavra, sacaram? Nós nos relacionamos com ela. Nós somos pretos marxista-leninistas, uns pretos marxista-leninistas xingadores, e continuaremos a xingar, maldição. Porque é com isso que nos relacionamos, é isso que está acontecendo na Babilônia. Essa é a realidade objetiva. Ninguém está andando por aí na Babilônia fazendo jorrar pela boca um monte de besteira acadêmica, masturbação intelectual, com a boca como se tivesse diarreia. Nós dizemos para esses filhos da puta que, se eles querem pegar uma doença de boca, então basta virem e dizerem essas merdas em uma comunidade onde os Panteras estão, e vão ganhar uma doença de boca, com certeza. Vão ganhar um coice na boca, um coice de Pantera na boca. Então se vocês radicais não conseguem se identificar com isso, então fodam-se, porque nós sabemos o que o presidente Bobby fez pela luta. E nós conhecemos o povo do Vietnã, eles sabem que a paz, assim como Huey P. Newton disse sobre nosso mote, que advogamos é pela abolição da guerra. Nós não queremos guerra, mas entendemos que a guerra só pode

ser abolida por meio da guerra. Que, a fim de baixar armas, permitir que um homem se livre das armas, é necessário pegar em armas. E a vocês, filhos da puta que estão pela paz no Vietnã, o Partido dos Panteras Negras é pela vitória do Vietnã. Nós dizemos que eles [as tropas dos Estados Unidos e do Vietnã do Sul] são agressores, eles são um bando de lacaios, ²⁰⁶ que são imperialistas. Eles são um bando de belicistas de Wall Street. E devem ser expulsos de lá. E o único caminho pelo qual o povo oprimido do Vietnã ou o povo oprimido da Babilônia podem encontrar sua liberdade deverá ser encontrado em uma terra fertilizada com os ossos e o sangue desses porcos-cães agressores, que chegam em nossas comunidades como tropas ocupando um território estrangeiro, que vão ao Vietnã, lutam e combatem implacavelmente o povo do Vietnã e seu direito de autodeterminação. Nós não ligamos se alguém gosta disso ou não. Essa é a nossa linha. Essa é uma linha marxista-leninista. Ela é consistente. E vai permanecer desse jeito, e tem sido assim. Se vocês não conseguem que 200 mil pessoas venham fazer alguma coisa sobre Bobby, então dizemos que vocês são contrarrevolucionários. É isso que vocês estão fazendo: tomam algum tipo de uma rota a partir de DeKalb pela qual querem chegar ao Vietnã sem sequer passar pelo conjunto habitacional Henry Horner, na Zona Oeste de Chicago. Isso é impossível. Vocês acham que o Vietnã é ruim? Vejam as leis. No Vietnã, se você perde um filho, lhe permitem ficar com o outro. Eles dizem: “aqui, querida mãe, segure – segure com firmeza”. Ele pode ficar em casa, entendem. Se você tem dois por lá e um morre, embarcarão o outro de volta. Eles o embarcarão de volta e o tirarão da guerra para onde não haja nenhuma chance de ele morrer, porque: “senhora, essa guerra não vai levar os seus dois filhos”. E então vocês estão marchando contra essa guerra cruel em Washington, todos vocês radicais... e quanto à sra. Soto, que perdeu dois filhos em uma semana? Isso nos prova por meio de fatos históricos que a Babilônia é pior que o Vietnã; nós também precisamos de uma Marcha Moratória ²⁰⁷ nas comunidades negras da Babilônia e em todas as comunidades oprimidas da Babilônia. E Charles Jackson, do [Conjunto Habitacional do] Jardim Altgeld. Semana passada, ele era um garoto de 14 anos que estava atirando pedras. Os porcos mandaram que ele parasse, e os filhos da puta o balearam e mataram. O assassinaram a sangue frio. E então vocês, filhos da puta, tem a pachorra de vagabundear à Washington, marchando entre dois filhos da puta mortos. O Partido dos Panteras Negras vai criticar vocês, filhos da puta. Nós vamos criticar vocês abertamente, porque nós acreditamos na crítica revolucionária das massas. Vamos dizer que estão errados, porque tivemos um monte de críticas direcionadas a nós por nos misturar com vocês. Ou vocês farão parte do problema ou farão parte da solução. E nós achamos que vocês, filhos da puta, são parte do problema; vamos começar a apontar nossas armas para vocês, seus filhos da puta loucos. Vamos ter algumas perguntas e respostas. Vamos fazer uma coisa, também. E essa é outra coisa fora das vistas, que mostra às pessoas de onde nós viemos. Nós viemos da Babilônia. O Partido dos Panteras Negras é posto em marcha unicamente pelo povo negro. Se vocês tiverem uma oportunidade –

eu não acho que vai ser este domingo, mas nós gravamos nesse domingo e exibiremos no próximo, tenho quase certeza. Vai ser gravado nesse domingo e exibido próximo domingo. Haverá uma grande roda de debate que estará aberta “Apenas Para Negros”; qualquer um de vocês poderá conferir essa coisa e ver o que é. Eu mesmo ou Chaka estaremos lá. Nós vamos fazer a apresentação do Partido dos Panteras Negras. E se vocês tiverem uma oportunidade, por que não dão uma conferida? Se vocês querem fazer algo por mim; nós gostaríamos de fazer alguma coisa pelo presidente Bobby, basta vocês baterem palmas para mim. Isso é o que chamamos – vocês não precisam bater palmas muito alto – de batida popular. Essa é uma batida que foi iniciada em 1966 por Huey P. Newton e Bobby Seale. Essa é uma batida que nunca para, essa é a batida que eles escolheram porque sabiam que não poderia ser parada. Essa é a batida que se manifesta em vocês, o povo. O presidente Bobby Seale diz que, enquanto haja povo negro, sempre haverá o Partido dos Panteras Negras. Mas eles nunca podem parar o Partido, a menos que parem a batida. Enquanto vocês manifestarem a batida, nós nunca poderemos ser parados. Vocês acham que a batida é perigosa? Nós sabemos que ela é perigosa. Porque quando a batida começou na Costa Oeste, o porco chefe de lá, mafioso Alioto, ²⁰⁸ disse ao resto de seu povo, que o ajudava com o seu fascismo por lá: “escutem a batida desse povo. Ei, eles estão batendo muito, rápido demais. Por que eles não voltam para o lugar ao qual pertencem?”. Essa batida começou em novembro passado, um ano atrás, em Chicago, Illinois, na rua Madison ²³⁵⁰, quando eu, Chaka, Bobby Rush, Che, mais alguns irmãos e Jewel [Cook] nos juntamos e dissemos: “nós vamos começar um Partido dos Panteras Negras por aqui”. E como aqui é parte da Babilônia, o Partido também se encaixa perfeitamente aqui. Que nós podemos estar na escola agora, podemos pensar que estamos no topo da montanha, mas vamos descer até o vale, porque o povo está no vale, o compromisso está no vale, a opressão está no vale, a agressão, a repressão, o fascismo, tudo existe no vale. Não importa quão bom seja no topo da montanha, nós temos um compromisso, então nós vamos voltar. Nós vamos voltar para o vale. E quando nós fizemos isso, até mesmo Daley e Hanrahan e o juiz – nós o chamamos de Adolph Hitler Hoffman, o fascista-maior que conhece a arte de tapista , [ sic ] a arte que Mussolini supostamente dominava. Nós dizemos que Hoffmann é melhor na arte de tapista do que Mussolini jamais fora, porque sabemos o que é a arte do tapista é: a arte de agir no momento oportuno. ²⁰⁹ E quando nós começamos esta batida, o juiz Hoffman, o governador Daley e o cabeça-de-martelo Hanrahan disseram: “ei, escutem o povo. Essa é a batida de Chicago. Inclusive estão batendo rápido demais, politicamente. Por que eles não voltam para casa?”. Para viver com todo o povo negro onde ele pertence; para viver em dashikis e bùbás e ser uma costeleta de porco nacionalista e nacionalista cultural. Por que não voltam para casa, pensando que o que estiverem vestindo vai mudar o que são? Por que não voltam para: “o poder político flui da maga de um dashiki ”? E nós dissemos: “Não!” Enquanto a batida continuar, nós continuamos, porque ela dá a nós do Partido um tipo de intoxicação, que nos permite entender... Nós somos proletários revolucionários intoxicados que não podem ser astronomicamente intimidados.

Não se preocupe com o Partido dos Panteras Negras. Contanto que você mantenha a batida, nós continuaremos. Se vocês acham que nós podemos ser varridos porque eles assassinaram Bobby Hutton, Alprendice Bunchy Carter e John Huggins, estão errados. E se vocês pensam que porque Huey foi preso o Partido vai parar, vejam, estão errados. Se vocês acham que porque o presidente Bobby foi preso o Partido vai parar, prestem atenção, estão errados. Se vocês acham que porque eles podem me prender, o Partido vai parar, pensaram errado. Porque eles podem “ameaçar” Eldridge Cleaver para fora país... vocês estão errados. Porque nós já dissemos isso antes de sairmos e dissemos isso hoje. Que você pode prender um revolucionário, mas não pode não pode prender a revolução. Você pode trancafiar um lutador pela liberdade como Huey P. Newton, mas não pode trancafiar a luta pela liberdade. Você pode contratar alguns costelas de porco como Mamalama para assassinar Alprentice Bunchy Carter, um libertador; mas não pode assassinar a libertação; porque, se vocês o fizerem, terão que inventar respostas que não respondem, explicações que não explicam, conclusões que não concluem. Nós dizemos que, se você ousa lutar, então você ousa vencer. Se você não ousa lutar, não merece vencer. Não iríamos para um ringue com Muhammad Ali sem lutar e imaginando por que nós perdemos, iríamos? Se você não luta, então não merece vencer. Se não bota para correr esses fascistas, então está louco. Dizemos que não se trata mais de uma questão de violência ou não violência. Dizemos que se trata de uma questão de resistência ao fascismo ou não existência dentro do fascismo. Dizemos: paremos a guerra no Vietnã. Vamos interrompê-la adquirindo a vitória pelo espírito de Ho Chi Minh. Dizemos: paremos a guerra na Babilônia. Vamos iniciar a descentralização da polícia... A única coisa real é o povo, porque porcos mordem a mão que os alimenta e precisam ser estapeados. E, como Chaka disse, quando vocês os pegam em sua casa, acertem-nos com alguma coisa. Vocês não devem discutir sobre se devem atingi-los com uma cadeira ou uma mesa, porque desde o começo eles estão em desarranjo. Nós dizemos que o opressor – foda-se o juiz Taney – não tem quaisquer direitos que nós, os oprimidos, sejamos obrigados a seguir. Se vocês tiverem a chance, venham se informar sobre Bobby. Vocês deveriam vir se informar sobre Bobby, porque Bobby veio e se informou sobre vocês. Vocês deveriam vir e se informar sobre Bobby porque, em 1966, quando nós nem sequer pensávamos que éramos importantes o suficiente para nos protegermos, Bobby e Huey pegaram suas armas e chegaram à comunidade. Eles deixaram a universidade. Eles eram um estudante de engenharia em formação, era o caso de Bobby, e Huey era um estudante de direito em formação. E o que eles leram colocaram na prática. Vocês deveriam vir se informar sobre Bobby, porque Bobby veio e se informou sobre vocês. Eu vou me informar sobre Bobby, e se vocês tiverem qualquer coisa a dizer, virão se informar sobre Bobby. Desçam até [o cruzamento das ruas] Jackson e Dearborn e se informem sobre nosso presidente, porque ele é o presidente da Babilônia. Ele é o pai e o fundador dos programas de café da manhã e das clínicas de saúde gratuitas, não há nada de errado nisso, absolutamente nada de errado com isso.

Todo poder ao povo! Poder ao povo do norte de Illinois que vem aqui à Universidade do Norte de Illinois. Nós dizemos que precisamos de algumas armas. Não há nada errado com armas em nossa comunidade, há apenas uma má distribuição das armas em nossa comunidade. Por uma razão ou por outra, os porcos têm todas as armas, tudo o que temos de fazer é distribuí-las igualmente. Então, se vocês virem alguém que tem uma arma e vocês não tem uma, quando vocês saírem devem obter uma. Essa é a forma como nós seremos capazes de lidar com as coisas direito. Lembro-me de olhar para a TV e descobrir que não apenas os porcos não brutalizavam o povo nos tempos do velho oeste, como tinham que contratar caçadores de recompensar para realizar prisões. Atiravam em alguém, sem qualquer intenção de prendê-los. Precisamos de algumas armas. Precisamos de algumas armas. Precisamos de alguma força. Obrigado. Eu vou chamar Chaka e a irmã Joan para voltarem aqui em cima e lidarem com qualquer questão que vocês queiram esclarecer, porque nós temos muito tempo para gastar, e não temos nenhum tempo a perder. Como disse a irmã, “o tempo é curto, vamos aproveitar o momento”. ²¹⁰ Obrigado. ¹⁸⁶ Discurso proferido na Universidade do Norte de Illinois em novembro de 1969. ¹⁸⁷ Referência a Rufus “Chaka” Walls. A camarada mencionada não foi identificada. ¹⁸⁸ “Choraço” e “amorzaço”, no original, respectivamente, cry-in e love-in . Referência aos “sentaços” ( sit-ins ) dos anos 1960, quando o movimento pelos direitos civis adotava a prática de, nas manifestações de massas, sentar nos cruzamentos das ruas ou diante de prédios públicos como forma de protesto não violento. ¹⁸⁹ Referência ao cruzamento do boulevard Jackson e da rua Dearborn, em Chicago, onde se localiza o edifício do Tribunal Federal. No discurso, este prédio é referido metaforicamente como Reichstag , nome do edifício do Parlamento alemão incendiado em 1933, em um episódio que é tido como um dos maiores exemplos da tática de “bandeira falsa” da modernidade: o Parlamento teria sido incendiado pelos nazistas, mas a culpa seria posta nos comunistas pela polícia e pelos tribunais, resultando na decapitação do comunista Van der Lubbe na guilhotina ¹⁹⁰ Loja de departamento de luxo localizada na 5a Avenida de Manhattan, Nova York. Fundada em 1867.

¹⁹¹ Em inglês, pork chops : gíria do sul da Califórnia que denota alguém carola, um “coxinha”, ou alguém que recusa se envolver com quaisquer gangues ou grupos subversivos. Derivado da designação dos policiais como “porcos”. Utilizando o termo para se referir aos nacionalistas negros, Fred Hampton denuncia o caráter reacionário destes como apoiadores civis das forças da repressão. Não à toa, os nacionalistas negros estão envolvidos em diversos ataques a militantes radicais negros nos Estados Unidos, desde Malcom X até membros dos Panteras Negras. ¹⁹² No dia 17 de janeiro de 1969, Carter e Huggins foram assassinados a tiros por Claude “Chuchessa” Hubert, um nacionalista negro de 21 anos, membro da Organização US, durante uma reunião na Universidade de Los Angeles, Califórnia (Ucla). A Organização US era um grupo nacionalista negro, fundado em 1965 por Hakim Jamal e Maulana Karenga, rival do Partido Panteras Negras na Califórnia. ¹⁹³ Referência ao filme Black Like Me [Negro como eu], em que James Whitmore encena o papel de um jornalista liberal branco que pinta sua pele de negro e viaja pelo Sul dos Estados Unidos a fim de noticiar o racismo “vivido na própria pele”. ¹⁹⁴ Trocadilho com a expressão no good (“nada de bom”) e o nome do juiz Thurgood. ¹⁹⁵ “Sentaços” ou sit inn , forma de protesto sentado onde os manifestantes sentam-se num lugar estratégico, como a via pública ou o interior de uma loja, fábrica ou edifício, permanecendo sentados até serem retirados (normalmente por uso da força) ou detidos, ou até que as suas exigências sejam satisfeitas. ¹⁹⁶ Frederick Doug Andrews e Edward Fats Crawford, além de outros quatro homens negros, foram condenados por conspirar para incendiar e assaltar quatro prédios, como decorrência dos tumultos na Zona Oeste de Chicago após o assassinato de Martin Luther King Jr. ¹⁹⁷ James “Luvas” Davis foi um policial negro envolvido, mais tarde, no assassinato de Fred Hampton. ¹⁹⁸ Edward Buckney, nono capitão negro na história da polícia de Chicago. ¹⁹⁹ Benedict Arnold foi um notório desertor do exército continental para o exército britânico, durante a Guerra de Independência dos Estados Unidos. Patrick Henry, famoso por seu discurso “Dê-me a liberdade ou a morte”, foi uma figura proeminente da revolução estadunidense. Paul Revere foi um ourives e industrial estadunidense, trabalhando como mensageiro durante a Guerra de Independência. ²⁰⁰ Referência ao gueto judeu em Varsóvia, durante o domínio nazifascista. ²⁰¹ Referência aos membros da reacionária Organização US, dirigida por Ron (Everett) Karenga.

²⁰² Famoso radialista negro, tendo trabalhado também como relações públicas da NAACP. ²⁰³ Aqui, Fred Hampton confunde nomes. John Soto, 16 anos, foi assassinado em 5 de outubro de 1969 pelo policial Thomas F. Nolan. Michael Soto, 20 anos, irmão de John, foi assassinado no dia 9 de outubro de 1969 após retornar condecorado da Guerra do Vietnã para o velório de seu irmão, que acabou em violentos tumultos. No dia 14 de setembro de 1969, James Hoy, 17 anos, foi assassinado pela polícia. Todas essas informações constam do panfleto “Repressão 1970”. ²⁰⁴ Fabricantes de sapatos. ²⁰⁵ No discurso, Fred Hampton faz um trocadilho com a sonoridade das palavras “almas” ( souls ) e “solas” ( soles ). ²⁰⁶ A expressão em inglês, lackey running dogs , deriva da expressão chinesa empregada largamente por Mao Tsé-Tung, 走狗 (zǒu gǒu) : em sentido figurado, “lacaios” e, em sentido literal, “cão seguidor”, como um cachorro que segue uma pessoa na esperança de obter restos de comida. Nas edições portuguesas de Mao Tsé-Tung, a expressão é traduzida alternadamente por “lacaios” e “cão de fila”. ²⁰⁷ A marcha em Washington contra a guerra ficou conhecida como Marcha Moratória pelo Fim da Guerra no Vietnã. ²⁰⁸ Referência ao prefeito de San Francisco, Joseph Alioto, acusado de ligação com o mafioso Jimmy Fratianno. ²⁰⁹ Em inglês, art of good timing . ²¹⁰ Em inglês, seize the time. A expressão dá nome ao livro de Bobby Seale publicado no ano seguinte, resultado de gravações suas na prisão de San Francisco entre novembro de 1969 e março de 1970 realizadas pelo repórter Arthur Goldberg. Sobre a crítica a Cuba Pelo Comitê Central do Partido dos Panteras Negras ²¹¹ Existem dois tipos de crítica: a crítica revolucionária e a crítica reacionária. A crítica revolucionária é feita com base em princípios, no momento correto, quando as condições objetivas e subjetivas estão corretas, e é feita para atingir um maior grau de unidade e para fortalecer o campo revolucionário. A crítica reacionária geralmente assume a forma de um ataque pessoal por causa de alguma mágoa pessoal. Ela é geralmente uma crítica unilateral, baseada em uma análise subjetiva, sem ter examinado uma situação por todos os lados, e a crítica reacionária só serve aos interesses dos fascistas e imperialistas. Sobre a questão do socialismo e do racismo, o Partido dos Panteras Negras não diz e nunca disse que, se o socialismo for instituído, o racismo automaticamente cessa. Embora alguns críticos do Partido dos Panteras

Negras – a saber Stokely Carmichael – tenham insinuado que essa é nossa posição. O que dizemos é que em uma sociedade socialista as condições são mais favoráveis para começar a luta para eliminar o racismo. Cuba, a noventa milhas da Flórida – de onde são lançados aqueles foguetes Saturno, ²¹² com uma base naval dos Estados Unidos, Guantánamo, bem em sua ilha – está lutando pela defesa do povo cubano e de sua revolução sob um bloqueio econômico que os estrangula e ameaça se tornar ainda mais rígido. Vemos a revolução cubana como uma grande conquista da revolução mundial, estabelecendo uma ilha de socialismo em um oceano, o hemisfério ocidental, de exploração capitalista, agressão imperialista e repressão fascista. Desejamos ao povo cubano vitória na sua luta contra o bloqueio e que atinja seu objetivo de ¹⁰ milhões de toneladas na sua colheita de canade-açúcar de ¹⁹⁷⁰. Não nascemos em solo cubano. Alguns membros do Partido dos Panteras Negras utilizaram Cuba como meio de escapar da repressão fascista na Babilônia e hoje estão bem, vivos e livres. Não interessaria a Cuba ou à revolução mundial que começássemos a lançar ataques contra Cuba, porque não conseguiram eliminar todas as formas de racismo nos dez anos desde que sua revolução começou. A regra que norteia o Partido dos Panteras Negras diz: “Tenha fé no povo, tenha fé no Partido”. Esse princípio não deve ser aplicado apenas na Babilônia, mas por todo o mundo. Sob estas bases, e partindo do materialismo histórico, sabemos que Cuba, os Estados Unidos e o mundo se livrarão do racismo, e que os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. Todo poder ao povo! Los diez milliones van . ²¹³ ²¹¹ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 27 de dezembro de 1969. ²¹² Referência à família de foguetes Saturno, um conjunto de três veículos lançadores destinados ao Projeto Apollo e Skylab e que realizou vôos entre 1961 e 1975 a partir de Cabo Kennedy e Cabo Canaveral, na Flórida. ²¹³ Palavra de ordem da campanha do governo socialista (a chamada “batalha dos 10 milhões”) em torno da meta de colheita de dez toneladas de cana-de-açúcar para o ano de 1969. Sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras Por Eldridge Cleaver ²¹⁴

Nós temos dito: a ideologia do Partido dos Panteras Negras é a experiência histórica do povo preto e a sabedoria obtida pelo povo preto em sua luta de quatrocentos anos contra o sistema de opressão racista e de exploração econômica na Babilônia, interpretada pelo prisma da análise marxistaleninista pelo nosso ministro da Defesa, Huey P. Newton. Contudo, devemos conceder grande ênfase à última parte daquela definição – interpretada… pelo nosso ministro da Defesa. O mundo do marxismoleninismo tem se tornado uma selva de opiniões na qual interpretações conflitantes, desde o revisionismo de direita até o dogmatismo de esquerda, fazem suas filosofias reacionárias e cegas passar por um marxismoleninismo revolucionário. Ao redor do mundo e em cada nação, pessoas, as quais denominam a si mesmas marxista-leninistas, estão nas gargantas umas das outras. Tal situação apresenta sérios problemas para um jovem partido como o nosso, que ainda está no processo de refinar sua ideologia. Quando dizemos que somos marxista-leninistas, queremos dizer que estudamos e compreendemos os princípios clássicos do socialismo científico e que adaptamos esses princípios à nossa própria situação, para nós mesmos. Todavia, não agimos com mente fechada para novas ideias ou informação. Ao mesmo tempo, sabemos que devemos contar com nossos próprios cérebros para resolver problemas ideológicos que têm relação conosco. Por tempo demais, o povo preto tem confiado nas análises e perspectivas ideológicas dos outros. Nossa luta, agora, chegou a um ponto em que seria absolutamente suicida para nós continuar nessa postura de dependência. Nenhum outro povo no mundo está na mesma posição em que estamos, e nenhum outro povo no mundo pode nos tirar dela, a não ser nós mesmos. Há aqueles que estão muito dispostos a pensar por nós, mesmo se isso nos matar. Contudo, eles não estão dispostos a seguir adiante e morrer em nosso lugar. Se os pensamentos contribuem para nossas mortes, que pelo menos sejam nossos próprios pensamentos, de modo que tenhamos rompido, de uma vez por todas, com o servilismo de morrer por qualquer causa e por qualquer erro – exceto pelos nossos. Uma das grandes contribuições de Huey P. Newton é que ele deu ao Partido dos Panteras Negras um fundamento ideológico sólido, que nos livra do servilismo ideológico e nos abre o caminho para o futuro – um futuro para o qual devemos prover novas formulações ideológicas, para adequar nossa situação sempre em mudança. Muito – a maior parte – dos ensinamentos de Huey P. Newton são desconhecidos para o povo, porque Huey tem sido colocado em uma posição na qual é impossível para ele se comunicar realmente conosco. E muito do que ele ensinou enquanto estava livre foi distorcido e diluído, precisamente porque o Partido dos Panteras Negras tem estado muito preocupado em se relacionar com os tribunais e em tentar se apresentar com uma bela face, a fim de ajudar os advogados a convencerem os júris sobre a justiça de nossa causa. Toda essa preocupação com tribunais tem criado muita confusão. Por exemplo, muitas pessoas confundem o Partido dos Panteras Negras com o movimento Libertem Huey ou com as muitas outras atividades de massa às

quais temos sido forçados a nos entregar, a fim de construir apoio em massa para nossos camaradas que têm sido capturados pelos porcos. Estamos absolutamente corretos em nos entregar a tais atividades de massa. Mas estamos errados quando confundimos nosso trabalho com as massas com nossa orientação partidária. Essencialmente, o que Huey fez foi prover a ideologia e a metodologia para organizar o lumpemproletariado preto urbano. Armado com essa perspectiva ideológica e com um método, Huey transformou o lumpemproletariado preto, as pessoas esquecidas na parte mais baixa da sociedade, na vanguarda do proletariado. Há muita confusão sobre se nós somos membros da classe trabalhadora ou se somos o lumpemproletariado. É necessário enfrentar essa confusão, porque isso tem muito a ver com a estratégia e com as táticas que seguimos e com nossas tensas relações com os brancos radicais da seção opressora da Babilônia. Alguns assim chamados marxista-leninistas nos atacarão pelo que temos a dizer, mas isso é algo bom, não algo ruim, porque algumas pessoas que chamam a si mesmas marxista-leninistas são, francamente, inimigas do povo preto. Esses ficarão para mais tarde. Queremos que eles audaciosamente deem um passo à frente, como farão – cegos por sua própria estupidez e arrogância racista –, de modo que será mais fácil para nós lidar com eles no futuro. Fazemos essas críticas, em um espírito fraternal, de como alguns marxistaleninistas aplicam os princípios clássicos à situação específica que existe nos Estados Unidos, porque acreditamos na necessidade de um movimento revolucionário unificado nos Estados Unidos, um movimento que seja informado pelos princípios revolucionários do socialismo científico. Huey P. Newton diz que “o poder é a habilidade de definir fenômenos e fazê-los agir sob a forma desejada”. E nós precisamos de poder, desesperadamente, para conter o poder dos porcos que agora pesa tanto sobre nós. A ideologia é uma definição abrangente de um status quo que leva em consideração tanto a história quanto o futuro daquele status quo , e que serve como a cola social que mantém um povo unido, graças à qual o povo se relaciona com o mundo e com os outros grupos de pessoas no mundo. A ideologia correta é uma arma invencível contra o opressor em nossa luta por liberdade e libertação. Marx definiu a época da burguesia e pôs a nu a direção do futuro proletário. Ele analisou o capitalismo e definiu o método de sua destruição: A REVOLUÇÃO VIOLENTA DO PROLETARIADO CONTRA O APARATO DE OPRESSÃO E REPRESSÃO DE CLASSE DO ESTADO BURGUÊS. A VIOLÊNCIA REVOLUCIONÁRIA CONTRA A VIOLÊNCIA DE CLASSE CONTRARREVOLUCIONÁRIA PERPETRADA PELA FORÇA REPRESSIVA ESPECIAL DOS TENTÁCULOS ARMADOS DO ESTADO. Essa grande definição de Marx e Engels se tornou a mais poderosa arma nas mãos dos povos oprimidos na história da ideologia. Ela marca um avanço gigantesco para toda a humanidade. E, desde os tempos de Marx, essa definição tem sido fortalecida, mais elaborada, iluminada e mais refinada.

Mas o marxismo nunca lidou realmente com os Estados Unidos da América. Houve algumas boas tentativas. As pessoas têm feito o melhor que sabem fazer. Contudo, no passado, os marxista-leninistas nos Estados Unidos se apoiaram demais sobre análises estrangeiras, importadas, e distorceram seriamente as realidades do cenário norte-americano. Podemos dizer que o marxismo-leninismo do passado pertence ao período de gestação do marxismo-leninismo nos Estados Unidos, e que agora é o momento em que uma nova síntese ideológica, estritamente norte-americana, surgirá, brotando dos corações e das almas das pessoas oprimidas dentro da Babilônia, unindo essas pessoas e arremessando-as poderosamente, desde a força de sua luta, no futuro. A revolução que rapidamente se desenvolve na América é como a concentração de uma poderosa tempestade, e nada pode impedir aquela tempestade de finalmente irromper, dentro da América, arrastando os porcos da estrutura de poder e todos os seus trabalhos sujos e opressivos. Os filhos e as filhas dos porcos e os povos oprimidos dançarão e cuspirão sobre as valas comuns desses porcos. Há algumas pessoas pretas nos Estados Unidos que estão absolutamente felizes, que não sentem a si mesmas oprimidas e que pensam que são livres. Algumas até mesmo acreditam que o presidente não mentiria e que ele é um homem mais ou menos honesto; que as decisões da Suprema Corte são quase que escritas por deus em pessoa; que os policiais são guardiões da lei; e que as pessoas que não têm trabalhos são simplesmente preguiçosas e imprestáveis, e deveriam ser severamente punidas. Essas pessoas são como caranguejos que devem ser deixados para cozinhar por um pouco mais de tempo na panela da opressão, antes que estejam prontas e dispostas a estabelecer uma relação conosco. Mas a maioria esmagadora das pessoas pretas está irritada; sabe que é oprimida, não livre; e não acreditaria em Nixon mesmo se ele confessasse ser um porco; não se sente identificada com a Suprema Corte ou com qualquer outra corte; e sabe que os porcos policiais racistas são seus inimigos jurados. Quanto à pobreza, sabe o que é isso. Esses milhões de pessoas pretas não têm representação política, estão desorganizadas e não possuem nem controlam quaisquer recursos naturais; elas não possuem ou controlam nada da maquinaria industrial, e sua vida cotidiana é uma confusão para manter-se, por todos meios necessários, na luta pela sobrevivência. Cada pessoa preta sabe que o vento pode mudar a qualquer momento, e que a multidão mobilizada para o linchamento, criado pelos membros brancos da “classe trabalhadora”, pode vir respirando em seu pescoço, se não derrubando aos chutes sua porta. É por causa desses fatores que, quando começamos a falar sobre sermos marxista-leninistas, devemos ser muito cuidadosos em deixar absolutamente evidente sobre o que nós estamos falando. No que diz respeito ao racismo, o marxismo-leninismo nos oferece pouquíssima ajuda. De fato, há muita evidência de que Marx e Engels eram, eles mesmos, racistas – assim como seus irmãos e irmãs brancas de seu tempo, e assim como muitos marxista-leninistas de nosso próprio tempo são também racistas. Historicamente, o marxismo-leninismo tem sido uma

consequência de problemas europeus e tem primariamente se preocupado em encontrar soluções para problemas europeus. Com a fundação da República Popular Democrática da Coreia, em 1948, e da República Popular da China, em 1949, algo novo foi introduzido no marxismo-leninismo, e ele deixou de ser um fenômeno estreito, exclusivamente europeu. O camarada Kim Il-Sung e o camarada Mao TséTung aplicaram os princípios clássicos do marxismo-leninismo às condições de seus próprios países e, assim, transformaram a ideologia em algo útil para seu povo. Mas eles rejeitaram aquela parte da análise que não lhes era benéfica e que só tinha relação com o bem-estar da Europa. Dada a história racista dos Estados Unidos, é muito difícil para pessoas pretas denominarem confortavelmente a si mesmas marxistas-leninistas, ou qualquer outra coisa que tire seu nome de pessoas brancas. É como rezar para Jesus, um homem branco. Devemos enfatizar o fato de que Marx e Lênin não inventaram o socialismo. Eles apenas adicionaram suas contribuições, enriqueceram a doutrina, assim como muitos outros fizeram antes e depois deles. E devemos lembrar que Marx e Lênin não organizaram o Partido dos Panteras Negras. Huey P. Newton e Bobby Seale o fizeram. Não é até que cheguemos a Fanon que vamos encontrar um grande teórico marxista-leninista primariamente preocupado com os problemas do povo preto, onde quer que possam ser encontrados. E mesmo Fanon, em seus trabalhos publicados, tinha como foco principal a África. Apenas indiretamente seus trabalhos são úteis para os afro-americanos. É apenas mais fácil se identificar com Fanon, porque ele está nitidamente livre daquele viés racista que tanto amarra o homem preto sob as mãos dos brancos, que, por sua vez, estão primariamente interessados em si mesmos e nos problemas do seu próprio povo. Mas, mesmo que estejamos aptos a estabelecer uma relação profunda com Fanon, ele não nos deu a última palavra sobre aplicar a análise marxista-leninista a nossos problemas, dentro dos Estados Unidos. Ninguém fará isso para nós, porque ninguém pode fazê-lo. Temos que fazer isso nós mesmos e, até que o façamos, ficaremos irritados. Devemos tomar os ensinamentos de Huey P. Newton como nosso fundamento e partir daí. Qualquer outra opção nos levará a um fim triste e lamentável. Fanon desferiu um ataque devastador ao marxismo-leninismo por sua preocupação restrita à Europa e aos assuntos e à salvação dos brancos, por aglomerar todos os povos do terceiro mundo na categoria do lumpemproletariado e então esquecê-los lá. Fanon desenterrou a categoria do lumpemproletariado e começou a lidar com ela, reconhecendo que a vasta maioria dos povos colonizados pertence àquela categoria. É pelo fato de que as pessoas pretas nos Estados Unidos também são colonizadas que a análise de Fanon é tão relevante para nós. Depois de estudar Fanon, Huey P. Newton e Bobby Seale começaram a aplicar suas análises dos povos colonizados às pessoas pretas nos Estados Unidos. Eles adotaram a perspectiva fanoniana, mas deram a ela um conteúdo unicamente afro-americano.

Assim como nós devemos fazer a distinção entre a pátria mãe e a colônia quando lidamos com o povo preto e o povo branco como um todo, também devemos fazer essa distinção quando lidamos com as categorias da classe trabalhadora e do lumpemproletariado. Nós temos, nos Estados Unidos, uma “classe trabalhadora da pátria mãe” e uma “classe trabalhadora da colônia preta”. Também temos um lumpemproletariado da pátria mãe e um lumpemproletariado da colônia preta. Dentro da pátria mãe, essas categorias são bastante estáveis; mas, quando nós olhamos para a colônia preta, descobrimos que as distinções rígidas e rápidas se derretem. Isso ocorre por causa do efeito nivelador do processo colonial e pelo fato de que todas as pessoas pretas são colonizadas, mesmo se algumas delas ocupam posições privilegiadas nos esquemas dos exploradores colonizadores da pátria mãe. Há uma diferença entre os problemas da classe trabalhadora da mãe pátria e a classe trabalhadora da colônia preta. Há também uma diferença entre o lúmpen da pátria mãe e o lúmpen da colônia preta. Nós nada temos a ganhar tentando suavizar essas diferenças como se não existissem, porque elas são fatos objetivos com os quais devemos lidar. Para elucidar esse ponto, apenas temos de olhar para a longa e amarga história das lutas dos trabalhadores da colônia preta, lutando por democracia dentro dos sindicatos da pátria mãe. Historicamente, caímos na armadilha de criticar os sindicatos e trabalhadores da pátria mãe pelo racismo como uma explicação para o modo como eles tratam os trabalhadores pretos. Com certeza eles são racistas, mas essa não é a explicação completa. Os trabalhadores brancos pertencem a um mundo totalmente diferente daquele a que pertencem os trabalhadores pretos. Eles estão envolvidos em uma realidade econômica, política e social totalmente diferente e, com base nessa realidade distinta, para os porcos da estrutura de poder e para os traiçoeiros líderes trabalhistas é muito fácil manipulá-los com o racismo babilônico. Essa realidade complexa nos apresenta muitos problemas, e apenas por meio de uma análise adequada esses problemas possam ser resolvidos. A falta de uma análise adequada é responsável pela ridícula abordagem para esses problemas que nós encontramos entre os marxistas-leninistas da pátria mãe. E sua análise inadequada os leva a advogar soluções que estão previamente condenadas ao fracasso. O domínio-chave da confusão tem a ver com a falsa admissão da existência de um proletariado norte-americano, de uma classe trabalhadora norte-americana, e de um lumpemproletariado norte-americano. Ok, nós somos o lúmpen. É isso mesmo. O lumpemproletariado são todos aqueles que não têm uma relação segura ou interesse declarado nos meios de produção e nas instituições da sociedade capitalista. Aquela parte do “exército industrial de reserva” mantida perpetuamente em reserva; que nunca trabalhou, e nunca o fará; que não pode encontrar um emprego; que é inábil e incapaz; que foi substituída por máquinas, pela automação e pela cibernetização; que nunca foi mantida ou recebeu investimento para

desenvolvimento de novas habilidades; todos aqueles que dependem da seguridade social ou que recebem auxílio estatal. Também o assim chamado “elemento criminoso”, aqueles que vivem da sua esperteza, subsistindo daquilo que conseguem roubar, que enfiam armas nas caras dos homens de negócios e dizem “mãos ao alto” ou “entregue tudo”! Aqueles que nem mesmo querem um emprego, que odeiam trabalhar e não podem bater o ponto para algum porco, que prefeririam bater na boca do porco e roubá-lo a bater o ponto para aquele mesmo porco e trabalhar para ele, aqueles a quem Huey P. Newton chama “os capitalistas ilegítimos”. Em síntese, todos aqueles que simplesmente foram excluídos da economia e privados de sua legítima herança social. Mas embora sejamos o lúmpen, nós ainda somos membros do proletariado, uma categoria que teoricamente ultrapassa fronteiras nacionais, mas que na prática deixa algo a desejar. Contradições no âmbito do proletariado dos Estados Unidos Tanto na pátria mãe quanto na colônia preta, a classe trabalhadora é a ala à direita do proletariado e o lumpemproletariado é a ala à esquerda. No âmbito da classe trabalhadora em si mesma, nós temos uma grande contradição entre os desempregados e os empregados. E nós definitivamente temos uma grande contradição entre a classe trabalhadora e o lúmpen. Alguns assim chamados marxista-leninistas, cegos, acusam o lúmpen de ser o parasita da classe trabalhadora. Essa é uma acusação estúpida, derivada de uma leitura excessiva das notas de rodapé de Marx e da atitude de quem toma algumas de suas observações grosseiras, feitas de improviso, como escrituras sagradas. Em realidade, é acurado dizer que a classe trabalhadora, particularmente a classe trabalhadora norte-americana, é uma parasita da herança da humanidade, da qual o lúmpen tem sido totalmente roubado pelo manipulado sistema capitalista, que, por sua vez, arremessou a maior parte da humanidade sobre uma pilha de lixo, enquanto suborna um percentual dela com empregos e seguridade. A classe trabalhadora com a qual devemos lidar hoje mostra pouca semelhança com a classe trabalhadora dos dias de Marx. Nos dias de sua infância, incerteza e instabilidade, a classe trabalhadora foi muito revolucionária e levou adiante a luta contra a burguesia. Mas, em meio a lutas longas e amargas, fez algumas incursões no sistema capitalista, construindo um nicho confortável para si mesma. O advento dos sindicatos, da negociação coletiva, da empresa sindicalizada, da seguridade social e outras legislações protetivas especiais castraram a classe trabalhadora, transformando-a no comprado movimento trabalhista – um movimento não revolucionário, de inclinação reformista, que só está interessado em salários mais altos e mais segurança no emprego. O movimento trabalhista abandonou toda a crítica básica ao sistema capitalista de exploração em si mesmo. Os George Meany, Walter Reuther e A. Phillip Randolph ²¹⁵ podem corretamente receber o rótulo de traidores do proletariado como um todo, mas eles refletem e incorporam acuradamente a visão e as aspirações da classe trabalhadora. O Partido Comunista dos Estados Unidos da América,

em suas pouco frequentadas reuniões, pode fazer barulho ao se proclamar a vanguarda da classe trabalhadora, mas a classe trabalhadora em si mesma olha para o Partido Democrata como o veículo legítimo para sua salvação política. Na verdade, a classe trabalhadora de nosso tempo se tornou uma nova elite industrial, mais se parecendo com as elites chauvinistas das egoístas guildas de artesãos do tempo de Marx do que com as massas trabalhadoras surradas na pobreza abjeta. Cada emprego no mercado da economia norteamericana, hoje, demanda uma complexidade de habilidades tão elevada quanto os empregos nas elitistas guildas de artesãos do tempo de Marx. Em uma economia altamente mecanizada, não pode ser dito que a fantasticamente alta produtividade seja produto apenas da classe trabalhadora. Máquinas e computadores não são membros da classe trabalhadora, embora alguns porta-vozes da classe trabalhadora, particularmente alguns marxista-leninistas, pareçam pensar como máquinas e computadores. As chamas da revolução, que um dia queimaram como um inferno no coração da classe trabalhadora, nos nossos dias se reduziram à oscilante luz de uma vela, poderosas o bastante apenas para fazer a classe trabalhadora quicar para trás e para frente, como uma bola de pingue-pongue, entre o Partido Democrata e o Partido Republicano, a cada quatro anos, nunca uma vez sequer olhando de relance para as alternativas à  esquerda. Quem fala pelo lumpemproletariado? Alguns marxista-leninistas são culpados daquele egotismo e daquela hipocrisia de classe muitas vezes exibidas pelas classes superiores em relação àqueles que lhes são inferiores na escala social. Por um lado, eles frequentemente admitem que suas organizações são especificamente elaboradas para representar os interesses da classe trabalhadora. Mas então eles vão além e dizem que, representando os interesses da classe trabalhadora, representam o interesse do proletariado como um todo. Isso, nitidamente, não é verdade. Essa é uma suposição falaciosa, baseada no egotismo dessas organizações, e é parcialmente responsável por seu enorme fracasso em fazer uma revolução na Babilônia. E, uma vez que há nitidamente uma contradição entre a ala à direita e a ala à esquerda do proletariado, assim como a ala à direita criou suas próprias organizações, é necessário que a ala à esquerda tenha sua forma de organização para representar seus interesses contra todas as classes hostis – incluindo a classe trabalhadora. A contradição entre o lúmpen e a classe trabalhadora é muito séria, porque determina uma diferente estratégia e um conjunto de táticas. Os estudantes concentram suas rebeliões nos campi , e a classe trabalhadora concentra suas rebeliões nas fábricas e nos piquetes. Mas o lúmpen se vê na posição peculiar de estar impossibilitado de encontrar um emprego e, por isso, está impossibilitado de frequentar as universidades. O lúmpen não tem escolha, a não ser manifestar sua rebelião na universidade das ruas.

É muito importante reconhecer que as ruas pertencem ao lúmpen, e que é nas ruas que o lúmpen fará sua rebelião. Uma característica notável da luta pela libertação do povo preto nos Estados Unidos tem sido que a maior parte das atividades têm acontecido nas ruas. Isso ocorre porque, de um modo geral, as rebeliões têm sido lideradas pelo lúmpen preto. É por causa da relação do lúmpen do povo preto com os meios de produção e com as instituições da sociedade que eles são impossibilitados de manifestar sua rebelião em torno daqueles meios de produção e daquelas instituições. Mas isso não significa que as rebeliões que têm lugar nas ruas não sejam expressões legítimas de um povo oprimido. Esses são os meios de revolta que restam em aberto para o lúmpen. O lúmpen tem sido trancado do lado de fora da economia. E, quando o lúmpen se engaja em ação direta contra o sistema de opressão, é muitas vezes recebido com vaias e gritos pelos porta-vozes da classe trabalhadora, em coro com os representantes da burguesia. Esses faladores gostam de rebaixar as lutas do lúmpen como sendo “espontâneas” (talvez porque eles mesmos não ordenem as ações!), “desorganizadas”, “caóticas e sem direção”. Mas essas são apenas análises preconceituosas, feitas a partir da perspectiva estreita da classe trabalhadora. Mas o lúmpen age de qualquer modo, recusando-se a ser preso em uma camisa de força ou controlado pelas táticas ditadas pelas condições de vida e pela relação para com os meios de produção da classe trabalhadora. O lúmpen se encontra em uma posição que torna muito difícil manifestar suas queixas contra o sistema. A classe trabalhadora tem a possibilidade de convocar uma greve contra a fábrica e o empregador e, graças ao mecanismo dos sindicatos, pode ter alguma mediação ou algum processo por meio do qual manifestar suas queixas. A negociação coletiva é o caminho para fora do poço da opressão e da exploração descoberto pela classe trabalhadora, mas o lúmpen não tem oportunidades para fazer qualquer negociação coletiva. Não tem um foco institucionalizado na sociedade capitalista. Não tem um opressor imediato, exceto talvez a polícia porca com a qual se confronta diariamente. Desse modo, as próprias condições de vida do lúmpen determinam as assim chamadas reações espontâneas contra o sistema; e, porque está nessa condição extremamente oprimida, tem uma reação extrema contra o sistema como um todo. Ele se vê como sendo ignorado por todas as organizações, mesmo pelos sindicatos e partidos comunistas que o desprezam, o menosprezam e o consideram, nas palavras de Karl Marx, o pai dos partidos comunistas, “a camada da escória da sociedade”. O lúmpen é forçado a criar suas próprias formas de rebelião, consistentes com sua condição devida e com sua relação com os meios de produção e com as instituições da sociedade. Isso é, atacar todas as estruturas a seu redor, incluindo a reacionária ala à direita do proletariado, quando esta se intromete no caminho da revolução. A análise falha que as ideologias da classe trabalhadora têm feito sobre a verdadeira natureza do lúmpen são largamente responsáveis pelo atraso no

desenvolvimento da revolução em situações urbanas. Pode-se dizer que os verdadeiros revolucionários nos centros urbanos do mundo têm sido analisados como estando fora da revolução por alguns marxista-leninistas. ²¹⁴ Publicado no jornal O Pantera Negra , em 6 de junho de 1970. ²¹⁵ Os três nomes citados são de líderes sindicais estadunidenses. George Meany e Walter Reuther eram anticomunistas. Asa Phillip Randolph fundou o primeiro sindicato predominantemente afro-americano e participou ativamente do Movimento pelos Direitos Civis. Os movimentos de libertação das mulheres e de libertação gay Por Huey P. Newton ²¹⁶ Durante os últimos anos, fortes movimentos vêm surgindo entre as mulheres e os homossexuais em busca de libertação. Houve alguma incerteza sobre como se relacionar com tais  movimentos. Quaisquer que sejam suas opiniões individuais e inseguranças sobre a homossexualidade e os diversos movimentos de libertação entre os homossexuais e mulheres (e falo de homossexuais e mulheres como grupos oprimidos), devíamos tentar nos unirmos a eles de modo revolucionário. Eu digo “quaisquer que sejam suas inseguranças” porque, como nós muito bem sabemos, às vezes nosso primeiro instinto é querer bater em um homossexual e querer que a mulher fique quieta. Queremos bater no homossexual porque temos medo de que possamos ser homossexuais; e queremos bater nas mulheres ou silenciá-las porque temos medo de que elas possam nos castrar ou nos arrancar os colhões, que talvez nem tenhamos, para começar. Devemos obter segurança em nós mesmos e, por conseguinte, ter respeito e empatia por todos os povos oprimidos. Não devemos usar da atitude racista que os brancos racistas usam contra nosso povo, porque são negros e pobres. Muitas vezes, o branco mais pobre é o mais racista porque tem medo de que possa perder algo ou descobrir algo que não tem. Então você se torna um tipo de ameaça para ele. Esse tipo de psicologia está operante quando vemos povos oprimidos e ficamos com raiva deles por causa de seu tipo particular de comportamento ou seu tipo particular de desvio da norma estabelecida. Lembrem-se, nós não estabelecemos um sistema de valores revolucionários; estamos apenas no processo de estabelecê-lo. Não me recordo de alguma vez termos constituído qualquer valor que dissesse que um revolucionário deve dizer coisas ofensivas contra os homossexuais ou que um revolucionário deve se certificar de que as mulheres não falem sobre seu próprio tipo particular de opressão. De fato, é justamente o oposto: dizemos que reconhecemos o direito das mulheres a serem livres. Não temos falado muito sobre os homossexuais, mas devemos nos relacionar com seu movimento porque se trata de uma coisa real. E sei, graças a leituras e à minha experiência de vida e minhas observações que ninguém na sociedade

dá aos homossexuais liberdade. Talvez eles sejam as pessoas mais oprimidas da sociedade. E o que os tornou homossexuais? Talvez seja um fenômeno que eu não entenda inteiramente. Algumas pessoas dizem que é a decadência do capitalismo. Não sei se esse é o caso; sinceramente duvido. Mas qualquer que seja o caso, sabemos que a homossexualidade é um fato e devemos entendê-la em sua forma mais pura: ou seja, uma pessoa deveria ter a liberdade de usar seu corpo da maneira que quisesse. Isso não implica endossar coisas na homossexualidade que nós não vemos como revolucionárias. Mas não há que se dizer que um homossexual não possa ser, também, um revolucionário. E talvez eu esteja agora inserindo um pouco do meu preconceito, dizendo que “mesmo um homossexual pode ser um revolucionário”. Muito pelo contrário, talvez um homossexual possa ser o maior dos revolucionários. Quando temos conferências, comícios e manifestações revolucionárias, deveria haver plena participação do movimento de libertação gay e do movimento de libertação das mulheres. Alguns grupos podem ser mais revolucionários do que outros. Não devemos usar a ação de uns para afirmar que são todos reacionários ou contrarrevolucionários, porque eles não são. Devemos lidar com as facções assim como lidamos com qualquer outro grupo ou partido que afirma ser revolucionário. Devemos julgar se estão operando de modo sinceramente revolucionário e a partir de uma situação de opressão real. Se fazem coisas que são não revolucionárias ou contrarrevolucionárias, então há de se criticar essa ação. Se entendermos que o grupo em espírito deseja ser revolucionário na prática, mas comete erros na interpretação da filosofia revolucionária, ou não entende a dialética das forças sociais operantes, devemos criticar a isso, e não criticar por serem mulheres tentando ser livres. E o mesmo é verdade para os homossexuais. Não devemos nunca falar que todo o movimento é desonesto quando, de fato, estão tentando ser honestos. Apenas cometem erros honestos. Aos amigos é permitido cometer erros. Ao inimigo não é permitido cometer erros, porque toda a sua existência é um erro e nós sofremos com isso. Mas a frente de libertação das mulheres e a frente de libertação gay são nossas amigas, são aliadas em potencial, e precisamos de quantos aliados quer sejam possíveis. Devemos estar dispostos a discutir as inseguranças que muitos têm sobre a homossexualidade. Quando eu digo “inseguranças”, quero dizer o medo de que eles sejam algum tipo de ameaça à nossa masculinidade. Eu posso entender tal medo. Devido ao longo processo de condicionamento que constrói insegurança no homem americano, a homossexualidade pode produzir certas neuras em nós. Eu mesmo possuo certas neuras quanto à homossexualidade masculina. Em contrapartida, não possuo nenhuma neura quanto à homossexualidade entre mulheres. E isso é um fenômeno em si mesmo. Acho que é provavelmente porque a homossexualidade masculina é uma ameaça para mim e a homossexualidade feminina não. Devemos ser cuidadosos acerca do uso desses termos que possam afastar nossos potenciais aliados. Os termos “bicha” e “viado” ²¹⁷ devem ser

suprimidos do nosso vocabulário e, especialmente, não devemos atribuir esses nomes normalmente designados para os homossexuais aos homens que são inimigos do povo, como Nixon ou Mitchell. Os homossexuais não são inimigos do povo. Devemos tentar formar uma coalizão ativa com os grupos pela libertação gay e pela libertação das mulheres. Devemos sempre lidar com as forças sociais da forma mais apropriada. ²¹⁶ Discurso pronunciado em 15 de agosto de 1970, dez dias após Newton ser liberto da prisão. ²¹⁷ Em inglês, faggot e punk . Mensagem à sessão plenária da Convenção Constitucional Revolucionária do Povo Por Huey P. Newton ²¹⁸ Dois séculos atrás, os Estados Unidos eram uma nação nova, concebida em liberdade e dedicada à vida, à liberdade e à busca da felicidade. As condições que prevaleceram na nação e as premissas sobre as quais as fundações foram construídas asseguraram que os Estados Unidos viessem a amadurecer sob circunstâncias cujo requisito foi que a vida de uma proporção substancial de seus cidadãos fosse nada mais que uma prisão de pobreza e a felicidade nada mais do que rir para não chorar. Os Estados Unidos da América nasceram em uma época em que a nação cobria relativamente poucas terras, uma faixa estreita de divisão política na Costa Leste. O país nasceu em uma época em que a população era pequena e francamente homogênea, tanto racial quanto culturalmente. Portanto, o povo chamado de americano era um povo diferente em um lugar diferente. Ademais, ele tinha um sistema econômico diferente. A pequena população e as terras férteis disponíveis significavam que, com a ênfase agrícola na economia, as pessoas eram capazes de avançar de acordo com sua motivação e habilidade. Tratava-se de uma economia agrária e, com as circunstâncias a seu redor, o capitalismo democrático floresceu na nova nação. Os anos seguintes veriam essa nova nação rapidamente desenvolver-se em um gigante de muitos membros. Ela adquiriu terras e espalhou-se da faixa estreita na Costa Leste, cobrindo quase todo o continente. A nova nação adquiriu uma população para preencher a terra recém-adquirida. Essa população foi arrancada dos continentes de África, Ásia, Europa e América do Sul. Portanto, uma nação concebida por um povo homogêneo numericamente pequeno e em uma pequena área cresceu, tornando-se uma nação de um povo heterogêneo, abrangendo um grande número e espalhado ao longo de todo um continente. Essa mudança nas características fundamentais da nação e de seu povo transformaram substancialmente a natureza da sociedade americana. Ademais, as mudanças sociais foram marcadas por mudanças econômicas. Uma economia rural e agrária tornouse uma economia urbana e industrializada, à medida que a agropecuária era desalojada pela manufatura. O capitalismo democrático de nossos primeiros

anos foi apanhado em uma busca irrefreada pela obtenção de lucros, até que a motivação egoísta do lucro eclipsou os princípios altruístas da democracia. Por isso, duzentos anos depois, temos uma economia superdesenvolvida que está tão imbuída da necessidade do lucro que nós substituímos o capitalismo democrático por um capitalismo burocrático. A livre oportunidade para que todo homem persiga seus fins econômicos foi substituída por limitações (confinamento) impostas sobre os americanos pelas grandes corporações que controlam e dirigem nossa economia. Elas têm visado aumentar seus lucros à custa do povo, e particularmente à custa das minorias raciais e étnicas. A história dos Estados Unidos, distinta da promessa da ideia dos Estados Unidos, nos conduz à conclusão de que nosso sofrimento é basicamente devido ao funcionamento do governo dos Estados Unidos. Nós o vemos quando notamos as contradições básicas encontradas na história desta nação. O governo, as condições sociais e os documentos legais que proporcionaram liberdade da opressão, que proporcionaram dignidade humana e direitos humanos para uma porção do povo desta nação, tiveram consequências inteiramente opostas para outra porção do povo. Enquanto o grupo majoritário obteve seus direitos humanos básicos, as minorias obtiveram alienação da terra de seus pais e escravidão. As evidências disto são nítidas e incontestáveis. Encontramos evidências da liberdade da maioria e da opressão da minoria no fato de que a expansão do governo dos Estados Unidos e a aquisição de terras se deram injustamente à custa dos indígenas americanos, que eram os possuidores originais da terra e permanecem seus legítimos herdeiros. A longa marcha dos cherokees na Trilha das Lágrimas ²¹⁹ e a efetiva desaparição de muitas outras nações indígenas testemunham a indisposição e a inabilidade do governo e da Constituição deste governo para incorporar minorias raciais. Encontramos evidências da liberdade da minoria e da opressão da minoria no fato de que, mesmo quando os primeiros colonos estavam proclamando sua liberdade, estavam deliberada e sistematicamente privando africanos dela. Essas contradições básicas foram posteriormente exacerbadas (tornadas furiosas) pelas leis, que implicitamente admitiram que a maioria estava errada, mas indisposta a fazer direito. Assim, quando a Declaração de Independência foi rascunhada, os pais fundadores consideraram um escravo como equivalente a três quintos de um homem. Assim, quando os escravos foram emancipados, os descendentes dos pais fundadores transigiram essa liberdade para obter mais territórios. Essas transigências eram tão básicas ao raciocínio de nossos antepassados que as tentativas legais de corrigir as contradições por meio de emendas constitucionais e leis de direitos civis não produziram quaisquer mudanças em nossa condição. Ainda somos um povo sem acesso igual à proteção e ao devido processo legal. Reconhecemos que as leis opressivas do governo dos Estados Unidos, quando contrastadas com os testamentos de liberdade, movem adiante uma contradição básica encontrada em todos documentos legais sobre os quais este governo se baseia.

Gerações e mais gerações do grupo majoritário nasceram, trabalharam e viram os frutos de seu trabalho na vida, na liberdade e na felicidade de seus filhos e netos. Gerações e mais gerações do povo negro na América nasceram, trabalharam e viram os frutos de seu trabalho na vida, na liberdade e na felicidade dos filhos e netos de seus opressores, enquanto seus próprios descendentes chafurdam na lama da pobreza e da privação, detendo apenas a esperança de mudanças no futuro. Essa esperança nos sustentou por muitos anos e nos levou a sofrer a administração de um governo corrupto. Na aurora do século XX, essa esperança nos levou a formular um movimento por direitos civis, na crença de que esse governo iria eventualmente cumprir suas promessas para com o povo negro. Não nos demos conta, porém, que qualquer tentativa de realizar as promessas de uma revolução do século XVIII em um quadro do século XX estava fadada ao fracasso. Os descendentes de uma pequena companhia de colonos originais desta terra não estão entre o povo comum de hoje, eles se tornaram uma pequena classe dominante no controle de um sistema econômico mundial. A Constituição estabelecida por seus ancestrais para servir ao povo não mais o faz, uma vez que o povo mudou. O povo do século XVIII se tornou a classe dominante do século XX, e o povo do século XX são os descendentes dos escravos e despossuídos do século XVIII. A Constituição estabelecida para servir ao povo do século XVIII agora serve à classe dominante do século XX, e o povo de hoje segue aguardando por uma fundação para suas próprias vida, liberdade e busca da felicidade. O movimento dos direitos civis não produziu estas fundações e não pode produzi-las por causa da natureza da sociedade e da economia dos Estados Unidos. A visão do movimento dos direitos civis e movimentos similares não produziu quaisquer fundações para a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Eles produziram programas humilhantes de assistência social e compensação do desemprego; programas com forma suficiente para enganar o povo, mas com substância insuficiente para transformar a distribuição fundamental de poder e recursos neste país. Ademais, enquanto estes movimentos tentaram introduzir minorias no sistema, nós notamos que o governo continua com seu padrão de práticas que contradizem a retórica democrática. Reconhecemos agora, que vemos a história se repetir, mas em uma escala internacional tanto quanto nacional. A busca implacável por lucro levou esta nação a colonizar, oprimir e explorar suas minorias. Essa busca pelo lucro conduziu esta nação do capitalismo democrático e subdesenvolvido para o capitalismo burocrático e superdesenvolvido. Agora vemos que esta pequena classe dominante continua em sua sanha por lucro por meio da opressão e da exploração dos povos do mundo. Em todo o mundo o lumpemproletariado é esmagado de modo que os lucros da indústria americana possam continuar a fluir. Em todo o mundo as lutas de libertação dos povos oprimidos se opõem a este governo, porque elas são uma ameaça para o capitalismo burocrático nos Estados Unidos da América. Estamos reunidos aqui para que se faça saber em casa e no exterior que a nação concebida na liberdade e dedicada à vida, à liberdade e à busca da felicidade se tornou, em sua maturidade, uma potência imperialista dedicada à morte, à opressão e à busca do lucro. Nós não seremos enganados por muitos de nossos semelhantes, não seremos cegados por

pequenas mudanças em forma que carecem de qualquer mudança na substância da expansão imperialista. Nosso sofrimento tem sido longo demais, nossos sacrifícios grandes demais e nossa dignidade humana forte demais para que sejamos prudentes por mais tempo. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR LIBERDADE E PODER PARA DETERMINAR NOSSO DESTINO. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR PLENO EMPREGO PARA NOSSO POVO. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA PELO FIM DA EXPLORAÇÃO CAPITALISTA DE NOSSA COMUNIDADE. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR MORADIAS DECENTES PARA NOSSO POVO. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA PELA DISPENSA DO SERVIÇO MILITAR. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA PELO FIM DA BRUTALIDADE POLICIAL. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR LIBERDADE PARA TODOS PRISIONEIROS POLÍTICOS. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR JULGAMENTOS JUSTOS PARA TODOS POR UM JÚRI DE SEUS PRÓPRIOS PARES. O PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS CLAMA POR UM PLEBISCITO NAS NAÇÕES UNIDAS PARA QUE IMPERE A VONTADE DO POVO NEGRO SOB SEU DESTINO NACIONAL. O povo negro e os povos oprimidos no geral perderam a fé nos líderes da América, no governo da América e na própria estrutura do governo americano (isto é, a Constituição, sua fundação legal). Esta perda de fé se baseia na esmagadora evidência de que este governo não viverá de acordo com a Constituição, porque ela não está designada a seu povo. Por esta razão, nós convocamos uma Convenção Constitucional para considerar alternativas racionais e positivas. Alternativas que colocarão suas ênfases no homem comum. Alternativas que promoverão um novo sistema econômico, no qual a remuneração bem como o trabalho serão divididos igualmente por todo o povo – uma estrutura socialista, na qual todos grupos serão adequadamente representados nas deliberações e na administração daquilo que afete suas vidas. Alternativas que garantirão que todos obtenham seus plenos direitos humanos, que sejam capazes de viver, ser livres e perseguir objetivos que tragam respeito e dignidade, ao mesmo tempo que permitam estes mesmos privilégios a cada outra pessoa, independente de condição ou status . A sacralidade do homem e do espírito humano requerem que a dignidade e a integridade humana sejam sempre respeitadas por todo outro homem. Não nos contentaremos com nada menos, pois a esta altura da história qualquer outra coisa seria nada senão uma morte em vida. NÓS SEREMOS LIVRES e estamos aqui para ordenar uma nova Constituição que assegure nossa

liberdade mediante a consagração (a celebração) da dignidade do espírito humano. ²¹⁸ Discurso proferido em 5 de setembro de 1970 em Filadélfia, Pensilvânia. ²¹⁹ A Trilha das Lágrimas foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocações e migrações forçadas impostas pelo governo dos Estados Unidos da América às diversas tribos reunidas no chamado Território Indígena (atual estado de Oklahoma), em conformidade com a política de remoção indígena. Intercomunalismo Por Huey P. Newton ²²⁰ Poder para o povo, irmãos e irmãs. Gostaria de agradecê-los por minha presença aqui esta noite, porque vocês são responsáveis por isso. Eu estaria em uma penitenciária de segurança máxima se não fosse pelo poder do povo. Presidente, por Ericka Huggins, por Angela Davis, pelos 21 de Nova York ²²¹ e os Irmãos Soledad. ²²² Por todos os presos políticos e prisioneiros de guerra. Nos dias ²⁸ e ²⁹ de novembro, teremos uma Convenção Constitucional Revolucionária do Povo em Washington, DC. Não podemos ter essa Convenção se o povo não vier. Afinal, o povo é o criador da história mundial e responsável por tudo. Como podemos ter uma convenção se não temos povo? Alguns acreditam que a convenção de um povo é possível sem que o povo esteja lá. Pelo que me lembro, esse foi o caso em 1777. ²²³ Hoje à noite, gostaria de delinear o programa do Partido dos Panteras Negras e explicar como chegamos à nossa posição ideológica e por que achamos necessário instituir um programa de dez pontos. Um programa de dez pontos não é revolucionário por si só, nem é reformista. É um programa de sobrevivência. Nós, o povo, estamos ameaçados de genocídio porque o racismo e o fascismo são galopantes neste país e em todo o mundo. E o círculo dominante na América do Norte é responsável. Pretendemos mudar tudo isso e, para mudá-lo, deve haver uma transformação total. Mas até que possamos alcançar essa transformação total, devemos existir. Para existir, devemos sobreviver; portanto, precisamos de um kit de sobrevivência: o Programa de dez pontos . É necessário que nossos filhos cresçam saudáveis, com mentes funcionais e criativas. Eles não podem fazê-lo se não receberem a nutrição correta. É por isso que temos um programa de café da manhã para crianças. Também temos programas de saúde comunitária. Temos um programa de ônibus. Nós o chamamos de O Ônibus para Parentes e Pais de Prisioneiros. Percebemos que o regime fascista que opera as prisões em toda a América gostaria de realizar seu abuso às escuras. Mas se levarmos parentes, pais e amigos para as prisões, eles podem expor os abusos dos fascistas. Este também é um programa de sobrevivência. Não devemos considerar nossos programas de sobrevivência como uma resposta a todo o problema da opressão. Nós nem sequer afirmamos que seja um programa revolucionário. As revoluções são feitas de coisa mais

severa. Dizemos que, se o povo não está aqui, a revolução não pode ser alcançada, pois o povo e somente o povo faz revoluções. O tema da nossa Convenção Constitucional Revolucionária do Povo é “sobrevivência por meio do serviço ao povo”. Em nossa convenção, apresentaremos a totalidade de nosso programa de sobrevivência. É um programa que funciona de modo parecido a um kit de primeiros socorros que é usado quando um avião cai e você se encontra no meio do mar em uma balsa de borracha. Você precisa de algumas coisas para durar até chegar à praia, até chegar ao oásis em que pode ser feliz e saudável. Se não tem as coisas necessárias para chegar a essa praia, então você provavelmente não resistirá. Neste momento, o círculo dominante nos ameaça, uma vez que temos medo de que possamos não sobreviver para ver o dia seguinte ou para ver a revolução. O Partido dos Panteras Negras não aceitará a destruição total do povo. De fato, traçamos uma linha de demarcação e não vamos mais tolerar fascismo, agressão, brutalidade e assassinato de qualquer tipo. Não vamos nos sentar e nos permitir ser assassinados. Cada pessoa tem a obrigação de se preservar. Se não se preserva, eu a acuso de suicídio: suicídio reacionário, porque condições reacionárias terão causado sua morte. Se não fizermos nada, estamos aceitando a situação e nos permitindo morrer. Nós não vamos aceitar isso. Se as alternativas são muito estreitas, ainda assim não ficaremos sentados, não morreremos a morte dos judeus na Alemanha. Preferimos morrer a morte dos judeus em Varsóvia! Onde há coragem, onde há amor-próprio e dignidade, existe a possibilidade de que possamos mudar as condições e vencer. Isso se chama entusiasmo revolucionário e é o tipo de luta necessária para garantir a vitória. Se precisarmos morrer, morreremos a morte de um suicídio revolucionário que diz: “se eu for derrubado, se for arrancado, recuso-me a ser varrido com uma vassoura. Eu preferiria ser arrancado com um bastão, porque se for varrido com a vassoura, isso me humilhará e perderei o amor-próprio. Mas se eu for arrancado com um bastão, então, pelo menos, posso reivindicar a dignidade de um homem e morrer a morte de um homem, em vez da morte de um cachorro”. Naturalmente, nosso verdadeiro desejo é viver, mas não nos acovardaremos, não seremos intimidados. Gostaria de explicar-lhes o método que o Partido dos Panteras Negras usou para chegar à nossa posição ideológica e, mais do que isso, gostaria de lhes oferecer uma estrutura ou um processo de pensamento que possa nos ajudar a resolver os problemas e as contradições que existem hoje. Antes de abordarmos o problema, precisamos ter uma imagem clara do que realmente está acontecendo; uma imagem clara, divorciada das atitudes e emoções que geralmente projetamos em uma situação. Devemos ser o mais objetivos possível, sem aceitar dogmas, deixando os fatos falarem por si mesmos. Mas não permaneceremos totalmente objetivos; tornaremo-nos subjetivos na aplicação do conhecimento recebido do mundo externo. Usaremos o método científico para adquirir esse conhecimento, mas reconheceremos abertamente nossa subjetividade última. Uma vez que aplicamos o conhecimento para obter um certo resultado, nossa objetividade

termina e nossa subjetividade começa. Chamamos isso de integração entre teoria e prática, e é nisto que consiste o Partido dos Panteras Negras. Para entender um grupo de forças operando ao mesmo tempo, a ciência desenvolveu o que é chamado de método científico. Uma das características ou propriedades desse método é o desinteresse. Não falta de interesse, mas desinteresse: nenhum interesse especial no resultado. Em outras palavras, o cientista não promove um resultado, ele apenas coleta os fatos. No entanto, ao adquirir seus fatos, ele deve começar com uma premissa básica. A maioria das premissas básicas decorre de um conjunto de suposições, porque é muito difícil testar uma primeira premissa sem essas suposições. Depois de se chegar a um acordo sobre certas suposições, pode-se seguir um argumento inteligente, pois então a lógica e a consistência são tudo o que é necessário para se chegar a uma conclusão válida. Hoje à noite peço a vocês que suponham existir um mundo externo. Um mundo externo que existe independentemente de nós. A segunda suposição que gostaria que vocês fizessem é que as coisas estão em constante estado de mudança, transformação ou fluxo. De acordo com essas duas suposições, podemos prosseguir em nossa discussão. O método científico se apoia pesadamente no empirismo. Mas o problema do empirismo é que ele fala muito pouco sobre o futuro; fala apenas sobre o passado, sobre informações que você já descobriu por meio da observação e da experiência. Sempre se refere à experiência passada. Muito tempo depois de as regras do conhecimento empírico terem sido apuradas, um homem com o nome de Karl Marx integrou essas regras com uma teoria desenvolvida por Immanuel Kant chamada lógica. Kant chamou seu processo de raciocínio de razão pura, porque esta não dependia do mundo externo. Em vez disso, dependia apenas da consistência na manipulação de símbolos para chegar a uma conclusão baseada na razão. Por exemplo, nesta sentença: “se o céu estiver acima da minha cabeça, quando virar a cabeça para cima, verei o céu”, não há nada de errado com a conclusão. De fato, ela é precisa. Mas eu nada disse sobre a existência do céu. Eu disse “se”. Com a lógica, não somos dependentes do mundo externo. Com o empirismo, podemos dizer muito pouco sobre o futuro. Então o que vamos fazer? O que Marx fez. Para compreender o que estava acontecendo no mundo, Marx achou necessário integrar a lógica ao empirismo. Ele chamou seu conceito de materialismo dialético. Se, como Marx, integramos esses dois conceitos ou essas duas formas de pensar, não apenas estamos em contato com o mundo fora de nós, como também podemos explicar o constante estado de transformação. Portanto, também podemos fazer algumas previsões sobre o resultado de certos fenômenos sociais que estão não apenas em constante mudança, mas também em conflito. Marx, como cientista social, criticou outros cientistas sociais por tentarem explicar fenômenos, ou um fenômeno, retirando-os de seu ambiente, isolando-os, colocando-os em uma categoria, não reconhecendo o fato de que, uma vez retirados de seu ambiente, os fenômenos eram transformados. Por exemplo: se em uma disciplina como a sociologia estudamos a atividade dos grupos – como se mantêm unidos e por que se desintegram – sem

entender tudo o mais relacionado a esse grupo, poderemos chegar a uma conclusão falsa sobre a natureza do grupo. O que Marx tentou fazer foi desenvolver um modo de pensar que explicasse os fenômenos realisticamente. Quando os átomos colidem, na física, eles se dividem em elétrons, prótons e nêutrons, se bem me lembro. O que aconteceu com o átomo? Foi transformado. No mundo social, algo semelhante acontece. Nós podemos aplicar o mesmo princípio. Quando duas culturas colidem, ocorre um processo ou uma condição que os sociólogos chamam de aculturação: a modificação das culturas como resultado do contato entre si. Marx chamou a colisão de forças ou classes sociais de contradição. No mundo físico, quando as forças colidem, às vezes chamamos isso apenas de colisão. Por exemplo, quando dois carros se encontram de frente, tentando ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, ambos são transformados. Às vezes outras coisas acontecem. Se aqueles dois carros tivessem sido virados de costas e acelerados em direções opostas, não seriam uma contradição; eles estariam contrários, cobrindo espaços diferentes em momentos diferentes. Às vezes, as pessoas se encontram, discutem e se desentendem porque acham que estão em contradição, quando estão apenas sendo contrárias. Por exemplo, eu posso dizer que o muro tem três metros de altura e você, que o muro é vermelho, e podemos discutir o dia todo pensando que estamos tendo uma contradição, quando, na verdade, estamos apenas sendo contrários. Quando as pessoas discutem, quando uma oferece uma tese e a outra oferece uma antítese, dizemos que há uma contradição e esperamos que, se argumentarmos o suficiente, desde que concordemos com uma premissa, podemos ter algum tipo de síntese. Hoje à noite, espero poder ter algum tipo de acordo ou síntese com aqueles que criticaram o Partido dos Panteras Negras. Penso que o erro é que algumas pessoas tomaram o aparente como o fato real, apesar de suas reivindicações de pesquisas acadêmicas e de seguir a disciplina do materialismo dialético. Eles falham em pesquisar mais profundamente, como o cientista precisa fazer, para ir além do aparente e trazer à tona o mais significativo. Deixe-me explicar como isso se relaciona com o Partido dos Panteras Negras. Ele é um partido marxista-leninista porque seguimos o método dialético e também integramos a teoria à prática. Não somos marxistas mecânicos e não somos materialistas históricos. Algumas pessoas pensam que são marxistas quando, na verdade, estão seguindo o pensamento de Hegel. Algumas pessoas pensam que são marxistas-leninistas, mas se recusam a ser criativas e, portanto, estão atadas ao passado. Elas estão atadas a uma retórica que não se aplica ao conjunto atual de condições. Estão ligadas a um conjunto de pensamentos que se aproxima do dogma – o que chamamos de mecanicismo. ²²⁴ Marx tentou estabelecer uma estrutura que pudesse ser aplicada a várias condições. E, ao aplicar essa estrutura, não podemos ter medo do resultado, porque as coisas mudam e devemos estar dispostos a reconhecer esta mudança, porque somos objetivos. Se estivermos usando o método do materialismo dialético, não esperamos encontrar nada igual nem um minuto depois, porque “um minuto depois” é história. Se as coisas estão em constante estado de mudança, não podemos esperar que sejam iguais.

Palavras usadas para descrever fenômenos antigos podem ser inúteis para descrever os novos. E se usarmos as palavras antigas para descrever novos eventos, corremos o risco de confundir as pessoas e levá-las a pensar que as coisas são estáticas. Em 1917, ocorreu na União Soviética um evento chamado de revolução. Duas classes tinham uma contradição e o país inteiro foi transformado. Nesse país, em 1970, o Partido dos Panteras Negras emitiu um documento. Nosso ministro da Informação, Eldridge Cleaver, que agora está na Argélia, escreveu um panfleto chamado Sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras . Nesse trabalho, Eldridge Cleaver afirmou que nem os proletários nem os trabalhadores industriais carregam as potencialidades de revolução neste país neste momento. Ele clamava que a ala esquerda dos proletários, os lumpemproletários, tem esse potencial revolucionário e, de fato, atuando como vanguarda, levaria os povos do mundo ao clímax final da transformação da sociedade. Já foi afirmado por algumas pessoas, por alguns partidos, por algumas organizações, pelo Partido Progressista do Trabalho, que a revolução é impossível. Como os lumpemproletários podem realizar uma transformação socialista bem-sucedida quando são apenas uma minoria? E, de fato, como eles podem fazê-lo quando a história mostra que apenas os proletários realizaram uma revolução social bem-sucedida? Concordo que é necessário que as pessoas que realizam uma revolução social representem os interesses da maioria popular. É necessário que este grupo represente as amplas massas do povo. Nós analisamos o que aconteceu na União Soviética em 1917. Também concordo que os lumpemproletários são a minoria neste país. Sem desacordo. Eu me contradisse? Isso só mostra que o que é aparente pode não ser realmente um fato. O que parece ser uma contradição pode ser apenas um paradoxo. Vamos examinar essa aparente contradição. A União Soviética, em 1917, era basicamente uma sociedade agrícola com um campesinato muito grande. Um conjunto de condições sociais existentes naquele momento era responsável pelo desenvolvimento de uma pequena base industrial. As pessoas que trabalhavam nessa base industrial eram chamadas proletárias. Lênin, usando a teoria de Marx, viu as tendências. Ele não era um materialista histórico, mas um materialista dialético e, portanto, muito interessado nas condições sempre mutáveis das coisas. Ele viu que, embora os proletários fossem uma minoria em 1917, tinham o potencial de realizar uma revolução, porque sua classe estava aumentando e o campesinato estava em declínio. Essa foi uma das condições. Os proletários estavam destinados a ser uma força popular. Eles, inclusive, tinham acesso às propriedades necessárias para realizar uma revolução socialista. Neste país, o Partido dos Panteras Negras, observando cuidadosamente o método dialético, observando atentamente as tendências sociais e a natureza sempre mutável das coisas, vê que, embora os lumpemproletários sejam a minoria e os proletários a maioria, a tecnologia está se desenvolvendo em um ritmo tão rápido que a automação progredirá para a cibernetização, e a cibernetização provavelmente para a tecnocracia. Quando cheguei na cidade, vi o MIT ²²⁵ no caminho. Se o círculo dominante permanecer no poder, parece-me que os capitalistas continuarão a desenvolver sua maquinaria tecnológica, porque não estão interessados no

povo. Portanto, espero deles a lógica que sempre seguiram: ganhar o máximo de dinheiro possível e pagar ao povo o mínimo possível – até que o povo exija mais e, finalmente, exija suas cabeças. Se a revolução não ocorrer quase imediatamente, e digo quase imediatamente porque a tecnologia está dando saltos (deu um salto até a Lua), e se o círculo dominante permanecer no poder, a classe trabalhadora proletária estará definitivamente em declínio, porque as pessoas estarão desempregadas e, portanto, engrossarão as fileiras do lúmpen, os atuais desempregados. Todo trabalhador está em risco por causa do círculo dominante, e é por isso que dizemos que os lumpemproletários têm o potencial para a revolução, provavelmente realizarão a revolução e, em um futuro próximo, serão a maioria popular. É claro que eu não gostaria de ver mais do meu povo desempregado ou tornando-se não empregáveis, mas, sendo objetivo, por sermos materialistas dialéticos, devemos reconhecer os fatos. Marx esboçou um processo aproximado de desenvolvimento da sociedade. Ele disse que a sociedade passa de uma estrutura de classes escrava para uma estrutura de classe feudal para uma estrutura de classe capitalista e finalmente para o comunismo. Ou, em outras palavras, do estado capitalista para o estado socialista e para o não Estado: o comunismo. Acho que podemos todos concordar que a classe escrava no mundo foi virtualmente transformada em escrava assalariada. Em outras palavras, a classe escrava no mundo não existe mais como uma força significativa e, se concordarmos com isso, podemos concordar que as classes podem ser transformadas literalmente para fora da existência. Se é assim, se a classe escrava pode desaparecer e se tornar outra coisa – ou não desaparecer, mas apenas ser transformada – e assumir outras características, também é verdade que os proletários ou a classe trabalhadora industrial podem ser transformados para fora da existência. Claro que as próprias pessoas não desapareceriam, apenas assumiriam outros atributos. O atributo que me interessa é o fato de que, em breve, o círculo dominante não precisará dos trabalhadores; e, se o círculo dominante estiver no controle dos meios de produção, a classe trabalhadora se tornará não empregável ou lúmpen. Isso é lógico; isso é dialético. Acho que seria errado dizer que apenas a classe escrava poderia desaparecer. Marx era um homem muito inteligente. Não era um dogmático. Uma vez, ele disse “uma coisa não sou: não sou marxista”. ²²⁶ Nessas palavras, ele estava tentando dizer ao Partido Progressista do Trabalho e a outros que não aceitassem o passado como o presente ou o futuro, mas entendessem e pudessem prever o que poderia acontecer no futuro e, portanto, agir de maneira inteligente para trazer à tona a revolução que todos nós queremos. Depois de levar essas coisas em consideração, vemos que, à medida que o tempo muda e o mundo é transformado, precisamos de novas definições, pois, se continuarmos usando os velhos termos, as pessoas poderão pensar que a velha situação ainda existe. Eu ficaria surpreso se as mesmas condições que existiam em 1917 ainda existissem hoje. Você sabe que Marx e Lênin eram caras muito preguiçosos quando se tratava de trabalhar para alguém. Eles encararam a labuta, trabalhar por sua necessidade, como uma espécie de maldição. E toda a teoria de Lênin,

depois de colocar em prática a análise de Marx, foi voltada a se livrar dos proletários. Em outras palavras, quando a classe proletária ou a classe trabalhadora aproveitassem os meios de produção, planejariam sua sociedade de maneira a ficarem livres do trabalho. De fato, Lênin viu um momento em que o homem podia ficar em um lugar, apertar botões e mover montanhas. Parece-me que ele viu uma classe proletária transformada e na posse de um tempo livre para se entregar à criatividade produtiva, para pensar em desenvolver seu universo, para que pudesse ter a felicidade, a liberdade e o prazer que todos os homens buscam e valorizam. O capitalista de hoje desenvolveu a maquinaria a tal ponto que pode contratar um grupo de pessoas especializadas chamadas tecnocratas. Em um futuro próximo, certamente fará mais disso, e o tecnocrata será especializado demais para ser identificado como proletário. De fato, esse grupo de tecnocratas será tão vital que teremos que fazer algo para explicar a presença de outras pessoas; teremos que conceber outra definição e razão de existir. Mas não devemos confinar nossa discussão à teoria; precisamos de aplicação prática de nossa teoria para chegar a algo que valha a pena. Apesar das críticas que recebemos de certas pessoas, o Partido tem uma aplicação prática de suas teorias. Muitas de nossas atividades fornecem à classe trabalhadora e aos desempregados uma razão e um meio para existir no futuro. O povo não desaparecerá – não, com nossos programas de sobrevivência eles não irão. Eles ainda estarão por aí. O Partido dos Panteras Negras diz que é perfeitamente correto organizar os proletários, porque depois de serem expulsos da fábrica e chamados de desempregados ou lúmpen, eles ainda querem viver e, para viver, precisam comer. É do melhor interesse do proletário apreender as máquinas que ele fabricou para produzir em abundância, para que ele e seus irmãos possam viver. Não esperaremos até que o proletário se torne o lumpemproletário para educá-lo. Hoje devemos elevar a consciência do povo. O vento está subindo e os rios fluindo, os tempos estão ficando difíceis e não podemos voltar para casa. Não podemos voltar ao ventre de nossa mãe, nem voltar a 1917. Os Estados Unidos, ou o que gosto de chamar de América do Norte, foram transformados pelas mãos do círculo dominante de uma nação para um império. Isso causou uma mudança total no mundo, porque nenhuma parte de uma coisa inter-relacionada pode mudar e deixar todo o resto igual. Então, quando os Estados Unidos, ou a América do Norte, tornaram-se um império, mudou toda a composição do mundo. Havia outras nações no mundo. Mas “império” significa que o círculo dominante que ali vive (os imperialistas) controla outras nações. Ora, há algum tempo, existia um fenômeno que chamamos – bem, eu chamo – de império primitivo. Um exemplo disso seria o Império Romano, porque os romanos controlavam tudo o que se pensava ser o mundo conhecido. De fato, não conheciam o mundo inteiro, portanto algumas nações ainda existiam independentes deles. Agora, provavelmente todo o mundo é conhecido. Os Estados Unidos, como império, necessariamente controlam o mundo inteiro, direta ou indiretamente.

Se entendemos a dialética, sabemos que toda determinação traz uma limitação e toda limitação traz uma determinação. Em outras palavras, ainda que uma força possa fazer emergir uma coisa, ela deve esmagar outras, inclusive a si mesma. Podemos chamar esse conceito de “a negação da negação”. Assim, enquanto em 1917 o círculo dominante criava uma base industrial e usava o sistema do capitalismo, também estava criando as condições necessárias para o socialismo. Eles o estavam fazendo porque, em uma sociedade socialista, é necessário ter alguma centralização da riqueza, alguma distribuição igual da riqueza e alguma harmonia entre o povo. Agora, darei a vocês, aproximadamente, algumas características que qualquer povo que se autodenomina uma nação deve ter. Elas são: independência econômica, determinação cultural, controle das instituições políticas, integridade territorial e  segurança. Em 1966, chamamos nosso partido de Partido Nacionalista Negro. Nós nos chamamos de nacionalistas negros porque pensávamos que a nacionalidade era a resposta. Pouco depois, decidimos que o que realmente era necessário era o nacionalismo revolucionário, isto é, nacionalismo mais socialismo. Depois de analisar um pouco mais as condições, descobrimos que isso era impraticável e até contraditório. Portanto, fomos para um nível superior de consciência. Vimos que, para sermos livres, devíamos esmagar o círculo dominante e, portanto, devíamos nos unir aos povos do mundo. Então nos chamamos internacionalistas. Buscamos solidariedade com os povos do mundo. Buscamos solidariedade com o que pensávamos serem as nações do mundo. Mas então o que aconteceu? Descobrimos que, porque tudo está em constante estado de transformação, por causa do desenvolvimento da tecnologia, por causa do desenvolvimento da mídia de massa, por causa do poder de fogo imperialista e pelo fato de os Estados Unidos não serem mais uma nação, mas um império, as nações não poderiam existir, pois elas não possuíam os critérios de nacionalidade. Sua autodeterminação, determinação econômica e determinação cultural foram transformadas pelos imperialistas e pelo círculo dominante. Elas não eram mais nações. Descobrimos que, para ser internacionalistas, tínhamos que ser também nacionalistas ou, pelo menos, reconhecer a nacionalidade. Internacionalismo, se eu entendo a palavra, significa a inter-relação entre um grupo de nações. Mas como nenhuma nação existe e como os Estados Unidos são de fato um império, é impossível sermos internacionalistas. Essas transformações e fenômenos exigem que nos chamamos de “intercomunalistas”, porque as nações foram transformadas em comunidades do mundo. O Partido dos Panteras Negras agora renuncia ao internacionalismo e apoia o  intercomunalismo. Marx e Lênin sentiram, com a informação que tinham, que quando o não Estado finalmente se tornasse realidade, isto seria causado ou introduzido pelo povo e pelo comunismo. Aconteceu uma coisa estranha. O círculo reacionário dominante, por ser imperialista, transformou o mundo no que chamamos de “intercomunalismo reacionário”. Eles sitiaram todas as comunidades do mundo, dominando as instituições a tal ponto que o povo não era servido pelas instituições em sua própria terra. O Partido dos Panteras Negras gostaria de reverter essa tendência e levar as pessoas do

mundo à era do “intercomunalismo revolucionário”. Esta seria a época em que o povo se apropriará dos meios de produção e distribuirá a riqueza e a tecnologia de maneira igualitária para as muitas comunidades do mundo. Vemos muito pouca diferença no que acontece com uma comunidade aqui na América do Norte e no que acontece com uma comunidade no Vietnã. Vemos muito pouca diferença no que acontece, mesmo culturalmente, a uma comunidade chinesa em San Francisco e a uma comunidade chinesa em Hong Kong. Vemos muito pouca diferença no que acontece com uma comunidade negra no Harlem e uma comunidade negra na América do Sul, uma comunidade negra em Angola e uma em Moçambique. Vemos muito pouca diferença. Então, o que realmente aconteceu é que o não Estado já foi realizado, mas é reacionário. Uma comunidade, por definição, é uma coleção abrangente de instituições que atendem às pessoas que vivem nela. Difere de uma nação porque uma comunidade evolui em torno de uma estrutura maior que normalmente chamamos de Estado, e este tem certo controle sobre a comunidade se a administração representar o povo ou se o governo calhar de ser o comissário do povo. Não é assim neste momento, então ainda há algo a ser feito. Mencionei anteriormente a “negação da negação”, mencionei também a necessidade de redistribuição da riqueza. Pensamos que é muito importante saber que, como as coisas estão no mundo de hoje, o socialismo nos Estados Unidos nunca existirá. Por quê? Não existirá porque não pode existir. No momento, não pode existir em nenhum lugar do mundo. O socialismo exigiria um Estado socialista, e se não existe um Estado, como o socialismo poderia existir? Então, como definimos certos países progressistas, como a República Popular da China? Como descrevemos certos países ou comunidades progressistas, como a República Popular Democrática da Coreia? Como definimos certas comunidades tais quais o Vietnã do Norte e o governo provisório no Sul [deste país]? Como explicar essas comunidades se elas também não podem reivindicar a nacionalidade? Dizemos o seguinte: dizemos que elas representam o território libertado do povo. Elas representam uma comunidade libertada. Mas essa comunidade não é suficiente, não está satisfeita, assim como a Frente de Libertação Nacional não está satisfeita com o território libertado no sul do Vietnã. Ela é apenas o trabalho de base e a preparação para a libertação do mundo – expropriação da riqueza do círculo dominante, distribuição igualitária e representação proporcional em uma estrutura intercomunal. É isso que o Partido dos Panteras Negras gostaria de alcançar com a ajuda do poder do povo, porque sem ele nada pode ser alcançado. Afirmei que, nos Estados Unidos, o socialismo nunca existiria. Para que ocorra uma revolução nos Estados Unidos, seria preciso ter uma redistribuição de riqueza não em nível nacional ou internacional, mas em nível intercomunal. Porque, como poderíamos dizer que realizamos a revolução se redistribuíssemos a riqueza apenas para o povo aqui na América do Norte, quando o próprio círculo dominante é culpado de transgressão De Bonis asportatis . ²²⁷ Ou seja, eles arrancaram os bens das pessoas do mundo, os transportaram para a América e os usaram como seus.

Em 1917, quando a revolução ocorreu, poderia haver uma redistribuição de riqueza em nível nacional porque as nações existiam. Agora, se se fala em termos de planejamento de uma economia em nível mundial, em nível intercomunal, está-se dizendo algo importante: que os povos foram espoliados da mesma forma como um país é espoliado. A reparação simples não é suficiente, porque as pessoas não apenas foram roubadas de suas matérias-primas, mas também da riqueza acumulada com o investimento desses materiais – um investimento que criou a máquina tecnológica. Os povos do mundo terão que ter controle – não uma parcela limitada de controle por um período de tempo “X”, mas um controle total para sempre. Para planejar uma economia intercomunal real, teremos que reconhecer como o mundo está conectado. Também teremos que reconhecer que as nações não existem há algum tempo. Algumas pessoas argumentam que as nações ainda existem por causa das diferenças culturais. Por definição, apenas para argumentos práticos, a cultura é uma coleção de padrões de comportamento aprendidos. Aqui nos Estados Unidos, os negros, os africanos, foram raptados da pátria e, consequentemente, literalmente perdemos a maior parte de nossos valores africanos. Talvez ainda nos apeguemos a alguns africanismos sobreviventes, mas, em geral, é posível ver a transformação que foi alcançada pelo tempo e pela sociedade altamente tecnológica cujos tremendos meios de comunicação de massa funcionam como um centro de doutrinação. O círculo dominante lançou satélites para projetar um raio através da terra e doutrinar o mundo, e, embora possa haver algumas diferenças culturais, essas diferenças não são qualitativas, mas quantitativas. Em outras palavras, se a tecnologia e o círculo dominante continuarem como estão agora, os povos do mundo estarão condicionados a adotar valores ocidentais. (Acho que o Japão é um bom exemplo.) As diferenças entre os povos estão ficando muito pequenas, mas, novamente, isso é do interesse do círculo dominante. Não acredito que a história possa voltar atrás. Se o mundo está realmente tão interconectado, temos que reconhecê-lo e dizer que, para que os povos sejam livres, terão que controlar as instituições de sua comunidade e ter alguma forma de representação no centro tecnológico que produziram. Os Estados Unidos, a fim de corrigir seu roubo ao mundo, deverão primeiro devolver muito do que roubou. Não vejo como podemos falar de socialismo quando o problema é a distribuição mundial. Acho que foi isso que Marx quis dizer quando falou sobre o não Estado. Algum tempo atrás, eu estava na casa de Alex Haley e ele falou comigo sobre sua busca por seu passado. Ele o encontrou na África, mas quando voltou para lá pouco depois, estava em estado de pânico. Sua vila não havia mudado muito, mas quando ele foi para lá, viu um velho andando pela rua abaixo, carregando para seu carro algo que ele apreciava. Era um pequeno rádio transistorizado que estava sintonizado na rede de transmissão britânica. O que estou tentando dizer é que a mídia de massa e o desenvolvimento do transporte tornam impossível pensar em nós mesmos em termos de entidades separadas, como nações. Vocês se dão conta de que levei apenas cinco horas para chegar de San Francisco até aqui? Leva apenas dez horas para chegar daqui ao Vietnã. O círculo dominante nem reconhece mais as guerras; eles as chamam de “ações policiais”. Ele chama os distúrbios do povo vietnamita de “distúrbio doméstico”. O que estou

dizendo é que o círculo dominante deve perceber e aceitar as consequências do que fez. Ele sabe que existe apenas um mundo, mas está determinado a seguir a lógica de sua exploração. Há pouco tempo, em Detroit, a comunidade estava sitiada e agora dezesseis membros do Partido estão na prisão. A polícia local levantou cerco sobre esta comunidade e esta casa, e usou as mesmas armas que usou no Vietnã (na verdade, dois tanques recolhidos). O mesmo acontece no Vietnã, porque a “polícia” também está lá. A “polícia” está em toda parte e todas usam o mesmo uniforme, as mesmas ferramentas e têm o mesmo objetivo: a proteção do círculo dominante aqui na América do Norte. É verdade que o mundo é uma comunidade, mas não estamos satisfeitos com a concentração de seu poder. Queremos o poder para o povo. Eu disse anteriormente (mas divaguei) que a teoria da “negação da negação” é válida. Alguns acadêmicos têm se perguntado por que na Ásia, na África e na América Latina a resistência sempre busca o objetivo de uma sociedade coletiva. Essa resistência parece não instituir a economia do capitalista. Parece pular do feudalismo para uma sociedade coletiva, e algumas pessoas não conseguem entender o porquê. Por que essas experiências não seguem o marxismo histórico, ou o materialismo histórico? Por que elas não vão do feudalismo ao desenvolvimento de uma base capitalista e, finalmente, ao socialismo? Elas não o fazem porque não podem fazê-lo. Elas não o fazem pela mesma razão que a comunidade negra no Harlem não pode desenvolver o capitalismo, que a comunidade negra em Oakland ou San Francisco não podem desenvolver o capitalismo: porque os imperialistas já haviam limitado o espaço para tanto. Eles já haviam centralizado a riqueza. Portanto, para lidar com eles, tudo o que podemos fazer é libertar nossa comunidade e, em seguida, avançar sobre eles como uma força coletiva. Tivemos longas discussões com as pessoas sobre nossas convicções. Antes de nos tornarmos conscientes, costumávamos nos chamar de um conjunto disperso de colônias aqui na América do Norte. E as pessoas discutiam comigo o dia todo e a noite toda, perguntando: “Como é possível que vocês sejam uma colônia? Para ser uma colônia, precisam ter uma nação, e vocês não são uma nação, são uma comunidade. Vocês são um conjunto disperso de comunidades”. Como o Partido dos Panteras Negras não tem vergonha de mudar ou admitir seus erros, hoje à noite eu gostaria de aceitar as críticas e dizer que esses críticos estavam absolutamente certos. Somos um conjunto de comunidades, assim como o povo coreano, o vietnamita e o chinês são um conjunto de comunidades – conjunto disperso de comunidades, porque não temos uma superestrutura própria. A superestrutura que temos é a superestrutura de Wall Street, que todo o nosso trabalho produziu. Essa é uma forma distorcida de coletividade. Tudo foi coletado, mas é usado exclusivamente no interesse do círculo dominante. É por isso que o Partido dos Panteras Negras denuncia o capitalismo negro e diz que tudo o que podemos fazer é libertar nossa comunidade, não apenas no Vietnã, mas aqui, não apenas no Camboja e nas Repúblicas Populares da China e Coreia, mas nas comunidades do mundo. Devemos nos unir como uma comunidade e depois transformar o mundo em um lugar onde as pessoas sejam felizes, as guerras cessem, o próprio Estado não exista mais e tenhamos o comunismo.

Mas não podemos fazer isso imediatamente. Quando a transformação ocorre, quando a mudança estrutural ocorre, o resultado geralmente é um atraso cultural. Depois que o povo possuir os meios de produção, provavelmente não entraremos diretamente no comunismo, mas permaneceremos no intercomunalismo revolucionário até que possamos nos livrar do pensamento burguês; até que possamos nos livrar do racismo e do pensamento reacionário; até que as pessoas não estejam apegadas à sua nação como um camponês está apegado ao solo; até que as pessoas possam obter sua sanidade e desenvolver uma cultura que seja “essencialmente humana”, que servirá ao povo em vez de a algum deus. Uma vez que não podemos evitar o contato uns com os outros, teremos que desenvolver um sistema de valores que nos ajude a funcionar juntos, em harmonia. ²²⁰ Discurso proferido no Boston College, 18 de novembro de 1970. ²²¹ Referência aos 21 membros do Partido dos Panteras Negras presos em 2 de abril de 1969 em Nova York, sob a acusação de planejar três atentados. Durante o julgamento, o promotor apresentou à Corte, como prova, o Pequeno livro vermelho , de Mao Tsé-Tung, e o filme A batalha de Argel . Em 12 de maio de 1971, os acusados foram absolvidos de todas as 156 acusações. ²²² Em 16 de janeiro de 1970, na prisão Soledad, três homens negros foram acusados, sem provas, de assassinar um guarda branco em retaliação à execução de três presidiários negros por um outro guarda branco, dias antes. O Comitê de Defesa dos Irmãos Soledad foi formado por inúmeras celebridades, como a intelectual militante Angela Davis, o ator Marlon Brando, o químico Linus Pauling, entre outros. ²²³ Provável referência ao Segundo Congresso Continental, de 15 de novembro de 1777, que ratificou os artigos da Confederação e União Perpétua entre os treze estados originais dos Estados Unidos. ²²⁴ Em inglês, flunkeyism . Flunky , lacaio, poderia conduzir à tradução “servilismo”, como o termo é frequentemente utilizado nos textos de Lênin em inglês. No entanto, o termo flunky também é utilizado para definir quem “obedece mecanicamente”, motivo pelo qual optamos pela tradução “mecanicismo”, mais oportuna no contexto. ²²⁵ N. da T.: Instituto de Tecnologia de Massachusetts. ²²⁶ Quando Marx trabalhou ao lado de Paul Lafargue e Jules Guesde na elaboração do programa do Parti Ouvrier (Partido Operário) francês, uma polêmica emergiu em torno dos desdobramentos deste programa. Para Guesde, o programa seria irrealizável nos marcos do capitalismo e a sua rejeição pela burguesia libertaria o proletariado de suas ilusões reformistas. Rechaçando essa interpretação e acusando Guesde e Lafargue de “fraseologia revolucionária” por negar o valor de qualquer luta por reformas, Marx fez seu famoso comentário de que, se aquilo que eles advogavam era marxismo, então “o que é certo é que eu não sou um marxista”. A frase foi mencionada por Engels, mais tarde, em uma carta a Eduard Bernstein.

²²⁷ Em latim: “das mercadorias transportadas”. No direito romano, referência ao crime de furto. Mensagem ao primeiro-ministro Kim Il-Sung sobre a fundação da República Popular Democrática da Coreia Por Eldridge Cleaver ²²⁸ Camarada Kim Il-Sung Primeiro-ministro da República Popular Democrática da Coreia O vigésimo terceiro aniversário da fundação da República Popular Democrática da Coreia é um dia de orgulho para o heroico povo coreano e um tributo à liderança sábia e poderosa do Partido dos Trabalhadores da Coréia. A República Popular Democrática da Coreia demonstrou ao mundo o grande poder do povo organizado e mobilizado em torno da ideologia marxista-leninista e guiado por uma liderança revolucionária inabalável. Os avanços milagrosos que a revolução coreana realizou na construção de uma nação poderosa – com sua economia, sua cultura, sua política e seu sistema social firmemente nas mãos do povo coreano e dedicados a atender às suas necessidades – fornecem uma inspiração brilhante para os povos que ainda lutam por independência nacional e liberdades democráticas. O sucesso do princípio Juche aplicado pela revolução coreana é um incentivo para os povos combatentes ao redor do mundo. Os longos dias escuros do passado, nos quais o povo coreano lutou contra os perversos fascistas japoneses para conquistar sua independência, deram frutos hoje na maravilhosa vida disponível para o povo na República Popular Democrática da Coreia. A heroica batalha travada contra os bestiais agressores imperialistas dos Estados Unidos foi um triunfo histórico, não apenas para o povo coreano, mas para todas as vítimas desses cães assassinos. Apesar de todas as tentativas de destruir e subverter os esforços do povo coreano para construir uma sociedade socialista poderosa e independente, e para promover o movimento revolucionário internacional, sob a liderança do Partido dos Trabalhadores da Coreia e a proteção do Exército Popular da Coreia, a revolução coreana continuou a registrar sucesso atrás de sucesso. Hoje, é uma nação poderosa e bela, expressando para todo o mundo ver a superioridade do sistema socialista de desenvolvimento social. A posição intransigente, na ideologia, na política e na prática, que o povo coreano assumiu em relação a seus irmãos e irmãs na metade ao sul, que ainda sofrem sob o jugo do neocolonialismo dos Estados Unidos e são prostituídos para servir aos desígnios agressivos da camarilha dominante fascista dos Estados Unidos certamente trará resultados positivos na luta pela unificação do país e para levar todo o povo coreano a participar ativamente da revolução coreana.

Saudamos orgulhosamente o 23o aniversário da fundação da República e desejamos ao povo coreano sucessos cada vez maiores no avanço da construção nacional, na unificação da pátria e no movimento revolucionário internacional. TODO O PODER PARA O POVO! ²²⁸ Em 17 de abril de 1971, Eldridge Cleaver foi expulso do Partido. Exilado na Argélia, escreveu a presente carta em 9 de setembro de 1971. Eu sou nós Por Huey P. Newton ²²⁹ Há um velho ditado africano: “eu sou nós”. Se você conhecesse um africano nos tempos antigos e perguntasse quem ele era, ele responderia: “eu sou nós”. Isso é suicídio revolucionário: eu, nós, todos somos o um e a multidão. Agora, muitos dos meus camaradas se foram. Alguns parceiros próximos, parceiros no crime e irmãos de rolê estão mendigando na rua. Outros estão em asilos, penitenciárias ou sepulturas. Todos estes são suicidas de um tipo ou de outro, que tiveram a sensibilidade e a imaginação trágica para ver a opressão. Alguns superaram; eles são os suicidas revolucionários. Outros eram suicidas reacionários que superestimavam ou subestimavam o inimigo, mas, em todo caso, eram impotentes para mudar sua concepção do opressor. A diferença repousa na esperança e no desejo. Esperando e desejando, o suicida revolucionário escolhe a vida; ele é, nas palavras de Nietzsche, “uma flecha de anseio por uma outra margem”. Ambos os suicidas desprezam a tirania, mas o revolucionário é um grande desprezador e um grande adorador que anseia por uma outra margem. O suicida reacionário deve aprender, como seu irmão revolucionário aprendeu, que o deserto não é um círculo. É uma espiral. Quando passamos pelo deserto, nada é o mesmo. Você não pode expor sua garganta ao assassino. Como disse George Jackson, deve se defender e assumir a posição do dragão como no Karatê e dar o chute frontal e o chute traseiro quando estiver cercado. Você não implora porque seu inimigo vem com a faca de açougueiro em uma mão e o machado na outra. “Ele não se tornará budista da noite para o dia”. O pregador disse que o sábio e o tolo têm o mesmo fim; vão para o túmulo como um cachorro. Quem nos envia para o túmulo? O incognoscível, a força que dita a todas as classes, todos os territórios, todas as ideologias; ela é a morte, o Chefão. Um homem ambicioso procura destronar o Chefão, libertarse, controlar quando e como ele irá para o túmulo. Há outra história esclarecedora sobre o sábio e o tolo encontrada no Pequeno livro vermelho , de Mao Tsé-Tung. Um velho tolo foi para a Montanha do Norte e começou a cavar; um velho sábio passou e disse: “Por que você cava, velho tolo? Você não sabe que não pode mover a montanha com uma pequena pá?”. Mas o velho tolo respondeu resolutamente: “embora a montanha não possa subir mais, ela diminuirá a cada pá. Quando eu me for, meus filhos e seus filhos e os filhos de seus filhos continuarão tornando a

montanha mais baixa. Por que nós não podemos mover a montanha?”. E o velho tolo continuou cavando, e as gerações que se seguiram a ele, e o velho sábio observou com descontentamento. Mas a resolutividade e o espírito das gerações que seguiram o velho tolo tocaram o coração de Deus, e Deus enviou dois anjos que colocaram a montanha nas costas e a moveram. Essa é a história que Mao contou. Quando ele falou de Deus, ele quis dizer os seiscentos milhões que o ajudaram a mover o imperialismo e o pensamento burguês, as duas grandes montanhas. O suicida reacionário é “sábio” e o suicida revolucionário é um “tolo”, um tolo pela revolução da maneira que Paulo quis dizer quando afirmou ser “um tolo por Cristo”. Essa tolice pode mover a montanha da opressão; é o nosso grande salto e nosso compromisso com os mortos e os não nascidos. Nós tocaremos o coração de Deus; tocaremos o coração do povo e, juntos, moveremos a montanha. A Coalização Arco-Íris Os Panteras Negras, os Jovens Patriotas e a Coalizão Arco-íris Por Michael McCanne ²³⁰ Em julho de 1969, o Partido dos Panteras Negras convocou uma grande reunião em Oakland que atraiu grupos radicais de todo o país. Eles a chamaram de Conferência por uma Frente Única Contra o Fascismo. Em uma tarde de sábado, entre discursos de representantes do Partido Comunista, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e dos Estudantes por uma Sociedade Democrática (SDS), um homem usando uma enorme fivela de cinto com pistolas cruzadas subiu ao palco. Óculos escuros cobriam seus olhos, e sua jaqueta e boina de estilo militar ostentavam bandeiras confederadas. ²³¹ “Nós viemos de um monstro”, disse ele com um forte sotaque sulista. “E as mandíbulas do monstro em Chicago estão moendo carne humana e cuspindo o sangue das pessoas pobres e oprimidas, os negros no sul, no oeste; os marrons no norte; e os vermelhos e amarelos; e sim, os brancos – pessoas brancas oprimidas.” O nome do orador era William “Pregador” ²³² Fesperman e ele pertencia à organização dos Jovens Patriotas, um grupo radical formado por jovens da zona norte, empobrecida, de Chicago. Sua missão era organizar os brancos pobres para lutarem coletivamente, em solidariedade com as comunidades não brancas. Embora a organização tenha sobrevivido por apenas alguns anos, ela encarnava uma ideia radical: que brancos marginalizados poderiam se libertar dos grilhões do racismo e lutar ao lado de negros e marrons para criar uma nova sociedade.

Décadas depois, a Coalizão Arco-Íris, criada pelos Panteras Negras e Jovens Patriotas, ainda oferece um modelo notável para a política de esquerda. Um Harlem caipira Os Jovens Patriotas tinham suas raízes no bairro de Uptown, uma favela densamente habitada, formada por brancos pobres que haviam migrado do Sul rural após a Segunda Guerra Mundial. A maioria estava fugindo do declínio da indústria de carvão dos Apalaches 233 e trouxe consigo sua cultura: bandeiras confederadas penduradas nos bares, música country inundando os salões da sinuca. Em meados da década de 1960, os jornais locais se referiam a Uptown como o “Harlem Hillbilly” – em referência ao bairro de Nova York conhecido pela herança cultural afro-americana e à maneira como são chamadas as pessoas, em geral pobres, das regiões montanhosas dos apalaches americanos – e retratavam o bairro como um antro de crime e depravação. Hy Thurman era um típico jovem desse bairro empobrecido. Havia crescido em Dayton, Tennessee, onde a família inteira trabalhou na agricultura, ganhando a vida colhendo feijão, milho e morangos. A pobreza assolou toda sua juventude. “Minha mãe e minha irmã mais velha tinham o mesmo tamanho de pé”, ele lembrou em uma entrevista, “mas elas só tinham um par de sapatos decente. Minha irmã saia para estudar com eles e voltava para casa, então minha mãe os usava para ir à cidade”. Seu irmão mais velho, Rex, foi para Chicago na época em que Hy abandonou a nona série. Em 1967, Hy seguiu seu irmão para o Norte. “Pensávamos em Chicago como uma espécie de terra prometida”, disse ele. “Era onde você poderia começar de novo. Mas descobri muito rapidamente que na verdade não era assim”. Quando conseguia encontrar trabalho, pegava serviços de curta duração como diarista. Quando não conseguia, vendia o próprio sangue para sobreviver. Quando Hy chegou a Uptown, seu irmão havia ingressado em uma gangue de rua chamada Bons Companheiros, ²³⁴ que havia recentemente desenvolvido laços com a organização comunitária Jobs or Income Now ²³⁵ (Join). Iniciativa criada pela SDS, a Join fazia campanhas de agitação por questões como o direito à moradia e reformas da seguridade social. E lutava contra a imensa máquina política do prefeito Richard J. Daley, que usava de clientelismo e brutalidade policial para controlar os moradores e estimular a gentrificação. ²³⁶ A mobilização contra o assédio policial estava no topo da lista de prioridades dos Bons Companheiros: os jovens pobres sofriam revistas policiais constantes, além de espancamentos e humilhações nas mãos da polícia local. Os ativistas do SDS recomendaram cautela, mas, ainda assim, ofereceram solidariedade aos Bons Companheiros para organizar uma marcha até a delegacia do bairro em agosto de 1966. Quase trezentos moradores compareceram à manifestação. Mas a polícia rapidamente revidou, invadindo o escritório da Join e uma igreja que apoiava os esforços dos ativistas. Alguns dias depois, um policial matou um dos membros dos Bons Companheiros, atirando pelas costas enquanto ele fugia de uma briga.

A marcha e suas consequências levaram à ebulição as tensões que já se acumulavam na Join. Sentindo-se sufocados pelos organizadores de classe média da SDS, os Bons Companheiros partiram para o ataque por conta própria e fundaram a Organização dos Jovens Patriotas: um movimento que eles orgulhosamente proclamaram como sendo por e para os “caipiras”. Elaboraram um programa de onze pontos e adotaram símbolos: a bandeira confederada pendurada por botões pretos na lapela. Em pouco tempo, Thurman, seu irmão e os outros patriotas estavam agitando os bares e as mesas de bilhar da Uptown, recrutando membros de gangues e divulgando sua doutrina de autodeterminação radical dos caipiras – uma mistura de Hank Williams ²³⁷ e Frantz Fanon. ²³⁸ A Coalizão Arco-íris original No outono de 1968, uma igreja metodista convidou os Jovens Patriotas para fazerem uma apresentação sobre o trabalho da organização ao lado de Bob Lee, do Partido dos Panteras Negras de Illinois. A plateia – em sua maioria branca, liberal e de classe média – tratou os Panteras com curiosidade, mas expressou hostilidade aberta aos Patriotas. Lee nunca tinha visto nada semelhante: brancos atacando brancos pobres. E se levantou em defesa dos Patriotas. Em seguida, sugeriu que os dois grupos iniciassem uma colaboração. Era um empreendimento ambicioso. À época, como agora, Chicago estava fortemente segregada em termos raciais e étnicos. Lee passou três semanas em Uptown para conhecer os Patriotas e seus vizinhos antes de sugerir a ideia de uma aliança a Fred Hampton, presidente dos Panteras em Illinois. Mas Hampton ficou entusiasmado ao ouvir a proposta de Lee e apelidou a aliança incipiente de Coalizão Arco-Íris. E até aceitou o uso da bandeira confederada por parte dos Patriotas. De acordo com Thurman, Hampton disse: “Se podemos usar isso para organizar, se podemos usar para transformar as pessoas, então temos que fazê-lo”. A partir dessa parceria inicial, a Coalizão Arco-Íris cresceu para incluir os Jovens Senhores, um grupo porto-riquenho radical. Recrutando grupos de jovens de gangues de rua, a coalizão tentou se organizar em torno de pontos de solidariedade, como a brutalidade policial e a pobreza. Realizaram manifestações de unidade em Grant Park, condenando o programa do prefeito Daley de gentrificação, pobreza e brutalidade policial. E ocuparam prédios para exigir melhores cuidados de saúde e moradia para suas comunidades. O Jovens Patriotas também se expandiu, conquistando novos membros – incluindo o “Pregador” Feserpman, cujas habilidades retóricas ajudaram a espalhar a mensagem dos Patriotas para públicos mais amplos – e construindo relacionamentos com a comunidade nativo-americana de Uptown. Iniciaram um programa de café da manhã gratuito e abriram uma clínica do bairro, aproveitando as lições que os Panteras ensinaram aos membros da Coalizão Arco-íris sobre o estabelecimento de serviços básicos em bairros negligenciados.

A administração de Daley sabia reconhecer uma ameaça quando avistava uma. O prefeito rapidamente se moveu para reprimir a coalizão emergente. O Departamento de Polícia de Chicago interrompeu o programa de café da manhã dos Patriotas e pressionou o proprietário a fechar a clínica de saúde. Os policiais trabalharam com o FBI para se infiltrar e interromper a coalizão inter-racial em crescimento. E então veio o pior golpe de todos: no dia 4 de dezembro de 1969, apenas cinco meses após a conferência em Oakland, um destacamento da polícia de Chicago, operando como uma força-tarefa especial a serviço do promotor público local, assassinou Fred Hampton em um ataque surpresa na madrugada. Hampton tinha 21 anos e era uma das principais lideranças dos Panteras Negras à época. Sua morte deixou o movimento devastado e espalhou medo em Chicago. Thurman e os outros Patriotas submergiram. “Ninguém sabia o que estava acontecendo”, disse ele, descrevendo os dias frenéticos após o assassinato. “Não dava para saber se eles viriam atrás de você em seguida, se você seria o próximo”. O assassinato de Hampton também aumentou as tensões dentro da coalizão, que já começava a se fragmentar. Fesperman e a liderança dos Panteras queriam que os Patriotas começassem a se organizar em nível nacional, mas os Patriotas insistiram em permanecer no nível local, ao menos por um tempo. Em 1970, Fesperman rachou com o grupo e formou o Partido Patriota, estabelecendo sede em Nova York e montando um punhado de diretórios por todo o país. Mas a repressão seguiu Fesperman, com a polícia invadindo os escritórios em Nova York e ao longo de toda a Costa Leste. Em Chicago, a polícia acusou os Jovens Patriotas de planejar um atentado e prendeu suas lideranças. Também foram detidas pessoas de igrejas aliadas e grupos comunitários. Aqueles que não foram presos sumiram de vista e muitos se afastaram, efetivamente colocando um fim aos esforços dos Patriotas. A Coalizão Arco-Íris sobreviveu em nome, ainda que não em sua forma original. Em 1983, usando o modelo de coalizão inter-racial, Harold Washington derrotou a máquina de Daley para se tornar o primeiro prefeito negro da cidade. Jesse Jackson, ativista negro e aliado de Martin Luther King na campanha pelos direitos civis, apropriou-se do nome e da abordagem para a organização que cresceu a partir da sua campanha presidencial insurgente durante as primárias do Partido Democrata em 1984, e que o levou para a disputa de 1988. David Axelrod, aproveitando o que aprendeu durante a campanha de reeleição de Washington em 1987, reformulou-a para ajudar Barack Obama a ser eleito presidente.

No entanto, quando operadores do Partido Democrata, como Axelrod, adotaram a estratégia, descartaram o apelo à solidariedade de classe. Impulsionaram uma política que promovesse uma mistura de cores e etnias, mas com poucos benefícios materiais – para não falar de transformações radicais. Um outro caminho Desde a eleição presidencial de novembro de 2016, que elegeu Donald Trump, uma batalha pela raça e pela classe está sendo travada, tão dura quanto equivocada. Os Jovens Patriotas, os Panteras Negras e seus aliados oferecem outro caminho. “A Coalizão Arco-íris dizia respeito à política de identidade”, disse o estudioso Jakobi Williams, autor de Da bala à urna: a seção de Illinois do Partido dos Panteras Negras e a política de coalizão racial em Chicago . “As pessoas não foram requisitadas a abandonar suas identidades, mas a usá-las como uma maneira de construir pontes para formar alianças em torno do combate à pobreza ou qualquer outra pauta que considerassem importante.” Apesar de terem tido vida curta, os Jovens Patriotas e a Coalizão Arco-Íris mostraram que os movimentos da classe trabalhadora podem superar divisões significativas para se unir em torno de questões como pobreza, corrupção e brutalidade policial. O feroz ataque que enfrentaram das elites, tanto liberais quanto conservadoras, demonstra a potência de seu projeto radical. Alguns anos atrás, Hy Thurman reabriu duas seções dos Jovens Patriotas no Alabama – e já atraiu um grupo mais jovem de apoiadores. Um grupo multirracial de adolescentes e jovens de vinte e poucos anos, depois de ouvirem a história de Thurman, entrou em contato com ele e passou a ser colaborador. Thurman também se conectou a Chuck Armsbury, um exmembro do Partido Patriota que vive na zona rural do estado de Washington. Seu objetivo: reviver a organização como um antídoto para o desespero generalizado nas comunidades brancas pobres da classe trabalhadora. É uma tarefa difícil. Mas podemos ter certeza de uma coisa: Fred Hampton e o “ Pregador” Fesperman ficariam orgulhosos. ²²⁹ Excerto de Suicídio revolucionário , de 1973. ²³⁰ Publicado na revista Jacobin em 4 de dezembro de 2019. Traduzido para o português por Victor Marques. ²³¹ A bandeira dos Estados Confederados da América foi utilizada pelos sulistas durante a Guerra de Secessão, sendo considerada um símbolo de racismo por sua associação com a defesa da escravidão por parte destes estados. ²³² Em inglês, Preacherman . ²³³ Região cultural no leste dos Estados Unidos, nomeada pela cordilheira que a atravessa. Se estende desde o sul do estado de Nova York até o norte

do Alabama e da Geórgia (da região central até o sul da cordilheira homônima). ²³⁴ Em inglês, Goodfellows . ²³⁵ Em inglês, “Empregos ou Rendimentos Já”. ²³⁶ Gentrificação é o nome dado ao fenômeno da recomposição social de um determinado bairro ou região, resultante do aumento nos preços dos imóveis e seus aluguéis, resultando na expulsão dos moradores de rendimentos mais baixos e sua substituição por camadas com maior poder de consumo. ²³⁷ Cantor e compositor, ícone da música country . ²³⁸ Para conhecer melhor a obra deste pensador negro revolucionário, vide o volume 1 desta coleção: “Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista”. O poder marrom Programa e plataforma de treze pontos do Partido dos Jovens Senhores Pelo Comitê Central do YLP ²³⁹ O Partido dos Jovens Senhores é um partido político revolucionário em luta pela liberação de todos os povos oprimidos. ¹. Queremos autodeterminação para os porto-riquenhos. Libertação na ilha e dentro dos Estados Unidos. Por muitos anos, primeiro a Espanha e depois os Estados Unidos colonizaram nosso país. Bilhões de dólares em lucros deixam nosso país para os Estados Unidos todos os anos. Em todos sentidos, somos escravos dos gringos. Queremos a libertação e o poder nas mãos do povo, não nas dos exploradores porto-riquenhos. VIVA PORTO RICO LIVRE! ²⁴⁰ ². Queremos autodeterminação para todos latinos. Nossos irmãos e irmãs latinos(as), dentro e fora dos Estados Unidos, são oprimidos pelos negócios amerikkkanos . ²⁴¹ O povo chicano construiu o Sudoeste e apoiamos seu direito de controlar sua vida e sua terra. O povo de São Domingos continua a lutar contra a dominação gringa e seus generais fantoches. As lutas de libertação armada na América Latina fazem parte da guerra dos latinos contra o imperialismo. VIVA A RAÇA ! ²⁴² ³. Nós queremos a libertação para todos os povos do Terceiro Mundo. Assim como os latinos foram escravizados primeiro sob a Espanha e os ianques; negros, indianos e asiáticos foram escravizados para construir a riqueza deste país. Durante quatrocentos anos, eles lutaram pela liberdade e dignidade contra a Babilônia racista. Os povos do Terceiro Mundo lideraram a luta pela liberdade. Todos os povos de cor e oprimidos do mundo são uma nação sob opressão. NENHUM PORTO-RIQUENHO É LIVRE ATÉ QUE TODOS OS POVOS SEJAM LIVRES!

⁴. Nós somos nacionalistas revolucionários e nos opomos ao racismo. Os povos latino, negro, indiano e asiático dentro dos Estados Unidos são colônias lutando pela libertação. Sabemos que Washington, Wall Street e as prefeituras tentarão transformar nosso nacionalismo em racismo; mas os porto-riquenhos somos de todas as cores e resistimos ao racismo. Milhões de brancos pobres estão se levantando para exigir liberdade e nós os apoiamos. Eles são aqueles que nos Estados Unidos são pisoteados pelos governantes e pelo governo. Cada um de nós organiza nosso povo, mas nossas lutas são as mesmas contra a opressão e nós a derrotaremos em conjunto. PODER A TODOS OS POVOS OPRIMIDOS! ⁵. Queremos igualdade para as mulheres. Abaixo o machismo ²⁴³ e o chauvinismo masculino. Sob o capitalismo, as mulheres têm sido oprimidas tanto pela sociedade quanto por nossos homens. A doutrina do machismo tem sido usada pelos homens para descontar suas frustrações nas esposas, irmãs, mães e crianças. Os homens devem lutar junto com as irmãs na luta pela igualdade econômica e social e devem reconhecer que elas constituem mais da metade do exército revolucionário; irmãs e irmãos são iguais lutando pelo nosso povo. AVANTE IRMÃS NA LUTA. ⁶. Queremos o controle comunitário de nossas instituições e terras. Queremos o controle de nossas comunidades por nosso povo e programas para garantir que todas as instituições atendam às necessidades de nosso povo. O controle popular sobre a polícia, os serviços de saúde, as igrejas, as escolas, a moradia, o transporte e a seguridade social é necessário. Queremos o fim dos ataques às nossas terras pela revitalização urbana, pela destruição de rodovias, pelas universidades e pelas corporações. A TERRA PERTENCE A TODO O POVO! ⁷. Queremos uma verdadeira educação em nossa cultura afro-indígena e em língua espanhola. Precisamos aprender nossa longa história de luta contra o genocídio cultural, bem como econômico, pelos espanhóis e agora os ianques. A cultura revolucionária, a cultura de nosso povo, é o único ensinamento verdadeiro. JIBARO SI, YANQUI NO! ²⁴⁴ ⁸. Nos opomos aos capitalistas e às alianças com traidores. Os governantes porto-riquenhos, ou fantoches do opressor, não ajudam nosso povo. Eles são pagos pelo sistema para conduzir nosso povo rumo a becos sem saída, assim como os milhares de cafetões da pobreza que mantêm nossas comunidades pacíficas para seus negócios, ou os trabalhadores da rua que mantêm as gangues divididas e explodindo umas às outras. Queremos uma sociedade em que as pessoas controlem socialmente seu trabalho. VENCEREMOS! ⁹. Nos opomos às forças militares amerikkkanas.

Exigimos a retirada imediata de todas as forças e bases militares dos Estados Unidos de Puerto ²⁴⁵ Rico, Vietnã e todas as comunidades oprimidas dentro e fora dos Estados Unidos. Nenhum porto-riquenho deve servir ao exército dos Estados Unidos contra seus irmãos e irmãs, pois o único exército verdadeiro do povo oprimido é o Exército de Libertação Popular para combater todos os governantes. ESTADOS UNIDOS FORA DO VIETNÃ, PORTO RICO LIVRE JÁ! ¹⁰. Queremos liberdade para todos presos políticos e prisioneiros de guerra. Nenhum porto-riquenho deve estar na cadeia ou na prisão, primeiro porque somos uma nação e a Amerikkka não tem nenhum direito sobre nós; segundo, porque não fomos julgados por nosso próprio povo (iguais). Também queremos que todos os combatentes pela liberdade saiam da prisão, pois são prisioneiros da guerra pela libertação. LIBERTAR TODOS OS PRESOS POLÍTICOS E PRESOS DE GUERRA ! ¹¹. Nós somos internacionalistas. Nosso povo sofre lavagem cerebral por televisão, rádio, jornais, escolas e livros para se opor aos povos de outros países que lutam por sua liberdade. Não vamos mais acreditar nessas mentiras, porque aprendemos quem é o verdadeiro inimigo e quem são nossos verdadeiros amigos. Defenderemos nossas irmãs e irmãos em todo o mundo que lutam pela justiça e são contra os governantes deste país. QUE VIVA CHE GUEVARA! ²⁴⁶ ¹². Acreditarmos que a autodefesa armada e a luta armada são os únicos meios para a libertação. Somos contra a violência – a violência das crianças famintas, dos adultos analfabetos, dos idosos doentes e a violência da pobreza e do lucro. Nós pedimos, peticionamos, fomos aos tribunais, nos manifestamos pacificamente e votamos em políticos cheios de promessas vazias. Mas ainda não somos livres. Chegou a hora de defender a vida de nosso povo contra a repressão e em favor da guerra revolucionária contra empresários, políticos e policiais. Quando um governo oprime o povo, temos o direito de aboli-lo e criar um novo. NOS ARMEMOS PARA NOS DEFENDERMOS! ¹³. QUEREMOS UMA SOCIEDADE SOCIALISTA. Queremos libertação, roupas, comida gratuita, educação, assistência médica, transporte, pleno emprego e paz. Queremos uma sociedade em que as necessidades das pessoas sejam prioridade e em que ofereçamos solidariedade e ajuda aos povos do mundo, não opressão e racismo. ATÉ A VITÓRIA, SEMPRE! ²⁴⁷ ²³⁹ Escrito em outubro de 1969, foi originalmente publicado no jornal da organização, o Palante , em 8 de maio de 1970. A Organização dos Jovens Senhores viveria uma cisão, no meio do ano de 1970, da qual nasceria o Partido dos Jovens Senhores propriamente dito. Uma versão revisada do programa seria publicada em 20 de novembro de 1970 no mesmo veículo. Essa segunda versão foi utilizada como base da presente tradução.

²⁴⁰ Em espanhol no original: QUE VIVA PUERTO RICO LIBRE! ²⁴¹ As menções à “Amerikkka” abundam na agitação da época, em referência à Klu Klux Klan. Com o passar do tempo, alguns escritos começam a usar Amerika com apenas um “k”, mas a ideia por trás do termo continua a mesma. ²⁴² Em espanhol no original: QUE VIVA LA RAZA! ²⁴³ N. da T.: Mantido do original em espanhol. ²⁴⁴ Em espanhol: “jíbaro sim, ianque não!”. Jíbarro: Em jivoarano, uma língua indígena antiga da região do Peru e do Equador, “pessoa”. Em Puerto Rico, a palavra designa uma pessoa do interior do país, especificamente os camponeses que plantam para sua subsistência. Contemporaneamente, tornou-se uma designação popular de todo povo do porto-riquenho. Ianque: cidadão do norte dos Estados Unidos. ²⁴⁵ Em espanhol, “Porto Rico”. ²⁴⁶ Em espanhol no original. ²⁴⁷ Em espanhol no original: HASTA LA VICTORIA SIEMPRE . Frase tornada famosa por Ernesto “Che” Guevera. Regras de disciplina da organização dos Jovens Senhores Pelo Comitê Central do YLO ²⁴⁸ Todos os membros da ORGANIZAÇÃO DOS JOVENS SENHORES devem seguir estas regras. Membros do COMITÊ CENTRAL, o PESSOAL CENTRAL e dos RAMOS, incluindo todos os capitães, aplicarão essas regras. Todo membro do Partido deve memorizar essas regras e aplicá-las diariamente. Qualquer membro que as viole está sujeito à suspensão pela ORGANIZAÇÃO. AS REGRAS SÃO: ¹. Você é um JOVEM SENHOR ²⁵ horas por dia. ². Qualquer membro da ORGANIZAÇÃO detido com base em uma denúncia falsa que ele próprio atraiu sobre si mesmo ou sobre os outros, pode nadar sozinho. ³. Qualquer membro encontrado usando drogas será expulso. ⁴. Nenhum membro pode deixar qualquer droga ilegal em sua posse ou em seu sistema enquanto estiver em serviço. Ninguém pode ficar bêbado em serviço. ⁵. Nenhum membro violará as regras relacionadas ao trabalho de escritório ou às assembleias gerais da ORGANIZAÇÃO EM QUALQUER LUGAR!

⁶. Ninguém apontará ou disparará uma arma de qualquer tipo desnecessariamente ou acidentalmente contra alguém. ⁷. Nenhum membro pode juntar-se a nenhuma outra força armada que não seja o Exército Popular de Libertação. ⁸. Nenhum membro da ORGANIZAÇÃO irá cometer crimes contra o povo. ⁹. Quando presos, os JOVENS SENHORES fornecerão apenas nome, endereço e não assinarão nada. Os primeiros socorros legais devem ser entendidos por todos os membros. ¹⁰. Nenhum membro pode falar em público, a menos que autorizado pelo Comitê Central ou pela Equipe Central. ¹¹. O Programa de treze pontos deve ser memorizado e a plataforma deve ser entendida por cada membro. ¹². As comunicações da ORGANIZAÇÃO devem ser nacionais e locais. ¹³. Nenhum membro pode falar sobre outro membro a menos que ele ou ela esteja presente. ¹⁴. Todos os negócios da ORGANIZAÇÃO devem ser mantidos dentro da ORGANIZAÇÃO. ¹⁵. Todas as contradições entre os membros devem ser resolvidas de uma só vez. ¹⁶. Uma vez por semana, todas as seções e células conduzirão uma sessão de crítica e autocrítica. ¹⁷. Todos os membros se relacionam à cadeia de comando. Oficiais disciplinarão oficiais, quadros e assim por diante. O OD ²⁴⁹ é a autoridade final no escritório. ¹⁸. Cada pessoa enviará um relatório diário de trabalho ao OD. ¹⁹. Cada JOVEM SENHOR deve aprender a operar e fazer a manutenção de armas corretamente. ²⁰. Todo o pessoal de liderança que expulsar um membro deve enviar essa informação, com foto, ao editor do jornal, para que sejam publicadas no jornal e conhecidas por todos as seções e células. ²¹. As aulas de Educação Política são obrigatórias em geral para a adesão como membros. ²². Todos os membros devem ler pelo menos um livro político por mês e pelo menos duas horas por dia sobre assuntos contemporâneos. ²³. Somente o pessoal designado pela ORGANIZAÇÃO deve estar no escritório a cada dia. Todos os outros devem vender jornais e fazer trabalho político na comunidade, incluindo capitães, líderes de seção etc.

²⁴. Todas as seções devem enviar um relatório semanal por escrito à sede nacional. ²⁵. Todas as células devem implementar quadros de primeiros socorros/ médicos. ²⁶. Todas as seções e células devem enviar um relatório financeiro semanal ao Ministério das Finanças. ²⁷. Nenhuma seção ou célula aceitará doações, fundos de pobreza, dinheiro ou qualquer auxílio de qualquer agência governamental. ²⁸. Todos os traidores, provocadores e agentes estarão sujeitos à justiça revolucionária. ²⁹. Mantemos, a todo tempo, uma frente única ante todas as formas do homem. Isto é verdade não apenas entre os SENHORES, mas todos os compañeros revolucionários. ³⁰. Todas as seções devem aderir à política e à ideologia desenvolvidas pelo Comitê Central da OJL. Da mesma forma, todos os membros conhecerão todas as informações publicadas pela  ORGANIZAÇÃO. ²⁴⁸ Publicado no jornal Palante , em 8 de maio de 1970. ²⁴⁹ Sigla de Officer of the Day , “Oficial de Dia”, termo militar que designa o oficial designado para um plantão diário determinado – ligado, sobretudo, à segurança do quartel. A ideologia do Partido dos Jovens Senhores Por Gloria Gonzalez ²⁵⁰ Este é o começo da ideologia do Partido dos Jovens Senhores. O que é ideologia? É um sistema de ideias, de princípios, que uma pessoa ou grupo usam para explicar a si mesmos como as coisas funcionam no mundo. Nossa ideologia foi desenvolvida a partir das experiências de quase dois anos de luta diária com nosso povo contra sua opressão. As ideias e princípios sistemáticos deste panfleto estão nos guiando na melhor maneira para liderar a luta de libertação da nação porto-riquenha. Estas não são ideias fixas, rígidas, mas constantemente desenvolvidas à medida que trabalhamos ininterruptamente para servir e proteger o povo. Existem certos princípios que são fixos e imutáveis para nós, no entanto. Primeiro, uma liderança coletiva, não uma liderança individual. Um indivíduo nunca pode ver o todo de um problema. Somente coletivos de pessoas, trabalhando juntas, podem resolver os problemas corretamente. Segundo, não podemos entender nada a menos que entendamos a história. Um dos problemas dos movimentos revolucionários porto-riquenhos e amerikkkanos é que eles não fizeram estudos científicos, sistemáticos de sua história e, portanto, ainda não compreendem os países que eles desejam libertar.

Terceiro, um revolucionário deve ser um só com o povo, servindo, protegendo e respeitando o povo todo tempo. “Onde quer que um porto-riquenho esteja, seu dever é fazer a revolução.” GLORIA GONZALEZ ²⁵¹ MARECHAL DE CAMPO. ²⁵⁰ Introdução ao panfleto Ideologia do Partido dos Jovens Senhores, escrito em fevereiro de 1971 e impresso em fevereiro de 1972. ²⁵¹ Em 19 de abril de 1971, no jornal Palante , o Comitê Central publicaria uma breve biografia da camarada, como segue abaixo. “Gloria Gonzalez, marechal de campo, 27 anos: Gloria nasceu em El Fanguito, perto de San Juan. Quando tinha 10 anos, foi trazida para Nova York. Aqui, aderiu a gangues de rua e logo abandonou a escola secundária. Gloria parecia rumar pelo curso forçado a outras milhares de mulheres porto-riquenhas: casamento precoce, trabalho doméstico, envelhecimento acelerado e uma vida sem risos. Trabalhou em lojas de roupas, bancas de frutas nas ruas e, finalmente, como auxiliar de enfermagem por seis anos. Mas a oportunidade de fazer algo diferente surgiu quando morava na Baixa Zona Leste de Nova York. Gloria ia uma vez por ano a Porto Rico e, em ambos lugares, viu o que a negligência racista dos gringos e a total falta de preocupação faziam com a saúde de nosso povo. Trabalhou com outras pessoas da comunidade para tentar obter um melhor tratamento no hospital Gouverneur. Políticas de combate à pobreza e a esperança de que “essa gente” pudesse ser subornada conduziram à criação de um Conselho Consultivo de Saúde Comunitária, e Gloria permaneceu no conselho enquanto trabalhava no hospital como assistente de saúde mental. Recusou deixar-se subornar e intensificou seus esforços, convencida de que medicina preventiva significava fornecer ao povo tratamento e exames de rotina antes do adoecimento, para evitar futuras doenças. Nesta sociedade amerikkkana, a ganância dos médicos torna isso irreal. Em sua luta, Gloria ajudou a fundar o Movimento da Unidade Revolucionária de Saúde (HRUM) e ingressou no Partido dos Jovens Senhores em janeiro de 1970. Em setembro, ela foi transformada em marechal de campo e membro do nosso Comitê Central.” O Partido e o indivíduo ²⁵² A ideologia do Partido é a estrutura a partir da qual nos movemos. Tudo o que fazemos se relaciona com os princípios [contidos] neste artigo. A ideologia não diz respeito apenas àquilo em que o Partido acredita, mas também para onde o Partido vê-se indo. Com base nesses princípios e ideias, fazemos nosso trabalho em meio ao povo. A isso chamamos prática. À medida que o Partido cresce e se desenvolve, desenvolveremos uma ideologia maior e mais definida e enfrentaremos um problema contínuo: como continuamos construindo esse Partido de nosso povo que colocará em prática as ideias? De nada serve ter uma ideologia se tudo o que você pode fazer é falar, e não praticar. A fim de se envolver em uma boa prática, duas coisas devem ser resolvidas: a primeira, no nível da organização; depois, no nível do indivíduo.

No nível do Partido, nos perguntamos: como fazemos para desenvolver o tipo de organização que pode liderar nosso povo em um movimento de libertação? Como a estruturamos? Como conduzimos o Partido? Devemos lembrar que a estrutura não serve a nenhuma parte do nosso povo exclusivamente; ela deve atender às necessidades de todo o nosso povo – lúmpen, trabalhador, estudante. Além disso, deve ajudar as pessoas a se desenvolverem em bons  revolucionários. O Partido é dividido em níveis de liderança e ministérios. Os níveis de liderança são a célula, a liderança da célula e os líderes e coordenadores do Partido em geral. Os ministérios (Defesa, Equipe, Campo, Informação, Economia e Educação) são campos de responsabilidade específicos atribuídos aos membros do Partido. O nível da liderança é o exército que efetua a organização do povo, e o ministério é a função auxiliar do Partido. Aprendemos da maneira mais difícil, por tentativa e erro, alguns dos problemas envolvidos. É muito importante que partes do Partido se comuniquem com o todo. Se isso não for feito, não haverá Partido unificado. A comunicação se faz de várias maneiras: relatórios regulares, telefone, correio, visitas pessoais. Uma das coisas mais importantes, além da comunicação, é a educação. Sem um sistema educacional estruturado no Partido é muito difícil que ele organize todos os setores do povo. Também é difícil para qualquer indivíduo se desenvolver sem educação política. Dois dos núcleos do Partido são: a reunião geral dos membros, nas quais são realizadas discussões e tomadas de decisões democráticas; e críticasautocrítica, chave para a democracia partidária. A estrutura ainda está mudando, mas nunca devemos ter medo de mudar para progredir. No nível do indivíduo, surge a pergunta: como treinamos o quadro? O que é um quadro? Como desenvolvemos indivíduos de diferentes setores da sociedade ao mesmo tempo? Nesse campo, o Partido passou por muitas mudanças. Estávamos organizando estudantes do ensino médio, lúmpen, estudantes universitários, trabalhadores e outros setores ao mesmo tempo e tivemos que combater os maus traços que cada grupo traz consigo – como a impaciência dos alunos do ensino médio, o individualismo do lúmpen, o conservadorismo dos trabalhadores e o intelectualismo de estudantes universitários. O que é um quadro? Um quadro é uma pessoa, no Partido, que passou por uma mudança em si mesma: de apenas mais um porto-riquenho para [uma] liderança do povo, um revolucionário. Essa mudança não acontece imediatamente. Primeiro, uma pessoa se torna politizada, depois se junta ao Partido e, depois de um período de tempo, torna-se uma liderança do povo. Mas não é tão simples assim. Há uma grande mudança em toda a vida do indivíduo. Essa mudança pode ser dividida em duas partes. Primeiro, perdendo os maus traços da classe de onde se originaram esses quadros, como o individualismo, o machismo, o sexismo, o racismo, o intelectualismo, as superioridades e as inferioridades. Isso é chamado de “desclassificação”. Depois de se tornar um quadro do Partido dos Jovens Senhores, você não é mais um estudante, ou lúmpen [em situação] de rua ou um trabalhador. Você tem esse pano de fundo, mas o que é, agora, é alguém capaz de organizar

melhor a classe da qual veio, porque a entende melhor, lidou com muitas partes negativas desta origem e reconheceu as partes boas. Em segundo lugar está a grande mudança pela qual o indivíduo passa para se livrar das cicatrizes que o capitalismo deixa nas mentes das pessoas, como o liberalismo (não fazer algo que você sabe que é certo), o pessimismo e (a maior de todas) a mentalidade colonizada. A mentalidade colonizada é efeito da opressão. Como somos ensinados que um spic ²⁵³ é uma forma inferior de humano, acabamos acreditando e agindo como se fosse verdade. Nós evitamos responsabilidades, pensamos negativo, não pensamos que podemos aprender e depois descontamos em nós mesmos, perseguindo e brigando uns com os outros. Chamamos essa mudança de “descolonização”. Isso não significa que, antes de se tornar um Senhor, você conseguiu se livrar completamente de maus traços – isso leva anos –, mas que fez um esforço e está conseguindo. A mudança no indivíduo, a desclassificação e a descolonização se desenrolam ao mesmo tempo e se complementam. O desenvolvimento do Partido deve ser visto como uma preparação interna para a guerra prolongada, que exige constante desenvolvimento e mudança. ²⁵² Do panfleto Ideologia do Partido dos Jovens Senhores , escrito em fevereiro de 1971 e impresso em fevereiro de 1972. ²⁵³ Termo pejorativamente utilizado para se referir às pessoas de origem latino-americana. Mulheres em uma sociedade socialista Pela União de Mulheres do Partido dos Jovens Senhores ²⁵⁴ “Como é amargo ser uma mulher! Nada no mundo vale tão pouco. Os meninos comandam, na porta, Como deuses caídos do céu. Seus corações vagam pelos quatro mares, Milhares de quilômetros de vento e pó. Ninguém se alegra quando nasce uma menina: Por ela, a família nem lhe prepara o quarto.” Fu Xuan “Os tempos mudaram e hoje homens e mulheres são iguais. O que quer que seja que os camaradas homens possam realizar, as camaradas mulheres também podem.” Mao Tsé-Tung , 1964

A China em 1935 era um país de muitos ricos e muitos pobres. Os ricos tinham casas, terras, gado e enviavam seus filhos e filhas para as melhores escolas; enquanto o povo trabalhador era tão explorado e tão pobre que, embora trabalhasse cultivando a terra do nascer ao pôr do sol, ainda dispunha de poucas roupas, suas casas eram feitas de adobe (terra crua) e havia tão pouca comida (os ricos tomavam a maior parte das colheitas) que as pessoas comiam folhas de árvores e, a cada dois anos, um terço do povo morria de fome. Embora todo o povo sofresse, as mulheres sofriam ainda mais – ninguém queria bebês meninas; por diversas vezes bebês meninas eram mortas por seus pais; mulheres eram vendidas para seus maridos; casamentos eram arranjados pelos pais. Uma vez casadas, não tinham permissão para sair de casa, mas tinham que passar o tempo todo servindo ao marido, sogros e filhos. Só podiam falar quando lhes era dirigida a palavra; seus pés eram atados e tinham seus ossos quebrados, de propósito, para que não pudessem caminhar até muito longe. Mas enquanto o povo pobre e trabalhador da China lutava contra os ricos chineses e japoneses (que estavam invadindo o país), pouco a pouco, as atitudes e ideias dos homens sobre as mulheres começaram a mudar, e todos começaram a ver como homens e mulheres deveriam estar em um nível igual em casa e nos locais de trabalho, e não um sexo acima do outro. Foi uma luta longa e difícil e que ainda continua. China em 1972: o povo trabalhador controla os hospitais, escolas, fábricas, polícia, transporte, manufatura, tudo. Todo mundo trabalha para melhorar a sociedade para todos, não apenas para o benefício de uns poucos. E as mulheres trabalhadoras estão desempenhando um papel importante – elas estão nos Comitês Revolucionários que governam as cidades; no Exército, na Marinha, na Força Aérea; no campo petrolífero de Taching, um grande número de trabalhadoras refina e extrai petróleo; existem mulheres eletricistas que trabalham com fios e cabos trinta metros acima do solo; trabalhadoras em uma província chamada Heilungkiang construíram uma ponte de concreto de 110 metros de comprimento para o transporte de madeira; as mulheres participaram da escavação de uma tubulação de 1.200 metros de comprimento que levaria água a uma vila; em Pequim, mulheres trabalham em uma fábrica que produz equipamentos de alta precisão para fornos; enfim, as mulheres trabalham em todos os campos – agricultura, água, conservação, construção, silvicultura, pesca, meteorologia, medicina, ensino, engenharia, tecnologia, geologia, para citar apenas alguns! Há salários iguais entre homens e mulheres para igual trabalho; a idade de aposentadoria é geralmente aos 50 anos, com 50% a 70% de seu salário anterior como pensão. Gestantes recebem 56 dias de licença-maternidade com salário integral e todos os locais de trabalho possuem creches. Muitas mulheres que trabalham nas fábricas são enviadas à escola para obter uma educação e aprender mais de uma habilidade. Mas, ainda assim, o povo chinês entende que o principal problema é o imperialismo, o sistema econômico que temos nos Estados Unidos e todas as suas colônias, como Porto Rico e Havaí. Capitalismo: onde os poucos ricos controlam a vida da maioria, o povo pobre e trabalhador. Todos nós temos

que mudar a maneira como fomos ensinados a agir, pensar e fazer coisas, e a opressão das mulheres é apenas uma coisa de muitas que têm de parar. Ao mesmo tempo, não pode haver nenhuma igualdade real entre os sexos ou o fim do racismo, das guerras e das más condições de trabalho até que as pessoas ricas que nos controlam agora sejam esmagadas e nós, o povo pobre e trabalhador, estejamos totalmente no controle. PODER PARA TODOS OS POVOS POBRES E TRABALHADORES EM TODO O MUNDO! IRMÃS AVANTE NA LUTA! UNIÃO DAS MULHERES PARTIDO DOS JOVENS SENHORES. ²⁵⁴ Publicado no jornal Palante , 31 de março de 1972. Jovens revolucionários chicanos Por Carlos Montes ²⁵⁵ Fight Back! entrevistou Carlos Montes, um dos fundadores e ex-ministro de Informações do Escritório Nacional Boinas Marrons no leste de Los Angeles, de ¹⁹⁶⁷ a ¹⁹⁷⁰. No final da década de ¹⁹⁶⁰ e início da década de ¹⁹⁷⁰, os Boinas Marrons emergiram como uma das organizações mais poderosas e militantes do movimento de libertação chicano. Como o Partido dos Panteras Negras, os Boinas Marrons foram duramente atingidos pela repressão governamental. Esta entrevista traz uma parte de nossa história que raramente é ensinada nas escolas e algumas lições do passado de nosso movimento para os ativistas de hoje . Fight Back! : Quem eram as Boinas Marrons? Carlos Montes : Nós éramos um grupo de jovens revolucionários chicanos dos barrios ²⁵⁶ do sudoeste lutando pela autodeterminação de nosso povo. Nós nos organizamos em nossos barrios , publicamos o jornal La Causa , administramos uma clínica gratuita e lutamos contra a brutalidade policial e contra a guerra dos Estados Unidos no Vietnã. Evoluímos de um grupo de jovens – de Jovens Cidadãos pela Ação Comunitária, para Jovens Chicanos pela Ação Comunitária e para os Boinas Marrons. Evoluímos da participação e assimilação cívica para o nacionalismo revolucionário. A boina marrom era um símbolo do orgulho de nossa cultura, nossa raça e nossa história. Também simbolizava nossa raiva e nossa militância, e a luta contra a longa história de injustiça contra o povo chicano nos Estados Unidos, especialmente no Sudoeste. Reivindicávamos o Sudoeste ²⁵⁷ como Aztlan, ²⁵⁸ a terra natal original dos ancestrais indígenas astecas e fundadores da cidade do México, Tenochtitlan. Éramos de famílias pobres da classe trabalhadora que cresceram vivenciando o racismo e o abuso policial. FB! : Por que você aderiu?

CM : Minha família veio para Los Angeles de Juarez, no México, em 1956. Cresci nos bairros do sul e do leste de Los Angeles, e experimentei o racismo nas escolas, abuso policial, drogas e condições precárias de vida. Isso me levou a me envolver no primeiro grupo de estudantes chicanos, a Associação Estudantil Mexicano-Americana (Masa), na Faculdade do Leste de Los Angeles em 1967, que vislumbrava na educação a solução para a injustiça. Eu também trabalhava como diretor de centro de juventude e topei com o Jovens Chicanos pela Ação Comunitária e o jornal La Raza , que estavam começando a ecoar uma oposição às condições racistas no barrio . Fui atraído pela abordagem mais ativa e direta dos Jovens Chicanos pela Ação Comunitária, que se tornou o Boinas Marrons no final de 1967. FB! : Que tipo de organização comunitária vocês realizavam? CM : Primeiro abordamos a questão da brutalidade policial. Os xerifes do leste de Los Angeles eram notórios por sua brutalidade, especialmente contra a juventude chicana, o que pude experimentar cruzando o Whittier Boulevard nos fins de semana com centenas de outros jovens. Fomos os primeiros a liderar uma manifestação na delegacia de polícia do leste de Los Angeles para protestar contra a morte de jovens na delegacia, em 1967. Também começamos a trabalhar com os clubes de carros no leste de Los Angeles para defendê-los contra o abuso policial. Abrimos um centro cultural local no leste da cidade, O Café Piranya, onde realizamos reuniões de jovens e programas culturais. Tornou-se um dos locais de reunião para os Boinas Marrons. Também começamos a trabalhar em torno do problema das más condições da escola e do sistema educacional racista. Nossas escolas eram antigas e estavam em péssimas condições, com altas taxas de evasão ou expulsões e administradores e professores racistas. Com o tempo, começamos a promover a agitação por uma educação bilíngue, por melhores condições escolares, por estudos chicanos e mais professores chicanos. Participamos de reuniões da comunidade, escola e juventude para aumentar a demanda por melhores condições educacionais e escolares. Isso finalmente levou à histórica Explosão do Leste de Los Angeles, em março de 1968, quando milhares de jovens chicanos do ensino médio abandonaram as quatro escolas predominantemente chicanas na Zona Leste por um período de duas semanas. Os Boinas Marrons foram os primeiros a entrar nas escolas, gritando: “Saiam! Saiam!”. Para iniciar as explosões, eu e James Vigil (também conhecidos como Mangas Coloradas) corremos para a Escola Secundária Lincoln no primeiro dia para deflagrar as paralisações. Em seguida, passamos à Escola Secundária Roosevelt e às outras escolas. Também apoiamos o movimento dos pequenos agricultores e pecuaristas chicanos no Novo México por terras. Eles lutaram para recuperar as terras roubadas pelos fazendeiros ricos anglo-saxões e pelo governo federal dos Estados Unidos. Apoiamos a luta dos Trabalhadores Agrícolas Unidos por reconhecimento sindical e melhores condições de trabalho. Marchamos com a primeira Coalizão Arco-Íris na Campanha dos Povos Pobres em Washington, DC, no verão de 1968. Estávamos na primeira conferência

histórica da Libertação da Juventude Chicana, onde o Plan Espiritual de Aztlán ²⁵⁹ foi formulado, em Denver, Colorado. Também organizamos a primeira Moratória Chicana Contra a Guerra do Vietnã, em dezembro de ¹⁹⁶⁹. Isso levou à histórica Marcha Nacional da Moratória Chicana e à manifestação contra a Guerra do Vietnã em ²⁹ de agosto de ¹⁹⁷⁰, quando mais de ²⁰ mil chicanos protestaram contra o alto índice de baixas chicanas no Vietnã e exigiu autodeterminação em casa, no Sudoeste. “ Raza si! Guerra no !” ²⁶⁰ FB! : Quais foram os principais sucessos? CM : Nós expusemos a brutalidade policial. Naquela época, algumas pessoas tentavam negar sua existência. Fizemos parte da construção do movimento chicano por autodeterminação, que levantou a palavra de ordem do Poder Chicano. Também demos início ao movimento pela conscientização cultural e pelo orgulho de nossa história chicana no Sudoeste e no México, e de nossa cultura e idioma. As explosões foram históricas, porque se tratou da primeira onda de ações em massa de chicanos nos bairros urbanos do final da década de 1960. Acabamos conquistando a educação bilíngue, estudos chicanos, melhores condições escolares e professores e administradores chicanos. As manifestações de massas antiguerra fizeram parte do movimento que acabou forçando Nixon a se retirar do Vietnã. Também abrimos as portas para ações afirmativas no ensino superior e na representação política. FB! : Como se desenvolveram as visões políticas dos Boinas Marrons? CM : Começamos com o envolvimento cívico e a educação como o caminho para a igualdade, mas logo aprendemos que somente mudanças revolucionárias reais e o poder político dos trabalhadores pobres conquistariam igualdade e liberdade reais. Evoluímos do dever cívico, do trabalho dentro do sistema, para a autodeterminação, o nacionalismo revolucionário e a solidariedade internacional com os movimentos de libertação de América Latina, África e Ásia – como os vietnamitas, congoleses e cubanos que lutam pela libertação do domínio dos Estados Unidos. FB! : Como vocês viam o mundo? CM : Acreditávamos na autodeterminação para os chicanos. O programa político de treze pontos do Boinas Marrons falava sobre a autodeterminação como sendo o controle político e econômico sobre nossas vidas. Demandava a devolução de nossa terra, a libertação de prisioneiros, empregos, educação, moradia, o fim da destruição do meio ambiente pelos capitalistas, fronteiras abertas, solidariedade com todos os povos revolucionários envolvidos na luta pela autodeterminação. E nós denunciávamos o sistema estadunidense de capitalismo e imperialismo. FB! : Os Boinas trabalhavam com grupos da comunidade negra? CM : Sim, apoiávamos e formávamos alianças com grupos negros, como o Partido dos Panteras Negras. Nós os apoiamos quando a polícia os atacou.

Também criamos programas semelhantes, como a clínica gratuita do leste de Los Angeles e programas gratuitos de café da manhã. Também fizemos parte da primeira Coalizão Arco-Íris, quando nos unimos à Campanha dos Povos Pobres, no verão de 1968. O reverendo Martin Luther King lutara na Conferência da Liderança Cristã Sulista para incluir os grupos militantes chicanos na marcha de Washington, tais quais o Cruzada pela Justiça, de Colorado; a Aliança das Cidades Livres, do Novo México, e os Boinas Marrons. FB! : O que aconteceu com os Boinas Marrons? CM : Os Boinas Marrons cresceram e passaram a ter cerca de catorze seções em todo o Sudoeste, com o leste de Los Angeles sendo o escritório nacional. Após os esforços iniciais de organização, o Departamento de Polícia e xerifes de Los Angeles enviaram policiais disfarçados para se infiltrar nos Boinas Marrons. Os infiltrados da polícia espionaram e operaram como agentes provocadores, com o objetivo de prender a liderança e desestabilizar a organização. A polícia usou acusações secretas de grandes júris ²⁶¹ para tentar prender e amarrar a liderança em julgamentos. A estrutura vertical militarizada do grupo não permitiu o desenvolvimento de novas lideranças, nem a liderança e o desenvolvimento das mulheres que realizaram grande parte do trabalho interno. Os Boinas Marrons continuaram até ¹⁹⁷², quando foram dissolvidos. Até então, o primeiro-ministro David Sanchez havia degenerado em um encanador de peças publicitárias, dirigindo um grupo não democrático e egomaníaco de um homem só. FB! : Quais são as lições para hoje? CM : É fundamental construir um movimento militante de massas para impedir o ímpeto beligerante dos Estados Unidos, por mudanças sociais e pela revolução. Também reconstruir organizações militantes de base na comunidade, que lutam por autodeterminação, justiça social e libertação – não apenas por reformas. Precisamos de uma organização que inclua a participação de toda a família e que valorize e promova a liderança das mulheres. ²⁵⁵ Publicado pelo jornal Fight Back !, em 1 de fevereiro de 2003. ²⁵⁶ Em espanhol, bairros. ²⁵⁷ O Sudoeste dos Estados Unidos é composto por territórios cedidos na anexação do Texas (1845) e na Cessão Mexicana (1848), como consequência da Guerra Mexicano-Americana. Diversos movimentos reivindicam a chamada “Reconquista” do Sudoeste dos Estados Unidos pelo México. ²⁵⁸ Lendária terra ancestral dos povos náuatles, ou nauas. Algumas das mais importantes civilizações da Mesoamérica pertenciam à etnia náuatle, como os toltecas e os astecas, assim como os tepanecas, os acolhuas, os tlaxcaltecas, os xochimilcas, além de outros. O nome “asteca” deriva do termo náuatle que significa “povo de Aztlan”. ²⁵⁹ Em espanhol, Plano Espiritual de Aztlán .

²⁶⁰ Em espanhol, “Raça sim, guerra não”. ²⁶¹ Nos Estados Unidos, o chamado grand juri difere do júri como conhecemos no Brasil. É presidido por um promotor, e não por um juiz, e seu objetivo não é determinar o veredicto de culpado ou inocente, mas somente se há provas suficientes para que se realize um julgamento ou não. Jovens Senhores, Palante: ²⁶² lições na luta Por Carlito Rovira ²⁶³ Jovens Senhores Quarenta anos atrás, as manchetes dos noticiários punham em foco um grupo de jovens porto-riquenhos da cidade de Nova York que usavam formas ousadas e incomuns de protesto contra a opressão racista. Esses jovens desafiadores e militantes se autodenominavam Jovens Senhores. Seus exemplos, e o movimento de massas do qual nasceram, continuam inspirando a juventude, especialmente hoje, quando vemos provas expressivas de que a única solução para a opressão é a organização e a luta. Os Jovens Senhores se desenvolveram em Chicago durante os anos 1950. Eles eram compostos por estudantes desempregados e jovens da classe trabalhadora que faziam parte de muitas organizações das ruas que juntavam jovens, na mira da polícia e demonizados como “gangues” pelos meios de comunicação de propriedade dos capitalistas. Esses jovens vieram de famílias compelidas a deixar Porto Rico entre as décadas de 1940 e 1960, como resultado das dificuldades econômicas causadas pelo colonialismo dos Estados Unidos. Esses imigrantes continuaram a experimentar a opressão, mas sob novas circunstâncias. Tornaram-se vítimas da exploração extrema em seus empregos em fábricas, hotéis e restaurantes; encontraram gananciosos locadores de barracos ²⁶⁴ e a violência da polícia e de gangues racistas brancas. A migração porto-riquenha ocorreu durante os mesmos anos nos quais o movimento pelos direitos civis emergiu. As lutas do povo afro-americano impactaram os imigrantes recém-chegados que também experimentavam a natureza vil do racismo. Em muitos casos, os porto-riquenhos se identificavam com a demanda por poder negro. Em 1966, o Partido dos Panteras Negras foi formado. O líder pantera Fred Hampton, de Chicago, procurou politizar as organizações das ruas, principalmente os jovens porto-riquenhos. Os esforços do BPP foram bemsucedidos quando, em 1968, os Jovens Senhores se tornaram uma entidade política revolucionária; eles então se tornaram parte de uma aliança fraternal conhecida como Coalizão Arco-Íris (não relacionada à posterior Coalizão Rainbow/Push de Jessie Jackson), que também incluía Boinas Marrons, I Wor Kuen, Jovens Patriotas e Panteras Negras.

Em 1969, os Jovens Senhores abriram uma célula na cidade de Nova York. Por muitos anos, negros e latinos reclamaram dos duplos padrões do Departamento de Saneamento na coleta de lixo. As áreas ricas e brancas eram atendidas adequadamente com a coleta regular de lixo, enquanto os bairros de negros e porto-riquenhos eram deixados em condições insalubres. No verão de 1969, os Jovens Senhores começaram a varrer as ruas e acumular grandes pilhas de lixo que eram um incômodo para a comunidade. Muitas pessoas se perguntaram o que os jovens, aparentemente “bons samaritanos”, estavam fazendo. Mas o mistério não durou muito. Em agosto de 1969, os Jovens Senhores usaram o lixo que haviam coletado como meio de executar uma ofensiva política com táticas militares. Toneladas de lixo foram despejadas e incendiadas nas principais artérias de Manhattan para atrapalhar o tráfego, inclusive na abastada 5a Avenida. Os Senhores exigiram o fim das políticas municipais de saneamento racistas de Nova York. Nos bairros onde a Ofensiva do Lixo foi lançada, os Senhores galvanizaram o apoio da comunidade; muitos se juntaram à organização. Os ataques da mídia de massas aos Senhores só funcionaram a seu favor. Em alguns meses, as células do YLP apareceram na Filadélfia, Bridgeport, Jersey City, Boston e Milwaukee – cidades com concentrações de portoriquenhos. Embora composta principalmente por porto-riquenhos, a organização também permitiu que membros de outras nacionalidades oprimidas aderissem aos Jovens Senhores. O YLP tinha uma estrutura de tipo militar, com um processo de recrutamento e regras de disciplina rigorosamente aplicadas. No auge do desenvolvimento do YLP, as mulheres representavam quase metade do número de suas bases. Nos anos que se seguiram à Ofensiva do Lixo, os Jovens Senhores participaram de inúmeras campanhas que envolveram ações ousadas e chamaram a atenção amplamente. Um exemplo foi a ocupação física da Primeira Igreja Metodista Espanhola na rua 111. Os Senhores solicitaram aos paroquianos, repetidamente, espaço para alimentar crianças famintas, mas sem sucesso. Esta igreja ficava fechada durante toda a semana e só era aberta por algumas horas para o culto de uma congregação que vivia majoritariamente fora da cidade. Apoiados pelo sentimento da comunidade, os Jovens Senhores entraram na igreja durante uma missa de domingo e expulsaram a congregação. Usando a igreja como base, os Jovens Senhores operaram um serviço gratuito de creche, um programa de café da manhã e uma assistência jurídica. Também eram prestados serviços  médicos. As doenças e os serviços de saúde precários eram um problema de longa data na comunidade porto-riquenha. Outras ações realizadas pelo YLP incluíram a apreensão de um caminhão de teste de tuberculose não utilizado, equipado com tecnologia de raios-x. Depois que o caminhão foi apreendido, a cidade foi obrigada a fornecer técnicos para operar a máquina. O caminhão foi levado para o leste do Harlem, onde muitas pessoas foram testadas quanto à doença pulmonar.

Os Senhores exigiram que o hospital Lincoln, que atendia pessoas do sul do Bronx, expandisse seus serviços. Como essa instituição remontava meados do século XIX, quando tratava até mesmo os escravizados em fuga do Sul, suas instalações estavam desatualizadas e não atendiam às necessidades atuais do povo. Uma infestação de ratos e baratas no hospital exacerbava ainda mais as condições deploráveis. Nas primeiras horas da manhã de 17 de julho de 1970, cerca de cem membros dos Jovens Senhores assumiram com ousadia o controle do hospital Lincoln. Por 24 horas, os Jovens Senhores e os profissionais médicos progressistas do Movimento da Unidade de Saúde Revolucionária prestaram serviços médicos gratuitos às pessoas da comunidade. O moderno hospital Lincoln de hoje – com suas novas instalações – é o resultado de uma luta comunitária liderada pelos Jovens Senhores. O YLP elaborou um Programa de treze pontos que descrevia os objetivos políticos do grupo. Incluía a independência para Porto Rico, bem como a libertação de todos os latinos e outros povos oprimidos. Os Jovens Senhores apoiavam a luta contra a opressão das mulheres e denunciavam abertamente o sistema capitalista, reivindicado uma sociedade socialista. Os Jovens Senhores, finalmente, expressavam apoio aos direitos das pessoas LGBT. Por todas as definições, o YLP gravitava em direção ao comunismo. Esses jovens revolucionários acreditavam que o poder do povo iria, eventualmente, sobrepujar o poder dos opressores. Nesse espírito, o YLP acreditava no direito de autodefesa armada. Isso ficou evidente em suas ações, enquanto patrulhavam as ruas nas áreas que organizaram. Sempre que os Jovens Senhores testemunhavam a polícia prendendo moradores da comunidade, eles intervinham para confrontar os policiais racistas e frequentemente libertavam os detidos. No final de 1970, o membro do YLP Julio Roldan, que fora preso em uma manifestação no Bronx sem qualquer acusação, foi encontrado enforcado em sua cela nas instalações penitenciárias de “Tumbas”, no sul de Manhattan. Durante essa época, muitos prisioneiros foram encontrados misteriosamente mortos em suas celas, mas os funcionários da prisão sempre rotularam esses casos como “suicídios”. Os Jovens Senhores responderam à morte de Roldan com militância, acusando o Estado de assassinato. Após uma procissão com o caixão de Roldan através do leste do Harlem, o YLP retornou à Primeira Igreja Metodista Espanhola, que haviam ocupado um ano antes – mas desta vez eles vieram armados com espingardas e armas automáticas. Exigiram a investigação da morte de Roldan. O profundo apoio da comunidade aos Jovens Senhores impediu um tiroteio, pois oficiais do governo sabiam que haveria uma enorme repercussão política se iniciassem um ataque policial. Os Jovens Senhores mantiveram a igreja por três meses. Existem muitos exemplos de heroísmo entre esses jovens revolucionários – não apenas em Nova York ou Chicago, mas também em outras cidades onde o povo porto-riquenho estava em luta.

Vergonhosamente, porque o movimento desse povo não existe mais, persistem interpretações não revolucionárias desse período, que descartam a relevância da história dos Jovens Senhores para a luta pelo socialismo hoje. Independentemente do que se possa argumentar, os Jovens Senhores clamavam abertamente pela destruição do capitalismo e o estabelecimento do socialismo nos Estados Unidos. Isso fica indiscutivelmente claro no Programa de treze pontos do YLP. Os Jovens Senhores, como o Partido dos Panteras Negras, tentaram construir uma organização altamente disciplinada. Eles entenderam que, sem a sofisticação organizacional de um partido de vanguarda, a revolução é impossível. É precisamente esta lição que os revolucionários de hoje devem abraçar e imitar a fim de realizar a futura vitória do socialismo. ²⁶² Gíria porto-riquenha, contração de para adelante , ou “avante”. ²⁶³ Publicado no jornal Liberation News , veículo do Partido pelo Socialismo e a Libertação (PSL), em 28 de julho de 2009. Carlito Rovira é um antigo membro do Partido dos Jovens Senhores e militante pela emancipação de Puerto Rico. ²⁶⁴ Em inglês, slumlords : “senhorio de favela”, referindo-se aos locadores de imóveis nos bairros de infraestrutura precária. O poder amarelo A emergência do poder amarelo Por Amy Uyematsu ²⁶⁵ Os asiático-americanos já não se podem dar ao luxo de assistir à luta entre negros e brancos das margens. Eles têm sua própria causa pela qual lutar, uma vez que são também vítimas – com cicatrizes menos visíveis – do racismo branco institucionalizado. Um movimento amarelo foi posto em ação pelo movimento em favor do poder negro. Voltando-se para os problemas únicos dos asiático-americanos, esse movimento pelo “poder amarelo” é relevante para o movimento pelo poder negro, uma vez que ambos são partes das lutas do Terceiro Mundo para libertar todos os povos de cor. Parte I: identidade equivocada O movimento pelo poder amarelo tem sido motivado amplamente pelo problema da autoidentidade dos asiático-americanos. O foco psicológico deste movimento é vital, uma vez que os asiático-americanos sofrem a crise mental crítica de terem sido “integrados” à sociedade americana: “Nenhuma pessoa pode ser saudável, completa e madura se precisar negar uma parte de si mesma; é isso que a ‘integração’ exigiu até agora.” — Stokely Carmichael e Charles V[ernon] Hamilton A posição atual dos asiático-americanos na América não é vista como um problema social. Tendo atingido rendimentos de classe média sem apresentar nenhuma ameaça real em número para a maioria branca, o

principal corpo de asiático-americanos (notadamente japoneses e chineses) recebeu a aceitação simbólica da América branca. Precisamente porque os asiático-americanos passaram a estar economicamente seguros, eles enfrentam sérios problemas de identidade. Totalmente comprometidos com um sistema que os subordina com base na não brancura, os asiático-americanos ainda tentam obter total aceitação negando sua amarelidão. Eles se tornaram brancos em todos os aspectos, exceto na cor. Contudo, o preconceito racial sutil, mas predominante, que os “amarelos” experimentam os restringe às margens do mundo branco. Os asiáticoamericanos assumiram identidades brancas, isto é, os valores e atitudes da maioria dos americanos. Agora eles estão começando a perceber que esta nação é uma “democracia branca” e que o povo amarelo tem uma identidade equivocada. Nos últimos dois anos, o movimento pelo “poder amarelo” se desenvolveu como consequência direta do movimento pelo “poder negro”. O movimento pelo “poder negro” fez com que muitos asiático-americanos se questionassem. O “poder amarelo” está agora no estágio de “um estado de ânimos articulado, mais do que um programa – desilusão e alienação da América branca e independência, orgulho racial e amor-próprio”. A consciência amarela é o objetivo imediato dos asiático-americanos engajados. No processo de americanização, os asiáticos tentaram transformar a si mesmos em homens brancos – tanto mental quanto fisicamente. Mentalmente, adaptaram-se à cultura do homem branco, abandonando seus próprios idiomas, costumes, histórias e valores culturais. Eles adotaram o “modo de vida americano” apenas para descobrir que isso não é suficiente. Em seguida, rejeitaram suas heranças físicas, resultando em extremo ódio a si próprios. O povo amarelo compartilha com os negros o desejo de parecer brancos. Assim como os negros desejam ter a tez clara, lábios finos e cabelos alisados, os “amarelos” querem ser altos, com pernas longas e olhos grandes. A autodepreciação também é evidente na obsessão do homem amarelo por mulheres brancas inatingíveis e na tentativa da mulher amarela de obter aprovação masculina imitando os padrões de beleza brancos. As mulheres amarelas têm suas próprias técnicas de “embuste” – elas usam “peróxido, espuma de poliuretano e fita adesiva para se dar cabelos claros, seios grandes e olhos com pálpebras duplas”. ²⁶⁶ O grito de “negro é bonito” entre americanos negros instilou uma nova consciência nos asiático-americanos para se orgulharem de suas heranças físicas e culturais. O poder amarelo defende a autoaceitação como o primeiro passo para fortalecer as personalidades dos asiático-americanos.

Uma vez que o movimento do poder amarelo é composto até agora por estudantes e jovens adultos, está trabalhando por centros de estudos étnicos asiático-americanos nos campi de faculdades como a Cal e a Ucla. O restabelecimento da identidade étnica por meio da educação está sendo realizado em matérias curriculares como a “Orientais na América” da Ucla. Como um aluno do curso relata: “Quero fazer esse curso para uma compreensão de 20/20 ²⁶⁷ e não um olhar passivo, de relance, no espelho que reflete mal; a imagem que vejo é Wasp, ²⁶⁸ mas a pele amarela não é branca como um lírio... Eu quero descobrir como é o meu eu oriental voluntariamente ou subconscientemente suprimido; também como são os milhares de outros eus orientais (suprimidos?) em uma mente e um corpo muito maiores – América... Quero estabelecer minha identidade étnica não apenas pelo bem de tais raízes, mas pelo valor inerente que esse plano de fundo merece.” O problema da autoidentidade dos asiático-americanos também demanda a remoção de estereótipos. O povo amarelo na América parece ser composto de cidadãos silenciosos. Ele é estereotipado como passivo, complacente e sem emoção. Infelizmente, essa descrição é bastante precisa, pois os asiático-americanos aceitaram esses estereótipos e estão se tornando fiéis a eles. Os asiático-americanos “silenciosos” racionalizaram seu comportamento em termos de valores culturais que mantiveram de seus antigos países. Por exemplo, os japoneses usam o termo enryo para denotar hesitação na ação ou expressão. Um jovem ministro budista, o reverendo Mas Kodani, do templo budista Senshin de Los Angeles, ilustrou a diferença entre o enryo japonês e o enryo nipo-americano: no Japão, se um professor ou palestrante perguntar “Há alguma pergunta?”, vários membros da sala ou do público respondem; mas, nos Estados Unidos, a mesma pergunta é seguida por um silêncio mortal. O reverendo Kodani também comentou a liberdade de expressão entre os membros da família, que está ausente nos asiático-americanos. Como um estudante nascido americano e estando no Japão, ele ficou surpreso com a demonstração aberta de afeto nas famílias japonesas. Essa característica cultural não é demonstrada nas famílias nipo-americanas, que reagem com vergonha e culpa a sentimentos abertos de amor e ódio. Essa inquietação em admitir e expressar sentimentos humanos naturais tem sido um fator no número insignificante de asiático-americanos no teatro, dramaturgia e artes literárias. Sem desconsiderar o preconceito racial e a competição nesses campos, os americanos amarelos não podem se expressar honestamente, ou, nas palavras do ator sino-americano James Hong, eles não podem se sentir “desde o nível das entranhas”. A imagem silenciosa e passiva dos asiático-americanos é entendida não em termos de suas origens culturais, mas pelo fato de estarem assustados. Os primeiros asiáticos na América eram imigrantes chineses que começaram a se estabelecer em grande número na Costa Oeste entre 1850 e 1880. Eles foram submetidos a um racismo branco extremo, que variava desde a subordinação econômica, passando pela negação de direitos de

naturalização, até a violência física. Durante o auge dos linchamentos antichineses da década de 1880, os brancos estavam “apedrejando os chineses nas ruas, cortando seus queues , ²⁶⁹ destruindo suas lojas e lavanderias”. O pior surto ocorreu em Rock Springs, Wyoming, em ¹⁸⁸⁵, quando ²⁸ residentes chineses foram assassinados. Talvez os asiáticos sobreviventes tenham aprendido a viver em silêncio, pois, mesmo que “as vítimas de tais ataques tentassem ir a tribunal para obter proteção, não poderiam ter uma audiência. A frase ‘nem aqui, nem na China’ ²⁷⁰ tinha uma realidade sombria e amarga”. O tratamento racista de “amarelos” ainda existia durante a Segunda Guerra Mundial, com a internação injustificável de 110 mil japoneses em campos de detenção. Quando os nipo-americanos foram obrigados a deixar suas casas e seus pertences em pouco tempo, eles cooperaram com resignação e nem mesmo manifestaram oposição. Segundo Frank Chumann, ex-presidente da Liga dos Cidadãos Nipo-Americanos, eles “usaram o princípio de shikataganai – resignação realista – e evacuaram sem protestar”. Hoje os asiático-americanos ainda estão assustados. Seu comportamento passivo serve para manter a atenção nacional sobre os negros. Por serem tão discretos quanto possível, eles mantêm a pressão longe de si mesmos às custas dos negros. Os asiático-americanos formaram uma aliança desconfortável com os americanos brancos para manter os negros rebaixados. Eles fecham os olhos para o racismo branco latente em direção a eles, que nunca mudou. Os “amarelos” amedrontados permitem ao público branco usar o estereótipo “oriental silencioso” contra o protesto dos negros. A presença de 20 milhões de negros nos Estados Unidos representa uma ameaça física real ao sistema branco. Brancos temerosos dizem aos negros militantes que o critério aceitável para o comportamento está exemplificado no asiático-americano quieto e passivo. O movimento do poder amarelo prevê um novo papel para os asiáticoamericanos: “É uma rejeição do estereótipo do oriental passivo e simboliza o nascimento de um novo asiático – alguém que reconhecerá e lidará com as injustiças. O grito de poder amarelo, simbólico de nossa nova direção, está ecoando nos corredores silenciosos da comunidade asiática.” Conforme expresso nos escritos do poder negro, o poder amarelo também diz que “Quando começamos a definir nossa própria imagem, os estereótipos – isto é, mentiras – que nosso opressor desenvolveu começarão na comunidade branca e lá terminarão”. Outro obstáculo à criação da consciência amarela são as atitudes racistas brancas bem incorporadas que estão presentes nos asiático-americanos. Eles se orgulham muito de seu próprio progresso econômico e acham que os negros poderiam ter sucesso semelhante se seguissem a ética protestante de trabalho duro e educação. Muitos asiáticos apoiam S. I. Hayakawa, o assim chamado porta-voz do povo amarelo, quando ele aconselha o negro a imitar os nisseis: ²⁷¹ “Vá para a escola e tire notas altas, economize um dólar em cada dez ganhos para capitalizar seus negócios”. Mas o fato é que a estrutura do poder branco permitiu que os asiático-americanos tivessem

sucesso com seus próprios esforços, enquanto as mesmas instituições persistem em negar essas oportunidades aos americanos negros. Certas mudanças básicas na sociedade americana tornaram possível para muitos asiático-americanos melhorar sua condição econômica após a guerra. Em primeiro lugar, os negros se tornaram o grupo alvo da discriminação na Costa Oeste. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, um imenso fluxo de negros migrou para o Ocidente, afastando a agitação racista dos amarelos em direção aos negros. De 1940 a 1950, houve um acréscimo de 85,2% na população negra do Oeste e do Norte; de 1950 a 1960, um acréscimo de 71,6%; e de 1960 a 1966, um acréscimo de 80,4%. A outra mudança básica na sociedade foi a transformação do quadro econômico. Em um Oeste amplamente agrícola e rural, os asiáticoamericanos conseguiram encontrar emprego. Os japoneses e filipinos de primeira e segunda geração foram contratados como lavradores e jardineiros, enquanto os chineses eram empregados em lavanderias e restaurantes. Em acentuado contraste está a sociedade altamente tecnológica e urbana que hoje confronta os negros desempregados. “O migrante negro, diferentemente do imigrante, encontrou poucas oportunidades na cidade; ele chegou tarde demais e o trabalho não qualificado que tinha para oferecer não era mais necessário”. Além disso, hoje os negros são mantidos fora de um mercado de trabalho cada vez menor, que também está fechando as oportunidades para os brancos que procuram empregos. Os asiático-americanos estão perpetuando o racismo branco nos Estados Unidos, pois permitem que a América branca sustente a imagem do oriental “bem-sucedido” diante de outros grupos minoritários como um modelo a imitar. A América branca justifica a posição dos negros mostrando que outros não brancos – o povo amarelo – conseguiram se “adaptar” ao sistema. A verdade subjacente tanto à história dos amarelos quanto à dos negros foi distorcida. Além disso, a alegação de que os cidadãos negros devem “provar seu direito à igualdade” é fundamentalmente racista. Infelizmente, o movimento pelo poder amarelo está combatendo um racismo bem desenvolvido nos asiático-americanos que projetam suas próprias tentativas frustradas de obter a aceitação dos brancos sobre o povo negro. Eles buscam curar seus próprios sentimentos de inferioridade e insegurança sustentando-se como superiores aos negros. Como sente que está em uma posição econômica e social relativamente segura, a maioria dos asiático-americanos negligencia o racismo sutil, mas danoso, que os confronta. Eles não querem perturbar seus atuais sistemas do ego mediante uma autoavaliação honesta. Eles preferem se enganar a admitir que se prostituíram à sociedade branca. Parte 2: A importância do poder para os asiáticos na América

O movimento emergente entre asiático-americanos pode ser descrito como “poder amarelo” porque está buscando libertação da opressão racial por meio do poder de um povo amarelo consolidado. Como derivado da ideologia do poder negro, o poder amarelo implica que os asiático-americanos devem controlar os processos de tomada de decisão que afetam suas vidas. Uma premissa básica do poder negro e do poder amarelo é que o poder político étnico deve ser usado para melhorar as condições econômicas e sociais de negros e amarelos. Ao considerar a relevância do poder para os asiático-americanos, duas suposições comuns serão contestadas: primeiro, a de que os asiático-americanos são completamente impotentes nos Estados Unidos; e em segundo lugar, a suposição de que os asiático-americanos já obtiveram igualdade “econômica”. Enquanto o movimento pelo poder negro pode negociar a partir de uma posição de força, o poder amarelo não tem um tal potencial ao qual aspirar. Um povo negro unido representaria mais de 10% do total do eleitorado americano; essa é uma proporção suficientemente significativa da população votante para possibilitar que os negros sejam uma força controladora na estrutura de poder. Em contraste, o poder político dos amarelos teria pouco efeito nas eleições estaduais e nacionais. As populações combinadas de chineses, japoneses e filipinos nos Estados Unidos em 1960 somavam apenas 887.834 – nem mesmo 0,5% da população total. No entanto, os asiático-americanos não estão completamente desarmados na arena política local. Por exemplo, na Califórnia, a força combinada de chineses, japoneses e filipinos em 1960 somava 2% da população do estado. Seu possível significado político reside no fato de que há fortes concentrações desses grupos em San Francisco e Los Angeles. Na área metropolitana de San Francisco-Oakland, vivem 55% dos chineses, 16% dos japoneses e 33% dos filipinos. Em um nível ainda mais local, japoneses e chineses na área de Crenshaw, em Los Angeles, formam cerca de um terço do total de residentes; e japoneses na cidade de Gardena possuem 40% das propriedades dessa cidade. Nos governos da cidade e do condado, um sólido bloco eleitoral amarelo pode fazer a diferença. Como foi demonstrado por irlandeses, italianos, judeus e poloneses, o fato notável do poder político étnico é sua capacidade de “controlar uma proporção maior de controle e influência política do que sua porcentagem real na população justifica”. Mesmo sob a suposição de que o poder político amarelo possa ser significativo, como melhorará a atual situação econômica dos asiáticoamericanos? A maioria do povo amarelo alcançou rendimentos de classe média e sente que não tem queixas legítimas contra a estrutura capitalista existente. A conquista de posições de classe média por asiático-americanos também tornou certos negros antipáticos ao movimento pelo poder amarelo. Nas palavras de um membro de uma união de estudantes negros, parece que os asiático-americanos “querem apenas mais fatias do bolo do dinheiro”. É difícil para alguns negros se relacionarem com os problemas do homem amarelo ao lado de sua própria vitimização total.

Embora seja verdade que algumas minorias asiáticas estejam à frente de todos os outros grupos de cor nos Estados Unidos em termos de progresso econômico, é uma falácia que os asiático-americanos desfrutem plenamente das oportunidades econômicas. Se a ética protestante é realmente uma fórmula para o sucesso econômico, por que japoneses e chineses que trabalham mais e têm mais educação do que os brancos ganham o mesmo que estes? As estatísticas sobre desemprego, escolaridade e rendimento anual médio revelam uma inconsistência nessa fórmula de “sucesso” quando aplicada a não brancos. Em 1960, as taxas de desemprego para homens japoneses e chineses eram inferiores às taxas para homens brancos na  Califórnia: • 2,6% para japoneses; • 4,9% para chineses; • 5,5% para brancos. No mesmo ano, as taxas percentuais para homens japoneses e chineses que haviam concluído o ensino médio ou a faculdade eram mais altas que as dos homens brancos. Colegial: • 34,3% para japoneses; • 24,4% para chineses. • Faculdade (4 anos ou mais): • 13,3% para chineses; • 11,9% para japoneses; • 10,7% para brancos. Apesar desses números, o rendimento anual médio de japoneses e chineses foi consideravelmente menor que a rendimento anual médio de brancos. Homens chineses na Califórnia ganharam 3.803 dólares; homens japoneses ganharam 4.388 dólares; e homens brancos ganharam 5.109 dólares. A explicação para essa discrepância está na contínua discriminação racial em relação aos amarelos nos níveis salariais mais altos e nas posições de alto status . A América branca elogia o sucesso de japoneses e chineses por ser o mais elevado entre todos os outros grupos de cor. Japoneses e chineses devem sentir-se felizes por serem aceitos mais do que qualquer outro grupo étnico não branco, mas não devem pisar fora do lugar e se comparar aos brancos. Em essência, o sonho capitalista americano nunca pretendeu incluir não brancos. O mito do sucesso asiático-americano é mais óbvio na posição econômica e social dos filipino-americanos. Em 1960, os 65.459 residentes filipinos da Califórnia obtiveram um rendimento anual médio de 2.925 dólares, em

comparação com 3.553 dólares para negros e 5.109 dólares para brancos. Mais da metade da força de trabalho masculina filipina foi empregada em trabalhos agrícolas e serviços; mais da metade de todos os homens filipinos recebeu menos de 8,7 anos de educação escolar. De fato, os filipinos são uma minoria esquecida na América. Como os negros, eles têm muitas queixas legítimas contra a sociedade americana. Um outro exemplo da falsa imagem econômica e social dos asiáticoamericanos existe nas comunidades do gueto de Pequena Tóquio [ Little Tokyo ], em Los Angeles, e Chinatown, em San Francisco. No primeiro, japoneses idosos vivem em hotéis degradados, em isolamento social e cultural. E no último, as famílias chinesas sofrem com as más condições de vida de uma comunidade com a segunda maior taxa de tuberculose do país. Assim, o uso do poder político amarelo é válido, pois os asiático-americanos têm problemas econômicos e sociais definidos que precisam ser melhorados. Ao se organizar em torno dessas necessidades, os asiático-americanos podem tornar o movimento pelo poder amarelo uma força política viável em suas vidas. ²⁶⁵ Publicado no jornal Gidra em outubro de 1969. A autora é uma poeta e professora de matemática nipo-americana. ²⁶⁶ Uma das características fenotípicas de muitas pessoas de ascendência asiática é a presença da chamada dobra epicântica, uma prega de pele da pálpebra superior que cobre o canto interior do olho. A expressão “olhos com pálpebra dupla” ( double-lidded eyes ) é, a rigor, equivocada. No entanto, a expressão remete à blefaroplastia, uma cirurgia plástica conhecida por “dobrar a pálpebra”. Este procedimento é, por exemplo, o tipo mais comum de cirurgia plástica na Coreia do Sul. A menção feita no texto à fita adesiva remete à técnica de dobrar as pálpebras sobre si mesmas com o auxílio de uma fita adesiva própria para tanto. ²⁶⁷ O termo “visão 20/20” é emprestado da medicina oftalmológica, designando uma acuidade visual considerada normal. ²⁶⁸ Em inglês, sigla para “branco, anglo-saxão e protestante”. ²⁶⁹ Corte tradicional de cabelo, com a parte da frente da cabeça raspada e o resto do cabelo trançado. Original do povo jurchen e manchu da Manchúria, generealizou-se entre os homens durante a Dinastia Qing, na China. ²⁷⁰ Em inglês, not a Chinaman’s chance : “tão sem chance quanto um homem chinês”. ²⁷¹ Filho de imigrante asiático nascido no Ocidente. Programa e plataforma de doze Pontos do I Wor Kuen ²⁷² Pelo Comitê Central do I Wor Kuen ²⁷³

O povo asiático na Amerika tem sido continuamente oprimido pelos gangsteres gananciosos e traidores de nossas próprias comunidades e pela mais ampla sociedade amerikana, racista e exploradora. Nós fomos bombardeados pela mídia (jornais, TV, rádio e escolas) com ideias falsas sobre como devemos aceitar nossa posição nesta sociedade. Eles tentaram nos fazer uma lavagem cerebral e até nos coagiram a ir para o exterior e lutar contra o nosso próprio povo no sudeste da Ásia. No entanto, os asiático-amerikanos estamos lutando contra a opressão deste país desde que experimentamos pela primeira vez a amargura do racismo e da exploração da Amerika. A longa e heroica história da luta asiáticoamerikana nos inspirou e fortaleceu em nosso propósito. Já não podemos suportar essas condições opressivas. Não podemos deixar que as lutas de nossos ancestrais tenham sido em vão. Sabemos quem são nossos verdadeiros inimigos e amigos e temos uma nova força, pois estamos nos unindo a nossas irmãs e irmãos no interior deste país e em todo o mundo para lutar por liberdade e justiça contra os governantes daqui. Tentamos os meios pacíficos do peticionamento, dos tribunais, das votações e até das manifestações. Mas nossa situação permaneceu a mesma. Nós não somos livres. Queremos melhorar as condições de vida de nosso povo e estamos nos preparando para defender nossas comunidades contra a opressão e para a guerra armada revolucionária contra gangsteres, empresários, políticos e policiais. Quando um governo oprime o povo e não atende mais às suas necessidades, temos o direito de aboli-lo e criar um novo. Estamos trabalhando por um mundo de paz, onde as necessidades das pessoas venham primeiro, sem distinções de classe e baseado no amor e na unidade de todos os povos. Os doze pontos a seguir são aqueles pelos quais lutamos. ¹. QUEREMOS AUTODETERMINAÇÃO PARA TODOS OS ASIÁTICOAMERIKANOS. As massas asiáticas da Amerika vivem em guetos que são como pequenas colônias. Os capitalistas amerikanos tentam continuamente lucrar conosco, tentando alterar todo o nosso modo de vida em seu próprio benefício. Queremos libertação dessa escravização para que possamos determinar nossos próprios destinos. ². QUEREMOS AUTODETERMINAÇÃO PARA TODOS OS ASIÁTICOS. Os imperialistas ocidentais têm invadido e colonizando países na Ásia nos últimos quinhentos anos. O imperialismo amerikano, concentrado na Ásia, está agora envolvido na guerra de agressão mais sádica e genocida que o mundo já viu. ²⁷⁴ Queremos um fim imediato para o imperialismo amerikano. ³. QUEREMOS A LIBERTAÇÃO DE TODOS OS POVOS DO TERCEIRO MUNDO E OUTROS POVOS OPRIMIDOS.

Povos de cor, asiáticos, negros, marrons e vermelhos estão todos lutando pela libertação da opressão racista de Amerika. Milhões e milhões de pessoas brancas também estão se levantando para combater nosso opressor comum. Reconhecemos que, somente quando a opressão de todos os povos terminar, todos poderemos realmente ser livres. ⁴. QUEREMOS PÔR FIM AO CHAUVINISMO MASCULINO E À EXPLORAÇÃO SEXUAL. Os milhares de anos de opressão sob o feudalismo e o capitalismo criaram instituições e mitos de supremacia masculina sobre as mulheres. O homem deve lutar junto com as irmãs pela igualdade econômica e social e deve reconhecer que as irmãs constituem mais da metade do exército revolucionário. Irmãs e irmãos são iguais lutando pelo nosso povo. ⁵. QUEREMOS O CONTROLE COMUNITÁRIO DE NOSSAS INSTITUIÇÕES E TERRAS. Essas instituições em nossas comunidades, tais como polícia, escolas, saúde, moradia, transporte, saneamento, antipoluição e assistência social, devem ser controladas e servir às necessidades do povo, e não devem ser voltadas para fazer dinheiro. Queremos pôr fim ao uso de nossa comunidade para a obtenção de lucros para pessoas de fora, como locadores de barracos e agências de turismo. ⁶. QUEREMOS UMA EDUCAÇÃO QUE EXPONHA A VERDADEIRA HISTÓRIA DO IMPERIALISMO OCIDENTAL NA ÁSIA E AO REDOR DO MUNDO; QUE NOS ENSINE AS DIFICULDADES E LUTAS DE NOSSOS ANCESTRAIS NESTA TERRA E QUE REVELE A VERDADEIRA NATUREZA EXPLORATÓRIA DA SOCIEDADE AMERIKANA. Os imperialistas amerikanos tentaram justificar seu império mundial encobrindo os atos desumanos que eles perpetraram na Ásia e no resto do Terceiro Mundo. Eles também tentam nos fazer uma lavagem cerebral nas escolas com uma história racista que não fala da degradação, opressão e humilhação que os asiáticos e outros povos do Terceiro Mundo foram forçados a sofrer na Amerika. Queremos aprender sobre as lutas heroicas e inspiradoras que os asiáticos têm conduzido em todo o mundo, bem como na Amerika. ⁷. QUEREMOS MORADIA E SAÚDE DECENTES E ASSISTÊNCIA À INFÂNCIA. As instituições de habitação, saúde e assistência à infância são criadas apenas para fazer dinheiro para proprietários de imóveis, médicos, hospitais e empresas farmacêuticas. Queremos moradia, saúde e assistência infantil que nos dê vida e não lentas mortes. ⁸. QUEREMOS LIBERDADE PARA TODOS OS PRESOS POLÍTICOS E TODOS OS ASIÁTICOS. Nossos irmãos e irmãs asiáticos nas prisões racistas de Amerika devem ser libertados, pois não foram julgados por seus pares (outros irmãos e irmãs

asiáticos). Os presos políticos estão encarcerados porque lutaram por sua liberdade e direitos básicos como seres humanos. Todos eles devem ser postos em liberdade. ⁹. QUEREMOS PÔR FIM AO EXÉRCITO AMERIKANO. A máquina militar amerikana está massacrando povos em todo o mundo, especialmente na Ásia. O fim das forças armadas amerikanas será um dos maiores eventos da história da libertação da humanidade. Queremos que todos os asiático-amerikanos estejam isentos do serviço militar. ¹⁰. QUEREMOS O FIM DO RACISMO. O racismo branco tem oprimido os povos do Terceiro Mundo nos últimos quinhentos anos. Embora reconheçamos e apoiemos firmemente o povo branco progressista na luta anti-imperialista, devemos continuar lutando contra o racismo branco em todos os níveis. O racismo dos povos do Terceiro Mundo uns em relação aos outros está sendo destruído e uma nova unidade está sendo criada em nossa luta contra nosso inimigo comum. ¹¹. QUEREMOS FIM DAS FRONTEIRAS GEOGRÁFICAS DA AMERIKA. Desde o início, a Amerika tem sido um país ladrão. Roubou terras, mediante o uso da força armada, de nativos amerikanos, chicanos e latinos e outros povos. A Amerika agora pode apenas manter suas fronteiras atuais, interna e externamente, pela ameaça e uso da violência. Queremos passagem livre de todas as pessoas de e para o país. Os povos do mundo construíram a Amerika e agora precisam determinar seu destino. Esta nação também tentou cegar aqueles que vivem aqui quanto às realidades do socialismo, restringindo informações e viagens para a República Popular da China, Cuba, Albânia, Coreia do Norte e Vietnã do Norte. Queremos fronteiras abertas e o fim do assédio à imigração e à emigração. ¹². QUEREMOS UMA SOCIEDADE SOCIALISTA. O que existe hoje na Amerika é uma sociedade em que um homem, para sobreviver, deve explorar seu próximo. Queremos uma sociedade que trabalhe para a realização das necessidades humanas. Queremos moradia decente, saúde, assistência à infância, empregos, saneamento e assistência à velhice. Queremos uma sociedade em que nenhum homem ou mulher morra por falta de comida, assistência médica ou moradia, onde cada um dê conforme suas capacidades e receba conforme suas necessidades. ²⁷² I Wor Kuen: em cantonês, “Punhos Justos e Harmoniosos”, referência ao nome do grupo camponês que lutou em 1898, no começo do Levante dos Boxers. ²⁷³ Publicado no formato de panfleto, em novembro de 1969. ²⁷⁴ Referência à campanha militar estadunidense no Vietnã. Breve história do I Wor Kuen Pelo Comitê Central do I Wor Kuen ²⁷⁵

IWK foi uma das muitas organizações revolucionárias que surgiram no final dos anos 1960. Essas organizações foram um tremendo passo à frente para o movimento revolucionário, pois foram uma ruptura decisiva com o revisionismo e o trotskismo. O Partido Comunistas do Estados Unidos tornara-se revisionista na década de 1950 e tentara sufocar o movimento de massas, canalizando-o para o reformismo. O trotskismo de forças tais como o Partido Progressista do Trabalho, da mesma forma, sabotou e atacou o movimento de massas. Não havia um verdadeiro partido comunista para liderar o movimento de massas em frente. 1969 – final de 1971 O IWK se formou como um coletivo revolucionário na cidade de Nova York no final de 1969. Durante o mesmo ano, o Partido da Guarda Vermelha também se formou em San Francisco. Mais tarde, durante o verão de 1971, o IWK tornou-se uma organização nacional, como produto da fusão desses dois grupos. O IWK e a Guarda Vermelha desempenharam um papel de vanguarda nos movimentos nacionais asiáticos durante os anos entre 1969 e 1971. Ambas as organizações reconheciam que apenas a revolução poderia resolver as contradições da sociedade capitalista. Eles se propuseram a construir um genuíno movimento revolucionário neste país, desafiar com ousadia as forças opressoras e mostrar que a opressão e as injustiças cotidianas que as massas enfrentam vêm do sistema imperialista. O coletivo do IWK em Nova York foi formado por revolucionários asiáticoamericanos de diversas origens, incluindo estudantes, trabalhadores e jovens da classe trabalhadora. Durante seu primeiro ano e meio, o IWK realizou várias campanhas de massas contra as más condições de vida na comunidade, além de lutas contra o assédio e a repressão massiva pelo Estado. A organização também conduziu uma série de programas comunitários de serviço ao povo e conduziu uma ampla agitação política e um trabalho educacional entre as massas. O IWK publicou o jornal Unindo [ Getting Together ] em chinês e inglês, e o usou para educar e organizar, além de apresentar as visões revolucionárias da organização. O IWK abordou problemas, como as horríveis instalações de saúde em Chinatown, como forma de organizar as massas na comunidade para iniciar uma luta política coletiva contra essas condições. Em março de 1970, a organização lançou uma intensa campanha, realizando testes para tuberculose de porta em porta em Chinatown. A luta em torno do hospital Gouverneur continua sendo um ponto focal das lutas na área da saúde até os dias atuais. Em 1972, o IWK ajudou a travar uma luta de massas e realizou várias manifestações importantes, resultando na contratação de mais trabalhadores que falassem chinês para o novo hospital Gouverneur. Simultaneamente à campanha na área da saúde, o IWK iniciou o primeiro serviço de aconselhamento sobre o alistamento de Chinatown. Muitos jovens asiáticos estavam sendo convocados para lutar contra o povo indochinês no Vietnã.

A mesma atitude de servir ao povo, de promover a revolução e de travar uma luta de massas foi a base do papel ativo e, muitas vezes, de liderança que o IWK desempenhou em muitas lutas comunitárias. No início de 1970, o IWK desempenhou um papel importante na campanha “Não vamos nos mudar” em Chinatown, Nova York, na qual moradores e organizações comunitárias se uniram para defender moradias que a companhia telefônica Bell queria derrubar para construir uma estação de comutação. O IWK ajudou a deslocar fisicamente muitas famílias chinesas – alguns imigrantes recém-chegados – para apartamentos abandonados no quarteirão, a fim aumentar as forças dos inquilinos e mostrar a seriedade da luta. O conjunto de moradias permanece lá ainda hoje, graças a essa resistência de massas. No final de 1970, o IWK travou uma luta militante contra as tentativas do governo de fechar pequenos supermercados chineses que vendiam produtos chineses e carnes assadas e em conserva. O Partido da Guarda Vermelha O Partido da Guarda Vermelha começou seu trabalho revolucionário em Chinatown, San Francisco, na primavera de 1969. Foi formado principalmente por jovens asiático-americanos que haviam participado ativamente no combate ao assédio policial em Chinatown, em várias lutas comunitárias contra a opressão nacional e na greve estudantil do Colégio Estadual Terceiro Mundo, de San Francisco, em 1968. A Guarda Vermelha abriu um escritório na comunidade. Eles começaram a realizar programas de serviço ao povo e exibição semanal de filmes sobre a China e outras lutas do Terceiro Mundo. Eles também levaram a cabo diversas lutas de massas na comunidade. Eles foram a primeira força política em Chinatown, San Francisco, que desafiou abertamente as forças reacionárias locais, da secção do Kuomingtang em San Francisco. Eles assumiram a liderança na defesa de uma posição revolucionária direta contra o sistema imperialista, considerando este como a fonte da opressão que os chineses enfrentam nos Estados Unidos há mais de um século. Uma das lutas mais importantes foi para impedir a destruição da comunidade chinesa de San Francisco para desenvolvimento de novos projetos urbanísticos. A partir de 1970, o IWK e a Guarda Vermelha começaram a ter discussões para compartilhar experiências e lições de seu trabalho e buscar a união entre os dois grupos. Na Guarda Vermelha, estava presente uma linha política semelhante à tendência terrorista que existia no IWK. [Essa tendência] Assumiu a forma de uma linha ultramilitarista. Graças a essas discussões, os dois grupos foram capazes de extrair lições da luta anterior que ocorrera no IWK, e uma contenda começou a se aguçar dentro da Guarda Vermelha contra a linha ultramilitarista. Na primavera de 1971, o IWK e a Guarda Vermelha intensificaram suas discussões para unificar os dois grupos. O IWK teve um papel importante, ajudando a derrotar as tendências ultramilitaristas da Guarda Vermelha. Em junho de 1971, uma vitória decisiva foi conquistada contra essa linha da Guarda Vermelha e, juntamente a isso, avançou-se no acordo ideológico e

político entre ambos os grupos. Isso ajudou a estabelecer as bases para sua fusão, em julho de 1971, para formar o IWK nacional. IWK nacional formado O IWK nacional uniu-se firmemente em torno da necessidade de construir uma organização revolucionária disciplinada, que se unisse a outras forças para liderar e organizar as massas em uma luta revolucionária para derrubar a classe dominante. O IWK afirmou tanto a necessidade de uma derrubada violenta da classe capitalista quanto a importância de colocar a política no comando da questão militar. A fusão do IWK de Nova York e da Guarda Vermelha de San Francisco reuniu duas forças de vanguarda que desempenharam um papel pioneiro no desenvolvimento das lutas nacionais asiáticas nos Estados Unidos. O IWK nacional emergiu como a maior organização revolucionária no movimento asiático e grande força dentro do movimento revolucionário do país. ²⁷⁵ Excerto do balanço produzido pela direção do IWK em seu processo de fusão com o Movimento 29 de Agosto, para a criação da Liga de Luta Revolucionária (Marxista-Leninista), em 1978. O poder branco Organizando os pobres brancos em Uptown, Chicago, Ilinois: uma história e Prospectos da associação comunitária Join Por Peggy Terry , ²⁷⁶ No começo de 1964, os Estudantes por uma Sociedade Democrática [Students for a Democratic Society – SDS] começaram a construir projetos nas grandes cidades do Norte. A ideia para o estabelecimento de tais projetos fora acesa pela Marcha sobre Washington por Empregos e Liberdade, de 1963. A Join, na zona norte de Chicago, estava entre dez projetos construídos pela SDS e administrados por um departamento especial chamado ERAP (Projeto de Pesquisa e Ação Econômica), que era financiado pelo Sindicato Unido dos Trabalhadores Automotivos. ²⁷⁷ As letras que compõe o nome do Join originalmente se referiam a Empregos ou Rendimentos Agora [Jobs or Income Now] e o projeto estava focado nas questões do desemprego e nas projeções a respeito dos futuros problemas criados pelo desemprego na cidade. Incapazes de construir uma base em torno desta questão e ainda desejavam ardentemente coordenar os brancos pobres, os organizadores se deslocaram para a área de Uptown e começaram a pesquisar para descobrir quais problemas que existiam na comunidade poderiam ser utilizados como questões para envolver o povo. Uptown é a “porta de entrada” para os brancos sulistas e apalachianos em Chicago. Há também, na área, grupos substanciais de orientais, ameríndios, negros e falantes de espanhol e um grande número de idosos. Juntos, esses grupos, majoritariamente pobres, dão à área sua marca.

Após considerar os dados reunidos, os organizadores da SDS decidiram pelo modelo de associação comunitária multitemática como sendo a organização melhor adaptada para os propósitos de organizar a população de Uptown. Várias ações foram iniciadas na comunidade e a presença da Join era sentida pela sua pressão sobre o recém-estabelecido Escritório de Oportunidade Econômica (“Guerra à Pobreza”), ²⁷⁸ por meio de ações agressivas sobre o órgão de assistência social, por meio de greves de aluguéis, por meio de uma marcha em frente à notória Delegacia de Polícia de Summerdale protestando contra a brutalidade policial e por meio de outras ações comunitárias. Como resultado destas ações, pessoas que nunca tiveram qualquer poder começaram a tomar conhecimento de que as condições de suas vidas poderiam ser modificadas e que eles próprios eram capazes de tomar decisões sobre como levar a cabo essas modificações. Foi nessa época que um senso de fracasso por parte dos organizadores estudantis e um crescente ressentimento contra estes por parte do povo da comunidade se tornou aparente. Conforme as tensões se aprofundavam entre os organizadores e os organizados, acusações de elitismo (algumas das quais eram verdadeiras) contra os “estudantes” começaram a ser verbalizadas pelo povo da comunidade. Na primavera de 1967, o Comitê de Seguridade Social do Join desmoronou. Por meio dos esforços de Dovie Coleman, um beneficiário negro da assistência social que fora bastante ativo no Join, o grupo se uniu, renomeando-se Beneficiários da Seguridade Social Exigem Ação (WRDA) e colocando-se o objetivo de organizar uma associação de beneficiários da seguridade social que viria a envolver um grande número destes. A contribuição exigida era alta – doze dólares por ano – e seu pagamento cobrado antecipadamente, além disso a regra número um era que os beneficiários deveriam ajudar a travar sua própria luta. Essa regra não deixava espaço para elitismo (paternalismo) ²⁷⁹ e, em poucas semanas, a WRDA dobrou e triplicou seu número de membros. A WRDA agora possuía pouco mais de duzentos membros de todos os cantos da cidade, uma organização plenamente misturada em termos étnicos e raciais. Logo antes de o Comitê de Seguridade Social ser desbandado, a equipe da Join começara a considerar a ideia de que, se o povo da comunidade detivesse posições de poder dentro da Join, seria capaz de tornar a organização mais aceitável às outras pessoas da comunidade. Sendo assim, essa equipe formulou a ideia de [criar] um Conselho da Join, que foi elevado à posição de corpo dirigente da organização. O Conselho foi capaz de levar a cabo alguns de seus objetivos, mas ainda era guiado por “estudantes”, isso fazia com que os membros se sentiam dominados e intimidados por estes, de modo que essa instância também desmoronou rapidamente.

Embalada por esta situação e pelo exemplo do sucesso da WRDA, o núcleo remanescente do povo da comunidade na Join sentiu a necessidade de se reconstituir e redefinir. Por meio de uma profunda e por vezes dolorosa análise e autoexame, decidiu-se pela construção de nossa organização e de nosso movimento na perspectiva de os pobres e os trabalhadores organizarem seu próprio povo e comunidade. Confiante em sua recém-descoberta força coletiva, o Conselho da Join foi reavivado no começo de 1968. Decidiu-se por votação que os organizadores oriundos do meio estudantil deveriam deixar a organização para que esta, sob controle e direção do povo da comunidade, pudesse fazer sua presença ser sentida novamente na comunidade. As ações diretas, nesse momento, haviam sido interrompidas, e a organização estava praticamente paralisada. Nesse período crítico, a WRDA decidiu realinhar-se com esta nova Join, tendo representantes seus no Conselho e dando apoio a suas ações na comunidade. A Join, por sua vez, compartilharia seu jornal, Linha de Fogo , com a WRDA, dando-lhes publicidade e apoio em suas ações pelos direitos securitários. A Join está, agora, nas mãos do povo da comunidade, e nós sentimos que este é um desdobramento saudável. Temos muito trabalho duro à nossa frente, conquanto somos confrontados com a tarefa de tentar desfazer os danos de anos e anos de racismo. Nossa tarefa é ensinar soluções para nossos muitos problemas, soluções que não podem ser encontradas no fastidioso racismo banal da KKK ou de George Wallace. ²⁸⁰ Está em nossas mãos construir uma organização que fala para, por e sobre nosso povo em uma linguagem e com ações que ele possa entender e com as quais possa se identificar. Essas são as coisas que devemos fazer se almejamos a base de massas necessária para a modificação das nossas condições de vida. Nós vemos a iminente Campanha do Povo Pobre em Washington como um importante e lógico passo a frente, bem como uma oportunidade de desenvolver a unidade entre os pobres de todas as raças e grupos, sendo essa perspectiva comum vital e historicamente necessária. Nós da Associação Comunitária Join compreendemos agora que a liberdade e a dignidade humana não podem ser conquistadas para os brancos pobres a menos e até que sejam conquistadas para todos os povos explorados. A organização para a transformação em uma área de brancos pobres, para encontrar um modo novo e melhor de conduzir nosso país, é a razão de existir da Associação Comunitária Join em Uptown, Chicago, Illionois. ²⁷⁶ Publicado no jornal Linha de Fogo , da associação comunitária Join em 1968. Neta de um membro da Klu Klux Klan, Peggy Terry envolveu-se com o grupo Mulheres pela Paz e fez parte, brevemente, do Partido Comunista dos Estados Unidos em Michigan. Participou intensamente das lutas pelos direitos civis nos anos 1960, compondo o Congresso da Igualdade Racial. Seu filho, Doug “Youngblood” Blakey, foi um dos fundadores dos Jovens Patriotas. ²⁷⁷ O Sindicato Internacional dos Trabalhadores Automotivos, Aeroespaciais e de Implementos Agriculturais Unidos da América, também conhecido apenas como United Auto Workers (UAW), representa trabalhadores dos

Estados Unidos (incluindo Porto Rico) e Canadá e foi fundado nos anos 1930. No texto, a autora se refere ao sindicato como United Autor Workers Union. ²⁷⁸ O Escritório de Oportunidade Econômica era a agência responsável pela administração da maior parte dos programas da política de “Guerra à Pobreza” apregoada pelo presidente Lyndon B. Johnson. ²⁷⁹ Em inglês, mother-henning , “mãe galinhando”. ²⁸⁰ Político estadunidense, governador do Alabama de 1963 a 1967, imortalizado por seu clamor: “segregação agora e segregação sempre”. Programa de onze pontos da Organização dos Jovens Patriotas Pelo Comitê Central da organização ²⁸¹ ¹. CLASSE Nós vemos que a chave para entender e melhorar nossa situação é verdadeiramente entender a natureza da sociedade de classes. Nós vemos que, na América e no mundo, aqueles que têm dinheiro controlam aqueles que não o têm. RIQUEZA = PODER. Nós sentimos que a riqueza do mundo deveria ser dividida igualmente entre todas as pessoas. Os trabalhadores que são as massas do povo produzem a riqueza e devem controlá-la. Vemos que nossos aliados são aqueles que não têm nada e que nossos inimigos são aqueles que têm demais. ². BEM-ESTAR DO POVO Nós acreditamos que todo o povo tem direito a comida, roupas, abrigo e cuidados médicos adequados. Acreditamos que os empresários não deveriam lucrar com as coisas das quais precisamos para sobreviver. Demandamos moradia decente e adequada a um baixo custo para o povo pobre. Demandamos creches seguras e limpas para as mães que trabalham. Exigimos que as mães que queiram criar suas crianças em seu próprio lar sejam pagas por esse trabalho vital. ³. PORCOS E ESTRUTURA DE PODER PORCA Nós demandamos o fim dos assassinatos e da brutalização do povo pelos porcos. Os porcos são a ferramenta dos ricos. Eles estão em nossa comunidade para proteger a propriedade dos barões ladrões, proprietários de terras e empresários avarentos, e não a vida ou os interesses do povo que mora na comunidade. Chamamos os policiais de porcos porque eles oprimem o povo. O mundo pertence ao povo, não aos porcos. O povo oprimido em todas as comunidades deve ter controle absoluto e final sobre a polícia. Toda a polícia deve vir da comunidade na qual ela serve. ⁴. ESCOLAS – EDUCAÇÃO Nós entendemos que o principal propósito do sistema educacional como hoje está dado é fazer o povo se encaixar suavemente na sociedade de classes

capitalista. Entendemos que as crianças do povo pobre são treinadas para trabalhar nas fábricas – as crianças do povo rico são treinadas para assumir os lugares de seus pais. As escolas são geridas como prisões, porque essa sociedade é uma prisão. Nós demandamos que todas as pessoas tenham a oportunidade de desenvolver suas habilidades. ⁵. ALISTAMENTO Opomo-nos ao alistamento, porque ele significa que os homens pobres e da classe trabalhadora lutam as guerras dos homens ricos. Opomo-nos às guerras de agressão imperialistas como a do Vietnã. Acreditamos que todo homem e mulher patriota devam servir apenas no exército de libertação. Os ricos podem comprar sua saída do alistamento, mas o povo pobre e da classe trabalhadora não tem escolha. Nós demandamos que os homens velhos ricos que criam as guerras devam lutá-las e que os jovens devam permanecer em casa e construir uma nova sociedade. ⁶. SINDICATOS A ideia de sindicatos foi uma coisa boa. Mas nós sabemos que a maioria dos americanos ainda trabalha longas horas sob más condições por salários de miséria e nunca tem, em troca, nada a exibir. Exigimos o fim da discriminação no emprego e nos sindicatos. Homens e mulheres de todas as raças devem receber salários iguais e melhores condições de trabalho. Os sindicatos alegam representar seus membros, mas, na verdade, representam os funcionários sindicais e vendem seus membros. Sindicatos vendilhões devem ser destruídos; por conseguinte, nós defendemos o direito dos trabalhadores de se organizarem fora de seus sindicatos. Nós sabemos que a verdadeira mudança neste país não acontecerá até que o povo controle suas fábricas. Quando os trabalhadores controlarem suas fábricas, não haverá necessidade de representantes sindicais para barganhar com a companhia. ⁷. EXPLORAÇÃO DA COMUNIDADE Entendemos que o empresário da comunidade extrai de nós seu sustento. Entendemos que fazemos o produto que eles vendem de volta a nós. Nós demandamos que, se o empresário pretende permanecer na comunidade, esses lucros sejam investidos na comunidade na forma de bens e serviços. ⁸. RACISMO O racismo é uma ferramenta do capitalismo para fazer com que o povo lute entre si em vez de lutar unido por sua liberdade. Divisões de raça e sexo servem aos interesses da classe dominante rica e não ao do povo. ⁹. LIBERTEM TODOS OS PRISIONEIROS POLÍTICOS Nós demandamos a libertação de todos os prisioneiros políticos. Entendemos que a maioria dos assim chamados “criminosos” em nossas “prisões campos de concentração” são vítimas de nossa sociedade de classes. A justiça é um luxo que apenas os homens ricos podem se dar. Essas pessoas devem ser libertadas para construir uma nova sociedade, em vez de serem tiradas de cena pelos erros da sociedade.

¹⁰. NACIONALISMO CULTURAL Nós acreditamos que lutar apenas pelos interesses de seus irmãos e irmãs de cultura próxima não interessa a todo o povo e, de fato, perpetua o racismo. Entendemos que nossa luta é uma luta de classes. Todo o poder para o povo pobre e trabalhador! O nacionalismo cultural não resolve os problemas políticos dos povos oprimidos, mas apenas perpetua explorações. O capitalismo faz milhões a partir de joias de miçangas, ²⁸² camisetas afro e chapéus de caubói. O nacionalismo cultura é uma ferramenta da exploração capitalista. ¹¹. SOLIDARIEDADE REVOLUCIONÁRIA A solidariedade revolucionária para com todos os povos oprimidos desta e de outras nações e raças derrotará a divisão criada pelos interesses estreitos do nacionalismo cultural. Nós apoiamos todas as guerras de libertação nacional e demandamos um fim imediato à guerra do Vietnã. O capitalismo monopolista e o socialismo russo corrompido são inimigos dos interesses dos povos oprimidos mundo afora. ²⁸¹ Publicado na forma de panfleto em 1969. ²⁸² Em inglês, love-beads , “contas do amor”, típicos adereços hippies . Caipira revolucionário: uma entrevista com Hy Thurman da Organização dos Jovens Patriotas Por James Tracy e Hy Thurman ²⁸³ James Tracy: Como você se tornou parte da Organização dos Jovens Patriotas? Hy Thurman: Eu me envolvi nos Jovens Patriotas pelo contato com os Bons Companheiros. Meu irmão, Tex, era um líder nos Pacificadores, uma gangue de rua que se transformou nos Bons Companheiros e, eventualmente, tornou-se os Jovens Patriotas, que depois viria a ser parte da Coalizão ArcoÍris original. Organizamos os Jovens Patriotas em 1968 no bairro de Uptown, em Chicago, para ajudar a aliviar as condições opressivas que os moradores enfrentavam diariamente e para dar aos pobres uma voz no combate à máquina opressiva de ódio de classe e racismo do prefeito Richard J. Daley. A comunidade de Uptown era composta principalmente por migrantes brancos do Sul, pobres, que começaram a migrar para o Norte logo após a Segunda Guerra Mundial para encontrar emprego e escapar dos picos de pobreza – apenas para entrar em outras condições monstruosas que, de várias maneiras, eram piores do que as que foram vivenciadas no Sul. As estimativas de residentes sulistas, em um período de dez anos, foram de mais de 70 mil, que entraram pelos portões de Uptown. Em qualquer momento dado, eram cerca de 40 mil aqueles tentando criar raízes e construir suas vidas. JT: Pode surpreender alguns leitores que a brutalidade policial tenha sido tão acentuada em um bairro branco.

HT: Daley usava a polícia como sua gangue pessoal, e ela tinha permissão para usar sua própria interpretação da lei enquanto realizava seu trabalho. Também parecia que qualquer policial que estivesse determinado a ter comportamentos de um psicopata ou que não se encaixasse nos bairros de classe média da cidade era designado para Uptown, para as zonas sul e oeste e para bairros pobres latinos e de outras etnias em Chicago. Eles não pensariam duas vezes para atirar, torturar ou espancar você. Mulheres e meninas também não estavam isentas de seu comportamento pervertido. No livro Uptown: Poor Whites in Chicago , de Todd Gitlin e Nancy Hollander, uma mulher conta haver entrado no escritório comunitário da Empregos ou Rendimentos Agora [Join] e relatar que acabara de ser estuprada pelos policiais. Eu e outros três Bons Companheiros, incluindo uma mulher, fomos parados por uma viatura com três policiais de Chicago e recebemos a ordem para sair do nosso carro. Depois de verificar nossos documentos de identidade e sem revistar o carro, o motorista, Bobby McGinnis, recebeu a ordem para sentar no banco de trás do carro de patrulha, enquanto o resto de nós esperamos de pé, no frio, onde poderíamos ser observados. Os policiais disseram que haviam encontrado um saco de pílulas ilegais em nosso carro. Disseram a Bobby que iam “foder a garota” ou que iríamos para a prisão por posse de drogas ilegais e que o carro seria apreendido como prova. Tomamos a decisão de tentar despistar os policiais, indo para uma área de Uptown onde outros Bons Companheiros eram conhecidos por passar tempo e nos prepararmos para um confronto. Desta vez fomos bemsucedidos. Os policiais passaram por nós quando entrávamos em um restaurante local, cheio de outros caras e moças do bairro. Esses e outros incidentes com policiais fascistas levam os Pacificadores, a Join e outros grupos e indivíduos a organizar uma marcha para a Delegacia de Polícia de Summerdale contra a brutalidade e os assassinatos. Dois dias após a marcha, o irmão de um Pacificador foi assassinado pelos policiais, o escritório da Join foi invadido e drogas foram plantadas, resultando na prisão de dois membros dos Estudantes por uma Sociedade Democrática. Foi quando os Pacificadores mudaram seu nome para Bons Companheiros e começaram a servir à comunidade. JT: Então a estrutura de poder de Chicago não estava muito empolgada em receber a seção branca da diáspora sulista? HT: Eu quero mencionar apenas mais um incidente desmoralizante com que me deparei e apontar como os sulistas eram vistos pela polícia de Chicago. Eu tinha ¹⁷ anos e estava em Chicago há apenas duas semanas quando um carro da polícia com dois homens me parou na avenida Sunnyside, em Uptown. Eu estava sozinho e andando pela rua quando eles pararam, me algemaram e me colocaram na parte de trás do carro. Um policial disse que havia muitos roubos na área e me perguntou se eu sabia alguma coisa sobre isso e se eu possuía ferramentas de roubo. Depois de negar ter qualquer conhecimento dos roubos locais e afirmar não possuir nenhuma ferramenta, eles ouviram meu profundo sotaque sulista. Um policial disse: “não outro caipira idiota. Por que você simplesmente não volta para o Sul e fode sua mãe, irmãs, primas ou seus cães, ou o que quer que gente como vocês fodam por lá, e fica fora de Chicago? Agora saia do meu carro. Se eu lhe ver de

novo, não serei tão educado”. Um deles retirou minhas algemas me pondo de bruços no chão, com os joelhos nas minhas costas, enquanto o outro ficou com um pé na lateral do meu rosto. Estes são apenas dois exemplos de comportamento policial. Detalhes foram escritos sobre outros atos traiçoeiros. Assassinatos, extorsões, roubos e os incontáveis atos de espancamentos violentos eram uma ocorrência diária. Vários Pacificadores e Bons Companheiros foram literalmente assassinados pelos policiais de Chicago. O desemprego, as condições de vida nas favelas, a discriminação habitacional, a renovação urbana, o ódio de classe, o racismo, a falta de assistência à saúde, a desnutrição, as altas taxas de mortalidade infantil, as doenças e a pobreza, todos esses [problemas] tocaram o povo pobre em Uptown. O bairro era uma fossa de miséria para muitos. Para aumentar ainda mais essa vitimização, principalmente no início dos anos 1960, uma série de artigos apareceu no jornal Tribuna de Chicago desmoralizando e demonizando os migrantes brancos do Sul. Eles foram exemplificados como sendo um “enxame de gafanhotos” que descia sobre a cidade com seus temperamentos violentos, ignorância, falta de educação e comportamento incestuoso, e que começariam brigas em um piscar de olhos. Isso não ajudou nas oportunidades de emprego dos migrantes sulistas. Criou as condições para o ódio de classe. JT: Isso não vai contra a percepção comum de que as coisas eram muito boas para todas as pessoas brancas da classe trabalhadora na divisão do trabalho do pós-Segunda Guerra Mundial? HT: De acordo com um livro escrito por Roger Guy, intitulado From Diversity to Unity , a taxa de desemprego em Uptown no final da década de 1960 era de 47%. E a população de migrantes sulistas excedeu o número de empregos estáveis em Chicago. Aqueles que conseguiam trabalho normalmente trabalhavam para agências de diaristas. As agências de diaristas eram agências privadas que operavam de maneira semelhante às de empregos temporários – a diferença era que as de diaristas não ofereciam a oportunidade de emprego em período integral e pagavam abaixo do salário mínimo. Eu trabalhei como diarista algumas vezes. Sempre fui designado para os empregos mais servis. Varrer pisos e trabalhos com alto risco de ferimentos. Trabalhos extenuantes, como carregar e descarregar caminhões, costumavam ser atribuídos a nós. No entardecer do meu segundo dia, quando voltei ao escritório, um funcionário da agência me convidou para entrar. Ele disse que, uma vez que eu era novo, eu não conhecia o procedimento de como eles pagavam os trabalhadores. Ele falou que eu era responsável pelo pagamento do meu transporte de e para o local de trabalho. Este serviço fora anunciado como um serviço gratuito para as empresas que estavam contratando os serviços da agência de diaristas. E eu era responsável pela taxa de transporte. Vinte por cento dos meus ganhos seriam deduzidos. Ele disse que estavam nos fazendo um favor ao nos escolher para trabalhar e que deveríamos ser gratos. Ele disse que um indivíduo era escolhido para trabalhar todos os dias apenas se aceitasse esse acordo. Não havia a quem reclamar, por isso decidi interromper meu vínculo com eles e procurar outros meios de ganhar a vida. Ele ainda assim levou 20% dos meus ganhos nos dois dias trabalhados.

Isso manteve muitos em pobreza perpétua. Muitos foram levados a vender sangue. Em Uptown e em muitos bairros pobres, bancos ou lojas de sangue estavam localizados muito perto das agências de diaristas. Quando indivíduos e famílias não conseguiam encontrar emprego ou precisavam suplementar seu emprego ou bem-estar, não teriam outra opção senão vender seu sangue, recorrer ao crime, à prostituição ou a outros meios ilegais. Ainda assim, essa não era uma opção para aqueles que chegavam do Sul com doenças como pulmão negro, ²⁸⁴ pulmão marrom, ²⁸⁵ tuberculose e envenenamento por chumbo e qualquer uma de inúmeras doenças físicas; eles estavam doentes demais para trabalhar, então dependiam da assistência governamental, o que não era muito. Tive que engolir meu orgulho várias vezes e recorrer a vender meu sangue para sobreviver. JT: Os moradores de Uptown também tiveram que lidar com outro problema, os projetos de renovação urbana – que também destruíram os bairros de negros e marrons. HT: A discriminação habitacional e a renovação urbana desempenharam um papel importante na minha participação nos Jovens Patriotas. Parte de Uptown era uma favela, e era nessa parte que os pobres eram forçados a viver sob os poderes opressivos de proprietários ausentes que recebiam os aluguéis, mas se recusavam a fazer melhorias em suas propriedades. A tinta à base de chumbo contribuiu para que muitos fossem envenenado por chumbo ou contribuía para [agravar] a condição de pessoas que haviam sido expostas ao envenenamento no Sul devido à mineração a céu aberto, que introduzia o elemento na água e nos riachos dos quais bebiam. As crianças eram forçadas a usar ruas cobertas de vidro e outros detritos. Carros abandonados e lixo espalhavam-se pelas ruas e os serviços municipais ignoravam a área, enquanto as zonas mais prósperas estavam intactas e mantidas limpas. Segundo as estatísticas do Centro de Intercâmbio Cultural Sulista, Uptown teve uma taxa de mortalidade infantil maior que qualquer outro bairro de Chicago. Os serviços de saúde eram inexistentes e os hospitais recusavam atendimento àqueles sem seguro. Além da brutalidade policial, a renovação urbana foi um fator importante para o meu envolvimento organizacional em Uptown. Uptown foi designada como uma área de renovação e uma faculdade municipal [a Faculdade Truman] seria construída na área onde morava a maioria dos brancos sulistas. A cidade não tinha planos de realocar nenhum dos moradores. O prefeito Daley nomeou um comitê, formado por proprietários de terras e empresários, para supervisionar todos os planos de renovação urbana, sem incluir os moradores pobres. Trinta e oito homens, mulheres, crianças e deficientes físicos pobres foram assassinados, queimados até a morte, quando proprietários imobiliários da favela contrataram pessoas para incendiar os prédios, forçando os moradores a sair. Nenhuma acusação ou processo foi apresentado contra ninguém. Um relatório afirmava, ainda, que o chanceler da faculdade municipal, Oscar Chabot, convenceu três de seus amigos a comprar terrenos e edifícios no local designado para que eles pudessem queimá-los ou demoli-los, cobrar os seguros e, depois, vendê-los para a cidade de Chicago por um lucro considerável.

JT: Houve muita resistência a isso, ou as pessoas simplesmente se mudaram? HT: Somando-nos à Coalizão de Planejamento da Área de Uptown, fomos capazes de propor um local alternativo ao proposto para a faculdade municipal. Chuck Geary, um migrante do Kentucky, liderou a luta com nosso apoio. Chamamos nosso projeto de Vila Hank Williams, que era uma réplica de uma cidade sulista com seus próprios serviços, polícia e governo. Prédios inabitáveis seriam substituídos por novas estruturas, e os que pudessem ser salvos seriam renovados e, eventualmente, oferecidos para compra aos residentes pobres. Um hotel seria construído para os recém-chegados e os serviços de ajuda e emprego seriam fornecidos até que se tornassem independentes e encontrassem sua própria moradia. Depois que os Jovens Patriotas ocuparam a reunião do comitê gestor do projeto por diversas vezes, eles concordaram em aceitar a proposta, mas apenas se pudéssemos obter financiamento. Garantimos apoio financeiro para construir a vila e identificamos um local alternativo para a faculdade. Mas eles renegaram a oferta e o legislativo municipal aprovou a construção da faculdade. Entre 1966 e os últimos meses de 1968, as ruas de Uptown eram um ambiente infernal. Muitos dos Pacificadores e Bons Companheiros originais foram mortos, forçados pela polícia a deixar Chicago ou convocados para a guerra do Vietnã. Restavam apenas alguns Bons Companheiros. Bobby McGinnis, June Bug Boykin e eu assumimos as posições de liderança e começamos a recrutar outros membros. Também decidimos mudar o nome para Jovens Patriotas, porque sentíamos que patriotas protegiam e lutavam por seu povo. Devido ao nosso crescente conhecimento do socialismo, queríamos um nome que fosse reconhecido e facilmente explicável, além de nos distanciar do nome do Bons Companheiros, associado ao crime – embora ainda gostássemos de estar relacionados ao aspecto de “durões” ligado aos Bons Companheiros, visto como um grupo com o qual não se devia brincar. Durante 1968, começamos a intensificar nosso trabalho em Uptown. Tornamo-nos mais barulhentos e militantes em nossa abordagem de oposição aos programas capitalistas e fascistas do governo Daley. Exigimos a autodeterminação de Uptown e que nossa voz fosse ouvida. Juntamo-nos a outras organizações para combater o sistema corrupto que controlava nossa vida cotidiana. Exigimos cuidados de saúde adequados, moradias decentes, o fim da brutalidade policial, do racismo e do ódio de classe, e exigimos ser respeitados e ouvidos. Exigimos um assento em todos os comitês que determinassem nosso destino. Ocupamos as reuniões de planejamento do projeto de renovação urbana e fizemos ser ouvida a voz e a visão dos Jovens Patriotas, que chegavam às reuniões colocando medo em muitos dos membros do comitê indicados de Daley. Vestíamos jaquetas de couro, usávamos uma bandeira confederada, bóton da campanha pela libertação de Huey, um dos Panteras Negras e um bóton que representava todas as cores de todas as raças. Adotamos a palavra de ordem da polícia de Chicago de “Servir e proteger”, porque eles eram incapazes de fazê-lo pelos pobres. Nós éramos temidos, mas também éramos odiados pelos policiais e pelo governo Daley. O que não sabíamos era que os Panteras Negras e os Jovens Senhores estavam de olho em nós.

JT: Sua organização levou à formação de uma aliança com os Panteras e os Senhores, a Coalizão Arco-Íris original. HT: Em ⁴ de abril de ¹⁹⁶⁹, que também foi o primeiro aniversário do assassinato do dr. Martin Luther King, Fred Hampton, Bobby Rush e Bobby Lee, do Partido dos Panteras Negras de Illinois, convidaram os Jovens Patriotas a se unirem a eles e aos Jovens Senhores – uma ex-gangue de rua porto-riquenha – para formar a Coalizão Arco-Íris de Solidariedade Revolucionária, a original. Os Panteras Negras estavam cientes de nosso compromisso com o movimento pela igualdade racial devido à participação dos Bons Companheiros e de outras organizações dos pobres que participaram da Campanha Presidencial Eldridge Clever e Peggy Terry, em ¹⁹⁶⁶. Peggy Terry, uma mulher pobre branca e militante que vivia em Uptown, foi escolhida para concorrer como parceira vice-presidencial de Eldridge Cleaver na chapa da “Campanha pela Paz e a Liberdade” contra o governador do Alabama devido a suas crenças racistas e supremacistas. A campanha também queria mostrar que negros e brancos pobres podiam se unir em solidariedade. Os três grupos concordaram que nenhuma organização controlaria a coalizão. Cada organização controlaria sua comunidade e lutaria pela autodeterminação. As três declarariam que, na cidade mais segregada dos Estados Unidos, era possível que todas as raças trabalhassem juntas. Nós nos uniríamos em solidariedade para apoiar os programas uns dos outros e desafiar o governo Daley, nos somaríamos em manifestações e ficaríamos lado a lado para derrotar o racismo e o fascismo. Concordamos em servir sob seus planos de segurança, apoiando-nos ombro a ombro em muitas funções. JT: Como consequência do seu trabalho na Coalizão Arco-Íris original, você foi assediado por muitos anos pelo governo. Por que a Coalizão assustou tanto os poderes? HT: Eu acho que muito deste medo foi gerado pela maneira como os governos federal e local enxergavam os Panteras Negras e nós, indo além dos papéis a nós atribuídos na sociedade. No dia seguinte a consolidarmos nossa solidariedade e irmandade revolucionária, o FBI e seu Cointelpro ilegal começaram a vigiar os Jovens Patriotas. Eles já estavam cientes de nossa existência porque o Esquadrão Vermelho do Departamento de Polícia de Chicago vinha coletando informações sobre os Bons Companheiros e os Jovens Patriotas há anos. Eles estavam nos observando, em grande parte devido ao medo do prefeito Daley de que a Coalizão Arco-Íris apresentasse uma perspectiva real de diminuição de seu poder.

Nos documentos do FBI posteriormente abertos, está registrado que a Polícia de Chicago e o Bureau afirmavam claramente que os Panteras Negras eram a ameaça número um à segurança nacional, na visão do FBI, e que o Partido dos Panteras Negras havia recrutado outras organizações afins. O memorando do FBI de Chicago para J. Edgar Hoover identifica as duas organizações perigosas como os Jovens Senhores e os Jovens Patriotas. Hoover declarou, em um memorando separado, que havia um messias em ascensão em Chicago que tinha que ser eliminado. Todos na coalizão acreditavam que se tratava de Fred Hampton. Acredito que, se a Coalizão Arco-Íris original continuasse, teria sido uma força de destaque em Chicago, unindo milhares de pessoas pobres que geralmente lutavam contra ou evitavam umas às outras; um modelo para organizar e tomar o poder em Chicago e no resto do país. Daley e Hoover não estavam dispostos a deixar isso acontecer. Estudantes universitários protestando é algo fácil de obter. Mas comunidades pobres se unindo, especialmente brancos pobres se unindo a outros grupos raciais e minoritários que pregavam mudanças revolucionárias e socialismo, eram uma grande ameaça. A coalizão teve que ser controlada ou destruída. Acredito firmemente que o modelo [da Coalizão] Arco-Íris pode ser usado hoje se for efetivamente organizado. JT: O que vocês estavam pensando ao escolher a bandeira confederada como símbolo? À luz das controvérsias em torno da bandeira confederada no ano passado, você recomendaria tentar “recuperá-la” para o espírito de rebelião multirracial? HT: Nos anos ¹⁹⁶⁰, em Uptown e no sul, a bandeira “rebelde” confederada era encontrada na maioria dos bares, em adesivos de carros, roupas etc. Estava tão presente que era quase invisível. Muitos sulistas não a consideravam um símbolo de racismo, associado à escravidão, mas um símbolo da “Guerra da Agressão do Norte”. Os sulistas, antes e hoje, associam a bandeira à rebeldia. Rebeldia não no sentido de ser um soldado confederado, mas de ser “durão”, de se rebelar contra a autoridade. Queríamos conversar com brancos pobres sobre as condições de vida em Uptown e tentar envolvê-los nos Jovens Patriotas a fim de melhorar suas condições de vida. Muitas abordagens foram adotadas para iniciar o diálogo: com música country , debatendo a brutalidade policial, sexo etc. Mas os símbolos universais com os quais todos podiam se relacionar eram a bandeira americana e a bandeira confederada. Sabendo que a bandeira americana não demandaria muita conversa, a ideia voltou-se para a bandeira rebelde. Sabíamos que havia apenas alguns negros morando em Uptown e mostraríamos nosso respeito por eles tentando cobrir a bandeira quando os víssemos. Alguns negros que eram ativos em Uptown acreditavam que isso era necessário para alcançar os brancos e, sabendo que não estávamos usando a bandeira como um símbolo racista, concordavam que era uma boa maneira de aproveitá-la. Quando vestíamos a bandeira rebelde, colocávamos um bóton da campanha pela libertação de Huey, um dos Panteras Negras e um bóton de arco-íris ao redor da bandeira. Alguns tinham a bandeira bordada nas costas dos coletes

e outros em boinas. Isso provocou muitas conversas. Não tanto a bandeira quanto os outros bótons. Explicávamos os objetivos dos Jovens Patriotas e que todo o povo pobre vive a mesma pobreza, que os pobres negros, latinos, indígenas e asiáticos eram explorados e mantidos na pobreza pelo sistema capitalista. Depois de quebrar o gelo, conseguimos identificar suas necessidades e ajudá-los. Muitos ficaram surpresos ao saber que o Partido dos Panteras Negras desempenhou um papel importante na obtenção de pessoal e equipamentos médicos para a clínica de saúde dos Jovens Patriotas e forneciam comida para as crianças antes de irem para a escola. Ombreamos com a equipe de segurança dos Panteras, usando nossa bandeira. Com a bandeira confederada sendo cercada pelos bótons da campanha de libertação de Huey, dos Panteras Negras e da Coalizão, estávamos fazendo uma declaração ao prefeito Daley: “FODA-SE”, você não vai mais nos manter separados; seu plano de racismo e repressão fracassou. À medida que crescemos politicamente, em respeito aos Panteras Negras e aos Jovens Senhores, determinamos que não havia lugar no movimento ou no mundo para a bandeira confederada. Simboliza um período em que nossos irmãos e irmãs negros e negras eram mera propriedade a ser vendida ou destruída conforme a conveniência do homem branco. E que a bandeira Confederada foi criada para servir como um símbolo dos proprietários de plantações para perpetuar a escravidão. Eu não recomendaria o uso a nenhum grupo, nem a ninguém nem por qualquer finalidade, e acredito que ela deveria ser destruída, como uma homenagem àqueles que sofreram dores e angústias em um grande período sombrio de nossa história. JT: No momento, você está trabalhando muito para reiniciar a Organização dos Jovens Patriotas. Por que você acha que isso é necessário? HT: Acredito que os Jovens Patriotas são necessários para oferecer aos brancos um modelo com o qual possam se relacionar. Se você observar o país hoje e quantos brancos deveriam se envolver no trabalho para melhorar suas vidas, verá apenas uma pequena porcentagem muito ativa. Claro, vê-se mais brancos de classe média envolvidos no ativismo do que brancos pobres, porque eles têm o luxo do tempo livre e recursos financeiros. Mas mesmo estes estão diminuindo sob o sistema capitalista, que os está destruindo e os levando à pobreza. Eu gostaria de dizer que existe uma classe trabalhadora neste país, mas, mesmo que houvesse, ²⁸⁶ eles não poderiam viver do salário que ganham. A cada ano, sua condição econômica diminui cada vez mais. Algumas pessoas de classe média ficam nas mesmas filas, nos bancos de alimentos, que a classe pobre. Mas olhe para os pobres brancos que estão tentando ganhar a vida com um salário abaixo do salário mínimo. A maioria tem que trabalhar em dois ou três empregos sem, com isso, atingir seu sustento. Muitos perdem a esperança de fazer mudanças porque não têm um modelo com o qual possam se identificar. Os Jovens Patriotas, acredito, podem oferecer um modelo para o povo branco, provando-lhe que precisa lutar para realizar mudanças que afetem positivamente sua vida. Não apenas retórica intelectual, mas um modelo que funcionou no passado. Nosso programa afetou todos os aspectos de sua vida.

A Organização dos Jovens Patriotas existe para encontrar, apoiar, inspirar, oferecer recursos (incluindo programas de sobrevivência) e treinar moradores de comunidades pobres e da classe trabalhadora (independentemente de raça, idade, preferência [ sic ] sexual e sexo) para se tornarem líderes na tomada de decisões sobre as políticas que afetam suas vidas cotidianas, construindo sobre o trabalho de base estabelecido pela Coalizão Arco-Íris original e pela Organização dos Jovens Patriotas original. JT: Houve um número considerável de escritos da esquerda argumentando que os trabalhadores brancos nunca desempenharão um papel considerável nas lutas pela justiça social. Isso dificulta seu trabalho de organização? HT: Bem, antes de tudo, acho que, se as pessoas de esquerda têm tempo para sentar e escrever sobre como a classe trabalhadora nunca terá um peso considerável nas lutas contra as injustiças sociais, eu tomo isso como masturbação verbal. Ou eles não sabem como sair e se organizar, ou acham mais confortável ficar sentados e desencorajar aqueles que estão lutando para fazer mudanças. Não que eu seja o melhor organizador de todos os tempos, mas sei que é muito difícil ver as lutas do povo a partir de uma sala de aula. As pessoas comuns não entenderiam do que trata essa aula, aliás. Aqueles que realizam o trabalho organizativo diário deixam de lado esses grupos intelectuais, para que eles próprios descubram qual o papel que possuem na luta. JT: Atualmente, que lutas e campanhas organizadas você considera inspiradoras? HT: Localmente, admiro meus irmãos e irmãs em Chicago que estão travando muitas das mesmas batalhas que a Coalizão Arco-Íris original travou há cinquenta anos – contra a brutalidade policial, a gentrificação, a falta de moradia, o racismo, a desigualdade econômica, a corrupção e por uma reforma penitenciária. Estes são meus heróis e tenho a honra de conhecê-los. ²⁸³ Publicado em 26 de fevereiro de 2016 no portal virtual da editora Melville House. ²⁸⁴ Doença do pulmão negro ou antracose, também conhecida como pneumoconiose do mineiro. ²⁸⁵ A doença do pulmão marrom ou bissinose é causada pela poeira das fibras de algodão e afeta principalmente pessoas que trabalham na indústria do algodão sem ventilação adequada e máscara de proteção. ²⁸⁶ Esse comentário revela de forma cristalina a compreensão equivocada que tais movimentos detinham sobre a anatomia econômica da classe trabalhadora. Para eles, a “classe trabalhadora” paradigmática era aquela dos Estados de Bem-Estar Social, também conhecida na sociologia burguesa como “salariado”. Assim, diante de uma classe trabalhadora precarizada (como era a da época de Marx e, cada vez mais, a de nossos tempos), esses movimento concluíam que quase não havia classe trabalhadora nos EUA , excluindo dela todo o exército industrial de reserva e suas camadas mais exploradas.

O poder vermelho Leonard Peltier e a luta indígena por liberdade Por Michele Bollinger ²⁸⁷ Estou aqui hoje para falar sobre o prisioneiro federal número 89637-132 – homem chamado Leonard Peltier, um homem inocente que passou mais de 33 anos na prisão por um crime que não cometeu. Em 1977, ele foi condenado a duas prisões perpétuas consecutivas pela morte de dois agentes do FBI, Jack Coler e Ronald Williams, mortos em um tiroteio na Reserva de Pine Ridge, em Dakota do Sul, em junho de 1975. O caso de Peltier é uma das maiores farsas da moderna história judicial dos Estados Unidos – ao lado de Sacco e Vanzetti, ²⁸⁸ Julius e Ethel Rosenberg ²⁸⁹ e Mumia Abu-Jamal. ²⁹⁰ Leonard Peltier é um dos prisioneiros políticos mais antigos da sociedade americana. Sua acusação e condenação foram motivadas apenas por sua participação no Movimento Indígena Americano, também conhecido como AIM. Leonard Peltier foi vítima – por diversas vezes – do racismo que está embutido no sistema de justiça criminal dos Estados Unidos. Mas Leonard Peltier não é simplesmente uma vítima. Ele é um lutador, escritor, ativista, avô, candidato ao Prêmio Nobel da Paz e foi o candidato presidencial pelo Partido da Paz e da Liberdade em 2004. ²⁹¹ Leonard, seus amigos, familiares e camaradas lutaram por uma justiça real. Nos anos que se seguiram à sua condenação, milhões e milhões de pessoas em todo o mundo tomaram conhecimento de seu caso, concordam que ele é inocente e exigem sua liberdade. Isso se deve em parte ao famoso documentário Incidente em Oglala , dirigido por Michael Apted e narrado por Robert Redford, e ao livro best-seller nacional cuja publicação todo mundo – do FBI ao ex-governador de Dakota do Sul, Bill Janklow – tentou bloquear: No espírito do Cavalo Louco [ Crazy Horse ], de Peter Matthiessen. Essa luta teve seus altos e baixos. O ex-presidente Bill Clinton – um democrata que expandiu o sistema prisional e a pena de morte – recusou-se a conceder clemência a Peltier depois que centenas de agentes do FBI marcharam contra esta reivindicação em frente à Casa Branca, poupando todos os seus perdões para seus ricos benfeitores como Mark Rich. ²⁹² Foi um golpe doloroso para muitos que se mobilizaram em torno do caso de Peltier nos anos ¹⁹⁹⁰ – mas foi um reflexo claro da presidência de Clinton, que expandiu a pena de morte, inaugurou uma era de metas mínimas obrigatórias de condenações e políticas de tolerância zero, e terminou com mais de ² milhões de pessoas encarceradas. Após Clinton, os oito longos e dolorosos anos de ataques às liberdades civis pelo governo Bush, por meio da Lei Patriota ²⁹³ levaram, com razão, ao surgimento de novos casos, como o caso do dr. Sami Al-Arian, que passaram ao primeiro plano. Isso também significou que casos como o de Peltier foram levados às margens da consciência política, até certo ponto, mesmo entre ativistas.

Mas agora é fundamental retomar o impulso em torno do caso de Leonard Peltier, colocar seu nome de volta no centro da luta pela justiça neste país e radicalizar novos ativistas em torno de seu caso. É necessário defender perante um grande número de pessoas que buscam justiça há anos que o último capítulo dessa luta está longe de ser escrito. Leonard Peltier agora tem 64 anos, tem diabetes e outros problemas de saúde. Ele foi atacado e brutalmente espancado no início deste ano. Ele deve ser libertado. Essa luta não acabou; de fato, uma luta renovada e reenergizada pode ser travada e vencida. Leonard teve a primeira audiência completa para julgar sua libertação condicional no último verão, em 28 de julho. Centenas de apoiadores de Peltier se manifestaram do lado de fora enquanto a audiência estava ocorrendo. Com as novas nomeações do governo Obama para a Comissão Liberdade Condicional dos Estados Unidos, o Comitê de Defensiva-Ofensiva Leonard Peltier (LPDOC), que inclui sua irmã Betty Peltier-Solano, continua otimista sobre a possibilidade de conquistar a liberdade de Leonard. ²⁹⁴ Mas, dada a história e a dinâmica deste caso, uma coisa é certa: a vitória não nos será dada de mãos beijadas. O governo dos Estados Unidos se esforçou ao máximo para condenar Peltier e mantê-lo na prisão todos esses anos. Sua condenação e seu encarceramento não são apenas uma vingança pelas mortes de dois agentes do FBI, mas um aviso emitido pelo governo dos Estados Unidos a todos que fizeram parte e assumem as lutas da década de ¹⁹⁶⁰ como inspiração, especialmente o militante Movimento Indígena Americano e o movimento antiguerra, pela libertação nacional e as lutas do poder negro que o inspiraram e moldaram. Libertar Peltier é justificar o que os radicais argumentam há anos, que o verdadeiro criminoso dessa época era o governo dos Estados Unidos, por meio de seu assassino programa de contrainteligência do FBI conhecido como Cointelpro. Seguindo em frente, é fundamental entender por que Leonard Peltier foi preso indevidamente e por que o AIM foi recebido com uma repressão tão brutal. Nosso objetivo deve ser usar as lições desse trágico incidente para galvanizar a luta para libertar Leonard Peltier e todos os presos políticos como parte de uma ofensiva maior contra o sistema de justiça criminal. O incidente em Oglala Em 26 de junho de 1975, o que ficou conhecido como “Incidente em Oglala” ocorreu quando dois carros não identificados perseguiram um caminhão vermelho na propriedade dos Touro Saltitante [ Jumping Bull ] na Reserva de Pine Ridge, em Dakota do Sul. Do outro lado do campo, perto da estrada onde a perseguição ocorreu, estava o complexo onde a família Touro Saltitante morava e onde membros e famílias do AIM haviam montado acampamento. Quando os agentes – que não se identificaram – começaram a atirar sobre o rancho, Peltier e outros, que defendiam o complexo, revidaram, sem saber quem eram os homens ou o que queriam. Em questão de minutos, mais de 150 membros da equipe Swat do FBI, a polícia do Bureau de Assuntos Indígenas (BIA) e os esquadrões armados do governo tribal dos sioux ²⁹⁵ oglala, ²⁹⁶ conhecidos como Goons, haviam cercado o rancho. A resposta rápida levou muitos a acreditar que o incidente

foi uma provocação deliberada do FBI. Ambos agentes do FBI e um homem lakota, ²⁹⁷ Joe Killsright Stuntz, foram mortos. Ninguém nunca foi condenado pela morte de Joe Stuntz. De fato, apenas um grande jornal, no momento do incidente, ao menos o mencionou. A maior caçada da história do FBI a um homem se seguiu. Leonard Peltier tinha dois corréus, Bob Robideau e Dino Butler, que foram julgados e considerados inocentes após um vigoroso esforço de defesa do advogado radical William Kunstler. O julgamento deles foi um grande embaraço para o promotor federal, sem mencionar o FBI. Eles decidiram ir atrás de Peltier, que escapara para o Canadá, como vingança. A Constituição dos Estados Unidos garante o direito a um julgamento justo. Mas isso está longe do que Leonard Peltier conseguiu. Nesse julgamento, a defesa não teve permissão para apresentar a maioria das evidências que levaram o júri, no primeiro julgamento, a absolver Butler e Robideau, e a promotoria apresentou evidências fabricadas e testemunhos sob coação contra Peltier. A lista dos crimes cometidos pelo governo contra Peltier é longa. Ele mentiu, trapaceou e jogou a Constituição pela janela para garantir uma condenação. O governo dos Estados Unidos usou três depoimentos perjurados para forçar a extradição de Peltier do Canadá. Para garanti-lo, as autoridades federais ameaçaram e intimidaram descaradamente Murta Urso Pobre [ Myrtle Poor Bear ], a fonte desses depoimentos. Mais tarde, Urso Pobre se retratou inteiramente. O júri do julgamento de Peltier em fevereiro de 1976 em Fargo, Dakota do Norte, era todo branco; o governo usou o racismo e o medo para deliberadamente tornar o júri vulnerável a ataques – sequestrando-os desnecessariamente, por exemplo. O juiz, que realmente teve reuniões com o FBI durante o julgamento, decidiu constante e agressivamente em desfavor das objeções da defesa e se recusou a permitir que os advogados de Peltier arguissem a “legítima defesa” como seu argumento de defesa. Durante o julgamento, a promotora federal, Lynn Crooks, não apresentou quaisquer testemunhas que pudessem identificar Peltier como a pessoa que matou os agentes. A promotoria apresentou evidências falsas sobre a arma do crime; sustentaram que havia apenas uma AR-15 e que pertencia a Peltier. No entanto, havia muitos rifles AR-15 encontrados no local. O governo também ocultou evidências – relatórios críticos de balística que mostravam a arma que Peltier usava não podiam ser comparados ao invólucro de bala encontrado perto dos agentes mortos. Nada disso é contestado pelo governo dos Estados Unidos. Na audiência de apelação da década de 1980, o advogado do governo admitiu: “Tivemos um assassinato, tivemos inúmeros atiradores, não sabemos quem disparou especificamente quais tiros mortais... não sabemos, abre e fecha aspas, quem atirou nos agentes.” Embora o Tribunal [de Apelação] do Oitavo Circuito, ²⁹⁸ naquele momento, tenha descoberto que o júri no julgamento de Peltier o teria absolvido caso o FBI não tivesse retido certas evidências, recusou-se a conceder-lhe um novo julgamento. Esta é apenas uma visão geral das principais injustiças que coloriram o julgamento de Leonard. Os Estados Unidos da América não falharam com

Leonard Peltier apenas a partir de seu julgamento injusto em 1976. Toda a sua história de vida foi moldada pelo tratamento traiçoeiro dispensado aos indígenas neste país pelo governo. Ele nasceu em Grand Forks, Dakota do Norte, em 1944, filho de pais anishinaabe ²⁹⁹ e lakota, com raízes na poderosa nação sioux que outrora dominou as Grandes Planícies. Contexto histórico A Guerra Civil e a derrota da escravidão no Sul abriram um período de rápida expansão industrial capitalista nos Estados Unidos, que foi acompanhada por uma onda de construção de ferrovias e pela consolidação do controle do país sobre os territórios ocidentais que havia adquirido através da guerra e da conquista. A derrota pelo governo dos Estados Unidos dos índios das planícies, e especialmente dos sioux, foi absolutamente decisiva nesse processo. No entanto, certamente não foi uma luta fácil. Como diz o professor Ward Churchill, o Vietnã não foi a primeira guerra que os Estados Unidos perderam; na verdade, a primeira foi a famosa guerra da Nuvem Vermelha do chefe sioux oglala, no final da década de 1860. Como Dee Brown, autor de Enterrem meu coração na curva do rio [ Bury My Heart at Wounded Knee ], escreve: “Pela primeira vez em sua história, o governo dos Estados Unidos negociou uma paz que concedia tudo o que exigia o inimigo e que nada obtinha em troca”. O Tratado do Forte Laramie estabeleceu a Grande Reserva Sioux como a “terra natal dos lakota – centralizada nas sagradas Colinas Negras – reservada para uso e ocupação em exclusivos, em perpetuidade”. O Tratado do Forte Laramie era uma parte estabelecida da lei dos Estados Unidos – ratificada pelo Congresso em 16 de fevereiro de 1869. A reserva abrangia toda a área da atual Dakota do Sul a oeste do rio Missouri. Mas as Colinas Negras eram ricas em minerais, ouro e madeira, e os barões ladrões brancos as desejavam. Garimpeiros começaram a violar o tratado quase imediatamente. A Expedição das Colinas Negras, do general George Armstrong Custer, em 1874, abriu a região a uma enorme corrida ao ouro. O ajudante e cunhado de Custer, tenente James Calhoun, escreveu em seu diário que Custer “expressou em muitas ocasiões um desejo de explorar as Colinas Negras, acreditando que abriria uma rica veia de riqueza, concebida para aumentar a prosperidade comercial deste país”. Havia dinheiro a ser ganho – rapidamente. Segundo Matthiessen, em 1877, “a Mina de Ouro Homestake, de George Hearst, foi estabelecida em Lead, nas colinas do norte; em dois anos, a mina Homestake apareceu na NYSE [Bolsa de Valores de Nova York] e, em dez, um investimento de 10 mil dólares valia 6 milhões – um milhão a mais do que o oferecido por todas as Colinas Negras”. Os lakota não estavam interessados em fazer acordos e não concebiam essas colinas sagradas como algo que poderia ser comprado ou vendido. O coronel John E. Smith notou que essa era “a única parte [da reserva] que lhes valia alguma coisa” e concluiu que “nada menos que a sua aniquilação será necessária para obtê-la”.

Essa chamada “raça esbanjadora de selvagens” (como os lakota foram referidos durante uma sessão congressual), sob a liderança de Touro Sentado [ Sitting Bull ] e Cavalo Louco, conseguiu matar George Armstrong Custer e derrotar a Sétima Cavalaria na famosa Batalha de Little Bighorn, em julho de 1876. Mas eles não conseguiram deter o avanço do capitalismo americano. Tanto Touro Sentado quanto Cavalo Louco foram assassinados. No final de 1800, os Estados Unidos haviam quebrado completamente o Tratado do Forte Laramie e toda a área foi inundada por missionários e empresas de mineração. Segundo o historiador indígena Vine Deloria, “as propriedades indígenas foram reduzidas de 138 milhões de acres em 1887 para 48 milhões em 1934. Desses 48 milhões de acres, quase 20 milhões eram inúteis para a agricultura”. A política oficial passou a ser “civilizar” os povos indígenas e acabar com sua existência como entidades separadas, “assimilando-os” à sociedade branca. A classe dominante americana foi honesta em relação a seus objetivos, como deixa claro o Relatório do Comissário para Assuntos Indígenas de 1889: “O índio deve obedecer aos costumes do homem branco, pacificamente, se for o caso, forçosamente, se for o caso. Essa civilização pode não ser a melhor possível, mas é a melhor que os índios podem obter. Eles não podem escapar e devem obedecê-la ou ser esmagados por ela”. A Lei Dawes, de 1887, destruiu legalmente a propriedade comunal das terras, permitindo que o governo dos Estados Unidos dividisse terras tribais em parcelas privadas e criminalizasse a cultura e a religião indígenas. As crianças indígenas foram levadas para internatos brutais, quase militares, que cortavam seus cabelos e proibiam estritamente o uso de seus próprios idiomas. Teddy Roosevelt – cujo rosto foi esculpido em uma montanha roubada, hoje conhecida como Monte Rushmore – celebrou a Lei Dawes como “um poderoso motor de pulverização para romper a massa tribal”. A lei reservou uma quantidade limitada de terras a serem divididas individualmente entre membros de tribos, como lotes particulares, liberando o restante para ser declarado como “excedente”. Nos primeiros treze anos da Lei Dawes, os Estados Unidos ocuparam mais de 28 milhões de acres adicionais de terras nativas “excedentes”. O golpe final nos sioux lakota foi o massacre em Wounded Knee, ³⁰⁰ em ¹⁸⁹⁰, onde trezentos lakota, principalmente mulheres e crianças, foram massacradas pela Sétima Cavalaria e enterrados sem cerimônia em uma vala comum. A partir de então, as várias subtribos lakota foram deixadas com as cinco pequenas reservas como as que conhecemos hoje, incluindo Pine Ridge, administrada pelo bastante odiado Bureau de Assuntos Indígenas (BIA). Essas reservas tornaram-se bolsões de profundo desespero e pobreza. A Lei de Reorganização Indígena, de 1934, conhecida como “Novo Acordo Indígena”, ³⁰¹ anulou as disposições de privatização de terras da Lei Dawes, estabelecendo um certo grau de autogoverno tribal e liberdade religiosa, além de fornecer alguns escassos fundos federais para as nações indígena a fim de viabilizar a reconstrução de suas bases. No entanto, a lei não fez nada para restaurar os milhões de acres de terras indígenas perdidas e tornou os homens nativos americanos elegíveis para o recrutamento militar. Depois

disso, o governo dos Estados Unidos negociou com os conselhos tribais; os representantes nesses conselhos e suas políticas foram baseados no voto da maioria, mesmo que a participação tenha sido de apenas ¹⁵%, como ocorreu em uma eleição hopi. ³⁰² Além disso, todas as decisões tribais estavam sujeitas à aprovação do secretário do Interior. O período pós-Segunda Guerra Mundial abriu uma nova era de roubo de terras indígenas. Após Washington emergir da guerra como o império industrial mais poderoso do mundo, as empresas americanas observaram com avidez as terras tribais restantes sob as quais havia ricos depósitos de carvão, petróleo e urânio. Na década de 1960, empresas como Peabody Coal, Union Carbide, Chevron, Philips Uranium ³⁰³ e inúmeras outras haviam adentrado, de um modo ou de outro, nas reservas. Algumas foram convidadas pelos conselhos tribais – usando suborno e pressão – para ressentimento de muitos. Porém, muitas outras chegaram lá por meio das políticas de “terminação” e “realocação” desenvolvidas e executadas na segunda metade da década de ¹⁹⁵⁰. A tendência foi definida por Dillon S. Myer, o homem encarregado dos campos de internação de japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Como chefe do BIA de 1950 a 1952, Myer interferiu nas eleições de conselhos tribais, vendeu terras indígenas sem o consentimento tribal e apoiou os esforços dos brancos para se apropriar de mais territórios. A terminação foi um processo pelo qual o governo Eisenhower, voltando à política de assimilação, encerrou seus relacionamentos (incluindo suas obrigações de tratado) com as tribos e as entregou aos estados locais. Entre 1954 e 1960, quinze tribos foram terminadas, afetando mais de 40 mil indígenas, que perderam seu status tribal. Esses indígenas tornaram-se vítimas de truques, suborno e coerção, que os privaram ainda mais da pouca terra que lhes restava. O fundamental no êxito da política de terminação (do ponto de vista do governo) foi o “des-estabelecimento” das reservas – realocando os indígenas. A partir de 1952, o governo, contando com o desespero das pessoas nas reservas, mentiu e pressionou-as a se mudarem para áreas urbanas onde lhes foram prometidos empregos e moradia. Para promover esses programas de realocação, o governo dos Estados Unidos recusou licenças para a construção de hospitais e escolas em áreas tribais e reduziu o fornecimento de alimentos e mercadorias às tribos. A política de realocação criou uma concentração de indígenas em bairros urbanos pobres, sujeitos às misérias da brutalidade policial e da pobreza. Muitos foram forçados pela pobreza a vender os lotes que haviam recebido em decorrência da Lei Dawes. Mas, em meados da década de 1960, a realocação teve outras consequências não intencionais. Reuniu pessoas de diferentes tribos, o que levou a um interesse renovado pela cultura e incentivou a consciência panindígena. E colocou jovens nativos americanos nas próprias cidades, comunidades e, em alguns casos, campi , em meio ao surto de radicalismo dos anos 1960. Leonard Peltier

Cada um desses fatores moldou a vida de Leonard Peltier. Quando criança, ele morava com os avós na Reserva de Turtle Mountain, em Dakota do Norte, em uma pequena casa sem água e eletricidade. Eles mal tinham o suficiente para comer, trabalhando nos campos de batata por baixos salários. Em 1953, como dezenas de milhares de outras crianças nativas americanas, um grande carro preto do governo chegou e levou Leonard e outras crianças para o internato do BIA em Wahpeton, Dakota do Norte, onde ele foi atormentado, disciplinado, teve o cabelo cortado e foi borrifado com DDT. ³⁰⁴ Considero meus anos em Wahpeton minha primeira prisão, [escreve Leonard] e pelo mesmo crime: ser indígena. Nós tínhamos que falar em inglês. Éramos espancados se fôssemos pegos falando nossa própria língua. Ainda assim, nós o fazíamos. Nós nos escondíamos atrás dos prédios, da mesma forma que as crianças hoje se escondem atrás da escola para fumar, e conversávamos uns com os outros em indígena. Acho que foi aí que me tornei um “criminoso endurecido”, como o FBI me chama. E você poderia dizer que a primeira infração na minha carreira criminal foi falar minha própria língua. Aqui está, um ato de violência para você! Depois de sobreviver ao colégio interno do BIA, Leonard não tinha nem 15 anos quando foi preso pela polícia do Bureau deixando com os amigos o local de uma Dança do Sol. Foi preso mais uma vez alguns meses depois por retirar um pouco de diesel de um caminhão do exército para aquecer a casa gelada de sua avó. Não foi surpresa, portanto, que em 1959 Leonard “se realocasse” em Portland para se juntar à sua mãe, onde trabalhou na construção e em outros empregos. Ele até mesmo era coproprietário de uma oficina de automóveis em Seattle, que faliu quando começaram a fazer trabalhos de graça para amigos. Como ele lembrou, “em pouco tempo ficamos tão endividados que tivemos que fechar a loja. Minha única tentativa de capitalismo terminou, afundada pela velha fraqueza indígena: compartilhar com os outros. É uma prática que significa que somos ricos como povo, mas pobres como indivíduos”. Leonard sintonizava-se cada vez mais às lutas que emergiam ao seu redor, como as lutas pelos direitos de pesca no Estado de Washington. “Embora eu fosse jovem, senti que não podia mais ignorar a luta dos nativos enquanto um só indígena estivesse sendo maltratado. Como tantos outros que foram arrancados à submissão, letargia e indiferença durante a década de 1960, entrei na luta pelos direitos civis, humanos e indígenas.” Raízes do AIM Os movimentos pelos direitos civis e pelo poder negro forneceram o pano de fundo para uma ascensão da militância indígena, que cresceu e se desenvolveu paralelamente a eles. As condições estavam maduras para esse tipo de luta. Os movimentos pela independência e descolonização na África e na Ásia, bem como a luta de libertação nacional no Vietnã, prepararam o terreno para que os nativos

americanos desafiassem as políticas do governo dos Estados Unidos. Em seu livro Custer morreu pelos seus pecados , o célebre autor sioux Vine Deloria observou que “o presidente Lyndon Johnson falou sobre o ‘comprometimento’ da América e o presidente Nixon falou sobre o fracasso da Rússia em respeitar os tratados. Os indígenas rolam de rir quando escutam essas declarações”. Afinal, para citar Howard Zinn, “o governo dos Estados Unidos assinou mais de quatrocentos tratados com os indígenas e violou cada um deles”. A organização política dos nativos americanos no início dos anos 1960 consistia em organizações moderadas, como o Congresso Nacional dos Indígenas Americanos (NCAI), que se tornaram menos acomodadas ao longo dos anos 1960 – não muito diferente da NAACP. ³⁰⁵ Em ¹⁹⁶¹, um grupo de estudantes em processo de radicalização, liderado por Clyde Warrior – que havia, no verão, trabalhado em um projeto de educação de eleitores do Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil (SNCC) – separou-se da NCAI e formou o Conselho Nacional da Juventude Indígena (NIYC). O NIYC condenou o BIA como uma instituição colonialista branca e começou a discutir o “poder vermelho” nas páginas de seu jornal, o ABC (Americanos Antes de Colombo). Ao longo da década de 1960, uma onda de lutas menores se desdobrou principalmente nas áreas indígenas das principais cidades e em campi como o da Universidade Estadual de San Francisco. LaNada Boyer, a primeira estudante indígena americana em Berkeley, liderou uma luta por um departamento de estudos ameríndios. Também ocorreram outras batalhas importantes, a saber, os “pescaços” ³⁰⁶ ocorridos no estado de Washington, promovidos pelas tribos locais que exigiam seus direitos tradicionais de pescar salmão e truta prateada, como garantido pelos tratados assinados na década de ¹⁸⁵⁰. Claramente, havia uma abertura para ações em uma escala muito maior e que podia trazer à tona questões maiores sobre a soberania e a dignidade indígenas. A faísca imediata que criou o Movimento Indígena Americano começou com a ocupação da Ilha de Alcatraz. Em novembro de 1969, 68 pessoas, a maioria delas parte do grupo Indígenas de Todas as Tribos (IAT), ocuparam a Ilha de Alcatraz, na baía de San Francisco. O IAT exigiu o título de Alcatraz e, no interesse de ser justo, ofereceu-se para “comprar Alcatraz por 24 dólares em contas de vidro e tecido… nossa oferta de 1,24 dólares por acre é maior que os 47 [centavos] por acre que os homens brancos estão pagando agora aos indígenas da Califórnia por suas terras (através da ICC)”. ³⁰⁷ A ocupação de Alcatraz durou dezenove meses e mais de ⁵.⁶⁰⁰ indígenas americanos aderiram à ocupação – alguns pelos dezoito meses e outros por apenas parte de um dia. A ação foi recebida por um apoio torrencial, tanto político quanto material, e tornou-se manchete por meses, embora, eventualmente, os ocupantes tenham sido removidos da Ilha. Diversos ativistas indígenas, alguns que mais tarde se tornaram conhecidos no movimento, lideraram e participaram da ocupação – por exemplo, Richard Oakes, LaNada Boyer, Grace Thorpe, John Trudell e Russell Means. A ocupação, embora não tenha alcançado seus objetivos de estabelecer um museu e um centro cultural indígena na ilha, trouxe atenção nacionalmente

às questões e preocupações dos indígenas americanos. Mas o IAT não foi capaz de se projetar no palco nacional que suas próprias ações haviam preparado. O Movimento Indígena Americano (AIM) assumiu esse papel. Foi fundado em Minneapolis em 1968 por um grupo de anishinabes urbanos, incluindo Clyde Bellecourt, Mary Jane Wilson, Eddie Benton e Dennis Banks. Clyde e Eddie, na verdade, se conheceram na Penitenciária Federal de Minnesota e organizaram nativo-americanos residentes em Minneapolis e St. Paul. A princípio, o AIM se organizou em torno da demanda por empregos, moradia e contra o assédio policial. No final da década de 1960, o rendimento familiar anual de uma família de indígenas americanos era de 1.500 dólares – um quarto da média nacional. A expectativa de vida dos nativo-americanos era de 44 anos – 21 anos abaixo da média nacional. O AIM rapidamente decolou, com seções brotando por todo o país enquanto organizavam uma série de ações críticas, ousadas e polarizadoras – até que foi confrontado por uma cruel repressão do governo, que culminou na condenação e prisão de Peltier. Leonard Peltier se tornou ativista quando morava em Seattle, participando em 1970 da ocupação do Forte Lawton, uma instalação militar abandonada. A ação foi diretamente inspirada pelos eventos de Alcatraz. Alguns meses depois, Peltier ingressou na seção do AIM em Denver. O próprio AIM extraiu inspiração, ideias e táticas do Partido dos Panteras Negras para autodefesa – isso era bastante consciente nas mentes de seus principais membros, como Dennis Banks e Russell Means. A organização era composta por nativo-americanos em áreas urbanas (Minneapolis, Seattle, Cleveland e a Área da Baía [de San Francisco]), mas com laços muito fortes com as reservas. O AIM tinha a classe trabalhadora em seu núcleo, embora também, frequentemente, pessoas às margens da classe trabalhadora, como trabalhadores desempregados e muitos veteranos da Guerra do Vietnã. Eles estavam frequentemente armados. Tinham que estar. Dakota do Sul era conhecida como o “Mississippi do Norte”, em parte por causa da extrema pobreza – na Reserva sioux de Pine Ridge, a expectativa de vida era de apenas 46 anos (até hoje, Pine Ridge ainda tem taxas de 60-80% de desemprego e 69% dos que lá vivem estão abaixo da linha da pobreza oficial). Mas também era chamada de “Mississippi do Norte” por causa da violência racista que lá se enfrentava. Assim como as vítimas do sul de Jim Crow, como Emmitt Till, Pine Ridge teve suas vítimas de violência racista, especialmente nas cidades fronteiriças, profundamente intolerantes, que atacavam as comunidades indígenas. Um desses incidentes – o assassinato racista de um sioux em uma cidade branca perto de Pine Ridge – impulsionou o primeiro envolvimento ativista do AIM nesta área. Em janeiro de 1972, Raymond Trovão Amarelo [ Yellow Thunder ], de 51 anos, foi brutalmente espancado por quatro racistas brancos; foi insultado, humilhado, despido e enfiado no porta-malas de um carro, sendo conduzido por horas, exposto nu em um salão de baile da Legião Americana em Gordon, Nebraska, e depois atirado ao relento na noite fria. Na sequência

ele desapareceu, apenas para ser encontrado morto em seu carro uma semana depois. Perturbada, a família de Trovão Amarelo procurou por ele por uma semana e, a princípio, não teve permissão para ver seu corpo. Eles procuraram assistência por toda parte que puderam, inclusive por parte da polícia, do BIA e do governo tribal, na esperança de que haveria uma investigação sobre a morte de Trovão Amarelo, mas não obtiveram nenhuma. Severt Urso Jovem [ Young Bear ], um sobrinho de Raymond, contatou o AIM. Esta foi a primeira grande ação do AIM em uma reserva. Eles mobilizaram 1.400 pessoas, principalmente lakotas das reservas de Pine Ridge e Rosebud – com oitenta tribos representadas no total – e ocuparam Gordon, Nebraska, paralisando a cidade por três dias. Um milhão de dólares do dinheiro do governo tribal dos sioux oglala foi transferido dos bancos de Gordon. Em resposta, o estado de Nebraska, o Departamento de Justiça e o Departamento do Interior concordaram em investigar a morte de Trovão Amarelo. Em janeiro de 1973, um frentista de posto de gasolina branco, conhecido localmente como “Cachorro Louco” esfaqueou e matou Wesley Touro Coração Mau [ Bad Heart Bull ]. Depois que o agressor foi acusado de homicídio culposo, ³⁰⁸ a mãe de Wesley, Sarah Touro Coração Mau, procurou o AIM em busca de ajuda. Duzentos apoiadores do AIM apareceram em um tribunal em Custer, Dakota do Sul, para uma reunião com as autoridades. Os manifestantes encontraram o local repleto de policiais. Quando as autoridades cancelaram a reunião, o inferno começou. “Enquanto Touro Coração Mau tentava passar pela multidão e entrar no tribunal”, explica Russell Means, “policiais a empurraram escada abaixo, usando um cassetete em sua garganta.” O incidente foi o sinal para a polícia começar a repressão. Na confusão, dois carros da polícia foram virados e queimados. Dennis Banks e Russell Means foram acusados de tumulto. Sarah Touro Coração Mau recebeu uma sentença de três a cinco anos pelo mesmo motivo e esteve presa por cinco meses. O assassino de seu filho, em contraste irônico, recebeu apenas dois meses de liberdade condicional e não foi preso. Após o tumulto, o procurador-geral dos Estados Unidos designou 65 delegados federais ³⁰⁹ para Pine Ridge. Por que uma presença federal tão pesada? Segundo Peter Matthiessen, “as autoridades estatais e governamentais estavam menos preocupadas com a lei e a ordem do que com o obstáculo aos contratos de arrendamento de mineração das Colinas Negras que a insistência do AIM na soberania indígena poderia representar”. No entanto, essas batalhas aprofundaram as conexões do AIM com as reservas, construindo essencialmente uma base de membros ativos. Além disso, elas demonstraram claramente que havia poder por meio da luta e que o povo podia vencer. Esses eventos também prepararam o terreno para as ações de alto perfil do AIM que colocaram o movimento em confronto direto com o governo federal. Outras ações espetaculares do AIM se seguiram a estas. Naquilo que ficou conhecido como a Trilha dos Tratados Quebrados, uma caravana de

centenas de nativos americanos veio a Washington protestar. Depois de serem provocados e ameaçados por funcionários do governo e pela polícia, eles ocuparam o prédio do Bureau de Assuntos Indígenas. Mais tarde, veio a histórica Ocupação de Wounded Knee . Trilha de Tratados Quebrados A AIM organizou a caravana Trilha dos Tratados Quebrados em novembro de 1972. Os participantes viajaram de todo o país. A caravana parou em cidades e reservas ao longo do caminho e realizou reuniões e comícios políticos. Em St. Paul, a caravana convergiu e os participantes esboçaram uma proposta de vinte pontos de demandas sociais, econômicas e políticas a serem apresentadas à Casa Branca. Mas os presságios não eram bons. Um memorando do Deparamento do Interior – do qual os participantes da caravana haviam tido notícia antes de chegarem – instruía os funcionários do BIA a não oferecer assistência à caravana. No final do primeiro dia em Washington, quatrocentos nativos americanos haviam chegado, incluindo Leonard Peltier. Eles fizeram contato com o escritório do vice-presidente Agnew e tinham a certeza de que seriam recebidos com seriedade e respeito. Mas os presentes enfrentaram problemas imediatamente. O Serviço de Parques Nacionais se recusou a permitir que os indígenas realizassem uma cerimônia religiosa no túmulo do veterano de Iwo Jima, Ira Hayes, no cemitério de Arlington. O BIA acabara de gastar 50 mil dólares hospedando presidentes tribais, mas se recusou a oferecer qualquer apoio financeiro, mesmo quando as hospedagens reservadas pela Trilha sofreram reveses. Irritados e sem acomodações adequadas, os participantes da Trilha decidiram descer até o prédio do BIA. Eles foram informados de que poderiam permanecer no auditório do BIA até encontrarem acomodações adequadas. Antes da finalização dos arranjos, no entanto, a polícia chegou e ordenou que os indígenas fossem embora. Após uma feroz batalha de cinco minutos, a polícia se viu do lado de fora do prédio, com a entrada fechada por uma barricada feita pelos indígenas, que, naquele momento, somavam mil. Segundo os historiadores Paul Chaat Smith e Robert Allen Warrior, “os indígenas desenrolaram uma faixa na qual se lia EMBAIXADA NATIVO-AMERICANA na fachada do prédio do BIA. Uma tenda ergueu-se no gramado, em frente ao território liberado”. Se Alcatraz parecia transbordar um desastre em potencial, [escrevem Smith e Warrior] essa repentina rebelião em Washington continha possibilidades catastróficas que beiravam o surreal. Cinco dias antes da eleição presidencial, os revolucionários indígenas sitiavam um prédio governamental a seis quarteirões da Casa Branca, jurando morrer a se render. As baixas, se chegasse a isso, provavelmente incluíram o contingente de crianças e idosos na Trilha.

Fora do prédio havia muita solidariedade. Muitos pararam para deixar comida e suprimentos. Alguns funcionários indígenas do BIA apareceram para participar. Celebridades como dr. Spock e líderes negros como Stokely Carmichael vieram oferecer seu apoio. “Um círculo de partidários negros, brancos e chicanos deu os braços, formando uma barricada humana”. Mas a conservadora Organização Nacional dos Presidentes Tribais denunciou a ocupação. A ocupação começou com grande unidade e energia. Ao fim, no entanto, os ocupantes famintos, frustrados e exaustos explodiram em uma fúria derradeira de destruição contra o BIA e seu prédio, causando mais de milhões de dólares em danos. Agentes provocadores ventilaram as chamas da destruição. Finalmente, em vez de atacar, como ameaçara fazer repetidamente, o governo foi forçado a negociar. Os líderes do AIM, incluindo Clyde Bellecourt, Russell Means, Dennis Banks e Hank Adams, e alguns anciãos se reuniram com representantes do governo Nixon. O acordo para encerrar a ocupação incluía três pontos principais que logo seriam quebrados: nenhuma ação legal contra os ocupantes; reformar a relação do governo dos Estados Unidos com o povo indígenas para melhor responder às necessidades destes; e analisar e responder à proposta de vinte pontos no prazo de trinta dias. As negociações garantiram uma compensação para viagem (66 mil dólares) e uma escolta policial para fora da cidade. Mas eles também levaram com eles um pouco mais – notadamente, algumas toneladas de arquivos do BIA que verificavam tudo, desde casos de má conduta governamental, conflito de interesses no BIA (como o secretário do interior assistente, que foi trabalhar para a Peabody Coal alguns anos depois), a identidade de informantes do FBI, incluindo agentes envolvidos na caravana, e documentos que comprovam a esterilização forçada de mulheres nativas americanas. Este foi descrito como o maior roubo de documentos da história. Um subcomitê da Câmara disse que a ação do AIM foi “o dano mais grave infligido a Washington desde que os britânicos queimaram a cidade na Guerra de 1812”. Mas o governo federal tinha um número substancial de agentes entre os manifestantes que haviam incentivado a destruição. Assim, ficou claro por que o governo estava tão disposto a concordar em não processar os indígenas, pois, nas palavras de Vine Deloria, teria sido “extremamente difícil para o governo provar a intenção dos verdadeiros ativistas indígenas de destruir o prédio”. A partir desta luta, o FBI e o BIA intensificaram sua guerra contra o AIM e os nativos americanos, voltando ao AIM seu notório programa de contrainteligência, ou Cointelpro, e também nas eleições tribais de 1972 dos sioux oglala, jogando o peso de seu apoio no homem-forte Dick Wilson para a presidência tribal, esperando que uma “forte retaliação indígena” contra o AIM e seus apoiadores pudesse conter a crescente militância indígena. Wounded Knee

Dick Wilson, ex-contrabandista de bebidas, foi eleito presidente do conselho tribal dos sioux oglala em 1972. Wilson era profundamente impopular por causa de seus maus-tratos a idosos e povos tradicionais na reserva, por seus métodos antidemocráticos e o nepotismo e a corrupção desenfreados que infestavam sua administração. Ele era famoso por desviar dinheiro da Habitação e Desenvolvimento Urbano e usar fundos indevidamente, além de negligenciar todas outras questões na reserva. Wilson usou fundos federais para iniciar o que alguns chamavam de grupo paramilitar e o que se tornou um esquadrão da morte em potencial. Petulante, Wilson apenas nomeou sua gangue armada de Guardiões da Nação Oglala (Goon) depois que residentes irritados de Pine Ridge já os chamava há tempos de “esquadrão de capangas”. ³¹⁰ Os Goons perseguiam qualquer um que se manifestasse contra Wilson, usando violência, assédio e intimidação para manter sua ditadura. No início, a resistência a Wilson foi organizada por meio da Organização dos Direitos Civis Sioux Oglala (Oscro), que organizou petições de impeachment (uma das quais tinha mais assinaturas do que o número de pessoas que votaram nele) e solicitou formalmente audiências sobre os pedidos múltiplas vezes, mobilizando centenas de pessoas para essas audiências. Elas se tornaram uma farsa, no entanto, quando o próprio Wilson decidiu presidi-las. Foi nessa altura que uma reunião de duzentos membros da Oscro e anciãos tradicionais, incluindo o chefe tradicionalista Frank Engana Corvo [ Fools Crow ], decidiram convidar o AIM para ajudá-los em sua luta. Os discursos de mulheres como Ellen Moves Camp e Gladys Bissonette foram decisivos na reunião. Depois de fazerem um discurso em lakota, elas se voltaram para os líderes do AIM presentes na reunião e apelaram para que trouxessem seus membros para Pine Ridge. “Durante muitos anos, não lutamos nenhum tipo de guerra”, disse uma delas, “e nós esquecemos como lutar.” O AIM sabia no que estava se metendo; Wilson havia emitido incontáveis ameaças em comunicados à imprensa de que eles atirariam e matariam membros da AIM que viessem para Pine Ridge. A decisão nesta reunião foi que levou à impressionante ocupação de 71 dias de Wounded Knee, em 1973. Em 27 de fevereiro de 1973, uma caravana de cerca de trezentos ativistas armados sioux oglala e do AIM entrou na cidade de Wounded Knee e a declarou território liberado. Eles assumiram o entreposto comercial, a igreja, bloquearam todas as estradas e tomaram vários reféns brancos. À frente da iniciativa estavam Leonard Cão Corvo [ Crow Dog ], Carter Camp, Madonna Falcão Trovão [ Thunder Hawk ], Russell Means e Dennis Banks. “Este foi o renascimento de nossa dignidade e de nosso orgulho”, disse Russell Means sobre a ocupação. Dennis Banks disse: “A mensagem emitida é que um grupo de indígenas poderia confrontar o governo dos Estados Unidos. Tecumseh ³¹¹ teve seu dia, Gerônimo, ³¹² Touro Sentado, Cavalo Louco. Nós tivemos o nosso”. Suas demandas eram simples e incluíam a investigação da corrupção no governo tribal da reserva e a exigência de que o Congresso realizasse audiências sobre os tratados quebrados. A resposta do governo dos Estados Unidos foi esmagadora: em poucas horas, duzentos agentes do FBI, delegados federais e policiais do BIA

cercaram e bloquearam a cidade, usando dois veículos blindados de transporte de pessoal e dois aviões de combate em sua operação – aos quais se somaram, mais tarde, mais quinze veículos blindados, autorizados pelo exército dos Estados Unidos. Os soldados do exército, disfarçando sua presença por meio de roupas civis, desempenharam um papel central no cerco. Os dois senadores de Dakota do Sul, George McGovern e James Abourezk, chegaram a negociar a libertação dos reféns, apenas para descobrir que os reféns, simpáticos aos indígenas, estavam livres para ir e vir como quisessem. Um refém de 82 anos disse aos repórteres que eles decidiram ficar para proteger os ativistas do AIM, que eles temiam que seriam mortos pelas tropas caso saíssem. O governo imediatamente rejeitou as demandas dos ocupantes, enviando, por meio de funcionários de nível médio, um ultimato para que eles partissem. O AIM queimou a mensagem na frente de um monte de câmeras de TV. A essa altura, Wounded Knee estava no noticiário noturno, e pesquisas mostravam que 90% dos americanos acompanhavam de perto o incidente. Uma delegação liderada por Leonard Engana Corvo se dirigiu às Nações Unidas. Marlon Brando, que havia participado de um dos eventos de “pescaços” no Noroeste Pacífico, recusou-se a aceitar seu Oscar de melhor ator em O poderoso chefão , enviando a atriz apache Sacheen Penapequena [ Littlefeather ] para recusar o Oscar em seu nome. Com o escândalo de Watergate em andamento, o governo federal não queria parecer pior do que já parecia, especialmente no mesmo local do massacre de 1890. Em 8 de março, desobstruiu as estradas e esperou que a ocupação se esgotasse. Em vez disso, centenas de apoiadores e uma grande quantidade de suprimentos chegaram, e os ocupantes se autodeclararam como a Nação Independente Oglala. Alguns dos sioux locais partiram, sendo substituídos por indígenas de outras nações, bem como por brancos de esquerda, veteranos, ativistas chicanos e um pequeno número de participantes asiáticos e negros. Vários milhares de pessoas se juntaram à ocupação, fosse por um dia ou por muito mais. O bloqueio foi restabelecido em termos ainda mais duros e Wounded Knee sofreu um severo ataque. A ocupação defrontou-se com repressão de agentes do FBI e de delegados federais, bem como de Dick Wilson e seus Goons, que ficaram furiosos porque os federais não desencadearam um ataque total desde o início. Na verdade, eles atiravam sobre os dois campos, para tentar iniciar um tiroteio. Não demorou muito para que os federais o fizessem. Como o ex-chefe do FBI Joseph Trimbach se gabou nos anos seguintes: “O diretor disse, diga a Trimbach que ele pode ter o que quiser! O que foi bem legal, porque era como ter um cheque em branco. Mandei os agentes subirem para Rapid City e comprarem todos os rifles que pudessem encontrar.”

A resposta militar foi esmagadora. Meio milhão de tiros foram disparados contra Wounded Knee, incluindo alguns de uma metralhadora de calibre 50 que disparava projéteis de duas polegadas de diâmetro; aviões de combate pairavam sobre suas cabeças e veículos blindados vagavam pelo perímetro. O governo cortou a energia e a água, e expulsou a mídia sob a mira de armas. Apesar das condições horríveis – escassez de alimentos e uma tempestade de fim de inverno – os ocupantes se mantiveram firmes. A ocupação recebeu apoio de nativos americanos em todo o país e de outras nações indígenas inspiradas por seu exemplo. Uma delegação de chefes das Seis Nações da Confederação Iroqueses chegou em 19 de março para prestar seu apoio. Uma declaração do Grande Conselho dos Iroqueses interpelava o governo dos Estados Unidos: “Vocês estão preocupados com a destruição de propriedade no edifício do BIA e em Wounded Knee. Onde está sua preocupação pela destruição de nosso povo, pela vida humana?”. O governo se preocupava com a possibilidade de Wounded Knee se tornar um exemplo que outros seguiriam. Um oficial de alto escalão do BIA expressou, alarmado, sua opinião de que Wounded Knee “cristalizou um movimento revolucionário nos Estados Unidos”. As forças federais escalaram suas táticas, tentando desestabilizar a ocupação por dentro e atacá-la também por fora. Dois homens, Frank Clearwater e Buddy Lamont, um veterano do Vietnã, foram baleados e mortos durante tiroteios nos quais agentes federais despejaram milhares de tiros em Wounded Knee. Frank Clearwater acabara de chegar a Wounded Knee com sua esposa para oferecer seu apoio. Ele foi atingido por uma bala perdida que atravessou a igreja local, onde ele estava descansando; Buddy Lamont, um sioux oglala e veterano do Vietnã muito estimado em Pine Ridge, foi atingido por um atirador de elite. Seus bisavós haviam estado com Cavalo Louco na batalha de Little Bighorn e sua avó fora uma das poucas a sobreviver ao massacre de 1890 em Wounded Knee. Sem eletricidade, água, com minguantes suprimentos de comida e, em seguida, atingidos por um incêndio devastador, que queimou o entreposto comercial – junto com as prisões coordenadas de vários líderes do AIM que estavam em turnê pelo país levantando apoio – a ocupação alcançou seu ponto de exaustão no fim de abril. Após 71 dias, em 8 de maio, o AIM concordou – a pedido de Engana Corvo – em encerrá-la. Os militantes foram desarmados e 120 foram presos. Na noite anterior, dezenas de pessoas escaparam e evitaram a prisão, deixando armas de brinquedo para os federais encontrarem. Gladys Bissonette, que esteve na ocupação o tempo todo, disse no último dia: Essa foi uma das maiores coisas que aconteceram na minha vida. E embora hoje seja nosso último dia, ainda sinto que sempre estarei aqui, porque isso é parte do meu lar... Espero que os indígenas, pelo menos em toda a Reserva de Pine Ridge, se unam e se levantem, deem as mãos e nunca esqueçam de Wounded Knee. Não tínhamos nada aqui, não tínhamos nada para comer. Mas tínhamos uma coisa: união e amizade entre 64 tribos diferentes... Eu nunca vi nada desse tipo.

No final, 1.200 pessoas em todo o país foram presas por Wounded Knee e quinhentos membros de comunidades tradicionais foram indiciados. Quase todos os réus indiciados por seu envolvimento direto na ocupação foram absolvidos e Leonard Cão Corvo foi o único que cumpriu uma pena de prisão – por alguns meses. Reino de terror Leonard Peltier não estava em Wounded Knee. Mas ele seria vítima de seus desdobramentos – como centenas de outros. O FBI lançou um ataque ao AIM como parte de seu programa Cointelpro, iniciado em meados da década de 1960 sob J. Edgar Hoover e usado para destruir o Partido dos Panteras Negras – o assassinato de seu líder Fred Hampton, entre muitos – enquanto Dick Wilson e o BIA estabeleciam um reino de terror extremo em Pine Ridge. Como comentou um jornalista: O FBI decidiu eliminar a oposição política “radical” dentro dos Estados Unidos. Quando os modos tradicionais de repressão (exposição, assédio flagrante e processos por crimes políticos) falharam em combater a crescente insurgência e até mesmo ajudaram a alimentá-la, o Bureau tomou a lei em suas próprias mãos e secretamente usou da fraude e da força para sabotar atividades políticas protegidas constitucionalmente. O FBI empregou muitos truques sujos contra seus alvos, incluindo escutas telefônicas, assassinatos, difamação (espalhando boatos de que certos ativistas eram informantes para desacreditá-los) e o uso de agentes provocadores – tudo em coordenação com autoridades estaduais e locais, forças policiais e promotores distritais. O futuro governador de Dakota do Sul, Bill Janklow, declarou na época: “A única maneira de lidar com o problema indígena em Dakota do Sul é colocar uma arma na cabeça dos líderes do AIM e puxar o gatilho”. Muitos comparam esses anos em Pine Ridge a uma invasão paramilitar. Dick Wilson e seus Goons iniciaram uma onda de espancamentos e assassinatos de membros e apoiadores do AIM, além dos povos tradicionais em Pine Ridge. Dentro de três anos, pelo menos 69 membros e apoiadores do AIM foram violentamente assassinados na Reserva de Pine Ridge ou nas proximidades, enquanto outras centenas foram agredidas fisicamente. Escreveram Bruce Johansen e Roberto Maestas: Usando apenas as mortes políticas documentadas, a taxa anual de assassinatos na Reserva de Pine Ridge entre 1 de março de 1973 e 1 de março de 1976 foi de 170 por 100 mil. Em comparação, Detroit, reputada a “capital dos assassinatos nos Estados Unidos”, tinha uma taxa de 20,2 por 100 mil em 1974… Em uma nação de 200 milhões de pessoas, uma taxa de homicídios comparável à de Pine Ridge entre 1973 e 1976 teria somado 340 mil pessoas mortas por razões políticas em um ano; 1,32 milhão em três... A taxa de assassinatos políticos em Pine Ridge entre 1 de março de 1973 e 1 de março de 1976 foi quase equivalente à do Chile durante os três anos que se seguiram ao golpe militar apoiado pelos Estados Unidos que depôs e matou o presidente Salvador Allende.

Entre as vítimas estavam Pedro Bissonette, Philip Black Elk, Priscilla White Plume, Byron DeSersa e Anna Mae Aquash. A maioria dos casos nunca foram solucionados, ou mesmo investigados – porque o FBI e o BIA têm sangue nas mãos em cada um deles e qualquer investigação decente apontaria para eles. . Anna Mae Aquash, assassinada em fevereiro de 1976, foi difamada pelo FBI antes de sua morte. Uma médica do BIA, que também não notou que a vítima havia levado um tiro na cabeça, removeu as suas mãos, em uma possível tentativa de ocultar sua identidade. Ainda não está claro se ela foi assassinada por membros do Goon, do FBI ou do AIM, convencidos pelos rumores do FBI de que ela era uma informante. Muitos na reserva acreditavam que ela fora alvejada pelo FBI em retaliação pelas mortes de dois agentes, das quais Peltier foi acusado. Dois ex-membros do AIM foram processados, eventualmente, pelo assassinato de Anna Mae. Mas há tanta desinformação deliberada e confusão em torno do caso que é provável que a verdade completa nunca seja conhecida. Foi o reinado de terror dirigido pelo FBI e pelo Goon que levou ao – alguns diriam que provocou – incidente em Oglala. Em meio ao terror e ao medo, as lideranças tradicionais de Pine Ridge mais uma vez pediram proteção ao AIM, especialmente para os anciãos. É por isso que Peltier e dezenas de outras pessoas estavam acampando na propriedade de Touro Saltitante naquele fatídico dia de junho de 1975. “O FBI tinha mais de cinquenta agentes infestando a Reserva de Pine Ridge (antes de 1973 eles só tinham dois ou três na área, se isso)”, escreveu Peltier. “Parece que quanto mais agentes do FBI tínhamos à nossa volta, mais assassinatos tínhamos.” Os membros do AIM em todo o país enfrentavam constantemente o assédio e as armações que drenavam os recursos da organização e, eventualmente, quebraram sua liderança. Houve ações lideradas pelo AIM até o final da década de 1970; um núcleo de ativistas protestou contra os julgamentos de Robideau e Butler, bem como o de Peltier; houve um protesto do lado de fora do prédio do FBI em 1979. Mas a condenação de Peltier em 1977 foi um duro golpe do qual o AIM nunca se recuperou. O que explica a virulência da ofensiva contra o AIM? Os motivos econômicos estavam claramente em ação. Por volta da época da ocupação de Wounded Knee, Wilson concedera uma parte da reserva, conhecida por ser rica em urânio e molibdênio, ao Serviço Florestal dos Estados Unidos. No início da década de 1970, as estimativas do governo sobre os lucros potenciais da mineração de urânio nas Colinas Negras estavam em torno de meio bilhão de dólares. Mas a lógica se estendia além de estreitas razões econômicas. O governo dos Estados Unidos estava se esforçando para esmagar a esquerda, quebrar a espinha dorsal da luta política e a influência da política revolucionária em particular. Essa militância indígena emergiu justamente quando muitas outras lutas dessa época começavam a atingir um impasse político; muitas lutas não retomaram, após 1972, ao patamar anterior, bem quando o AIM estava em ascensão.

O AIM era incrivelmente popular e bem conectado às principais correntes radicais da sociedade estadunidense, influenciadas pelas lutas de libertação nacional em todo o mundo. Além disso, o AIM simbolizava a luta armada e a militância contra a opressão. O governo temia que o AIM pudesse ser um fator-chave na retomada da luta – uma das razões pelas quais eles ficaram tão desesperados para acabar com a ocupação em Wounded Knee antes que os campi universitários entrassem em férias de verão. Em 1973, a classe dominante do país estava ativamente engajada no processo de quebrar a espinha das lutas revolucionárias aqui e no exterior. Os Estados Unidos apoiaram o golpe de Augusto Pinochet no Chile naquele ano, por exemplo. A repressão violenta e as táticas divisivas da Cointelpro quebraram e desmoralizaram o AIM, enquanto o declínio geral de outros movimentos sociais nesse período selou seu destino. O AIM continuou a se organizar até o final da década de 1970 e mantém até hoje presença em algumas áreas dos Estados Unidos, mas nunca se recuperou do reinado de terror e da condenação de Peltier em particular. O que o movimento conquistou Apesar dessa severa repressão e do curto espaço de tempo de influência do AIM, as lutas dos nativos americanos conquistaram muita coisa. O AIM lutou, essencialmente, contra a aniquilação da cultura indígena – e venceu. Tradições como a sagrada Dança do Sol poderiam ter sido perdidas para sempre. O movimento deu um grande golpe no racismo e mudou a consciência das pessoas de uma maneira que ainda hoje observamos. Os programas de estudos ameríndios prosperaram nos campi e o currículo de história ensinado nas escolas, embora ainda seja altamente problemático, é fundamentalmente diferente do que era há quarenta anos. Agora é comumente aceito que um genocídio foi cometido contra os nativos americanos. E enquanto ainda temos equipes esportivas que usam mascotes indígenas e os Estados Unidos certamente não se livraram do Dia de Colombo, essas coisas geralmente são tratadas com ridicularização, desdém e oposição. Quando as pessoas ouvem que uma faculdade comunitária predominantemente nativa americana no Colorado nomeou seu time de basquete de “Branquelos Lutadores”, muitos aplaudem. Importantes ganhos materiais foram obtidos. A política de terminação foi encerrada. Quase uma dúzia de novas políticas e programas – em matéria de educação, financiamento e saúde – foram instituídos. O Monte Adams foi devolvido à nação yakama, no estado de Washington, e 48 mil acres das terras do Lago Azul Sagrado foram devolvidos ao pueblo ³¹³ de Taos, no Novo México. Os indígenas do Noroeste Pacífico eventualmente conquistaram o direito de pescar ⁵⁰% dos peixes em suas terras. As reformas conquistadas nas décadas de 1960 e 1970 trouxeram várias melhorias materiais à vida das pessoas. A porcentagem de famílias na Reserva de Pine Ridge que vivem abaixo da linha da pobreza caiu 10% no final da década de 1970 e a renda per capita aumentou ⁷%. De fato, a pobreza em geral caiu mais para os nativos americanos do que para

qualquer outro grupo. Infelizmente, essas mudanças não duraram. Durante os anos Reagan, o número de indígenas que viviam na pobreza aumentou ²³%. Dada a severidade da pobreza nas reservas hoje, um investimento maciço nas comunidades nativas americanas é mais do que urgente. Os nativos americanos vivem em condições indescritivelmente horríveis em muitos lugares, especialmente nas Reservas de Rosebud e Pine Ridge. Uma transmissão assustadora – e reveladora – da Al-Jazeera, em 2007, mostrou imagens de duas pessoas do povo lakota empurrando seu carro sem gasolina por uma estrada desolada – estavam levando sua TV à loja de penhores, em busca de dinheiro para poderem comer. “Um dia na vida de um lakota”, um deles destacou. A vida da reserva é caracterizada por 80% de desemprego e um rendimento médio de 2.600 a 3.500 dólares por ano. A expectativa de vida em Pine Ridge é a mais baixa no hemisfério ocidental depois do Haiti. Existem doenças que atingem os nativos americanos mais severamente do que a muitos outros grupos – as taxas de diabetes e tuberculose são oito vezes maiores do que para o resto da população, as taxas de câncer cervical são cinco vezes mais altas, as taxas de doenças cardíacas são duas vezes mais altas. Suicídio, depressão e alcoolismo assolam e paralisam comunidades inteiras. A maioria das casas é precária, com aquecimento, água e saneamento inadequados e são compartilhadas, em média, por uma dúzia de pessoas. Como Peltier argumenta, com razão: “Ninguém pode trazer os mortos de volta. Mas podemos fazer algo pelos vivos. As reparações econômicas aos nativos americanos são absolutamente essenciais para um futuro justo, assim como a devolução de terras sagradas e partes significativas de territórios ancestrais, além de uma parcela justa sobre os recursos naturais de terras tomadas em violação aos tratados”. O governo dos Estados Unidos tem protelado continuamente oferecer uma resposta à ação coletiva de 1996 do Fundo de Direitos dos Nativos Americanos contra o país em nome de 500 mil demandantes pela má administração de bilhões de dólares em royalties de petróleo, gás, pastoreio, madeira e outras riquezas, supervisionados pelo Departamento do Interior, como curador dos indígenas desde ¹⁸⁸⁷. Inúmeros relatórios comprovaram a fraude e a má administração desses fundos. Até o próprio relatório encomendado pelo Departamento em ²⁰⁰² concluiu que algo entre ¹⁰ bilhões e ⁴⁰ bilhões de dólares são devidos aos queixosos. No entanto, Washington se recusou a prestar contas dos fundos perdidos, devidos, mas não pagos, a tribos e indivíduos – mesmo após a ordem do Congresso em ¹⁹⁹⁴ – com o argumento de que tal investigação custaria muito. É seguro dizer que o governo dos Estados Unidos, bem como inúmeras corporações estadunidenses, tem uma dívida enorme para com os indígenas americanos, muito além desses bilhões em royalties . Os ativistas precisam garantir que eles comecem a pagar essa dívida com a liberdade de Leonard Peltier e continuem pagando-na.

A luta para libertar Leonard Peltier da prisão diz respeito a dar o primeiro passo para corrigir os crimes cometidos contra os nativos americanos, mas também diz respeito a desafiar o gulag dos Estados Unidos que encarcera não apenas prisioneiros políticos como Leonard e Mumia Abu-Jamal, mas também um em cada cem adultos – e desproporcionalmente mais as pessoas de cor, pobres e oriundas da classe trabalhadora, que são vítimas de leis draconianas de “tolerância zero ao crime”. Os ex-presidentes George W. Bush e Bill Clinton desempenharam papéis decisivos nessa frente – e Peltier está na prisão há mais de 33 anos. Mas com a possibilidade da liberdade condicional de Peltier diante de nós, é hora de reconstruir a luta contra o sistema de justiça criminal e colocar seu caso de volta no centro desta luta. Nas palavras de Peltier: “A destruição de nosso povo deve parar! Nós não somos estatísticas. Somos pessoas de quem vocês tomaram esta terra pela força, pelo sangue e pela mentira... Vocês praticam crimes contra a humanidade ao mesmo tempo que falam piamente com o resto do mundo sobre direitos humanos! América, quando você viverá à altura de seus próprios princípios?”. ²⁸⁷ Publicado na revista International Socialist Review , em 20 de junho de 2009. ²⁸⁸ Anarquistas italianos condenados, nos Estados Unidos na década de 1920, sob a acusação de homicídio de um contador e de um guarda de uma fábrica de sapatos. O julgamento de Sacco e Vanzetti foi marcado por contradições, incoerências e xenofobia. Não foram absolvidos nem após um terceiro admitir, em 1925, a autoria dos crimes. Foram condenados à pena de morte e executados na cadeira elétrica em 23 de agosto de 1927. ²⁸⁹ Casal de judeus estadunidenses que foram executados em 1953 após serem denunciados e condenados por espionagem. Acusados de repassar à URSS informações sobre a bomba atômica, sua execução foi a primeira de civis por espionagem na história dos Estados Unidos. ²⁹⁰ Mumia Abu-Jamal, pseudônimo de Wesley Cook, é um preso político estadunidense e ex-integrante do Partido dos Panteras Negras que se tornou jornalista na Filadélfia e ficou popular com o seu programa de rádio A voz dos sem voz. Condenado a morte por, supostamente, matar um policial que espancava seu irmão, no início dos anos ¹⁹⁸⁰, Mumia Abu-Jamal teve sua sentença anulada em março de ²⁰⁰⁸ pela Corte Federal de Apelações dos Estados Unidos, convertendo sua pena em prisão perpétua. ²⁹¹ Fundado em 23 de junho de 1967, o Peace and Freedom Party se define como um partido de tendências de esquerda, pró-paz, ecossocialista e feminista. ²⁹² Nascido Marcell David Reich, Mark Rich recebeu o perdão presidencial de Bill Clinton no último dia deste em seu cargo. Também conhecido como o Rei do Petróleo, foi indiciado nos Estados Unidos em 1983 por dezenas de crimes de colarinho branco. Fugindo para a Suíça, escapou a tentativas de prisão na Inglaterra, Alemanha, Finlândia e Jamaica. Durante todo esse

tempo, até seu perdão por Clinton, seguiu operando internacionalmente como atravessador do mercado do petróleo – obtendo imensos lucros ao violar embargos internacionais e fazer negócios com o regime sul-africano do apartheid . ²⁹³ A Lei Patriota foi o decreto assinado pelo presidente George W. Bush em 26 de outubro de 2001 autorizando órgãos de segurança e inteligência dos Estados Unidos a interceptar ligações telefônicas e e-mails sem prévia avaliação judicial – atingindo indiscriminadamente estrangeiros e cidadãos estadunidenses. ²⁹⁴ Até a presente data, encerrado o governo de Barack Obama e ao meio do segundo mandato de Donald Trump, Peltier segue preso injustamente. ²⁹⁵ Os sioux são um grupo étnico composto por inúmeras tribos originárias da América do Norte. Dividem-se em dakotas (do leste e do oeste) e lakotas, conforme diferenças linguísticas. Possuem uma longa tradição de lutas contra a colonização europeia. ²⁹⁶ Os oglala são uma das sete subtribos lakota. Oglala também é o nome de uma região em Dakota do Sul. ²⁹⁷ Os lakota são uma das três tribos que compõem a Grande Nação Sioux. ²⁹⁸ Nos Estados Unidos , a jurisdição dos treze tribunais regionais se denomina “Circuito”. ²⁹⁹ Os anishinaabe são um povo originário da América do Norte de língua própria, pertencente ao ramo linguístico do algoquiano. Em seus contos tradicionais, o povo teve sua origem na chamada Ilha da Tartaruga. ³⁰⁰ Em inglês, “joelho ferido”, em referência a uma história local segundo a qual, em Wounded Knee, um guerreiro oglala teria sofrido um ferimento no joelho em uma batalha contra guerreiros do povo Corvo (apsáalooke). ³⁰¹ Indian New Deal, em referência ao New Deal, uma série de programas implementados nos Estados Unidos entre ¹⁹³³ e ¹⁹³⁷, sob o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia estadunidense, além de fornecer auxílio estatal aos prejudicados pela Grande Depressão. ³⁰² Os hopi são uma nação indígena oriunda da região do Arizona. ³⁰³ Grandes corporações dos setores do carvão, químico, petrolífero e do urânio, respectivamente. ³⁰⁴ O DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano) é o primeiro pesticida moderno, tendo sido largamente usado durante e após a Segunda Guerra Mundial para o combate aos mosquitos vetores de doenças como malária e dengue. A dedetização dos indígenas era uma prática atroz e recorrente. ³⁰⁵ Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor.

³⁰⁶ No original, fish-ins. Referência aos “sentaços” ( sit-ins ) dos anos 1960, quando o movimento pelos direitos civis adotava a prática de, nas manifestações de massas, sentar-se nos cruzamentos das ruas ou diante de prédios públicos, como forma de protesto não violento. ³⁰⁷ Comissão de Revindicações Indígenas. ³⁰⁸ Em inglês, “homicídio involuntário” [involuntary manslaughter], correspondendo à noção jurídica brasileira de “homicídio culposo”. ³⁰⁹ Em inglês, “federal marshal”. Os US marshals são agentes policiais responsáveis pela segurança dos tribunais federais, transporte de presos, perseguição de fugitivos e execução de mandados judiciais. Cumprem, simultaneamente, as funções de oficiais de justiça e de policiais em nível federal. ³¹⁰ Em inglês, goon . ³¹¹ Guerreiro indígena do povo shawnee, liderou uma confederação de diversas tribos no começo do século XIX, na região dos Grandes Lagos. ³¹² Líder indígena dos apaches chiricahua que, durante muitos anos, guerrearam contra a imposição pelos brancos da limitação dos povos indígenas dos Estados Unidos às reservas tribais. ³¹³ Em espanhol, vilarejo. Carta de Leonard Peltier Por Leonard Peltier ³¹⁴ Irmãs, irmãos, amigos e apoiadores. O dia 26 de junho marca 41 anos desde o longo dia de verão em que três jovens foram mortos na casa da família Touro Saltitante, perto de Oglala, durante um tiroteio em que eu e dezenas de outros participamos. Embora eu não tenha atirado (e, portanto, não tenha matado) nos agentes do FBI Ronald Williams e Jack Coler, ainda assim tenho um grande remorso pela perda de suas jovens vidas, a perda do meu amigo Joe Stuntz e pelo luto de seus entes queridos. Acho que, como eu, muitos de meus irmãos e irmãs que estavam lá naquele dia desejariam que, de alguma maneira, eles pudessem ter feito algo para mudar o que aconteceu e evitar o resultado trágico do tiroteio.

Isso não é algo em que pensei casualmente e depois segui em frente. É algo em que penso todos os dias. Ao olhar para trás, lembro-me das expressões de medo e coragem no rosto de meus irmãos e irmãs enquanto estávamos sendo atacados. Nós pensamos que seríamos mortos! Defendemos nossos anciães e filhos enquanto eles se dispersavam em busca de proteção e fuga. Os povos nativos sofreram tais agressões por séculos, e o trauma histórico de gerações foi carregado pelas pessoas naquele dia – e nas comunidades que sofreram mais traumas nos dias que se seguiram ao tiroteio, enquanto as autoridades procuravam por nós que escapamos da propriedade de Touro Saltitante. Como os primeiros povos da Ilha da Tartaruga, vivemos com o lembrete diário dos séculos de esforços para exterminar nossas nações, eliminar nossas culturas e destruir nossos parentes e famílias. Até hoje, em todo lugar que vamos, há lembretes – lembranças e monumentos do quase extermínio de uma gloriosa população de povos indígenas. Povos nativos como mascotes, o encarceramento desproporcionalmente alto de nossos parentes, a apropriação de nossa cultura, os esforços intermináveis de tomar ainda mais terras dos povos nativos e o envenenamento dessa terra servem como lembretes de nossa história como sobreviventes de um genocídio maciço. Vivemos com esse trauma todos os dias. Nós o respiramos, comemos e bebemos. Nós o passamos para nossos filhos. E nós lutamos para superá-lo. Como tantas crianças nativas, fui arrancado da minha família aos 9 anos de idade e levado para tirar o “índio” de mim em um internato. Naquela época, os povos nativos não éramos capazes de falar nossas próprias línguas por medo de sermos espancados ou pior. O cabelo comprido de nossos homens, que é uma parte importante de nossa vida espiritual, era cortado à força, em um esforço para nos envergonhar. Nossos nomes tradicionais eram substituídos por novos nomes euro-americanos. Esses esforços para impor nossa assimilação continuam até hoje. Há pouco tempo, lembro-me, uma garota menominee ³¹⁵ foi punida e proibida de jogar no time de basquete da escola porque ensinou uma colega de classe a dizer “olá” e “eu te amo” em seu idioma nativo. Ouvimos histórias o tempo todo sobre atletas e graduandos que se deparam com a oposição ao uso do cabelo comprido ou de plumas em seus cocares. Com esse pouco da minha história pessoal em mente, acho que é compreensível que eu, como jovem nos anos 1960 e 70, fosse ativo na luta indígena para afirmar nossos direitos humanos, civis e de tratados . ³¹⁶ Nosso movimento foi espiritual, para recuperar nossas cerimônias e tradições e exercer nossa soberania como nações nativas ou tribais. Por mais de cem anos, algumas de nossas cerimônias mais importantes não puderam ser realizadas. Não podíamos cantar nossas músicas ou dançar ao som de nossos tambores. Quando meus contemporâneos e eu éramos ativistas, não havia danças solares conhecidas. Qualquer cerimônia que acontecesse tinha que ser escondida por medo de represálias. Um de nossos papéis como ativistas pelo bem-estar de nossos povos era o de criar espaço e proteção para os povos nativos que tentavam se reconectar com nossas antigas culturas e vidas espirituais. Isso era perigoso e mortal. Significou colocar nossas vidas em risco, porque as pessoas que participaram dessas

cerimônias e as pessoas que defendiam nossos anciãos e nosso modo de vida tradicional foram brutalmente espancadas, mortas ou desaparecidas. Grupos paramilitares e esquadrões da morte comandavam algumas reservas e cada dia era uma batalha. Se um veículo não convidado, desconhecido ou não reconhecido chegasse à sua casa, a primeira reação era considerar que você estava sendo visitado por alguém que pretendia causar algum dano. Esse foi um comportamento aprendido nas reservas. Isso foi verdadeiro de um modo excruciante na década de ¹⁹⁷⁰. Ei, eu não quero ser só desgraça e tristeza aqui. Vejo ao longo das décadas que, de algumas maneiras importantes, a vida melhorou para nossos povos. Os esforços extraordinários do presidente Obama para estabelecer um forte relacionamento com nossas nações tribais é uma boa razão para um novo senso de otimismo de que nossa soberania está mais segura. Ao exercer nossa soberania, a vida de nosso povo pode melhorar. Podemos começar a curar e iniciar a longa jornada para superar o trauma dos últimos quinhentos anos. Mas o que faremos se a próxima administração reverter os ganhos obtidos nos últimos oito anos? Muitas vezes recebo perguntas em cartas de apoiadores sobre minha saúde. Sim, este último ano foi particularmente estressante para mim e minha família. Meus problemas de saúde ainda não foram completamente tratados e ainda não obtive os resultados da ressonância magnética realizada há mais de um mês para o aneurisma da aorta abdominal. À medida que os últimos meses restantes do mandato do presidente Obama passam, minha ansiedade aumenta. Acredito que este presidente seja minha última esperança de liberdade e certamente morrerei aqui se não for libertado até 20 de janeiro de 2017. Por isso, peço a todos novamente, uma vez que este é o momento mais crucial da campanha para obter minha liberdade, que continuem a organizar o apoio público à minha libertação e sigam sempre a liderança do Comitê Internacional de Defesa Leonard Peltier. Obrigado por tudo o que fizeram e continuam fazendo em meu nome. No Espírito do Cavalo Louco... Doksha, ³¹⁷ Leonard Peltier. ³¹⁴ Escrita e veiculada em 27 de junho de 2016. Até a finalização desta edição, Leonard Peltier continuava preso, sendo candidato à vicepresidência dos Estados Unidos nas eleições de 2020 pela chapa do Partido pelo Socialismo e a Libertação (PSL), com Gloria la Riva na cabeça da chapa. ³¹⁵ Povo originário da região do rio Menominee, na porção oriental da fronteira entre os estados americanos de Wisconsin e Michigan. ³¹⁶ Menção aos direitos estabelecidos nos tratados entre povos indígenas e o governo estadunidense.

³¹⁷ Na língua lakota, uma expressão de despedida, que significa “mais tarde”, “depois”.