Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo [1 ed.]
 9786589092728

Table of contents :
Sumário
Introdução.................................................................. 7
Biografia ..................................................................................9
Sobre os textos....................................................................... 16
Sobre a tradução ..................................................................... 21

Cronologia................................................................. 23
1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925).............................................. 27
2. A ciência psicológica (1928)....................................... 63
3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928).............. 99
4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedologia das minorias nacionais (1929)....... 145
5. O refazimento socialista do ser humano (1930).............. 161
6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)......... .............. 177
7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933).... 215
8. O fascismo na psiconeurologia (1934)......................... 223
9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)............................. 241
10.0 problema do desenvolvimento e da desagregação das funções psíquicas superiores (1934)....................... 267

Índice 291

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Liev Semiónovitc h Vigotski

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo Tradução de Priscila Marques Organização, introdução e notas de Gisele Toassa e Priscila Marques

Clássicos da Psicologia

hogrefe

Série Clássicos da Psicologia Coordenador: Saulo de Freitas Araujo A série Clássicos da Psicologia tem como objetivo principal trazer para o público lusófono traduções contemporâneas de autores clássicos da tra­ dição psicológica, cujos textos, embora sejam fundarrfentais para o de­ senvolvimento histórico da psicologia científica, encontram-se em grande parte ainda sem tradução direta para a língua portuguesa. Cada volume é dedicado a um autor e composto de um ou mais textos de sua autoria, os quais ilustram a ideia central do projeto psicológico em questão.Todas a s traduções são feitas a partir do texto original (latim, alemão, inglês, francês, russo etc.). Dessa forma, discentes, docentes e todos os interessados em compreender as várias facetas da psicologia contemporânea poderão travar contato com uma rica tradição de autores que lançaram as bases teóricas e metodológicas para o pensamento psicológico atual.

L. S.Vigotski

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo Tradução de Priscila M arques Organização, introdução e notas de Gisele Toassa e Priscila M arques

Copyright da tradução: © 2023 Editora Hogrefe CETEPP, São Paulo Editora: Cristiana Negrão Tradução: Priscila Marques Capa e diagramação: Claudio Braghini Junior Preparação: Joana Figueiredo Revisão: Carlos Villarruel

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V741p Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934. Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo / L. S. Vigotski; tradução Priscila Marques; organização Gisele Toassa e Priscila Marques. - 1. ed. - São Paulo: Hogrefe, 2023. 296 p .; 21 cm. Inclui índice ISBN 978-65-89092-72-8 1. Vigotsky, L. S. (Lev Semenovich), 1896-1934. 2. Psicologia. 3. Comportamento. 4. Desenvolvimento social. I. Marques, Priscila. II. Toassa, Gisele. III. Título.

23-82799

CDD: 302 CDU: 159.9.019.4

Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Hogrefe CETEPP Rua Barão do Triunfo, 73, conjunto 74 Brooklin, São Paulo - SP, Brasil CEP: 04602-020 Tel.: +55 1195241-6566 www.hogrefe.com.br Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópias e gravação) ou arquivada em qualquer siste­ ma ou banco de dados sem permissão por escrito. ISBN: 978-65-89092-72-8 Impresso no Brasil

Sumário Introdução.................................................................. 7 B io g r a f ia ..................................................................................9 S o b re o s t e x t o s ....................................................................... 16 S o b re a t r a d u ç ã o ..................................................................... 21

Cronologia................................................................. 23 1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925).............................................. 27 2. A ciência psicológica (1928)....................................... 63 3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928).............. 99 4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)....... 145 5. O refazimento socialista do ser humano (1930).............. 161 6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)......... .............. 177 7. Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia (1933).... 215 8. O fascismo na psiconeurologia (1934)......................... 223 9. Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos científicos na idade escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho (1934)............................. 241

10.0 problema do desenvolvimento e da desagregação das funções psíquicas superiores (1934)....................... índice

267 291

Introdução São muitas as iniciativas de aproximação entre psicologia e marxismo, seja como simples cruzamentos entre ideias advindas, por exemplo, da psicanálise ou da análise do comportamento e da teoria social marxista, seja como iniciativas de maior monta, que partem do próprio marxismo para edificação de uma nova perspectiva em psicologia.* A tais iniciativas opuseram-se obstáculos que se confun­ dem, em ampla medida, com a própria história do comunismb em diferentes países. Por seu caráter, via de regra, contra-hegemônico, as iniciativas marxistas na psicologia foram relegadas a segundo plano pelas políticas científicas na América do Norte e Europa, ou mesmo no Sul Global. Nesse panorama global de fortes tensões sociais, foi na União Soviética que se proporcionaram as melhores e mais duradouras condições para a edificação de perspectivas marxistas em psicologia. Dentre as diversas iniciativas dos anos 1920, floresceram duas das psicologias marxistas mais populares no Brasil e no mundo: a psico­ logia vigotskiana (também conhecida como psicologia histórico-cultural) e a teoria da atividade - sendo esta, em certo grau, tributária daquela -, o que acabou tornando Liev Semiónovitch Vigotski o mais conhecido dos psicólogos marxistas até nossos dias, cuja apropriação consolidou-se nas disciplinas de Psicologia da Educação e do Desen­ volvimento em licenciaturas e cursos de graduação em Psicologia." A história da publicação e transmissão do legado de Vigotski, por si só, valeria um livro (para não dizer uma tragicómica novela * Ver Pavón-Cuéllar, D. (2015). Las dieciocho psicologías de Karl Marx. Teoría y Crítica déla Psicología, 5, 105-132. ** Sarmento, D. F. (2006). A teoria histórico-cultural de L. S. Vygotsky: Uma análise da produção acadêmica e científica no período de 1986-2001. [Tese de doutorado não publi­ cada]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

mexicana). O autor nunca ocupou posições institucionais importantes que facilitassem a edição de suas obras, e sua morte prematura se deu no bojo de uma série de transformações políticas conhecida como a Grande Quebra ou Revolução pelo Alto, de Josef Stalin, que limita­ ria drasticamente a liberdade dos cientistas em sua interpretação do marxismo. Embora Vigotski estivesse se tornando mais conhecido na época de sua morte (o maior número de edições de seus textos na Rússia ocorreu entre 1934-1936),* a obra de Ivan Pávlov permanecia sendo vista como a referência para construção das psicologias marxis­ tas," o que só se modificou - a despeito de alguns “acidentes” histó­ ricos, tais como a pavlovização da psicologia entre 1950-1953 - com a ascensão da teoria da atividade, proposta por Serguei Rubinstein em 1934, da qual ex-alunos de Vigotski logo se tornariam partícipes. Como muitos outros autores, Vigotski já vinha sendo alvo de críticas que demandavam maior alinhamento com o marxismo-leninismo (um codinome para o stalinismo).*** Vigotski tornara-se um dos principais nomes da pedologia (ciência da criança), quando, em 1936, Stalin promulgou um decreto banindo essa ciência. Proibiram-se os livros de Vigotski, e mesmo os prefácios foram arrancados de exemplares tombados em bibliotecas públicas.*”* Apenas após a morte de Stalin em 1953, o nome de Vigotski foi, aos poucos, retomado na União Soviética, sendo o livro Pensa­ mento e linguagem e umas poucas obras publicados após 1956. Suas

* Fraser, & Yasnitsky, A. (2015). Deconstructing Vygotsky’s Victimization narrative: A re-examination of the Stalinist suppression of Vygotskian theory. History o f the Human Sciences, 28(2), 128-153. https://doi.org/10.1177/0952695114560200 ** Joravsky, D. (1989). Russian psychology: A critical history. Basil Blackwell. *** Toassa, G. (2016). Nem tudo que reluz é Marx: Críticas stalinistas a Vigotski no ám­ bito da ciência soviética. Psicologia USP, 27(3), 553-563. https://doi.org/10.1590/0103656420140138 **** Vygodskaia. (2000). Epilogue. Journal o f Russian and East European Psychology, 37(5), 28-48.

Introdução

Obras escolhidas vieram à luz em russo apenas a partir de 1982.* Vale ressaltar ainda que editaram-se, de forma descuidada, diversos textos, e ideias foram censuradas no processo de edição em russo e tam­ bém no Ocidente, desde a publicação da primeira edição com cortes de Pensamento e linguagem nos Estados Unidos, em 1962. O grande sucesso editorial de tal obra mutilada a mantém no mercado, pare­ cendo apenas ter contribuído para a perpetuação dos equívocos que presidiram sua primeira aparição no cenário ocidental. Outrossim, a despeito de todas essas dificuldades, temos hoje em língua portuguesa um grande número de obras de Vigotski traduzidas diretamente do russo, testemunhando a persistência do legado do autor para as mais diversas áreas (educação, psicologia, artes, filosofia, lingüística etc.).

Biografia Liev Semiónovitch Vigotski (1896-1934), primeiro filho do sexo masculino (o segundo em uma família de oito irmãos), nasceu em Orcha, povoado próximo a Gomei, cidade de médio porte de uma região do Império Russo que viria se tornar a República Soviética de Belarus nos anos 1920. A família mudou-se para Gomei em 1897, onde Vigotski viveu até ingressar na universidade, em 1913. Seu pai era gerente de banco, o que garantia à família uma vida bastante con­ fortável. Eles eram praticantes de um judaísmo esclarecido, mantendo apenas as principais tradições de sua religião, embora fossem forte­ mente apegados à cultura erudita, ao mundo das artes, às ciências e à filosofia. A mãe, muito instruída, foi referência para sua educação doméstica, que contou com diversos professores particulares."

* Fraser, ]., & Yasnitsky, A. (2015). Deconstructing Vygotsky’s victimization narrative: A re-examination of the Stalinist suppression of Vygotskian theory. History o f the Human Sciences, 28(2), 128-153. https://doi.org/10.U77/0952695114560200. ** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Embora o russo tenha sido a principal língua da família, desde cedo liam-se também poetas alemães nos serões domésticos. Esse meio social que prezava os estudos lingüísticos e literários auxiliou Vigotski, na vida adulta, a conhecer pelo menos nove idiomas.* Se ele foi um jovem prodigioso, já adulto, sua memória e capacidade de articulação de raciocínio eram consideradas excepcionais. Ainda adolescente, organizou círculos de debate sobre o judaísmo, cuja pro­ posta era discutir a herança cultural judaica e o sentido da presença dos judeus no mundo. Nessa época, já se familiarizava com o espe­ ranto, a filosofia da história de Hegel e a ética de Espinosa.** O amigo Aleksandr Bykhovsky apelidou-o de “Profeta” (Beba Vygodskii),*** marcando, assim, o estilo visionário, algo sonhador, de um rapaz racializado e inconformista, cujo território era ocasionalmente asso­ lado por pogroms (ataques violentos a bairros judaicos pela população cristã, com práticas de saque, homicídios, estupros e outros crimes). Vigotski ingressou no ginásio (equivalente ao nosso ensino mé­ dio) em 1911, tendo finalizado o liceu judaico com uma medalha de ouro, o que teria lhe garantido vaga na universidade caso vigorassem as regras previstas até então. Infelizmente, poucas eram as carreiras superiores franqueadas aos judeus, limitando-os a duas alternativas atraentes de formação superior: medicina ou direito. Porém, no ano em que Vigotski deveria prestar os exames de admissão, o governo mudou as regras e os judeus passaram a ser admitidos por sorteio. Esse foi um dos poucos momentos nos quais a Fortuna o favoreceu: conseguindo a vaga, ele ingressou no curso de Direito da Universi­ * O autor sabia ler grego, latim e iídiche. Além disso, sabia escrever e falar russo, hebraico, alemão, inglês, francês e esperanto. Ver Blanck, G. (2003). Prefácio. In L. S. Vygotsky (Ed.), Psicologia pedagógica (pp. 15-32). Artmed. ** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco. *** Yasnitsky, A. (2018). Vygotsky: An intellectual biography. Routledge. O sobrenome de Vigotski era, de fato, Vygodski, mas o autor optou por modificá-lo para “Vigotski” no inicio dos anos 1920.

Introdução

dade de Moscou, mas nunca se identificou com a área. Paralelamente, cursou História e Filosofia na Universidade do Povo de Chaniávski, que contava com muitos professores expulsos das instituições estatais por razões políticas. Vigotski manteve-se atualizado sobre as novida­ des na lingüística e filologia por meio de seu primo Davi, que exerceu sobre ele considerável influência. Também foi um assíduo freqüenta­ dor da cena teatral moscovita, o que lhe valeria importantes aprendi­ zagens para seus anos como crítico de arte.* Após vários rascunhos, Vigotski terminou a monografia A tra­ gédia de Hamlet (1916/1999), em cujo texto predominava a influência da estética e filosofia simbolista, embora também já se incluíssem menções a William James e Sigmund Freud." Nesse período, o decadente Império Russo era sacudido por sérias turbulências políticas desde a segunda metade do século XIX, o que viria a acentuar-se no XX. Sua queda concretizou-se com a Revolução de Fevereiro de 1917, seguida pela Revolução de Outubro. No entanto, o trajeto de constituição de um regime socialista seria longo e árduo, sendo marcado por um período de Guerra Civil (18181921) que devastou o país econômica, política e socialmente.*** Nessa época, Vigotski já voltara para Gomei, onde se empenharia, por vá­ rios meios, em contribuir com o sustento da família até 1924. Ali, foi deputado no soviete local, fundou a editora Eras e Dias (de vida curta), lecionou em instituições de formação de professores (em uma das quais chegou a montar um laboratório de psicologia), organizou atividades teatrais e, principalmente, escreveu resenhas de crítica de arte. Foram anos também marcados por epidemias: ele perdeu um dos seus irmãos para o tifo e outro para a tuberculose, doença esta * van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco. ** Toassa, G. (2011). Emoções e vivências em Vigotski. Papirus. *** Deutscher, I. (1959/2005). Trotsky: O profeta desarmado, 1879-1921. Civilização Bra­ sileira.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

que também contraiu ao cuidar do garoto, passando por sua primeira internação em 1920.* É difícil superestimar o contraste entre a vida de um pesquisador soviético nesses anos revolucionários e a calma rotina dos cientistas ocidentais. Até que se constituísse um sistema stalinista de ciência na segunda metade dos anos 1930, a situação laboral dos pesquisadores era bastante instável, sendo muito comuns a abertura e o fechamento de laboratórios, a renomeação e fundação de instituições, bem como a manutenção de vínculos com diversas instituições, via de regra, bas­ tante mal remunerados, apesar da prioridade que o governo bolchevi­ que atribuía à educação e às ciências. No período de Gomei, Vigotski avançou muito em seus estudos de psicologia, preparando sua Psicolo­ gia pedagógica (1924) e a Psicologia da arte (1925), sua tese de douto­ ramento. Foi também em 1924 que ele se casou com Roza Smiékhova e mudou-se para Moscou, após causar sensação com as comunicações apresentadas no II Congresso de Psiconeurologia de Toda a Rússia em Leningrado, cenário no qual conheceu A. R. Luria (1902-1977), seu grande amigo e parceiro intelectual." Sem usar um único pedaço de papel durante sua apresentação, Vigotski explorou suas ideias sobre os métodos reflexológicos e psicológicos e sobre como poderia situar-se a psicologia marxista no contexto dos métodos então existentes. A afinidade entre os pesquisadores brotou instantaneamente. Em 1924, Luria convidou-o a compor a equipe do laboratório que chefiava no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou."* Como a moradia era escassa na cidade, Vigotski viveria no porão do insti­ tuto com sua esposa por algum tempo. Luria dizia que, apesar de * Ver Vygodskaia, G., & Lifanova, T. (1999). Through a daughter’s eyes. Journal o f Rus­ sian & East European Psychology, 37(5), 3-27; e van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco. ** van der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: Uma síntese. Loyola, Unimarco. *** Luria, A. R. (1988). Vigotski. In L. S. Vigotski, A. R. Luria, & A. N. Leontiev, Lingua­ gem, desenvolvimento e aprendizagem (5a ed., pp. 21-37). ícone, Edusp.

Introdução

raramente fazer uso de anotações, Vigotski era um excelente orador, e suas conferências convertiam-se em eventos públicos muito concor­ ridos, que se estendiam por três ou quatro horas. Em conseqüên­ cia disso, boa parte de seu legado consiste em conferências, três das quais são apresentadas neste volume. A personalidade suave e conciliatória de Vigotski rendeu-lhe a fama de lançar uma espécie de “feitiço” mesmerizante sobre seus co­ nhecidos, não raramente transformando adversários em aliados.* Essas características facilitaram a formação de grupos de pesquisadores ao seu redor nos diversos espaços de pesquisa em que atuou desde sua entrada na psicologia institucional até sua morte, em 1934.*’' Diver­ sas jovens mulheres integraram a rede informal de pesquisadores que constituiu o chamado Círculo de Vigotski, que foi, a partir de 1925, co­ nectándole ao de Kurt Lewin - colaboração tragicamente encerrada pela ascensão do nazismo e partida de Lewin para os Estados Unidos. Algumas propostas de periodização da obra de Vigotski têm sido apresentadas ao longo dos anos. Se nos parece inadequado re­ cortar fases lineares em uma trajetória intelectual tão breve, acom­ panhamos outros comentadores na percepção de que há mudanças importantes ao longo de sua trajetória, mercê da alta temperatura dos debates e das mudanças institucionais próprias aos anos da Revolução Cultural subsequentes à Revolução política de Outubro de 1917.*** As­ sim, optamos por classificar a obra do autor em três fases principais:

* Joravsky, D. (1989). Russian psychology: A critical history. Basil Blackwell. ** Yasnitsky, A. (2009). Vygotsky Circle during the decade o f 1931-1941: Toward an integra­ tive science o f mind, brain, and education. [PhD thesis]. University of Toronto. *** Para essa síntese, recorremos aos seguintes textos: van der Veer, R. (1984). Early periods in the work o f L. S. Vygotsky: The influence o f Spinoza. [Mimeografado]; Veresov, N. N. (2010). Marxist and non-Marxist aspects of the cultural-historical psychology of L. S. Vygotsky. Outlines, 1, 31-49; Veresov, N. N. (2020). Discovering the great royal seal: New reality of Vygotsky’s legacy. Cultural-Historical Psychology, 16(2), 107-117; Beaton, G. A. (2005). La persona en el enfoque histórico cultural. Linear B.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

1. Jovem Vigotski (1912-1924): nessa fase, predomina a crítica de arte, desde o primeiro ensaio conhecido* até as últimas resenhas produzidas em Gomei. O foco é o teatro, mas também analisa literatura e dança, marcando-se pelo rigor (até mesmo por certa se­ veridade surpreendente em alguém tão jovem), pela sensibilidade e pela erudição estéticos. O teatro judaico e a relação entre arte e sociedade/Revolução são algumas de suas preocupações. Nessa fase tão rica quanto pouco conhecida, realiza estudos em psicolo­ gia e humanidades, transitando gradativamente para o marxismo.** 2. A segunda fase inicia-se em 1924 e termina em 1927. Nela, Vigot­ ski desenvolve estudos críticos e de sistematização da psicologia. Entre as múltiplas influências, nota-se no autor uma busca por interlocução com a ciência das reações de Kornilov (entre ou­ tras fontes), tentando desenvolver uma primeira aproximação a uma psicologia materialista e marxista.*** Também analisa várias correntes psicológicas e escolas, o que culmina no esboço de um novo programa para a psicologia em seu extenso estudo de filo­ sofia das ciências: O significado histórico da crise na psicologia (1927).**'* Tal livro assinala seu propósito de começar a desenvol­ ver uma nova psicologia marxista com base nos problemas dessa própria ciência. Nessa fase começa a se formar sua rede de pes­ quisadores situados em diversas instituições, o chamado Círculo de Vigotski.

* Vigotski, L. S. (1912/13-2021). Os judeus e a questão judaiea nas obras de F. M. Dostoiévski. RUS (São Paulo), /2(18), 330-362. https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765. rus.2021.180070 ** Vigotski, L. S. (2022). Liev S. Vigotski: Escritos sobre arte. Mireveja. *** Texto muito importante dessa fase foi “A consciência como um problema da psicologia do comportamento (1925)”, o primeiro desta antologia. **** A tradução correta do título desse manuscrito seria “O sentido histórico da crise na psicologia”. Vale a distinção porque sentido e significado são conceitos diferentes na psicologia vigotskiana.

Introdução

V Teoria histórico-culturaí (1928-1934): psicologia marxista “verda­ deira” que contaria, para alguns comentadores, com duas subfases: instrumental e sistêmica. Essa é a fase mais rica e diversifi­ cada, na qual se desenvolveram seus conceitos mais populares, em parte decorrentes de experimentos realizados com seu Círculo na fase anterior. Embora alguns comentadores prefiram considerar o manuscrito sobre a crise na psicologia como certidão de nasci­ mento da psicologia vigotskiana, é consenso afirmar que o artigo “O problema do desenvolvimento cultural da criança” (1928) traz as bases da teoria do autor sobre as funções psicológicas supe­ riores e as origens sociais da mente a partir da internalização da cultura, estabelecendo a mediação de signos e instrumentos ao longo do desenvolvimento como essencial na formação da conduta voluntária e humanizada. Para alguns comentadores, o texto “So­ bre os sistemas psicológicos” (1930) marcaria, ainda, um quarto e último momento na produção teórica do autor, em que ele desen­ volve preocupações mais acentuadas com a consciência como sis­ tema com função semântica, a qual precisaria ser mais bem com­ preendida em relação aos seus aspectos propriamente mecânicos e instrumentais. Esse é o tom dos seus escritos finais, inclusive do último capítulo do livro Pensamento e linguagem. Nesse mo­ mento, Vigotski também defende o desenvolvimento de uma nova teoria materialista das emoções e produz muitas ideias no campo da pedología e das patologias, em particular da clínica psiconeurológica. Tais ideias, contudo, permanecem inacabadas em ampla medida, e membros do seu Círculo dão sinais de divergências para com Vigotski, iniciando-se um processo de especialização e sepa­ ração (tanto intelectual quanto institucional, em parte decorrentes das políticas soviéticas), entre 1931 e 1934.

Nesse processo de transformação teórico-metodológica do pensamento vigotskiano, encontramos desde ideias que se modifi-

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

cam e são francamente superadas, até outras que são enunciadas sem serem retomadas, sendo ainda hoje de grande interesse para uma psicologia marxista.*

Sobre os textos Este volume traz dez textos de Vigotski, todos traduzidos do original russo, cobrindo um arco temporal que se estende ao longo de praticamente toda sua produção intelectual no terreno da psico­ logia, isto é, de 1925 a 1934. O primeiro texto, “A consciência como problema da psicologia do comportamento”,** saiu originalmente como artigo em 1925, na revista Psicologia e Marxismo, editada por Konstantin Kornilov, o pai da reactologia. De forma sucinta, apre­ senta os principais dilemas de Vigotski em sua primeira aproximação ao desafio de elaborar uma psicologia marxista em meados dos anos 1920. O autor mostra os limites dos métodos reflexológicos - hege­ mônicos no estudo de uma categoria mais ampla, o comportamento - para o estudo da consciência em suas manifestações mais com­ plexas. De modo embrionário aqui já se podem enxergar algumas ideias-chave de Vigotski sobre o tema da consciência, isto é, o enten­ dimento desta como totalidade, um processo não redutível a sistemas de reflexos, o qual influi significativamente nas respostas passíveis de identificação experimental. O segundo texto, intitulado “A ciência psicológica”,*** integra o volume As ciências sociais na URSS (1917-1927), uma coletânea de * Podemos citar, no primeiro caso, a defesa da sublimação freudiana no campo da arte e dos afetos, e no segundo, a ideia de catarse como sendo o objetivo da reação estética. ** Vigotski, L. S, (2005). Soznaníe kak probliéma psikhológuiia povediéniia. In Psikhológuiia razvitiia tcheloviéka [Psicologia do desenvolvimento humano]. Smisl-Eksmo. *** Vigotski, L. S. (1928). Psikhologuítcheskaia naúka. In Obschéstvennie naúki SSSR 1917-1927 [A ciências sociais na URSS 1917-1927] (pp. 25-46). Rabotnik Prosvescheniia.

Introdução

1928 editada por V. P. Vólguin, G. O. Gordon e I. K. Luppol. Muitas das ideias discutidas nesse texto remontam ao conhecido manuscrito sobre a crise na psicologia, em que Vigotski faz um abrangente e, ao mesmo tempo, certeiro arrazoado sobre o estado da psicologia, com seus impasses e dilemas na definição de um objeto e de um método próprio. No trabalho de 1928, incluído nesta coletânea, o leitor tem diante de si um texto mais bem-acabado, sem tantas arestas e opaci­ dades quanto no manuscrito sobre a crise. Da série de “Aulas de psicologia do desenvolvimento”,* apre­ sentamos neste volume a primeira e a segunda: “As duas linhas do desenvolvimento psicológico” e “Métodos de pesquisa em psicologia infantil”, respectivamente. Trata-se de um estenograma de palestras proferidas pelo autor em 1928 na Academia Comunista de Educação Krúpskaia. Até recentemente esse material encontrava-se restrito ao arquivo da família, tendo sido publicado em russo pela primeira vez apenas em 2021, na revista Cultural-Historical Psychology, com in­ trodução e comentários de V. T. Kudriátsev e A. D. Maidánski. Em 2022, os mesmos comentaristas republicaram o material no livro Pe­ dología da idade escolar: aulas sobre psicologia do desenvolvimento, com comentários atualizados e corrigidos. Com autorização de Mai­ dánski e Kudriátsev, a tradução que consta deste volume traz as notas de rodapé dos editores, fundamentais para melhor compreensão de um material relativamente truncado, dadas as inúmeras abreviaturas e trechos não discernidos pelo estenógrafo. Esta é a primeira tradu­ ção desse material para qualquer idioma. Em “Sobre o plano de trabalho de investigação científica a res­ peito da pedología das minorias nacionais”,** publicado na revista * Vigotski, L. S. (2022). Pedológuiia chkólnogo vózrasta, Lektsii po psikhologuii razvitiia [Pedología da idade escolar: Aulas sobre psicologia do desenvolvimento]. Kanon-plius. ** Vigotski, L. S. (1929). K vopróssu o plane nautchno-issledovatelskoi raboti po pedologuii natsionalnikh menchistv. Pedologuiia, 3, 367-377.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Pedología (n. 2, 1929), Vigotski recupera o tema dos estudos expedi­ cionários com populações nativas de localidades distantes dos gran­ des centros, colocando em perspectiva a necessidade de investigar tais grupos étnicos de modo objetivo e científico, mas que não deixasse escapar a especificidade das formas de organização das funções pí i cológicas superiores em contextos culturais e sociais distintos. “O refazimento socialista do ser humano”* foi originalmente publicado em 1930 no periódico VARNITSO (n. 3, pp. 36-44), da As­ sociação Soviética dos Trabalhadores da Ciência e da Técnica para o Fomento da Construção Socialista na URSS. A entidade tinha o obje­ tivo de reunir figuras do campo da ciência e da tecnologia para supe­ rar a neutralidade e a tendência apolítica nos meios intelectuais, bem como para avançar os postulados marxistas. Note-se que no crédito na publicação se lê “L. Vigodski”, grafia original do sobrenome do autor. Elaborado a partir de um estenograma, o texto “Sobre os sis­ temas psicológicos”** origina-se de uma palestra proferida pelo autor na clínica de doenças nervosas da Universidade Estatal de Moscou em 9 de outubro de 1930. O texto constava do arquivo da família e foi publicado em russo pela primeira vez em 1982, no volume 1 das Obras escolhidas. A brochura Fascismo e psiconeurologia***é um ensaio longo, de cerca de 30 páginas, publicado em 1934 por especialistas ligados ao Instituto de Medicina Experimental de Toda a União (filial de Mos­ cou). Os autores listados aparecem nesta ordem: “L. S. Vigotski, V. A.

* Vigotski, L. S. (2016). Sotsialistítcheskaia peredélka tcheloviéka. Tcheloviék [A Pessoa], 4, 122-131. ** Vigotski, L. S. (1982). O psikhologuítcheskikh sistemakh. In A. R. Lúria & M. G. Iarochévski (Eds.), Sobranie Sotchiniénii v 6-ti t. T. 1 Vopróssi teorii i istorii psikhologuii [Obras escolhidas em seis volumes. Vol. 1, Questões de teoria e história da psicologia]. Pedagoguika. *** Vigotski, L. S. et al. (1934). Fachizm v psikhonevrologuii [Facismo e psiconeurologia]. Biomedgiz.

Introdução

Guiliaróvski, M. O. Guriévitch, M. B. Krol, A. S. Chmarián e outros”, lista citação na folha de rosto apresenta a edição: Na busca por oferecer uma base filosófica para uma ideologia de classe, o fascismo alemão se baseia em conhecim entos da biologia e da m edicina, criando uma bestial “teoria do racismo”. Este trabalho da brigada do Instituto de Medicina Experimental de M oscou apre­ senta uma visão geral e uma avaliação da teoria racista do fascismo, constituindo-se, assim, com o um material de grande interesse para os m édicos soviéticos e amplos grupos de leitores preparados.

Esse texto está dividido em quatro seções e apenas na última delas (IV) há a indicação, em nota de rodapé, da autoria - “Capítulo escrito pelo professor L. S. Vigotski”. A tradução desse texto foi feita com base na publicação original de 1934, consultada na Biblioteca Es­ tatal Lênin, em Moscou. É a primeira vez que esse texto é traduzido na íntegra, já que a versão para o inglês disponível na antologia The Vygotsky reader (editada por René van der Veer e Jaan Valsiner em 1994) foi feita com base em uma cópia em que faltam duas páginas do original, conforme nota de rodapé 6 (p. 337). Nesse texto, Vigotski aborda, talvez de modo mais explícito do que em qualquer outro momento, as profundas implicações políticas da psicologia, em seu compromisso (ou não) com a emancipação humana. Nele, faz um contundente paralelo entre a manifestação mais monstruosa (a psicologia racista do nazismo) da ciência psicológica e a sua face mais dócil e aprazível (a “boa e velha” psicologia liberal e burguesa), em opo­ sição a uma psicologia verdadeiramente emancipatória, isto é, a marxista. Em “Sobre o problema da psicologia da esquizofrenia”,*Vigot­ ski explora como os casos da clínica psiquiátrica podem servir como

* Vigotski, L. S. (1922). K probleme psikhologuii chizofrenii. In Sovremênnaia probliéma chizofrénii. Doklád na konferiéntsii po chizofrénii [O problema contemporâneo da esquizo­ frenia. Comunicação na conferência sobre esquizofrenia], (pp. 19-28). Moscou.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

chave para o entendimento da constituição do psiquismo humano a partir da noção de estrutura sistêmica e semântica da consciência. O artigo enfatiza o papel da personalidade para o desenvolvimento dessa condição. Originalmente um artigo introdutório ao livro de Jozefina Chif (1904-1978) - O desenvolvimento dos conceitos científicos no escolar -, o texto “Sobre a questão do desenvolvimento dos conceitos cien­ tíficos na idade escolar: experiência de construção de uma hipótese de trabalho”,* datado de fevereiro de 1934, apresenta a perspectiva de Vigotski sobre o tema da formação de conceitos e as possibilida­ des e os limites de se realizarem investigações experimentais nesse campo. Chamam atenção o costumeiro caráter dialético da reflexão vigotskiana e seu implacável espírito crítico, que não deixa escapar as maiores ou menores deficiências do trabalho de Chif. A presente tradução desse texto é a primeira para qualquer idioma. Também um estenograma, “O problema do desenvolvimento e da desagregação das funções psíquicas superiores”** foi uma pa­ lestra proferida por Vigotski em 28 de abril de 1934, no Instituto de Medicina Experimental de Toda a União. Nele, Vigotski discute a psi­ cologia de base naturalística, que equipara comportamento humano e comportamento animal, e a psicologia descritiva ou da alma, que concebe a especificidade do psiquismo humano como algo que não pode ser explicado, mas apenas descrito. Partindo de uma definição de funções psíquicas superiores, o autor se volta ao desenvolvimento psíquico infantil para tratar do fato de que as funções se desenvolvem de forma sistêmica e não isoladamente. Por fim, Vigotski discute a

* Vigotski, L. S. (1935). K vopróssu o razvitii nautchnikh poniatii v chkolnom vozraste. In J. Chif (Ed.), Razvitie nautchnikh poniatii u chkkolnika [O desenvolvimento dos conceitos científicos no escolar], Gossudárstvennoe Utchebno-Pedagoguítcheskoe Izdatelstvo. ** Vigotski, L. S. (2005). Probliéma razvitiia i raspáda vischikh psikhítcheskikh funktsii. In Psikhotóguiia razvitiia tcheloviéka [Psicologia do desenvolvimento humano]. Smisl-Eksmo.

Introdução

questão da localização das funções psíquicas no cérebro e trata da es­ pecificidade do cérebro humano em relação ao animal a esse respeito.

Sobre a tradução Para a tradução dos textos apresentados neste volume, foram tomados alguns cuidados. O primeiro deles foi a escolha das fontes: Ncnipre que possível buscamos as publicações originais. Esse foi o i iiso dos textos sobre as minorias e sobre o fascismo, e do prefácio a 1’hif, os quais não haviam sido traduzidos (ao menos não na íntegra) anteriormente. Em outros casos, tomamos como base as publicações canônicas em russo, seja das Obras escolhidas ou de outras fontes. Pura as “Aulas de psicologia do desenvolvimento”, pudemos contar com o trabalho de arquivo recentíssimo de Krudriátsev e Maidánski, tios quais agradecemos a oportunidade de apresentarmos nesta tra­ dução as notas dos editores. Para além da questão das fontes, a tradução buscou manter o estilo direto e rico do autor, com suas metáforas, por um lado, e argu­ mentação exaustiva de seu ponto de vista, por outro. Atentamos para alguns termos importantes na história do desenvolvimento das ideias de Vigotski. É o caso dos termos edínitsa (unidade) e edínstvo (tota­ lidade), que, com frequência, aparecem em português vertidos igual­ mente por “unidade” (no inglês, há unity e unit, respectivamente). Vocábulos relacionados à educação costumam ser complexos para tra­ balho tradutório. Termos como vospitánie, obrazovánie e obutchênie pertencem todos a um campo semântico similar, em torno das noções de ensino, aprendizagem e educação. Nesta tradução, optamos por verter vospitánie como “educação”, obrazovánie como “formação” e obutchênie como “processo de ensino-aprendizagem”. Um termo de destaque nos estudos vigotskianos dos últimos 15 anos, perejivãnie, foi aqui traduzido como “vivência”. Por fim, a noção de uma verchí-

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naia psikhológuiia foi vertida para o português como “psicologia do ápice”, já que o adjetivo se origina do substantivo verchína (ápice, cume, auge). Buscamos compor um aparato de notas que esclarecesse, sem­ pre que possível, os autores mencionados por Vigotski. Para tanto, em particular no caso dos psicólogos alemães, contamos com a inestimá­ vel colaboração do professor e pesquisador Saulo de Freitas Araujo. Apesar de nossos esforços, nem todos os autores foram identificados.

Cronologia 1896

Nasce L. S. Vigotski em Orcha, povoado próximo a Gomei, cidade em Belarus, na época parte do Império Russo.

1911

Ingressa no ginásio, liceu judaico, equivalente ao nosso ensino médio.

1912-1913 Redige seu primeiro texto conhecido, “Os judeus e a questão judaica nas obras de F. M. Dostoiévski”. 1913

Finaliza o liceu judaico com uma medalha de ouro. E inicia o curso de Direito da Universidade de Moscou.

1916

Termina o livro A tragédia de Hamlet, príncipe da Dina­ marca, com inspiração predominantemente simbolista.

1917

Retorna a Gomei, após concluir a graduação em Moscou. Leciona na Escola Trabalhista Soviética e no Colégio Pe­ dagógico, tornando-se importante figura na cultura local.

1920

Contrai tuberculose.

1922-1927 Inicia a investigação das reações dominantes, seu princi­ pal interesse de pesquisa, em colaboração com seus estu­ dantes L. V. Zankov, I. M. Soloviev, L. S. Sakharov, Gagaeva, e o trabalho defectológico com 1.1. Daniuchevski e outros. 1924

Vincula-se ao Instituto de Psicologia Experimental de Moscou, após sua conferência no II Congresso Psiconeurológico de Toda a Rússia. Também se vincula ao Comis­ sariado do Povo para a Educação Pública.

1925

Auxilia na organização do recém-fundado Instituto de Defectologia e publica seus primeiros trabalhos sobre o tema.

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Publica “A consciência como um problema de psicologia do comportamento” e finaliza a obra Psicologia da arte, proveniente da sua tese de doutorado. Passa a trabalhar em vários estabelecimentos de ensino superior, entre os quais Segunda Universidade Estatal de Moscou, Instituto de Pedología e Defectologia, Academia de Educação Comunista e Instituto Central de Elevação e Qualificação dos Quadros da Educação Pública. Nesse ano, Luria e Vigotski são apresentados a Kurt Lewin e colaboradores. 1926

Publica o manual Psicologia pedagógica, concluído em 1924.

1927-1931 Escreve “O significado histórico da crise na psicolo­ gia”, publicado apenas em 1982, no tomo I das Obras escolhidas. Estabelece suas principais colaborações com os primeiros estudantes de pós-graduação - L. V. Zankov, I. M. Solo­ viev, L. S. Sakharov, B. E. Varcháva -, e os colaboradores do Instituto de Psicologia de Moscou - L. S. Artemov, N. F. Dobrinin, N. A. Bernstein, L. Gellersein e A. R. Luria. 1928

Publica o artigo ‘‘O problema do desenvolvimento cul­ tural da criança” na revista Pedología, fundada após o I Congresso de Toda a União sobre Pedología, lançando as bases da teoria histórico-cultural. Expõe com Leontiev e Sakharov os resultados obtidos pelo método da estimulação dupla.

1929

XI Congresso Internacional de Psicologia, em Yale, nos Estados Unidos. Luria apresenta seu trabalho com Vigot­ ski sobre a linguagem egocêntrica. Volta a encontrar-se

Cronologia

com Kurt Lewin e outros pesquisadores da Escola de Berlim, consolidando a parceria que envolveria Vigotski e seus colaboradores nos anos seguintes. 1930

Publica com Luria os “Estudos sobre a historia do com­ portamento”. Publica também o artigo “O refazimento socialista do ser humano”. Apresenta, ainda, a decisiva conferência “Sobre os sistemas psicológicos”.

1931-1933 Termina os manuscritos de sua “Historia do desenvolvi­ mento das funções psíquicas superiores”. Torna-se professor de Pedología no Segundo Instituto Médico de Moscou. Talankin publica urna breve crítica a Vigotski. No ano seguinte, são publicados dois artigos de crítica a Vigotski: um de R. Abelskaia e Ia. S. Neopikhonova e outro de M. P. Feofanov. Luria e outros colaboradores de Vigotski viajam ao Uzbe­ quistão e programam nova expedição às suas áreas remo­ tas. Vigotski participa dessa pesquisa que atrairá suspei­ tas e críticas do governo. Cancelam-se novas expedições e nomeia-se uma comissão para investigar os autores, a qual apresenta seu parecer crítico em 1934. É nomeado presidente da Associação Sindical dos Traba­ lhadores da Ciência e Técnica para a Promoção da Edifi­ cação Socialista. 1932

Cessa a publicação do periódico Psikhologuiia, sob direção de Kornilov, e das principais revistas de psicologia na URSS: Psicologia, Pedología, Ques­ tões de Estudo e Treinamento da Personalidade.

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Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Seus principais trabalhos são publicados no Soviétskaia Pedagóguika, no Vopróssi Filossófii e no Pod Znamenem Marksizma. 1934

Escreve os capítulos finais do livro Pensamento e linguagem. Morre aos 37 anos de tuberculose, no Sanatório de Serebriáni Bor.

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento ( 1925) A aranha realiza operações que lembram as operações de um tece­ lão, e a abelha ao construir suas colmeias faz vergonha a alguns ar­ quitetos. Mas mesmo o pior dos arquitetos se distingue da melhor abelha desde o princípio, pois, antes de construir urna colmeia, ele já a construiu em sua cabeça. No final do processo de trabalho tem-se o resultado que, desde o princípio desse mesmo processo, existía na compreensão do ser humano, ou seja, idealmente. O ser humano não apenas altera a forma do que é dado pela natureza; naquilo que é dado pela natureza ele realiza seu objetivo consciente, o qual, como urna lei, determina os modos e o caráter de suas ações e ao qual ele deve subordinar sua vontade. Karl Marx1

1 A questão da natureza psicológica da consciência é insistente e intencionalmente evitada em nossa literatura científica. Tentam não notá-la, como se para a nova psicologia ela sequer existisse. As con­ seqüências desses sistemas de psicologia científica, que se formam diante de nossos olhos, trazem consigo, desde o princípio, uma série de defeitos orgânicos. Citaremos alguns deles, os que são, em nossa opinião, os mais básicos e principais. 1. Ao ignorar o problema da consciência, a psicologia fecha para si mesma o acesso à pesquisa de problemas um tanto complexos do comportamento humano. Ela é obrigada a se limitar à explicação

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

das relações mais elementares entre o ser vivo e o mundo. Será fácil convencer-se de que esse é o caso se espiarmos o sumário do livro Fundamentos gerais da reflexologia humana (1923), de V. M. Békhterev: “Princípio de conservação da energia. Princípio de inconstância permanente. Princípio de ritmo. Princípio de adaptação. Princípio de reação equivalente à ação. Princípio de relatividade”. Em suma, prin­ cípios universais que compreendem não apenas o comportamento animal e humano, mas também toda a totalidade universal. Não obstante, não há uma lei psicológica sequer que formule a relação encontrada ou a dependência entre fenômenos que caracterizam a peculiaridade do comportamento humano. No outro polo do livro, o clássico experimento de formação do reflexo condicionado, uma pequena experiência, fundamental e excepcionalmente importante, mas que não preenche o espaço uni­ versal que vai do reflexo condicionado até o princípio da relatividade. A não correlação entre o telhado e o fundamento, a ausência de um edifício entre eles, revela facilmente que ainda é cedo para formular princípios universais com base em materiais reflexológicos e como é fácil tomar leis de outras áreas do conhecimento e aplicá-las à psico­ logia. Além disso, quanto mais amplo e abrangente for o princípio, mais facilmente ele será estendido para o fato que nos é necessário. Só não podemos esquecer que o escopo e o conteúdo do conceito sempre se encontram em dependência inversamente proporcional. E assim como o escopo dos princípios universais tende ao infinito, seu conteúdo psicológico tende com o mesmo ímpeto a se reduzir a zero. E esse não é um defeito particular da abordagem de Békhterev. De uma forma ou de outra, esse mesmo defeito se revela e se manifesta em quaisquer tentativas de formular sistematicamente uma teoria sobre o comportamento humano como reflexologia pura.

2. A negação da consciência e a aspiração de construir um si tema psicológico sem esse conceito, como uma “psicologia sem cons-

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

ciência”, segundo a expressão de Pável Blónski2 (1921, p. 9), fazem com que os procedimentos metodológicos fiquem desprovidos dos meios necessários para a pesquisa de reações que não se revelam, não so manifestam a olho nu, como é o caso dos movimentos internos, da íala interior, das reações somáticas etc. O estudo apenas das reações, vistas a olho nu, é totalmente impotente e inconsistente mesmo diante dos mais simples problemas do comportamento humano. Entretanto, o comportamento humano é organizado de tal forma que são justa­ mente os movimentos internos, que não se manifestam totalmente, que o direcionam e orientam. Quando formamos o reflexo condi­ cionado de salivar no cachorro, de certa forma organizamos previa­ mente, mediante procedimentos exteriores, seu comportamento, do contrário a experiência não daria certo. Nós o colocamos numa má­ quina, prendemos com uma correia e assim por diante. Exatamente do mesmo modo, organizamos previamente o comportamento do su­ jeito por meio de certos movimentos internos, por meio da instrução, da explicação etc., e, se esses movimentos internos ao redor se alte­ ram no decorrer do experimento, todo o quadro do comportamento se altera drasticamente. Dessa forma, sempre utilizamos reações re­ tardadas; sabemos que elas ocorrem sem cessar no organismo, que cias têm um influente papel regulador do comportamento desde que cie seja consciente. Mas não temos quaisquer meios para pesquisar essas reações internas. Dizendo de forma mais simples: o ser humano sempre pensa para si; isso nunca deixa de influenciar seu comportamento; uma mu­ dança súbita de pensamentos durante um experimento sempre ressoa de modo nítido em todo o comportamento do sujeito (de repente o pensamento: “Não vou olhar para o aparelho”). Mas nada sabemos sobre como considerar essa influência. 3. São eliminados quaisquer limites fundamentais entre o comportamento animal e o humano. A biologia devora a sociologia,

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

a fisiología devora a psicologia. O comportamento humano é estu­ dado na medida em que se trata do comportamento de um mamífero. Aquilo que é fundamentalmente novo, aquilo que a consciência e o psiquismo introduzem no comportamento humano é ignorado. Como exemplo, cito duas leis: a lei da extinção (ou inibição interna) dos re­ flexos condicionados, estabelecida por Ivan Pávlov (1923),3 e a lei da dominante, formulada por Aleksei Úkhtomski (1923).4 A lei da extinção (ou da inibição interna) dos reflexos con­ dicionados estabelece que, mediante excitação prolongada por um estímulo condicionado, não reforçado por um não condicionado, o reflexo condicionado se enfraquece gradualmente e, por fim, é total­ mente extinto. Passemos ao comportamento humano. Estabelece-se no sujeito uma reação condicionada a certo estímulo: “Quando ouvir o sinal, pressione o botão”. O experimento é repetido 40, 50, 100 vezes. Ocorre a extinção? Ao contrário, a relação se fortalece a cada vez, dia a dia. Surge a fadiga, mas ela não tem relação com a lei da extinção. Evidente que aqui a simples transposição da lei do campo da zoopsicologia para a psicologia humana é impossível. Faz-se neces­ sária uma ressalva fundamental. Só que nós não apenas não sabemos qual ela é, como sequer sabemos onde procurá-la. A lei da dominante estabelece a existência de focos de excitação no sistema nervoso dos animais, os quais atraem outras excitações, subdominantes, que se encontram no sistema nervoso naquele mo­ mento. A excitação sexual nos gatos, o ato de deglutição e defecação, o reflexo do abraço nos sapos, tudo isso, como mostram as pesquisas, é reforçado à custa de quaisquer estímulos alheios. Ao contrário, quais­ quer estímulos alheios distraem e enfraquecem a atenção. Novamente, a passagem das leis da dominante, identificadas em gatos e sapos, para as leis do comportamento humano requer um reparo fundamental.

4. O mais importante, a exclusão da consciência da esfera da psicologia científica conserva, em grande medida, todo o dualismo

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

o o espiritualismo da antiga psicologia subjetiva. Vladimir Békhterev ( 1923)5 afirma que o sistema da reflexologia não contradiz a hipó­ tese da “alma”.* Fenômenos subjetivos ou conscientes são caracte­ rizados por ele como fenómenos de segunda ordem, como fenóme­ nos internos específicos que acompanham reflexos compostos. O dualismo se fortalece ao permitir a possibilidade e até reconhecer a inevitabilidade do surgimento de uma futura ciência à parte, isto é, a reflexologia subjetiva. O principal pressuposto da reflexologia - isto é, admitir a pos­ sibilidade de explicar todo o comportamento humano até o fim, sem se valer de fenómenos subjetivos, de construir uma psicologia sem psiquismo - apresenta um dualismo às avessas da psicologia subjetiva, com sua tentativa de estudar um psiquismo puro, abstrato. Trata-se da outra metade do mesmo dualismo anterior: lá havia psiquismo sem comportamento; aqui temos comportamento sem psiquismo; lá e cá “psiquismo” e “comportamento” são compreendidos como dois fenô­ menos distintos. Nenhum psicólogo, ainda que ele seja espiritualista e idealista ao extremo, justamente por força desse dualismo, jamais negou o materialismo fisiológico da reflexologia; ao contrário, todo e qualquer idealismo necessariamente o pressupõe. 5. Ao expulsarmos a consciência da psicologia, ficamos eterna­ mente restritos a um círculo de absurdos biológicos. Mesmo Békhte­ rev (1923, p. 78) adverte ser um grande erro considerar os processos subjetivos com o sendo totalm ente supérfluos ou fenôm e­ nos secundários da natureza (epifenóm enos), pois sabem os que os fenômenos subjetivos atingem o maior desenvolvimento em processos mais com plexos de atividade correlata.

* Békhterev, V. Obschie osnovi refleksologuii tcheloviéka [Fundamentos gerais da reflexolo­ gia humana]. Moscou, Petrogrado, 1923.

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Consequentemente, resta reconhecer um dos dois: ou isso é realmente assim - nesse caso, é impossível estudar o comportamento humano, as formas complexas de sua atividade correlata, independen­ temente do seu psiquismo - ou não - nesse caso, o psiquismo é um epifenômeno, um fenômeno secundário, uma vez que tudo pode ser explicado sem ele, o que nos leva ao absurdo biológico. Uma terceira possibilidade não é dada.

6. Mediante tal colocação da questão, resta-nos permanent mente fechado o acesso à investigação dos mais importantes problemas (a estrutura do nosso comportamento, a análise de sua composição e forma). Estamos eternamente condenados a permanecer com falsas concepções, como se o comportamento fosse uma soma de reflexos. O reflexo é um conceito abstrato: metodologicamente ele é va­ lioso ao extremo, mas ele não pode se tornar o conceito fundamental da psicologia como ciência concreta sobre o comportamento humano. O ser humano não é de forma alguma um saco de pele cheio de refle­ xos, e o cérebro não é um hotel para reflexos condicionados que se encontram casualmente próximos. A investigação das reações dominantes em animais, a investi­ gação da integração dos reflexos mostraram de forma indiscutivel­ mente convincente que o trabalho de cada órgão, seu reflexo, não é algo estático, mas apenas uma função do estado geral do orga­ nismo. O sistema nervoso trabalha como um todo, e essa fórmula de Charles Sherrington6 deve ser colocada na base da teoria sobre a estrutura do comportamento. Na realidade, a palavra “reflexo” no sentido em que é utili­ zada entre nós lembra muito a história de Kannitferstan,7 um nome que um pobre estrangeiro sempre ouvia na Holanda em resposta à sua pergunta “Quem estão sepultando? De quem é essa casa? Quem passou?” etc. Ele pensou ingenuamente que tudo naquele país era feito por Kannitferstan, porém essa palavra significava apenas que os

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

holandeses não compreendiam suas perguntas. O reflexo de objetivo ou reflexo da liberdade8 são exemplos de semelhante incompreensão dos fenômenos estudados. É claro que eles não são reflexos no sentido comum, no sentido do reflexo salivar, mas um mecanismo de comportamento distinto em termos de estrutura. E apenas mediante ii redução geral a um denominador comum é possível dizer a mesma coisa sobre tudo: trata-se de reflexo, como fez Kannitferstan. Com isso, a própria palavra “reflexo” deixa de ter sentido. O que é a sensação? É reflexo. O que é a linguagem, o gesto, a expressão facial? Também é reflexo. E os instintos, os lapsos, as emo­ ções? São, igualmente, reflexos. Todos os fenômenos desvelados pela Escola de Würzburg9 nos processos cognitivos superiores, a análise do devaneio proposta por Freud, tudo isso são reflexos. É claro que isso é verdadeiro, mas a inutilidade de tais constatações cruas é total­ mente evidente. Com tal método de estudo, a ciência não apenas não lança luz e clareza sobre as questões estudadas, permitindo desmem­ brar, delimitar os objetos, formas, fenômenos, como, ao contrário, também obriga a ver tudo sob uma meia-luz opaca, quando tudo se funde e não há limites claros entre os objetos. Isso é reflexo, aquilo também é reflexo, mas o que distingue um do outro? É preciso estudar não o reflexo, mas o comportamento, seu mecanismo, sua composição e estrutura. Entre nós, no experimento com animais ou humanos, sempre surge a ilusão de estarmos investigando a reação ou o reflexo. Em essência, sempre estudamos o comportamento, pois inevitavelmente organizamos previamente, de alguma forma, o comportamento do sujeito da pesquisa de modo a garantir o predomínio da reação ou do reflexo; do contrário não se obtém nada. Por acaso nos experimentos de Ivan Pávlov o cachorro reage com o reflexo salivar, e não com uma multiplicidade das mais variadas reações motoras, internas e externas; por acaso eles não influenciam

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o decurso do reflexo observado? Por acaso o estímulo condicionado, unido nesses experimentos, não suscita por si só essas mesmas rea­ ções (reações orientadoras da orelha, olhos etc.)? Por que as ligações condicionadas ocorrem entre o reflexo salivar e o sinal sonoro e não o contrário, ou seja, não é a carne que suscita o movimento orientador das orelhas? Será que os sujeitos, ao apertarem o botão depois do sinal sonoro, expressam com isso toda sua reação? E o relaxamento geral do corpo, o apoiar-se no encosto da cadeira, o movimento da cabeça, o suspiro etc. não constituem partes fundamentais da reação? Isso tudo indica a complexidade de qualquer reação, a depen­ dência dela em relação à estrutura do mecanismo do comportamento no qual ela está inserida, a impossibilidade de estudar a reação em sua forma abstrata. Não nos esqueçamos de que, antes de tirar conclusões importantes e decisivas do experimento clássico com o reflexo condi­ cionado, a pesquisa está apenas começando, que ela capturou apenas um círculo bastante estreito, de que foram estudados apenas um ou dois tipos de reflexo, o salivar e o motor-defensivo, apenas os reflexos condicionados de primeira e segunda ordem, e em uma direção biolo­ gicamente não favorável para o animal (para que o animal vai salivar em resposta a um sinal tão distante, a estímulos condicionados de ordem elevada?). Por isso, devemos ter cuidado com a transposição direta das leis reflexológicas para a psicologia. Está correto Vladimir Vagner10 (1923), ao afirmar que o reflexo é o alicerce, mas com isso não é possível dizer o que vai ser construído sobre esse alicerce. Diante de todas essas considerações, pode-se pensar que é ne­ cessário voltar o olhar ao comportamento humano como a um me­ canismo fechado pela chave do reflexo condicionado. Sem hipóteses de trabalho preliminares sobre a natureza psicológica da consciência, é impossível examinar criticamente todo o capital científico nesse campo, selecionar e filtrá-lo, traduzi-lo para outra língua, elaborar novos conceitos e criar uma nova problemática.

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

A psicologia científica precisa não ignorar os fatos da consciên­ cia, mas materializá-los, traduzi-los para uma linguagem objetiva, que exista objetivamente; deve desmascarar e enterrar de urna vez por (odas ficções, fantasmagorías etc. Sem isso não será possível trabalho algum: nem ensinar, nem criticar, nem pesquisar. Não é difícil compreender que a consciência não deve ser analisada biológica, fisiológica e psicologicamente como uma série secundária de fenômenos. É preciso encontrar um lugar para ela e interpretá-la em uma mesma série de fenômenos junto de todas as reações do organismo. Essa é a primeira exigência de nossa hipótese de trabalho. A consciência é um problema de estrutura do com­ portamento. Outra exigência: a hipótese deve, sem extrapolações, explicar as principais questões ligadas à consciência, o problema da conservação de energia, a autoconsciência, a natureza psicológica do conhecimento da consciência alheia, o caráter consciente das três esferas principais da psicologia empírica (pensamento, emoção e vontade), o conceito de inconsciente, a evolução da consciência, identidade e unidade. Aqui, nesse esboço curto e ligeiro, estão expressas as ideias mais preliminares, mais gerais e mais fundamentais, em cuja intersecção acreditamos ser possível surgir a futura hipótese de trabalho da consciência para a psicologia do comportamento.

2 Abordemos a questão de fora, não a partir da psicologia. Todo o comportamento animal em suas principais formas pode ser organizado em dois grupos de reações: reflexos inatos ou incondi­ cionais e reflexos adquiridos, condicionados.11 Com isso, os reflexos inatos compõem como que um estrato biológico da experiência co­ letiva herdada da espécie, enquanto os adquiridos surgem com base

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

nessa experiência herdada por meio do estabelecimento de novas rela­ ções, dadas na experiência pessoal do indivíduo. De modo que todo o comportamento animal pode ser designado convencionalmente como experiência herdada mais experiência herdada multiplicada pela ex­ periência pessoal. A origem da experiência herdada foi elucidada por Charles Darwin; o mecanismo de multiplicação pela experiência pes­ soal é o mecanismo do reflexo condicionado, estabelecido por Ivan Pávlov. De modo geral, essa fórmula esgota o comportamento animal. A situação do humano é distinta. Nesse caso, para captar de forma minimamente completa todo o comportamento, é necessário introduzir novos elementos na fórmula. Faz-se necessário, antes de tudo, observar a experiência herdada e extraordinariamente ampliada pelo humano em comparação com o animal. O ser humano faz uso não apenas da experiência fisicamente herdada. Toda nossa vida, tra­ balho e comportamento são baseados no mais amplo uso da expe­ riência das gerações anteriores, uma experiência que não é passada no nascimento, de pai para filho. Ela será convencionalmente deno­ minada de experiência histórica. Ao lado dela pode ser colocada a experiência social, a expe­ riência de outras pessoas, que constitui um componente bastante significativo do comportamento humano. Refiro-me não apenas às relações estabelecidas em minha experiência pessoal entre reflexos não condicionados e certos elementos do meio, mas também a uma multiplicidade de relações que foram estabelecidas na experiência de outras pessoas. Se conheço o Saara e Marte, embora nunca tenha saído do meu país e nunca tenha olhado por um telescópio, é evidente que aquilo que ocorre por meio dessa experiência está ligado à expe­ riência de outras pessoas que estiveram no Saara e que olharam por um telescópio. É evidente que os animais não têm tal experiência. Este será denominado o componente social do nosso comportamento. Por fim, é fundamentalmente novo para o comportamento hu­ mano o fato de que sua adaptação e o comportamento ligado a ela

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

adquirem formas novas em relação à dos animais. Lá tem-se adap­ tação passiva ao meio; aqui, adaptação ativa ao meio e a si mesmo, it verdade que também encontramos nos animais formas iniciais de adaptação ativa à atividade instintiva (construção de ninho, abrigo etc.), mas no reino animal essa forma, em primeiro lugar, não tem significado predominante, fundamental; em segundo lugar, elas per­ manecem sendo passivas tanto em essência quanto em termos do mecanismo de sua realização. A aranha que tece uma teia e a abelha que constrói uma colmeia de cera fazem isso por força do instinto, de modo mecânico, idêntico e não demonstram maior atividade nisso do que nas demais reações adaptativas. O tecelão e o arquiteto são outra história. Como diz Marx, eles construíram sua obra antes em suas cabeças; o resul­ tado obtido no processo de trabalho ocorreu idealmente antes do seu início (ver Marx; Engels, Obras, v. 23, p. 189). Essa explicação absolutamente indubitável de Marx não quer dizer outra coisa senão a duplicação da experiência, obrigatória para o trabalho humano. O trabalho repete aquilo que antes, em movimentos das mãos e em alte­ rações do material, era feito na representação do trabalhador como se ele operasse um modelo desses mesmos movimentos e desse mesmo material. Essa duplicação da experiência, que permite ao ser humano desenvolver formas de adaptação ativa, não existe em animais. Deno­ minaremos convencionalmente esse novo tipo de comportamento de experiência duplicada. Agora a nova parte da fórmula do comportamento humano assume o seguinte aspecto: experiência histórica, experiência social, experiência duplicada. Resta a questão: quais sinais ligam esses novos elementos da fórmula entre si e com as partes anteriores? O sinal de multiplicação da experiência herdada pela experiência pessoal é claro para nós: ele designa o mecanismo do reflexo condicionado.

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À busca de sinais faltantes serão dedicadas as seções seguintes deste artigo.

3 Na seção anterior foram observados os aspectos biológicos e sociais do problema. Agora examinaremos ainda que brevemente seu aspecto fisiológico. Mesmo as experiências mais elementares com reflexos isola­ dos se defrontam com o problema da coordenação dos reflexos ou da passagem deles para o comportamento. Antes foi mencionado de passagem que qualquer experimento de Pávlov já pressupõe que o comportamento do cachorro foi previamente organizado de modo a se estabelecer uma única relação necessária no conflito dos reflexos. Pávlov (1950)* teve ocasião de formular reflexos mais complexos em cachorros. Mais de uma vez ele indica a ocorrência, no decorrer dos experimentos, do conflito entre dois reflexos distintos. Com isso, os resultados nem sempre são idênticos: em um caso, é relatado reforçamento do reflexo alimentar por um reflexo de guarda concomitante; em outro, a vitória do reflexo alimentar sobre o de guarda. Dois re­ flexos são literalmente como dois pesos de uma balança, diz Pávlov a esse respeito. Ele não fecha os olhos para a extraordinária complexi­ dade do decurso do reflexo e afirma: Se nos atentarmos ao fato de que um dado reflexo a um estím ulo exterior se limita e se regula não apenas por outro ato reflexo conco­ mitante exterior, mas também por uma grande quantidade de reflexos internos, bem com o pela ação de toda sorte de estím ulos internos - químicos, térmicos etc. - que operam em diferentes partes do sis* Pávlov, I. P. XX-letni opit obiektivnogo izutcheniia vischei nervnoi deiatelnosti (povedeniia) jivotnikh [Vinte anos de experiência com o estudo objetivo da atividade nervosa superior (do comportamento) de animais]. Moscou, Leningrado, 1950.

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tema nervoso central ou mesmo diretamente nos elementos do tecido executivo (motor ou de secreção), então essa noção seria capaz de captar toda a com plexidade real dos fenôm enos de resposta reflexa (Pávlov, 1950, p. 190).

O princípio fundamental de cooperação dos reflexos, como ele foi elucidado nas investigações de Sherrington, consiste na luta entre diferentes grupos de receptores por um campo motor geral. Ocorre que a quantidade de neurônios aferentes no sistema nervoso é muito maior do que a de eferentes e, por isso, cada neurônio motor se en­ contra em relação reflexa não apenas com um receptor, mas também com muitos, possivelmente com todos. No organismo sempre surge uma luta pelo campo motor geral, pela posse de um órgão funcional entre diferentes receptores. O resultado dessa luta depende de razões muito complexas e variadas. Dessa forma, fica claro que toda reação realizada, todo reflexo vitorioso surge depois de uma luta, depois de um conflito em um “ponto de colisão” (Sherrington, 1912).' O comportamento é um sistema de reações vitoriosas. Em condições normais, diz Sherrington, se deixarmos de lado a questão da consciência, todo o comportamento animal é formado por sucessivas passagens de um campo final seja para um grupo de re­ flexos ou para outro. Em outras palavras, todo comportamento é uma luta que não cessa por um minuto sequer. Há todo um fundamento para se supor que uma das mais importantes funções do cérebro con­ siste justamente em estabelecer a coordenação entre os reflexos que partem de pontos distantes, graças à qual o sistema nervoso se integra em um indivíduo completo.

* Sherrington, C. Assossiatsia spinomozgovikh refleksov i printsip obschego polia [Asso­ ciação dos reflexos cérebro-espinhais e o princípio geral do campo], In Uspekhi sovremiénnogo biologuii [Êxitos da biologia contemporânea], Odessa, 1912.

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O mecanismo coordenador do campo motor geral serve, se­ gundo Sherrington, de base para o processo psíquico fundamental da atenção. Graças a esse princípio, a todo momento cria-se uma totalidade12 de ação, e ela, por sua vez, serve de base para o con­ ceito de personalidade; dessa forma, a criação da totalidade da personalidade constitui a tarefa do sistema nervoso, afirma Sherrin­ gton. O reflexo é uma reação integral do organismo. Cada músculo, cada órgão funcional deve ser analisado como um “cheque ao por­ tador, que pode ser descontado por qualquer grupo de receptores” (Sherrington, 1912, p. 23). Uma noção geral sobre o sistema nervoso pode ser perfeita­ mente apresentada pela seguinte comparação: O sistema de receptores se relaciona com um sistema de caminhos eferentes, com o a abertura superior de um funil se relaciona com a inferior. Mas cada receptor está em relação não com um, mas com muitos, talvez com todas as fibras eferentes; é claro que essa relação tem distinto grau de estabilidade. Por isso, em continuação à nossa comparação com o funil, é preciso dizer que qualquer sistem a ner­ voso é um funil, e uma das aberturas é cinco vezes maior do que a outra; dentro desse funil estão os receptores que também são funis, cuja abertura maior está virada para a saída do funil geral e o fecha por completo (Sherrington, 1912, p. 56).

Ivan Pávlov (1950) compara os grandes hemisférios do cére- ]” bro com uma estação telefônica, na qual são estabelecidas ligações J novas, temporárias entre elementos do meio e reações isoladas. Muito mais do que uma estação telefônica, nosso sistema nervoso lembra uma porta estreita de um prédio para o qual acorrem mi­ lhares de pessoas em pânico; pela porta só podem passar algumas pessoas; os que conseguem entrar são apenas alguns entre milhares de outros que ficam para trás ou são mortos. Isso transmite de forma mais adequada o caráter catastrófico da luta, do processo dinâmico

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e dialético entre o mundo e a pessoa e o interior da pessoa, que é denominado comportamento. Disso decorrem duas posições necessárias para a correta colo­ cação da questão da consciência como mecanismo do comportamento. 1. O mundo é como que despejado pela abertura maior de um funil com milhares de estímulos, inclinações, apelos; dentro do fu­ nil ocorre uma luta incessante, um embate; todas as excitações es­ correm pela abertura menor sob a forma de reações de resposta do organismo em uma quantidade drasticamente reduzida. O comporta­ mento realizado é uma parte ínfima do possível. O ser humano a todo momento é pleno de possibilidades não realizadas. Tais possiblidades não realizadas do nosso comportamento, essa diferença entre as aber­ turas maior e menor do funil, são a mais perfeita realidade, assim como as reações triunfantes, pois todos os três aspectos da reação estão presentes. Em uma estrutura um tanto complexa do campo geral final ou em reflexos complexos, esse comportamento não realizado pode ter formas extraordinariamente variadas: “Nos reflexos complexos, os ar­ cos reflexos às vezes se aliam com uma parte do campo geral e lutam entre si com a outra parte” (Sherrington, 1912, p. 26). Dessa forma, a reação pode permanecer em parte não realizada ou realizada em uma certa parte, sempre indeterminada. 2. Por causa do equilíbrio extraordinariamente complexo es­ tabelecido no sistema nervoso pela complexa luta dos reflexos, com frequência basta um estímulo de uma força totalmente insignificante para decidir o resultado da luta. Assim, em um sistema complexo de forças em combate, uma força nova e ínfima pode determinar o resultado e a direção das forças resultantes; em uma grande guerra, mesmo um Estado pequeno que se alie a um dos lados pode decidir a vitória e a derrota. Isso significa que é fácil imaginar como as reações em si mesmas insignificantes, imperceptíveis até, podem acabar sendo

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dominantes a depender da conjuntura no “ponto de colisão” no qual elas aparecem.

4 A lei universal mais* elementar e fundamental da relação dos reflexos pode ser assim formulada: os reflexos estão ligados entre si segundo as leis dos reflexos condicionados; além disso, a parte da resposta de um reflexo (motor, secretor) pode, em circunstâncias ade­ quadas, tornar-se um estímulo condicionado (ou um inibidor) para outro reflexo, conectando por um caminho sensorio os estímulos pe­ riféricos ligados a ele no arco reflexo com o novo reflexo. É possível que toda uma série de tais ligações seja dada hereditariamente e se relacione com reflexos não condicionados. A outra parte é criada no processo da experiência e não pode deixar de ser criada de forma constante no organismo. Ivan Pávlov denomina esse mecanismo de reflexo em cadeia e o associa à explicação do instinto. Gueórgui Zelióni13 (1923)* revela o mesmo mecanismo na investigação dos movimentos musculares ritmados que também são reflexos em cadeia. Dessa forma, tal me­ canismo é o que melhor explica a união de reflexos inconscientes, automáticos. Contudo, se nos atentarmos não para o mesmo sistema de reflexos, mas para outros e para a possibilidade de transmissão, de um sistema a outro, tem-se basicamente o mesmo mecanismo da cons­ ciência em seu significado objetivo. A capacidade de o nosso corpo ser um estímulo (por meio de seus atos) para si mesmo (para novos atos): essa é a base da consciência.

* Zelióni, G. P. O ritmítcheskikh mischetchnikh dvijêniakh [Sobre os movimentos muscula­ res rítmicos], Russkifiziologuítcheski jornal [Revista Russa de Fisiología], v. 6, n. 1-3, 1923.

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Agora já é possível falar sobre a indubitável cooperação de sistemas de reflexo separados, sobre o reflexo de um sistema em ou­ tro. O cachorro reage ao ácido clorídrico com a secreção de saliva (reflexo), mas a própria saliva é um novo estímulo para o reflexo de deglutição ou expulsão. Por meio de associação livre, pronuncio "narciso” para a palavra-estímulo “rosa”. Isso é um reflexo, mas ele não funciona como estímulo para outra palavra, “matíola”.14 É tudo dentro de um sistema ou de sistemas próximos, que colaboram entre si. O uivo do lobo suscita em mim, como estímulo, reflexos somáticos e expressões faciais de medo; respiração alterada, batimento cardíaco acelerado, tremor, garganta seca (reflexos) me levam a dizer ou pen­ sar: “Estou com medo”. Aqui há transmissão de um sistema a outro. O próprio caráter consciente ou a capacidade de tomar cons­ ciência de nossos próprios atos e estados deve ser compreendido, antes de tudo, como um sistema de mecanismos de transmissão de um reflexo a outro que se encontra em correto funcionamento em cada momento consciente. Quanto mais corretamente cada reflexo interno, na qualidade de estímulo, for capaz de suscitar uma série de outros reflexos de outros sistemas e ser transmitido para outros siste­ mas, mais seremos capazes de nos dar conta para nós mesmos e para o outro daquilo que é vivenciado e mais conscientemente se vivencia (sente, fixa em palavras etc.). Dar-se conta de algo significa justamente traduzir um reflexo para outro. São designados inconscientes psíquicos os reflexos que não se transferem para outros sistemas. São possíveis graus infinita­ mente variados de consciência, ou seja, de interação entre os sistemas incluídos no mecanismo do reflexo em ação. A consciência de suas vi­ vências não quer dizer outra coisa senão tê-las como objeto (estímulo) para outras vivências. A consciência é a vivência das vivências, justa­ mente da mesma forma que as vivências são simplesmente a essência da vivência dos objetos. Mas é exatamente a possibilidade de o reflexo (a vivência do objeto) ser estímulo (objeto da vivência) para um novo

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reflexo que constitui o mecanismo da consciência e é o mecanismo de transmissão dos reflexos de um sistema a outro. Isso é mais ou menos o que Békhterev chama de reflexos reportado e não reportado. O problema da consciência deve ser colocado e resolvido pela psicologia no sentido de que a consciência é a interação, o reflexo, a mútua excitação de diferentes sistemas de reflexos. É consciente aquilo que é transmitido como estímulo para um outro sistema e sus­ cita uma resposta dele. A consciência é sempre um eco, um aparelho de resposta. Citarei três referências da literatura. 1. Aqui convém lembrar que a literatura psicológica indicou mais de uma vez a reação circular como um mecanismo que devolve ao organismo seu próprio reflexo com ajuda de correntes centrípe­ tas que surgem nesse momento e que estão na base da consciência (N. N. Lange, 1914).*15 Com isso, com frequência se promoveu o significado biológico da reação circular: um novo estímulo, emitido pelo reflexo, suscita uma nova reação, secundária, que ou fortalece e repete ou enfraquece e contém a primeira reação, a depender do es­ tado geral do organismo, como se o organismo fizesse uma avaliação de seu próprio reflexo. Dessa forma, a reação circular não é apenas uma simples junção de dois reflexos, mas também um tipo de junção na qual uma reação dirige e regula a outra. Com isso, esboça-se ou­ tro aspecto do mecanismo da consciência: seu papel regulatório em relação ao comportamento. 2. Sherrington distingue os campos exteroceptivo e interoceptivo como polos da superfície exterior do corpo e da superfície inte­ rior de alguns órgãos, nos quais é introduzida uma parte do meio exterior. Ele fala de forma separada sobre o campo proprioceptivo, excitado pelos mesmos organismos, cujas alterações ocorrem nos músculos, nos tendões, nas articulações, nos vasos sanguíneos etc.

* Lange, N. N. Psikhologuiia [Psicologia]. Moscou, 1914.

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Diferentem ente dos receptores extero- e interoceptivos, os recepto­ res proprioceptivos são excitados apenas por influências secundárias, que partem do m eio exterior. Seus estím ulos são o estado ativo de certos órgãos; por exem plo, a contração de um m úsculo, que, por sua vez, foi uma reação primária a um estímulo de um receptor de superfície por fatores do meio exterior. Geralmente os reflexos que surgem por causa do estím ulo de órgãos proprioceptivos se combi­ nam com reflexos suscitados por estímulos dos órgãos exteroceptivos (Sherrington, 1912, p. 42).

A combinação de reflexos secundários com reações primárias, essa “ligação secundária”, pode unir, como mostra a pesquisa, refle­ xos tanto aliados quanto antagônicos. Em outras palavras, a reação secundária pode fortalecer ou cessar a primária. Nisso consiste o me­ canismo da consciência. 3. Por fim, Ivan Pávlov diz, em uma ocasião, que a reprodução dos fenômenos nervosos no mundo subjetivo é muito peculiar e, por assim dizer, reiteradamente refratada, de forma que, como um todo, a compreensão psicológica da atividade nervosa é condicionada e apro­ ximada em alto grau. Aqui Ivan Pávlov não intentou fazer nada mais do que uma simples comparação, mas podemos compreender suas palavras no sentido literal e exato e afirmar que a consciência é uma “refração múltipla” dos reflexos.

5 Assim é resolvido o problema do psiquismo sem perda de ener­ gia. A consciência como um todo e sem nenhum resíduo é reduzida a um mecanismo transmissor de reflexos que funciona por leis gerais, ou seja, é possível admitir que não há nenhum outro processo no organismo além das reações.

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Abre-se a possibilidade também para a resolução do problema da autoconsciência e auto-observação. A percepção interior, a introspecção é possível apenas graças à existência do campo proprioceptivo e dos reflexos secundários a ele ligados. Isso é sempre uma espécie de eco da reação. Isso esgota totalmente a autoconsciência como percepção da­ quilo que, segundo expressão de John Locke,16 advém da própria alma humana. Torna-se claro, aqui, que essa experiência é acessível apenas para a pessoa que a vivencia. Apenas eu mesmo, e somente eu posso observar e perceber minhas reações secundárias, pois só para mim os meus reflexos servem como novos estímulos do campo proprioceptivo. Com isso explica-se facilmente também a cisão básica da experiência: ela é psíquica justamente porque não se parece com nada, está relacionada a estímulos sui generis, que não são encon­ trados em parte alguma a não ser em meu corpo. O movimento das minhas mãos percebido pelo olho pode ser igualmente um estímulo para os meus olhos e para os de outro, mas a consciência desse mo­ vimento, as excitações proprioceptivas que emergem e suscitam rea­ ções secundárias existem apenas para mim. Elas não têm nada em comum com o primeiro estímulo do olho. Aqui os caminhos neurais são inteiramente outros, outros mecanismos, outros estímulos. Intimamente ligada a isso está uma questão bastante complexa da metódica psicológica: acerca do valor da auto-observação. A psi­ cologia antiga a considera como uma fonte básica e principal de co­ nhecimento psicológico. A reflexologia a reòhaça absolutamente ou a coloca sob controle de dados objetivos com fonte de informações complementares (Békhterev, 1923). A elaboração do entendimento dessa questão permite com­ preender em seus traços mais gerais e aproximados o significado (objetivo) que o relato verbal do sujeito pode ter para a investigação científica. Os reflexos encobertos (linguagem tácita), os reflexos in-

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lomos, inacessíveis à percepção direta do observador podem com frequência ser revelados de modo indireto, mediados por reflexos observáveis acessíveis, em relação aos quais eles funcionam como estímulos. Mediante a presença de um reflexo completo (palavra), é possível julgar a presença de um estímulo correspondente que, nesse caso, desempenha um papel duplo: estímulo em relação ao reflexo completo e reflexo em relação ao estímulo anterior. Considerando o papel enorme e primordial que o psiquismo, ou seja, o grupo não explicitado de reflexos, desempenha no sis­ tema do comportamento, seria suicídio para a ciência recusar-se a revelá-lo por um caminho indireto, isto é, por meio de seu reflexo cm outros sistemas de reflexos. De fato, estamos considerando jus­ tamente os reflexos a estímulos internos, ocultos para nós. A lógica aqui é a mesma, bem como as ideias e evidências. Segundo tal compreensão, o relato do sujeito de forma alguma pode ser consi­ derado um ato de auto-observação, que mete a colher na pesquisa científica objetiva. Não tem nada de auto-observação. O sujeito não se coloca em absoluto fia posição de observador, não ajuda o experimentador a observar os reflexos que lhe estão ocultos. O sujeito permanece, até o fim, inclusive em seu relato, sendo objeto da experiência, mas por meio de um questionamento subsequente introduz na própria experiência algumas alterações e transforma­ ções; é introduzido um novo estímulo (um novo questionamento), um novo reflexo, que permite julgar as partes não esclarecidas do anterior. Com efeito, é como se toda a experiência, dessa forma, passasse por uma lente dupla. É necessário introduzir nos procedimentos metodológicos da pesquisa psicológica essa passagem da experiência por reações se­ cundárias da consciência. O comportamento humano e o estabeleci­ mento de novas reações condicionadas são determinados não apenas por reações explicitadas, plenas, reveladas até o fim, mas também por aquelas que não estão reveladas em seu aspecto exterior, que

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não são visíveis a olho nu. Por que é possível estudar reflexos verbais completos, mas não se podem considerar reflexos-pensamentos inter­ rompidos em dois terços, embora essas sejam reações indubitáveis, realmente existentes? Se digo em voz alta, de tal forma que o experimentador possa ouvir, a palavra “noite”, que me ocorrera por associação livre, isso é considerado uma reação verbal, um reflexo condicionado. Já se pronuncio de forma inaudível, para mim mesmo, se penso, será que, por esse motivo, isso deixa de ser um reflexo e sua natureza se altera? Onde está a fronteira entre a palavra dita e a não dita? E se eu mexer os lábios, se sussurrar algo que não é audível para experimentador, como fica a situação? Será que ele pode me pedir para repetir a palavra em voz alta ou isso seria um método subje­ tivo, acessível apenas para si mesmo? Se ele pode (e provavelmente todos irão concordar com isso), por que ele não pode pedir para dizer em voz alta a palavra dita em pensamento, ou seja, sem movi­ mentar os lábios, com sussurro? De fato, ela era e permanece sendo uma reação motora verbal, um reflexo condicionado, sem a qual não haveria pensamento. Mas isso já é um questionamento, uma manifestação do sujeito, seu relato verbal acerca de reações não manifestas, não captadas pelo ouvido do experimentador (eis toda a diferença entre pensamento e linguagem), mas que sem dúvida existem objetivamente. Podemos nos convencer de muitas maneiras sobre o fato de que elas existem, efetivamente com sinais de uma existência material. É precisamente a elaboração desses modos que constitui uma das mais importantes tarefas do método psicológico. A psicanálise é um desse modos. O mais importante, contudo, é que eles [os reflexos não ma­ nifestos] mesmos tratam de nos convencer sobre sua existência. Eles se manifestam com tamanha força e vivacidade na corrente ulterior das reações, que o experimentador é obrigado a considerá-los ou sim­ plesmente recusar-se a estudar tal corrente de reações na qual eles

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irrompem. Mas serão muitos os exemplos de comportamento, nos quais os reflexos retidos não irrompem? Assim, ou nos recusamos ao estudo do comportamento humano em suas formas existentes ou le­ vamos esses movimentos internos obrigatoriamente em consideração na nossa experiência. Dois exemplos explicitam essa necessidade. Se memorizo al­ gum novo reflexo verbal estabelecido, será que é indiferente o que vou pensar neste momento - repetir para mim mesmo determinada palavra ou estabelecer uma relação lógica entre essa palavra e oulras? Será que não está claro que os resultados em ambos os casos serão fundamentalmente distintos? Em associação livre à palavra-estímulo “trovão”, digo “cobra”, mas antes ainda surge no pensamento a palavra “relâmpago”. Não está claro que, sem levar em consideração tal pensamento, chego a uma noção patentemente falsa de que a reação à palavra “trovão” foi “cobra” e não “relâmpago”? É claro que se trata, aqui, não de uma simples transposição da auto-observação experimental oriunda da psicologia tradicional. Tra­ ta-se, antes, da necessidade urgente de elaborar um novo conjunto de procedimentos para a investigação dos reflexos retardados. Estamos defendendo aqui apenas a necessidade fundamental e a possibilidade de fazê-lo. Para finalizar as questões de método, iremos nos deter breve­ mente na instrutiva metamorfose pela qual o atual conjunto de proce­ dimentos de investigação reflexológica está passando quando aplicada a humanos e da qual tratou V. P. Protopópov17em um de seus artigos. Inicialmente os reflexólogos aplicaram estimulação eletrocutânea na planta do pé; mostrou-se mais proveitoso tomar como critério uma reação de resposta de um aparato mais completo, mais adaptado a reações orientadoras; os pés foram substituídos pelas mãos (V. P.

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Protopópov, 1923, p. 22).* Mas uma coisa leva a outra. O ser humano tem um aparato incomparavelmente mais completo, com ajuda do qual se estabelece uma ligação ainda mais ampla com o mundo, isto é, o aparato da fala: resta-nos passar às reações verbais. No entanto, o mais curioso são esses “alguns fatos” com os quais o pesquisador se depara em seu processo de trabalho. Ocorre que a diferenciação do reflexo no ser humano foi atingida de forma extremamente lenta e difícil; verifica-se que, ao impactar o objeto com uma linguagem correspondente, é possível fomentar tanto rea­ ções retardadas como fazer emergir reações condicionadas (Proto­ pópov, 1923, p. 16). Em outras palavras, tòda essa descoberta leva à possibilidade de se convencionar verbalmente com uma pessoa para que ela mova a mão mediante um sinal conhecido e, mediante o outro sinal, não a mova! O autor precisa fazer duas afirmações que nos são importantes aqui: 1.

Sem dúvida, as investigações reflexológicas com humanos no futuro devem ser realizadas fundamentalmente com ajuda de reflexos condicionados secundários (Protopópov, 1923, p. 22). Isso não quer dizer outra coisa senão que a consciência irrompe mesmo em experiências de reflexólogos e altera substancialmente o quadro do comportamento. Ao expulsar a consciência pela porta, ela entra pela janela.

2. A inclusão desses procedimentos de pesquisa no conjunto de procedimentos reflexológicos funde-a inteiramente com os pro­ cedimentos de investigação das reações etc. há muito estabele­ cida pela psicologia experimental. Isso também é observado por Protopópov, mas ele considera essa coincidência casual e apenas exterior. Para nós, contudo, é claro que aqui se trata de uma to* Protopópov, V. P. Metodi refleksologuítcheskogo issledovanie tcheloveka [Métodos de investigação reflexológica do ser humano], Jurnal psikhologuii, nevrologuii i psikhiatrii [Revista de Psicologia, Neurologia e Psiquiatria], v. 3, n. 1-2, 1923.

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tal capitulação da metodologia puramente reflexológica, aplicada com êxito em cachorros, diante dos problemas do comporta­ mento humano. É absolutamente fundamental mostrar, ainda que em poucas palavras, que essas três esferas do psiquismo, nas quais a psicologia empírica a dividiu (consciência, sentimento e vontade), se forem ob­ servadas do ponto de vista das hipóteses aqui elaboradas, também são dotadas da natureza do caráter consciente, que lhe são inerentes, e são facilmente conciliadas tanto com essa hipótese quanto com a metódica dela decorrente. 1. A teoria de William James18 (1905)* abre totalmente a possi­ bilidade de tal interpretação do caráter consciente dos sentimentos. Dos três elementos habituais - A: causa do sentimento, B: o senti­ mento em si, C: manifestação corporal -, James faz a seguinte reelaboração: A - C - B. Não irei recuperar toda sua conhecida argumen­ tação. Direi apenas que isso oculta totalmente: a) o caráter reflexo do sentimento, o sentimento como sistema de reflexos - A e B; b) o caráter secundário da consciência do sentimento, quando sua própria reação serve de estímulo para uma nova reação interna - B e C. Tor­ na-se também claro o significado biológico do sentimento como uma reação de avaliação rápida de todo o organismo ao seu próprio com­ portamento, como ato de interesse de todo o organismo na reação, como um organizador interno de todo comportamento presente em determinado momento. Observo ainda que a tridimensionalidade do sentimento de Wundt,19 em essência, também trata de tal caráter avaliativo da emoção, como uma espécie de eco de todo o organismo à sua própria reação. Daí a irrepetibilidade, singularidade das emoções em cada uma de suas ocorrências.

* james, W. Psikhologuiia v besedakh s utdiiteliami [Psicologia em conversas com professores]. Moscou, 1905.

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2. Os atos de conhecimento da psicologia empírica tamb revelam sua natureza dupla na medida em que eles ocorrem de forma consciente. A psicologia distingue claramente dois estágios neles: os atos de conhecimento e a consciência desses atos. Especialmente interessantes são os resultados da auto-observação exata da Escola de Würzburg dessa pura “psicologia de psicólo­ gos” na direção indicada. Uma das conclusões de tais pesquisas de­ termina a impossibilidade de observar o próprio ato de pensamento, o qual escapa à percepção. Aqui a auto-observação se esgota. Esta­ mos no fundo da consciência. A conclusão paradoxal que sugere a si mesma é que há certo caráter inconsciente nos atos do pensamento. Observa-se com isso que os elementos que encontramos em nossa consciência são, antes, sucedâneos do pensamento do que sua essên­ cia: são fragmentos, pedaços, espuma. A via experimental permitiu demonstrar, segundo O. Külpe20 (1916),* que nosso “eu” não pode ser separado de nós. É impossível pensar abandonado a si mesmo aos pensamentos, mergulhando neles e, ao mesmo tempo, observar esses pensamentos. Tal distinção do psi­ quismo é impossível até o fim. Isso quer dizer que a consciência não pode ser dirigida para si mesma, ela é um aspecto secundário. Não é possível pensar o próprio pensamento, captar o mecanismo mesmo da consciência, justamente porque ele não é um reflexo, ou seja, não pode ser objeto da vivência, um estímulo para outro reflexo, mas é em um mecanismo de transmissão entre sistemas de reflexos. Entretanto, uma vez que o pensamento é terminado, ou fceja, o reflexo é formado, é possível observá-lo conscientemente: “Primeiro uma coisa, depois outra”, como diz Külpe.

* Külpe, O. Sovremennaia psikhologuiia michleniia [A psicologia contemporânea do pen­ samento]. In Novie idei vfilosofii [Novas idéias na filosofia]. Petrogrado, 1916.

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A esse respeito, M. B. Krol,21 em um de seus artigos (1922),* diz que os novos fenómenos revelados pelas pesquisas de Würzburg sobre os processos superiores da consciência têm uma semelhança impressionante com os reflexos condicionados de Pávlov. A esponta­ neidade do pensamento, o fato de que ele é descoberto em sua forma pronta, as complexas sensações da atividade e das buscas etc. estão evidentemente relacionadas com isso. A impossibilidade de observa­ ção fala em favor dos mecanismos aqui mencionados. 3. Por fim, a vontade revela, de forma melhor e mais simples, precisamente a essência de seu caráter consciente. A presença preli­ minar de noções motoras na consciência (ou seja, reações secundá­ rias a movimentos dos órgãos) explicita o assunto. Todo movimento deve ser realizado primeiramente de forma inconsciente. Depois sua cinestesia (ou seja, reação secundária) torna-se a base de seu caráter consciente (H. Münsterberg, 1914; H. Ebbinghaus, 1912)."22 É o cará­ ter consciente da vontade que confere a ilusão dos dois momentos: eu pensei e eu fiz. Aqui, de fato, estão presentes duas reações, só que em ordem inversa: primeiro a secundária, depois a principal, a primeira. Às vezes o processo se complexifica, e a teoria sobre o ato volitivo e seu mecanismo, complexificado pelos motivos, ou seja, o embate de algumas reações secundárias, também concorda integralmente com as ideias desenvolvidas antes. No entanto, provavelmente o mais importante que tais ideias explicitam é o desenvolvimento da consciência a partir do nasci­ mento, sua origem na experiência, seu caráter secundário e, conse­ quentemente, o condicionamento psicológico pelo meio. A existência * Krol, M. B. Michlenie i retch [Pensamento e linguagem], Trudi belorusskogo gossudarstvennogo universiteta [Trabalhos da Universidade Federal de Belarus]. Minsk, v. 11, n. 1, 1922. ** Münsterberg, H. Psikhologuiia e ekonomitcheskaia jizn [Psicologia e vida econômica]. Moscou, 1914; Ebbinghaus, H. Osnovi psikhologuii [Fundamentos da psicologia], São Petersburgo, v. 1, n. 2, 1912.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

determina a consciência: pela primeira vez essa lei pode, mediante certa elaboração, adquirir um sentido psicológico exato e revelar o próprio mecanismo dessa determinação.

6 No ser humano se distinguem claramente dois grupos de refle­ xos, que podem ser corretamente denominados reversíveis. São refle­ xos a estímulos que, por sua vez, podem ser criados pela pessoa. Uma palavra ouvida é um estímulo, uma palavra dita é um reflexo que cria o mesmo estímulo. Aqui o reflexo é reversível, pois o estímulo pode tornar-se reação e vice-versa. Esses reflexos reversíveis constituem a base para o comportamento social, servem de coordenada coletiva do comportamento. De todo conjunto de estímulos existentes, um grupo se destaca claramente para mim, isto é, o grupo dos estímulos sociais que partem das pessoas. Destacam-se, pois posso recriá-los; pois eles se tornam rapidamente reversíveis para mim e, consequentemente, determinam meu comportamento de forma distinta de todos os de­ mais. Eles me equiparam aos outros, tornam meus atos idênticos a eles mesmos. No sentido amplo da palavra, na linguagem encontra-se a base do comportamento social e da consciência. É de extrema importância estabelecer aqui, ainda que de pas­ sagem, a ideia de que se isso é assim, quer dizer que o mecanismo do comportamento social e o mecanismo da consciência são os mesmos. Por um lado, a linguagem é um sistema de “reflexos de contato social” (A. B. Zalkind, 1924);*23' por outro, é um sistema de reflexos da consciência por excelência, ou seja, o aparato de reflexão de outros sistemas. t

* Zalkind, A. B. Otcherki kulturi revoliutsionnogo vremia [Ensaio sobre a cultura do tempo revolucionário]. Moscou, 1924.

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

Aqui está o cerne da questão sobre o “eu” alheio, sobre o co­ nhecimento do psiquismo alheio. O mecanismo de conhecimento de si (autoconsciência) e do outro é o mesmo. As teorias comuns sobre o conhecimento do psiquismo alheio ou reconhecem diretamente sua ¡ncognoscibilidade (A. I. Vvediénski, 1917)*-24 ou tentam construir, por meio de certas hipóteses, um mecanismo coerente, cuja essência c a mesma, seja na teoria das sensações ou na teoria das analogias: conhecemos o outro na medida em que conhecemos a nós mesmos; ao reconhecer a raiva do outro, reproduzo a minha própria raiva. Na realidade, seria mais correto dizer exatamente o contrário. Temos consciência de nós mesmos, pois temos consciência dos outros c do mesmo modo temos consciência do outro, pois, em relação a nós mesmos, somos os mesmos que o outro em relação a nós. Tenho consciência de mim apenas na medida em que eu sou outro para mim, ou seja, conquanto posso perceber meus próprios reflexos novamente como novos estímulos. Não há diferença essencial entre o fato de que posso repetir em voz alta uma palavra dita em silêncio e o fato de que posso repetir uma palavra dita por outro, assim como não há diferença fundamental entre os mecanismos: tanto um quanto o outro são reflexos-estímulos reversíveis. Por conseguinte, a aceitação da hipótese proposta levará direlámente à sociologização de toda a consciência, à aceitação de que o aspecto social da consciência tem primazia temporal e factual. O aspecto individual é construído como um derivativo e secundário, com base no aspecto social exatamente de acordo com seu modelo. Disso decorre a duplicidade da consciência: a noção de duplo é a mais próxima de uma noção real da consciência. É próximo do des­ membramento da personalidade em “ego” e “id”, que Freud desco­ briu analíticamente. Segundo ele, em relação ao id, o ego é como um * Vvediénski, A. I. Psikhologuiia bez vsiakoi metafiziki [Psicologia sem qualquer metafísica], 1’ctrogrado, 1917.

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cavaleiro que deve conter a força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta realizar isso com suas próprias forças, ao passo que o ego emprega forças emprestadas. Essa comparação pode ser continuada. Assim como ao cavaleiro que, não querendo aban­ donar o cavalo, resta apenas levá-lo para onde ele quer, igualmente o ego costuma realizar a vontade do id como se fosse sua própria (Freud, 1924).* Uma excelente confirmação da identidade dos mecanismos da consciência e do contato social e de que a consciência é uma espécie de contato social consigo mesmo pode ser encontrada na construção do caráter consciente da linguagem em surdos-mudos e, em parte, no desenvolvimento das reações táteis em cegos. Em geral, a fala não se desenvolve em surdos-mudos e fica estagnada no estágio do grito reflexo não porque os centros de linguagem estejam comprometidos, mas porque, em razão da ausência da audição, a possibilidade de reversibilidade do reflexo Verbal fica paralisada. A fala não retorna como estímulo para o próprio falante. Por isso ela é inconsciente e não social. Geralmente os surdos-mudos ficam restritos à língua con­ vencional dos gestos, que os inclui no estreito círculo da experiência social de outros surdos-mudos, e o caráter consciente se desenvolve neles graças ao fato de que, por meio da visão, esses reflexos retor­ nam ao próprio sujeito mudo. Do ponto de vista psicológico, a educação do surdo-mudo consiste precisamente em reestabelecer ou compensar o mecanismo prejudicado de reversibilidade dos reflexos.'O mudo aprende a falar considerando o lábio do falante e seus movimentos articulatorios, e aprende a falar por conta própria a partir de estímulos cinestésicos secundários que emergem durante as reações motoras verbais. O mais notável é que o caráter consciente da fala e a experiência social surgem simultaneamente e de forma absolutamente paralela. É como * Freud, S. Ia i ono [O e u e o id], Leningrado, 1924.

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

se fosse um experimento natural organizado especialmente, que con­ firma a tese fundamental deste artigo. Em outra oportunidade, espero mostrar isso de modo mais claro e completo. O surdo-mudo aprende a tomar consciência de si e de seus movimentos na mesma medida cm que ele aprende a tomar consciência dos outros. A identidade de ¿imbos os mecanismos aqui é incrivelmente clara e quase evidente. Agora podemos reunir os elementos da fórmula do comporta­ mento humano que foram citados em urna das seções anteriores. É evidente que a experiência social e a experiência histórica não consti­ tuem coisas distintas do ponto de vista psicológico, uma vez que elas não podem ser efetivamente separadas e são sempre dadas juntas. I remos ligá-las por um sinal de adição. Como tentei mostrar, o me­ canismo delas é exatamente o mesmo do mecanismo da consciência, pois esta também deve ser analisada como um caso particular da experiência social. Por isso, essas duas partes podem ser facilmente designadas pelo mesmo índice da experiência duplicada.

7 Na conclusão deste ensaio, parece-me extremamente impor­ tante e essencial indicar a coincidência das conclusões existente en­ tre as ideias desenvolvidas aqui e a análise da consciência feita por William James. Ideias que partem de campos totalmente distintos, que percorreram caminhos absolutamente diferentes, levam a uma mesma visão, apresentada por James em uma análise especulativa. Vejo nisso uma confirmação parcial de minhas ideias. Ainda em Psi­ cologia (1911),* ele afirma que a existência de estados de consciên­ cia como tais não é um fato totalmente comprovado, mas antes um preconceito profundamente enraizado. Foram precisamente os da-

* (ames, W. Psikhologuiia [Psicologia], São Petersburgo, 1911.

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dos de sua brilhante auto-observação que o convenceram disso. Ele diz: “Sempre que tento notar em meu pensamento a atividade como tal, deparo-me inevitavelmente com um fato puramente físico, uma impressão que parte da cabeça, da sobrancelha, da garganta e do i nariz”. No artigo “A consciência existe?” (1913),* ele explica que a diferença entre a consciência e o mundo (entre o reflexo a um reflexo i e o reflexo a um estímulo) reside apenas no contexto dos fenômenos. No contexto dos estímulos é o mundo, no contexto dos meus reflexos é a consciência. A consciência é apenas o reflexo dos reflexos. Dessa forma, não há consciência como categoria determinada, como modo especial de existência. Ela é uma estrutura muito com­ plexa de comportamento, em especial de duplicação do comporta­ mento, como é dito em relação ao trabalho nas palavras citadas nesta epígrafe de James (1913, p. 126): ¡ quanto a mim, estou convencido de que há um fluxo de pensamentos em m i m . . . esta é apenas uma denominação leviana para aquilo que, em uma análise mais detida, é essencialmente o fluxo da respiração. ■ O “eu p en so”, que segundo Kant deve acompanhar todos os m eus • objetos, não é outra coisa senão “eu respiro” que acompanham esses objetos na realidade. . . . Os pensam entos . . . são feitos da m esm a ; matéria que as coisas.

Neste ensaio foram apontadas apenas de passagem e breve­ mente algumas ideias preliminares. Contudo, parece-me que é a partir delas que deve se iniciar o trabalho do estudo da consciência. Nossa • ciência encontra-se agora em tal situação que ela ainda está muito I longe da fórmula final do teorema geométrico que coroa o último : argumento, como queríamos demonstrar. Por ora, ainda precisamos \ indicar justamente aquilo que precisa ser demonstrado, e depois nos •

* lames, W. Suchestvuet li soznanie? [A consciência existe?]. In Atavie idei vfllosofli [Novas ideias em filosofia], São Petersburgo, 1913.

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

voltarmos à comprovação; primeiro é preciso'elaborar a tarefa, de­ pois resolvê-la. O presente ensaio deve justamente servir, na medida de suas forças, para a formulação dessa tarefa.

Nota: O presente artigo já estava em fase de revisão quando travei conhecimento com alguns trabalhos de behavioristas a esse res­ peito. O problema da consciência é colocado e resolvido por esses au­ tores por meio de ideias próximas às desenvolvidas aqui, isto é, como problema da relação entre reações (cf. “comportamento verbal”).

Notas da tradução 1.

Citação de O capital, de Karl Marx e Friedrich Engels (volume 1, parte III, capítulo VII).

2.

Pável Petróvitch Blónski (1884-1941), pedagogo russo. Homem de partido, escritor e militante, tem sido considerado o primeiro autor soviético a defen­ der a criação de uma psicologia marxista. Foi autor de importantes trabalhos no campo da pedagogia e pedología (ciência da criança e do adolescente).

V

Obras escolhidas, tomo I.

4.

Aleksei Alekséievitch Úkhtomski (1875-1942), fisiologista soviético. Na obra O dominante como princípio de trabalho dos centros nervosos (1923), desenvolveu a noção de que existe certa disposição para que um centro nervoso, ou grupo de centros, acumule a excitação pertencente aos demais, o que regula a sua atividade geral e evita a dispersão de energia orgânica. O “dominante” refere-se, pois, a um princípio geral de ativação do sistema nervoso, podendo apresentar-se em diferentes contextos e reações ao longo da escala zoológica.

V

Vladimir Mikháilovitch Békhterev (1857-1927), famoso anatomista e fisio­ logista do sistema nervoso, atuou em Kazan e São Petersburgo, cidade esta na qual fundou diversos institutos. Construiu a reputação de ser “mais

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pavloviano do que Pávlov”, ao defender que os fenômenos mentais e comportamentais humanos fossem explicados pela noção de reflexo, ideia-chave para sua chamada “reflexologia”. Foi um dos principais pesquisadores rus­ sos de sua época, gozando também de reconhecimento internacional. 6.

Charles Sherrington (1857-1952), fisiologista inglês. Foi laureado com o Prêmio Nobel de Fisiología ou Medicina em 1932. Criou a teoria do caráter integrativo da atividade do sistema nervoso central, com destaque para o livro A ação integrativa do sistema nervoso (1906). Apesar de ter estudado os reflexos, considerava essencial situá-los em perspectiva, tendo como base o processo integral de adaptação do organismo.

7.

Referência ao conto “Kanniverstan”, de Johann Peter Hebel, de 1808. A historia foi retomada no contexto literário russo por Vassfli Jukóvski (17831852), no poema “Houve dois e ainda um”.

8.

Os conceitos de reflexo de objetivo e reflexo de liberdade foram introdu­ zidos por Ivan Pávlov (1849-1936). Após experimentos com Reflex, um cão refratário ao condicionamento no interior de espaços confinados, o fisiologista agregou esse último subtipo ao campo dos reflexos inatos, entre os quais já dispusera o reflexo de orientação como impulso para atingir ob­ jetivos. Segundo o autor, esse parecia ser mais desenvolvido entre ingleses e judeus, e menos desenvolvido entre os russos.

9.

A chamada Escola de Würzburg representou um tipo de psicologia feita na Alemanha. Entre seus principais representantes, estão Oswald Külpe (1862-1915), Karl Marbe (1869-1953) e Karl Bühler (1879-1963).

10. Vladimir Aleksándrovitch Vagner (1889-1934), fundador da zoopsicologia na Rússia. Pesquisador próximo a Vigotski, fez críticas à extensão das ideias sobre os reflexos para explicação de fenômenos mentais e comportamentais complexos. Realizou importantes pesquisas sobre os instintos, recorrendo a estudos históricos comparativos, 11.

A interação entre os conceitos de reflexo, comportamento e reação apre­ sentou-se com frequência nas obras de Vigotski entre 1924 e 1927, quando o autor realizou estudos mais amplos de psicologia científica. Combinando pressupostos de diferentes perspectivas científicas, podemos considerar que Vigotski tomava as reações (reaktsii) como um conceito amplo, referindo-se à resposta do organismo a qualquer estímulo. Com origem provável na reactologia de K. N. Kornilov (1879-1957), o termo, por vezes, fica muito próximo a comportamento (povediénie). Já os reflexos designam processos

1. A consciência como problema da psicologia do comportamento (1925)

estritamente fisiológicos, padronizados na espécie, de relação entre estí­ mulo e resposta. 12. Em russo, edínstvo, aqui fazendo referência ao próprio conjunto de proces­ sos nervosos. Difere de edinitsa, unidade de análise, tal como apresenta-se no livro A construção do pensamento e da linguagem, de 1934. 13.

Gueórgui Pávlovitch Zelióni (1878-1951), fisiologista soviético, aluno de Ivan Pávlov.

14. Tipo de planta ornamental pertencente à família das cruciferas. 15. Referência a Nikolai Nikoláievitch Lange (1858-1921), psicólogo russo e exaluno de Wundt. Em 1914, publicou o mais influente manual de psicologia do período pré-revolucionário. 16.

John Locke (1632-1704), filósofo, foi um dos principais expoentes do empirismo britânico. Em sua busca por compreender a natureza da experiência sensorial e sua relação com o pensamento reflexivo, tornou seu Ensaio sobre o entendi­ mento humano (1689) um clássico da filosofia da natureza. Também é bastante conhecido pelos seus escritos acerca do liberalismo econômico e político.

17.

Viktor Pávlovitch Protopópov (1880-1957) fez carreira na psiquiatra sovié­ tica, na qual a perspectiva organicista pavloviana tornou-se hegemônica em torno de 1935. Aluno de Békhterev, o ucraniano Protopópov celebrizou-se por pesquisas acerca das psicoses, embora tenha realizado importantes trabalhos sobre comportamento animal.

18. Referência ao psicólogo e filósofo norte-americano William James (18421910). A teoria da emoção de James era conhecida na Rússia desde a tradu­ ção, em 1896, do livro Psychology: briefer course (1892). Em 1902, o livro ganhou nova tradução para o russo. 19. Referência ao médico, filósofo e psicólogo alemão Wilhelm Wundt (18321920). Wundt atribuiu ao sentimento três dimensões básicas: prazer/ agrado e desprazer; excitação/mania e calma/depressão; tensão/autocon­ trole voluntário e relaxamento/ausência de controle. Essa teoria tridimen­ sional foi incluída no último resumo importante de sua psicologia indivi­ dual, o Compêndio de psicologia (1896). 20. Oswald Külpe (1862-1915), filósofo e psicólogo alemão. Líder da Escola de Würzburg, envolveu-se em polêmica com Edward B. Titchener sobre

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a relação entre pensamento e imagens sensoriais. Külpe defendeu a con- 1 cepção de pensamento como processo não ligado a imagens sensoriais e j determinado por tendências internas. 21.

Referência ao neurologista russo Mikhail B. Troll (1879-1939).

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22. Referência aos psicólogos alemães Hugo Münsterberg (1863-1916) e Her­ mann Ebbinghaus (1850-1909). : 23. Referência ao psicólogo e médico ucraniano Aron Boríssovitch Zalkind (1888-1936). A princípio com bases epistemológicamente ecléticas, atuou em diversos campos, inclusive a psicanálise e psicoterapia. Com a ascensão da pedologia na União Soviética na segunda metade dos anos 1920, tornou-; -se um dos líderes dessa ciência, sendo reconhecido como um importante ; metodólogo. Chegou a dirigir o Instituto de Psicologia, Pedologia e Psico-; técnica em Moscou. 24.

Aleksandr Ivánovitch Vvediénski (1856-1925), professor da Universidade de Petersburgo. Presidiu a Sociedade de Filosofia de São Petersburgo. Filósofo idealista, foi adepto da psicologia descritiva. Para ele, a vida da alma era desprovida de quaisquer sinais objetivos, pressuposto que o levou a opor-se a métodos experimentais tais como aqueles empregados no laboratório de Aleksander Netcháiev (1870-1948).

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2. A ciência psicológica (1928) i Para a consciência ingênua, revolução e história parecem in­ compatíveis. Para ela, o desenvolvimento histórico ocorre apenas enquanto ele se dá de forma linear. Tão logo comecem reviravoltas, rupturas do tecido histórico, saltos, a consciência ingênua enxerga apenas catástrofe, revés, ruptura; para ela a história é interrompida por um período inteiro até que ela encontre um caminho linear e plano. A consciência científica, ao contrário, considera a revolução a locomotiva da história que dispara a todo vapor; para ela a época da revolução é a encarnação sensível, viva da história. A revolução resolve apenas as tarefas que foram preparadas e colocadas pela his­ tória. Essa é uma afirmação igualmente verdadeira tanto em relação íi revolução como um todo quanto em relação a aspectos isolados da vida social e cultural na época revolucionária. Assim, o destino da ciência psicológica no país da revolução lambém só pode ser compreendido em seu aspecto histórico, à luz do passado e do futuro, em uma grande perspectiva, na dinâmica do desenvolvimento e de catástrofes. A ciência em geral não é a soma de verdades encontradas e acabadas. Ela é, antes de tudo, um processo vivo. Apenas assim se pode compreender e dar sentido a cada etapa de seu desenvolvimento; apenas assim cada salto pode ser visto como resultado de um longo desenvolvimento histórico que o antecede e o prepara, do mesmo modo como o desenvolvimento uterino do feto prepara o nascimento do bebê. O desenvolvimento histórico da psicologia nunca seguiu uma linha reta e única. Em 1874, Brentano1propôs a necessidade de cria­ ção de uma psicologia única, em vez das muitas psicologias que de fato existiam na época sob o mesmo nome. Ele compreendia que essa era

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uma necessidade histórica, realizada por outras ciências, cada uma em seu tempo, como a matemática, a física, a química e a fisiología: a necessidade de encontrar o núcleo da verdade científica universal­ mente reconhecida. Segundo Brentano (1924, p. 2), tanto na esfera da política quanto na esfera da ciência, nenhuma unificação é possível sem guerra. Dessa forma, o caminho para a criação de uma psicologia cientifica única era um caminho de guerra. Em 1917, Wilhelm Stern2 (p. 2) repetiu o diagnóstico de Bren­ tano e mostrou que, apesar dos grandes êxitos da investigação psi­ cológica exata, não havia ainda uma psicologia, apenas psicologias. Entretanto, nesse longo período que separa essas duas visões, a crise da psicologia conseguiu se desenvolver a tal ponto que revelou de forma muito mais clara as verdadeiras tarefas históricas de unificação das muitas psicologias em uma ciência única. Não existem muitas psicologias, como pode parecer à primeira vista, que precisam ser unificadas em uma ciência única: na realidade existem duas psicologias absolutamente distintas e incompatíveis entre si, que não podem ser unificadas, mas devem ser separadas para que a ciência psicológica possa ser possível. Foi mais ou menos essa a modifica­ ção sofrida pela tese inicial no processo de desenvolvimento da ciência. Seria mais correto dizer que existem muitas visões, escolas, orientações psicológicas distintas em disputa, mas, por trás dessa grande variedade de sistemas e tendências isoladas, a análise metodológica e histórica re­ vela dois tipos irreconciliáveis de ciência, duas construções e sistemas de conhecimento fundamentalmente distintos; existem muitas orientações psicológicas, mas psicologias propriamente existem apenas duas. Essa ideia de duas psicologias, que hoje praticamente ninguém contesta* e se tornou patrimônio geral da nossa ciência, foi brilhante­ * É verdade que alguns autores como K. Bühler (Die Krise der Psychologie [A crise da psicologia], 1927) e outros tentam preservar a unidade da ciência psicológica sob a égide do princípio teleológico, ou seja, de fato adotam involuntariamente o ponto de vista não de uma psicologia única, mas de uma das duas psicologias, isto é, da psicologia idealista.

2. A ciência psicológica (1928)

mente desenvolvida por Münsterberg (1923, p. VI),3 que intitulou sua obra de “livro do idealismo militante” e que entendia ser sua princi­ pal tarefa a luta contra o naturalismo psicológico. Em outro livro, o mesmo autor diz que a psicologia dos n ossos dias luta contra o preconceito de que existe apenas um tipo de p sic o lo g ia .. . . O conceito de psicologia encerra em si duas tarefas totalm ente diferentes, que devem ser distingui­ das e para as quais é m elhor que se usem d esign ações especiais. N a realidade, existe um a p sicologia de tipo duplo (M ünsterberg, 1923, p. 7).

A mesma ideia foi defendida por Natorp,4 Dilthey (1924)5 e muitos outros. O próprio Brentano, que contrapôs muitas psicolo­ gias a uma psicologia única, a seguir (1895) rejeitou a ideia de uma psicologia única em favor da ideia de duas psicologias. Ele diz: “mi­ nha escola distingue entre psicologia e psicologia genética” (Bren­ tano, 1924, p. XVIII). A distinção entre uma e outra, não importa como as chama­ mos, independentemente de como seus detalhes variem em diferen­ tes autores, reduz-se a um fato principal, isto é, justamente que a vida psíquica permite duas abordagens fundamentalmente distintas. Por um lado, podemos examinar os processos psíquicos ao lado dos de­ mais fenômenos, em relação íntima com eles; estudá-los por meio de métodos científicos gerais; buscar compreender o curso deles como uma relação de causa e conseqüência objetiva e determinada; buscar as leis que os regem; e considerar como objetivo final do conheci­ mento científico o prognóstico e o domínio do mecanismo desses processos. Por outro, podemos abordar o psiquismo por seu aspecto interno, subjetivo, e estabelecemos um único objetivo: compreendêlo, reproduzi-lo em nós mesmos ou penetrar nele; nesse caso, pas­ saríamos a descrever, desmembrar, buscando chegar à vivência do modo mais próximo e direto possível, transmitir a constituição da

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Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

vida psíquica; nesse caso, seria aplicado um novo método: análise direta de estados que não podem ser comparados a nada, os quais denominamos vivências; com base em dados da experiência direta, que faz com que os fenômenos psíquicos se destaquem para nós em relação ao mundo restante, passaríamos a estudar o psiquismo fora de suas ligações com o mundo físico, como um segundo mundo independente, fechado em si. Ambas as ciências psicológicas de que estamos tratando re­ cebem nomes distintos. Dilthey contrapõe psicologia descritiva e explicativa; muitos autores depois dele distinguem psicologia analí­ tica e indutiva. Münsterberg denomina uma teleológica e intencio­ nal e a outra causal; a primeira também é chamada psicologia do espírito ou compreensiva, à diferença da fisiológica ou explicativa, e assim por diante. Contudo, independentemente do nome, o sen­ tido da diferença permanece o mesmo: em um caso, trata-se de uma psicologia científica natural,* materialista, objetiva; no outro caso, metafísica, idealista, subjetiva. Por isso, Bergson6 tem toda razão em dizer que a metafísica é uma noção simpática da cons­ ciência alheia, ou seja, ele a identificou com a psicologia idealista. Da mesma forma, tem razão Külpe7 (1914, p. 80)ao lembrar Platão como verdadeiro pai dessa nova psicologia: “Em nosso tempo, en­ contramo-nos novamente no caminho em direção às ideias”. Em contraposição a isso, James falou sobre a outra psicologia, que ela segue um caminho materialista. A etapa histórica que a psicologia contemporânea atravessa em seu desenvolvimento é caracterizada pelas duas posições mencio­ nadas anteriormente: por um lado, há muitas correntes psicológicas * Esse termo deve ser compreendido aqui em um sentido amplo: ele designa todas as ciên­ cias reais. Ver V. Ivánovski, Metodologuítcheskoe wediénie v nauku ifllosofiiu [Introdução metodológica à ciência e à filosofia], 1923, p. 183.

2. A ciência psicológica (1928)

separadas que buscam um caminho comum de modo a fundir-se em um fluxo único potente; por outro, dois sistemas de conhecimento científico de naturezas distintas, duas psicologias distintas que ao longo dos séculos se misturaram e paralisaram uma a outra, atual­ mente amadureceram a tal ponto que tentam romper a ligação histó­ rica que as une, tentam distinguir-se entre si e converter-se em duas disciplinas independentes. A psicologia russa, que até muito recentemente se desenvolveu sob forte influência da psicologia europeia ocidental, não é exceção a essa lei histórica. Ambas as tendências - em prol da unificação ou da cisão - também se fazem presentes nela de forma absolutamente evidente em todo seu percurso histórico, até os nossos dias. Seria a tarefa de uma análise histórica acompanhar, sob esse ponto de vista, todo o caminho da psicologia russa de suas origens até os dias de hoje. Para os nossos objetivos, é suficiente mencionar rapidamente alguns dos momentos mais importantes desse trajeto. Na psicologia russa de meados do século XIX, a luta entre duas tendências - uma que adere à psicologia metafísica alemã, e outra que trouxe para o solo russo a psicologia associacionista e ex­ perimental inglesa - foi, a despeito da multiplicidade de divergências secundárias e que confundem a essência da questão, uma expressão, ainda que incompleta e vaga, da luta geral entre duas psicologias que atravessa como um fio condutor toda a história da nossa ciência. Nesse sentido, o livro A psicologia alemã, de M. M. Troitski,8 que estabeleceu as bases para o empirismo inglês em solo russo, aparece como um marco histórico. A influência do herbartismo e do volun­ tarismo, presentes nas obras de N. Lósski9 (1903), fez desequilibrar a balança para a metafísica; já ás obras mais originais de Uchínski,10 Sétchenov11e Vágner lançaram as bases da psicologia científica natural russa. Foi especialmente grande a influência de Sétchenov (s. d., p. 151), que examinou o psíquico e o fisiológico no ser humano como fenô­ menos de uma mesma ordem, como fenômenos congêneres, “ambos

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de origem terrestre, oriundos do mesmo planeta”. O materialismo científico recebeu a sua expressão final na fórmula de Sétchenov: “quem deve elaborar a psicologia e como?”, e sua resposta a essa pergunta, na ideia do psicólogo fisiologista e na afirmação de que a psicologia futura como ciência, está nas mãos não de metafísicos, mas de psicólogos naturalistas. Ele tinha consciência da inadequação do método especulativo para a ciência, do caráter metafísico da psicologia subjetiva e da teoria da visão psíquica especial; e foi o primeiro a formular a ideia de reflexo psíquico.

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O forte desenvolvimento de ambas as psicologias foi fomentado | pela criação de institutos e laboratórios experimentais pelo professor j Netcháiev,12 em Leningrado, com ênfase em psicologia pedagógica e j aplicada, e pelo professor Tchelpánov,13 em Moscou, com ênfase num I campo de investigação puramente teórico. Mas a dissensão interna | entre essas duas psicologias não cessou por um minuto sequer, e, nos J anos anteriores à revolução, observa-se o renascimento da psicologia j metafísica. Nessa época, a psicologia russa, acompanhando a europeia, conseguiu reconhecer que ela reúne dois princípios diversos e tentou desenvolver a ideia de duas ciências. Segundo N. N. Lange (1922, p. 63),14 “Existem, dessa forma, duas psicologias, ou, melhor dizendo, a psicologia revelou ter dois lados, duas faces, como Janus”. O mesmo foi defendido por Tchelpánov (1917, p. 14) sob o nome de psicologia analítica, que ele denominou psicologia principal.

Contudo, a expressão mais viva dessa ideia aparece na obra A : alma do ser humano, de S. L. Frank,15 publicada em julho de 1917,; que era a representação mais completa de um dos caminhos que a ¡ psicologia russa trilhava às vésperas da revolução. Trata-se de uma tentativa de restaurar a psicologia “no significado antigo, literal e ; exato dessa palavra”; seu sentido principal é a luta contra a “psicolo­ gia sem alma”, a luta contra a transferência dos métodos e princípios 1 das ciências naturais para a psicologia. O autor compreende o sentido 1 histórico da luta entre as duas psicologias de forma absolutamente J

2. A ciência psicológica (1928)

exata e a vê “como a suplantação pura e simples de uma ciência por outra distinta” (Frank, 1917, p. 3). Segundo Frank (1917, p. 5), “os verdadeiros êxitos da psicologia foram determinados por uma agu­ çada consciência moral e religiosa”. Um historiador da filosofia russa afirma com toda razão que esse livro “marca uma profunda reviravolta ocorrida nos modos de ver a psicologia”; a esse respeito ele diz que “voltamos novamente à psicologia metafísica” (Radlov, 1921, p. 64) e encerra sua avaliação com a seguinte conclusão: Assim, a literatura psicológica russa cumpriu o m esm o circuito que a ocidental. Ela com eçou com o raciocínio especulativo sobre a alma, o que levou a que a própria existência da alma passasse a ser negada; em seguida, a psicologia sem alma e a psicologia fisiológica passaram a ser experim entais e, pouco a pouco, passaram a assimilar nova­ mente elem entos especulativos (Radlov, 1921, p. 70).

Além da tendência à cisão entre as duas ciências que buscam suplantar uma a outra, outra tendência histórica (em direção à unifi­ cação das disciplinas e orientações psicologias em uma ciência única) também foi claramente expressa na psicologia russa. A “manutenção da unidade interna da psicologia” como tarefa histórica da psicologia russa foi tema do discurso do professor Tchelpánov por ocasião da inauguração do Instituto de Psicologia de Moscou. Para ele, a tarefa do instituto era “tomar medidas para preservar a unidade da psico­ logia”. Em suas palavras, “a psicologia está se decompondo em par­ les não relacionadas entre si. Em conseqüência disso, a psicologia começa a perder sua unidade. Ela corre o risco de se desintegrar” (Tchelpánov, 1917, p. 5). Somente com institutos que cumpram a ta­ refa de unificar a psicologia, ela seguirá na R ússia o cam inho correto para seu desenvolvim ento. Então, o desenvolvim ento da psicologia alcançará um grau de completude e p erfeição que nos perm itirá falar com orgulho de uma

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

“p sicologia ru ssa”, assim com o se fala de uma p sicologia alem ã, inglesa e am ericana (Tchelpánov, 1917, p. 6).

Assim como no Ocidente, essa segunda tendência impediu que se tomasse consciência com clareza da primeira, encobriu o quadro histórico e levou a conclusões falsas: a ideia de unidade encobriu a ideia de cisão; na realidade tal unificação só era possível com base em uma cisão prévia. Isso pode ser facilmente verificado em um episódio histórico. Não obstante, a inauguração do Instituto de Psicologia de Moscou como acontecimento histórico foi saudada pelo acadêmico I. P. Pávlov,16 o mesmo que em sua pesquisa científica partiu das visões de Sétchenov e “excluiu de seu trabalho de laboratório com o cérebro qualquer menção a estados subjetivos”. Em carta, ele afirma que a tarefa do estudo científico da atividade cerebral é tão indescritivelmente grande e complexa que são necessários todos os recursos do pensamento, absoluta liberdade, completa rejeição de lugares-comuns e a maior variedade possível de pontos de vista e mo­ dos de ação para que se tenha êxito. Todos os trabalhadores do pen­ samento, qualquer que seja sua abordagem ao objeto, todos trazem alguma contribuição, e as contribuições de cada um, cedo ou tarde, se combinarão para a resolução das grandes tarefas do pensam ento humano (Tchelpánov, 1917, p. 36).

No entanto, está ligada à inauguração do instituto a esperança de que seu trabalho esclarecerá “a diferença radical existente entre a natureza do ser humano e a das outras criaturas vivas, uma diferença assinalada por nossa fé e por nossa experiência da vida cotidiana” (Tchelpánov, 1917, p. 14).'Isso permitiu que o professor G. I. Tchel­ pánov visse nesse fato a união dos psicólogos russos ligados a orien­ tações contrárias. Segundo ele, pode-se ver nisso o princípio da união dos psicólogos russos em um trabalho comum. Esperamos que a fórmula “quem deve elaborar a psicologia?”, que recentemente separava filósofos, psicólogos e psicó­ logos fisiologistas, já seja coisa do passado (Tchelpánov, 1917, p. 47).

2. A ciência psicológica (1928)

Não pode haver nada mais falso historicamente do que tal afir­ mação: o incompatível continuou sendo incompatível, e a luta entre as duas psicologias logo se tornou clara para todos. O historiador não terá dificuldade de ver que as ideias psicoló­ gicas dependem da dinâmica geral da vida social, e essa dependência pode ser facilmente reconstituída com base em pistas numerosas e absolutamente evidentes. Ele verificará que a vitória e a derrota de cada uma dessas psicologias são determinadas por movimentos ascen­ dentes e descendentes de ondas sociopolíticas e são alimentadas pelos estados reacionários e progressistas de cada época. Não por acaso, o prestígio de Sétchenov se extinguiu na consciência social nos anos anteriores à guerra de reação à guerra, precisamente no período em que foi restabelecida a antiga psicologia em seu significado literal e exato. Apresentaremos apenas alguns traços vivos, que delineiam a relação entre a psicologia e a vida social. “A reunião do Primeiro Congresso Russo de Psicologia Peda­ gógica” - como foi observado nesse mesmo congresso em 1906 “coincidiu com a reunião do primeiro Parlamento russo” (Trudi I Vsierossiiskogo, 1906, p. 229). Com efeito, em todos os primeiros pas­ sos da psicologia aplicada russa, verificam-se as marcas da primavera política. “Mas o que, no final das contas, deve fazer o congresso?”, perguntou um dos palestrantes, “Ele deve trabalhar da mesma forma que um partido político” (Trudi I Vsierossiiskogo, 1906, p. 237). A questão da renovação da escola empurrava a elaboração científica da psicologia em uma certa direção. Contudo, mesmo em uma cir­ cunstância social absolutamente diversa, em 1914, na inauguração do Instituto de Psicologia, confrontaram-se os discursos de Pávlov e do bispo, que falou sobre o estudo da “natureza divina da alma” (Tchelpánov, 1917, p. 16), o que oferece ao historiador uma indicação clara de qual marca social havia naquela estranha unificação de duas psicologias incompatíveis, que pareciam se juntar naquele dia.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Agora não parece estranha nem requer mais explicações a po-i sição básica à luz da qual deve ser analisada a ciência psicológica na URSS: a tarefa histórica da psicologia no país da revolução é a; transformação da psicologia em uma ciência natural, a conclusão das cisão histórica e a unificação de todo o conhecimento positivo acumut j. lado pela psicologia, em seu longo percurso histórico, em um sistema científico único.

II Devemos considerar como fato básico e determinante para o crescimento da psicológica científica natural em nosso país a teoria do* reflexo condicionado criada pelo acadêmico Ivan Pávlov. Com efeito, essa teoria não apenas foi engendrada como também conseguiu darj passos importantes e conquistar reconhecimento mundial ainda antes da revolução. Contudo, embora isso pareça estranho à primeira vista, em amplos círculos da Rússia, ela permaneceu pouco conhecida e, antes da revolução, não exercia nenhuma influência sobre o curso d o ; desenvolvimento da psicologia russa. Nessa época, dava-se a Deus o que é de Deus e a César o que é de César: os psicólogos estudavam fenômenos da alma; já os fisiologistas, a atividade nervosa; um e ou-, tro estavam separados por um abismo. Somente na época da revolução, a teoria do reflexo condicio­ nado tornou-se um fator determinante para o desenvolvimento da ciência psicológica. Outro motivo para isso foi o fato de que essa; teoria avançou significativamente na última década e alcançou certo grau de completude no livro de Pávlov recentemente lançado, Vinte anos de experiência com o estudo objetivo da atividade nervosa superior (do comportamento) de animais (1923).* Mas o principal motivo :

* Em 1927 foi publicado o segundo livro do acadêmico Ivan Pávlov, Aulas sobre o trabalho 1 dos grandes hemisférios do cérebro, que traz uma apresentação completa e sistemática de 1

2. A ciência psicológica (1928)

foi a profunda afinidade interna existente entre as ideias da revolução e a nova teoria. A revolução adotou imediatamente a nova psicologia c, nas palavras de Bukhárin (1924),17 a reconheceu como uma “ferra­ menta do inventário de ferro da ideologia materialista”. Na realidade, a nova teoria foi logo sentida como algo que está na mesma linha que a teoria de Darwin. Darwin relevou a origem da experiência herdada e a organização herdada dos animais. Pávlov re­ velou a origem da experiência pessoal, adquirida e individual e de que forma ela se constrói sobre a experiência herdada, inata. Se Darwin encontrou a chave para a biologia das espécies, Pávlov encontrou a chave para a biologia dos indivíduos. Ele mostra como qualquer elemento da experiência herdada, isto é, o reflexo, pode ser, sob influência do meio sobre o organismo, ligado a qualquer elemento do mundo exterior, um excitante ou estí­ mulo, e como disso surge um quadro muito complexo, mas absoluta­ mente regular do comportamento individual de determinado animal. () mecanismo biológico que Pávlov nomeou como reflexo condicio­ nado é extraordinariamente simples: assim é chamada a reação do nnimal que é suscitada por um estímulo que, na experiência anterior do animal, foi associado com algo que suscita essa reação de forma direta e não condicionada. Se o cachorro saliva ao ver comida, temos diante de nós um reflexo condicionado. Os experimentos clássicos de Pávlov são incrivelmente simples, tie uma simplicidade típica daquilo que é genial. Na realidade, na base deles está o fato da “salivação psíquica”, que qualquer criança conhece ao “começar a salivar” quando vê comida; seu método é determinado pela ideia de associação, que remonta aos tempos de Aristóteles. Isso fez com que muitos não notassem o que havia de inédito por trás da simplicidade dessa teoria: “Onde está a ciência?

25 anos de trabalho com os hemisférios do cérebro de cachorros.

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Qualquer caçador sabe disso quando adestra um cão” (Sbornik posviaschiónni, 1925, p. 18).

Seria preciso lançar um novo olhar, trazido pela revolução, para enxergar nessa teoria o que ela tinha de novo, aquilo que e r a , desconhecido para o caçador que adestra um cão e que sequer fora sonhado por nossos sábios. O núcleo revolucionário dessa nova teoria reside em três elementos: sua profunda ligação com a raiz animal do psiquismo humano, com as formas mais simples de vida; suas amplas perspectivas no campo das formas propriamente humanas e históri­ cas de atividade nervosa; no fato de ligar a raiz com as perspectivas e construir uma ponte entre biologia e história, na ideia, isto é, na ideia ¡ fundamental e no método do reflexo condicionado.

Em certo sentido, os trabalhos de Pávlov realizam de forma < direta a tarefa colocada por Sétchenov, isto é, de mostrar a origem terrena dos mais elevados processos psíquicos, mostrar que o ser humano é uma unidade ao lado de outros fenômenos presentes em ; nosso planeta, e toda sua vida, inclusive a espiritual, na medida em que ela possa ser objeto de investigação científica, é um fenômeno terrestre (Sétchenov, n.d., p. 203). É a teoria de Pávlov que mostra a origem terrestre, animal, das formas superiores de comportamento a partir das formas inferiores, ela revela o próprio mecanismo dessa origem, a dinâmica da transformação de não condicionado para con- i dicionado. Tudo o que é superior no comportamento, tudo o que é condicionado, é construído sobre o não condicionado; na base de todo ato ou ação, não importa quão complexto ele seja, está em última instância o reflexo.

Com isso, extirpa-se definitivamente o dualismo da ciência so-; bre o ser humano, o qual fora recebido como herança da religião e que distinguía no ser humano corpo e alma. O caminho em direção ; a um psiquismo independente, fechado em si e que não pode ser J comparado a mais nada, está fechado à luz da nova teoria. Depois j

2. A ciência psicológica (1928)

da compreensão materialista da natureza viva e morta, depois da compreensão materialista da vida social e histórica da humanidade, chegou o momento de estabelecer uma compreensão materialista para o elemento mais difícil, complexo e obscuro, isto é, o próprio ser humano. Isso permite incluir o ser humano em seu contexto geral de tudo o que é “terreno” e aplicar a ele e à sua vida espiritual as leis ge­ rais que agem no mundo real e são conhecidas pela ciência. Segundo Pávlov (1923, p. 157), “o método subjetivo é método de pensamento infundado, pois o raciocínio psicológico é um raciocínio não determi­ nista, ou seja, reconheço o fenômeno oriundo não se sabe de onde”. Por isso, a nova teoria busca conhecer o ser humano “segundo as regras rígidas do pensamento das ciências naturais”. Contudo, essa ampla perspectiva para trás, para as profundezas da vida animal, não apenas não nos mantém o tempo todo na esfera das formas primitivas, inferiores e primevas do comportamento, como também, ao contrário, é a que pela primeira vez dá à ciência a pos­ sibilidade de elevar-se e, com as ferramentas do conhecimento exato, chegar aos estágios superiores da atividade nervosa. Daí o otimismo incomum dos novos pesquisadores. Ao estudarem a relação entre o ser humano e o mundo, eles estão firmemente convictos de que, seguindo pelo caminho das investigações objetivas, chegaremos gra­ dualmente a uma análise completa da adaptação ilimitada, em todo seu escopo, que constitui a vida sobre a Terra. O m ovim ento das plantas em direção à luz e a busca da verdade por m eio da análise matemática não são essencialm ente fenôm enos da m esm a ordem? N ão será esse o último elo de uma corrente praticamente infinita de adaptações realizadas por todo o mundo vivo? (Pávlov, 1923, p. 23).

O próximo episódio mostra como certos experimentos de Pá­ vlov abriram grandiosas perspectivas. O cachorro recebe comida e, ao mesmo tempo, tem sua pele cauterizada por uma corrente elétrica.

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A corrente elétrica, não importa sua força, converte-se em sinal, em substituto da comida, em um estímulo condicionado do centro alimen­ tar. O estímulo elétrico suscita agora não uma reação de defesa, mas uma reação alimentar: o animal se volta ao experimentador, lambe o focinho e começa a salivar com o se estivesse diante da comida. Exatamente a mesma coisa ocorre quando se substitui a eletricidade por cauterização e ferimento da pele (Pávlov, 1923, p. 154).

Aqui temos o passo seguinte no estudo da atividade nervosa su­ perior, o reflexo condicionado a um estímulo destrutivo ou doloroso. Que experimento poderoso: o cachorro responde à dor com alegria, você provoca uma queimadura ou ferida nele, e ele se arrasta em sua direção. Sherrington18 (1911 como citado em Frolov, 1925, p. 155), o conhecido fisiologista inglês, ao presenciar esses experimentos ex- ] clamou: “Agora compreendo a alegria com que os mártires seguem ! para a fogueira”. j Três anos depois disso, na inauguração do Instituto de Psicologia Experimental foi dito o seguinte:

j

N o Antigo e no N ovo Mundo, as pessoas já tentavam, com ajuda de ¡ engenhosos aparatos, mediante influências sobre o corpo, fazer com que a alma desse respostas necessárias, numa tentativa de estabelecer com exatidão as leis da vida da al ma. . . . Mas será possível investigar a essência interior da alma por m eio do experimento, será possível medir suas manifestações superiores? Quem ousará investigar expe- • rimentalmente a vida religiosa do espírito? (Tchelpánov, 1914, p. 12). 1

O terceiro aspecto que faz a teoria de Pávlov avançar para i o primeiro lugar na psicologia russa contemporânea é aquilo q u e ,; como já foi mencionado, liga a raiz com as perspectivas: o princípio e o método do condicionamento na ação do reflexo. É possível dizer sem exagero que na ciência sobre os indivíduos ele desempenha o í mesmo papel que o princípio e o método da evolução na biologia. Esse método consiste em tomar algum dado primário, natural e sim-

2. A ciência psicológica (1928)

pies e acompanhar suas alterações conforme as condições nas quais sua atividade se desenvolve. No sentido mais amplo e filosófico do termo, todo o mundo da história, da cultura, da língua é o reino da condicionalidade. Nesse sentido, o método dos reflexos condiciona­ dos ganha um significado muito amplo de método natural e histórico aplicado ao ser humano, de nó que liga história e evolução. A teoria dos reflexos condicionados cresceu de forma muito ampla nos anos da revolução; na escola de Pávlov e no Instituto do Cérebro, inaugurado em Moscou pela Academia Comunista, e k foi enriquecida por uma série de descobertas brilhantes; as leis mais im­ portantes da atividade nervosa superior podem agora ser considera­ das esclarecidas: a ciência se aproxima de uma análise mais profunda o complexa do comportamento. Na escola do acadêmico V. Békhterev,19 os reflexos condicio­ nados (combinados) são estudados em pessoas; aqui é feita a tenta­ tiva de levar todos os fatos da vida psíquica, produzidos em algum momento pela psicologia, ao esquema do reflexo, traduzi-los dessa forma para uma linguagem objetiva e relacionar a nova teoria com tudo aquilo que tem valor científico que a psicologia ofereceu em seu desenvolvimento histórico. A tentativa de criar o sistema de uma nova psicologia, construída sobre a teoria dos reflexos condiciona­ dos, foi feita por Békhterev na obra Fundamentos gerais da reflexo­ logia humana. Essa mesma escola está trabalhando sobre os pro­ blemas da reflexologia genética: acompanha-se em um bebê, desde o primeiro dia de vida, a formação dos reflexos condicionados, e, assim, são lançadas as bases da psicologia infantil objetiva (Nóvoe v refleksologuii, 1925). Dentre as questões particulares trabalhadas pela reflexologia, devemos citar a experiência da reflexologia do trabalho, que traz uma análise fisiológica do trabalho físico e mental sob o ponto de vista da teoria da dominante, desenvolvida na escola do professor

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Úkhtomski20 (Békhterev, 1926; Úkhtomski, 1923). O princípio da dominante introduz uma abordagem dinâmica aos fenômenos do comportamento. Ela analisa a atividade nervosa como um todo dinâ­ mico que se constitui na influência do foco dominante de excitação que, em determinado momento, desempenha um papel de organiza­ ção em relação aos demais comportamentos, inibe certas reações, intensifica-se graças a estímulos alheios e confere unidade ao com­ portamento do organismo em cada dado momento. Esse princípio se mostrou muito fértil para o estudo da natureza das reações de trabalho do ser humano. Recentemente, difundiu-se de forma especial a aplicação da reflexologia a questões de educação, terapia, organização do trabalho etc. Mas a esse respeito, isto é, sobre a psicologia aplicada e prática, falaremos à parte.

III Se a teoria dos reflexos condicionados, conforme observou cor­ retamente Pávlov, constitui o “fundamento principal do conhecimento psicológico”, pode-se dizer que a psicologia científica natural foi esta­ belecida sobre um alicerce firme. Entretanto, tornou-se mais aguda a questão da reforma metodológica da ciência, do reexame das ideias filosóficas fundamentais que estão na base dessa ciência dupla. Na história da psicologia, do modo como ela entrou na revolução, havia tanto de alheio, distante e incompatível com as orientações dadas pela revolução para toda a vida cultural que uma revisão e crítica da psicologia tradicional se mostrou absolutamente inevitável. Essa revisão se deu por forte influência da psicologia norte-ame­ ricana do comportamento, o chamado behaviorismo. Esse foi um fato absolutamente novo na história da psicologia russa, que até então so­ fria a influência das ciências alemã, inglesa e, em parte, francesa. Mas

2. A ciência psicológica (1928)

o impacto do behaviorismo foi refletido. Ele mesmo surgiu e se formou como uma orientação científica independente sob influência da escola objetiva russa. A teoria dos reflexos condicionados estava na base do sistema norte-americano, e Watson, o pai do behaviorismo, considera corretamente que os fundadores dessa teoria são Pávlov e Békhterev. Pela primeira vez, a psicologia russa não apenas se desenvolveu de forma autônoma, independente de influências estrangeiras, como ela mesma exerceu forte influência sobre a psicologia estrangeira, em par­ ticular a norte-americana. Dessa forma, a influência norte-americana era uma influência russa refratada sobre a própria psicologia russa. Seja como for, seguindo os norte-americanos, os psicólogos russos proclamaram que a psicologia é uma ciência do comporta­ mento de criaturas vivas. Em 1921, foi lançado o Ensaio de psicologia científica, de Pável Blónski,21 no qual o autor tentou realizar uma re­ forma da psicologia, criar uma psicologia não apenas sem alma, mas também sem consciência (ou fenômenos psíquicos), como uma teoria científica natural sobre o comportamento. Essa nova ideia estava em consonância com a revolução, e a psicologia do comportamento passou a ser amplamente difundida em solo russo e suplantar a tradicional psicologia empírica. Tanto nos Estados Unidos como na Rússia, a psicologia do comportamento era uma continuação daquela mesma luta entre duas psicologias, discu­ tida anteriormente. Na variante russa do behaviorismo norte-americano, três notas ressoaram com mais força: o ímpeto em direção a um sistema psico­ lógico firme, fundamentado genética e matematicamente, com base no materialismo científico; o desejo de aproximar a teoria psicoló­ gica da teoria da sociedade, nova para a ciência acadêmica da época, que exerceu hegemonia espiritual na época da revolução; e, por fim, um senso dos grandes problemas que se colocavam para a psicologia nesse novo caminho. Segundo Blónski (1921, p. 21),

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ainda precisam os descobrir o ser hum ano - e que ignorantes estra­ nhos nós muito provavelmente nos revelaremos diante dessa grande descoberta futura! Precisamos descobrir o “homem social” e sua re­ lação com o ambiente circundante, e fazê-lo não por m eio de raciocí­ nios gerais, mas de fórmulas matemáticas.

Em 1922, foi lançado o livro Teoria das reações humanas, de Konstantin Kornilov,22 que chegou à mesma ideia partindo de outro ponto. A investigação experimental das reações surgiu com base na teoria tradicional das reações e de seus tipos, do modo como ela foi formulada pela escola de Wundt. O que Kornilov introduziu de novo nessa investigação foi o estudo do aspecto dinâmico da mesma reação, cujo aspecto temporal fora estudado por Wundt e seus alu­ nos. Contudo, a conclusão a que se chega a partir do novo ponto de vista se mostrou profundamente revolucionária. A investigação mostrou que a atividade do pensamento e a manifestação externa dos movimentos se encontram em relação inversa entre si: quanto mais se complexifica e se torna tenso o processo do pensamento, m enos intensiva se torna a manifestação externa do movimento (Kornilov, 1922, p. 122).

Isso levou o autor à formulação do princípio do gasto monopo­ lar de energia, segundo o qual “o intelecto não é outra coisa senão um processo volitivo refreado, que não se converte em ação” (Kornilov, 1922, p. 128). Com isso, o autor oferece uma nova compreensão da reação, ou melhor, amplia esse conceito psicológico a uma forma bá­ sica e primária de manifestação vital. Em vez disso, o autor propõe uma nova compreensão da reação, ou melhor, ele amplia seu conceito psicológico para chegar a uma forma básica e primária da manifes­ tação vital. Em sua visão, o estudo da psicologia deve partir não de sensações ou percepções, mas de reações: aquelas são “conceitos abs­ tratos”, estas são dadas na experiência. Na formulação do autor, “A psicologia deve se tornar o estudo das reações do organismo vivo, que

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abrangem todas as formas com que ele se manifesta em relação ao meio circundante” (Kornilov, 1922, p. 10). Aqui, como na formulação inicial de Blónski, a tendência bá­ sica segue inteiramente a linha da separação historicamente pautada da psicologia materialista e a inclusão do seu objeto no contexto das ciências naturais. Segundo Kornilov (1922, p. 8), “o lugar da psico­ logia é entre as disciplinas de ciências naturais tanto pelo método de trabalho como por seu objeto de estudo”. Contudo, essas primeiras tentativas de conferir um novo as­ pecto à psicologia têm uma deficiência básica: em ambos os autores, perde-se toda a diferença entre essas reações ou movimentos, que constituem o objeto da psicologia, e aquelas que não apresentam nenhum interesse para o psicólogo. Se a reação é a forma básica de manifestação da vida, um processo inflamatorio é, sem dúvida, também uma reação, bem como o aumento da temperatura corpo­ ral, mas será possível que haja uma psicologia da inflamação ou da febre? Se a psicologia, segundo Blónski, é a ciência do com­ portamento, ou seja, do conjunto de movimentos, qual sinal, quais critérios permitem distinguir aqueles movimentos que têm interesse para o psicólogo daqueles que lhe são indiferentes, por exemplo, os movimentos peristálticos? Contudo, a imperfeição dessas primeiras tentativas da nova psicologia representa justamente a imperfeição dos primeiros passos: a direção foi indicada corretamente, e ela logo levará a uma nova for­ mulação da ideia de reforma da psicologia. Em 1923, no Congresso Russo de Psiconeurologia, Kornilov fez uma apresentação intitulada “A psicologia moderna e o marxismo”, na qual ele tratou da neces­ sidade de aplicar o método do materialismo dialético à psicologia. A mesma ideia fora defendida por Strumínski,23 Blónski e outros. No Segundo Congresso Russo de Psiconeurologia, ocorrido em Leningrado em 1924, Kornilov formulou os princípios básicos da psicologia

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marxista, com base nos quais teve início a elaboração teórica e expe-| rimental de cada problema psicológico. Com isso, foi dado um passo decisivo, ocorreu uma reviravolta histórica para o desenvolvimento da psicologia. A psicologia passouj a ser tida como disciplina marxista. Ela entrou conscientemente paral o “inventário de ferro da ideologia marxista”, colocou-se consciente^ mente a serviço da revolução. Com isso, ela tomou o único caminho| que permite a realização da psicologia como ciência. O avanço para um campo inteiramente novo se mostrou extre- j mámente difícil; ele foi perpassado por erros e lapsos tanto em rela­ ção à teoria do materialismo dialético quanto à psicologia. É preciso! ter em vista que a psicologia marxista é uma tarefa histórica da nossal época que pode ser realizada apenas mediante esforços conjuntos! de mais de uma geração de psicólogos, pois a expressão “psicologia! marxista” não designa um ramo da psicologia ou uma de suas orien- j tações, ela designa a psicologia científica como um todo, psicologia! marxista é sinônimo de psicologia científica, e nesse sentido a cria­ ção de uma psicologia marxista é a conclusão de um longo processo histórico de transformação da psicologia em uma ciência natural. A tentativa de construir a psicologia com base no materialismo dialético não é, em essência, algo inteiramente novo. No exterior, houve mais de uma tentativa, embora não com a seriedade e o im­ pulso que distinguem a tentativa russa. “A ideia de fazer uma descri­ ção e explicação marxista do comportamento de modo a substituir a psicologia antiga está amadurecendo em muitos lugares ao mesmo tempo”, diz Blónski (como citado em Jameson, 1925, p. X). Isso indica que essa é uma tarefa historicamente justificada, que se trata da conclusão lógica do estado atual da nossa ciência, que esse movimento se baseia em uma poderosa tendência histórica de desen­ volvimento da nossa ciência. “Somente a psicologia marxista é uma psicologia que efetivamente esgota seu objeto” (Jameson, 1925, p. IX).

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O que a nova psicologia oferece? Por enquanto, pouca coisa. Te­ mos alguns pressupostos metodológicos; segundo Blónski, existe “a pers­ pectiva de construir uma psicologia materialista em toda sua amplitude”, um “esquema de ciência”, um plano; existem os primeiros passos da pesquisa teórica e experimental, e o mais importante, a psicologia mar­ xista tem uma vontade historicamente justificada em direção ao futuro. Há uma circunstância que, à primeira vista, estabelece a fron­ teira entre a tendência histórica de criação de duas psicologias, como ela era compreendida, e a psicologia marxista: precisamente a relação entre a psicologia e as ciências humanas (história, sociologia e suas divisões). Os primeiros autores da teoria sobre as duas psicologias separavam as esferas da seguinte maneira: uma psicologia fisiológica voltada para as ciências naturais, que estuda o ser humano como um ser natural; uma psicologia teleológica voltada para as ciências huma­ nas, que estuda o ser humano como uma criatura histórica. Foi justamente o medo de penetrar nas ciências sociais das concepções materialistas da psicologia científica natural que fez com que Dilthey e outros autores pensassem em separar a psicologia em duas “ciências separadas”. Ele diz que a “inclusão na ciência natural” confere à psicologia um tom de materialismo refinado. Para o jurista ou para o historiador da literatura, tal psicologia não é um solo firme, mas um perigo. Todo o desenvolvimento ulterior mostrou o quanto o materialismo oculto da psicologia explicativa, instituída por Spencer, afetou de forma nociva a política econôm ica, o código penal e a teoria do Estado (Dilthey, 1924, p. 30).

É nesse ponto que a linha do desenvolvimento da psicologia russa se afasta decisivamente do caminho indicado pelos primeiros autores dessa ideia. A psicologia materialista não quer ser, em primeiro lugar, uma psicologia social. Segundo Kornilov (1924, p. 75), “A psicologia marxista analisa cada pessoa como variação de uma determinada classe.

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É por isso que o estudo do comportamento deve partir não da psicologia j í individual para a social, mas o caminho contrário”. I Será que essa psicologia não abrange aquelas mesmas tare­ fas alheias, será que ela não deturpa as bases históricas nas quais se.) apoia? De modo algum: em primeiro lugar, diferentemente de Dilthey j e sua escola, ela parte da teoria do materialismo histórico, que analisai a história como um processo histórico natural; em segundo lugar, ao aceitar a ideia de duas psicologias, ela leva essa ideia à sua conclusão lógica e afirma que como ciência é possível apenas a psicologia mate­ rialista; a segunda psicologia não é ciência, mas metafísica.

vr Resta falar sobre o terceiro aspecto que, junto dos dois anterio­ res, revela o quadro geral da ciência psicológica na URSS. Trata-se do rico crescimento da psicologia aplicada, a psicologia aplicada à educação, ao tratamento de saúde, à organização do trabalho etc. Esse não é um fenômeno casual; ele está legitimamente ligado a dois outros traços da nossa psicologia e decorre diretamente da prin­ cipal tarefa histórica que ela resolve. Se na teoria dos reflexos con­ dicionados a nossa psicologia encontrou seu fundamento biológico, na dialética materialista ela encontrou sua formulação filosófica e na psicotécnica (no sentido mais amplo do termo), sua prática, ou seja, o domínio efetivo sobre o comportamento humano, a subordinação dele ao controle da razão. Por sua própria natureza, a psicotécnica foi convocada a de­ sempenhar o papel de revolucionar a psicologia, e isso foi de fato assim em toda parte em que a psicotécnica emergiu. N ão pode haver dificuldades quanto à questão de qual psicologia é necessária à psicotécnica. A psicotécnica lida exclusivam ente com

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a psicologia causal, com a psicologia da objetivação da vida men­ tal. . . . Será possível que a psicologia causal coexista com uma psicologia de orientação teleológica? O psicotécnico não trata de responder a tais questões fundamentais, pois ele sabe que, em todo caso, podemos dominar todos esses processos e funções psíquicos usando a linguagem da psicologia causal, e que somente a psico­ técnica pode lidar com uma compreensão causal (Münsterberg, n.d., pp. 10-11). Pela essência de sua tarefa, a psicotécnica precisa da psicologia materialista. É notável que Münsterberg (n. d., p. IX), o autor do livro do idealismo militante, diga o seguinte a esse respeito: Como ciência teórica sobre a experiência pessoal, a ciência causal não se mostra satisfatória. E não poderia ser diferente, uma vez que a psicologia explicativa é a resposta para uma questão não natural, arti­ ficialmente colocada; a vida mental em si mesma não precisa de expli­ cação, mas de compreensão. Mas a psicotécnica, que pode trabalhar apenas com ajuda da psicologia causai, atesta a necessidade dessa colocação artificial da questão e, com isso, afirma sua legitimidade. Assim, somente na psicotécnica se revela o verdadeiro significado da psicologia explicativa, e dessa forma nela se completa o sistema das ciências psicológicas. Impossível dizer com maior clareza que tão logo o ponto de vista da contemplação é abandonado e o ponto de vista da ação é ado­ tado, somos forçados a recorrer à psicologia materialista, objetiva, ou seja, realista, por mais não natural que essa visão sobre o psiquismo possa parecer. O idealista extremo é forçado a ser materialista na psicotécnica, tamanha é a força coercitiva da natureza objetiva das coisas. O autor está indubitavelmente certo em um aspecto: somente na psicotécnica a psicologia encontra sua verdadeira revelação e con­ clusão. O papel de revolucionar desempenhado pela psicotécnica se manifestou no fato de que ela obriga com necessidade objetiva todo

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o psicólogo, independentemente de suas visões filosóficas, a elaborar ■ uma psicologia materialista. Contudo, a psicotécnica adquire um significado especial no \ sistema da psicologia marxista. Ela é a prática pela qual o psicólogo comprova a verdade de suas ideias. É o objetivo final e o critério da verdade. Deve desempenhar em relação à psicologia teórica o mesmo i papel que a técnica cumpre para as ciências fisioquímicas e a medi­ cina para as ciências biológicas. Não surpreende, portanto, que a psicologia antiga se rela­ cione com a prática com desconfiança e ciúme extremos: ela se sente insegura diante do tribunal da ação. O professor Vvediénski (1917, p. 349),25 ao tratar das tarefas da psicologia russa no Primeiro Instituto de Psicologia, observa “como a psicologia contemporânea ainda está distante do estágio em que seja possível se apoiar tranqui­ lamente nela em alguma atividade”; ele considerava oportunas ape­ nas as tarefas metodológicas e teóricas. De fato, a psicotécnica não havia sido elaborada absolutamente na Rússia antes da revolução. De toda a esfera da psicologia aplicada, desenvolveu-se a psicologia pedagógica, e mesmo esta suscitou forte oposição por parte de uma série de psicólogos. Segundo Münsterberg (1923, pp. 14-15), Alguns psicólogos de profissão que consideram ser uma profanação da investigação científica qualquer contato desta com a vida prática, ainda agora achariam bom se esse m om entó ocorresse apenas num futuro distante. Eles ressaltam o fato incontestável de que o sistema da psicologia ainda não está terminado e, nesse sentido, está muito longe da física e da química. . . . Contudo, a experiência das ciências naturais fala claramente não em favor de tal abstenção. A m edicina não esperou e não poderia ter esperado a anatomia, a fisiología e a patologia festejarem seus triunfos, e a técnica sempre tirou proveito até dos mais m odestos êxitos da física.

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2. A ciência psicológica (1928)

A psicologia aplicada da URSS desenvolveu-se amplamente nas mais diversas direções: ela passou a ser aplicada em todas as formas de vida social. A psicologia pedagógica e a pedología26 desde a revolução fo­ ram radicalmente transformadas, pois o sistema de educação fora transformado, suas demandas em relação à psicologia passaram a ser outras. Se a escola antiga, fundada em grande medida na memoriza­ ção de lições, interessava-se predominantemente por processos de me­ morização, assimilação, reprodução exata, classificação do material memorizado etc., a nova escola se interessa por questões totalmente distintas. Entre os primeiros lugares, estão o problema da padroniza­ ção etária e o diagnóstico do desenvolvimento infantil: a nova escola precisa de modos para avaliar como uma grande massa de crianças se desenvolve e aprende. As bases teóricas para essa pedología foram estabelecidas por Blónski em seu livro Pedología (1925). Uma enorme quantidade de trabalhos foi produzida nesses anos e continua a ser realizada nessa direção. Se esses trabalhos ainda não levaram ao estabelecimento de um sistema único e universalmente aceito de padrões de desenvolvi­ mento etário infantil, isso se deve à enorme complexidade da tarefa, cuja realização deve levar ainda muitos anos. Contudo, muitos métodos novos, muitos procedimentos novos de pesquisa foram proporcionados por esses trabalhos. Mencionaremos o programa de pesquisa sobre a criança e o coletivo de Stepan Molojávi,27 que, diferentemente dos esquemas pré-revolucionários do mesmo gê­ nero, tenta estudar a criança em sua relação com o meio social e com­ preendê-la sob o pano de fundo desse meio como um organismo íntegro em crescimento, em suas orientações fundamentais sociais e de vida. Desde a revolução também se desenvolveu muito a aplicação da reflexologia à pedagogia. Não por acaso o método principal de Pávlov é chamado de educação do reflexo condicionado: o problema

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

da educação realmente está no centro dessa teoria. Por isso, sua apli­ cação à teoria e à prática da educação se revela tão fértil e simples. Com efeito, o educador quase sempre lida com a educação do reflexo condicionado, de modo que o conhecimento das leis que regem esses processos permite que ele eleve seu trabalho a um nível científico. Especialmente produtiva tem sido a aplicação do método dos reflexos condicionados ao estudo da criança deficiente, o que foi feito com particular êxito pela escola de Khárkov do professor Viktor Protopópov28 e Ivan Sokoliánski.29 Mas também na escola geral a lei bá­ sica, isto é, a estrutura do meio forma o novo reflexo, as “condições” criam uma nova reação, corresponde integralmente à posição funda­ mental da pedagogia soviética, segundo a qual a educação, no final das contas, leva à organização do meio educativo. As mais importantes questões da psicologia infantil são colo- j cadas de forma absolutamente nova nos trabalhos do professor Aron Zalkind.30 Pela primeira vez, a primeira infância e a idade escolar receberam nesses trabalhos uma interpretação materialista clara. A teoria da infância neutra, fora do sistema de classes, a abordagem zoológica à primeira infância, toda a teoria tradicional sobre o psi­ quismo da criança foi aqui submetida a uma crítica avassaladora. Pela primeira vez, o ativismo, o coletivismo, a organização e o ma­ terialismo aplicados à idade infantil receberam uma fundamentação teórica. Para a resolução de questões difíceis da psicologia infantil, como a questão da criança desadaptada socialmente e a questão sexual na educação, foram indicados pela primeira vez meios cien­ tíficos (Zalkind,1926a). Esses trabalhos lançaram as pedras funda­ mentais da pedología marxista. Esse autor também lançou sob uma nova luz os problemas da psicoterapia. Para ele, medicina, sociologia e pedagogia estão indissociavelmente ligadas. Enfermidades psicogênicas são enfermidades da disposição social. O tratamento da pessoa requer em grande medida

2. A ciência psicológica (1928)

uma transformação de sua disposição sociorreflexiva, os problemas da medicina têm cada vez mais se tornado questões de sociologia prática (Zalkind,1926b). Por fim, a psicotécnica em seu sentido próprio, como psicologia prática do trabalho, desenvolveu-se nos últimos anos na URSS como uma grande e produtiva disciplina científica. A psicotécnica russa não passou pela crise que no Ocidente foi provocada pelo “entusiasmo incontido da psicologia aplicada na época da guerra” e pela reação pós-guerra a esse entusiasmo, como observa corretamente o professor Isaak Chpilrein (1923),31 um dos primeiros psicotécnicos russos. Por isso, essa disciplina revolucionária desenvolveu-se em um ritmo comparativamente uniforme e cresceu de forma orgânica. As condições especiais da organização soviética do trabalho permitiram que nossa psicotécnica evitasse os desvios e as dificuldades oriundos de se estar a serviço de empresas particulares capitalistas. O problema central da nossa psicotécnica foi a pesquisa das profissões. Segundo Chpilrein (1924, p. 3), A base científica para o trabalho com seleção profissional deve natu­ ralmente ser a professiografia. Com ajuda do m étodo de trabalho, a professiografia é a orientação de trabalho mais característica neste m omento para nosso laboratório. Ela pode ser considerada um mé­ todo que caracteriza a escola psicotécnica moscovita.

Além disso, foi realizado um grande trabalho teórico de ve­ rificação de métodos, de estudo da treinabilidade etc. No entanto, a característica mais importante da psicotécnica russa é sua ligação orgânica com a produção à qual ela se aplica; ela é uma parte orgâ­ nica dela, ela cresce a partir dela; separada da produção, ela perde uma boa parte de seu significado. Mas internamente ela carrega uma função de extrema importância e resolve a tarefa de elevar a produti­ vidade do trabalho por meios psicológicos.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

Não obstante, a peculiaridade da psicotécnica russa não se re­ sume ao fato de ela ocupar uma posição especial na produção à qual ela se aplica, mas está ligada ainda ao lugar específico que ocupa den­ tro da própria psicologia. Como já foi dito, ela não está na periferia,; mas no centro da nova psicologia. Não se trata de deduções ou de algo secundário, que pode ou não existir e em relação a que a ciência; é indiferente: ela é o nervo central do novo sistema, sua prática, ou ¡ seja, a psicologia em ação.

***

Seguindo Brentano, podemos dizer que a psicologia é a ciên- i cia do futuro. É verdade que essa fórmula tem, para nós, um conteúdo essencialmente diverso. Brentano atribuía dois sentidos dis­ tintos: primeiro que, de todas as ciências teóricas, é justamente a ; psicologia que pertence ao futuro; segundo que, à diferença das leis da gravidade, do som, da luz e da eletricidade, cujo significado se perde para nós uma vez que nos afastamos desse mundo, as leis da psicologia têm força “tanto lá quanto aqui” para a alma imortal (Brentano, 1924, pp. 36-37). O comentador, de fato, apresenta a seguinte explicação nesse momento: o autor se referia apenas às leis da psicologia descritiva, e não da genética, pois estas, dada a sua natureza fisiológica, no outro mundo (3 + n dimensões) já serão outras (p. 261).* Tal é perspectiva de futuro de uma psicologia, a descritiva: ela é a ciência do futuro que se iniciará após a nossa morte. A outra psicologia também é a ciência do futuro, mas do futuro terreno, o futuro da humanidade. Sua perspectiva também deve ser * Nota publicada em 1924, em Leipzig.

2. A ciência psicológica (1928)

indicada, em primeiro lugar, porque as ideias revelam sua verdadeira essência apenas quando levadas ao extremo, ao final lógico, à conclu­ são final, e, em segundo lugar, pois nada na revolução pode ser com­ preendido sem uma perspectiva de futuro. Essa perspectiva é ditada pelo curso do desenvolvimento da nossa psicologia. Kautski32 mostrou perfeitamente que a criação do novo ser hu­ mano não é o pressuposto, mas o resultado do socialismo. Será que não estam os certos de supor que, em determinadas cpndições, será criado um novo tipo de ser humano que esteja acima dos tipos mais elevados criados pela cultura até então? Podemos chamá-lo de super-homem, só que ele não será exceção, mas a regra, será um super-homem em relação aos seus antepassados, mas não dos que estão próximos (Kautski, 1903, p. 167).

A mesma ideia é desenvolvida por Liev Trótski ( 1924)33 quando ele diz que a abordagem científica do ser humano será possível apenas sob o socialismo: “O próprio ser humano é o elemento fundamental”. Para se subordinar a esse elemento, tal qual a humanidade subordina a si mesma o elemento da natureza e da sociedade, é preciso conhecer o ser humano em todas as suas dimensões, “conhecer sua anatomia, sua fisiología e a parte da fisiología que denominamos psicologia” (Trótski, 1924, p. 84). A psicologia será a ciência fundamental para a criação do novo tipo de ser humano. É evidente que essa psicologia do futuro, a teoria e prática do super-homem, lembrará a psicologia contemporânea apenas pelo nome ou, nas magníficas palavras de Espinosa (1892, p. 29): non aliter scilicet quam inter se conveniunt canis, signun coeleste, et canis animal latrans, ou seja, como a constelação Cão Maior lembra o ca­ chorro, isto é, o animal que late.34 Por isso, o nome da nossa ciência é caro para nós, um nome sobre o qual a poeira dos séculos se assen­ tou, mas ao qual o futuro pertence.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

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2. A ciência psicológica (1928)

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Notas da tradução 1.

Franz Brentano (1838-1917) foi um influente filósofo e psicólogo alemão. Em 1874, publicou o livro A psicologia do ponto de vista empírico, ao qual Vigotski se refere aqui.

2.

Wilhelm Stern (1871-1938) foi um psicólogo alemão, que defendeu uma psicologia baseada nas características e diferenças individuais, tanto inte­ lectuais como de personalidade. Propôs a teoria da persona como essência única especial. Criador do conceito de quociente de inteligência (QI).

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3.

Sobre Münsterberg, ver nota 22 do texto 1.

4.

Referência ao filósofo alemão Paul Natorp (1854-1924), um dos principais nomes do neokantismo.

5.

Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um filósofo alemão que defendeu a ideia de uma psicologia descritiva com base nas ciências humanas. Em 1894, Dilthey publicou seu famoso artigo “Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica”, ao qual Vigotski se refere aqui.

6. Referência ao filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). 7.

Sobre Külpe, ver notas 9 e 20 do texto 1.

8. Matvei Mikháilovich Troitski (1835-1899), filósofo russo. Foi um dos fun­ dadores da Sociedade Psicológica de Moscou (1885). No primeiro encontro dessa entidade, o autor apresentou uma comunicação sobre as tarefas e métodos da psicologia. Suas reflexões foram muito influenciadas pelo em­ pirismo britânico de Bacon e Locke. 9.

Nikolai Lósski (1870-1965), filósofo da religião. Foi autor de uma vasta obra sobre epistemología, axiologia, ética e outros campos. Os marxistas consideram-no idealista, adversário do materialismo.

10. Vigotski refere-se, provavelmente, a K. D. Uchínski (1824-1870), pedagogo e estudioso da psicologia. Adotando um ideário empirista, defendeu a im­ portância da psicologia para a educação. 11.

Ivan Mikhailovich Sétchenov (1829-1889), pioneiro da fisiología russa. Exerceu profunda influência em Pávlov com o livro Reflexos do cérebro (1866), censurado pelo regime. Simpatizante de ideias radicais e irreligio­ sas, Sétchenov abraçava um ideário darwinista e estritamente determinista, reduzindo os pensamentos a meras conseqüências de reflexos do cérebro.

12. Aleksander Netcháiev (ver nota 24 do texto 1), filósofo. Após visitar labo­ ratórios na Alemanha (de Wundt, Müller e Kraepelin), fundou o primeiro laboratório de psicologia educacional experimental em 1901, em São Pe­ tersburgo, enfrentando forte oposição do também filósofo A. Vvediénksi (ver nota 24 do texto 1), avesso à experimentação psicológica. 13.

Geórgui Ivánovitch Tchelpánov (1862-1936), filósofo. Atuou em Kyiv e Moscou. Com doações privadas, fundou o Instituto de Psicologia Experi­ mental de Moscou em 1912, chegando a ter, em 1914, mais de 70 alunos

2. A ciência psicológica (1928)

em seu programa de pós-graduação. Apesar de incentivar os estudantes à obtenção de uma sólida formação filosófica e de assentar as bases de seu pensamento na obra de Wundt e Kant, defendendo cautela com aplicações prematuras da psicologia, mostrava-se favorável à separação entre filosofia e psicologia. Blónski (ver nota 2 do texto 1) e Kornilov (ver nota 22 deste texto ) foram seus estudantes, até que este último criticasse publicamente o ex-professor e substituísse Tchelpánov no comando do Instituto de Psico­ logia de Moscou, criando espaço para uma psicologia marxista e a futura admissão de Vigotski em 1924. 14.

Sobre Lange, ver nota 15 do texto 1.

15.

Semion Liudvígovitch Frank (1877-1950), filósofo. De origem judaica, es­ creveu a primeira análise detalhada em russo da teoria do conhecimento de Espinosa sobre a doutrina dos atributos, difundindo o “monismo epis­ temológico” de Espinosa: para este, o conteúdo da consciência é idéntico ao da realidade objetiva. Vigotski cita A alma do ser humano no texto “O significado histórico da crise na psicologia” e em Psicologia pedagógica.

16.

Sobre Pávlov, ver nota 8 do texto 1.

17.

Nikolai Ivánovitch Bukhárin (1888-1938) foi um dos principais líderes políticos bolcheviques, sendo, geralmente, lembrado como um teórico do materialismo histórico e da economia. Graduado em Matemática, mas au­ todidata em muitos temas, escreveu livros hoje clássicos, como A economia mundial e o imperialismo e o Tratado de materialismo histórico. Bukhárin concebeu importantes políticas soviéticas. Fazendo oposição a Stalin, foi preso e executado no contexto dos julgamentos teatrais com que o tirano eliminou seus opositores da velha guarda bolchevique entre 1936 e 1939.

18.

Sobre Sherrington, ver nota 6 do texto 1.

19.

Sobre Békhterev, ver nota 5 do texto 1.

20.

Sobre Úkhtomski e o princípio do dominante, ver nota 4 do texto 1.

21. Sobre Blónski, ver nota 2 do texto 1. 22. Konstantin Nikoláevitch Kornilov (1879-1957), siberiano, era de origem humilde. Professor de província, graduou-se tardiamente na Faculdade de História e Filologia da Faculdade de Moscou em 1910. Obteve um posto de assistente de Tchelpánov no Instituto de Psicologia Experimental anos depois e, em 1921, publicou um amplo tratado sobre o estudo das reações

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(a “reactologia”), o qual influenciou Vigotski especialmente entre 1924 e 1927. Saindo publicamente em defesa da criação de uma psicologia mar­ xista, apesar de não ter escritos marxistas prévios nem ter exercido ativida­ des políticas, conseguiu o posto de Tchelpánov em 1923, abrindo caminho para a formação do Círculo de Vigotski. 23. Vigotski refere-se provavelmente a Vassíli Iákovlevitch Strumínski (18801967), pedagogo com formação teológica e primeiro reitor do Instituto de Educação Pública de Orenburgo, ao sul dos Urais. Publicou um livro sobre a psicologia científica na perspectiva do materialismo dialético em 1923, envolvendo-se em violenta polêmica com Kornilov após publicar o artigo “Sob a bandeira do marxismo” na principal revista do Partido Bolchevique em 1926. Nele, tecia críticas à reactologia. 24. N o texto original há um erro na numeração das seções, passa-se da III para a VI. 25. Ver nota 24 do texto 1. 26. Vigotski considera o objeto de tal ciência como as leis de modificação do comportamento humano e os meios de dominá-las. Cf. Vigotski, L. S. (2003). Psicologia pedagógica (p. 43). Artmed. Sobre a pedologia, ver notas 2 e 23 do texto 1. 27.

Stepan Stepánovitch Molojávi (1879-1937), pedólogo belarusso. Graduou-se em Varsóvia, assumindo a direção de um dos três laboratórios pedológi­ cos na Academia Comunista de Educação, instituição em que Vigotski tam­ bém pesquisava. Trabalhou ainda na 2 a Universidade Estatal de Moscou. Foi um dos principais nomes da pedologia de sua época, sendo forçado a abandonar a carreira científica após a proibição dessa ciência, em 1936.

28. Ver nota 17 do texto 1. 29. Iván Afanássievitch Sokoliánski (1889-1960), renomado defectólogo russo. Em diferentes cidades, entre as quais Kharkiv (então capital da Ucrânia), participou de pesquisas e da elaboração de amplas iniciativas em prol da educação de sujeitos com deficiência, adolescentes em conflito com a lei etc. Antes e depois de sua mudança para Kharkiv, em 1923, cooperou com diversos pesquisadores, entre os quais Protopópov (ver nota 17 do texto 1), psiquiatra ali alocado. Vigotski e seus colaboradores, como Zaporójets e Galperin, conheceram Sokoliánski. Entretanto, não está claro se Vigotski chama de “Escola de Kharkiv” apenas o trabalho defectológico de So-

2. A ciência psicológica (1928)

koliánski ou sua aliança com Protopópov (não confundir com a popular “Escola de Kharkiv” de psicologia, criada por esses dois colaboradores de Vigotski, entre outros, nos anos 1930). 30.

Sobre Zalkind, ver nota 23 do texto 1.

31.

Isaak Naftúlevitch Chpilrein (1889 ou 1891-1937), pioneiro e principal pesquisador da “psicotécnica” (na União Soviética, sinônimo de psicolo­ gia aplicada ao trabalho). Tal disciplina recebeu forte impulso no final dos anos 1920, perdendo abruptamente apoio do regime no início da década seguinte. Em defesa dos trabalhadores, Chpilrein teceu críticas à explora­ ção do trabalho pelo regime soviético, sendo, ao que parece, preso e pos­ teriormente “desaparecido” sob acusação de manter conexões no exterior.

32.

Karl Kautski (1854-1938), principal líder da II Internacional Comunista. Foi aclamado como um dos pioneiros do pensamento social-democrata, ora exaltando a via do sufrágio para alcançar o poder, ora a da revolução operá­ ria. Sofreu acerbas críticas dos bolcheviques - a começar por Lênin - que o consideravam um operador da conciliação de classe, em detrimento da revolução proletária. Por sua vez, Kautski criticou tendências autoritárias que teria identificado na ordem bolchevique. Em reação a Kautski e outras lideranças dentro e fora da Rússia, os bolcheviques capitanearam a funda­ ção de uma III Internacional Comunista em Moscou, 1919.

33. Liev Davídovitch Trótski (1879-1940), líder comunista. Tendo participado da Revolução de 1905, foi exilado pelo regime tsarista. Posteriormente, retornou a São Petersburgo, tornando-se o principal agitador da Revolução de Outubro de 1917. Figura-chave na condução do processo revolucioná­ rio, tornou-se arqui-inimigo de Stalin, responsável pelo exílio e posterior assassinato de Trótski. Foi um escritor muito prolífico, tratando de his­ tória, economia, literatura e outros assuntos. Suas ideias sobre o novo homem socialista influenciaram Vigotski na proposição de uma psicologia dos cumes, mostrando matiz mais universalista do que a noção staliniana de “socialismo em um só país”. 34. A referência é à obra Ética, Parte I, Proposição 17, Escolio, de B. de Espinosa.

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3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928) Primeira aula As duas linhas do desenvolvimento psicológico Permitam-me iniciar a aula de hoje. Na psicologia do desenvolvimento da criança, no desenvolvimento de seu comportamento, ó possível distinguir claramente duas linhas básicas. Pode-se dizer que o processo de desenvolvimento do comportamento na idade infantil se organiza a partir de um entrelaçamento complexo des­ sas duas linhas básicas e justamente da peculiaridade desse en­ trelaçamento. No desenvolvimento do comportamento infantil em cada fase etária, define-se antes de tudo o entrelaçamento dessas duas linhas. Para iniciar, pode-se dizer que uma delas é análoga ao desenvolvimento do comportamento, que conhecemos a partir do processo evolutivo, ou seja, ela corresponde na ontogênese ao desenvolvimento evolutivo na f[ilogênese];* já a outra linha de de­ senvolvimento corresponde [ao desenvolvimento da cultura].** O desenvolvimento da criança corresponde ao processo histórico de desenvolvimento do comportamento. Permitam-me apresentar um exemplo concreto que mostra uma dessas linhas de desenvolvimento. Tomo esse exemplo do tra­

* No estenograma há a letra “f” e um espaço. Ao que parece, a estenógrafa não ouviu o termo. [Todas as notas de rodapé são da edição russa, exceto quando diferentemente indicado.] ** Nesse local foi deixado um espaço em branco. Abaixo fala-se em “linha do desenvolvi­ mento cultural”.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

balho experimental de B.* Ele investigou a memória excepcional de pessoas que fazem cálculos e de jogadores de xadrez. Nessa pes­ quisa, ele se deparou com o seguinte fato, ao qual ele dedicou um capítulo especial. O fato consiste no seguinte: ao pesquisar pessoas com habilidades excepcionais para cálculo, que possuem uma me­ mória altamente desenvolvida, B. se deparou com um hábil calcula­ dor que não tinha essa memória, alguém que, ao contrário, durante a investigação psicológica demonstrou ter uma memória comum, mas que podia memorizar mais do que alguém com uma memória altissimamente desenvolvida. A pesquisa seguinte revelou que B. se deparou com memória altamente desenvolvida, memória inicial ou orgânica e memória mnemotécnica ou, como ela é chamada, artificial. A diferença consistia em que a pessoas habilidosas em cálculos investigadas por B. antes tinham uma memória excepcio­ nal graças a sinuosidades não estudadas do encéfalo e por isso elas memorizavam um material enorme. O novo sujeito com habilidade para cálculos, com o qual B. estava se deparando pela primeira vez, não possuía tal memória. A memória dele era ordinária, porém ele empregava um procedimento especial de memorização ou uma téc­ nica mnemónica. A essência desse procedimento era extremamente simples: ele substituía qualquer número que deveria ser memori­ zado por uma letra correspondente do alfabeto, em seguida compu­ nha palavras, com as palavras ele formava frases, com as frases ele compunha um romance e memorizava esse romance. Quando era preciso reproduzir uma seqüência numérica composta de algumas centenas de números, ele reproduzia o romance, decompunha-o em frases, depois em palavras e, dessa forma, reproduzia toda seqüên­ cia numérica necessária.

* Beniamin Márkovitch Bliumenfeld, mestre enxadrista, autor de dois livros e da tese de doutorado Problemas do pensamento visual-ativo com base no material do xadrez (1945). Juntamente com Bliumenfeld, Vigotski deu uma palestra sobre a psicologia do xadrez na Casa Moscovita dos Cientistas, em 30 de março de 1932.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Nesse experimento encontramos as duas linhas básicas do de­ senvolvimento. De um lado, temos a memorização, baseada na reten­ ção de traços da impressão externa, de estímulos externos, ou seja, a memória desenvolvida no sentido próprio dessa palavra. Do outro lado, a memória, que não se desenvolveu acima da média, funciona como extraordinária, pois essa pessoa desenvolveu e aperfeiçoou não a memória, mas a função da memória. Se partirmos do caso da memória excepcionalmente desenvol­ vida para o caso da memória comum, deparamo-nos, no desenvolvi­ mento de cada criança, com essas duas linhas do desenvolvimento da memória e não apenas da memória, mas de todas as funções psicológicas e processos psicológicos da criança em geral. Se disser­ mos que a criança mais velha memoriza mais do que a criança mais nova, isso se dá por dois motivos: a própria memória orgânica básica da criança se desenvolve e se aperfeiçoa, pois se fortalece a base or­ gânica que constitui o fundamento de todas as funções da memória. Mas isso pode ocorrer por outros motivos. A criança pode aprender a memorizar em alto grau não porque a base orgânica de sua memó­ ria se aperfeiçoou, mas porque o procedimento de memorização da criança se desenvolveu e se aperfeiçoou. Quando comparamos a criança normal e a anormal, a criança normal e mentalmente atrasada, verifica-se que uma criança memo­ riza melhor e a outra pior não apenas porque a base orgânica da memória é pior ou inferior, mas às vezes isso se deve ao fato de que os procedimentos da memória ou de memorização existentes estão insuficientemente desenvolvidos. Para explicar com mais clareza, ou melhor, com mais nitidez essas duas linhas de desenvolvimento, devemos pegar cada uma des­ sas linhas separadamente. Já disse que na filogênese essas linhas se encontram não de forma entrelaçada, mas em separado. Peço licença

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

para me deter na segunda delas, uma vez que a explicação dessa se­ gunda linha de desenvolvimento é mais difícil e complexa. Quando comparamos a memória do homem primitivo com a memória do homem da cultura, estabelecemos, seja com base na sim­ ples observação, seja com base na pesquisa experimental, dois fatos principais, o instinto da matéria básica, em relação ao qual a memó­ ria do homem primitivo se distingue da nossa memória. Se compa­ rarmos o homem que não é da cultura, primitivo, com o homem da cultura, o peso da memória será maior para o homem que não é da cultura. Os senhores conhecem histórias de habilidades extraordi­ nárias nesse sentido de homens primitivos, sobre a capacidade do homem primitivo de reconstruir, a partir dos menores vestígios, um quadro complexo de acontecimentos, de deduzir pelas pegadas na neve qual espécie animal esteve ali, quantos eram machos e fêmeas, como ocorreu a luta, quem a venceu, tudo isso com base em vestí­ gios insignificantes, que não nos diriam nada. Os senhores também ■ conhecem histórias, que foram confirmadas por experimentos, sobre a enorme memória topográfica do ser humano, histórias sobre como o homem primitivo precisa passar apenas uma vez por um caminho complicado e confuso para reter na memória esse trajeto e ser capaz de reproduzi-lo. Dito de outro modo, submetido à pesquisa experimental o ho­ mem primitivo não só não tem uma memória menos desenvolvida em comparação com o homem da cultura, como, ao contrário, sua memória é mais desenvolvida do que a nossa. Os senhores sabem que o homem primitivo não deve de modo algum ser analisado como o homem pré-histórico, e apenas a custo, apenas condicionalmente com grande dose de relatividade podemos analisar as pessoas primitivas da atualidade como, digamos, as tribos negras da África Central, eles podem apenas condicionalmente ser analisados como representantes do comportamento humano que não compartilha o desenvolvimento

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

histórico ou cultural pelo qual passamos. Ocorre que essas pessoas, que estão em um degrau abaixo do desenvolvimento em relação a nós, têm uma memória natural superior à nossa. Em outras palavras, na comparação ocorre que o desenvolvimento da memória do homem primitivo ao homem da cultura segue não apenas uma linha cres­ cente, mas também uma decrescente. Juntamente com esse caso, observamos um segundo aspecto que distingue o homem primitivo do homem da cultura. Ele con­ siste no seguinte: por um lado, o homem primitivo de fato tem üma memória muito mais perfeita do que a nossa; por outro, no homem primitivo a capacidade de memorizar coisas simples se assemelha à de um escolar. Se pedíssemos a um homem primitivo que dominasse o material que domina um aluno do primeiro ano do segundo grau,1 esse material estaria além das forças da capacidade de memorização do homem primitivo. Em outras palavras, além da superioridade da memória natural do homem primitivo, notamos um grau muito inferior de funcionamento de uma memória de outro caráter. Essa combinação peculiar de ambos os aspectos da memória no homem primitivo - que, por um lado, é superior à nossa e, por outro, é inferior a ela - aponta para aquilo que define a linha de desenvol­ vimento histórico da memória e do comportamento em geral. Ela consiste não no aperfeiçoamento e desenvolvimento da memória orgânica básica, mas na transformação do próprio modo da me­ mória. A pessoa se volta aos signos exteriores para memorizar. Da memória imediata, a pessoa passa à memorização com ajuda de signos artificiais. Peço licença para apresentar um exemplo simples retirado da vida de um povo primitivo. Trata-se de um exemplo retirado da vida de um povo que se encontra num nível extremamente baixo de de­ senvolvimento, que vive na África Central. Entre seus líderes existe o seguinte costume. Eles têm funcionários especiais, cuja função é lem­

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brar ordens, disposições, certas datas, servem de crônica viva. Tais funcionários são capazes de ouvir mais de 30 mil ordens e disposi­ ções extensas e são capazes de reproduzi-las palavra por palavra, uma vez que elas foram gravadas na memória. Em povos que se encontram em um grau superior de desenvolvimento, essas mesmas funções de memorização de ordens, de crônica governamental, são realizadas de modo completamente distinto. Em seu aspecto mais puro, essa segunda capacidade dos povos de cultura antiga se reflete no P[eru],* onde havia oficiais ou funcioná­ rios especiais, responsáveis pelos quipos, registros feitos em cordões, nos quais eram gravados acontecimentos especiais. Esses registros eram compostos de algumas cordas geralmente de cores diversas. Cada cor designa um objeto específico: a corda amarela significa ouro; a azul, prata; a verde, o grão etc. Em seguida, são feitos nós nessas cordas, e a forma e o tipo de nó indicam algo específico. Um nó simples significa uma coisa, dois nós um de frente para o outro significam guerra ou paz, a depender do formato do nó.** Aqui, pela primeira vez, a pessoa, que se encontra num grau primitivo de desen­ volvimento, cria um procedimento especial de memorização para au­ xiliar sua memória, um procedimento não análogo entre os animais. A base desses procedimentos consiste em que a pessoa, sem se dar por satisfeita com sua memória natural ou ao se ver diante de uma tarefa que supera o resultado de sua memória natural, passa à criação de uma memória artificial ou de signos externos, com ajuda dos quais ela memoriza algo. Os senhores sabem que um dos representantes dessa escrita em nós, de certo modo, é a nossa escrita, que desempenha o mesmo papel na vida cultural da humanidade e é atualmente a principal * No estenograma há apenas a primeira letra e depois um espaço em branco. ** A tradição de fazer um nó para se lembrar de algo existe em diferentes culturas, e á expressão correspondente existe em diversos idiomas.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

forma de memoria do homem da cultura. Uma vez que todo conhe­ cimento - toda experiência histórica acumulada em uma geração - é transmitido menos por meio da herança biológica do que pelo desen­ volvimento histórico baseado na escrita, pode-se dizer que a invenção da escrita é o início da civilização humana. A escrita cria a base para a transmissão sistemática da experiência histórica de uma geração a outra. Essa é uma das linhas pela qual ocorre o desenvolvimento. A outra linha de desenvolvimento é o que temos agora, na forma de vestígio desses procedimentos, quando atamos um nó para não nos esquecermos de algo. Essa operação de criar um signo ex­ terno para memorizar algo, quando não se confia na própria me­ mória, mostra-se inconveniente ou menos proveitosa e pode nos servir como representante da constituição dessas formas de compor­ tamento que emergem no processo de desenvolvimento. Por isso, chamamos a segunda de linha do desenvolvimento cultural do com­ portamento da criança. Um fato extremamente interessante, uma observação interes­ sante nesse campo pertence a Kõhler, um conhecido pesquisador do uso de ferramentas por macacos. Kõhler estabeleceu que os macacos usam ferramentas no sentido mais simples e primitivo da palavra. Porém, eles não são capazes de produzir a mais simples das ferramentas. Kõhler estabeleceu como seu objetivo de pesquisa descobrir a forma mais simples de memorização em macacos. O experimento foi feito a partir de um jogo simples. Os macacos usa­ vam de bom grado, no jogo, todos os objetos que se encontravam na estação em que viviam. Foi levada argila branca para essa estação. Os macacos começaram a lamber, provar o gosto da argila. Quando descobriram que não era comestível, eles começaram a limpar a lín­ gua em tábuas, paredes, vigas e logo observaram que esses objetos ficaram pintados de branco. Os macacos transformaram isso em uma brincadeira interessantíssima.

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Inicialmente, para que pudessem pintar com a língua, eles lam­ biam a argila branca e em seguida faziam manchas e faixas nos obje­ tos que estavam por perto. Logo os macacos mais inteligentes tiveram a ideia de substituir a língua por um pincel de verdade. Assim surgiu, entre os macacos a pintura primitiva. Atualmente. . .* . . . Então começaram a pintar com manchas coloridas tudo, in­ clusive os próprios corpos. Embora o desenho primitivo tenha se de-í senvolvido entre os macacos por um caminho natural, Kõhler jamais pôde observar - a despeito do fato de ele ter colocado os macacos em; certas condições quando necessário - sequer um indício de como elesi criavam para si signos exteriores. Os macacos que tinham enorme fa­ cilidade de criar tais signos jamais foram capazes de utilizá-los mesmo quando estavam no local que precisavam recordar. Com base nessas observações, Kõhler chegou à conclusão d e ; que, se encontramos uma forma de utilização de ferramentas em macacos, mesmo em macacos antropoides não encontramos nem in- ‘ dícios casuais que apontem para o desenvolvimento de signos, d e ; estímulos artificiais como os que o ser humano cria para auxiliar suas operações psicológicas; por conseguinte, o desenvolvimento desses meios auxiliares do nosso comportamento é inteiramente um produto \ do desenvolvimento histórico do ser humano. Na realidade, a história, ou seja, a observação de homens pri­ mitivos, em especial povos que estão em diferentes graus da cultura primitiva, mostra que o desenvolvimento do degrau mais baixo para o mais alto depende do aperfeiçoamento desses modos externos de comportamento. O desenvolvimento consiste não no fato de que, em povos que se encontram em estágios mais elevados da cultura, o pro­ cesso de comportamento em si mesmo, as funções da memória, da atenção e do pensamento em si mesmas superam as funções corres-

* Faltam cerca de três linhas.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

pondentes em povos que estão em estágios mais baixos de desenvol­ vimento. Desenvolvem-se e se aperfeiçoam os meios auxiliares, os estímulos auxiliares, que prestam assistência ao comportamento. A conclusão seguinte me parece totalmente clara. Foi dito aqui que, em vez de duas saídas para essa nova forma de comportamento, ou seja, a criação de meios auxiliares para o comportamento, ocorre uma alteração brusca do próprio tipo de desenvolvimento de nosso comportamento, isto é, ocorre aqui o desenvolvimento por duas li­ nhas, como disse anteriormente. Aqui uma comparação simples com outras formas de comportamento humano é mostrada de forma muito clara e nítida. Qual é a diferença entre essas linhas de comportamento? O mesmo tipo de alteração do desenvolvimento humano ocorreu quando a forma fundamental de adaptação à natureza se transfor­ mou, ou seja, quando o ser humano saiu da adaptação direta para a adaptação pelo trabalho, para a adaptação [com ajuda de] uma série de ferramentas criadas pelo homem primitivo. Os senhores sabem que, se formos pesquisar o desenvolvimento do ser humano do estado primitivo até o atual, verificaremos que o próprio tipo de ser humano não sofreu alterações significativas. Foi o crescimento de órgãos artificiais que assumiram formas totalmente distintas. O desenvolvimento de ferramentas é a base do crescimento das forças produtivas da humanidade e foi isso que alterou o próprio tipo bio­ lógico do ser humano. Algo similar ocorre em relação ao desenvolvimento psicológico no período histórico; algo similar, pois, naquelas operações sobre as quais tratei, temos certa analogia, algo similar ao desenvolvimento e à utilização de ferramentas na atividade exterior humana. Na rea­ lidade, a particularidade mais característica da operação de trabalho que se baseia no uso de ferramentas, sua particularidade mais funda­ mental é o fato de que, entre o ser humano, isto é, o sujeito que age,

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e a coisa ou objeto sobre o qual ele age, insere-se um corpo estranho, que é a ferramenta, isto é, o transmissor [o impacto] do ser humano sobre o objeto correspondente. Algo semelhante existe na operação do comportamento, pois também nesse caso entre a pessoa e o objeto que é o alvo da ope­ ração psicológica insere-se um elo, um elo intermediário na forma de estímulo auxiliar ou meio de comportamento. Imaginem a ope­ ração mais simples, sobre a qual falei no início. Imagine que uma pessoa pela primeira vez teve a ideia de atar um nó para se lembrar de algo. Nesse caso, entre a pessoa e o objeto de que ela precisa se lembrar (digamos, um fato numérico) se insere um signo-nó auxiliar, que, em si mesmo, hão tem nenhuma relação com a operação e cuja única designação é servir de meio para essa memorização. Para irmos adiante, é necessário elucidar que tipo de alteração ocorre no desen­ volvimento do comportamento, isto é, quando ele assume uma forma baseada em um signo ou meio exterior. Se analisarmos ou destrincharmos as partes componentes de tais operações psicológicas, das formas de comportamento que se baseiam em signos exteriores, qualquer que seja a operação anali­ sada, chegaremos justamente à conclusão de que nesse desenvol­ vimento, nessa passagem de uma forma a outra, não são criadas novas operações psicológicas. Temos aqui os mesmos elementos do processo básico de comportamento, a partir dos quais se forma de modo geral nosso comportamento como um todo. Consequente­ mente, ao analisarmos tais operações psicológicas do ponto de vista dos elementos, não revelaremos nada em sua composição que não possa ser observado de forma bastante pura em animais. Contudo, junto disso, verifica-se que a combinação se baseia em formações inteiramente novas, graças aos meios auxiliares obtidos aqui. Com ajuda de um esquema simples, tentarei elucidar a relação que se cria aqui.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

[Figura 1]* Com frequência é mais proveitoso fazer um desvio, ainda que mais longo, do que seguir em linha reta, mesmo que seja um percurso menor, e a vantagem consiste no fato de que o primeiro caminho de­ pende de condições às quais ainda não fomos submetidos. O segundo caminho, por ter sido criado artificialmente por nós, graças à introdução de um estímulo artificial, encontra-se totalmente sujeito ao nosso poder. Gostaria de fazer um segundo esclarecimento a propósito de algo que foi dito no primeiro esclarecimento: com frequência* em nosso curso, temos de nos referir à psicologia do homem primitivo, ao desenvolvimento histórico do comportamento na filogênese, e pre­ cisamos inicialmente chegar a um acordo claro sobre o objetivo, sobre os objetivos metodológicos com os quais isso será feito. Um mal-entendido que pode surgir aqui diz respeito ao fato de que as menções ao desenvolvimento histórico do ser humano, à psicologia do homem primitivo geralmente servem para [fundamen­ tar] o paralelismo b[iológico],** isto é: aqui está uma criança, o com­ portamento dela é o capital daquilo que outrora a humanidade vivenciou no desenvolvimento do comportamento.*" Quando fazemos referências ou digressões no campo do desenvolvimento do homem primitivo, fazemos isso por outros motivos, não para isso. Não esta­ mos supondo que o desenvolvimento do ser humano é em alguma * Por motivos óbvios, a figura está ausente do estenograma. ** Depois da letra “b” há um espaço em branco no estenograma. *** “Nosso ponto de vista sobre as relações existentes entre as diferentes linhas do de­ senvolvimento do comportamento é, em certo sentido, oposto àquele desenvolvido pelas teorias do paralelismo biogenético. Sobre a questão das relações existentes entre a onto- e a filogênese, essas teorias dizem que um processo repete de forma mais ou menos completa o outro, restabelece-o...” (Vigotski, L. S.; Luria, A. R. Ensaio sobre a história do comporta­ mento: Macaco, primitivo e criança. Moscou, Leningrado: Gossudárstvennoe izdátelstvo, 1930, p. 20). Vigotski é autor do artigo “Lei biogenética” na primeira edição da Grande enciclopédia soviética. Ver Vigotski, L. S. Lei biogenética. In: Grande enciclopédia soviética, Moscou: Aksioniérnoe óbschestvo Soviétskaia entsiklopédiia, 1928, volume 6, pp. 275-280.

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medida paralelo à história do desenvolvimento da humanidade. Ao contrário, quando tratarmos das partes mais importantes do nosso curso, veremos em que medida não são paralelos o desenvolvimento da criança e o desenvolvimento da humanidade. Se ainda assim fizer­ mos algumas digressões em nossas considerações metodológicas so­ bre o desenvolvimento do homem primitivo, isso será feito por outros motivos, isto é: consideramos que, na história do desenvolvimento do homem primitivo, é possível encontrar de forma mais pura os meios de desenvolvimento que consistem na realização de procedimentos de comportamento sem alteração orgânica de sua base. Aqui isso se expressa com maior clareza. Para compreender como um deter­ minado procedimento de comportamento se desenvolve na criança, queremos antes compreender mais claramente em que consiste esse desenvolvimento. E isso que podemos verificar no desenvolvimento do homem primitivo. Exemplo: quando, ao interpretarmos o comportamento da criança, nós nos voltamos à experiência sobre o reflexo condicionado do cachorro, não estamos supondo que o comportamento da criança repete e reproduz o comportamento do cachorro ou é paralelo a isso, [nós o fazemos] pois encontramos no experimento com o cachorro a expressão mais pura do fenômeno e da lei do comportamento geral que, em uma forma correspondente nova e em uma situação concreta, é encontrada depois na criança. Com o mesmo direito metodológico pelo qual nos referimos ao experimento com reflexo condicionado em cachorros, iremos nos referir ao experimento e às observações sobre o homem primitivo para acompanharmos essa linha no desenvolvi­ mento infantil e para passar à terceira tarefa fundamental do nosso curso, isto é, mostrar o entrelaçamento de ambas as linhas. Dessa forma, os senhores podem ver que a fonte da nossa análise serão dois campos distintos de conhecimento, nos quais se baseia a psicologia. De certa forma, teremos que analisar quaisquer

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processos superiores de comportamento do modo como é mostrado nesse triângulo* e estudar sua composição com todos os pontos de vista dados. A teoria do reflexo condicionado livre** deve ser mostrada no recorte do desenvolvimento aritmético da memória, da memória da criança, no recorte dos mecanismos fundamentais e de suas ações, que já são conhecidas pela fisiología da atividade nervosa superior. Essa tarefa não nos limita. É preciso mostrar quais fatores próximos determinam que esse processo foi adotado justamente em tal combi­ nação, justamente em tal estrutura em determinado estágio do desen­ volvimento; onde e de que forma a criança assimilou esse modo de comportamento, esse modo de pensar, esses procedimentos, graças a quais processos de desenvolvimento do córtex cerebral esses proce­ dimentos se tornaram acessíveis naquele estágio do desenvolvimento. Graças a essas influências externas, forma-se um objetivo complexo e único de processos variados e diversos. Dessa forma, diante do pesquisador que estuda o sistema da psicologia infantil, colocam-se sempre duas tarefas, ou melhor, três ta­ refas fundamentais. Devemos analisar o processo de comportamento da criança em três planos fundamentais. Primeiro no plano da análise, ou seja, no plano, como disse­ mos, do reflexo, isto é, no plano do desvelamento desse processo

* O triângulo representa a relação entre processos culturais (“instrumentais”) e naturais no desenvolvimento do psiquismo. Ver: Vigotski, L. S. O método instrumental na psico­ logia. In Obras escolhidas, volume 1, Moscou, Pedagoguika, 1982, p. 104; A história das funções psíquicas superiores, volume 3, Moscou, Pedagoguika, 1982, p. 111; O problema do desenvolvimento cultural da criança (1928), Viéstnik Moskovskogo Universitiéta. Seriia 14, Psikhológuiia, n. 4, 1991. ** Nas obras de Vigotski não aparece a expressão “reflexo livre”, evidentemente trata-se do “reflexo” que se forma ao longo do desenvolvimento cultural. Para Vigotski, “cultural” significa “arbitrário” e essa arbitrariedade é uma característica necessária da ação livre.

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complexo, pois o processo mais complexo é composto, no final das contas, se formos analisá-lo, de processos elementares. A outra tarefa será a elucidação da estrutura e função desse comportamento, a exposição dos complexos procedimentos de com­ portamento e de suas partes constituintes. Depois de travar conheci­ mento com os processos elementares dos nervos, que se encontram em sua base, devemos explicar se há algum tipo de unidade entre processos equivalentes. Qual é a realização desses procedimentos complexos de comportamento em relação à adaptação da criação ao meio circundante? Ter como objetivo esclarecer e revelar a correlação entre as partes, funções etc., e ligá-las e, portanto, realizar a tarefa e m : relação ao comportamento como um todo. Nisso consiste a segunda tarefa de nossa pesquisa. A terceira diz respeito ao estudo da análise e estrutura desse processo. O estudo do resultado do entrelaçamento complexo entre a linha ontogenética e outras, as quais, como disse, formam a base do desenvolvimento do comportamento na infância. Na pedología, por ’ conta desse tipo de entendimento sobre a questão, chegou-se a um conceito que alguns autores chamam de conceito de idade cultural da criança. Os senhores sabem que distinguimos entre idade [cultural]* da criança e idade cronológica. Nas diversas fases do desenvolvimento a que chega a criança, falamos em idade fisiológica, idade óssea, da mesma forma nesse caso temos o direito de distinguir sua idade cultural-psicológica. Por idade cultural-psicológica entendemos o seguinte: como foi estabelecido, a idade óssea da criança refere-se à fase de enrijecimento dos ossos que ocorre na criança. Portanto, por meio dos ossos é possível definir em que estágio se encontra o desenvolvimento ósseo da criança.

* No estenograma foi deixado espaço para uma palavra.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Por exemplo, uma criança tem 12 anos, mas sua idade óssea está atrasada ou adiantada em dois anos em relação à idade crono­ lógica. Aplicando os mesmos modos de investigação, determinamos a idade cultural-psicológica da criança. Estabelecemos quais fases e estágios ocorrem nos procedimentos do comportamento, elevando-se de formas primitivas a formas culturais mais complexas. Quando estabelecermos essas fases, tentaremos estabelecer por quais fases do desenvolvimento cultural a criança passou em cada idade e qual a relação entre a idade cronológica e a fase de desenvolvimento cultural; tentaremos medir se ela está atrasada ou adiantada em seu desenvolvimento cultural em comparação com a idade cronológica. Em outras palavras, chegamos a um quarto plano da pesquisa, ou uma quarta tarefa se revela para cada capítulo do nosso curso. Adaptando-se à escala etária do processo de desenvolvimento cultu­ ral da criança e aos principais procedimentos de delineamento do esquema básico, devemos determinar ou explicitar a idade cultural e psicológica da criança. Para concluir, gostaria de me deter ainda em uma questão, associando-a às posições gerais aqui desenvolvidas: trata-se da questão da especificidade do desenvolvimento cultural da criança normal e anormal. Gostaria de apresentar brevemente um modo comparativo de desenvolvimento cultural também da criança anormal. A esse res­ peito tomarei a liberdade de dizer algumas palavras. A primeira questão que se coloca diante de nós é a seguinte: pode parecer que no desenvolvimento cultural não deve haver di­ ferenças, elas devem existir no desenvolvimento biológico. Imagine que estejamos tratando de uma criança com atraso mental, na qual haja um atraso no desenvolvimento no córtex cerebral. Suas fun­ ções naturais irão se desenvolver com atraso. Isso é claro. Mas será

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possível supor que seu desenvolvimento cultural também sofrerá atraso? De fato, o desenvolvimento cultural do comportamento se baseia fundamentalmente nos meios exteriores do comportamento. Tais meios exteriores, por sua natureza, são sociais e não surgem dentro do organismo, mas são dados ao sujeito pelo meio social e cultural circundante. Partindo da hipótese geral de que o desenvolvimento cultural do comportamento é uma função da experiência sociocultural da criança, de fato pode parecer que, se uma criança com atraso mental vive em um meio social que lhe oferece os mesmos meios de compor­ tamento oferecidos a uma criança normal, o desenvolvimento m ental; de ambas as crianças não deve ser distinto Na realidade, de certa forma essa objeção parece convincente. Sabemos que, de fato, o atraso mental tem um quadro análogo ou, até certo ponto, mostra-se semelhante ao primitivismo infantil. Se to­ marmos uma criança que viveu em um ambiente não cultural ou que, em razão de circunstâncias fortuitas, não pôde se desenvolver em um meio cultural ou normal, ainda que essa criança seja totalmente normal em termos de sua constituição orgânica, ela, ainda assim, terá um desenvolvimento cultural atrasado decorrente de causas externas. Tal criança é chamada primitiva, pois em seu comportamento ela se encontra em um nível de desenvolvimento cultural baixo. O mais im­ portante é que essa criança primitiva, em seu aspecto exterior, se pa­ recerá com uma criança com atraso mental, ela não terá capacidade de raciocínio lógico da mesma forma que uma criança com atraso mental na mesma idade, ao passo que uma criança normal terá essa capacidade. As manifestações exteriores de uma criança que não se desenvolveu pelo fato de ter vivido em um meio não cultural serão externamente semelhantes às de uma criança com atraso mental, e aqui está o que sabemos de mais complexo e importante acerca do

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

desenvolvimento da criança normal até agora. Isto é, a semelhança entre a criança primitiva e a criança anormal. Basta que a criança pri­ mitiva seja colocada em um meio cultural para que essa semelhança desapareça. A criança primitiva realiza o desenvolvimento cultural que não fora realizado no tempo esperado. Quanto à criança com atraso mental, se ela for colocada em um ambiente cultural correspondente, mesmo se ela realizar um desenvolvimento cultural, ela continuará tendo atraso mental. É de extrema importância o fato de que o desenvolvimento incompleto de­ vido a condições externas ou a condições internas pode ser verificado mediante experimentos com o córtex cerebral. Esse fato mostra que as funções psicológicas superiores - o pensamento lógico, as formas superiores de atenção e de memorização - se desenvolvem não de outro modo senão com base no desenvolvimento cultural. E se a ex­ periência sociocultural se mostra inacessível a uma criança cujo de­ senvolvimento é incompleto por motivos externos ou internos, pois o cérebro não é suficientemente forte para superar esse fato, o processo de desenvolvimento dos processos superiores de comportamento da criança também será incompleto. Os senhores provavelmente sabem que na psicologia infantil, ainda segundo a hipótese de Stern, foi aceito um princípio básico do desenvolvimento da criança, o qual se aplica também ao seu desen­ volvimento cultural. Trata-se daquilo que Stern chama de “princípio de convergência”.* O princípio de cruzamento ou intersecção entre os processos internos de desenvolvimento e as condições externas em que esse desenvolvimento ocorre.

* Nesse local há um espaço em branco no estenograma. A seguir foi incorretamente ano­ tado “princípio de abreviação” (em vez de "convergência”). Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas, volume 3, p. 298.

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Os senhores sabem que a teoria do reflexo condicionado sus­ tenta perfeitamente esse princípio [de convergência]* e sua aplicação à história do desenvolvimento infantil. De fato, no caso do reflexo condicionado tem-se a intersecção, por um lado, da orientação ins­ tintiva interna das reações e, por outro, das condições em que essas reações funcionam. Se aplicarmos tal psicologia, veremos que há um contato entre o desenvolvimento cultural e o desenvolvimento natural da criança normal, isto é, são dois processos que, graças à prática da educação humana, se acomodam entre si. Em determinado grau de desenvolvimento, a criança domina a linguagem, em outro ela domina o cálculo, em um terceiro, cál­ culos abstratos, e assim por diante. Em contraposição a isso, na criança anormal há uma ruptura entre o desenvolvimento cultural e o natural, ou seja, há uma divergência na qual seria esperado que houvesse semelhança. Por causa de um atraso no desenvolvimento' do pensamento, em razão de diferentes alterações no córtex cere­ bral, não ocorrem nessa criança as intersecções necessárias entre influências externas, modos externos, procedimentos de compor­ tamento e dados internos, de modo que há uma perturbação [na convergência].** Os senhores podem imaginar quão interessante e instrutivo é o quadro que se obtém ao comparar o desenvolvimento cultural de uma criança normal e uma anormal. Seria possível comparar experimen­ talmente as condições de estruturação dessas duas linhas em ambos os processos. É por isso que o método de comparação entre crianças normais e anormais irá ocupar tal lugar em nossas aulas. Eis um exemplo simples: é difícil observar e analisar o processo de desenvolvimento da linguagem da criança normal justamente por* Há um espaço em branco no estenograma. ** Há um espaço em branco no estenograma.

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que ele se dá de modo natural, imperceptível, a criança se integra à linguagem das pessoas ao redor. A mudança ocorre de modo imper­ ceptível na menor das estruturas de peculiaridades que emergem na criança, no crescimento de elementos objetivos às custas de elementos subjetivos etc. Já a observação do desenvolvimento da linguagem em surdos-mudos e, especialmente, em cegos-surdos-mudos apresenta como que num microscópio, ou seja, em escala muito aumentada, aqueles processos que se realizam de modo imperceptível para nós na criança normal,* justamente porque nela as duas linhas se entrelaçam, ao passo que na criança cega [elas divergem].** A investigação e a prática de educação da criança anormal há muito elaboraram meios auxiliares artificiais para o desenvolvimento de tal criança. Enquanto a criança normal domina os meios de com­ portamento que são usados por adultos, a criança com atraso mental não tem condições de fazê-lo. Ela precisa criar meios auxiliares espe­ ciais, e, na criação de tais meios, podemos observar [a convergência]*" por via experimental. Para crianças com atraso mental, utiliza-se, em geral, a operação de atar um nó. Deficientes mentais não distinguem cores e geralmente o seguinte método é empregado: coloca-se um objeto entre o nome da cor e a cor propriamente. Eis um exemplo de * Eis o motivo pelo qual Vigotski expressou o desejo de estudar esse assunto, em res­ posta à solicitação do Narkompros (Comissariado do povo para a educação). Muitos anos mais tarde, ao discutir os resultados do “Experimento Zagórski”, no qual foram criadas as condições para a formação do psiquismo de crianças cegas-surdas-mudas pelo sistema Sokoliánski-Mescheriakov, Iliénkov escreve uma carta a A. V. Suvórov, um dos participantes desse experimento: “Compreendo que a cegueira-surdez-mudez não cria nenhum problema, nem o mais microscópico, que não seja um problema geral. A cegueira-surdez-mudez apenas o aguça, não faz nada além disso” (citado cf. Suvórov, A. V. O problema da formação da imaginação em crianças cegas-surdas-mudas. Vopróssi psikhológuii, n. 3, 1983). O que Vigótski comparou a um “microscópio”, Iliénkov cha­ mou de “lupa do tempo” (Iliénkov, E. V. O psiquismo humano sob a “lupa do tempo”. Priróda, n. 1, 1970. ** Aqui a página do estenograma termina, a frase não é terminada. *** Aqui há um espaço em branco no estenograma.

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como eles aprendem: “amarelo” - abacaxi - matéria amarela. Dessa forma, quando perguntados o que é isto, eles respondem “abacaxi”. Entre o nome da cor (amarelo) e a impressão, o estímulo que pro­ duz nele a impressão de amarelo, é colocado um meio auxiliar, que se mostra desnecessário para a criança normal. Graças a tais meios auxiliares artificiais, a tais pontes que precisam ser colocadas para a criança com atraso mental entre ambas as linhas de desenvolvimento, o processo de entrelaçamento ou conv[ergência]* torna-se mais visível, mais claro e, portanto, mais conveniente para o estudo. Com isso, encerro minha aula.

Segunda aula Métodos de pesquisa em psicologia infantil Hoje iremos nos deter na questão dos métodos de pesquisa. A especificidade do processo de desenvolvimento observado pela pesquisa sobre a idade infantil em relação ao comportamento exige uma especificidade de métodos e formas de investigação. Já o conhecimento dessa especificidade de métodos e formas de investi­ gação, o conhecimento de seus fundamentos, é condição fundamen­ tal para a correta compreensão de todos os capítulos da psicologia infantil. Pois os fatos com os quais iremos nos deparar, as genera­ lizações que iremos fazer, as leis que serão estabelecidas com base nessas generalizações, isto é, todo esse material efetivo e o conteúdo real de cada capítulo serão determinados pelo método por meio do qual esses fatos serão obtidos, com ajuda do qual eles são generali­ zados e deduzidos em determinadas conclusões. Por isso, basear-se efetivamente em um método, compreender sua relação com outros

* A palavra está incompleta e foi deixado um espaço em branco.

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métodos, estabelecer seus pontos fortes e fracos, compreender sua fundamentação básica e travar uma determinada relação com ele: isso significa, em certa medida, elaborar uma abordagem científica e correta para todo curso ulterior da psicologia infantil, da forma como aqui apresentamos. Dessa forma, em linhas muito gerais, podemos retornar ao que foi dito na última vez, com o seguinte: consideramos que a particu­ laridade do comportamento na idade infantil está, antes de tudo, no fato de que seu desenvolvimento segue duas linhas distintas. Assim, o desenvolvimento segue pela linha do crescimento e do amadureci­ mento orgânicos e pela linha do desenvolvimento histórico. Essa par­ ticularidade exige a capacidade de estabelecer a relação entre ambas as linhas em cada idade e determinar o entrelaçamento específico entre elas, que é característico para uma certa idade. Um tipo de entrelaçamento será característico para a idade pré-escolar, e há até uma divisão mais detalhada dentro de cada uma dessas idades. Em termos gerais, devemos falar em dois grupos de métodos empregados pela psicologia infantil. Será necessário que nos detenhamos no primeiro grupo. Isso é necessário, uma vez que ele é comum a todos os métodos utilizados pela psicologia em geral. Trata-se do grupo de métodos, ou seja, de modos de pesquisa de fenômenos e fatos psicológicos que investigam o comportamento em seu aspecto mais simples e natural. O objeto dessa pesquisa do comportamento, como se sabe, são as funções orgânicas. Todos esses métodos, os quais têm antes especificações mais técnicas do que de princípios, também são empregados na psicologia infantil. Dessa forma, esse grupo de métodos não oferece nada espe­ cífico, nada de particular para a psicologia infantil. Resta o grupo de métodos que também precisa ser caracteri­ zado no sentido próprio da palavra e, mais importante, cuja relação

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deve ser explicitada e estabelecida em comparação com o primeiro , grupo. O segundo grupo de métodos é dirigido para a pesquisa, para a introdução da segunda linha na idade infantil e para o estabeleci- / mento de sua maior especificidade possível. Em termos muito gerais, j pode-se dizer que esse segundo grupo se caracteriza como um grupo : de métodos históricos, diferentemente dos métodos orgânicos volta- f dos à investigação da primeira linha de desenvolvimento do compor­ tamento, na explicitação de seu conteúdo. Para que eles sejam mais bem compreendidos, permitam-me apresentar uma descrição concreta do sistema de prática de modos de pesquisa que está na base desse grupo. A particularidade desse conjunto de métodos psicológicos pode ser mais bem caracterizada j se a compararmos, se explicitarmos sua relação com métodos psico-1 lógicos tradicionais. Os senhores sabem que o conjunto de métodos | da psicologia tradicional tem sido trabalhado com extremo cuidado , em seu esquema básico. Ele reduz um grupo de métodos distintos,' empregados pelo método dos procedimentos, a um esquema básico. Esse esquema, essa organização do comportamento do sujeito ou J esse ponto de vista sobre seu comportamento, digamos, em um pe-J ríodo prolongado de tempo, é o esquema que se baseia no conceito 1 básico de “estímulo-resposta”. ‘

J

Se tomarmos o experimento psicológico em diferentes escolas i e tendências, o experimento psicológico do nosso tempo, verifica-se J que em toda parte, entre os mais diversos metodólogos, a depender | da escola, do problema, esse esquema será o fundamento desse ex- J perimento psicológico. Quando se apresenta uma série de estímulos | sempre se distingue uma determinada série de reações dos sujeitos. 4 Às vezes, essa questão se complexifica pelo fato de que essa primeira | série de estímulos exige por parte do sujeito não uma simples rea­ ção, mas uma ação complexa, uma união complexa de reações, que sugiro denominar “operações”. Dessa forma, muito frequentemente

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

temos no experimento psicológico exatamente o mesmo esquema, só que mais complexificado: apresenta-se não um estímulo, mas certa quantidade de estímulos em determinado grupo, em determinada es­ trutura. Da parte do sujeito, exige-se não apenas uma reação simples, mas também uma série de reações, que podemos chamar de “ope­ rações”. Mas o princípio fundamental desse conjunto de métodos, ou seja, da investigação da relação entre estímulo e resposta, esse princípio fundamental permanece inabalável em todos os métodos da psicologia, e não há dúvidas de que ele seja uma conquista sólida da psicologia material, científica-natural, experimental, uma base tão sólida que tem todo direito de ser considerada o mais elementar método objetivo. Esse é fundamento básico do conhecimento para esse conjunto de métodos de pesquisa. Resulta totalmente claro que esse novo grupo de métodos que é específico e característico da psicologia in­ fantil não pode negar esse esquema fundamental, mas deve se apoiar nesse esquema, na medida em que ele tem um significado geral e, consequentemente, devemos, antes, encontrar lugar para esse novo grupo de métodos dentro desse esquema. De fato, sobre esse novo grupo de métodos de que dispõe a psicologia infantil, vemos que, por mais que se distinga da particula­ ridade do problema, ele se baseia, de uma forma ou de outra, nesse esquema básico de “estímulo-resposta”. Contudo, dentro desse es­ quema ele produz uma nova delimitação essencial, uma nova divisão dos conceitos, que denominamos excitação' desse esquema em uma direção particular. Esse conjunto de métodos, resultante da delimita­ ção dentro do esquema, pode perfeitamente ser chamado de método funcional de dupla estimulação.

* Está assim no texto.

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Sua primeira distinção será que, em lugar de uma série de estímulos, com auxílio dos quais organizamos o comportamento da criança que participa do experimento ou é observada, em vez de ex­ plicar o comportamento da pessoa ou da criança a partir da relação de uma série de estímulos, organizamos (ou esse método organiza) o comportamento da criança com ajuda de uma série de estímulos que se alteram. Dito de outro modo, eles querem colocar imediatamente no campo de visão de sua pesquisa uma dependência mais complexa,’ uma diminuição* entre estímulo e reação. Em vez de uma série de estímulos e de reações correspondentes, eles tomam uma segunda série de estímulos que não se encontram alinhados mecanicamente entre si, e essa segunda série, em que cada grupo funciona de forma particular em relação ao comportamento, desempenha funções distin­ tas em relação ao comportamento como um todo. O que isso significa? Penso que para os senhores está total­ mente claro que nem todos os estímulos são iguais, nem todos os estímulos determinam nosso comportamento do mesmo modo, da mesma forma. De modo geral, eles determinam igualmente no sentido de que todos têm um caminho neural, um arco reflexo condicionado, mas, ao mesmo tempo, podem determinar nosso comportamento de formas diferentes. Na esfera das operações exteriores, na esfera do comporta­ mento por dentro, um exemplo é típico: dois estímulos podem ser funcionalmente o mesmo. Kõhler transferiu para a criança o pro­ blema da investigação do uso de ferramentas. Os senhores sabem em que consiste esse conjunto de métodos: para além do estímulo que deve suscitar a reação, há a presença de uma série de objetos de tal estímulo que não tem relação direta com a situação dada. E o modo de pesquisa empregado por Kõhler em macacos e em crianças * Está assim no texto. Talvez seja “correlação”,

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

consiste em explicitar em que medida, em determinadas condições (isto é, em condições nas quais a reação direta é impossível, em que o estímulo que deve suscitar a reação correspondente está inacessível para o animal), chega-se à reação, mas por um desvio. Dessa forma, o animal ou a criança se valem dessa segunda série de estímulos; recrutam modos auxiliares do instrumento para que a função funda­ mental possa ser executada. Os senhores conhecem a prática do esquema de Kõhler. O ani­ mal é colocado em uma cela. Na frente da grade há uma bananà ou abacaxi. A reação comum, condicionada, é que o animal estenda a mão e pegue a banana ou o abacaxi. Se o animal achar que a fruta está longe demais para ser alcançada com a mão, a reação direta da mão, o reflexo condicionado deixa de servir, não desempenha a função de adaptação. Então o animal, o animal humanoide superior, faz uso de uma série de estímulos isolados, que podem ser utilizados nessa situação, digamos, um bastão na qualidade de instrumento, es­ tendendo essa ferramenta entre si e o objetivo. Esse estímulo adquire um significado funcional em certa situação, em outras palavras, co­ meça a desempenhar funções complexas e a tarefa de adaptação se resolve por um rodeio, por um desvio mediante ajuda da segunda série de estímulos. Tem-se algo semelhante no método ora discutido. A diferença é que essa tarefa de adaptação exige, nesse caso, não a alteração das circunstâncias externas, resolvida pelo próprio animal, mas a altera­ ção de seu próprio comportamento. Vejamos o exemplo que usei da última vez, dos macacos de Kõhler que pintaram com a língua e com um pincel diferentes co­ res.* Kõhler os colocou numa situação tal, em uma posição tal em que, para dar conta das exigências apresentadas pela situação, para * Ver aula anterior.

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realizar a adaptação, o animal deveria desenvolver suas próprias pin­ celadas, suas cores, em um estímulo condicionado, e essa operação parecia [impossível]* para o animal. Com a criança a situação é di­ ferente. Mesmo nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, ela se mostra capaz de [realizar essa operação]." O comportamento da criança participante do experimento ou observada se organiza com ajuda da segunda série de estímulos, e a uma série de estímulos desempenha o papel de objeto ao qual é di­ recionada certa reação. A outra série desempenha o papel de meio, com auxílio do qual essa operação se realiza. Dessa forma, cada uma dessas duas séries de estímulos determina o comportamento de forma diferente, desempenhando um papel funcional em relação ao comportamento ou, pode-se dizer ainda, leva a uma relação dupla mais complexa do nosso comportamento em relação aos estímulos internos. Distinguimos entre estímulo do objeto e o estímulo do meio. Esse é o conteúdo fundamental do método funcional [de du­ pla estimulação]. Alguns dos senhores conhecem este exemplo simples. Como se realiza um experimento ou pesquisa sobre memorização no mé­ todo psicológico tradicional? Apresenta-se uma série de palavras ou imagens, uma série de estímulos, em seguida pede-se à criança que realize uma operação complexa: ler, repetir, reproduzir, reagir a uma sílaba com outra, explicitar como fez para memorizar. A essência do método adotado por esse experimento tradicional no campo da me­ mória consiste em que a série de estímulos oferecida suscitará uma série de reações dependentes desse estímulo. Encontra-se à disposi­ ção do experimentador, como meio de análise, uma série de estímulos objetivos que ele introduz e substitui segundo seu arbítrio por uma

* Aqui há um espaço em branco no original. ** O parágrafo está incompleto.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

série de reações que ele obtém. A primeira série se encontra à dispo­ sição do experimentador, a segunda é produzida pelo participante do experimento. Ao compará-las, o experimentador obtém uma certa resposta à questão colocada. [Ao realizar] o mesmo experimento com a memorização, pre­ tendo investigar seu desenvolvimento histórico, ou seja, o desenvolvi­ mento complexo de procedimentos de memorização. Oferecemos ao participante uma série de estímulos que são objetos dessa operação de memorização, uma série de palavras, de sílabas que ele deve memorizar, e uma série de meios, por exemplo, figuras, com ajuda dos quais ele deve memorizar. São investigadas as mesmas reações do sujeito, só que em uma formação, em uma operação mais complexa e em uma dependência mais complexa. Para os senhores deve estar claro agora que a pesquisa da própria opera­ ção de uma ordem mais complexa, em essência, leva a uma série de noções ou à conversão delas em uma operação simples, construída por meio de “estímulo-reação”. Dessa forma, a primeira coisa que salta aos olhos é a comparação da dupla estimulação com os métodos habituais . . . de estímulo.* Aqui temos em vista não a destruição do esquema, não a recusa do esquema “estímulo-reação”, mas o estudo de uma dependência mais complexa dentro desse esquema. Essa é a característica da dupla estimulação. O papel funcional de cada série de estímulos consiste em que a série de estímulo determina nosso comportamento como meios de execução dessa operação. É isso que corresponde fundamentalmente ao nosso entendimento sobre o tipo de desenvolvimento histórico e o que nos parece haver em cada pro­ cedimento concreto de pesquisa por nós empregado ao longo de todo nosso curso.

* Aqui há um pequeno espaço branco no estenograma.

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Peço licença agora para me deter na explicitação do conteúdo científico, no fundamento principal de tal conjunto de procedimentos. A primeira e mais básica consideração, presente em todos os capítulos do nosso estudo quando começamos a pensar sobre a fundamentação desse método, é a seguinte: todo método, todo modo de investigação pressupõe antes de tudo as peculiaridades correspondentes do fenô­ meno que está sendo estudado. Se é correto o que procurei expor da última vez sobre a pesquisa em psicologia, isto é, sobre a pesquisa acerca de como se desenvolve o comportamento no período histórico da humanidade, se é correto que a essência do desenvolvimento histórico do comportamento reside na passagem da reação direta de tipo biológico, ou seja, aquela reação cujos meios de realização são criados por uma correlação cultural, será fácil observar que o método construído conforme este. . . tipo histórico. Dito de modo mais simples, o desenvolvimento da segunda linha, como dissemos condicionalmente, consiste em que a reação direta passa a ser mediada, então o método também deve se desen­ volver do meio que aqui se apresenta [entre o estímulo do objeto e a reação]. De modo correspondente, essa consideração é a mais sim­ ples e decorre da definição que utilizamos. Permitam-me passar uma investigação mais complexa do próprio método. A primeira coisa que nos interessa agora em psicologia é a ob­ jetividade de qualquer método. Essa questão na metodologia expe­ rimental, especialmente . . . na metodologia da criança, mostra-se excepcionalmente aguda e complexa. Peço licença para simplificar um pouco a forma, mas algumas considerações auxiliares são necessárias para que o nosso ponto de vista sobre essa questão seja esclarecido. Pesquisadores alemães, pertencentes às mais diversas escolas psico­ lógicas, propõem distinguir o experimento psicológico com crianças no âmbito da psicologia infantil em dois grupos principais, os quais recebem nomes diferentes.

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Assim, Binet propõe distinguir entre experimento funcional e diagnóstico,' ou experimento demonstrativo e representativo. Ambas as formas foram realmente desenvolvidas por ele como experimento prático, ele propôs duas leis de desenvolvimento de tipos profunda­ mente distintos de experimento psicológico. No experimento funcio­ nal, como em qualquer experimento em ciências naturais, propõem-se a investigação e a observação de fenômenos, o que leva ao conheci­ mento funcional, e desse conhecimento . . . depende a condicionalidade de tais fenômenos. Uma tarefa totalmente distinta se coloca para nós. Trata-se de um experimento que revela a seguinte tarefa: tomar um estado conhe­ cido com maior clareza e nitidez, em seguida esse estado com maior clareza, do modo como ocorre na realidade, com igual clareza,. . . da introspecção ou nos termos do comportamento interno, caso ele esteja ligado a um comportamento interno. Lewin pertence ao grupo de psicólogos que realiza o se­ gundo tipo de psicologia experimental, a chamada fenomenología. Trata-se de um experimento que é voltado à explicação de fenô­ menos conhecidos, sem entrar na análise gen[ético]-con[dicional]," cuja tarefa é a concepção, ou seja, a condição na qual a prática de determinada ação e a origem de certas condições em certos fenô­ menos, e, por fim, L[ewin],"* outro representante dessa psicologia,

* Muito provavelmente foi omitida a palavra “diagnóstico” (em particular, o teste Binet-Simon para avaliação do desenvolvimento do intelecto, Vigotski escreveu sobre ele algumas vezes). Abaixo, a palavra “diagnóstico” foi novamente omitida em outro contexto. Ao que parece, a estenógrafa não sabia como escrevê-la. ** A estenógrafa distinguiu duas silabas (“con” e “gen”), deixando um espaço em branco nas partes faltantes da palavra. “Genético-condicional” é uma expressão de Kurt Lewin (ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas. Volume 3, p. 97). *** Depois da inicial há um pequeno espaço em branco. Considerando o que é dito a seguir, é evidente que se trata de Kurt Lewin e não de algum outro representante.

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propõe que em cada experimento sejam distintos dois aspectos. A estrutura fenomenológica do comportamento é explicada dire­ tamente por aquilo que ocorre no experimento funcional ou na estrutura funcional, que decorre de uma série de causas com as quais dado fenômeno se encontra em relações complexas. Por fim, Lewin compara os procedimentos, ao dizer que se trata da gênese de um experimento em ciência natural. Os principais são os métodos mencionados anteriormente; agora eles são marcados, antes de tudo, por seu caráter objetivo, especialmente pelo fato de representarem um desenvolvimento duradouro da aplicação ulterior de métodos objetivos de pesquisa à psicologia infantil, ou seja, de procedimentos g[enéticos]-c[ondicionais]* do experimento. Aqui fica claro o próprio nome, pois ele anuncia seu objetivo de descrever diretam ente a ocorrência de processos internos vivenciados pela criança em toda sua pecu­ liaridade; a tarefa deles não é tanto penetrar o mundo interior da criança por esse caminho, mas dar conta das condições em que surgem certos comportamentos. Com isso L[ewin] aponta para uma consideração que tam­ bém me parece de grande importância. Tais considerações foram há muito assimiladas pelas ciências naturais e outras, e foi com base nelas que uma série de ciências naturais há tempos abandonaram por completo o experimento fenomenológico de sua prática e limi­ taram seu papel. Duas pessoas que podem ser f[enotipicamente] idênticas po­ dem ser g[enotipicamente], ou seja, por sua origem e diferentes condi­ cionamentos, totalmente diferentes, e, de modo geral, dois processos g[enotipicamente] idênticos podem ser totalmente diferentes f[enotipicamente], a depender de uma série de condições admitidas.

* Foram anotadas apenas as letras “c” e “g”.

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L[ewin] apresenta um exemplo: a botânica antiga e a nova bo­ tânica, baseada na teoria da evolução. A botânica antiga dizia e pos­ tulava ffenomenologicamente].* Se plantas tinham folhas de mesmo formato, mais ou menos a mesma cor, todas essas plantas ou flores eram reunidas em um mesmo grupo. F[enotipicamente] os botânicos estavam totalmente corretos, mas g[enotipicamente] não, pois uma série de fenômenos por eles estudados em plantas de desenvolvimen­ tos distintos tem traços f[enotípicos] idênticos porque toda planta, até certo ponto, carrega a marca do meio concreto no qual ela cresce. Todas as plantas que crescem na montanha têm traços característicos. Com base nisso, os botânicos reúnem as plantas g[enotipicamente], ou seja, reúnem em um mesmo grupo plantas que g[enotipicamente], ou seja, em termos de condicionamento e origem, pertencem a um mesmo grupo, e, considerando suas diferenças f[enotípicas], eles pe­ gam um mesmo tipo de planta e mostram que a distinção f[enotípica] entre elas decorre das condições concretas nas quais determinada planta vive. Os senhores conhecem um exemplo concreto e utilizam com frequência no método concreto. Trata-se do experimento com a baleia: f[enotipicamente] a baleia é um peixe, ela vive na água, a forma do corpo é semelhante à de um peixe, e para a pesquisa f[enomenológica] não haveria quaisquer dúvidas de que se trata de um peixe enorme, com algumas peculiaridades, mas que, no ge­ ral, está mais próximo de um peixe do que de um veado, um tigre ou outro animal. Contudo, a pesquisa g[enotípica] mostra que, a despeito do fato de que a diferença ffenotípica] entre a baleia e o veado tenha, de fato, chegado a proporções enormes, apesar disso,

* Em Kurt Lewin a posição aparece da seguinte forma: “A botânica antiga . . . organizava as plantas em determinados grupos segundo a forma das folhas, a cor etc., segundo a se­ melhança fenotípica entre elas”. (Citado em Vigotski, L. S. Fundamentos da defectologia. São Petersburgo, Lan, 2003, p. 106).

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a baleia está mais distante gfenotipicamente] do tubarão do que do veado. Em outras palavras, há muito tempo as ciências naturais re­ jeitaram a pesquisa f[enomenológica] direta e passaram à pesquisa d[inâmico]-c[ausal].* Por que tal modo se mantém há tanto tempo na psicologia? Ao concentrarmos a atenção na particularidade da vivência, nos dados imediatos dos processos subjetivos, tentamos analisar esses processos psíquicos como fenômenos espirituais, totalmente sepa­ rados dos fenômenos orgânicos e internos. Essa é propriamente a raiz que remonta profundamente ao nível idealista da filosofia, que condiciona o desenvolvimento ulterior dos modos f[enomenológicos] da psicologia. Dessa forma, tudo o que temos hoje de realmente científico na psicologia infantil está baseado nesse segundo tipo, isto é, o experi­ mento d[inâmico]-c[ausal], ou, se quisermos, g[enético]-c[ondicional], ou ainda objetivo. Além disso, os senhores sabem que houve uma mudança subs­ tancial nas perspectivas acerca da aplicação de experimentos em crianças em geral. A psicologia antiga cada vez mais tem afirmado que o modo experimental é pouco aplicável à criança, e não tem ab­ solutamente aplicação no caso de crianças de pouca idade, pois ela tem pouca capacidade de introspecção. Esse é um aspecto que será de extrema importância para a explicação de um ponto. É muito difícil para a criança, em especial a de pouca idade, dar-se conta das opera­ ções internas que ela executa.

* Duas palavras foram omitidas, a estenógrafa anotou apenas as primeiras letras “c” e "d”. A diferença entre a análise fenomenológica e a dinâmico-causal, ou fenotípica e genético-condicional foi feita por Lewin, a quem Vigotski cita. Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas. Volume 3, p. 97.

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Um processo simples é solicitado f[enomenologicamente] à criança. Em seguida, são feitas perguntas. A criança responde, mas, quando perguntada sobre como ela chega àquela resposta, cerca de 90% das crianças não conseguem dar uma explicação correta para o processo pelo qual ela chegou a determinado resultado. F[enomenologicamente] pede-se a uma criança com um pouco de atraso que mul­ tiplique 5 por 12. A criança diz: “60”, ou seja, dá a resposta correta. Pergunta-se: “Como você sabe que é 60?”. A criança não sabe. “Eu peguei 10, depois mais 10, mais 10, mais 10, mais 10, mais 10, e deu 60”. Às vezes, elas apresentam evidências arbitrárias: “Peguei 50 e acrescentei 10”. Às vezes, apesar de ser capaz de executar a operação, a criança não consegue acompanhar seu processo interno. No experimento f[enomenológico], a criança oferece um mate­ rial altamente improdutivo, pois o que temos diante de nós é apenas aquilo que podemos observar exteriormente, já o acesso ao mundo interior se mostra obstaculizado. A única forma de penetrar o mundo interior nesse tipo de experimento é a concepção proposta, isto é, proposta com base nos dados que temos referente às vivências do adulto etc. Apenas na psicologia o experimento se converteu em um dos principais modos de investigação científica objetiva do compor­ tamento da criança. A dedução da condicionalidade e da gênese do fenômeno pode ser revelada apenas na criança, já que nela a distinção f[enotípica], que tem um desenvolvimento elevado da individualidade, não se consolidou, pois nela o complexo imediato pode ser muito facilmente captado no próprio experimento. Aqui é importante [com­ preender] onde mais ainda não se constituíram e não percorreram sua longa história aquelas formações complexas, que se constituíram como resultado de uma longa série de pesquisas que se alteraram profundamente na psicologia. Em que consiste exatamente o caráter objetivo desse con­ junto de procedimentos de pesquisa, sobre o qual estamos falando

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agora e que iremos utilizar todo tempo? Pesquisa-se principalmente aquilo que é trazido para fora, determinadas operações internas ou operações complexas. Esses experimentos, em que são investiga­ das operações externas por meio de certas ações externas, são cha­ mados pelos pesquisadores alemães de experimentos de ligações, experimentos sobre operações. O traço mais característico desse tipo de procedimento consiste em que todas as operações internas desse experimento são construídas por ligações com determinadas operações externas. Um exemplo de pesquisa: investigamos a formação de conceitos em crianças. Para que o conceito se forme, como se sabe a partir da prá­ tica de análise, são necessárias duas condições. É preciso que haja uma série de objetos aos quais esses conceitos se relacionam, e que haja pala­ vras ou meios na língua por meio dos quais as experiências desse conceito sejam elaboradas e se reúnam em um determinado significado de palavra. Os pesquisadores desse processo sempre se deparam com a se­ guinte dificuldade: o objeto que age sobre a criança, com base no qual ela elabora o conceito, é claro; o resultado, isto é, se os conceitos são ou não formados na criança, também é claro, pois perguntamos para a criança a esse respeito. Mas o processo pelo qual isso ocorreu não é claro. Conhecemos o começo e o fim, mas o meio não. Oferecemos algo à criança e recebemos algo dela, mas não sabemos de que modo isso se formou, pois essa série de processos e operações complexas está ligada fundamentalmente a uma produção interna, que não pode ser reproduzida diretamente nem pela criança nem pelo adulto. Em seguida, quando falamos do desenvolvimento da lingua­ gem, devemos dizer que internamente ocorrem certas abreviações,. . . operações; com frequência saltamos algumas cadeias das quais não podemos tomar consciência e as quais não podemos revelar com au­ xílio da linguagem. Que é difícil manifestar nossa linguagem interna, nosso pensamento, manifestar diretamente em forma verbal.

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Dessa forma, o que fizeram os antigos pesquisadores no campo da investigação do comportamento? Eles investigaram uma disciplina pronta de conceitos, mas como eles se formam era incom­ preensível para eles. Como age o novo conjunto de procedimentos? Ele age de outro modo, isto é, oferece à criança uma série de es­ tímulos, uma série de palavras convencionais, uma outra série de estímulos etc. Surgem duas séries de estímulos externos que determi­ nam o comportamento da criança. Diante da criança surgem tarefas determinadas, que exigem que ela aplique a palavra como meio para a formação de conceitos; além disso, essa tarefa se liga às operações externas da criança. Assim é formulada a tarefa: seleciona-se um certo grupo de objetos, a criança resolve essas operações movendo esses objetos, selecionando um entre outros, muda-os de lugar, mas comete er­ ros. Dessa forma, dizemos que as operações externas estão ligadas às internas. Se com isso fosse possível dizer que os processos internos de formação de conceito coincidem com o processo externo de uso de objetos, os quais fazem a criança mover diferentes figuras e objetos, isso seria ingênuo. Seria ingênuo pensar que o comportamento ex­ terno da criança e seus erros de precisão reproduzem os processos internos que ocorrem na criança quando ela elabora o conceito. Veja­ mos o que ocorre aqui. Aqui temos algo que pode ser mostrado pela seguinte comparação metafórica: imagine que precisamos acompa­ nhar o movimento de um peixe no fundo d’água.* Imaginem que o peixe foi mergulhado em um determinado ponto. Em seguida, ele é elevado em outro ponto, mas queremos formular uma ideia aproxi­

* O exemplo está no artigo: Vigotski, L. S. Probliéma kulturnogo razvitiia rebionka (1928) [O problema do desenvolvimento cultural da criança]. Viéstnik Moskóvskogo Universitiéta. Seriia 14, Psikhológuiia [Boletim da Universidade de Moscou. Série 14, Psicologia], n. 4, 1991, p. 58-77.

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mada do caminho percorrido pelo peixe. Que caminho foi este: reto ou em zigue-zague, no fundo ou na superfície? Jogamos uma corda com um nó no peixe e seguramos a outra ponta da corda. Ela se movi­ menta, pois está ligada ao peixe. Seria ingênuo pensar que pela ponta da corda seja possível ter uma noção do caminho seguido pelo peixe, mas uma série de alterações nessa ponta que estamos segurando cor­ responde ao movimento do peixe que está ligado à corda. Isso quer dizer que, além do ponto em que o peixe afunda e do ponto em que ele emerge, temos ainda as alterações sofridas pela ponta da corda que, é claro, não reproduz tudo, mas corresponde funcionalmente aos movimentos realizados pelo peixe. Com base nessas alterações não conseguimos reproduzir a totalidade do processo interior, isto é, do percurso do peixe debaixo d’água, mas por meio delas é possível dizer ao certo a que profundidade o peixe estava. Da mesma forma, a julgar pela corda, podemos dizer quanto o peixe navegou debaixo d’água. Evidentemente muita coisa permanece obscura, será interpre­ tada de modo equivocado, mas em termos básicos será de extrema importância, antes de tudo para o método da pesquisa infantil. Aqui é de extrema importância a passagem para a investigação objetiva dos processos internos que não se submetem à pesquisa ffenomenológica] imediata e são impossíveis de ser verificados por meio do experimento comum sobre o reflexo condicionado. O seguinte aspecto que é de extrema importância para a carac­ terização de todas as pesquisas contemporâneas mais significativas no campo da psicologia infantil é o que pode ser chamado de caráter histórico desse método. Esse é um grupo de métodos histórico-g[enéticos] no sentido próprio do termo, um grupo de métodos cujo principal tipo é o seguinte: eles buscam investigar todos os processos de comportamento como resultado de uma certa história, como um determinado processo histórico iniciado em um determinado lugar e que segue por certo caminho. O comportamento do adulto é repleto

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de tais formas que são formações históricas, ou seja, que não poderão ser compreendidas se não forem abordadas historicamente. Apresentarei um exemplo simples, com o qual os psicólogos se depararam na investigação de operações aritméticas em adultos. Até certo ponto, tais operações são automatizadas, que .. .* Como resultado de investigações posteriores, já do ponto de vista da psicologia, quando contamos, ocorre em nós a operação pu­ ramente mecânica, automatizada de determinadas ordens numéricas e, consequentemente, obtém-se um complexo . . . Nas palavras de T[horndike], uma formação complexa que pode ser compreendida apenas se considerarmos sua história." É por isso que a posição prin­ cipal desse tipo de pesquisador pode se expressar pela seguinte ideia de Blónski: a história do comportamento pode ser compreendida ape­ nas como comportamento histórico. Isso não é apenas uma metáfora, mas também uma profunda alteração do método, a depender do que a abordagem histórica ao fenômeno estudado introduz no próprio conjunto de procedimentos. Permitam-me explicar-me. Os senhores certamente sabem que o historicismo, o aspecto histórico que analisa certo processo em seu aspecto historicamente desenvolvido, é uma das principais exigências do método dialético. Esse historicismo não é apenas uma marca da pesquisa em ciências sociais, no qual ele é um aspecto-chave sem o qual não se pode agir, mas também serve à ciência sobre a natureza. Os senhores conhecem a ideia desenvolvida em muitos momentos por Engels, de que a teoria das ciências naturais, no processo de seu desenvolvimento posterior, deve ser guiada pela história em seu

* A frase está incompleta. Pode-se supor que se trate de um assunto abordado outras vezes por Vigotski: a operação aritmética em adultos aparece como caso particular da operação algébrica. A relação genética entre operações inferiores e superiores estão invertidas aqui. ** Ver Vigotski, L. S. Obras escolhidas, volume 3, p. 311.

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crescimento. Em outras palavras, se as leis que aceitamos como leis da natureza, ou seja, como leis que não se alteram historicamente diante de nossos olhos, se tais leis foram tomadas em um período de tempo mais prolongado, elas devem ser compreendidas não como leis da natureza existentes em toda parte e por todos os lados, mas como leis históricas, ou seja, que se aplicam a determinado nível do desenvolvimento da matéria, ainda que seja matéria morta, e ainda que esse nível seja significativamente maior do que em qualquer ou­ tra formação durante a qual certas leis gerais operam. Essa posição de Engels, que me orienta agora, pode ser perfeita­ mente tomada de modo literal para a pesquisa em psicologia infantil. Engels diz que o funcionamento das leis da natureza se transforma cada vez mais em uma lei histórica. O que isso significa? Ele nos mos­ tra que toda lei da natureza, toda lei física, exige a existência de certas condições de trabalho que, do ponto de vista de um sistema compara­ tivo, são historicamente formadas, como a conexão gradual. .. .* Segundo Engels, se aplicada de forma consistente a todos os fenômenos em representação histórica que ocorrem em determinado sistema, do nascimento à morte, essa teoria de transformação em história vê, em cada estágio no qual predominam outras leis, outras formas de manifestação dos mesmos movimentos. Dessa forma, ape­ nas um movimento tem um significado absoluto geral, universal. Na aplicação à psicologia infantil, àquela linha da psicologia infantil que nos interessa, isso pode significar o seguinte: há certas leis da natureza, leis das ciências naturais que orientam o desenvol­ vimento do comportamento da criança. Tais leis são constantes para um certo tipo biológico humano, essas leis biológicas assumem uma forma particular de ação. Assim, em cada estágio do desenvolvimento histórico, operam formas distintas das mesmas leis gerais que exis­ tiam desde o princípio. * Aqui há um espaço em branco de cerca de uma linha e meia.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Por exemplo, a atividade da memória humana não se alterou absolutamente no sentido de suas leis naturais desde o tempo da préhistória da humanidade. Esse é um fato mais ou menos conhecido por todos. Em todo caso, a pesquisa experimental com o primitivo não revelou desvios essenciais nas principais leis de funcionamento da memória em relação ao trabalho do ser humano da cultura. Mas as formas de memorização na pessoa que faz uso . . .,* da pessoa, seja um chinês antigo ou um selvagem, sobre os quais falamos na última aula, que utilizavam os registros em cordas ou que memori­ zavam com ajuda de uma série de meios auxiliares, as formas de manifestação dessa memória são distintas a depender do grau de de­ senvolvimento. Essa é a base da psicologia social contemporânea. Os meios de comportamento se desenvolvem historicamente, e a tarefa histórica do método é estudar as transformações do comportamento de acordo com tais meios. A criança que aprende a nossa escrita e a criança que nasce em um meio em que ela não pode aprender absolutamente nada podem facilmente aprender a língua chinesa. Para tanto, basta a mesma lei da memória, que se manifesta nas mesmas formas, ou há uma série de leis específicas que determinam a atividade de tais leis gerais a depender dos meios que a criança domina em determinado ambiente. Essa é a posição central que coloca a representação histórica como base da interpretação teórica. Por isso, se perguntarmos a um pesqui­ sador contemporâneo que assume esse ponto de vista o que significa elaborar uma teoria sobre a memória infantil, ele dirá: partindo de uma determinada posição biológica .. . dos métodos de reflexo con­ dicionado, a lei que estabelece uma conexão no cérebro, partindo disso significa mostrar como, em tais circunstâncias, ocorre o desen­ volvimento, dependendo de leis históricas; em que estágio do desen­

* Na aula anterior, Vigotski deu o exemplo dos quipos, registros feitos com cordões do povo maia.

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volvimento infantil se alteram e são percebidas as formas específicas das diversas funções da memória infantil, dependendo dos meios de caráter social, dos meios do comportamento que a criança domina. Afinal, a lei de domínio é a mesma. Penso que, de todo módo, está claro que essa é uma pesquisa do comportamento antes de tudo do ponto de vista de seu condicio­ namento social. Com efeito, os meios de comportamento são carac­ terizados, como ferramentas de trabalho, pelo fato de serem resul­ tado da experiência social, e não individual, e por serem elaborados historicamente pela humanidade no processo de desenvolvimento gradual da cultura e da técnica humanas com base no tipo de certas relações sociais. Poderíamos dizer que, a depender das transformações nos modos de comportamento, o nosso pensamento se transforma? Sem dúvida alguma. Há muito tempo a psicologia apresentou a seguinte posição: o intelecto se complexifica de acordo com as condições ma­ teriais, ou seja, de acordo com os meios de que dispõe a criança. Por exemplo, imaginem que a criança cresça, digamos, em um meio primitivo e não domine a língua russa ou qualquer outro idioma europeu, mas algum idioma de uma tribo africana. Será que em função disso o caráter do pensamento se alteraria em cada um de seus estágios e, portanto, sua visão de mundo se desenvolveria de modo distinto do nosso? É claro que sim. Por conseguinte, nessa pesquisa em toda parte se distingue o desenvolvimento do compor­ tamento, antes de tudo e na medida em que ele é condicionado pelos meios de comportamento, ou seja, por formações que são sociais por seu caráter. Disso decorre o terceiro e último aspecto característico. Jus­ tamente na medida em que vivenciamos o desenvolvimento de for­ mas superiores de comportamento, a depender dos meios de com­ portamento, expomos a linha material que explica esses processos

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

superiores. Em outras palavras, a psicologia infantil experimental busca acompanhar a dependência das formas superiores de compor­ tamento, dos processos superiores de comportamento desses dois dados principais: primeiramente como eles se formam a partir das funções inferiores, fisiológicas. Isso é apenas um dos aspectos da pes­ quisa material em psicologia. O outro aspecto é a busca por acom­ panhar como essa transformação de inferior em superior se forma ou ocorre sob a pressão constante dos meios de comportamento que a determinada criança, determinada individualidade domina. Essa tentativa de colocar ou mostrar que o processo superior de pensa­ mento, o processo superior de atenção ou de memória, encontra-se em dependência direta dessas duas séries fundamentais, mostrar isso é a tarefa da pesquisa experimental em psicologia infantil. Isso é o que L[ewin] chama de . . .* investigar como essas duas linhas funda­ mentais, que não trazem em si cada forma de comportamento em cada estágio do desenvolvimento. Por fim, o último são as relações que caracterizam esse mé­ todo, que o determinam em comparação com os métodos da psicolo­ gia científica natural, sobre a qual falei anteriormente. Aqui a questão é absolutamente clara a simples. A simplicidade consiste no Seguinte: como tentei demonstrar, esse grupo de métodos que é e[specífico] para a psicologia infantil não nega e não rejeita o esquema básico, mas é favorável à sua complexificação ulterior, distinguindo dentro desse sistema básico uma outra parte de relações mais complexas entre estímulo e reação, separando o estímulo em estímulo objetivo e estímulo-meio. Daí mostra-se perfeitamente claro o que diz o experimento dialético. Ao complexificarem a forma do comportamento, os reflexos condicionados não são eliminados e as operações externas, cuja base eles constituem, [não] são anuladas, mas se transformam. Ou seja, * Falta cerca de meia linha.

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

o que isso significa? Eles não deixam de existir, mas assumem um forma nova e complexa, que possui novas características; revelar tais, características é justamente a tarefa da ciência. Um exemplo simples: sabemos que o reflexo não condicionado ou o instinto passa, no processo de desenvolvimento, a ser reflexo condicionado. Pergunta-se: ao passar para essa nova forma, o reflexo, não condicionado deixa de existir? Não, ele se altera. Ele age no re-' flexo condicionado interno, ou seja, age em uma nova forma . . . uma função específica, uma relação específica com o comportamento do organismo como um todo. Ou os reflexos condicionados, ao se trans­ formarem em operações intelectuais, digamos, o pensamento, são eliminados? Claro que não. Como disse, com base na pesquisa sobre o pensamento aritmético, o pensamento não é outra coisa senão, se­ gundo a expressão de T[horndike].. .* Imagine o que é mais característico para o pensamento na arit­ mética. É a resolução de tarefas. Se tomarmos a operação da multipli­ cação ou da divisão, teremos uma reação superior, já a resolução da tarefa é pensamento no sentido próprio da palavra. Se a criança não sabe com resolver dada tarefa, ela aplica as habilidades que possui às novas condições.

Apresento ao auditório a tarefa de dividir 64 por 4. Será que todos a resolverão da mesma forma? Não, não será da mesma forma. Analisaremos como cada um resolveu essa tarefa. Será que alguns usaram modos que outros não dominam? Não, todos dominam essas séries de divisão e multiplicação. Consequentemente, a composição de operações na resolução de uma tarefa se distingue da divisão e da multiplicação simples. A composição em um todo leva a uma certa * A seguir foram omitidas duas linhas. ** A seguir foram omitidas três linhas.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

habilidade. Exatamente assim o instinto ou o reflexo não condicio­ nado se transforma ou assume uma forma mais complexa, passando a reflexo condicionado. Ele não se é aniquilado, mas se transforma, assumindo uma nova forma. A resolução da tarefa ou, dizendo de modo mais geral, o pensamento exatamente como no comportamento objetivo, que é estruturado pelo modelo estímulo-reação, não é des­ truído, mas se transforma, ou seja, transfigura-se em nova forma. Nisso consiste a operação cultural. Em outras palavras, duas tarefas surgem para a ciência, assim como em toda parte, para qualquer pesquisa científica: por um lado, mostrar a composição de certas operações superiores, mostrar como a resolução de tarefas surge a partir de habilidades simples; por ou­ tro, como tais habilidades são combinadas de acordo com determi­ nado tipo. Depois disso está o modo de comportamento. Por isso, um mesmo fenômeno a ser estudado, digamos, a memorização com auxilio de imagens, recebe duas representações a depender do ponto de vista pelo qual ele será analisado. Na memorização com auxílio de imagens, se formos analisar sob o ponto de vista da psicologia científica natural rfeactológica?], teremos não uma reação, mas uma série de reações.* Oferece-se à criança uma palavra, à qual ela deve reagir escolhendo uma imagem, estabelecendo uma relação entre imagem e palavra. A criança separa a imagem: temos todo um sistema de reações. Do ponto de vista das reações, essa operação será complexa, será todo um sistema com­ plexo de reações. Do ponto de vista do desenvolvimento histórico, esse será o tipo mais simples de passagem de uma reação simples a uma complexa. Em outras palavras, aquilo que é uma formação complexa segue por um caminho, o que é ponto de partida segue por outro caminho.

* Trata-se, possivelmente, da concepção de K. N. Kornilov.

Psicologia, desenvolvimento hum ano e marxismo

Ao analisarmos a tal operação da criança, teremos duas tare­ fas: por um lado, revelar sua raiz científica natural, seu conteúdo; por outro, descrevê-la historicamente, acompanhar e submeter na medida do possível essas formas superiores a uma lei geral. Dessa forma, se formularmos isso, será possível dizer que esse grupo de métodos da psicologia infantil não apenas não nega os métodos das ciências naturais, em especial os métodos do reflexo condicionado, como também se apoia neles. Ele se torna possível apenas com base nesses métodos, na medida em que busca acompanhar como os . . . , que são estabelecidas por esse método transformam-se geneticamente no desenvolvimento da criança a depender de como ela domina certos meios de comportamento. Assim, esse é o fundamento ou o apoio de tal conjunto de pro-! cedimentos, que se encontra sob ele. De modo muito geral, seria pos­ sível apresentar a seguinte definição preliminar: é possível dizer que esse conjunto de procedimentos da psicologia infantil é um modo de pesquisa do comportamento e do desenvolvimento do compor­ tamento, utilizado dependendo dos meios de comportamento ou a partir da descoberta do aspecto funcional desses meios de comporta­ mento, ou seja, a partir da descoberta de como o comportamento se estrutura com base nesses meios. Por fim, a última coisa que gostaria de dizer é que esse grupo de métodos que busquei caracterizar aqui não é apenas um grupo histórico objetivo, mas também comparativo. Por sua essência, nosso modo fundamental de análise será sempre o método comparativo. Em outras palavras, uma vez que a tarefa de acompanhamento dessas duas linhas consiste em analisar como se transformam, em diferentes estágios etários, as leis básicas e constantes do comportamento da criança, devemos destacar essa constante e, consequentemente, todas essas.leis. O método e o modo de pesquisa fundamentais passam a ser o modo comparativo, o método comparativo.

3. Aulas de psicologia do desenvolvimento (1928)

Novamente gostaria de dizer: diante de nós haverá sempre três planos básicos pelos quais esse conjunto de procedimentos se move, nos quais ele pode ser aplicado. O primeiro é a psicologia his­ tórica, a psicologia social, a história do desenvolvimento do compor­ tamento da humanidade. O segundo é a história do desenvolvimento da criança. O terceiro é a psicologia contemporânea, resultado da cultura humana, em suas operações superiores, com a comparação de operações aqui e ali. Ainda, por último: dentro da psicologia infantil, utilizaremos a comparação entre a criança normal e a anormal. .

Nota da tradução í.

Equivalente ao início do ensino fundamental.

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedologia das minorias nacionais O plano económico quinquenal prevé o fomento económico e cultural das minorias nacionais, as quais se encontram em um grau baixo de desenvolvimento econômico e cultural.1 Nesse sentido, mui­ tas nacionalidades terão de realizar, no próximo qüinqüênio, um salto grandioso na escadaria de seu desenvolvimento cultural, pulando toda uma série de degraus históricos. A complexidade da estrutura econô­ mica da União, expressa na existência de cinco formas de economia distintas, da economia natural à socialista, condiciona, por sua vez, a complexidade da estrutura das formas culturais de desenvolvimento. Os graus de desenvolvimento cultural, assim como as formas básicas de economia, se estendem dos mais primitivos até os mais elevados. A introdução de povos atrasados no círculo geral da construção eco­ nômica e cultural deve ser acompanhada de uma necessária alteração de todo o sistema cultural de suas vidas. Por isso, o próximo qüinqüênio e os anos posteriores a ele deverão ser uma experiência sem precedentes na história do desen­ volvimento cultural acelerado de uma grande quantidade de povos variados, um desenvolvimento que se realizará em circunstâncias total­ mente peculiares e igualmente sem precedentes. Em vez da abordagem colonizada ao problema do desenvolvimento cultural dos povos atrasa­ dos, a qual determina fundamentalmente as condições desse desenvol­ vimento no mundo capitalista, são propostas condições absolutamente novas para o desenvolvimento de uma cultura socialista unificada em diferentes formas nacionais. Esse desenvolvimento cultural acelerado,

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

esse grandioso salto pela escadaria dos sistemas econômicos, deverá ser realizado, em grande medida, pelas gerações de crianças. O rápido crescimento dos povos deverá ser realizado não apenas mediante a transformação da população adulta, mas também, principalmente, por meio do vigoroso avanço das gerações de crianças pelo caminho do desenvolvimento cultural. Em tais condições, o papel da pedología e da ciência sobre as leis e os caminhos do desenvolvimento infantil é enorme. Não seria nada econômico tentar realizar essa grandiosa tarefa de avanço das gerações de crianças pela escadaria do desenvolvimento cultural sem a ajuda da pedología, sem o conhecimento científico das particula­ ridades e propriedades do material que será trabalhado. Em outros aspectos, esse trabalho torna-se absolutamente impossível sem a in­ vestigação e o estudo pedológicos; em todo caso, contudo, ele deve se deparar com sérios obstáculos no futuro próximo e deve pagar pelo seu arriscado experimento com muitos erros de difícil correção. Se compararmos o enorme papel que a pedología deverá de­ sempenhar no avanço dos povos atrasados com aquilo de que dispo­ mos neste momento no campo da pedología das minorias nacionais, é preciso dizer que pouquíssimo foi feito a esse respeito. Se, por um lado, tanto tem sido feito nas demais esferas da vida econômica e cul­ tural para elevar o nível econômico e cultural desses povos, por outro, até o momento, o estudo pedológico de crianças nativas de minorias nacionais foi alvo do interesse e da iniciativa apenas de pesquisado­ res e laboratórios isolados e, por vezes, de tentativas esporádicas de determinados institutos. É bem verdade que nas localidades, especialmente nas demais Repúblicas da União, institutos, escritórios e departamentos locais realizaram, em um prazo relativamente curto, um grande trabalho. Ocorre, contudo, que ele não é, em sua maioria, um trabalho coor­ denado. Falta um centro metodológico, com frequência não são ex­

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

plicitadas as orientações básicas e fundamentais de produção e de pesquisa. Muitas vezes esse trabalho é conduzido por considerações aleatórias, por uma seleção aleatória de trabalhadores, por tarefas que emergem aleatoriamente. Com frequência, ele se limita a simples transferência daquilo que é feito nos centros da União no campo do estudo das particularidades da criança nacional. Não obstante, há uma série de povos - penso eu, a maioria deles -, cujas crianças jamais foram submetidas a uma investigação pedológica; as crianças desses povos são, portanto, uma grandeza ab­ solutamente desconhecida para a ciência. Todo o trabalho pedagógico com elas é realizado em parte com base em métodos tradicionais, elaborados previamente, de educação e aprendizagem; em parte se baseia no falso pressuposto de que não deve haver nenhuma diferença fundamental entre essa criança e a criança russa. Dessa forma, vemos que o papel da investigação pedológica nos próximos anos no campo do desenvolvimento cultural das mino­ rias nacionais deve ser enorme, uma vez que até o momento muito pouco foi feito nessa área e que, por conseguinte, nosso plano deve não tanto organizar e dirigir o trabalho que já está sendo realizado, quanto criar totalmente o campo - que efetivamente inexiste e é de extrema importância - da pedologia soviética. É preciso dizer que esse capítulo da pedologia apresenta tare­ fas profundamente peculiares aos pesquisadores. As teses gerais do professor A. B. Zalkind2 sobre o plano do trabalho pedológico investigativo indicam dois aspectos que se apresentam em primeiro lugar diante de nós nesse campo. O primeiro deles é a inadequação da aplicação de testes e padrões habituais em crianças de minorias na­ cionais. O segundo, ligado ao anterior, é o fato de que a tarefa de in­ vestigação e estudo das peculiaridades culturais e cotidianas do meio nacional exige a elaboração de métodos e abordagens especiais e para crianças de diferentes nacionalidades. A pedologia das minorias na­

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cionais, segundo essas teses, é um dos capítulos mais importantes do próximo qüinqüênio de pesquisa e exige uma energia especial das bases pedológico-científicas locais, bem como métodos de expedição de trabalho científico.3 Vamos nos deter brevemente nos dois aspectos fundamentais que acabamos de mencionar, os quais determinam as características das tarefas da pedología nesse campo. O primeiro deles é a inade­ quação dos testes e padrões habituais. Uma série de pesquisas foi realizada com o pensamento ingênuo de que basta pegar os testes e padrões pedológicos gerais e utilizá-los para fazer pesquisas com crianças de minorias nacionais de modo a capturar toda sua singula­ ridade, toda sua particularidade em comparação com a criança russa, a que conhecemos melhor. Tais pesquisas quase sempre são malsucedidas, uma vez que, em geral, elas revelam retardo mental em quase todas as crianças de povos de desenvolvimento cultural atrasado ou com um tipo peculiar de cultura e cotidiano. Os pesquisadores identificaram, com total fundamento, a razão para isso no próprio caráter dos testes aplicados e, então, passaram a empregar métodos mais aperfeiçoados. A essência desses métodos aperfeiçoados reside no fato de que o teste aplicado em pesquisas comuns, ao ser traduzido para idiomas locais, altera-se na direção da fixação dos aspectos cotidianos que caracterizam a vida da popula­ ção local. Desenhos que contenham objetos e conceitos estranhos à criança de dada nacionalidade passam a ser substituídos por outros desenhos e paisagens de caráter cotidiano específico. Mediante tais alterações, os autores dessas pesquisas tornam seus testes mais próxi­ mos e compreensíveis para a criança de minorias nacionais. Mesmo assim, como mostra uma série de pesquisas, a situação não se alterou de forma decisiva. Por exemplo, a investigação psico­ lógica de crianças nativas de uma das Repúblicas da União realizada segundo tais alterações e aproximações à compreensão infantil dos tes­

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

tes revelou o seguinte quadro da capacidade mental em porcentagem: normal = 16,8%; atraso leve = 63,4%; atraso profundo = 19,8%. Dessa forma, verificou-se que apenas um sexto de toda população infantil foi avaliado como normal e que a capacidade das crianças daquela determinada nacionalidade, em comparação com uma criança russa, é algumas vezes menor (de duas a cinco vezes menor). Os autores de tais pesquisas têm razão ao apontarem que a baixa capacidade mental revelada é resultado de negligência pedagó­ gica e do efeito inibidor do meio com todas as suas particularidades cotidianas e culturais. Eles consideram que a saída para essa situação dificultosa seja a redução no grau de exigência e a introdução de pa­ drões e normas etárias de desenvolvimento mental mais baixos para as crianças de nacionalidades atrasadas. Contudo, é evidente que tais resultados expressam de forma eloqüente a inadequação dos próprios métodos de pesquisa. Os defei­ tos desses métodos residem não apenas no fato de que o material de construção dos testes foi retirado de um contexto cultural e cotidiano estranho àquela criança. De fato, esse problema poderia ser superado com a mudança do material cotidiano na construção do teste a partir da troca de certos desenhos por outros etc. A questão, evidentemente, é mais profunda. Trataremos dela a seguir, com a explicitação das posições básicas do nosso plano nessa área. O segundo aspecto reside na tarefa de estudar as peculiarida­ des culturais e cotidianas de determinado meio, bem como sua in­ fluência no desenvolvimento da criança e na constituição de sua per­ sonalidade. A dificuldade consiste em que o desenvolvimento cultural se realiza em formas nacionais variadas e extremamente complexas. A criança cresce e se desenvolve em um meio cultural e cotidiano par­ ticular, que reflete o complexo caminho do desenvolvimento daquele povo e o complexo sistema de condições econômicas e culturais da sua existência no tempo presente.

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Disso decorre que a tarefa primordial da pedologia é o estudo das crianças de minorias nacionais de forma não isolada, não separada dessas formas culturais e cotidianas específicas, mas, antes de tudo, sob o pano de fundo de tais peculiaridades, em relação a elas, na interação viva com elas. Dito de modo mais simples, a tarefa da pedologia é compreender a criança como parte inseparável e um produto natural daquele meio particular no qual ela cresce e se desenvolve. Poderíamos unificar esses dois aspectos e dizer que para a pe­ dologia nessa área se coloca a seguinte tarefa: passar de uma caracte­ rização negativa a uma caracterização positiva da criança de minorias nacionais. A essência dessa virada radical de 180 graus do ponto de vista metodológico pode ser facilmente compreendida se atentarmos para o fato de que a grande maioria das pesquisas nessa área estabe­ leceu, até o momento, objetivos puramente negativos. Elas tentaram estabelecer o que falta a determinada criança em comparação com uma criança mais desenvolvida, quais aspectos da personalidade dela estão suprimidos, enfraquecidos, inibidos, quais falhas seu psiquismo e seu comportamento revelam em comparação com o psiquismo de uma criança de um povo mais culto. Não se pode deixar de dizer que essa posição negativa da pesquisa é uma herança da abordagem psicológica tradicional ao “selvagem” e ao ser humano pouco culti­ vado. As pesquisas tradicionais buscam, antes de tudo, estabelecer os sinais distintivos mais grosseiros, principais, massivos, que saltam aos olhos. Elas fixam, primeiramente os “lugares ausentes”, as lacunas do desenvolvimento cultural. À diferença disso, a tarefa de estudar positivamente a criança de minorias nacionais consiste em revelar todas as peculiaridades po­ sitivas do psiquismo e do comportamento de tal criança e mostrar como as leis gerais do desenvolvimento infantil assumem uma expres­ são específica, concreta, em determinado meio cultural e cotidiano, como elas se refratam através de uma determinada forma nacional e histórica concreta de existência de todo um povo.

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Esse último aspecto é especialmente importante, pois ele esta­ belece uma ponte direta entre a pesquisa pedológica e a pedagógica. Com total fundamento nas teses básicas para o plano pedológico do professor A. B. Zalkind, são colocadas lado a lado a exigência de ela­ boração de métodos especiais para o estudo pedológico e a exigência de métodos especiais para a abordagem pedagógica da criança de minorias nacionais; ademais, ambas as exigências são motivadas pelas particularidades culturais e cotidianas do meio em que essa criança cresce e se desenvolve. No que diz respeito à peculiaridade dessa área dos estudos pe­ dológicos, planejamos também uma forma complexa de organização da investigação pedológica. Em seu aspecto mais geral, essa organi­ zação é composta de três aspectos. Em um dos centros da União, preferencialmente em Moscou, em estreita relação com as principais instituições pedológicas e sob supervisão direta da Comissão de Planejamento, deve ser criado um centro metodológico e investigativo em pedología das minorias nacionais. As tarefas desse centro incluirão a realização de pesquisas fundamentais sobre os principais problemas do desenvolvimento cultural, na elaboração de problemas metodológicos e de procedimento, no planejamento, na organização, no treinamento e na coordenação de todo trabalho de pesquisa nessa área, o qual será realizado em diferentes centros da União. Dito de outro modo, as funções desse centro são de direção, fundamentação e unificação de todo o trabalho nessa área. A necessidade de criação de tal centro nos parece totalmente clara se considerarmos o que foi exposto anteriormente. Atualmente é impossível obrigar cada região, cada nacionalidade a resolver por conta própria todas as complexas questões da pesquisa pedológica. Faz-se necessário retirar das margens os problemas gerais do desen­ volvimento cultural, os problemas gerais do estudo das particulari­ dades do meio nacional e da criança nacional, a elaboração de um conjunto de procedimentos etc. Faz-se necessário que se continue a

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promover uma ligação estreita desse capítulo da pesquisa pedológica com todo o restante do plano quinquenal de trabalho nessa área. Ambas as coisas podem ser realizadas apenas por uma instituição central de pesquisa. Dentre os centros de pesquisa existentes, qual poderia assu­ mir essa tarefa? Quais podem ser as formas de organização desse trabalho? Essas questões, até o momento, infelizmente permanecem em aberto, em virtude do fato de que nessa área, diferentemente de outras partes do nosso plano, com frequência há a necessidade de se criar do zero aparatos de pesquisa que estão totalmente ausentes. Contudo, pensamos que os recursos ideológicos e de pesquisa neces­ sários para a organização do centro de investigação em pedología das culturas nacionais já estão, em grande medida, garantidos nos grandes centros da União. Por enquanto a Comissão de Planejamento se limitou a criar uma seção especial de pedología das minorias nacionais, que foi en­ carregada de elaborar mais detalhadamente toda essa parte do plano, bem como de explicitar as possibilidades de criação de tal centro. Consideramos que, mesmo depois de sua criação junto à Comissão de Planejamento, seria necessário manter a seção por causa da extraordi­ nária complexidade organizacional do trabalho nessa área. Ao lado de um centro de pesquisa que irá dirigir e coordenar todo o trabalho, as tarefas de produção e de pesquisa deverão ser es­ tabelecidas principalmente nos institutos, escritórios e departamentos locais de pedología. Todas essas bases metodológicas locais deverão conduzir seu trabalho em ligação direta com o centro. O caráter desse trabalho de pesquisa deverá ser sobretudo de massa e prático. São essas bases que deverão verificar as posições básicas do instituto de pesquisa central, aplicá-las na prática e recolher materiais concretos que caracterizam a peculiaridade do desenvolvimento de um número massivo de crianças de uma dada nacionalidade. Os problemas gerais

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

do desenvolvimento cultural, retirados das margens e resolvidos no centro, devem reaparecer em sua variedade concreta de formas no trabalho das instituições locais. Por fim, o último aspecto do plano de organização consiste na organização de métodos e formas de trabalho de expedição. A organização de expedições pedológicas deve se tornar um meio tão constante e necessário de pesquisa científica quanto o “método de campo” na etnografía e etnologia contemporâneas. A direção e con­ dução dessas pesquisas de expedição devem estar nas mãos tanto dos institutos de pesquisa centrais quanto dos locais. Consideramos que apenas a unificação desses três aspectos será capaz de garantir a realização efetiva das tarefas que se colocam para a pedologia soviética nesse campo. A explicitação e fundamentação do plano de trabalho de pes­ quisa pedológico nessa área estariam absolutamente incompletas se nós não nos detivéssemos ao menos brevemente no problema dos métodos de estudo da criança nacional e do conteúdo do plano de investigação. Na esfera dos métodos de pesquisa, existem em nossa prática três pontos de vista distintos e suficientemente formulados, cuja inadequação na prática nos parece ter sido comprovada, uma vez que eles partem de uma colocação errônea de todo o problema. Um desses pontos de vista, o mais difundido no centro, adverte contra o entusiasmo pela elaboração independente de métodos. Esse ponto de vista foi refutado no primeiro número da nossa revista.4 Ele adverte contra a criação de um conjunto de procedimentos nas localidades e recomenda a aplicação de métodos gerais para que se chegue a resultados comparáveis. Como já foi mostrado por nós, esse ponto de vista é quase que inaplicável na prática, uma vez que leva a conclusões absurdas, bem comó à impossibilidade efetiva de investi­ gar, mas ele se mostra especialmente inadequado e errôneo bem no início de tais pesquisas. De fato, se concordarmos que o conjunto de

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procedimentos se define pelas propriedades do objeto a ser estudado, é necessário esperar antecipadamente que os métodos criados para o estudo de crianças de uma determinada cultura se mostrarão inade­ quados para o estudo de crianças de outra cultura. Estamos de acordo com a opinião autorizada de Thumwald,5 que fez mais do que qualquer outro no campo da elaboração de um método de pesquisa etnopsicológica. Ele diz sem rodeios que a apli­ cação de testes gerais na investigação de crianças de povos mais pri­ mitivos em geral leva a que, com base em dois ou três experimentos rápidos, todo um povo seja colocado em um nível de desenvolvimento equivalente ao de uma criança de 5 ou 7 anos de idade. Ao mesmo tempo que tal avaliação tem seu valor relativo no contexto da psicolo­ gia da criança europeia, a aplicação dessa escala ontogenética em um recorte filogenético revela-se absolutamente inaceitável. O outro ponto de vista mantém os mesmos testes e métodos de pesquisa em sua base, apenas editando-os no sentido de substituir o material estranho por um mais próximo do cotidiano da criança em questão. Essa reforma nos procedimentos, sem dúvida, representa um grande passo adiante. Gostaríamos de apontar apenas que, mesmo com a transferência da escala internacional de Binet,6 quase todo país europeu foi obrigado, em maior ou menor medida, a fazer mudanças na redação desses testes por conta das particularidades específicas da cultura e do cotidiano. Essas alterações na redação e no material dos testes são ainda mais necessárias quando eles são aplicados a crianças de uma nacionalidade e cultura totalmente distintas. Portanto, tudo o que os pedólogos fizeram nessa área nos parece ter grande mérito para o avanço do estudo pedológico. Contudo, mesmo essa reforma não resolve a situação. A pesquisa mencionada anteriormente, que mostrou apenas 16% das crianças na faixa normal dentro de todo um povo, recorreu justamente a uma redação melhorada e mais próxima das condições locais, ainda assim nem isso a salvou de um erro gi­ gante. Ocorre, evidentemente, que uma simples alteração do material

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

do teste, desacompanhada da capacidade de organizar e orientar a pesquisa corretamente, ainda se revela insuficiente. Por fim, o terceiro ponto de vista, isto é, o mais desenvolvido nos institutos de pesquisa locais, reconhece a particularidade pro­ funda de todos os processos de desenvolvimento da criança de mino­ rias nacionais e a total inadequação de todos os métodos de pesquisa criados para o estudo da criança europeia. Esse ponto de vista pressu­ põe que toda pesquisa pedológica deve ser criada do zero e elaborada para cada nacionalidade separadamente. Esse ponto de vista também nos parece inconsistente. Acreditamos que a saída para esse impasse esteja ligada à possi­ bilidade de passar do entusiasmo com o procedimento de testes, cujo significado e valor relativo são obtidos apenas depois de estar fundamen­ tado em profundas pesquisas experimentais, para um estudo efetiva­ mente profundo de todos os problemas do desenvolvimento da criança de minorias nacionais. Com a ajuda de testes tradicionais, como diz corretamente Thorndike,7 nunca saberemos ao certo o que estamos in­ vestigando. Não sabemos sequer com quais unidades estamos operando e o que nossas conclusões quantitativas querem dizer. Além disso, sa­ bemos que o método de testes se baseia em uma série de suposições convencionais, mais ou menos iguais em certo meio cultural e cotidiano, mas ele perde sua força e seu significado, estabelecidos por uma via pu­ ramente empírica, tão logo seja transposto para outro meio cultural, em que essas suposições convencionais devem ser substituídas por outras. Consideramos que apenas a combinação de uma pesquisa fun­ damental e profunda com uma pesquisa efetivamente massiva, que produzam os padrões empíricos necessários, poderá resolver esse problema metodológico. Mostraremos adiante que isso corresponde exatamente à estrutura organizacional mencionada anteriormente. Resta-nos ainda falar sobre o conteúdo do plano quinquenal de pes­ quisa nessa área.

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É preciso dizer que o problema em foco ocupa um lugar singu­ lar em todo o plano. Ele não é uma mera subdivisão do plano, uma parte dele, assim como outros capítulos do plano quinquenal pedoló­ gico, como é o caso da primeira e da segunda idade escolar, da idade pré-escolar, da creche, da infância difícil etc. Nosso problema abarca todas essas partes do plano, por isso ele não está destacado como um capítulo independente que pudesse ser trabalhado por uma comissão especial e ser apresentado por meio de urna lista de temas especiais. Nosso problema se encontra em uma relação estrutural mais com­ plexa com o plano quinquenal como um todo, não é apenas uma parte dele, mas um de seus aspectos, uma de suas facetas, um recorte específico de sua aplicação. Por isso, como já foi dito, ele abarca todas as principais subdivi­ sões do plano e se decompõe nos mesmos aspectos que caracterizam o plano como um todo: estudo do meio, estudo dos complexos de sintomas etários, o estudo do coletivo infantil e a fundamentação do trabalho prático. Por isso, nossa tarefa agora consiste menos em apre­ sentar o conteúdo desse plano ou enumerar os problemas principais a serem trabalhados, e mais em esboçar os pontos mais importantes que determinam os limites, o recorte de nosso plano, os quais corres­ pondem ao nosso problema. O aspecto primeiro e predominante, que determina o recorte que nos interessa no plano, consiste no fato de que o centro de pes­ quisa realiza o estudo do meio. O fator central e básico que deter­ mina as peculiaridades específicas do desenvolvimento multilateral da criança é a estrutura específica do meio. Por isso, o estudo pedológico do meio nacional, de sua estrutura, dinâmica e conteúdo é a tarefa primordial, sem cuja resolução não poderemos sequer nos aproximar da resolução das demais tarefas de nosso plano. Não são as diferen­ ças biológicas da espécie humana ou as particularidades da raça que serão colocadas em primeiro plano, mas justamente a influência for­ madora do meio social.

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Esse meio, com todo seu modo específico, apresenta tarefas singulares de adaptação para a criança. Ele determina os recursos do pensamento e do comportamento com os quais a criança precisa se instrumentalizar em seu processo de desenvolvimento. Ele deter­ mina sobretudo as oportunidades de exercício e de desenvolvimento com que se deparam suas disposições hereditárias. Se tomarmos o exemplo da nacionalidade muçulmana, que se viu ao longo de séculos sob o interdito da atividade figurativa, de qualquer representação em desenho, torna-se absolutamente claro que não se deve esperar de crianças dessa nacionalidade qualquer desenvolvimento pleno da fun­ ção representativa (desenho), tão característico da criança em idade pré-escolar em todos os países europeus. Povos que nunca viram um lápis, obviamente, se mostrarão atrasados no campo do desenvolvi­ mento da linguagem escrita. Todas as exigências metodológicas apresentadas aos nossos testes significam uma exigência para que se investiguem as disposi­ ções independentemente das formas especiais de exercício na forma mais geral e difundida em determinado meio e grau de exercício. Logo de partida, devemos dizer que o grau específico de desenvolvimento cultural de todo um povo e a forma nacional específica desse desen­ volvimento condicionam uma estrutura totalmente distinta de todo o campo de exercício das disposições herdadas, desenvolvendo algu­ mas, reprimindo outras e formando um tipo social e psicológico de criança que é singular. O segundo aspecto, que está intimamente ligado ao primeiro, consiste em explicitar o novo plano de pesquisa psicológica, isto é, precisamente o plano de desenvolvimento cultural das funções psi­ cológicas. Se partirmos do ponto de vista que acabamos de mencio­ nar, o qual pressupõe que a especificidade das crianças de minorias nacionais é condicionada primeiramente não pela especificidade das disposições, mas do meio, a única conclusão natural possível será a

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exigência de que seja introduzido em nossa pesquisa psicológica um plano completamente novo de investigação; o estudo do desenvolvi mento cultural ou histórico do psiquismo e do comportamento do ser humano. Não iremos nos deter agora na questão de quais aspectos caracterizam esse processQ de desenvolvimento; diremos apenas que é justamente a incapacidade de diferenciar entre desenvolvimento cultural e desenvolvimento incompleto em várias formas de primiti­ vismo que acaba levando, na prática, a pesquisas elaboradas de modo equivocado com todo um povo a concluir que apenas um sexto da população se encontra na faixa normal. Primitivismo e atraso são equiparados, desenvolvimento cultural e biológico também. Uma investigação fundam ental e profunda dos processos de desenvolvimento cultural e a expli­ citação de suas leis e caminhos fundamentais devem constituir a principal tarefa do instituto central de pesquisa. Essa pesquisa deve m ostrar que o meio não é apenas um fator que favorece mais ou menos o desenvolvimento dos mecanismos básicos do com portamento, mas também que ele mesmo forma e organiza todas as formas superiores de comportamento, tudo aquilo que, no desenvolvimento da personalidade, é edificado sobre as fun­ ções elementares. Por fim, o terceiro aspecto consiste na explicitação das particu­ laridades biológicas de raça que indubitavelmente existem e exercem influência em todo tipo de desenvolvimento da criança. Essas parti cularidades devem ser levadas em conta, colocadas em seu lugar e consideradas no resultado geral de toda a pesquisa. É por meio desses três pontos, e apenas por meio deles, que se pode e se deve organizar um círculo de pedologia das minorias nacionais. Nesse círculo, devem estar presentes os mesmos problemas que constituem o conteúdo do plano como um todo, bem como os mesmos aspectos estruturais em que ele se subdivide.

4. Sobre o plano de trabalho de investigação científica a respeito da pedología das minorias nacionais (1929)

Notas da tradução 1.

O autor refere-se ao Io Plano Quinquenal (1928-1932), principal política de gestão nacional soviética. Esse momento também é denominado de Grande Quebra (velíkii perelóm) ou “revolução pelo alto”. Simboliza a vitória de Stalin sobre Trótski, Zinóvieve Kámenev no 15° Congresso do Partido Co­ munista. Esse período deu início a uma série de mudanças drásticas, que incluíram a construção de um novo sistema soviético de ciência.

2. Sobre Zalkind, ver nota 23 do texto 1. 3.

Vigotski parece fazer referência às expedições realizadas com etnias mi­ noritárias, distantes dos grandes centros soviéticos. Cabe destacar que a psicologia étnica, descendente direta da psicologia dos povos de Wundt, estava presente na Rússia desde os anos 1920. No início do 1° Plano Quinquenal, houve forte incentivo para que os pesquisadores (entre os quais os pedólogos) estudassem tais etnias, visando integrá-las ao projeto societário comunista.

4.

Provável referência ao Pedologuitcheskii fum ai (1), 1923.

5.

Referência ao antropólogo austríaco Richard Thurnwald (1869-1954).

6. Alfred Binet (1857-1911), a pedido do Ministério da Educação francês, em 1904-1905, desenvolveu a primeira forma científica de testagem das capa­ cidades mentais de uma população escolar, aplicando a noção de quociente de inteligência (QI) de W. Stern. Desenvolveu a escala de mensuração da inteligência que foi traduzida e utilizada em diferentes países, atraindo muitas críticas de educadores pelo seu potencial gerador de exclusão das camadas populares. 7.

Edward Lee Thorndike (1874-1949), pesquisador da psicologia, iniciou seus estudos com W. James, sendo associado ao funcionalismo norte-ame­ ricano. Realizou importantes experimentos, defendendo a noção de que a inteligência é meramente um conjunto de associações. Suas obras sobre psicologia educacional foram bastante influentes no início do século XX.

5. O refazimento socialista do ser humano (1930) A psicologia científica estabelece como posição fundamental o fato de que o tipo psicológico contemporâneo é produto de duas linhas evolutivas. O tipo contemporáneo é formado no longo processo de evolução biológica, graças ao qual se forma a espécie biológica homo sapiens, com todas suas características peculiares da estrutura do corpo, das funções de cada órgão e de formas de atividade re­ flexiva e instintiva consolidadas hereditariamente e transmitidas de geração em geração. Contudo, em vez do início da vida social e histórica do ser humano, em vez de uma alteração radical das condições de adapta­ ção, alterou-se radicalmente o próprio caráter da evolução humana ulterior. Tanto quanto se pode julgar com base no material factual disponível, obtido principalmente pela comparação do tipo biológico dos povos primitivos, que se encontram em níveis primários do seu desenvolvimento cultural, com representantes de raças humanas mais cultas, e na medida em que a teoria psicológica contemporânea per­ mite resolver essa questão, temos todo fundamento para supor que o tipo biológico humano se alterou muito pouco em seu processo de desenvolvimento histórico. Não se trata de que a evolução biológica foi interrompida e que a espécie “humana” seja uma grandeza invariável, permanente, constante, mas que as leis e os fatores básicos que dirigem o pro­ cesso de evolução biológica recuaram para o segundo plano, em parte desapareceram, em parte aparecem como regularidades reduzidas, subordinadas, em regularidades mais complexas, as quais dirigem o desenvolvimento social do ser humano.

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Na realidade, a luta pela existência e a seleção natural - esses dois motores da evolução biológica na ordem animal - perdem seu significado determinante tão logo passamos para o desenvolvimento histórico do ser humano. No lugar deles surgem novas leis que condu zem o curso da história humana e captam todo o processo de desen­ volvimento material e espiritual da sociedade humana. Da mesma forma como cada ser humano existe apenas como ser social, como membro de determinado grupo social, junto do qual ele percorre o caminho de seu desenvolvimento histórico, a consti­ tuição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento são uma grandeza dependente da evolução social, que é determinada por esta última em seus aspectos mais importantes. Já em socieda­ des primitivas, que deram apenas os primeiros passos no caminho do desenvolvimento histórico, verifica-se uma dependência direta da constituição psicológica da personalidade em relação ao desenvolvi­ mento da técnica, ao grau de desenvolvimento das forças produtivas e da estrutura do grupo social ao qual o indivíduo pertence. A investi­ gação em psicologia étnica mostrou com indubitável clareza que esses dois aspectos, cuja dependência interna foi estabelecida pela teoria do materialismo histórico, são fatores determinantes de toda a psicologia do ser humano primitivo. Como observou Plekhánov,1 em nenhuma parte a dependência da consciência em relação à existência aparece com clareza tão direta e evidente do que precisamente na vida do ser humano primitivo. Essa clareza se deve ao fato de que os aspectos mediadores entre o desenvolvimento da técnica e o desenvolvimento do psiquismo são extremamente pobres, primitivos, e, portanto, essa dependência está como que desnudada. Uma correlação muito mais complexa entre es­ ses dois aspectos é observada em sociedades mais desenvolvidas, que têm uma estrutura de classe complexa. Aqui a influência da base so­ bre a superestrutura psicológica não é direta, mas mediada por uma

5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

série de aspectos muito complexos de caráter material e espiritual. Mas mesmo aqui permanece válida a lei básica do desenvolvimento histórico do ser humano, segundo a qual a vida social forma o ser hu­ mano e determina os aspectos mais importantes de toda constituição de sua personalidade. Assim como a vida social não é um todo único e homogéneo e a sociedade é dividida em classes, a constituição da personalidade humana não é, em cada época histórica, algo homogéneo, uniforme, e a psicologia deve considerar o fato básico de que a conseqüência direta da posição geral recém-formulada é o reconhecimento de que a formulação do tipo humano tem um caráter de classe, uma natureza de classe e distinções de classe. A contradição interna desse tipo de estrutura também se expressa na constituição da personalidade, na estrutura do psiquismo humano de dada época. Nas descrições clássicas do estágio inicial do capitalismo, Marx reiteradamente se detém na questão da deformação da natureza hu­ mana que a emergência da indústria capitalista acarreta. A separação entre trabalho intelectual e físico, a separação entre cidade e campo, a exploração implacável do trabalho infantil e feminino; em um polo da sociedade, miséria e impossibilidade de desenvolver livre e plena­ mente todas as forças humanas; no outro polo, ócio e luxo: tudo isso leva não apenas à diferenciação de um tipo único de ser humano, que se desintegra em uma série de tipos de classes sociais que se distin­ guem drasticamente entre si, mas também ao fato de que, em todas essas variantes do tipo humano, a personalidade humana se deforma, se desfigura, se desenvolve de forma incorreta e unilateral. Para Engels,2 “com a divisão do trabalho, o próprio ser hu­ mano foi dividido”. Cada forma de produção material determina certa divisão social do trabalho, como diz D. Riazanov, e esta última está na base da distinção espiritual do trabalho. Com a desagregação da sociedade primitiva, “constata-se a separação de toda uma série

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de funções espirituais e de organização em certos tipos e subtipos de divisão social do trabalho”. Adiante, Engels diz: Já a primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre cam po e cidade, condenou a população rural a séculos de em brutecim ento, e a população da cidade à escravização de seu próprio trabalho. Ela aniquilou a base do desenvolvimento espiritual daqueles e do desen­ volvim ento físico destes. Se o cam ponês domina a terra, o artesão domina seu ofício, a terra se impõe, não em menor medida, sobre o camponês, assim com o o ofício sobre o artesão. Com a divisão do tra­ balho, o próprio ser humano foi dividido. O desenvolvimento de uma atividade se fez às custas de outras capacidades físicas e espirituais. Essa mutilação do ser hum ano chega ao m esm o nível da divisão do trabalho, que alcança seu maior grau na manufatura. Ela decom põe o ofício em funções parciais isoladas, cada qual desempenhada por um operário específico com o se fosse sua vocação vital, e dessa forma o prende por toda a vida a uma função parcial determinada, a uma fer­ ramenta de trabalho específica.. . . N ão apenas os trabalhadores, mas ; também as classes que os exploram direta ou indiretamente, graças à J divisão do trabalho, são escravizadas pelas ferramentas de sua ativi- I dade: o burguês vulgar por seu próprio capital e sua sede de lucro; o advogado por suas noções jurídicas fossilizadas que o dominam com o se fossem uma força independente; as “classes educadas” em geral por suas limitações variadas e unilateralidade, por sua miopia física e espiritual, por sua atrofia decorrente de uma educação especializada à qual são acorrentadas por toda vida, ainda que essa especialidade consista em não fazer nada.

'

Isso é o que Engels diz em Anti-Dühring. Devemos partir da po­ sição básica de que a produção intelectual é determinada pela forma de produção material. Assim, por exemplo, corresponde ao capitalismo uma forma de pro­ dução espiritual distinta do m odo de produção medieval. Cada forma

5. O refazimento socialista do ser humano (1930)

histórica determinada de produção material corresponde a uma forma de produção espiritual, e isso, por sua vez, quer dizer que a psicologia do ser humano, por ser um aparato direto dessa produção intelectual, adquire uma forma específica em cada estágio determi­ nado do desenvolvimento. A mutilação do ser humano, o desenvolvimento unilateral e disforme de suas capacidades isoladas, de que fala Engels, e que teve início com a divisão entre campo e cidade, tem se fortalecido enorme­ mente por causa da influência da divisão técnica do trabalho. Engels diz: Todo conhecimento, entendimento e vontade que camponeses ou ar­ tesãos desenvolvem em si mesmos de forma independente, ainda que em pequena escala, como o selvagem que personifica toda arte da guerra em dispositivos de astúcia pessoal, tudo isso na manufatura é exigido apenas da oficina como um todo. As forças de produção espirituais ampliam sua escala em certo sentido justamente porque em muitos outros elas desaparecem por completo. O que os operá­ rios parciais perdem se concentra no capital como contrapeso a eles. A divisão do trabalho feita pela manufatura faz com que as forças espirituais do processo de produção sejam contrapostas pelos ope­ rários como uma propriedade alheia e uma força que os escraviza. Esse processo de separação começa com a simples cooperação, na qual o capitalista aparece para o operário como uma totalidade e a vontade do corpo de trabalho social. Ele continua se desenvolvendo na manufatura, na qual o operário é reduzido ao nível de operário parcial. Ele se completa na grande indústria, que separa o operário da ciência, como uma força de produção independente, e o obriga a servir ao capital. Como resultado do progresso do capitalismo, o florescimento da produção material significou ao mesmo tempo uma divisão ainda maior do trabalho e um desenvolvimento disforme ainda mais for­ talecido das capacidades humanas. Se no ofício “de manufatura” o

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operário faz com que a ferramenta sirva a ele, na fábrica ele serve à máquina. Lá o movimento da ferramenta de trabalho parte dele, aqui ele deve seguir seu movimento, segundo Marx. Os operários sao convertidos em “apêndices vivos da máquina”, surge a “desalentada monotonia do sofrimento sem fim do trabalho”, de que fala Marx, como sendo uma característica distintiva do período do capitalismo por ele descrito. Nas palavras de Marx, a ligação do operário a uma determinada função converte “o operário em um monstro, cultivando apenas uma capacidade especial e esmagando o mundo restante de inclinações e talentos produtivos”. Um quadro ainda mais lúgubre da deformação do desenvolvi­ mento psicológico do ser humano é apresentado pelo trabalho infantil nessa época. Uma simplificação extraordinária das funções isoladas desempenhadas pelos operários permite, na corrida por trabalho ba­ rato, atrair massas de crianças para a produção, o que leva a um atraso e um desenvolvimento unilateral e deformado em uma idade decisiva, quando a personalidade da pessoa se forma. A obra clássica de Marx é repleta de exemplos de “asselvajamento intelectual”, “de­ gradação física e intelectual”, “transformação do sujeito imaturo” em uma máquina para fabricação de mais-valia, e apresenta um quadro vivo de todo o processo que leva “o operário a existir para o processo de produção, e não o processo de produção para o operário”. Contudo, nenhum desses aspectos negativos determina intei­ ramente os impactos sobre o desenvolvimento humano que estão contidos no progresso acelerado da produção. Todas essas influên­ cias negativas não são inerentes à indústria de larga escala em si mesma, mas à organização capitalista desta, que é construída com base na exploração de enormes massas populacionais, o que faz com que cada novo passo em direção à vitória do ser humano sobre a natureza, cada novo degrau do desenvolvimento das forças pro­ dutivas da sociedade seja galgado não pela humanidade como um

5. O refazimento socialista do ser humano (1930)

todo e por pessoas individualmente, mas conduz a uma degradação cada vez maior da personalidade humana e de suas possibilidades de desenvolvimento. Filosofias como as de Rousseau e Tolstói, ao observarem a muti­ lação do ser humano no processo progressivo de civilização, não viram outra saída para essa situação a não ser o retorno a uma natureza humana mais íntegra e pura. Como disse Tolstói, nosso ideal não está adiante, mas atrás. Nesse sentido, as épocas primitivas do desenvolvi­ mento da sociedade humana constituíam, do ponto de vista do rorhantismo reacionário, o ideal ao qual a humanidade deveria aspirar. Na realidade, um estudo profundo das tendências econômicas e históricas que guiam o desenvolvimento do capitalismo mostra que a mutilação na natureza humana, da qual tratamos antes, está atrelada não apenas ao crescimento da produção em larga escala por si só, mas também à forma capitalista específica de organização da sociedade. A maior e mais fundamental contradição de toda essa estru­ tura social consiste em que em seu interior, com necessidade de ferro, amadurecem forças que criam as condições para sua destrui­ ção e substituição por uma nova estrutura, baseada na ausência da exploração do homem pelo homem. Marx mostra reiteradamente como em si mesmo o trabalho, a produção em larga escala, não ape­ nas não tem capacidade de mutilar a natureza humana, como pode­ ria supor um seguidor de Rousseau ou de Tolstói, mas também, ao contrário, traz em si possibilidades infinitas para o desenvolvimento da personalidade humana. Ele diz: D o sistema fabril, com o se pode acompanhar com detalhes em Robert Owen, surge o embrião da educação do futuro, que reunirá trabalho produtivo com o aprendizado e a ginástica para todas as crianças a partir de certa idade; além disso esse será não apenas um m étodo

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para elevar a produção social, mas será o único m étodo de criação de pessoas desenvolvidas em todos os sentidos.

Dessa forma, a participação de crianças na produção, que ao ser realizada dentro do sistema capitalista, especialmente em determi­ nado período de desenvolvimento do capitalismo, constitui uma fonte de degradação física e intelectual, contém em si mesma o embrião da aprendizagem do futuro e pode ser uma forma elevada de criação de um novo tipo de ser humano. Por si só, o crescimento da produção em larga escala cria a necessidade de elaboração de um novo tipo de trabalho humano e de um novo tipo de humano, capaz de executar essas novas formas de atividade de trabalho. Diz Marx: A natureza da indústria de larga escala condiciona uma transforma­ ção do trabalho, uma constante mudança das funções e uma m o­ bilidade do operário em todos os sentidos. O indivíduo convertido em fração, um simples portador de uma função social parcial, deve ser substituído por um indivíduo íntegro e plenamente desenvolvido, para o qual as diferentes funções sociais se misturam entre si com o formas de aplicação de sua atividade

Dessa forma, vemos que não apenas a união do trabalho pro­ dutivo com o processo ensino-aprendizagem é uma forma de criação de pessoas desenvolvidas em todos os sentidos, mas também o tipo de ser humano que uma produção altamente desenvolvida exige é funda­ mentalmente distinto do tipo de ser humano criado pela produção no estágio inicial do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, o fim do período capitalista representa uma impressionante antítese em rela­ ção ao seu início. Se inicialmente o indivíduo se converteu em fração, em executor de uma função parcial, um apêndice vivo da máquina, no final as próprias necessidades da produção exigem um ser humano ativo, desenvolvido em todos os sentidos, capaz de alterar as formas de trabalho, organizar o processo produtivo e dirigi-lo.

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Qualquer que seja o traço particular determinante do tipo psi­ cológico do ser humano que se tome, seja em um período inicial ou posterior do desenvolvimento do capitalismo, veremos em toda parte o significado duplo, o caráter duplo de todos os momentos decisivos. Aquilo que para a forma capitalista de produção é fonte de degrada­ ção da personalidade, por si mesmo, contém possibilidades de desen­ volvimento infinito da personalidade. A título de exemplo, iremos no deter, na conclusão, apenas na questão relativa ao trabalho combinado de pessoas de sexos distintos e das mais diversas faixas etárias. Segundo Marx, “Essa composição do trabalho combinado dos funcionários por pessoas de ambos os sexos e das mais diversas faixas etárias, em condições corresponden­ tes, deve ser a fonte do desenvolvimento da personalidade humana”. Assim, vemos que por si só o crescimento da produção em larga escala esconde em si possibilidades de desenvolvimento da per­ sonalidade humana e apenas a forma capitalista de organização do processo produtivo faz com que todas essas forças exerçam uma in­ fluência unilateral, disforme, que oprime o desenvolvimento das ten­ dências de desenvolvimento da personalidade. Em uma de suas obras, Marx diz que, se a psicologia quer se tornar uma ciência real e efetivamente rica de conteúdo, ela deve ser capaz de ler o livro da história da indústria material, no qual estão encarnadas as “forças essenciais objetificadas do ser hu­ mano”, que são elas mesmas uma encarnação concreta da psicolo­ gia humana. Toda tragédia interna do capitalismo consiste em que, quando essa psicologia objetificada, ou seja, encerrada nas coisas e que contém em si possibilidades infinitas de domínio sobre a na­ tureza e de desenvolvimento de sua própria natureza, cresceu com velocidade vertiginosa, sua vida espiritual concreta se degradou e sofreu o processo que Engels chama metaforicamente de mutilação do ser humano.

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Entretanto, a essência da questão consiste em que essa influên­ cia duplicada de fatores da produção em larga escala sobre o desen­ volvimento da personalidade humana, essa contradição interna do sis­ tema capitalista, não pode ser resolvida sem a aniquilação do próprio sistema capitalista de organização da produção. Nesse sentido, aquilo que denominamos contradição parcial entre o crescente poderio hu­ mano e, paralelamente, sua crescente degradação, entre seu crescente domínio sobre a natureza e sua liberdade, por um lado, e a escravidão e a crescente dependência em relação às coisas criadas pelos próprios humanos, por outro. Essa contradição, repito, é apenas uma parte de uma contradição muito mais geral e abrangente, que está na base de todo o sistema capitalista. Essa contradição geral entre o crescimento das forças produtivas e a organização social que não corresponde ao nível do crescimento das forças produtivas é resolvida pela revolução socialista, pela passagem para uma nova organização social, para no­ vas formas de organização das relações sociais. Com isso, necessariamente deve ocorrer a alteração da personali­ dade humana, o refazimento do próprio ser humano.'5 Esse refazimento tem, essencialmente, três fontes. A primeira delas consiste no próprio fato do aniquilamento das formas capitalistas de organização e de produção, das formas sociais e de vida espiritual do ser humano que emergem em sua base. Com a extinção do sistema capitalista, caem por terra, desaparecem e são aniquiladas as forças que pesam sobre o ser humano, que o levam a ser escravizado pela máquina, que atrapalham seu livre desenvolvimento. Com a libertação de milhões de seres humanos da opressão, ocorre tam­ bém a libertação da personalidade humana dos caminhos que tolhem o desenvolvimento. A primeira fonte é a libertação do ser humano. A segunda fonte, que dá origem ao refazimento do ser humano, consiste em que, com a destruição dos modos antigos, são libertadas e entram em ação aquelas enormes possibilidades positivas que são ine-

5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

rentes à produção em larga escala em todos esses poderes crescentes do ser humano sobre a natureza. Os aspectos que foram abordados antes, cujo mais notável exemplo pode ser urna nova forma de edu­ cação do futuro que surge da união entre trabalho físico e mental, perdem seu caráter duplo e alteram fundamentalmente a direção de sua influência. Se antes eles agiam contra o ser humano, agora eles começam a agir em prol dele. De obstáculos, eles passam a ser pode­ rosas forças motrizes de desenvolvimento da personalidade humana. Por fim, a terceira fonte que dá origem ao refazimento do- ser humano é a alteração das próprias relações sociais entre as pessoas. Alteram-se as relações entre as pessoas e, com isso, alteram-se as no­ ções, normas de comportamento, necessidades, gostos. A persona­ lidade do ser humano se forma fundamentalmente, como mostra a pesquisa em psicologia, sob influência das relações sociais em cujo sistema ele está inserido desde a mais tenra infância. Segundo Marx, a minha relação com o meu meio é minha consciência. A alteração radical de todo sistema de relações no qual se insere o ser humano necessariamente leva à alteração da consciência, à alteração de todo o comportamento humano. Para o refazimento do ser humano, a educação* desempenha um papel central, ela é o caminho de formação social consciente de novas gerações, a principal forma de substituição de um tipo histórico de humano. As novas gerações e as novas formas de educá-las são a estrada principal pela qual a história passa, criando um novo tipo de pessoa. Nesse sentido, o papel da educação política e politécnica é absolutamente excepcional. As ideias fundamentais que se encontram na base da educação politécnica consistem precisamente em superar a divisão entre trabalho físico e mental, unificar pensamento e trabalho, separados no processo de desenvolvimento capitalista. Segundo a definição de Marx, a educação politécnica con­ siste no conhecimento de princípios científicos gerais de todos os

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processos produtivos e, ao mesmo tempo, o fomento de habilidades práticas em crianças e adolescentes para o trato com instrumentos elementares de todas as produções. Segundo a ideia formulada por Nadiejda Krúpskaia,5 A escola politécnica se distingue da profissional pois seu centro de gravidade reside na atribuição de sentido a processos de trabalho, no? desenvolvimento da habilidade de unificar teoria e prática, na habili­ dade de compreender a interação entre certos fenôm enos, ao passo que, na escola profissional, o centro de gravidade consiste em equipar o estudante com habilidades de trabalho.

O caráter coletivista, a união entre trabalho físico e mental, a transformação das relações entre os sexos, o aniquilamento da ruptura entre desenvolvimento físico e mental: estes são os aspectos determinantes do refazimento do ser humano do qual estamos tra-; tando aqui. O resultado da conclusão, o coroamento desse processo de reconstrução da natureza humana deve ser a liberdade superior do ser humano, da qual fala Marx: “Apenas na coletividade o indivíduo obtém os meios que lhe dão a possibilidade de desenvolver suas apti­ dões em todos os sentidos; por conseguinte, apenas na coletividade a ' liberdade pessoal é possível”. Assim como a sociedade humana como um todo, a personali­ dade humana deve dar um salto do reino da necessidade para o reino da liberdade, do qual fala Engels. Quando se fala sobre o refazimento do ser humano, sobre a criação de um tipo novo, superior de personalidade e comportamento humano, são abordadas inevitavelmente as noções sobre o novo tipo de ser humano ligadas à teoria de Nietzsche sobre o super-homem. Partindo de um pressuposto absolutamente correto de que o desen­ volvimento humano não para no ser humano, de que o tipo contem­ porâneo de ser humano é apenas uma ponte, apenas uma forma transitória para um tipo mais elevado, que o desenvolvimento não se

5. O rcfazimento socialista do ser hum ano (1930)

esgota na criação do ser humano, que o tipo contemporâneo de per­ sonalidade não é superior nem a última palavra do desenvolvimento, Nietzsche conclui que no processo de desenvolvimento surge uma nova essência, o super-homem, que está para o humano contemporâ­ neo como este está para o macaco. Contudo, Nietzsche imaginava que, na base do desenvolvi­ mento desse tipo superior de humano, estão as mesmas leis da evo­ lução biológica, a luta pela existência, a seleção pela sobrevivência dos mais adaptados, que prevalece no reino animal. Por isso, o ideal de poder, a autoafirmação da personalidade humana em toda completude de suas forças e aspirações instintivas, o individualismo orgu­ lhoso e uns poucos notáveis são, para Nietzsche, o caminho para a criação do super-homem. O equívoco dessa teoria é que ela ignora o fato de que as leis da evolução histórica humana se distinguem radicalmente das leis da evolução biológica, que a diferença radical entre um e outro processo consiste em que o ser humano evolui e se desenvolve como um ser histórico, social. Apenas elevando toda a humanidade a um grau su­ perior da vida social, apenas a libertação de toda a humanidade é o caminho para o surgimento de um novo tipo de ser humano. Contudo, essa transformação do comportamento humano, a transformação da personalidade humana deve inevitavelmente levar à sua evolução ulterior e ao refazimento do tipo biológico humano. Ao lu­ tar contra o envelhecimento e o adoecimento, ao dominar os processos que determinam sua própria natureza, o ser humano indubitavelmente eleva a um grau superior e reconstrói a própria organização biológica da criatura humana. Contudo, o maior paradoxo histórico do desenvol­ vimento humano consiste precisamente em que o refazimento biológico do tipo humano, realizado fundamentalmente com a ajuda da ciência, da educação social e da racionalização de toda estrutura da vida, constitui não um pré-requisito, mas o resultado da libertação social do ser humano.

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Nesse sentido, acompanhando o processo de desenvolvimento do macaco ao humano, Engels disse que o trabalho cria o ser hu­ mano. Nessa mesma base, pode-se dizer que as novas formas de tra­ balho criam o humano novo, e este lembrará o humano antigo, o “velho Adão”, apenas pelo nome, assim como, segundo a magnífica expressão de Espinosa, o cão, isto é, o animal que late, lembra a cons- ; telação celeste Cão Maior.6

Notas da tradução 1.

Geórgui Valentínovitch Plekhánov (1856-1918), filósofo autodidata. É lem­ brado como o “pai do marxismo russo”. Enquanto exilado na Inglaterra, tornou-se grande amigo de Friedrich Engels, sua principal fonte teórica. E reputado como o mentor das ideias de materialismo histórico e mate­ rialismo dialético, tendo exercido grande influência em Vigotski e muitos outros autores da revolução, a despeito de suas diferenças políticas para com Lênin e os bolcheviques.

2.

Friedrich Engels (1820-1895), polímata e revolucionário alemão. Grande parceiro de Marx na elaboração do materialismo histórico e do socialismo científico, era um poliglota e estabeleceu copiosa correspondência com militantes de todo o mundo, inclusive da Rússia. Marx o considerava mais versado em temas científicos do que ele próprio. A obra científico-filosófica de Engels exerceu grande influência na ciência soviética, e Vigotski não foi exceção.

3.

A palavra russa peredélka foi aqui traduzida como “refazimento”. Buscou-se uma correspondência etimológica com o termo original, já que esse agrega o prefixo pere- (que expressa repetição, assim como o prefixo re- em português) e uma palavra oriunda do verbo diélat, isto é, “fazer”.

4.

O termo russo aqui traduzido como “educação” é vospitánie. Trata-se de um vocábulo que abarca uma ideia mais integral de educação, que vai além da formação escolar - esta, em geral, é definida pelo termo obrazovánie. Outro termo muito empregado na psicologia vigotskiana é obutchênie, que, na presente edição, foi traduzido pela expressão “processo de ensino-aprendizagem” ou ainda por “aprendizagem”, a depender do contexto.

5. O refazimento socialista do ser hum ano (1930)

5.

Nadiéjda Konstantinovna Krúpskaia (1869-1939), pedagoga, militante e esposa de Lênin. Exerceu enorme influência nas políticas do Narkompros (o Comissariado do Povo para Educação, equivalente ao Ministério da Edu­ cação) de 1918 a 1933, apesar de não ocupar elevados cargos.

6.

Ver nota 34 do texto 2.

175

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930) O assunto de que irei tratar aqui surgiu de nosso trabalho expe­ rimental conjunto e constitui uma tentativa ainda inacabada de pen­ sar teoricamente aquilo que foi determinado em uma série de traba­ lhos que abordam fundamentalmente a unificação de duas linhas de pesquisa, uma genética e uma patológica. Assim, essa tentativa p.ode ser analisada (não do ponto de vista formal, mas em sua essência) como uma tentativa de identificar os novos problemas que surgem em decorrência do fato de que uma série de problemas psicológicos, até o momento pesquisados no plano do desenvolvimento das funções, passou a ser comparada com problemas que emergem no plano da desagregação dessas funções e de selecionar aquilo que pode ter sig­ nificado prático para as pesquisas do nosso laboratório. Uma vez que aquilo que pretendo comunicar supera em ter­ mos de complexidade o sistema de conceitos com os quais operá­ vamos até então, gostaria de, inicialmente, reiterar uma explicação que a maioria de nós já conhece. Quando fomos acusados de termos tornado complexos problemas absolutamente simples, sempre res­ pondíamos que deveríamos ser antes acusados de outra coisa, isto é, explicamos de forma demasiadamente simplificada um problema de excepcional complexidade. Mesmo agora, o que os senhores verão é uma tentativa de abordar uma série de fenômenos que tratamos como sendo mais ou menos conhecidos ou primitivos, para nos apro­ ximarmos da compreensão de que eles são mais complexos do que pareciam inicialmente. Gostaria de lembrar que esse movimento em direção a uma compreensão cada vez mais complexa dos problemas por nós estuda­ dos não é casual, mas está encerrado em um ponto determinado de

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

nossa pesquisa. Como os senhores sabem, a perspectiva fundamen­ tal sobre as funções superiores consiste em que as coloquemos em uma relação diferente com a personalidade, quando comparadas às funções psicológicas primitivas. Quando dizemos que a pessoa do­ mina seu comportamento, orienta-o, nos valemos, para explicar coisas simples (atenção voluntária ou memória lógica), de fenômenos mais complexos, como a personalidade. Fomos acusados de negligenciar o ' conceito de personalidade, que está presente em todas as explicações das funções psicológicas das quais tratamos. Isso é verdade. Assim são realizadas absolutamente todas as pesquisas científicas que, se­ gundo a bela expressão de Goethe,1 transformam um problema em ' postulado, ou seja, partem de uma hipótese formulada previamente,. a qual, contudo, deve ser submetida a uma solução e verificação no processo de investigação experimental. Gostaria de lembrar que, por mais que tenhamos interpretado as funções psicológicas superiores de forma primitiva e simples, re­ corremos a um conceito cada vez mais complexo e integral de perso- nalidade; tentamos explicar funções relativamente simples, como a atenção voluntária ou a memória lógica, a partir da relação com ela. Por isso fica claro que, à medida que o trabalho avançava, tivemos que preencher essa lacuna, justificar a hipótese e convertê-la gradual­ mente em um conhecimento verificado experimentalmente, selecionar de nossas investigações os aspectos que preenchem a lacuna entre a personalidade geneticamente postulada, que se encontra em uma rela­ ção especial com essas funções, e o mecanismo relativamente simples previsto em nossa explicação. lá em nossas pesquisas iniciais, deparamo-nos com o tema sobre o qual irei falar. Intitulei essa palestra de “Sobre os sistemas psi­ cológicos”, tendo em vista as relações complexas que se estabelecem entre as funções no processo de desenvolvimento e as que se desagre gam ou sofrem alterações patológicas no processo de desagregação.

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

Ao estudarmos o desenvolvimento do pensamento e da lingua­ gem na idade infantil, observamos que o processo de desenvolvimento dessas funções consiste não do fato de que dentro de cada função ocorrem mudanças, mas principalmente no fato de que a relação ini­ cial entre essas funções se altera, o que é característico para a filogênese em seu plano zoológico e para o desenvolvimento da criança nos primeiros anos. Essa ligação e essa relação não permanecem as mesmas no desenvolvimento ulterior da criança. Por isso, uma das principais ideias no campo do desenvolvimento do pensamento e da linguagem é a de que não há fórmulas fixas que determinem a relação entre pensamento e linguagem e que sirvam para todos os estágios de desenvolvimento e formas de desagregação, mas, em cada estágio do desenvolvimento e em cada forma de desagregação, temos relações específicas que se alteram. A esse tema será dedicada minha fala. A ideia principal (uma ideia extremamente simples) consiste em que, no processo de desenvolvimento e, em particular, do desenvolvimento histórico do comportamento, alteram-se não tanto as funções, como havíamos estudado antes (esse foi nosso erro), não tanto a estrutura delas, não tanto seu sistema de movimento; o que se altera e se mo­ difica são as relações, as ligações das funções entre si, surgem novos agrupamentos, antes desconhecidos no estágio precedente. Portanto, a diferença essencial na passagem de um estágio a outro é com fre­ quência não uma alteração intrafuncional, mas interfuncional, uma alteração das relações interfuncionais, da estrutura interfuncional. A emergência dessas novas relações móveis, nas quais as fun­ ções se colocam uma em relação a outra, será denominada sistema psicológico, incluindo todo o conteúdo que geralmente é abrangido por esse que, infelizmente, é um conceito demasiadamente amplo. Direi duas palavras sobre a forma como organizarei o mate­ rial. Que o curso de uma pesquisa e o curso de uma exposição são, com frequência, opostos entre si é um fato amplamente conhecido.

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Seria mais simples abarcar teoricamente todo o material e não falar sobre as pesquisas realizadas em laboratório. Mas não posso fazer isso: ainda não tenho uma perspectiva teórica geral que abarque esse material, e me pareceria equivocado fazer uma teorização prematura. Apresentarei de forma meramente sistemática uma espécie de esca daria de fatos, partindo de baixo para cima. Admito desde já que não sou capaz de abarcar toda a escadaria com uma compreensão teórica efetiva nem de dispor os fatos em sua relação lógica e em sua interconexão. Partindo de baixo para cima, gostaria apenas de mostrar a enorme quantidade de material acumulado, que com frequência en­ contramos em outros autores, e mostrá-lo em relação aos problemas para cuja solução esse material desempenha um papel primordial, com destaque especial para o problema da afasia e da esquizofrenia no campo da patologia e o problema da idade de transição2 na esfera da psicologia genética. Tomarei a liberdade de intercalar considera­ ções teóricas de passagem; parece-me que, no presente, é apenas isso que podemos oferecer.

1 Permitam-me começar pelas funções mais simples, isto é. as relações entre processos sensorios e motores. O problema dessas relações na psicologia contemporânea é colocado de forma absoluta­ mente distinta de como ele era apresentado antes. Se para a psicolo­ gia antiga a questão era o tipo de associação que emergia entre eles, para a psicologia contemporânea o problema é inverso: como surge a medida3 entre eles. Tanto as considerações teóricas quanto o cami­ nho experimental mostram que o sistema sensório-motor é um todo psicofisiológico único. Essa visão é defendida especialmente pelos psicólogos da Gestalt (K. Goldstein,4 do ponto de vista neurológico; W. Kõhler e K. Koffka5 e outros, do ponto de vista da psicologia). Não será possível apresentar todas as considerações que servem a

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

essa perspectiva. Digo apenas que, de fato, ao se estudarem aten­ tamente as investigações experimentais dedicadas a essa questão, observamos até que ponto os processos sensoriais e motores consti­ tuem um todo único. Assim, a resolução motora para uma tarefa em um macaco não é outra coisa senão uma continuação dinâmica da­ queles processos, da mesma estrutura existente no campo sensorial. Os senhores conhecem a convincente tentativa de Kõhler (1930) e outros de mostrar, em oposição à visão de K. Bühler,6 que o macaco resolve a tarefa não no campo intelectual, mas no campo sensorio, e isso foi confirmado nos experimentos de E. Jaensch, que mostrou que, para o defensor do eidetismo,7 o movimento da ferramenta em direção ao objetivo é realizado no campo sensorio. Por conseguinte, o campo sensorio não é fixo e a solução completa da tarefa pode ocorrer no campo sensorio. Se prestarmos atenção a esse processo, a ideia de unidade sensòrio-motora é integralmente confirmada uma vez que nos restringi­ mos a um material zoológico ou se estivermos tratando de crianças de pouca idade ou, ainda, de adultos nos quais esses processos estejam mais próximos dos afetivos. Contudo, se formos adiante, surge uma modificação surpreendente. A unidade dos processos sensorio-mo­ tores, a ligação que faz com que o processo motor seja uma conti­ nuação dinâmica de uma estrutura estabelecida no campo sensorial, desfaz-se: o sistema motor adquire um caráter relativamente indepen­ dente em relação aos processos sensoriais, e os processos sensoriais se separam dos impulsos motores diretos; entre eles surgem relações mais complexas. À luz dessas considerações, os experimentos de Luria com sistemas motores combinados (1928) aparecem sob um novo aspecto. Ainda mais interessante é que, quando o processo retorna à forma afetiva, a ligação direta entre os impulsos motores e sensoriais é restabelecida. Quando a pessoa não se dá conta do que faz e age sob influência de reações afetivas, é possível novamente inferir seu estado interno, o caráter de sua percepção, pelo seu sistema motor.

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Novamente observamos o retorno à estrutura que é característica dos estágios iniciais do desenvolvimento. Se o pesquisador que estiver realizando um experimento com; um macaco virar de costas para a situação e de frente para o macaco,' de modo a não ver aquilo que o macaco está vendo, ele conseguirá inferir o que o animal que participa do experimento vê. Isso é o que Luria chama de sistema motor combinado. Pelo caráter dos movimen­ tos é possível inferir a curva das reações internas. Isso é característico dos estágios iniciais do desenvolvimento. A ligação direta entre pro­ cessos motores e sensorios com frequência se desagrega na criança. Por enquanto (sem falar do que está adiante), podemos estabelecer oí seguinte: os processos motores e sensorios, percebidos no plano psi­ cológico, adquirem relativa independência entre si, relativa no sentido ; de que a união, a ligação direta que é típica dos primeiros estágios do desenvolvimento, já não existe. Os resultados da pesquisa das formas; superiores e inferiores do sistema motor em gêmeos (no plano da se-r paração entre fatores herdados e fatores do desenvolvimento cultural) levaram à conclusão de que, também do ponto de vista da psicologia diferencial, o sistema motor do adulto não é, evidentemente, caracte-: rizado por sua constituição original, mas pelas novas ligações, pelas novas relações que o sistema motor estabelece com as demais esferas da personalidade, com as demais funções. Continuando essa ideia, gostaria de me deter na percepção. Na criança, a percepção adquire independência até certo grau. À di­ ferença do animal, a criança pode contemplai* a situação e, mesmo sabendo o que é preciso fazer, não agir diretamente. Não vamos nos deter em como isso ocorre, mas vamos acompanhar o que ocorre com a percepção. Vimos que a percepção se desenvolve assim como o pensamento e a atenção voluntária.8 O que acontece aqui? Como dissemos, tem-se um processo de “enraizamento” dos procedimentos, com a ajuda dos quais a criança que percebe o objeto o compara com

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

outros objetos e assim por diante. Tal pesquisa nos levou a um beco sem saída, e outras pesquisas mostraram com total clareza: o desen­ volvimento ulterior da percepção consiste em que ela entra em uma síntese complexa com outras funções, em particular com a linguagem. Essa síntese é tão complexa que em cada um de nós, exceto em casos patológicos, é impossível separar todas as regularidades primárias da percepção. Apresentarei um exemplo bastante simples. Quando investigamos a percepção de imagens, como fez Stern,9vemos que, ao relatar o conteúdo da imagem, a criança nomeia objetos separados, e ao realizar aquilo que está representado no quadro, ela representa o quadro como um todo, sem tratar de partes isoladas. Nos experi­ mentos de Kos, nos quais a percepção é investigada de forma mais ou menos pura, a criança, em particular a criança surda-muda, constrói figuras totalmente de acordo com um tipo estrutural, ela reproduz um desenho correspondente, uma mancha colorida; mas, tão logo a lin­ guagem interfere na designação desses cubos, obtemos inicialmente uma união incongruente, sem estrutura: a criança coloca os cubos próximos entre si, mas sem formar um todo estruturado. Para suscitar em nós uma percepção pura, é preciso estabe­ lecer certas condições artificiais, e essa é uma tarefa metodológica ainda mais difícil em experimentos com adultos. Em um experimento no qual é preciso oferecer ao sujeito uma figura sem sentido, se ofere­ cermos não apenas um objeto, mas uma figura geométrica, a percep­ ção se unirá a um conhecimento (por exemplo, de que isso é um triân­ gulo). E para que se apresente, como diz Kõhler, não uma coisa, mas um “material para visão”, faz-se necessário exibir uma composição complexa, confusa e sem sentido ou mostrar com extrema velocidade um objeto, de modo que dele reste apenas uma impressão visual. Em outras condições, não é possível voltar à percepção imediata. Na afasia, em formas profundas de degradação das funções intelectuais e da percepção em particular (isso foi especialmente

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observado por Põtzl),10 ocorre uma espécie de retorno à separação da percepção daquele complexo no qual ela flui. Não posso dizer isso de forma mais simples e breve, a não ser apontando para o fato de que a percepção do ser humano contemporâneo se tornou essencialmente parte do pensamento visual, pois, ao mesmo tempo que percebo, vejo o objeto percebido. O conhecimento do objeto se dá ao mesmo tempo que a percepção, e os senhores sabem bem quantos esforços são necessários no laboratório para separar uma coisa da outra! Uma vez separada do sistema motor, a percepção continua a se desenvolver não de modo intrafuncional: o desenvol­ vimento continua principalmente graças ao fato de que a percepção estabelece novas relações com outras funções, estabelece combina­ ções complexas com novas funções e passa a agir em unidade com elas como um novo sistema que dificilmente pode ser dividido e cuja desagregação é encontrada apenas em patologias. Se seguirmos um pouco adiante, veremos que a ligação inicial que caracteriza a correlação entre as funções se desfaz e surge uma nova ligação. Esse é um fenômeno geral, com o qual nos deparamos sempre sem o notar, pois não prestamos atenção nele. Isso é observado na prática experimental mais simples. Apresentarei dois exemplos. O primeiro refere-se a qualquer processo decididamente me­ diado, por exemplo, a memorização de palavras com ajuda de figuras. Já aí nos deparamos com a transferência de funções. A criança que memoriza uma série de palavras com ajuda de figuras se apoia não apenas na memória, mas também na imaginação, na capacidade de encontrar semelhanças ou diferenças. Dessa forma, o processo de me­ morização depende não de fatores naturais da memória, mas de uma série de novas funções que atuam em lugar da memorização direta. Já no trabalho de Leontiev (1931)11 e de Zankov12foi mostrado que o desenvolvimento de fatores gerais da memorização segue diferentes curvas. Ocorrem a reconstrução de funções naturais, a substituição

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

delas e o surgimento de uma fusão complexa de pensamento e memó­ ria, que recebeu a denominação empírica de memória lógica. Os experimentos de Zankov fizeram com que me atentasse a um fato impressionante. Ocorre que, na memorização mediada, o pensamento passa ao primeiro plano; em termos genéticos e diferen­ ciais, as pessoas agem não conforme as propriedades da memória, mas conforme as propriedades da memória lógica. Esse pensamento se distingue radicalmente do pensamento no sentido estrito da pala­ vra. Quando propomos a um adulto que memorize uma série dè 50 palavras segundo figuras dadas, ele recorre ao estabelecimento de relações cognitivas entre os signos, isto é, entre as figuras e aquilo que ele está memorizando. Esse pensamento não corresponde em absoluto ao pensamento efetivo da pessoa, ele é absurdo, a pessoa não se interessa se aquilo que ela memoriza está certo, se é verossí­ mil, ou não. Todos nós, ao memorizarmos, às vezes não pensamos da mesma forma como pensamos ao resolvermos uma tarefa. Todos os critérios, fatores e ligações fundamentais característicos do pensa­ mento como tal são totalmente distorcidos no pensamento paralelo à memorização. Teoricamente, deveríamos ter dito de antemão que todas as funções do pensamento se alteram durante a memorização. Seria absurdo acompanhar aqui todas as ligações e estruturas do pen­ samento que se fazem necessárias quando ele serve à resolução de tarefas práticas ou teóricas. Repito: não apenas a memória se altera quando ela, por assim dizer, contrai matrimônio com o pensamento, mas o pensamento, ao alterar suas funções, não é mais aquele pensa­ mento que conhecemos quando estudamos as operações lógicas; aqui se alteram todas as ligações estruturais, todas as relações, e nesse processo de substituição de funções temos diante de nós a formação de um novo sistema, sobre o qual falamos anteriormente. Se subirmos mais um degrau e prestarmos atenção aos resul­ tados de outras investigações, veremos ainda uma outra regularidade

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na formação de novos sistemas psicológicos: ela nos informa sobre o tema e lança luz sobre a questão central da minha fala de hoje, isto é, sobre a relação entre esses novos sistemas e o cérebro, sua relação com o substrato fisiológico. Ao estudarmos os processos de funções superiores em crian­ ças, chegamos a uma conclusão que nos impressionou: em seu desen­ volvimento, toda forma de comportamento aparece duas vezes em cena: primeiramente como uma forma coletiva de comportamento, como função interpsicológica; em seguida, como função intrapsicológica, como certo modo de comportamento. Não notamos esse fato apenas porque ele é excessivamente cotidiano e, portanto, somos cegos em relação a ele. Um exemplo claríssimo é a linguagem. A lin­ guagem é inicialmente um meio de ligação entre a criança e o meio circundante, mas, quando a criança começa a falar consigo mesma, isso pode ser analisado como uma transferência de uma forma cole­ tiva de comportamento para a prática de um comportamento pessoal. Segundo a excelente fórmula de um psicólogo, a linguagem não é apenas um meio para a compreensão dos outros, mas um meio para a compreensão de si. Se nos voltarmos a trabalhos experimentais contemporâneos, Piaget13foi o primeiro a enunciar e comprovar a posição de que o pen­ samento de crianças em idade pré-escolar não aparece antes do surgi­ mento do debate no coletivo. Antes de a criança aprender a debater e apresentar argumentos, ela não tem pensamento. Omitindo uma série de fatores, apresentarei uma conclusão formuláda por esses autores e que alterarei um pouco a meu modo. O pensamento, especialmente na idade pré-escolar, aparece como uma transferência de situações de de­ bate para dentro, uma discussão em si mesmo. A investigação da brin­ cadeira infantil realizada por Groos (1906)14 mostrou como a função do coletivo infantil na condução do comportamento e na subordinação às regras do jogo influencia também o desenvolvimento da atenção.

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

Eis o que tem extraordinário interesse para nós: por conse­ guinte, inicialmente toda função superior era dividida entre duas pessoas, era um processo psicológico recíproco. Um processo ocor­ reu no meu cérebro, o outro no cérebro daquele com quem debato: “Este lugar é meu”, “Não, é meu”, “Eu cheguei antes”. O sistema de pensamento aqui se divide entre duas crianças. O mesmo ocorre no diálogo: eu falo e você me compreende. Apenas mais tarde começo a falar comigo mesmo. A criança de idade pré-escolar gasta horas inteiras falando consigo mesma. Nela surgem novas ligações, nçvas relações entre as funções, as quais não estavam dadas nas ligações originais de suas funções. Isso tem um significado especial, central, para o domínio do próprio comportamento. O estudo da gênese desses processos mostra que todo processo volitivo é inicialmente um processo social, coletivo, interpsicológico. Isso está ligado ao fato de que a criança domina a atenção de outros ou, ao contrário, começa a aplicar em si mesma os meios e as formas de comportamento que originalmente eram coletivos. A mãe dirige a atenção da criança para algo; a criança, seguindo a indicação, volta sua atenção para aquilo que ela mostrou; temos aqui duas funções separadas. Em seguida, a criança começa ela mesma a direcionar sua atenção, ela mesma passa a desempenhar o papel da mãe em relação a si, emerge um sistema complexo de fun­ ções que inicialmente eram separadas. Uma pessoa ordena, a outra executa. Uma mesma pessoa ordena e executa. Tive ocasião de verificar experimentalmente fenômenos análogos em uma garota que observo. Todos conhecemos esses fenômenos a partir de observações cotidianas. A própria criança começa a dar comandos a si mesma: “Um, dois, três”, da mesma forma como antes faziam os adultos, a seguir ela mesma executa seu comando. Por conseguinte, surge no processo de desenvolvi­ mento psicológico uma unificação de funções que inicialmente

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pertenciam a duas pessoas. A origem social das funções psíquicas superiores é um fato muito importante. Também é notável que os signos, que nos parecem ter um sig­ nificado tão grande para a história do desenvolvimento cultural do ser humano (como mostra a história do desenvolvimento deles), são inicialmente meios de ligação, meios de influenciar o outro. Todo signo, se tomarmos sua procedência real, é um meio de ligação e, poderíamos dizer de forma mais ampla, um meio de ligação entre certas funções psíquicas de caráter social. Transferido para a pes­ soa, ele passa a ser um meio de unificar funções em si mesmo, e podemos demonstrar que, sem o signo, o cérebro e as ligações ini­ ciais não podem vir a ser as relações complexas que elas se tornam graças à linguagem. Consequentemente, os meios de ligação sociais são os meios fundamentais para a formação das ligações psicológicas complexas que surgem quando essas funções se tornam funções individuais, mo­ dos de comportamento da própria pessoa. Se subirmos mais um degrau, veremos ainda um caso interes­ sante de formação de tais ligações. Geralmente nós as observamos em crianças, com maior frequência nos processos de brincadeira (conforme os experimentos de N. G. Morózova),15 quando a criança altera o significado do objeto. Tentarei explicar isso com um exem­ plo filogenético. Se pegarmos um livro sobre o homem primitivo, encontrare­ mos exemplos desse tipo. A especificidade do pensamento do homem primitivo frequentemente consiste em que nele são insuficientemente desenvolvidas as funções que nós temos, ou certas funções não exis­ tem, ao passo que em nós, segundo o nosso ponto de vista, essas funções estão dispostas de outra maneira. Um dos exemplos mais vivos são as observações de Lévy-Bruhl (1930)16 sobre um cafre, a quem um missionário sugeriu que enviasse o filho a uma escola mis­

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

sionária. A situação era extremamente complexa para o cafre e, por não desejar rejeitar essa proposta diretamente, ele diz: “Verei isso em sonho”.17Lévy-Bruhl observa de forma absolutamente correta que temos diante de nós uma situação em que qualquer um responderia: “Vou pensar”. Mas o cafre diz: “Verei isso em sonho”. O sonho de­ sempenha para ele a mesma função que o pensamento para nós. Vale a pena nos determos nesse exemplo, pois as leis do sonho por si sós, ao que parece, são as mesmas para o cafre e para nós. Não temos fundamento para supor que o cérebro humano, do ponto de vista biológico, tenha passado por uma evolução substancial ao longo da história humana. Não temos fundamento para supor que o cérebro do homem primitivo fosse diferente do nosso, que fosse um cérebro incompleto ou tivesse uma estrutura biológica distinta da nossa. Todas as pesquisas biológicas conduzem à ideia de que o ho­ mem primitivo que conhecemos é, em termos biológicos, plenamente digno do título de ser humano. A evolução biológica do ser humano foi concluída antes do início de seu desenvolvimento histórico. Uma mistura grosseira dos conceitos de evolução biológica e desenvol­ vimento histórico seria uma tentativa de explicar a diferença entre nosso pensamento e o pensamento do homem primitivo, supondo que o homem primitivo está em outro nível de desenvolvimento biológico. As leis do sonho são as mesmas, mas o papel que ele desempenha é totalmente diferente, e vemos que essa diferença existe não apenas, digamos, entre o cafre e nós, mas também entre nós e o romano; ainda que em situações difíceis ele não diga “Verei isso em sonho”, pois ele se encontrava em outro estágio do desenvolvimento humano e resolvia as questões, segundo a expressão de Tácito18 “pela arma e pela razão, e não pelo sonho, como uma mulher”, mas o romano também acreditava no sonho; o sonho era para ele um signo, um presságio; o romano não iniciava um negócio se tivesse um sonho ruim relacionado a ele; para o romano o sonho estabelecia uma outra relação estrutural com as demais funções.

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Se tomarmos o neurótico freudiano, veremos outra vez umaj nova relação com o sonho. É extraordinariamente interessante a ob-| servação de um dos críticos de Freud de que a relação descoberta! por Freud entre sonho e desejos sexuais, que é típica do neurótico, él típica precisamente do neurótico “aqui e agora”. Para o neurótico, oj sonho serve a seus desejos sexuais, mas isso não é uma regra geral. | Trata-se de uma questão que deve ser mais estudada. Se levarmos isso adiante, veremos que o sonho estabelece re~| lações completamente novas com as funções próximas. Isso é obser-| vado também em relação a uma série de outros processos. Vemos quej inicialmente o pensamento é, segundo expressão de Espinosa, servo J das paixões, e o ser humano, dotado de razão, é senhor das paixões.: O exemplo do sonho do cafre tem um significado muito mais j amplo do que apenas um caso de sonho; ele é aplicável à formação de | uma série de sistemas psicológicos complexos. Gostaria de chamar atenção dos senhores para uma conclusão j fundamental. É notável que, no cafre, o novo sistema de comporta- J mento surge de certas representações ideológicas, daquilo que Lévy-Bruhl e outros sociólogos e psicólogos franceses chamam de repre- j sentações coletivas ligadas ao sonho. Não foi o cafre por si mesmo| que, ao dar essa reposta, criou esse sistema; essa representação sobre: o sonho é parte da ideologia da tribo à qual o cafre pertence. Essa i relação com o sonho é característica deles, é assim que eles resol-1 vem questões complexas sobre guerra, paz etc. Aqui temos diante \ de nós um mecanismo psicológico que emerge diretamente de um ■ determinado sistema ideológico, de um significado ideológico atri- \ buido a certa função. Em uma série de pesquisas norte-americanas i interessantes dedicadas a povos semiprimitivos, vemos que, à medida | que eles começam a se familiarizar com a civilização europeia e re­ ceber objetos de uso europeu, eles passam a se interessar por eles e valorizar as possibilidades que surgem com eles. Essas pesquisas mosi

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

tram que os primitivos inicialmente reagiram negativamente à leitura de livros. Depois de terem recebido algumas ferramentas agrícolas bastante simples e terem visto a ligação entre a leitura de livros e a prática, eles passaram a valorizar as ocupações do homem branco. A reavaliação do pensamento e do sonho tem como fonte não o individual, mas o social, mas agora isso nos interessa sob outro aspecto. Vemos que aqui se manifesta uma nova compreensão sobre o sonho, extraída pela pessoa a partir do meio social no qual ela vive, cria-se uma nova forma de comportamento intraindividual naquele sistema, como o sonho do cafre. Por um lado, é preciso observar a ligação de certos sistemas novos não apenas com signos sociais, mas também com a ideologia e com o significado que certa função psíquica adquire na consciência das pessoas; por outro lado, o processo de surgimento de novas for­ mas de comportamento a partir de um novo conteúdo que a pessoa extrai da ideologia do meio circundante. Esses são os dois aspectos que nos serão necessários para as conclusões posteriores.

2 Se subirmos ainda mais um degrau no caminho do estudo dos sistemas complexos e suas relações que são desconhecidas nos está­ gios iniciais do desenvolvimento e cujo surgimento é relativamente tardio, chegaremos a um sistema bastante complexo de alterações das ligações e surgimento de novas, as quais se realizam no acesso ao desenvolvimento e à formação de um novo ser humano na idade de transição. Até agora, a falha das nossas pesquisas consiste em que nos limitamos à infância inicial e pouco nos interessamos pelos ado­ lescentes. Quando fui colocado diante da necessidade de estudar a psicologia da idade de transição do ponto de vista das nossas pes­ quisas, fiquei impressionado com o nível dessa etapa em relação à

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infância.19A essência do desenvolvimento psicológico consiste não no crescimento posterior, mas na alteração das ligações. Uma dificuldade excepcional para a psicologia da idade de transição foi suscitada pela pesquisa sobre o pensamento do adoles­ cente. Na realidade, o adolescente de 14 a 16 anos pouco altera sua linguagem no sentido do surgimento de formas fundamentalmente novas em comparação com aquilo de que dispõe uma criança de 12 anos. Não observamos o que poderia explicar aquilo que ocorre no pensamento do adolescente. Assim, a memória e a atenção na idade de transição dificilmente oferecem algo de novo em relação à idade escolar. Mas, se tomarmos, em particular, o material elaborado por Leontiev (1931), veremos que é característico do adolescente a passa­ gem dessas funções para dentro. Aquilo que para o escolar é externo no campo da memória lógica, da atenção voluntária, do pensamento' torna-se interno no adolescente. As pesquisas confirmam que surge ■ aqui um novo aspecto. Vemos que a passagem para dentro ocorre porque essas operações externas constituem uma fusão e uma sín-í tese complexa com uma série de processos internos. Por sua lógica interna, o processo não pode permanecer externo, sua relação com ! todas as outras funções passa a ser outra, forma-se um novo sistema, ele se fortalece e se torna interno. Darei um exemplo bastante simples: a memória e o pensa­ mento na idade de transição. Notamos aqui uma mudança interes­ sante (irei simplificar um pouco). Sabemos o papel colossal que a memória tem no pensamento da criança antes d^ idade de transição. Para ela, pensar significa, em grande medida, apoiar-se na memória. A pesquisadora alemã C. Bühler20 estudou especificamente o pensa­ mento em crianças no momento em que elas resolvem determinada tarefa e mostrou que, para as crianças cuja memória atingiu maior d< senvolvimento, pensar significa recordar casos concretos. Lembremos o exemplo clássico e imortal de Binet,21 seu experimento com duas meninas. Quando ele pergunta o que é um bonde de tração animal e

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

recebe como resposta “É uma carruagem com assentos fofos, onde se sentam muitas damas, o condutor faz ‘din’ etc.”. Tomemos a idade de transição. Vemos que, para o adolescente, lembrar significa pensar. Se o pensamento da criança pré-adolescente se apoia na memória e pensar significa recordar, para o adolescente, a memória se apoia fundamentalmente no pensamento: lembrar sig­ nifica antes de tudo buscar aquilo que é necessário em uma certa seqüência lógica. É na idade de transição que observamos essa mu­ dança das funções, a alteração da relação entre elas, o papel de .lide­ rança do pensamento em todas as funções decisivas; por conseguinte, o pensamento não é uma função entre outras, mas a função que reconstrói e altera outros processos psicológicos.

3 Mantendo essa ordem de organização e partindo dos sistemas psicológicos inferiores para a formação de uma ordem cada vez mais elevada, chegamos aos sistemas que constituem a chave para todos os processos de desenvolvimento e de desagregação: trata-se da for­ mação do conceito, uma função que amadurece completamente e se define pela primeira vez na idade de transição. Não será possível apresentar agora de forma algo completa a teoria sobre o desenvolvimento psicológico do conceito, e devo dizer que, na pesquisa psicológica, o conceito é (e este é o resultado de nosso estudo) um sistema psicológico do mesmo tipo daqueles sobre os quais eu falava. Até agora a psicologia empírica tentou colocar como base da fun­ ção de formação de conceito uma determinada função - a abstração, a atenção, a identificação de sinais da memória, a elaboração de certas imagens - e partia da compreensão lógica de que toda função tem seu análogo, sua representação no plano inferior: memória e memória lógica,

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atenção imediata e atenção voluntária. O conceito era analisado como uma imagem modificada, reelaborada, livre de seus elementos particula­ res, uma compreensão lapidada. Galton22 comparou o mecanismo dos conceitos com uma fotografia coletiva, quando uma série de rostos é fo­ tografada em uma mesma chapa: os traços semelhantes são enfatizados, os traços fortuitos disfarçam uns aos outros. Para a lógica formal, o conceito é um conjunto de sinais iden­ tificados em uma série e acentuados em seus aspectos coincidentes. Por exemplo, se tomarmos os conceitos mais simples - Napoleão, fran­ cês, europeu, ser humano, animal, ser etc. - chegamos a uma série de conceitos cada vez mais gerais e cada vez mais pobres em termos da quantidade de sinais concretos. O conceito “Napoleão” é infinita­ mente mais rico em conteúdo concreto. O conceito “francês” já é muito mais pobre: nem tudo o que se refere a Napoleão está relacionado a francês. O conceito “ser humano” é ainda mais pobre, e assim por diante. A lógica formal analisa o conceito como um conjunto de sinais de um objeto separado de um grupo, um conjunto de sinais gerais. Daí o conceito surgir em decorrência do amortecimento dos nossos conhe­ cimentos sobre o objeto. A lógica dialética mostrou que o conceito não é um esquema formal, um conjunto de sinais abstraídos do objeto, ele confere um conhecimento muito mais rico e completo sobre o objeto. Uma série de pesquisas psicológicas, em particular as nossas, leva-nos a uma colocação absolutamente nova do problema da forma­ ção de conceitos na psicologia. A questão é de que forma o conceito, ao se tornar mais geral, ou seja, ao se referir a uma quantidade cada vez maior de objetos, torna-se mais rico e não mais pobre em termos de conteúdo, como pensa a lógica formal; essa questão recebe uma resposta inesperada nas pesquisas e é confirmada na análise do de­ senvolvimento de conceitos em seu corte genético em comparação com formas mais primitivas do nosso pensamento. As pesquisas mos­ traram que, quando o sujeito resolve uma tarefa com a formação de

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novos conceitos, a essência do processo que ocorre então consiste no estabelecimento de relações; quando o sujeito associa ao objeto uma série de outros objetos, ele procura a ligação entre eles. Ele não se afasta, como em uma fotografia coletiva, para o pano de fundo dos sinais; ao contrário, qualquer tentativa de resolver a tarefa consiste na formação de ligações, e nosso conhecimento sobre o objeto se enriquece, pois o estudamos em relação com outros objetos. Darei um exemplo. Comparemos uma imagem direta de um nove, por exemplo, as figuras em um baralho de cartas e o número 9. O nove do baralho é mais rico e concreto do que nosso conceito de “9”, mas o conceito de “9” contém em si uma série de juízos que não existem no nove do baralho; “9” não é divisível por números pares, é divisível por 3, é igual a 32, é a raiz quadrada de 81; ligamos o “9” a uma série de numerais inteiros etc. Assim, compreende-se que, se o processo de formação do conceito, do ponto de vista psicológico, consiste na descoberta das relações de dado objeto com uma série de outros, na identificação de uma totalidade real, no conceito desenvol­ vido descobrimos todo seu conjunto de relações e, se é que se pode dizê-lo, seu lugar no mundo. O “9” é um ponto determinado em toda teoria dos números e com possibilidade de movimento e combinação infinitas, sempre sujeitas a uma lei geral. Dois aspectos chamam a nossa atenção: em primeiro lugar, o conceito se encerra não na fo­ tografia coletiva, não na eliminação de traços individuais do objeto, mas em que o objeto é conhecido em suas relações, em suas ligações, e, em segundo lugar, o objeto no conceito não é uma imagem modifi­ cada, mas, como mostram as pesquisas psicológicas contemporâneas, uma predisposição a uma série de juízos. Um psicólogo faz a seguinte comparação: “Quando me dizem ‘mamífero’, a que isso corresponde psicologicamente?”. Isso corresponde à possibilidade de desenvolver um pensamento e, no limite, uma visão de mundo, pois encontrar o lugar do mamífero no reino animal, o lugar do animal no mundo da natureza, representa toda uma visão de mundo.

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Vimos que o conceito é um sistema de juízos colocados em uma certa ligação regular: quando operamos por meio de conceitos isolados, toda a essência consiste em que operamos por meio de um' sistema como um todo. Piaget (1932) apresentou a crianças de 10 a 12 anos a tarefa de combinar dois sinais simultaneamente, animais que têm orelhas compridas e rabo curto ou orelhas curtas e rabo comprido. A criança" resolve a tarefa tendo em seu campo de atenção apenas um sinal. Ela não consegue operar por meio de conceitos como um sistema; ela domina todos os sinais que integram o conceito, mas, separada­ mente, não domina a síntese pela qual o conceito age como um sis­ tema único. Nesse sentido, parece-me extraordinária a observação de Lênin sobre Hegel,23 quando ele diz que o fato mais simples de generalização contém em si uma certeza ainda não consciente sobre a regularidade do mundo exterior. Quando realizamos a mais simples generalização, tomamos consciência das coisas não como existentes em si mesmas, mas em ligações regulares, subordinadas a certa lei (Obra completa reunida, v. 29, pp. 160-161). Não será possível elabo­ rar agora o problema absolutamente fascinante e de significado cen­ tral para a psicologia contemporânea sobre a formação de conceitos. Somente na idade de transição ocorre a formalização definitiva dessa função, e a criança passa de um outro sistema de pensamento, das ligações por complexos, para o pensamento por conceitos. Pode­ mos nos perguntar: o que distingue o complexo da criança? Antes de tudo, o sistema de complexos é um sistema de ligações e relações concretas organizadas em relação ao objeto, que se baseia fundamen­ talmente na memória. O conceito é um sistema de juízos que traz em si uma relação com todo um sistema mais amplo. A idade de transi­ ção é a idade de formação da visão de mundo e da personalidade, de emergência da autoconsciência e de representações coerentes do mundo. A base para isso é o pensamento por conceitos, e, para nós,

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toda experiência da humanidade cultural contemporánea, o mundo exterior, a realidade exterior e nossa realidade interna são dados em um certo sistema de conceitos. Nos conceitos encontramos a união entre forma e conteúdo, sobre a qual falei antes. Pensar por conceitos significa dominar certo sistema pronto, certa forma de pensamento, que não predetermina absolutamente o conteúdo ulterior a que se chegará. Tanto H. Bergson24 quanto um ma­ terialista pensam em conceitos, ambos dominam essa mesma forma de pensamento, embora cheguem a conclusões diametralmente opostas. Justamente na idade de transição ocorre a formação defini­ tiva de todos os sistemas. Isso se torna mais claro quando passamos àquilo que, para o psicólogo, pode ser, em certo sentido, a chave para a idade de transição e para a psicologia da esquizofrenia. Busemann25 estabeleceu uma distinção muito interessante na psicologia da idade de transição. Ela diz respeito aos três tipos de liga­ ção existentes entre as funções psicológicas. As ligações primárias são hereditárias. Ninguém haverá de negar que existem ligações imediatas modificadas entre certas funções, tal é o sistema, digamos, constitu­ cional das relações entre mecanismos emocionais e intelectuais. Um outro sistema de ligações são as estabelecidas, isto é, as relações que se estabelecem no processo de encontro entre fatores internos e exter­ nos, ligações que me são impostas pelo meio; sabemos que é possível dar uma criação selvagem, cruel ou sentimental para a criança. Essas são ligações secundárias. Por fim, as ligações terciárias se formam na idade de transição e caracterizam efetivamente a personalidade no plano genético e diferencial. Essas ligações são formadas com base na autoconsciência. Relaciona-se a isso o já mencionado mecanismo do “sonho do cafre”. Quando conscientemente ligamos certa função a outras, de tal forma que elas constituem um sistema único de com­ portamento, isso se dá com base no fato de que tomamos consciência de nosso sonho, de nossa relação com ele.

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Para Busemann, a diferença fundamental entre a criança e o adolescente é a seguinte: para a criança é característico apenas um plano psicológico de ação direta; para o adolescente é característica a autoconsciência, a capacidade de se relacionar consigo mesmo de fora, a reflexão, capacidade não apenas de pensar, mas também de tomar consciência do fundamento do pensamento. O problema da esquizofrenia e o da idade de transição fo­ ram reiteradamente aproximados: a própria denominação dementia praecox26 indica isso. E embora na terminologia clínica isso tenha perdido seu significado inicial, mesmo os autores contemporâneos como Kretschmer,27 na Alemanha, e Blónski,28 aqui, defendem a ideia de que a idade de transição e a esquizofrenia são chaves uma da outra. Isso se dá com base na aproximação exterior, pois todos os traços que caracterizam a idade de transição são observados também na esquizofrenia. Aquilo que na idade de transição existe como traços vagos, na patologia é levado ao extremo. Kretschmer (1924) é ainda mais. ousado: um processo impetuoso de amadurecimento sexual do ponto de vista psicológico não se distingue de um processo esquizofrênico' leve. Do ponto de vista exterior, há uma dose de verdade nisso, mas a própria colocação da questão me parece falsa, bem como as con­ clusões a que chegam os autores. Mediante o estudo da psicologia da esquizofrenia, tais conclusões não se sustentam. Na realidade, a esquizofrenia e a idade de transição estão em relação inversa. Na esquizofrenia, observamos a desagregação das funções que estão sendo construídas na idade de transição e, apesar de se encontrarem a certa altura, o movimento delas é absolutamente inverso. Na esquizofrenia temos, do ponto de vista psicológico, um quadro enigmático, e mesmo entre os melhores clínicos contempo­ râneos não encontramos uma explicação para o mecanismo da for­ mação do sintoma; não é possível mostrar por qual caminho esses

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sintomas emergem. Os debates entre clínicos versam sobre o que é do­ minante: o embotamento afetivo ou a diásquise, proposta por Bleuler29 (o que serviu de base para a denominação da esquizofrenia). Con­ tudo, o cerne da questão consiste aqui menos nas alterações intelec­ tuais e afetivas do que nas ligações violadas que existem. A esquizofrenia oferece uma enorme riqueza de material so­ bre o tema em questão. Tentarei apresentar o mais importante e mostrar que todas as variadas formas de manifestação da esquizo­ frenia decorrem de uma mesma fonte, elas têm em sua base certo processo interno capaz de explicar o mecanismo da esquizofrenia. No esquizofrênico desagrega-se, antes de tudo, a função de formação de conceitos, apenas em seguida começam as estranhezas. O esqui­ zofrênico se caracteriza por embotamento afetivo; o esquizofrênico muda sua relação com a esposa amada, com seus pais, com seus filhos. A descrição clássica é de embotamento com irritabilidade no outro polo, ausência de quaisquer impulsos e, não obstante, como observa corretamente Bleuler, um aguçamento incomum da vida afe­ tiva. Quando a esquizofrenia é ligada a algum outro processo, por exemplo a arteriosclerose, o quadro clínico se altera radicalmente, a esclerose não enriquece as emoções do esquizofrênico, apenas altera suas manifestações principais. Em caso de embotamento afetivo, empobrecimento da vida emocional, todo o pensamento do esquizofrênico começa a ser de­ terminado apenas por afetos (como observa Storch).30 Trata-se do mesmo distúrbio, uma alteração da correlação entre a vida intelec­ tual e a afetiva. A teoria mais clara e brilhante das alterações pato­ lógicas da vida afetiva foi desenvolvida por Blondel.31 O cerne dessa teoria consiste mais ou menos no seguinte: no processo psicológico adoecido (especialmente onde não há debilidade mental) que avança para o primeiro plano, ocorre antes de tudo a desagregação dos sis­ temas complexos que foram adquiridos como resultado da vida cole­ tiva, a desagregação dos sistemas que se formam mais tardiamente.

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As representações, os sentimentos: tudo permanece inalterado, masí perde as funções que desempenhavam no sistema complexo. Assim, se, para o cafre, o sonho estabeleceu novas relações com o compor­ tamento ulterior, esse sistema se desagrega e surge o transtorno, formas incomuns de comportamento. Em outras palavras, a primeira coisa que chama a atenção em caso de desagregação psicológica na clínica psiquiátrica é a desagregação dos sistemas que, por um lado,se formaram mais tarde e, por outro, constituem sistemas de procedência social. Isso é especialmente visível na esquizofrenia, que é enigmática considerando que, do ponto de vista formal, as funções psíquicas es-, tão preservadas: a memória, a capacidade de orientação, a percepção e a atenção não apresentam alterações. Está preservada a capacidad de orientação, e, se perguntarmos habilmente a um paciente em delí­ rio que diz estar em um palácio, veremos que ele sabe perfeitamente onde ele está, de forma efetiva, na realidade. A preservação das fun­ ções formais por si só e a desagregação do sistema que surge nesse contexto são o que caracteriza a esquizofrenia. Partindo disso, Blondel fala em transtorno afetivo do esquizofrênico. O pensamento que nos é imposto pelo meio circundante com o sistema de conceitos também abarca nossos sentimentos. Não apenas sentimos, tomamos consciência do sentimento como sendo ciúme, fúria, ofensa, ultraje. Se falamos que desprezamos uma pessoa, a de­ nominação dos sentimentos já os altera; com efeito, eles estabelecem • certa relação com nosso pensamento; em nós ocorre algo semelhante ao que acontece com a memória quando ela se torna parte interna do processo de pensamento e passa a ser chamada de memória lógica.; Da mesma forma que é impossível delimitar onde termina a percep­ ção da superfície e onde começa a compreensão de determinado ob­ jeto (na percepção estão sintetizadas, dadas em fusão, as particulari­ dades estruturais do campo visual junto com a memória), igualmente

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em nossos afetos não sentimos ciúme em forma pura, sem tomarmos consciência de ligações expressas em conceitos. A teoria fundamental de Espinosa (1911 )32 é a seguinte: ele era um determinista e, diferentemente dos estoicos, afirmava que o ser humano tem poder sobre os afetos, que a razão pode alterar a ordem e as ligações das paixões e colocá-las em conformidade com uma or­ dem e com ligações que são dadas pela razão. Espinosa expressou uma relação genética correta. No processo de desenvolvimento onto­ genético, as emoções humanas estabelecem ligações com orientações gerais tanto em relação à autoconsciência da personalidade quanto em relação à consciência da realidade. Meu desprezo por outra pes­ soa estabelece uma relação com a apreciação dessa pessoa, com sua compreensão. E é nessa síntese complexa que a nossa vida decorre. O desenvolvimento histórico dos afetos ou das emoções consiste, funda­ mentalmente, em que as ligações primárias, nas quais eles são dados, se alteram e novas ordens e ligações surgem. Dissemos que Espinosa estava correto ao afirmar que o conheci­ mento do nosso afeto o altera e o converte de estado passivo em ativo. O fato de que penso coisas que estão fora de mim não altera nada nelas, mas o fato de que penso nos afetos, coloco-os em outras relações para com o meu intelecto e outras instâncias, altera muito da minha vida psí­ quica. Dito de modo mais simples, nossos afetos agem em um sistema complexo com nossos conceitos, e quem não sabe que o ciúme de um sujeito ligado a conceitos maometanos sobre a fidelidade da mulher e de um sujeito que está ligado a um sistema de representações opostas sobre a fidelidade da mulher são diferentes?; quem não compreende que esse sentimento é histórico, que ele se altera fundamentalmente em meios ideológicos e psicológicos distintos, embora se mantenha certo radical biológico, com base no qual essa emoção surge? Assim, as emoções complexas aparecem apenas historicamente e constituem uma combinação de relações que emergem das condi­

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ções da vida histórica, e no processo de desenvolvimento das emoções ocorre essa fusão. Essa representação está na base da teoria acerca do que ocorre no caso da degradação patológica da consciência. Aqu1 ocorre uma degradação desses sistemas, daí decorre o embotamento afetivo do esquizofrênico. Quando se diz ao esquizofrênico: “Que vergonha, isso é coisa de gente canalha”, ele se mantém absolut: mente frio, para ele isso não é uma grande ofensa. Seus afetos se separaram e agem de forma separada desse sistema. Também é típica do esquizofrênico a relação inversa: os afetos começam a alterar seu pensamento, ele é um pensamento que serve a interesses e necessida­ des emocionais. Para terminar com o assunto da esquizofrenia, gostaria de di­ zer que, assim como as funções que se formam na idade de transição, essas funções, cuja síntese é observada na idade de transição, se de­ sagregam na esquizofrenia; desagregam-se aqui sistemas complexos,' afetos retornam ao seu estado primitivo inicial, perdem a ligação com o pensamento e a pessoa não consegue sentir esses afetos por meio do conceito. Até certo grau há um retorno ao estado existente nos estágios mais iniciais do desenvolvimento, quando é muito difícil se aproximar de determinado afeto. Ofender uma criança de pouca idade é muito, fácil, mas ofendê-la mostrando que pessoas decentes não se comportam -, de determinada forma é muito difícil. O caminho aqui é absolutamente, distinto do que em nós; a mesma coisa acontece na esquizofrenia. Para resumir tudo isso, gostaria de dizer o seguinte: o estudo dos sistemas e do destino deles é instrutivo não apenas para o desen­ volvimento e para a estrutura dos processos psíquicos, como também para os processos de desagregação observados na clínica psiquiátrica e que aparecem sem que haja uma queda brusca de certas funções, por exemplo, a função da fala entre afásicos: isso se explica pelo fato de que tais distúrbios graves podem ocorrer em caso de distúrbios leves do cérebro; isso explica o paradoxo da psicologia de que, em caso de tabes dorsal e de alterações orgânicas de todo o cérebro,

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observamos alterações psicológicas insignificantes, mas em caso de esquizofrenia e psicose reativa há uma confusão completa do compor­ tamento do ponto de vista do comportamento de um sujeito adulto. A chave para o entendimento aqui é a compreensão dos sistemas psico­ lógicos que surgem não imediatamente a partir das ligações das fun­ ções, do modo como elas são dadas no desenvolvimento do cérebro, mas a partir dos sistemas sobre os quais falamos anteriormente. E tais manifestações psicológicas de esquizofrenia, como o embotamento afetivo, a desagregação intelectual ou a irascibilidade, encontram sua explicação única, sua ligação estrutural. Gostaria de encerrar com o seguinte: um dos três sinais car­ dinais da esquizofrenia é a alteração caracterológica que consiste na separação do meio social. O esquizofrênico se torna mais fechado e a condição mais extrema disso é o autismo. Todos os sistemas de que falamos, sistemas de procedência social, encerram-se em uma relação social consigo mesmos, como dissemos anteriormente, caracterizam-se pela transferência de relações coletivas para dentro da personalidade. O esquizofrênico que perde suas relações sociais com as pessoas cir­ cundantes perde a relação social consigo mesmo. Como bem disse um dos clínicos, sem elevar isso a um nível teórico, o esquizofrênico não apenas para de compreender e falar com o outro, ele deixa de dirigir-se a si mesmo por meio da linguagem. A desagregação dos sistemas socialmente estruturados da personalidade é o outro lado da desagre­ gação das relações externas, que são relações interpsicológicas.

4 Irei me deter ainda em duas questões. A primeira delas diz respeito à conclusão, de extrema impor­ tância para nós, que pode ser tirada em relação a tudo o que foi dito sobre os sistemas psicológicos e o cérebro. Devo rejeitar as ideias

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desenvolvidas por K. Goldstein e A. Gelb33 de que qualquer função psicológica superior tem uma correlação fisiológica direta em uma função, que é construída exatamente da mesma forma tanto em seu aspecto fisiológico quanto em sua parte psicológica. Contudo, inicial­ mente, irei explanar esse pensamento. Goldstein e Gelb dizem que o afásico tem um distúrbio na função do pensamento por conceitos, que corresponde à função fisiológica básica. Já aqui Goldstein e Gelb caem em profunda contradição consigo mesmos quando antes, no mesmo livro, eles afirmam que o afásico retornaria ao sistema de pensamento que é característico do homem primitivo. Se o afásico tem prejuízo na função fisiológica básica e ele retorna ao nível de pensamento em que o homem primitivo se encontra, devemos con­ cluir que o primitivo não tem aquela função fisiológica básica que te­ mos. Isso quer dizer que, sem uma alteração morfológica da estrutura do cérebro, surge aqui uma nova função básica, que não existe nos níveis primitivos de desenvolvimento. Onde poderíamos encontrar fundamento para supor que em alguns milhares de anos surgiu essa reformulação radical do cérebro humano? Já na teoria de Golsdtein e Gelb nos deparamos com uma dificuldade insuperável. Mas ela tem sua verdade, que consiste em que cada sistema psicológico complexo, seja o sonho do cafre, o conceito, a autoconsciência da personalidade, , todas essas noções são, no final das contas, produtos de uma deter­ minada estrutura cerebral. Não há nada que esteja desconectado do cérebro. A questão é: o que corresponde fisiológicamente no cérebro ao pensamento por conceitos? Para explicar como isso surge no cérebro, basta admitir que ele tem condições e possibilidades de combinar funções, fazer uma nova : síntese, novos sistemas, que não devem estar fixados estruturalmente de antemão; penso que toda neurologia contemporânea nos obriga a pressupor isso. Cada vez mais estamos vendo a infinita diversidade e incompletude das funções cerebrais. É muito mais correto admi­ tir que o cérebro oferece enormes possibilidades para o surgimento

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de novos sistemas. Esse é o pressuposto fundamental. Ele permite a questão que se coloca em relação aos trabalhos de L. Lévy-Bruhl. Na última discussão realizada na sociedade francesa de filosofia, LévyBruhl disse que o primitivo pensa de modo diferente de nós. Será que isso significa que o cérebro dele é diferente do nosso? Será preciso admitir que o cérebro, em decorrência de uma nova função, alterou-se biologicamente ou, ainda, que o espírito faz uso do cérebro apenas como ferramenta, e, portanto, se uma ferramenta tem muitos usos, isso quer dizer que o que se desenvolve é o espírito e não o cérebro? Na realidade, parece-me que, ao introduzirmos o conceito de sistema psicológico da forma como fizemos, temos a possibilidade de compreender perfeitamente as reais ligações, as reais relações com­ plexas existentes aqui. Até certo ponto, isso está ligado a um dos problemas mais difíceis, isto é, o problema da localização dos sistemas psicológicos superiores. Até o momento, ele tem sido resolvido de duas formas. O primeiro ponto de vista examina o cérebro como uma massa uni­ forme e se recusa a reconhecer que cada parte tem valores distintos e desempenha papéis diferentes na construção das funções psicoló­ gicas. Esse ponto de vista é evidentemente inconsistente. Por isso, a seguir as funções passaram a ser deduzidas de partes do cérebro, distinguindo-se, por exemplo, um campo prático etc. Os campos estão ligados entre si, e aquilo que observamos nos processos psíquicos é a atividade conjunta de diferentes campos. Sem dúvida, essa com­ preensão é mais correta. Temos uma colaboração complexa de uma série de zonas. O substrato cerebral dos processos psíquicos não são as partes isoladas, mas os sistemas complexos de todo o aparato cere­ bral. Contudo, a questão consiste no seguinte: se esse sistema é dado de antemão na própria estrutura do cérebro, ou seja, se ele se esgota nas ligações existentes no cérebro entre cada uma de suas partes, devemos supor que, na estrutura do cérebro, estão dadas de antemão as ligações a partir das quais o conceito surge. Se admitirmos que

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aqui são possíveis ligações mais complexas e não dadas de antemão, imediatamente levamos essa questão a um outro plano. Permitam-me esclarecer isso por meio de um esquema, ainda que muito grosseiro. Na personalidade, unem-se formas de compor­ tamento que antes eram compartilhadas entre duas pessoas: ordem e execução; antes elas se originavam de dois cérebros, um agia sobre o outro, digamos, mediante a ajuda da palavra. Quando elas se unem em um cérebro temos o seguinte quadro: o ponto A no cérebro não pode alcançar o ponto B por meio de uma linha reta, eles não estão naturalmente ligados. As possíveis ligações entre partes isoladas do cérebro são estabelecidas pelo sistema nervoso periférico. Partindo dessa compreensão, podemos compreender uma sé­ rie de fatos patológicos. Trata-se aqui, antes de tudo, de fatos em que um paciente com lesão nos sistemas cerebrais não tem condições de fazer algo diretamente, mas consegue executar se falar para si mesmo. Observamos um quadro clínico semelhante em pacientes com Parkinson. Eles não conseguem dar um passo; mas, se você diz a esse paciente “Dê um passo” ou se cola um pedaço de papel no chão, ele consegue. Todos sabem que pacientes com Parkinson sobem bem uma escada, mas caminham mal numa superfície plana. Para levar o paciente ao laboratório, faz-se necessário colocar no chão uma série de papéis. Ele quer caminhar, mas não consegue agir sobre seu sistema motor, ele tem um distúrbio nesse sistema. Por que o paciente com Parkinson consegue andar quando pedaços de papel são colocados no chão? Há duas explicações para isso. Uma delas foi dada por I. D. Sapir:34 o paciente com Parkinson quer levantar a mão quando alguém pede a ele que o faça, mas esse impulso não é suficiente; quando o pedido é associado a outro impulso (visual), ele consegue. O impulso adicional age com o principal. É possível com­ preender o quadro de outra forma. Há um distúrbio no sistema que permite a ele erguer a mão. Mas ele pode ligar um ponto do cérebro a outro por meio de um signo externo.

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Parece-me que a segunda hipótese relativa ao movimento em pacientes com Parkinson é correta. O paciente com Parkinson esta­ belece uma relação entre um ponto e outro de seu cérebro por meio de um signo, agindo sobre si mesmo a partir da periferia. Uma con­ firmação disso são os experimentos com esgotamento em pacientes com Parkinson. Se a questão fosse apenas esgotar o paciente com Parkinson até o final, o efeito adicional do estímulo deveria aumentar ou, em todo caso, igualar-se ao repouso, à recuperação, e desempe­ nhar o papel de estímulo externo. Um dos primeiros autores russos a ter descrito o mal de Parkinson apontou para o fato de que o mais importante para o paciente é o volume do estímulo (tambor, música), porém pesquisas posteriores mostraram que não é assim. Não quero dizer que é exatamente isso que ocorre com o paciente de Parkinson, basta chegar à conclusão de que isso é possível por princípio, e, em caso de desagregação, observamos, a cada passo, que esse sistema é efetivamente possível. Cada um dos sistemas mencionados passa por três etapas. Pri­ meiro, uma etapa interpsicológica: eu ordeno, você executa; em se­ guida, uma extrapsicológica: começo a falar comigo mesmo; depois, uma intrapsicológica: dois pontos do cérebro que são estimulados externamente têm a tendência de agir em um sistema único e se trans­ formam em um ponto intracortical. Peço licença para tratar brevemente do destino posterior des­ ses sistemas. Gostaria de indicar que, num recorte psicológico dife­ rencial, uma pessoa não se diferencia de outra pelo fato de ter um pouco mais de atenção; a distinção de caráter essencial e de impor­ tância prática na vida social das pessoas está nas estruturas, relações e ligações que temos entre cada ponto. Gostaria de dizer que não é a memória ou a atenção que tem um significado decisivo, mas o quanto a pessoa usa dessa memória, qual papel ela desempenha. Vimos que o sonho pode desempenhar um papel central para o cafre. Para nós, o sonho é um parasita da vida psicológica, que não desempenha ne-

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nhum papel essencial. O mesmo vale para o pensamento. Quantas mentes inférteis ficam em ponto morto, quantas mentes pensam, mas não estão absolutamente inseridas na ação! Qualquer um consegue1 se lembrar de situações em que sabemos como devemos agir, ma: fazemos outra coisa. Gostaria de apontar que aqui existem três pla­ nos extremamente importantes. O primeiro é o plano psicológico de classe. Gostaria de comparar um operário e um burguês. Não se trata, como pensou W. Sombart,35 que o principal para o burguês é a ganância, que se cria uma seleção biológica de pessoas gananciosas para as quais o mais importante é a avareza e o acúmulo. Admito que pode haver muitos operários mais avarentos do que um burguês. A essência da questão reside não em deduzir um papel social a partir do caráter, mas em que, a partir de um papel social, é criada uma série de ligações de caráter. O tipo social e de classe de uma pesso~ se forma a partir dos sistemas que são introduzidos na pessoa de fora, sistemas de relações sociais entre pessoas que se transferem para a personalidade. Com base nisso, são feitas as pesquisas professiográficas dos processos de trabalho, isto é, cada profissão exige um certo sistema de ligações. Para o maquinista, por exemplo, é realmente im­ portante não apenas ter mais atenção do que uma pessoa comum, como também saber usar essa atenção corretamente; é importante que a atenção ocupe um certo lugar, que ela pode não ocupar, por exemplo, para um escritor e assim por diante. Finalmente, em termos diferenciais e de caráter, é necessário diferenciar as ligações de caráter primordiais, que conferem certa proporção, por exemplo, na constituição esquizoide ou cicloide,36 das ligações que emergem de modo totalmente distinto e que diferen­ ciam uma pessoa honesta de uma desonesta, uma pessoa verdadeira de uma falsa, um sonhador de uma pessoa prática; tais ligações que­ rem dizer não que uma pessoa tem mais ou menos correção do que outra, ou que minta mais ou menos que outra, mas que surge um sis­ tema de relações entre cada uma das funções, que se forma na onto-

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gênese. K. Lewin37 está correto ao dizer que a formação dos sistemas psicológicos coincide com o desenvolvimento da personalidade. Nos casos mais elevados, nos quais há personalidades eticamente mais aperfeiçoadas com uma vida espiritual mais bela, estamos diante do surgimento de um sistema em que todas as coisas estão correlacio­ nadas. Espinosa tem uma teoria (apresento-a de forma ligeiramente alterada): a alma pode chegar a tal ponto que todas as manifestações, todos os estados se relacionem a um objetivo; aqui pode surgir um sistema com um único centro, uma concentração máxima do com­ portamento humano. Para Espinosa a ideia única é a ideia de Deus ou natureza. Em termos psicológicos isso não é absolutamente ne­ cessário. Mas o ser humano pode de fato trazer para o sistema não apenas cada função isoladamente, como criar um centro único para todo o sistema. Espinosa mostrou esse sistema no plano filosófico; há pessoas cujas vidas são um modelo de submissão a um objetivo, que são a prova prática de que isso é possível. Diante da psicologia, coloca-se a tarefa de mostrar esse tipo de emergência de um sistema único como verdade científica. Gostaria de encerrar indicando mais uma vez que apresentei uma escadaria de fatos, ainda que dispersos, mas todos seguem um percurso de baixo para cima. Todas as considerações teóricas foram praticamente ignoradas. Parece-me que nossos trabalhos iluminam esse ponto de vista e o colocam no lugar. Não tenho forças teóri­ cas para reunir tudo isso. Apresentei uma escadaria bastante grande, mas, no que diz respeito a uma ideia que capta tudo isso, apresen­ tei apenas um pensamento geral. Hoje gostaria de esclarecer se esse pensamento geral, que acalentei durante alguns anos, mas ainda não tinha expressado até o fim, pode ser confirmado factualmente. Nossa próxima tarefa é esclarecer isso de forma mais prática e detalhada. Com base nos fatos citados, gostaria de apresentar minha convicção fundamental que consiste em que toda a questão não está apenas nas alterações dentro das funções, mas também nas alterações das liga­

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ções e das formas infinitamente variadas de movimento que surgem daí; em que novas sínteses surgem em determinado estágio do desen­ volvimento, novas funções centrais, novas formas de ligação entre elas, e o que deve nos interessar são os sistemas e o destino deles. Parece-me que os sistemas e o destino deles, essas duas palavras, de­ vem ser o alfa e o ômega de nosso trabalho futuro.

Notas da tradução 1.

Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) foi um poeta, pensador e teórico da natureza alemão. Um de seus temas de pesquisa foi a percepção visual.

2.

Sinônimo de “adolescência” como transição entre infância e vida adulta.

3.

No texto original, há uma nota de rodapé indicando que essa é a pal vra que aparece no estenograma (razmeriénie, medida). A tradução para? o inglês (em Vygotsky’s Collected Works, vol. 1) traz uma nota indicando a alteração do termo por “divisão” (mzdeliénie).

4.

Kurt Goldstein (1878-1964) foi um neurologista e autor da psicologia alemã, que também contribuiu com a biologia e psiquiatria. Foi próximo da psicologia da Gestalt e da fenomenología, tornando-se um dos principais expoentes de uma neurologia “holística” no plano internacional. Descreveu diversas síndromes neurológicas, sendo, junto de Gelb, presença recorrente nas obras do Círculo de Vigotski.

5.

Wolfgang Kõhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941) foram, junto de Max Wertheimer (1880-1943), fundadores da psicologia da Gestalt, elaborada pri­ meiramente na Alemanha e desenvolvida posteriormente nos Estados Unidos. t

6. Sobre Karl Bühler e a Escola de Wüzburg, ver nota 9 do texto 1. 7.

Erich Jaensch (1883-1940) foi um psicólogo alemão. Conhecido por seus trabalhos no estudo do eidetismo, isto é, teoria de imagens visuais subje­ tivas que são observadas em crianças e adolescentes em determinada fase do seu desenvolvimento, e que, excepcionalmente, podem persistir entre adultos. Tais imagens foram descritas em 1907 por Urbantschitsch. Vigot­ ski publicou um capítulo de livro sobre esse tema em 1930 e faz a crítica a Jaensch no texto 7 desta coletânea.

6. Sobre os sistemas psicológicos (1930)

8.

Como é próprio de suas conferências (a maioria não revisada por ele para publicação), Vigotski não traz referências precisas, mas o autor e seu Cír­ culo de pesquisadores realizaram diversos experimentos sobre as funções psíquicas superiores ou voluntárias, particularmente, ao longo dos anos 1920 (ver Vigotski, L. S. (2021). Historia do desenvolvimento das funções mentais superiores. Martins Fontes).

9.

Ver nota 2 do texto 2.

10.

Referência ao neurologista austríaco Otto Põtzl (1877-1962).

11.

Aleksei Nikoláievitch Leontiev (1903-1979) foi um psicólogo soviético. Co­ laborador de Vigotski no Instituto de Psicologia Experimental de Moscou. Sob orientação de Vigotski, conduziu importante pesquisa sobre o desen­ volvimento da memória nos anos 1920, ainda que divergências teóricas os afastassem nos anos 1930, e, posteriormente, levassem Leontiev a desen­ volver sua teoria da atividade, após influente artigo de Rubinstein com ideia para uma nova teoria marxista em 1934.

12.

Leonid Vladímirovitch Zankov (1901-1977) foi defectólogo e psicólogo. Um dos colaboradores mais próximos de Vigotski, trabalhou no Instituto de Defectologia de Moscou, onde conduziu grande número de pesquisas com portado­ res de deficiências. Nos anos 1920, estudou reações dominantes. Teceu críticas a trabalhos de A. N. Leontiev, com quem teria estabelecido uma tensa relação.

13.

Jean Piaget (1896-1980), psicólogo suíço. Autor de muitos trabalhos ex­ perimentais e teóricos no campo da psicologia infantil e genética, embora considerasse ter criado uma nova ciência, a epistemología genética, cujo objeto era a passagem dos estados inferiores do conhecimento aos estados mais complexos ou rigorosos.

14.

Karl Groos (1861-1946) foi um psicólogo alemão. Seus principais trabalhos são no campo da psicologia genética. Famoso autor da teoria sobre a natu­ reza e desenvolvimento do jogo infantil.

15.

Natalia Grigorievna Morózova (1906-1989), defectóloga soviética e aluna de Vigotski. Com Zaporójets, Bojóvitch, Levina, Morózova e Slávina, ela teria constituído a piatiórka (“o quinteto”).

16.

Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), filósofo, sociólogo e etnógrafo francês.

17.

Exemplo recorrente em Vigotski, sem qualquer conotação pejorativa sobre os povos bantos. Com ele, o autor tenciona ilustrar como as diferenças culturais concretas tornam-se sistemas intrapsicológicos.

211

212

Psicologia, desenvolvimento humano e marxismo

18.

Cornélio Tácito (55-120) foi um historiador romano.

19.

Assim está no estenograma.

20.

Charlotte Malachowski Bühler (1893-1963), psicóloga alemã. Com o ma­ rido, o também psicólogo gestaltista Karl Bühler, radicou-se em Viena, onde fundaram um Instituto de Psicologia, migrando para os Estados Unidos em 1938. Em Viena, com outras mulheres pesquisadoras, Charlotte dedicou-se aos problemas da psicologia da infância e juventude. Trabalhos dessa fase são bastante citados por Vigotski.

21.

Sobre Binet, ver nota 6 do texto 4.

22. Francis Galton (1822-1911) foi um antropólogo e psicólogo inglês. Elabo­ rou métodos experimentais e quantitativos na psicologia, com ênfase em fatores hereditários e subestimando a influência do meio social. 23. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um filósofo alemão que desenvolveu a filosofia idealista alemã. 24.

Sobre Bergson, ver nota 6 do texto 2.

25. Referência ao psicólogo alemão Adolf Busemann (1887-1967). 26. Denominação antiga para esquizofrenia (demência precoce). 27.

Ernst Kretschmer (1888-1964), psiquiatra e psicólogo alemão. Autor de i pesquisas sobre a correlação entre a estrutura do corpo e as propriedades psíquicas do ser humano. Com base nisso, propôs uma tipologia dos carac­ teres, estudando as características da personalidade pré e pós-adoecimento psiquiátrico. Teceu diversas contribuições à psicopatologia. Sua Psicologia médica (1922) foi muito citada por Vigotski

28. Sobre Blónski, ver nota 2 do texto 1.