Processo Penal [3ª ed.]
 9788520360057

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GUSTAVO HENRIQUE BADARÓ

PROCESSO

PENAL 3 ediçao revista, atualizada e ampliada °

THOMSON REUTERS

REVISTA DOS TRIBUNAIS"

Diretora Responsável Marisa Harms Diretora de Operações de Conteúdo Juliana Mayumi Ono £rf/tores; Andréia Regina Schneider Nunes, Cristiane Gonzalez Basile de Faria, Iviê A. M. Loureiro Gomes e Luciana Felix Assistente Administrativo Editorial:M iana Camilo Menezes Produção Editorial Coordenação Juliana De Cicco Bianco AnalistasEditoriais:Dame\\e Rondon Castro de Morais, Flávia Campos Marcelino Martines, George Silva Melo, Luara Coentro dos Santos, Luciano Mazzolenis J. Cavalheiro e Rodrigo Domiciano de Oliveira Analistas de Qualidade Editorial:Cint\a Mesojedovas Nogueira, Maria Angélica Leite, Rafaelia de Almeida Vasconcellos e Victor Bonifácio Copo; Chrisley Figueiredo Administrativo e Produção Gráfica Coordenação Caio Henrique Andrade Analista Administrativo: Antonia Pereira Assistente Administrativo: Francisca Lucélia Carvalho de Sena Analista de Produção Gráfica: Rafael da Costa Brito

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil) Badaró, Gustavo Henrique Processo penal / Gustavo Henrique Badaró. - 3. ed. revi, atual, e ampl. - São fó u lo ; Editora Revista dos Tribunais, 2015. Bibliografia ISBN 978-85-203-6005-7 1. Processo penal 2. Processo penal - Brasil I. Título. 15-01463

CDU-343:1

índices para catálogo sistemático: I . Processo p e n a l: Direito penal 343.1

PROCESSO PENAL

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G u s t a v o H e n r iq u e B a d a r ó

3.® edição revista, atualizada e ampliada

Ilia ProView INCLUI VERSÃO ELETRÔNICA DO LIVRO

© desta edição [2015) E d it o r a R e v is t a

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Rua do Bosque, 820 - Barra Funda Tel. n 361 3 -8 4 0 0 -F a x 11 3613-8450 CEP 01136-000 - São F^ulo, SP, Brasil T o d o s o s d ir eito s reserv ad o s . Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou

processo, especialmente por sistemas gráficos, m icrofílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem com o a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam -se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível com o crime (art. 184 e parágrafos, do C ó d igo Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e inde­ nizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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(atendimento, em dias úteis, das 8 às 17 horas) Tel. 0800-702-2433 e-m ail de atendimento ao consumidor: [email protected] Visite nosso s/te: www.rt.com.br Impresso no Brasil [03-2015] Universitário Texto Fechamento desta edição [06.03.2015]

ED ITO RA A n U A D A

ISBN 978-85-203-6005-7

Para J e n n if e r , L u c a e E n r ic o . pelo am or e felicid ad e que trouxeram em minha vida.

Agradecimentos Não poderia deixar de agradecer aos que contribuíram para que esta nova edi­ ção, ampliada e atualizada, se tomasse uma realidade. Esse livro surgiu a partir da transformação do Direito Processual Penal, publicado em dois tomos, pela Editora Elsevier, nesse novo livro, com o título Processo Penal, editado em um único volume, que já teve duas publicações pela mesma editora e, agora, chega à terceira edição em nova Editora. Agradeço a confiança e o convite que me foi formulado pela Revista dos TribunaisAThomson Reuters, na pessoa da Diretora Editorial de Conteúdo Jurídico, Marisa Harms. Desde a primeira versão do Direito Processual Penal, até esta nova e reformulada 3 edição do Processo Penal, são muitas noites de sono não dormido, centenas de horas de pesquisa doutrinária e análise de repertórios de jurisprudência. Ainda bem que é assim, senão, qual seria a graça?... Recebi observações de leitores amigos, sejam alunos, sejam colegas de escritó­ rio, que apontavam erros de digitação, referências a artigos equivocadas, sugestões de novos temas a serem tratados etc. A todos, meu sincero agradecimento, pois nem mesmo a leitura atenta de todos os que se dispuseram a me ajudar pôde evitar, quando da publicação das edições anteriores do Direito Processual Penal, tais falhas. Agradeço especialmente ao meu pai, Sér^o Salgado Ivahy Badaró, pelas opiniões e correções no texto. Pelos ensinamentos de vida e pelas lições jurídicas durante todo o tempo de convivência no escritório. Para minha esposa, Jennifer Cristina Ariadne Falk Badaró, agradeço pela compreensão, por aceitar minhas ausências nos meses em que me dediquei ao livro, mas também pelas correções e sugestões que contribuíram decisivamente para o conteúdo e para a forma do livro. Ao meus filhos, Luca e Enrico, por compreenderem tantos “o papai não pode, tem que trabalhar..." O livro e suas edições anteriores, ainda que de forma resumida, reflete tudo o que aprendi e estudei. Agradeço, profundamente, aos Professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pela minha formação. Serei eternamente aluno dos meus mestres Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Rogério Louria Tucci, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo e Maria Thereza Rocha de Assis Moura. Finalmente, agradeço carinhosamente aos meus alunos de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A preparação das aulas foi uma fonte contínua de atualização do livro. Além disso, não poucas vezes, ao vol­ tar para casa, após aulas noturnas, fazia outros acréscimos. Eram novos exemplos.

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argumentos ou justificativas que se reforçavam, problemas que até então não havia imaginado, mas que mereciam uma resposta. E tudo isso surgia na sala de aula. Cada nova edição é fruto, também, das perguntas e das discussões em classe. Espero poder continuar atualizando-o, estimulado pela inquietação dos estudantes, por muitos e muitos anos.

Apresentação Este livro trata do programa de Direito Processual Penal. A obra, a cada nova edição revista, atualizada e ampliada, encontra-se dividida nos seguintes capítulos: (1) Garantias processuais e o sistema acusatório; (2) Lei processual penal no tempo, no espaço e sua interpretação; (3) Inquérito policial e outras formas de investigação preliminar; (4) Ação penal; (5) Ação civil ex delicto; (6) Competência; (7) Sujeitos processuais; (8) Questões e processos incidentes; (9) Comunicação dos atos pro­ cessuais; (10) Da prova; (11) Sentença e coisa julgada; (12) Do processo; (13) Dos procedimentos; procedimento ordinário, sumário e sumaríssimo e procedimentos especiais; (14) Nulidade dos atos processuais; (15) Recursos; (16) H abeas corpus; (17) Revisão criminal; (18) Medidas cautelares. Buscou-se expor a matéria de forma direta e em linguagem acessível. Sempre que necessário, são dados exemplos para facilitar a compreensão da matéria. Embora seja uma obra para fins didáticos, há no livro a preocupação com aspectos práticos, tratando e procurando resolver os problemas atuais, do dia a dia forense. Sempre que algum ponto se mostra controvertido, são expostas as diversas correntes, com os respectivos argumentos, bem como a indicação dos autores e dos julgados que sustentam cada uma delas. Na análise jurisprudencial são privilegiados os julgados mais recentes, principalmente do Suprem Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, expondo-se, assim, a posição que atualmente encontra acolhida nos tribunais. Com isso, o livro procura servir tanto ao estudante, que está tendo o primeiro contato com a matéria, como também se mostra adequado aos bacharéis que preten­ dem se preparar para exames e concursos públicos.

Nota do Autor à Terceira Edição É com redobrada satisfação que chegamos à terceira edição do nosso Processo Penal. O primeiro motivo de alegria é por estarmos agora na renomada Thomson Reuters Editora Revista dos Tribunais que, há mais de dez anos, publicou o meu primeiro livro, minha dissertação de mestrado sobre Correlação entre Acusação e Sentença. Sempre foi um grande objetivo ter meu manual publicado pela querida “RT”. Embora não tenham ocorrido mudanças legislativas significativas no processo penal, desde a última edição, ainda assim, justifica-se uma terceira edição. Do ponto de vista do direito positivo, o principal motivo é a aprovação pelo Congresso Nacional do Novo Código de Processo Civil. Ainda que sejamos críticos de transposições simplistas de institutos e conceitos processuais civis para o campo penal, efetivamente hã pontos omissos no Código de Processo Penal em que é necessário recorrer ã analogia com lei processual civil. Assim, todas as vezes que há referência a algum artigo do vigente Código de Processo Civil de 1973, foi feita uma observação, em nota de rodapé, sobre 0 correspondente artigo no Novo Código de Processo Civil. Além disso, efetivamente, trata-se de uma edição ampliada e alterada em vários pontos. Foramacrescentados vários tópicos no capítulo 10, sobre as provas. Na teoria geral da prova, foi acrescido o item 10.1.6, que trata da classificação das provas pré-constituídas e constituendas, com vistas a diferenças quanto ao regime do contraditório. Também foi ampliada a discussão sobre a valoração da prova e, em especial, o art. 155, caput, do CPP, com a inserção de três subitens; 1 0 .1 .1 3 .1 .0 valor dos elementos informativos do inquérito policial; 1 0 .1 .1 3 .2 .0 valor dos elementos não produzidos em contraditório; corroboração; 10.1.13.3. Exceções ao contraditório; as provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis. Já na disciplina dos meios de prova, sobre um tema de grande atualidade, que é a delação premiada, também se aprofundou a análise, com os seguintes acréscimos; 10.5.5.1 O acordo de delação premiada; 10.5.5.2 A homologação judicial do acordo; 10.5.5.3 A produção da prova nos processos com delação premiada; 10.5.5.4 Sobre a valoração da delação premiada, tema que se mostra extremamente atual. O Capítulo 13, que trata dos procedimentos, foi alterado no que diz respeito à exposição quanto ao momento do recebimento da denúncia. Nas edições anteriores defendemos que, diante da controvérsia gerada pelo conflito entre os arts. 396, caput, e 399 do CPP, com a reforma de 2008, que neste momento não deveria haver o recebimen­

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to da denúncia ou queixa, caso não fosse rejeitada liminarmente, limitando-se o juiz a determina a citação do acusado para responder a denúncia. O recebimento somente poderia se dar, em respeito ao contraditório, após a resposta do acusado. A matéria, contudo, está pacificada em sentido contrário. Por tal motivo, embora continuemos seguros do nosso ponto de vista, mas para não ter que fazer a ressalva em todos os procedimentos que serão analisados, optamos por seguir a exposição segundo a linha interpretativa que acabou vigorando. Para quem se interessar pelos fundamentos de nossa posição, eles poderão ser consultados, no item 13.12.1, das edições anteriores. Além disso, foi ampliado consideravelmente o número de julgados citados, es­ pecialmente os mais recentes acórdãos do STJ e do STE Como sempre, a última, mas não menos importante palavra, é de agradecimento aos leitores que, com seu interesse, possibilitaram mais uma edição. Sugestões e crí­ ticas, como sempre, serão bem-vindas. Obrigado e boa leitura! Gustavo Badaró São Paulo, janeiro de 2015.

Sumário Agradecimentos...................................................................................................................................... Apresentação.......................................................................................................................................... Nota do Autor à Terceira Edição...........................................................................................................

11 13 15

Capítulo 1 Garantias processuais e o sistema acusatório 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 1.8 1.9 1.10 1.11 1.12 1.13 1.14

Princípios processuais penais ......................................................................................... A convenção americana de direitos humanos e as garantias processuais........................... Garantia do juiz independente e imparcial............................................................................. Garantia do Juiz natural............................................................................................................ Garantias do contraditório e ampla defesa............................................................................. Garantia da igualdade de partes................................................................................................ Garantia do estado de inocência............................................................................................... Garantia da motivação.............................................................................................................. Garantia da publicidade............................................................................................................ Garantia do duplo grau de Jurisdição...................................................................................... Garantia do processo no prazo razoável.................................................................................. Garantia do devido processo legal............................................................................................ A regra da proporcionalidade e as garantias processuais...................................................... Sistemas processuais: processo penal acusatório e inquisitório........................................... 1.14.1 Características........................................................................................................ 1.14.2 A essência do processo penal acusatório............................................................. 1.14.3 Processo acusatório e iniciativa probatória do Juiz............................................

33 33 38 43 50 55 56 58 63 66 68

78 79 87 87 88

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Capitulo 2 Lei processual penal no tempo, no espaço e sua interpretação 2.1

2.2 2.3

A lei processual penal no tempo............................................................................................... 2.1.1 Normas processuais penais puras e mistas e o direito intertemporal.............. 2.1.2 Direito intertemporal: problemas específicos..................................................... 2.1.2.1 Normas sobre procedimento............................................................. 2.1.2.2 Normas sobre prova......................................................................... 2.1.2.3 Normas sobre recursos....................................................................... 2.1.2.4 Normas sobre prisão e liberdade...................................................... A lei processual penal no espaço....................... Interpretação da lei processual penal.......................................................................................

93 94 97 97 98 99 102 104 106

Capítulo 3 Inquérito policial e outras formas de investigação preliminar 3.1 3.2 3.3 3.4

Noções gerais............................................................................................................................... Inquérito policial: finalidade .................................................................................................... Inquéritos extrapoliciais............................................................................................................ Naturezajurídicae características.............................................................................................

113 114 115 116

18

P r o cesso P enal

3.5 3.6 3.7 3.8 3.9 3.10 3.11 3.12 3.13 3.14 3.15 3.16 3.15 3.16

Dispensabilidade do inquérilo................................................................................................. Âmbito de atuação da auLoridade policial............................................................................... Início do inquérito policial........................................................................................................ Notitia criminis; conceito e espécies........................................................................................ Diligências.................................................................................................................... ■-........... Identificação criminal............................................................................................................... Indiciamento............................................................................................................................... Incomunicabilidade do preso.................................................................................................... Término do inquérito policial.................................................................................................. Arquivamento do inquérito policial........................................................................................ Vícios do inquérito policial....................................................................................................... Valor probatório......................................................................................................................... Investigação pelo Ministério Público....................................................................................... Investigação pela defesa.............................................................................................................

118 119 121 125 125 130 133 135 135 138 140 141 143 146

Capítulo 4 Ação penal 4.1

4.2

4.3

4.4

4.5 4.6 4.7

4.8

4.9

Noções gerais sobre o direito de ação..................................................................................... 4.1.1 Teorias imanentistas do direito de ação.............................................................. 4.1.2 Teorias (autonomistas) concretas do direito de ação........................................ 4.1.3 Teorias (autonomistas) abstratas do direito de ação.......................................... 4.1.4 Teoria da ação de Liebman................................................................................... Condições da ação penal.......................................................................................................... 4.2.1 Possibilidade juridica do pedido.......................................................................... 4.2.2 Interesse de agir..................................................................................................... 4.2.3 Legitimidade de partes.......................................................................................... 4.2.4 Justa causa para a ação penal................................................................................ 4.2.5 Carência da ação: distinção entre condições da açãoemérito........................... Classificação da ação penal....................................................................................................... 4.3.1 Classificação quanto à forma de tutela jurisdicionalpleiteada.......................... 4.3.2 Critério subjetivo de classificação........................................................................ 4.3.3 Determinação da espécie de ação penal.............................................................. 4.3.4 Razão de ser das espécies de ação penal............................................................. 4.3.5 Características fundamentais das espécies de ação penal.................................. Ação penal pública incondicionada........................................... 4.4.1 Noções gerais.......................................................................................................... 4.4.2 Princípios............................................................................................................... Ação penal pública condicionada à representação do ofendido.......................................... Ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça............................... Ação penal de iniciativa privada.............................................................................................. 4.7.1 Princípios............................................................................................................... 4.7.2 Queixa................................................................................................................... Extinção da punibilidade relacionada com a ação penal..................................................... 4.8.1 Decadência............................................................................................................ 4.8.2 Renúncia ao direito de queixa.......................................... 4.8.3 Perdão do ofendido.............................................................................................. 4.8.4 Perempção............................................................................................................ Denúncia ou queixa................................................................................................................... 4.9.1 Requisitos da denúncia ou queixa....................................................................... 4.9.1.1 Exposição do fato com todas as circunstâncias - ..................... 4.9.1.2 Qualificação do acusado.................................................................... 4.9.1.3 Classificação do crime....................................................................... 4.9.1.4 Rol de testemunhas............................................................................

153 153 154 154 155 156 157 159 160 162 169 176 176 178 179 181 181 182 182 182 183 186 187 187 187 189 189 190 191 192 193 193 194 196 196 197

Sumário

4.9.2

4.9.1.5 Elementos autenticativos.................................................................. Aditamento da denúncia.......................................................................................

19 198 198

i

Capitulo 5 Ação civil cx deXicto 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 5.6 5.7

5.8

Noções gerais.............................................................................................................................. Restituição, ressarcimento, reparação e indenização.............................................................. Ação penal e ação civil exdelicto................................................................................................ Sentença penal condenatória e seus efeitos civis ;.............................................................. Sentença condenatória e o responsável civil............................................................................ Rescisão do julgado penal.......................................................................................................... Efeitos civis da absolvição penal................................................................................................ 5.7.1 Absolvição por excludentes de ilicitude............................................................... 5.7.1.1 Legitima defesa................................................................................... 5.7.1.2 Estado de necessidade........................................................................ 5.7.1.3 Estrito cumprimento do dever legal................................................. 5.7.1.4 Exercício regular de direito................................................................ Vinculação da absolvição e contraditório................................................................................

203 203 204 206 207 209 209 212 212 213 214 214 215

Capitulo 6 Competência 6.1 6.2 6.3 6.4

6.5

6.6

Noções gerais.............................................................................................................................. Concretização da competência................................................................................................... Da norma sobre competência: critério de competência e fator de coligamento.................. Critérios de distribuição de competência.................................................................................. 6.4.1 Competência pelo lugar da infração...................................................................... 6.4.2 Competência pelo domicílio ou residência do réu.............................................. 6.4.3 Competência pela prevenção................................................................................ 6.4.4 Competência pela natureza da infração................................................................ 6.4.5 Competência pela distribuição.............................................................................. 6.4.6 Competência por prerrogativa de função............................................................. Prorrogação da competência....................................................................................................... 6.5.1 Noções preliminares............................................................................................... 6.5.2 Prorrogação de competência: conceito e espécies............................................... 6.5.3 Conexão.................................................................................................................... 6.5.4 Continência............................................................................................................. 6.5.5 Efeitos da conexão e da continência...................................................................... 6.5.6 Dos critérios de definição do foro prevalecente .................................................. 6.5.7 Desaforamento......................................................................................................... 6.5.8 Incidente de deslocamento da competência para aJustiça Federal, em crimes que violam direitos humanos ............................................................................... Disposições especiais sobre competência.................................................................................

219 221 224 227 231 234 237 238 240 242 246 246 24g 250 253 254 257 263 263 264

Capitulo 7 Sujeitos processuais 7.1

Juiz................................................................................................................................................ 7.1.1 Dos impedimentos e incompatibilidades dos juizes............................................ 7.1.1.1 Hipóteses de impedimentos................................................................ 7.1.1.2 Hipóteses de incompatibilidades........................................................ 7.1.1.3 Procedimento........................................................................................ 7.1.1.4 Efeitos.................................................................................................... 7.1.2 Suspeição do juiz.......................................................................................................

273 273 274

27g 27g 278 279

20

7.2 7.3

7.4 7.5

7.6

7.7 7.8

P ro c e s s o P enal

7.1.2.1 Hipóteses de suspcição....................................................................... 7.1.2.2 Abstenção do ju iz................................................................................ 7.1.2.3 Atos do juiz suspeito.......................................................................... 7.1.2.4 Suspeição dos jurados........................................................................ Peritos, intérpretes, serventuários ou funcionários daJustiça............................................ Ministério Público.............................................................................................!....................... 7.3.1 Natureza jutidica................................................................................................... 7.3.2 Parte interessada ou “parte imparcial"................................................................. 7.3.3 Princípios do Ministério Público.......................................................................... 7.3.4 Impedimentos do Ministério Público........................... .'.................................... Autoridade policial.................................................................................................................... Acusado....................................................................................................................................... 7.5.1 Questões terminológicas....................................................................................... 7.5.2 Pessoa jurídica........................................................................................................ 7.5.3 A autodefesa do acusado....................................................................................... 7.5.4 Revelia do acusado.................................................................................................. Defensor........................................................................................................................................ 7.6.1 Defesa técnica......................................................................................................... 7.6.2 Finalidade da defesa............................................................................................... 7.6.3 Aspectos terminológicos....................................................................................... 7.6.4 Defesa técnica necessária, indisponível e efetiva................................................ 7.6.5 Momento inicial da defesa técnica........................................................................ Curador......................................................................................................................................... 7.7.1 FinaUdade................................................................................... 1.......................... Assistente de acusação............................................................................................................... 7.8.1 Finalidade.......................................................... 7.8.2 Cabimento............................................................................................................... 7.8.3 Momento................................................................................................................. 7.8.4 Legitimados............................................................................................................. 7.8.5 Poderes do assistente............................................................................................... 7.8.6 O assistente e a testemunha...................................................................................

279 281 281 281 282 283 283 284 286 287 288 288 288 289 289 290 291 291 291 291 291 292 293 293 294 295 296 297 298 300 301

Capítulo 8 Questões e processos incidentes 8 .1

8.2

8.3

Questões e processos incidentes............................................................................................... Questões prejudiciais.................................................................................................................. 8.2.1 Noções gerais........................................................................................................... 8.2.2 Classificações........................................................................................................... 8.2.3 Questões prejudiciais sobre estado das pessoas.................................................. 8.2.4 Questões prejudiciais diversas do estado das pessoas........................................ 8.2.5 Legitimados............................................................................................................. 8.2.6 Momento de arguiçâo.............................................................................................. 8.2.7 Recurso .................................................................................................................... Da exceção de suspeição e da alegação de impedimento e incompatibilidade.................. 8.3.1 Exceção de suspeição.............................................................................................. 8.3.1.1 Abstenção do ju iz....................................................... 317 8.3.1.2 Legitimados.......................................... 8.3.1.3 Momento da atguição................................................ 318 8.3.1.4 Procedimento.............................................................. 319 8.3.1.5 Exceção de suspeição dos jurados........................... 321 8.3.1.6 Exceção de suspeição do representante do Ministério Público.... 8.3.1.7 Exceção de suspeição dos peritos, intérpretes, serventuários ou funcionários d ajustiça........................................... 322

307 308 308 309 311 313 315 315 316 317 317 318

321

Sumário 8.3.1.8 Suspeiçâo da autoridade policial..................................................... ! Da alegação de impedimentos e incompatibilidades..................... 8.3.2.1 Procedimento..................................................................................... Da exceção de incompetência.................................................................................................. 8.4.1 Hipóteses de incompetência.................................................................................. 8.4.2 Abstenção do juiz................................................................................................... 8.4.3 Legitimados............................................................................................................ 8.4.4 Momento da arguição............................................................................................. 8.4.5 Procedimento.................................. Exceção de litispendênciae de coisa julgada......................................................................... 8.5.1 Distinção.................................................................................................................. 8.5.2 Legitimados............................................................................................................ 8.5.3 Momento de arguição............................................................................................. 8.5.4 Procedimento........................................................................................................... 8.5.5 Recurso ....................................................................................................... Exceção de ilegitimidade de parte........................................................................................... 8.6.1 Cabimento............................................................................................................... 8.6.2 Legitimados............................................................................................................. 8.6.3 Momento de arguição............................................................................................. 8.6.4 Procedimento........................................................................................................... 8.6.5 Recurso..................................................................................................................... Da restituição das coisas apreendidas...................................................................................... 8.7.1 Das coisas que podem ser apreendidas e restituídas.......................................... 8.7.2 Legitimados............................................................................................................. 8.7.3 Momento................................................................................................................. 8.7.4 Quem pode determinar a restituição da coisa apreendida................................ 8.7.5 Requisitos................................................................................................................ 8.7.6 Procedimento........................................................................................................... 8.7.7 Destino das coisas não restituídas........................................................................ 8.7.8 Natureza jurídica.................................................................................................... Incidente de falsidade documental........................................................................................... 8.8.1 Cabimento............................................................................................................... 8.8.2 Legitimados.......................................................... 8.8.3 Momento.................................................................................................................. 8.8.4 Procedimento........................................................................................................... Incidente de insanidade mental................................................................................................. 8.9.1 Cabimento............................................................................................................... 8.9.2 Legitimados............................................................................................................. 8.9.3 Momento.................................................................................................................. 8.9.4 Procedimento.......................................................................................................... 8.9.5 Resultado do laudo.................................................................................................. 8.3.2

8.4

8.5

8.6

8.7

8.8

8.9

21 322 323 323 323 324 324 325 326 326 328 328 329 330 330 331 331 331 332 333 333 334 334 334 335 336 336 337 338 340 341 342 342 344 345 345 347 347 348 348 349 351

Capitulo 9 Comunicação dos atos processuais 9.1 9.2

9.3

Atos de comunicação processual............................................................................................... Citação........................................................................................................................................... 9.2.1 Noções gerais e espécies de citação....................................................................... 9.2.2 Citação por mandado.............................................................................................. 9.2.3 Citação por edital..................................................................................................... 9.2.4 Citação com hora certa........................................................................................... 9.2.5 Citação e revelia....................................................................................................... 9.2.6 Vícios da citação....................................................................................................... Intimação.......................................................................................................................................

357 357 357 358 364 367 368 370 370

22

P r c x ís s o P enal

Capítulo 10 Da prova 10.1

Teoria geral da prova................................................................................................................ 10.1.1 Noções preliminares............................................................................................. 10.1.2 Processo penal, prova e verdade.......................................................................... 10.1.3 Conceitos e significados sobre a prova............................................................... 10.1.4 Meios de prova e meios de obtenção de prova.................................................... 10.1.4.1 Meios de prova................................................................................ 10.1.4.2 Meios de obtenção de prova .......................................................... 10.1.5 Prova atípica e prova anômala.............................................................................. 10.1.6 Das provas pré-constituídas e provas constituendas: diferenças quanto ao regime do contraditório...................................................................................... 10.1.7 Prova emprestada................................................................................................... 10.1.8 Objeto da prova...................................................................................................... 10.1.9 Momentos probatórios.......................................................................................... 10.1.10 Os critérios lógicos de admissibilidade das provas............................................ 10.1.11 Provas ilícitas.......................................................................................................... 10.1.11.1 Provas ilícitas e provas ilegítimas: distinções............................... 10.1.11.2 Uma nova proposta de conceituação das provas ilícitas.............. 10.1.11.3 Prova ilícita por derivação............................................................. 10.1.12 Prova por videoconferência................................................................................... 10.1.13 Sistemas de valoração da prova............................................................................ 10.1.13.1 O valor dos elementos informativos do inquérito policial 10.1.13.2 O valor dos elementos não produzidas em contraditório: corro­ boração.............................................................................................. 10.1.13.3 Exceções ao contraditório: as provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis......................................................................................... 10.1.14 Ônus da prova......................................................................................................... 10.1.14.1 Noçõesgerais.................................................................................... 10.1.13.2 Ônus da prova: espécies.................................................................. 10.1.14.3 Ônus da prova quanto aos elementos do crime............................ 10.1.15 Critérios de decisão: o problema dos síofidards probatórios.............................. 10.2 Exame de corpo de delito e outras perícias............................................................................ 10.2.1 Conceito................................................................................................................ 10.2.2 Caracteristicas........................................................................................................ 10.2.3 Classificações......................................................................................................... 10.2.4 Perito...................................................................................................................... 10.2.5 Corpo do delito e exame de corpo de delito........................................................ 10.2.6 Exame de corpo de delito direto e indireto......................................................... 10.2.7 Procedimento probatório..................................................................................... 10.2.8 Valor probatório.................................................................................................... 10.3 Interrogatório............................................................................................................................. 10.3.1 Natureza jurídica ....................................................................................... 10.3.2 Características........................................................................................................ 10.3.3 Local do interrogatório............................................... 10.3.4 Procedimento e conteúdo.................................................................................... 10.3.5 Valor probatório......................................................,............................................ 10.4 Confissão.................................................................................................................................... 10.4.1 Conceito e elementos............................................................................................ 10.4.2 Natureza jurídica................................................................................................... 10.4.3 Classificações.......................................................................................................... 10.4.4 Características........................................................................................................ 10.4.5 Valor probatório.....................................................................................................

377 377 378 381 383 384 385 386 388 391 395 396 398 401 401 403 408 410 415 416 417 420 423 423 424 425 431 434 434 434 434 435 435 437 439 441 442 442 443 445 445 446 446 446 447 448 448 449

Sumiria 10.5

10.6

10.7

10.8

10.9

10.10

10.11

10.12

10.13

Delação ou chamamento do corréu.......................................................................................... 10.5.1 ■ Conceito................................................................................................................... 10.5.2 Natureza jundica..................................................................................................... 10.5.3 Requisitos................................................................................................................. 10.5.4 Valor probatório...................................................................................................... 10.5.5 Da denominada delação premiada......................................................................... 10.5.5.1 O acordo de delação premiada........................................................... 10.5.5.2 Ahomologaçãojudicialdoacordo................................................... 10.5.5.3 A produção da prova nos processo com delação premiada 10.5.5.4 O valor probatório da delação premiada.......................................... Declarações do ofendido........................................................................................................... 10.6.1 Posição do ofendido no processo penal................................................................ 10.6.2 Diferenças entre o ofendido e as testemunhas..................................................... 10.6.3 Naturezajurídica..................................................................................................... 10.6.4 Procedimento probatório....................................................................................... 10.6.5 Valor probatório....................................................................................................... Prova testemunhal..................................................................................................................... 10.7.1 Conceito................................................................................................................... 10.7.2 Caracteristicas........................................................................................................... 10.7.3 Classificações............................................................................................................ 10.7.4 Dever de depor, proibiçãode depor e dispensa de depor.................................... 10.7.5 Lugar do depoimento............................................................................................... 10.7.6 Procedimento probatório........................................................................................ 10.7.7 Contradita................................................................................................................. 10.7.8 Valor probatório da provatestemunhal................................................................. Acareação.................................................................................................................................... 10.8.1 Conceito e características........................................................................................ 10.8.2 Procedimento probatório........................................................................................ 10.8.3 Valor probatório....................................................................................................... Reconhecimento de pessoa ou coisa........................................................................................ 10.9.1 Conceito.................................................................................................................... 10.9.2 Procedimento............................................................................................................ 10.9.3 Valor probatório......................................................!.............................................. Prova documental...................................................................................................................... 10.10.1 Conceito.................................................................................................................... 10.10.2 Características........................................................................................................... 10.10.3 Espécies..................................................................................................................... 10.10.4 Documento eletrônico............................................................................................. 10.10.5 Procedimento probatório........................................................................................ 10.10.6 Valor probatório............................................................................................. Indícios e presunções................................................................................................................. 10.11.1 Conceito.................................................................................................................... 10.11.2 Raciocínio indiciãrio................................................................................................ 10.11.3 Valor probatório........................................................................................................ 10.11.4 Indícios e presunções............................................................................................... 10.11.5 Espécies de presunções............................................................................................ 10.11.6 Presunções simples, presunções relativas e o ônus da prova............................... 10.11.7 Presunções absolutas............................................................................................... Busca e apreensão........................................................................................................................ 10.12.1 Busca domiciliar........................................................................................................ 10.12.2 Busca pessoal............................................................................................................. 10.12.3 Procedimento da busca e apreensão.................................................................... Interceptaçâo telefônica............................................................................................................

23 450 450 450 451 452 452 454 455 456 457 461 461 461 462 462 463 464 464 464 465 466 467 468 471 472 474 474 475 476 477 477 477 479 481 481 481 482 482 483 485 486 486 486 487 488 488 489 490 491 492 495 497 500

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10.13.1 10.13.2 10.13.3 10.13.4 10.13.5 10.13.6 10.13.7 10.13.8 10.13.9

Questões terminológicas....................................................................................... Disciplina constitucional...................................................................................... Âmbito de aplicação da Lei n° 9.296/1996.......................................................... Naturezajuridica da medida................................................................................. Requisitos para a interceptação telefônica................................... '...................... Legitimados e momento....................................................................................... Juiz e competência................................................................................................. Procedimento probatório...................................................................................... Valor probatório......................................................................................................

500 502 506 507 507 510 512 513 520

Capitulo 11 Sentença e coisa julgada 11.1

Sentença....................................................................................................................................... 11.1.1 Conceito.................................................................................................................. 11.1.2 Classificação e denominações............................................................................... 11.1.3 Requisitos da sentença........................................................................................... 11.1.4 Sentença absolutória.............................................................................................. 11.1.5 Sentença condenatória........................................................................................... 11.1.6 Intimação da sentença............................................................................................ 11.1.7 Efeitos da sentença.................................................................................................. 11.2 Correlação entre acusação e sentença.................................................................................... 11.2.1 Noções gerais........................................................................................................... 11.2.2 Emendatio libelli (CPP, art. 3 83).......................................................................... 11.2.3 Mutatio libelli (CPP. art. 3 84)................................................................................ 11.3 Coisa julgada............................................................................................................................... 11.3.1 Noções gerais........................................................................................................... 11.3.2 Coisa julgada formal............................................................................................... 11.3.3 Coisa julgada material............................................................................................. 11.3.4 Limites objetivos da coisa julgada........................................................................ 11.3.4.1 Problemas específicos....................................................................... 11.3.5 Limites subjetivos da coisa julgada....................................................................... 11.3.5.1 Problemas específicos.......................................................................

527 527 528 528 532 533 534 535 536 536 537 538 546 546 547 547 548 550 552 552

Capitulo 12 Do Processo 12.1 Natureza do processo ................................................................................................................ 12.2 Objeto do processo penal........................................................................................................... 12.2.1 A irrelevância da lide penal.................................................................................... 12.2.1 A pretensão punitiva: pretensão material............................................................. 12.2.3 O objeto do processo como o conteúdo da imputação penal ........................... 12.3 Dos chamados pressupostos processuais................................................................................

559 565 565 574 579 582

Capitulo 13 Dos procedimentos: procedimento ordinário, sumário e sumaríssimo e procedimentos especiais 13.1 Noções preliminares...................................................................... 13.2 Do procedimento comum ordinário.......................................................................................... 13.2.1 Oferecimento da denúncia ou queixa................................................................... 13.2.2 Recebimento da denúncia ou queixa, ou sua rejeição liminar........................... 13.2.3 Citação do acusado.................................................................................................. 13.2.4 Resposta.................................................................................................................... 13.2.5 Absolvição sumária.................................................................................................

589 592 592 594 595 595 600

Sumário 13.2.6 13.2.7 '

13.3

13.4

13.5

25

Possibilidade de rejeição da denúncia ou queixa............................................... 602 Audiência de instrução, debates e julgamento.................................................. 604 13.2.7.1 Declarações do ofendido .................................................................. 604 13.2.7.2 Oitiva das testemunhas de acusação e de defesa ............................ 605 13.2.7.3 Esclarecimentos dos peritos............................................................. 609 13.2.7.4 Acareações e reconhecimento de pessoas ou coisas...................... 609 13.2.7.5 Interrogatório...................................................................................... 610 13.2.7.6 Diligências complementares............................................................. 612 13.2.7.7 Alegações finais .......................................................................... 612 13.2.7.8 Sentença............................................................................................. 616 619 Procedimento sumário.............................................................................................................. 13.3.1 Aplicação do procedimento sumário................................................................... 620 13.3.2 O novo procedimento sumário (arts. 531 e 5 3 8 )............................................... 621 Do procedimento sumanssimo nos juizados especiais criminais....................................... 623 623 13.4.1 Noções preliminares.............................................................................................. 13.4.2 Infração penal de menor potencial ofensivo....................................................... 624 13.4.3 Processo penal consensual.................................................................................... 626 13.4.3.1 Composição civil............................................................................... 627 13.4.3.2 Representação do ofendido............................................................... 627 13.4.3.3 Transação penal................................................................................... 629 13.4.3.4 Suspensão condicional do processo................................................ 634 637 13.4.4 Procedimento.......................................................................................................... 13.4.4.1 Termo circunstanciado...................................................................... 639 13.4.4.2 Audiência preliminar......................................................................... 639 13.4.4.3 Audiência de instrução e julgamento.............................................. 643 Do procedimento dos crimes dolosos contra a vida: o Tribunal do jú r i.............................. 647 13.5.1 Noções preliminares............................................................................................... 647 13.5.2 Caracteristicas constitucionais do júri brasileiro................................................ 649 13.5.2.1 Plenitude de defesa............................................................................ 649 13.5.2.2 Sigilo das votações............................................................................. 650 13.5.2.3 Soberania dos veredictos................................................................... 651 13.5.2.4 Competência parajulgar os crimes dolosos contra a vida 652 13.5.3 Procedimento nojuízo de acusação................... 654 13.5.3.1 Oferecimento da denúncia ou queixa.............................................. 654 13.5.3.2 juízo de admissibilidade da acusação.............................................. 654 13.5.3.3 Citação do acusado............................................................................. 655 13.5.3.4 Resposta................................................................................................ 655 655 13.5.3.5 Réplica ................................................................................................. 13.5.3.6 Absolvição sumária do art. 3 9 7 ......................................................... 656 13.5.3.7 Audiência de instrução, debatesT julgamento................. 657 13.5.3.7.1 Declarações do ofendido.................................. 657 13.5.3.7.2 Oitiva das testemunhas de acusação e de defesa .... 658 13.5.3.7.3 Esclarecimentos dos peritos, acareações e reconhe­ cimento de pessoas ou coisas .................................. 659 13.5.3.7.4 Interrogatório ............................................................. 659 13.5.3.7.5 Alegações finais.................................................. 659 13.5.4 Pronúncia................................................................................................................. 660 13.5.5 Impronúncia............................................................................................................. 665 13.5.6 Absolvição sumária................................................................................................. 666 13.5.7 Desclassificação....................................................................................................... 669 13.5.8 juízo da causa-Noções preliminares................................................................... 672 13.5.9 Requerimento de diligências da acusação e da defesa........................................ 673 13.5.10 Preparação do processo........................................................................................... 674

26

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13.5.11 13.5.12 13.5.13 13.5.14 13.5.15 13.5.16

13.6

13.7

13.8

13.9

Desaforamento....................................................................................................... Aceleração do julgamento..................................................................................... Ordem dos julgamentos ....................................................................................... A função dosjuradose a organização do júri...................................................... Formação e convocação do jú ri........................................................... Do julgamento pelo jú ri........................................................................................ 13.5.16.1 Verificação da presença das partes e testemunhas......................... 13.5.16.2 Verificação da uma, chamada dosjuradose instalação................ 13.5.16.3 Pregão e adiamentos......................................................................... 13.5.16.4 Impedimentos, suspeiçôes e incomunicabilidade dos jurados.... 13.5.16.5 Verificação das cédulas, sorteio dos jurados e recusas................. 13.5.16.6 Compromisso dos jurados.............................................................. 13.5.16.7 Oitiva da vítima e das testemunhas................................................ 13.5.16.8 Acareações, reconhecimentos de pessoas ou coisas e esclarecimen­ tos dos peritos................................................................................... 13.5.16.9 Leitura de peças................................................................................ 13.5.16.10 Interrogatório do acusado .............................................................. 13.5.16.11 Usodealgemas.................................................................................. 13.5.16.12 Debates orais..................................................................................... 13.5.16.13 Vedação de utilização de argumentos............................................ 13.5.16.14Juntada de documentos.................................................................... 13.5.16.15 Conclusão dos debates e esclarecimentos aos jurados................. 13.5.16.16 Provas essenciais e dissolução do conselho de sentença............. 13.5.16.17 Leituradosquesitos......................................................................... 13.5.16.18 Salasecreta......................................................................................... 13.5.16.19 Quesitos............................................................................................. 13.5.16.20 Votação dos quesitos........................................................................ 13.5.16.21 Sentença............................................................................................. 13.5.16.22 Desclassificação pelo conselho de sentença.................................. 13.5.16.23 Leitura da sentença.......................................................................... Procedimento dos crimes falimentares................................................................................. 13.6.1 Noçõesgerais......................................................................................................... 13.6.2 Extinção do inquérito judicial............................................................................. 13.6.3 Ação penal subsidiária......................................................................................... 13.6.4 Sentença declaratória da falência......................................................................... 13.6.5 Recebimento da denúncia.................................................................................... 13.6.6 Competência do juiz criminal............................................................................. Do procedimento dos crimes praticados por funcionários públicos................................. 13.7.1 Reflexos da Lei n° 11.719/2008 no procedimento especial.............................. 13.7.2 Cabimento do procedimento............................................................................... 13.7.3 Competência e foro por prerrogativa de função................................................. 13.7.4 Denúncia................................................................................................................. 13.7.5 Resposta escrita................. 13.7.6 Recebimento da denúncia.................................................................................... 13.7.7 Rejeição da denúncia........................................................ Procedimento dos crimes contra a honra.............................................................................. 13.8.1 Noçõesgerais......................................................................................................... 13.8.2 Cabimento.............................................................................................................. 13.8.3 Audiência de reconciliação.................................................................................. 13.8.4 Exceção da verdade............................................................................................... 13.8.5 Exceção da notoriedade do fato............................................................................ 13.8.6 Pedido de explicações........................................................................................... Procedimento dos crimes contra a propriedade imaterial...................................................

674 679 679 680 683 684 684 687 687 688

691 693 693 694 694 698 698 700 703 705 707 708 708 7Õ9 709 715 717 718 722 722 722 723 724 724 724 725 725 725 727 728 729 730 732 733 734 734 736 736 739 742 743 745

Sumário

27

Noçõesgerais.......................................................... ! Procedimento para os crimes de açào penal de iniciativa privada.................. I 13.9.2.1 O exame pericial................................................................................ 13.9.2.2 Ação penal........................................................................................... 13.9.3 Procedimento especial nos crimes de ação penal pública.................................. 13.9.4 Procedimento na Lei da Propriedade Industrial................................................. 13.10 Do procedimento especial dos crimes de drogas................................................................. 13.10.1 Noçõesgerais......................................................................................................... 13.10.2 Procedimento de drogas e as mudanças do CPP pela Lei n° 11.719/2008....... 13.10.3 Procedimento aplicável no caso de concurso de crim es.................................... 13.10.4 Inquérito policial................................................................................................... 13.10.5 Oferecimento da denúncia................................................................................... 13.10.6 Possibilidade de rejeição da denúncia................................................................ 13.10.7 Notificação.............................................................................................................. 13.10.8 Resposta................................................................................................................. 13.10.9 Diligências .................................................................................................. 13.10.11 Juízo de admissibilidade da acusação................................................................. 13.10.12 Possibilidade de absolvição sumária................................................................... 13.10.13 Audiência de instrução e julgamento..................................................................

743 747 747 751 754 757 758 758 759 761 762 764 765 766 766 768 768 771 771

13.9.1 13.9.2

Capítulo 14 Nulidade dos atos processuais 14.1 14.2 14.3 14.4 14.5

14.6 14.7 14.8

Noçõesgerais ............................................................................................................................. Atos inexistentes......................................................................................................................... Nulidades absolutas................................................................................................................... Nulidades relativas..................................................................................................................... Princípios refoivos ãs nulidades.............................................................................................. 14.5.1 Princípio do prejuízo ou da instrumentalidade das formas.................... .......... 14.5.2 Principio da causalidade........................................................................................ 14.5.3 Princípio do interesse.............................................................................................. Nulidades cominadas no CPP................................................................................................... Convalidação dos atos processuais........................................................................................... Meios para alegar as nulidades..................................................

783 785 789 ''89 790 790 792 793 793 802 805

Capítulo 15 Recursos 15.1

Teoria geral dos recursos........................................................................................................... 15.1.1 Fundamento do direito ao recurso........................................................................ 15.1.2 Conceito e classificações......................................................................................... 15.1.3 Princípios relativos aos recursos........................................................................... 15.1.3.1 Taxatividade.............................................................................. 15.1.3.2 Unirrecorribilidade das decisões...................................................... 15.1.3.3 Fungibilidade recursal....................................................................... 15.1.3.4 Dialeticidade........................................................................................ 15.1.3.5 Disponibilidade................................................................................... 15.1.3.6 Irrecorribilidade das decisões interlocutõrias................................ 15.1.3.7 Personalidade dos recursos e proibição de reformatio in pejus. .. 15.1.4 Efeitos dos recursos.................................................................................................. 15.1.4.1 Efeito devolutivo................................................................................. 15.1.4.2 Efeito suspensivo................................................................................ 15.1.4.3 Efeito regressivo ou iterativo............................................................ 15.1.4.4 Efeito extensivo................................................................................... 15.1.5 Juízo de admissibilidade ejuízo de mérito...........................................................

809 809 810 811 811 811 811 815 815 816 816 819 819 820 821 822 822

28

15.2

15.3

15.4

15.5

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15.1.5.1 Juízo de admissibilidade.................................................................... 15.1.5.2 Juízodemérito................................................................................... 15.1.6 Requisitos de admissibilidade............................................................................. 15.1.6.1 Cabimento ............................................................................. 15.1.6.2 Tempestividade................................................................................... 15.1.6.3 Regularidade procedimental............................................................. 15.1.6.4 Ausência de fato impeditivo ou extintivo........................................ 15.1.6.4.1 Fatos impeditivos...................................................... 15.1.6.4.2 Fatos extintivos......................................................... 15.1.6.5 Ugitimidade........................................................................................ 15.1.6.6 Interesse............................................................................................... Apelação..................................................................................................................................... 15.2.1 Noçõesgerais.......................................................................................................... 15.2.2 Requisitos de admissibilidade.............................................................................. 15.2.2.1 Cabimento - CPP. art. 593................................................................. 15.2.2.2 Tempestividade................................................................................... 15.2.2.3 Regularidade procedimental............................................................. 15.2.2.4 Ausência de fato impeditivo ou extintivo........................................ 15.2.2.5 Legitimidade........................................................................................ 15.2.2.6 Interesse................................................................................................ 15.2.3 Procedimento.......................................................................................................... 15.2.4 Efeitos da apelação.................................................................................................. Recurso em sentido estrito....................................................................................................... 15.3.1 Noçõesgerais.......................................................................................................... 15.3.2 Requisitos de admissibilidade............................................................................... 15.3.2.1 Cabimento-CPP, art. 581.................................................................. 15.3.2.2 Tempestividade................................................................................... 15.3.2.3 Regularidade procedimental.............................................................. 15.3.2.4 Ausência de fato impeditivo ou extintivo........................................ 15.3.2.5 Legitimidade........................................................................................ 15.3.2.6 Interesse................................................................................................ 15.3.3 Procedimento......................................................................................................... 15.3.4 Efeitos do recurso em sentido estrito................................................................... Embargos de declaração............................................................................................................ 15.4.1 Noçõesgerais......................................................................................................... 15.4.2 Requisitos de admissibilidade ;................................................................. 15.4.2.1 Cabimento............................................................................................ 15.4.2.2 Tempestividade.................................................................................... 15.4.2.3 Regularidade procedimental............................................................ 15.4.2.4 Legitimidade e interesse................................................................... 15.4.3 Procedimento........................................................................................................... 15.4.4 Efeitos dos embargos de declaração...................................................................... 15.4.5 Suspensão ou interrupção do prazo de outros recursos................................... 15.4.6 Julgamento dos embargos de declaração............................................................ Embargos infringentes e de nulidades..................................................................................... 15.5.1 Noçõesgerais..................................................................... 15.5.2 Requisitos de admissibilidade......................................'....................................... 15.5.2.1 Cabimento (CPP, art. 609, parágrafo único).................................... 15.5.2.2 Tempestividade.................................................................................... 15.5.2.3 Regularidade procedimental............................................................. 15.5.2.4 Legitimidade e interesse..................................................................... 15.5.3 Procedimento........................................................................................................... 15.5.4 Efeitos dos embargos infringentes........................................................................

822 824 825 825 825 827 828 828 831 833 834 836 836 836 836 840 841 842 843 844 844 844 845 845 846 846 852 853 854 854 855 855 856 857 857 857 857 859 859 859 860 860 861 862 863 863 863 863 864 865 866 866 866

Sumário

29

Carta testemunhável................................................................................................................. 15.6.1 1 Noçõesgerais......................................................................................................... 15.6.2 ' Requisitos de admissibilidade............................................................................. 15.6.2.1 Cabimento.......................................................................................... 15.6.2.2 Tempestividade.................................................................................. 15.6.3 Procedimento.......................................................................................................... 15.6.4 Efeitos da carta testemunhável............................................................................ 15.7 Correição parcial........................................................................................................................ 15.7.1 Noçõesgerais.......................................................................................................... 15.7.2 Requisitos de admissibilidade.............................................................................. 15.7.2.1 Cabimento.......................................................................................... 15.7.2.2 Tempestividade.................................................................................. 15.7.3 Procedimento.......................................................................................................... 15.7.4 Efeitos da correição parcial................................................................................... 15.8 Recursos especial e extraordinário........................................................................................... 15.8.1 Noçõesgerais.......................................................................................................... 15.8.2 Pressupostos de admissibilidade dos recursos.................................................... 15.8.2.1 Cabimento.......................................................................................... 15.8.2.1.1 Questões comuns....................................................... 15.8.2.1.2 Hipóteses de cabimento do recurso extraordinário 15.8.2.1.3 Hipóteses de cabimento do recurso especial 15.8.2.2 Tempestividade................................................................................... 15.8.2.3 Ausência de fato impeditivo ou extintivo....................................... 15.8.2.4 Legitimidade....................................................................................... 15.8.2.5 Interesse............................................................................................... 15.8.3 Procedimento........................................................................................................... 15.8.4 Os recursos repetitivos no STF e no STJ ............................................................. 15.8.5 Efeitos dos recursos especial e extraordinário.................................................... 15.9 Agravo contra decisão denegatória de recursos especial e extraordinário.......................... 15.9.1 Noçõesgerais........................................................................................................... 15.9.2 A Lei 12.322/2010 e o novo agravo...................................................................... 15.9.3 Requisitos de admissibilidade............................................................................... 15.9.3.1 Cabimento............................................. 15.9.3.2 Tempestividade................................................................................... 15.9.4 Procedimento........................................................................................................... 15.9.5 Efeitos do agravo.................................................................................................... 15.10 Agravo em execução.................................................................................................................. 15.10.1 Noçõesgerais.................................................. 15.10.2 Requisitos de admissibilidade................................................................................ 15.10.2.1 Cabimento................................................................................ ...i..... 15.10.2.2 Tempestividade................................................................................... 15.10.2.3 Legitimidade e interesse..................................................................... 15.10.3 Procedimento............................................................... :......................................... 15.10.4 Efeitos do agravo em execução..............................................................................

867 867

15.6

16.1 16.2 16.3 16.4

Capitulo 16 Habeas corpus Natureza jurídica........................................................................................................................ Notícias históricas...................................................................................................................... Tutela jurisdicional.................................................................................................................... Condições da ação...................................................................................................................... 16.4.1 Possibilidade jurídica do pedido...........................................................................

868 868 868

869 869 870 870 870 870 872 872 873 873 873 874 874 874 877 881 883 883 884 884 885 886

890 892 892 892 895 895 895 896 897 898 898 898 898 898 899 899 899

903 903 904 905 905

30

P ro cesso P en a l

16.4.2 16.4.3

16.5 16.6 16.7 16.8

Interesse de agir.................................................................................................... Legitimidade.......................................................................................................... 16.4.3.1 Legitimados ativos........................................................................... 16.4.3.2 Legitimado passivo.......................................................................... Pressupostos processuais...................................................................................... Competência............................................................................................................................. Procedimento............................................................................................................................ Ônus da prova...........................................................................................................................

906 910 910 912 913 915 916 918

Capítulo 17 Revisão criminal 17.1 17.2

17.3 17.4 17.5 17.6 17.7 17.8

Noçõesgerais............................................................................................................................ Condições da ação..................................................................................................................... 17.2.1 Possibilidade jundica do pedido........................................................................ 17.2.2 Interesse de agir.................................................................................................... 17.2.3 Legitimidade.......................................................................................................... Pressupostos processuais......................................................................................................... Procedimento.................................... Ônus da prova........................................................................................................................... Efeitos da sentença absolutória............................................................................................... Coisa julgada............................................................................................................................ Indenização pelo erro judiciário..............................................................................................

923 925 925 929 930 930 931 932 933 934 934

Capitulo 18 Medidas cautelares 18.1

Teoria geral da tutela cautelar processual penal.................................................................. 18.1.1 Espécies de medidas cautelares........................................................................... 18.1.2 Caracteristicas das tutelas cautelares................................................................... 18.1.2.1 Instrumentalidade hipotética.......................................................... 18.1.2.2 Acessoriedade.................................................................................... 18.1.2.3 Preventividade................................................................................... 18.1.2.4 Provisoriedade................................................................................... 18.1.2.5 Cognição sumária............................................................................. 18.1.2.6 Referibilidade..................................................................................... 18.1.2.7 Proporcionalidade.............................................................................. 18.1.3 Legalidade das medidas cautelares penais.......................................................... 18.1.4 Processo cautelar e medidas cautelares penais................................................... 18.1.5 Tutela cautelar e a impossibilidade de antecipação de tutela no processo penal...................................................................................................................... 18.2 Medidas cautelares pessoais..................................................................................................... 18.2.1 Características das medidas cautelares pessoais................................................ 18.2.1.1 Necessidade e adequação das medidas cautelares.......................... 18.2.1.2 A proporcionalidade da prisão preventiva: pena provável a ser aplicada............................................................................................. 18.2.1.3 Contraditoriedade.............................................................................. 18.2.1.4 Excepcionalidade da prisão preventiva ........................................ 18.2.1.5 Cumulatividade................................................................................. 18.2.2 Prisão em Qagrante................................................................................................. 18.2.2.1 Conceito e finalidade........................................................................ 18.2.2.2 Classificação....................................................................................... 18.2.2.3 Situação de flagrante.......................................................................... 18.2.2.4 Situações especiais.............................................................................

937 937 938 938 939 939 940 941 943 944 944 947 948 951 953 953 956 959 960 960 961 961 961 962 963

Sumário 18.2.2.5 18.2.2.6

18.2.3

18.2.4

18.2.5

Formalidades do auto de prisão em flagrante delito ......................... Infração cometida na presença de autoridade ou contra autorida­ de............................................................................................................. 18.2.2.7 Comunicação da prisão em flagrante e sua apreciação judicial ... Prisão preventiva....................................................................................................... 18.2.3.1 Momento para decretação..................................................................... 18.2.3.2 Legitimidade para requerer a prisão .................................................... 18.2.3.3 Legitimidade para decretar a prisão...................................................... 18.2.3.4 Pressupostos positivos para a decretação da prisão preventiva.... 18.2.3.5 Pressupostos negativos para a decretação da prisão preventiva... 18.2.3.6 Requisitos positivos da prisão preventiva............................................ 18.2.3.6.1 Garantia da ordem pública............................................. 18.2.3.6.2 Garantia da ordem econômica ..................................... 18.2.3.6.3 Conveniência da instrução criminal............................ 18.2.3.6.4 Assegurar a aplicação da lei penal................................ 18.2.3.6.5 A nova situação de periculum libertatis: o descumprimento de medida cautelar alternativa à prisão .. 18.2.3.7 Hipóteses de cabimento da decretação da prisão preventiva 18.2.3.7.1 A proporcionalidade com a pena provável a ser aplicada........................................................................... 18.2.3.8 Necessidade de fundamentação............................................................ 18.2.3.9 Prisão domiciliar..................................................................................... 18.2.3.10 Revogação da prisão preventiva............................................................ Prisão temporária........................................................................................................ 18.2.4.1 Hipóteses de cabimento......................................................................... 18.2.4.2 Momentos para a decretação da prisão temporária............................. 18.2.4.3 Legitimados para requerer a prisão temporária.................................. 18.2.4.4 Prazo e término da prisão temporária................................................... 18.2.4.5 Fundamentação da decretação da prisão temporária.......................... Medidas cautelares alternativas à prisão................................................................... 18.2.5.1 Novas medidas alternativas à prisão preventiva.................................. 18.2.5.2 Natureza: as novas medidas alternativas à prisão são medidas cautelares?............................................................................................. 18.2.5.3 Pressuposto, requisitos e hipóteses de cabimento das medidas alternativas à prisão........................................................................... 18.2.5.4 Características: preferibilidade e cumulatividade............................... 18.2.5.5 Variabilidade das medidas cautelares alternativas à prisão 18.2.5.6 Taxatividade das medidas alternativas à prisão ou poder geral de cautela?.............................................................................................. 18.2.5.7 Medidas em espécie................................................................................. 18.2.5.7.1 Comparecimento periódico a juízo.............................. 18.2.5.7.2 Proibição de acesso ou frequência a determinados lugares............................................................................ 18.2.5.7.3 Proibição de contato com pessoa determinada 18.2.5.7.4 Proibição de ausentar-se da comarca............................ 18.2.5.7.5 Recolhimento domiciliar noturno............................... 18.2.5.7.6 Suspensão de função pública ou atividade econômica ou financeira................................................................... 18.2.5.7.7 Internação provisória do acusado inimputável ou semi-imputável.............................................................. 18.2.5.7.8 Fiança...............................................................................

31 965 968 969 971 972 973 974 974 975 977 977 981 982 983 984 986 988 989 992 993 994 995 996 997 997 998 999 999 1000 1001

1004 1005 1007 1009 1009 1011

1013 1015 1017 1018 1024 1026

32

P r o c e s s o P en a l

18.2.5.7.8.1 18.2.5.7.8.2 18.2.5.7.8.3 18.2.5.7.8.4 18.2.5.7.8.5 18.2.5.7.8.6

18.3

Cabimento e os crimes inafiançáveis........................ Cabimento e hipóteses de inafiançabilidade Legitimidade para conceder a fiança......................... Valor da fiança............................................................. Destino dos bens dados em fiança..'........................... Vicissitudes da fiança: cassação, reforço, quebra e perda............................................................................ 18.2.5.7.9 Monitoração eletrônica............................................... 18.2.5.7.10 Proibição de ausentar-se do país................................ 18.2.6 Liberdade provisória.............................................................................................. 18.2.6.1 Noçõesgerais........................................................................................ 18.2.6.2 Naturezajuridica.................................................................................. 18.2.6.3 Vedação da Uberdade provisória.......................................................... 18.2.6.4 Classificação.......................................................................................... 18.2.6.5 Momento............................................................................................... 18.2.6.6 Concessão da Uberdade provisória..................................................... 18.2.6.7 Liberdade provisória no caso de excludente de ilicitude 18.2.6.8 Libertiade provisória no caso do acusado “pobre"............................ 18.2.6.9 Liberdade provisória mediante fiança................................................ Medidas cautelares patrimoniais............................................................................................... 18.3.1 Sequestro................................................................................................................. 18.3.1.1 Sequestro de bens imóveis.................................................................... 18.3.1.1.1 Objeto............................................................................ 18.3.1.1.2 Requisito....................................................................... 18.3.1.1.3 Legitimados.................................................................. 18.3.1.1.4 Momento....................................................................... 18.3.1.1.5 Finalidade...................................................................... 18.3.1.1.6 Levantamento............................................................... 18.3.1.1.7 Influência do resultado do processo condenatório. 18.3.1.2 Sequestro de bens móveis..................................................................... 18.3.1.3 Meios de defesa contra o sequestro de b e n s...................................... 18.3.1.5 Sequestro subsidiãrio do art. 91, § 2°, do Código Penal.................. 18.3.1.6 Sequestro do Decreto-lei n° 3.240/1941: divergência sobre sua revogação............................................................................................... 18.3 .2 Especialização e registro da hipoteca legal.......................................................... 18.3.2.1 Objeto..................................................................................................... 18.3.2.2 Requisito................................................................................................. 18.3.2.3 Legitimados........................................................................................... 18.3.2.4 Momento................................................................................................ 18.3.2.5 Procedimento................................................................ 18.3.2.6 Finalidade....................................................................... 18.3.3 Arresto prévio à especialização e registro da hipoteca legal............................... 18.3.4 Arresto subsidiário de bens móveis...................................................................... 18.3.5 Da alienação antecipada.......................................................................................... 18.3.5.1 Finalidade e hipótese de cabimento.................................................... 18.3.5.2 Procedimento.........................................................................................

Referências Bibliográficas........................................................................................................................

1027 1031 1032 1033 1034 1035 1038 1040 1041 1041 1042 1042 1044 1044 1044 1045 1046 1047 1047 1049 1049 1049 1050 1050 1051 1051 1052 1053 1054 1055 1059 1062 1064 1065 1065 1065 1065

1068 1069 1071 1071 1072 1081

Capítulo 1 Garantias processuais e o sistema acusatório 1.1 Princípios processuais penais Princípio é o mandamento nuclear de um sistema. O princípio é a regra fundante que, normalmente, está fora do próprio sistema por ele regido.‘ A Constituição da República (CR) foi pródiga em estabelecer uma série de prin­ cípios do processo e, em especial, do processo penal. Esse corpo principiológico da CR representa o modelo constitucional de processo brasileiro, podendo-se falar em um “devido processo constitucional”.^ As diversas garantias constitucionais, embora tenham operacionalidade em si e isoladamente, ganham força quando atuam de forma coordenada e integradamente, constituindo um sistema ou um modelo de garantias processuais.^

1.2 A convenção americana de direitos humanos e as garantias processuais“* No contexto de funcionamento integrado e complementar das garantias proces­ suais, devem ser incluídas como inerentes ao modelo processual penal brasileiro as 1. Há uma tendência em exagerar na enunciação dos princípios, considerando meras regras concretas como se princípios fossem. Nesse sentido, Tucci (Teoria geral..., p. 224-226). O autor, partindo da premissa de que princípio, em sentido técnico-científico, trata-se de “uma proposição constitutiva de ponto de partida de um sistema”, sendo a “regra maior que o inspira, servindo-lhe de fundamento, e da qual são emanadas todas as outras nor­ mas ou regras gerais ou particulares, interativa de um sistema”, conclui que só pode haver um princípio em cada sistema. E, no caso do processo penal, esse princípio é o princípio publicístico, que se expressa por (rês regras genéricas: (1) a regra da oficialidade; (2) a regra dajudiciariedade; (3) a regra d a verdade material ou atingível. 2. Pedro Bertolino (El detido..., p. 20-21) refere-se ao devido processo penal como a “especificidad penal de la garantia constitucional dei ‘debido proceso'”. Entre nós, a expressão também é utilizada por Tucci (Direitos e garantias..., p. 67); Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 46). 3. Ressalte-se, desde já, não serão tratados como princípios determinados temas que, embora parte da doutrina os considere como tais, uata-se de regras concretas do sistema, que serão analisadas no momento do estudo dos institutos correlatos. Assim, por exemplo, a análise do chamado “princípio da verdade material" será feita na teoria geral da prova (item 10 . 1 . 2 ). O mesmo se diga em relação ao “princípio da persuasão racional ou livre convencimento” (item lO .l .l l ) . 4. A análise que segue tem por base o estudo da matéria constante de Lopesjr. e Badaró (Direito 00 processo..., p. 23-29).

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P ro cesso P enal

garantias constantes da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que, em seu art. 8.°, prevê as garantias judiciais: “Art. 8.1 Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Art. 8.2 Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabele­ cido pela lei; 0 direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter 0 comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoasque possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. Art. 8.3 A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. Art. 8.4 O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. Art. 8.5 O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.” Além das garantias judiciais, convém ser lembrada, ainda, a proteção da liberdade de locomoção (art. 7.“), inclusive com a previsão de que: “Art. 7.4 Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela. Art. 7.5 Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável ou sef posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. Art. 7.6 Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos

Carantiãs processuais e o sistema acusatório

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Estados-Partes cujas leis preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.” Destaque-se, também, que o art. 10 assegura o direito à indenização; “Toda pessoa tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em sentença passada em julgado, por erro judiciário.” A CADH somente entrou em vigor internacionalmente no dia 18.07.1978. Con­ tudo, para o ordenamento brasileiro, a Convenção entrou em vigor em 25.09.1992, por meio do Decreto 678/1992. Um ponto, contudo, não pode ser ignorado. Desde a Constituição de 1988, o relacionamento dos tratados com o direito interno ganhou colorido especial, no caso de tratados sobre direitos humanos. O art. 5.“, § 2.°, estabelece que; “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decor­ rentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Em razão de tal dispositivo, defendia-se que os tratados que tiverem por objeto direitos e garantias individuais seriam equiparados às normas constitucionais, tendo o mesmo status hierárquico.’ A questão, porém, suscitava controvérsias, havendo divergências sobre a hierarquia da CADH em face das leis internas. Mesmo diante da equiparação explícita do art. 5.°, § 2.°, havia corrente que propugna pela equivalência das normas dos tratados sobre direitos fundamentais com as leis ordinárias, negan­ do-lhes hierarquia constitucional.® A discussão reacendeu com o § 3.° do art. 5.” da Constituição, acrescido pela Emenda Constitucional 45; Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tumos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 3. Nesse sentido; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 72; Gomes Filho, O principio..., p. 34; Id., Direito d prova..., p. 82-83; Cançado Trindade, A proteção..., p. 186; Piovesan, A incorporação..., p. 160; Leão, Direitos fundamentais..., p. 134; e Steiner, A Convenção..., p. 90. 6 . Nesse sentido; Rezek, Direito..., p. 103; Ferreira Filho, Direitos humãnos..., p. 99; Moraes, Direitos humanos..., p. 295. A consequência desse posicionamento, que era majoritário na doutrina, era considerar haver um “sistema de paridade”, segundo o qual o tratado e a lei eram equivalentes e, embora distintos, conviviam em igual hierarquia. A principal consequência da adoção de tal sistema é que, com a incorporação de um tratado, suas normas revogam as leis internas anteriores, que com elas sejam incompatíveis. Por outro lado, a edição de uma lei posterior que se oponha ao texto da norma internacional suspende sua vigência. Aplica-se, portanto, o princípio lex posterior derrogat priori, tomando, para tanto, desnecessária a prévia denúncia do tratado. Em consequência, editada uma lei incompatível com o tratado, ela deverá prevalecer, por representar a última palavra do Congresso Nacional.

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Basicamente, estabeleceu-se que, se o decreto legislativo do Congresso Nacional, que referenda o texto do tratado, for aprovado pelo quorum e forma de votação das emendas constitucionais (CR, art. 60, § 2 ° ) , o tratado terá status constitucional. Isso não significou, porém, que todos os tratados de direitos humanos, anteriores à vigência do § 3.“ do art. 5.", passaram a ter natureza de lei ordinária. Como bem explica Piovesan: “[...] há que se afastar o equivocado entendi­ mento de que, em face do § 3.° do art. 5 ° , todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quorum qualificado de três quintos demandado pelo aludido parágrafo. Reitere-se que, por força do art. 5.°, § 2.°, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais. A leitura sistemá­ tica dos dispositivos aponta que o quorum qualificado está tão somente a reforçar tal natureza constitucional, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados." E conclui:“Vale dizer, com o advento do § 3.“ do art. 5.“ surgem duas categorias de tratados de direitos humanos; a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do § 2.“ do art. 5.°. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do § 3.“ do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.”^ Em suma, a CADH, diante do disposto nos §§ 2.“ e 3.° do art. 5.° da Constituição, tem natureza materialmente constitucional, embora formalmente suas normas não sejam constitucionais, por não terem sido aprovadas pelo quorum previsto para as emendas constitucionais. De qualquer forma, do ponto de vista do conflito de normas, é de destacar que toda e qualquer norma infraconstitucional que esteja em confronto com a CADH será destituída de eficãcia, posto que “inconstitucional", ou melhor, incompatível com norma de hierarquia superior. Tal posicionamento, contudo, não havia ecoado na j urisprudência. Os tribunais não se preocupavam em distingu ir os tra­ tados de direitos humanos dos outros tratados internacionais, e seguiam um caminho intermediário, pois não se filiaram à tese da supremacia dos tratados internacionais, mas também não adotaram a primazia do direito interno. Prevalecia, pois, o sistema paritãrio, pelo qual tratado e lei são equivalentes e, embora distintos, convivem dentro de igual hierarquia. Ou seja, o tratado revogava as leis internas anteriores que com ele sejam incompatíveis e, por outro lado, a lei posterior incompatível com o tratado internacional suspendia sua vigência.® 7. Piovesan, Tratados internacionais..., p. 9. 8 . Esta foi a posição adotada pelo STF no julgamento do RE 80.004/SE (RTJ 83/809), especial­

mente no voto do Min. Cunha Peixoto (RTJ 83/817). Destaque-se, porém, o voto vencido do Min. Xavier de Albuquerque, afirmando o primado do direito internacional sobre o direito intemo (RTJ 83/813).

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Especificamente no que diz respeito à CADH, a jurisprudência do STF sempre foi no sentido de negar status constitucional às normas de tratados internacionais de direitos humanos.® Todavia, em 2006 houve significativa mudança pelo Plenário do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343/SP,*'’ em que se decidiu “tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal”. Consequência desse posicionamento é que se tomou inaplicável a le­ gislação infraconstitucional, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de Sanjosé da Costa Rica.‘* Em suma, deste relevantíssimo precedente extrai-se uma mudança no posiciona­ mento do STF, que passou a considerar que a CADH tem natureza supralegal (posição 9. STF HC 72.13 l/RJ e MC na ADln 1.480. Há, contudo, posições favoráveis à hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, nos termos do art. 5.", § 2.°, da CF/1988. Nesse sentido, cf. o voto do Min. Carlos Velloso, no “caso Ellwanger" (HC 82.424/RS). De outro lado, merece destaque, também, a posição pela hierarquia supralegal, mas infra­ constitucional, dos tratados de direitos humanos, defendida pelo Min. Sepulveda Pertence (RHC 79.785/RJ). 10. STF, Pleno, RE 466.343/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, j. 22.11.2006. 11. No que toca ao ponto de interesse para a questão em análise, merece destaque o seguinte passo do voto do Min. Gilmar Mendes; “A premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos intemo e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às reali­ dades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. Como enfatiza Cançado Trindade ‘A tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central’ (Cançado Trindade, Antonio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editores, 2003, p. 515]. Portanto, diante do inequívoco ca­ ráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante". Destaque-se, ainda, que no julgamento do mencionado RE 466.343/SP, o Min. Celso de Mello avança em relação à posição do Min. Gilmar Mendes, no que respeita à atribuição de status supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, afirmando terem estes hierarquia constitucional. No ponto, destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados: (1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CR de 1988, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2." do art. 5." da CR; (2) os que vierem a ser celebrados por nosso Pais (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3.° do art. 5.° da CF; (3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais o Brasil aderiu) entre a promulgação da CR de 1988 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade.

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do Ministro Gilmar Mendes) ou materialmente constitucional (posição do Ministro Celso de Mello)3^ De qualquer forma, e este é o ponto relevante, as leis ordinãrias, anteriores ou posteriores à CADH, que com ela colidirem, não terão eficácia jurídica. Em termos práticos, qualquer norma infraconstitucional que conflite com as garantias da Convenção Americana de Direitos Humanos, anterior ou posterior à promulgação de tal tratado, não mais poderá ter aplicação.

1.3 Garantia do juiz independente e imparcial Já proclamava Calamandrei que “sem independência dos juizes não é possível justiça”. A independência, portanto, “está na própria essência do Poderjudiciário”.*'' Na atuação concreta do julgador, a independência judicial tem sido definida como a sujeição do juiz somente à lei e à Constituição.'’ Mesmo nos sistemas que assim não o preveem, a submissão do juiz somente à lei decorre da própria separação de poderes. As declarações e tratados internacionais de direitos humanos, de uma forma geral, relacionam duas características, assegurando a todos os acusados o direito de serem julgados por um tribunal independente e imparcial.'® A CR não garante, expressamente, o princípio da independência e da imparciali­ dade do juiz. Prevê, contudo, uma série de prerrogativas para assegurar a independên­ cia dos juizes (CR, art. 95, caput):'^ vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos são o “penhor de independência dos juizes".'® De outro lado, para garantir o julgamento por um juiz imparcial, estabelece vedações aos magistrados (CR, art. 95, parágrafo único). Além disso, assegura que as partes sejam processadas e julgadas pelo juiz natural (CR, art. 5.”, XXXVII e LIII). É tradicional a distinção entre independência externa e independência interna da magistratura. A primeira é a independência do Poder Judiciário como ura todo, ante os demais poderes do Estado, tendo apoio no próprio princípio da divisão dos poderes do Estado. Já a independência interna, situada no âmbito do próprio Poder 12. Nesse sentido, Francisco Rezek (Direito internacional.., p. 104): “uma última dúvida diz respeito ao passado, a algum eventual direito que um dia se tenha descrito em tratado que o Brasil seja parte - e que já não se encontre no rol do art. 5.°. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo a Emenda constitucional 45, de 30.12.2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou ã categoria de tratados de nível constitucional". 13. Calamandrei, Govemo e magistratura..., p. 198. 14. Frederico Marques, Instituições..., p. 180. 15. Nesse sentido; Binder, Introdução..., p. 249; Canotilho, Direito constitucional.., p. 664. 16. DUDH, art. 10; PIDCP, art. 14.1; CADH, art. 8.1. 17. Para uma análise de tais garantias, cf. Dinamarco, Instituições..., v. 1, p. 410-413. 18. Tomaghi, Instituições..., v. 2, p. 80. 19. Couture, Estúdios..., p. 8 8 .

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Judiciário, é a independência de cada um dos juizes perante os demais órgãos do próprio poder a que pertencem. A independência externa, embora norm alm ente seja considerada em relação ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo, tam bém precisa ser analisada em face de outros m ecanism os não estatais, com grande poder econ ôm ico ou social, em especial a imprensa. M uitos juizes temem a influência da mídia sobre o s fatos que julgam e sobre suas decisões.“ Não é inçom um que a mídia se transforme em um espaço para “julgam entos paralelos” que podem co lo car em risco a serenidade do julgador, uma vez que os resultados de tais julgam en tos sejam assimilados pela opinião pública, a partir da opinião publicada nos m eios de com unicação. Quanto à independência interna, ainda que do ponto de vista da organização judiciãria os tribunais sejam considerados órgãos hierarquicamente superiores aos juizes de primeiro grau, trata-se de uma hierarquia de derrogação (pela possibilidade da reforma da decisão do juiz inferior), e não de uma hierarquia de mando^^ (que sig­ nificaria a possibilidade de o tribunal determinar como o juiz deveria julgar). Assim, os juizes de primeiro grau devem ser livres e independentes para julgar somente de acordo com o que determina a lei, segundo a interpretação dada pelo próprio magis­ trado. Por óbvio, a sua decisão poderã ser revista e alterada, em caso de recurso, por um tribunal “superior”. Contudo, o juiz continua independente para decidir, ainda que contrariamente ao posicionamento do tribunal. No quadro atual, em termos de independência, o grande problema do Poder Judiciário não é assegurar sua independência externa, mas a interna.“ É necessária a independência de cada juiz perante os órgãos de administração da magistratura, isto é, a independência do juiz individualmente considerado em relação a outros sujeitos pertencentes à organização do Poder Judiciãrio, que possam se encontrar em uma situação de supremacia,“ por exemplo, os integrantes dos órgãos de governo do Poderjudiciário. Embora os conceitos de independência e imparcialidade não se confundam, é inegável que independência judicial é condição necessária (embora não suficiente) 20. Nesse sentido: Grinover, A independência do juiz..., p. 53. Na doutrina estrangeira: Trocker, Svolgimenti giurisprudenziali..., p. 222; Cappelletti e Vigoritti, I diritti costiluzionali..., p. 619; Maier, Derecho Procesal..., t. II, p. 499. 21. Além das hipóteses em que há clara influência, com discussões abertas sobre o conteúdo e os possíveis resultados de processos que despertam maior atenção do público, há, também, outras situações de perigo. Como lembram Cappelletti e Vigoritti (I diritti costituzionali..., p. 619), há tentativas de influência que não são sempre abertas e clamorosas, mas sutis e dificilmente perceptíveis e, justamente por isso, particularmente perigosas e não facilmente evitáveis. 22. Frederico Marques, Manual..., v. 1, p. 108. 23. Pizzorusso, Lorganizzasione..., p. 24. 24. Tranchina, I Soggetti..., v. 1, p. 58.

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para que por esta se possa manifestar a imparcialidade.^’ Justamente por isso tais garantias não podem ser vistas como “privilégios ou favorecimentos a uma casta de preferidos”/^ mas como meio de oferecer ao jurisdicionado e, no caso do processo penal, ao acusado uma prestação jurisdicional realizada por agentes imparciais. A Constituição não assegura, expressamente, o direito a um ju iz imparcial. Mesmo assim, é inegável que a imparcialidade é conditio sine qua non de qualquer ju iz, sendo, pois, uma garantia constitucional im p líc ita .A palavra juiz não se compreende sem o qualificativo de imparcial.“ Não seria exagerado afirmar que um juiz parcial é uma contradição em termos. Aliás, a ideia de jurisdição está indissociavelmente ligada à de juiz imparcial, na medida em que, se o processo é um meio de heterocomposição de conflitos, é fundamental que o terceiro, no caso, o juiz, seja imparcial, isto é, não parte.“ Entretanto, o que é ser um juiz imparcial? Ou talvez fosse melhor formular uma pergunta menos pretensiosa:“ o que não toma o juiz parcial? Se não é possível sa­ ber, exatamente, o que é ser um juiz imparcial, é possível, por outro lado, identificar situações que permitem temer ou suspeitar pela parcialidade do julgador.’ * Cabe ao legislador, na medida do possível, prever estas hipóteses e vedá-las (por exemplo, casos de impedimento e suspeição do juiz) ou, no mínimo, criar condições para que não possam operar. Além disso, é inegável que há diferenças impossíveis de serem eliminadas de um julgador para outro. Essas diferenças, fmtos da história de vida, das concepções políticas, do contexto social e histórico em que vive cada magistrado, irão refletir na forma como interpretam a lei.” Se os juizes assumem esses pré-juízos provenientes de sua realidade histórica e de sua visão de mundo, não há como considerá-los, na acepção pura da palavra, imparciais.” 25. 26. 27. 28. 29. 30.

Liebman, Manuale..., p. 9. Dinamarco, Instituições..., v. 1, p. 409. Grau, Ensaio e discurso..., p. 144. Maier, Derecho..., t. 1, p. 739. Marques da Silva, Curso..., v. 1, p. 52-53. Lembra Maier (Derecho..., 1.1, p. 741) do Nollite iudicare (Não julgueis!), atribuído a Cristo, como “demonstração de que a palavra justiça, como toda obra humana, é tão somente uma utopia, uma bela utopia, isto é, um ideal que preside a atividade dos juizes, mas que não suporta a petulância com que nós, os juristas, e, em especial, a mesma prática judicial, a ela se refere”.

31. Como observa Ladrón de Guevara (El Ju ez ordirmrio..., p. 69), “a lei não exclui o juiz porque é parcial, mas porque pode temer que o seja". 32. Justamente por isso, explica Romboli (II giudice naturale..., p. 130): “o juiz, ao interpretar a regra abstrata prevista na lei para aplicá-la ao caso concreto, não opera como um aplicadot mecânico da lei, mas realiza juízos de valor que o levam a escolher uma ou outra das interpretações possíveis e sobre as quais não pode deixar de influir a posição política geral, a ‘visão de mundo’ própria de cada magistrado”. 33. Maier, Derecho..., t. I, p. 741.

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Os juizes não são - e nunca foram - porta-vozes inanimados ou a bouche de la loi, como preteiidia Montesquieu.®'* Esse juiz não existe! Teria que ser um juiz marginali­ zado da sociedade, por alguns chamado de “juiz asséptico”, que, “quando se apresenta a julgar, deve atuar como um eunuco político, econômico e social, e se desinteressar do mundo fora do tribunal”.®’ Ao contrário, hã um inegável pluralismo político e ideológico no interior da magistratura, que nada mais é do que o reflexo do próprio pluralismo existente na sociedade. Nem mesmo, pois, uma neutralidade política dos juizes pode ser sustentada atualmente, ademais de irrealizável.®® O juiz não pode ser neutro e indiferente ao mundo dos valores.®^ Melhor que a ficção de um “apoliticismo” judicial é a transparência das decisões, com explícita motivação das razões de decidir.®* Além disso, será necessário que os juizes, conscientes da impossibilidade de serem neutros, se abstenham de julgar, reconhecendo-se impedidos ou suspeitos, todas as vezes que seus pré-juízos ou pré-conceitos coloquem em risco sua condição de terceiro equidistante das partes. Embora a imparcialidade seja um atributo eminentemente subjetivo, dizendo respeito ã pessoa do julgador e ao seu posicionamento psíquico em relação ao objeto do processo e às partes, a partir do julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), ganhou espaço na doutrina a dis­ tinção entre imparcialidade objetiva e imparcialidade subjetiva. As linhas gerais de tal distinção podem ser extraídas do seguinte passo da sentença, relativamente ao direito a um tribunal imparcial; Se a imparcialidade se define ordinariamente pela ausência de pré-juízos ou parcialidades, sua existência pode ser apreciada, especialmente conforme o art. 6.1 da Convenção, de diversas maneiras. Pode se distinguir entre um aspecto subjetivo, que trata de verificar a convicção de um juiz determinado em um caso concreto, e um aspecto objetivo, isto é, se o juiz oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida razoável de sua imparcialidade.®® Nas situações concretas, são mais comuns os casos de comprometimento do aspecto objetivo da imparcialidade. A imparcialidade do ju iz resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento. Novamente invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, decidiu que, no tocante ao direito a um tribunal imparcial, “todo ju iz em relação ao qual possa haver razões legítimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar 34. Nobili (II giudice nella..., p. 87) afirma que esse juiz idealizado pelos iluministas certamente se trataria de uma “imagem grotesca e irreal do juiz". 33. Zaffaroni, Estructuros judidales..., p. 108. 36. Nesse sentido: Grau, O direito posto..., p. 297; Aury Lopes Jr., Direito..., v. 1, p. 403; Coutinho, O principio do juiz natural..., p. 16. 37. Nobili, 11 giudice nella..., p. 89. 38. Maier, Derecho..., 1.1, p. 750. 39. TEDH, Caso Piersack vs. Bélgica, sentença de 01.10.1982.

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o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”; e concluiu-, “é possível afirmar que o exercício prévio no processo de determinadas funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade” Em outro julgado, o Caso De Cubber vs. Bélgica, igualmente significativo, o Tribunal decidiu que; “[...] a prõpria direção, praticamente exclusiva, da instrução preparatória das ações penais empreendidas contra o requerente, o citado magistrado havia formado já nesta fase do processo, segundo toda verossimilhança, uma ideia sobre a culpabilidade daquele. Nestas condições, é legítimo temer que, quando começaram os debates, o magistrado não disporia de uma inteira liberdade de julgamento e não ofereceria, em conseqüência, as garantias de imparcialidade necessárias”.'" Desde o Caso Piersack vs. Bélgica e, sobretudo, no Caso De Cubber vs. Bélgica, já citados, passou-se a entender que a aparência de imparcialidade era comprometi­ da nos casos em que havia a intervenção prévia do julgador na fase de investigação, proferindo decisões em que se realizasse uma antecipação quanto ao mérito da causa. Em tais situações, o jurisdicionado e, principalmente, o acusado, poderia suspeitar legitimamente de que não seria julgado por um juiz ou tribunal imparcial.“'^ Posteriormente, contudo, esse posicionamento passou a sofrer uma importante matização. Com a sentença do Caso Hauschildt vs. Dinamarca, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos “inaugura uma nova etapa na forma de interpretar o direito ao juiz imparcial”.P a s s o u a considerar que não só a intervenção prévia do julgador na fase de investigação, mas, sobretudo, a natureza dos atos por ele praticados em tal fase, são relevantes para determinar se é fundada ou não a dúvida sobre a imparcialidade do julgador, que poderá ser comprometida em seu aspecto objetivo.“ Ou seja, ainda que se entenda que nem todas as decisões judiciais sobre atos de investigação ou que 40. TEDH, Caso Piersack vs. Bélgica, sentença de 01.10.1982. 41. TEDH. Caso De Cubber vs. Bélgica, sentença de 26.10.1984. 42. Segundo Aury Lopes jr. (Direito..., v. 1, p. 125): “atualmente, existe uma presunção absoluta de parcialidade do juiz-instrutor, que lhe impede de julgar o feito”. 43. A frase é de Esparza Leibar e Echeverría Guridi, Derecho a un proceso..., p. 208. 44. TEDH, Caso Hauschildt vs. Dinamarca, sentença de 24.05.1989. No caso, o TEDH analisou a natureza dos julgamentos realizados pelo Juiz Larsen, para determinar se era possível ou não duvidar legitimamente da sua imparcialidade. Para prorrogar as prisões cautelares do acusado, o juiz dinamarquês aplicou o art. 762.2 da Lei que exige a ocorrência de “sus­ peitas confirmadas” de que o acusado tenha cometido o crime a ele imputado. Segundo as explicações oficiais, a expressão “suspeitas confirmadas” quer dizer que o juiz deve estar convencido de que é “muito clara” a culpabilidade. Diante disso, o TEDH entendeu que “a diferença entre a questão que foi resolvida para aplicar o citado artigo e a que foi objeto do julgamento é muito pequena” e, consequentemente, “os temores do Senhor Hauschildt acerca da imparcialidade dos Tribunais podem ser considerados objetivamente justificados” (sentença de 24.05.1989, em especial, § 51). No mesmo sentido, posteriormente: TEDH, Caso Nortier vs. Países Baixos, sentença de 24.08.1993; Caso Saraiva de Carvalho vs. Portugal, sentença de 22.04.1994.

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autorizem medidas cautelares são aptas a comprometer a imparcialidade do julgador, é certo que, semo conteúdo de tais atos decisórios o juiz assumir um juízo positivo sobre a participação do investigado nos fatos criminosos, estará produzindo em seu espírito determinados pré-juízos sobre a culpabilidade do acusado que lhe impedirão de decidir, posteriormente, com total isenção e imparcialidade/’ Ainda que com variações e evoluções em sua jurisprudência, o relevante é que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos firmou posicionamento no sentido de que o juiz, em relação ao qual se possa temer legitimamente sua falta de imparcia­ lidade, perde a confiança que os Tribunais de uma sociedade democrática hão de inspirar em seus jurisdicionados - começando, no processo penal, pela confiança dos próprios acusados/’ Segundo a teoria da aparência geral de imparcialidade, para que a função juris­ dicional seja legitimamente exercida, não basta que o magistrado seja subjetivamente imparcial, mas é necessário também que a sociedade acredite que o julgamento se deu perante um juiz imparcial. Um julgamento que toda a sociedade acredite ter sido realizado por um juiz parcial será tão pernicioso e ilegítimo quanto um julga­ mento realizado perante um juiz intimamente comprometido com uma das partes. Consequentemente, tão importante quanto o juiz ser imparcial, é o juiz parecer ser imparcial. Se a sociedade não acredita que a justiça foi feita, porque ao acusado não foi assegurado um julgamento imparcial, o resultado de tal processo será ilegítimo e prejudicial ao Poder Judiciário. A sociedade não verá em tal sentença, pouco impor­ tando se absolutória ou condenatória, uma decisão justa. No caso Caso Delcourt vs. Bélgica, o TEDH utilizou a famosa expressão do direito inglês “justice must not only be done; it must also be seen to be done".''^ Tal posicionamento, como se verá, terá reflexos diretos sobre as hipóteses de impedimentos do juiz previstas no art. 252 do CPP.

1.4 Garantia do juiz natural A garantia do juiz natural foi prevista expressamente na Constituição de 1988, em seu duplo aspecto: positivamente, assegurando o direito ao juiz competente, e sob o enfoque negativo, pela vedação da criação de tribunais de exceção. O art. 5.°, XXXVII, estabelece que “não haveráju ízo ou tribunal de exceção". Por outro lado, o inc. 45. Para uma análise mais ampla do tema, cf. Badaró, Gustavo, Direito ao julgamento,.., p. 343-363. 46. Nesse sentido; TEDH, Caso Piersack vs. Bélgica, sentença de 01.10.1982; TEDH, Caso De Cubber vs. Bélgica, sentença de 26.10.1984; TEDH, Caso P fiefery Plankl vs. Áustria, sen­ tença de 25.02.1992; TEDH, Caso Sainte-Marie vs. França, sentença de 16.12.1992; TEDH, Caso Fey vs. Áustria, sentença de 24.02.1993; TEDH, Caso Padovani vs. Itália, sentença de 26.02.1993; TEDH, Caso Nortier vs. Países Baixos, sentença de 24.08.1993; TEDH, Caso Saraiva de Carvalho vs. Portugal, sentença de 22.04.1994. 47. TEDH, Caso Delcourt vs. Bélgica, sentença de 17.01.1970.

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LIII do mesmo art. 5.° assegura que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".^ A distinção fundamental entre a vedação dos tribunais de exceção (art. 5.°, XXXVII), de um lado, e o direito ao juiz competente predeterminado por lei (art. 5.°, LIII), de outro, é que a primeira diz respeito à constituição do órgão em relação à organização judiciária, enquanto o segundo concerne à distribuição de competência entre os órgãos previamente instituídos, isto é, pertencentes à organização judiciária segundo as nor­ mas constitucionais. Ou seja, a análise do juiz competente pressupõe ser este um órgão constitucionalmente previsto como integrante do Poderjudiciário, isto é, não se tratar de um tribunal de exceção ou extraordinário. Neste, o problema é logicamente prévio, por não haver investidura válida. No caso de violação da regra do juiz competente, por seu turno, tem-se um juízo ou tribunal que não é extraordinário, porque previamente integrante do Poderjudiciário, embora não seja competente para aquele feito. Em uma generalização extrema, o inc. XXXVII do art. 5.° diz respeito à investidura, e o inc. LIII do mesmo artigo tem por objeto a competência (que pressupõe a investidura). Justamente por isso, o art. 5.°, XXXVII, tem sua leitura imbricada com o art. 92, caput, da Constituição, que estabelece quais os órgãos integrantes do Poderjudiciário, ao passo que o art. 5.°, LIII, que assegura a garantia do juiz competente, liga-se aos critérios constitucionais e legais de definição e modificação de competência. O escopo ou a finalidade da garantia do juiz natural é assegurar a imparcialida­ de do julgador, ou melhor, o direito de todo e qualquer acusado ser julgado por um juiz imparcial. A garantia do juiz natural é teleologicamente voltada para assegurar a imparcialidade do julgador.'*^ Os tribunais de exceção, enquanto tribunais criados depois do fato e para julgar um fato determinado, são tribunais que dificilmente terão imparcialidade no julga­ mento. Até mesmo porque, haverá designação específica dos julgadores para o caso, após a ocorrência do fato. Em tal circunstância, quem tem o poder de indicar os juizes terá ampla liberdade de compor o tribunal, seja para beneficiar, seja para prejudicar o acusado. A principal característica dos tribunais de exceção é a criação ex post fa c ­ tum,^ fora das estruturas normais do Poderjudiciário,^* com poderes específicos para 48. Para Barbosa Moreira (Aspectos processuais..., p. 58) “a conjugação desses dois textos formula a garantia do chamado Juiz natural ou ju iz legal" (destaques no original). 49. Nesse sentido: Nery Junior, Princípios do processo..., p. 65. 50. Nem mesmo a constituição do tribunal exposí/actum é uma característica unanimemente aceita. No sentido de que o tribunal de exceção pode ser constituído antes do fato que irá julgar, posiciona-se CretellaJr, (Comentários á Constituição..., v. 1, p. 462), para quem 0 tribunal de exceção é aquele estabelecido para determinados casos, ocorridos ou não ocorridos, sem que sua instituição decorra da Lei Magna. No mesmo sentido posiciona-se Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967..., v. 5, p. 237-238), segundo o qual o tribunal de exceção “é o que se estabelece para determinado caso, ou casos [...] já ou ainda não ocorridos”. 51. Como lembra Celso R. Bastos (Comentários á Constituição..., v. 2, p. 204), “a simples ereção destes tribunais voltados para fins específicos, muitas vezes compostos de pessoas sem

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julgar um caso já ocorrido. Há, ainda, outras características dos tribunais de exceção: atribuição de sua competência com base em fatores específicos e, normalmente, segundo critérios discriminatórios (raça, religião, ideologia etc.); duração limitada no tempo; procedimento célere e, normalmente, não sujeito a recurso; escolha dos integrantes sem observância dos critérios gerais para investidura dos magistrados e sem assegurar-lhes a necessária independência. Por outro lado, também é tribunal de exceção aquele criado ad personam,^^ isto é, visando ao julgamento específico de uma determinada pessoa ou grupo de pessoas, mesmo que para fatos futuros. Nesse ponto, o caráter extraordinário não decorre do aspecto temporal, mas de sua natureza discriminatória. Tem sido pacificamente aceita a possibilidade de criação dejustiças especializadas, que não são incompatíveis com a vedação de instituir tribunais extraordinários ou de exceção.’®O que os diferencia é que tais tribunais ou juízos especiais são criados antes da prática dos fatos que irão julgar, e têm competência determinada por regras gerais e abstratas, com base em critérios objetivos, e não para um caso particular ou individualmente considerado, escolhido segundo critérios discriminatórios. Também a existência do chamado foro por prerrogativa de função, determinado por critérios prévios que se relacionam com o exercício de uma determinada função pública relevante, não viola a garantia do juiz n atu ral.N ão se trata de um privilégio pessoal, mas de uma decorrência ou prerrogativa inerente ao exercício de determinado cargo ou função. Não são, pois, privilégios de classe, como os foros privilegiados que subtraiam da justiça comum determinadas categorias de pessoas, como os clérigos, os comerciantes e outros grupos ou classes de pessoas. qualificação profissional ou sem garantias próprias da magistratura, já é em si mesmo um atentado à justiça; os exemplos históricos não abonam estas praxes”. 52. Nesse sentido; Nery junior. Princípios do processo..., p. 6 8 . Na doutrina estrangeira: Gimeno Sendra, Constitucióny proceso..., p. 59. 53. Nesse sentido: Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. 2, p. 195; Id., Instituições..., v. 2, p. 79; Fre­ derico Marques, Da competência..., p. 63; Id., Elementos..., v. 1, p. 216-217; Id., Tratado..., v. 1, p. 243; Grinover, O princípio do juiz natural..., p. 21; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 43; Tucci, Direitos e garantias..., p. 115; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 135. No mesmo senúdo, na doutrina consütucional: Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967. .., v. 5, p. 239; Bastos, Comentários à Cons­ tituição..., v. 2, p. 204-205; Ferreira Filho, Comentários ã Constituição..., p. 55; Cretella jr.. Comentários ã Constituição..., v. 1, p. 464. 54. No sentido de que o foro por prerrogativa de função não viola a garantia do juiz natural: Grinover, O princípio do juiz natural..., p. 18; Grinover, Magalhães, Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 43-44; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 135; Nogueira, Comentários..., v. 1, p. 836. Na doutrina constitucional; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967..., v. 5, p. 237; Cretella Jr., Comentários à Constituição..., v. 1, p. 464; Silva, Curso..., p. 441. O foro por prerrogativa de função costuma ser questionado não por seu confronto com a garantia do juiz natural, mas por sua eventual violação da regra da isonomia, na medida em que cria um fator de discriminação em indivíduos, ainda que tal não se dê como um privilégio pessoal, mas como uma decorrência do exeracio de um determinado cargo.

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Em seu aspecto positivo, a garantia do julgamento por juiz competente, atual­ mente prevista no art. 5.", LIII, da CR, tem sido interpretada pela doutrina nacional no sentido de que o juiz natural é o juiz constitucionalmente competente.” Ou seja, a garantia tocaria apenas aos critérios constitucionais de fixação de competência. Por exemplo, o julgamento de um crime militar pela justiça estadual viola a regra do juiz natural, posto que o critério constitucional de competência dajustiça militar não terá sido observado. Já violações a critérios infraconstitucionais, como por exemplo, a de­ finição do foro competente, não afetariam o juiz natural, embora pudessem implicar a falta de um pressuposto processual de validade da relação processual.” Não é possível concordar com a identificação do ju iz natural apenas com o ju iz constitucionalmente competente, por se tratar de uma visão reduzida e fraca da garantia, na medida em que a restringe ao juiz competente segundo os critérios de competência previstos na Constituição. É sabido que as regras constitucionais não exaurem o processo de concretização da competência. Uma concepção forte e que não seja reducionista deve chegar a outro resultado, considerando que o ju iz natural é aquele definido segundo todos os critérios de competência, sejam previstos na Constituição, sejam definidos em leis ordinárias e nas leis de organi­ zação judiciária. Também do ponto de vista “genético”, o posicionamento não pode ser aceito. A doutrina que o defende tem atribuído a formulação do conceito do juiz natural, como “juiz constitucionalmente competente”, a José Frederico Marques.’^Não pare­ ce, contudo, que se tenha dado uma correta interpretação à fonte em que se buscou o conceito. Segundo Frederico Marques, no sistema normativo brasileiro existe “o princípio de que ninguém pode ser subtraído de seu ju iz constitucional. Somente se considera juiz natural ou autoridade competente, no direito brasileiro, o órgão ju d i­ ciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais”.” Em tal conceito, a referência a “poder de julgar”, que “derive de fontes constitucionais”, não diz respeito à definição de competência, mas à investidura ou atribuição do poder jurisdicional.” 55. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 44; Karan, Competência..., p. 67; Moura, Alteração da competência..., p. 261. 56. Destaque-se que, como a CR garante que ninguém será processado nem sentenciado, senão pela autoridade judiciária competente, no caso de incompetência constitucional, não terá aplicação o art. 567 do CPP, que prevê apenas a nulidade dos atos decisórios, em virtude da incompetência. Se o acusado tem direito de ser processado pelo juiz constitucionalmente competente, todos os atos processuais, inclusive despachos e atos instrutórios, deverão se dar perante tal juiz. 57. José Frederico Marques se referiu ao juiz natural como “autoridade competente ou órgão cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais” (Elementos..., v. 1, p. 203;Juiz natural, p. 447, Tratado..., v. 1, p. 244). 58. Nesse sentido é a definição contida no verbete Juiz natural..., p. 447, com destaques no original. A mesma definição jã havia sido dada, em 1953, na obra Da competência..., p. 58. 59. Esclarecendo a questão, afirma Frederico Marques (Da competência..., p. 62): “o poder de julgar só o tem o juiz. Órgão ou pessoa não pertencente aos quadros do Poder Judiciário,

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Aliás, analisando o conceito de juiz natural, já sob a égide da Carta Constitucional de 1988, afirma Frederico Marques; “A jurisdição pode ser exercida apenas por órgão previsto na Constituição da República; é o princípio do ju iz natural ou juiz constitu­ cional. Considera-se investido de funções jurisdicionais, tão só, o juiz ou tribunal que se enquadrar em órgão judiciário previsto de modo expresso ou implícito em norma constitucional”.®“ Em outro passo, complementa a explicação: “[...] órgão judiciário que não encontrar, na Constituição, sua origem e fonte criadora, não está investido de atribuições jurisdicionais, o mesmo se verificando cornos órgãos que não se estruturam segundo o previsto na Lei Maior”.®* Fica claro que a referência a juiz constitucional diz respeito ajuiz constitucionalmente investido da função jurisdicional, e não a ju iz constitucionalmente competente. A garantia do juiz natural enquanto juiz competente determinado pela lei e pela Constituição exige que as normas de competência estabeleçam critérios abstratos e objetivos, não se admitindo qualquer possibilidade de alteração de tais critérios por atos discricionários de quem quer que seja. Como explica Greco Filho, “[...] as regras de determinação de competência devem ser instituídas previamente aos fatos e de maneira geral e abstrata de modo a impedir a interferência autoritária externa. Não se admite a escolha do magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente. Quando ocorre um determinado fato, as regras de competência jã apontam o juízo adequado, utilizandõ-se, até, o sistema aleatório do sorteio (distribuição) para que não haja interferência na escolha”.®^ A garantia do juiz natural também possui um aspecto temporal. Mais do que assegurar o juiz competente determinado por lei, o juiz natural garante o ju iz com­ petente predeterminado por lei. No seu aspecto de norma de direito intertemporal, da garantia do juiz natural decorre a irrelevância da modificação legal das regras de competência. Toda pessoa acusada de praticar um delito tem o direito de ser proces­ sada e julgada pelo juiz que, segundo as regras abstratas de competência, vigentes do momento da prática delitiva, era competente para o julgamento do caso. Conse­ quentemente. mudanças legais posteriores ao fato não poderão ter repercussão sobre processo. Em suma, o regime legal de competência é aquele vigorante no momento em que o crime foi praticado. A diferença de fundamento constitucional quanto à garantia do juiz natural não permite que se aplique ao processo penal, por analogia, a regra da perpetuatio jurisdiciotal como a Constituição o estruturou, não pode exercer a jurisdição". No mesmo sentido, Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 203; Id, Tratado..., cit., v. 1, p- 244. A passagem que acaba de ser transcrita deixa claro que a referência ao “poder de julgar” diz respeito à inves­ tidura, a poder de exercer a jurisdição, e não à competência para exercê-la no caso concreto. 60. Manual..., V . 1, p. 82. 61. Op. e loc. cit. 62. Manual..., p. 109.

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nis - que é perpetuação da competência - prevista no art. 87 do CPC.®® O momento de perpetuação da competência no processo penal não é o da propositura da ação penal, mas o do cometimento do delito. Ao mais, não se pode admitir no processo penal que mudanças legislativas que alterem critério de competência objetiva em razão da matéria, ou competência funcional, ou qualquer outro critério que determine regras absolutas de competência, sejam aplicadas a crimes cometidos anteriormente. Em suma, qualquer pessoa tem o direito de saber, previamente e no momento que venha a cometer eventual delito, quem será o juiz que irá julgá-la por aquele fato.®'* Diante da garantia do ju iz natural, a regra de direito intertemporal, tempiis regit actum (CPP, art. 2.°), não pode ter aplicação no que toca à definição do juiz competente, uma vez que o art. 5.°, LIII, da CR, c.c. oart. 8.1 da CADH, impõe a regra tempuscriminis regit iudicem. Em suma, a garantia constitucional do juiz natural, em seu duplo aspecto (art. 5.”, XXXVIl e LIII), desdobra-se em três conceitos: “[...] só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juizes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competência, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja".®’ 63. Substancialmente, a mesma regra foi prevista no art. 43 do Novo CPC. Todas as citações relativas ao Novo CPC estão sendo feitas de acordo com o Texto Consolidado com os ajustes promovidos pela Comissão Temporária do Código de Processo Civil. 64. Em sentido contrário, para Tucci (Direitos e garantias..., p. 114) o ju iz natural não im­ pede “as modificações de competência decorrentes de normas posteriores regularmente editadas”. No mesmo sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 216. Foi a posição adotada pelo STF, quando da edição a Lei 9.299/1996, que acrescentou um parágrafo único ao art. 9.° do CPM: “Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão de competência da justiça comum”. Por outro lado, também acrescentou o § 2." ao art. 82 do CPPM, determinando que “nos crimes dolosos contra a vida. praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inqué­ rito policial militar à justiça comum”. O STF considerou que tal lei deve ter aplicação imediata, atingindo crimes cometidos antes da alteração da competência (HC 74.720/ SP). O equívoco também é encontrado na jurisprudência do STJ (REsp 191.036/GO e RHC 10.395/SP) e do TJSP (HC 265.544.3/7), que consideram que a questão deveria ser resolvida pela simples aplicação da regra processual penal de direito intertemporal do art. 2.“ do CPP, que manda aplicar desde logo a lei processual penal. Todavia, mais do que simples sucessão de leis no tempo, trata-se de efetivar a garantia constitucional do juiz natural. Assim, a modificação do critério de competência, que determina que tais crimes não mais seriam julgados pela Justiça Militar, passando à competência do Tribunal dojúri da justiça comum, somente poderiam ter regência aos crimes cometidos após o inicio de vigência da referida lei. 65. Nesse sentido: Grinover, O princípio do juiz natural..., p. 39; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 124. O posicionamento originário é de Cordero (Procedura penale, 1966, P128-129) que, entretanto, se referia a “órgãos judiciários instituídos por lei”, em v e z de apenas instituídos pela constituição, como acabou prevalecendo na doutrina nacionab Outro posicionamento também sempre lembrado entre nós é a lição de Figueiredo Dia* (Direito..., p. 323), no sentido de que o princípio do juiz natural compreende um tripliri significado: “a) ele põe em evidência, em primeiro lugar, o plano da fonte: só a lei pode

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A tal posicionamento deve-se acrescentar, apenas, que a garantia do juiz natural, enquanto juiz predeterminado por lei, e não sujeito a escolhas discricionárias de quem quer que seja, apUca-se tanto ao órgão jurisdicional competente quanto à pessoa do julgador que irá atuar em tal órgão, seja ele monocrático ou colegiado. Se o juiz na­ tural é um mecanismo para assegurar o julgamento por um juiz imparcial, é inegável que a imparcialidade deve ter por objeto a pessoa que irá julgar, e não apenas o órgão jurisdicional.” Quem julga é uma pessoa física, e não um órgão competente. O órgão jurisdicional é um ente abstrato que integra a organização judiciária. Assim sendo, a. imparcialidade do juiz no exercício da função jurisdicional somente tem sentido quando considerada visando à pessoa física do juiz. Para que a garantia do juiz natural efetivamente assegure a imparcialidade do lulgador, não basta a predefinição do órgão competente, mas também a predefinição do juiz que atuará no órgão competente. Deve haver, portanto, regras legais claras e precisas definindo o procedimento de designação dos integrantes de cada órgão, de modo a garantir a independência e imparcialidade de quem exerce a jurisdição.’^ Sé a ratio do princípio do juiz natural é assegurar a independência e imparcialidade dos julgadores, inclusive no tocante às influências dos próprios órgãos internos de administração do PoderJudiciário, é evidente que deve incluir a designação e as subs­ tituições dos juizes que, pessoalmente, exercem a jurisdição em cada órgão. Limitar agarantia ao órgão jurisdicional poderá tolher qualquer significado real da garantia dojuiz natural,” pois bastaria modificar a composição interna do órgão julgador para instituir o juiz e fixar-lhe a competência; b) em segundo lugar, procura ele explicitar um ponto de referência temporal, através deste afirmando ura princípio de irretroactividade: á fixação do juiz e da sua competência tem de ser feita por uma lei vigente já ao tempo em que foi praticado o facto criminoso que será objecto do processo; c) em terceiro lugar, : pretende o principio vincular a uma ordem taxativa de competência, que exclua qualquer alternativa a decidir arbitrária ou mesmo discricionariamente”. Na jurisprudência, é de ' se destacar importante julgado do STF em que se decidiu; “Princípio do juiz natural e processo penal democrático. A consagração constitucional do princípio do juiz natural (CF, art. 5.°, LIU) tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo penal democrático. *O princípio da naturalidade do juízo representa uma das matrizes político-ideológicas que -conformam a própria atividade legislativa do Estado, condicionando, ainda, o desempeiJiho, em juízo, das funções estatais de caráter penal-persecutório. A lei não pode frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa, quando eventualmente submetida a juizo penal, o direito de ser processada perante magistrado imparcial e independente, cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio tordenamento constitucional” (STF, HC 73.801/MG). -Nesse sentido, na doutrina estrangeira; Romboli, Giudice naturale, Novissimo..,, p. 974-975; Id., Giudice naturale. Enciclopédia..., p. 378; Pizzorusso, Sul significato dell’espressione..., p. 1076; Escalada López, El derecho al juez legal..., p. 6 . Na doutrina nacional, o posicio­ namento foi por nós defendido em Badaró, Juiz n atu ral.... p. 189 e segs. Messe sentido, na Espanha, cf. Moreno Catena, Prólogo..., p. 21; na Itália, Romboli, 11giudice |aíura!e..., p. 148; na Alemanha, Hartwig, íi gesetzliche Richter..., p. 94, Romboli, Giudice naturale, Novissimo..., p. 974.

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se chegar aos mesmos resultados que se obteriam manipulando a competência dos órgãos jurisdicionais. Sendo a neutralidade do juiz apenas um mito, a predeterminação dojuiz compe­ tente, enquanto órgão julgador e enquanto pessoa física que irá julgar, toma-se ainda mais relevante. Se a independência e a garantia do juiz natural não são suficientes para assegurar um juiz imparcial, ao menos impedirão que o juiz seja alguém que tenha sido escolhido, depois da ocorrência do fato a ser julgado, e com o escopo de buscar um juiz parcial, isto é, mais alinhado ideologicamente, seja para beneficiar quem se busca proteger, seja para prejudicar quem se busca punir. A garantia do juiz natural, como define Romboli, é a certeza de um juiz não seguramente parcial.®“ Em outras palavras, haverá uma presunção absoluta de parcialidade de qualquer juiz constituído sem respeitar o disposto no art. 5.°, LIII, da Constituição.™

1.5 Garantias do contraditório e ampla defesa É de Joaquim Canuto Mendes de Almeida a definição de contraditório que se tomou clássica: “A ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los”.*** Em tal definição destacam-se dois aspectos fundamentais do princípio do contraditório; a informação e a reação. Tais elementos são também a base para outra definição bastante usual na doutrina nacional, que acolhe a conceituação de Sergio La China, de contraditório como informação necessária e possibilidade de reação. As definições apresenum conteúdos coincidentes. A ciência bilateral dos termos e atos do processo corresponde à necessária informação às partes. A possibilidade de contrariá-los representa a possível reação aos atos desfavoráveis. Ambos os conceitos propugnam pela obrigatoriedade ou necessidade de infor­ mação mas, quanto ã reação, basta que esta seja possibilitada. Em outras palavras, trata-se de reação possível.™ No entanto, a mudança de concepção sobre o princípio da isonomia, com a supe­ ração da mera igualdade formal e a busca de uma igualdade substancial, trouxe a ne­ cessidade de igualar os desiguais, refletindo-se também no princípio do contraditório. E, no processo, tal tarefa cabe ao juiz, que também passou a ser um dos destinatários do princípio do contraditório. 6 9 . Romboli, íigiudicenaturak..., p. 132.

70. Romboli, Teoria e prassi dei..., p. 29. 71. Almeida, A contrariedade..., p, 110 .

72. La China, Lesecuzione forzata..., p. 394; o princípio do contraditório se articula, nas suas manifestações técnicas, em dois aspectos ou tempos essenciais; informação, reação; necessária sempre a primeira, eventual a segunda (mas necessário que seja possibilitada!)”73. Nesse sentido: Dinamarco, O princípio do contraditório, p. 95; Grinover, Defesa..., p. 4, nota n. 18.

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Houve uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Quanto ao seu objeto, deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em condições de desigualdade. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permite a atuação das partes, como impõe a participação do julgador. Esta necessidade de maior participação do juiz no processo, que se denominou ativismo judicial, acabou levando à busca de uma maior efetividade do contraditório. A incidência da igualdade substancial no contraditório mostrou a necessidade de implementá-lo e efetivá-lo. O contraditório deixa de ser mera possibilidade para se transformar em uma realidade. Deve haver real e igualitária participação dos sujeitos processuais ao longo de todo o processo, assegurando a efetividade e a plenitude do contraditório. É o que se denominou contraditório efetivo e equilibrado.” Esse contraditório efetivo e equilibrado não mais se satisfaz com a mera possi­ bilidade de reação. É necessário estimular e buscar a realização da reação para que a estrutura dialética do processo se aperfeiçoe por meio de tese e antítese com conte­ údos e intensidades equivalentes, atingindo uma síntese que, apoiada em premissas simétricas, seja mais justa.” A releitura das regras processuais que concretizam o princípio do contraditório exige uma interpretação que assegure ao máximo a efetividade e a plenitude do con­ traditório, com ampla e igualitária atuação das partes e do próprio juiz. Esse contra­ ditório pleno e efetivo traz como consequência a necessidade de reação que deve ser estimulada, não mais se satisfazendo com a mera possibilidade.” Além do valor político de permitir que os sujeitos do ato de poder possam par­ ticipar da elaboração de tal ato, o contraditório possui também um valor heurístico. O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de indagar e de verificar os contrários, representa um 74. Dinamarco (O principio do contraditório, p. 95) atribui a expressão a Antônio Celso Ca­ margo Ferraz. Por sua vez. Massari (H processo penale..., p. 105) destaca que não se pode conceber um verdadeiro contraditório sem uma contraposição de óigãos homogêneas. No mesmo sentido, na doutrina nacional: Tourinho Filho, Processo..., v. 1, p. 47. 75. Grinover (Defesa..., p. 12), partindo da indisponibilidade da relação material subjacente ao processo penal, afirma que “a reação, no processo penal, não pode ser meramente eventual, mas há de fazer-se efetiva. O contraditório, agora, não pode ser simplesmente garantido, mas deve ser estimulado. E a contraposição díalógica entre as panes há de ser real e não apenas formal. O juiz cuidará da efetiva participação das partes no conuaditório, utilizando para tanto seus amplos poderes, a fim de que não haja desequilíbrio entre os ofícios da acusação e defesa. Cabe ao juiz penal, portanto, integrar e disciplinar o contraditório, sem que com isso venha a perder sua imparcialidade, que sairá fortalecida, no momento da síntese, pela apreciação do resultado de atividades justapostas e parítãrias, desenvolvidas pelas partes”. No mesmo sentido: Dinamarco, O principio do contraditório, p. 96. 76. Nesse sentido é que deve ser entendido o parágrafo ünico acrescentado ao art. 261 do CPB pela Lei 10.792/2003. qne passou a exigir: “A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manííesução fundamentada”.

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mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais do que uma escolha de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verda­ de. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros. No processo penal necessariamente haverá o contraditório, em razão da importância dos bens em jogo, pois a solução deste conflito de interesses relevantes exige, sempre, uma decisão oficial e segura, uma vez que a escolha da parte pode ser, e frequentemente o é, errada.^^ Embora o contraditório esteja mais intensamente ligado ao aspecto fático do processo, incluindo as atividades argumentativas e probatórias, sua aplicação também atinge as questões de direito. E não há razão para que o contraditório não se aplique também a tais matérias. A menor preocupação com o contraditório em relação às questões de direito encontra-se ligada à máxima iura novit curiaJ^ Todavia, a exigência do contraditório prévio à decisão não significa que o juiz não possa dar aos fatos narrados pela parte uma outra definição jurídica ou decidir diversamente uma questão de direito. Para assim agir, deve o juiz “fazer observar e observar ele mesmo o contraditório”, permitindo que as partes se manifestem sobre a norma a ser aplicada ou sobre a quaestio iuris. Deve-se procurar evitar a surpresa não só em relação ao material probatório, mas também em relação à matéria de direito debatida. Nem sempre a questão de direito se resolve em um simples processo de subsunção. Aliás, o processo de subsunção apre­ senta um iter bastante complexo, embora frequentemente este não aflore na decisão judicial, parecendo algo simples e automático. Embora a tipicidade penal pareça atenu­ ar o problema, nem sempre é fácil qualificar juridicamente os fatos. Na determinação da regra de direito aplicável podem surgir problemas de concurso aparente ou real de normas, bem como conflitos de lei no tempo e no espaço. O controle de validade, por sua vez, envolve o problema de compatibilidade entre a norma e a Constituição, o que pode ser uma difícil tarefa, em virtude de inúmeros princípios e regras penais e processuais penais previstos nas constituições modernas. Por fim, relativamente à interpretação das leis, inúmeras são as dificuldades. Sem o contraditório sobre as questões de direito tudo isso será subtraído da discussão das partes. O princípio do contraditório exige, em relação às questões de direito que possam fundar uma decisão relevante, que as partes sejam previamente consultadas. Há o dever 77. Na doutrina pátria, destacando o contraditório como método para descoberta da verdade: Grinover, Igualdade de partes..., p. 313; Tucci, Considerações..., p. 92; Cambi, Direito constitucional..., p. 126; Cruz, Garantias processuais..., p. 169; Gomes Filho, A motivação..., p. 39; Barros, A busca da verdade..., p. 38; Badaró, Onus da prova..., p. 215-216. 78. Álvaro de Oliveira (O juiz..., p. 34) explica que; “A liberdade concedida ao julgador de escolher a norma a aplicar, independentemente de sua invocação pela parte interessada, consubstanciada no brocardo iura novit curia, não dispensa a prévia ouvida das partes sobre os novos rumos a serem imprimidos à solução do litígio, em homenagem ao princípio do contraditório”.

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do juiz de provocar o prévio contraditório entre as partes, sobre qualquer questão que apresente relevâncw decisória, seja ela processual ou de mérito, de fato ou de direito, prejudicial ou preliminar.™ O desrespeito ao contraditório sobre as questões de direito expõe as partes ao perigo de uma sentença de surpresa. Por outro lado, o juiz instar as partes a se mani­ festarem, antes da decisão, sobre uma determinada questão de direito, não pode ser considerado uma perda de imparcialidade, por estar prejulgando a causa. Ao contrário, é mais uma oportunidade que se dá às partes e, principalmente, àquela parte que seria prejudicada pela decisão de apresentar suas alegações e influenciar o convencimento do juiz. Em suma, diante da previsão constitucional do contraditório, em termos amplos e abertos, sua interpretação deve ser no sentido de um contraditório pleno e efetivo, com ampla participação do juiz, que deve respeitar e, se necessário, implementar o contraditório em relação às partes, mas também observando ele mesmo o contraditó­ rio, que deverá instaurar-se previamente, tanto em relação à matéria fãtica quanto às questões de direito, que não poderão ser objeto de decisão que cause surpresa às partes. No plano dialético, a acusação apresenta-se como a tesee a defesa, como a antítese, sendo o julgamento a síntese. O direito de defesa, ou a defesa penal, encontra-se umbilicalmente ligado ao princípio do contraditório. Entretanto, embora haja influências recíprocas, não se confundem. Analisando a interação entre defesa e contraditório, Grinover explica; “[...] de­ fesa, pois, que garante o contraditório, e que por ele se manifesta e é garantida; porque a defesa, que o garante, se faz possível graças a um de seus momentos constitutivos - a informação - e vive e se exprime por intermédio de seu segundo momento - a reação” Destacar e distinguir a defesa do princípio do contraditório é relevante na medida em que, embora ligados, é possível violar o contraditório, sem que se lesione o direito de defesa. Não se pode esquecer que o princípio do contraditório não diz respeito apenas à defesa ou aos direitos do réu. O princípio deve aplicar-se em relação a ambas as partes, além de também ser observado pelo próprio juiz. Deixar de comunicar um determinado ato processual ao acusador, ou impedir-lhe a reação a determinada prova ou alegação da defesa, embora não represente violação do direito de defesa, certamente violarã o princípio do contraditório. O contraditório manifesta-se em relação a ambas as partes, já a defesa diz respeito apenas ao réu. Nessa perspectiva, é correta a afirmação de que a defesa é aspecto integrante do direito de ação. Ação e defesa, antes de serem posições diversas ou antagônicas, repre­ sentam apenas diferentes aspectos do exercício de uma mesma atividade. O paralelismo 79. Bedaque (Tutela cautelar..., p. 93) defende a necessidade do prévio contraditório sobre as questões de direito, ainda que sejam decisões que o juiz possa tomar ex officio. No mesmo sentido, no processo penal: Badaró, Correlação..., p. 32-37. 80. Grinover, Defesa..., p. 5-6.

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entre ação e defesa dinamiza-se no exercício do contraditório, permitindo a ambas as partes fazerem valer seus direitos e garantias ao longo de todo o processo, alegando, provando e influenciando a formação do convencimento do juiz. Em relação ao con­ teúdo de ambos os direitos, a única diferença é o direito de iniciativa existente apenas no direito de ação. Iniciado o processo, ação e defesa são absolutamente simétricos.®' O direito de defesa apresenta-se bipartido em; (1) direito à autodefesa; e (2) direito ã defesa técnica. O direito à autodefesa é exercido pessoalmente pelo acusado, que poderá diretamente influenciar o convencimento do juiz. Por sua vez, o direito à defesa técnica é exercido por profissional habilitado, com capacidade postulatória e conhecimentos técnicos, assegurando assim a paridade de armas entre a acusação e a defesa. O direito à autodefesa se divide em: (1) direito de presença; (2) direito de au­ diência; (3) direito de postular pessoalmente.®’ O direito de presença é exercido com o comparecimento em audiências pelo acusado. A sua presença permitirá uma integração entre a autodefesa e a defesa técni­ ca na produção da prova. Muitos fatos e pormenores mencionados por testemunhas são do conhecimento pessoal do acusado que, por estar diretamente ligado aos fatos, poderá auxiliar o defensor na formulação de perguntas e na demonstração de incon­ gruências ou incompatibilidades do depoimento. Assim, a restrição da participação do acusado na audiência de oitiva de testemunhas pode implicar séria violação do direito de defesa como um todo. O direito de audiência, isto é, o direito de ser ouvido pela autoridade judiciária, é exercido, por excelência, no interrogatório. Trata-se, porém, de mera faculdade do acusado que, se desejar, poderá renunciar a tal direito, permanecendo calado (CR, art. 5.°, LXIII). O direito de postular está presente na possibilidade de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577, caput), de interpor habeas corpus ou revisão criminal (CPP, art. 623). Tais manifestações não violam o art. 133 da CR, que prevê a advocacia como função essencial à administração dajustiça. No processo penal, a exigência de que o acusado tenha uma defesa técnica visa assegurar a paridade de armas entre o acusador e o acusado. Assim, as manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado 81. Nesse sentido; Dinamarco, Execução civil, p. 353. Uma vez mais, cabem as palavras de Grino­ ver (Defesa..., p. 5); “Nessa ampla acepçao, açao e defesa nao se exaurem, evidentemente, no poder de impulso e no uso das exceções, mas se desdobram naquele conjunto de garantias que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em juizo, para a tutela de seus direitos e interesses, utilizando toda a ampla gama de poderes e faculdades pelos quais se pode dialeticamente preparar o espírito do juiz”. 82. Normalmente, a doutrina refere-se apenas ao direito de presença e ao direito de audiência. O direito de postular pessoalmente, como manifestação da autodefesa, é destacado por Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 293).

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não prejudicam a defesa, apenas criando uma possibilidade a mais de seu exercício. Que prejuízo haverã para a defesa, se o advogado não apelar, mas o acusado o fizer pessoalmente? Outro aspecto relevante a destacar no tocante ao direito de defesa é a necessi­ dade de um tempo hábil para sua preparação e exercício. A CADH, em seu art. 8.°, 2, c, elenca, entre as garantias mínimas da pessoa, durante o processo, a “concessão ao acusado de tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa" (destacamos). Conferir ao réu o direito de defesa, sem oferecer-lhe tempo suficiente para sua prepa­ ração, é esvaziar tal direito. Deve haver um tempo razoável entre a comunicação do ato em relação ao qual deverão ser exercidos a defesa e o prazo final para tal exercício. Defesa sem tempo suficiente é ausência de defesa, ou, no mínimo, defesa ineficiente.

1.6 Garantia da igualdade de partes A ideia de processo como método de solução de conflitos por um terceiro desin­ teressado pressupõe que os sujeitos interessados sejam tratados de forma igualitária. Há uma estreita relação entre as garantias da imparcialidade do juiz e da igualdade de partes. O juiz imparcial é aquele que trata as partes de forma igualitária. No processo, a igualdade de partes garante a paridade de armas entre os sujeitos parciais. Todavia, a função de assegurar a igualdade de parte não é só do juiz, que deve lhes dar o mesmo tratamento. Também o legislador, ao disciplinar os institutos pro­ cessuais, deve fazê-lo de modo a garantir a isonomia de partes na dinâmica processual. Contudo, embora a isonomia de partes seja uma aspiração e um ideal a ser buscado pelo legislador, na disciplina legal do processo. e pelo juiz, na condução dos processos, não se trata de um princípio absoluto. Ao contrário, diz respeito a um princípio que comporta uma série de exceções, muitas delas decorrentes de outro princípio, também relevantíssimo do processo penal, o do fa v o r rei.*® A igualdade formal significa que todos são iguais perante a lei, que não pode estabelecer distinções ou discriminações entre sujeitos iguais. Todavia, a realidade demonstra, de forma incontesté, que os sujeitos são substancialmente desiguais e esta desigualdade se potencializa no processo penal em que de um lado há o Estado, com todo o seu poder e aparato oficial, e do outro o indivíduo, em uma situação de infe­ rioridade, quase de mera sujeição. Não basta, pois, a mera igualdade formal. Deve ser buscada uma igualdade substancial. É insuficiente proclamar que todos são iguais. É preciso criar mecanismos para reequilibrar os pratos da balança e, efetivamente, tratar desigualmente os desiguais para que se atinja a verdadeira igualdade.** 83. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 1, p. 43. 84. Sempre necessário destacar o clássico conceito de Ruy Barbosa que, paraninfando a turma de bacharéis de 1920 na Faculdade de Direito do Largo de Sáo Francisco, escreveu a célebre Oração aos moços (fac-símile editado por Martin Claret, São Paulo, 2004, p. 17), definindo de forma irretocável a regra da igualdade; “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualara. Nessa desigualdade

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É de reconhecer que há uma desigualdade inicial na persecução penal. A defesa se coloca em uma posição de desvantagem na fase de investigação, que se inclui no direito à investigação das fontes de provas. A investigação da acusação é realizada por órgãos estatais, estruturados para tanto. Por outro lado, a defesa deve desenvolver sua investigação com as próprias forças. O problema se mostra ainda mais sensível ao se considerar que a imensa maioria dos acusados e investigados no processo penal é pobre e não tem condições de desenvolver qualquer atividade investigativa.*® Há, porém, inúmeras situações em que o fa v o r rei cria uma posição de vanta­ gem para o acusado. Há recursos que são privativos da defesa, como os embargos infringentes. A revisão criminal somente cabe pro reo, não havendo revisão criminal pro societate. Finalmente, existem regras que diferenciam um acusado de outro, como as hipóteses de prisão especial (CPP, art. 295) e o foro por prerrogativa de função (CPP, art. 84).«®

1.7 Garantia do estado de inocência A Constituição de 1988 assegura entre os direitos e garantias individuais que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal con­ denatória” (art. 5.°, LVII).«^ A garantia constitucional não utiliza a expressão “presunção de inocência”, que representa a formulação tradicional do princípio. Deu-se preferência à fórmula da consideração da não culpabilidade. Em virtude desta diversidade terminológica, o preceito constitucional passou a ser denominado “presunção de não culpabilidade”. A questão que se levanta é saber se este modo diverso de exprimir o princípio é apenas uma variação terminológica ou se implica alteração de conteúdo da garantia. Em outras palavras, a fórmula “presunção de não culpabilidade” exprime um menor grau de proteção que a expressão “presunção de inocência”? A questão suscitou divergências na doutrina. Para alguns, a Constituição não adotou a presunção de inocência. Outra corrente, fundamentada na impossibilidade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. 85. Mais do que isso, não há uma disciplina legal da investigação defensiva, prevendo meca­ nismos e concedendo-lhe poderes para investigar as fontes de prova em favor da defesa, semelhante ao que ocorre com a indagine difensiva prevista no CPP italiano de 1988 e reforçada por leis posteriores. 8 6 . Já em meados do século XIX, Pimenta Bueno (Direito público brasileiro..., p. 424) destacava que “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania". 87. Certamente, a fonte inspiradora de tal dispositivo foi a Constituição italiana de 1948: “l’imputato non è considerato colpevole sina alia condanna definitiva”.

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de distinção de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabi­ lidade, entende quê tais princípios são equivalentes.®® Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. As expressões “inocente” e “não culpável” constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. É inútil e contraproducente a tenta­ tiva de apartar ambas as ideias - se é que isto é possível - , devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas. Procurar distingui-las é uma tentativa inútil do ponto de vista processual. Buscar tal diferenciação apenas serve para demonstrar posturas reacionárias e um esforço vão de retomo a um processo penal voltado exclusivamente para a defesa social, que não pode ser admitido em um Estado Democrático de Direito. Quanto ao conteúdo da presunção de inocência, é possível distinguir três sig­ nificados de tal princípio: (1) garantia política; (2) regra de tratamento do acusado; (3) regra probatória. A primeira, e talvez a mais importante forma de analisar o princípio, é como garantia política do cidadão. O processo, e em particular o processo penal, é um microcosmos no qual se refletem a cultura da sociedade e a organização do sistema político. Não se pode imaginar um Estado de Direito que não adote um processo penal acusatório e, como seu consectário necessário, o in dubio pro reo. A presunção de não culpabilidade é um fundamento sistemático e estratural do processo acusatório. O princípio da presunção de inocência é reconhecido, atualmente, como componente basilar de um modelo processual penal que queira ser respeitador da dignidade e dos direitos essenciais da pessoa humana. Há um valor eminentemente ideológico na pre­ sunção de inocência. Liga-se, pois, à própria finalidade do processo penal: um processo necessário para a verificação jurisdicional da ocorrência de um delito e sua autoria.®® A presunção de inocência assegura a todo e qualquer indivíduo um prévio estado de inocência, que somente pode ser afastado se houver prova plena do cometimento de um delito. A presunção de inocência é, segundo Pisani, uma presunção política que garante a liberdade do acusado diante do interesse coletivo à repressão penal.®® O dispositivo constitucional, contudo, não se encerra neste sentido político, de garantia de um estado de inocência. A “presunção de inocência” também pode ser vista sob uma ótica técnico-jurídica, como regra de julgamento a ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Para a imposição de uma sentença condenatória é necessário provar, além de qualquer dúvida razoá8 8 . No sentido de que a CR não adotou a presunção de inocência; Maierovitch, Presunção...,

p. 26; Fortes Barbosa, Garantias constituciormis..., p. 85. Fm sentido contrário; Luiz Flávio Gomes, Sobre o conteúdo..., p. 380-381. 89. Todo indivíduo nasce livre e tem a liberdade entre seus direitos fundamentais. Tal direito, contudo, não é absoluto. A liberdade pode ser juridicamente restringida. Para tanto, ê necessária expressa previsão legal e a observância de um devido processo legal. O direito à liberdade é assegurado por várias garantias, dentre as quais se inclui a “presunção de inocência”. 90. Pisani, Sulla presunzione di..., p. 2.

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vel, a culpa do acusado. Nesta acepção, presunção de inocência confunde-se com o in dubio pro reo.®‘ Por fim, a presunção de inocência funciona como regra de tratamento do acusado ao longo do processo, não permitindo que ele seja equiparado ao culpado. É mani­ festação clara deste último sentido da presunção de inocência a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias. A presunção de inocência não veda, porém, toda e qualquer prisão no curso do processo. Desde que se trate de uma prisão com natureza cautelar, fundada em um juízo concreto de sua necessidade, e não em meras presunções abstratas de fuga, periculosidade e outras do mesmo gênero, a prisão será compatível com a presunção de inocência.®® Outra repercussão da presunção de inocência, como regra de tratamento do acusado, é a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da pena.®® Estes três significados podem ser extraídos, sem qualquer exclusão, da garantia constitucional do art. 5.°, LVII.

1.8 Garantia da motivação A CR, ao disciplinar a organização do Poder Judiciário, estabeleceu a garantia da motivação das decisões judiciais, exigindo que sejam “fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (art. 93, IX). A motivação das decisões judiciais apresenta uma dupla finalidade. Sob uma ótica individualista, isto é, considerando a finalidade que a motivação desempenha no processo, levando-se em conta apenas o interesse das partes, a garantia processual 91. Nesse sentido: Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 39; Luiz Flávio Gomes, Presun­ ção de violência..., p. 107. Ainda segundo Gomes Filho (op. cit., p. 40), outra repercussão probatória da presunção de inocência, que é “a impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar com a investigação dos fatos”. 92. Aliãs, a própria Constituição prevê prisões no curso do processo: o art. 5.°, LXl, refere-se à prisão em flagrante delito. Por sua vez, o inc. LXVl, do mesmo artigo, trata da liberdade provisória, que é uma contracautela, uma medida substitutiva de uma prisão cautelar. Evidente, pois, que a CR admite prisões no curso do processo. 93. Todavia, não se desconhece que se tomou praxe a denominada execução penal provisória, inclusive com disciplina normativa da expedição de guias de execução provisória. A pos­ sibilidade de tal “execução provisória” acabou sendo reconhecida e sumulada pelo STF A Súmula 716 estabelece que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória". Trata-se, contudo, de hipóteses que poderiam ser chamadas de “execução penal provisória” pro reo ou “em favor do acusado”; Nos casos em que jã há o trânsito em julgado da condenação penal para o Ministério Público, mas pende recurso de defesa, como o “teto” da pena jã está definido e não poderá ser majorado, tem-se admitido que jã se considere iniciada a execução da pena, para fins da aplicação de institutos típicos de execução da pena, em favor do condenado, como a progressão de regime ou a obtenção de livramento condicional. Tecnicamente, porém, a denominada execução penal provisória nada mais é do que a aplicação dos institutos da Lei de Execução Penal aos presos provi­ sórios, tal qual revisto no art. 2.°, parágrafo único, da LEP.

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tem por escopo permitir o conhecimento das razões de decidir, possibilitando a im­ pugnação da decisão e o ataque aos seus fundamentos pela via recursal. Trata-se de um fundamento intemo da motivação, ressaltando sua finalidade técnico-processual. Por outro lado, tendo em vista o exercício da função jurisdicional, a motivação permite o controle social sobre a atividade jurisdicional. No primeiro caso, temos uma garantia para as partes, destacando-se a função endoprocessual da motivação. Já sob o enfoque da sociedade, a motivação apresenta uma relevância extraprocessual. No tocante ao seu caráter endoprocessual, isto é, à finalidade interna, é de des­ tacar que a motivação não é uma descrição do raciocínio judicial. Não se trata de uma exposição do iter psicológico seguido pelo juiz na reconstração histórica dos fatos que serviu de base para a decisão. Aliás, se assim o fosse, somente no último momento, quando se findasse a motivação, o juiz saberia se a causa seria julgada procedente ou improcedente. Na verdade, a motivação é muito mais uma exposição, ou melhor, uma justificação da decisão. Nas palavras de Foschini, a motivação é uma “argumentada conclusão” ou, o que é a mesma coisa, uma “concludente argumentação”.“® A motivação da sentença apresenta-se, portanto, cómo uma justificação das cir­ cunstâncias fáticas e jurídicas que determinaram as razões de decidir.“®É o “discurso justificativo da decisão”“®ou, como define Taruffo, uma “justificação racional das escolhas do juiz”. Ainda quanto à função endoprocessual da motivação, relacionada com a im­ pugnação da decisão judicial, está a possibilidade de o próprio órgão jurisdicional de segundo grau controlar a atividade jurisdicional de primeiro grau.“® Neste caso, contudo, ainda que sob a ótica endoprocessual, a motivação não deixa de ter um caráter público, visto que permite ao próprio Estado o controle da sua atividade. Já o caráter extraprocessual da motivação, ou sua função político-axiológica, é destacado pela Constituição. A garantia da motivação vem estabelecida na disciplina do Poderjudiciário, e não no capítulo dos direitos e garantias individuais, em que estão previstas a grande maioria das garantias processuais. Muito mais que uma garantia individual das partes, a motivação das decisões judiciais é uma exigência inerente ao próprio exercício da função jurisdicional.““ 94. 95. 96. 97. 98.

Foschini, Sistema..., v. 2, p. 539. Magalhães Gomes Filho, A motivação..., p. 15-16. Amodio, Motivazione..., p. 184. Taruffo, La motivazione..., p. 421. O STJ jã destacou expressamente que tal finalidade da moüvaçâo: “Se presta para controle dos órgãos recursais” (RHC 5.378/SP). 99. Esta tendência é encontrada em várias constituições modernas, que preveem a garantia da motivação no capítulo do Poderjudiciário. A Constituição italiana de 1947, em seu art. 111, § 1.”, estabelece que “tutti i prowedimentí giurisdizionale devono essere motivatV'. A Constituição

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A motivação confere “transparência” à decisão judicial, permitindo um con­ trole generalizado e difuso sobre o modo pelo qual o juiz administra a justiça.*” Sob este aspecto, não é uma garantia exclusiva das partes, ou de seus advogados, ou mesmo dos juizes, mas principalmente da opinião pública. Destina-se, portanto, a quisque de populo. É por meio da motivação que qualquer cidadão poderá controlar a legalidade da decisão, a imparcialidade do juiz, enfim, a justiça do julgamento.*“* Em suma, a motivação é uma garantia de controle democrático sobre a adminis­ tração dajustiça.*“’ O problema dos requisitos mínimos da fundamentação da sentença deve ser resolvido à luz da função da motivação. Somente quando a sentença tiver atendido tanto à finalidade endoprocessual quanto ao escopo extraprocessual é que poderá ser considerada suficientemente motivada. O desrespeito a quaisquer das finalidades da motivação da sentença será caracterizado como ausência de motivação e acarretará a nulidade do decisório.*"’ A doutrina tem apontado, como requisitos para que a motivação seja considerada válida, que ela seja expressa, clara, coerente e lógica.**”

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104.

portuguesa de 1974, no art. 205, § l .', determina que “as decisões dos tribunais que nâo sejam de mero expediente serão fundamentadas na forma prevista na lei”. A Constituição espanbola de 1978 prevê, no art. 120, § 3.°, que “Ias sentencias serán siempre motivadas’’. A Constituição do Peru, no art. 139, § 5.°, assegura “Ia motivación escrita de Ias resoluciones judiciales en todas Ias instancias, excepto los decretos de mero trâmite, con mención expresa de la ley aplicable y de los fundamentos de hecho en que se sustentan". A Constituição belga de 1994 estabelece em seu art. 93, § 3.°, que toda decisão judicial deverá ser específica e inteiramente motivada, sendo obrigatória, nos colegiados, a publicação da opinião vencida. A garantia da motivação já era prevista, inclusive, na Constituição belga de 1831 (art. 97). A Constituição grega de 1974, com a reforma de 1986, prevê, em seu art. 149, que os julga­ mentos serão bem fundamentados. Retrocesso ocorreu com a Constituição colombiana de 1991, que não mais prevê expressamente a garantia da motivação, sendo que tal constava do art. 161 da Constituição anterior: “toda sentencia deberá ser motivada”. Por outro lado, na Constituição mexicana de 1917, a motivação vem prevista nas garantias individuais. O art. 16 estabelece que “nadie puede ser molestado en su persona, fam ília, domicilio, papeles 0 posesiones, sino en virtud de mandamiento escrito de la autoridad competente, que funde y motive la causa legal de procedimiento...”. Nesse sentido: Comoglio, Riforme processualí..., p. 124. Nesse sentido: Barbosa Moreira, A motivação..., p. 87; Grinover, O conteúdo..., p. 34; Gomes Filho, Direito à prova..., p. 163-164; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 119. Para Grinover (O processo constitucional..., p. 256) “a motivação é o meio mais adequado para o controle democrático da atividade jurisdicional”. Na jurisprudência; TJSP, RT 681/35. Em sentido contrário, para Taruffo (La motivazione..., p. 466), sendo a motivação es­ sencial ao próprio conceito de jurisdição, o vício de motivação acarreta a inexistência da sentença, e não apenas a sua nulidade. Na doutrina nacional, Tomaghi (Curso..., v. 2, p. 164) também entende que a ausência de motivação leva à inexistência da sentença, pois os requisitos do art. 381 do CPP sâo da essência da sentença. Nesse sentido; Cruz e Tucci, A motivação..., p. 18-21, com ampla análise doutrinária.

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No tocante ao conteúdo mínimo da motivação, ela compreende: (1) o enunciado das escolhas do juiz relativamente; (1.1) à individuação das normas aplicáveis; (1.2) à análise dos fatos; (1.3) à qualificação jurídica dos fatos; (1.4) às consequências ju ­ rídicas desta qualificação; (2) aos nexos de implicação e coerência entre os referidos enunciados.*“’ Toda decisão do Poder Judiciário deverá ser motivada. O dever de motivar não tem por objeto apenas as decisões finais - as sentenças definitivas ou terminativas - , mas também toda e qualquer decisão interlocutória. Evidente que a sentença, enquanto ato culminante do processo, exige uma maior explicitação de seus fundamentos. O CPP, em seu art. 381, III, determina que a sentença contenha “a indicação dos motivos de Jato e de direito em que se fu ndar a decisão”.'’^ Finalmente, faz-se necessário considerar as hipóteses de vícios de motivação; ausência ou carência de motivação, motivação per relationem e motivação implícita. Assim, a ausência ou carência de motivação não deve ser entendida apenas como a total omissão de fundamentação, mas também como a falta de fundamentação de um ponto que deveria ser motivado em face do dispositivo. A jurisprudência tem feito a distinção entre motivação sucinta, mas válida, de um lado, e ausência ou falta de motivação, de outro. Na prática, o que se nota é uma tendência jurisprudencial a maximizar os casos de motivação sucinta, e minimizar os casos de ausência de motivação.*“*' Bellavista explica que há motivação implícita quando o exame de todos os pontos da decisão, ainda que não explicitamente realizado, resulta implicitamente realizado, na análise da sentença como um todo, segundo regras da lógica, como inclusio unius. 105. A lição citada é de Taruffo (La motivazione..., p. 467) e foi colhida na doutrina nacional: Grinover, O conteúdo..., p. 35. Aeste esquema, Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 201) acrescentara a “consideração atenta dos argumentos e provas trazidas aos autos”. 106. A sentença que não contiver motivação será irremediavelmente nula, nos termos do art. 93, IX, da CR. Trata-se de nulidade absoluta e insanável (CPP, art. 572), que pode ser reconhecida, inclusive, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, por meio de revisão criminal (CPC, art. 621, l) ou mediante habeas corpus (CR, art. 5.“, LXVIII, c.c. CPP, art. 648, VI). 107. Com base na jurisprudência da Corte de Cassação italiana, elaborou-se uma distinção entre ausência ou carência de motivação extrínseca e ausência de motivação intrínseca. A ausência ou carência de motivação extrínseca tem lugar quando o juiz não indica os elemen­ tos em que baseou o próprio convencimento. Já a ausência de motivação intrínseca ocorre toda vez que a sentença tenha deixado de levar em consideração elementos de decisiva relevância que, se tivessem sido considerados ou examinados, poderiam ter levado a um resultado diverso. Sobre a posição jurisprudencial: Bellavista, Contributo alio studio..., p. 196; Bellavista e Tranchina, Lezione..., p. 481. Na doutrina nacional, Grinover (O conteúdo..., p. 36) denomina esta última hipótese de carência de motivação extrínseca e não intrínseca. E, curiosamente, invoca o posicionamento de Bellavista. Todavia, nem mesmo a doutrina italiana é concorde na utilização de tais expressões. De qualquer forma, o resultado prático é exatamente o mesmo: a nulidade absoluta da sentença.

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exclusio alterius; quid dicit de uno, negat de altero etc.*“®Para que tais regras de lógica possam ser validamente aplicadas, é preciso que haja entre as questões efetivamente resolvidas e as implicitamente solucionadas uma relação de implicação necessária, de forma que a aceitação de uma leve à exclusão de outra, ou vice-versa.*““ . Todavia, a contraposição lógica entre duas asserções nem sempre é necessa­ riamente alternativa, posto que é possível que uma não contenha em si as razões de exclusão da outra. De outro lado, nem sempre as soluções possíveis de uma questão são somente duas, podendo o juiz escolher diversas possibilidades.**“ E, mesmo nos casos em que só haja duas alternativas, com um nexo de impli­ cação entre a questão principal e a questão prejudicial, a motivação implícita apenas indicaria a própria decisão em si, isto é, o resultado da resolução da questão, mas não as respectivas justificações e razões. O importante não é conhecer o resultado, mas o desenvolvimento argumentativo de fato e de direito que levou àquele resultado. Em suma, a motivação implícita permite saber quea questão foi rejeitada, mas não permite conhecer o porquê da rejeição.*** Deve ser negada, portanto, qualquer possibilidade de motivação implícita, mesmo quando haja uma relação lógica entre os motivos implícitos e explícitos. É por meio da motivação que o juiz faz aflorar as suas opções valorativas e toma conhecido o 108. Bellavista, Contributo alio studio..., p. 191. 109. Nesse sentido, posiciona-se Gomes Filho (A motivação..., p. 198), destacando que uma exclui a outra por absoluta incompatibilidade, “propiciando assim o aproveitamento a contrário da mesma justificação". A posição do citado autor foi expressamente acolhida em julgado do STF, da lavra do Min. Cezar Peluzo (HC 84.383/RS), em que se destacou: “A chamada motivação implícita, pela qual a ‘superação das lacunas toma-se possível em virtude da relação lógica existente entre aquilo que ficou expresso no discurso judicial e aquilo que também deveria ter sido objeto de justificação mas não foi’, somente pode admitir-se em casos singulares, nos quais os ‘motivos que justificam a solução de uma questão servem, implicitamente, para atender à mesma finalidade em relação a outro ponto em que não foram explicitadas as razões do convencimento judicial”’. 110. O STF considerou que não há nulidade no julgamento que, explicitamente, fundamentou a qualificação dos fatos como latrocínio, rejeitando implicitamente o pedido de desclassi­ ficação para homicídio (HC 74.213/SC). 111. Por exemplo, sabe-se que o álibi do réu foi repelido, visto que ele foi condenado, mas não se fornece a razão por que este álibi não foi aceito. No exemplo dado, a motivação implícita não fornece as razões especificas pelas quais a questão do álibi foi resolvida em sentido negativo. A mesma observação vale no tocante às questões preliminares. O fato de o juiz proferir um julgamento de mérito significa que as preliminares foram resolvidas em sentido negativo. No entanto, só está a indicar que a preliminar foi rejeitada, mas não fornece a razão específica pela qual não se acolheu a preliminar. O STF decidiu que o “argumento da rejeição implícita da preliminar não pode ser levado em conta, uma vez que a sentença deve apreciar todas as questões suscitadas pelas partes, sob pena de denegação da prestação jurisdicional" (RHC 66.987-5/SP). Em sentido contrário, o extinto TACrimSP considerou implicitamente rejeitada a arguição preliminar de incompetência, por se ter passado ao julgamento do mérito (JTACrimSP37/99). Caberia indagar: mas por qual motivo o juiz não era incompetente? Não se sabe onde encontrar tal resposta.

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seu raciocínio judicial. Como adverte Bettiol, motivar é tomar explícito aquilo que é implícito. Em suma] ou há motivação específica e expressa, ou não há motivação. **® A motivação per relationem é aquela em que o magistrado não fornece as suas razões de decidir, limitando-se a invocar os fundamentos de um outro ato já praticado, acolhendo-os e tomando-os como sua razão de julgamento. A doutrina, de uma forma geral, não aceita tal modo de motivação, por nele não haver explicitação, por parte do magistrado, das suas razões de decidir, não bastando o reenvio ã justificação contida na manifestação de uma das partes ou, até mesmo, de outra decisão do próprio juiz.**“* Mesmo aqueles que admitem, com reservas, a motivação per relationem, exigem que ela tenha como ato referido um outro ato jurisdicional, e não um ato de uma das partes. Neste caso, a toda evidência, não se trataria de fundamentação do juiz, mas de fundamento de uma das partes. É evidente que o juiz pode acolher integralmente os argumentos das partes, pouco ou nada tendo a acrescentar a um arrazoado bem fundamentado em que a parte o convença de seu direito. Todavia, isto não o desonera de explicitar as razões do seu convencimento, ainda que seja concordante com os invocados pela parte.“ ’

1.9 Garantia da publicidade O princípio da publicidade dos atos processuais tem direta relação com a legiti­ midade do exercício do poder de punir pelo Estado. Os processos secretos são típicos 112. Bettiol, Istituzioni..., p. 221-22. 113. Nesse sentido; Taruffo, La motivazione..., p. 434. Na doutrina pátria, não admitindo a motivação implícita: Tucci, Direitos e garantias..., p. 236; Badaró, Vícios de motivação..., p. 134; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 138. Em sentido contrário, admitindo-a, com a advertência de que “os limites da admissão da motivação implícita devem ser traçados com muita cautela"; Gomes Filho. A motivação..., p. 198. Na jurisprudência, não admitindo a motivação implícita: TJSP, Ap. Crim. 131.973-3, Ap. Crim. 153.753-3. 114. Nesse sentido: Tucci, Direitos e garantias..., p. 236-234; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 138. 115. Como explica Gomes Filho (A motivação..., p. 201), ao analisar os requisitos de validade da motivação per relationem: “[...] o terceiro requisito diz respeito ã legitimidade do autor do texto a que se faz referência para justificar a decisão judicial. Como salienta Amodio, não é possível admitir a relatio a atos processuais provenientes de sujeitos diversos do juiz ou juizes que tenham tomado parte na deliberação (...) Quanto a esse aspecto, é preciso fazer uma re­ ferência destacada ao generalizado costume, sobretudo nojuízo criminal, de se adotar como razão de decidir o conteúdo de pronunciamentos do órgão do Ministério Público. Essa prática, além de não atender à apontada exigência de legitimidade, transferindo o ônus de motivar a sujeito diverso, também pode comprometer um dos objetivos processuais da motivação, que é assegurar a imparcialidade da decisão, pois não é certo que as próprias razões do provi­ mento sejam dadas por uma das partes”. No mesmo sentido: Badaró. Vícios de motivação..., p. 136. Exaumente por tal motivo, o STF considerou nula sentença que copiou ipsis litteris as alegações finais do Ministério Público (RT 732/547). O extinto TACrimSP também reco­ nheceu a nulidade da sentença, por ausência de motivação (RT 676/302). Em outro julgado, o mesmo TACrimSP também anulou a sentença na qual o juiz limitou-se a afirmar “acolho a manifestação do Ministério Público a qual adoto como fundamento", por considerar que “o acolhimento da acusação não é fundamentação da decisão” (HC 220.652-3).

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de Estados autoritários. O desconhecimento da existência do processo, ou mesmo de alguns de seus atos, é uma forma de esconder as arbitrariedades do exercício do poder. Quando se faz algo errado ou ilegal, quanto menor o número de pessoas que tiverem conhecimento de tal ato, menor será a possibilidade de criticá-lo ou de demonstrar o equívoco do ato abusivo.**’ A publicidade de um ato de poder é fundamental para a sua legitimidade, até mesmo porque, do reconhecimento de que tal ato é correto, razoável e aceitável de­ pende, em parte, sua aceitação popular, que incorrerá sem publicidade. A publicidade assegura a transparência dos atos estatais. A CR assegura, na disciplina do Poder Judiciário, a publicidade dos atos proces­ suais. Não se trata, porém, de garantia absoluta, na medida em que a própria Consti­ tuição admite restrições a tal regime de publicidade. É possível o regime mais amplo, que constitui a regra geral, da publicidade popu­ lar ou geral, isto é, acessível a todo cidadão, ou publicidade restrita ou interna, que permite o conhecimento do ato apenas a um número reduzido de pessoíis, no caso, somente às partes e seus advogados. A publicidade restrita ou interna é impropriamente conhecida como “segredo de justiça”. Não se trata, porém, de segredo ou sigilo, em que o ato não seria conhecido nem mesmo pelas partes ou uma delas. A publicidade ampla, por ser o regime geral dos atos processuais, independe de previsão legal específica. Já a publicidade restrita é exceção, e, como tal, somente pode ocorrer nas hipóteses estritamente delimitadas em lei. Além disso, depende de decisão judicial no caso concreto, indicando a ocorrência da situação excepcional prevista em lei.* *’ Há uma colisão latente entre a intimidade dos sujeitos processuais, que pode ser assegurada pela publicidade restrita, e o direito a informação e esclarecimento da sociedade sobre os atos processuais. Recentemente, nesse entrechoque, a reforma do Poder Judiciário tomou partido pela primazia do direito à informação. A redação originária do inc. IX do art. 93 da CR era; “[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitara presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes". Com a nova redação dada a tal dispositivo, com a EC 45/2004, o citado disposi­ tivo passou a dispor: “[...] todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fun­ damentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença. 116. Frederico Marques (Tratado..., v. 1, p. 105) explica que a publicidade é imanente ao direito de defesa. 117. A publicidade restrita não precisa vigorar durante todo o processo. É possível que baja restrição quanto à publicidade do processo somente em relação a alguns atos, por exem­ plo, quando o acusado é retirado da sala de audiência, nos casos do art. 217 do CPP. Nesse sentido: Grandinetti de Carvalbo, Processo penal..., p. 194.

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em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo nào prejudique o interesse público à informação.” Ou seja, a regra geral é a publicidade ampla. Em casos especialmente previstos em lei, para preservar a intimidade das partes, a publicidade poderá ser restrita às partes e seus advogados. No entanto, não se poderá restringir a publicidade do processo, nem mesmo para preservar a intimidade das partes, se isso prejudicar o “interesse público à informação”. Entre intimidade e interesse à informação, privilegiou-se este sobre aquela. Por outro lado, o art. 5.°,LX,da CR assegura que “a lei só poderá restringir a publi­ cidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Tais regras encontram correspondência no CPP. O caput do art. 792 do CPP prevê a publicidade como regra para os atos processuais. Por sua vez, o § 1.“ prevê a possibilidade de o ju iz decretar a publicidade restrita, no caso em que a publici­ dade geral “puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem". A chamada “sala secreta” do tribunal do jú ri - o art. 485, caput, do CPP a deno­ mina “sala especial” - na qual ocorre a votação dos quesitos, nào fere o princípio da publicidade. Bem entendida a questão, não se trata de sala secreta, mas de sala em que se realiza a votação mediante publicidade restrita, posto que na sala estão presentes, além do juiz e dos jurados, o representante do Ministério Público e o defensor (CPP, art. 485, caput). Trata-se de restrição legal justificada pelo interesse público de asse­ gurar a tranquilidade dos juizes leigos no momento da votação.**® Por outro lado, o art. 520 do CPP não foi recepcionado na parte em que, ao dis­ ciplinara denominada audiência de reconciliação, prevê que dela participarão apenas o juiz e as partes “sem a presença dos seus advogados”. Ora, o regime de publicidade restrita, mesmo em seu grau máximo, não permite a exclusão do advogado. O ato po­ derá ser restrito às partes e seus advogados, ou somente a estes (CR, art. 93, IX, parte final). Assim, uma norma legal que afaste a presença dos advogados, mesmo que em uma audiência de conciliação, conflitará com o dispositivo constitucional, sendo de rigor a sua inaplicabilidade. No tocante ao inquérito policial, o art. 20 do CPP permite que tal procedimento administrativo seja sigiloso. Por não se tratar de processo judicial, o inquérito policial não se encontra sob a regência do art. 93, IX, da CR. Todavia, como condição neces­ sária para o exercício da ampla defesa, na sua vertente da defesa técnica (CR, art. 5.°, LV), e por expressa previsão legal do art. 7.°, XIV, do EOAB, o advogado tem o direito de consultar os autos do inquérito policial, não sendo possível aplicar ao defensor o regime do sigilo do inquérito. 118. Nesse sentido; Tucci, Direitos e garantias..., p. 223; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 74.

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O direito à vista dos autos do inquérito policial e de outros procedimentos investigatórios, que vinha sendo objeto de grande divergência jurisprudencial, foi sufragado pela Súmula Vinculante 14 do STF; “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em pro­ cedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Ainda que sob a ótica do exercício do direito de defesa, a súmula assegura, aos defensores, o direito de acesso aos autos do inquérito policial. Infelizmente, a ga­ rantia constitucional e a Súmula Vinculante 14 poderão ser burladas pela simples não inclusão do nome do investigado ou indiciado na atuação. Bastará que conste da autuação “indiciado; a averiguar”, mesmo que se saiba exatamente quem se investiga e, não raro, já tenham sido determinadas medidas judiciais contra ele, por exemplo, a interceptaçâo telefônica. Mesmo que não haja indiciamento, ou que, formalmente, o indivíduo não conste como investigado, é inegável que, a partir do momento em que for decretada, no curso da investigação, qualquer medida cautelar, seja de natureza pessoal (por exemplo, prisão temporária) ou real (por exemplo, sequestro de bens), ou mesmo um meio de obtenção de prova, como a interceptaçâo telefônica, a busca e apreensão ou a quebra de sigilo bancário ou fiscal, não se poderá negar ao seu defensor o direito à vista dos autos da investigação. Finalmente, é de observar que a Súmula Vinculante 14 do STF nâo se refere a “inquérito policial”, mas a “procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária”. Assim sendo, qualquer procedimento investiga­ tório para fins penais estará sujeito ao regramento da Súmula, inclusive, para quem admite, a investigação direta pelo Ministério Público."® Se o segredo é um mal que desnatura o processo, também é preciso tomar cuidado com a exasperação da publicidade processual. O strepitus jo r i pode causar danos irreparáveis ao acusado e às vítimas. O forte sensacionalismo pode levar a um seriissimo comprometimento da serenidade do julgador que, em casos ex­ tremos, pode levar à perda da imparcialidade, por força da sugestionabilidade e, até mesmo, por que não se dizer, de verdadeira coação que a mídia pode exercer sobre o julgador.

1.10 Garantia do duplo grau de jurisdição O princípio do duplo grau de jurisdição assegura o direito ao reexame das de­ cisões por um órgão jurisdicional diverso daquele que as proferiu. Trata-se, porém, de um único reexame. Diante da organização judiciária brasileira, em que o STJ e o STF podem funcionar, respectivamente, como terceiro e quarto graus de jurisdição, a possibilidade de interposição de recurso especial e extraordinário não é manifestação do duplo grau de jurisdição. 119. Sobre o tema, cf. cap. 3, item 3.15.

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De outro lado, o duplo grau de jurisdição significa que, salvo nos casos de compe­ tência originária dos Tribunais, o processo deve ser examinado uma vez em primeiro grau de jurisdição e reexaminado uma segunda vez em sede recursal pelo Tribunal. O exame direto da matéria pelo Tribunal constitui supressão do primeiro grau de jurisdição, o que também viola o princípio do duplo grau de jurisdição. A Constituição de 1988, que foi pródiga em explicitar vários princípios consti­ tucionais, não assegurou, expressamente, o duplo grau de jurisdição. Todavia, como a Magna Carta estrutura o Poder Judiciário, criando órgãos de primeiro e órgãos de segundo grau de jurisdição, sendo função precípua destes últimos reverás decisões proferidas em primeiro grau, tem-se entendido que o princípio do duplo grau de ju ­ risdição é um princípio constitucional implícito.*®“ O recurso extraordinário (art, 102, III) e o recurso especial (art. 105, III), ex­ pressamente previstos na Constituição, não têm por função assegurar o duplo grau de jurisdição.*®* O duplo grau de jurisdição é expressamente previsto na CADH, que assegura a todos os acusados, entre as garantias processuais mínimas, o “direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior” (art. 8.2, h). Por sua vez, o PIDCP assegura que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei” (art. 14. 5). Como jã visto, tais disposições integram o ordenamento jurídico nacional, tendo status de norma constitucional, ou, no mínimo, hierarquia supralegal, por força do Decreto 678/1992 e do Decreto 592/1992, respectivamente.*®® De qualquer forma, em tal âmbito, a garantia do duplo grau de jurisdição é limi­ tada duplamente; primeiro, porque somente é garantia para o acusado, mas não para o acusador; segundo, porque só é garantida em relação à sentença. Logo, não seria 120. É a posição de Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 23. Para Laspro (Duplo grau..., p. 172) e Nery Jr. (Princípios..., p. 169), trata-se de um princípio constitucional implícito, mas que não constitui uma garantia absoluta, podendo ser excepcionada pelo legislador infraconstitucional. Para Moraes (Direito Constitucional..., p. 121), o direito ao recurso se insere entre as garantias do devido processo legal. Para Greco Filho (Manual..., p. 48), o direito de recorrer da decisão favorãvel é inerente à ampla defesa. Por sua vez. Cruz (Garantias processuais..., p. 49-50) manifesta-se pela natureza constitucional do duplo grau, por ser inerente ao regime democrático, por decorrer de tratados internacionais de direitos humanos, em especial da CADH, e por ter fundamento no art. 5.°, LV, da CR. O STF já teve oportunidade de negar que o duplo grau de jurisdição é uma garantia fundamental (RHC 75.785/RJ). 121. Por outro lado, o recurso ordinário em habeas corpus (art. 102, II, a, e art. 105, II, a) assegura o duplo grau em relação ã decisão denegatória de habeas corpus de competência originária de outro tribunal. 122. Com base em tal argumento. Penteado (Duplo grau..., p. 123) entende que o duplo grau de jurisdição tem natureza constitucional entre nós. Por sua vez, Nery jr. (Princípios..., p. 172), invocando o art. 8.2, h, da CADH, conclui que, no processo penal, o duplo grau de jurisdição é uma garantia constitucional absoluta.

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incompatível com a CADH um sistema com irrecorribilidade das decisões interlocutórias, bem como no qual somente houvesse recurso da sentença em favor do acusado, inexistindo uma apelação pro societate. Há, também, um fundamento político para o princípio do duplo grau de juris­ dição: toda decisão estatal deve estar sujeita a reexame. A ausência de controle daria ao titular de tal decisão um poder ilimitado e absoluto, o que não pode ser aceito em um Estado de Direito. Entre os argumentos favoráveis ao duplo grau de jurisdição, sempre é lembrado o maior cuidado do julgador ao proferir uma decisão, quando sabe que ela poderá ser reexaminada por outro órgão. Além disso, como o julgamento em segundo grau é colegiado, eventual erro individual no julgamento poderá ser irrelevante, diante do acerto da maioria. Trata-se, pois, de um julgamento menos sujeito a erros. Finalmente, por serem mais experientes que os juizes de primeiro grau, presume-se que as decisões dos integrantes dos tribunais serão mais acertadas. Embora não se tenha notícia de nenhum ordenamento jurídico que não acolha, em maior ou menor amplitude, o duplo grau de jurisdição, não se pode deixar de destacar que existem criticas a tal garantia. A primeira delas é que, sempre que há uma reforma da decisão pelo tribunal, fica evidenciada uma contradição entre os julgados. Além disso, é possível que a decisão do recurso que modifique a sentença anterior seja ela própria equivocada e acabe por modificar um julgamento correto. Finalmente, afirma-se que, quando o julgamento do recurso apenas confirma a decisão anterior, haveria um desperdício de atividade processual.

1.11 Garantia do processo no prazo razoável*™ A CR de 1988 foi pródiga em prever, expressamente, diversas garantias cons­ titucionais ao acusado que, em última análise, integram o devido processo penal brasileiro. Entre essas garantias não se incluía, originariamente, o direito ao processo em prazo razoável. Somente com a Emenda Constitucional 45/2004, acrescentou-se 0 inc. LXXVIII ao art. 5.° da Constituição, que passou a assegurar, expressamente: “a todos, no âmbitojudicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (destacamos). Antes, porém, o direito a um processo que se desenvolva em um prazo razoável ou, mais sinteticamente, o direito ao prazo razoável, já era assegurado na CADH. Qual seria o enquadramento jurídico de tal direito? Ressalte-se, está-se analisando o direito ao prazo razoável como direito a uma justiça tempestiva, isto é, o direito ao justo processo que, embora analisado principalmente em sua aplicação no processo penal, relaciona-se com qualquer espécie de processo. Trata-se do direito previsto no art. 8.1 da CADH. 123. Tratamos de tal garantia em obra conjunta com Aury Lopes Jr., cuja leitura é sugerida para uma análise mais aprofundada do tema: Lopes Jr., Aury e Badaró, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no prazo razoável. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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Na doutrina, o direito ao processo em prazo razoável normalmente aparece ligado à cláusula do dueprocess oflaw}^^ A preocupação com a duração do processo penal, que deve se desenvolver em um prazo razoável, ou como figura em alguns textos, sem dilações indevidas, apareceu inicialmente nas declarações internacionais de direitos humanos. O direito ao processo em prazo razoável deve ser analisado em um dúplice aspecto: (1) o direito a um processo penal ou de qualquer outra natureza (civil, trabalhista...), em prazo razoável ou sem dilações indevidas; (2) o direito ao desencarceramento do acusado preso cautelarmente, caso não seja julgado em um tempo razoável ou sem dilações indevidas. A CADH estabelece, em seu art. 8.1, entre as garantias judiciais, que; “[...] toda pessoa terá o direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determine seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”, (destacamos). Por sua vez, o art. 7.5, prevê que: “[...] toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à pre­ sença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo".*“ (destacamos). Em suma, na CADH há, de um lado, o direito ao julgamento em prazo razoável, para qualquer processo, penal ou não penal; de outro, é assegurado, exclusivamente para o processo penal, em caso de acusado preso, que este seja posto em liberdade caso a duração do processo ultrapasse o prazo razoável.*“ 124. Nesse sentido; Cruz e Tucci, G arantia..., p. 106-7; Castro, O devido processo legal..., p. 278. Já para Tucci (Direitos e garantias..., p. 67), o direito ao julgamento em prazo ra­ zoável decorre do devido processo penal, que é a especificidade penal da garantia do devido processo legal, consubstanciando-se em uma série de garantias, entre as quais o direito ao julgamento em prazo razoável. Na doutrina estrangeira, Trocker (Processo Civile e Costituzione..., p. 278-279) liga o direito ao processo era prazo razoável ao direito de ação e de defesa. Já Carrió (Garantias constitucionales..., p. 207) considera que o direito a um juízo razoavelmente rápido deriva do direito de defesa. 125. A duplicidade de tratamento jã era encontrada na Convenção Européia dos Direitos do Homem, conbecida como Convenção de Roma, subscrita em 04.11.1950, que em seu art. 6 .°, § 1 .°, estabelece uma regra geral, aplicável aos processos de qualquer natureza, e no art. 5.“, § 3.°, traz disposição cujo âmbito de aplicação se limita ao processo penal e, mais especificamente, para os casos em que o acusado esteja preso cautelarmente. 126. Entendemos que, após a Emenda Constitucional 45, que acrescentou o § 3.° e o inc. UCXVllI ao art. 5.°, o panorama se alterou. O direito ao processo no prazo razoável passou a ser uma garantia constitucional explícita (art. 5.°, LXJÕ/III). Já o direito de o acusado ser

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Fazendo um paralelo com a duplicidade do tratamento do direito do processo em prazo razoável, percebe-se que o inc. LXXVIII do art. 5.° da nossa Constituição eqüivale à garantia genérica do direito ao processo, de qualquer natureza - penal, civil, trabalhista (...) no prazo razoável ou ao direito a uma razoável duração do processo (CADH, art. 8.1). Por outro lado, nossa garantia é mais ampla do que a garantia genérica ao direito ao processo no prazo razoável, uma vez que, nos tratados internacionais, tal garantia é exclusiva dos processos judiciais. A nova garantia constitucional brasileira, porém, aplica-se “no âmbito judicial e administrativo”.*®® O novo dispositivo constitucional não prevê, porém, de forma expressa, um di­ reito equivalente ao assegurado no art. 7.5 da CADH, qualseja, o direito de o acusado preso ser colocado em liberdade, se a duração do processo excede o prazo razoável. De se observar que, neste caso, evidentemente, a prisão cautelar se tornará ilegal, posto que decorrente de um processo que viola a garantia constitucional da razoável duração do processo. E, sea prisão é ilegal, a Constituição assegura que “aprisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária" (art. 5.°, LXV). Em suma, ao menos pela conjugação do inc. LXXVIII com o inc. LXV, pode-se concluir que existe, de forma explícita no ordenamento jurídico brasileiro, o direito de o acusado ter sua prisão imediatamente relaxada se a duração do processo penal exceder o prazo razoável. Não há definição legal do que se deve entender por razoabilidade da duração do processo.*®® posto em liberdade, se estiver preso e o processo durar além do prazo razoável, passou a ser uma garantia materialmente constitucional (CADH, art. 7.5), embora formalmente não seja equiparado a uma emenda constitucional (CR, art. 5.°, § 3.°). Para uma análise mais aprofundada da questão, inclusive quanto à natureza hierárquica das normas da CADH, cf.: Lopes jr. e Badaró, Direito ao processo..., p. 24-32. 127. Cabe destacar que o TEDH, analisando a questão à luz da Convenção Europeia de Direi­ tos Humanos, entendeu aplicável tal garantia aos processos administrativos (caso Õztürk, sentença de 21.02.1984) e disciplinares (caso Campbell e Fell, sentença de 28.06.1984). Analisando a questão, Ubertis (Principi..., p. 18) observa que os Estados-Partes da CEDH não podem evitar o respeito da garantia do processo em prazo razoável “trocando a etiqueta" de um fato, para atribuir-lhe natureza administrativa ou disciplinar. 128. No plano internacional, foi no caso Wemhoff (sentença de 27.06.1968) que se deu o primeiro passo na direção da definição de certos critérios para a valoração da “duração indevida", através do que se convencionou chamar de “doutrina dos sete critérios". Para valorar a situação, a Comissão Europeia de Direitos Humanos sugeriu que a razoabilidade da prisão cautelar (e consequente dilação indevida do processo) fosse aferida considerando-se: (1) a duração da prisâò cautelar; (2) a duração da prisão cautelar em relação à natureza do delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação; (3) os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros; (4) a inQuência da conduta do imputado em relação à demora do processo; (5) as dificuldades para a investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e réus. dificul­ dades probatórias etc.); (6) a maneira como a investigação foi conduzida; e (7) a conduta das autoridades judiciais. Tratava-se de critérios que deveriam ser apreciados em conjunto, com valor e importância relativas, admitindo-se, inclusive, que um deles fosse decisivo na

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Essa posição, conhecida como “doutrina do não prazo”, é extremamente criticável.*™ Imprescindível, para eficácia do direito fundamental, que a lei preveja o prazo máximo de duração da prisão e imponha, como consequência automática do exces­ so, a soltura do réu. Por que todo indivíduo tem o direito de saber o prazo máximo de sua prisão, enquanto pena privativa de liberdade (CR, art. 5.°, XXXIX), que deve ser expressamente fixado em lei, mas não tem o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto, mormente estando preso?'®“ aferição do excesso de prazo. A doutrina dos sete critérios não foi acolhida pelo TEDH como referencial decisivo, mas tampouco foi completamente descartada, tendo sido utilizada pela Comissão em diversos casos posteriores e servido de inspiração para um referencial mais enxuto, denominado teoria dos três critérios: (1) complexidade do caso; (2) a atividade processual do interessado (imputado); e (3) a conduta das autoridades judiciárias, Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo TEDH, como também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ainda que mais delimitados, não são menos discricionários. Cabe destacar que. nos últimos anos, o TEDH (caso Grisez, sentença de 16.09.2002; caso Nevmerzhitsky, sentença de 05,04.2005; caso Panchenko, sentença de 08.02.2005; caso Sardinas Albo, sentença de 17.02.2005), embora mantendo o critério geral da razoabilidade, tem acrescentado em suas decisões que a duração prolongada da prisão cautelar somente estará justificada se houver uma “real exigência do interesse público, que deve prevalecer sobre o direito de liberdade, não obstante a presunção de inocência”. A “real exigência de um interesse público” é um fator tão ou mais vago que os três critérios anteriores. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos também já decidiu que os critérios para determinar, no caso concreto, o prazo razoável referente à administração da justiça são: (1) complexidade do assunto; (2) atividade processual do interessado; e (3) conduta das autoridades judiciais (Relatório 111/2001, Caso 11.517, Diniz Bento da Silva (Brasil), de 15.10.2001). 129. Destaque-se a posição crítica de Grandinetti de Carvalho (Processo penal..., p. 35), que propõe “que o réu seja julgado em determinado momento, no estado em que se encontrar o processo. Ele tem o direito de ser julgado, esgotado o prazo razoável para o término da instrução processual e desde que opte por ser julgado naquele momento”. 130. A fixação de prazo legal de duração da prisão cautelar era encontrada no CPP italiano de 1930 (art. 272) e também está prevista no CPP de 1988 (art. 303) que. para os crimes mais graves, punidos com prisão perpétua ou com pena superior a vinte anos, o processo em primeiro grau deve estar concluído no prazo máximo de um ano e seis meses (art. 303, c, 3). Também na Alemanha, a StPO prevê um prazo máximo de seis meses de duração para a prisão preventiva, que somente poderá ser excedido “se as dificuldades particulares ou a anormal complexidade da investigação ou outro motivo importante nào permitem ainda a sentença e justificam a continuação da prisão” ( i 121, 1."). No CPP português de 1987 há previsão de prazos fixos de duração da prisão preventiva, de acordo com a fase da persecução penal. Como regra geral, no art. 215.1, o prazo máximo é de dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado. Na Argentina, o CPP da Província de Buenos Aires, no art. 141, determina que, estando preso o acusado, a duração máxima do processo será de dois anos. O CPP do Chile também estabelece um prazo máximo para as prisões preventivas, tendo por base a metade da pena prevista em caso de condenação (art. 152). O CPP paraguaio estabelece o prazo máximo de três anos para a duração do processo (art. 136), após o que o processo será extinto (art. 137). No ordenamento juridico

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É controvertido o termo inicial do direito a ser julgado no prazo razoável. Neces­ sário, neste caso, distinguir os “dois direitos” ao prazo razoável; o direito a qualquer processo em prazo razoável (CR, art. 5.“, LXXVIII, e CADH, art. 8.1) e o direito de o acusado preso cautelarmente ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade (CR, art. 5 ° , LXV, e CADH, art. 7.5). Quanto ao direito genérico ao processo em prazo razoável, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no Caso Neumeister, considerou que o termo a partir do qual surge o direito de ser julgado em prazo razoável seria o momento em que as suspeitas que pesam sobre uma determinada pessoa começassem a ter “repercussões importan­ tes” em sua posição jurídica.*’ * Importante destacar que, segundo a jurisprudência do TEDH, não é necessária uma acusação formal, devendo a expressão “acusação”, do art. 6 .“.1 da CEDH, ser interpretada em sentido bastante amplo, podendo tratar-se de uma data anterior ao momento de início do processo perante o tribunal, como no caso de prisões cautelares, a inculpação ou o início da investigação preliminar.*” Certamente, uma dessas repercussões importantes, talvez a mais importante delas, é a prisão cautelar do investigado. Por outro lado, mesmo não bavendo a pri­ são cautelar, é possível admitir como dies a quo um momento anterior ao início do processo penal.*” É perfeitamente possível, portanto, que o direito ao julgamento em prazo razoável, previsto no art. 5.°, LXXVIII da CR e no art. 8.1 da CADH, tenba como termo inicial ato realizado na fase de investigação preliminar.*” brasileiro encontramos tal critério apenas no caso de prisão temporária, que poderá ter du­ ração de cinco dias (Lei 7.960/1989, art. 2.°) ou de 30 dias (Lei 8.072/1990, a rt. 2°, § 4.”), prorrogáveis pelos mesmos prazos. A Lei 12.850/2013 - Lei das Organizações Criminosas no parágrafo ünico do art. 22 prevê; “A instrução criminal deverá ser encerrada em prazo razoável, o qual não poderá exceder a 120 (cento e vinte) dias quando o réu estiver preso, prorrogáveis em até igual período, por decisão fundamentada, devidamente motivada pela complexidade da causa ou por fato procrastinatório atribuível ao réu”. Não bavendo no CPP previsão de um prazo máximo de duração da prisão, deve ser aplicado, por analogia, o prazo de 120 dias para todos os processos. 131. TEDH, Caso N eum eister vs. Áustria, sentença de 27 .0 7 .1 9 6 8 , § 26. Depois seguido pelo TEDH, por exemplo, no C aso E ckie vs. Aiemanha, sentença de 10.12.1982; Caso Foti e outros vs. Itdiia, sentença de 10.12.1982. Este critério também foi adotado pela Comissão Européia de Direitos Humanos, cf.; Caso Hãtti, Parecer de 20.05.1976; Parecer de 10.05.1979 (8130/77). 132. Nesse sentido, na jurisprudência do TEDH: Caso Baggetta vs. Itdiia, sentença de 25.06.1987, § 31; Caso Eckie vs. Aiemanha, sentença de 15.06.1982, § 73; Caso Adoif vs. Áustria, sentença de 26.03.1982, § 79; Caso Denée vs. Bélgica, sentença de 04.12.2007, § 47. 133. O TEDH, no Caso Ringensen vs. Áustria, sentença de 16.07.1971, já decidiu que o ter­ mo a quo pode ser a data de abertura de uma investigação preliminar ou de uma instrução preliminar. 134. Nesse sentido: Barreto, A Convenção Européia..., p. 145; Salado Osuna, El ‘plazo razonable’..., p. 307.

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Fica claro que, havendo prisão temporária ou preventiva, aplica-se o art. 7.5 da CADH, sendo esse momento o d ie s a quo para o cômputo do prazo razoável, mesmo que ainda não se tenha iniciado verdadeiramente o processo. Por outro lado, mesmo não havendo a prisão cautelar, é possível admitir como dies a quo um momento anterior ao início do processo penal. Pense-se, por exemplo, na instauração do inquérito policial ou no indiciamento que, sem dúvida, representam formas de restrições a direitos do cidadão. É perfeitamente possível, portanto, que o direito ao julgamento em prazo razoável tenha como termo inicial data anterior à instauração do próprio processo.” ’ Ao mais, é de considerar que o inc. LXXVIII do art. 5.° prevê que “a todos, no âm bito ju d icial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tram itação" (destacamos). Ao assegurar a razoável duração tanto no âmbito judicial como também no administrativo, é pos­ sível interpretar a Constituição como estabelecendo como dies a quo a abertura do inquérito policial.‘®® Por outro lado, relativamente ao direito de o investigado ou acusado preso cautelarmente ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade (CADH, art. 7.5), o termo inicial é a data da efetiva prisão do acusado, pouco importando o seu título, ou mesmo que, no curso do encarceramento, tenha havido mudança da natureza jurídica da prisão. Assim, por exemplo, se o investigado foi preso temporariamente e depois teve decretada a sua prisão preventiva, o prazo deve ser computado desde o início da prisão temporária. Por outro lado, se foi preso em flagrante delito e, depois, teve a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva (CPP, art. 310, caput, II), o termo inicial será a data da prisão em flagrante delito. No tocante ao termo final do prazo razoável de duração do processo, também há divergência sobre sua caracterização. A solução dessa controvérsia exige que se distinga o direito a um julgamento no prazo razoável, para a generalidade dos processos (CADH, art. 8.1), do direito ao desencarceramento em caso de preso cautelar não julgado no prazo razoável (CADH, art. 7.5). 133. Michele de Salvia (Privazione di liberta..., p. 107) relata interessante parecer da Comissão Europeia. Trata-se de caso em que o recorrente era suspeito de roubo, tendo sido interrogado pela polícia em 1968. A acusação formal se deu em 1970 e a prisão somente foi decretada em 1971. A Comissão decidiu, todavia, que o dies a quo deveria ser o dia em que um jornal o acusou publicamente de ser ladrão, o que ocorreu em maio de 1969. A partir dessa data, de fato, a situação pessoal do recorrente passou a ser influenciada pela persecução contra ele instaurada. Na doutrina nacional, Nicolitt (A duração..., p. 133) considera que, “existin­ do a figura do indiciado, o inquérito passa a estar submetido ao controle da razoabilidade de sua duração”. Não se discorda de tal posição, mas ela não é suficiente. Bastaria que a autoridade policial retardasse o indiciamento, que muitas vezes só é realizado - errônea e desnecessariamente - após o oferecimento da denúncia, para que a garantia fosse esvaziada na fase de investigação preliminar. 136. Na jurisprudência, reconhecendo o excesso de prazo no inquérito policial; STJ, HC 44.604/RN, RHC 4.976/PR; TRF, Terceira Região, HC 2006.03.00.109101-3/MS.

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Relativamente ao direito ao processo no prazo razoável do art. 5.°, LXXVIII, da CR e art. 8.1 da CADH, correspondente ao direito ao justo processo, ou à justiça tempestiva, o termo final do prazo é o momento de um julgamento definitivo sobre o mérito da acusação. Somente com o trânsito em julgado da sentença de mérito a parte terá recebido a tutela jurisdicional, que deverá respeitar todos os atributos do justo processo, inclusive a tempestividade e a razoabilidade da duração do processo. Ou seja, o período para o julgamento dos recursos interpostos pelas partes deve ser computado para caracterização do prazo razoável de duração do processo. Por outro lado, no tocante ao termo final do direito de o acusado que respon­ de ao processo preso ser julgado em prazo razoável ou ser colocado em liberdade (CADH, art. 7.5), existem duas corrente; (1) será o dia em que é proferida a sen­ tença de mérito, ainda que recorrível; (2) será a data do trânsito em julgado da sentença de mérito. Como facilmente se observa, a diferença é a inclusão ou não do prazo recursal no cômputo do prazo razoável, para fins de desencarceramento. Melhor a segunda posição, no sentido de que o direito de o acusado ser julgado em prazo razoável, com a alternativa de ser posto em liberdade, deve incluir o tempo de julgamento do recurso interposto contra a sentença condenatória. Em outras palavras, enquanto pende o recurso, é possível considerar que o prazo da prisão se estende além do prazo razoável e, consequentemente, o acusado tem direito ao desencarceramento. Exatamente nessa linha deve ser interpretada a garantia contida no art. 5.", LXXVIII, da CR. Em que pese o legislador não ter assegurado, expressamente, o desencar­ ceramento em razão do excesso de prazo da prisão, a leitura do texto constitucional à luz da CADH impõe tal conclusão. Somente essa posição assegurará que, em casos de prisões cautelares posteriores à sentença, o acusado não permaneça indefinidamente privado de sua liberdade, o que, na prática, o equipararia ao condenado definitivo, pois estaria sofrendo uma espécie de punição antecipada e sujeitando-se à execução provisória da pena, com ofensa ao princípio da presunção de inocência. Por outro lado, o direito fundamental à razoável duração do processo impõe uma releitura dos parâmetros jurisprudenciais até então vigorantes. Uma correta in­ terpretação dos direitos fundamentais exige sua colocação como valor orientador da interpretação das normas infraconstitucionais e do posicionamento jurisprudencial. O que se pretende, a partir da definição do conteúdo do direito do processo ao prazo 137. Ubertis (Principi di procedura..., p. 89) observa que considerar a sentença de primeiro grau como o termo final do direito de ser colocado em liberdade não resolve o problema da demora no julgamento do recurso. Em relevante julgado, o STJ reconheceu o direito de o acusado preso cautelarmente ser colocado em liberdade, por excesso de prazo na prisão, mesmo após a interposição do recurso. Tratava-se de processo ao qual o acusado tinha respondido em liberdade, sendo determinada sua prisão cautelar somente por ocasião da sentença. Depois disso, o acusado já estava preso há mais de quatro anos, sem que tivesse sido julgado o recurso. Diante disso, reconheceu-se a violação do direito ao julgamento em prazo razoável, mesmo após sentença de primeiro grau (STJ, HC 77.277/SP).

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razoável, é analisar a compatibilidade ou incompatibilidade das leis e da jurispru­ dência vigoraiites. O direito ao processo em prazo razoável, mas principalmente o direito de o acu­ sado preso cautelarmente ser julgado em prazo razoável, ou ser posto em liberdade (CR, art. 5.“, § 2.°, c.c. CADH, art. 7.5), exige que sejam reavaliadas as três súmulas do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema: Súmula 52; “Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de cons­ trangimento por excesso de prazo”. Súmula 64; “Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instru­ ção, provocado pela defesa”. Súmula 21; “Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução”. A Súmula 52 define o termo final do direito ao processo no prazo razoável, sob o enfoque da necessidade de desencarceramento, pela excessiva duração do processo. Em princípio, apesar de concebida visando ao procedimento comum ordinário, tem aplicação também no caso de procedimentos especiais, uma vez que estes, em sua maioria, após a superação da fase inicial que Ibe dá a especialidade, seguem o proce­ dimento comum ordinário em seus atos ulteriores. A Súmula 52 é fruto da conjugação de dois fatores; o primeiro deles éa constatação de que os 81 dias para o término do procedimento ordinário, isto é, para a prolação da sentença de primeiro grau, vinba se mostrando uma meta dificilmente atingível; o segundo fator é uma postura reacionária ao entendimento de que, se o processo de réu preso não fosse concluído no exíguo prazo de 81 dias, o acusado devia ser colocado em Uberdade, por mais grave que fosse o crime imputado, ou por mais contundentes que fossem as provas contra ele. O encurtamento do termo final, ou seja, a adoção de um termo ad quem anterior ao julgamento em primeiro grau, é incompatível com o direito ao processo penal em prazo razoável, assegurado pelo art. 5.”, LXXVIII, da Constituição, bem como no art. 7.5 da CADH. O direito à “razoável duração do processo” não pode ser reduzido ao direito à “razoável duração da instrução”.*“ O término da instrução não põe fim ao processo! A pessoa que responda presa cautelarmente ao processo não terá sido “julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade” (CADH, art. 7.5). Mesmo no regime do procedimento comum ordinário, alterado pela Lei 11.719/2008, encerrada a instrução, isto é, concluída a oitiva das testemunhas e realizado o interro138. Sobre o tema, merece destaque voto relatado pela Min. Maria Tbereza Assis Moura, em que o direito ao prazo razoável levou a uma reinterpretaçào da Súmula 52; “Ainda que encerrada a instrução, é possível reconhecer o ex cesso de prazo, diante da garantia da ra­ zoável duração do processo, prevista no art. 5.“, LXXVIII, da Constituição. Reinterpretaçào da Súmula 52 à luz do novo dispositivo". No mesmo sentido, reconhecendo o excesso de prazo mesmo de processo que se encontra na fase do art. 499 do CPP; STE HC 85.61 l/DF, HC 85.400/PE.

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gatório do acusado, a nova audiência una de instrução ejulgamento poderá ser cindida, caso haja necessidade de diligências complementares requeridas pelas partes (CPP, art. 402) e deferidas pelo juiz (CPP, art. 404, caput). Neste caso, as alegações finais deverão ser apresentadas por escrito, no prazo de cinco dias, e o juiz terá mais dez dias para proferir sentença (CPP, art. 404, parágrafo único). Os prazos para a prática de todos estes atos deverão ser computados para a verificação do direito de o acusado preso ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade.*®® Diante da previsão de uma audiência una, de instrução, debates e julgamento, espera-se seja afastada prática comum do antigo procedimento ordinário em que os juizes, no caso de réu preso, davam uma tramitação rápida ou, ao menos, mais célere aos processos, somente até o término da audiência de oitiva de testemunhas de defesa. Depois disso, à realização das diligências complementares, à apresentação das alegações finais e á prolação da sentença, seguia-se uma tramitação lenta, como se não mais houvesse qualquer necessidade de uma solução rápida do feito. No atual procedimento comum, ou tudo será resolvido na própria audiência, até a prolação da sentença oral, ou no caso de cisão da audiência, o tempo gasto para diligências com­ plementares, alegações finais e sentença deverá ser computado para a verificação do prazo razoável de duração do processo, sendo perfeitamente possível a configuração de constrangimento ilegal durante tal etapa procedimental. Aliás, cabe observar que a Súmula 64, que em si mesma não merece reparos, sendo perfeitamente compatível com o direito ao processo em prazo razoável, tem sido desvirtuada e, muitas vezes, tem servido para que se antecipe, ainda mais, o termo final do prazo razoável de duração do processo em caso de réu preso. No regime anterior do CPP, no procedimento comum ordinário havia duas audiências para oitiva de testem unhas, e não faltavam julgados que, m esmo tratando-se de provas orais defensivas, absolutamente pertinentes e relevantes, consideravam que, quando se encerrava a oitiva das testemunhas de acusação, a demora para a conclusão do processo passaria a ser provocada pela defesa, pelo que não há mais que se cogitar de constrangim ento ilegal. Ou seja, o termo final do constrangimento ilegal não era mais o encerramento da instrução, mas o término da prova acusatória. 139. Ante as mudanças operadas pela L ei 11.719/2008, quanto ao procedimento comum, não hã como continuar aplicando o critério dos 81 dias. Assim, seguindo-se o critério da somatória dos prazos dos atos processuais, para a prática dos diversos atos do inquérito e do procedimento comum ordinário, até a sentença, perfaz um total de 85 dias: inquérito - 10 dias (art. 10), denúncia - 5 dias (art. 46), resposta - 1 0 dias (art. 396), audiência de instrução debates ejulgamento - 60 dias (art. 400, caput). No caso de interrupção da audiência, pela complexidade do caso, a tal prazo de 85 dias devem ser somados mais 30 dias, perfazendo um total de 115 dias; alegações das partes - 5 + 5 dias (art. 404, parágrafo único), senten­ ça - 20 dias (art. 404, parágrafo único c.c. o art. 800, § 3.“). Finalmente, caso a audiência tenha sido interrompida pela necessidade de realização de diligências complementares ao prazo de 115 dias, devem ser somados mais 5 dias, perfazendo um total de 120 dias.

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Cabe lembrar que o antigo critério jurisprudencial dos 81 dias tinha como termo final a sentença de primeiro grau. A Súmula 52 antecipou o termo final de tal prazo para o término da instrução, isto é, a conclusão da oitiva das testemunhas de defesa. Por fim, um desvirtuamento da Súmula 64 tinha levado ao equivocadíssimo enten­ dimento de que o termo final para se alegar o constrangimento ilegal, pelo excesso de prazo da prisão, é o término da oitiva das testemunhas de acusação.'®“ Não será de estranhar que, se esta involução não for interrompida, surja uma súmula que diga que, “realizada a citação do acusado, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo”.'®' Aliás, no regime anterior, se a evolução - ou melhor, involução - jurispruden­ cial vinha sucessivamente excluindo determinados atos do procedimento para a caracterização do constrangimento ilegal por excesso de prazo, seria necessário que, coerentemente, se reduzisse o prazo global de 81 dias, dele se excluindo os prazos dos atos posteriores ao termo final do constrangimento ilegal (por exemplo, 24 horas, de cada parte, para requerimento do antigo art. 499 do CPP; 3 dias, de cada parte, para as alegações finais escritas, 10 dias do juiz para a sentença). Finalmente, é de considerar a situação especial do procedimento bifásico dos crimes dolosos contra a vida. Inicialmente, não se pode deixar de atentar para uma antinomia entre os termos finais do constrangimento ilegal na Súmula 52 (término da instrução) e da Súmula 21 (término da primeira fase do procedimento). Na primeira fase do procedimento do júri, o termo final do prazo razoável é o fim do procedimento, com a decisão de pronúncia (Súmula 21). Já no procedimento comum ordinário, é o término da instrução (Súmula 62). Não há nada a justificar que, no procedimento comum ordinário, sejam excluídos da duração razoável do processo o tempo utilizado para a apresentação de alegações finais e o tempo para a prolação da sentença, enquanto no procedimento do jú ri o periodo das alegações finais e da decisão de pronúncia seja computado em tal prazo. De qualquer forma, como a Constituição assegura o direito à razoável duração do “processo”, e se o acusado preso tem o direito de “ser julgado” em prazo razoável ou ser posto em liberdade, convém observar que o procedimento do jú ri somente termina com o julgamento em plenário, e não com a decisão de pronúncia. Pronunciado o acusado, terá fim apenas a primeira fase do processo, com o julgamento da acusação, mas não todo o processo, com o julgamento da causa. Assim sendo, não há por que excluir do cômputo do prazo razoável toda a segunda fase do procedimento do júri. 140. O equívoco na interpretação da Súmula 64 decorre da não distinção entre o normal uso do direito de defesa (p. ex.: arrolando testemunha residente em outra comarca, visando à demonstração de álibi), com o abuso do direito de defesa (p. ex.: requerendo perícias ou incidentes desnecessários ou protelatórios). 141. Na primeira edição do Direito Processual Penal, Tomo I, diante do procedimento co­ mum então era vigor, dizíamos, que o texto da súmula seria “realizado o interrogatório, fica superada a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo".

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isto é, desde o requerimento de diligências do art. 422 até o julgamento popular. As­ sim, o termo final do direito à razoável duração do processo, no procedimento do júri, deverá ser o fim da sessão de julgamento pelo Tribunal Popular.'”

1.12 Garantia do devido processo legal O devido processo legal é um princípio constitucional explícito: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (CR, art. 5 ° , LIV). Embora o devido processo legal, durante muito tempo, estivesse ligado apenas ao aspecto processual, atualmente possui contornos mais amplos. É possível dividir o dueprocess o f law em dois aspectos; o procedural dueprocess e o substantive due process. O devido processo legal substantivo assegura que as leis sejam razoáveis. Nos dizeres de Carlos Alberto de Siqueira Castro, o substantive due process é “capaz de condicionar, no mérito, a validade das leis e da generalidade das ações (e omissões) do Poder Público. A cláusula erigiu-se, com isso, num requisito de ‘razoabilidade’ (rasonableness) e de ‘racionalidade’ (rationality) dos atos estatais, o que importa num papel de termômetro axiológico acerca dajustiça das regras de direito". Em conseqüência, também entende que “uma lei (ou outro ato normativo qualquer) que não atenda à razoabilidade (reasonabless) é inconstitucional, por ferir a cláusula do dueprocess. E cabe ao Poder judiciário, desde que foi concebido o judicial review o f legislation, a tarefa de aferir a ‘justiça’ da lei”.''*’ De outro lado, o devido processo legal ainda mantém a sua face processual. O princípio do devido processo legal, em seu aspecto processual, é um princípio síntese, que engloba os demais princípios e garantias processuais assegurados constitucio­ nalmente. Assim, bastaria que a Constituição assegurasse o devido processo legal e todos os demais princípios dele de fluiriam.'“” Não se pode imaginar um dueprocess 142. Cabe reconhecer que já há vários julgados, do próprio STJ que, corretamente, reconhecem o excesso de prazo e o constrangimento ilegal, mesmo após o acusado ter sido pronunciado. HC 10.960/RR, HC 9.883/RJ, HC 9,795/RJ, HC 4.961/RJ e HC 5.721/PE. 143. O devido processo legai..., p. 383. Na doutrina, identificando o devido processo substancial com a razoabilidade das leis; Tucci, Direitos egarantias..., p. 62; NeryJunior, Princípios..., p. 38; Scarance Fernandes, Processo penai..., p. 46; Grandinetti de Carvalho, Processo penai..., p. 129; Luiz Flávio Gomes, Presunção de violência..., p. 99-101. 144. Em recente julgado, o STF decidiu que: “A garantia constitucional do due process of law abrange, em seu conteúdo material, elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento próvio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e celere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex postfacto; (0 direito ã igualdade entre as partes (paridade de armas e de tratamento processual); (g) direito de não ser investigado, acusado processado ou condenado com fundamento exclu­ sivo em provas revestidas de ilicitude, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide

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que se desenvolva perante tribunais de exceção ou perante juizes diversos daqueles definidos na Consütuição. O processo não serã devido, aliás, nem processo serã, mas sim mero procedimento, se não se desenvolver em contraditório. Um processo secreto e com decisões não motivadas será um processo arbitrário.*“*’ Em suma, o modelo constitucional do devido processo legal no sistema brasileiro é de um processo que se desenvolva perante o juiz natural, em contraditório, asse­ gurada a ampla defesa, com atos públicos e decisões motivadas, em que ao acusado seja assegurada a presunção de inocência, devendo o processo se desenvolver em um prazo razoável. Sem isso, não haverá due process ou um processo équo.

1.13 A regra da proporcionalidade e as garantias processuais Atualmente tem sido cada vez mais frequente o emprego do denominado “prin­ cípio da proporcionalidade”, como mecanismo para a flexibilização dos direitos e garantias que a Constituição assegura no processo penal. Mais do que isso, geralmente, a tal relativização tem se dado a partir de redução simplista entre direito individual do acusado versus direitos da sociedade, em especial o direito à segurança. De fato, nas últimas décadas ganhou grande destaque na doutrina nacional o estudo do emprego da regra*” da proporcionalidade,*‘*®como método para resolude ilicitude derivada; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do principio do juiz nafural; (j) direito de não se autoincritninar nem de ser constrangido a produzir provas contra si próprio; (1) direito de ser presumido inocente e, em consequência, de não ser tratado, pelos agentes do Estado, como se culpado fosse, antes do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória; e (m) direito à prova" (HC 96.903/RJ). 145. Nesse sentido; Barbosa Moreira, Aspectos..., p. 102-103; Grandinetti de Carvalho, Processo penal..., p. 125. 146. O tema é dos mais controvertidos, e há divergência, até mesmo, sobre a caracterização da proporcionalidade como regra, princípio ou postulado. Prevalece na doutrina o emprego da denominação princípio da proporcionalidade (cf.; Stumm, Princípio..., p. 78 e ss.; Barros, O princípio..., 373 e ss.; Barroso, Interpretação e aplicãção..., p. 372 e ss.; Mendes, Coelho e Branco, Curso..., p. 400; Paulo Bonavides, Curso..., p. 356; Guerra Filho, Noção essencial..., p. 622), embora não se trate de utilizar aqui a expressão princípio como contraposto a regra, no sentido que será exposto a seguir. Como explica Virgílio A. da Silva (O proporcional e o razoável, p. 26), “mais importante do que a ingênua ambição de querer uniformizar a utilização do termo ‘princípio’ é deixar claro que ele, na expressão ‘princípio da proporcionalidade’, não tem o mesmo significado de ‘princípio’ na distinção entre regras e princípios, na acepção da teoria de Robert Alexy”. Por ouuo lado, o próprio Virgílio A. da Silva (Direitosfundãmentais. .., p. 169) entende que a proporcionalidade é uma regra, embora reconhecendo que “se trata de uma regra especial, ou uma regra de segundo nível, ou por fim, de uma metarregra". Sempre lembrada, também, é a posição de Humberto Ávila (Teoria dos princípios..., p. 124), que in­ clui a proporcionalidade na categoria dos postulados normativos aplicativos, isto é, “normas imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto da aplicação”. Tal posição é acolhida por Grau, Ensaio ediscurso..., p. 188. , 147. No sentido de que haveria uma fungibilidade entre proporcionalidade e razoabilidade, cf.; Luís Roberto Barroso, Interpretação..., p. 333, nota 73; Suzana de Toledo Barros, O princípio..., p. 74.

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ção da colisão entre direitos fundamentais.'®® De tal seara foi transportado para o direito processual penal,'®“ tendo acabado por se transformar em chave mágica capaz de abrir as portas de todas as garantias constitucionais do acusado, relativizando-as. Hoje, chega a ser um desgastado chavão dizer que “não existem garantias processuais absolutas”. De examinar, primeiro, a regra da proporcionalidade no campo em que surgiu e, depois, a forma como vem sendo aplicada, por extensão, ao processo penal. No sistema dos princípios e valores previstos constitucionalmente, nenhum deles se coloca como absolutamente intangível, na medida em que mesmo aqueles de fundamental importância devem ser coordenados com outros valores constitucionais, de modo que poderão sofrer limitações por força destes, quando sejam prevalecentes e não seja possível a realização conjunta de ambos. Justamente por isso fala-se em limites implícitos de todo princípio, sujeito ao balanceamento e confronto com os vários outros valores garantidos pela Constituição. Nessa linha, então, não haveria por que excluir de tal balanceamento ou análise de proporcionalidade, os princípios processuais penais, entre os quais se incluem diversas garantias dos acusados. As expressões princípio e regra serão utilizadas na doutrina nacional a partir da distinção feita por Dworkin e, depois, aprimorada e desenvolvida por Alexy.'®“ Na teoria dos princípios, a diferenciação é feita a partir da estrutura dos direitos que essas normas garantem. As regras garantem direitos (ou impõem deveres) definitivos; os princípios garantem direitos (ou impõem deveres) primafacie.'^' Cabe, porém, atentar para a advertência de Virgílio A. da Silva, analisando a questão: 148. Seria impossível uma exposição completa dos livros e ariigos da doutrina nacional sobre tão intrincado lema. Apenas como indicação de alguns dos textos mais relevantes, cf: Raquel Denize Stumm, Princípio...; Suzana de Toledo Barros, O princípio...; Humberto Bergmann Ávila, Teoria dos...; Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais...; Ingo Wolfgang Sarlet, Eficácia...; Luts Roberto Barroso, Interpretação...; Daniel Sarmento, A ponderação...; Ana Paula de Barcellos, A eficácia... 149. Na doutrina nacional há estudos específicos sobre o transporte da regra da proporciona­ lidade para o campo processual penal, merecendo destaque o trabalho de Denilson Feitoza Pacheco, O principio... Embora não se trate de estudo específico sobre o tema, a aplicação da proporcionalidade também foi analisada, em profundidade, por Maurício Zanoide de Moraes, Presunção de inocência..., p. 297-368. 150. O ponto de partida da distinção entre princípio e regra, na concepção da teoria dos princípios, deve-se a Ronald Dworkin, na obra Taking rights seriously, publicada em 1977 (neste trabalho, citada na tradução para a língua portuguesa. Levando os direitos a sério), posteriormente desenvolvida por Robert Alexy, especialmente sua obra Theorie der Crundrechte, publicada em 1986 (neste trabalho, citada na tradução para a língua portuguesa, Teoria dos direitos fundamentais). O tema encontrou grande desenvolvimento na doutrina estrangeira e nacional. Segue-se, neste ponto, a excelente tese de Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais... 151. Tal distinção, contudo, está longe de ser tranquilamente acolhida. Para uma crítica sobre a distinção entre princípio e regra, cf. Ávila, Teoria dos princípios..., p. 40-94.

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Muito do que as classificações tradicionais chamam de princípio, deveria ser, se seguirmos a forma de distinção proposta por Alexy, chamado de regra. Assim, falar em princípio do nulla poena sine lege, em princípio da legalidade, em princípio da anterioridade, entre outros, só faz sentido para as teorias tradicionais. Se se adotam os critérios propostos por Alexy, essas normas serão regras, não princípios.'” A correta consideração desses vulgarmente denominados “princípios”, como verdadeiras regras, à luz da teoria de direitos fundamentais, acarretará sérias e rele­ vantes consequências. A consequência da diferença entre regra e princípio é que, em caso de conflitos entre regras, seu caráter definitivo deve permanecer. A solução apontada pela doutrina, que mantém esse caráter de definitividade, é o método do “tudo ou nada”.'” Assim, somente uma norma poderá ser aplicada, ou seja, uma regra será válida e produzirá sua consequência jurídica, e a outra será inválida, total ou parcialmente. O método para a solução do conflito entre regras será o da subsunção, aplicando-se as regras lex specialis derogat legí generali, lex posterior derogat legi priori, ou ainda lex superior derogat legi in/eriori.'” Por outro lado, os princípios, sendo considerados mandamentos de otimização, poderão ser satisfeitos em graus variados, e a medida de sua satisfação dependerá das possibilidades fáticas e das possibilidades jurídicas existentes. Esses limites jurídicos 152. Virgílio A. da Silva, Princípio e regras..., p. 613. Desiaque-se que, o que o autor denomina “classificações tradicionais", são aquelas que consideram os princípios “mandamentos nu­ cleares”, “disposições fundamentais de um sistema" ou mesmo “núcleos de condensações”, ou seja, seriam princípios em razão de sua “fundamentalidade”, e não de “sua estrutura normativa” (ib., p. 612-613). 153. Nesse sentido: Barros, O princípio..., p. 104; Barroso, Interpretação e ap licação..., p. 328 e p. 351; Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 47; Na doutrina estrangeira: Dworkin, Levando os direitos a sério..., p. 39; Alexy, Teoria dos direitos..., p. 90; Canotilbo, Direito constitucionai..., p. 1161. Por outro lado, no caso de colisão entre princípios que tenbam recebido concretude por meio de regras correspondentes, a solução pelo método de sopesamento, não implicará a exclusão, com base no “tudo-ou-nada", das regras res­ pectivas. Como observa Grau (Ensaio e discurso..., p. 53 e p. 198), “quando em confronto dois princípios, um prevalecendo sobre o outro, as regras que dão concretude ao que foi desprezado são afastadas; não se dá a sua aplicação a determinada bipótese, ainda que per­ maneçam integradas, validamente (isto é, dotadas de validade), no ordenamento juridico. As regras que dão concreção ao princípio desprezado, embora permaneçam plenas de validade, perdem eficácia - isto é, efetividade - em relação ã situação diante da qual o conflito entre princípios se manifestou”. 154. Nesse sentido: Alexy, Teoria dos direitos..., p. 90. No mesmo sentido; Barroso, Interpre­ tação e apiicação..., p. 329; Virgílio A. da Silva, Direitos jundamentais..., p. 46. 155. Nesse sentido: Alexy, Teoria dos direitos..., p. 93; Canotilbo, Direito constitucionai..., p. 1161. No mesmo sentido, na doutrina nacional; Virgílio A. da Silva, Direitos fundam en­ tais..., p. 49; Guerra Filho, Noção essencial..., p. 613. Para Dworkin (Levando os direitos a sério, p. 39), a quem se deve o ponto de partida da distinção entre princípios e regras, “um princípio (...1 enuncia uma razão que conduz a um argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita uma decisão particular”. E, complementando tal conceito, explica:

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à satisfação dosprincípios são, justamente, as possíveis colisões com outro principio.'®® No caso de colisão entre princípios a solução deverá ser dada por ponderação ou sopesamento.'®*' No entanto, mesmo apõs a solução do conflito entre princípios, ambos continuarão “tão válidos quanto antes”, e nào se poderá dizer que entre eles consistirá exceção ao outro, posto que “às vezes prevalece um, às vezes o outro”, dependendo das condições concretas de cada caso em questão.'®® Referida dicotomia, contudo, não é tão absoluta como pode parecer. Além de conflito entre regras, e de colisão entre princípios, poderá haver, também, uma co­ lisão entre uma regra e um princípio. Há quem defenda a possibilidade de colisões entre regras. O prõprio Alexy chegou a se referir à possibilidade de colisão entre um princípio e uma regra, que deveria ser resolvido por meio de sopesamento. Em verdade, não um sopesamento entre o princípio e a regra, uma vez que regras não se sujeitam a sopesamento, mas entre o princípio considerado e o princípio no qual a regra se baseia.'®“ Entretanto, e este é o ponto fundamental para a análise das garantias processuais, no caso de uma regra de natureza constitucional que, entre em aparente colisão com um princípio também assegurado constitucionalmente, referida regra terá uma força maior que o próprio princípio.'®“ O “direito definitivo” previsto em uma norma constitucional que estabelece uma garantia, por exemplo, a garantia do juiz natural ou a proibição de utilização de provas ilícitas, terá “mais força” do que o direito prima f a d e assegurado pelo princípio colidente, na medida em que o próprio legislador constituinte já fez tal sopesamento e decidiu privilegiar um dos princípios e o direito

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“Pode haver outros princípios ou outras políticas que argumentam em outra direção. [...] Se assim for, nosso principio pode não prevalecer, mas isso nào significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes, ou tiverem menor força, o principio poderá ser decisivo”. Nesse sentido; Alexy, Teoria dos D ireitos..., p. 117-118; Virgílio A, da Silva, Direitos Júndamentais..., p. 45. Nesse sentido: Alexy, Teoria dos Direitos..., p. 117-118; Canotilho, Direito constitucio­ nal..., p. 1161; Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 50; Barroso, Interpretação e aplicação..., p. 329 e p. 352. Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 50. Alexy, Teoria dos direitos..., p. 90, nota 24. Explica Ávila (Teoria dos princípios..., p. 106): “[...1 num coníronto horizontal entre re­ gras e princípios, as regras devem prevalecer, ao contrário do que taz supor a descrição dos princípios como sendo as normas mais importantes do ordenamento juridico. De fato, as regras têm uma eficácia que os princípios não têm”. A premissa do raciocínio desenvolvida em passo anterior da mesma obra: “[...] relativamente às normas mais amplas (princípios), as regras exercem uma função definitória (de concretização), na medida em que delimitam o comportamento que deverá ser adotado para concretizar as finalidades estabelecidas pelos princípios” (ib., p. 103). Consequentemente, “as regras possuem uma rigidez maior, na medida em que a sua superação só é admissível se houver razões suficientemente fortes para tanto, quer na própria finalidade subjacente à regra, quer nos princípios superiores a ela” (ib.. p. 103).

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fundamental correspondente, preestabelecendo a solução de eventual ponderação, pela predefinição de uma regra que assegura um direito definitivo em relação a um dos princípios colidentes.*®* Reconhecer uma natural e ineliminável necessidade de compatibilização de um direito constitucional com outros direitos constitucionais, passíveis de ponderação, na medida em que se trata apenas de princípios que estabelecem direitos prim a f a ­ d e , não significa que o próprio legislador constitucional esteja impedido de fixar e definir um direito fundamental em termos definitivos, mediante o estabelecimento de uma regra.*®® Como bem observa Novais “[...] em vez de consagrar uma garantia de direito fundamental em termos abertos, que remetam implícita ou expressamente para os poderes constituídos o essencial das tarefas de compatibilização com outros bens e, eventualmente, a possibilidade ou obrigatoriedade de sua limitação posterior em função das ponderações e valorações relativas que venham a ser exigidas na sua aplicação concreta, o legislador constituinte pode considerar mais adequado fazer, ele próprio, desde logo, todas as ponderações que haja a fazer e, nessa medida, retirar aos poderes constituídos qualquer possibilidade de alterarem a opção que, em função dessas ponderações, ele decidiu tomar.”*®® E complementa o raciocínio: “[...] o primeiro plano em que ocorre a primeira tentativa de fixar regras de aplicabilidade imediata, directa e dehnitiva é precisamente a Constituição, o que significa que muitas das normas constitucionais de direitos fundamentais já são o resultado de ponderações entre bens e interesses potencialmente conflituantes efec­ tuadas pelo legislador constitucional e a que ele pretendeu conferir uma natureza fechada e absoluta.”*®“* 161. Outra diferença decorrente desse sopesamento prévio é que, como explica Novais (As restrições..., p. 331): “[...] como as regras já coniém uma prescrição criada dentro das mar­ gens do fáctica e juridicamente possível, o princípio oposto terá, ainda, que se sobrepor às razões e princípios formais que resultaram na mais-valia que advém para a regra do facto de ela conter a determinação da decisão do caso concreto elaborada pela autoridade para o efeito legitimada, ter sido emitida com esse fim e ter a seu favor a anterior praxis de aplicação ao mesmo ou a casos semelhantes. Assim o ónus de argumentação recai sobre quem defenda a aplicação, no caso concreto, de um princípio oposto à regra que contém a prescrição dirigida a resolver esse caso”. 162. Novais, As restrições..., p. 576. 163. Idem, ibidem, p. 577. 164. Idem, ibidem, p. 577. No mesmo sentido é a posição de Virgílio A. da Silva (Direitos fundamentais..., p. 201-202), embora analisando a questão especificamente à luz da digni­ dade humana: “(...] parece possível sustentar que também a dignidade segue os mesmos caminhos de todos os princípios, e, portanto, tende a ter um conteúdo essencial relativo, a não ser nos casos em que a própria constituição, em normas com estrutura de regra, defina condutas absolutamente vedadas nesse âmbito. A principal delas seria, sem dúvida alguma, a vedação da tortura e tratamento degradante (art. 5.°, Ill), que impõe uma barreira intrans­ ponível - ou seja, imune a relativizações a partir de sopesamento - no conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana”.

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Tal consideração é fundamental, na medida em que muitos dos chamados “principios” processuais - assim conceituados enquanto considerados como mandantentos nucleares do sistema processual - são, à luz da teoria dos direitos fun­ damentais, verdadeiras “regras” - porque garantem direitos (ou impõem deveres) definitivos. Várias garantias processuais, como legalidade, juiz natural, proibição de provas ilicitas, motivação, entre outros, são regras frutos de prévios sopesamentos do legislador constituinte, cujo resultado já foi por ele estabelecido, assegurando aos acusados um direito definitivo ou impondo ao Estado, na persecução penal, um dever definitivo. De qualquer forma, nos casos em que é necessário realizar o sopesamento entre princípios - verdadeiros princípios - que colidam no caso concreto, a proporciona­ lidade é ferramenta para fazê-lo. Na doutrina nacional, tem sido amplamente majo­ ritário o entendimento de que o “princípio” da proporcionalidade é composto pelos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.*®’ O juízo de adequação é um juízo de verificação de uma relação de meio a fim. O meio empregado deve ser apto a realizar o interesse que merece maior proteção. É, pois, uma relação de causalidade entre a medida restritiva adotada e o fim a que se destina.*®® Prevalece o entendimento de que o juízo de adequação não exige que a medida seja efetivamente adequada à realização do objetivo perseguido, bastando que seja apta a fomentar a sua realização. De fato, por se tratar de um prognóstico, dificilmente se poderia ter certeza, de antemão, se uma medida realizará, de fato, tal objetivo.*®® No processo penal, Cuellar-Serrano refere-se à adequação qualitativa, quantitativa e subjetiva. As medidas restritivas de direito devem ser qualitativamente aptas para atingir os fins previstos, ou seja, serem idôneas por sua natureza ao atingimento da finalidade proposta. Uma medida é qualitativamente apta para atingir o fim, quando a natureza da medida é compatível com a natureza do fim.*®®Já a adequação quanti165. Optou-se por trabalhar, nesse ponto, com a posição amplamente dominante na doutrina nacional (cf., por todos, Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 169-178), embora não se desconheça a existência de discordâncias. Em sentido contrário, na doutrina nacional, Dimoulis e Martins (Teoria geral..., p. 179-201) entendem que o exame da proporciona­ lidade deve ser realizado em quatro passos; (1) a licitude do propósito perseguido; (2) a licitude do meio utilizado; (3) a adequação do meio utilizado; (4) a necessidade do meio utilizado. Por outro lado, afirmam ainda que: “A proporcionalidade stricto sensu não só carece de 'critérios seguros que possam afastar a discricionariedade de seu aplicador’, mas é uma construção irracional, dada a impossibilidade jurídica de quantificar e comparar os direitos fundamentais, decidindo qual possui maior ‘peso’ no caso concreto”. 166. Barros, O principio..., p. 79. 167. Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 170. 168. Cuellar Serrano, Proporcionalidad y derechos..., cit., p. 160-162. Na doutrina nacional, para Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 53) ‘‘nada justificaria prender alguém preven­ tivamente para garantir futura aplicação da lei penal se, em virtude do crime praticado, a provável pena a ser imposta não serã privativa de liberdade ou, se privativa, será suspensa.

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tativa diz respeito à duração ou intensidade da medida, que devem ser condizentes com a finalidade a ser alcançada. Por fim, a adequação subjetiva exige que a medida seja dirigida a um indivíduo sobre o qual incidam as circunstâncias a serem exigíveis para ser atuada. Um segundo passo ou etapa na aplicação da regra da proporcionalidade é o juízo de necessidade da medida. O que se busca é invadir a esfera de liberdade do indiví­ duo o mínimo possível, ou, como diz Canotilho. “o cidadão tem o direito à menor desvantagem possível”.'®“ Por essa razão, a necessidade enquanto subprincípio da proporcionalidade também é denominada “princípio da menor ingerência possível” ou “da intervenção mínima”. O exame de necessidade é um juízo de comparação entre as diversas medidas que tenham se mostrado adequadas ao atingimento da finalidade de proteção ou realização do direito fundamental. Nesse sentido, o exame da adequação e o da necessidade são diferentes; “Enquanto o teste de adequação é absoluto e linear, ou seja, se refere pura e simplesmente a uma relação meio e fim entre uma medida e um objetivo, o exame da necessidade tem um componente adicional, que é a consideração das medidas alternativas para se obter o mesmo fim”.'™ Para o exame da necessidade é fundamental a eficiência da medida, embora não se deva buscar apenas qual a medida mais eficiente. Nessa etapa se deve buscar, entre as medidas eficientes, se “há medidas tão eficientes quanto, mas que restrinjam menos o direito afetado”. " ' Em outras palavras, um meio é necessário quando não houver meios alternativos que possam promover igualmente o fim pretendido, sem restringir na mesma intensidade os direitos fundamentais afetados.'™ Por fim, no tocante à proporcionalidade em sentido estrito, no dizer de Sarlet, “exige-se a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais, examinando, em síntese, se as vantagens produ­ zidas pela adoção do meio superam as desvantagens advindas da sua utilização”.'™

169. 170. 171. 172. 173.

O meio, a prisão, consistente e restrição à liberdade individual, não se revelaria adequado ao fim a ser objetivado com o processo, pois dele não resultará privação de liberdade". De forma semelhante posiciona-se lokoi (Prisão preventiva..., p. 196): “[...) dentre os crimes em que se prevê a pena de prisão, encontramos aqueles que, no caso concreto, levam ao efetivo encarceramento, e aqueles sujeitos à substituição por penas alternativas, pena de multa ou suspensão condicional da pena. Nestes crimes e nos apenados com multa, a prisão preventiva mostra-se qualitativamente inadequada". Canotilho, Direito constitucional..., p. 268. Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 171. Virgílio A. da Silva, Direitos fundamentais..., p. 174. Ávila, Teoria dos princípios..., p. 185. Sarlet, A eficãcia dos direitos..., p. 400-401. De forma semelhante, afirma Ávila (Teoria dos princípios..., p. 185): “(...] um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais”. Na doutrina estrangeira; Novais, As restrições..., p. 752.

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Aplica-se, pois, a lei do sopesamento na colisão de direitos fundamentais, segundo a qual “quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”/’'* Finalmente, cabe lembrar a explicação de Alexy: “A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de os princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas”.'“ Cabe lembrar, ainda, que no processo penal é muito frequente invocar a aplica­ ção da proporcionalidade, a partir da construção teórica de Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, segundo o qual o princípio da proporcionalidade se assenta em pressupostos e requisitos. Há um pressuposto formal, constituído pelo princípio da legalidade, e outro pressuposto material, o princípio da justificação teleológica. Por outro lado, bá os requisitos extrínsecos, dejudicialidade e motivação, e os requisitos intrínsecos, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.'“ Não se pode, porém, terminar a análise da aplicação da proporcionalidade sem fazer uma advertência no que toca às garantias processuais, A aplicação da regra da proporcionalidade tem sido considerada como inerente ao sistema de coexistência dos direitos fundamentais, mas também como um mecanismo de reforço ou de maior proteção de tais direitos, na medida em que faz prevalecer, no caso de colisão, o de maior peso ou importância no caso concreto. Não baveria, portanto, um desrespeito ou violação do direito fundamental de menor peso no caso concreto, na medida em que se estará, ao contrário, respeitando e dando efetividade a outro direito fundamental, de maior relevância e importância. A aplicação pura e simples de tais conceitos no campo das garantias processuais penais em muitos casos fará com que se corra o risco de não se aceitar ou compreender o próprio conceito de garantia, ou aceitá-lo em palavras, mas desrespeitá-lo em atitudes. Não se pode esquecer que as garantias, incluindo as processuais, têm por objetivo eliminar riscos e não apenas reparar destroços ou resultados nocivos.'” São, pois, garantias de meios, e não de resultados. E, como tal, normalmente se constituem em regras que estabelecem direitos definitivos - garantias de meios - , e não os mesmos direitos prima facie, a serem livremente sopesados pelo legislador ou aplicador da lei. Para encerrar esta breve análise da proporcionalidade, cabe reproduzir a crítica ao seu equivocado emprego no processo penal, citando as palavras de 174. Alexy, Teoria dos direitos..., p. 167. 175. Alexy, Teoria dos direitos..., p. 118. O ponto de vista é acolhido na doutrina nacional por Barros, 0 princípio..., p, 84-85. 176. Nicola Serrano, Proporcionalidady derechos..., p. 69. 177. De La Oliva Santos, Los verdaderos tribunales..., p. 127.

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Eros Grau, em voto proferido no STF, criticando a banalização do “principio” da proporcionalidade: ; “No caso em que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido em máxima segundo a qual “não há direitos absolutos”. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer ga­ rantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo de séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor, não temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas, com nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que devia acudir-nos. Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da “necessária atividade persecutória do Estado”, a “supremacia do inte­ resse público sobre o individual”. Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo - não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente - não tem lugar em matéria penal e processual penal. Essa Corte ensina (HC 80.23, rei. Min. limar Galvão) que a interpretação sistemática da Constituição “leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar". Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta a supressão. A nos afastarmos disso, retornaremos à barbárie".*®®

1.14 Sistemas processuais: processo penai acusatório e inquisitório f. 14.1 Características No processo penal, historicamente, existiram dois sistemas ou modelos: acusa­ tório e inquisitório. Houve, também, a tentativa de fundir ambos os sistemas, criando um “sistema misto" por meio do Code d’instruction criminelle, de 1808. Tais sistemas, contudo, são abstrações ou modelos ideais. Atualmente não existem sistemas acu­ satórios ou inquisitórios “puros”. Ora o processo é prevalentemente acusatório, ora apresenta maiores características inquisitoriais. O processo acusatório é essencialmente um processo de partes, no qual acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições, e que apresenta um juiz sobreposto a ambas. Há uma nítida separação de funções, atribuídas a pessoas distintas, fazendo qom que o processo se caracterize como um verdadeiro actum trium personarum, sendo informado pelo contraditório. E, além de suas características históricas de oralidade e publicidade, vigora, no processo acusatório, o princípio da presunção de inocência, permanecendo o acusado em liberdade até que seja proferida a sentença condenatória irrevogável. Ainda do ponto de vista histórico, o juiz não possuía qualquer iniciativa 178. STF, HC 95.009-4/SP, Pleno, Rei. Min. Eros Grau, j. 06/11/2008, m.v., itens 34 e 35 do n- voto.

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probatória, sendo um assistente passivo e imóvel da atividade das partes, a quem incumbia a atividade probatória.'™ Já no processo inquisitório, as funções de acusar, defender ejulgar encontram-se enfeixadas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz acusador, isto é, um inquisidor. O réu não é parte, mas um objeto do processo. A ação inicia­ va-se ex officio, por ato do juiz. Em tal processo não havia contraditório, que não seria nem mesmo concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Excluída a dialética entre acusação e defesa, a investigação cabia unilateralmente ao inquisidor. Inconcebível, em tal sistema, a existência de uma relação jurídica processual. O processo normalmente era escrito e secreto. No campo probatório, no sistema inquisitório, havia intervenção ex officio do juiz, que verdadeiramente se identificava com o acusador. O juiz inquisidor tinha liberdade de colher provas, independentemente de sua proposição pela acusação ou pelo acusado. O acusado, normalmente, permanecia preso durante o processo. Na busca da verdade material, frequentemente, o acusado era torturado para que se alcançasse a confissão. Em suma, o sistema inquisitório baseia-se em um princípio de autoridade, segundo o qual a verdade é tanto mais bem acertada quanto maiores forem os poderes conferidos ao investigador. O modelo de relação processual penal é um reflexo da relação entre Estado e indivíduo ou, mais especificamente, entre autoridade e liberdade. O processo inquisitivo, com as características anteriormente apontadas, é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Assim, ao lado das características históricas do processo penal acusatório, que certamente são cambiáveis e podem ser alteradas, até mesmo com reflexo das trans­ formações sociais, é necessário identificar qual é a essência do modelo acusatório, isto é, a conditio sine qua non do processo penal acusatório. 1.14.2 A essê n cia d o p r o c e s s o p e n a l acu satório A essência do modelo acusatório é a nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Eliminada a divisão de tarefas, o acusado deixa de ser um sujeito processual com direito de defesa e se converte em objeto do processo. Sem a divisão de tarefas, sem relação processual e sem contraditório, não haverá, sequer, um verdadeiro processo. Essa, contudo, é uma concepção do elemento essencial pela ótica do Estado e de seu m ecanism o para imposição da punição. Por outro lado, sob o ponto de vista do acusado, a diferença fundamental é que, no modelo inquisitório, o acu­ sado nào era um sujeito de direito, mas sim um objeto do processo, uma fonte 179. Historicamente, é possível identificar, ainda, outras duas características do sistema acusatório, ligadas à própria origem do processo acusatório romano e do sistema inglês; a natureza privada do acusador e o julgamento por um júri popular.

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detentora de toda a verdade a ser extraída, para não se dizer extorquida, pelo inquisidor, ainda que m ediante tortura. O acusado era, portanto, epistemologicam ente, um inimigo do inquisidor que, na busca da verdade, poderia torturá-lo para obter a confissão ex ore rei. Já no m odelo acusatório o acusado é um sujeito de direito, a quem se assegura a ampla defesa, com o direito de produzir provas aptas a demonstrar a versão defensiva de um lado, e sendo-lhe assegurado, de outro, o direito ao silêncio, eliminando qualquer dever de colaborar com a des­ coberta da verdade. Contudo, além deste elemento essencial, o processo acusatório possui outras características secundárias. Historicamente, o processo acusatório era oral e público. Estas caracteristicas, contudo, não lhe são insuprimíveis. 1.14.3 P rocesso acu sa tó rio e iniciativa p ro b a tó ria d o ju iz Especificamente quanto à produção da prova, do ponto de vista histórico, tanto no processo acusatório romano quanto no processo acusatório da Inglaterra medieval, tal atividade ficava exclusivamente a cargo das partes, não tendo o juiz poderes instrutórios. As partes tinham o ônus de produzir as provas, e o juiz deveria permanecer inerte. Atualmente, na maioria dos sistemas processuais, há separação de funções en­ tre acusar, julgar e defender. Além disto, as partes ainda conservam a sua iniciativa probatória, sendo, aliás, cada vez mais destacado o seu direito à prova. No entanto, além de as partes continuarem a ter iniciativa probatória, também o juiz passou a poder determinar, ex officio, a produção de provas. Em outras palavras, a atividade probatória deixa de ser monopólio das partes, que passam a compartilhá-la com o juiz. Os poderes instrutórios do juiz, contudo, não limitam ou impedem o direito à prova das partes. Em outras palavras, o direito à prova das partes nâo é incompatível com os poderes instrutórios do juiz. Não há um direito das partes a que o convencimento judicial se forme exclusivamente com base nas provas produzidas por iniciativa delas, e não do juiz. Havendo separação de funções, a acusação será conferida a uma pessoa distinta do julgador. Por outro lado, caberá ao ju iz a missão exclusiva de julgar. Todavia, se este juiz terá ou não poderes instrutórios é algo que não diz respeito à essência do sistema. 31 Há inúmeras vantagens do modelo acusatório sobre o inquisitório. Do pon­ to de vista ideológico, trata-se de uma forma democrática do exercício do poder, permitindo que o destinatário do ato possa influenciar na sua formação. O modelo açusatório é uma garantia para o acusado. Sob o aspecto do funcionamento interno, a ptrutura dialética do processo acusatório permite uma maior eficiência tanto para a resolução das questões de direito quanto para as questões de fato, principalmente no aspecto probatório.

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De outro lado, os poderes instrutórios do juiz não representam um perigo à sua imparcialidade. É necessário, porém, esclarecer em que medida poderá exercer tais poderes. A categoria “poderes instrutórios do juiz" é bastante heterogênea, incluindo poderes que vão desde a busca da fonte de provas (atividade propriamente investigativa) até a introdução em juízo de provas de cuja existência já tenha conhecimento. Partindo da distinção entre fontes de provas e meios de prova, percebe-se, facilmente, que a imparcialidade corre perigo quando o juiz é um pesquisador, ou um “buscador” de fontes de provas. Já o juiz que, diante da notícia de uma fonte de prova, por exemplo, a informação de que certa pessoa presenciou os fatos, determina a produção do meio de prova conespondente - o testemunho - , para incorporar ao processo os elementos de informações contidos na fonte de prova, não está comprometido com uma hipótese prévia, não colocando em risco a sua posição de imparcialidade. Ao contrário, o resul­ tado da produção daquele meio de prova pode ser em sentido positivo ou negativo, quanto à ocorrência do fato.*®“ Sob o enfoque histórico, os poderes de iniciativa probatória do juiz se ligam ao modelo inquisitório. Todavia, modernamente, o processo acusatório admite que o juiz seja dotado de poderes instrutórios, ou seja, é compatível com um juiz dotado de poderes para determinar ex officio a produção de provas.*®* Em suma, o sistema acusatório, quanto à atividade probatória, deve reconhecer o direito à prova da acusação e da defesa, podendo ainda o juiz ter poderes para, em caráter subsidiário ou suplementar, determinar ex officio a produção de provas que se mostrem necessárias para o acertamento do fato imputado.

180. Em um certo sentido, os poderes instrutórios do juiz no processo penal são prejudiciais ao acusado. Vigorando o in dubio pro reo como regra de julgamento, se não houver prova suficiente para superar esta premissa inicial, que é a inocência do acusado, a solução que se impõe é a absolvição. Em um sistema em que o juiz não tivesse iniciativa probatória, se a prova produzida pela acusacão fosse insuficiente para comprovar a culpabilidade, restaria ao juiz somente a absolvição. No entanto, podendo determinar a produção de provas ex officio, é possível que uma prova produzida por determinação do juiz demons­ tre a culpa do acusado e leve a sua condenação. De qualquer forma, isto não significa perda da imparcialidade, mas sim privilegiar um modelo que permita uma mais eficiente reconstrução dos fatos. Outrossim, não se pode esquecer que, por outro lado, a prova produzida ex officio também poderã demonstrar - ou ao menos gerar dúvida sobre - a inocência do acusado. 181. A questão, contudo, é polêmica, havendo respeitável corrente contrária. No sentido de que os poderes instrutórios do juiz são incompatíveis com o processo penal acusatório, cf.: Geraldo Prado, Sistema acusatório..., p. 214; Jacinto Miranda Coutinho, O papel..., p. 31 e ss.; e Aury Lopes jr.. Introdução crítica..., p. 173 e ss.

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SISTEMAS PROCESSUAIS

SISTEM A IN Q U IS IT Ó R IO SISTEM A A C U S A T Ó R IO Nítida separação entre as funções de acusar,defender e ju lg ar Exercício de contraditório

Concentração das funções de Acusação, defesa e julgamento Inexistência de contraditório Incompatível com o Estado Democrático de Direito!!!

Capítulo 2 Lei processual penal no tempo, no espaço e sua interpretação 2.1 A lei processual penal no tempo No direito penal, o problema da sucessão de leis no tempo é resolvido segundo a garantia constitucional de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (CR, art. 5°, XL). Já no campo processual penal, a norma geral de direito intertemporal encontra-se prevista no art. 2“ do CPP: “A lei processual penal aplicar-se-d desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Trata-se do princípio tempus regit actum, que não se confunde com a ideia de retroatividade da lei processual.' Roubier já chamava a atenção para a distinção entre o principio geral do efeito imediato, de um lado, e a retroatividade, de outro.^ Retroatividade é a imposição de uma lei a fatos pretéritos ou situações consumadas antes do início de sua vigência. Já a aplicação imediata é a sua incidência sobre fatos e situações pendentes quando a lei entra em vigor.® Do ponto de vista do ato processual, não há retroatividade, como explica Hélio Tomaghi: A norma de Direitojudiciário penal tem a ver com os atos processuais, náo com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada impede que seja posterior à infração penal. Não há, nesse caso, retroatividade da lei processual penal, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria se a lei processual nova modificasse ou invadisse atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor.® Tal posicionamento, contudo, merece ressalva por representar uma visão parcial do problema. Retroatividade e aplicação imediata são fenômenos temporais relati1. Regime diverso foi adotado pelo Código Procesal Penal de Chile, de 2000, que, em seu art. 483, estabeleceu que “Ias disposidones de este Código sólo seaplicarán a los hechos acaecidos con posteridad a su entrada en vigência”. 2. Paul Roubier, Les conjlits de lois dans le temps, v. 2, n. 139, p. 676. 3. Dinamarco, A reforma..., p. 39. 4. Tomaghi, Instituições..., v. 1, p. 174. Cf., ainda; Magalhães Noronha, Curso..., p. 12. No mesmo sentido, no processo civil: Barbosa Moreira, Problemas da ação..., p. 216; Wellington Pimentel, A aplicação..., p. 11.

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vos, que pressupõem, para sua aferição, um referencial cronológico. Se o referencial nâo for o mesmo para ambos os fenômenos a comparação não terá sentido lógico. A retroatividade da lei penal leva em conta o tempus deíicti. Já a aplicação imediata da lei processual considera o momento da prática do ato processual. Tal ato processual só pode ser posterior ao delito, pois é ato de um processo que visa apurar justamente aquele delito praticado no passado. Assim, não coincidindo os referenciais, falar que a aplicação imediata da lei processual não fere a vedação da irretroatividade da lei penal pode ser um mero artifício de retórica, para violar a garantia decorrente do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.’ Se, de um lado, a lei processual nova pode ser aplicada aos futuros atos do pro­ cesso, mesmo que este tenba por objeto crime cometido antes do início de vigência da nova lei, e, de outro, nâo é possível aplicar a lei penal para crimes cometidos anterior­ mente à sua vigência, torna-se fundamental definir a natureza jurídica dos diversos institutos disciplinados pela lei nova, para identificar e aplicar a regra de sucessão de leis adequada a cada hipótese. 2.1.1 N orm as p ro cessu a is pen ais pu ras e mistas e o direito intertemporal Inegavelmente, há normas de caráter exclusivamente penal e normas processu­ ais puras. Todavia, a doutrina também reconhece a existência das chamadas normas mistas’ ou normas processuais materiais.’ Embora nâo se discuta a existência de tais normas, há discrepância quanto ao âmbito mais restrito ou mais ampliado que se deve dar a tais conceitos.® 5. Justamente por confundir os dois marcos cronológicos, discorda-se da posição de Nucci (Código..., p. 72) que, admitindo a existência das “normas processuais de conteúdo material”, sujeitas ao regime da irretroatividade da lei penal, salvo quando mais benéfica ao acusado, conclui; “Quando se verifica a retroatividade da lei processual penal material benigna ou a sua ultratividade, deve-se levar em conta os atos processuais relativos ao desenvolvimento do processo e não simplesmente a data do fato criminoso. Assim, o fato gerador da prisão preventiva muitas vezes pode ocorrer depois do crime já ter ocorrido". Tal raciocínio viola a garantia constitucional do art. 5°, LV. Se quando o crime foi praticado nâo existia uma determinada hipótese de prisão preventiva (por exemplo, para garantia da ordem económi­ ca), mesmo que após o início de vigência da lei nova o acusado venha a praticar atos que justificariam a prisão preventiva “para garantia da ordem econômica”, a prisão não poderá ser decretada. O marco cronológico, seja para as leis penais, seja para as leis processuais penais mistas, ou com conteúdo material, deve ser, sempre, a data do cometimento do delito. 6. Manzini (Trattato..., v. 1, p. 210) refere-se a normas de caráter misto, esclarecendo: “Devem ser consideradas de direito substancial, enquanto implicam o exercício do poder dispositivo do conteúdo material do processo penal, isto é, da pretensão punitiva pública, e de direito proces­ sual, enquanto ditos poderes devem ser exercitados mediante determinada forma". No mesmo sentido, na doutrina nacional; Tucci, Direito intertemporal..., p. 22. 7. Para Taipa de Carvalho (Sucessão de leis..., p. 211), as normas processuais de conteúdo material são “aquelas que condicionam a responsabilização penal ou que contendem com os direitos fundamentais do arguido e do recluso”. 8. Obviamente, o critério não será topográfico, pois, como destaca Couture (Interpretação..., p. 36), “a natureza processual de uma lei nâo depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio".

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Uma corrente restritiva entende que são normas processuais mistas ou de conte­ údo material aquelas que, embora disciplinadas em diplomas processuais penais, dis­ ponham sobre o conteúdo da pretensão punitiva. Assim, seriam normas formalmente processuais, mas substancialmente materiais, aquelas relativas ao direito de queixa, ao de representação, à prescrição e à decadência, ao perdão, à perempção, entre outras.® Por seu tumo, a corrente ampliativa considera que são normas processuais de conteúdo material aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meios de prova e eficãcia probatória, graus de recurso, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão.*“ Preferível a corrente extensiva. Todas as normas que disciplinam e regulam, ampliando ou limitando, direitos e garantias pessoais constitucionalmente assegu­ rados, mesmo sob a forma de leis processuais, não perdem o seu conteúdo material. São normas processuais de conteúdo material as regras que estabelecem as hipóteses de cabimento de prisões cautelares, os casos em que podem ser revogadas, o tempo de duração de tais prisões, a possibilidade de concessão de liberdade provisória com ou sem fiança, entre outras. Assim, quanto ao direito processual intertemporal, o intér­ prete deve, antes de mais nada, verificar se a norma, ainda que de natureza processual, exprime garantia ou direito constitucionalmente assegurado ao suposto infrator da lei penal. Para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da Icxgravior.** No tocante às normas processuais “puras”, ou exclusivamente processuais, não há dúvida de que o critério a ser aplicado é o tempus regit actum, previsto no art. 2“ do CP. O fundamento de tal critério é que, em geral, as novas regras processuais visam uma melhoria da qualidade da prestação jurisdicional, podendo-se presumir que a lei nova seja mais perfeita que a precedente, tanto na proteção do interesse coletivo 9. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo penal, v. 1, p. 118. 10. Taipa de Carvalho, Sucessão de leis..., p. 223. Para Tucci (Direito intertemporal..., p. 22é 119), as normas processuais penais mistas são aquelas que tratam da queixa, da decadência, da renuncia, do perdão e da perempção, bem como as regras sobre prisão cautelar. No mesmo sentido; Nucci, Código..., p. 72. 11. Nesse sentido a posição incensurãvel de Leone (M anuale..., p. 23): “para as normas es­ tritamente processuais deve-se verificar se elas exprimem garantias para o acusado que nasçam da Constituição; em caso afirmativo, o problema da lei mais favorãvel se põe de forma não diversa daquele que vale para a forma substancial”. Na doutrina nacional, Tucci (Direito intertemporal... p. 114), embora com concepção restrita das normas processuais de conteúdo material, posiciona-se no sentido da “retroatividade da lei penal que ostente caracteres de direito penal material ou de natureza mista, caso mais favorável ao sujeito ativo do crime, e, ao mesmo tempo, congruentemente, a ultratividade da lei antiga, se mais severa a novel disposição”.

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quanto no respeito aos direitos e garantias i n d i v i d u a i s . "Justamente por isso deverão ter aplicação imediata,*® nào havendo justificativa para a ulna-atividade de uma lei menos eficiente.*® Entretanto, mesmo a lei processual nova sendo tendencialraente mais perfeita que a antiga, nào há que aplicá-la aos processos já encerrados, devendo respeitar os factapraeterita. Quanto a estes é possível considerar a existência de direitos adquiri­ dos processuais. Como afirma Galeno Lacerda, “a lei nova nào pode atingir situações processuais já constituídas ou extintas sob o império da lei antiga, isto é, não pode ferir os respectivos direitos processuais adquiridos”.*® Também não se discute, por õbvio, que a lei processual nova aplicar-se-á aos processos que se iniciarem apõs ela entrar em vigor. A nova lei deve ter aplicação para o futuro e, se o processo não principiou, será colhido inteiramente pela lei nova, quando tiver início. A dificuldade se coloca quanto àqueles processos que estão em curso quando do início de vigência da lei processual nova: continuarão eles a ser regidos pela lei velha, que vigorava no seu início, ou passarão a ter o seu curso regido pela lei nova?*® Para resolver o problema da sucessão de leis processuais no tempo, pode-se co­ gitar de três sistemas: ( D o daunidade processual, (2) o das fases processuaise (3) o do isolamento dos atos processuais." Pelo sistema da unidade processual, uma única lei deve reger todo o processo. No caso, a lei velha continuaria ultra-ativa. A solução oposta, de regência pela lei nova, implicará a sua retroaçâo, com a ineficácia dos atos processuais anteriormente prati­ cados, o que violaria os direitos processuais adquiridos das partes, com desperdício de atividade processual. No segundo sistema, o das fases processuais, deve ser considerada, separa­ damente, cada uma das fases processuais autônomas, quais sejam a postulatõria, a ordinatõria, a instrutõria, a decisória e a recursal, que poderão ser regidas, de per si. 12. Tucci, Direito intertemporal..., p. 5. 13. Magalhães Noronha, C urso..., 14. Como explica Câmara Leal (Comentários..., v. 1, p. 68-69), “a nova lei processual, consti­ tuindo a seleção dos meios mais idôneos para a realização da justiça, e considerada, por­ tanto, melhor do que a anterior, não pode ser preterida por esta, em relação àquelas causas iniciadas sob seu império. O interesse público da melhor administração da justiça reclama que a lei cesse, para as causas sob ela ajuizadas, no momento em que entra em execução a nova lei, passando as causas a regerem-se por esta”. 15. Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 13, 16. No processo penal, diante da possibilidade de normas mistas, de conteúdo processual e material, havetã ainda outra situação que exigirá cuidado e atenção: os processos que ainda não tenham sido instaurados, quando do início de vigência da lei nova, mas que tiverem por objeto crimes cometidos sob a vigência da lei anterior, em especial se esta assegurar em maior amplitude os direitos do acusado. 17. Nesse sentido: Cintra, Grinover, Dinamarco, Teoria geral do processo..., p. 98.

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por uma lei diferente. Consequentemente, a lei anterior será ultra-ativa até o final da fase que estava eiu curso, quando entrou em vigor a lei nova, que só passará a ser aplicada a partir da fase seguinte. Finalm ente, no sistema do isolam ento dos atos processuais, admite-se que cada ato seja regido por uma lei, o que permite que a lei velha regule os atos já praticados, ocorridos sob sua vigência, enquanto a lei nova terá aplicação ime­ diata, passando a disciplinar os atos futuros, sem as limitações relativas às fases do processo. Pensando no direito posto, poder-se-ia imaginar que a solução seria simples, bastando aplicar o art. 2° do CPP, que, sendo uma norma de superdireito (norma so­ bre a aplicação do direito),'® estabelece: “A lei processual penal aplícar-se-á desde logo, sem prejuízo d a validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Há, porém, situações mais complexas, a exigir solução diferenciada. 2 .7 .2 Direito in tertem poral: p ro b lem a s esp ec ífic o s O CPP adotou o sistema do isolamento dos atos processuais (CPP, art. 2“), que poderá solucionar vários problemas de direito intertemporal. Não se trata, porém, de critério absoluto, havendo casos em que se deverá adotar solução diversa, segundo os princípios e regras de direito intertemporal normalmente aceitos pela doutrina. Como observa Câmara Leal, “o dispositivo genérico do art. 2° nâo impede que surjam, na prática, hipóteses especiais relativas ao direito transitório, cuja solução deva ser dada pelos juizes, tendo em vista regras consagradas pela doutrina”.'® 2 .1 .2 .1 N orm as s o b r e p ro c ed im e n to Ensina a boa doutrina que o procedimento envolve uma sequência de atos isolados, mas teleologicamente unidos entre si, de forma que um ato seja causa do subsequente, e assim sucessivamente até o ato ftnal. Logo, nem sempre será possível o isolamento absoluto dos atos processuais, o que poderia gerar, segundo a advertência de Camelutti, “o inconveniente de uma desconexão ou de uma desorientação do processo quando, durante o seu curso, intervenha uma lei modificadora, especialmente quando atos estabelecidos pela lei posterior não encontrem conveniente preparação nos atos 18. A expressão é de Pontes de Miranda, Tratado de direito internacional..., v. 1, p. 10. Contudo, como adverte Dinamarco (A reforma..., p. 39), a norma de superdireito “não deixa de ser uma lei ordinária (do mesmo nível hierárquico das leis cujas aplicação ela regula), serve somente para traçar regras interpretativas quanto à retroação ou aplicação imediata de uma lei nova”. 19. Câmara Leal, Comentários..., v. 1, p. 6 9 .0 autor acrescenta, ainda, que “o Código foi conciso, estabeleceu o critério geral da imediata aplicação de seus preceitos às causas pendentes, não desceu, porém, à previsão e determinação de normas atinentes a casos especiais. Essa omissão do legislador dá ao intérprete a faculdade de recorrer às fontes subsidiárias para supri-la, ante a ocorrência de hipóteses que tomem insuficientes, para sua solução, o critério geral estabelecido pelo Código”.

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precedentes efetuados sob o regime da lei anterior”.“ Justamente por isso, conclui Wellington Pimentel que, “mesmo não havendo o legislador adotado o sistema que leva em conta as fases processuais, deverá o juiz ter em vista a natureza do processo e a conotação entre seus atos, ou grupo de atos, na verificação da lei aplicável”.®' Aliás, não raro, as leis preveem regras especiais de direito transitório, adotando o sistema das fases processuais, isolando-se as fases postulatória e instrutória. Os processos que já estavam com a fase instrutória iniciada quando a lei entrou em vigor deverão seguir sob o império da lei antiga, até a sentença de primeiro grau.®®Ou seja, uma vez iniciada a instrução sob a vigência da lei anterior, deverá ela ser ultra-ativa até a sentença. 2 .1 .2 .2 N orm as s o b r e prova No que toca ao direito intertemporal quanto às mudanças sobre provas, é neces­ sário, previamente, definir a natureza jurídica das regras probatórias. No campo do direito privado, há discussão sobre a natureza juridica das regras probatórias, havendo posição no sentido deque se trataria de regras de direito material. Isso porque, em especial quanto à prova dos negóciosjuridicos, parece ser conveniente que a prova siga as regras que o agente conhecia no momento em que celebrou o con­ trato.®® No campo processual penal, porém, não há por que não reconhecer às normas 20. Camelutti, Sistema..., v. 1, p. 110. 21. Pimentel, A aplicação..., p. 24. 22. Essa regra foi acolhida no art. 6° da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal - Decreto-lci n° 3.931/1941 - , que estabelece: “As ações penais, em que já se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior”. Regra idêntica era prevista no Anteprojeto de Código de Processo Penal, de Hélio Tomaghi, que em seu art. 804, IV, estabelecia: “Nos casos em que já se tenha iniciado a produção de prov'a testemunhal, o processo seguirá, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior”. O Anteprojeto de Código de Processo Penal, de autoria de José Frederico Marques, dispunha: “As ações penais, cuja instrução jã tiver sido iniciada, serão processadas e julgadas em primeira instância, de acor­ do com a lei anterior, salvo no tocante às nulidades” (art. 876, § 1", primeira parte). Regra idêntica era prevista no Projeto de Código de Processo Penal n° 1.655, de 1983, em seu art. 707, § 1°. Esse mesmo critério foi adotado pelo legislador, quando da entrada em vigor do procedimento sumarissimo da Lei n° 9.099/1995, cujo art. 90 dispõe: “As disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instmção já estiver iniciada”. 23. José Frederico Marques (Instituições..., V . l,p . 120) explica que, “se o fato probatório estiver ligado, íntima e substancialmente, ao fato a ser provado, por ser aquele ad solemnitatem, vigora a lei do tempo em que foi praticado o fato a ser provado”. No m esm o sentido. Pontes de Miranda (Comentários..., t. XVIIl, p. 46) adverte que, “quanto ãs provas, se se tem de atender a regras jurídicas de direito material, é óbvio que o direito processual não as pode põr de lado. As mudanças no campo do direito processual de modo nenhum podem ter qualquer eficácia que dispensa alguma prova, ou elemento de alguma prova, que é pres­ suposto estabelecido pelo direito material”, justamente por isso, Niceto Alcalà-Zamora e Castilho e Ricardo Levene Hijo (Derecho procesal penal, l. 1, p. 141) observam que as normas probatórias especiais, que são predominantemente substanciais, por se referirem

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probatórias, natureza puramente processual. A norma probatória processual penal não tem por escopo a demonstração de um negócio jurídico, que ao seu tempo exigia determinada forma de realização ou previa determinado meio para ser demonstrado. O que se prova, no campo penal, é um ato ilícito, um acontecimento passado, que pode ser demonstrado por todos os meios de provas admitidos e lícitos, segundo a lei do momento em que a prova será produzida. 2 .1 .2 .3 N orm as s o b r e recursos No tocante aos recursos, algumas questões normalmente despertam maior inte­ resse e controvérsia quanto aos problemas de direito intertemporal; (1) a criação de um recurso novo; (2) supressão de um recurso anteriormente existente; (3) a alteração do prazo de interposição; (4) a alteração do procedimento de um recurso já previsto em lei. Obviamente, as decisões proferidas quando já em vigor a lei nova terão seu sistema recursal integralmente regido pelas novas regras. A dificuldade surge quando a deci­ são é proferida e, antes da interposição do recurso, ou durante o seu processamento, sobrevêm uma nova lei. A regra geral é; a lei que irá reger o recurso é a lei do momento em que foi proferida a decisão recorrida,™ isto é, o regime vigente no momento em que o ato processual se tornou impugnável irá reger a matéria, definindo o recuso cabível.'® No caso das sentenças escritas, elas somente se consideram proferidas quando publicadas em cartório (CPP, art. 389),'® pois é nesse momento que passam a valer como ato jurisdicional, e não na data que consta da sentença (CPP, art. 381, V I)."

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a uma determinada relação jurídica, não seguem a regra processual de aplicação imediata, que somente é aplicável às normas probatórias gerais. Nesse sentido, para Galeno Lacerda (O novo direito... p. 68), “em direito intertemporal, a regra básica no assunto é que a lei do recurso é a lei do dia da sentença”. No mesmo sentido, Amílcar de Castro (Comentários..., v. 10, p. 528) afirmava que “os recursos ou remédios contra as sentenças devem ser regulados exclusivamente pela lei sob cujo império foram pronunciadas as decisões”. C f ainda: Carvalho Santos, Código..., v. 10, p. 421; Carlos Maximiliano, Direito intertemporal, p. 315-316; Pontes de Miranda, Comentários..., t. XVll, p. 41. No mesmo sentido, relativamente ao processo penal, cL; Tucci, Direito intertemporal... p. 38; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos... p. 56. Nesse sentido, na jurisprudência, o STF jã decidiu que “regula o cabimento do recurso a lei vi­ gente ao tempo da decisão recorrida” (RE n° 78.057/MG, RTJ 68/879). Em outro julgado, o STF decidiu que “o tribunal se manteve fiel ao cânone ortodoxo de que a admissibilidade e a legitimação para o recurso se regem pela lei do tempo da decisão recorrida e os efeitos, conforme o dia da interposição” (El na ADln n° 1.59l/RS). No mesmo sentido, no tocante à legitimidade recursal: STF, RE n° 85.815/BA, RTJ 81/26. Pimentel, A aplicação... p. 22. Na jurisprudência, o STJ jã decidiu, em caso de sentença, que “o recurso próprio é o exis­ tente à época em que publicada a decisão” (STJ, CC 1.133/RS). No mesmo sentido: STJ, REsp 506/Rj. Após proferir a sentença, o juiz deverá entregá-la em cartório, em mãos do escrivão, para que seja publicada, lavrando-se nos autos o termo de publicação e registrando-a em livro próprio (CPP, art. 389).

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Antes de publicada em cartório, a sentença é mero ato particular do juiz, um estudo ou parecer privado, sem força vinculante. Ressalte-se que a “publicação em cartó­ rio” nâo há que ser confundida com a intimação da sentença pela “publicação na imprensa” em relação ao advogado do acusado, do querelante e do assistente (CPP, art. 370, § 1°).’®A publicação na imprensa oficial representa apenas o termo inicial para o exercício de um direito - o de recorrer - que preexiste, nascido no dia em que se proferiu o julgado.’® Tratando-se de decisões interlocutórias proferidas por escrito, não há exigência de publicação em cartório, como ocorre em relação às sentenças. Neste caso, haveria insegurança jurídica se se considerasse que a decisão foi “proferida” no momento em que é lançada pelo juiz, segundo a data constante dos autos. Seria impossível qualquer forma de controle quanto a tal momento. Assim, deve-se considerar, para fins de direito intertemporal, que a decisão interlocutória escrita é “proferida” no momento em que as partes são intimadas de tal decisão.“ Se as intimações ocorrerem em momentos distintos, por exemplo, o Ministério Público for intimado pessoalmente em um dia e a defesa, intimada pela imprensa, três ou quatro dias depois, considerar-se-á a decisão “publicada” quando suceder a primeira intimação, pois nesse momento ela se tomou “pública”, ainda que apenas para uma das partes. A lei em vigor nesse dia será a “lei do recurso” contra tal decisão. No caso de decisões interlocutórias proferidas em audiência, ou das sentenças orais, o próprio dia em que o ato foi praticado será o marco cronológico que define o momento da recorribilidade e, consequentemente, a norma aplicável.” O ato proces­ sual toma-se público no momento em que proferido na presença das partes, sendo inclusive desnecessária a intimação. A mesma regra se aplica no caso de decisões colegiadas, tomadas em sessão de julgamento pelos tribunais, em que se considera proferida a decisão no momento em que o presidente, de público, anuncia o resultado do julgamento.” Isto é, a lei vigente no dia da sessão de julgamento irá reger o recurso a ser interposto. 28. Dinamarco (A reforma..., p. 139) explica que “falar em publicação do ato processual, nesse sentido técnico, não é falar em sua publicação pela imprensa, que se faz quando o ato já fora publicado em cartório e já era ato público nesse sentido: a publicação pela imprensa constitui mero ato de intimação" (destaques no original). 29. Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 71. 30. Nesse sentido, Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 68. 31. Não terá aplicação o art. 389 do CPP, porque a sentença já terá sido proferida publica­ mente, não sendo necessária a sua publicação em cartório. É o que ocorre com a sentença proferida no tribunal do jú ri: itão precisa ser publicada em cartório, pois terá sido lida e publicada em plenário (CPP, art, 493), como constará daata. Da mesma forma, no caso do procedimento sumário (CPP, art. 534) ou sumarissimo (Lein" 9.099/1995, art. 81, caput), a prolação da sentença constará do termo de audiência e neste momento ela se considera proferida. 32. Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 6 8 .0 STF já conheceu de embargos infringentes contra decisão nâo unânime proferida pelo próprio STF em ação direta de inconstitucionalida-

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Definidos o marco cronológico, o cabimento do recurso, bem como os demais pressupostos de admissibilidade recursal, seguirão a lei do momento em que a deci­ são foi proferida, mesmo que a lei nova passe a viger antes da efetiva interposição do recurso. Assim, se a lei vigente, quando a decisão foi proferida, previa recurso contra tal ato, essa lei serã ultra-ativa e o recurso será cabível, mesmo que a nova lei que o extinguiu inicie sua vigência antes da interposição do recurso.®® No momento em que a decisão foi proferida, a parte prejudicada passou a ter o direito adquirido processual de impugnar tal ato, segundo a lei da época. Por outro lado, se a lei nova criar um determinado recurso, não existente quando a decisão foi proferida, mesmo que o início de sua vigência ocorra quando, segundo a nova lei, o prazo recursal ainda estã em curso, a decisão será irrecorrivel.®^ No momento em que foi proferida, a decisão era irrecorrivel, e continuará a sê-lo, mesmo durante a vigência da lei nova que passe a prever recurso contra tal ato. No tocante ao processamento do recurso, é de considerar que a lei antiga, porque vigente no momento em que a decisão foi proferida, serã ultra-ativa, disciplinando também o trâmite do recurso, os seus efeitos,®’ bem como o seu julgamento pelo tribunal. Ou seja, os recursos interponíveis segundo a lei anterior, bem como aque­ les efetivamente interpostos sob sua vigência, e ainda não julgados, deverão sê-lo consoante as regras da lei antiga, mesmo que abolidos ou modificados pela lei nova.®® Há, contudo, respeitável corrente em contrário, considerando que a lei nova irá determinar o processamento do recurso,®® posto que não se trata de questão ligada ao seu cabimento, para o qual vige a lei do tempo da publicação da sentença, mas sobre a forma de interposição, que segue a lei vigente ao tempo do ato, uma vez que, segundo Dinamarco, “inexiste direito adquirido a realizá-lo, no futuro, pelas formas revogadas”.®®

33. 34. 35.

36. ;37. 38.

de, uma vez que a data da decisão embargada era anterior ao início de vigência da Lei n° 9.868/1999, que aboliu os embargos infringentes previstos no art. 333, IV, do RISTF, apesar de a publicação do acórdão ter ocorrido quando de sua vigência. Considerou-se que, para a aplicação imediata de inovações processuais, a data a ser considerada é a do julgamento, uma vez que a partir dessa decisão nasce o direito subjetivo ao recurso autorizado pela lei vigente no momento (STF, EI na ADIn n° 1.59l/RS). Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 56. Idem, p. 56. Tucci, Direito intertemporal..., p. 38. Na jurisprudência, em sentido contrãrio, considerando que os efeitos do recurso são regidos pela lei em vigor “no dia da interposição do recurso”, cf.; STF, EI na ADln n° 1.591/RS, RE n° 82.902/SP, RTJ 78/274. Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 69. Cf.: Pontes de Miranda, Comentários..., t. XVII, p. 44; Pimentel, A aplicação..., p. 22; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 57. Dinamarco, A reforma..., p. 172. O processualista exemplifica, afirmando que terá efeitos imediatos a regra que instituiu o preparo imediato do recurso e a que estabeleceu o juízo de retratação anteriormente inexistente (idem, ibidem). Em outro passo da mesma obra, adota a mesma posição quanto à regra que prevê a interposição do agravo diretamente perante

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Quanto ao prazo recursal, é certo que os prazos já vencidos sob a lei antiga não poderão ser dilatados ou reabertos, mesmo que tenbam sido ampliados pela lei no­ va.®“ Já terá bavido a preclusão temporal, sob a regência da lei antiga, e, neste caso, a reabertura do prazo afetaria o direito adquirido da parte contrária.®? O problema surgirá quando a lei nova ampliar ou reduzir os prazos dos recursos anteriormente existentes, desde que tais prazos ainda não tenbam principiado ou estejam em curso. Há divergência sobre como resolver tal problema. Prevalece, contudo, o entendimento de que os prazos recursais iniciados segundo a lei antiga por ela deverão continuar a fluir, até o respectivo término.®* Ou seja, a nova disciplina legal, no que toca aos prazos recursais em andamento, não terá qualquer influência, nem para alongá-los, nem para abreviá-los. O prazo recursal nada mais é do que o pressuposto de admissibilidade recursal da tempestividade, e os recursos, quanto ao seu cabimento e demais pressupostos, regulam-se pela lei vigente no mo­ mento em que a decisão é proferida. 2 . 1.2.4 N orm as s o b r e p risão e lib erd a d e Finalmente, é de analisar a questão do direito intertemporal no caso de regras sobre prisão cautelar e demais medidas cautelares alternativas à prisão. Uma corrente, partindo de uma análise que considera como institutos de direito material apenas os decorrentes de regra que amplie ou diminua oju s puniendi ou ojus punitionis, conclui que toda lei que se relaciona com o crime, tratando da tipicidade do fato, sua ilicitude, culpabilidade do sujeito ou punibilidade, que cuida de cominação legal, judicial ou executória, é de natureza penal.®' Nos outros casos, em que não in­ terferir na relação jurídico-punitiva (relação material), como os de prisáo preventiva e liberdade provisória, trata-se de institutos de natureza processual penal, sujeitos ao princípio tempus regit actum.''^ Consequentemente, a criação de uma nova bipótese de o tribunal: “Os agravos de instrumento não interpostos antes do dia em que entrou em vigor a nova lei sê-lo-ão pela forma que esta preceitua e reger-se-ão por todas as normas disciplinadoras do novo sistema” (idem, p. 198). 39. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentários... v. 1, p. 71; Pontes de Miranda, Comentários..., t. XVll, p. 44. 40. 41. 42. 43.

Dinamarco, A reforma... p. 172. Nesse sentido: Galeno Lacerda, O novo direito..., p. 69; Pimentel, A aplicação..., p. 22. Frederico Marques, Curso..., v. 1, p. 190, n. 4. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 52-53; Mirabete, Processo penal, p. 61. Na jurisprudência, nesse sentido, no tocante à liberdade provisória: TJSP, RT 661/281, HC n° 98.901.3/5. Em sentido contrário, merece destaque o seguinte julgado do STJ: “O disposto no § 2“ [atual § 3“] do art. 2“ da Lei 8.072/1990, que exige decisão fundamentada do juiz para facultar ao réu apelar em liberdade, abriga preceito de direito material, não obstante o seu aparente cunho processual. E assim é porque ela disciplina situação do apenado que envolve o seu stcUus libertatis. A prisão, seja ela processual ou penal, impõe restrição da liberdade física. Tanto isso é certo que todo o tempo de prisão será computado para efeito de execução da pena imposta na condenação” (STJ, HC n° 2.898-0/PE)

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prisão ou a vedação de liberdade provisória poderiam ser aplicadas em processo que tenham por objeto crimes cometidos antes do início de vigência da lei nova, mesmo que esta se mostre mais gravosa.'" Em sentido contrário, tem prevalecido na doutrina, ainda que com alguma dife­ rença de argumentação, o entendimento de que as normas sobre medidas cautelares privativas ou restritivas da liberdade têm conteúdo misto e, portanto, seguem a regra de direito intertemporal do art. 5“, LV, da Constituição.“ Com base no princípio da legalidade da repressão. Figueiredo Dias explica: “O principio juridico-constitucional da legalidade se estende, em certo sentido, a toda repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal. Aqui deparamos com o essencial: tal como vimos suceder no problema da analogia, importa que a aplicação da lei processual penal a actos ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infração cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio da le­ galidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em processo pendente, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa.’’“ Cabe lembrar, por fim, que o art. 2“ do Decreto-lei n° 3.931, de 11.12.1941 - Lei de Introdução ao Código de Processo Penal, prevendo regra de direito intertemporal ou transitório, quando do início da vigência do Código de Processo Penal, determinava: “À prisão preventiva e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favorá­ veis" E, como esclarece Tornaghi, “a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal contém normas que, embora relativas ao momento da entrada em vigor do Código de Processos Penal, permitem a inferência de alguns princípios gerais’’.“ 44. Nesse sentido, Julio Maier, Derecho..., t. I, p. 248, 45. Embora sem se referir a normas processuais materiais, Tucci (Direito intertemporal..., p. 36) afirma que “as medidas restritivas de liberdade humana devem sempre ser tratadas com benignidade". 46. Figueiredo Dias, Direito..., p. 112. 47. Regra semelhante também era prevista no Anteprojeto de Código de Processo Penal de autoria de José Frederico Marques, que, após acolher o princípio geral tempus regit actum, dispunha, em caráter excepcional: “No que toca às medidas cautelares, aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis ao réu” (art. 876, § 2°). A mesma regra era encontrada no Anteprojeto de Código de Processo Penal, de Hélio Tornaghi, em seu art. 804, 1: “À prisão provisória e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis”. 48. Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 24. De forma semelhante, Mirabete (Processo penal, p. 62), anali­ sando o citado artigo, assevera: “Tal dispositivo, segundo entendemos, continua em vigor, aplicando-se a todas as modificações introduzidas ao Código de Processo Penal de 1941 no relativo a tais matérias. Embora o citado decreto-lei visasse especialmente a transição da lei anterior para o Código de Processo Penal, não foi ele revogado, sendo ele aplicável, ao menos por analogia, às modificações do Estatuto”.

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2.2 A lei processual penal no espaço O problema da aplicação da lei processual penal no espaço está diretamente ligado à investidura das autoridades jurisdicionais brasileiras. As autoridades jurisdicionais brasileiras, que exercem a jurisdição criminal no território nacional, deverão aplicar as regras de direito processual penal brasileiras. Como dizia Camelutti, “o processo está disciplinado pelas normas do Estado a que pertence o órgão judiciário que o dirige”.®“ Essa é a regra geral que se extrai da primeira parte do art. 1° do CPR que em seu artigo de abertura proclama; “O processo penal reger-se-á, em todo território brasileiro, p or este Código”. Ou seja, em matéria de aplicação das normas processuais no espaço, vige a regra da territorialidade, com aplicação da lex fori, segundo o critério locus regit actum. Esse, porém, é o denominado aspecto positivo da territorialidade, que também possui um aspecto negativo; a exclusão da aplicação da lei processual penal estrangeira em território brasileiro.®“ O problema da aplicação da lei processual penal no espaço não se confunde como problema da aplicação da lei penal no espaço. O primeiro, como visto, destina-se a determinar qual a lei aplicável pelas autoridades judiciárias nacionais, no caso, brasileiras, aos processos de sua competência. Já o problema da lei penal no espaço destina-se a determinar o âmbito de incidência espacial da lei penal, em relação a quais locais a lei nacional pode ter incidência para a definição de crimes. Em outras palavras, a lei penal brasileira apenas se aplica a ações ou omissões criminosas praticadas em território nacional, ou também poderá ter incidência sobre condutas realizadas em país estrangeiro? De observar, ainda, que mesmo nos casos em que vigora o princípio da extraterritorialidade no direito penal, pouco importa se de forma absoluta ou relativa, uma vez definido que a conduta praticada no exterior é crime segundo a lei brasileira, (por exemplo, um estrangeiro que, no exterior, pratique crime contra o Presidente da República do Brasil), o processo penal por tal delito correrá no Brasil, sendo de competência das autoridades brasileiras, e seguirá, quanto à lei processual penal no espaço, o princípio da territorialidade. O juiz brasileiro conduzirá um processo penal no Brasil, aplicando o CPP brasileiro, por um crime cometido no exterior, mas que está sujeito à lei penal brasileira, com base na extraterritorialidade da lei penal. 49. Camelutti, Sistema..., v. 1, p. 114. 50. Nesse sentido: Leone, Lineamenti..., p. 16. Questão diversa diz respeito à possibilidade de aplicação da lei brasileira por autoridades judiciárias estrangeiras. Como bem observa Dinamarco (Instituições..., v. 1, p. 93), em lição visando ao art. 1° do CPC, mas igualmen­ te aplicável à regra equivalente do CPP; “essa disposição legal não contém em si mesma qualquer proibição de que a lei processual brasileira vá além dos limites territoriais do país e seja observada por juizes de outro Estado soberano. Esse impedimento vem das leis dos outros países, que também repelem a aplicação da lei processual que não seja a sua".

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Mesmo no caso em que a autoridade judiciária brasileira cumpra uma carta roga­ tória ou um pedido de auxilio direto, ela aplicará, em regra, a lei do Estado brasileiro para os atos processuais penais que tenbam que ser praticados no Brasil, e não a lei do Estado rogante. O mesmo ocorrerá na homologação de sentença estrangeira e na extradição. Todavia, mesmo para o processo penal, a regra da territorialidade não é absoluta. O próprio legislador a excepciona, por razões de interesses internacionais do País. É nesse sentido que o CPP ressalva a aplicação da lexfori, n o caso, aleibrasileira, quando assim o prevejam “os tratados, as convenções e regras de direito internacional” (CPP, art. r , caput, I).’ ' A exceção à regra da territorialidade da lei processual penal pode se dar quando, por força de um tratado internacional, um ato que tenba que ser praticado em ter­ ritório nacional, por autoridade judiciária brasileira, deva seguir lei diversa do CPP Atualmente, o Brasil é signatário de vários tratados bilaterais’®e multilaterais” de cooperação judiciária em matéria penal, que preveem formas de cooperação judiciária que, embora sigam, em regra, a lei brasileira - no caso o CPP - , admitem a realização do ato com a observância de outras regras, previstas nos próprios tratados. Por exemplo, o Protocolo para Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais para o Mercosul (Decreto n“ 3.468, de 17.05.2000) prevê, quanto á lei aplicável, que: “7 .1 1 .0 processamento das solicitações será regido pela lei do Estado requerido e de 51. As demais ressalvas, dos incisos II a V, não dizem respeito ao problema de aplicação da lei penal do espaço, mas sim afastam a aplicação da lei penal era processos que não versem sobre matéria criminal, como nos processo de impeachment de autoridades (inciso II), e processos que serão regidos por leis especiais (incisos III e V). De ressaltar que o inciso IV, que tratava do processo perante o tribunal especial previsto na Constituição de 1937, competente para “o processamento e julgamento dos crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular", não mais pode ter aplicação, posto que tal tribunal não mais existe. Por outro lado, no que toca ao inciso V, o processo nos crimes de imprensa, ante a decisão do STp na Arguiçâo de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 130-7/DF, em que se declarou a não recepção de toda a Lei n° 5.250/1967, passou a ser regido pelo CPP. 52. Destaquem-se, a titulo de exemplo, os tratados com Panamã (Decreto n° 7 .5 9 6 ,.de 01/11/2011), México (Decreto n° 7.595, de 01/11.2011), Espanha (Decreto n° 6.681, de 08.12.2008), Cuba (Decreto n° 6.462, de 21.05.2008), China (Decreto n° 6.282, de 03.12.2007), Coreia (Decreto n” 5.721, de 13.03.2006), Colômbia (Decreto n" 3.895, de 23.08.2001), Estados Unidos da América (Decreto n° 3.810, de 02.05.2001), França (Decreto n° 3.324, de 30.12.1999), Paraguai (Decreto n° 139, de 29.11.1995), Portugal (Decreto n° 1.320, de 30.11.1994), Itália (Decreto n“ 862, de 09.07.1993). 53. Entre os tratados multilaterais ratificados pelo Brasil que tratam da cooperação judiciária destacam-se a Convenção das Nações Unidas contra corrupção (Decreto n° 5.687, de 31.01.2006), a Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional (Decreto n° 5.015, de 12.03.2004) e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas (Decreto n° 154, de 26.07.1991). No âmbito do Mercosul, o Brasil ratificou o protocolo sobre assistência mútua em matéria penal (Decreto n° 3.468, de 17.05.2000).

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acordo comas disposições do presente Protocolo. 2. Apedido do Estado requerente, o Estado requerido cumprirá a assistência de acordo comas formas ou procedimentos especiais indicados na solicitação, a menos que esses sejam incompatíveis com sua lei interna”, (destacamos). E, por exemplo, no que toca ao testemunho no Estado Requerido, o art. 17.3 dispõe: “O Estado requerido autorizará a presença das autoridades indicadas na solicita­ ção durante o cumprimento das diligências de cooperação, e lhes permitirá formular perguntas se tal estiver autorizado pelas leis do Estado requerido e em conformidade com essas leis. A audiência terá lugar segundo os procedimentos estabelecidos pelas leis do Estado requerido” (destacamos). Outra situação de exceção à aplicação da territorialidade da lei processual penal brasileira é encontrada no relacionamento com o Tribunal Penal Internacional.”

2.3 Interpretação da lei processual penal Em princípio, a interpretação da lei processual penal segue as mesmas regras de hermenêutica que disciplinam a interpretação das leis em geral.” Não traz o CPP uma disciplina completa ou geral sobre interpretação da lei processual penal. Nem caberia fazê-lo, por se tratar de matéria que normalmente não compete ao legislador. De qualquer forma, é importante reproduzir a advertência de Tomaghi: “Convém frisar: o que se procura com a interpretação é o conteúdo da lei, é a inteligência e a vontade da lei, não a intenção do legislador. Este é pessoa imaginária, cuja vontade dificilmente se chega a saber que coisa é, até porque o legislador é, na maioria dos casos, órgão coletivo, em que cada componente, como pessoa física, tem vontade própria e possivelmente diversa dos demais.”” Do ponto de vista da interpretação da lei processual penal, o que pretendeu fazer 0 legislador foi demarcar a diferença entre o direito penal e o processo penal. Naquele, não se admite qualquer forma de ampliação hermenêutica dos preceitos incriminado­ res, muito menos do emprego da analogia. Já no processo penal o art. 3“ do CPP prevê que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicaçáo analógica, bem como 0 suplemento dos princípios gerais de direito". 54. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi promulgado pelo Decreto n° 4.388, de 25.09.2002, e prevê, no art. 99, na disciplina da “Cooperação Internacional e Auxílio judiciário”, que “1. Os pedidos de auxilio serão executados de harmonia com os procedi­ mentos previstos na legislação interna do Estado requerido e, a menos que o seu direito interno o proíba, na forma especificada no pedido, aplicando qualquer procedimento nele indicado ou autorizando as pessoas nele indicadas a estarem presentes e a participarem na execução do pedido". 55. Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 40. Na doutrina estrangeira: Leone, Trattato..., v. 1, p. 55. 56. Tomaghi, Comentários..., v. 1 , 1.1, p, 91.

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Ou seja, do ponto de vista interpretativo, admite-se a “interpretação extensiva" e, quanto à integração dá lei processual penal, o emprego da analogia - é nesse sentido que se emprega a expressão “aplicação analógica”®'- e dos princípios gerais de direito. A “interpretação extensiva” não se confunde com a “aplicação analógica”, entendida esta como “analogia”, que, por sua vez, não se identifica com a chamada “interpretação analógica”, Na interpretação extensiva, ou melhor, a interpretação que produz resultado extensivo, uma determinada regra tem seu campo de incidência ampliado, quando empregando os métodos normais de interpretação - gramatical, lógico, histórico... - conclui-se que a norma tem um conteúdo mais amplo do que resultaria da simples aplicação do seu texto.®® A interpretação extensiva é o resultado de precisar declara­ tivamente a verdadeira vontade da lei, extraída da “palavra não felizmente escolhida e adotada pelo legislador".’“ A analogia é meio de integrar a norma, estendendo sua aplicação para casos não previstos pelo legislador. A analogia atua procedendo de similibus ad simila.^ É um recurso extensivo que permite aplicar a lei, ou melhor, a solução prevista na norma, para casos semelhantes aos previstos pelo legislador. Nesse ponto, diferencia-se da interpretação extensiva, porque na analogia o caso a ser solucionado não está compre­ endido na hipótese de incidência da regra a ser aplicada. Justamente por isso fala-se em aplicação analógica, e não em interpretação analógica.®* A interpretação analógica não é forma de integração, mas, verdadeiramente, de interpretação. O caso em que a norma será aplicada está previsto no seu âmbito de incidência, embora de forma não explícita.®' Entretanto, é vontade da norma a sua aplicação a casos sem elhantes aos por ele regulados. É o que ocorre quando um dispositivo, após um catálogo de hipóteses ou um elenco de situações, prevê uma cláusula genérica de encerram ento (ou outro do mesmo gênero, ou meio equivalente, ou outro similar etc.). Por exemplo, o art. 4 0 5 , § 1°, do CPP prevê que, “sempre que possível, o registro dos depoim entos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será fe ito p elos m eios ou recursos de grav ação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive au diovisu al” (destacam os). A expressão “ou 57. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentários..., v. 1, p. 77; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 4; Nogueira, Comentários..., p. 113. 58. Espínola Filho (Código..., v. 1, p. 219) explica: “!...] como exemplos de interpretação exten­ siva, apresentam-se os casos em que, falando a lei em filhos, se dá o significado de abranger todos os descendentes; em homens, d ev e também compreender as mulheres" (destaques no original). De forma semelhante, Leone (.Trattato..., v. 1, p. 63) analisa dispositivo do orde­ namento italiano em que a expressão “pai" deve ser interpretada no sentido “daquele que exerce o pátrio-poder". 59. Bellavista, La interpretazione..., p. 97. 60. Bellavista, La interpretazione..., p. 118. 61. Maier, Derecho..., t. 1, p. 236. 62. Nogueira, Comentdrios..., p. 114.

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técnica similar”, após o rol de situações - gravação magnética, estenotipia, digital (rectius: gravação digital) faz com que o legislador possibilite ao intérprete se valer de outra tecnologia equivalente de registro de áudio, vídeo, ou ambos, que venba a surgir. Todavia, o art. 3° o CPP não pode ser aplicado em todos os seus termos. Não bã como dar interpretação extensiva ou aplicar a analogia no que diz respeito a normas que restrinjam a liberdade pessoal do acusado ou qualquer outro direito de defesa.®® Até mesmo Manzini reconhecia que as normas processuais penais somente toleram interpretação extensiva quando não restringirem direitos do acusado, sendo de in­ terpretação restritiva “aquelas que impõem restrição à liberdade individual”! Como emanação das garantias constitucionais da presunção de inocência e da ampla defesa, as disposições de leis processuais penais que limitem ou restrinjam a liberdade do acusado ou o exercício do direito de defesa devem receber interpretação restri­ tiva.®’ Em outras palavras, em tal campo, estão proibidas a interpretação extensiva e a analogia, salvo in bonam parte, isto é, em favor do acusado ou para beneficiá-lo.®® Também não será cabível, por analogia, restringir direitos do acusado!®® Somente ao que se refere a normas processuais que digam respeito a questões meramente procedimentais (por exemplo, local, forma e prazo dos atos processuais) poder-se-ã aplicar o art. 3° do CPP, mesmo se a analogia não for empregada para restringir um direito de defesa (por exemplo, aplica-se, por analogia, ao processo penal, o art. 538 do CPC, que prevê a interrupção do prazo para outro recurso, no caso de interposição dos embargos de declaração). No que toca aos princípios gerais do direito, no campo processual penal é de se atentar para a proeminência do fa v o r rei, enquanto fator de integração das normas processuais. Questão distinta, que não concerne à integração da norma processual, mas à sua interpretação, é debnir se a máxima do in dubio pro reo - inegavelmente aplicável

63. Nesse sentido, Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação..., p. 329) afirma que “o preceito não é absoluto; quando se tratar de exceções às regras gerais, bem como de limitações à liberdade individual, ao exercício de direitos ou a interesses juridicamente protegidos, o texto considerar-se-á taxativo, será compreendido no sentido rigoroso, estri­ to”. Na doutrina estrangeira, Battaglini (Direito penal..., p. 65) chega à mesma conclusão, em relação às “normas que limitem o livre exercício de direitos ou se revistam de caráter excepcional”. 64. Manzini, Trattato..., v. 1, p. 131. 65. Maier, Derecho..., 1. 1, p. 229. 66 . Idem, ibidem, p. 230. 67. Segundo Leone (Trattato..., v. 1, p. 55), são claramente excepcionais e, por isso, insusce­ tíveis de analogia, as norm as que regulam coerções processuais. Na doutrina nacional, o mesmo posicionamento é encontrado em Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação..., p. 329) quanto as “prescrições que autorizem a prisão preventiva, o seqüestro de bens dos indiciados ou restrições ao direito de defesa".

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a dúvidas sobre “questões de fato” - é também critério de solução da duvida sobre “questões de direito”. \ Não bá como negar que, dúvida sobre aprova e dúvidas sobre as normas jurídicas são coisas distintas.®* O primeiro éum problema heurístico, o segundo, hermenêutico. Na resolução de questões de direito há problemas complexos, de difícil resolução, qu e impliquem, muitas vezes, em dúvida do próprio julgador sobre qual seria a melhor solução para o caso concreto. Nestas situações, parte da doutrina entende que o in dubio pro reo também se aplica às questões de direito.®® Há, por outro lado, entendimento contrário, no sentido de que em tais situações o problema não será de “dúvida”, mas sim de hermenêutica, cabendo ao ju iz adotar a solução que lhe parecer mais correta, independentemente de ser ela favorável ou prejudicial ao acusado.™ Entendemos que, nas questões eminentemente de direito, em que não há qualquer controvérsia fática, náo havendo dúvida a ser eliminada pela atividade probatória, mesmo assim deve prevalecer a decisão mais favorável ao acusado. Não se tratará, contudo, de problema relacionado ao ônus da prova, muito menos a solução favorável ao réu será uma “regra de julgamento” que tenha por objeto a dúvida sobre um fato incerto. Na verdade, será mais um caso de aplicação d o fa v o r rei.”

68. Sentis Melendo, In dubio..., p. 85. 69. Para Hungria (Comentdrios..., v. 1 , 1.1, p. 86), “no caso de irredutível dúvida entre o espirito e as palavras da lei, é força acolher, em direito penal, iirestritamente, o principio in dubio pro reo (isto é, o mesmo critério de solução nos casos de prova dúbia no processo penal)”. No mesmo sentido, cf. Pedroso, Prova penal..., p. 157, Id., Processo penal..., p. 53; Karan, Sobre o ônus..., p. 68, nota 22. Na doutrina estrangeira, cf.; Sentis Melendo, fn dubio..., p. 86; Zimmerl. Strafrechtliche Arbeitsmethode de lege ferenda. Berlin, 1931, p. 10, apudBettiol, La regola..., p. 312. 70. Nesse sentido: Frederico Marques, Tratado..., v. 1, p. 174; Id., Elementos..., v. 1, p. 40-41; Aníbal Bruno, Direito..., 1. 1, p. 22; Fragoso, Lições..., p. 82. No m esm o sentido, na doutrina estrangeira: Manzini, Trattato..., v. l,p . 1 31;Leone, Trattato...,v. l,p .6 8 ;B e ttío l, Laregola..., p. 312; De Marsico, Lezioni..., p. 5; Figueiredo Dias, Ônus..., p. 147. 71. O extinto TACrimSP decidiu que “o favor rei deve constituir um principio inspirador da interpretação. Isto significa que, nos casos era que nâo for possível uma interpreução untvoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é escolher a interpretação mais favorável ao réu” (Rev. Crim. n° 366.588/4). Concordamos que a questão é terminológica. Porém, preferimos utilizar a expressão in dubio pro reo somente para os casos em que se tenha que resolver uma dúvida sobre questões fáticas, e que persiste na mente do julgador em razão da insuficiência das provas produzidas para convencê-lo em um ou outro sentido. Já quando se tratar de questão de direito, havendo dúvida, que não decorre da ausência ou insuficiência de atividades probatórias, preferimos a expressão/avor rei. Na doutrina, no sentido de considerar inaplicável o in dubio pro reo, embora a interpretação da norma processual penal deva obedecer ao fav or rei: Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 27; Nogueira, Comentdrios..., p. 110-111.

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P r o c e sso P en a i

A LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO NORM AS DE DIREITO PENAL

C

Não retroagem - salvo em benefício do réu

NORMAS DE D IREITO PR O ­ CESSUAL PENAL

\

J

\ Tempo da prática do ato {tempus regit actum) - ainda que a norma seja posterior à prática do delito

NORM AS PRO CESSU AIS PENAIS PURAS E MISTAS E O D IR EITO INTERTEMPORAL

Direito intertemporal

Le i p ro c e s s u a l p e n a l n o te m p o , n o e s p a ç o e su a in te rp re ta çã o

PR O C E SSO S EM A N D A M EN TO - S U C E S S Ã O D E LEIS PR O C ESSU A IS

pelo CPP

A LEI PR O C E SSU A L PEN A L N O ESPA Ç O REG RA: Territorialidade

locus regit acíum

1 j

1

Exclusão da lei processual y ^ ^ ^ r a n g e ir a

EX C EÇ Õ ES; Previstas em tratados internacionais

IN TER PR ETA Ç Ã O D A LEI P R O C E SSU A L PEN A L

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Capítulo 3 Inquérito policial e outras formas de investigação preliminar 3.1 Noções gerais A persecução penal se desenvolve, ordinariamente, em duas fases: investi­ gação preliminar e processo judicial. Normalmente, a primeira fase, de investi­ gação preliminar, se dá por meio de um inquérito policial. Isso, contudo, não é uma regra absoluta. Há casos em que não se necessita de inquérito policial, pois não bá necessidade de investigação da ocorrência do crime e de sua autoria (por exemplo, um crime contra a bonra cometido pela imprensa, em uma matéria assi­ nada). Em outros casos, os elementos de informação podem ter sido coibidos por outros meios (por exemplo, processos administrativos disciplinares, inquéritos civis públicos, comissões parlamentares de inquérito etc.) tom ando dispensável o inquérito policial. O inquérito policial é uma atividade realizada pela Polícia Judiciária, visando à investigação de um delito e sua autoria. A polícia se divide em polícia de segurança, que exerce atividade preventiva, bem como atividade de repressão imediata ao delito, no caso das polícias militares, e polícia judiciária, também chamada “repressiva”, que exerce atividade de investigação do delito, o que fica a cargo da Polícia Civil dos Estados e da Polícia Federal. Tanto a polícia de segurança quanto a polícia judiciária são órgãos administrativos, isto é, nenhuma delas integra o Poderjudiciário. Em­ bora denominada polícia “judiciária", tal palavra designa apenas a finalidade de sua atividade, posto que o inquérito por ela desenvolvido servirá de base para que se dê início a um processo penal, a se desenvolver no âmbito do Poderjudiciário. A Polícia Judiciária não tem natureza judiciária, isto é, não integra o Poder Judiciário. Apenas os atos que são por ela praticados destinam-se a possibilitar a instauração do processo penal perante o Poderjudiciário. O inquérito policial é atribuição da polícia judiciária, devendo ser conduzido por delegado de carreira.' A CR conferiu à Polícia Federal o exercício, com exclusividade, das funções de polícia judiciária da União (art. 144, § 1°, IV). Neste caso, a palavra “exclusividade” significa que os inquéritos federais nào poderão ser realizados pela 1. 0 caput do art. 2° da Lei n° 12.830/2013 prevê que; “As Junções de polícia Ju diciãria e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de policia são de natureza ju rídica’'.

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polícia civil dos Estados. Não está a determinar, porém, que somente a polícia possa realizar a investigação penal.® Por outro lado, é incumbência da Polícia Civil dos Estados a apuração das infrações penais, ressalvadas as de competência da Justiça Militar e da Justiça Fe­ deral (CR, art. 144, § 4°). Isso significa que o âmbito de autuação das Polícias Civis dos Estados é residual. Caberá a elas investigar os crimes que não são objeto de inquérito policial militar, nem investigados mediante inquérito policial atribuído a Polícia Federal.

3.2 Inquérito policial; finalidade O inquérito policial é um procedimento administrativo realizado pela Polícia Judiciária, consistente em atos de investigação visando a apurar a ocorrência de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa exercê-la, bem como requerer medidas cautelares.® Aury LopesJ r. entende que a finalidade de tal investigação não é a descoberta plena da existência do crime e de sua autoria, mas apenas a probabilidade da existência do crime e de sua autoria.“*Não visa atingir a certeza, mas sim um juízo de probabilidade. Há, pois, uma limitação qualitativa na finalidade da atividade policial. Com isso, o inquérito policial já terá atingido a sua finalidade de colheita de fontes de provas e de elementos de informação aptos à caracterização de justa causa para a ação penal. Evidente que, se no curso da atividade normal de investigação já se descobrirem e desvendarem plenamente a ocorrência do crime e a sua autoria, tanto melbor. En­ tretanto, não tem sentido, depois de o inquérito policial já ter obtido elementos de informação suficientes para que o Ministério Público ou o querelante possa oferecer a denúncia ou queixa, retardar a propositura da ação penal em razão da realização de investigações inúteis, mormente porque não poderão servir de base para a formação do convencimento judicial, que deverá apreciar a prova produzida em contraditório judicial (CPP, art. 155, caput) 2 Em suma, a finalidade do inquérito policial é a apuração da existência da infração e a respectiva autoria (CPP, arts. 4° e 12), fornecendo elementos para que o Ministério Público - ou 0 querelante - forme a opinio delicti e, em caso positivo, dê o embasamento 2. Tourinho Filho, Manual..., p. 65. 3. Tourinho Filho (Manual..., p. 64) assim o define; “Inquérito policial é um conjunto de diligências realizadas pela Polícia Civil ou judiciária (como a denomina o CPP), visando a elucidar as infrações penais e sua autoria”. 4. Aury Lopesjr., Sistemas de investigação..., p. 67. 5. De forma semelhante, destaca Nucci (Código..., p. 74) que no inquérito “reúne a polícia judiciária todas as provas preliminares que sejam suficientes para apontar, com relativa firmeza a ocorrência de um delito e o seu autor”. E, em outro passo da obra, destaca que “o ideal seria coletar documentos e perícias urgentes, fazer oitivas informais e abreviadas, somente para formar, verdadeiramente, a convicção do representante do Ministério Público, encerrando-o, sem maiores delongas ou formalidades” (ib., p. 102).

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probatório suficiente para que a ação penal tenha justa causa.® Recentemente, o § 1° do art. 2“ da Lei n° J2.830/2013 passou a definir que o inquérito policial; “tem com o objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais".

3.3 Inquéritos extrapoliciais Há previsões legais de inquéritos que não são conduzidos pela Polícia Judiciária, isto é, pela Polícia Civil ou Polícia Federal. O Código Florestal- Lei n° 4.771/1965 - previa a possibilidade de o inquérito poli­ cial ser instaurado e presidido por “funcionários da repartição florestal e de autarquias, com atribuições correlatas, designados para a atividade de fiscalização” (art. 33, b). Nos crimes militares, o inquérito penal militar será conduzido por oficiais mi­ litares (CPPM, art. 8“), inclusive por delegação. O art. 7°, caput, do CPPM estabelece um rol de autoridades militares que poderão presidir o inquérito policial militar, sendo permitida a delegação das funções a oficiais da ativa, de posto superior ao do indiciado, sempre respeitados os critérios de hierarquia e comando (art. 7°, §§ l° e 2 ° ). Havia, na antiga Lei de Falências - Decreto-lei n“ 7.611/1945 - o inquérito judicial para a apuração dos crimes falimentares (arts. 103 a 108). Naquele sistema, depois que o síndico dava a notícia do crime, o juiz da falência ouvia as testemunhas e procedia a diligências investigatórias, de ofício ou a requerimento dos interessados. Encerrada a investigação, os autos eram conclusos ao Ministério Público que poderia oferecer denúncia ou requerer o seu apensamento ao processo da falência. Tais dispositivos, contudo, foram expressamente revogados pelo art. 200 da Lei n® 11.101/2005. As Comissões Parlamentares de Inquérito -L e i n° 1.579/1952 - têm por objetivo a investigação de fatos determinados. Eventualmente, nessa investigação pode haver a descoberta da ocorrência de um crime. Embora haja referências a indiciado - “ouvir os indiciados...” (art. 2®, caput) ou “os indiciados e testemunhas serão intimados..." (art. 3°, caput) - a Lei n® 1.579/1952 não disciplina um inquérito com natureza policial ou com finalidade prectpua de persecução penal. As CPls não têm por finalidade específica investigar crimes (por exemplo, podem investigar um fato politicamente relevante e reprovável, mas que não constitua crime), embora no curso de suas investigações 6. Nesse sentido; Greco Filho, Manual.., p.77; Nucci, Código..., p. 74. O CPPM define, ex­ pressamente, a finalidade do inquérito policial militar, em seu art. 9®: “O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato, que, nos termos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários ã propositura da ação penal”. Aury Lopesjr. (Sistemas de investiga­ ção..., p. 44 e ss.) destaca, ainda, duas outras finalidades do inquérito policial; (2) garantia da sociedade; imediata reação ao delito, inclusive com requerimento de medidas cautelares pessoais e patrimoniais; (3) garantia do investigado de não ser processado sem um mínimo de elementos que indiquem a probabilidade da ocorrência de um fato definido como crime e sua autoria. Também para Nucci (Código..., p. 74), o inquérito policial “auxilia a Justiça Criminal a preservar inocentes de acusações injustas e temerárias”. No mesmo sentido, ainda, Rangel, Direito..., p. 65.

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possa ser descoberta a prática de delitos. A CPI deve fazer um relatório do que for apurado, e, se for detectada a ocorrência de algum delito, remeter cópia do relatório ao Ministério Público, para que este tome as providências penais necessárias. Todavia, as CPIs nâo são preordenadas ou têm por finalidade específica a investigação penal.

3.4 Natureza jurídica e características O inquérito policial é um procedimento administrativo, de natureza inquisitória, escrito e sigiloso. Trata-se de um procedimento na medida em que o legislador prevê uma sequên­ cia de atos a serem praticados pela autoridade policial, prevendo os meios de inicio, quais as diligências a serem realizadas, a forma dos atos investigatórios, o prazo, e o término do inquérito policial.' Predomina na doutrina o entendimento de que o inquérito policial tem natureza inquisitória.® Nào se trata, pois, de procedimento desenvolvido em contraditório. No entanto, aplica-se ao inquérito policial a ampla defesa. Há atos de defesa exercidos no próprio inquérito policial, como as declarações defensivas no interrogatório ou o próprio exercício do direito ao silêncio, bem como a possibilidade de a defesa requerer atos de investigação à autoridade policial. Por outro lado, a defesa poder ser exercida, durante o inquérito policial, por outros meios, como a impetração de haheas corpus (contra uma prisão ilegal) ou mandado de segurança (para segurar que o defensor tenha vista dos autos), visando a proteção de direitos defensivos do investigado. Especificamente no que toca ao direito à prova, é de reconhecer que o art. 14 do CPP confere ao investigado o direito de requerer diligências ou atos de investigação visando a descoberta de fontes de prova de interesse defensivo. Se o acusado tem o direito à prova, para poder exercê-lo deve ter o correlato direito de investigar fontes de provas. E, mormente enquanto não se estabelece um regramento específico para a investigação defensiva no processo penal brasileiro, é imprescindível reconhecer que o investigado pode requerer atos de investigação a serem realizados pela polícia. Ao mais, havendo quem defenda o direito à investigação pelo Ministério Público, e inexistindo uma disciplina legal de uma correlata investigação pela defesa, a negativa do direito de o investigado requerer a investigação de fontes de provas no inquérito Em sentido contrário, Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 67) entende que o inquérito policial “constitui um conjunto de atos praticados por autoridade administrativa”. 0 in­ quérito não é um processo administrativo. E vai além: “Sequer o inquérito é procedimento, pois falta-lhe característica essencial do procedimento, ou seja, a formação por atos que devam obedecer a uma sequência predeterminada pela lei, em que, após a prática de um ato, passa-se à do seguinte até o último da série, numa ordem a ser necessariamente observada”. Nesse sentido: Tourinho Filho, Manual ... p 68; Greco Filho, Manual.... p. 77; Frederico Marques, Tratado.., v. 1, p. 190; Mirabete, Processo penal, p. 82; Scarance Fernandes, Processo penai..., p. 67. Em sentido contrário, Tucci (Direitos e garantias..., p. 181) se manifesta pela contraditoriedade também no inquérito policial.

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policial implicaria uma odiosa iniquidade, com quebra da igualdade de possibilidade e da paridade de aniias. Não é possível concordar, portanto, com a posição tradicional de que, embora o investigado possa requerer meios de prova, caberia à autoridade policial, discricionariamente, deferi-los ou não. Se os meios de investigação são pertinentes e relevantes, não se mostrando desarrazoados ou inócuos, a autoridade policial deverã deferi-los. E, principalmente no caso de indeferimento, o ato deverá ser motivado, justificando e explicitando as razões pelas quais se considerou que tal ato investigativo não era necessário, sob pena de cerceamento do direito de defesa. Por fim, cabe ressaltar que, mais importante do que estabelecer se o inquérito policial é contraditório ou não, é definir qual o valor dos elementos de informação nele colhidos. À conclusão de que o inquérito policial não é contraditório deverá se seguir, naturalmente, que tais elementos não poderão ser usados pelo juiz, na fase processual, e, portanto, contraditória, para a formação do seu convencimento no momento de sentenciar o feito. É nesse sentido que o art. 155, caput, com a redação dada pela Lei n" 11.690/2008, prevê que: “O ju izform ará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundam entar sua decisão exclusiva­ mente nos elementos informativos colhidos na investigação" (destacamos). Entre as caracteristicas do inquérito policial, destaca-se tratar-se de um proce­ dimento escrito e sigiloso. O inquérito é um procedimento administrativo escrito, como expressamente previsto no art. 9° do CPP, o que, aliás, decorre do seu caráter inquisitivo. Ao mais, o CPP prevê também que o inquérito policial é sigiloso (CPP, art. 20, c.c. o art. 792, § 2“). Todavia, a Lei n° 8.906/1994 - que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil - , em seu art. 7°, XIV, prevê, entre os direitos do advogado, o de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar e tomar apontamentos”®(destacamos). Ora tal dispositivo não faz qualquer restrição quanto ao direito de o advogado consultar autos de inquérito policial - e pode-se acrescentar, dos denominados “procedimentos criminais diversos” - , se os mesmos estiverem correndo “em segredo de justiça”.'“ 9. Tourinho Filho (Processo..., v. 1, p. 210) embora seja um ardoroso defensor do sigilo do inquérito policial, mesmo em relação à defesa, analisando tal dispositivo afirma que “o § 1° do art. 7° faz restrições. Estas, contudo, não alcançara os incisos III e XIV do art. 7'”’. E conclui; “Tecnicamente, não há que se cuidar, pois, de sigilo”. Reconhecendo o direito de o advogado ter vista dos autos do inquérito policial: Toron, Advogado criminal..., p. 17; Paula Martins da Costa, Publicidade na investigação..., p. 13; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 73; Nucci, Código..., p. 124-2; Grandinetti de Carvalho, Processo penal..., p. 144-145. Em sentido contrário. Rangel (Direito..., p. 88) entende que “o caráter de inquisitoriedade veda qualquer intromissão do advogado no curso do inquérito”. 10. O § 1° do art. 7° da Lei n" 8.906/1994, ao excepcionar alguns dos direitos dos advogados, estabelece que; “[...] não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI: 1) aos processos

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Em suma. o segredo de justiça poderá ser decretado pela autoridade policial, nos termos do disposto no art. 20 do CPP, sendo oponível a terceiras pessoas, mas jamais a advogados, mesmo sem procuração nos autos. A questão, contudo, gerava controvérsia jurisprudencial, havendo decisões que negavam aos advogados vista dos autos de inquéritos policiais. O problema, contudo, foi pacificado pelo STF, ao editar a Súmula Vinculante n® 14, que assegura o direito de vista dos autos aos advogados; “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo e irrestrito aos elementos de prova que, já documentados em pro­ cedimento investigatório, realizado por órgão de competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”." Também no caso dos “chamados procedimentos criminais diversos” ou de in­ vestigações realizadas pelo Ministério Público, é direito do advogado ter acesso aos autos do procedimento investigatório. O STF já decidiu que: “[...] é direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte” (HC n® 88.190-4/RJ).

3.5 Dispensabilidade do inquérito O inquérito policial nâo é peça obrigatória para o oferecimento da denúncia, como se depreende dos arts. 12,39. § 5®, e 46, § 1®, do CPP. É possível que a denúncia sob o regime de segredo de justiça”. É elementar que o segredo de justiça, quando de­ cretado, afasta, apenas e tão somente, o direito do advogado de; (a) “ter vista dos pro­ cessos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais” (inciso XV) e; (b) “retirar os autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de 10 (dez) dias” (inciso XVI). Se o legislador quisesse restringir o direito do advogado examinar autos de inquérito policial nas repartições policiais, podendo copiar peças e tomar apontamentos, teria incluído o inciso XIV, que o assegura, no item 1 do § 1° do art. 7°. Se não o fez, é porque tal direito não é restringido ou, muito menos. eliminado, mesmo nos casos em que é decretado o “segredo dejustiç””. 11. Antes da edição da referida Súmula Vinculante n° 14, o STF já havia decidiu que o advogado tinha o direito de ter vista dos autos de inquérito policial, mesmo que estejam em sigilo (HC n° 82.354-8/PR). A mesma sistemática acabou sendo adotada na nova lei de organização criminosa, sendo previsto no art. 23 da Lei n° 12.850/2013 que: “O sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento". A diferença, porém, e que náo é pequena, é a necessidade de que sempre haja prévia autorização judicial. Ou seja, o advogado não poderá em tais investigações examinar diretamente na delegacia os autos de inquérito policial, necessitando, para tanto, de anterior autorização judicial.

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seja oferecida com base em peças de informação remetidas ao Ministério Público (CPP. art. 27). ' Há também leis especiais que preveem o oferecimento da denúncia com base em outros elementos; A Lei n° 4.898/1965 - Lei de Abuso de Autoridade - prevê o oferecimento da denúncia apenas com a representação da vitima, dispensado o inquérito policial (art. 12). É discutível, porém, a recepção de tal norma perante o sistema constitucional de 1988, em especial o art. 144. A Lei n° 9.099/1995 -L e i dosjuizados Especiais Criminais - prevê a possibilidade de oferecimento da denúncia apenas com base no termo circunstanciado, dispen­ sando-se o inquérito policial (art. 77, § 1“). Além disso, o exame de corpo de delito é dispensável quando a materialidade delitiva estiver demonstrada por boletim médico ou prova equivalente (art. 77, § 1°, parte final). Tal previsão parece ter seu âmbito de aplicação restrito aos crimes que prejudiquem a integridade física, em especial as lesões corporais leves e culposas. De qualquer forma, nunca é demais destacar que a denúncia ou queixa não po­ derão ser recebidas sem que haja justa causa para a ação penal, o que sempre exigirá a presença de elementos de informação que convençam o juiz da existência de um delito e de que o acusado seja o seu autor.

3.6 Âmbito de atuação da autoridade policiai Inicialmente, é de se ver que nào se trata de competência, que é atributo da au­ toridade judiciária. A expressão competência era empregada no caput do art. 4° do CPP no sentido de “poder atribuído a um funcionário de tomar conhecimento de um determinado assunto”. " Corretamente, a Lei n° 9.043/1995 alterou a redação de tal dispositivo, que passou a se referir a “no território de suas respectivas circunscrições”, em vez de suas “competências”. Todavia, esqueceu-se de corrigir o parágrafo único, que continua a se referir a “competência". A circunscrição policial é uma parte ou porção territorial existente em determinada cidade, na qual alguma autoridade policial pode exercer a sua função de polícia judiciária. Equivale, em linhas gerais, à competência do juiz. Há dois critérios para distribuição das atribuições da polícia judiciária entre as diversas autoridades policiais; o critério territorial e o critério material. Em outras palavras, para saber qual a autoridade policial “competente” para um certo inquérito policial, a sua atribuição é determinada ratione loci (por exemplo, local em que consu­ mou o delito), ou ratione materiae, nos casos em que existem delegacias especializadas (por exemplo, delegacias de entorpecentes ou delegacias de crimes fazendários)." 12- Nesse sentido: Frederico Marques, Tratado..., v. 1, p. 189; Tourinho Filho, Manual..., p. 67. 13. Por exemplo, o art. 4“ da Lei n° 12.735/2012, prevê que “Os órgãos da polícia judiciária estruturarão, nos termos de regulamento, setores e equipes especializadas no combate

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De qualquer forma, como não se trata de verdadeira competência - enquanto me­ dida dajurisdição - , e sim de mera atribuição, a violação de tais critérios não acarretará a incompetência absoluta ou mesmo a incompetência relativa. Consequentemente, os atos de investigação, mesmo que realizados por autoridade policial que não tinha atribuição para tanto, serão válidos e eficazes, não havendo que se cogitar de nulidade, e sim de mera irregularidade. No caso de lavratura de auto de prisão em flagrante por autoridade policial que não tinha atribuição para fazê-lo, em desrespeito ao art. 307 do CPP, a prisão será considerada ilegal, perdendo seu valor como medida coercitiva, devendo o acusado ser colocado em liberdade. A medida, contudo, manterá seus efeitos como ato de informação ou elemento de convencimento. O problema, contudo, não se mostra tão simples, quando se trata de medidas cautelares deferidas pelo juiz durante o inquérito policial. Até mesmo porque, em tal caso, não se estará discutindo a “falta de atribuição da autoridade policial” que praticou ato de investigação, mas sim a “incompetência” do juiz de direito que, no exercício de atividade jurisdicional, deferiu a produção de um meio de obtenção de prova. A resolução do problema exige a distinção quanto aos tipos de medidas caute­ lares: as medidas cautelares pessoais e reais, de um lado, e as medidas cautelares com finalidade probatória, ou, mais tecnicamente, os meios de obtenção de prova, de outro. As medidas cautelares pessoais, tais como a prisão temporária e prisão preventiva, se decretadas por juiz incompetente, serão nulas, cabendo habeas corpus para afastar a ilegalidade (CPP, art. 648, III). O mesmo se diga relativamente às medidas cautela­ res reais, cuja ilegalidade poderá ser reconhecida por mandado de segurança. Já no caso de meios de obtenção da prova, como as buscas e apreensões (CPP, art. 240) e as interceptações telefônicas (Lei n° 9.296/1996, art. 2°), se determinados por juiz incompetente, é preciso distinguir duas situações: ( D a incompetência já era constatável no momento da decisão; (2) a incompetência ficou caracterizada em virtude de novos elementos colhidos após a decretação da medida. Se o meio de obtenção de prova foi autorizado judicialmente quando os elementos até então colhidos já permitiam a constatação da incompetência do juiz (por exemplo, um furto realizado contra a Caixa Econômica Federal, cuja busca e apreensão foi de­ terminada porjuiz estadual), a medida será ineficaz.” O juiz deveria, reconhecendo-se incompetente, ter determinado a remessa dos autos para que o juiz competente (no caso, o juiz federal) apreciasse o pedido de busca e apreensão. Diversamente, se quando a medida foi autorizada o juiz se considerou compe­ tente, em face dos elementos de informação até então existentes no inquérito policial à ação delituosa em rede de computadores, dispositivo de com unicação ou sistema informatizado.” 14. O STF declarou nula, por vicio de incompetência, a interceptação decretada pelo TRF, em caso que o investigado não gozava de foro por prerrogativa de função (STF, HC n° 81.245/RJ).

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(por exemplo, um juiz estadual decreta uma interceptaçâo telefônica para investigar tráfico de drogas), e só posteriormente se descobrem novos elementos que indicam que o crime era de competência de outro juiz (por exemplo, a droga era de proveni­ ência estrangeira, e, por se tratar de tráfico internacional, de competência dajustiça Federal), a medida deve ser considerada válida, mantendo seu valor probatório/’

3,7 Início do inquérito policial As formas de instauração do inquérito policial variam de acordo com a natureza do delito. Nos casos de ação penal pública incondicionada, segundo o art. 5“, caput, do CPP, a instauração do inquérito policial pode se dar: (1) de oficio, pela autoridade policial, que baixa uma portaria para tanto; (2) mediante requisição do Ministério Público ou do juiz; (3) mediante requerimento do ofendido. Também poder-se-á iniciar, nos ter­ mos do art. 10, por uma quarta forma: (4) o auto de prisão em flagrante (CPP, art. 8°). Nos casos de requisição, a autoridade policial, salvo ilegalidade manifesta, não pode se recusar a instaurar o inquérito policial. Há uma vinculação ou dever funcional de instaurar o inquérito.'® Nâo é possível considerar recepcionado pela nova ordem constitucional o art. 5“, caput, II, do CPP, na parte em que prevê a possibilidade de o juiz, ex officio, requisitar a instauração de inquérito policial, mormente diante da regra do art. 83 do CPP, prevendo que esse juiz, se decidir alguma medida cautelar, ficará vinculado, por prevenção, para julgar a ação penal. A imparcialidade do ju iz é evidentemente comprometida quando 0 magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento. Como ainda não bá imputação formulada, ao requisitar a instauração do inquérito policial o magistrado acaba por exercer funções típicas do titular da ação penal, violando a essência do sistema acusatório, consistente na separação das funções de julgar, acusar e defender, confiadas a sujeitos distintos.'’ Umjuiz que acusa não pode julgar. Aliás, no novo regime da Lei n° 12.403/2011, na fase da investigação criminal 0 juiz não poderá nem mesmo determinar, de ofício, medidas cautelares (CPP, art. 282, § 2“). Com muito maior razão, não poderá determinar a instauração da própria 15. No caso de interceptaçâo telefônica deferida no curso do inquérito policial, o STF considerou que não induz â ilicitude da prova resultante da interceptaçâo telefônica que a autorização provenha de Juiz Federal - aparentemente competente, à vista do objeto das investigações policiais em curso, ao tempo da decisão - que, posteriormente, se haja declarado incom­ petente, à vista do andamento delas (HC n° 81.260/ES). 16. Tourinho Filho (Processo..., v. 1, p. 224) afirma que “requisição é exigência legal. Requisitar é exigir. Já a palavra requerimento traduz a ideia de solicitação de algo permitido por lei", e, com base em tais premissas, conclui; “Não poderá, pois, a autoridade policial deixar de atender às requisições da Autoridade Judiciária ou do Ministério Público". 17. Nesse sentido; Silva Jardim, Em tomo..., p. 320; Id., O Ministério Público.,., p. 328; Rangel, Direito..., p. 23; Prado, Sistema açusatório..., p. 135; Polastri Lima, Manuai..., p. 97; Lopes Jr., Direito..., l. l, p. 255.

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investigação. Um magistrado que inicia a investigação, requisitando a instauração de inquérito policial, também não pode julgar. Tendo notícia de um fato que se lhe afigurasse crime, o juiz poderá, com funda­ mento no art, 40 do CPP, determinar o encaminhamento de tais peças ao Ministério Publico, para que este tome as providências que entender cabíveis. Nunca, porém, antecipar-se ao acusador - ou à autoridade policial - e requisitar a instauração de inquérito policiai.*® Em suma, o disposto no art. 5“; II, do CPP é incompatível com a Constituição de 1988, uma vez que viola o sistema acusatório e o monopólio da ação penal pública conferido ao Ministério Público, além de representar prejulgamento incompatível com a exigência de imparcialidade do juiz, em especial de sua imparcialidade objetiva. 0 juiz que requisita a instauração do inquérito policial não poderá exercer a função jurisdicional durante o inquérito policial, caso seja necessário proferir decisão judi­ cial sobre medidas cautelares ou meios de obtenção de provas, nem poderá exercer a jurisdiçàoem eventual processo penal que tenha por fundamento o inquérito policial instaurado por sua provocação.

Outra forma de instauração do inquérito policial é o requerim ento do ofendido, que poderá ser deferido ou indeferido pela autoridade policial. Em qualquer caso, a decisão deverá ser motivada. Contra o indeferimento do requerimento do inquérito policial cabe recurso administrativo para o "chefe de polícia" (CPP, art. 5“, § 2“). Atualmente, não há nos quadros da polícia a figura do “chefe de polícia”, devendo o recurso ser endereçado ao delegado-geral de polícia ou, até mesmo, ao secretário de ) Segurança Pública. Nocaso da Polícia Federal, seu “chefe” é o diretor do Departamen- ! to de Polícia Federal. Nada impede, contudo, que o recurso seja interposto perante '

outras autoridades policiais, hierarquicamente superiores ao delegado de polícia ; que indeferiu a instauração do inquérito policial (por exem plo, delegado seccional). * Por outro lado, haverá também a alternativa de, ante o indeferimento, o requerente fornecer, por escrito, “informações" ao Ministério Público, para que este requisite a instauração do inquérito (CPP, art. 27). já na âçáo penal pública condicionada o inquérito policial somente poderá ser instaurado se houver representação, escrita ou oral, do ofendido ou seu procurador (CPP.art. 5®, § 4®). Em lal caso. o inquérito policial nâo poderá ser iniciado por auto de prisão em flagrante, se não houver representação do ofendido. Na açào penal pública condicionada à requisição do Ministro da justiça, deve ser aplicado, por analogia, o disposto no § 4®do art. 3“ do CPP, nâo se admitindo que o inquérito policial se inicie sem tal ato.'** Nesses casos, lai representação, ainda que formulada para a instauração do inquérito policiai, jã servirá como a manifestação de vontade do ofendido, satisfa­ zendo a condição de procedibilidade exigida para, futuram ente, o M inistério Público

18. Nesse sentido; Pacelli de Oliveira, Curso..., p. 45; Lopes jr., Dírdto..., 1.1, p, 265; Polastri Uma, Mantwí.,., p, 97. 19. Nesse sentido: Tourinho Filho, Manttaf. .., p. 78.

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oferecer a denúncia sujeita à representação. O mesmo se diga em relação à requisição do Ministro da Justiça. Por fim, na ação penal de iniciativa privada o inquérito somente pode se iniciar mediante requerimento do ofendido (CPP, art. 5°, § 5°). Não se trata, por óbvio, de oferecimento da própria queixa-crime, o que somente ocorrerá em juízo, dando causa à instauração do processo penal. Todavia, para que se inicie o inquérito, é necessário que a vítima ou seu representante legal formulem requerimento para autoridade po­ licial, pleiteando a sua instauração.®“ Nos casos de investigados que gozam de foro por prerrogativa de função, o início da persecução penal ficará vinculado à autorização do tribunal competente.®* Por criação jurisprudencial, a previsão do foro por prerrogativa de função acaba gerando um efeito mais amplo, que não encontra paralelo na investigação preliminar nos casos de crimes de competência do juiz singular. No caso de um crime cuja competência seja atribuída a juiz de direito, a autoridade policial pode instaurar inquérito policial para investigar os fatos que se Ibe afiguram criminosos, independentemente de qualquer autorização ou decisão judicial. Já na hipótese de competência originária dos tribunais, em virtude da existência de regra de foro por prerrogativa de função, a investigação não poderá ser iniciada sem que baja prévia autorização do tribunal competente para processar originariamente a ação penal.®®Por certo, a mesma exigência se impõe no caso 20. No regime da Lei n° 9.099/1995, tanto no caso de ação penal pública condicionada como no caso de ação penal privada, é possível iniciar a persecução penal - isto é, lavrar o termo circunstanciado - sem a representação ou requerimento da vítima. Tanto a representação, na ação penal pública condicionada, quanto a queixa, na ação penal privada, deverão ser oferecidas na audiência preliminar (art. 74, caput). De observar, porêm, que, no regime da b referida lei, o sistema deveria funcionar com a lavratura imediata do termo circunstanciado e o encaminhamento, também imediato, do autor do fato e da vítima ao Juizado, para a V realização da audiência preliminar, o que não ocorre na prática. 21. Por óbvio, se houver necessidade de algum meio de obtenção de prova, por exemplo, quebra de sigilos bancãrio ou fiscal, interceptação telefônica, busca e apreensão, entre outros, serã necessãria autorização do desembargador ou do ministro a quem tenha sido distribuída a investigação. Da mesma forma, a decretação de medidas cautelares, pessoais ou reais, será de competência do Tribunal. Ou seja, a competência por prerrogativa de função não se aplica apenas à ação penal propriamente dita, mas abrange, também, os atos jurisdicionais a serem praticados no curso da investigação preliminar. 22. Nesse sentido decidiu o STF, no julgamento de Questão de Ordem no Inquérito n“ 2.411/ MT, “Se a Constituição estabelece que os agentes politicos respondem, por crime comum, perante o STF (CF art. 102, l,b ), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STF A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do ministro-relator do STF A Policia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República (no caso do STF). No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 1 0 2 ,1, b c.c. Lei n° 8.038/1990, art. 2° e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedi­ mentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis.

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de outras formas de investigação preliminar diversas do inquérito policial, como vem ocorrendo nos denominados “procedimentos criminais diversos”. Da mesma forma que não pode a autoridade policial instaurar inquérito policial contra autoridade que goze de foro por prerrogativa de função, sem autorização do ministro ou desembarga­ dor relator competente pela investigação, também nâo poderá fazê-lo o representante do Ministério Público, em qualquer investigação preliminar que pretenda instaurar, sob qualquer denominação que se dê (por exemplo, os procedimentos investigatórios criminais ou procedimentos criminais diversos), para fins penais.” A denúncia anônima não tem valor juridico, sendo impossível instaurar o in­ quérito com base em um ato sem qualquer eficácia jurídica. Todavia, isso não quer dizer que a “denúncia anônima” não tenha nenhum valor investigativo. Aliás, são cada vez mais frequentes os “disque-denúncias”. Com base nas informações contidas nas denúncias anônimas, a polícia pode iniciar a prática de atos de investigação rotineiros, visando a verificar sua veracidade. Colhidos elementos mínimos, ou comprovados os elementos da denúncia anônima, aí, sim, será possível instaurar inquérito policial, mediante portaria da autoridade policial,” ou mesmo auto de prisão em flagrante, caso a denúncia seja confirmada.” Não será possível, porém, com base exclusivamente em denúncia anônima requerer interceptaçâo telefônica,” busca e apreensão ou qualquer outro meio de obtenção de prova. Isso porque, sendo destituída de valor jurídico, não poderá

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Questão de ordem resolvida no sentido e anular o formal indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado ”. Nesse sentido posicionou-se o TJSP, especificamente em relação ao caso de prefeitos muni­ cipais, em que a investigação pelo Ministério Público se iniciou sem autorização do tribunal (TJSP, HC n® 990.09.120736-5). Em sentido contrário, para Mirabete (Processo penal, p. 87) nada impede a notícia anônima do crime, a que se tem dado o nome de noticia criminis inqualificada. Para Nucci (Código..., p. 91), embora o anonimato não seja causa suficiente para a instauração do inquérito, ele poderá ter a eficácia de possibilitar o início das averiguações. No mesmo sentido: Greco Filho, Manual..., p. 80. O STF já admitiu o início das investigações por meio de notitia criminis anônima (MS n° 24.369/DF). Por outro lado, considerou, em sentido contrário, que “nâo serve à persecução criminal notícia de prática criminosa sem identificação da autoria, consideradas a vedação constitucional do anonimato e a necessidade de haver parâmetros próprios à responsabilidade, nos campos cível e penal, de quem a implemente” (HC n° 84.827/TO). O STF decidiu que “Nâo é nulo o inquérito policial instaurado a partir da prisão em flagrante dos acusados, ainda que a autoridade policial tenha tomado conhecimento prévio dos fatos por meio de denúncia anônima” (HC n° 90.178/RJ). Além disso, assim também decidiram a Quinta Turma do STJ, no HC n°190.334/SP e a Sexta Turma no HC n°137.349/SP. Por outro lado, o STJ admitiu interceptaçâo telefônica no caso de haver outras provas: “O anonimato, per se, não serve para embasar a instaura­ ção de inquérito policial ou a interceptaçâo de comunicação telefônica. Contudo, in cüsu, ao escrito apócrifo somaram-se depoimentos prestados perante o Ministério Público, que, só então, formulou o requerimento respectivo" (STJ, HC n° 161.660/PR). Também nesse último sentido: STJ, HC n° 146.21/SP

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caracterizar-se sequer como elemento representativo do Jumus com m issi delicti, necessário para tais iriçdidas. No caso de investigado que goze de foro por prerrogativa de função, a denúncia anônima, não amparada por outros elementos, será insuficiente para que o tribunal competente autorize o início das investigações." O art. 35 do CPP, que restringia o direito de queixa da mulher casada e, conse­ quentemente, o direito de representação para o início do inquérito policial (CPP, art. 5”, § 5°), foi revogado, expressamente, pela Lei n° 9.520, de 27/11/1997. Aliás, tal dispositivo já não havia sido recepcionado pela nova ordem constitucional, diante da igualdade prevista no art. 226, § 5°, da CR.

3.8 Notitia criminis: conceito e espécies A notitia criminis, ou notícia do crime, é o conhecimento espontâneo ou pro­ vocado, pela autoridade policial, de um fato que se afigura crime. A notitia criminis é espontânea quando o conhecimento da infração ocorre de forma direta e imediata pela autoridade policial, no exercício rotineiro de suas atividades (por exemplo, encontro do corpo de delito). Por outro lado, haverá notitia criminis provocada quando transmitida à autoridade policial por ato formal de terceira pessoa, seja pelo requerimento da viti­ ma, pela requisição do Ministério Público, ou ainda pela representação do ofendido.™ A notitia criminis espontânea é denominada cognição imediata, enquanto a pro­ vocada é chamada de cognição mediata. Finalmente, denomina-se notitia criminis de cognição coercitiva aquela decorrente da prisão em flagrante. De outro lado, denomina-se delatio criminis a comunicação do crime feita por qualquer do povo, nos termos do § 3° do art. 5® do CPP.™

3.9 Diligências O art. 6° do CPP prevê as diligências que poderão ser realizadas pela autoridade policial. Trata-se de dispositivo que estabelece um rol de diligências, e não a ordem ou seqüência dos atos de investigação a serem realizados. A ordem procedimental dos atos de investigação é irrelevante, cabendo à autoridade, em vista das circunstâncias, colher as provas na medida das possibilidades.®“ 0 art. 6° do CPP determina que a autoridade policial deverá: 1- dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conserva­ ção das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II ~ apreender os objetos que tiverem

27. Nesse sentido decidiu o Pleno do STF, no lnqn° 1957/PRe no HCn°84.827/TO.No mes sentido decidiu a Corte Fspecial do STJ no AgReg na Sind n° lOO/TOe na QO na Sind n° 81/SP. 28. Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 29. Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 30. Greco Filho, Manual..., p. 81.

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relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fa lo e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; y - o u v ir 0 indiciado, com observância dos arts. 185 a 196 do CPP, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura; VI - pro­ ceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações; VII - determinar, se fo r o caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias; VIU - ordenar a identificaçãodoindiciadopeloprocessodatiloscópico, se possível, efazerjuntar aos autos sua fo lh a de antecedentes; IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual,familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ãnimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. A preservação do local do crime é fundamental para a colheita de elementos de informações que poderão ser muito úteis para a descoberta da forma de cometimento do delito e de sua autoria. Infelizmente, na prática, muitas vezes não se preserva o local do crime adequadamente, de forma que, quando o perito chega à cena delitiva, muito já se perdeu em termos de investigação.®* O art. 169 do CPP dispõe sobre a perícia no local do crime. A autoridade policial deverá apreender os objetos e instrumentos do crime (CPP, art. 6°, II)- No caso de objetos deixados no local do crime e que sejam de interesse da investigação, não será necessário mandado judicial. No caso de busca domiciliar e de busca pessoal, salvo as exceções legais, será preciso mandado j udicial. Ressalte-se que os objetos e instrumentos do crime, normalmente, são de interesse da investigação, podendo ser determinada a realização de perícia sobre eles. Por outro lado, no caso de instrumentos do crime cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, ao final do processo, em caso de condenação, será determinada sua perda em favor da União (CP, art. 91, caput, II, a). Os demais objetos, se não mais houver interesse para a investigação, serão restituídos à vítima, ao acusado, ou ao seu pro­ prietário (CPP, arts. 118 e 119). Aoitiva do ofendido será realizada o mais rapidamente possível. As informações prestadas pela vítima serão fundamentais para o encaminhamento das investigações. Todavia, nem sempre a oitiva será possível. Há casos em que, porexemplo, o ofendido faleceu ou ficou gravemente ferido, estando internado em hospital, o que impossibi­ litará sua oitiva. De qualquer forma, neste último caso, será possível, posteriormente, ouvir 0 ofendido. 31 , No tocante à preservação do local do crime, excepcionalmerrte, no caso de crimes de trânsito,

a Lei n° 5.970/1973, em seu art. 1°, § T , prevê que: “|...| em caso de acidente de trânsito, a autoridade ou agente policial que primeiro tomar conhecimento do fato poderá autorizar, independentemente de exame do local, a imediata remoção das pessoas envolvidas que tenham sofrido lesão, bem como dos veículos nele envolvidos, se estiverem no leito da via pública e prejudicarem o tráfego. Para autorizar a remoção, a autoridade ou o agente policial lavrará boletim de ocorrência, nele consignando o fato, as testemunhas que o presenciaram e rodas as demais circunstâncias necessárias ao esclarecimento da verdade".

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Para a oitiva do indiciado devem ser seguidas, no que forem aplicáveis, as regras sobre o interrogatóriq, isto é, os arts. 185 a 196 do CPP, devendo, ainda, o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que tenham ouvido a leitura. No interrogatório judicial, há participação do advogado (CPP, art. 185, § 2°), bem como a possibilidade da feitura de reperguntas pelas partes, após as indagações do juiz (CPP, art. 188) Tais regras, contudo, não se aplicam na oitiva do indiciado no inquérito policial, quer pela natureza inquisitória do inquérito policial, incompatível com a exploração contraditória do interrogatório, quer porque as reperguntas deverão ser formuladas pelas “partes”, que não existem no inquérito policial. No entanto, se o investigado tiver defensor, nada impede que este o acompanhe na sua oitiva durante 0 inquérito policial.” Não há disciplina de como deve ser realizado o reconhecimento de pessoas ou coisas, bem como as acareações durante o inquérito policial, devendo ser aplicados, por analogia, os arts. 226 a 228, para o reconhecimento, e os arts. 229 e 230, para a acareação. Para a identificação dos criminosos tem sido utilizada, também, a consulta de “álbuns de fotografias” de criminosos feitos pela polícia e, até mesmo, a elaboração dos chamados “retratos falados”, com base em informações de vítimas ou testemunhas, que poderão ser úteis na tentativa de que terceiras pessoas prestem informações sobre a identificação e paradeiro do criminoso. A autoridade policial poderá, ser for o caso, determinar que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias necessárias (CPP, art. 6°, VII). Nos casos dos delicta ja cta permanente, o exame de corpo de delito é obrigatório para a comprovação da materialidade delitiva (CPP, art. 158). Todavia, o dispositivo não determina apenas a realização do exame de corpo de delito, como também de outras perícias.” Por fim, poderá a autoridade policial averiguar a vida pregressa do investigado (CPP, art. 6.°, IX). Tais dados são relevantes, em caso de condenação, em especial, para a dosimetria da pena, quando deverão ser considerados entre as circunstâncias judiciais (CP, art. 59, caput).^ 32. Nesse sentido: Mirabete, Processo penal, p. 95. 33. Como será melhor analisado no item 3.16, entendemos que as perícias que deverão ser realizadas no inquérito policial são somente aquelas que não poderão ser repetidas em juízo. Os exames periciais que possam ser executados durante o processo (por exemplo, perícia sobre funcionamento da arma de fogo) e, portanto, submetidos ao contraditó­ rio na formação da prova, e não apenas a um contraditório diferido, sobre a prova já produzida, não deverão ser efetuados na fase do inquérito. Se assim o forem, haverá desperdício de atividade investigativa, posto que destituída de valor para a formação do convencimento judicial. 34. Lamentavelmente, porém, na prática não se dá valor a tais investigações. Todo o problema parece se resumir a simples reincidência ou não do investigado. São inúmeros, por exemplos, os casos em que o valor do dia-multa é fixado no mínimo legal, por nâo haver qualquer informação nos autos sobre a vida econômica do acusado, quando entre os dados da vida pregressa deve ser perquirida a situação econômica do investigado.

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O rol do art. 6“ do CPP não é taxativo. Há outras diligências que poderão ser tomadas pela autoridade policial, como a reprodução simulada (CPP, art. 7°), vulgar­ mente denominada “reconstituição do crime”. Não há disciplina legal do procedimento probatório a ser seguido na reconstituição do crime. Normalmente, levam-se em conta as informações prestadas pela vítima. Nada impede, porém, em caso de confissão, ou em outras situações que a autoridade policial considere relevantes, que se realize a reconstituição com base nas informações do próprio investigado, até mesmo para a verificação da veracidade de suas informações. Também é possível fazê-la com base em informações de testemunhas.®’ A Lei n° 12.850/2013, que trata das organizações criminosas, prevê, em seu art. 3°, meios de investigação e meios de obtenção de prova específicos para tais delitos; co­ laboração premiada (inciso I); captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (inciso II); a açào controlada, também chamada de “flagrante retardado ou diferido” (inciso III); o acesso a registro de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informa­ ções eleitorais ou comerciais (inciso IV); interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas (inciso V); afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal (inciso VI); a infiltração dos agentes policiais nas organizações criminosas (inciso VII); a cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instmção criminal (inciso Vlll). No caso de lavagem de dinheiro, o art. 17-B da Lei n° 9.613/1998, acrescido pela Lei n“ 12.683/2012,®« prevê que “A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, inde­ pendentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas adminis­ tradoras de cartão de crédito”. O novo dispositivo certamente será questionado quanto a sua constitucionalidade, vez que há divergência sobre serem ou nào os dados cadastrais protegidos pela garantia constitucional da intimidade (art. 5°, X, da CF/1988). Resposta negativa é dada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior que, partindo da premissa de que “a inviolabilidade dos dados referentes à vida privada só tem pertinência para aqueles associados aos elementos identificadores usados nas relações de convivência, as quais só dizem respeito aos conviventes”, conclui; “os 35. Diante da garantia constitucional de que o investigado e o acusado não são obrigados a produzir provas contra si mesmos (CR, art. 5°, LXUI), o investigado não está obrigado a participar da reprodução simulada dos fatos. Nesse sentido: Mirabete, Processo penal, p. 94; Nucci, Código..., p. 101. Na jurisprudência; STF, HC n“ 99.289/RS; TJSP, RHC n° 417.2913/3, RJTJSP n” 43/343. 36. Regra idêntica é prevista no art. 15 Lei n° 12.850/2013.

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elementos de identificação só são protegidos quando compõem relação de convi­ vência privadas: a proteção é para elas, não para eles. Em consequência, simples cadastros de elementos identificadores (nom e, endereço, RG, filiação etc.) não são protegidos”.®® Outra corrente, em especial no que toca ao sigilo financeiro, conclui que os dados cadastrais estão abrangidos por tal sigilo.®® Isso porque, em caso de resposta positiva, segundo entendimentó prevalecente bá reserva de jurisdição para as restrições os direitos fundamentais, sendo inadmissível o fornecimento de tais dados mediante requisição direta e independentemente de ordem judicial. E, por ser caso de restrição de direito fundamental, não se aplica a regra do art. 3“ do CPP, que admite interpre­ tação extensiva. Desde que se considere que os dados cadastrais se referem a dados ou informações não acobertadas pelo âmbito de proteção do inciso X do art. 5° da Constituição, seria possível sua obtenção sem que baja necessidade de ordem judicial, tal qual previsto no novo art. 17-B da Lei n° 9.613/1998, acrescido pela Lei n° 12.683/2012. Tratando-se de norma restritiva de direito fundamental, sua interpretação deve ser estrita, não admitindo qualquer forma de ampliação ou interpretação extensiva. Ainda neste sentido, o advérbio exclusivamente indica o caráter restritivo da norma. A autoridade policial e o Ministério Público poderão ter acessos, sem ordem judicial, “exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço". Ou seja, o acesso direto se restringe aos dados cadastrais e os ele­ mentos do cadastro aos quais se poderá ter acesso são exclusivamente os mencionados na lei: “qualificação pessoal, filia ç ã o e endereço". A qualificação pessoal é composta pelo nome, nacionalidade e naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, número de carteira de identidade e número de registro no cadastro de pessoas fisicas da Receita Federal. A filiação consiste na indicação no nome do pai e da mãe. Por fim, o endereço, vez que não houve qualquer restrição na lei, consiste na indicação precisa do local de residência e de trabalho, caso ambos os dados estejam disponíveis. Como se trata de qualificação do investigado, constando inclusive sua filiação - e a norma deve ser interpretada restritivamente - não se pode admitir a solicitação de dados cadastrais de pessoas jurídicas que possam estar envolvidas na investigação, ou mesmo de pessoas jurídicas das quais o investigado seja sócio. «si As entidades a que poderão ser solicitados os dados cadastrais são apenas aquelas ptevistas no art. 17-B: “Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições ^nanceiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito". k37.

Sigilo de dados..., p. 449.

'■’38. Nesse sentido: Wald, O sigilo bancário... p. 199; Moraes, Sigilo financeiro..., p. 2.980. Nesse sentido, na jurisprudência reconhecendo o caráter sigiloso dos dados cadastrais de .^4. operadoras de telefone e de instituições bancárias: STJ, RHC n“ 8493/SP. No mesmo senúdo, com relação a dados cadastrais em instituições bancárias; STJ, RHC n° 5.065/MG.

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Por fim. é de se observar que a Lei n° 12.830/2013, em seu art. 2°, § 2“ prevê que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, in­ form ações, documentos e dados que interessem à apuração dosfatos". Tal dispositivo deve ser entendido no sentido de compatibilizá-lo com o respeito às liberdades públicas e direitos fundamentais, cuja restrição está sujeita à reserva dejurisdição e exige prévia autorização judicial. /Vssim, obviamente, não poderão ser requisitado dados bancários, fiscais, prontuários médicos e outros documentos que contenham dados legalmente protegidos por sigilo. Em tais hipóteses, a autoridade policial deverá requerer ao juiz a decretação do levantamento de tal sigilo, exigindo-se, pois, decisão judicial.

3.10 Identificação criminal A identificação criminal inclui a identificação datiloscópica, (prevista, para o indiciado, por meio do art. 6°, VIII, do CPP), fotográfica e por perfil genético. A Súmula n® 568 do STL confündindo a identificação criminal com a identi­ ficação datiloscópica, estabelecia que “a identificação criminal nâo constitui cons­ trangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente”. Tal panorama mudou com a CR de 1988, que, em seu art. 5®, LVIII, estabelece, entre as garantias individuais, que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei". Não se Irata de uma garantia absoluta, uma vez que admite as exceções previstas na lei própria. Somente vários anos depois, com a edição da Lei n® 10.054/2000, foram disciplinadas as exceções legais em que se admite a identificação criminal.” Posteriormente, referida lei foi revogada pela Lei n® 12.037/2009, que atualmente dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado. O art. 1®da Lei n® 12.037/2009 prevê que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo as exceções previstas na própria lei. Os documentos que poderão atestar a identidade civil são previstos no art. 2° da Lei n° 12.037/2009, sendo o principal deles a carteira de identidade (caput, I).“ Embora o art. 6®, VIII, do CPP se refira apenas à identificação pelo processo datiloscópico, ajurisprudência vinha interpretando o dispositivo como uma previsão que abrangia a identificação criminal em sua acepção mais ampla, incluindo a identificação fotográfica, considerada inclusive elemento útil para a instrução criminal.'" 39. Antes do advento da lei própria, já havia previsão especial na Lei dos Crimes Organiza­ dos, que em seu art. 5° determina: “[...] a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil". 40. Contudo, não há necessidade de que seja apenas a “Carteira de Identidade", vulgarmente conhecida como “RG". O art. 2°, capuC. admite a comprovação da identidade civil também pela apresentação da carteira de trabalho, carteira profissional, do passaporte, da carteira de identificação funcional ou de outro documento público que permita a identificação do indiciado (incisos H a VI, respectivamente). 41. Nesse sentido: STF, RExt n° 94.491/RJ. O STJ apresentava posições em ambos os sentidos. No julgamento do RHC n° 4.798/SP decidiu-se que “fotografias de frente e perfil tiradas

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As exceções previstas no art. 3° da Lei n° 12.037/2009, que permitem a iden­ tificação criminal, mesmo nos casos em que o indiciado ou investigado tenha sido identificado civilmènte, são estabelecidas segundo dois critérios; (1) necessidade da investigação, (2) a dúvida quanto à identidade civil.®' para instruir inquérito policial não incidem no inciso LVIII do art. 5° da CF” (RT 738/572). Anteriormente, porém, no julgamento do RFsp n“ 16.994-0-DF, o STJ entendeu que “a Constituição de 1988, no seu art. 5°, LVIII, veda a identificação criminal do civilmente identificado, salvo nas hipóteses previstas em lei, assim entendidas, também, a fotográfica, à ausência de comando legal que a autoriza” (RT 685/381). 42. Não há previsão equivalente ao inciso I do art. 3° da revogada Lei n° 10.054/2000, que determinava a identificação criminal quando o civilmente identificado estivesse sendo investigado ou já tivesse sido indiciado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticado mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada ou crimes contra a liberdade sexual (art. 3°, I). Analisando tal dispositivo, que se fundava exclusivamente na gravidade do crime, Luiz Flávio Gomes (Identificação criminal..., Dispo­ nível em: www.direitocriminal.com.br.) considerava-o inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade, visto que em tais casos a identificação criminal não seria necessária, nem idônea e muito menos razoável. O dispositivo teria caráter preconceituoso, porque somente foram previstos casos de criminalidade “violenta”, praticados por pessoas perten­ centes às classes baixas, enquanto a criminalidade astuta (fraude), praticada por criminosos das classes favorecidas (criminosos do colarinho-branco, crimes tributários, crimes contra a administração pública - corrupção, concussão etc.) teriam sido devidamente protegidos na Lei n° 10.054/2000. Já Damásio F. de Jesus (Código..., p. 12) considerava o dispositivo revogado de “duvidosa constitucionalídade”. Antes mesmo da Lei n“ 10.054/2000, Pitombo (A identificação..., p. 178) advertia que “descabem, pois, hipóteses de limitação, p. ex., que afirmem a compulsoriedade de nova identificação física em razão, apenas, da natureza do delito, ou da periculosidade do agente. Sucederia mero quebramento da regra fundamen­ tal, seja pelo caráter particularizante das exceções, seja pela adulteração constrangedora da essência do dispositivo”. Fm escrito sobre a referida lei, divergimos (Badaró, A nova regulamentação..., p. 9) de tais pontos de vista: “o legislador, ao estabelecer um regime di­ ferenciado para a criminalidade violenta, valeu-se de critério muito utilizado para diversas situações. Nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça contra a pessoa, não é possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, a concessão de liberdade condicional fica condicionada ao exame de cessação de periculosidade, não é possível a liberdade provisória mediante fiança, entre tantas outras. Nunca se apontou a inconstitucionalidade destes dispositivos por serem discriminatórios ou não razoáveis". Entretanto, na primeira edição do Direito processual penal, t. l, (p. 54, nota 21) mudamos de ponto de vista: “Hoje, porém, repensando o tema, alteramos nosso posicionamento. A gravidade abstrata dos delitos não é fator que justifique a maior restrição ao direito de não ser identificado criminalmente, pelo método datiloscópico. Para os casos era que há dúvi­ da sobre a identidade, a simples apresentação do documento civil pode não set adequada para o fim a que se propõe: uma correta identificação do investigado ou acusado. Assim, é necessária uma maior restrição ao direito de ser identificado apenas pelo documento de identidade civil, consubstanciada em exigir a identificação criminal. A medida, portanto, é adequada e necessária, já no caso em que o fator legal é a mera gravidade do delito, embora o meio - identificação criminal - seja adequado ao fim a que se propõe - identi­ ficar corretamente o investigado - , não se trata de meio necessário. Em outras palavras, era possível com uma intervenção menos gravosa, no caso, a simples identificação civil, atingir a mesma finalidade. Se não há nada a justificar a dúvida sobre a identidade civil, a

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No tocante ao primeiro critério, o inciso IV do caput do art. 3“ admite a identi­ ficação criminal naquele civilmente identificado quando “a identificação criminal fo r essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridadejudiciãria competente, que decidirá de ofício ou m ediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa". Sempre que imprescindível para a investigação (por exemplo, porque é preciso realizar perícia para comparação de impressões digitais), será neces­ sãria decisão—e não despacho —judicial, com a devida fundamentação, determinando a identificação criminal. A Lein° 12.654/2012 acrescentou o art. 5-A daLein“ 12.037/2009prevendo que no caso de a identificação criminal ser essencial às investigações criminais ela poderá “poderá incluir a coleta de m aterial biolõgico p ara a obtenção de perfil genético" (desta­ camos). Como se trata de hipõtese que se reporta ao inciso IV do art. 3, está sujeita à reserva de jurisdição, dependendo de prévia decisão judicial, que obviamente deverá ser fundamentada. Como tal medida implica inegável restrição ao direito à intimidade, sua legitimi­ dade depende de observância da proporcionalidade, devendo a medida ser adequada, necessária e proporcional. A adequação da medida decorre da prõpria exigência de que a identificação cri­ minal e, mais do que isso, no caso, a identificação por perfil genético seja “essencial" para as investigações. “Essencial” é mais do que simplesmente útil ou eficaz; essencial é aquilo que é absolutamente necessário, sem o que a identificação não poderá ser feita ou não poderá prosseguir. A identificação genética não é, portanto, uma consequência automática da determinação judicial da identificação criminal, na hipótese do inciso IV. A providência que somente poderá ser determinada nas hipóteses em que seja a investigação a comparação de perfil genético seja adequada por ter sido encontrado e colhido material genético (sangue, saliva, cabelo, pelo, sêmen etc.) do provável autor do crime na cena delitiv'a, mesmo no corpo da vítima, em armas utilizadas no crime etc. Além disso, a medida terá que ser necessária, isto é, não ser possível realizar a identificação genética por outro meio menos gravoso. Por exemplo, se puder ser rea­ lizada a busca e apreensão de material genético na residência do investigado. Por fim, deve-se respeitar a proporcionalidade em sentido estrito. Embora nâo baja um rol de crimes mais graves em relação aos quais a medida seja cabivel, não se imagina que isso possa ser feito em relação a crimes de menor gravidade ou mesmo contravenções penais.“*® A identificação de perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso (art. 7°-B). Ao término do prazo prescricional do crime que foi investigado e que moexigência de identificação criminal é alternativa mais gravosa que o necessário para o caso. Há, pois, incompatibilidade do art. 3°, inciso l, da Lei n° 10.054/2000, com o princípio da proporcionalidade, em especial, seu subprincípio da necessidade". 43. Nesse sentido: Aury, Direito..., p. 313; Pacelli, Curso..., p. 396.

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tivou a coleta de material genético haverá a exclusão dos perfis genéticos do referido banco de dados (art. 7°-A). Por analogia com a regra do caput do mesmo art. 7° da Lei n° 12.037/2009, a exclusão do perfil genético do banco de dados também deverá ocorrer no caso de nâo oferecimento de denúncia, de sua rejeição ou de absolvição transitada em julgado.“ Voltando à identificação criminal, o segundo critério, ou seja, as hipóteses que geram dúvidas sobre a identidade civil e que justificam a identificação criminal são as seguintes, estabelecidas no art. 3° da Lei n° 12.037/2009: “1 - 0 documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação; II - o docu­ mento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado; III - o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; [...1; V - constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; VI - o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais”. Lm todos estes casos, peculiaridades do documento apresentado não permitem, com segurança, a identificação do seu portador.“

3.11 Indiciamento Lm várias passagens o CPP refere-se ao indiciado ou ao indiciamento (art. 5°, § 1“, b; art. 6“, V, VIII e IX; art. 10, caput e § 3“, art. 14, art. 15, art. 21, art. 23, art. 125, art. 134, art. 137, § 2°, e art. 282, caput, II, art. 317, art. 319 II e III, art. 320 é árt. 405, § 1“). Todavia, o legislador não definia quais eram os requisitos ou em qúe condições ou momento da investigação devia ser realizado o indiciamento. Tal situação somente foi alterada recentemente, com a Lei n° 12:830/2013, que no art. 2®, § 6® dispõe: “0 indiciamento, privativo do delegado de policia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante an álise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”. Indiciamento é o ato de indiciar. Indiciar é, com base nos elementos de infor­ mação colhidos no inquérito policial, indicar uma pessoa como o provável autor do crime que se investiga. Lm estudo fundamental sobre o tema, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo explica que: “[...] 0 indiciamento, que se leva a efeito no inquérito policial, deve ser resulta­ do concreto da aludida convergência de indícios, que assinalam incriminando certa .1(4. Pacelli, Curso ..., p. 397. •45. Antes mesmo da edição da lei, Damásio E. de Jesus (Código..., p. 11) já se manifestara oi? neste sentido, afirmando que deveriam ser previstas hipóteses de rasuras no documento 4b !' de identidade ou indícios de que o mesmo fosse falsificado. Por sua vez, Mirabete (CódigO:., p. 103) admitia nos casos de utilização pelo indiciado de duas ou mais identidades 0 >.b ,ou documentos divergentes.

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pessoa - ou determinadas pessoas - qual praticante de ato, ou de atos havidos pela legislação penal como típicos, antijurídicos e culpáveis. Mais que pressupõe, o indi­ ciamento necessita, em consequência, de suporte fático positivo da culpa penal, lato sensu. Contém uma proposição, no sentido de guardar função declarativa de autoria provável. Suscetível, é certo, de avaliar-se, depois, como verdadeira, ou logicamente falsa. Consiste, pois, em rascunho de eventual acusação (formal); do mesmo modo que as denúncias e queixas, também se manifestam quais esboços da sentença penal (de mérito)”.®« Não é incomum encontrar afirmações de que o indiciamento, enquanto um simples ato de identificação do investigado, não gera constrangimento ilegal.®' Quanto ao momento ou fase da persecução penal em que pode ocorrer o indicia­ mento, a jurisprudência é tranquila no sentido de não ser cabível o indiciamento nos casos em quejá hà denúncia oferecida, posto que a medida, típica da fase investigativa, se mostra absolutamente desnecessária, não tendo qualquer finalidade processual, servindo pura e simplesmente para a estigmatização do acusado.®« Diante do novo § 6° do art. 2« da Lei n° 12.830/2013, restou claro que o indicia­ mento não pode ser fruto de mero subjetivismo da autoridade policial. Deve decorrer de ato motivado e concretamentejustificado, diante do resultado dos atos de investigação até entáo realizados,®“no qual se especifique, quais os elementos que permite apontar 46. Pitombo, Inquérito policial..., p. 38. Na jurisprudência, o TJSP decidiu que: “1...1 indicia­ mento, no seu sentido amplo, ostenta o significado de convergência de indícios para o sustento de uma acusação. Indiciamento, assim, é aquele sobre quem recaiam, no correr do inquérito policial, os indícios, os outros meios de prova, bastantes para acusar em juízo, de haver perpetrado uma infração penal, cuja existência se acha suficientemente evidenciada” (RHC n» 1.095.085/2001). 47. Em sentido contrário, cabe destacar as palavras do Pedro Gagliardi: “O teoricismo de uma afirmação como o que se tem dito e repetido no sentido de que ‘o simples indiciamento não caracteriza desrespeito às garantias individuais’ ou o de que 'o inquérito nada mais é do que uma simples averiguação’ nâo pode continuar preenchendo os céus do universo juridico-criminal do nosso sistema democrático de Direito, porque inquérito é coisa muito séria, e ser indiciado nele é gravemente irreparável para um cidadão honesto" (TJSP, HC n“ 338.792-3/4-00). 48. Nesse sentido: STJ, HC n” 35.639/SP, HC n° 17.984/SP, HC n° 37.579/SP, HC n° 33.506/SP, HC n" 33.302/SP, HC n“ 30.8U/SP, HC n° 25.666/SP, HC n“ 29.392/SR No mesmo: TJSP, HC n° 440.622/9, HC n° 393.666/1; extinto TACrimSP, HC n° 393.666/1, HC n° 440.622/9; TRF 3’ Região, HC n° 200103000384242, HC n° 2003.03.00.057897-5. 49. Na doutrina: Sérgio Pitombo, O indiciamento..., p. 45; Zilli, Liberdade!..., p. 451; Ma­ rio Sérgio Sobrino, A identificação..., p. 99. No Estado de São Paulo, a Portaria n° 18, de 25/11/1998, da Delegacia Geral de Polícia, exige, em seu art. 5“, parágrafo único, que a decisão do delegado de polícia que determina o indiciamento seja fundamentada, devendo pormenorizar, com base nos elementos probatórios objetivos e subjetivos coligidos na inves­ tigação, os motivos de sua convicção quanto à autoria delitiva e ã classificação da infração atribuída ao fato. De outro lado, o art. 103 da Instrução Normativa n° 1/1992 do Diretor do Departamento de Polícia Federal determina que “a indiciação somente será procedida após colhidas as provas necessárias à comprovação da ocorrência e da autoria da infração”. 0

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0 indiciado como provável autor do delito bem como quais elementos possibilitam concluir pela existência da materialidade delitiva. Normalmente, no indiciamento bá a colbeita de dados sobre a vida pregressa e a identificação criminal do acusado, inclusive pelo processo datiloscópico, se for o caso, nos termos da Lei n“ 12.037/2009. É possível, também, o indiciamento indireto, nos casos em que o investigado não está presente, o que se faz pela colbeita de dados de outras fontes acessíveis à autoridade policial.

3.12 Incomunicabilidade do preso O CPP, em seu art. 21, prevê a possibilidade de ser decretada a incomunicabilidade do preso. Todavia, a CR, em seu art. 136, § 3°, l y ao disciplinar o estado de sítio, veda, expressamente, a incomunicabilidade do preso. Ora, se mesmo no estado de sítio, em que bá previsão de várias restrições de garantias fundamentais, não é possível decretar a incomunicabilidade do preso, no regime de normalidade institucional, com maior razão, não bã que cogitar de incomunicabilidade.’“ Por outro lado, a Magna Carta assegura ao preso a “assistência da família e de advogado” (art. 5“, LXIII), bem como que sua prisão seja comunicada imediatamente ao “juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” (art. 5“, LXII). Em suma, o art. 21 do CPP nâo foi recepcionado pela Constituição de 1988.

3.13 Término do inquérito policial O relatório, que é a peça final do inquérito policial, deve ser historiado, onde a autoridade policial relatará, de forma minuciosa, tudo o que tiver sido apurado (CPP, art. 10, § 1“). No relatório não deverá haver juízo de valor sobre a culpabilidade e a ahtijuridicidade, mas apenas uma descrição objetiva dos fatos. A autoridade policial poderá sugerir, porém, uma classificação legal para os fatos, bem como representar pela decretação da prisão preventiva (CPP, art. 13, IV )’ * ou medidas cautelares alter­ nativas à prisão. TJSP já se manifestou pela necessidade de motivação, destacando que o indiciamento “não mais poderá ser realizado a esmo, subjetivamente, ã mingua da minudente demonstração do ií. seu pertinente liame fãtico e jurídico com os elementos probatórios coligidos nos autos de .^inquérito policial" (HC n° 412.328-3/7-00). E, em outro julgado, decidiu que, “sem antes ^: ter sido efetuada qualquer outra colheita de prova que pudesse demonstrar, pelo menos, indícios de autoria dos fatos noticiados como criminosos”, o indiciamento “constitui evi***'' ®dente coação ilegal por impedir o direito de defesa, pelo desconhecimento de quais provas !■'! levaram ã convicção da necessidade do indiciamento” (TJSP, HC n° 341.206-3/9-00). No ; mesmo sentido: extinto TACrimSP, HC n“ 353.606/3. f;30íj^Nesse sentido: Tourinho Filho, Manual..., p. 71; Mirabete, Processo penal, p. 100; Nucci, gj . .-,Cãdigo..., p. 126. Em sentido contrário, pela manutenção da possibilidade de incomuni' ' cabilidade; Greco Filho, Manual..., p. 83; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 25; Nogueira, Comentários..., p. 428-429. 51. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 81.

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Com o relatório, a autoridade policial deverá remeter a juízo os objetos e instru­ mentos do crime apreendidos durante o inquérito (CPP, art. 11). Em regra, o prazo para a conclusão do inquérito policial é de 10 dias, se o “in­ diciado tiver sido preso”, e de 30 dias, se estiver solto (CPP, art. 10). Há, contudo, exceções em que são previstos prazos especiais para a conclusão do inquérito policial. No âmbito da polícia federal, o art. 66, caput, da Lei n° 5.010/1966, prevé que o inquérito policial deverá estar concluído no prazo de 15 dias para o investigado preso, “podendo ser prorrogado por mais quinze dias, a pedido, devidamente fundamentado, da autoridade policial e deferido pelo Ju iz a que competir o conhecimento do processo". Es­ tando o investigado solto, e não havendo regra especial para a conclusão do inquérito, deve ser aplicada a regra geral do CPP, que prevé prazo de 30 dias. Nos crimes de drogas também há prazo especial para a conclusão do inquérito policial. Na Lei n° 11.343/2006, no caso de investigado preso, o inquérito policial deve ser concluído no prazo de 30 dias; se o investigado estiver solto, o prazo será de 90 dias (art. 51, caput). Contudo, a autoridade policial poderá requerer ao juiz a duplicação de tais prazos (art. 51, parágrafo único). Em suma, no caso de investigado preso, o inquérito policial poderá durar até 60 dias. Na Lei n® 7.960/1989, que institui a prisão temporária, o prazo de duração de tal prisão é de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco (art. 2°, caput). Todavia, a Lei dos Crimes Hediondos - que apresenta um rol de delitos muito semelhantes aos crimes que admitem a prisão temporária (Lei n®7.960/1989, art. 1®, III) - ampliou tal prazo para 30 dias prorrogáveis por mais 30 dias (Lei n®8.072/1990, art. 2®, § 3®, posteriormente renumerado para § 4® pela Lei n® 11.464/2007). Como a prisão temporária somente pode ser decretada durante o inquérito policial, é de concluir que, para os crimes hediondos, se os investigados estiverem presos temporaria­ mente, o prazo de duração do inquérito policial será de 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias.” Houve, pois, uma quebra de coerência do sistema. 0 prazo de duração da prisão temporária, destinada a vigorar durante o inquérito policial, era de cinco dias pror­ rogáveis por mais cinco, isto é, um total de dez dias, pois este era o prazo de duração máxima do inquérito policial em caso de investigado preso. No entanto, com a am­ pliação do prazo total de prisão temporária para até 60 dias, é de concluir que, em tal caso, o inquérito policial também poderá durar 60 dias. De qualquer forma, a coe­ rência será apenas parcial. Basta pensar na situação de coautoria em crime hediondo, em que um investigado seja preso em flagrante delito e o outro tenha decretada a sua prisão temporária. A investigação em relação ao primeiro deverá estar concluída em dez dias, enquanto para o segundo poderá durar até 60 dias! Tucci vai além e afirma: “[...) com efeito, norma esdrúxula e abusiva, afrontosa do devido processo legal na sua elaboração (substantive due process o f law), choca-se, inclusive, com a própria 52. Nesse sentido; Rangel, Direito..., p. 99.

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legislação processual penal em vigor, num flagrante e inadmissível contraste com o sistema em quejse insere...”.’® Retomando a questão do prazo normal de duração do inquérito policial, no caso de o investigado estar solto, se o fato for de difícil elucidação, vencido o prazo de 30 dias, a “autoridade poderá requerer ao ju iz a devolução dos autos, para ulteriores diligências..." (CPP, art. 10, § 3°). Há posicionamento, contudo, de que, diante da nova disciplina constitucional do Ministério Público, em especial o art. 129, VII, tal requerimento não poderia ser formulado ao juiz, e sim ao Ministério Público, que é o destinatário final do inquérito policial.’'* De qualquer modo, mesmo quem entende que o requerimento deve ser formulado ao magistrado, considera fundamental que o juiz abra vista ao Ministério Público para que se manifeste sobre a prorrogação do prazo. Cabe ao Ministério Público avaliar a necessidade ou não de tal prorrogação, bem como indicar eventuais diligências cuja realização entenda relevante. Além disso, mesmo que o inquérito não tenba sido con­ cluído e a autoridade policial não tenba elaborado o relatório final, nada impede que o Ministério Público, entendendo já dispor de elementos necessários para a denúncia, ofereça-a imediatamente. Por outro lado, independentemente da manifestação da autoridade policial, o Ministério Público, ao receber os autos do inquérito policial, poderá requerer a pror­ rogação do prazo se for necessária a realização de “novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia” (CPP, art. 16). Se a diligência for dispensável para carac­ terização da justa causa, o Ministério Público deverá oferecer a denúncia e requisitar a diligência, que será realizada durante a tramitação do processo. Na prática, contudo, tem sido comum a prorrogação do prazo do inquérito policial para a realização de diligências banais e desnecessárias ao oferecimento da denúncia.” Entretanto, mesmo no caso em que o Ministério Público alegue se tratar de “dili­ gências indispensáveis”, não deve ser admitido o retomo dos autos à delegacia de polícia se o indiciado estiver preso preventivamente. Se para a decretação da prisão preventiva exige-se “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” (CPP, art. 312, caput), estando o investigado preso, é porque já existem elementos necessários para o oferecimento da denúncia, não podendo a diligência ser considerada “indispensável”. 53. Tucci, Direitos e garantias..., p. 261. 54. Nesse sentido: Prado, Sistema acusatório..., p. 175. Rangel (Direito..., p. 92) acrescenta: “O inquérito policial, hoje, tem um único endereço: o Ministério Público... O juiz deve afastar-se da persecução preparatória da ação penal e somente se manifestar quando for provocado para decretar qualquer medida cautelar”. 55. Para Silva Jardim (Direito..., p. 332), “não mais atuando o juiz no inquérito, descabe con­ dicionar a devolução dos respectivos autos a qualquer requerimento do Ministério Público ao Poder Judiciário. Agora, a Promotoria de Investigação Penal determina a remessa do inquérito à delegacia de origem”. Em sentido mais amplo. Prado (Sistema acusatório..., p. 175) considera que, com exceção das medidas cautelares, qualquer forma de controle, pelo juiz, das diligências realizadas no inquérito, afronta ao princípio acusatório.

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Isto nâo significa que, após o oferecimento da denúncia, nenhuma diligência policial possa ser requerida. Ao contrário, mesmo apósa denúncia, o Ministério Público poderá requisitar a realização de diligências (CPP, art. 13, II), mas isto não deverá impedir o normal andamento da açào penal.

3.14 Arquivamento do inquérito policial É vedado à autoridade policial arquivar diretamente o inquérito policial (CPP, art. 17). o que somente pode ser feito por determinação judicial (CPP, art. 18).’« O Ministério Público deverá fundamentar a sua manifestação pelo arquivamento do inquérito policial. Tanto assim que o art. 28 do CPP se refere às “razões invocadas" pelo Promotor de Justiça.” Diante do dever de fundamentação, não bá que aceitar, portanto, o chamado arquivamento implícito, que ocorre quando o Ministério Público oferece denúncia, mas nela não inclui algum dos investigados (arquivamento implícito subjetivo) ou alguns dos fatos (arquivamento implícito objetivo), sem, contudo, manifestar-se expressamente sobre o arquivamento em relação a eles. Neste caso, deverá o juiz de­ volver os autos ao Ministério Público para que este se manifeste expressamente sobre o investigado ou sobre o fato não incluído na denúncia. Somente com a manifestação expressa do Ministério Público será viável a aplicação do art. 28 do CPP.’« Discordando o juiz do pedido de arquivamento, deverá procederna forma do art. 28 do CPP, remetendo os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que terá três alterna­ tivas; (1) ele próprio oferecerá a denúncia; (2) designará outro Promotor de Justiça para oferecê-la; (3) insistirá no arquivamento.’“

56. Rangel (Direito..., p. 70) entende que, diante do sistema acusatório, o Ministério Público determina o arquivamento do inquérito, em vez de simplesmente requerê-lo ao juiz. Cabe a este uma atividade fiscalizatória do princípio da obrigatoriedade da ação penal. Pelos mesmos fundamentos. Silva jardim (Direito..., p. 334) entende “estarem revogados os dispositivos do Código de Processo Penal, que determinavam a atuação do juiz na fase persecutória do inquérito, salvo quando for postulada a sua atividade jurisdicional cautelar". 57. Aliás, o art. 129, § 4°, da CR, incluído pela Emenda Constitucional n° 45/2004, estabelece que: “Aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93", no qual se incluem a motivação das decisões judiciais e, por conseguinte, a motivação das manifesta­ ções do Ministério Público. 58. Nesse sentido: Silva Jardim, Direito..., p. 171; Tourinho Filho, Manual..., p. 161; Nucci, Código..., p. 144-145. Em sentido diverso, Rangel (Direito..., p. 181), embora considerando o arquivamento implícito “uma figura esdrúxula", entende, com fundamento na Súmula n“ 524 do STF que não poderã haver nova denúncia, se náo surgirem novas provas, pois, “se o MP errou ao valorar, não pode o indiciado pagar pelo erro do Estado. O princípio da segurança e da estabilidade das relações jurídicas impede que assim o faça". 59. Uma vez mais, aqueles que propugnam pelo afastamento do juiz das atividades de investi­ gação preliminar consideram que o art. 28 é incompatível com o sistema acusatório. Nesse sentido manifesta-se Prado (Sistema acusatório..., p. 179) que ainda acrescenta, com abso­ luta razão: “[...) acaso atendido o pleito judicial, manifestado pela discordância quanto ao

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O Procurador-Geral nâo poderá nomear para o oferecimento da denúncia o próprio Promotor cíe Justiça que se manifestou pelo arquivamento do inquérito policial. Isso violaria a independência funcional do promotor que já havia mani­ festado sua posição pelo arquivamento. Aliás, o art. 28 refere-se a “outro órgão do Ministério Público”. O promotor que recebe do Procurador-Geral a incumbência de oferecer denúncia não pode deixar de fazê-lo, pois a decisão é do Procurador-Geral. Poderá, contudo, caso discorde de tal posição, por motivo de foro íntimo, declarar-se suspeito ou impedido.*® Se o pedido ocorrer no âmbito dajustiça Federal, os autos deverão ser remetidos ao Procurador-Geral da República, para os fins do art. 28 do CPP.** Cabe observar que, neste caso, o Procurador-Geral não decidirá sobre o arquivamento, devendo enviar os autos a uma das “Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal”, responsável pelo cumprimento do art. 28 do CPP, segundo dispõe o art. 62, IV, da Lei Complementar n® 75/1993. Nos casos de foro por prerrogativa de função, como a competência para o ofere­ cimento da denúncia é do próprio Procurador-Geral de Justiça, se este entender que é caso de arquivamento, deverá pedi-lo, diretamente ao Tribunal, que não poderá negar o arquivamento.*’ Uma vez determinado seu arquivamento, a reabertura do inquérito policial somente poderá ocorrer se houver novas provas quanto à autoria ou à materialidade delitiva, nos termos do art. 18 do CPP. Ou seja, surgindo notícia de novas provas, será possível o desarquivamento do inquérito policial, para que a investigação tèilhà continuidade. Por outro lado, nos casos em que houve arquivamento do inquérito policial, não sf poderá intentar ação penal, com base naquele inquérito já arquivado, salvo se sur­ giram novas provas do crime ou de sua autoria. A Súmula n® 524 do STF dispõe que: “arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor

pedido de arquivamento dos autos de investigação criminal, pedido este formulado pelo Promotor de Justiça, não há dúvida de que o acusado tem a temer pela tendenciosidade jprecocemente demonstrada pelo juiz, antes mesmo da dedução da ação penal”. „60. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 88. Aliás, tal possibilidade de recusa nada mais é do que uma decorrência da independência íuncional do promotor designado. Em sentido contrário, para Nucci (Código..., p. 142), em tal caso, o promotor designado não poderá se recusar a dar início à ação penal, por agir por delegação do Procurador-Geral. mesmo deverá ocorrer, com as devidas adaptações, no âmbito das demaisjustiças. Assim, íse o pedido de arquivamento foi formulado pelo Promotor de Justiça Eleitoral, os autos 'deverão ser remetidos ao Procurador Regional Eleitoral (CE, art. 357, § 1°). No caso da ^Justiça Militar da União, os autos deverão ser encaminhados ao Procurador-Geral dajustiça Militar. Finalmente, no caso de pedido de arquivamento na Justiça Militar Estadual, os autos jdeverão ser enviados ao Procurador-Geral de Justiça. 6^ Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 88; Nucci, Código..., p. 144; Rangel, Direito..., p. 171. Na jurisprudência: TJSP, Inq. n” 115.740-0/0, Inq. n° 116.066-0/1.

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de Justiça, não pode a açáo penal ser iniciada, sem novas provas”. De qualquer forma, não será suficiente a prova nova sobre circunstâncias do crime, que não influenciem diretamente na existência do mesmo ou em sua autoria. Em suma, não se deve confundir a necessidade de notícia de novas provas, para o desarquivamento do inquérito policial (CPP, art. 18), com a necessidade de novas provas, para o oferecimento de denúncia, nos casos em que o inquérito já fora ante­ riormente arquivado (Súmula n° 524 do STF).«® Ou seja, uma vez arquivado o inquérito policial, a ação penal exige a descoberta efetiva de novas provas, o que normalmente ocorrerá em razão do desarquivamento do inquérito, diante da notícia de possibilidade de se obterem tais provas, Isso porque a decisão de arquivamento tem sua estabilidade condicionada ao estado em que foi proferida, ou rebus sic stantibus. Não bá, pois, que cogitar de coisa julgada. Há casos, porém, em que bá que reconhecer que a decisão que determina o arquivamento do inquérito policial torna-se imutável, e impede, definitivamente, tanto o desarquivamento do inquérito policial, quanto a propositura da ação penal. Tem-se, neste caso, coisa julgada material ou, ao menos, um grau de imutabilidade da decisão de arquivamento que impede nova persecução penal pelo mesmo fato. Isso ocorre nas hipóteses em que o arquivamento não decorre de uma mera constatação de insuficiência de elementos de informação sobre a existência material do fato ou de sua autoria. Ao contrário, com base em uma reconstrução fãtica segura, a partir da investigação realizada, há um acertamento da inexistência do crime - e não do fato - ou do poder de punir. Assim, nos casos em que se reconhece que os fatos investigados são atípicos,«® ou estão acobertados por excludente de ilicitude, ou mesmo nas situações de extinção de punibilidade,«’ a decisão de arquivamento será imutável.

3.15 Vícios do inquérito policial É afirmação corrente que os vícios do inquérito policial não se projetam e, muito menos, acarretam a nulidade da ação penal. O posicionamento, contudo, não pode ser aceito de forma absoluta. Inicialmente, é de destacar que o inquérito policial é governado por um princípio de legalidade de seus atos. Assim, consequentemente, a ilegalidade de algum ato do inquérito policial acarretará a sua ineficácia enquanto ato do próprio inquérito (por 63. Nesse sentido; Silva Jardim, Direito..., p. 173; Rangel, Direito..., 2009, p. 204. 64. Nesse sentido, no tocante à atipicidade da conduta: Mirabete, Código..., p. 118; Nucci, Código..., p. 123; Feldens e Schmidt, Investigação criminal..., p. 46. Na jurisprudência: STF, Pet n° 3.927/SP, Pet n° 3.943/MG, HC n» 83.346/SP, HC n“ 84.156/MT, HC n“ 80.560-4/ GO; STJ, RHC n° 17.389/SF, RHC n° 18.099/SC, HC n° 27.574/RJ - RSTJ 195/40, RHC n“ 9.118/RS. 65. Nesse sentido, quanto à extinção da punibilidade; Feldens e Schmidt, Investigação crimi­ nal..., p. 46; Nucci, Código..., p, 123. Na jurisprudência: STF, HC n° 84.235/RO; STJ, RHC n° 9.118/RS.

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exemplo, a lavratura do auto de prisão em flagrante sem que seja ouvido o condutor). Outro problema, porém, é definir a repercussão que esta ilegalidade do inquérito terá sobre a ação penal. Afirma a doutrina prevalecente que não haverã repercussão nenhuma e não haverá nulidade do processo por vício do inquérito. A questão não é tão simples. Nos meios de obtenção de prova produzidos no inquérito policial, que necessitam de ordem judicial e que tenbam sido praticados de forma viciada, a sua nulidade se projetará na ação penal. Uma interceptação telefônica realizada em investigação de crime punido com detenção, ou uma busca e apreensão domiciliar efetuada em residência diversa daquela constante do mandado, não poderão ser validamente consideradas no processo. Os elementos de informação coibidos em tais atos não poderão integrar o material probatório a ser valorado pelo juiz. Por outro lado, mesmo em relação ãs provas irrepetíveis produzidas no inquérito policial, como o exame de corpo de delito, eventual vício impedirá que tal prova seja eficazmente valorada na ação penal. Seria o caso de um exame de corpo de delito re­ alizado por um único perito não oficial. Não haverã como, na ação penal, considerar que tal prova é apta a demonstrar a materialidade delitiva. Somente no que diz respeito à simples colheita de fontes de prova (por exem­ plo, descobrir o nome de uma testemunha), para a posterior produção do meio de prova correspondente em juízo (oitiva da testemunha no processo), é que eventuais vícios dos atos de investigação não se projetarão na ação penal, pois nesta o meio de prova terá sido validamente produzido. Mesmo assim, é de se atentar para a vedação da obtenção de provas por meios ilícitos, inclusive no caso de provas derivadas. Em tais casos, havendo ilicitude (por exemplo, uma confissão obtida mediante tortura), a prova serã inadmissível no processo.

3.16 Valor probatório“ Os elementos trazidos pela investigação não constituem, a rigor, provas no sentido técnico-processual do termo, mas informações de caráter provisório, aptas somente a subsidiar a formulação de uma acusação perante o juiz ou, ainda, servir de fundamento para a admissão dessa acusação e, eventualmente, para a decretação de alguma medida de natureza cautelar.®® José Frederico Marques já ensinava que, “em face da Constituição, não há prova (ou como tal não se considera), quando nâo produzida contraditoriamente” .®* È Mais recentemente, a distinção foi acolhida com a nova redação do caput do art. 155 do CPP: “O ju iz form ará sua convicção pela livre apreciação da p rov a produzida . 66. Em linhas gerais, reproduz-se no presente item parte do artigo de Antonio Magalhães Gomes Filho e Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, Prova e sucedâneos de provas. •67, Nesse sentido: Gomes Filho, Direito ã prova..., p. 144, com ampla citação jurisprudencial na nota 34; Aury Lopesjr., Sistemas de investigação..., p. 204-205. 68. Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 194.

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em con traditório ju dicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elem entos inform ativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetlveis e antecipadas" (destacamos). Houve, até mesmo, o cuidado terminológico de distinguir as “provas”, produzidas em contraditório judicial, dos “elementos in­ formativos”, colhidos no inquérito policial. Ainda que não exista uma regra expressa de exclusão dos elementos de in ­ formação colhidos no inquérito policial, tais dados não podem, exclusivamente, servir para o julgamento da causa. Entretanto, é preciso considerar que, na prática judiciária, as coisas se passam de forma diversa. Em um certo sentido, já se encon­ trava na jurisprudência o entendimento de que as informações da fase investigatória nâo constituem base suficiente para uma condenação, mas podem ser levadas etn conta se forem “confirmadas”, ainda que parcialmente, por provas colhidas em contraditório.*® Ou seja, se os elementos de informação produzidos no inquérito policial fossem confirmados por provas produzidas em contraditório, poderiam fundamentar uma sentença condenatória. Todavia, neste caso, o valor de tais “elementosde informação” será praticamente nenhum! Se há outras provas produzidas em contraditório judi­ cial. o que o juiz valora são estas “provas”, e não os elementos informativos colhidos durante o inquérito. Por certo, para que sejam valorados, os elementos de informação do inquérito deverão estar em concordância com a prova produzida em contraditório. O advérbio exclusivamente do art. 155 do CPP deve ser entendido em seu sentido substancial, e não formal. Tanto os elementos de informação do inquérito quanto as provas em contraditório devemser convergentes, apontando para um convencimentojudicial no mesmo sentido. Não será possível ao julgador, no caso em que haja provas produzidas em contraditório em um sentido, e elementos colhidos no inquérito no outro sentido, ficar com essa versão e, com base nela, condenar o acusado. Nesse caso, substancial­ mente, o acusado terá sido condenado exclusivamente com base nos elementos de formação colhidos no inquérito, sem a observância do contraditório. De qualquer forma, como a documentação dos atos do inquérito policial per­ manece nos autos da ação penal (CPP, art. 12), sempre poderá ter alguma influência, ainda que não expressamente declarada, no convencimentojudicial. 69. Em sentido contrário, é digno de reprodução o voto do Des. Amilton Bueno de Carvalho em que se destacou; “[...] valor algum tem a prova oral oriunda da fase policial. É que lá não são observadas as mínimas garantias de um processo penal democrático e garantista - autoridade equidistante, publicidade, contraditório e ampla defesa - , logo, imprestáveis ao processo. Tais elementos desempenham único papel: instrumental ao oferecimento da denúncia e nada mais!" (TJRS, ACr n° 70018347765). Os inconvenientes dessa prática sâo ainda mais evidentes nas causas de competência do Tribunal do Júri, uma vez que, nos de­ bates perante os jurados, tais informações podem ser mencionadas livremente pelas partes e, assim, levadas em consideração pelos juizes leigos, que não estão obrigados a motivar suas decisões sobre os fatos.

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Especialmente para a prova pericial produzida durante o inquérito policial, tem sido aceita, com tranquilidade, a possibilidade de o juiz valorá-la no momento da sentença. A razão é que se trata de uma prova cautelar, produzida antecipadamente, tendo em vista que, na maioria dos casos, deve ser realizada desde logo, diante do risco de perecimento dos objetos a serem examinados. Exemplo mais evidente dessa situação é o exame de corpo de delito. Tal entendimento é correto somente nos casos em que a perícia tenba natureza cautelar, de produção antecipada de prova, não podendo ser realizada em momento posterior. Neste caso, na fase judicial, a pericia será submetida ao contraditório diferi­ do. De outro lado, se não se estiver diante de uma pencia determinada cautelarmente, a prova técnica deverá ser realizada em juízo, com a possibilidade de contraditório prévio, especialmente pela faculdade de as partes formularem quesitos, e nomearem assistente técnico para acompanhamento da própria realização dos exames. Se não há urgência na prova, não deve ser aceita a perícia produzida na fase de investigação, sem o prévio contraditório e sem mesmo a participação judicial. Em tal caso, a perícia deve ser realizada somente em juízo, e não na fase de investigação preliminar.™ ou outras formas de exame pericial, como a pericia para avaliação do valor da coisa furtada ou da potencialidade lesiva da arma utilizada como instrumento do crime de roubo.

3.15 Investigação pelo Ministério Público A possibilidade da realização de investigação direta pelo Ministério Público é tema que provoca grande polêmica.™ O principal argumento a favor da possibilidade de o Ministério Público realizar investigação própria é que a atividade de investigação preliminar para fins criminais não é exclusiva da autoridade policial.™ Costuma-se acrescentar, a tal argumento, a chamada teoria dos poderes implícitos: se a Constituição conferiu ao Ministério Público o direito de promover a ação penal, deve dispor dos meios necessários para fazê-lo, mesmo que para tanto não haja expressa previsão constitucional, e isso in­ cluiria o direito de investigar diretamente as fontes de provas. Afirma-se, também, que para determinados delitos - por exemplo, que envolvam agentes policiais, ou mesmo importantes autoridades políticas - os membros do Ministério Público, por 70. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 183; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 89. 71. Nâo se pode deixar de destacar que as discussões têm sido travadas muito mais em termos institucionais do que do ponto de vista da Investigação criminal em si. Trata-se de uma briga de “quem ganha" e de “quem perde" poder. Os órgãos de classe ligados aos Delegados de Policia insurgem-se energicamente contra tal possibilidade. Da mesma forma, a Ordem dos Advogados do Brasil também tem se colocado contrariamente a tal possibilidade. Obviamente, o Ministério Público considera que a investigação se inclui entre as suas funções institucionais. 72. Sobre tal possibilidade, cf.: Castilho, Investigação criminal..., p. 3-5; Streck e Feldens, Crime e Constituição..., p. 51 e ss.; Feldeitô e Schmidt, Investigação criminal.,., p. 58 e ss.; Santin, 0 Ministério Público..., p. 240 e ss.; Polastri Lima, Ministério Público..., p. 54 e ss.

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gozarem de garantias constitucionais para sua atuação, poderiam investigar de forma mais independente e, portanto, efetiva. Do ponto de vista legal, sustenta-se, entre outros aigumentos, que a Constituição estabelece, no art. 129, IX, que “São funções institucionais do Ministério Público: [...] exercer outrasfunções que lheforem conferidas, desde que compatíveis com suafinalidade". Por outro lado, a Lei Complementar n° 75/1993, no art. 8°, prevê que: “Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua com ­ petência: [...] realizar inspeções e diligências investigatórios”. Registre-se, ainda, que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n° 8.625/1993) dispõe, no art. 26, I, que: “No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá: I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: [...]”. Não bá como negar, porém, que inexiste uma lei que discipline o procedimento investigativo, prevendo bipótese de cabimento da investigação pelo Ministério Público, as formas de se iniciar, as diligências a serem realizadas, bipótese de arquivamento e seu controle, a necessidade de registro de tal investigação, e os limites da publicidade de tal investigação etc.®®Aliás, como explica Grinover, no caso, tal regramento deverá se dar por lei complementar, na medida em que o § 5° do art. 128 da CR determina que “Leis complementares da União e dos Estados” estabelecerão as atribuições de cada Ministério Público.®'* A ausência de lei cria um insuperável óbice, por possibilitar a atuação discricio­ nária na escolba dos casos a serem investigados. Sem uma lei que determine quais casos podem ser diretamente investigados ou, ao menos, quais os critérios para se determinar tal atuação, ficaria ao livre-arbitrio do promotor de justiça escolber o que deseja e o que não quer investigar. Não raro, critérios midiáticos têm orientado tal escolba. São comuns investigações criminais realizadas pelo Ministério Público no caso de crimes cometidos por políticos, autoridades egrégias, ricos empresários ou figuras famosas. Desconhecem-se, por outro lado, investigações do Ministério Público, no caso de furto da mercearia, da lesão corporal grave etc. Se a investigação conduzida pelo Ministério Público apresentar o mesmo grau de eficiência que a realizada pela polícia judiciária, a discussão será inútil e desneces­ sária. Se for pior, será um contrassenso querer atribuir-lhe poderes investigatórios. No entanto, se for melhor que a do inquérito policial, por que caberá a um promotor de justiça, sem que haja critérios legais, escolher que crimes terão uma “investigação de primeira classe”, sendo por ele investigados, e que delitos ficarão relegados a uma investigação policial de nível inferior? 73. Em um regime em que vigora a “legalidade da inteira repressão”, na feliz síntese de Figuei­ redo Dias (Direito..., p. 77), não hã como admitir que tal disciplina possa se dar por ato diverso de lei, nâo suprindo, pois, tal déficit legislativo, a Resolução n° 13/2006, do Con­ selho Superior do Ministério Público Federal. Nesse mesmo sentido: Scarance Fernandes, O equilíbrio na investigação..., p. 326; Giacomolli, A fa s e preliminar..., p. 67. 74. Grinover, Investigações..., p. 4.

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Além da ausência de uma expressa disciplina legal da investigação pelo Ministé­ rio Público, bá outros argumentos Utilizados contra tal investigação.” Nega-se que se esteja no campo dos poderes implícitos, na medida em que não bouve omissão consti­ tucional na disciplina da investigação. Ao contrário, a Lei Maior atribuiu tal atividade, ainda que sem caráter de exclusividade, à polícia judiciária.™ Ao Ministério Público foi conferido o controle externo da atividade policial, e não substituí-la na atividade de investigação. Além disso, concentrar nas mãos de um único órgão as atividades de investigação e promoção da ação penal implicaria um perigosíssimo acúmulo de poder, que facilmente poderia ser utilizado de forma abusiva ou apaixonada. Ressalte-se que a discussão sobre a possibilidade de o representante do Minis­ tério Público instaurar e conduzir um procedimento investigativo autônomo não se confunde com a possibilidade de o promotor de justiça participar de atos realizados no curso de um inquérito policial presidido por autoridade policial.” Isso não sig­ nifica, porém, que, havendo inquérito instaurado, poderá o Ministério Público agir, diretamente, na investigação dos fatos, colhendo depoimentos, realizando perícias, fazendo acareações. O Ministério Público poderá acompanhar a investigação policial, mas não substituir o agente policial, na atividade de investigação.™ O STF, chamado a se manifestar sobre o tema, ainda não preferiu decisão por seu plenário. As turmas, contudo, em posicionamentos recentes, tem admitido, em caráter excepcional, a investigação pelo Ministério Público: “O Convém advertir que o poder de investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, ine­ vitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle. 75. Na doutrina, negando a possibilidade de o Ministério PúbUco instaurar e conduzir a investigação criminal, entre outros, cf.: Pitombo, Procedimento administrativo..., p. 3; Coutinbo, A inconstitucionalidade..., p. 447-451; Fragoso, São ilegais..., p. 241 e ss.; Vieira, O Ministério Público..., p. 307 e ss.; Saad Gimenes, O direito..., p. 187-195; Prado e Casara, Posição do MMFD..., p. 13. 76. A CR, no art. 144, § 1°, ly prevê que “A Polícia Federal (...] destina-se a: [...i IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União”. Tal dispositivo, como se percebe, não determina que a investigação criminal é exclusiva da Polícia Judiciária. Sobre o tema, assevera Grinover (investigações..., p. 4): “Não tenho dúvidas de que o desenho constitucional atribui a função de Polícia Judiciária e a apuração das infrações penais à Polícia Federal e às Polícias Civis, sendo que a primeira exerce, com exclusividade, as fun­ ções de Polícia Judiciária da União (art. 144). Parece-me evidente, também, que a referida exclusividade se refere à repartição de atribuições entre Polícia da União e Polícia Estadual, indicando a indelegabilidade das funções da primeira às Polícias dos Estados”. 77. Recentemente, contudo, o STJ reconheceu a legitimidade de investigação realizada direta­ mente pelo Ministério Público, sem que houvesse a instauração do inquérito policial. Lê-se do acórdão proferido no HC n° 60.976/ES; “(...J cumpre salientar que este é o típico caso em que a atuação unilateral do Ministério Público na fase de investigação se revela mdispensável, já que se trata, como dito alhures, de crime praticado no âmbito da própria policia civil”. 78. Em sentido contrário, admitindo que, havendo inquérito policial instaurado, o Ministério Público realize, diretamente, atos de investigação: STJ, HC n° 37.3I6/SP, RT 883/553; STJ, HC n° 94.810/MG, RT 879/576.

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O pleno conhecimento dos atos de investigação, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14 desta Corte, exige nào apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento de provas e investigações, como também se for­ malize o ato investigativo. Não é razoável se dar menos formalismo à investigação do Ministério Público do que aquele exigido para as investigações policiais. Menos razoável ainda é que se mitigue 0 princípio da ampla defesa quando for o caso de investigação conduzida pelo titular da ação penal. Disso tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto de falta de lei a regulamentar a atuação do Ministério Público. No modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente, devendo a atuação dar-se de forma subsidiária e em hipóteses específicas, a exemplo do quejá enfatizado pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF: ‘situações de lesão ao patrimônio público, [... ] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penal’”.'“

3.16 Investigação pela defesa®“ Partindo-se da premissa de que o direito à prova pressupõe um direito à investi­ gação, é inegável que o acusado tem o direito de realizar atividades investigativas para 79. STF HC n'’ 84.965/MG Rei. Min. V Turma, Rei, Min. Gilmar Mendes, v.u.. j. 13.12.2011, No mesmo sentido, mais recentemente: APen n° 611/MG, H Turma, Rei. Min. Luiz Fux, j. 30.09.2014, m.v.. Cite-se, ainda: STp HC n” 91.661/PF, Rei. Min. Fllen Gracie, Segunda Turma, j. 10/03/2009, v.u. Em posicionamento mais antigo, o STF havia negado tal possibili­ dade, considerando que “Ministério Público não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos proce­ dimentos administrativos; pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes” (STF RE n° 233.072-4/RJ, Segunda Turma, rei. Min. Néri da Silveira, rei. p. ac. Min. Nelson Jobim, j. 18/05/1999 m.v). No referido julgamento, constou do voto do Min. Maurício Corrêa: “l...| o Ministério Público só poderá proceder a investigações pre­ liminares criminais quando houver no sistema juridico positivo normas que venham presidir a sua atuação, regrando-a; não pode ele, entretanto, motu proprio, criar normas e ignorar as existentes, sob pena de comprometer a segurança juridica da sociedade [...]”. 80. Sobre a investigação defensiva, no ordenamento brasileiro, cf.; Machado, Investigação crimi­ nal...; Scarance Fernandes, O equilíbrio na investigação..., p. 327-328; Id., Processo penai-, p. 239-241.

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descobrir fontes de provas de seu interesse e, posteriormente, requerer a produção judicial do meio de prova respectivo. Mormente no caso da investigação criminal, em que bá um aparato estatal orga­ nizado e estruturado - a Polícia Civil e Federal- para realizar a atividade investigativa das fontes de prova de interesse da acusação, negar à defesa tal direito seria defender uma inadmissível iniquidade, violadora da paridade de armas. Nem se argumente que a Polícia Judiciária teria interesse na “descoberta da verdade” e, portanto, bus­ caria elementos de provas tanto que confirmassem a hipótese investigada quanto a eventual inocência do suspeito. Na prática, tal postura mostrou-se irrealizável, tendo a policia clara propensão a buscar as fontes de prova acusatória, não se preocupando com elementos defensivos.®* A despeito disso, o CPP não disciplina a atividade de investigação defensiva, embora também não a proíba.®® Aliás, não se pode esquecer que o art. 8.2, c, da CADH, assegura a “concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para preparação de sua defesa”, o que inclui, sem dúvida, o direito de investigar fontes de provas. A mera previsão do art. 14 do CPP, de que o indiciado “requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, ajuízo da autoridade”, é claramente insuficiente. Entretanto, ainda que se admita que seja possível a realização de atividade investigativa pela defesa, o grande problema é que, sem um regime específico que assegure ao advogado do investigado poderes para realizar, por si ou por intermédio de investigadores particulares, as atividades investigativas, sua eficãcia será diminuta. Por exemplo, diante da notícia de uma eventual fonte de prova, a autoridade policial intima a testemunha para depor no inquérito. Todavia, que poderes o defensor teria para inquirir alguém sobre fatos de inte­ resse da defesa? A resposta é: nenhum. Não há dispositivo legal que obrigue qualquer cidadão a prestar esclarecimentos para particulares. Uma “intimação” do defensor, para que alguém compareça ao seu escritório para prestar esclarecimentos sobre fa­ tos do interesse de seu cliente, ou mesmo para confirmar se a testemunha tem algum conhecimento específico sobre tal fato, seria um nada jundico. Mesmo um simples convite para esclarecimentos poderia ser solenemente ignorado. Por outro lado, caso a testemunha comparecesse, conversasse com o advogado, narrando o que sabe sobre os fatos, ou o seu desconhecimento sobre os mesmos, e se tal contato fosse posterior­ mente revelado em juízo, o advogado poderia ter sua atitude considerada violadora de regras deontológicas e, quiçá, caracterizadoras de crime. 81. 0 problema seria o mesmo, ou talvez ainda pior, caso a investigação fosse conferida ao Mi­ nistério Público, pois, como observa Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 241), “Ainda que, ao se atribuir ao Ministério Público a supervisão da investigação, também se define, como ocorre na Itália, Espanha e Portugal, que ele colha elementos de prova favoráveis ao investigado, na prática a instituição tem uma vocação para amealhar elementos que sustentem a sua acusação, descurando-se da busca de informações que auxiliem a defesa”. 82. Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 241.

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O que dizer, entâo, da necessidade de examinar documentos em poder de ter­ ceiras pessoas e, em um grau ainda maior, inspecionar locais ou buscar e apreender fontes de provas? A análise do direito comparado mostra que, nos EUA, o direito à investigação defensiva é reconhecido como uma decorrência da VI Emenda, que assegura o right to a counsel, considerado como direito a uma defesa técnica efetiva. Do ponto de vista da atividade advocatícia, há um dever legal e deontológico de o defensor investigar os fatos. O duty to investigate, isto é, o dever de investigação é corolário do dever de propiciar uma defesa efetiva.®’ Por outro lado, na Itália, a investigação defensiva firmou-se após uma gradual evolução legislativa. No regime originário do CPP de 1988 havia apenas uma previsão no art. 38 das normas de atuação do CPP, na forma de mera enunciação de princípio, sem regulamentar a modalidade de desenvolvimento, o modo de documentação e valor e forma de utilização. Simplesmente facultava-se ao defensor apresentar diretamente ao ju iz os dados reunidos na investigação preliminar. Todavia, tal previsão foi interpretada restritivamente pela jurisprudência, que não admitia que o resultado da investigação defensiva fosse diretamente valorado como prova pelo juiz. A defesa, então, tinha que requerer a juntada nos elementos de investigação por ela obtidos nos autos da investigação do Ministério Público. Ou seja, todos os elementos de investigação, inclusive os defensivos, deveriam ser canalizados para os autos da investigação do Ministério Público. Posteriormente, a Lei n° 332/1995 alterou tal disciplina, reconhecendo ao defensor o direito de introduzir seus ele­ mentos de investigação no processo, mediante requerimento direto ao juiz, sem a mediação ou o filtro do Ministério Público. Superou-se, assim, a denominada “teoria da canalização”, embora não existisse um regramento específico da investigação defensiva. Com a Reforma Constitucional promovida pela Lei Constitucional n° 2/1999, foi acrescido o § 6° ao art. 111 da Constituição italiana, assegurando que o acusado disponha do “tempo e das condições necessárias para preparar a sua defesa”, tornando-se necessário que se efetivasse o direito à investigação defensiva. Logo depois, foi aprovada a lei da investigação defensiva - Lei n° 397/2000 - , que acres­ centou o titulo Vl-bis do livro quinto do CPP italiano, prevendo a possibilidade de o defensor ou seu substituto, auxiliado ou não por investigador particular, realizar atividades de investigação, com o objetivo de descobrir e individualizar elementos de provas favoráveis ao investigado.®’ 83. Sobre o direito de investigação defensiva nos EUA, cf. Malan, Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a.20, v. 96, 2012. 84. Os arts. 391-bis a 391-decies do CPP preveem as ações cabíveis na investigação defensiva: conversa informal com testemunhas; pedido de declaração escrita a testemunha; obtenção de declarações de testemunhas registradas documentalmente; requisição de documentos à Administração Pública; acesso a locais públicos ou abertos ao público, para verificação do estado do lugar ou de coisas; acesso a lugares privados ou não abertos ao público, desde que haja concordância de que tem disponibilidade do lugar ou autorização judicial.

In q u é rito p o lic ia l e o utra s fo rm a s d e in ve stig a çã o p re lim in a r

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N O Ç Õ E S G ERA IS:

IN Q U É R IT O P O L IC IA L Finalidade

Apuração da existência da infração e a respectiva autoria

N atureza ju ríd ica

Procedimento administrativo

Características

Natureza inquisitória (nâo há contraditório), escrito, sigiloso e dispensável

IN ÍC IO D O IN Q U É R IT O P O L IC IA L

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N O T IT IA CRIM INIS: CONCEITO E ESPÉCIE

DILIGÊNCIAS ^ Art. 6.° do C P P - diligências a serem realizadas pela autoridade policial. )

INDICIAM ENTO ^ Ato de indicar pessoa como provável autor do crime - deve ser motivado )

INCO M U N ICABIIID A O E D O PRESO ^Prevista no art. 21 do CPP - não recepcionado pela Constituição de 19 8 s )

TÉRM IN O D O INQUÉRITO PO LICIAL Relatório - descrição objetiva dos fatos

PR A ZO REGRA: Indiciado preso: 10 dias Indiciado solto; 30 dias

Inquérito policial e outras formas de investigação preliminar A R Q U IV A M EN TO D O IN Q U É R IT O P O L IC IA L

Somente mediante manifestação do Ministério Público

V ÍC IO S D O IN Q U É R IT O P O L IC IA I

V A LO R P R O B A T Ó R IO Elementos do inquérito = não são prova e não podem fundamentar a sentença

Prova: produzida em contraditório e pode fundamentar a sentença penal

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Capítulo 4 Ação penal 4.1 Noções gerais sobre o direito de ação O direito de ação previsto na Constituição (art. 5“, XXXV) não assegura apenas o mero direito de ingresso em juízo. Na verdade, assegura o direito à efetiva e adequada tutela jurisdicional. O direito de ação não corresponde somente ao ato inicial de demandar (ingresso em juízo), compreendendo também o exercício de direitos, poderes e faculdades ao longo de todo o desenvolvimento do processo (direito de ação analítico), para se obter um provimento de mérito (direito de ação liebmaniano), conferindo uma adequada tutela jurisdicional (direito à tutela jurisdicional).* As teorias sobre o direito de ação podem ser agrupadas em três grandes classes: as teorias imanentistas dp direito de ação, as teorias (autonomistas) concretas do direito de ação e as teorias (também autonomistas) abstratas do direito de ação, com destaque, nestas, para a teoria de Liebman. o

4.1.J Teorias imanentistas do direito de ação Para as teorias imanentistas, não há autonomia do direito de ação em relação ao direito subjetivo material reclamado em juízo. Nos períodos romanos das legis aciones e per form ula, a ação vinha antes do di­ reito. Não se tinham direitos mas ações para defender aqueles direitos em juízo. Ter a actio era ter um direito suscetível de ser perseguido em juízo. Posteriormente, os polos se invertem, e, no sistema privatístico, a ação representa 0 próprio direito subjetivo violado, em “atitude defensiva” ou, como diziam alguns, era o direito “armado para a guerra”.' Dinamarco, Instituições..., v. 1, p. 203-204. Não caberia no âmbito limitado do presente trabalho uma análise exaustiva das diversas teorias sobre o direito de ação. Para fins de estudo dos seus reflexos no campo processual penal, as teorias serão analisadas em três üKjij grandes grupos, embora não se desconheçam os perigos de tal generalização. 2. Nesse sentido, o art. 75 do ab-rogado CC de 1916 dispunha que “a todo o direito corres'9 ponde uma ação, que o assegura”. Comentando tal artigo, Clóvis Bevilaqua (Código..., v. Biirii. 1, p, 2 55 ) afirma que “a ação é parte constitutiva do direito subjetivo, pois que é o próprio ‘ direito em atitude defensiva”.

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A principal critica a tais teorias é que os processos com sentenças de improcedên­ cia (o autor não tem o direito alegado) seriam processos sem ação! Também na tutela meramente declaratória negativa, em que o autor pede que seja declarada a inexis­ tência de uma relação jundica (por exemplo, declarar a nulidade de um contrato), a procedência significa a inexistência do direito material, o que significaria que no caso também não bavia o direito de ação. Normalmente, em tais teorias, considerava-se que o direito de ação era exercido contra o réu, e não contra o Estado, enquanto ente encarregado da prestaçãojurisdicional.

4.1.2 Teorias (autonomistas) concretas do direito de ação Para as teorias autonomistas, o direito de ação (processual) não se confunde com o direito subjetivo (material) debatido no processo. Todavia, trata-se de teorias concretas do direito de ação, dado que este somente existe se, no caso posto em ju l­ gamento concretamente também existir o direito material. As teorias autonomistas surgem com Wacb. O direito de ação é o direito a uma sentença favorável. O direito de ação, embora autônomo em relação ao direito mate­ rial, depende da ocorrência de requisitos deste. É um direito exercido contra o Estado e contra o réu.® Também merece destaque em tal campo a teoria de Chiovenda, do direito de ação como um direito potestativo. O direito de ação é um direito-poder, por meio do qual o autor, manifestando sua vontade, faz funcionar a máquina jurisdicional do Estado, para produzir um efeito jurídico em relação ao adversário, que se encontra em uma situação de sujeição. A ação é o poder jurídico de fazer valer a condição para a atuação da vontade da lei. É um direito dirigido contra o réu, e não contra o Estado. É uma teoria concreta porque só tem o direito potestativo de ação aquele que obtém uma sentença favorável. As condições da ação são condições necessárias para obtenção de um pronunciamento favorável.® Mesmo reconhecendo a autonomia do direito de ação (processual) em relação ao direito material, ao vincular a existência do direito de ação ao reconhecimento do direito material, tais teorias não escapam às mesmas críticas das teorias imanentistas, nos casos de sentenças de improcedência e pedidos de tutela meramente declaratória negativa.

4.1.3 Teorias (autonomistas) abstratas do direito de ação O máximo grau de separação entre o direito de ação (processual) e o direito material é atingido pelas teorias abstratas do direito de ação. O direito de ação não se confunde 3. A obra pioneira de Wach foi Der Feststellungsanspruch, publicada em 1888, que tem tradução para o espanhol: La pretensión de dedaración. 4. O conceito de ação de Chiovenda foi proposto em conferência proferida no ano de 1903, em Bologna: Lazione nel sistema dei diritti, posteriormente reproduzida em Saggi di diritto processuale civile, p. 3-99.

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com direito subjetivo (material) debatido no processo. A ação é um direito abstrato, posto que existe abstração feita da própria existência do direito material debatido. Desenvolvidas na Alemanha por Degenkolb e na Hungria por Plósz, as teorias abstratas defendem que o direito de ação independe da efetiva existência do direito material invocado. Há direito de ação mesmo que o processo tenha terminado com uma sentença de improcedência (contrária ao direito do autor), ou com uma sentença injusta (concede direito a quem realmente não o tem), ou, ainda, com uma sentença que não julgue o mérito (sentença terminativa).’ Outra característica de tais teorias é que o direito de ação é movido contra o Estado, pois ele tem o poder-dever de exercer a jurisdição. Todavia, tais teorias nâo escapam das críticas. A principal delas é que haveria 0 direito de ação mesmo nos casos em que a atividade jurisdicional não atingiu seu objetivo de atuação da vontade concreta da lei. Nesse contexto, perde-se totalmente o caráter instrumental da ação e do próprio direito processual, visto que o direito de ação não se liga ao direito material. Segundo seus críticos, tais teorias acabam por es­ vaziar 0 conteúdo da garantia constitucional da ação, pois este direito constitucional não asseguraria a adequada e efetiva tutela jurisdicional.

4.1.4 Teoria da ação de Liebman^ A teoria de Liebman não deixa de ser uma teoria abstrata do direito de ação, posto que há o direito de ação, mesmo quando o provimento jurisdicional não é favorável ao autor. O direito de ação não é o direito a uma sentença favorável, mas o direito ao julgamento do mérito. Para Liebman, o direito de ação é um direito público subjetivo, instrumentalmente conexo a uma pretensão material. O direito de ação é o direito a uma sentença de mérito, favorável ou desfavorável ao autor. A “conexão com a pretensão material” é representada pelas condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade de partes e interesse de agir. O direito de ação é abstrato, mas se liga ao direito material.’ Os criticos da teoria de Liebman afirmam que ela não deixa de ser uma teoria concreta do direito de ação, na medida em que a existência da ação depende de que 5. O trabalho de Plósz, Beiträge zur Theorie des Klagerechts, Leipzig, 1880, foi influenciado pela obra de Degenkolb, Einlassungszwang und Urteilsnorm, Leipzig, 1877. 6. Para uma análise, em lingua portuguesa, cf. Liebman, Manual..., p. 148-162. 7. A teoria de Liebman foi exposta em palestra proferida em 1949, intitulada Lazione nella teoria dei processo civile, Scritti giuridici..., v. 2, p. 448, depois reproduzida em Problemi dei processo civile, p. 22-53. Posteriormente, tal teoria foi adotada pelo CPC brasileiro de 1973 (CPC, art. 267, VI), sendo seguida pela grande maioria da doutrina nacional. O Novo CPC, não mais menciona as condições da ação, prevendo apenas, no art. 482, inc. VI, que: “O juiz não resolverá o mérito quando:... VI - verificar a ausência de legitimidade ou interesse processual".

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haja as condições da ação, e, portanto, elementos do direito material debatido. Com isso, estaria sujeita a todas as críticas anteriormente formuladas. Todavia, as críticas não se sustentam. A teoria de Liebman não deixa de ser uma teoria abstrata da açào, posto que a existência do direito de ação independe da existência do direito material debatido em juízo. No casode uma sentença de mérito de improcedência, terá existido o direito de ação, embora não baja o direito material. Tal postura é incompatível com as teorias concretas, não permitindo a inclusão da teoria bebmaniana entre as concretistas. Por outro lado, a principal vantagem de tal teoria foi ter buscado um ponto de equilíbrio entre as teorias concretas e abstratas da ação: o direito de ação nâo é só o direito de ingresso em juízo, mas também nâo é um direito que existe somente no caso de uma sentença de procedência. 0 direito de ação está presente em qualquer sentença de mérito, favorável ou desfavorável.

4.2 Condições da ação penal Diante da precedência cronológica dos estudos sobre as cbamadas condições da ação, a análise das condições da ação penal será feita a partir de um paralelo e de uma comparação com as condições da ação, segundo o posicionamento da doutrina processual civil.® Obviamente, o estudo comparativo não significa a adoção ou a transposição simplista de tais conceitos processuais civis, ignorando as peculiaridades ou especificidades do processo penal.“ 8 . Na transposição dos conceitos civilísticos para o campo penal, de uma maneira geral, a doutrina processual penal procura fazer as devidas adaptações no emprego de tais conceitos quanto às condições da ação. Para Frederico Marques (Tratado..., v. 2, p. 69), “para o exer­ cício hic et nunc da ação penal, também se exigem, como no processo civil, a possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir, no plano objetivo, e a Icgitimatio ad causam, no plano subjetivo”. F acrescenta (ib. p. 71): “as condições de procedibilidade são condições especiais exigidas por lei, além das três condições gerais para o exercício da ação penal”. De forma semelhante, para Tourinho Filho (Processo penal..., v. 1, p. 521), as condições da ação penal genéricas são: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade ad causam e interesse de agir. A estas somam-se as condições da ação especificas, que são condições a que fica subordinado o direito de ação, em determinados casos específicos. 9. Um maior “distanciamento" da doutrina civilista é encontrado, por exemplo, em Jacinto Coutinho (A lide..., p. 148), que identifica as condições da ação como: (a) tipicidade ob­ jetiva (CPP, art. 43,1), (b) a punibilidade concreta (CPP, art. 43,11), (c) a legitimidade de parte (CPP, art. 43,111,1“ parte) e (d) a justa causa (CPP, art. 43,111, 2“ parte, c.c. art. 18). O mesmo esquema é adotado por Marco Afonso Nunes da Silveira (A tipicidade..., p. 56-57) que apenas substitui a expressão “tipicidade objetiva" por “tipicidade aparente”. De forma semelhante, também para Aury Lopes Júnior (Direito..., v. 1, p. 351) as condições da ação são: (a) prática de fato aparentemente criminoso -fu m u s commissi delicti; (b) punibilidade concreta: (c) legitimidade de parte: e (d) jusla causa. As concepções acima são, declarada­ mente, inspiradas no posicionamento de Breda (Ffeitos da declaração..., p. 177-178), para quem “um estudo sistemático do artigo 43, em confronto com a norma do artigo 18 do Código de Processo Penal, indica a presença das seguintes condições (genéricas) da ação: (a) um fato penalmente relevante, isto é, a ocorrência de um tipo penal objetivo (artigo 43,

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4.2.1 Possibilidade jurídica do pedido No campo processual civil, a demanda é juridicamente possível sempre que inexista no ordenamento jurídico vedação ao provimento jurisdicional, decorren­ te de um dos elementos da ação (partes, pedido e causa de pedir).*“ Os exemplos clássicos são o pedido de divórcio, nos países que não o admitem, ou a cobrança de dívida de jogo, vedada pelo art. 814 do Código Civil.** Aliás, normalmente, a impossibilidade é da causa de pedir, e não do pedido.*® Os pedidos em si, de tutela

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1); b) a punibilidade concreta desse fato (artigo 43, II); c) a legitimidade de partes (artigo 43, III) [...] como há uma outra hipótese de arquivamento (artigo 18 do Código de Processo Penal), induvidosamente, faltará condição para o exercício da ação penal, nos casos em que o titular do ius puniendí pedir o arquivamento ‘por falta de base para a denúncia’. Estaríamos diante da chamada justa causa para a acusação, isto é, a falta de prova do fato e de indícios de autoria, requisitos indispensáveis ao exercício da ação penal”. Curioso observar, ainda, que, embora Breda, em estudo anterior (Notas..., p. 57), tenha asseverado que “as condições da ação, no processo penal, nâo podem ter o mesmo tratamento do Direito Processual Ci­ vil”, posteriormente, no artigo acima citado (Efeitos da declaração..., p. 178), conclui que, “para fins de compatibilização com a doutrina do processo civil, didaticamente, a tipicidade objetiva e a punibilidade concreta podem ser confundidas com a possibilidade jurídica do pedido, e a idoneidade da pretensão (justa causa) com o interesse de agir. O presente trabalho nâo comporta critica quanto à validade científica dessa postura”. Liebman (Eazione nella..., p. 46) conceituava a possibilidade juridica do pedido em termos positivos; “!...) é a admissibilidade, em abstrato, do provimento pedido, segundo as normas vigentes no ordenamento juridico nacional”. E, em trabalho anterior, publicado em 1945, Liebman (O despacho saneador..., p. 124) asseverou: “por possibilidade jurídica do pedido entendo a possibilidade para o juiz, na ordem jurídica a qual pertence, de pronunciar a espécie e decisão pedida pelo autor. Por exemplo, um pedido de divórcio carece hoje, no Brasil, de possibilidade juridica, porque as leis brasileiras não permitem decretar a dissolução do casamento”. Ressalte-se, porém, que posteriormente, em 1973, a partir da terceira edição de seu Manuale, Liebman deixa de considerar a possibilidade juridica do pedido como uma das condições da ação, passando a elencar as hipóteses antes identificáveis com a impossibilidade juridica do pedido como sendo pertencentes ao interesse de agir. Ressalte-se que foi Moniz de Aragão (Comentários..., v. 2, p. 433) quem passou a conceituar a possibilidade juridica do pedido de forma negativa: “parece que o verdadeiro conceito de possibilidade jurídica nâo se corvstrói apenas mediante a afirmação de que corresponde à prévia existência de um texto que tome o pronunciamento pedido admissível em abstrato, mas, ao contrãrio, tem de ser examinado mesmo em face da ausência de uma tal disposição, caso em que, portanto, essa forma de conceituá-la seria insuficiente. Sendo a ação o direito público subjetivo de obter a prestação Jurisdicional, o essencial é que o ordenamento jurídico não contenha uma proibição ao seu exercício; aí, sim, faltará a possibilidade jurídica”. Como jã advertido na nota 7, supra, desse capítulo, o Novo CPC não mais se refere à “possibilidade jurídica do pedido”, No processo penal, o exemplo sempre lembrado de impossibilidade juridica do pedido é o oferecimento de denúncia por fato atípico, que levava à rejeição da denúncia com base no revogado, art. 43,1, do CPE

■'12. Em sentido contrário, Grinover (As condições..., 1977, p. 49) nega que a possibilidade ju rtdica possa se dar “em virtude de peculiaridades da causa petendi". Neste caso, a matéria : seria “de mérito e não diz respeito ao exercício da ação”. Todavia, em estudo posterior (As ■li* condições..., 2007, p. 186) passou a admitir tal situação, dando exatamente o exemplo da dívida de jogo.

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constitutiva negativa, no caso do divórcio, e de condenação, na hipótese de dívida de jogo, são perfeitamente admissíveis. Sendo o pedido juridicamente impossível, haverá desnecessidade de o proces­ so prosseguir, ante a absoluta impossibilidade de o juiz emitir um provimento final conforme pedido pelo autor. No processo penal, a possibilidade jundica do pedido é definida em termos po­ sitivos,*’ isto é, o pedido será juridicamente possível sempre que, em tese, a conduta imputada ao acusado for típica. Se alguém for denunciado, por exemplo, por furto de uso ou por incesto, a denúncia deverá ser rejeitada. Além da atipicidade, o pedido também será juridicamente impossível, nos casos em que o fato não constituir crime, como no ato infracional praticado por menor de 18 anos.*’ Há, também, posicionamento no sentido de que, se já estiver extinta a punibilidade, o pedido também será juridicamente impossível.*’ Parte da doutrina processual penal considera, ainda, que o pedido é juridicamente impossível, quando se pede a condenação do acusado a uma pena não admitida em nosso ordenamento jurídico, como seria o caso de açoite, desterro, degredo, trabalhos forçados etc. ** Mesmo neste caso, é de se ver que o pedido imediato, isto é, a tutela jurisdicional pleiteada, é juridicamente possível (pedido de condenação). O que será impossível é o pedido mediato, ou seja, o bem da vida que se quer restringir por meio do processo. Além disso, no processo penal, as chamadas “condições de procedibilidade” se enquadrariam nas condições da ação, como requisitos da possibilidade jurídica 13. Nesse sentido, identificando a possibilidade jurídica do pedido, com a imputação de uma conduta definida como crime: Frederico Marques, Elementos..., v. 1, p. 318-319; Tornaghi, Curso..., V . 1, p. 42; Tourinho Filho, Processo penal, v. l, p. 522; Jacinto Coutinbo, A lide..., p. 146-147; Maria Thereza Moura, Justa causa,.., p. 182-183. 14. A questão é controvertida, havendo vários autores que, em tal hipótese, enquadram a carên­ cia da ação na falta de legitimidade de parte passiva. Nesse sentido, cf.; Frederico Marques, Elementos..., v. l, p. 320; Tucci, Teoria..., p. 96. Diversamente posiciona-se Grinover (As condições..., 1977, p. 198) negando que tal hipótese seja caracterizadora da ilegitimidade de parte. E, em estudo posterior (As condições..., 2007, p. 198), complementa o raciocínio afirmando, sem maiores esclarecimentos, que “aqui se trata de falta de intercsse-adequação ou de possibilidade jurídica". Um terceiro posicionamento é defendido por José Barcelos de Souza (Direito processual..., p. 18-19): no caso de ação penal contra menor de 18 anos, falta a este a capacidade de ser parte, a configurar a inexistência do processo. Trata-se, pois, a seu ver, de hipótese de falta de pressuposto processual de existência, e não de questão relacionada com as condições da ação. 15. Nesse sentido; Frederico Marques, Tratado..., v. 2, p. 77; Barros, Sistema..., v. 1, p. 276. Em sentido contrário, considerando que a questão seria de falta de interesse de agir: Fowler, Anotações..., p. 92. Por outro lado, Grinover (As condições..., 1977, p. 76) nega que se trate de condições da ação: “a sentença que reconhece extinta a punibilidade fará coisa julgada material, não se tratando, em absoluto, de carência da ação". No mesmo sentido: Maria Thereza Moura, Justa causa..., p. 256. 16. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 106; Jardim, Ação penal..., p. 39; Tucci, Teoria.. ^ p. 93.

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do pedido." São elas: (1) representação do ofendido na ação penal pública condi­ cionada (CP, art. jOO, § 1°, c.c. CPP, art. 24); (2) requisição do Ministro da Justiça (CP, art. 100, § 1“, c.c. CPP, art. 24); (3) entrada do agente brasileiro, em território nacional, nos crimes cometidos no estrangeiro (CP, art. 7°, § 2°); (4) a sentença civil de anulação do casamento, no crime do art. 236 do CP (art. 23 6 , parágrafo único); (5) exame pericial homologado pelo juiz, nos crimes contra a propriedade imate­ rial (CPP, art. 529, caput); (6) a autorização do Poder Legislativo, para processar o Presidente da República, o Vice-Presidente e os Governadores, nos crimes comuns ou de responsabilidade.

4.2.2 Interesse de agir Como explica Liebman, o interesse de agir é a relação de utilidade entre a lesão de um direito afirmado e o provimento de tutela jurisdicional pleiteada.*« O autor tem interesse na demanda quando esta possa lhe trazer alguma utilidade. A utilidade é aferida por meio da necessidade do provimento jurisdicional e de sua adequação. O interesse de agir decorre da necessidade mais a adequação. É possível que o provimento seja necessário sem ser adequado ou seja adequado sem ser necessário. Em ambos os casos nâo bá interesse de agir, sendo inútil o prosseguimento do processo, seja por não ser necessário, seja por não ser adequado a eliminar a lesão afirmada. A prestação jurisdicional é necessária quando não se pode obter a satisfação do direito violado por outro meio que não o Poderjudiciário. Se a parte contrária se negou a satisfazer, espontaneamente, o direito violado (substitutividade secundária) ou, mesmo quando as partes, querendo, não podem atuar espontaneamente à vontade da lei (ações constitutivas necessárias, em que bá substitutividade primária), baverá necessidade do processo. A necessidade da ação penal condenatória é pressuposta. Como o ius puniendi não pode ser aplicado pela atuação espontânea da vontade da lei, sendo o processo penal ura processo necessário, não bá outro meio de se aplicar a lei penal, senão mediante o processo. Em outras palavras, é irrelevante o dissenso das partes para que o processo penal se faça necessário :nulla poena sine iudicio. Assim sendo, a ação penal sempre será necessária para a imposição de uma pena, em face de um fato que se afigure crime.*“ Consequentemente, no processo penal o interesse de agir, quanto ao seu aspecto de 17. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 392. Em sentido contrário, Barcelos de Souza (Direito processual..., p. 50) entende que as condições de procedibilidade devem ser consideradas “pressuposto processual de validade objetivo, extrínseco à relação proces­ sual”. No campo civil, Fabrício (Extinção do processo..., p. 18) explica que, “nos casos em que a ação processual nâo é propriamente excluída mas subordinada ã satisfação de algum requisito prévio (notificação, exaurimento da via administrativa etc.), parece mais correto identificar-se um pressuposto processual extrínseco negativo que uma condição da ação”. 18. Liebman, Manual..., V . l ,p . 156. 19- ‘Justamente por isso, Grinover (As condições..., 1977, p. 100) afirma que, no processo penal, o interesse-necessidade aparece implícito em toda acusação.

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necessidade, é inerente a toda ação penal condenatória, porque o Estado não pode impor a pena senão por meio das vias jurisdicionais.™ Somente no regime do Juizado Especial Criminal, diante da possibilidade de transação penal, com a consequente aceitação de uma pena restritiva de direito ou de multa, sem um prévio processo, é que se poderia cogitar da desnecessidade da ação penal. Assim, por exemplo, se o autor do fato preencbe os requisitos da transação penal e sem prévia tentativa de tal ato compositivo, o Ministério Público oferece a denúncia, não bá necessidade da ação penal, posto que ainda é possivel a solução consensual.’* Por outro lado, a prestação jurisdicional é adequada quando o provimento pedido for apto a afastar a lesão ou mal invocado pelo autor. É difícil surgir o problema de adequação, no que toca à tutela penal condenatória. Sempre que o Ministério Público ou 0 querelante pleiteiam a aplicação do direito de punir, o fazem por meio de ação penal condenatória. Os exemplos de falta de adequação podem ocorrer em outros campos. Será inadequado ingressar com um habeas corpus para anular um processo por crime para o qual seja prevista exclusivamente a pena de multa, pois a liberdade de locomoção não estará em jogo. Adequado seria o mandado de segurança. Outro exemplo seria o caso em que o promotor de justiça impetrasse um habeas corpus para pedir a condenação do acusado, quando o adequado seria ação penal condenatória.

4.2.3 Legitimidade de partes Há legitimidade de partes quando o autor afirma ser titular do direito subjetivo material demandado (legitimidade ativa) e pede a tutela em face do titular da obrigação correspondente àquele direito (legitimidade passiva). Normalmente, vigora a regra de legitimação ordinária: ninguém pode demandar direito próprio em nome alheio (CPC, art. 6°, primeira parte).” Em outras palaras. 20. Grinover, As condições..., 1977, p. 109. 21. Em sentido contrário, para Grinover (As condições..,, 2007, p. 196), “mesmo no caso de transação penal, possibilitada pela Constituição de 1988 e detalhada pelas leis dos Juizados Especiais, a aceitação da sanção penal pelo acusado sõ pode vir mediante o processo”. Dis­ corda-se da eminente processualista Na transação penal não há processo. O ato compositivo se dá antes do oferecimento da denúncia, ainda na audiência preliminar. O que se exige é, apenas, a homologação judicial de um acordo de vontades entre os interessados - Ministério Público e o autor do fato - que tem por conteúdo uma pena não privativa de liberdade. Não bá ação em sentido tradicional. Não há panes. Finalmente, não há substitutividade, ainda que primária, nem atuação da vontade concreta da lei pelo juiz, O que existe é um negó­ cio entre as panes, que atuam a vontade concreta da lei, mas, para a liberação da eficácia jundica de tal ato, dependem da integração da vontade de um órgão estatal, no caso o juiz, que verificará a existência do pressuposto e dos requisitos de fato e de direito do negócio, para então possibilitar a produção do efeito desejado pelas partes. Trata-se, pois, de ato de jurisdição voluntária, no processo penal. Para uma distinção entre jurisdição contenciosa necessária e jurisdição voluntária, cf. Badaró, Onus da prova..., p. 201 e ss. 22. Regra idêntica está prevista no art, 18, caput, do Novo CPC; “Ninguém poderá pleitear direito albeio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico".

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pede-se em juízo um direito próprio em nome próprio. Já na legitimação extraordi­ nária, há uma situação de substituição processual (CPC, art. 6°, parte final): pede-se direito alheio emiiome próprio. Finalmente, na representação, pede-se direito alheio em nome alheio.” Para que haja legitimidade de partes, tanto o autor quanto o réu devem ser partes legítimas. É possível o autor ser parte legítima e o réu não, ou o réu ser parte legítima sem o autor o ser. No processo penal, haverá ilegitimidade da parte ativa se o Ministério Público oferecer denúncia em um crime de ação penal privada ou se a vítima oferecer queixa em um crime de ação penal pública (salvo, é claro, tratando-se de ação penal privada subsidiária). A legitimação ativa normalmente é conferida ao Ministério Público, exceto nos casos de ação penal de iniciativa privada, nas quais o legitimado ativo é o ofendido. A legitimidade passiva é sempre daquele a quem se atribui a prática do fato criminoso. A partir da transposição dos conceitos processuais civis para o campo penal, afirma-se que, no caso de ação penal de iniciativa pública, o Ministério Público seria o legitimado ordinário; no caso da ação penal privada, haveria uma hipótese de legitimação extraordinária, sendo o querelante seu substituto processual, porque a legitimidade seria conferida a quem nâo é o titular do ius puniendi3‘' Discorda-se de tal posicionamento. No direito processual civil, a legitimação para a ação é extraída da situação de di­ reito material.” Em regra, o titular do direito material terá legitimidade para, em juízo, buscar tutela jurisdicional ao tal direito, lesado ou ameaçado. Em suma, o conceito de legitimação ordinária decorre da análise da titularidade da relação material.” A pertinência subjetiva da ação é um reflexo da pertinência subjetiva do direito material. ^ ^ Tal construção, contudo, não se adequa ao direito processual penal. O Ministé­ rio.Público não é o titular do direito de punir, que pertence ao Estado. Ao Ministério Público se confere, apenas, a titularidade ou legitimidade para a propositura da ação penài.” Tal poder, porém, decorre simplesmente da lei, independentemente da titu23. Seria o caso, no processo penal, do pai que oferece queixa por injúria praticada contra seu filho, menor de 16 anos de idade. 24. Nesse senüdo, Grinover. As condições.., 2007, p. 198. 25. ;Explica Bedaque (Direito e processo, p. 81) que “a legitimidade processual nada mais é do ,que reflexo da própria legitimação de direito material”. ;26.. Com explica Armelin (Legitimidade..., p. 117), “caracterizam a legitimidade ordinária, no :processo, a coincidência entre o titular do direito afirmado em juízo e a figura do autor, ibem assim com essa mesma coincidência entre o obrigado e o réu”. 27!'Aury Lopesjr. (Direito..., v. 1, p. 99-100), partindo da premissa de que o Ministério Pú­ blico nâo exerce uma pretensão punitiva, mas uma pretensão acusatória, exigindo que o juiz, que personifica o Estado, exerça o poder punitivo, conclui: “1...] compreendido que Ó-Estado exerce o poder de punir no processo penal não como acusador, mas como juiz, tanto o Ministério Público como o querelante exercitam um poder que lhes é próprio (ius ut procedatur, pretensão acusatória), ou seja, o poder de acusar. Logo, não corresponde o poder de punir ao acusador, seja ele público ou privado, na medida em que ele detém a imera pretensão acusatória. Assim, em hipótese alguma existe substituição processual no processo penal". Também partindo da premissa de que o direto de punir não pertence ao

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laridade do “direito material” debatido em juízo, no caso, o “direito de punir”. Assim, somente no sentido de ser o titular da pretensão processual posta em juízo é que se pode considerar o Ministério Público um “legitimado ordinário”. Entretanto, nesse conceito, na ação penal de iniciativa privada, em que, excepcionalmente, o poder de perseguir em juízo é conferido à vítima, ela também seria um “legitimado ordinário”. E, diante de tal quadro, concluir-se-ia que, se ambos são legitimados ordinários, nâo existiria situação de “legitimado extraordinário” ou substituto processual, pelo que a distinção entre legitimação ordinária e extraordinária é destituída de todo e qualquer significado no processo penal. No máximo, poder-se-ia pensar em legitimação extraordinária na hipótese de ação penal privada subsidiária,™ posto que, neste caso, o legitimado ordinário seria o Ministério Público, mas, em virtude de sua inércia, abre-se oportunidade para a vítima ou seu representante legal ofertar queixa. Todavia, do ponto de vista terminológico - e também da tradição do processo penal brasileiro - , melhor denominar tal caso de legitimação subsidiária, em vez de legitimação extraordinária.™ Ou seja, o Ministério Público éo legitimado primário e o ofendido, o legitimado subsidiário. Também aqui, portanto, desnecessário o transporte do conceito processual civil.

4.2.4 Justa causa para a ação penal Uma peculiaridade da ação penal, em relação à ação civil, no tema das condições da ação penal, é a questão da “justa causa para a ação penal”.™ Ministério Publico, o transporte dos conceitos de legitimação ordinária e extraordinária é igualmente negado por Silveira, O interesse de agir..., p. 112. 28. Segundo MariaThereza Moura (justa causa..., p. 192), na ação penal privada subsidiária haveria uma hipótese de legitimação extraordinária no processo penal. Num certo sentido, tal situação realmente difere da açáo penal exclusivamente privada. Isso porque o querelante, na ação sub­ sidiária, nâo seria o legitimado “ordinário”, mas sim alguém cuja legitimidade decorreria do náo exercício da ação penal pelo Ministério Público - legitimado ordinário - , no prazo legal. Todavia, neste caso, a distinção entre legitimado ordinário e extraordinário nâo se daria nos mesmos moldes em que tais expressões são empregadas no processo civil, em que se levam em conu os reflexos da titularidade da relação jurídica material, no campo processual. 29. Analisando as situações da legitimação no processo civil, Barbosa Moreira (Apontamentos..., p. 61-62) distingue a legitimação extraordinária autônoma e exclusiva (em que a habilita­ ção para agir exclui a posição da parte principal), da legitimação extraordinária autônoma concorrente (em que tanto o legitimado para agir quanto a parte principal podem agir por si sós). E, quanto a esta última, distingue duas situações; “[...] na primeira, qualquer dos legitimados extraordinários tem qualidades para desde logo instaurar autonomamente o pro­ cesso, sem que se lhes imponha esperar, durante certo tempo, pela iniciativa do legitimado ordinário. Na segunda, ao contrário, enquanto não esgotado in albis o prazo da lei, não sc lhes faculta o acesso à via judicial; a rigor, eles somente se legitimam após o termo ad quem, se a legitimada ordinária permanecer omissa. ... Se se quiser assinalar terminologicamentc a distinção, poderá dizer-se que, ali, a legitimação extraordinária autônoma é concorrente e primária; aqui, é concorrente e subsidiária" (destaques no original). 30. Nesse ponto, se está diante de uma peculiaridade da ação penal, em relação à ação civil. No campo privado, não se cogita de justa causa para a ação.

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Inicialmente, ajusta causa foi identificada como a necessidade de que a denúncia ou queixa descrevesse, em tese, um fato típico. Isto é, era necessária a tipicidade abstrata da conduta imputada! Nesse sentido, a falta de justa causa seria enquadrável no revogado art. 43, caput, I, do CPP; faltaria justa causa para a açáo penal, e a denúncia ou queixa deveria ser rejeitada, quando o fato narrado evidentemente não constituísse crime.’ * Todavia, tal conceito se mostrou insuficiente. Em razão do caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave “pena” imposta ao indivíduo, não é possível admitir denúncias absolutamente temerárias, desconectadas dos elementos concretos de investigação que tenham sido colhidos na fase pré-processual. Aliás, uma das finalidades do inquérito policial é, justamente, fornecer ao acusador os elementos probatórios necessários para embasar a denúncia.” A noção de justa causa evoluiu, então, de um conceito abstrato para uma ideia concreta, exigindo a existência de elementos de convicção que demonstrem a viabilida­ de da ação penal. Ajusta causa passa a significar a existência de um suporte probatório mínimo, tendo por objeto a existência material de um crime e a autoria delitiva. A ausência desse lastro probatório ou da probable cause autoriza a rejeição da denúncia e, em caso de seu recebimento, faltará justa causa para a ação penal, caracterizando constrangimento ilegal apto a ensejar a propositura de habeas corpus para o chamado “trancamento da ação penal”. A razão de exigir a justa causa para a ação penal é evitar que denúncias ou quei­ xas infundadas, sem uma viabilidade aparente, possam prosperar. Inegável o caráter infamante do processo penal. É exato que, sob o ponto de vista jurídico, a garantia constitucional da presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado, assegura que nenhuma diferenciação possa existir entre, de um lado, aquele que é ajqsado de um delito, sem que haja uma condenação transitada em julgado contra si, e, de outro, qualquer cidadão que nunca foi processado. Contudo, também é certo que, do ponto de vista moral, social e mesmo psicológico, o simples fato de estar sendo processado criminalmente é um pesadíssimo fardo a ser carregado pelo acusado. Ser jéu em processo criminal significa, portanto, de alguma forma, já estar sendo punido. 31. Embora não se trate, propriamente, de condição para a ação penal, essa mesma ideia.pode ser transplantada, inclusive, para o inquérito policial. Se for instaurado um inquérito poli­ cial, por um fato atipico, baverá falta de justa causa, com a consequente caracterização de constrangimento ilegal. Nesse sentido, com ampla citação jurisprudencial; Maria Thereza Moura, Justa causa..., p. 267. Tourinho Filho (Processo..., v. 1, p. 528) indaga: “se não fosse assim, para que serviria o * inquérito? Por que a lei somente o dispensa quando o titular da ação penal dispõe de outros elementos de convicção? Do contrário, bastaria que o acusador tivesse notícia do fato, ainda que oralmente, e a ação penal poderia ser proposta (...]". Como advertiu o Min. Gilmar 'Mendes, em voto lapidar: “[...| não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm tío poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso. . Ordem deferida, por maioria, para trancar a ação penal” (STF, HC n° 84.409/SP).

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Diante do caráter infamante e apenador do simples “estar sendo processado”, seria uma intolerável agressão à dignidade do cidadão admitir que se pudesse processar alguém, imputando-lhe a prática de um delito, sem que houvesse uma mínima base probatória quanto à existência do crime e autoria delitiva. Isto é, sem que houvesse elementos, normalmente colhidos no inquérito policial, a indicar que a ação penal não é temerária. Ilusório seria o “Estado de Direito" em que qualquer acusação infundada pudesse prosperar, sendo apenas um “ato de fé”®®do acusador, ou sua “pura criação mental da acusação”.®® Inegavelmente, ajusta causa se conecta ao fato criminoso e a sua autoria, não bastando a mera tipicidade aparente do fato ou a indicação da autoria do crime. Qual seria, porém, o grau probatório exigível em relação à materialidade e à autoria delitiva? A resposta exige que sejam fixadas algumas premissas. Lembra-se, com Camelutti, que o oposto da certeza é um gênero em que se podem distinguir um juízo de possibilidade ou um juízo de probabilidade, cuja diferença é apenas estatística. Há possibilidade no lugar da probabilidade, quando as razões favoráveis e contrárias da hipótese são equivalentes. N ojuízo de possibilidade não há predominância de qualquer das razões positivas sobre as negativas, ou vice-versa.®’ Por outro lado, podemos continuar o raciocínio: n ojuízo de probabilidade há um predomínio das razões positivas sobre as negativas, ou vice-versa.®* E mais: na medida em que o predomínio aumenta, maior a probabilidade. Quando o predomínio das razões positivas vai decrescendo, tendendo a se igualar às razões negativas, a proba­ bilidade diminui. Isso até o ponto em que os juízos entre razões positivas e negativas se igualam, pois aí se retorna ao campo do juízo de possibilidade.®® Para a condenação, exige-se, além de qualquer dúvida razoável, prova da exis­ tência do crime e ter sido o acusado o seu autor ou partícipe. Ou seja: certeza. Obvia-“ mente, nâo teria sentido exigir, no limiar da ação penal, o mesmo quantum probatório necessário para a sentença final. Isso não significa, porém, que o grau probatório que se exige para os dois elementos caracterizadores da justa causa - a autoria e a mate­ rialidade (ou a existência do crime) - seja o mesmo. 33. A expressão é de Silvajardim, Ação penal..., p. 42. 34. Tal expressão costuma ser atribuída ao Min. Orozimbo Nonato, lançada em voto no acórdão do STE RHC n°32.208/PI, Pleno, j. 24/09/1952. Na verdade, a expressão consta da emenã não oficial do referido aresto, publicada na RE 150/393. Hã, de fato, no corpo do acótdã(| tal referência, mas no relatório, quando o Min. Orozimbo Notato transcreve a ementa acórdão do Tribunal de Justiça do Piauí em que se denegou a ordem, dando origem ag recurso em habeas corpus depois julgado pelo STE 35. Camelutti, Lecciones..., v. 2, p. 181. 36. Para adotarmos um raciocínio matemático, a intensidade de probabilidade varia de 51% a 99%. 37. Ou seja, há situação em que as razões positivas sáo de 50% e as razões negativas tamb® de 50%.

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A própria denomiiiação utilizada, ainda que não haja uniformidade de lingua­ gem, indica essa diferença. Quanto à autoria, normalmente, exige-se a existência de “indícios de autoria” ou “indícios suficientes de autoria”.’®Por outro lado, no que toca ao crime, há referências como “prova da existência do crime” ou “prova da ma­ terialidade delitiva”.’® Quanto à autoria delitiva náo se exige a certeza para a caracterização dajusta causa, bastando que os elementos de informação colhidos na fase de investigação preliminar permitam um juízo de probabilidade de que o acusado seja o autor do delito.“ 38. Comparando ambas as expressões, embora à luz dos requisitos da prisão preventiva, e não da justa causa pata a ação penal, Magalbães Gomes Filbo (A motivação..., p. 222-223) ex­ plica: “Trata-se de um juízo provisório sobre os fatos, feito com base nas eventuais provas já existentes ao tempo da decisão sobre a medida cautelar. Segundo a lei, nessa apreciação deve o Juiz cbegar à conclusão de estar provada (bá uma certeza, portanto) a existência do fato delituoso, podendo contentar-se, quanto à autoria, com a simples constatação de indicio suficiente. A motivação do provimento cautelar deve atender, assim, no que se refere à conduta criminosa, à necessidade de justificar, com base em elementos de convicção induvidosos, não somente a real ocorrência do fato (se deixou vestígios, com o exame de corpo de delito exigido pelo art. 158 do CPP), mas igualmente, com razões de direito, a tipificação desse mesmo fato na lei penal. Como anotou Basileu Garcia, a demonstração de que existe um fato delituoso, perfeitamente enquadrável na lei penal, é indeclinável. Quanto à autoria, como se disse, a lei não exige que o juiz chegue a um semelhante juízo de certeza, admitindo que a prisão cautelar seja determinada à vista da probabilidade de uma futura condenação do sujeito, com base na valoraçâo de pelo menos um indício suficiente" (destaques no original). 39. Pára Silva Jardim (Açãoperutl..., p. 42) a justa causa exige “indícios de autoria” e “existência material de uma conduta tipica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade”. Maria Thereza Moura (Justa causa..., p. 243) refere-se ã “existência material de um fato” típico e ilícito e “indícios suficientes de autoria". Tomaghi (Curso..., v. 1. p. 42), embora sem se referir à justa causa, entende que somente poderá haver denúncia “havendo prova do fato e suspeita de autoria”. 40. Questão muito mais delicada seria tentar definir o grau de probabilidade exigido. A proba­ bilidade, no sentido de ser mais crivei ou viável a ocorrência de alguma coisa, sobre a hipó­ tese contrária de sua inocorrência, admite graus. Pode-se ir de uma probabilidade elevada, que se avizinha da certeza, até uma probabilidade pequena ou tênue, que seja pouco mais do que uma mera possibilidade. Tentando traduzir para expressões matemáticas, pode-se imaginar uma probabilidade elevada, de 90% ou 95%, ou uma pequena probabilidade de 55%. Como explica Saraceno (La decisione..., p. 106), a complexidade do juizo sobre o fato não admite uma “graduação numérica da possibilidade, mas uma grosseira graduação (mais que aritmética, gramatical) que se pode exprimir ou no superlativo (certeza) ou, no comparativo (possibilidade maior)”. De qualquer forma, a probabilidade é sempre mais do que a mera possibilidade. Maria Thereza Moura (Justa causa..., p. 222, nota 11) afirma que, para ajusta causa, é necessário que “haja, no mínimo, probabilidade (e não mera possibi­ lidade) de que o sujeito incriminado seja seu autor”. E, explica, ainda; “o juízo do possível conduz à suspeita, e é inaproveitávcl para uma acusação. Para que uma pessoa seja acusada da prática de infração penal deve despontar nâo como possível, mas como provável autor do delito". Também Scarance Fernandes (A reação defensiva..., p. 152) refere-se a “elementos sérios que convirjam para determinada pessoa, apontando-a como a provável autora de um crime”. Em sentido contrário, para Camelutti (Lecciones..., v. 2, p. 182) “unjuicio de ■ posihilidad basta para la imputación".

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No tocante à existência do crime, por sua vez, a questão se mostra mais compli­ cada. Para que haja justa causa, e seja recebida a denúncia ou queixa, o juiz deve ter certeza da existência do crime, ou bastaria uma probabilidade elevada de que tenha ocorrido um delito? Quando se tem notícia de um fato que se afigura crime, sem ter a certeza de tanto, deve-se investigar. Basta a notitia criminis, ou melhor, a notícia de um possível crime, para que se instaure a investigação. Assim, por exemplo, encontrado um cadáver, ha­ vendo elementos a indicar que se possa tratar de um homicídio, deve-se instaurar um inquérito policial. Entretanto, persistindo a dúvida se o fato é crime ou não, mesmo que haja maior probabilidade de se tratar de delito, já se justibcaria uma denúncia? Para continuarmos no mesmo exemplo, se os elementos do inquérito indicarem ser mais provável ter se tratado de um homicídio do que simples suicídio, já se poderia denunciaralguém, sem a certeza de que existiu um crime?®* A resposta é negativa. Não há justa causa para a ação penal se nào se tem certeza da ocorrência de um crime®* Sem a certeza do crime, a ação penal seria injusta e desnecessária.®® 41. Aliás, basta lembrar que, em relação à prisão preventiva, há expressa previsão legal do requisito caracterizador do fumus commissi delicti, no caso a “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” (CPP, art. 312). Trata-se, portanto, da justa causa para a prisão, à qual deve se agregar alguma situação caracterizadora do periculum libertatis. De qualquer forma, e neste ponto o paralelo tem inteira valia, a “prova da existência do crime” deve ser entendida como certeza do crime e não mera probabilidade de que tenha existido um delito. Seria uma agressão abominável à liberdade do cidadão prendê-lo para acautelar o processo por um crime que sequer se tem certeza de ter existido. No sentido de que a prisão preventiva exige a certeza da existência da infração: Basileu Garcia, Comentários..., V. 3, p . 152. 42. Segundo Tourinho Filho (Processo..., v. 1, p. 527): “Para que seja possível o exercido do direito de ação penal, é indispensável que haja, nos autos do inquérito, ou nas peças de informação, ou na representação, elementos sérios, idôneos, a mostrar que houve uma infração penal, e indícios, mais ou menos razoáveis, de que o seu autor foi a pessoa apon­ tada no procedimento informativo ou elementos de convicção". E acrescenta (ib., p. 527): “[...| se nào há elemento idôneo de que houve uma infração penal, é como se não existisse o direito material, e, não existindo o direito, nào há o que tutelar”. Mais enfática, Maria Thereza Moura (Justa causa..., p. 241) entende que “prova induvidosa da ocorrência de um fato delituoso, na hipótese, e prova ou indícios de autoria, apurados no inquérito policial ou nas peças de informação” são indispensáveis para que exista justa causa. Em outra pas­ sagem (ib., p. 245), porém, parece atenuar o grau de convencimento apto a caracterizara justa causa, quando assevera “a prova que se exige para a incoação do processo é aquela em grau necessário para submeter alguém a julgamento. Relaciona-se, pois, a justa causa com o juízo de probabilidade mínima de condenação. Não se exige, de pronto, a certeza moral quanto à ocorrência do fato, da autoria e da culpabilidade”. Aliás, João Mendes Jr. (O processo criminal..., v. 2, p. 170) já pontificava que, “quando o juiz não tenha pleno conhecimento do delito ou indícios veementes de quem seja o delinquente, declarará nos autos que não julga procedente a queixa ou denúncia”. 43. Há, contudo, respeitável posição em contrário, considerando que, também quanto à mate­ rialidade delitiva, bastaria a probabilidade - e não a certeza - da existência do crime. Para Scarance Fernandes (A reação defensiva..., p. 33), “não basta a descrição típica, devendo a imputação estar lastreada em prova razoável da existência de crime e em suficientes indi-;

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Há, ainda, quem exija mais, no que toca ao conteúdo da justa causa. Para Afrânio Silvajardim, a ação sú é viável quando a acusação não é temerária, por estar baseada em um mínimo de prova; “Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo esse conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal.”®® De qualquer forma, ainda que não baja consenso sobre o que se entende por justa causa para a ação penal, parece predominar o entendimento de que, para o início da ação penal, é necessário que baja prova da materialidade delitiva. Isto é, a certeza da ocorrência de um fato da natureza que se subsuma a um determinado tipo penal. Nem poderia ser diferente; se não se tem certeza nem mesmo de que existiu o crime, como imputar a alguém a prática de algo que é fruto da mera imaginação ou fantasia? No caso dos crimes que deixam vestígios, não seria o caso de se exigir que tal prova se desse pelo exame de corpo de delito, nos termos do art. 159 do CPP, que somente é im­ prescindível no momento da sentença. Assim, a comprovação da materialidade delitiva, para fins de caracterização dajusta causa para a ação penal, poderia ocorrer por qualquer outro meio de prova válido, que desse ao julgador a certeza da ocorrência de um crime.®’ cios de autoria”. No mesmo sentido, Frederico Marques (Elem entos..., v. 1, p. 133) afirma que, enquanto para o início da investigação basta a noticia criminis, para que a acusação tenha fundamento é suficiente a opinio delicti do representante do Ministério Público, isto é, “possibilidade de existência de crime”. Por sua vez, o corpus delicti ou corpus criminis, com a “adequação típica comprovada”, somente seria exigível para a prisão em flagrante delito, para a prisão preventiva e para a pronúncia. Em obra posterior, Frederico Marques (Tratado..., v. 2, p. 74) afirma que ajusta causa se identifica com a imputação razoável, que “é auferida em razão da provável existência do crime e respectiva autoria”. Todavia, em outra passagem (ib., p. 75), entende que para o juízo de recebimento da denúncia “será suficiente uma convicção provisória sobre a existência do crime e indícios de autoria”. As assertivas são contraditórias. Ora, ainda que qualificada como provisória, se hã convicção sobre a existência do crime, é porque o juiz estã convencido de que o delito existiu. Não se trata de probabilidade, mas de certeza de que o crime existiu, ainda que uma certeza provisória, segundo os elementos de informação colhidos no inquérito. Obviamente, depois da instrução, a conclusão poderã ser alterada, posto que o recebimento da denúncia é uma “decisão segundo o estado do processo”. 44. Silvajardim, Ação penal..., p. 42. No mesmo sentido: Maria Thereza Moura. Justa causa..., p. 243, É discutível na jurisprudência a necessidade de elementos mínimos de provas quanto à antijuridicidade. Admitindo o trancamento da ação, por falta de prova da justa causa: STJ, RSTJ 47/478, RT 716/502. Em sentido contrãrio: STJ, RT 739/555. 45. Em determinados casos, a própria natureza do delito exige que se tenha uma prova segura da ocorrência do crime, razão pela qual o legislador, expressamente, determina o meio de prova pelo qual se poderã comprovar a materialidade delitiva, jã no momento inicial do processo, Nos crimes contra a propriedade imaterial, exige-se a apreensão dos produtos " contrafeitos e a elaboração de um laudo pericial, que deverã ser homologado judicialmente, comprovando a violação do direito de propriedade (art. 525 do CPP). Nos crimes de drogas, para a caracterização da justa causa, no que diz respeito à prova da materialidade delitiva,

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Por exemplo, o depoimento do médico que atendeu a vítima de um crime de lesão corporal grave.®« Por fim, é de ressaltar que não há consenso doutrinário sobre o enquadramento da justa causa entre as condições da açáo. Uns a consideram integrante do interesse de agir;®' outros, da possibilidade juridica do pedido.®« Há, também, aqueles que a defi­ nem como uma condição da ação autônoma.®“ Não faltam, ainda, aqueles que negam a utilidade da transposição para o campo penal, do conceito processual civilístico de condições da ação.™ A nova redação do art. 395 do CPP, dada pela Lei n« 11.719/2008, ao distinguir, no inciso II, as “condições para o exercício da açào penal”, e no inciso III, a “justa causa para o exercício da ação penal”, parece tê-la considerado um fenômeno distinto das condições da ação penal, que nâo se enquadraria nem no interesse de agir, nem seria uma “quarta” condição da açáo penal.

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haverá o chamado “laudo de constatação” (Lei n° 11.343/2006, arc 50, § 1°). Finalmente, a Lei de Imprensa exigia que, nos crimes contra a honra, a denúncia ou a queixa deveria estar instruída com o exemplar do jornal, caso o crime tivesse ocorrido por meio de jornal; ou com a notificação feita à empresa de rádio ou agência de noticia, para que nâo se destmissem os textos ou gravações do programa era que tivesse sido cometida a infração penal (Lei n° 5.250/1967, art. 43, caput). Ora, não haveria nenhuma razão lógica ou jurídica para uma distinção no sentido de que somente para estes crimes - contra propriedade imaterial, droga e de imprensa - se exigisse a certeza da existência do crime, mediante prova cabal da mate­ rialidade delitiva, enquanto para os demais delitos bastaria que a denúncia estivesse instruída com elementos de informação que indicassem haver apenas a probabilidade da existência de um crime. Não há diferença quantitativa quanto ao grau de convencimento exigido. Em relação a qualquer delito deve haver prova da materialidade delitiva. As regras especiais lembradas apenas decorrem do fato de que, para certos crimes, em razão de peculiaridades em seu cometimento, a demonstração da materialidade delitiva exige um especial meio de prova, para conferir maior segurança de que se está, efetivamente, diante de uma denúncia ou queixa por um fato que, efetivamente, caracteriza um crime, e não um indiferente penal. Embora não se tratasse especificamente de exame de corpo de delito, o STF decidiu que “A prova pericial deverá servir de base à sentença, o que não se aplica ao recebimento da denúncia” (STF, HC n° 8 4 .3 0 l/SP), Para Frederico Marques (Elementos... v. 2, p. 167) ajusta causa se identifica com o fumus boni iuris, que caracteriza o “legítimo interesse” para a denúncia. Há, pois identificação da justa causa com o interesse de agir. No mesmo sentido: Tourinho Filho, Processo penal, v. 1, p. 534; Tucci, Teoria..., p. 95. Em sentido contrário. Grinover (As condições..., 1977, p. 119) nega tal posição, considerando que “identificar o interesse de agir com o fumus boni iuris significa, em última análise, que o juiz deveria avaliar a possibilidade de que exista o direito subjetivo que o autor alegou” o que configuraria matéria atinente ao mérito. Grinover, As condições..., 2007, p. 189. Para Silva Jardim (Açõo penal..., p. 41), ajusta causa é uma condição da açào autônoma, isto é, uma quarta condição da ação, distinta da possibilidade jurídica, do interesse de agir e da legitimidade de partes. Maria Thereza Moura (Justa causa..., p. 215) nega a utilidade de se transferir para o processo penal o conceito de condições da ação da doutrina processual civil, preferindo resolver a viabilidade da ação penal por meio do conceito próprio de justa causa.

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De qualquer forma, do ponto de vista prático, basta concluir que, se não bouver indícios suficientes de autoria e prova da materialidade delitiva, a ação penal não será viável, e a denúncia ou queixa deverá ser rejeitada nos termos do disposto no art. 395, 111, do CPP. Assim sendo, a denúncia ou queixa deverá ser liminarmente rejeitada se faltar uma das condições para a ação penal (CPP, art. 395, II, segunda parte), ou se esta for destituída de justa causa, (CPP, art. 395, III). Procurando definir tais conceitos, a de­ núncia ou queixa deverá ser rejeitada se: (1) não descrever um fato aparentemente típico, (2) ou se já estiver extinta a punibilidade, (3) ou se quem as ofertar não tiver legitimidade para tanto, ou (4) não bouver prova da existência do crime imputado ou indícios de autoria da prática delitiva.

4.2.5 Carência da ação: distinção entre condições da ação e mérito O autor será carecedor da ação quando não estiver presente qualquer das con­ dições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade de partes. Em tal caso, o juiz não julgará o mérito, sendo proferida apenas uma sentença terminativa (CPC, art. 267, VI). A sentença de carência de ação (terminativa) nâo faz coisa julgada material, podendo ser proposta demanda idêntica (CPC, art. 268).’* No Código de Processo Penal não bá artigo semelhante ao art. 267 do CPC. O art. 395, caput, do CPP prevê a rejeição liminar da denúncia ou queixa quando faltar “condição para o exercício da ação penal” (inciso II) ou “justa causa para a ação pe­ nal (inciso III), sem definir, contudo, que elementos comporiam tais hipóteses.” Em princípio, trata-se de previsão de extinção liminar do processo, isto é, tão logo o juiz apreciar a denúncia ou queixa, após seu oferecimento. 51. Regime parcialmente diverso foi adotado pelo Novo CPC. O art. 484, caput, em regra que lembra o art. 268 atual, estabelece que: “Art. 484. O pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação”. Todavia, o i 1.“ do mesmo artigo, prevê que: “No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos l, ly VI e VII do art. 483, a propositura da nova ação depende da correção do vicio que levou à extinção do processo sem resolução do mérito”. Ou seja, se o processo for extinto sem resolução do mérito, por falta de interesse de agir ou legitimidade processual (art. 483, VI), a propositura de nova açâo depende da“correção do vício”. Ou seja, a nova ação nâo poderá ser proposta pela mesma parte ilegítima, ou sem que tenha surgido a situação caracterizadora do interesse de agir. Embora o novo código não reconheça explicitamente que a decisão que extingue o processo por falta de “condições da ação” fará coisa julgada material, confere-se um grau de estabilidade maior a tal decisão, impedindo que idêntica ação - ainda contendo o vício já reconhecido - seja proposta. Aliás, regra semelhante era prevista no revogado art. 43, parágrafo ünico, do CPP, revogado pela Lei 11.719/2008, que previa: “Parágrafo único. Nos casos do no III, a rejeição da denúncia ou queixa não obstarã ' ao exercício da açâo penal, desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a condição". 52-. O art. 43 do CPP, revogado pela Lei n° 11.719/2008, previa, em seu caput, que a denúncia ou queixa seriam rejeitadas quando “o fato narrado evidentemente nâo constituir crime” (inciso I), ou se houvesse “extinção da punibilidade" (inciso 11) ou, ainda, no caso de '“manifesta ilegitimidade de parte” (inciso III).

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Quanto ao momento e à formadedecretação da carência da ação, a teoria tradicional posiciona-se no sentido de que podeser proferida sentença de carência de ação a qualquer momento, até mesmo na fase decisória, desde que se verifique a ausência de uma das condições da ação. Provado que a condição da ação não está presente, mesmo após toda a fase instrutória, o juiz não julgará o mérito, declarando o autor carecedor da ação.” De outro lado, para os adeptos da teoria da asserção ou teoria da prospettazionef'* o exame das condições da ação deve ser feito in statu assertionisf^ tomando-se por verdadeiras as afirmações feitas na petição inicial, justamente para distinguir as questões que constituem as condições da ação, daquelas relativas ao mérito, afirma-se que o exame das condições da ação deve ser realizado segundo o afirmado na petição inicial.’* Isto é, o juiz deve, por hipótese, tomar como verdadeiros os fatos narrados na denúncia ou queixa, para apreciar a viabilidade da ação, e impedir que processos inúteis e inviáveis se desenvolvam.’®As condições da ação têm, portanto, uma clara função de bltro processual.’® 53. Nesse sentido, posicionam-se: Liebman, Manual..., v. 1, p. 154; Dinamarco, Instituições..., V . 2, p. 323; Greco Filho, Direito..., v . 1, p. 8 8 . 54. De destacar que a teoria da prospeltazione foi negada por Liebman, Manual..., v. 1, p. 154. Atualmente, um veemente “repúdio à teoria da asserção” é formulado por Dinamarco, Instituições..., v. 2, p. 323. 55. Nesse sentido, na doutrina nacional: Machado Guimarães, Carência da ação..., p. 103 e s., Barbosa Moreira, Legitimidade para agir..., p. 200-201; Tomaghi, Comentários ao Código de Processo Civil... v. 1, p. 99; Watanabe, Da cognição..., p. 97 e ss.; Armelin, Legitimidade para agir.., p. 83; Bedaque, Direito e processo..., p. 77. A teoria da asserção também encontra signi­ ficativa acolhida na doutrina estrangeira: Costa, A legitimidade..., p. 32-34; Verde, Profili..., p. 130; Mardrioli, Corso..., v. 1, p. 55; Fazzalari, Note in tema..., p. 160; Proto Písani, Lezioni..., p. 219. Na doutrina processual penal brasileira, a teoria da asserção encontra acolhida em: Tomaghi, Relação processual..., p. 251; Batista, O saneamento..., p. 119. Também Silvajardim (Ação penal..., p. 37-40) adota, expressamente, a teoria da asserção, embora acrescentando às três condições clássicas da ação uma quarta condição, a justa causa. Destaque-se a posição de Grinover que, em um primeiro posicionamento repudiava, expressamente, tal teoria; “não acolhemos a teoria da prospettazione: as condições da ação não resultam da simples alegação do autor, mas da verdadeira situação trazida a julgamento" (As condições..., 1977, p. 126), mas, recentemente, mudando de ponto de vista, passou a acolhê-la, expressamente: “Hoje, a teoria a apresentação é francamente ritoriosa... os discípulos diretos de Leibman abandonaram a lição do Mestre, para aderirem â ‘prosptettazione’ (Tarzia, Ricci). E realmente a teoria da apresentação é a que melhor serve para extremar as condições da ação do mérito da causa” (Grinover, As condições..., 2007, p. 182-183). No processo penal, a teoria da prospettazione é expressamente negada por Maria Thereza Moura, justa causa..., p. 257, nota 79. 56. Barbosa Moreira (Legitimidade para agir..., p. 200) explica que o juiz “deve raciocinar como quem admita, por hipótese, e em caráter provisório, a verdade da narrativa, deixando para a ocasião própria (o juízo de mérito) a respectiva apuração, ante os elementos de convicção ministrados pela atividade instrutória”. 57. Analisando as condições da ação, Bedaque (Efetividade do processo..., p. 240) explica que, “para evitar o desenvolvimento de processo inútil, o juiz deve ir à relação juridica afirmada pelo autor e examiná-la, macroscopicamente - ou seja, em tese”. 58. Observa Bedaque (E/etividadedoprocesso..., p. 258) que “a compreensão da técnica representada pelas condições da ação possibilita que, verificada a ausência de uma delas, o processo seja

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Para a teoria da asserção, a análise das condições da ação é feita a partir de uma cognição superficial de elementos narrados na petição inicial e que, posteriormente, constituirão o mérito do processo. Iniciada a fase instrutõria, caso se descubra que tais fatos (cuja afirmação fez com que o juiz entendesse que as condições da ação es­ tavam presentes, determinando o prosseguimento do processo) não se verificaram, o juiz deverá julgar o mérito, com a improcedência do pedido, pois já se passou a uma análise profunda do mérito. Esse “método” permite distinguir as condições da ação e 0 mérito pode, com alguma adaptação, ser transposto para o processo penal. Inicialmente, é de observar que, no processo penal, a necessidade de distinguiras situações de carência da ação, das de julgamento de mérito improcedente, se restringe à questão da tipicidade e da legitimidade passiva.™ Por outro lado, para ambos os temas, bá que se acrescer outra diferença específica do processo penal: a exigência de justa causa para a ação penal. Ou seja, a “condição da ação" relativa à tipicidade em abstrato da conduta guarda relação com a exigência de que haja prova da m ateriali­ dade delitiva. Por outro lado, a condição referente à legitimatio ad causam passiva diz respeito, diretamente, aos indícios suficientes de autoria. Em outras palavras, ainda que se procure analisar a tipicidade e a autoria delitiva, na ótica exclusiva das condições da ação, com base apenas no que foi asserido na de­ núncia ou queixa e, portanto, aplicando a teoria da asserção em sua pureza doutrinária, mesmo assim o recebimento da acusação também dependerá da análise da existência de um suporte probatório mínimo sobre os fatos afirmados na peça acusatória. Nesses casos, para aqueles que consideram que ajusta causa para a ação penal se distingue das condições da ação penal, seria possível, como que em uma experiência de laboratório, separar e isolar, in viíro, a possibilidade juridica do pedido (no que toca atipicidade aparente) e a legitimidade de parte passiva, analisando-as, apenas, in statu assertíonis. No entanto, para o ato de recebimento da denúncia, deveria baver a análise não apenas das condições da ação, tendo por base os fatos tais quais afirmados, mas também dos elementos de informação coibidos no inquérito policial que permitiam concluir pela ocorrência da justa causa para a ação penal. Diante de tais dificuldades, como resolver, entáo, o problema da tipicidade, no que toca ao seu enquadramento como condição da ação ou como mérito? A res­ posta está, segundo a teoria da asserção, no grau da cognição realizada pelo juiz.™ extinto o quanto antes - o que atende ao principio da economia processual. Se a sentença de mérito é inadmissível, melhor impedir o desenvolvimento inútil da atividade jurisdicional". 59. No que toca ao interesse de agir. diante da regra geral da obrigatoriedade da ação penal, a necessidade de distinção entre condições da ação e mérito mostra-se destituída de maior interesse, sendo raríssiraas, para nâo se dizer inexistentes, as situações de potencial con­ fusão. De forma semelhante, no que toca ã legitimidade ativa, o problema será resolvido, segundo regras expressas que confiram a legitimação ao Ministério Público ou à vítima, sendo improvável ou, quiçá, impossível, qualquer confusão. Como explica Bedaque (Efetividade do processo..., p. 252) “para não confundir condições da ação com o mérito, carência com improcedência, propõe a doutrina critério fundado

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Segundo a profundidade da cognição, a tipicidade pode dizer respeito às condições da ação (tipicidade aparente, segundo o afirmado na denúncia ou queixa) ou mérito (comprovação, após a instrução, dos fatos constitutivos do tipo penal). A distinção se torna ainda mais clara, ao se comparar o revogado art. 43 do CPP, que tratava da rejeição da denúncia, com os casos de absolvição do art. 386 do CPP. 0 inciso l do art. 43 previa que a denúncia ou queixa deveria ser rejeitada quando “o fato narrado evidentemente não constituir crime”.Já o art. 386, III, prevê que o acusado deverá ser absolvido quando “não constituir o fato infração penal”. Como se percebe facilmente, a atipicidade prim a fa c ie, apenas com base no que foi afirmado na denúncia, leva à carência da ação, com a conseqüente rejeição da denúncia, já a análise aprofundada da ocorrência de um fato típico, depois da fase instrutória, é questão de mérito, que acarreta a absolvição.*' Ou seja, a mesma matéria, no caso a tipicidade (ou melhor: a atipicidade), poderá levar a juízos e conseqüências distintas: apreciada em cognição superficial, logo após o oferecimento da denúncia, acarretará a sua rejeição, por carência da ação (CPP, art. 395, II); se depois da instrução, com base em todas as provas produzidas, acarretará a absolvição (CPP, art. 386, caput, III). A reforma de 2008 do CPP ainda criou uma situação intermediária, se a atipicidade for constatada depois da resposta, mediante cognição profunda, provada documentalmente, implicará julgamento do mérito, com a absolvição sumária do acusado (CPP, art. 397, III). A cognição, na análise das condições da ação é superficial, com base no que foi afirmado na peça inicial, e no

na profundidade da cognição, que, como veremos, não é suficiente para solucionar os problemas relacionados ao tema, mas auxilia, sobremaneira, o intérprete a evitar confusões entre planos considerados diversos pelo legislador brasileiro". No processo penal, referida teoria também não pode ser considerada como apta a fornecer um cri­ tério infalível ou indefectível de distinção entre condições da ação e mérito, tendo em vista a necessidade de, no limiar da ação penal, se fazer uma análise “probatória", em algum grau, diante da exigência de justa causa para a ação penal. Todavia, assim como no processo civil, trata-se de um critério, senão absoluto, ao menos bastante seguro para tais distinções. 61. Em sentido contrário, posicionava-se Grinover (As condições..., 1977, p. 69); “1...1 a ti­ picidade é evidentemente matéria de mérito: representa, para o processo penal, a causa petendi", pelo que estaria desvinculada da matéria relativa ao processo (condições da ação). No entanto, em estudo recente (As condições..., 2007, p. 188), altera seu posicionamento: “A hipótese do inciso I do an. 43 do CPP - não constituir o fato narrado, evidentemente, crime realmente, nâo dá margem a dúvidas, em face da teoria da apresentação: mas o caso é de impossibilidade jurídica (negativa), pois o ordenamento só permite a acusação se esta se propõe a demonstrar a existência de um fato delituoso. Sem a evidente presença da tipicidade do fato narrado, haverá impossibilidade jurídica - mas aqui, mais uma vez, não do pedido mas da causa de pedir". Embora não se declare adepto da teoria da asserção, parece que o mesmo fundamento é que leva Coutinbo (.A lide..., p. 150) a distinguir a tipi­ cidade aparente, como condição da ação, e a tipicidade [efetivamente comprovada] como mérito: “uma coisa, portanto, é o autor demonstrar que os fatos narrados na imputação tém, na aparência, credibilidade suficiente para serem considerados típicos, algo tão somente comprovávcl no curso do processo; outra, é a comprovação efetiva”.

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exame do mérito é aprofundada, com base nos elementos probatórios coibidos ao longo da instrução.*® A questão, contudo, não é tão simples. Mesmo no âmbito processual civil, bã quem negue que a impossibilidade jurídica do pedido seja distinta do julgamento do mérito de improcedência. Ou seja, o juiz, ainda que no limiar da ação, e mesmo que com base em uma cognição superficial, ao considerar o pedido juridicamente impossível, estaria, em verdade, julgando o mérito improcedente,*® ainda que prím a facie ou de forma “macroscópica”. Não há por que negar a aplicação de tais ideias ao processo penal.*® No caso em que se constata a atipicidade dos fatos narrados na denúncia ou queixa, considerando-os.

62. Seja toda a prova produzida, ao longo da instrução, no caso de uma sentença ao final do processo, sejam os elementos de informação produzidos no inquérito policial e as provas juntadas com a resposta escrita, no caso da absolvição sumãria. 63. Antes mesmo do CPC de 1973, Galendo Lacerda (Despacho..., p. 85) já afirmava que, “se o autor pede divórcio a vínculo, ou pagamento de dívida de jogo, terá o seu pedido rejeitado por impossibilidade jurídica. O juiz, inegavelmente, julga o mérito do pedido”. No mesmo sentido, modernamente, cf.: Bedaque, Efetividade do processo..., p. 261. 64. Interessante notar que, hã tempo, a mesma posição é defendida por Grinover (As condições..., 1977, p. 70-71); “[...) ainda que declarada por ocasião da denúncia ou queixa, ocasionando a sua rejeição (art. 4 3 ,1, CPP), a falta de tipicidade não deixará de configurar sentença de mérito: aliás, o parágrafo ünico do art. 43 possibilita novo exercício do direito de ação, única e exclusivamente na hipótese do inciso lU, do mesmo dispositivo. Não se refere, o parágrafo único, ao item I do artigo, demonstrando que a rejeição da denúncia ou queixa, por atipicidade dos fatos narrados, predui a via judiciária e impossibilita novo exercício do direito de ação, porque a lide jã foi solucionada pelo mérito”. No mesmo sentido, po­ siciona-se Silveira (O interesse de agir.., p. 124); “(...] em verdade, a decisão tomada nos termos do art. 43,1, do Código de Processo Penal, ainda que ocorra por ocasião do juízo de admissibilidade da acusação, pode, ainda que nem sempre, equivaler a uma decisão de mérito.... Quando o juiz conclui que o fato narrado evidentemente não é crime - seja pela falta de conduta, tipicidade, ilicitude ou censurabilidade - , tem-se uma decisão de mérito, que versa sobre a própria inexistência do crime”. Com alguma variação, embora tratando do ato de arquivamento do inquérito policial, Coutinho (A natureza cautelar..., p. 56) defende que, “quando o ato referido reconhecer que, sem dúvida razoável, o fato não é típico, ou que o fato é inexistente (a questão acaba sendo sempre tratada era razão do art. 43, I, do CPP), ou que está extinta a punibilidade, não estaremos diante de uma verdadeira decisão de arquivamento, mas sim de uma decisão de mérito, que passa em julgado materialmente, impedindo o desarquivamento, seja como conclusão de processo acautelar (quando o MP requer o arquivamento), seja como julgamento antecipado de processo de conhecimento, se oferecida a denúncia ou queixa”. Também, hã muito, Breda (Notas..., p. 57) afirma que, “no processo penal, com muito maior razão, a possibilidade juridica do pedido tem íntima relação com o mérito. Assim, se o juiz rejeita a denúncia, porque o fato narrado não constitui crime, decide o mérito”. Embora negando que se trate de questão ligada à possibilidade ju ­ rídica do pedido, substancialmente, o mesmo ponto de vista é defendido por Maria Thereza Moura (Justa causa..., p. 257); “o ato decisório que recusa a denúncia ou queixa porque o fato não existiu ou porque, evidentemente, não constitui crime (art. 4 3 , 1, CPP) é, era sua essência, de mérito, porquanto ainda que verdadeira a imputação, o fato será indiferente ao Direito Penal. Se recebida, patente estará a falta de justa causa, possibilitando o trancamento

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ainda que por hipótese, como verdadeiros, haverá julgamento de mérito, por atipici­ dade dos fatos imputados.«’ Pouco importa que o juiz o reconheça, logo no início, ao rejeitar a denúncia, por “impossibilidadejurídica do pedido” (CPP, art. 395, II, segunda parte), ou o faça depois da resposta do acusado, absolvendo-o sumariamente (CPP, art. 397, III). O mesmo se diga, se tal decisão decorre de concessão de habeas corpus para “trancar a ação penal”. Em todos estes casos, o que menos importa é o momento procedimental em que se constatou a atipicidade.«« Sempre haverájulgamento de mé­ rito, seja primcz/acie (CPP, art. 395), seja antecipadamente (CPP, art. 397), seja ao final do processo (CPP, art. 386). Em todas elas haverá coisa julgada material, impedindo a repropositura de ação penal idêntica, posto que o tema terá sido definitivamente decidido pelo Poderjudiciário.«' Com as devidas adaptações, o mesmo raciocínio vale para a punibilidade, que pode ser apreciada como “condição da ação” e como “mérito”. Antes, porém, é ne­ cessário um esclarecimento sobre a consideração da extinção da punibilidade como “mérito”. No processo penal, ao lado das sentenças terminativas e das sentenças de mérito, no caso, que condenam ou absolvem o acusado (sentença definitiva em sentido estrito), existem as também sentenças definitivas em sentido lato, isto é, sentenças que decidem sobre o direito de punir estatal debatido em juízo, embora sem absolver ou condenar o acusado. A sentença que julga extinta a punibilidade declara a inexis­ tência do direito de punir, sendo uma sentença de mérito, ou seja, definitiva, mas não em sentido estrito, posto que não julga a imputação, absolvendo ou condenando o acusado.«® Somente neste último sentido se cogita da consideração da “extinção da punibilidade” com “decisão quanto ao mérito”.

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da ação penal. [..,| Há hipótese de verdadeira antecipação do julgamento do mérito [...] E, como tal, tem força de coisa julgada formal e material, adquirindo autoridade absoluta”. Do ponto de vista da profundidade da cognição, mesmo tralando-se de um exame super­ ficial, o reconhecimento da “atipicidade", no início do processo, pode ser considerado ura verdadeiro julgamento do mérito, por náo haver controvérsia fática. Nesse sentido, no processo civil, considerando irrelevante o momento procedimental em que é proferida a sentença, posto que, ao reconhecer a “impossibilidadejurídica do pedido", se estará julgando o mérito improcedente, cf.: Furtado, Fabrício. Extinção do processo..., p. 17; Bedaque, Efetividade do processo..., p. 265, nota 68. Nesse sentido, para o processo civil, considerando que a sentença que reconhece a im­ possibilidade jurídica do pedido se sujeita â coisa julgada material, cf.: Furtado Fabrício, Extinção do processo..., p. 26; Bedaque, Efetividade do processo..., p. 277. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho; Scarance Fernandes. Recursos..-, p54. Parte da doutrina denomina a sentença que declara a extinção da punibilidade de sentença terminativa de mérito (cf.: Frederico Marques, Elementos. .. v. 3, p. 42; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 247; Mirabete, Processo penal, p. 423). Tal definição, contudo, representa uma contradictio in terminis. As sentenças que julgam o mérito, por definirem a relação de direito material posta em juízo, são denominadas sentenças definitivas. Já as sentenças que, em decorrência da falta de uma das condições da ação ou de algum pressuposto processual, extinguem o processo sem julgamento do mérito são chamadas sentenças terminativas. Portanto, uma sentença nâo pode ser terminativa de mérito: ou a

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Se, pela leitura da denúncia ou queixa, se verifica, de plano, que já ocorreu a extinção da punibilidade (por exemplo, denúncia oferecida 30 anos após a prática do fato, ou queixa oferecida um ano após o fato, ou tendo por objeto delito em relação ao qual ocorreu a abolitio criminis), o juiz, de plano, rejeita a denúncia. Por outro lado, pode ocorrer que, somente diante da produção de provas juntadas com a resposta, se verifique a ocorrência da causa extintiva da punibilidade.*® Assim, por exemplo, se somente com a defesa o acusado junta aos autos certidão de nascimento, comprovando que, à época do fato, era menor de 21 anos e, diante da redução do prazo prescricional pela metade (CP, art. 115) está extinta a punibilidade, o juiz deverá, a teor do art. 397, IV, “absolver sumariamente” o acusado.™ Finalmente, pode ser que a causa extintiva da punibilidade apenas ocorra ao final do processo. Assim, por exemplo, somente ao final da audiência de instrução e julgamento, nos debates orais, o querelante deixa de formular pedido condenatório, operando-se a perempção (CPP, art. 60, III), Ou seja, a extinção da punibilidade poderá ser constatada de plano, in statu assertionis, ou poderá depender de análise probatória.’ ' No primeiro caso, leva à rejeição da denúncia; no segundo, a uma decisão de “absolvição sumária” ou de extinção da punibilidade, que caracteriza uma sentença de mérito em sentido lato. De qualquer forma, semelhante ao que ocorre com o reconhecimento da “im­ possibilidade jurídica do pedido”, por atipicidade, em tese, da conduta narrada na denúncia ou queixa, o reconhecimento da extinção da punibilidade, ainda que liminar, no momento de rejeição da denúncia ou queixa, implica julgamento do mérito, ainda sentença julga o mérito, e, portanto, é definitiva, ou a sentença não julga o mérito, sendo uma sentença apenas terminativa. 69. Substancialmente coincidente parece ser o raciocínio de Aury Lopesjr. (Direito..., v. 1, p. 339) que, a despeito da revogação do art. 43, II, do CPP, e da inclusão da extinção da punibilidade como causa de absolvição sumária (CPP, art, 397, IV), reconhece: “[...] isso não significa que tenha deixado de ser uma condição da ação processual penal ou que somente possa ser reconhecida pela via da absolvição sumária [...] a denúncia ou queixa deverá ser rejeitada ou o réu absolvido sumariamente, conforme o momento em que seja reconhecida”. 70. Para uma critica do enquadramento da “extinção da punibilidade”, como causa de absolvição sumária, cf., supra, cap. 13, item 13.3.3. 71. Acredita-se, inclusive, que tal ponto de vista não é incompatível com a posição daqueles que consideram como condição da ação a punibilidade concreta da conduta, a teor do revogado inciso II do art. 43 do CPP. Nesse sentido: Breda, Efeitos da declaração..., p. 177; Coutinbo, A lide..., p. 148; Nunes da Silveira, A tipicidade..., p. 56-57; Aury Lopes Júnior, Direito..., v. 1, p. 351. Como explica Nunes da Silveira (O interesse de agir..., p, 126): “aqui, o adjetivo ‘concreta’ marca a distinção em relação à chamada punibilidade abstra­ ta, que decorre simplesmente da previsão legal de uma sanção à prática de um fato-tipo previsto como crime, em abstrato. À efetiva realização de tal fato-tipo, nasce ao Estado a possibilidade de punir o agente, isto é, em relação ao fato-tipo concreto, apresenta-se a punibilidade concreta”. Não se trata, portanto, de uma punibilidade concretamente acertada e verificada, após atividade instrutória. A condição da ação exige que não seja possível, de plano, constatar que a punibilidade concreta está extinta. Então, neste caso, para fazer um paralelo com a tipicidade, trata-se, sob este outro enfoque, de uma puni­ bilidade concreta “aparente".

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que em sentido lato. e, mesmo que realizado prima fa d e , encontra-se acobertado pela coisa julgada material.™

4,3 Classificação da ação penal 4.3.1 Classificação quanto à forma de tutela jurisdicional pleiteada Normalmente, a doutrina costuma classificar a ação ou o processo em ações de conhecimento, executivas ou cautelares. Da mesma forma, fala-se em processo de conhecimento, executivo ou cautelar. Tais conceitos, contudo, não parecem perfei­ tamente corretos. A ação, enquanto direito ou poder de pedir ao Estado a prestação jurisdicional, não comporta tais qualificativos. Da mesma forma, o processo, enquanto instrumento para a obtenção da prestação jurisdicional, também nâo possui, em si mesmo, peculiaridades que permitam esta classificação. A especificidade está na tutela jurisdicional que será prestada, e não na ação ou no processo. Por isto, a classificação deve ter por objeto a tutela jurisdicional e não a ação ou o procedimento. A tutela ju ­ risdicional é que será tutela de conhecimento, executiva ou cautelar. Também é correto usar a classificação para as pretensões, pois estas são pretensões de tutela jurisdicional. No processo civil, a tutela jurisdicional costuma ser classificada em tutela de co­ nhecimento, executiva e cautelar. A tutela de conhecimento, por sua vez. se subdivide em meramente declaratõria, condenatória e constitutiva. No processo penal, embora a forma de tutela jurisdicional mais comum seja a condenatória, não se pode esquecer que também existem outros tipos de tutela juris­ dicional: a tutela meramente declaratõria e a tutela constitutiva. A tutela meramente declaratõria presta-se a eliminar uma dúvida objetiva, afas­ tando assim uma crise de certeza sobre a existência ou a inexistência de uma relação jurídica. Comumente, afirma-se que, no processo penal, são hipóteses de tutela de conhecimento meramente declaratórias; o habeas corpus preventivo, no qualo pedido é a declaração da existência de uma ameaça à liberdade de locomoção, e a extradição passiva, na qual se pede a declaração da existência das condições necessárias para tanto. Como exemplo de tutela constitutiva, sempre é lembrado o caso da revisão criminal. Reconhecido o caráter jurisdicional da execução penal, possível falar em tutela executiva penal. Aliás, no processo penal, a tutela executiva realiza-se em um duplo sentido. De um lado, trata-se de tutela do direito de punir do Estado. Haverá a realização prática de tal direito pela via jurisdicional. No entanto, também a jurisdicionalização da execução penal representa uma garantia para o próprio condenado, que passa | ser um sujeito de direitos na execução penal, e não um mero objeto submetido a uiç castigo. Durante a execução da pena deverão ser respeitados o devido processo legal? 0 contraditório e a ampla defesa, a publicidade e a motivação das decisões judiciaiSj enfim, deverá ser obedecido o justo processo. 72. No sentido de que a sentença de extinção da punibilidade faz coisa julgada material, ci Greco Filho, Manual. ., p. 322; Maria Thereza Moura, justa causa..., p. 256-257.

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Todavia, é de observar que o processo de execução normalmente começa ex officio, não bavendo, pois, ação de jexecução penal. No caso de pena privativa de liberdade, é 0 juiz quem determina a expedição da guia de recolhimento para a execução (LEP, art. 105). Sendo aplicada pena restritiva de direitos, “o juiz da execução, de ofício ou a re­ querimento do Ministério Público, promoverá a execução” (LEP, art. 147). Na prática, contudo, o processo se inicia de ofício, sendo raríssimos, para não se dizer inexistentes, os casos em que o Ministério Público exerce o direito de ação para a execução de pena restritiva de direitos. Por fim, no caso de pena de multa, em que a execução não podia ser instaurada ex officio, por força do disposto no art. 164 da LEP, que prevê a necessida­ de de requerimento do Ministério Público, a situação se alterou com a edição da Lei n° 9.268/1996, que trouxe profunda mudança na disciplina legal da multa penal. A nova redação do art. 51 do Código Penal dispõe que: “transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será convertida em dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas de legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas daprescrição". A mudança legislativa suscitou uma séiie de dúvidas, para saber quem é o órgão jurisdicional competente para esta execuí^d é quem tem legitimidade ativa para a execução da multa penal. A jurisprudência dividiu-se em duas correntes sobre a legitimidade e a competência para a execução da pena de multa. De um lado, aqueles que entendem que prevalece a natureza penal àajinulta, e, embora a execução penal siga o rito da Lei n° 6.830/1980, a legitimidade pára sua propositura é do Ministério Público e a execução será da competência da das execuções criminais. De outro lado, tem prevalecido na doutrina a tese de quea legitimidade para promover a execução é dos procuradores da Fazenda Pública, ssudo competente o juízo das execuções fiscais, o que implica o reconhecimento da nsEidstcncia de uma verdadeira ação penal de execução da pena de multa.®® Aexistência de uma tutela cautelar, ao lado da tutela de conhecimento e da tutela exçGutíva, não é exclusividade do processo civil. Hã também no processo penal, formas ae tutela cautelar. No entanto, diversamente do campo civil, na seara penal tal tutela ®0;éprestada por meio de um verdadeiro processo autônomo em relação ao processo ffifficipal, e que se inicia pelo exercício de uma ação penal cautelar. Frederico Marques adverte que: nulidade insanável/imutável/improrrogável (In)competência relativa > nulidade sanável/prorrogável

Prorrogação da com petência: conceito e espécies

M odificação da esfera concreta de competência de um juiz

Incidente de deslocamento da competência em caso de violação de direitos humanos

Evitam decisões conflitantes Economia processual Asseguram reconstrução mais fiel dos fatos

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Processo Penal

Conexão

Continência

Efeitos da conexão e da continência Mudança de competência » > julgamento conjunto de crimes relacionados entre si

\ Evitam decisões conflitantes Economia processual Asseguram reconstrução mais fiel dos fatos

D o s c r it é r io s d e d e fin iç ã o d o fo r o p r e v a le c e n t e

Artigo 78, CPP Foro prevalecente (em regra)

Inciso |úri X Órgão de jurisdição comum

Júri

lurisdições da mesma categoria

a) local da infração de pena de natureza mais grave; b) local em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade; c) conforme a prevenção

III

Jurisdições de diversas categorias

A de maior graduação

IV

Jurisdição comum x Jurisdição especial

Jurisdição Especial

1 II

Competência D e s a fo ra m e n to

I Fator de prorrogação da competência territorial

Ato judicial processo submetido ao conhecim ento de foro estranho ao delito

1 ; 1 | ;

Somente procedimento do júri

I n c i d e n t e d e d e s lo c a m e n t o d a c o m p e t ê n c ia p a r a a l u s t i ç a F e d e r a l, e m c r im e s q u e v io la m d ir e it o s h u m a n o s

Criado pela EC 45/2004

V io la a g a r a n t ia d o j u i z n a t u r a l

total discricionariedade do Procurador C era l da República + critérios vagos.para análise pelo STF = insegurança jurídica

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Capítulo 7 Sujeitos processuais 7.1 Juiz Estado, representado pelo juiz, é um dos sujeitos da relação processual. O juiz é um sujeito imparcial, enquanto Ministério Público, querelante e acusado sâo sujeitos parciais da relação jundica processual. O processo, como instrumento de beterocomposiçâo dos conflitos, somente se justifica na medida em que é dado a um sujeito desinteressado e alheio ao conflito o poder de solucioná-lo. A imparcialidade do juiz é da essência do processo. O juiz deve ser investido dajurisdição. A investidura se dá por concurso público ou, no caso dos ministros do STJ e do STF, por escolha política, A investidura, porém, não é o único pressuposto processual subjetivo, no que se refere ao juiz. O juiz também deve ser imparcial e competente. Para assegurar a imparcialida­ de, a CR estabelece garantias (art. 95, caput) e vedações (art. 95, parágrafo único) ao magistrado. Além disso, o CPP prevê hipõteses de impedimentos (art. 252), incom­ patibilidades (art. 253) e suspeições (art. 254). Na organização judiciária brasileira existem juizes monocráticos, que atuam a sõs, e juizes colegiados, que atuam em grupo. Em regra, a justiça de primeiro grau é monocrática, com exceção feita ao Tribunal dojúri e aos conselhos dejustiça daJ ustiça Militar. Mais recentemente, a Lei 12.694/2012 passou a prever a possibilidade de, no caso de processos que tenham por objeto crime praticado por organização criminosa, que as decisões e a sentença sejam proferidas por um colegiado formado pelo juiz competente para a causa e mais dois julgadores escolhidos por sorteio (art. 1.°, § 2.°). Será, porém, um órgão colegiado temporário, que atuará apenas para aquela decisão ou sentença para qual se formou (art. 1.“, § 3.°). Já em segundo grau e nos tribunais superiores, bem como nos tribunais dojúri, ajustiça é colegiada. Há, porém, uma diferença. Enquanto nos tribunais tem-se um colegiado homogêneo, isto é, composto por juizes de igual natureza, no jú ri há um colegiado heterogêneo, composto por um juiz togado, e por mais 25 juizes leigos. 7.7.7 Dos im p ed im en to s e incorífffStibilidades d o s ju izes A distinção entre os impedimentos e as incompatibilidades é meramente termi­ nológica, sendo destituída de relevâncias práticas. Segundo nosso entendimento, o impedimento decorre de fatores objetivos que colocam em risco ou permitem duvidar

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da imparcialidade do juiz, porque ele ou pessoas a ele ligadas já exerceram ou estão exercendo outras funções no mesmo processo, ou têm interesse no feito (CPP, art. 252). Já a incompatibilidade decorre do parentesco entre juizes que poderiam atuar em um mesmo órgão colegiado (CPP, art. 253, e, em relação ao júri, arts. 448 e 450).* 7.1. L I Hipóteses de impedimentos As hipóteses de impedimento do juiz estão previstas no art. 252 do CPP: “Ojuiz não poderá exercer jurisdição no processo em que: I - tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Publico, autoridade policial, auxiliar dajustiça ou perito; II - ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha; III - tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão; f^ próprio ou seu cô njuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.”* Antes de se analisarem tais hipóteses, é necessário resolver uma questão prévia sobre a taxatividade ou não de tal rol. Para tanto, é fundamental atentar para a distinção entre imparcialidade subjetiva e imparcialidade objetiva do julgador. Nesse segundo aspecto, não se pode aceitar que 0 juiz que antecipe uma conclusão, ou mesmo um pré-juízo ou pré-conceito sobre a culpabilidade de um investigado, na fase pré-processual, seja considerado isento parajulgá-lo. Haverá o comprometimento da imparcialidade, posto que será razoável suspeitar que o juiz não será neutro, isento e equidistante. Segundo a teoria da aparência de imparcialidade, para preservar a confiança que a sociedade deve ter nos tribunais, deve ser impedido de atuar todo juiz sobre o qual haja dúvida de imparcialidade. Sem uma garantia total de imparcialidade, o julgador não poderá legitimamente exercera função jurisdicional. O rol legal não pode prevalecer sobre a finalidade que tal regra pretende assegu­ rar. As regras sobre impedimentos apenas estabelecem situações em que o legislador considera ojuiz impedido -o u suspeito - de julgar, por reputar que haveria risco a sua imparcialidade. Por certo, nada impede que, diante de um caso não previsto em lei, mas que também coloque em risco a imparcialidade, se considere que o juiz deve se abster de julgar. É inaceitável que se admita o julgamento por umjuiz parcial, sabidamente parcial, apenas e tão somente porque a situação da qual se infere o risco de parcialidade nâo esteja prevista em lei. Por exemplo, embora a lei preveja o impedimento do juiz 1- Nesse sentido, considerando que os impedimentos estão previstos no art. 252 e as incom­ patibilidades no art. 253 do CPP: Greco Filho, Manual..., p. 243. 2. Prevalece o entendimento de que se trata de rol taxativo: Damásio E. de Jesus, Código..., P-

207. Na jurisprudência: STJ, HC 206.706/RR, HC 99.945/SP, HC 12.145/SP.

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cujo “cônjuge” seja parte no feito (art. 252, IV, do CPP), não seria impedido de julgar o juiz que tivesSe uma relação homoafetiva com o acusado? Em suma, é de se concluir que as hipóteses de impedimento e suspeição não são numerus dausus, mas constituem um simples rol exemplificativo ou numerus apertusJ No que toca ao impedimento do inc. I do art. 252, embora o dispositivo somente se refere ao processo em que tiver funcionado “cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim”, devem ser incluídos os casos de união estável® e de relações homoafetivas, como geradores de impedimentos. Poder haver maior dificuldade probatórÍ£(, nos casos em que não haja um documento formal, como a certidão de casamento, a de­ monstrar tais relações, mas, uma vez comprovada por qualquer meio tal situação, é de reconhecer o impedimento. Também haverã impedimento no caso de parentesco decorrente de adoção. Já se considerou presente a hipótese do inc. II do art. 252, reconhecendo haver impedimento, no caso de magistrado que atuou no mesmo processo como membro do Ministério Público, tendo requisitado a instauração de inquérito policial, e poste­ riormente vem a receber a denúncia como juiz da causa.’ A função de juiz é incompatível com a de testemunha. Se o juiz presenciou o fato, está impedido de atuar na causa. Juiz é sujeito processual imparcial e testemu­ nha é fonte de prova. Por outro lado, se o juiz julgar com base em seu conhecimento privado sobre os fatos, sem que tenha prestado seu depoimento, estará sendo violado o contraditório.* O inc. III do art. 252 prevê o impedimento do magistrado que “tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se de fato ou de direito, sobre a questão”. A expressão “instância” parece ter sido utilizada como sinônimo de “grau de jurisdi­ ção”. Assim, por exemplo, o juiz que atuou em primeiro grau, proferindo decisão sobre Questão de fato ou de direito e, principalmente, sentenciando o feito, não poderá atuar em grau de recurso, caso tenha sido promovido. Todavia, diante do reconhecimento de que, além do aspecto subjetivo, a imparcialidade também envolve um aspecto objetivo, ,è o juiz que tenha se pronunciado sobre a causa, em etapas anteriores da persecução 3. Embora refletindo posição minoritãria, Souza (A parcialidade..., p. 8 6 ) admite a ampliação do rol legal, e a consideração de outra hipótese não prevista em lei, que coloque em risco a imparcialidade do julgador. No mesmo sentido, na doutrina estrangeira, cf.: Maier, De­ recho..., t. II, p. 555. Ainda nesse sentido, na doutrina processual civil, em relação ao art. 135 do CPC, cf.: Neiy Ju n io r e Andrade Nery, Código..., p. 3 5 6 . Para Nucci (Código..., p. 5 76 e 5 7 8 ), o rol o art. 2 5 2 do CPP é taxativo, mas o do art. 2 5 4 é exemplificativo. 4. O Novo CPC, no art. 144, nas hipóteses de impedimento, sempre se refere a “cônjuge ou companheiro”. 5. Nesse sentido, reconheWWrdqjã nulidade da ação penal: STJ, HC 42.952/MS. 6. Na jurisprudência, reconhecendo o impedimento: TJSP, RT 534/345. Por outro lado, o TJSP rejeitou exceção de impedimento do juiz, oposta em ação penal privada, na qual o magistrado foi arrolado com o testemunha de acusação, tendo tal pleito sido indeferido pelo próprio excepto (TJSP, RT 738/594).

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penal, terá comprometida sua imparcialidade objetiva, a expressão “instância” merece uma interpretação mais ampla, para incluir as situações em que o mesmo juiz, enquanto pessoa física, tenba se pronunciado sobre o mérito, realizando um prejulgamento sobre o crime ou sua autoria, capaz de comprometer sua imparcialidade. Já se reconheceu que a atuação do Juiz era processos administrativos gera seu impedimento para o processo judicial sobre o mesmo fato (por exemplo, o juiz que decide um processo administrativo para imposição de penalidade a um servidor não poderá julgá-lo, pelo mesmo fato, caso este constitua crime).' Mais comum, ainda, será a hipótese em que o julgador tenha atuado na fase do inquérito policial ou qualquer outra forma de investigação preliminar, por exemplo, autorizando a prática de atos instrutórios, como buscas e apreensões, ou autorizan­ do interceptação telefônica, ou ainda decretando medidas cautelares, como prisão temporária ou preventiva. Em todos esses casos, quando se puder constatar, pela fundamentação dada para a decisão, que houve um claro e efetivo prejulgamento, seja quanto à existência do crime, seja quanto à sua autoria, haverá a quebra da imparcia­ lidade objetiva, com o impedimento do magistrado parajulgar o processo. Assim, por exemplo, se o juiz fizer afirmativas categóricas sobre a existência do crime ou a autoria delitiva, com expressões tais como “está cabalmente comprovado que houve ofensa à honra”, “não há dúvida alguma que foi o acusado o autor do roubo", “a legítima defesa deve ser totalmente excluída” etc., haverá uma antecipação do julgamento, com um juízo prévio de culpabilidade, que permitirá ao acusado legitimamente suspeitar da imparcialidade do julgador. 7. O STJ já considerou impedido de atuar o juiz que participou de processo administrativo contra o réu “1 - A Constituição Federal tem como um dos primados dos direitos funda­ mentais do homem e do cidadão o julgamento imparcial e a ampla defesa. II - É inegável

que quem participou de processo administrativo, colhendo provas e decidindo, está moral, legal e psicologicamenle comprometido para uma decisão judicial descompromissada. Ill - Recurso provido parcialmente, com o afastamento do juiz dos processos criminais". F, no corpo do referido aresto, lê-se: “Sob o aspecto puramente ontológico, tanto o juiz que funcionou era procedimento administrativo e julgou judicialmente, como o sobrejuiz que atuou em 2° grau, se achara de igual modo impedidos de julgar pela segunda vez. O que se quer é evitar ideias preconcebidas. É inegável que quem participou de procedimento administrativo, co­ lhendo provas e decidindo, está moral, legal e psicologicamente comprometido para uma decisão judicial. Nesse caso, não se poderia falar em julgamento imparcial. Por outro lado, a palavra ‘instância’, como se sabe, pode oferecer conotação maior do que ‘grau de jurisdição’. Significa ‘conhecimento’. 0 que se quer evitar, repito, é que o julgador judicial já tenha ‘conhecido’ antes a mesma matéria de fundo” (STJ, HC 4 .5 9 1/MG, RT 724/593). Fm outro julgado, aplicando as mesmas premissas, concluiu, inclusive, que em tal caso “a ação penal instaurada em desfavor do paciente está completamente viciada pois a decisão interlocutória que recebeu a denúncia foi exarada pelo jutzo impedido, razão peta qual deve ser anulado processo criminal a partir deste ato judicial, pouco importando se no curso do processo te­ nha sido substituído o magistrado condutor da ação”. 3. Ordem concedida para, ratificando a liminar anteriormente deferida, determinar que seja anulada a ação penal instaurada em desfavor do paciente (Proc. 0520.05.008012-3), a partir do despacho judicial de recebimento da denúncia” (STJ, HC 48.248A1G). No mesmo sentido: STJ, HC 255.457/MG (RT 106/517).

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Em todos esses casos, será possível reconhecer o impedimento do julgador, seja admitindo pura e simplesmente que o rol do art. 2 3 2 do CPP não é taxativo, seja dando uma interpretação mais lata à expressão “instância” do inc. IV do referido artigo. Subs­ tancialmente, o importante é assegurar a denominada imparcialidade objetiva, afas­ tando do processo o juiz que, previamente, já tenha se pronunciado sobre o objeto do processo, emitindo juízos de valor que possam indicar uma propensão condenatória.® Por outro lado, não haverá impedimento se o juiz se limitou a exarar despacho e a praticar atos não decisórios, sendo necessário que tenha se manifestado sobre o mérito da causa para que se tenha comprometida sua imparcialidade.® Há entendimento no sentido de que o juiz que recebeu a denúncia ou queixa não estará impedido, nos termos do inc. III do art. 252 do CPP, para atuar, no tribunal, julgando recursos sobre aquele processo.*® Discordamos de tal posicionamento por considerarmos que o recebimento da denúncia édecisão, em que se analisa a viabilidade da ação penal, visando às condições da ação e aos pressupostos processuais.** Assim, o desembargador terá funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se de fato e de direito sobre a questão, sendo, pois, impedido de atuar.*’ 8. No âm bito processual civil, os casos de prejulgam ento tam bém têm sido considerados com o quebra da imparcialidade, em bora se entenda caracterizar hipótese de “suspeição” e não de “im pedim ento” do m agistrado: O T JSP decidiu que; “E xceção de suspeição. Revelação, pelo m agistrado, em audiência, do valor que em presta a um depoim ento pes­ soal. Com entário, outrossim , a respeito da oitiva de uma testem unha, que se constitui em indevida antecipação da apreciação do depoimento. Equidistância do magistrado compro­ metida. Exceptio acolhida” (TJSP, Ex. Susp. 38.363-0/9); “E xceção de suspeição. Alegação de parcialidade em razão de ter m agistrado, na audiência conciliatória, prejulgando a ação. O corrência. Ju iz que afirm ou co m todas as palavras que o autor da demanda seria vencido no final da ação. E xceção acolhida, com determ inação de rem essa dos autos ao substituto legal do excepto” (TJSP, Ex. Susp. 1 5 9 .9 7 0 -0 / 1 -0 0 ). No m esm o sentido: TJSP, E x. Susp. 9 9 0 .1 0 1 8 2 6 1 4 -3 , Ex. Susp. 107.531.0/ 3-00. Referido posicionam ento também é acolhido, na doutrina, por Marcato (A im parcialidade..., p. 8 5 ); “Estará igualm ente realizando um prejulgam ento o magistrado que desnecessariam ente antecipa nos autos a sua opinião a propósito de questões que deverá posteriorm ente decidir, configurando-se, também nesse caso, a sua suspeição”. No m esm o sentido, cf.; Nery Ju n io r e Andrade Nery, Código..., p. 356. 9. Na doutrina: Espínola Filho, Código..., v. 2, p, 3 1 2 ; Nucci, Código..., p. 577. Nesse sentido, na jurisprudência: STJ, HC 22.028/AM). O TJSP jã decidiu que o magistrado que se envol­ veu em ocionalm ente na causa, não ocultando sua revolta pelo fato delituoso atribuído em coautoria ao acusado, perde a serenidade ante lamentável ocorrência que deu causa ã morte de uma criança, estando impedido de julgar o feito (RT 591/296). Todavia, parece que, em tal hipótese, o correto seria o reconhecim ento da suspeição, e não do impedimento. 10. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2 , p. 3 1 2 ; Mirabete, Processo penal, p. 240. Na jurisprudência; STE RTJ 53/29á; RT 638/271. 11. Recentem ente, o STJ de^Èfifurque é nulo, por violar o inc. lU do art. 2 5 2 do CPP, acórdão que teve com o revisora a mesma Juíza que recebeu a denúncia (HC 1 2 1 .4 16/RS), 12. Questão diversa é se o ju iz que recebeu a denúncia estaria impedido para sentenciar. Neste caso, as duas atuações teriam se dado na mesma instância. Partindo mesmo conceito já desenvolvido sobre a imparcialidade objetiva, caso o magistrado, ao receber a denúncia.

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Aosjurados sáo aplicadas as hipóteses de impedimento dosjuizes togados, previs­ tas no art. 252 do CPP, por força do disposto no art. 448, § 2.°, do mesmo Código. Por outro lado, as hipóteses específicas de impedimentos dos jurados estão estabelecidas no art. 449 do CPE 7. /. 1.2 Hipóteses de incompatibilidades As hipóteses de incompatibilidade vêm previstas no art. 253 do CPP: “Nos juízos coletivos, não poderão servir no mesmo processo os juizes que forem entre si parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive".

Embora não haja referência ao cônjuge - e cônjuge não seja parente - , a incom­ patibilidade é evidente. Se em relação aos parentes afins, que decorrem do casamento, há incompatibilidade, com maior razão, em relação à própria pessoa com quem o juiz é casado, há evidente incompatibilidade." Espínola Filho observa que “a incompatibilidade se resolve contra aqueles que devem intervir, quando o outrojá está atuando ou atuou”.‘®No procedimento dojúri, há regra expressa no art. 450 do CPP que - embora se referindo impropriamente a “impe­ didos", quando em verdade se trata de relação de incompatibilidade -pode ser aplicada, por analogia, à generalidade dos casos, no sentido de que; “Dos impedidos entre si por parentescoourelaçãodeconvivcncia.serviráoquehouversidosorteadoemprimeirolugar". 7.1.1.3 Procedimento No tocante à forma e ao momento de arguição do impedimento ou da incompa­ tibilidade, bem como ao procedimento a ser seguido no incidente, segue-se o disposto para a exceção de suspeição (CPP, art. 112). Não é correto, porém, do ponto de vista terminológico, denominar tais incidentes como exceção de impedimento ou exceção de incompatibilidade. O CPP tem um rol taxativo de exceções no art. 95, não mencio­ nando 0 impedimento e a incompatibilidade 0 juiz poderá declarar-se impedido ou reconhecer a sua incompatibilidade, independentemente de provocação da parte 7.1.1.4 Efeitos Há divergência relativamente aos efeitos dos atos praticados por juiz impedido ou no caso de incompatibilidade. Uma corrente os considera atos inexistentes, por faltarjurisdição aojuiz que o proferiu. Outra corrente entende que o caso é de nulidade absoluta, e não de inexistência, na medida em que falta imparcialidade ao juiz, embora tenha exercido indevido prejulgamento. por exemplo, afirmado ao receber a denúncia que está convencido da autoria, haverá impedimento. 13. Newe sentido; Greco Filho, Manual.., p. 244; Mirabete. Processo penal, p. 241; Nucci, Código..., p. 578. ■ ee 14. Código..., V. 2, p. 331.

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ele continue investido da jurisdição. Correta a segunda posição, pois, na teoria dos pressupostos processuais, a investidura do órgão jurisdicional é pressuposto de exis­ tência da relação jundica processual, já sua imparcialidade é requisito de validade." 7.7.2 S u sp eiçâ o cJo ju iz 7.1 .2 .1 H ip ó teses d e su sp eiç â o As hipóteses de suspeiçâo do juiz estão previstas no art. 234 do CPP;

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“O ju iz dar-se-á por suspeito, e, se nâo o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes; I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles; II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a pro­ cesso por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia; III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consanguíneo, ou afim, até o terceiro grau. inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes; IV - se tiver aconselhado qualquer das partes; V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes; VI - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.” Amizade íntima é aquela que uma pessoa nutre pela outra como se fosse um paren­ te próximo, é a amizade fraternal, capaz de levar um amigo a todos os sacrifícios pelo outro. Também são indicativos da suspeiçâo por amizade; o trabalho em comum ou a anterior existência de sociedade em negócios, a extrema familiaridade, a frequência assídua na residência do amigo ou a relação de compadrio." A inimizade capital, por sua vez, é aquela que traduz ódio, rancor ou desejo de vingança." Por outro lado, não há inimizade capital pelo fato de o juiz já ter conde­ nado, várias vezes, o acusado." 15. Na doutrina, pela inexistência; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 4 0 7 , Tomaghi, Cur­ so..., V . l , p. 154; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 6 0 5 ; Noronha, Curso..., n. 2 8, p. 64; Mirabete, Processo penal, p. 243. Na jurisprudência: STJ, HC 18.30 l/MS; extinto TACrimSP, JTACrSP 46/225.0 CPPM estabelece, no parágrafo único do art. 37, que “serão considerados inexistentes os atos praticados por ju iz impedido”. Fm sentido contrário, considerando haver nulidade; Greco Filho, Manual..., p. 244. O STJ considerou nulo acórdão proferido por Câmara da qual participou desembargador impedido, por autuação de seu filho, com o órgão do Ministério Público, no mesmo processo: STJ, HC 13.701/SP 16. As hipóteses são mencioq^d|gDQr Fspínola Filho, Código..., v. 2, p. 2 5 8-259. 17. O STJ decidiu que “a animosidade deve ser inequívoca e manifesta, lançando sobre a indis­ pensável imparcialidade do ju iz uma substancial sombra de dúvida que possa comprometer o julgam ento do litígio” (AgRg 32.179/SP) 18. Nesse último sentido; Greco Filho, Manual..., p. 245; Damásio F. de Jesus, Código..., p. 209. Na jurisprudência: TJSP, RT 511/357.

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Não basta que a parte considere que o juiz é seu inimigo capital, se este não se considerar inimigo da parte e declarar ter isenção de ânimo para funcionar na causa.*“ Predomina o entendimento de que também não ocorre a suspeição se a amizade ou inimizade for com o advogado do acusado, e não com o próprio acusado, bem como com o representante do Ministério Público. Todavia, como observa Nucci, com toda a razão, para garantir a imparcialidade do magistrado, é de ser aceita a possibilidade de arguição de suspeição, em caso de amizade íntima entre juiz e promotor, bem como entre juiz e advogado, “nào sendo possível ignorar o fato do magistrado ser falível como todos, não mantendo sua neutralidade se estima por demasia o promotor ou o odeia com todas as forças. 0 mesmo se diga do defensor”.®“ Quanto ao parentesco, na hipótese do inc. III do art. 254, o CPP não faz referência ao parentesco civil, decorrente de adoção, mas é evidente que esta gera a parcialidade do magistrado, ao menos pela “amizade íntima”.®* A hipótese de suspeição pelo parentesco também deve ser aplicada à companhei­ ra ou companheiro, diante da equiparação constitucional do art. 226, § 3.°, da CR.®® Aliás, em relação ao tribunal dojúri, o novo § 1.° do art. 448 expressamente prevê que: “O mesmo impedimento ocorrerá em relação às pessoas que mantenham união estável reconhecida como entidadefamiliar’’. Quanto ao aconselhamento (inc. IV do art. 254), não gera suspeição o fato de o juiz ter dado conselhos genéricos à parte, sem referência específica à causa em si.®* Também se reconheceu não haver suspeição do magistrado pelo fato de ter se encon­ trado com a parte, fora das dependências do foro, em reunião na qual trataram de outros assuntos, sem antecipar qualquer decisão da causa.®® Caso o juiz tenha se julgado suspeito em um processo, relativamente a determi­ nada pessoa, não poderá, por óbvio, julgar qualquer outro feito de que ela seja parte.®’ 19. Nesse sentido: Borges da Rosa, Comcníários..., p. 378; Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 260. 20. Nucci, Código..., p. 580, Na doutrina, pela inocorrência de suspeição em relação ao advoga­ do; Espínola Filho. Código..., v. 2, p. 261; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 558; Mirabete, Processo penal, p. 224. Na jurisprudência: TJSP, RT 562/109; extinto TACrimSP, RT 519/402; TRF 4 .“ Região, Ex, Susp. 2008.70.02.007298-4. 21. Na doutrina: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 263; Mirabete, Processo penal, p. 225; Nucci, Código..., p. 581. Ao mais, o CPPM, que pode ser aplicado subsidiariamente, prevê que: “A suspeição entre adotante e adotado será considerada nos mesmos termos da resultante entre ascendente e descendente, mas não se estenderá aos respectivos parentes e cessará no caso de se dissolver o vinculo da adoção" (art. 39). 22. Nesse sentido; Mirabete, Processo penal. p. 225. Em sentido contrário, cf.; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 589.

23. O TJSP entendeu, em antigo precedente, que o juiz aconselhara parte a contratar advogado, não gera suspeição (RT 418/298). 24. STJ, HC 206.706/RR. 25. Nesse sentido: Mirabete, Processo penal, p. 226. Na jurisprudência: TJSP, RT 524/364.

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Não haverá suspeição se a parte injuriar o juiz ou, de propósito, der motivo para criar a siispeição (por exemplo, agredir o ju iz) (CPP, art. 256). Nucci entende que, se o ju iz já estava na causa, e posteriormente o acusado con­ tratou para sua defesa um inimigo capital do magistrado, está assumindo o risco da parcialidade do julgador.™ Todavia, ainda que tal expediente seja desleal, se de algu­ ma forma houver o comprometimento da imparcialidade do magistrado, a suspeição deverá ser reconhecida. O direito ao julgamento por um juiz imparcial é questão de ordem pública, cujo interesse no reconhecimento do vício independe da vontade ou da torpeza das partes. 7 .1 .2 .2 A b s ten ç ã o d o ju iz Independentemente de arguição da parte, ojuiz poderá, a qualquer momento, declarar-se suspeito nos autos, por escrito, apontando os motivos legais de sua sus­ peição. Neste caso, deverá intimar as partes e remeter os autos para o seu substituto (CPP, art. 97). O juiz poderá também, por motivo de foro íntimo e, portanto, sem declarar o motivo, dar-se por suspeito, até mesmo por aplicação analógica do art. 135, parágrafo único, do CPC (CPP, art. 3.“).” 7 .1 .2 .3 A tos d o ju iz su sp eito Os atos praticados pelo juiz suspeito (todos eles, e não apenas os decisórios) são absolutamente nulos, nos termos do art. 5 6 4 ,1, do CPP.™ Caso o motivo da suspei­ ção tenha surgido no curso do processo, os atos anteriores serão válidos somente se anulados os atos posteriores. 7 . 1.2.4 S u sp eiçã o d o s ju rad os As hipóteses de suspeição dos jurados são previstas nos novos arts. 448 e 449 do CPP. Em verdade, o art. 448 dispõe sobre incompatibilidades dos jurados, enquanto o art. 449 trata dos impedimentos. O § 2.“ do art. 448 do CPP determina que aos jurados também devem ser aplicadas as hipóteses de impedimentos, suspeiçôes e incompatibilidade dos juizes togados, previstas respectivamente nos art. 252, 254 e 253, todos do CPP Aliás, com maior 26. Nucci, Código..., p. 580. 27. Na doutrina; Cf.: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 4 0 8 -4 0 9 ; Espínola Filho, Código..., V . 2, p. 268 ; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 5 8 8 ; Mirabete, Processo penal, p. 2 3 5 ; Nucci, Código..., p. 293. Em tal caso, contudo, lembra Greco Filho (Maniuii..., p. 180), poderá ser chamado a esclarece^í^Thdtivos perante os órgãos censórios da magistratura. O Provi­ mento 36/1992 do TJSP prevê que, quando a abstenção se der por motivo de foro íntimo, o magistrado deve com unicar, reservadamente, ao Conselho Superior da Magistratura, as razões que o levam ao afastamento do processo. 28. Na jurisprudência: STF, HC 77.930/MG; STJ, HC 20.818/PB.

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razão, por proferirem decisão não motivada, em que mais facilmente a parcialidade poderia ter lugar.™ O CPP não estabelece, claramente, o momento de arguição da suspeiçâo dos jurados. Nem mesmo a alteração da redação do art. 470 disciplinou, expressamente, quando deve ser arguida a suspeiçâo dos jurados. Prevalecia o entendimento de que a exceção deve ser arguida oralmente (CPP, art. 106), no instante em que for sorteado o nome do jurado para compor o Conselho de Sentença, não havendo razão para se alterar tal entendimento. 0 incidente é bastante célere. O jurado será ouvido e, se aceitar o motivo, estará excluído. Se negar, ojuiz-presidentejulgará de plano a exceção, devendo rejeitá-la se não for imediatamente comprovada.™

7.2 Peritos, intérpretes, serventuários ou funcionários da Justiça As hipóteses de suspeiçâo dos juizes (CPP, art. 234) também se aplicam aos peritos (CPP, art. 280), bem como aos intérpretes, que são equiparados aos peritos (CPP, art. 281) e aos serventuários e funcionários daJ ustiça, no que couberem (CPP, art. 274).®' A Lei 11.690/2008 alterou o CPP, passando a admitir o assistente técnico no processo penal (CPP, art. 139, § 5.°, II). Por óbvio, aos assistentes não se aplica o art. 280 do CPP, por serem auxiliares técnicos das partes, vinculados, portanto, a posições parciais que cada uma delas ostenta no processo penal, não se lhes podendo exigir imparcialidade.®' Os peritos têm grande influência sobre a prova e, consequentemente, sobre o resultado do processo, devendo, por isso, ter uma atuação absolutamente imparcial. Embora não haja previsão específica, também devem ser aplicáveis, no que fo­ rem cabíveis, aos peritos, intérpretes e serventuários, as hipóteses de impedimentos dos juizes. Seria ilógica uma interpretação diversa. O perito não poderia atuar em um processo em que o acusado fosse seu amigo íntimo (CPP, art. 2 3 4 ,1), mas poderia elaborar o laudo em um processo em que o acusado fosse seu irmão (CPP, art. 252, IV). 29. Nesse sentido, em relação ao sistema anterior do CPP, que não havia regra expressa em relação aos jurados: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 282; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 600. Na Jurisprudência: STJ, REsp 245.629/SR 30. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 162; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 601; Mirabete, Processo penal, p. 231; Nucci, Código..., p. 301. Na jurisprudência, considerando, inclusive, haver preclusão, se a suspeiçâo não for alegada no momento oportuno: STF, RT 590/436. 31. Para Nucci (Código..., p. 603) “náo há sentido nesse dispositivo, tendo em vista que os funcionários dajustiça não exercem qualquer ato decisório de repercussão para a parte". F acrescenta: “Embora possam lançar, nos autos, certidões que gozam de fé piiblica, é preciso ressaltar que estão sujeitos à corregedoria permanente do magistrado titular da Vara, razão pela qual desvios nessa função representarão a instauração de processo administrativo”. 32. Na jurisprudência, em relação ao assistente técnico, no processo civil, cf. STJ, REsp 36.578-3/SR

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Os auxiliares do juiz também podem, por aplicação analógica do art. 9 7 , se absterein de atuar no processo, independentemente de arguição da sua suspeição.®® Os atos probatórios que tiverem sido praticados pelo perito ou intérprete suspeito, bem como os atos dos serventuários ou funcionários dajustiça, também suspeitos, serão viciados por nulidade absoluta, por aplicação analógica do art. 5 6 4 ,1, do CPP. Se aos peritos, intérpretes e funcionários d aju stiça é extensivo “o disposto sobre suspeição dos juizes” (CPP, art. 280), isso significa que são aplicáveis as hipóteses de suspeição dos juizes e a consequência da suspeição do juiz.

7.3 Ministério Público 7.3.7 N atureza jurídica O enquadramento do Ministério Público tem variado, ora como órgão do Poder Judiciário, ora como órgão do Poder Executivo. A CR de 1988 coloca o Ministério Público em posição peculiar, como órgão essencial à administração da justiça. O Ministério Público participa do processo e da relação juridica processual, quer como autor da ação penal, quer como fiscal da lei, na ação penal de iniciativa privada. A natureza jurídica do Ministério Público no processo penal tem suscitado muitas controvérsias: parte sui generis, parte imparcial, parte material e processual, ou apenas parte formal ou processual. Existem, ainda, aqueles que entendem que o Ministério Público náo é parte.®® Tourinho Filho,®’ baseado na possibilidade de recusa dos membros do Ministério Público, prevista no art. 258 do CPP, conclui; “[...] entre nós, sem embargo de respeitáveis opiniões contrárias, nâo se pode, no processo penal, erigir o Ministério Público à categoria de parte, podendo, quando muito, dizer-se que os atos processuais praticados pelos agentes do Ministério Público assemelham-se, mantêm certas afinidades com aqueloutros praticados pelas partes. ” Contudo, nào é o Ministério Público enquanto instituição una e indivisível que é recusado, mas sim o promotor dejustiça que, naquele caso, atua em nome do Ministério Público. 33. Nesse sentido; Mirabete, Processo penal, p. 230. 34. Tomaghi (A relação..., p. 172) considera o Ministério Público uma parte sui generis, por ser fiscal da lei, em alguns casos, quando deve atuar imparcialm ente, inclusive era favor do acusado, mas também ser pane, quando exerce a função de acusar, promovendo a apli­ cação da lei penal ao acusado. Para Nucci (Código..., p. 5 3 2 ) trata-se de parte imparcial. Já Frederico Marqu^&TH ^entos..., v. 2, p. 4 0 ) considera o M inistério Público uma parte material e formal. B e n w 3 è Faria (Código..., v. 2, p. 11) e Mazzili, (Regim eJurídico..., p. 6 6 3 ) consideram que o Ministério Público é apenas parte formal ou processual. Finalm ente, negando a qualidade de parte: Penteado, Guimarães e Macedo, O M inistério Público..., p. 20; Borges da Rosa, Processo penal..., v. 1, p. 53. 35. Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 425.

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7 .3.2 Parte interessada ou "parte imparcial"^^ Independentemente da natureza que se atribua ao Ministério Público, do ponto de vista prático, é fundamental definir se o Ministério Público é uma “parte parcial”, que busca a condenação do acusado, ou uma “parte imparcial”, que almeja ajustiça e correta aplicação da lei, com a condenação do culpado e a absolvição do inocente.” O CPP confere ao Ministério Público as funções de promover e fiscalizar a exe­ cução da lei (art. 237). Além disso, prevê hipóteses de impedimento e suspeição dos membros do Ministério Público (art. 258). Nesse contexto, parece que o CPP confere ao Ministério Público a qualidade de um órgão imparcial.™ Segundo boa parte da doutrina, no processo penal, o Ministério Público seria uma parte imparcial.’® O principal fundamento desta posição é a natureza do interesse do Ministério Público no processo penal. Afirma-se que o Ministério Público não tem um interesse unilateral contraposto ao interesse do acusado, nem mesmo um interesse próprio. O Ministério Público, enquanto órgão público, teria um interesse coligado com a função institucional que representa, e que não se reduz apenas à tutela do interesse de punir do Estado, mas principalmente à correta aplicação da lei no caso concreto.’® Em suma, segundo aqueles que defendem a imparcialidade do Ministério Público no processo penal, seu interesse seria apenas o interesse público de busca da verdade, para possibilitar a correta aplicação da lei penal.’ * Como consequência das posições anteriormente expostas, afirma-se que, nâo havendo um interesse do Ministério Público contrário ao interesse do acusado, nunca haveria uma decisão desfavorável ao Ministério Público, mesmo no caso de absolvição. Em outras palavras, o Ministério Público nâo sucumbiria no processo penal. 36. Para uma análise mais aprofundada da questão, cf.: Badaró, Ônus da prova..., p. 207-225. 37. Em passagem sempre lembrada, Calamandrei (Eles os juizes..., p. 59) destaca o “absurdo psicológico” do Ministério Público: “Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segun­ do me parece, é o do Ministério Público. Este, com o sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como o juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento". 38. Para Nucci (Código..., p. 5 8 6 ), o art. 258 “é o que mais ressalta a sua posição de parte im­ parcial”. 39. Nesse sentido: Noronha, Curso..., p. 179; Pedroso, Processo penal..., p. 39; Silvajardim , Di­ reito..., p. 219; Mirabete, Processo penal, p. 359; Barros, A busca da verdade..., p. 154; Cruz, Garantias processuais..., p. 81. 40. Nesse sentido; Penteado et a i , O Ministério Público..., p. 2 2; Tuma, O Ministério Público.., p. 131; e Pedroso, Processo penal..., p, 4 0 e 42. 41. Nesse sentido; Borges da Rosa, Código...,v. l ,p . 5 3 ;T h o m é, A independência..., p. 9; Touri­ nho Filho, Processo..., v. 2, p. 361; e Silvajardim , Direito..., p. 219. Merece reprodução lição de Bento de Faria (Código..., v. 2, p. 1 1): “o M inistério Público deve procurar a verdade e ajustiça, sem obsequiar a ideia preconcebida da acusação”.

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Contudo, a concepção do Ministério Público como parte imparcial é incom ­ patível com o processo penal acusatório, que exige um processo no qual baja uma dualidade de partes, em igualdade de condições, e com interesses distintos. Definido o sistema, os sujeitos que nele atuam devem ter a sua função determinada coeren­ temente com os ditames do modelo processual escolbido. Em um processo penal verdadeiramente acusatório, é necessário rever a posição do M inistério Público como parte imparcial. O contraditório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta na potencialidade de confronto entre tese e antítese, representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais do que uma escolba de política processual, o método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verda­ de. As opiniões contrapostas dos litigantes ampliam os limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros. No processo penal, necessariamente baverá o contraditório, em razão da importância dos bens em jogo. Contudo, para que a dialética do processo acusatório se desenvolva em toda a sua potencialidade, permitindo uma correta reconstrução dos fatos, é necessário que no processo atuem partes com interesses antagônicos ou contrapostos. Conceber o Ministério Público como parte imparcial significa inviabilizara dialética de partes ou, àò menos, tomar a contraposição entre tese e antítese algo artificial ou meramente formal. No processo acusatório, em que se acentua a relação dialética entre as partes, 0 Ministério Público deve ser uma parte verdadeira, isto é, uma parte parcial.®' A comparação do processo acusatório com o inquisitório demonstra, inegavel­ mente, que há maior probabilidade de uma decisão justa quando a prova se forma na dialética processual, em vez da solitária pesquisa do órgão instmior, seja ele ojuiz ou o Ministério Público. Um saber depurado pelo contraditório oferece garantias maiores do que um saber buscado unilateralmente. Por tudo isso. parece superado, do ponto de vista da adequação do sistema e, principalmente, do que efetivamente ocorre no dia a dia forense, que o Ministério Pú­ blico seja uma “parte imparcial”. Melhor para a sociedade, para o juiz e para o próprio acusado que o Ministério Público assuma, de uma vez por todas, o seu papel de parte acusadora, com todas as consequências que isso acarretar.®' ■42. Cabe destacar que o STJ já se posicionou nesse sentido: “O Ministério Público é parte no processo penal, e embora seja entidade vocacionada à defesa da ordem jundica. representando a sociedade como um todo, não atua de form a imparcial no âmbito penal, de modo que é inconcebível admitir como prova técnica oficial um laudo que emanou exclusivamente de órgão que atua comoMrtç:acusadora no processo criminal, sem qualquer tipo de controle judicial ou de partic^Çae'da defesa, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa" (HC n°154.093/RJ). 43. Embora com perspectiva parcialmente diversa. Greco Filho (Manual..., p. 247), partindo ‘ da premissa de que o escopo do Ministério Público é a atuação da vontade da lei, advene que “não se pode, porém, perder a perspectiva acusatória, já que a sociedade exige a sua

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7.3 .3 Princípios d o Ministério Público A CR prevê como princípios do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. A unidade significa que o Ministério Püblico é um só órgão, sob uma mesma direção, exercendo a mesma função. A indivisibilidade gera a possibilidade de os membros poderem ser substituídos uns pelos outros, na forma da lei, sem que perca o sentido de unidade do órgão. Finalmente, a autonomia ou independência funcional significa que cada membro do Ministério Público tem, no exercício de suas funções, independência e autonomia, devendo seguir apenas suas convicções na aplicação da lei, mesmo que em desacordo cora superiores hierárquicos. A exis­ tência de uma hierarquia administrativa não significa uma hierarquia de mando no exercício da função.®® Tem havido grande controvérsia sobre a adoção ou não do principio do “pro­ motor natural”. Semelhante ao princípio dojuiz natural, defende-se que também em relação ao membro do Ministério Público haja uma prévia definição legal sobre sua atribuição para atuar em determinados casos, afastando-se, assim, a possibilidade de interferências hierárquicas." Por outro lado, é de reconhecer que a regra do promotor natural restringe os poderes do Procurador-Geral dejustiça de efetuar substituições, designações, de­ legações e avocações que somente podem correr nos casos taxativa e previamente definidos em lei.®* eficaz atuação na recomposição do equilíbrio social abalado pelo crime. Das duas posições dialéticas acusação-defesa poderá resultar a atuação justa da norma penal". 44. Observa Greco Filho (Manual..., p. 247, nota 3) que “já se tentou conceituar separadamente a unidade e indivisibilidade como princípios distintos. Todavia, ambas são apenas aspectos do mesmo conceito”. 45. O princípio do promotor natural tem sido defendido por boa parte da doutrina, até mesmo como uma decorrência da independência funcional (Carneiro, O Ministério Público..., p. 52; Tucci, Direitos e garantias..., p. 132), da qual emanaria a necessidade de predeterminação, por lei, do membro do Ministério Público que deverá atuar em cada processo (Mazzilli, Regimejuridico..., p. 79). Ou, como diz Tucci (DireiCosegarantias..., p. 132), “um promotor natural para cada causa”. 46. Nesse sentido: Nery Junior, Princípios do processo civil..., p. 88 ; Tucci, Direitos e garantias..., p. 133. Partindo dessa mesma premissa, Greco Filho (Manual..., p. 247, nota 4) adverte que “a persecução penal, inclusive em virtude de sua repercussão política, exige maior liberdade do Procurador-Geral, uma vez que a função do Ministério Püblico deve ser diri­ gida, acentuada, ou não, em face de cenas situação. E isso só é possível com o poder de o Procurador-Geral designar um promotor especial para o caso, ou, até, equipe de promoto­ res”, O STF reconhece a existência do princípio do promotor natural no julgamento do HC 67.759. No mesmo sentido, mais recentemente: STE HC 103.038/PA. O STJ já reconheceu a existência do principio do promotor natural, com a ressalva de que “a conclusão, porém, nào conduz à afirmação de o promotor, o procurador e o juiz nâo poderem ser designados para atuação em processo determinado. Urge, porém, respeitar a exigência legal previamente estabelecida” (STJ, REsp 11.722-0/SP).

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Entendemos que a regra do promotor natural, como impeditivo de substituição ou designação de promotores para substituir aqueles que, segundo regras preestabe­ lecidas, teriam atribuição para atuar no processo, somente tem razão de ser a partir da premissa de que o Ministério Público é uma parte imparcial. Justamente para garantir essa imparcialidade é que se devem evitar as designações, avocações e substituições.” Por outro lado, para quem considera o Ministério Público uma parte interessada, a substituição de um promotor por outro não significaria nada além de uma busca de maior eficiência no exercício da função, perfeitamente condizente com a regra da unidade do Ministério Público. '

7.3.4 Impedimentos do Ministérío Público O art. 258, primeira parte, do CPP prevê uma hipótese específica de impedimento 4o representante do Ministério Público: “Os órgãos do Ministério Público nãofuncionarão nos processos em que ojuiz ou qualquer das partesf o rseu cônjuge, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive (...)”. Além dessa situação específica, as hipóteses de suspeição dos juizes (CPP, art. 254) também se aplicam aos membros do Ministério Público (CPP, art. 258, parte .filial), que poderão ter arguidas as suas suspeiçôes. O art. 258 ressalva “no que lhes for aplicável”. Assim, por exemplo, embora haja impedimento para o juiz, não será aplicável ao Promotor dejustiça o impedimento JiOcaso em que parente seu tiver atuado nos autos como auxiliar dajustiça, posto que Mo há nenhum liame administrativo entre o Ministério Público e o referido servidor.’® Embora o CPP seja omisso, o órgão do Ministério Público pode, espontaneamente, reconhecer a sua suspeição.’® Predomina o entendimento de que, mesmo reconhecida a suspeição, os atos praticados pelo promotor não serão nulos, vez que o art. 5 6 4 ,1, do CPP refere-se, Ipenas, à suspeição do juiz.™ Partindo de tal premissa, Tourinho Filho entende que o órgão do Ministério Pú­ blico deve ser substituído até a decisão final do incidente.®' Não é a melhor solução. ‘i 7. O STJ já decidiu que “não ofende o princípio do promotor natural a designação de Subpro­ curador para atuar em determinada ação penal, feita pelo Procurador-Geral da República, nos termos permitidos pelo art. 48, II, da Lei Complementar 75/1995” (STJ, Apn. 227/RJ). Para uma análise mais detalhada, cf. Badaró, Juiz Natura ..., p. 226-236. Na jurisprudência: STF, HC 67,828-9/AL; STJ, RHC 16.391/ES. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 164; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 598; Mirabete, Processo penal, p. 229. Nesse sentido: Tourinho Fifijfi^^^çesso..., v. 2, p. 599; Mirabete, Processo penal, p. 230; Nucci, Código..., p. 300; Na ju r e ^ d ê n c ia ; STJ, REsp 170.137MT; TJRS, RT 548/343; TACrimSP, RJDTACrim 27/51. No sentido de que há nulidade relativa dos atos praticados por promotor de justiça suspeito: Na jurisprudência; STF, HC 77.930/MG; STJ, HC 20.818/PB. Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 599.

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Reconhecida a suspeiçâo, os atos do Ministério Publico devem ser declarados nulos, vez que o art. 258, parte final, manda aplicar ao Ministério Público as prescrições sobre suspeiçâo dojuiz (CPP, art. 254), o que também permite concluirque, por equiparação, a tais atos se aplica o art. 564,1, do CPP.™ A Súmula 234 do STJ estabelece que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeiçâo para o oferecimento da denúncia”. Tal súmula se limita à atuação do representante do Ministério Público no inquérito no exercício normal de suas funções, por exemplo, acompanhando a oitiva de uma testemunha ou a confissão do investigado. Contudo, se o promotor depôs como testemunha no inquérito policial, não poderá oferecer denúncia. De outro lado, o promotor que funcionou no inquérito e ofereceu a de­ núncia nâo poderá servir como testemunha no processo.™ A incompatibilidade entre os papéis de promotor de justiça e testemunha decorre da aplicação do art. 252, II, do CPP, que manda aplicar ao Ministério Público, no que couberem, as hipóteses de impedimento dos juizes.

7.4 Autoridade policial As partes não podem recusar a autoridade policial, sendo incabível a exceção de suspeiçâo em relação a elas (CPP, art. 107). Embora não seja cabível a exceção, as autoridades policiais têm o dever de se absterem de atuar no inquérito, desde que presente qualquer das causas de suspeiçâo (CPP, art. 107, parte final). Todavia, como observa Tomaghi, por nâo haver qualquer sanção processual para o descumprimento de tal dever, o preceito do CPP é “puramente ético”.’® 7.5 Acusado 7.5.7 Q u estões terminológicas Acusado é o sujeito passivo da ação penal, é aquele contra quem é movida ação penal pública ou privada. No CPPM a definição é precisa; “Considera-se 52. Na jurisprudência, considerando inexistente o ato praticado por promotor impedido; JTACr5P 51/202. Em sentido contrário, considerando tratar-se de nulidade relativa, que se submete à preclusão: STJ, HC 12.145/SP. 53. Nesse sentido: Damásio E. de Jesus, Código..., p. 212. Na jurisprudência, considerando que o promotor que prestou depoimento não pode oferecer dentincia; TJSP, RT 486/266, 425/311. De outro lado, considerando que o promotor que funcionou no inquérito e ofereceu a denúncia não poderá servir como testemunha no processo; TJSP RT 658/287. O STF já considerou que o “membro do Ministério Público Estadual que assiste a lavratura do auto de prisão em flagrante, convidado pela autoridade policial para assegurar a legalidade do ato, não está impedido de prestar depoimento, na fase da instrução penal, reportando-se aos fatos que ouviu quando dos depoimentos prestados na fase investigatória (...) se outro foi o Promotor dejustiça que firmara a peça acusatória” (STp HC 73.425/PN). 54. Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 169. No mesmo sentido: Mirabete, Processo penal, p. 231.

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acu sado aq u ele a quem é im putada a p rática de in fração p en al em denúncia recebida" (art. 6 9 ). Indiciado e investigado são terminologias mais adequadas ao inquérito policial. Na fase processual há referência a acusado, denunciado, imputado, querelado (...).” Cabe observar que, muitas vezes, o acusado, isto é, aquele que figura no polo passivo da ação penal condenatória, será o autor de ações penais como a revisão cri­ minal, o habeas corpus, uma justificação criminal (...). 7.5 .2 P essoa ju rídica Admitida a responsabilidade penal da pessoa jurídica (CR, art. 2 25, § 3.°), e havendo expressa previsão da responsabilidade penal da pessoa juridica nos crimes ambientais (Lei 9.605/1998, art. 3.°), é necessário um regramento especial para tal sujeito processual, com a inaplicabilidade de vários institutos processuais concebidos à luz da responsabilidade penal da pessoa natural. Como fazer o interrogatório da pessoa juridica? Responde Ada Pellegrini Grinover que, diante da caracterização do interrogatório còmo ato de defesa, quem deverá ser interrogado é o titular do direito de defesa, no c ^ , quem tem interesse em defender a pessoajurídica, que é o seu gestor.™ Acrescenta, aitida, que, “quanto aos fatos sobre os quais eventualmente ele não tenba domínio, é suficiente observar que à pessoa jurídica acusada fica aberta a possibilidade de con­ tradizer provando, pela via da prova testemunhal”. Há, ainda, outras questões em aberto; a pessoa jurídica pode ser paciente em 'habeas corpus, ou o remédio adequado seria o mandado de segurança, posto que não sèsujeita à sanção privativa de liberdade? Não há como estender o cabimento até esse ponto, posto que nem longinquamente a liberdade de locomoção corre risco. Adequado, portanto, será o mandado de segurança, embora trata-se de situação em que é perfeitamente cabível aplicar a fungibilidade recursal para as ações autônomas de impugnação. 7í:5.3 «Á

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a u to d efe sa d o a c u sa d o

O direito de autodefesa se divide em (1) direito de presença; (2) direito de au­ diência; (3) direito de postular pessoalmente.’® Segundo Nucci (Código..., p. 586), “enquanto transcorre a investigação, deve-se denominái-lo de indiciado, se, formalmente, apontado como suspeito pelo Estado, No momento do oferecimento da denúncia, a terminologia correta é chamá-lo de denunciado ou imputado, i Apôs o recebimento da denúncia, toma-se acusado ou réu. Tratando-se de queixa, deno­ mina-se querelado". 56. Grinover, O interrogatório..., p. 316. 57. Normalmente, a doutrina refere-se apenas ao direito de presença e ao direito de audiência, i O direito de postular pessoalmente, como manifestação da autodefesa, é destacado por Scarance Fernandes (Processo penal..., p. 293).

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P rocesso P enal

0 direito de presença é exercido com o comparecimento em audiências pelo acusado. A sua presença permitirá a integração entre a autodefesa e a defesa técnica na produção da prova. Muitos fatos e pormenores mencionados por testemunhas são do conhecimento pessoal do acusado que, por estar diretamente ligado aos fatos, poderá auxiliar o defensor na formulação de perguntas e na demonstração de incon­ gruências ou incompatibilidades do depoimento. Assim, a restrição da participação do acusado na audiência de oitiva de testemunhas pode implicar séria violação do direito de defesa como um todo. 0 direito de audiência, isto é, o direito de ser ouvido pelo juiz, é exercido, por excelência, no interrogatório. Trata-se, porém, de mera faculdade do acusado, que, se desejar, poderá renunciar a tal direito, preferindo permanecer calado (CR, art.5.°,LXIlI). 0 direito de postular está presente na possibilidade de recorrer pessoalmente (CPP, art. 577, caput) e de interpor habeas corpus (CR, art. 654, capuOou revisão criminal (CPP, art. 623). Tais manifestações não violam o art. 133 da CR, que prevê a advocacia como função essencial à administração da justiça.™ No processo penal, a exigência de que o acusado tenha uma defesa técnica visa assegurar a paridade de armas entre o acusador e o acusado. Assim, as manifestações defensivas formuladas diretamente pelo acusado não prejudicam a defesa, apenas criam uma possibilidade a mais de seu exercício. Que prejuízo há para a defesa, se o advogado não interpõe o recurso, mas o acusado o faz pessoalmente? Mesmo nos casos emque se tem uma postulação inicial, como na revisão criminal, ou mesmo a interposição do recurso, basta que ojuiz, implementando a manifestação de vontade do acusado, nomeie defensor para arrazoar tecnicamente o ato de postu­ lação pessoal do acusado.

7.5.4 Revelia do acusado 0 art. 367 do CPP prevê; “0 processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado (...)". Assim, se o acusado não comparece a uma audiência, mesmo que o seu defen­ sor esteja presente, costuma-se decretar a sua revelia. Consequentemente, o acusado deixa de ser intimado para os demais atos do processo. O defensor, contudo, deverá continuar a ser intimado.” Entendemos incorreta a decretação de revelia, quando o defensor está presente no ato processual. Amudança de redação do art. 366 do CPP deixou muito claro que o acusado se faz presente no processo por si ou por seu defensor. Assim, se o acusado não comparece, mas seu defensor está presente ao ato, não há por que ser decretada sua revelia. 58. Nesse sentido; STF, HC 76.686-1/SP (RT 755/559); RvCr 4,886-0/SP (RT 699/407). 59. Sobre o tema, cf., infra, subseção 9.2.5.

Sujeitos processuais 7 .5 D e fe n s o r

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7.6.1 D efesa técn ica A defesa técnica assegura a paridade de armas. No polo ativo sempre haverá uma parte com conhecimentos técnicos, seja o representante do Ministério Público, seja o advogado do querelante. Se fosse admitido que o acusado se defender sem assistência de um defensor com babilitação técnica, baveria evidente disparidade entre as posições dos sujeitos processuais, com claro prejuízo para a boa prestação jurisdicional. Sfe a tese (acusatória) e a antítese (defensiva) não estiverem no mesmo plano de efetivida­ de, a síntese, invariavelmente, estará comprometida. Como destaca Tourinho Filho, não existe contraditório efetivo sem que haja contraposição de órgãos homogêneos.«® 7.6.2 Finalidade d a d efesa O defensor não tem o dever de ser imparcial, estando vinculado à defesa do in­ teresse do acusado. Isso nâo significa, contudo, que deve pedir, sempre e em todos os casos, a absolvição do acusado. Embora a defesa efetiva seja absolutamente necessária e indisponível, ela poderá ser exercida mesmo quando se concorda com um pedido de condenação, mas postulando a desclassificação, ou aplicação de uma pena mínima, rtu substituição por pena alternativa etc.«' 7.6.3 A sp ectos term inológicos Utiliza-se a expressão “defensor constituído” ou “procurador” para designar o defensor escolhido pelo acusado para exercer a sua defesa, normalmente, mediante remuneração. É defensor de confiança do acusado. A designação “procurador” se àplica tanto no caso em que o acusado nomeia seu defensor mediante procuração, ou naesmo oralmente, no ato do interrogatório (CPP. art. 266). Defensor dativo é o defensor oferecido pelo Estado, para quem não tem defensor constituído. Pode ser um defensor público ou um advogado particular, remunerado pelo Estado. Finalmente, defensor ad hoc é o advogado nomeado para a prática específica de umato (por exemplo, oitiva de uma testemunha), nos termos do art. 265, § 2.°, do CPP, quando o acusado já possui defensor, constituído ou dativo, mas este não compareça iõ ato nem justifica previamente o motivo de seu não comparecimento. D efesa técn ica n ecessária, in dispon ível e efetiva Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, poderá ser processado sem dèfeiisor (CPP, art. 261, caput). O acusado tem o direito de constituir um defensor de 60. Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 497, ^UiNegando o dever de imparcialidade da defesa: Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p, 500. O STJ reconheceu a nulidade absoluta de processo em que a defesa do acusado foi realizada por advo­ gado quejá havia atuado no processo na qualidade de promotor de justiça (REsp 136.062/MG).

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P ro c e s s o Pe n al

sua confiança. Se não o fizer, o ju iz deverá lhe nomear um defensor, ainda que o acu­ sado náo o queira ou se oponha a tal nomeação e, até mesmo, caso deseje se defender por si mesmo, sem advogado. A defesa técnica é indisponível e obrigatória.” O EOAB dispõe, em seu art. 4.°, que “são nulos os atos privativos de advogado” - o que inclui defesa penal - praticados por pessoa não inscrita na OAB, ou praticados por advogado impedido .Por outro lado, o defensor não poderá abandonar a causa, senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis” (CPP, art. 265, caput). O acusado tem sempre o direito de constituir um defensor de sua escolha. Assim, mesmo que tenha um defensor dativo, poderá, a qualquer tempo, substituí-lo por um defensor de sua confiança (CPP, art. 263). Por outro lado, se o acusado tem defensor constituído, o ju iz nâo poderá destituí-lo, sem antes dar oportunidade ao acusado para constituir outro defensor de sua confiança.” A defesa no processo penal não é mera formalidade, que se satisfaz com a sim­ ples presença do advogado no processo. A defesa deve ser efetiva, com a exploração contraditória e fundamentada das teses de acusação e de defesa. No caso de haver corréus, com defesas colidentes, nâo é possível que a defesa seja exercida por um mesmo defensor, seja ele dativo ou constituído.” Em tal hipótese, não poderá haver ampla defesa, por um mesmo advogado que, para defender em toda a amplitude um dos acusado, terá que sacrificar o outro. O parágrafo único do art. 261 do CPP, acrescentado pela Lei 10.792/2003, exige que a defesa seja exercida mediante manifestação fundamentada.” 7 .6 .5 M o m en to inicial d a d e fe s a técn ica O advogado deverá intervir para o exercício da defesa desde antes da apresentação da resposta do acusado, para que seja possível a integração da autodefesa com a defesa técnica. 62. Evidente que, no caso de o acusado possuir capacidade postulatória, sendo advogado, poderá defender a si mesmo. Neste caso, a paridade de armas e a defesa técnica estarão assegurados. Todavia, o envolvimento emocional com a causa nâo aconselha que assim o faça. Certamente a defesa técnica será mais efetiva se exercida por um defensor diverso do acusado. 63. Nesse sentido, o STF decidiu que; “Réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no piano da ‘persecutio criminis’, especifica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição. Cumpre ao magistrado processante, em não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro advogado. Antes de realizada essa intimação - ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado - não é licito ao juiz nomear defensor dativo (ou defensor público) sem expressa aquiescência do réu. Precedentes" (HC 96.905/RJ). 64. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., P8 6 . Na jurisprudência; TJRS, RT 836/632. 65. Evidente que o dispositivo disse menos que queria, ao exigir a defesa mediante manifesta­ ção fundamentada apenas nos casos de defensor dativo e defensor público. O mesmo, por óbvio, vale para o defensor constituído.

Sujeitos processuais

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Aliás, a CADH, em seu art. 8.2, d, assegura o direito do acusado “(...) de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor". Principalmente no caso de o acusado que nâo possui defensor, o juiz deverá nomear-lhe um antes do primeiro ato defensivo, com tempo suficiente para a preparação da defesa. O § 2." do art. 185 do CPP, acrescentado pela Lei 10.792/2003, dispunha que: “Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor”. Assim, antes mesmo do interrogatório, o acusado tinha o direito de se entrevistar com seu defensor. A nomeação do defensor devia ocorrer já antes do interrogatório.“ Contudo, a Lei 11.719/2008 alterou o procedimento comum, passando a prever que, uma vez recebida a denúncia, o acusado serã citado para apresentar resposta escrita à acusação, no prazo de dez dias (CPP, art. 396, caput), e a mesma regra se aplica, também, aos procedimentos especiais previstos no CPP ou em lei especial (CPP, art. 394, § 4.°). Assim, o acusado será citado nâo mais para o seu interrogatório, mas para apresentar uma resposta escrita, por intermédio de um defensor. Por outro lado, tal resposta é obrigatória, e, se não for apresentada, o juiz deverã nomear um defensor para oferecê-la (CPP, art. 396-A, § 2.°). Vê-se, pois, que. antes mesmo da audiência de instrução ejulgamento, o acusado jã deverá ter um defensor. E, no caso de acusado preso, deverá ser assegurada a integração entre a defesa técnica e a autodefesa, cabendo ao juiz assegurar que o defensor, constimído, dativo ou público possa se entrevistar reservadamente com o acusado, antes rhesmo da apresentação da resposta escrita, para que possa obter informações para a sua elaboração e para formular os requerimentos de produção de prova. Finalmente, não se pode deixar de observar que, no caso de prisão em flagrante, se o acusado não comunicar à autoridade policial que possui defensor, dentro de 24 horas deverá ser remetida à Defensoria Pública uma cópia integral do auto de prisão èm flagrante (CPP, art. 306. § 1.“, do CPP). A Lei 11.449/2007, que deu nova redação áo citado dispositivo, foi a primeira a impor a defesa técnica desde o inquérito policial, ainda que limitada ao caso em que a persecução penal se inicie por prisão em flagrante. 7.7 Curador

íS7.7 Finalidade No regime originário do CPP, ao réu menor, isto é, maior de 18 anos e menor de 21 anos de idade, devia ser nomeado curador. Tal exigência se aplicava tanto no ^quérito policial (CPP, art. 15) quanto na ação penal (CPP. àrt. 262). tó. Merece destaque, nesse sentido, o seguinte julgado do TJMG: “Tendo entrado em vigor a Lei 10.792/2003, antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor, devendo este, obrigatoriamente, estar presente neste ato p ro c e ssu a ^ La.,10.792/2003, ao mudar a sistemática do interrogatório, ' transformou-o em meio de alftet;*ensejando a obrigatória participação da defesa técnica, através do advogado constituído pelo réu ou de defensor nomeado para patrocinar a sua defesa, assegurando-se-lhe o direito a entrevista reservada com o defensor que irá patrocinar sua defesa, sob pena de nulidade por afronta o princípio da ampla defesa. Processo anulado a partir do interrogatório, inclusive” (ACr 1.0012.04.001141-8/001).

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A finalidade do curador é “complementar a vontade do réu, relativamente incapaz para decidir sozinho sobre os seus próprios atos”.«' O CC de 1916 previa a maioridade plena aos 21 anos (art. 9.°). Por outro lado, dos 16 aos 21 anos, o indivíduo era relativamente capaz (art. 6.°, I). Tais dispositivos estavam em sintonia com o CPP, que exigia a nomeação de curador ao réu menor, isto é, maior de 18 e menor de 21 anos. Todavia, com a redução da maioridade civil pelo CC de 2002, que passou a ocorrer aos 18 anos (art. 5.°, caput), houve uma quebra de coerência do sistema. Tem prevalecido o entendimento de que, se aos 18 anos 0 indivíduo é absolutamente capaz no plano civil, nào será necessária a nomeação de curador ao acusado maior de 18 anos e menor de 21, no inquérito policial ou no processo penal. Se o investigado ou acusado é absolutamente capaz, sua vontade nâo precisa ser integrada ou complementada por ninguém. Em outras palavras, o CC de 2002 revogou a exigência de curador para o réu menor no processo penal.«® Tal interpretação ganhou ainda mais força com a Lei 10.792/2003, que revogou 0 art. 194 do CPP, que exigia a nomeação de curador ao acusado menor, em seu interrogatório. Alias, é de ressaltór que, diante dos termos da Súmula 352 do STF - “Não é nulo o processo penal por falta de nomeação de curador ao réu menor que teve a assistência de defensor dativo" - , a figura do curador tinha perdido completamente a razão de ser. Se a existência de defensor dativo dispensava o curador, com maior razão, no caso de defensor constituído, a desnecessidade era evidente. E, como ninguém pode ser processado sem que esteja assistido por um defensor (CPP, art. 261, caput) , a ausência de curador não poderia gerar nulidade no processo.«“ Ressalte-se, por fim, que subsiste o curador do acusado no caso de incidente de insanidade mental (CPP, art. 149, § 2.°)'. 7.8 Assistente de acusação A vitima da açào penal é fonte de prova, tanto assim que o art. 201 do CPP prevê que, sempre que possível, serão colhidas as declarações do ofendido. Mesmo na fase do inquérito policial, já há previsão de que a autoridade policial ouça o ofendido (art. 6.MV). Além dessa função probatória, a vítima também poderá intervir no processo, na qualidade de assistente de acusação. Trata-se de uma modalidade de intervenção de 67. Na jurisprudência; STp R77 103/993. 6 8 . Nesse sentido: Cf.: Mirabete, Processo penal, p. 371; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 291; Nucci, Código...,p. 591. 69. Restaria, apenas, o caso do inquérito policial e, principalmente, do auto de prisão em flagrante, em que a exigência do curador, se desrespeitada, gerava nulidade do ato. To­ davia, a jurisprudência entende que a omissão da nomeação do curador no inquérito não contamina a ação penal, inexistindo, portanto, nulidade; extinto TACrimSP, RT 645 /298; TJPR, RT 583/382.

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terceiro, facultativa no processo penal. O assistente não é uma parte necessária, mas apenas uma parte contingente. Sendo, pois, uma parte assessória, com poderes para intervir no processo e não para propor ou promover a ação penal, é que não se pode concordar com posição doutrinária que considera ser o assistente de acusação incompatível com a nova ordem constitucional, na medida em que o art. 129,1, da Constituição conferiu ao Ministério Público o poder de “promover, privativamente, a ação penal pública”. Melhor seria, porém, que tal figura fosse denominada “assistente do Ministério Público”, do que “assistente de acusação”, na medida em que na ação penal privada também há acusação, mas não há possibilidade de assistência, pela razão óbvia de que nela o ofendido é a parte autora.

7.8.7

Finalidade

A função do assistente de acusação é auxiliar o Ministério Público na ação pe­ nal pública. Trata-se. pois. de uma parte ad coadjuvandum. A grande discussão é se 0 interesse do assistente de acusação seria apenas patrimonial, isto é, de obter uma condenação criminal para, com isso, conseguir um título executivo a ser executado iio âmbito civil, ou se haveria um interesse mais amplo, de correta aplicação da lei no caso concreto.™ f•

^ Uma leitura do sistema recursal sugere que a finalidade da intervenção do ^ssistente é somente obter a condenação e, consequentemente, o título executivo judicial. Isso porque somente tem legitimidade para apelar da sentença absolutória IIÇPP, art. 598) ou recorrer das sentenças de impronúncia ou extinção da punibili­ dade (CPP, art. 271, c.c. art. 584, § 1.°). Ou seja, somente de sentença que não lhe .confere título executivo. Todavia, não parece ser esta a melhor interpretação. Se o interesse do assistente da acusação fosse apenas patrimonial, visando a obter uma reparação do dano, não seria admissível assistência em crime tentado ou crime de que não resultasse prejuízo material. Mais do que isso, caso a demanda cível já tivesse sido proposta e o ofendido jâ tivesse obtido a condenação civil transitada em julgado, a assistência não deveria ser admitida. Tais situações, contudo, não se verificam na prática.’ ’ Outra repercussão direta desta questão diz respeito à possibilidade de o assistente de acusação recorrer para agravar a pena. Quem considera que o interesse é mera•S o . Para Tourinho Filho (Processo..., v. 2, p. 532), a função do assistente de acusação “não é a de auxiliar a acusação, mas a de procurar defender seu interesse na indenização do dano ex delicto”. No mesmo sentido; Frederico Marques, Estudos..., p. 157. Na jurisprudência: TJSP, RT 742/599; extinto TACrirn^RI.810/621. Em sentido contrário, o STF jã reconheceu que o “interesse do ofendido n^lfes»#limitado à reparação civil do dano, mas alcança a exata aplicação dajustiça penal” (HC 71.453/GO). |i. Coerente com sua posição. Tourinho Filho (Processo..., v. 2, p. 536) afirma que “pode se estabelecer a seguinte regra; Se da prática de uma infração advier prejuízo para a vítima, poderá ela habilitar-se no processo como assistente. Se não, não”.

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mente patrimonial não admite a hipótese, pois a condenação, independentemente da pena aplicada, já constitui o título executivo. Diversamente, quem entende que o interesse é mais amplo, no sentido de buscar a correta aplicação da lei, admite o apelo para majoração da pena.” O assistente de acusação é sujeito parcial, coadjuvando o Ministério Público no exercício da tese acusatória.®® 7.8.2 Cabimento 0 assistente somente poderá se habilitar na ação penal pública, condicionada ou incondicionada. Não cabe na ação penal privada, seja ela exclusivamente privada ou subsidiária, pois nestas o ofendido é o sujeito ativo da ação, sua parte principal, e não apenas uma parte ad coadjuvandum. Há divergência sobre o cabimento ou não na figura da assistência de acusação no caso de contravenção penal. O CPP em nenhum dispositivo veda expressamente a figura do assistente da acusação no caso de contravenções, nem utiliza qualquer expressão que restrinja seu cabimento apenas aos casos de crimes. O art. 268 do CPP se refere, apenas e genericamente, á “ação penal pública". Por outro lado, a Lei 9.099/1995, ao disciplinar o procedimento sumarissimo, por meio do qual, em regra, são processadas as contravenções penais, também não traz qualquer vedação. A grande dificuldade é que, em regra, as contravenções penais não têm uma vítima ou ofendido determinado, atingindo bens de natureza supraindividual, como a “incolumidade pública”, a “paz pública", “a organização do trabalho”, a “política dos costumes" etc. Entretanto, desde que seja possível identificar um ofendido, por exemplo, na contravenção de vias de fato, não há nenhum óbice a que se admita a figura do assistente de acusação.®® Não cabe a assistência no habeas corpus ou na revisão criminal, posto que o as­ sistente de acusação somente poderá intervir em ação penal condenatória.®’

72. Na jurisprudência, admitindo o recurso para agravar a pena: STF, RTJ 112/1194, 101/1110, 83/557; STJ, RT 713/410; TJRS. RT 813/683; extinto TAMG, RT 721/512, RT 647/331. 73. Nesse sentido: Mirabete, Processo penal, p. 375. Em sentido contrário, para Tucci (Direiws egarantias..., p. 156) “o assistente encontra-se comprometido com a apuração da verdade dos fatos retratados no processo penal”. 74. 0 extinto TACrimSP já admitiu a figura do assistente de acusação no caso da contravenção de penurbação do sossego alheio, do art. 42 da LCP, por considerar tratar-se de “modali­ dade especialissima de contravenção, onde possível identificar de modo próximo e direto a figura do ‘ofendido’”, que terá a “possibilidade, portanto, de perseguir a condenação do contravemor” (Rec. 504.669-5, RT 632/312). 75. Na jurisprudência, não admitindo a intervenção em habeas corpus. STF, AgRg 70.274-l/RJSTJ, RT 666/352; extinto TAPR, RT 685/351. Todavia, o STF já admitiu que não há nulidade na intervenção oral do assistente de acusação em julgamento de habeas corpus, diante de expressa previsão no regimento interno do tribunal local, respaldada no art. 666 do CPP (RT 633/361).

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Uma vez formulado o pedido de habilitação, o Ministério Público deverá ser previamente óuvido, decidindo, em seguida, o juiz sobre a admissibilidade ou não da intervenção.™ Contra a decisão que não admite o assistente de acusação não cabe recurso, em­ bora tenha sido admitida a interposição de mandado de segurança."

7.8.3 Momento Não é possível a intervenção do assistente de acusação durante o inquérito poli­ cial. Somente durante a ação penal é que terá cabimento a intervenção do assistente, desde o início da açào penal (CPP, art. 268) até o trânsito em julgado da condenação (CPP, art. 2 6 9 ) ." Há entendimento de que o início da ação se dá com o recebimento da denúncia. Assim, o assistente somente poderia se habilitar depois de recebida a denúncia.™ Todavia, tendo em vista premissa distinta, de que o processo penal começa com o oferecimento da denúncia ou queixa, pois em tal ato jã há o exercício do direito de ãção, é de se concluir com a possibilidade de o assistente de acusação intervir tão logo oferecida a denúncia ou queixa, mesmo antes do seu recebimento. Assim, por exem­ plo, se for rejeitada a denúncia e houver recurso do Ministério Público, o assistente de acusação poderia se habilitar, inclusive para arrazoar o recurso (CPP, art. 271). O assistente de acusação não poderá participar da audiência preliminar no pro­ cedimento sumaríssimo doJECrim, em especial no que diz respeito à transação penal, 'tendo em vista que somente ao final da audiência será exercido o direito de ação, com 50 oferecimento da denúncia.®®

76. A jurisprudência é tranquila no sentido de que não cabe ao Ministério Pübüco valorar o juízo de conveniência para a babilitação, devendo sua manifestação limitai-se ao exame dos requisitos legais formais e objetivos: TJRS, R T 813/683. Na doutrina: Mirabete, Processo penal, p. 378. O STF também já decidiu que a não manifestação do Ministério Público no pedido de admissão é mera irregularidade, não gerando a nulidade do processo (RT 652/367). 77. Nesse sentido: Tourinbo Filbo, Processo..., v. 2, p. 543-544; Mirabete, Processo penal, p. 378. Na jurisprudência; extinto TACrimSP, RT 577/386. ?8 . Na jurisprudência, pelo nâo cabimento no inquérito policial; STF, RT 637/311; extinto TAPR, RT 685/351. Excepcionalmente, é possível que, durante o inquérito policial, os presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB se habilitem como assistentes, nos casos em que sejam ofendidos advogados inscritos na OAB (art. 49, parágrafo único, da EO/VB). 79. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 541. Na jurisprudência: STF, Inq. 381/ DF Em sentido contrário, o TJSP admitiu a assistência antes do recebimento da denúncia, durante o inquérito policial, por considerar que “o interesse do ofendido na apuração do fato e punição do resp on^ eljaasce desde o momento em que, pela lesão sofrida, surge o direito subjetivo, que m ^ ra W è se transmuda no jus persequendi in juditio, cuja titularidade, em face de razões sociais, pertence ao Estado quando se trata de ação pública. Não pode, portanto, seu ingresso nos autos como assistente ficar condicionado ao recebimento da denúncia, quando se instaura a instância” (TJSP, RJTJSP 78/434) 80- Na jurisprudência: extinto TACrimSP, RT 738/639.

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7.8.4 Legitimados Poderá intervir como assistente de acusação a vítima ou ofendido do delito. A vítima poderá ser pessoa física (por exemplo, o agredido, no crime de lesào corporal) ou pessoa jurídica (por exemplo, que sofreu prejuízo patrimonial no estelionato). Se a vítima for menor, o papel de assistente de acusação caberá ao seu representante legal (pai, mãe, tutor ou curador). No caso de morte da vítima, seus sucessores - cônjuge, ascendente descendente ou irmão (CPP, art. 31) - poderão se babilitar como assis­ tentes de acusação. No caso de morte do ofendido, diante da equiparação constitucional (CR, art. 226, § 3.®), a companheira ou companheiro também poderá se babilitar como assistente de acusação, nos casos em que poderia fazê-lo o cônjuge. Tem-se entendido que a ex­ pressão “na falta de", do art. 268, não indica apenas bipótese de morte, mas também de ausência em razão de fato inexorável, como a impossibilidade de manifestar vontade (por exemplo, uma vitima de tentativa de bomicidio que tenba ficado em coma).®* Também tem sido admitida a intervenção do ofendido, na qualidade de lesado, em alguns crimes que o sujeito passivo primário é o Estado (por exemplo, o particular para quem é exigida a vantagem no crime de concussão, ou a pessoa que tem contra si instaurado um processo, no caso de denunciação caluniosa).®* Limitação inerente à condição de vítima é que, no caso de processos em que há cumulação objetiva de infrações penais (por exemplo, apuram-se dois furtos, contra vítimas diversas, praticados em continuidade delitiva), decorrentes de conexão ou continência, o ofendido somente poderá se habilitar como assistente da acusação em relação ao fato do quai foi vítima, pois “sua condição de vitima náo é só o fundamen­ to, mas também um dos limites necessários aos poderes processuais do assistente”.®* Hã situações especiais em que são legitimadas a intervir como assistente de acu­ sação pessoas ou entidades que não são, a rigor, ofendidas pelo delito.. Nos processos penais por crime de responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, os órgãos federais, estaduais ou municipais, interessados na apuração da responsabilidade do Prefeito, poderão se habilitar como assistentesde acusação (Decreto-lei 201/1967,art. 2.°,§ 1.°). A Comissào de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco do Brasil poderão intervir como assistentes de acusação nos processos que tenham por objeto crimes contra o sistema 81. Na jurisprudência, não admitindo a habilitação do espólio do ofendido; STJ, RT 668/330. Q STF também considerou que é mera irregularidade a admissão do assistente de acusação seiií prova de parentesco com a vítima, não havendo que se cogitar de nulidade (RT 629/395) Também já se admitiu a habilitação de parente ilegítimo (TJMG, RT 601/368). 82. Nesse sentido: Mirabete, Processo penal, p. 376. Bechara (Da assistência..., p. 11) defende a possibilidade de aplicação analógica (CPP, art. 3.°) da legitimidade concorrente das as sociações públicas e privadas para a propositura de ação civil pública, nos termos da Lá 7.347/1985, no caso de crimes em que os bens jurídicos tutelados tenham natureza difusS coletiva ou individual homogênea.

83. Nesse sentido: Fragoso, Assistente..., p. 3.

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financeiro nacional, praticados no âmbito da atividade sujeita à disciplina e fiscaliza­ ção desses órgãos (Lei’7.492/1986, art. 26, paragrafo único). O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 80, confere legitimidade aos sujeitos mencionados no art. 82, III e IV, a se habilitarem como assistentes de acusação nos crimes do CDC e “bem como a outros crimes e contravenções que envolvam relações de consumo”. Os Presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB podem se habilitar nos inquéritos policiais e nos processos penais em que sejam ofendidos advogados inscritos na OAB (art. 49, parágrafo único, do EOAB). Em todos estes casos amplia-se a legitimidade para intervenção como assistente de acusação, posto que terceiros, que não o ofen­ dido pelo delito, são legitimados para intervir na ação penal. A Lei 10.695/2003, que alterou o procedimento dos crimes de violação de direito autoral previsto no CPP, déu legitimação às associações titulares de direitos de autor e que lhe são conexos para se habilitarem como assistentes de acusação (CPP, arts. 530-H e 530-1).®’ Se houver mais de um ofendido pelo crime, é perfeitamente possível que cada um deles se habilite como assistente de acusação (por exemplo, lesão corporal cul­ posa de trânsito em que houve três vítimas de atropelamento). Em tal caso, porém, houve pluralidade de crimes com pluralidade de vítimas, que, por força das regras de.conexão, ensejarão um processo único. Obviamente, cada vítima poderá intervir EOjno assistente em relação ao crime que lhe atingiu. Situação distinta é aquela em Epie se discute a possibilidade de uma pluralidade de sucessores do ofendido falecido aníar como assistentes de acusação. Prevalece o entendimento favorável por não haver restrição legal. Assim, por exemplo, no caso de um homicídio, o pai e a mãe da vítima poderiam se habilitar como assistentes de acusação.®’ Tem prevalecido o entendimento de que o Poder Público não pode intervir como assistente, pois seria uma superfetação a ingerência da Administração Pública na ação penal pública, movida por um órgão - o Ministério Público - que já atua em nome do Estado. Há, contudo, posição contrária, no sentido de que nem sempre é coincidente ointeresse do Ministério Público com o do Estado lesado.®’ Sft Há uma hipótese de assistente de defesa, em vez de assistente de acusado. O EOAB permi­ te que os presidentes dos Conselhos e das Subseções da OAB se habilitem nos inquéritos policiais e nos processos penais em que sejam indiciados ou acusados advogados inscritos na OAB (art. 49, parágrafo único). Nesse sentido; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 219; Nucci (Código..., p. 599) também o ádmite, desde que respeitada a ordem revista no art. 31 do CPP. Na jurisprudência, pela possibilidade da pluralidade de assistente; TJSP, RT 579/319; TjRJ, RT 519/434. Na jurisíwudência, pela inadmissibilidade: RT 466/321 e TJSP, RT 584/349. Neste último sentido, Greco Filho (Manuai..., p. 253) admite a admissáo da Fazenda Pública éomo assistente, “porque o interesepatrúnonial e a qualidade de ofendido da Fazenda nâo se confundem com a funçáo institiKmrial do Ministério Público, titular da açâo penal”. Na doutrina, pela nâo admissáo do Poder Público como assistente; Tourinho Filho, Processo..., v. ^,p. 531; Mirabete, Processo penal, p. 375. Por outro lado, na jurisprudência, o STF aceitou ^intervenção da Caixa Econômica Federal, em açâo penal da qual foi vitima de estelioíiato (RTJ 78/923). O STJ, em caso de peculato, admitiu a intervenção do poder público

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PRoasso Penal

0 corréu não poderá se habilitar como assistente de acusação no mesmo processo em que é acusado (CPP, art. 270). Isso seria possível, em tese, no caso de lesões recí­ procas. Por exemplo, em um acidente de trânsito em que bouvesse culpa recíproca, e ambos os condutores sofressem lesões corporais. O primeiro motorista seria vítima das lesões corporais causadas pelo segundo motorista. E este, por sua vez, seria vítima das lesões causadas pelo primeiro. As posições de acusado e assistente são inconcili­ áveis, nâo podendo ser exercidas simultaneamente, no mesmo processo.®' Cabe observar, por fim, que prevalece o entendimento de que a indevida admissão de quem quer que seja, na qualidade de assistente de acusação, é mera irregularidade, não acarretando a nulidade do processo.®® 7.8.5 Poderes do assistente O art. 271 estabelece os poderes do assistente de acusação, sendo-lbe permitido “propormeios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § l.° ,e 598”. Há divergência quanto à possibilidade de o assistente arrolar testemunhas. Uma corrente entende que sim, desde que não tenha sido ultrapassado o número máximo de testemunhas do Ministério Público. Outra corrente entende que não é possível pelo fato de que o momento de a acusação arrolar testemunhas é o do oferecimento da denúncia (CPP, art. 41), e o assistente somente poderá intervir depois de iniciada a ação penal (CPP, art. 268),®“ por considerar que “o interesse do bem público geral do órgão ministerial não coincide com o interesse secundário da ofendida municipalidade" (RT 667/334). O TJSP já admitiu a intervenção da municipalidade em processo por crime previsto na Lei de Parcelamento do Solo Urbano (RT 688/295), por peculato (RT 718/384), por estelionato e formação de quadrilha (RT710/274). O TJPR também admitiu a intervenção da municipalidade em caso de peculato (RT 649/298). 87. Nesse sentido, destacando que, em tal caso, a posição deve ser de defesa, e não de acusação: TJSP, RT 675/356. No mesmo sentido, STF, RT 631/370. Há entendimento, contudo, de que, se a sentença já transitou em julgado em relação a um dos acusados (por exemplo, o pri­ meiro motorista foi absolvido em primeiro grau e o Ministério Público não recorreu), este poderia ser assistente, por exemplo, no julgamento do outro acusado (por exemplo, que foi condenado e reconeu). A justificativa é que, com o trânsito em julgado, ele deixou de ser corréu, estando extinto o processo em relação a ele. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., V. 1, p. 499; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 551; Nucci, Código..., p. 600. 88 . Na doutrina: Mirabete, Processo penal, p. 377; Damásio F. de Jesus. Código..., p. 218. Na jurisprudência: STF RHC 62.815/PE e RTJ 72/686; TJSR KT 621 1X19, RT 579/319, RT545/330. 89. Pela possibilidade: Espínola Filho, Comentários..., v. 3, p. 273; Nucci, Código..., p. 600. Na jurisprudência: TJSP, Correição Parcial 326.492-3. O TJSP já admitiu que o assistente arrole testemunhas, se ocorrer “antes do início da instrução acusatória, em número que, somado ao das testemunhas arroladas na denúncia, não ultrapasse o número legal, e desde que nâo haja oposição do Parquet” (RT 789/606). No mesmo sentido, admitindo que sejam arroladas testemunhas: TJMT, RT 669/339. Em sentido contrário, não admitindo que o assistente

Sujeitos processuais

301

Provavelmente tentando superar tal óbice, Mirabete admite que o assistente de acusação arrole testemunha, na hipótese em que “ojuiz, por ocasião do recebimento da denúncia, possa, concomitantemente, admitir a assistência e deferir a inquirição de testemunhas arroladas pelo assistente. ”®®Todavia, tal proposta não elimina o problema, pois somente depois de oferecida a denúncia é que o assistente poderá se habilitar, e, neste caso, o momento para arrolar testemunhas de acusação já estará superado. Nada impede, porém, que o assistente de acusação sugira ao juiz a oitiva de tes­ temunhas, como testemunhas do juízo, nos termos do art. 209 do CPP, ou as arrole, como prova complementar, na fase do art. 402 do CPP. O art. 271 distingue, com clareza, os poderes do assistente de “propor meios de prova”, de um lado, e “requerer perguntas às testemunhas”, de outro. Ou seja, o assistente não poderá requerer a prova testemunhal, como em relação aos demais meios de prova, mas apenas formular perguntas para as testemunhas já arroladas pela acusação e pela defesa.®' Ao mais, há o óbice de que, quando se toma possível a sua habilitação, o mo­ mento procedimental para que as testemunhas sejam arroladasjá terá sido ultrapassado.®’ Outro importante papel do assistente de acusação é a possibilidade de interpor recurso de algumas decisões específicas. O assistente de acusação pode interpor ape­ lação contra a sentença penal absolutória, se o Ministério Público assim não o fizer (CPP, art. 598). Por outro lado, da conjugação do art. 271 com o art. 5 84, § 1.“, do CPP extrai-se, também, a legitimidade do assistente de acusação para recorrer em sentido estrito contra as sentenças de impronúncia ou extintivas da punibilidade. Todavia, com a Lei 11.689/2008, a sentença de impronúncia passou a ser impugnada mediante apelação (CPP, art. 416). A mudança do recurso, porém, não deve interferir na legitimiidade, ainda que restrita, do assistente de acusação para recorrer da impronúncia; antes da reforma, o fazia mediante recurso em sentido estrito; depois, por meio de apelação. Por outro lado, o assistente náo pode aditar a denúncia oferecida pelo Ministério Público, ante a falta de previsão legal no art. 271 do CPP®’ Há, ainda, outros dispositivos específicos que conferem poderes ao assistente de acusação, que poderá indicar assistente técnico (CPP, art. 159, § 3.°) e propor o desaforamento no procedimento do tribunal do jú ri (CPP, art. 427, caput). 7.8.6 O assistente e a testem u n ha O assistente não poderá intervir como testemunha, havendo insuperável in-SCompatibilidade entre tais papéis. Igualmente, não poderá ser assistente de acusação

90. 91. 92. §3.

arrole testemunhas; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 544-545; Greco Filho, Manual..., p. 254. Nesse sentido, na jurisprudência; extinto TACrimSP, RT 615/313. Processo Penal, p. 379. Na jurisprudência; STF AgRg no Agin 191.684-2 (RT752/529). Contudo, o STF já admitiu que o assistente de acusaçáo adite o libelo para arrolar testemu­ nhas (RT 534/456). Na jurisprudência: STF, RT 737/521.

302

P ro cesso P e n al

e prestar declaração como ofendido, nos termos do art. 201 do CPP Há uma incom­ patibilidade ontológica entre tais posições, Uma delas é pane, sujeito processual, a outra é fonte de prova.“® Por outro lado, se o assistente “já tiver deposto antes de se habilitar nos autos, seu depoimento se desvaloriza a ponto de se tomar imprestável”.“’

JU IZ

D os impedimentos e incompatibilidade dos juizes

94. Na jurisprudência: TJSP, RT 593/315. 95. Na jurisprudência; extinto TACrimSP, RT 646/295.

Sujeitos processuais Suspeiçâo do juiz

Suspeiçâo dos jurados

PERITO S, IN TÉRPRETES, SER V EN TU Á R IO S O U F U N C IO N Á R IO S D A jU S T IÇ A

Hipóteses de suspeiçâo/ impedimento dos juizes

Aplicam -se a

/

Peritos, Intérpretes, serventuários e funcionários da justiça

Atos praticados = absolutamente nulos

M IN ISTÉ R IO P Ú B L IC O Natureza jurídica

Qrgão essençial.à. adminis.v.ísãp da.jsjíiisã 1 - com o autor da ação penal Participa do processo e da relação _ 2- com o fiscal da lei - ação jurídico-processual penal privada

303

304

P ro c e sso P e n al

Parte interessada ou "parte impattiaP Ministério Público = parte acusadora (parcial)

Princípios do Ministério Público

Impedimentos do Ministério Público

Hipótese específica Art. 258 CPP luiz ou parte cônjuge ou parente

V Promotor pode declarar-se impedido •Z Atos praticados não são nulos (entendimento predominante) •Z fórticipação no inquérito não caracteriza impedimento (salvo se atuou como testemunha)

AUTORIDADE PO LICIA I Incabível a exceção de suspeição pelas partes - autoridade deve se abster de atuar no inquérito em hipótese de suspeição

Sujeitos processuais ACUSADO A C U S À D O = sujeito passivo da ação penal condenatória ^

Pessoa jurídica Pessoa jurídica > crimes ambientais

Inaplicabilidade/adaptação de alguns institutos processuais

A autodefesa do acusado

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P ro c e s s o P e n al

DEFENSOR Defesa técnica ^

c

Contraditório - faridade de armas entre as partes

j

Finalidade da defesa Defesa do interesse do acusado Aspectos terminológicos

Defensor constituído/ procurador

Escolhido pelo acusado

Defensor dativo

Defensor público/advogado particular oferecido e renumerado pelo Estado

Defensor a d h oc

Nom eado para a prática específica de um ato Defesa técnica necessária, indisponível e efetiva Nenhum acusado - ainda que ausente ou foragido - poderá ser processado sem defensor

CURADO R

ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO

Capítulo 8 Questões e processos incidentes 8.1 Questões e processos incidentes ' O Título VI do Livro I do Código de Processo Penal, denominado “Das questões e processos incidentes”, disciplina fenômenos muito distintos: questões prejudiciais (CPP, arts. 92 a 94), exceções (CPP, arts. 95 a 111); incompatibilidades e impedimen­ tos (CPP, art. 112); conflito de jurisdição (CPP, arts. 113 a 117); restituição de coisa apreendida (CPP, arts. 118 a 124); medidas assecuratórias (CPP, arts. 125 a 144-A); ■incidente de falsidade documental (CPP, arts. 145 a 148); incidente de insanidade mental (CPP, arts. 149 a 154). ^ Do ponto de vista etimológico, incidente traz a ideia de algo que cai sobre outra ^bisa.' No caso processual, o incidente é algo que incide - cai - sobre um processo, iboutrinariamente, é possível distinguir as questões incidentes, procedimentos in|:identes e processos incidentes.' Questão é um ponto duvidoso.® Assim sendo, no curso de um processo é normal |urgir uma série de questões. O que diferencia uma questão não incidental de outra, ibta incidental, é o caráter acessório e acidental desta. A questão incidental tem caráter í.acessoriedade porque, para ter vida, depende da existência prévia de um processo l em curso.® Por outro lado, seu caráter de acidentalidade decorre do fato de que a pjuestào incidente é um acontecimento anormal no processo, cuja resolução afetará )Seu normal desenvolvimento.® Surgida a questão incidental, a alteração que ela provoca no processo constituiiou um simples “incidente” ou um “procedimento incidental”.« Se a resolução da uestào implicar simplesmente a existência de “momentos novos”' no procedimento I . Do laum Incidentem, part. pres. de incidere. 1. Segue-se, nesse ponto, o profundo estudo desenvolvido por Antonio Scarance Fernandes sobre Incidente processual. :3. Segundo definição clássica de Camelutti (Sistema..., v. 2. p. 15), “questão pode se definir : em um ponto duvidoso de fato ou de direito". I4- Scarance Fernandes, Incidente processual, p. 46. 5. Idem, ibidem, p. 49. Idem, p. 52. A expressão é de Scarance Fernandes, Incidente processual, p. 52, que em outra passagem da obra lembra expressão da Corte de Cassação de Turim, que se referia ao incidente como “abertura de parêntese” (ib., p. 42).

308

Pro cesso Penal

originário, formado por um ou mais atos não inseridos na sequência procedimental normal, mas que não chegam a caracterizar um novo procedimento, haverá um sim­ ples “incidente”. Por outro lado, o “procedimento incidental” caracteriza-se por sua autonomia estrutural, em relação ao procedimento originário, bem como pela sua vinculação funcional com o procedimento principal.® Por fim, é possível que, mais do que um “procedimento incidental”, surja um verdadeiro “processo incidental”. Partindo da posição de que o processo deve ser compreendido como procedimento mais relação jurídica processual,“ é de concluir que somente há processo incidente quando, além da autonomia estrutural e da vinculação funcional do incidente, surge outra relação jurídica processual, com outro objeto litigioso.“* A partir dos conceitos acima, é fácil perceber que, dos fenômenos tratados no CPP, no título em comento, o linico que constitui verdadeiro “processo incidental” é o “incidente de falsidade ideológica" (arts. 145 a 148). As “questões prejudiciais", ou melhor, arguições de questões prejudiciais, visando à suspensão do processo ( CPP, arts. 92 a 94), são simples incidentes, sem autonomia procedimental. O mesmo se diga em relação às exceções (arts. 95 a 111), às incompatibilidades e impedimentos (art. 112) e ao conflito de jurisdição (CPP, arts. 113 a 117). Por outro lado, são “procedimentos incidentais”, com autonomia estrutural, a restituição de coisa apreendida (arts. 118 a 124), as medidas assecuratórias (arts. 125 a 144-A) e incidente de insanidade mental (arts. 149 a 154). 8 .2

Questões

prejudiciais

8.2.1 Noçõesgerais A questão prejudicial é uma questão que se coloca em relação com outra, por meio de um vínculo de subordinação. Assim, a resolução da questão prejudicial irá condicionar o sentido ou o conteúdo da questão a ela subordinada.** A resolução da questão prejudicial é um antecedente lógico da solução a ser dada à outra questão (por exemplo, antes de saber se houve bigamia, é preciso saber se o primeiro casamento é válido) cujo resultado condiciona o conteúdo da decisão prejudicada (por exemplo, se o primeiro casamento é nulo, o acusado deverá ser absolvido da acusação de bigamia). A solução da questão prejudicial, como explica Barbosa Moreira, “é antecipação do juízo sobre a outra questão. Resolvida a prejudi­ cial, resolvida está, virtualmente, a outra, bastando que o juiz tire as consequências lógicas de rigor”.*® 8 . Scarance Fernandes, incidente processual, p. 8 8 . 9. Por ceno, o conceito de processo incidente depende, obviamente, do conceito de processo que se adote. Sob o tema, cf., infra, cap. 12, seção 12.1. 10. Scaran ce Fernandes, incidente processual, p. 93. 11. Nesse sentido; Barbosa Moreira, Questões prejudiciais,.., p. 85; Scarance Fernandes. PreiR'

dicialidade. .. p. 51. 12. Barbosa Moreira, Questões prejudiciais..., p. 8 6 .

Questões e processos incidentes

309

Importante destacar que não se deve confundir a questão prejudicial, de um lado, com a questão preliminar, de outro. O elemento comum entre ambas é o traço de prioridade em relação à solução de outras questões.'’ A questão prejudicial é an­ tecedente lógico da questão prejudicada, assim como a questão preliminar é antece­ dente lógico da questão principal. Por outro lado, existem diferenças entre eles que desaconselham a utilização das expressões de forma atécnica e, até mesmo, como se fossem sinônimas. A questão preliminar condiciona a existência da questão princi­ pal'’ (por exemplo, somente se as condições da ação estiverem presentes - questões preliminares - se passa ao exame do mérito - questão principal) ; a questão prejudicial condiciona o conteúdo da decisão prejudicada, que fica subordinado ao julgamento da questão prejudicial.'’ Finalmente, é de observar que a classificação das questões prévias em prelimi­ nares e prejudiciais não repousa em caracteristicas inerentes às próprias questões, ronsideradas em si mesmas, mas no tipo de relação entre a questão prévia e a questão jue dela depende.'®

9.2.2 Classificações \T

, Quanto à natureza das questões, isto é, da matéria objeto da questão prejudicial ètncomparação com a matéria da questão prejudicada ou subordinada,'’ costuma-se 13. Barbosa Moreira, Questões prejudiciais..., p. 78. pi. Justamente por isso, como acentua Barbosa Moreira (Questões prejudiciais..., p. 82), a resolução da questão preliminar não permite que nada se conclua quanto ao teor que virá a ter o julgamento da questão principal. Quando muito, a solução que o juiz der à questáo I preliminar “poderá ser tal que o dispense de ir além no trabalho de julgar (...] mas nada diz, por si, sobre como virá a se pronunciar o juiz sobre a questão principal” (ib., p. 83). B T Nesse sentido; Barbosa Moreira, Questões prejudiciais..., p. 82; Scarance Fernandes, Prejudidolidade..., p. 51, Id., Incidente processual..., p. 6 6 ; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 172; Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 185. Barbosa Moreira, Questões prejudiciais..., p. 88-89, que acrescenta: “[...] daí fica sem sentido, na perspectiva escolhida, qualquer alusão à ‘questão prejudicial’ ou a ‘questão preliminar’ que não se reporte à outra questáo, subordinada, Náo se há de dizer de uma questão X que seja, em si mesma, prejudicial ou preliminar, mas que é prejudicial ou preliminar da questão Y. Ambos os conceitos sáo essencialmente relativos” (destaques no original). Tt;' Todavia, como bem observa Barbosa Moreira (Questões prejudiciais e a coisa julgada, p. 55), tal distinção deve ser considerada em face da divisão de trabalho judicial e não da naTureza da matéria em si, tendo em vista que “a divisão do aparelho judicial do Fstado nem sempre corresponde exatamente à divisão do ordenamento jurídico em seus vários ramos, a homogeneidade ou heterogeneidade será apurada tendo em vista a inclusào ou não inclusão de ambas as controvérsias na esfera atribuída ao conhecimento da seção especializada ou, 'como em geral se fala com menor proptjeM te-M mesma jurisdição. No Direito brasileiro, p. ex., será heterogênea a prejudicialidade penal no processo civil, ou a civil no processo penal, ou a trabalhista em qualquer dos dois, e assim por diante; não haverá, porém, he­ terogeneidade se em processo civil surgir prejudicial de Direito Comercial ou de Direito Administrativo ou de Direito Constitucional, porque os órgãos da jurisdição civil podem normalmente conhecer de tais matérias".

310

P rocesso P enal

classificar questão prejudicial em homogênea e heterogênea. Haverá prejudicial homogênea quando a questão prejudicial e a prejudicada pertencerem ao mesmo ramo do direito (ambas tiverem que ser decididas no âmbito penal). Por exemplo, decidir o juiz penal sobre a existência do furto, para saber se houve receptação. De outro lado, haverá prejudicial heterogênea quando a questão prejudicial tiver que ser decidida fora do âmbito penal, em que se resolverá a questão prejudicada ou su­ bordinada. Por exemplo, a validade do primeiro casamento, a ser decidida no âmbito civil, será uma questão prejudicial em relação ao crime de bigamia, que deverá ser julgado pelo juiz criminal. As questões prejudiciais disciplinadas nos arts. 92 e 93 do CPP, que geraram a suspensão, obrigatória ou facultativa, do processo penal, são prejudiciais hetero­ gêneas.'® Isto é, a resolução de uma questão não penal'“ prejudica a decisão de uma questão penal. Outra classificação sempre lembrada diz respeito à suspensão do processo. Con­ forme a questão prejudicial determine obrigatória ou facultativamente a suspensão do processo em que se decide a questão prejudicada, fala-se em prejudicial obrigatóriae em prejudicial facultativa. De observar que a obrigatoriedade ou facultatividade nào é intrínseca às questões, mas à suspensão do processo.™ Não é, pois, algo que decorra da natureza da questão prejudicial, mas de uma escolha de política legislativa. A definição de quando haverá uma questão que obrigue a suspensão de outro processo, ou quando essa suspensão é facultativa, é feita pelo legislador. No CPP bra­ sileiro, considerando a natureza das questões em si, é possível distinguir, de um lado, as questões prejudiciais sobre “estado civil das pessoas”, que determina a suspensão obrigatória do processo penal em que se debate a questáo prejudicada (art. 92, caput); e questões prejudiciais diversas, cuja suspensão do processo penal será facultativa (art. 93, caput). Nada obsta que no caso de concurso de crime se reconheça uma questão prejudi­ cial somente em relação a um dos delitos. Nesse caso, não há motivo para a suspensão 18. Custódio da Silveira (Da prejudicialidade..., p. 185) formula a seguinte definição de prejudicialidade jurídica heterogênea: “[...) é prejudicial a questão extrapenal, da competência do juízo cível, que constitui antecedente lógico-jurídico, autônomo e necessário, em relação ao reconhecimento da existência da infração penal”. 19. Não se trata, portanto, apenas de questões cíveis, como algumas vezes se afirma. Como bem observa Espínola Filho (Código..., v. 2, p. 239), “se bem sejam referidas, geralmente, como questões cíveis, não quer dizer que as prejudiciais versem sempre sobre assunto de direito civil; podem ventilar matéria de direito privado não civil, como o comercial, o industrial, o aéreo, o marítimo, e, mesmo, matéria de direito público, como o constitucio­ nal, o administrativo, o corporativo, e, também, matéria de direito internacional privado •] Também Custódio da Silveira (Da prejudicialidade..., p. 179) refere-se à natureza extrapenal' da questão prejudicial. No mesmo sentido: Magalhães Noronha, Curso..., p. 57. Ainda de forma semelhante. Acosta (O processo..., p. 196) refere-se à questão “não penal". 20. Greco Filho, Manual.... p. 167.

Questões e processos incidentes

311

de todo o processo, mormente porque o prazo prescricional ficará suspenso somente em relação ao crime cuja sqlução depende de resolução da questão prejudicial hete­ rogênea. Assim sendo, caberá ao juiz desmembrar o processo e suspender somente o feito em que restar o crime cuja existência dependa da questão prejudicial.®*

8.2.3 Questões prejudiciais sobre estado das pessoas .

As questões prejudiciais sobre o estado civil das pessoas implicam a suspensão obrigatória do processo penal (CPP, art. 92, caput) até que elas sejam resolvidas no âmbito civil. Por outro lado, as questões prejudiciais sobre questões diversas poderão, facultativamente, implicar a suspensão do processo penal. f A razão de ser de tal distinção, em relação às demais questões prejudiciais, está ha. disciplina da prova penal e, em especial, na regra do art. 155, parágrafo único, do |€PP, que prevê: “Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições stabelecidas na lei civil". Se, nojuízo penal, a prova quanto ao estado das pessoas soaente poderá ser feita na forma em que determinar a lei civil (em regra, instrumento público, como certidão de casamento, certidão de nascimento, certidão de óbito |tc.), havendo dúvida sobre questão civil, o juiz penal deverã aguardar a decisão a ser proferida em sede própria. Para que ocorra a hipótese de suspensão obrigatória do processo penal, o art. caput, do CPP exige que; (L) a questão prejudicial seja sobre o “estado civil das soas”; (2) que se trate de questão da qual dependa a existência da infração penal; 3) que a questão seja considerada pelo juiz como “séria e fundada”. O “estado da pessoa”, explica Clóvis Bevilaqua, “[...] é o seu modo particular de existir. Pode ser físico, de família e político. O ado físico é o modo de ser da pessoa em relação à integridade mental (sãos de espirito ^alienados), à idade (menores e maiores), ao sexo (homem e mulher). O estado de íriília distingue as pessoas em; casadas, solteiras, parentes e afins. O estado político fecende a ordem privada. É o direito constitucional que determina quem é cidadão émé estrangeiro.”®® Cardoso de Gusmão, Código..., p. 47. '■2." Bevilaqua, Código Civil..., v. 1, p. 78. Por sua vez, Eduardo Espínola Filho (Código..., v. 2, p. 245-246), amparado nos ensinamentos de seu pai, Eduardo Espínola (Sistema do direito tívil brasileiro, 3 ed., 1938, p. 345), em detalhada lição, aponta que: “(...] o estado de uma 'pessoa deve ser considerado: 1" em relação ao seu caráter de parte da sociedade política; t2“ em suas relações de ordem privada, como parte da sociedade familiar; 3° cm relação à . própria pessoa. Em razão do estado de cidadania, vê-se a pessoa em duas posições jurídicas, ;(que muito inQuem na sua capacidade (j^ gn isjçâo e exercício dos direitos, não só políticos, pilas até civis, ou são nacionais, ou são enraíTgeiros; também se distinguindo os nacionais. |conforme são natos ou naturalizados. Configurando as qualidades constitutivas do estado EÚe família, e as que formara o estado individual, o estado civil, deve esclarecer-se: atendi|iã a sua posição na família, as pessoas se encontram em diversos estados, conforme são Easadas, solteiras ou viúvas, se são maridos, mulher, filhos, se são parentes ou estranhos,

312

P r o c e s s o P enal

A questáo prejudicial que autoriza a suspensão do processo penal é aquela que diga respeito à existência da infração penal, isto é, integra, como elementar, o tipo penal, não bastando uma questão civil ou extrapenal sobre o estado das pessoas que tenha relevância para agravar ou atenuar a pena.” Por exemplo, ser o acusado casado anteriormente é uma questão da qual depende a existência do crime de bigamia (CP, art. 235); por outro lado, ser ele casado com a vítima é uma circunstância agravante (CP, art. 61, II,e), queaumentaapena, mas não condiciona a existência da infração. A questão sobre o estado da pessoa de que dependa a existência ou a tipificação do crime ainda deverá ser “séria e fundada”. Questão séria é a questão verossímil, que não é temerária ou artificial. Não é séria, por exemplo, a alegação de que o primeiro casamento é nulo, porque o cônjuge era um extraterrestre, ou que os cônjuges eram irmãos em “vidas passadas”. Por outro lado, a “questáo fundada” é aquela que tem algum suporte probatório. Embora não se exija prova plena, deve haver um indício de prova que dê “fundamento” à questão. Será também infundada a questão que, caso se considere ocorrente, não tenha o efeito jurídico alegado pela parte (por exemplo, a parte alega que discutirá no cível a nulidade de seu primeiro casamento porque descobriu que foi traído pela esposa, após o matrimônio). Não é necessário, porém, que a questão tenha sido suscitada por qualquer das partes, podendo o juiz penal reconhecer sua existência e determinar a suspensão do processo, mesmo no silêncio das partes.” Também poderá determiná-la mesmo que as partes se manifestem concordes quanto à questão (por exemplo, a validade do casamento ou a condição de filho).” No caso da questão prejudicial do art. 92, caput, do CPP, o processo deverá ficar suspenso “(...) até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada também influindo o fato de haver laços de família, pelo casamento, ou ligações naturais (família ilegítima), ou resultante de adoção. Quanto ao estado individual, há várias posições decorrentes da própria natureza do homem, que lhe modificam a aptidão para ter direitos c obrigações, apresentando modalidades do estado civil, conforme a idade (maiores, menores púberes e impúberes), a sanidade mental (sãos de espírito e loucos), o se.xo (homens e mu­ lheres); outras, ocasionando diversidade de efeitos jurídicos, decorrem da circunstância de estar no domicilio, ou dele se ter ausentado por longo tempo (ausentes); ainda há as que resultam de determinações legais, no intuito de acautelar os interesses da própria pessoa, ou de terceiro, donde surgirem as figuras do pródigo, do falido, do interdito civilmente, do condenado criminalmente, podendo também atender-se a que, em casos tais, a consideração social é circunstância de ordem a influir sobre o estado da pessoa”. Nesse ponto, porém, correta a observação de Nucci (Código..., p. 288), no sentido de que não caracterizará questão prejudicial do art. 92 do CPP a questáo referente a ínimputabilidade do acusado, posto que para a comprovação de tal estado há meio específico, consistente no incidente,, de insanidade mental, previsto nos arts. 149 a 154 do CPP. 23. Nesse sentido: Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 186. 24. Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 212. 25. Idem, ibidem.

Questões e processos incidentes

313

em julgado Durante esse período de suspensão em que se aguarda o término do processo civil, também ficará suspenso o prazo prescrícional (CP, art. 1 1 6 ,1). Todavia, durante o período de suspensão, ojuiz penal poderá determinar no pro­ cesso criminal a “inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente” (art. 92, caput, do CPP). Somente serão realizadas as provas reputadas urgentes, o que, no caso de oitivas de testemunhas, deve ser interpretado no sentido do art. 225 do CPP (por exemplo, uma testemunha idosa ou enferma). Também poderão ser realizadas, por exemplo, perícias cujo passar do tempo as tome inviáveis. Por outro lado, a realização de tais provas somente terá sentido em relação a them aprobandum diverso da questão prejudicial sobre a existência do crime (por exemplo, uma causa de aumento de pena ou uma circunstância atenuante), pois, quanto a esta, o ju iz penal estará vinculado à decisão do juiz cível. Justamente porque a questão sobre estado da pessoa implica a suspensão obri­ gatória do processo penal, até o trânsito em julgado do processo civil, o CPP prevê um mecanismo para que se possa dar celeridade à resolução de tal questão: legitima o Ministério Público a atuar no campo civil.™ Assim, nos casos de crime de ação penal pública, se ainda nào tiver sido proposta a demanda civil em que se discuürá a questão prejudicial, o Ministério Público passará a ter legitimidade para “promover a ação cjvil”, ou para “prosseguir na que tiver sido iniciada, com a citação dos interessados” (CPP, art. 92, parágrafo único).

si:

8/2.4 Q u estõ es preju d iciais diversas d o e s ta d o d as p e s s o a s

j As questões prejudiciais sobre temas diversos do estado das pessoas são disciplina­ das no art. 93 do CPP, que estabelece a facultatividade da suspensão do processo penal. ^ Como em tal tema, diversamente do que oco ae quanto ao estado das pessoas, hão há vinculação probatória para o juiz penal, a suspensão desse processo é ape­ nas facultativa. E, caso não haja suspensão, o juiz penal deverá resolver, incidenter tíihtum, a questão prejudicial (por exemplo, se a coisa era alheia ou própria, para a .^acterização ou não do crime de furto). A resolução da questão prejudicial nào é um verdadeiro julgado, com característica de imutabilidade, limitando-se ojuiz criminal á resolvê-la, de forma precária, e com valor limitado apenas para o bm de solucionar a^guestão penal prejudicada.” Para que ocorra a hipótese de suspensão facultativa do processo penal, prevista no art. 93, caput, do CPP, exige-se: ( 1) a questão prejudicial diversa do “estado civil das soas”; (2) que se trate de questão da qual dependa a existência da infração penal; ■áÒ- Segundo Espínola Filho (C ód ig o...,'^ rjé'249) “o órgão do Ministério Público, competente ' g para a iniciativa da instauração da ação cível, ou promoção do andamento da já iniciada, gi será, evidentemente, o que funciona no processo penal, suspenso à espera da solução pre^ ju d icial”. Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 193.

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P r o c e s s o P en a l

(3) que já tenha sido proposta a ação para resolver a questão nojuízo cível; (4) que a “questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite”. A questão diversa do estado das pessoas pode ser das mais variadas ordens. Por exemplo, quem é o proprietário da coisa, a ser decidida nojuízo cível, em relação ao processo por crime de furto (CP, art. 155); ou a titularidade de um direito de autor, em relação ao crime de violação de direito autoral (CP, art. 184); os limites de uma propriedade, no crime de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia (CP, art. 164) etc. Igualmente se exige que se trate de questão prejudicial sobre existência da in­ fração penal, náo bastando que envolva aspectos de majoração ou redução da pena. Também haverá suspensão facultativa do processo penal em razão de questão extrapenal prejudicial da qual dependa não propriamente a existência, mas a tipificação do crime imputado. Por exemplo, imputa-se ao acusado o crime de furto, que tem por elemento a subtração de coisa alheia (CP, art. 155), mas ele alega ser coproprietário da coisa, com a sedizente vítima, e que já discute, em demanda cível, tal condição de condômino, o que, se procedente, descaracterizaria o furto para o crime de furto de coisa comum (CP, art. 156).®® Diferentemente do que ocorre na hipótese do art. 92, no caso da suspensão facul­ tativa (CPP, art. 93, caput), é necessário que a açào cível na qual se discuta a questão prejudicial (por exemplo, a titularidade do direito autoral) já tenha sido proposta quando se requer a suspensão do processo penal pela necessidade de decisão de preju­ dicial heterogênea (no caso, por crime de violação de direito autoral do art. 184 do CP). Finalmente, é necessário que se trate de “questão de difícil solução”, por exem­ plo, que tenha uma controvérsia fática a exigir atividade probatória complexa (por exemplo, a definição das divisas de duas fazendas, em relação ao crime do art. 164 do CP, de introdução de animais em propriedade alheia). Questões de fácil solução, como quem é o proprietário de um imóvel ou de um automóvel, cuja comprovação pode ser feita por documento público, não autorizam a suspensão do processo. Além disso, não pode se tratar de matéria em relação à qual haja limitação probatória na lei civil,™ uma vez que, neste caso, o juiz penal poderá resolver a questão mais facilmente, sem tais obstáculos legais para a reconstrução dos fatos. No caso da questão prejudicial do art. 93, caput, “o ju iz m arcará o prazo da suspensão, que poderá ser razoavelmente prorrogado, se a dem ora não fo r imputável à 28. Nesse sentido: Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 197. 29. Por exemplo, o art, 401 do CPC prevê que; “A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente no Pais, ao tempo em que foram celebrados”. No caso de um processo penal que envolvesse um contrato de valor superior ao previsto no art. 401 do CPC, o juiz penal não suspenderá o processo criminal e poderá se convencer de que houve ou não o contrato, quais os seus termos, a data de vencimento das parcelas, entre outras coisas, com base exclusivamente na prova testemunhal, o que seria vedado ao juiz cível.

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parte” (art. 93, § 1.®, do CPP). Uma vez expirado tal prazo, sem que tenha havido decisão no processo civil, d juiz criminal determinará o prosseguimento do seu pro­ cesso, resolvendo, de forma incidental, a questão civil pela qual ficara aguardando.™ Justamente porque não é necessário esperar o término do processo civil, nada impede que, diante da decisão de primeiro grau, ainda que recorrível, o juiz penal retome o andamento do processo.’ ' Tal solução, porém, tem o risco de gerar decisões confli­ tantes, em caso de provimento do recurso,” Igualmente na questáo prejudicial de suspensão facultativa do processo, uma vez determinada a suspensão do feito, o prazo prescricional também ficará suspenso (CP, art. 116,1). Assim como na suspensão obrigatória, também deverão ser realizadas as provas que o juiz penal repute urgentes (CPP, art. 93, caput, parte final). Para que ocorra a suspensão facultativa do processo exige-se que a ação cível já tenha sido proposta (CPP, art. 93, caput). Nesse caso, se o processo penal em que surgiu a questão tiver sido instaurado por ação penal pública, confere-se ao Ministério Público legitimidade apenas para intervir no processo civil já em trâmite, “para o fim de promover-lhe o rápido andamento” (CPP, art. 93, § 3.®).

. 8.2.5 Legitimados ku'' A alegação da suspensão do processo, obrigatória ou facultativa, em razão da existência de questão prejudicial heterogênea, poderá ser requerida por qualquer das ^partes, bem como decretada, ex officio, pelo juiz (CPP, art. 94). No que se refere às gpartes, incluem-se o Ministério Público, o querelante e o acusado, havendo também Éuem defenda a possibilidade de requerimento pelo assistente de acusação.”

^ 2 .6 Momento de arguição As questões prejudiciais somente podem ser arguidas no curso do processo, não lendo cabível levantá-las durante o inquérito policial.”

31. E2.

;. I |p.

Anota Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 657) que, “se a demora for imputável à parte [que arguiu a preliminar], expirado o prazo, o juiz penal fará prosseguir o processo, retomando sua competência para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação e da defesa". Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 152; Magalhães Noronha, Curso..., p. 58; Mirabete, Processo Penal, p. 222. Fm sentido contrário posiciona-se Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 211), afirmando que, “na fixação do prazo de suspensão, cumpre ao Juiz Penal levar na devida conta o período de tempo normalmente necessário para que uma causa cível possa ser definitivamente julgada. Não basta, naturalmente, o julgamento de primeiro instância, pois antes do trânsito em julgado eficácia teria a decisão cível sobre a questão prejudicial, em relação ao reconhecimento ou não da existência da infração penal”. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p, 250. Nesse sentido: Mirabete, Processo Peruil, p. 220; Damásio E. d ejesu s. Código..., p. 120; Nucci, Código..., p. 278-279. Na jurisprudência: STF, RHC n° 52.487/SP (RTJ 71/46).

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P rocesso P enal

Normalmente, a questão prejudicial é arguida pela defesa, na resposta escrita (CPP, art. 396-A). Todavia, caso não seja alegada a questão prejudicial em tal oportunidade, não haverá preclusão, podendo a prejudicial ser arguida, ou em momento posterior, ou reconhecida ex officio pelo juiz (CPP, art. 94), principalmente no caso de questão prejudicial envolvendo estado das pessoas (CPP, art. 92). Como 0 art. 94 do CPP refere-se a “requerimento das partes”, nada obsta que seja requerida pelo Ministério Público ou querelante,®’ e não precisa sê-lo no momento do oferecimento da denúncia ou queixa. Poderia ser alegada perante os tribunais? A resposta é positiva. Sem dúvida, no caso de ação penal de competência originária dos tribunais.®« Mesmo nos procedi­ mentos de competência do juiz singular, a questão prejudicial pode ser arguida em grau de recurso, mormente no caso de prejudicial sobre estado da pessoa, em que a suspensão do processo era obrigatória. Tal alegação, contudo, se acolhida, implicará, na verdade, o reconhecimento da nulidade do processo de primeiro grau, que deveria ter ficado sobrestado enquanto a sentença pendia de julgamento no juízo cível. No máximo, poder-se-ia admitir o aproveitamento das provas urgentes, pois assim permite 0 art. 92, caput, parte final. 8.2.7 Recurso Determinada a suspensão pelo juiz, caberá o recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, XVI). Por outro lado, se o juiz indeferir o pedido de suspensão, a decisão será irrecorrivel. Todavia, principalmente em caso de questão prejudicial quanto ao estado das pessoas (an. 92 ), a parte prejudicada poderá voltar a alegar a questão em sede de apelação ou interpor habeas corpus. A sentença penal proferida sem que tenha havido a suspensão do processo, no caso de prejudicialidade quanto ao estado das pessoas, será absolutamente nula.®« Mesmo no caso de prejudicialidade sobre questão diversa, em que a suspensão do processo é apenas facultativa (art. 93), quando, após a sentença penal condenatória (por exemplo, por crime de receptação), o resultado do processo em que se discute a questão prejudicial gerar contradição com o resultado penal (por exemplo, reconhe­ cimento de inexistência do furto), será cabível a revisão criminal para uniformização das decisões. 35. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 250; Câmara Leal, Comentdrios..., v. 1, p. 314. 36. Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 212-213. 37. Nesse sentido; Custódio da Silveira, Da prejudicialidade..., p. 214; Mirabete, Processo Penal, p. 2 2 0 . 38. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 246; Custódio da Silveira, Da prejudiciali­ dade..., p, 214; Mirabete, Processo Penal, p. 220. Na jurisprudência, no tocante à prejudicial do art. 92: TJSP, Ap. Crim. n“ 31.716 (RT 194/109); no tocante à prejudicial do art. 93, TJSC.RT 473/385.

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8.3 Da exceção de suspeição e da alegação de impedimento e incompatibilidade I

A palavra exceção possui diversas acepções no direito processual. Em sentido mais amplo, é sinônimo de defesa. No tocante ao seu conteúdo, em uma acepção lata, trata-se de defesa processual que tem por objeto as condições da ação e os pres­ supostos processuais. Em um conceito mais estrito, as exceções são defesas sobre os pressupostos processuais. Por fim, uma característica da exceção, como matéria defensiva, é que se trata de matéria que somente pode ser conhecida pelo ju iz, quando alegada pelas partes. O CPP prevê, entre os processos incidentes, cinco espécies de exceções (art. 95): suspeição (inciso I), incompetência de juízo (inciso II), litispendência (inciso III), ilegitimidade de partes (inciso IV) e coisa julgada (inciso V). No regime do CPP, portanto, as exceções sâo formas incidentais para se alegar a ausência de uma das condições da açâo ou de alguns pressupostos processuais, que podem ser utilizadas por ambas as partes. As exceções devem ser autuadas em apartado e, em regra, não determinam a suspensão do processo (CPP, art. 111). Ao mais, têm por objeto matérias que também podem ser conhecidas de ofício pelo juiz, indepen­ dentemente de alegação (CPP, art. 97 e art. 109, c.c. o art. 110, caput). As exceções de suspeição e de incompetência são dilatórias porque não visam a pôr fim ao processo, mas apenas à substituição do juiz ou do juízo. Já as exceções de vlitispendência, de ilegitimidade de partes e de coisa julgada sâo peremptórias, pois, ' uma vez acolhidas, levam à extinção do processo, sem julgamento do mérito. As hipóteses de suspeição dos juizes estão previstas no art. 254 do CPP. O art. A, 112, por seu turno, refere-se à defesa que tem por objeto os impedimentos (CPP, art. .jy252) e as incompatibilidades (CPP, art. 253). No caso dos impedimentos e incompaubilidades, embora o CPP preveja que se aplica o procedimento das exceções (art. .412), não se trata de verdadeira exceção, que está restrita às hipóteses do art. 95.™ /-

8.3.1 Exceção de suspeição As hipóteses de suspeição do juiz estão previstas no art. 254 do CPP.™

8.3.1.1 Abstenção do juiz Independentemente de provocação da parte, ojuiz poderá, a qualquer momen,jS', por escrito, declarar-se suspeito, apontando os motivos legais de sua suspeição. ^este caso, deverá intimar as partes e remeter os autos para o seu substituto (CPP, t. 97). Em sentido contrário, Nucci (Código..., p. 306) se refere à exceção de impedimento e ex­ ceção de incompatibilidade. A questão, contudo, é apenas terminológica. O CPPM, no art. 1 2 8 ,1, refere-se, expressamente, à exceção de “suspeição ou impedimento”. 0. Sobre o tema, cf, supra, cap. 7, subitem 7.1.2.1

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P ro c e sso Penal

O juiz poderá também, por motivo de foro íntimo e, portanto, sem declarar o motivo, dar-se por suspeito,®' por aplicação analógica (CPP, art. 3°) do art. 135, pa­ rágrafo único, do CPC.®®

8.3.1.2 Legitimados A exceção de suspeição pode ser proposta por “qualquer das partes” (CPP, art. 9 8 ), isto é, pelo acusado, pelo querelante e pelo Ministério Público. No tocante ao Ministério Público, há entendimento restritivo, no sentido de que somente poderá opor a exceção de suspeição, por motivo superveniente ao ofereci­ mento da denúncia. Se o fato era anterior, a exceção de suspeição deve ser ofertada com o oferecimento da denúncia.®’ Diversamente, se ofereceu denúncia perante o juiz, sem arguir a suspeição, é porque o aceitou, reconhecendo sua capacidade moral para conhecer a causa.®® Quanto ao assistente de acusação, há controvérsia sobre a possibilidade de oferecer a exceção de suspeição. Há corrente que admite a exceção, embora não haja previsão no art. 271 do CPP®’ A ressalva seria desnecessária tendo em vista que o art. 98 permite às “partes” opor a exceção e o assistente de acusação é parte, ainda que uma parte eventual e ad coadjuvandum. Outros, contudo, negam a legitimidade do assistente para excepcionar, diante da ausência de previsão legal para tanto.®* O legitimado passivo (o excepto) é o próprio juiz, como pessoa física, e não o juízo ou vara.

8.3.1.3 Momento da arguição A exceção de suspeição deve ser arguida junto com a resposta (CPP, art. 96, c.c. 396-A, § 1“). Se o motivo surgiu somente após esse prazo, a parte deverá alegá-la no primeiro momento que tiver que falar nosautos, apósasua ocorrência, antes de qualquer outra 41. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 408-409; Espínola Filho, Código..., V. 2, p. 268; Mirabete, Processa Penal, p. 225; Nucci, Código..., p. 265. Em tal caso, contudo, como lembra Greco Filho (Manual..., p. 172), poderá ser chamado a esclarecer os motivos perante os órgãos censórios da magistratura. No Estado de São Paulo, o Provimento n° 36/1992 do TJSP prevê que, quando a abstenção se der por motivo de foro íntimo, o ma­ gistrado deve comunicar, reservadamente, ao Conselho Superior da Magistratura as razões que o levam ao afastamento do processo. 42. O § 1° do art. 145 do Novo CPC prevê que “Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro intimo, sem necessidade de declarar suas razões". 43. Nesse sentido: Cardoso de Gusmão, Código..., p. 47; Tourinho Filho, Processo,.., v. 2, p. 673. 44. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentários..., v, 1, p. 230; Noronha, Curso..., p. 61; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 673. 45. Pela admissibilidade: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 410; Tourinho Filho, Proces­ so..., V. 2, p. 674. 46. Não admitindo a arguição: Mirabete, Processo Penal, p. 228; Nucci, Código..., p. 285. Na jurisprudência: TJSP,JTJ 181/307.

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alegação (CPP, art. 96). De qualquer forma, não poderá ser oposta a exceção após ojuiz já ter prolatado a sentènça, pois não mais terá sentido o seu afastamento do processo.®' No tocante ao Ministério Público, se o motivo era preexistente à denúncia, a exceção deve ser oferecida no instante da apresentação da denúncia, prevalecendo o entendimento de que deverá ser feita na própria peça inicial.®® Discorda-se de tal posicionamento apenas quanto à forma de interposição, na medida em que a exceção deve ser ofertada em peça própria, inclusive para viabilizar sua remessa ao tribunal. Caso seja necessário que ojuiz conbeça algum requerimento no curso do inqué­ rito policial (por exemplo, pedido de prisão temporária ou de busca e apreensão), é possível arguir a exceção de suspeiçâo durante o inquérito policial, uma vez que o juiz pode praticar atos jurisdicionais durante o inquérito.®“ Caso seja oposta mais de uma exceção, a de suspeiçâo deve preceder às outras . (CPP, art. 96). A razão de tal regra é que, se a parte fizer qualquer alegação perante o juiz suspeito, estará, implicitamente, reconhecendo a sua capacidade moral de julgar a causa e, segundo alguns, perdendo o direito de invocar a exceção contra ele.™ O dispositivo é criticado por Tomaghi, pois o que deveria ter precedência é a deciisão sobre a suspeiçâo, e não a sua arguição.«' De qualquer forma, nào bá preclusão para (^üe se alegue a suspeiçâo, o que pode ser feito por simples petição, independentemente p e exceção, em momento posterior, ou reconhecida ex officio pelo juiz (CPP, art. 97) O reconhecimento inicial da suspeiçâo do juiz evitará o desperdício de atividade processual, tendo em vista que todos os atos do juiz suspeito serão nulos (CPP, art. f ò l , c.c. o art. 5 6 4 ,1).

- 8.3.1.4 Procedimento A exceção de suspeiçâo deve ser arguida por escrito, em petição assinada pela ‘^ r t e ou por procurador com poderes especiais, acompanhada de razões, de prova Idocumental ou de rol de testemunhas (CPP, art. 98).™ . Na jurispnadência, não admitindo a exceção após ter sido proferida sentença: TJSP, RT 655/268. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 410; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 673; Noronha, Curso..., p. 61; Mirabete, Processo Penal, p. 227. Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 268. Na jurisprudência, negando a possibilidade da exce­ ção de suspeiçâo, em relação ao juiz que, até então, não praticou qualquer ato jurisdicional: extinto TACrimSP, RT 597/306. Nesse sentido: Acosta, O processo..., p. 200; Noronha, Curso..., p. 61. Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 157. 2. Nesse sentido: Pacelli, Curso..., p. 299. Fm sentido contrãrio, entendendo haver preclusão; Mirabete, Processo Penal, p. 22a coisa julgada, no caso de sentença condenatória, o tema poderá ser tratado em ^ s á o criminal.®’ É inconcebível aceitar como devido processo um feito em que o pisado foi julgado por um juiz impedido, mas não alegou o impedimento. O direito Ijuiz imparcial não pode ficar condicionado a qualquer forma de prazo ou preclusão.

^4 Da exceção de incompetência ® A exceção de incompetência aplica-se tanto à hipótese de incompetência terriEâl (considerada relativa) quanto aos demais casos de incompetência (absoluta). Nesse sentido: Tourinho Filho, PrASfSSsL; v. 2, p. 689; Noronha, Curso..., p. 63; Mirabete, Processo Penai, p. 231; Nucci, Código..., p. 297. .Nesse sentido; Greco Filho, Manual..., p. 233. Sobre o tema, cf., supra, cap. 7, subseções > 7 .1 .1 ,le 7 .1 .1 .2 . bçPacelli de Oliveira, Curso..., p. 299.

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Processo Penal

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Todavia, como já destacado, no processo penal mesmo a incompetência decorrente de violação de regra de competência territorial pode ser reconhecida pelo ju iz, de ofício, em qualquer tempo ou grau de jurisdição (CPP, art. 109), sendo destituída de maior importância a distinção entre incompetência absoluta e relativa. No processo civil, um dos fatores que tomam relevante tal distinção é justamente o fato de a in­ competência relativa nào poder ser declarada de ofício pelo juiz,“ sendo necessário que a parte oponha a exceção de incompetência (CPC, art. 112, caput) sob pena de prorrogação (CPC, an. 114). No processo penal, toda incompetência, mesmo a territorial, é absoluta.“ As exceções de incompetência, de litispendência, de ilegitimidade de parte e de coisajulgada sãojulgadas pelo próprio juiz da causa, e nâo pelo Tribunal, como ocorre com a exceção de suspeição.

8.4.1 Hipóteses de incompetência Emboraoart. lOSdoCPPrefira-seapenasà “incompetência de juízo” (istoé, uma vara incompetente), aexceção de incompetência pode ter por objeto outras espécies de competência. Normalmente, argui-se, por meio da exceção, a falta de competência ter­ ritorial, embora também possam ser alegadas a incompetência funcional e a objetiva.® A exceção de incompetência é também denominada declinatoria fo r i porque é oposta perante o juiz incompetente, para que ele decline da sua competência. Há ordenamentos em que se admite que a parte alegue a incompetência perante o órgão por ela reputado competente, para que este iniba a competência do juiz perante o qual 0 processo está correndo. É a chamada inhibitoriafori.

8.4.2 Abstenção do juiz Independentemente de provocação da parte, o juiz poderá, a qualquer mo­ mento, declarar-se incompetente, remetendo os autos ao juiz competente (CPP, 66. ASúmula n° 33 do STJ estabelece que “a incompetência relativa não pode ser declarada de oficio". 67. A Lei n° 11.280, de 16/02/2006, acrescentou ura parágrafo único ao art. 112, que passou a prever a possibilidade de o juiz reconhecer, de oficio, a sua incompetência territorial, no caso de cláusula eletiva de foro, em contraio de adesão. No regime do novo CPC, a incom­ petência, seja absoluta ou relativa, deverá ser alegada por meio de preliminar de contestação (NCPC, art, 334, caput, inc. 11). 68. Nesse sentido; Demercian e Maluly, Curso..., p. 2 7 2 .0 único caso de competência territorial relativa prevista no CPP é na hipótese de ação penal privada, em que a possibilidade de escolha, pelo querelante, entre os foros alternativos do domicílio do querelado ou do local do crime (art. 73), visa atender um interesse da parte, e não ao interesse público. Todavia, como já exposto, tal regra viola a garantia do juiz natural, não podendo ser aplicada (sobre 0 tema, cf., supra, cap. 6, item 6,4.2). 59. Nesse sentido; Greco Filho, Manual..., p. 171; Acosta, O processo.,., p. 202. Em sentido con­ trário, entendendo que o dispositivo aplica-se somente no caso de incompetência territorial ou de foro: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 48.

Questões e processos incidentes

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art. 109). No entanto, antes de encaminhá-los, deverá determinar a intimação das partes, que poderão, inclusive, interpor recurso era sentido estrito (CPP, art. 581, II) contra tal d ecisão." Por sua vez, o juiz que receber o processo, reconhecendo-se competente, deverá ratificar os atos do processo (CPP, art. 108, § 1°, parte fin al)." Tal regra, contudo, vale apenas para os atos não decisórios, pois, diante do disposto no art. 567 do CPP, os atos decisórios, inclusive o recebimento da denúncia, praticados por juiz incompetente, serão nulos. Caso ojuiz que receba o processo também se considere incompetente, e enten­ da que a competência era do primeiro juiz, poderá suscitar o conflito negativo de competência (CPP, art. 113). De outro lado, caso o segundo juiz entenda que nem o primeiro juiz nem ele são competentes, remeterá o processo ao juiz por ele conside­ rado competente. 8.4.3 Legitim ados y, A exceção de incompetência normalmente é oposta pelo acusado. Discute-se, por outro lado, se o Ministério Público também pode arguir a exceção de incompe­ tência. Parte da doutrina nega esta possibilidade, posto que, se o Ministério Público o.fereceu a denúncia perante ojuiz, é porque teria aceitado a competência do mesmo. Há, todavia, corrente defendendo que, na qualidade de “fiscal da lei”, o Ministério fjüblico pode opor a exceção de incompetência, mesmo que tenha oferecido a denún­ cia perante o juiz incompetente." O CPP parece considerar que tal exceção somente pôde ser oposta pelo acusado, tanto que dispõe que deverá ser oposta “no prazo da |âefesa” (CPP, art. 108, caput). ^ De outro lado, o Promotor d eju stiça, em vez de oferecer a denúncia, poderá arguir diretamente ao ju iz a incom petência deste, requerendo que os autos sejam remetidos ao juiz competente. Não se tratará, porém, de exceção de incompetência. Se ojuiz desacolhe sua manifestação e devolve os autos ao Promotor d ejustiça, este poderá oferecer a denúncia e, conjuntam ente, opor a exceção de incompetência.'® To. Na jurisprudência: STJ, HC n° 36.696/PE. Todavia, como esse recurso não tem efeito suspensivo (CPP, art. 584, caput), não impedirá que ojuiz remeta os autos ao juiz por ele ^ considerado competente. Será necessário, porém, formar o instrumento em que subirá o ê recurso (CPP, art. 587, c.c. o art. 583,11, a contrario sensu), antes do encaminhamento dos ^ autos ao juiz competente. 571' Nesse sentido: STJ, HC n° 36.696/PE. ^ 2 Pela inadmissibilidade: Espínola Filho, Códjgo..., v. 2, p. 286; Nucci, Código..., p. 298. Pela admissibilidade: Franco, Código..., v ^ ^ p s2 0 6 ; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 692; Noronha, Curso..., p. 64. .W ' Nesse caso, se for rejeitada a exceção de incompetência, para Tourinho Filho (Processo Penal, I S , V. 2, p. 611), caberá apelação, com fundamento no disposto no art. 593, II, do CPP, mesmo W ;- diante da vedação do art. 581,111, Pensamos que não é caso de apelação, posto que não se

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Processo Penal

0 Assistente de Acusação não pode oferecer a ex ceção de incompetência, que não está prevista entre os atos que podem ser por ele praticados (CPP, art. 271, caput). Todavia, como ojuiz pode, de ofício, declarar-se incompetente, nada impede que o assistente alegue, por meio de simples petição, a incompetência do juiz, para que este se declare incompetente, nos termos do art. 109 do CPP.” 8.4.4 Momento da arguição A exceção de incompetência deve ser arguida, pelo acusado, no “prazo da de­ fesa” (art. 108, caput), isto é, no prazo de dez dias, após a citação do acusado (CPP, art. 396-A, § l®)/’ De qualquer forma, por se tratar de matéria de ordem pública, não há preclusão, podendo a incompetência ser reconhecida pelo juiz, ex officio, em momento posterior (CPP, art. 109). Tem prevalecido o entendimento de que, no caso de incompetência territorial, por ser ela relativa, se não for alegada no momento oportuno, ocorrerá a preclusão, com a conseqüente prorrogação da competência. Já em relação à incompetência absoluta sua alegação poderá ocorrer a qualquer tempo, não havendo falar em preclusão.™ Também é possível que haja a arguição de incompetência da autoridade juris­ dicional durante o inquérito. Como ojuiz pode praticar atos jurisdicionais durante o inquérito (por exemplo, decretar a prisão preventiva, negar pedido de liberdade provisória, determinar busca e apreensão...), o Ministério Público ou o acusado podem arguir a incompetência do juiz para quem foi remetido o inquérito policial, alegando, por exemplo, que a competência é de um juiz de outra comarca. Poderão, também, arguir que a competência é dajustiça Federal, e não da Estadual, ou vice-versa. Não se trata, porém, de exceção de incompetência, que somente é cabível no curso do processo, e não durante o inquérito.” 8.4.5 P rocedim ento A exceção de incompetência póde ser arguida por escrito ou verbalmente (CPP, art. 108, caput), sendo, neste último caso, tomada por termo (art. 108, § 2®). A exce-

74. 75. 76.

77.

trata de decisão “com força de definitiva". Melhor será, portanto, o emprego do mandado de segurança, para que o Tribunal reconheça a incompetência do juizo. Na jurisprudência, considerando cabível a exceção oposta por assistente de acusação, em caso de incompetência absoluta: STp RT 626/399. Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 697. No sentido de que a incompetência territorial é relativa e prorrogável; Mirabete, Processo Penal, p. 232; Nucci, Código..., p. 298; Capez, Curso..., p. 351. Na jurisprudência: STF HC n° 72.634/SP. Já Tourinho Filho (Processo Penal, v. 2, p. 695) afirma que, nesse caso, “se a parte deixar de argui-la no prazo legal, haverá para ela preclusão. Todavia, e ao contrário do que ocorre no Processo Civil, nada obsta que ojuiz, a qualquer tempo, reconhecendo-se incompetente, decline da sua competência". Na Jurisprudência: TJRJ, RT 644/308.

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ção deverá ser arguida em peça distinta da “resposta escrita”, até mesmo porque será autuada em apartado (GPP, art. 111 ) 7® O juiz mandará autuar em apartado a exceção, determinando a abertura de vista dos autos ao Ministério Público, para manifestação (CPP, art. 108, § 1°). Caso a ex­ ceção tenba sido oposta pelo próprio Ministério Público, em atenção ao princípio do contraditório, o juiz deverá intimar o acusado para se manifestar sobre a exceção. Da mesma forma, se a exceção for oposta pelo querelante, deverão ser ouvidos o Minis­ tério Público e o querelado. Se o juiz reconhecer a incompetência, deverá declará-la nos autos, mandar in­ timar as partes e remeter os autos ao juiz competente (CPP, art. 109). Todavia, como da decisão cabe recurso (CPP, art. 581, III), o juiz deverá aguardar o prazo recursal (cinco dias) para, somente então, determinar a remessa dos autos ao juiz competente.™ ^

Recusada a incompetência, o juiz continuará no feito (CPP, art. 108, § 2°).

Se o juiz acolher a exceção, poderá a parte contrária interpor recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, III).®“ O recurso subirá nos próprios autos da exceção. Como tal recurso não terá efeito suspensivo, o processo terá seu prosseguimento normal, com 0 encaminhamento dos autos ao juiz competente. Por outro lado, contra a decisão do juiz que não acolhe a exceção de incompejência não cabe recurso (CPP, art. 581, inciso III, a contrario sensu). Todavia, a parte poderá interpor habeas corpjus ou voltar a discutir a matéria em sede de apelação.®' A oposição da exceção de incompetência não suspende o processo (CPP, art. ^11), devendo ser autuada em apartado. Segundo o art. 5 6 4 ,1, c.c. o art. 5 7 2 ,1. ambos do CPP, haverá nulidade absoluta gps atos praticados pelo juiz incompetente. De outro lado, o art. 567 do CPP prevê que apenas os atos decisórios são nulos. Os Itos não decisórios serão simplesmente ratificados nojuízo competente (CPP, art. 108, 78. Todavia, se for alegada no corpo da prõpria defesa, o juiz deverá determinar que seja f extraída cópia autenticada da resposta, autuando-a em apartado, como exceção de incomT' petência. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 287; Tourinho Filho, Processo..., V . 2, p. 691. 79. Na doutrina: Franco, Código..., v. 1, p. 206. 60. De qualquer forma, o recurso não terá efeito suspensivo (CPP, art. 584, caput), devendo remeter os autos ao juiz competente. Tal remessa, porém, somente ocorrerá após a intima­ ção das partes de tal decisáo e o transcurso do prazo recursal. Se náo houver recurso, seráo remetidos tanto os autos principais quanto os autos em apartado da exceçáo de incompe­ tência. Se houver recurso, os autos principais serão remetidos para o juiz competente, e os ' autos apartados da exceçáo serão encaminhados para o Tribunal. S l. Na doutrina, pelo cabimento do^ffô&êtis-Vorpus: Ponte de Miranda, História e prática..., p. 477; Tourinho Filho, Processo ...,v. 2, p. 692; Noronha, Curso..., p. 64; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 126; Mirabete, Processo Penal, p. 232; Nucci, Código..., p. 298. Na jurisprudência: STE RT 532/439; STJ, RT 695/382; TRF 3“ Região, HC n» 2006.03.00.024651-7/SP; TRF 4“ Região, HC n“ 970400770l/RS; TJRJ, RT 644/308; TJDE RSE n” 2001.01.1.086146-5.

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Processo Penal

§ 1“, parte final). Este último dispositivo, contudo, precisa ser relido à luz da garantia constitucional do juiz natural, que garante a todo acusado o direito de ser processado e sentenciado perante o juiz natural (CR, art. 5°, LIII).®* Não é possível, portanto, aceitar como valido um ato probatório que não tenha se realizado perante ojuiz natural.

8.5 Exceção de litispendência e de coisa julgada 8.5.1 Distinção Ninguém poderá ser processado duas vezes pelo mesmo fato; ne bis in idem. Não poderá haver dois processos iguais, quer simultaneamente, quer um após o outro. No primeiro caso caberá a exceção de litispendência; no segundo, a exceção de coisa julgada. Em regra, dois processos sâo iguais se houver identidade de partes, de pedido e de causa de pedir. É a teoria dos três cadem: personae, res et causa petendi (CPC, art, 301, § 2°). No processo penal, contudo, quanto à identidade de partes, pouco importa se o autor é o Ministério Público ou um acusador privado, bastando a identidade de acusado.®® De outro lado, com relação à causa de pedir, bastará que haja identidade do fato naturalístico imputado, em seu dado essencial, pouco importando a sua qualifi­ cação juridica. Ou seja, a mudança do título do crime não atinge a coisa julgada.®® Por fim, no tocante ao pedido, como ele é sempre genérico - de condenação do acusado às penas previstas em lei -, tal dado nào tem maior relevância. Em suma, há identida­ de de demandas, no processo penal, quando ambas tiverem o mesmo acusado e for imputado o mesmo fato naturalístico.®’ A palavra litispendência significa lide pendente. Como explica Tomaghi, “en­ quanto um litígio pende de julgamento do juiz, diz-se que há litispendência. Essa é, portanto, a situação processual era que se encontra a causa posta ao julgamento do juiz”.®« O CPP não fixa o momento em que se considera a “lide pendente”, devendo ser aplicada, por analogia, a regra do art. 219 CPC, estabelecendo que a citação válida induz litispendência.®* 82. Nesse sentido ;Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 612. Em sentido contrário, Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 44) entendem que, em tal caso, os atos serão inexistentes. 83. Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 700-701. 84. Nesse sentido: Cardoso de Gusmão, Código..., p. 54; Tourinho Filho, Processo Penal, v. 2, p. 709. 85. Na doutrina: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 294; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 700 e 709; Nucci, Código..., p. 299. Najurisprudência, cf.; STF, HC n° 77.909/DF Contrariamente, entendendo que deverá haver a tripla identidade, cf.: Borges da Rosa, Comentários..., p- 207; Noronha, Curso..., p. 65; Mirabete, Processo Penal, p. 234; Capez, Curso..., p. 352. Nesse último sentido, na jurisprudência: extinto TACrimSP, RJDTACrimSP 27/87.

86. Tomaghi, Curso..., v l, p. 172.

87. É a posição de Tomaghi (.Curso..., v. 1, p. 172), que explica; “A lei processual penal não diz quando começa e quando termina essa especial siiuaçào de pendência. A lei de processo , civil, ao contrário, estatui no art. 219 que a citação válida induz litispendência. No crime,

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A exceçáo de litispendência é um meio de defesa processual oposto em um segundo processo, quando áinda está pendente um primeiro processo, que tem o mesmo objeto do segundo. A coisa julgada pode ser formal ou material. Segundo Liebman, a coisa julgada for­ mal é a imutabilidade da sentença no processo em que foi proferida; a coisa julgada ma­ terial é a imutabilidade dos efeitos da sentença.“ A coisajulgada formal atinge qualquer sentença, terminativa ou demérito. Já a coisa julgada material somente ocorre no caso de sentença de mérito, que produz efeitos sobre a relação material. A exceção de coisa julgada somente cabe em relação à coisa julgada material. Com a coisa julgada material, o objeto do processo não poderá voltar a ser discutido em outro processo envolvendo as mesmas partes sobre os mesmos fatos. É o que se denomina eficácia negativa da coisa julgada. t! A exceção de coisa julgada terá cabimento em relação ao “fato principal” do processo (CPP, art. 110, § 2“), isto é, o fato naturalístico, independentemente da sua qualificação jurídica. Por exemplo, absolvido da acusação de ter subtraído o relógio X,(furto - CP, art. 155), não poderá ser novamente acusado de, no mesmo dia e hora, ter se apropriado do mesmo relógio (apropriação indébita - CP, art. 168).®® 8.5.2 Legitim ados Normalmente, o acusado é quem alega as exceções de litispendência ou de coisa ^Igada, visando à “absolvição da instância”. No entanto, qualquer das partes, incluin0 o Ministério Público e o querelante, pode arguir as exceções de litispendência e ,de coisa julgada.®® o Ministério Público, mesmo tendo oferecido a denúncia, poderá arguir tais m ce çõ ts, por lhe caber “fiscalizar a execução da lei” (CPP, art. 257, II).®' deve se entender da mesma forma, pois é a partir de então que se integra a relação pro­ cessual angular. Como bem observa Cbiovenda, bá perfeita coincidência temporal entre a litispendência e a relação processual”. No mesmo sentido, entre outros: Borges da Rosa, Comentdrios ... p. 207; Mirabete, Código..., p. 339. A mesma regra é prevista no art. 238, caput, do Novo CPC. A questáo, contudo, não é pacífica. Para Nucci (Código..., p. 300), “a litispendência está caracterizada a partir do ajuizamento da segunda demanda, sendo prescindível a citação do réu". Na jurisprudência, em sentido contrário, o STF entende que a litispendência define-se pelo critério de prevenção do art. 83 do CPP (STF, HC n° 77.909/DF). Destaque-se, também, outra decisão do STF em que se desprezou o critério cronológico, entendendo que deve prevalecer o processo que, embora instaurado primeiro, “tem por objeto imputação subjetivamente mais ampla” (STF, EL n" 3-5/SE). Liebman, Eficácia e autoridade..., p. 6. Tourinbo Filbo, Processo..., v. 2, p. 709. Nesse sentido, na jurisprudência; “Por se Uatar do mesmo fato. Julgado anteriormente, sob a égid^ de capitulação Jurídica voltada para ‘trazer Lpara uso próprio - art. 16, da Lei de Tó^H&SVdâo cabe a interposição de nova açâo penal, agora voltada à norma jurídica para ‘o trazer consigo para fins de tráfico - art. 12 da Lei n° L 6.368/1976 [revogada pela Lei 11.343/20061’.” (TJRS, Ap. Cr n» 70014507974). v^p. É a posição de Tomaghi, Curso..., v, 1, p. 177. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 296; Acosta, O processo..., p. 204.

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0 assistente de acusação, embora não possa opor tais exceções, poderá arguir a ocorrência de litispendência ou de coisa julgada, posto que se trata de matéria de ordem pública, que ojuiz pode conbecer de ofício em qualquer momento e grau de jurisdição. 8.5.3 Momento d e arguição Nos termos do art. 110, caput, c.c. o art. 108, caput, do CPP, as exceções de coisa julgada ou de litispendência devem ser opostas “no prazo da defesa”, isto é, da resposta escrita do art. 396-A do CPP. Todavia, por se tratar de questões de ordem pública, não há falar em preclusão, e as partes poderão arguir a qualquer tempo a ocorrência de coisa julgada e litispendência. Por outro lado, o juiz poderá reconhecê-las, de ofício, independentemente de alegação da parte (CPP, art. 110, caput, c.c art. 109).“® Se for instaurado um segundo inquérito - e não um novo processo - por um fato que já é objeto de processo pendente, ou em relação ao qual já houve coisa julgada, embora nào seja cabível a exceção, a parte poderá alegar a ocorrência de litispendência ou de coisa julgada ao próprio juiz da causa, para que este determine o trancamento do segundo inquérito policial. Caso o pedido seja indeferido, poderá interpor habeas corpus perante o Tribunal. 8.5.4 Procedimento As exceções de coisa julgada e de litispendência seguem o procedimento da exceção de incompetência (CPP, art. 110, caput), podendo ser arguidas por escrito ou oralmente (CPP, art. 108, caput).“’ A exceção de coisa julgada deverá ser instruída com a certidão do trânsito em julgado do primeiro processo. Segundo Espínola Filho, na falta da certidão, o juiz poderá rejeitar liminarmente a exceção, por considerá-la não provada.“®Todavia, por se tratar de matéria de ordem pública, mais razoável a opinião de Acosta, no sentido de que o juiz perante o qual for oposta a exceçáo, também poderá pedir informações ao juiz do primeiro processo, antes de decidir o incidente.“’ Por sua vez, a exceção de litispendência deverá ser instruída com a certidão de objeto e pé do processo anterior, comprovando que o feito está pendente.“* Além disso, para verificar a identidade das demandas, é aconselhável que ambas as exceções estejam instruídas com cópia da denúncia ou queixa do primeiro processo, 92. Na doutrina, negando a ocorrência de preclusão; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 616 e 631; Mirabete, Processo Penal, p. 234; Nucci, Código..., p. 300; Capez, Curso..., p. 352. 0 STJ jã reconheceu a possibilidade de sua alegação até mesmo em segundo grau (HC n” 16.038/RJ), 93. Sem razão, portanto, Borges da Rosa (Comentários..., p. 207) ao considerar que a exceção de litispeirdência somente pode ser oposta por escrito. 94. Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 302. 95. Acosta. 0 processo..., p. 204. 95. Nesse sentido; Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 286.

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aem como, no caso da exceção de coisa julgada, com cópia da sentença ou acórdão do primeiro feito, transitadoêm julgado. As exceções de coisa julgada e de litispendência não suspendem a marcha do processo em que foram opostas (CPP, art. 111). O segundo processo, no qual foi arguida a exceção de litispendência ou coisa julgada, deverá ser extinto sem julgamento do mérito, sendo absolutamente nulo, caso acolhidas as exceções. 8.5.5 R ecurso ^ Se o juiz acolher a exceção de coisa julgada ou litispendência, será cabível o recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, III). O recurso subirá nos próprios autos da exceção. Como tal recurso não terá efeito suspensivo (CPP, art. 584, caput), o processo que foi extinto não terá seguimento.“* Somente se for provido o recurso, considerando improcedente a exceção, o processo voltará a ter tramitação normal. Por outro lado, contra a decisão do juiz que rejeita as exceções de litispendéncia e de coisa julgada não cabe recurso (CPP, art. 581, III, a contrario sensu). Todavia, a parte poderá interpor habeas corpus ou voltar a discutir a matéria em sMe de apelação.“® No tocante à decisão do juiz que, de ofício, reconhece a litispendência ou a coisa pulgada, há quem entenda ser cabível apelação, por se tratar de decisão com força deíMítiva (CPP, art. 593, I I ) N ã o é o melhor entendimento. A sentença que reconhece atófcorrência de coisa julgada ou de litispendência é terminativa, diante da presença |ópressuposto processual negativo. Não cabe, pois, apelação.

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É 6 Exceção de ilegitimidade de parte jÍM toV r,

■ái6.7 C abim en to r.¥ A legitimidade de parte é, na definição de Alfredo Buzaid a pertinência subjetigda ação.'“®A ilegitimidade pode ser ativa, isto é, do autor (Ministério Público ou níèrelante), ou passiva (do acusado). Em ambos os casos haverá carência da ação. £92; Obviamente, as partes deverão ser intimação das partes de tal ato, que terá natureza de sentença extintiva do processo, sem julgamento do mérito. Pelo cabimento do habeas corpus, caso nâo admitida a exceção de coisa julgada e litispen; dência: Cf.: Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p, 700 e 718; Mirabete, Processo Penal, p. 234 5t e 238; Nucci, Código..., p. 306 e 309. Na jurisprudência, apenas no tocante ã coisa julgada: I STF, HC n“ 70.870/RJ, TJSP, RT 662/274. Em relação à litispendência: STJ, HC n° 16.038/ h RJ; TJSP, RT 563/292; TJPR, RT 616/335. Em sentido contrário, entendendo que, por sua i limitação probatória, o habeas corptÚKoãqJèria cabível para questionar o não acolhimento i da litispendência, cf.: STF, HC n” 81.375/RJ. Na doutrina, pelo cabimento da apelação: Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 701 e 718; f Mirabete, Processo Penal, p. 234 e 238; Nucci, Código..., p. 303. tíi). Do Agravo..., p. 89.

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0 CPP dispõe, genericamente, sobre a “ilegitimidade de parte”. Tal expressão, normalmente, refere-se à legitimatio ad causam (que é condição da ação), e não à legitimatio ad processam (que é pressuposto processual). Todavia, a doutrina tem en­ tendido que a exceção de ilegitimidade de parte cabe em ambos os casos, isto é, tanto se a parte for ilegítima (por exemplo, ação penal privada instaurada pelo Ministério Público) quanto se faltar capacidade processual (por exemplo, queixa oferecida por menor de 16 anos, e não por seu representante legal). 8.6.2 Legitimados A exceção de ilegitimidade de parte poderá ser oposta pelo acusado, quando negar tal condição ao Ministério Público (por exemplo, por entender que a ação penal era de iniciativa privada). Também o querelado poderá arguir a exceção de ilegitimidade de parte, por en­ tender que a ação penal é de iniciativa pública (legitimidade do Ministério Público) ou mesmo de outro legitimado privado (entende que o querelante não é o titular do direito lesado). 0 Ministério Püblico, na qualidade de fiscal da lei, intervindo na ação pe­ nal de iniciativa privada, poderá ofertar a exceção de ilegitimidade de parte, por exemplo, se entender que o querelante é parte ilegítima, posto que a ação seria de iniciativa pública, Há, contudo, corrente doutrinária no sentido de que a exceção de ilegitimidade de parte somente pode ser oposta pelo acusado. Entendemos que, somente na ação penal pública, não poderá o Ministério Público arguir a exceção de ilegitimidade de parte, quer ativa (alegando que ele mesmo não era parte legí­ tima, embora tenha oferecido a denúncia) ou passiva (que o acusado não é parte legítima para a ação).'“ Borges da Rosa lembra que a exceção de ilegitimidade do autor compreende tanto a parte principal- Ministério Público ou querelante -quanto o assistente da acusação.'“ 101. Nesse sentido: Tourinho Filho, P rocesso..., v. 2, p. 704; Noronha, Curso..., p. 64; Acosta, 0 processo..., p. 204; Mirabete, Processo Penal, p. 235; Nucci, Código..., p. 300; Capez, Curso..., p. 353; Demercian e Maluly, Curso..., p. 289-290. Já Borges da Rosa (Co­ mentários..., p. 209-210) acrescenta que a ilegitimidade de partes compreende ainda a ilegitimidade do procurador (que não tem os poderes e.xigidos pela lei ou que os recebeu de quem não tem capacidade para conferi-los) e o procurador falso (que se apresenta com procuração falsa, ou revogada, ou que não atende aos requisitos legais, ou o procurador que não está legalmente habilitado para exercer a profissão, embora ostente procuração válida). Em sentido diverso, Tomaghi (Curso..., v. 1, p. 174) entende que a exceção de iiegiumidade de parte somente tem cabimento no caso de ilegitimidade ad processam, uma vez que as exceções são defesas contra os pressupostos processuais, e não contra as condições da ação. 102. Pela admissibilidade: Tourinho Filho, Processo.... v. 2, p. 704. Em sentido contrário, pela inadmissibilidade: Borges da Rosa, Comentários..., p. 208; Franco, Código..., v. 1, p. 207; Acosta, 0 processo..., p. 204. 103. Borges da Rosa, Comentários..., p. 209.

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6.6.3 Mom ento de arguição Tendo em vista que se aplica à exceção de ilegitimidade de parte o procedimento da exceção de incompetência (CPP, art. 110, caput), a oposição da exceção deverá ocorrer, assim como nos demais casos, no prazo da defesa (CPP, an. 108, caput), isto é, nos dez dias que o acusado dispõe para apresentar a sua resposta (CPP, art. 396, c.c o an. 396-A, § 1°). Todavia, como se trata de matéria de ordem pública, nâo haverá preclusão em caso de não oposição da exceção de ilegitimidade de parte no prazo da defesa, podendo as partes argui-la, a qualquer tempo. O juiz também poderá reconhecê-la, de ofício, independentemente de alegação da parte.'*” j 8 .6 .4 P roced im en to A exceção de ilegitimidade de parte seguirá o mesmo procedimento da exceção de incompetência (CPP, art. 110, caput). Ocorrendo simultaneamente as exceções de litispendência, ilegitimidade de parte e coisa julgada, elas deverão ser alegadas conjuntamente, em peça única (CPP, I art. 110, § 1 “). O processo em que foi oposta a exceção de ilegitimidade de parte não será sus" penso durante o processamento da exceção (CPP, art. 111). T, Acolhida a exceção de ilegitimidade de parte, o processo deverá ser extinto sem julgamento do mérito. O art. 564, II, do CPP refere-se à nulidade do processo, que , sera absoluta (CPP, art. 572,1). Todo o processo será nulo. Nem mesmo a denúncia ou queixa poderão ser reaproveitadas, devendo ser instaurado novo processo pela parte ' legitima,'“’ caso ainda nâo esteja extinta a punibilidade. Já no caso de ilegitimidade ad processum, os atos praticados de forma irregular poderão ser sanados a qualquer tempo, mediante ratificação, nos termos do disposto ppart. 568 do CPP.'« Uma situação bastante comum em que surge tal problema é quando a queixa-agrime foi oferecida por procurador, que não tinha poderes especiais exigidos no art. '44 do CPP (por exemplo, apenas menciona o nomen iuris do crime, sem descrever os fatos que o caracterizam). Neste caso, contudo, hã divergência sobre o prazo para a íatificação de tal ato. A doutrina majoritária entende que somente dentro do prazo decadencial é que se poderá juntar nova procuração atendendo a tal exigência legal l^jatificar a procuração anteriormente oferecida. Há, contudo, na jurisprudência,

_________ |fM. Na doutrina, pela inocorrência de preclusão; Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 704; Kj/ Mirabete, Processo Penal, p. 235; Nucci, Código..., p, 300. tfip. Nesse sentido; Tourinho Filho, Pro^fíPvJv. 2, p. 703; Greco Filho, Manual..., p. 172. Nesse sentido: Acosta, O processo..., p. 204; Noronha, Curso..., p. 65; Mirabete, Processo , Penal, p, 235. No primeiro sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 34; Damásio E. d ejesus, Código..., p. 60; Mirabete, Processo Penal, p. 569.

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P ro c e s s o Pe n al

o entendimento contrário de que a ratificação pode ocorrer a qualquer tempo, mesmo que superado o prazo decadencial."®

8.6.5 Recurso Caso ojuiz julgue procedente a exceção de ilegitimidade de parte, será cabível o recurso em sentido estrito (CPP, art. 581,111). 0 recurso subirá nos próprios autos da exceção. Como tal recurso não terá efeito suspensivo (CPP, art. 584, caput), o processo que terá sido extinto, sem julgamento do mérito, por carência de ação, ficará paralisado até o julgamento do recurso. Em caso de seu provimento, o processo voltará a tramitar. Contra a decisão do juiz que não acolhe a exceção de ilegitimidade de partes, não cabe recurso (CPP, art. 581, III, a contrario sensu). Todavia, a parte poderá interpor habeas corpus ou voltar a discutir a matéria em sede de apelação.*““ Quanto à decisão do juiz que, de ofício, reconhece a ilegitimidade de partes, por equivaler à rejeição liminar da denúncia, nos termos do art. 395, II, do CPP, será ca­ bível o recurso em sentido estrito, com fundamento no inciso 1do art. 581 do CPP.*'“

8.7 Da resliluição das coisas apreendidas O CPP prevê, entre as questões incidentes, a restituição de coisa apreendida (arts. 118-124). Normalmente, a restituição da coisa apreendida, quando se tratar de produto do crime, representando um restabelecimento do estado anterior ao delito, é a melhor forma de recomposição do dano. "* Também poderá representar uma forma de 0 acusado ou de terceiros reaverem bens, cujo uso ou posse sejam lícitos, mas que tenham sido eventualmente utilizados na prática delitiva.

8.7.1 Das coisas que podem ser apreendidas e restituídas O incidente de restituição de coisa apreendida, como não poderia deixar de ser, tem sua disciplina diretamente vinculada com a medida de busca e apreensão. Somente as coisas que puderem e forem apreendidas poderão, posteriormente, satisfeitos os requisitos negativos (arts. 118e 119e 121 do CPP) e positivos (art. 120 do CPP), ser restituídas ao seu proprietário. Obviamente, quando o objeto da apreensão for uma pessoa, nâo haverá falar em restituição. Ninguém pensaria na restituição do criminoso ou da vítima de um

108. 109.

1 10. 111.

Na jurisprudência: STJ, HC n° 45.017/GO, REsp n” 531.876-MG, HC n“ 39.047-PE; TfSP, RT 514/334. Na jurisprudência, peta admissibilidade de juntada a qualquer tempo: STF, HC n° 84.397/ DF, HC n° 62.015/Pl; STJ, RT 703/360; extinto TACrimSP, RSE n» 1.390.303-2. Na jurisprudência, considerando incabível a apelação, por não se tratar de decisão defini­ tiva: TJSP, RT 605/299. Na doutrina, admitindo o haheas corpus: Tourinho Filho, Processo..., V . 2, p. 704; Mirabete, Processo Penal, p. 235. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 2, p. 703; Mirabete, Processo Penal, p. 235. Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 357.

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crime. Até mesmo porque pessoas são sujeitos de direito, enquanto coisas ou bens são objetos do direito, A restituição de coisa apreendida, portanto, tem por objeto as coisas que podem ser apreendidas, ou seja, os instrumentos do crime, o produto do crime e as coisas destinadas à prova."® Todo instrumento de crime deve ser apreendido. O art. 6°, II, do CPP determina que a autoridade policial apreenda “os objetos que tiverem relação com o fato”. Por outro lado, o art. 240, em seu § 1°, possibilita a apreensão de “instrumentos de falsifica­ ção ou de contrafação” (alínea c, primeira parte); de “armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso” (alínea d). Também podem ser apreendidas coisas destinadas à prova. O mesmo art. 240, § 1°, do CPP, prevê a apreensão dos “objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu" (alínea e); de “cartas, abertas ou nào, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à eluci­ dação do fato” (alínea/); bem como de “qualquer elemento de convicção” (alínea h). Finalmente, no que se refere ao produto do crime, além da previsão genérica do art. 6“, II, já citado, o art. 240, § 1°, b, do CPP, prevê a possibilidade de apreensão das “coisas achadas ou obtidas por meios criminosos”. A expressão coisas “obtidas por meios criminosos" deve ser entendida no sentido do produto direto da infração (por exemplo, o carro roubado), não abrangendo o produto indireto (por exemplo, ip carro comprado com o dinheiro roubado do banco). No caso dos proveitos, a me­ dida cabível será o sequestro de coisa móvel (CPP, art. 133), embora não se possa jlescartar a possibilidade de apreensão, quando interessar ao processo, por exemplo, J)ãra fins probatórios. As coisas apreendidas, desde que não sejam passíveis de perdimento (CP, art. 91, lõaput, 11, b), poderão, satisfeitos os requisitos legais, ser restituídas ao seu proprietário. fi.Z .2 Legitim ados I* A legitimidade para requerer a restituição da coisa apreendida é, em regra, do Titular ou proprietário da coisa. Também poderá requerê-la o possuidor que legiti-mamente a detenha, se contra isso não se insurgir terceiro que se diga proprietário ou í|ossuidor."® Nessa categoria inclui-se, visando à posição que os sujeitos ocupam no processo, o investigado ou acusado, o lesado e o terceiro de boa-fé. Assim, por exemplo, o acusado poderá requerer a restituição de um bem que Whe pertença. Tendo sido apreendidos instrumentos de crime, não passíveis de per^U. S L ^ 13.

A classificação é feita por Torn^elréGifrso..., v. 1, p. 193. Obviamente, muitas vezes, a apreensão dos instrumentos do cnm e^do produto do crime é decisiva para a descoberta dos fatos, tendo também, pois, uma finalidade probatória, ainda que mediata. Nesse sentido; Câmara Leal, Comentários..., v. 1, p. 356; Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 191; Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 363; Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 327; Magalhães Noronha, Curso..., p. 71.

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dimento nos termos do art. 91, caput, II, a, do CP, o investigado ou acusado poderá requerer a sua devolução. Tourinho Filho fornece vários exemplos: suponha-se que um camponês cometa um crime de lesões corporais em um colega, utilizando-se de uma enxada. Uma vez apreendida e submetida a exame pericial, não havendo mais interesse na sua retenção, devolve-se. Se um médico provoca lesão corporal no seu desafeto, utilizando-se do bisturi, após o exame pericial, nada impede a sua devolu­ ção. Se alguém mata ou fere outrem, dolosa ou culposamente, com o automóvel, tal veículo foi 0 instrumento do crime de trânsito. Apreendido e devidamente periciado, nada impede sua devolução."’ Também poderá requerê-lo o lesado, por exemplo, a vítima de um roubo ou furto, da coisa que lhe pertence e foi apreendida em poder do ladrão. Finalmente, poderá requerê-la o terceiro de boa-fé, isto é, um terceiro estranho ao fato criminoso, que não tenha sofrido qualquer prejuízo ou dano em razáo do mesmo. Por exemplo, que tenha adquirido o instrumento do crime - digamos, um computador utilizado para a prática de estelionatos por meio da internet - sem saber de tal condição. Outro exemplo seria o proprietário de um veículo que o tenha emprestado a um amigo, sem saber que este o utilizaria para transportar drogas. Preso em flagrante o traficante e apreendido o veículo, incabível o confisco; terá o terceiro direito à restituição.

8.7.3 Momento Quanto ao momento em que é cabível, a restituição de coisa aprendida poderá ocorrer desde o inquérito policial (CPP, art. 118) - obviamente, após a coisa ter sido apreendida - , até 90 dias após o trânsito em julgado (CPP, art. 123). O art. 118 do CPP estabelece que, “Antes de transitar em julgado a sentençafinal, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo”. Tal dispositivo poderia sugerir que a restituição somente poderia ser requerida até o trânsito em julgado. Todavia, o art. 122 do mesmo Código deixa clara a possibilidade de a medida ser requerida mesmo após o trânsito em julgado. A interpretação conjunta indica que, até o trânsito em julgado, caberá a restitui­ ção, desde que a coisa não mais interesse ao processo. Fntretanto, extinto o processo, não se tratando de coisas que tenham sido “confiscadas” (CP, art. 91, caput, I e II, c.c. CPP, art. 119), deixará de haver interesse para o processo na manutenção da apreensáo e, até 90 dias após o trânsito em julgado, poderá ser requerida a restituição (CPP, art. 122). Se a restituição náo for requerida nesse prazo, mesmo que se trate de coisa cujo uso, porte ou fabrico seja lícito, haverá a perda em favor da União.

8.7.4 Quem pode determinar a restituição da coisa apreendida A coisa apreendida poderá, conforme a situação, ser restituída: (1) pela auto­ ridade policial; (2) pelo juiz criminal; (3) pelo juiz cível. Tudo depende do grau de 114. Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 27.

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convencimento efetivo, ou potencial sobre a titularidade da coisa apreendida. No longo caminbo a ser percorrido do desconhecido ao conhecido, do incerto ao certo, é possível identificar três etapas: a “inexistência de dúvida” (ou certeza), a “dúvida” e a dúvida “de alta indagação”. " ’ “Desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante”, a própria au­ toridade policial ou o juiz poderão ordenar a restituição (CPP, art. 120, caput). “Se duvidoso esse direito”, só o ju iz criminal poderá decidir o incidente; (CPP, art. 120, § 1°). Em caso de dúvida de alta indagação sobre quem seja o verdadeiro dono, ojuiz criminal “remeterá as partes para o juízo cível.” (CPP, art. 120, § 4°). i

8.7.5 Requisitos A restituição de coisa apreendida tem como requisitos; (1 ) nâo ser coisa passível de perdimento em favor da União (CPP, art. 119, c.c. CP, art. 91, caput, 11, b); (2) não Se tratar de proveito do crime, que ficará sujeito ao sequestro (CPP, art. 121); (3) a Éóisa apreendida não mais interessarão processo, quando requerida antes do trânsito Im julgado (CPP, art. 118); (4) certeza da propriedade da coisa (CPP, art. 120, caput). |Com exceção da comprovação da propriedade da coisa, os outros três requisitos são ^Bgativos, isto é, hipóteses em que a lei veda a restituição de coisa apreendida. O primeiro requisito negativo é previsto no art. 119 do CPP, que veda a restituição lecoisa passível de perdimento em favor da União. As referências ao arts. 74 e 100 do pP,"« com a reforma da parte geral de 1984, correspondem aos incisos I e II do caput í art. 91 do CP Assim, não será cabível a restituição de instrumentos do crime “cujo hrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fa to ilícito” (CF, art. 9 1 , caput, II, a). exemplo, não caberá a restituição de uma arma de uso proibido, de drogas que ^ham sido apreendidas.'" 115. Sobre os estados de convencimento judicial, cf. Badaró, ônus da prova..., p. 27. KÍó. O art. 74 do CP, em sua redação originária, disciplinava os efeitos da condenação; “Art. 74. São efeitos da condenação: I - tomar certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime; 11 - a perda, em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa fé [sicl: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem bu valor que constitua proveito auferido pelo agente cora a prática do fato criminoso”. Por 'sua vez, o art. 100, na disciplina das medidas de segurança em espécie, previa o “confisco”, nos seguintes termos: “O juiz, embora não apurada a autoria, deve ordenar o confisco dos iinstrumenios e produtos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitue Isicl fato ilícito”. Salvo a situação excepcional, como lembra Espínola Filho (Código..., v. 2, p. 3 6 2 ), em que se trate de objeto cuja proibição q ^ ^ jn ^ ç ã o , posse, uso ou alienação nào seja proibida ide modo absoluto, sendo permitida a certas pessoas. Pense-se, por exemplo, em armas de jUso restrito das forças armadas que tenham sido furtadas. Nada impede que, neste caso, Scomprovando a titularidade, haja restituição do armamento de uso restrito ao Exército, parinha ou Aeronáutica. O mesmo poderia ocorrer no caso de um colecionador de armas ^galmente registrado para tanto. Também poderá ocorrer de se tratar de produto que, sob

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O produto direto, que normalmente será apreendido, não poderá ser restituído ao investigado ou acusado, porque será objeto de perdimento em caso de sentença condenatória (CP, art. 91, caput, II, b), mas poderá sê-lo ao lesado ou terceiro de boa-fé, segundo a ressalva da parte final do art, 119 do CPP. O segundo requisito negativo diz respeito ao produto indireto do crime, isto é, a coisa obtida com o produto do crime (por exemplo, um carro comprado com o dinheiro furtado), que, se tiver sido apreendido, não poderá ser objeto de restituição, ante a vedação expressa do art. 121 do CPP. Caso o proveito ou produto indireto do crime nâo tenha sido apreendido, poderá ser objeto da medida cautelar de sequestro (CPP, art. 132). Em qualquer dos dois casos, o proveito da infração, apreendido ou sequestrado, será posteriormente leiloado para ressarcir o lesado ou terceiro de boa-fé (CPP, art. 133, parágrafo único). Por fim, 0 terceiro requisito negativo, do art. 118 do CPP, no caso de requerimen­ to formulado no curso do processo, é que a coisa apreendida não mais interesse ao processo. Assim, não se poderá requerer a restituição de um instrumento do crime, enquanto não realizado o reconhecimento do objeto pela vítima, ou mesmo uma perícia, nos casos em que se faça necessário. Finalmente, como requisito positivo, quem requerer a restituição de coisa apre­ endida deverá demonstrar ser o seu proprietário. Quando esta demonstração puder ser feita de plano, por exemplo, mediante prova documental segura, o requerimento poderá ser formulado até mesmo perante a autoridade policial. 8.7.6 Procedimento 0 requerimento de restituição de coisa apreendida poderá ser formulado perante a autoridade policial ou juiz de direito, conforme o caso. 0 art. 120 do CPP se refere ao “direito do reclamante” (art. 120, caput)^^^ ou “duvidoso esse direito" (art. 120,1“), ou ainda “dúvida sobre quem seja o verdadeiro dono” (art. 120, § 4“). Tais expressões devem ser entendidas como relativas à defini­ ção de quem é o proprietário ou legítimo possuidor da coisa aprendida, em poder do investigado ou de terceiro. Se 0 pedido estiver corretamente instruído, cora prova certa do “direito do requerido", e não havendo interesse para o processo, a restituição será ordenada de autorização, determinada pessoa possa legitimamente possuí-lo, como ocorre com deter­ minados produtos químicos. ; 118. 0 “direito do reclamante", adverte Tornaghi (Comentários..., v. 1, t. 11, p. 327) “se trata do direito ao objeto, não do direito ã restituição" entendido o direito ao objeto como direito dej propriedade ou posse legitima, como se verifica de outra passagem da mesma obra; “DíreitO| do reclamante. ‘Esse direito’ a que se refere o § 1“, é o direito do reclamante ao objeto, quei pode ser um ius in re ou um lus ad rem" (ib., p. 328 - destaques no original). De fornia|' semelhante, Espínola Filho (Código..., v. 2, p. 364) refere-se a “direito de propriedade oU; titulo de posse absolutamente liquido e sem contestação".

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plano, pela autoridade policial ou juiz de direito (CPP, art. 120, caput)2^^ Mesmo nesse caso, deverá ser ouvido o Ministério Público, ante os termos categóricos do § 3 * do art. 120.'®“ Havendo dúvida sobre a existência do direito, isto é, sobre quem seja o proprie­ tário ou possuidor da coisa, o CPP prevê dois procedimentos distintos, conforme a coisa tenha sido apreendida em poder de quem requerer a sua restituição (CPP, art. 120, § 1“), ou tenha sido apreendida em mão de terceiro, diverso do requerente (CPP, art. 120, § 2°). Em ambos os casos, a dúvida dará lugara um incidente processual, no qual se discutirá o direito à restituição da coisa.'®' Sendo o requerente a pessoa em poder de quem foi apreendida a coisa, nor­ malmente o investigado ou acusado, o juiz mandará autuar em apartado o pedido de restituição, assinalando-lhe o prazo de cinco dias “para a prova”. Nesse prazo, o requerente deverá produzir as provas de que já dispuser, normalmente documental, mas também poderá requerer a produção de outras provas. Depois disso, será ouvido 0 Ministério Público (art. 120, § 3°). Finalmente, decidirá o julgador. Por outro lado, se a coisa foi apreendida em poder de terceiro de boa-fé, e outrem .requerera restituição (por exemplo, alegando ser legítimo proprietário ou possuidor), 'iféfã incidência o § 2° do mesmo artigo, em que, além do requerente, serã ouvido, ;também, o terceiro em poder de quem estava a coisa. Neste caso, “considera-se sem:pfe duvidoso o direito do reclamante quando os objetos apreendidos tenham sido ificontrados em poder de terceiro”.‘®®O pedido deve ser autuado em apartado; depois, J^rá o requerente intimado para provar o seu direito, no prazo de cinco dias, o mesmo ^jorrendo em relação ao terceiro em poder de quem for encontrada a coisa. Depois concluída a instrução do incidente, o reclamante terá dois dias para arrazoar o mcidente e, depois, o terceiro terá igual periodo para também arrazoá-lo. Tais razões P^ivalem às alegações finais do incidente. Depois disso, decidirá o juiz. Se o terceiro Mo se disser dono, reconhecendo que a propriedade ou a posse da coisa apreendida é ípOTeclamante, o juiz determinará a restituição da coisa a este, desde que tenha provacondição de dono da coisa.'®’ Antes de decidir, será ouvido o Ministério Público í|^rt. 120, § 3“). Finalmente, decidirá o juiz criminal, determinando a restituição, se ^ houver impedimento para tanto (CPP, arts. 118,119 e 121) e a propriedade ou : estiver comprovada. Para Nucci (Código..., p. 327), nesse caso, sequer haverá instauração do incidente. Não jé possível concordar com tal ponto de vista. Em qualquer caso, o pedido de restituição jdará ensejo ao incidente, ainda que não se trate dos casos do dos §§ 1“ e 2” do art. 120, que terão incidência nas hipóteses em que há dúvida sobre o direito de propriedade ou de posse. INesse sentido: Espínola Filho, Código...,'#^,■"■p.® 366; Magalhães Noronha, Curso..., p.

m. ||j.^Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 198. p22.îCâmara Leal, Comentários ... v. 1, p. 357. @ | 0 p . e loc. cit.

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Contra a decisão que decide o incidente de restituição de coisa apreendida, por ser considerada decisão com força de definitiva, caberá apelação (CPP, art. 393, lI).""* Por fim, em um ou em outro caso, uma vez instaurado o incidente, se no mo­ mento de decidir ojuiz criminal estiver na dúvida sobre quem seja o verdadeiro dono ou possuidor da coisa, e sendo tal dúvida de difícil solução, aplica-se o § 4° do art. 120 do CPP. Neste caso, a questão nào poderá ser decidida pelo juiz penal, uma vez que a pequena dilação probatória que o incidente processual possibilita nâo permitirá desenvolver em plenitude atividade cognitiva profunda e exauriente."’ Assim, se a titularidade da coisa for “questão de alta indagação”, o juiz criminal deverá “remeter as partes para o juiz cível” (CPP, art. 120, § 4°).‘” No caso de “coisas facilmente deterioráveis”, estas poderão ser avaliadas e lei­ loadas, fazendo-se o depósito do dinheiro obtido. Também poderá ser entregue ao terceiro que as detinha, se for pessoa idônea e assinar termo de responsabilidade (CPP, art. 120, § 5 “). 8 .7 .7 Destino das coisas não restituídas O destino das coisas apreendidas e que não tenham sido restituídas dependerá; (1) do resultado do processo, se condenatório ou absolutório; (2) da natureza da coisa apreendida. Em caso de condenação, passados 90 dias do trânsito em julgado, ojuiz decretará a perda em favor da União dos instrumentos do crime cuja posse ou uso sejam ilícitos, bem como do produto direto ou indireto do crime (CPP, art. 122, caput), que serão vendidos em leilão público, sendo o dinheiro apurado recolhido ao Tesouro Nacio­ nal, ressalvado o direito do lesado ou terceiro de boa-fé (art. 122, parágrafo único). No que diz respeito aos instrumentos do crime cujo “fabrico, alienação, uso, porte ou detenção” constitua fato ilícito, em regra não será possível sua venda em leilão, hipótese em que deverão ser inutilizados ou recolhidos ao museu criminal, se houver interesse (CPP, art. 124).'" 124. Nesse sentido, Nucci, Código..., p. 327; Pacelli, Curso..., p. 312. 125. Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 32) explica que, “realmente, não é possível solucionar-se questão de alta indagação dentro dos estreitos limites de um processo incidental. !...] Na ação própria, a possibilidade é maior, em face da produção de maiores e melhores provas, bem como da dilação dos prazos”. 126. A expressão é utilizada por Espínola Filho, Código..., v. 2. p. 364; Tomaghi, Curso..., V. 1, p. 198; Magalhães Noronha, Curso..., p. 72; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 3 2 .0 Código de Processo Penal Militar, em seu art. 192, parágrafo único, apresenta a rubrica lateral “questão de alta indagação”. 127. Observa Nucci (Código..., p. 315) que a questão deverá ser remetida para: “(a) juízo cível comum; quando o conflito se estabelecer entre particulares, ambos pleiteando a coisa e dizendo-se proprietários; (b) juízo da Fazenda Pública: quando o conflito se der entre o pretenso proprietário, particular, e a Fazenda, que nâo reconhecer a propriedade, crendo que o bem deva permanecer apreendido para assegurar o confisco”, 128. Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 336.

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Por outro lado, no caso de absolvição - o mesmo valendo para a sentença que de­ clara a extinção da punibilidade-, passados 90 dias do trânsito em julgado, se ninguém reclamar os objetos apreendidos ou estes não pertencerem ao acusado, serão vendidos em leilão, depositando-se o saldo à disposição do juízo de ausentes (CPP, art. 123).'™ Ressalte-se que, mesmo em caso de condenação, o acusado terá direito de reaver as coisas apreendidas de sua propriedade, em relação às quais não tenha sido deter­ minado o perdimento nos termos do art. 91, caput, II, do CP, independentemente de qualquer pedido de restituição.'™

8.7.8 Natureza jurídica Analisada a disciplina da restituição de coisa apreendida, resta definir a sua natureza jurídica. Há respeitável posicionamento doutrinário no sentido de que a restituição de coisa apreendida tem natureza cautelar, tratando-se de medida que assegura a repa­ ração do dano causado pelo delito. Não é possível concordar com tal posição, vez em ' que o provimento que decide a restituição de coisa apreendida não tem finalidade de ;assegurar o resultado da sentença penal, não se baseia em cognição sumária e, bem por isso, sempre será definitivo e não provisório, como é típico das medidas cautelares. Embora se pudesse imaginar que a restituição de coisa apreendida teria a finalidade i. de assegurar a reparação do dano causado pelo delito, principalmente naqueles casos |de crimes patrimoniais em que a vítima é desapossada de uma coisa que lhe pertence, Ital finalidade não é encontrada nos casos em que a restituição é requerida pelo prójrio investigado ou acusado, de um lado, ou pelo terceiro de boa-fé, de outro. Mesmo juando requerida pelo lesado, uma vez concedida a restituição de coisa apreendida, ^ o assegurará uma satisfação futura, mas já satisfará definitivamente. Por outro lado, como já visto, o ato decisório proferido no incidente de restituição |de coisa apreendida, seja ela requerida pala vítima, pelo acusado ou por terceiros, será íempre definitivo. Sendo deferida a restituição da coisa, já terá havido a satisfação, em |;aráter definitivo, do direito pleiteado. Por sua vez, as medidas cautelares nâo implicam provimentos definitivos. Como )lica Tomaghi: ‘[...1 o que realmente caracteriza as providências acautelatórias e as distingue ; demais é o fato de elas serem provisórias e instrumentais. Destinam-se a vigorar iquanto não se tomam definitivas, e nisso consiste a provisoriedade. Assim, por icémplo, a apreensão da res furtiva é provisória, e a restituição dela ao legítimo dono ' litiva.”” ' ^ ^ 9 . A disciplina dos bens dos ausentes edlSíáteüe nos arts. 1.159 a 1.169 do CPC. No Novo ' CPC, encontra-se prevista nos artigos 742 e 743. » 3 0 . Como destaca Tornaghi (Com entários..., v. 1, t. II, p. 33 5 ), os bens apreendidos, “se pertencem a réu, ser-lhe-ão devolvidos independentemente de reclamação”. IBl/l. Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 207.

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Finalmente, a restituição de coisa apreendida não se dá com base em cognição sumária, mas sim em cognição profunda e exauriente. E, nos casos em que a limita­ da atividade instrutória passível de ser realizada no incidente não permitir juízo de certeza, a questão será remetida para as vias cíveis, o que não significa uma cognição sumária, Haverá o que Kazuo Watanabe denomina “cognição plena e exauriente se­ cundum eventum probaííonis”.'®®

8.8 Incidente de falsidade documental 0 incidente de falsidade documental é disciplinado nos arts. 145 a 148 do CPP. Trata-se de um incidente realizado no próprio processo em que se junta um documento, cuja falsidade é afirmada por qualquer das partes, mediante autuação em apartado, visando apurar a força probante do documento, que, se for verdadeiro, permanecerá encartado nos autos principais, e se for falso, será dele desentranhado. No entanto, no incidente de falsidade, o que se argui, apura e declara nào é o crime contra a fé pública, que será objeto de processo próprio, seja no âmbito criminal, pelo crime de falso, seja em ação declaratória no campo civil (CPC, art. 4", caput, U). Não se trata de apurar um crime, mas de averiguar o valor probatório de um documento juntado ao processo e que se reputa falso."®

8.8.1 Cabimento Documento, em sentido amplo, é todo objeto material apto a registrar um fato. Todavia, para o CPP, documento é definido apenas como documento escrito, isto é, “o objeto em que se exara uma expressão gráfica, idônea a provar um fato”.'®® Um documento pode ser falso por ter havido mutação ou imitação da verdade (mutatio veritaíis, imitatio veritatis), ou na sua feitura material, ou no seu conteúdo ideológico.'®’ Há falsidade material quando for criado um ato falso ou quando houvera adulteração gráfica de um ato verdadeiro. Por outro lado, haverá falsidade intelec­ tual ou ideológica quando se constatar a alteração respeitante do conteúdo, isto é, a substância e circunstância do ato, não se revelando por qualquer meio exterior 132. Watanabe (Da cognição..., p. 89-90); “l...| aspecto marcante dessa espécie de cognição, que poderá ser exauriente, consiste no fato de estar condicionada a decisão de questão, ou mesmo de t/tema decidendum, à profundidade da cognição que o magistrado conseguir, eventualmente, estabelecer com base nas provas existentes nos autos, À conclusão de insu-. ficiência de prova, a questão não é decidida (as partes são remetidas para as ‘vias ordinárias’ ou para a ‘ação própria’), ou o objeto Ittigioso é decidido sem caráter de definitividade, não, alcançando, bem por isto, a autoridade de coisa julgada material”. No mesmo sentido, cf«Scarance Fernandes, Incidente processual..., p. 102, 133. Magalhães Noronha, Curso..., p. 81. 134. Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. 11, p. 389. 135. Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 387.

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a p a r e n te .O documentq, embora formalmente verdadeiro, conterá afirmação quanto ao seu conteúdo, destoante da realidade.*®' Prevalece o entendimento de que o incidente de falsidade documental somente é cabível em relação ao documento escrito, isto é, no sentido que o define o art. 232 do CPP.*®® Não há, porém, porque deixar de admitir a instauração de incidente de falsidade documental em relação a falta de autenücidade de documentos não escritos, como uma fotografia, ou mesmo em relação a documentos decorrentes de gravações em vídeo ou, até mesmo, de documentos eletrônicos utilizados como prova em pro­ cesso penal.*®“ A única exceção, em que não será cabível o incidente de falsidade é no caso de o documento consistir no próprio corpo do delito, na medida em que deverá ser objeto de exame pericial específico e obrigatório, no caso, o exame de corpo de delito (CPP, art. 158). Por outro lado, prevalece o entendimento de que o incidente de falsidade ■documental é cabível tanto em relação à falsidade material (envolvendo a forma e lutenticidade) quanto à falsidade ideológica (sobreseu conteúdo).*®“ Não é possível |òncordar com tal posicionamento. O incidente de falsidade somente pode ter por Bfijetivo contestar a autenticidade do documento, isto é, o seu aspecto formal. *®* Isso forque, os documentos públicos contêm presunção de autenticidade (e não de ve­ le id a d e de seu conteúdo), enquanto os documentos particulares nào gozam de tal /presunção, mas produzirão efeitos se nâo tiverem a sua autenticidade contestada. A ^rm a de impugnar a autenticidade de um documento público ou particular é o inci^ n t e de falsidade. Nesse sentido, o documento não será autêntico, em seu aspecto ^raial, porque nào terá sido elaborado por quem consta como o tendo feito, ou por sido elaborado em data diversa da que consta no próprio documento, ou ainda, ^ r q u e houve rasura ou adulteração de seu teor (por exemplo, um cheque em que se ^ e r e o valor de R$ 100,00 para R$ 1.000,00). I^ f ttcsse último caso, em que haja uma rasura ou adulteração do :®iiteúdo declarativo do documento (altera uma declaração de vontade, inserindo *m n ã o em uma frase), ou do fato representado (modifica-se eletronicamente uma S o g ra fia digital), esta falsidade material acabará repercutindo na correspondência Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 203. Como explica Magalhães Noronha (Curso..., p. 79), jjiia falsidade ideológica, “a ideia é falsa, sendo o documento verdadeiro, em seus requisitos /.externos ou materiais". ag^yí-Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 417, A falsidade ideológica, no dizer de Tourinho Filho f l p (Processo..., v. 3, p. 70), afeta, no documento, “o pensamento que as suas letras encerram". gí|§^Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 70. ;®iÇNesse sentido: Nucci (Código..., p. S-JáTMeIjendendo que o incidente pode sc instaurar |em relação a qualquer tipo de documeiroTfeíemplificando: “escritos, fotos, fitas de vídeo lie som, desenhos, esquemas, gravuras, disquetes, CDs, e-mails, entre outros".

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entre o conteúdo (aspecto ideológico) do documento e sua relação com a verdade dos fatos. Já nos casos de falsidade ideológica pura (por exemplo, uma carta em que seu emitente declara um fato que não existiu, ou uma escritura pública em que o escrivão declara um fato nâo ocorrido em sua presença), para dem onstrar que o conteúdo de tal documento (no caso, a carta ou a escritura) é ideologicamente falso, a parte poderá se valer de qualquer meio de prova que possa ser produzi­ do no curso regular da instrução. Não há sentido em um incidente de falsidade documental nesse caso.'” Até mesmo porque uma perícia no docum ento não teria aptidão de demonstrar que seu conteúdo não é veraz. O vício não estará no documento em si, enquanto suporte material que serve de registro para um fato relevante, mas na falta de correspondência entre o fato registrado e a realidade. Pelo mesmo motivo, não há um incidente de “falso testemunho” para provar que a testemunha mente, ou um incidente de “falsidade pericial” para provar que o conteúdo da perícia nâo é correto. Nestes casos, o que se faz é produzir provas em contrário, ao longo da instrução, por qualquer meio legalmente admissível, e demonstrar que o conteúdo daquele meio de prova não é seguro para que o julgamento fático adote a versão de que os fatos se passaram segundo parecem demonstrar tais meios de prova.

8.8.2 Legitimados Embora o CPP nào tenha disciplinado quem tem legitimidade para requerer o incidente, o mesmo poderá ser requerido por qualquer das partes. O art. 146 prevê que “a arguição da falsidade, feita por procurador, exige poderes especiais”. Assim, suscitado pelo querelante, ou pelo acusado, seus advogados deverão ter poderes especiais para tanto,"’ ou, então, deverão fazê-lo em peça assinada em conjunto com a parte.‘’’ Obviamente, no caso de ser suscitado pelo Ministério Público, o dispositivo nâo tem aplicação. Limitou-se o CPP a prever que “ojuiz poderá, de oficio, proceder à verificação da falsidade” (art. 147), 142, Aliás, Mirabete (Processo Penal, p. 263), que defende a possibilidade de instaurar o incidente de falsidade, no caso de falsidade ideológica, destaca que, “no processo penal, a instauração do incidente nâo é indispensável. Tratando-se de falsidade ideológica do documento particular, a prova pode ser feita na instrução, por outro meio (depoimento de testemunhas, por e.xemplo)". 143. Nesse sentido: Espínola Filho [Código..., v. 2, p. 417), Tourinho Filho {Processo..., v. 3, p. 75), Acosta iOprocesso..., p. 217) e Magalhães Noronha (Curso ... p. 81), que incluem, também, o assistente de acusação. 114. Espínola Filho (Código..., v. 2. p. 417) aconselha que no instrumento de mandado “se mencione a causa onde se levanta o incidente, com referência dos litigante.s, e autonze, expressamente, a arguir o falso do documento X, junto por esta ou aquela parte”. 145. Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 347.

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Questão interessante é saber se a própria parte que juntou o documento nos autos poderá suscitar o incidente de falsidade. Não bá qualquer vedação legal para tanto.'®* Ao mais, podendo o próprio juiz verificar, ex officio, a falsidade de qualquer documento, não haveria muita relevância em vedar que a parte que juntou o documento, depois, pudesse argui-lo de falso.

8.8.3 Momento O incidente de falsidade documental pode ser instaurado a qualquer momento ao longo do processo. Tal se deve diante da necessidade de pronta verificação da au­ tenticidade do documento, que poderá servir de fundamento para uma série de graves medidas no decorrer do processo, como: busca e apreensão, interceptação telefônica, prisão preventiva etc.'®® ^ Aliás, diante da ausência de um efetivo prazo de conclusão da investigação criminal, e não sendo raros os inquéritos policiais que duram anos, não bá por que negar a possibilidade de o investigado ou o Ministério Público requererem e a ^utoridade policial representar ao juiz, para a instauração de incidente de falsidade [ide documento juntado nos autos do inquérito ou qualquer outra forma de investi|áção preliminar. O incidente de falsidade documental também poderá ser suscitado em segundo pfau,'®® mormente diante da possibilidade de o documento somente ter sido juntado Bos autos após a sentença.

J^.8.4 Procedimento O procedimento do incidente de falsidade é disciplinado nos arts. 145 a 148 ipC PP. A falsidade deve ser arguida em requerimento escrito pela parte ou por procurador P>m poderes especiais. O juiz mandará autuá-lo em apartado e ordenará intimação da ttãrte contrária, para oferecer resposta em 48 boras (CPP, art. 1 4 5 ,1). Tal manifestação Üestina-se a obter o reconhecimento da falsidade, uma vez que normalmente terá ^ 6 . Nesse sentido: Espínola Filho, Código.,., v. 2, p. 417; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, 4

p,

75.

Não é possível concordar, portanto, com Frederico Marques (Elementos..., v. 2, p. 351), que, com base no ensinamento de Cardoso de Gusmão (Código..., p. 63 ), assevera que o ' incidente de falsidade documental somente se faz necessário “se encerrada a fase probatória if'ou em caso de possibilidade evidente de excesso de prazo, em relação a documentos junto í com alegações finais, ou quando interposto recurso”. Cardoso de Gusmão, Código..., p. 63. No CPC há regra expressa nesse sentido: “Art. 390. O incidente de falsidade tem lugar elÜIftjalquer tempo e grau de jurisdição, incumbindo à parte, contra quem foi produzido o documento, suscitá-lo na contestação ou no prazo de 10 (dez) dias, contados da intimação da sua juntada aos autos”. No Novo CPC, o art. 427, caput, estabelece que: “A fakidade deve ser suscitada na contestação, na réplica ou no prazo de quinze dias, contado a partir da intimação da juntada aos autos do documento”.

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Processo Penai

sido essa parte contrária quem juntou aos autos o documento acoimado de falso, ou a refutação de tal alegação. Depois disso, primeiro a parte que arguiu a falsidade e, sucessivamente, a parte contrária, terão o prazo de três dias para provar as suas alegações (art. 145, II). Nesse prazo não será necessário produzir toda prova, devendo a parte já requerer a juntada das que disponha, normalmente prova documental, bem como requerer outras provas que pretenda produzir para demonstrar a falsidade ou comprovar a autenticidade do documento.*®“ Poderá, por exemplo, ser requerida a juntada do documento original, ou ser requerida a oitiva da pessoa a quem se atribui a feitura do documento, seja ele particular ou público (digamos, o particular ou o tabelião)*™ ou, principalmente, ser requerida a realização de prova pericial. Ojuiz “poderá ordenar as diligências que entender necessárias” (art. 145,111). Obviamente, tal dispositivo não autoriza um poder discricionário que, arbitrariamen­ te, possa anular o direito de o arguente demonstrar o que alega. Ojuiz deverá deferir as provas requeridas segundo as regras normais de admissibilidade, em especial, a pertinência e relevância. Destaque-se que o fato de a parte que juntou o documen­ to aos autos, em sua resposta, ter concordado com a falsidade do documento não afasta a necessidade de ojuiz verificar a efetiva falsidade,*’ * sendo irrelevante para o processo penal, em termos de atividade probatória, tratar-se de fato incontroverso. No caso de incidente instaurado ex officio pelo juiz, deve se respeitar o contra­ ditório. Assim, também em autos apartados, terá vista para manifestação, primeiro, a parte que juntou o documento e, depois, a parte contrária, seguindo-se o prazo para dilação probatória, na mesma ordem. *’* Concluída a instrução, se o juiz reconhecer a falsidade do documento, deter­ minará seu desentranhamento dos autos principais, remetendo-o, com os autos do incidente, ao Ministério Público (art. 145, IV), para as providências que entender adequadas para a apuração e punição do/alsum. A questão da falsidade, porém, será resolvida apenas incidenter tantum, sem que tal ato vincule o juizo cível ou penal em 149. Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 346. Em sentido contrário posiciona-se Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 72), que afirma: “o prazo nâo é concedido para ser requerida a prova, mas para que ela se faça". 130. Observa Cardoso de Gusmão (Código..., p. 63) que, “tratando-se de instrumento público ou de ato de oficial público é de conveniência proceder o juiz conforme o disposto no art. 718 do Cód. Proc. Civil, no concernente à audiência no notário". No mesmo sentido se posiciona Borges da Rosa, Código,.., p. 234. Ressalte-se, porém, que o artigo referido era do CPC de 1939, e não tem correspondente no CPC de 1973, o que por si só nâo significa vedação de tal prova. 131. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 418; Magalhães Noronha, Curso..., P81; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 72; Mirabete, Processo Penal, p. 264. 152. Nesse sentido; Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 418; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 76.

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que a mesma questão venha a ser posta como objeto do processo principal. Não fará. portanto, coisa julgada que vincule ulterior processo clvel ou criminal (CPP, art. 148). No caso de improcedência da alegação de falsidade, o documento permanecerá nos autos, devendo ser valorado, normalmente, com as demais provas, no momento da sentença. Da decisão proferida no incidente de falsidade documental, acolhendo-o ou rejeitando-o, cabe recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, X V lll), sem efeito sus­ pensivo (CPP, art. 584), subindo nos próprios autos do incidente (CPP, art. 583, III).

8.9 Incidente de insanidade mental O CPP prevê nos arts. 149 a 154 o incidente de insanidade mental. O incidente de insanidade mental tem por objetivo a realização de pencia psiqui­ átrica, visando à constatação do estado mental do investigado ou acusado, por meio de um juízo retrospectivo, no momento da prática delitiva. A instauração do incidente suspende o curso do processo, até o término da pe­ ncia (CPP, art. 149, § 2°). No entanto, se ocorrer no curso do inquérito policial, este nâo ficará suspenso. Nào é por outro motivo que o § 2° do art. 149 prevê que “fican do ísuspenso o processo, se j á iniciada a ação pénal”. Outra consequência do incidente é que, com a sua instauração, ojuiz deverá notmear curador ao acusado. Aliás, mesmo que tal ocorra no curso do inquérito policial, ;pjuiz deverá nomear curador ao investigado.'” O incidente será processado em autos apartados e, depois da juntada do laudo, Será apensado aos autos do processo principal (CPP, art. 153). |8;9.7 Cabimento O art. 149, caput, do CPP estabelece que será cabível e pertinente a realização do Acidente de insanidade mental do acusado “quando houver dúvida sobre a integridade §íentaí do acusado”. Obviamente, para a instauração do incidente não é necessário que se tenha certeza p a doença mental. Havendo nos autos elementos concretos que permitam gerar no espírito do julgador uma dúvida sobre a integridade mental, será cabível a determitóçâo da perícia. Como explica Tornaghi, “tratando-se de assunto altamente técnico, ge exige conhecimentos científicos estranhos ao juiz, desde que haja dúvida, desde ãe ele, juiz, não tenha certeza da inutilidade do exame ou da malícia do requerente, ^ve ordenar a perícia, e, por isso, é que a lei diz: quando houver dúvida, o juiz orEssa dúvida poderá surgir de “sintomas que façam supor estar acometido

________ í] Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 393. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 245. S S - Tornaghi, Curso..., v. 1, p. 250. De forma semelhante, para Greco Filho (M anual..., p. 183) “Havendo suspeita de insanidade, o exame é indispensável, mas não se realizará se

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P ro c e sso Penal

de alguma enfermidade mental”.'“ Assim, a existência de internações prévias, o fato de 0 acusado ter sido interditado no campo civil, a constatação da inimputabilidade em exame anterior, por crime diverso, a própria forma ou a motivação do delito, são fatores que poderão ser levados em conta e, gerando um estado de dúvida, o juiz deverá determinar o exame.'™ É sempre o juiz quem determina o incidente de falsidade, não tendo a autorida­ de policial poderes para estabelecer a realização da perícia, sendo-lbe possibilitado, apenas, representar judicialmente para tanto. 8 .9 .2 Legitimados A legitimação para requerer o incidente é ampla, prevendo o caput do art. 149 que: “.. .ojuiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Püblico, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado...". Nada impede que também o próprio acusado possa requerer a instauração do incidente.'™ Pacelli de Oliveira vai além e, partindo da premissa do interesse piiblico na apuração da questão, afirma ser “perfeitamente possível que qualquer pessoa inte­ ressada, sobretudo aquelas sobcujos cuidados ou guarda (ainda que informal) esteja o acusado (ou indiciado) está autorizada a provocar a instauração do incidente de insanidade mental”.'™

8.9.3 Momento Quanto ao momento procedimental, o incidente poderá ser requerido tanto na fase do inquérito policial quanto durante o processo (CPP, art. 149, § 1°). Embora na fase do inquérito seja previsto que o exame será instaurado “me­ diante representação da autoridade policial ao juiz competente”, nada impede que as pessoas legitimadas no caput do artigo também requeiram o incidente na fase investigatória. nenhuma dúvida pairar sobre a capacidade mental do acusado". 156. Câmara Leal. Comentários.... v. 1, p. 397. 157. Por outro lado, afirma Nucci (Código ... p. 348) que “crimes graves, réus reincidentes ou com antecedentes, ausência de motivo para o cometimento da infração, narrativas gené­ ricas de testemunhas sobre a insanidade do réu, entre outras situações correlatas, nâo são motivos suficientes para a instauração do incidente”. De forma semelhante e com base em jurisprudência que indica, assevera Mirabete (Processo Penal, p. 267) que “não constituem elementos suficientes para o deferimento do exame; a aparente insuficiência da motivação do crime; a forma brutal do crime, o atestado médico genérico que alude a ‘depressão’, ‘neurose de angústia’, crise de agitação' etc.; as simples informações da família, despidas de qualquer comprovação etc.", 158. Nesse sentido; Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 244. 159. Pacelli, Curso..., p. 322,

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8.9.4 Procedimento 0 incidente de insanidade mental é disciplinado nos arts. 149 e 150 do CPP. Determinada a instauração do incidente de insanidade mental, o ju iz mandará autuá-lo em apartado e determinará a realização da pencia, isto é, o investigado ou acusado será “submetido a exame médico-legal”. O ju iz também nomeará curador ao acusado, quando determinar o exame (CPP, art. 149, § 2”). Contra a decisão de indeferimento do requerimento de instauração de incidente de insanidade mental não bá previsão de recurso. Contudo, caso se possa demonstrar, por meio de elementos de provas pré-constítuídas, que bá dúvida sobre a insanidade mental do acusado, pode ser impetrado habeas corpus.'^ Após a autuação em apartado, o juiz intimará as partes, primeiro o Ministério Público, depois o acusado, na pessoa de seu curador, para que apresentem quesitos. *«* 0 próprio juiz, por certo, poderá formular os seus quesitos.*®' O CPP determina que a perícia do incidente de insanidade mental será realiza­ do por peritos (CPP. art. 150, § 2" e art. 151). Diante da mudança operada pela Lei 11.690/2008, que alterou a regra do art. 159, caput, passando a prever que as perícias serão realizadas por “um perito oficial”, é de indagar se a disposição do incidente de insanidade foi revogada pela novel legislação ou se representa uma norma especial, kinda aplicável, pelas peculiaridades e especificidades de tal exame.*«® Melhor a últitiiasolução. Até mesmo porque, se antes, quando a regra geral era de dois peritos, já avia a disciplina própria e específica, é porque o caso exige tratamento diferenciado. O exame deverá ser realizado no prazo de 45 dias, podendo o juiz prorrogá-lo pPP. art. 150, § 1“). De qualquer forma, não se trata de prazo fatal,*«® embora se deva fer prudência na prorrogação de tal prazo, na medida em que, por não ser o incidente ílnsanidade mental uma questão prejudicial, durante tal período, embora o processo jque suspenso, não baverá suspensão do prazo prescrícional.*«« Se o investigado ou acusado estiver preso cautelarmente, deverá ser transferido ha hospital de custódia e tratamento, onde houver; se estiver solto, e o requererem os ritos, o juiz também poderá determinar que o investigado ou acusado seja internado 1estabelecimento adequado que o juiz designar” (CPP, art. 150). A razão de ser Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 3 5 3 . f Segundo Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 90), se o exame for requerido por outro legitimado que não o Ministério Público, primeiro o requerente formulará os quesitos e depois o fará o Ministério Público. S2. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 89. ^ Tourinho Filho (Processo..., v. 3 , af i rma que a pericia deverá ser feita por dois 3 ® . peritos, destacando que cada um poderã elaborar o seu laudo, embora nâo enfrente expres" |!»samente a questão à luz da alteração do art. 159 , caput, do CPP 'lucci. Código..., p. 3 5 1 . 'lirabete. Processo Penal, p. 268-269.

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P rocesso P enal

de tal internação é permitir umexame mais detalhado, que normalmente demanda a realização de entrevistas, observações contínuas, realização de exames etc. No laudo, por certo, nào bastará que os peritos simplesmente concluam pela inimputabilidade, devendo justificar tecnicamente suas conclusões. Como explica Bento de Faria; “ l ... I não basta, para convencer, que os peritos afirmem simplesmente tratar-se de um enfermo mental, mas é indispensável que exponham as razões justificativas de seu parecer, que não afirmemsomente a loucura, mas a demonstrem, expondo os sinais diagnósticos, os dados colhidos das observações a que procederem, guiados pelas luzes da psiquiatria, de modo a convencer o juiz, a quem compete apreciar a imputabilidade do delinquente, de que se trata realmente de um indivíduo, cujas condições mentais o tornam irresponsável pelo crime cometido. A verificação e apreciação do fato sujeito ao seu exame não é uma simples afirmação, mas uma explicação segundo os princípios da ciência; não é um mero testemunho, mas um parecer, umjuízo motivado.""* Se assim não for, nada impede que o juiz determine a complementação do laudo (CPP, art. 181). Diante da nova regra geral das perícias, admitindo a atuação de assistentes técnicos das partes, nada impede que, também no incidente de insanidade mental, requeiram as partes - no caso do acusado, o seu curador - a nomeação de assistente técnico (CPP, art. 159, §3°) Em princípio, aplica-se ao laudo que resulta do incidente de insanidade mental a regra geral das perícias, prevista no art. 182 do CPP, segundo a qual o juiz não fica vinculado aos laudos periciais, podendo aceitá-los ou rejeitá-los, no todo ou em parte, o que é uma decorrência da máxima de que o juiz é o peritus perUonim. Todavia, era virtude da elevada especialização técnica da questão de definir ou nâo a ocorrência de insanidade mental no momento da prática da infração penal, será muito difícil que o juiz, sem qualquer outro elemento técnico, possa divergir do laudo pericial."® Poderá haver divergência entre os laudos periciais: (1) caso se considere que pre­ valece a regra do art. 150 do CPP, que prevê a nomeação de peritos - sobre a regra do art. 159, caput, com a redação dada pela Lei 11.690/2008, que determina a realização das perícias por “perito oficial"; (2) caso sejam nomeados peritos náo oficiais e cada ura apresente seu laudo, com resultados divergentes (art. 159, § 1°); (3) considerando qtiél em um caso concreto a perícia de insanidade mental será particularmente complexa,; ojuiz designe mais de um perito oficial (art. 159, § 7°). Em q u a l q u e r desses casos, ôj 166. Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 207-208. No mesmo sentido, Espínola Filho, Cóíligoí| V. 2, p . 427. 167. Câmara Leal {Comentários..., v. 1, p. 422) chega mesmo a afirmar que “o laudo dos médicos tem um valor capital, não devendo ser desprezado pelo julgador, porquan representa a palavra da ciência, cujas conclusões devem ser sempre acatadas pela justiç^

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juiz poderá privilegiar o resultado de um laudo em detrimento de outro, ou nomear um terceiro perito, ou inandar proceder a novo exame por outros peritos (CPP, art. 180). A divergência entre o laudo oficial e os pareceres dos assistentes técnicos pode autorizar a adoção das providências do citado art. 180 do CPP

3.9.5 Resultado do laudo É possível que o laudo conclua pela Ínimputabilidade, pela semi-imputabilidade au pela imputabilidade. Tal condição, contudo, deve ser aferida, a partir de um juízo retrospectivo, em relação ao momento da prática do fato. O art. 26, caput, do CP prevê que; “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, a o tem po da ação ou d a om issão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fa to ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (destacamos). Um primeiro possível resultado do laudo é que o investigado ou acusado era taimputável ao tempo do fato. Nesse caso, se o processo já estava em curso, deverá prosseguir com a presença dp curador do acusado (CPP, art. 151). Por outro lado, caso o laudo seja concluído durante o inquérito policial, não haverá óbice ao oferecimento da denúncia,'“ uma ^ zqu e a Ínimputabilidade decorrente de doença mental ou desenvolvimento mental fèt^rdado ou incompleto não é impedimento para que se instaure a ação penal, mas, ;^ o n trá rio , hipótese de absolvição (CPP, art. 386, caput, VI). Aliás, nesse caso, nada sta que o acusado seja absolvido sumariamente, nos termos do art. 397, II, do CPP tóm, como já terá havido a nomeação do curador o investigado, a citação deverá ||er feita na pessoa do curador,'™ a quem incumbirá a apresentação de resposta e a do inimputável no curso do processo. Uma segunda possibilidade é o laudo concluir pela Ínimputabilidade, mas sendo ^ superveniente a prática do fato criminoso. Neste caso, o processo deverá ficar fcpenso, “até que o acusado se restabeleça” (CPP, art. 152, caput), havendo possiaUdade de o juiz determinar a internação do acusado em “manicômio judiciário” eqüivale aos hospitais de custódia e tratamento - ou “outro estabelecimento quado”'’ ' (CPP, art. 152, § T ). §|f’Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 90; Nucci, Código..., p. 349. l ã A despeito da ressalva de tal dispositivo quanto à impossibilidade de absolvição sumária or ínimputabilidade, entendemos que, sendo esta a única tese defensiva, nada obsta tal Isolução. Sobre o tema, cf., infra, cap. 13, item 13.2.5. llOTourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 91. Lembra Câmara Leal (Comentdrio's'^Nf’iii-i, p. 390 ), em lição que continua atual, que, : se a família do doente preferir sua internação em outro estabelecimento ou hospital de Jnoléstias psicopáticas, fazendo as despesas do tratamento e hospitalização, poderá requerer faojuiz que assim o determine, e este, nào havendo qualquer inconveniente, deverá atender ^o pedido” .

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P ro c es s o P enal

O problema da solução legal é que o CPP não prevê prazo para a suspensão do processo e, consequentemente, do período de internação. O § 2° do art. 152 limita-se a prever que “o processo retomará o seu curso, desde que se restabeleça o acusado". Tal medida mostra-se inconstitucional, por incompatibilidade com a presunção de inocência, ao permitir que alguém fique privado de sua liberdade, por tempo inde­ terminado, sem que tenba havido uma condenação penal ou a imposição de medida de segurança, em qualquer caso, por sentença transitada em ju lgad o ."' Ressalte-se, por fim, que em tal período não há interrupção do prazo prescricional,"® que poderá ocorrer antes que o acusado se restabeleça. Nessa hipótese, a toda evidência, não po­ derá 0 acusado, ainda que padecendo de doença mental, permanecer sob internação por força do ato praticado. Um terceiro cenário é, durante o cumprimento de pena, imposta a condenado imputável, se constate uma doença mental superveniente, surgida no curso da execução. Nesse caso. o art. 154 do CPP determina que se observe o disposto no art. 682 do mesmo Código. A matéria, porém, passou a ter disciplina própria na Lei de Execução Penal; (1) sendo a doença transitória, aplica-se o art. 41 do CP, transferin­ do-se o condenado para hospital penitenciário, sem alterar a pena que lhe foi imposta; (2) se a doença for duradoura ou permanente, a pena será convertida em medida de segurança, nos termos do art. 183 da LEP."® Por outro lado, se o laudo concluir pela semi-imputabilidade, o processo deverá prosseguir, sendo mantida a nomeação do curador. O art. 151 do CPP faz referência ao art. 22 do CP, que corresponde ao atual art. 26, com a reforma de 1984. E, no art. 26, há disciplina da situação do inimputável, no caput, e do semi-imputável, no pará­ grafo único. Assim sendo, em qualquer caso o processo prosseguirá com a presença do curador.*'® Nessa hipótese, porém, ao final do processo, poderá ser aplicado ao semi-imputável pena, com a redução de um a dois terços (CP, art. 26, parágrafo único), ou medida de segurança (CP, art. 98). Finalmente, se o laudo concluir pela imputabilidade do acusado, sem doença mental superveniente, o processo prosseguirá normalmente, sendo revogada a no­ meação do curador.*'« Em qualquer caso, o laudo deverá ser homologado pelo juiz. Contra a decisão de homologação, tem-se entendido cabível a apelação, por se tratar de decisão cora força de definitiva.*" 172. Nesse sentido: Greco Filho, Manual.,., p. 184; Mirabete, Processo Penal, p. 272; Pacelli, Curso..., p. 32 3. 173. Nesse sentido: Fspínola Filho, Código..., v. 2, p. 4 3 1-4 3 2 ; Magalhães Noronha, Curso-, p. 86. 174. Nesse sentido. Nucci, Código..., p. 3 5 1. 175. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 2 7 1. 176. Nesse sentido; Nucci, Código..., p. 3 5 1 . 177. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentários,.., v. 1, p. 422; Nucci, Código..., p. 353.

Questões e p rocessos incidentes Q U E S T Õ E S E P R O C E S S O S IN C ID E N T E S

C l a s s if i c a ç õ e s

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P rocesso P enal

DA EX C EÇ Ã O D E SU SP EIÇ Ã O E D A A L E G A Ç Ã O DE IM PED IM EN TO E IN C O M P A TIB ILID A D E Exceção de suspeição

Suspeição da autoridade policial

V

Não cabe exceção, pois as partes nào podem recusar a autoridade

^

Observada qualquer hipótese de suspeição - o art. 107, autoridade tem o dever de se abster de atuar no inquérito

y

DA EX C EÇ Ã O D E IN C O M P ET ÊN CIA

Questões e processos incidentes

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EXCEÇÃO DE imSPENOÊNCIA E DE COISA JULGADA

EX C EÇ Ã O D E IL E G IT IM ID A D E D E PARTE

Legitimidade; pertinência subjetiva da ação

O ju iz pode reconhecer â ilegitimidade de ofício

Legitimados: Qualquer das partes

Momento da arguição: Em regra, no prazo da defesa - não há preclusão ordem pública

Procedimento: C P P - a r t . 110

D A R E STITU IÇ Ã O DAS C O IS A S A P R E EN D ID A S

Objeto; coisas passíveis de s i' apreensão instrumento/ i ; produto do ■ ^ çrim e e coisas destinadas à prova

Legitimados: proprietário e terceiro/ possuidor de boa-fé

Momento da arguição: do inquérito policial a 90 dias após o trânsito em julgado - C P P arts. t 1 8 e 121

O acusado pode requerer a restituição de coisas de sua propriedade, desde que não sejam passíveis de perdimento

Procedimento; C P P - arts. 118 a 124

Destino das coisas não-restiturdas: C P P - arts. 122 a 124

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P ro c k s o Penal

IN C ID E N T E D E FA LS ID A D E D O C U M E N T A L

IN C ID E N T E D E IN S A N ID A D E M EN TA L

Cabimento: dúvida sobre a integridade mental do acusado

Legitimados; ju iz de ofício/ acusado e Ministério Público

Momento da arguição; inquérito e processo

Procedimento; C P P - arts, 1 4 9 e 150

Resultado do laudo: inimputabilidade/ semiimputabilidade/ imputabilidade

Capítulo 9 Comunicação dos atos processuais 9.1 Atos de comunicação processual O CPP utiliza, sem precisão técnica, as palavras citação, intimação e notificação como atos de comunicação processual. Citação é o ato por meio do qual se dá ciência ao acusado de que contra ele existe um processo e o chama a juízo para se defender. Intimação é a comunicação feita às partes de um ato processual já realizado, isto é, de um ato pretérito. Notificação é a comunicação feita às partes, aos auxiliares do jutzo e às testemunhas, de algum ato que será realizado no futuro, contendo um comando de fazer ou não fazer alguma coisa.

9.2 Citação ?9Í2; 1 Noções gerais e espécies de citação Existem duas formas de citação: a real e a ficta. No processo penal, a citação real ^ d e ocorrer (1) por mandado; (2) por carta precatória; (3) por requisição; (4) por i^fta rogatória; (5) por carta de ordem. Já a citação ficta é a citação feita por edital e ^bm hora certa”. Não existia no processo penal brasileiro a citação “com hora certa”, qtíé somente era prevista para o processo civil (CPC. arts. 227 a 229).* No processo penal, para a situação em que o réu estava se ocultando para não receber a citação, era qibível a citação por edital, segundo a redação originária do art. 362 do CPP. Todavia, àlei n° 11.719/2008 deu nova redação ao art. 362, passando a prever a citação com a certa, para a hipótese em que o acusado se oculta para não ser citado.

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j A exigência da citação tem por fundamento as garantias constitucionais do con^ itó r io e da ampla defesa (CR, art. 5“, LV). O primeiro requisito para que o acusado p^a se defender é saber que está sendo processado. Além disso, a CADH, em seu art. p , prevê o direito de o acusado ser comunicado prévia e pormenorizadamente da iaçào contra ele formulada.

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À citação é sempre na pessoa do acusado, nào podendo ser citado por meio de ;urador ou representante legaL..Todavia, no caso de doente mental, se o incidente inidade mental tiver sidoVeaOizado durante o inquérito policial e constatado que fetigado é inimputável, provavelmente antes do ato citatório do acusado, o juiz já Novo CPC mantem a citação com hora certa, disciplinada nos artigos 250 a 252.

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lhe terá nomeado curador, a citação deverá ser feita diretamente ao curador nomeado (CPP, art. 151)7 No processo penal, a citação não tem os mesmos efeitos que no processo civil (CPC, art. 219). Acitação penal não interrompe a prescrição, o que ocorre antes, com 0 recebimento da denuncia (CP, art. 1 1 7 ,1). Por outro lado, a citação também nào gera a prevenção, que decorre da distribuição (CPP, art. 75). Todavia, por aplicação analógica (CPP, art. 3°) do art. 219 do CPC, a citação, também no processo penal, gera a litispendência.® Na doutrina, há referência à “citação circunduta”. O ato pelo qual se julga nula a citação é chamado de “circundução” (que era a pena aplicada contra o autor de uma açào que não comparecia ajuízo, e que consistia na anulação da citação do réu). Assim, quando é anulada, a citação é chamada de “citação circunduta”.® Na Lei n°9.099/1995, a citação apresenta duas peculiaridades. A primeira é que no JECrim não há citação por edital. Ocorrendo qualquer das hipóteses que autorizariam a citação por edital, o processo deve ser remetido ao juízo comum (art. 66, parágrafo ünico).® A segunda diferença é que no JECrim a citação pessoal pode ser realizada na Secretaria dojuízo, não precisando ser executada por oficial dejustiça. 9.2.2 Citação por m andado A citação por mandado é a regra no processo penal, e se faz sempre que o acu­ sado se encontre sujeito à competência territorial do juiz em que tramita o processo (CPP, art. 351). Os requisitos intrínsecos do mandado de citação estão previstos no art. 352 do CPP; “I - o nome do juiz; II - 0 nome do querelante nas ações privadas; III - o nome do réu, ou, se for desconhecido, seus sinais característicos; IV - a residência do réu, se for conhecida; 2. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 532; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 192. Na jurisprudência, reconhecendo a nulidade absoluta, por não ter sido a citação realizada na pessoa do curador de acusado que sofre de insanidade mental, cf.: STF HC n° 66.927( , SP; STJ, HC n° 20.745/SP 3. No sentido de que a citação gera a litispendência: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, 191; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 172; Borges da Rosa, Comentários..., p. 207; Mirabete, Processoj Penal, p. 233. Contra, entendendo que o oferecimento da denúncia induz a litispendência;| Capez, Curso..., p. 533. 4 Nesse sentido, cf.: Mirabete, Processo Penal, p. 472. 5. Com maior razão, não há que admitir, nos Juizados Especiais Criminais, a c i t a ç ã o por c a ^ rogatória. A complexidade de tal ato e a demora de sua realização, até mesmo pela n e c ^ sidade de se utilizarem as vias diplomáticas, são totalmente incompatíveis com os critén^ de simplificação e de celeridade que inspiram tal sistema especial.

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V - o fim para que é feita a citação; VI - o juízo e o lugar, o dia e a hora em que o réu deverá comparecer; VII - a subscrição do escrivão e a rubrica do juiz.” A ausência ou o descumprimento de qualquer um destes elementos gerará nu­ lidade do processo. No mandado de citação, não é necessária a menção ao nome do representante do Ministério Público. Já na ação penal de iniciativa privada, é preciso que no mandado ;cónste o nome do querelante. L No tocante ao endereço em que será realizada a citação, se existirem referências ^outros endereços (por exemplo, local de trabalho), além daquele em que o acusado |èside, no mandado de citação deverão constar todos os endereços, e o acusado deverá |er procurado em todos eles. A citação por edital somente será válida depois de esgoà^as as tentativas de citação pessoal do acusado, em todos os endereços constantes M autos.® . O “fim para que é feita a citação” significa o crime que está sendo imputado ao ado. Para o cumprimento de tal exigência, não basta a indicação do artigo de lei Sencionado na denúncia, sendo necessária a descrição, ainda que sucinta, do fato hcreto que caracteriza tal crime. Na prática, uma cópia da denúncia acompanha o gtidado de citação.’ ^.O inciso VI do art. 352 do CPP prevê que o mandado de citação deve conter “o ^o e o lugar, 0 dia e a hora em que o réu deverá com parecer”. Tal regra somente tinha ígo de ser em um sistema no qual, depois da citação, o próximo ato era pessoal do aMdo, no caso, o seu interrogatório. Todavia, com as novas regras do procedimento mum (CPP, art- 396, caput), extensíveis aos procedimentos especiais (CPP, art. 394, Ç-), após a citação, o próximo ato passou a ser do advogado, que deverá apresentar osta escrita. Não há mais sentido, portanto, em que constem do mandado de |ão o “lugar, o dia e a hora em que o acusado deverá comparecer” (inciso VI). O STF considerou que a ausência de citação escorreita para os atos do processo caracteriza 'vício insanável, no caso em que, em virtude de erro no endereço constante do mandado de Eçítação, o acusado fora citado por edital. Considerou-se que a defesa do paciente restará prejudicada por falha do aparelho judiciário, haja vista ser plausível a hipótese de que, se iprocurado no endereço correto, poderia ter sido encontrado para o ato de chamamento ao cesso. Merece destaque, ainda, o fato de ter sido reconhecido que, embora tal alegação ivesse sido suscitada em sede de habeas corpus, quando já transitada em julgado a decicondenatória e até mesmo ajuizada ação de revisão criminal, cujo pedido fora julgado procedente, não haveria de se cogitar da preclusão (STF, HC n° 92.569/MS). R ^ b s e r v a Basileu Garcia (Comentários^^ 3jp . 379) que “nada melhor do que a transcrição ^integral da queixa ou denúncia". Div^^ldente, para Tomaghi (Curso..., v. 2. p. 142), “o ^andado pode transcrever a denúncia (ou queixa), mas isso não é essencial. Basta que nele se diga que o réu é citado para se defender de uma acusação genericamente indicada”. Por atítro lado, o STF já decidiu que não há nulidade se houver divergência entre a capitulação ^ denúncia edo mandado (RT 617/381).

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comparecimento do acusado somente se dará na audiência de instrução, debates e julgamento, para ser interrogado, após a oitiva das testemunhas (CPP, art. 400, caput) Assim sendo, o inciso VI do art. 352 deve ser relido, passando a ser interpretado no sentido de que do mandado de citação deverão constar o juízo e os dados de identifi­ cação do processo em que deverá ser apresentada a resposta. Se 0 mandado nâo contiver a subscrição do escrivão e a rubrica do juiz, não terá valor jurídico algum, não passando de um documento apócrifo.® Os requisitos extrínsecos do mandado (CPP, art. 357) dizem respeito à forma de cumprimento do mandado de citação pelo oficial dejustiça; I - leitura do mandado e entrega da contrafé (que é a cópia integral do mandado, assinada pelo oficial da dili­ gência), na qual se mencionarão o dia e a hora da citação; II - declaração do oficial, na certidão, da entrega da contrafé, e a sua aceitação ou recusa pelo acusado.“ Se na certidão não houver referência à leitura do mandado, à entrega da contrafé, ou ainda à sua aceitação ou recusa, haverá nulidade da citação."* A leitura é formali­ dade essencial, não bastando que o oficial simplesmente avise ao acusado ou com ele converse a respeito da citação." Também haverá nulidade se não houver assinatura do oficial de justiça na certidão, salvo se nâo houver prejuízo." Não é necessária, contudo, a assinatura ou o “ciente" do acusado no mandado." Para o militar, o art. 358 do CPP prevê que a citação far-se-á “por intermédio do chefe do respectivo serviço", No regime originário do CPP, entendia-se que ojuiz expedia ura ofício de requisição para o chefe do serviço do acusado, requisitando a presença de seu subordinado em julzo.‘®Desse ofício constavam o juízo, o lugar, o dia e a hora era que o acusado deveria comparecer. Com a reforma de 2008, deixou de ser necessária a requisição. Como o militar será citado para apresentar resposta escrita, por meio de um defensor, nào há mais sentido em que seja requisitado. A regra de que 8. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 196. 9. Em conformidade com o art. 797 do CPP. a citação poderá ser realizada em qualquer dia, inclusive aos domingos, feriados e, até mesmo, nas férias forenses, e a qualquer hora, in­ clusive à noite. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 357; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 177; Mirabete, Processo Penal, p. 463. 10. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 463. Na jurisprudência, reconhecendo a nuli­ dade, por não haver a “declaração de que o mandado foi lido ao réu, que lhe foi entregue contrafé e que o citando a aceitou ou a recusou” (STF, RT 637/328) ■ 11. Nesse sentido: Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 412. f: 12. Nesse sentido: Nucci, Código.... p. 601. íj 13. 0 STJ decidiu que: “a lei processual penal não exige a assinatura do citando na certidão, do oficial de justiça ou na primeira via do mandado, para a perfeição do chamamento, é j suficiente que o meirinho certifique sobre a aceitação ou recusa da contrafé, após a leitui^ do mandado’ (STJ, RHC n° 5674/GO). | 14. Na doutrina, Basileu Garcia (Comentários..., v. 3, p. 391) entende que a citação se faz requisição. Em semido contrário, Borges da Rosa (Comentários..., p. 458) considera qi% a citação se fará na forma do CPP, no caso, por mandado, que deverá ser cumprido prip oficial de Justiça.

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0 militar será citado “por intermédio do chefe do respectivo serviço” deverá ser relida, entendendo-se que o chefe de serviço deverá entregar a citação ao militar, a qual de­ verá conter o juízo e os dados do processo em que deverá ser apresentada a resposta. Anteriormente, entendia-se que, embora a citação do militar se desse por meio de ofício de requisição, o acusado, que é militar, nâo poderia ter menos garantias do que qualquer outro acusado, e, para que não houvesse prejuízo, o ofício de requisição do militar deveria conter todos os requisitos do mandado." Com as alterações do CPP de 2008, e não havendo mais necessidade de requisição, melhor que a citação se faça por mandado de citação, com os mesmos requisitos do art. 352, e o seu cumprimento, ,ém vez de se dar por oficial dejustiça, nos moldes do art. 357, ocorrerá por intermédio chefe de serviço, como excepciona o art. 358 do CPP. Será o chefe do serviço - e não o oficial dejustiça - que dará ciência do processo Qacusado a ele subordinado. A razão de ser de tal diversidade na forma de cumpri­ mento do ato citatório tem em vista preservar a hierarquia e a disciplina das forças adas, bem como resguardar a intangibilidade do quartel, evitando-se que o oficial f Justiça ingresse nas dependências militares. Justamente por isso, não se aplica ao fflitar já reformado, sendo cabível somente em relação ao militar da ativa.™ E, mesmo ^ caso de militar da ativa, estando em gozo de férias ou por qualquer motivo afastado i serviço ativo, não será necessãria a sua requisição." Recebido o ofício, o chefe militar, em regra, deverá responder ao juiz, comunilo que entregou o mandado de citação ao seu subordinado. art. 358 do CPP aplica-se tanto aos militares das forças armadas quanto às teias militares do Estado.™ #|'.No caso de citação do funcionário público (CPP, art. 359), além do mandado pdé citação, que deverá ser cumprido por oficial de Justiça, também é necessária a tóficaçào do chefe da repartição pública em que o acusado exerce sua função.™ A alidade da notihcação do chefe da repartição é assegurar a continuidade e o bom |icionamento dos serviços públicos, para que o chefe possa prevenir o inconvette da ausência do funcionário no serviço, dando-lhe, se necessário, substituto. |tamente por isto, não será preciso a notificação se o funcionário estiver afastado do go temporariamente (por exemplo, férias, licença, suspensão etc.) ou em definitivo p.SNesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 544; Basílio Garcia, Comentários..., v. 3, p. 391; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 184; Tourinho Filho, Processo..., v. 3. p. 204; SfeMirabete, Processo Penal, p. 465; Nucci. Código..., p. 647. ; Nesse sentido; Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 545; Basileu Garcia, Comentários..., v. 3. p. F ^ 3 9 1 ; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 204. 47.^ Nesse sentido: STJ, REsp n° 6 9 .2 ^ 1 ^ ^ -sl8jjNesse sentido; Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 410; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, 184; Acosta, O processo..., p. 179; Mirabete, Processo Penal, p. 465. W Nesse sentido, Basileu Garcia, Comentários..., v. 3, p. 393. Na jurisprudência: STF, HC *1 ° 33.618/DE

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(por exemplo, exoneração, aposentadoria e t c . ) A o mais, a finalidade da notificação é administrativa, e não jurisdicional, razão pela qual sua ausência não causa nulidade no âmbito do processo criminal." No tocante à citação do preso, havia grande celeuma diante da redação origi­ nária do art. 360 do CPP, que dispunha: “Se o réu estiver preso, será requisitada a sua apresentação em juízo, no dia e hora designados”. Diante disto, prevalecia, largamente, a orientação de que nâo era necessário o mandado de citação para o acusado preso, bastando que fosse expedido ofício requisitando a sua presença. Todavia, a Lei n° 10.792/2003 deu nova redação ao art. 360, deixando claro que a citação do réu preso será feita por mandado: “Se o réu estiver preso, será pessoalmente citado”. A citação, agora, não serã mais para interrogatório, mas sim para apresentar defesa, nos termos do art. 396-A do CPP, ante as alterações do procedimento comum instituídas pela Lei n° 11.719/2008, que deslocou o interrogatório para o final da audiência de instrução, debates e julgamento.” A citação por carta precatória (CPP, art. 353) será cabível se o acusado estiver fora do território do juiz processante. Após o recebimento da precatória pelo juiz deprecado, com o “cumpra-se", será expedido mandado de citação, atendendo aos requisitos contidos no art. 352 do CPP. A precatóriaindicará (CPP, art. 354): “(...) l- o ju iz deprecado e ojuiz deprecante; I [ - a sede daj urisdição de um e de ou tro; 111- o fim para que é feita a citação, com todas as especificações; IV - ojuizo do lugar, o dia e a hora em que o réu deve comparecer.”" O inciso 1 deve ser interpretado como referente ao juizo, e não à pessoa física do juiz, não sendo necessária a indicação nominal do juiz deprecante, nem a do juiz, deprecado, que normalmente nâo é conhecida.” 5/ Embora não previsto em lei, é evidente que a precatória deverá conter, também, 0 nome ou qualificação do réu e o endereço do acusado a ser citado, na comarca deprecada. Até mesmo porque, sem o nome e o endereço, será impossível ao juiz de-: precado expedir o mandado de citação, como os requisitos do art. 352.” 20. 21. 22. 23.

Na jurisprudência: STF, RHC n° 63.621/RN. Na jurisprudência: STJ, RHC n“ 11.235/MG. Sobre os problemas do inrerrogatório do acusado preso, cf,, infra, cap. 13, subseção 13.2.7;5 O STJ considerava que havia nulidade absoluta da citação, porque a precatória não indicavs o dia e a hora em que o réu deveria comparecer para ser interrogado; STJ, HC n° 42.096/8^ 24. É a posição de Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 146. Em sentido contrário, para Bento de Fa^ (Código..., V . 1, p. 406) “ao nome do Juiz deprecado deve-se acrescentar - ou a quem su® vezes fizer e o conhecimento desta pertencer - etc.". ^' 25. Em regra, a carta precatória deveria ter por objeto apenas a citação, cabendo ao acus comparecer no juízo deprecante para o seu interrogatório. Todavia, no Estado de São Pau t 0 Provimento n° 793/2003 do Conselho Superior da Magistratura autoriza a realização.| interrogatório por carta precatória, isto é, no juizo deprecado. Assim, a carta precat

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Quanto à situação prevista no inciso IV do art. 354, no sentido de que a precató­ ria deverá conter “o juízo do lugar, o dia e a hora em que o réu deverá comparecer”, diante da mudança do procedimento comum tantas vezes já destacada, que deslocou 0 interrogatório para o final da audiência de instrução e julgamento, tal dispositivo necessita ser adaptado.™ Na carta precatória, deverão constar o juízo (inciso I) e os dados do processo em que deverá ser apresentada a resposta. A situação disciplinada no § 1° do art. 355 do CPP é denominada precatória itinerante; o juízo em que corre o processo (p. ex.: São Paulo) expede carta precatória para citação do acusado (p. ex.: em Santos), se o juízo deprecado verificar que ele se encontra em outra comarca (p. ex.: Guarujá), em vez de devolver a carta precatória para o juízo deprecante, deverá remetê-la diretamente ao juiz da comarca em que se encontra o acusado. i ' « No tocante à forma de envio das cartas precatórias, é de se atentar que a Lei n° ;|,1,.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, aplicável ao , não tem por objeto apenas a citação, mas também a realização do interrogatório no juízo deprecado, que deve ser pedido na carta precatória. Neste caso, a carta precatória deverá conter cópias do processo: a denúncia, o interrogatório extrajudicial, se houver, os princi;|/ pais depoimentos e outras peças relevantes do inquérito policial (art. 1°, § 1°). Além disto, •SsfjtEua carta precatória deve constar o pedido expresso para que o juízo deprecado intime o acusado para apresentação da defesa prévia, no prazo legal, com o esclarecimento de que este somente fluirá, no juízo deprecante, após a juntada aos autos da carta precatória (an. 3“). Tal provimento e, principalmente, a possibilidade de, na própria carta precatória para a hcitação do acusado, já se deprecar o seu interrogatório, não mais poderá ser aplicado diante , da nova sistemática do procedimento comum, em que o acusado será citado apenas para ' responder a denúncia ou queixa, por escrito, no prazo de 10 dias (CPP, an. 396, caput). iSomente este deverá ser o objeto da cana precatória. E, mesmo depois do recebimento denúncia e da designação da audiência de instrução e julgamento (CPP, art. 399), não terá sentido deprecar o interrogatório e interromper-se a audiência una. O interrogatório, como momento máximo do exercício do direito de audiência, assim como a presença em audiência para acompanhar os atos de instrução, enquanto exercício do direito de presença, iintegram a autodefesa, que é renunciável. Assim, passará a ser ónus do acusado residente >)emoutra comarca comparecer à audiência para exercer a sua autodefesa e ser interrogado. «Excepcionalmente, poderá ser ouvido por videoconferência, mas na mesma oportunidade em que se realizar a audiência de instrução e julgamento. Nesse sentido é o art. 5° da Resolução n° 105/2010, do CNJ: “Art. 5“ De regra, o interrogatório, ainda que de réu preso, l^deverá ser feito pela form a presencial, salvo decisão devidamente fundamentada, nas hipótep ses do art. 185, § 2°, incisos 1, II, III e IV, do Código de Processo Penal”. Por outro lado, o |ií/art. 6° da mesma Resolução dispõe: “Art. 6° Na hipótese em que o acusado, estando solto, |.quiser prestar o interrogatório, mas haja relevante dificuldade para seu comparecimento 1 juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal, o ato deverá, se possível, para s de preservação da identidade fís ica ^ jui^ ^ser realizado pelo sistema de videoconferência, nediante a expedição de carta precaforiicT’arâgrafo único. Nâo deve ser expedida carta precatória para o interrogatório do acusado pelo juízo deprecado, salvo no caso do caput”. •regime anterior, inclusive, o STJ considerou que havia nulidade absoluta da citação, òrque a precatória não indicava o dia e a hora em que o réu deveria comparecer para ser itérrogado: STJ, HC n° 42,096/RS. J J

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processo penal (art. 1“, § 1°), prevê que “os cartas precatórias, rogatórias, de ordem e, de um modo geral, todas as comunicações oficiais que transitem entre órgãos do Poder Judiciário, bem como entre os deste e os dos demais Poderes, serão feitas preferentemente por meio eletrônico" (art. 7°). Assim sendo, parece de difícil aplicação a regra do art. 356 do CPP, que possibi­ lita, nos casos de urgência, a transmissão da carta precatória “por via telegráfica”.” 0 acusado será citado por carta rogatória, quando estiver no estrangeiro (CPP, art. 368), ou em legaçóes estrangeiras (CPP, art. 369). De observar que, atualmente, muitos acordos multilaterais ou bilaterais de cooperação judiciária em matéria penal preveem mecanismos mais céleres para a realização de citação de acusado que se en­ contre em Estado estrangeiro, sendo realizado por meio de auxílio direto. A Lei n° 9.721/1996 alterou a redação do art. 368 do CPP, dispondo que o acu­ sado que estiver no estrangeiro, em local conhecido, será citado por carta rogatória, independentemente de ser o crime afiançável ou inafiançável. No sistema originário do CPP, se 0 crime fosse inafiançável, expedia-se carta rogatória; se afiançável, o acu­ sado era citado por edital. O prazo prescrícional ficará suspenso até o cumprimento da rogatória. As citações que devam ser feitas em legações estrangeiras (embaixadas e consulados) também serão realizadas por carta rogatória (CPP, art. 369). Acitação por carta de ordem terá cabimento no caso de processo de competência originária dos tribunais. Recebida a carta de ordem, ojuiz dará cumprimento, determi­ nando a expedição do mandado de citação, que deve obedecer aos mesmos requisitos do art. 352 do CPP, e a sua efetivação far-se-á nos termos do art. 357 do mesmo Código. 9.2.3 Citação por edital No processo penal havia quatro hipóteses em que o acusado era citado por edi­ tal: (1) quando não fosse encontrado - prazo 15 dias (CPP, art. 361); (2) quando se ocultava para não ser citado - prazo 5 dias (CPP, an. 362); (3) quando estivesse era local inacessível, em virtude de epidemia, de guerra ou por outro motivo de força maior (CPP, art. 363,1)" - prazo de 15 a 90 dias, dependendo do grau de dificuldade para deslocamento (CPP, art. 364, primeira parte); (4) quando “incerta a pessoa" que tivessequesercitada (CPP,art. 363, II)” -prazo 3 0 dias (CPP.art. 3 6 4 ,segunda parte). 27. Também não parece mais necessário, como admitiam Frederico Marques (Elementos..., v. 2, p. 182) e Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 203) recorrer ã transmissão da carta precatória para a citação por via telefônica. 28. No regime anterior, entendia-se que, além dos locais inacessíveis, caracterizavam motivo de fotça maior, que autorizam a citação por edital, por exemplo, situações de perigo para o oficial dejustiça (como citar alguém em uma favela dominada pelo crime organizado) ou a citação em Estado estrangeiro que nào cumpre rogatória. 29. Por óbvio, o acusado não pode ser “pessoa incerta". O inciso 11 do art. 363 devia ser conju- ■ gado com o an. 259 do CPR A expressão significava que os dados normais de qualificação ^ (prenome, nome, filiação, naturalidade, profissão) nâo eram conhecidos e a identificação se

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Tal regime foi alterado pela Lei n° 11.719/2008, que manteve a citação por edital no caso do acusado não encontrado (CPP, art. 361, c.c. novo § 1“ do art. 363). A cita­ ção por edital do acusado que se ocultava foi substituída por citação com hora certa, diante da nova redação do art. 362, aplicando-se a disciplina dos arts. 227 a 229 do CPC. De outro lado, as hipóteses de citação por edital, por estar o acusado em local inacessível ou por ser “pessoa incerta” (CPP, art. 3 6 3 ,1 e II), foram revogadas pela Lei n° 11.719/2008. Muito provavelmente, nestes casos, o acusado não serã encontrado para ser citado pessoalmente, e será cabível a citação por edital. No caso da pessoa que nào é encontrada, a citação por edital somente poderá ser realizada depois de o acusado ser procurado em todos os endereços constantes dos autos,®“ e for certificado pelo oficial dejustiça que ele se encontra em local incerto e não sabido.®* E, mesmo que, durante o inquérito policial, o acusado tenha sido pro­ curado e nâo encontrado em seu local de trabalho e no seu endereço residencial, será necessário que o juiz procure esgotar todos os meios para localizá-lo, para somente então determinar a citação por edital.®® Por outro lado, diante da mudança legislativa, quando o acusado estiver em local inacessível, também dever-se-á considerar que ele “não foi encontrado”, embora a situação seja de impossibilidade de procurã-lo e não . èncontrá-lo. '7 Prevalece o entendimento de que nesta tentativa de localização não é necessário ijue o juiz expeça ofício para o Ministério da Fazenda, para o Tribunal Regional Elei­ toral, para órgãos de classe« outras entidades assemelhadas.®® S A Súmula n° 351 do STF estabelece que “É nula a citação por edital de réu preso ■iia mesma unidade da Federação em que o ju iz exerce a sua jurisdição”. A restrição a |ue o réu esteja preso “na mesma unidade da Federação” não mais se justifica. Com deu por outros elementos, como altura, idade, cor da pele, sinais particulares etc. Todavia, esses outros elementos podem não ser suficientes para a imediata localização do acusado, que deverá, então, ser citado por edital. Nesse sentido, cf.; Basileu Garcia, Comentários..., V . 3, p. 401. |30. Na jurisprudência; TJSP, HC n° 33.843-0. 31. Na jurisprudência; STJ, REsp n° 684.811/MG. No caso de militar, admite-se a sua citação por edital se, procurado para ser citado pelo oficial d ejustiça, na forma do art. 358 CPP, foi certificado que o acusado não mais estava na unidade militar em que servia, por se encontrar deserto, tendo empreendido fuga (STF, HC n° 85.950/PE). No mesmo sentido: STF, RTJ 107/132, RHC n" 58.000/RJ. |2. Nesse sentido, reconhecendo a nulidade da citação por edital, porque diante da não localização durante o inquérito policial, o ju iz determinou a citação editalícia; STF, HC n° 88.548/SP. |3. No entanto, o STF já reconheceu a nulidade de citação por edital, “se no inquérito, consta a informação de que o paciente e r a d e s e r t o r da PM’" e não foram adotadas “providências >esclarecedoras, para propiciar a cra^lírpessoal, junto ao órgão militar, onde, antes, servia" ■■(STF, RHC n° 62.421/SP). No mesmo sentido decidiu o STJ, reconhecendo a nulidade da -citação por, “diante da ausência de informações sobre o paradeiro do acusado no inquérito, : determinar a citação por edital do réu sem tomar qualquer medida no sentido de localizá-lo" (HCn^lll.TOd/MG).

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P rocesso P enal

os bancos de dados informatizados, não haveria dificuldade de localizar indivíduos presos em outras unidades da Federação. Na citação por edital, podem ser distinguidos os requisitos intrínsecos do edital, isto é, 0 que deverá conter o edital (CPP, art. 365, caput), dos requisitos extrínsecos da citação por edital, ou seja, como deve ser realizada a citação por edital (CPP, art. 365, parágrafo único). Os requisitos intrínsecos do edital são previstos no art. 365, caput, do CPP: “I - o nome do juiz que a determinar; II - 0 nome do réu, ou, se não for conhecido, os seus sinais característicos, bem como sua residência e profissão, se constarem do processo; III - o fim para que é feita a citação; IV - 0 juízo e 0 dia, a hora e o lugar em que o réu deverá comparecer; V - o prazo, que será contado do dia da publicação do edital na imprensa, se houver, ou da sua afixação." A Súmula n° 366 do STF dispõe que “nào é nula a citação por edital que indica o dispositivo da lei penal, embora não transcreva a denúncia ou queixa, ou não resuma os fatos em que se baseia”.'® O prazo do edital varia de acordo com a hipótese ensejadora da citação por edital. Em qualquer uma delas, a citação somente se considera acabada depois de encerrado tal prazo, não sendo válida a prática de qualquer ato processual antes de seu término.®’ Os requisitos extrínsecos do edital (CPP, art. 365, parágrafo único) são: (a) afixação à porta do edifício onde funcionar o juízo; (b) publicação pela imprensa. Se no local nâo houver órgão de impressa, será dispensável a publicação, bastando a afixação do edital. Por outro lado, se houve publicação na imprensa, tem-se con­ siderado dispensável a afixação do edital no local de costume. Ou seja, os requisitos legais cumulativos foram transformados pela jurisprudência em alternativos. Basta a afixação do edital ou a publicação,®« 34. Já se decidiu que “não é nula a diação por edital pelo tato de não ter constado o endereço da residência do réu” (STF, RT 797/510). Por outro lado, já se considerou válida a citação em que o edital nào menciona o endereço para comparecimento, mas só há um fórum na cidade e o réu tem defensor constituído (STB RT 577/437), ou ainda o edital havia “indi­ cação errônea do número da casa que serve de Fórum” (STF, RTJ 81/59). 35. Na jurisprudência: STF, HC n“ 68.092-5/SP (RT 663/376). 36. Segundo a jurisprudência, só é necessária a publicação do edital pela imprensa, se houver órgão de imprensa oficial (STF, RT 684/384, RHC n° 66.438/PB, RT bChlYló, RTJ 87/32; STJ, HC n° 2 1.923/PE, RHC n» 18.573/CE, RHC n° 12.621/PR, RHC n“ ll.l6 2 m G ). Embora minoritário, em semido contrário considerando haver nulidade, posto que na lei proces­ sual não há qualquer ressalva fundada em eventual “falta de verba", e náo seria tal escusa admissível: extinto TACrimSP, RT 610/361. No sentido de que inexiste nulidade se o edital não foi afixado no local de costume, mas foi publicado na imprensa (STE RTJ 46/656; STJ,i RHC n“ 1.999/SP; TJSP, RT 570/269).

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A afixação deverá ser certificada pelo oficial. A expressão “oficial” nâo significa oficial dejustiça, podendb ser feita pelo escrivão.™ A publicação deverã ser comprovada pela juntada aos autos da página do jom al em que foi feitaa publicação, ou certidão do escrivão, da qual conste a página do jornal com a data da publicação (CPP, art. 365, parágrafo único).™ 9.2.4 C itação c o m h ora certa Quando o réu, procurado para ser citado pessoalmente, se ocultar para obstaculizar a citação, caberá a citação com hora certa. Trata-se de modalidade de citação ficta, mas que, diferentemente da citação por edital, em que o acusado efetivamente não tem ciência de que está sendo processado, no caso de citação com hora certa, o acusado sabe ou, no mínimo, suspeita que existe um processo contra ele e se oculta para impedir a persecução penal. Justamente por isso, em tal caso, a citação com hora certa e o prosseguimento do processo, sem a presença do acusado, não viola 0 disposto no art. 8.2, b, da CADH, que lhe assegura o direito de ser comunicado da acusação, pois ele sabe que o processo existe, e náo se defende porque prefere se ocultar.®“ O legislador processual penal não estabeleceu, expressamente, uma disciplina para a citação com hora certa, limitando-se a fazer remissão aos arts. - '221 a 229 do CPC. O art. 227 do CPC prevê que, “Quando, por três vezes, o oficial d eju stiça houver jprocurado o réu em seu dom icílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita & o cu lta çã o , intimar a qualquer pessoa da fam ília, ou em sua fa lta a qualquer vizinho, ue, no dia imediato, voltará, afim de efetuar a citação, na hora que designar”.’^ Portanto, é necessário que o oficial tenha tentado, por três vezes, citar pessoalénte o acusado, não conseguindo fazê-lo. Tem-se exigido que o oficial compareça em 5diferentes, em horários diversos, evitando, por exemplo, que pelo fato de ter ido i^empre no horário de expediente, não encontre o acusado, por estar este trabalhando, ávendo elementos que permitam inferir que o acusado está se ocultando, na terceira tertunidade o oficial dejustiça deverá intimar pessoa da família ou, na sua falta, um i^nho do acusado, de que no dia seguinte voltará, em uma hora especifica, que será p . Na jurisprudência; STJ, RHC n° 13.664/RJ. |8. Sobre a cerüdão de publicação do edital, o STF entende que a não certificação da publicação nâo gera nulidade, se houve a efetiva publicação (RTJ 81/59). A jurisprudência também ijConsidera inexistir nulidade se o edital foi afixado no local de costume, embora não tenha sido cerúficado tal fato (STF, RHC n° 67.335/SP; STJ, HC n° 13.609/MG, RHC n° 4.050/PR), Há, contudo, posição em contrário, entendendo tratar-se de nulidade relativa (STF, HC n° ; 69.424/RJ). Também não haverá nulidade se não houver certidão, mas o edital tiver sido ' publicado na imprensa e afixado no fc>|í(l4ÍKostume (STF, RHC n° 67.335/SP, RTJ 83/337). 0 STF reconheceu a repercussão geral sobre a análise da constitucionalidade do art. 362 ; do CPP, em face da alegada ofensa ao art. 5“, inc. LV, da Constituição (Repercussão Geral no RE 635.145) No Novo CPC, basta o comparecimento por duas vezes (art. 250).

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informada a este terceiro, para efetuar a citação. Justamente por isso é que se chama citação “com hora certa”, porque será realizada, na quarta oportunidade, no dia e hora designados pelo oficial dejustiça.” Nesta quarta oportunidade, se o acusado estiver presente, provavelmente porque informado pelo parente ou vizinho, será citado pessoalmente. Não haverá, portanto, citação com hora certa, mas simples citação pessoal, por mandado. Por outro lado, não estando presente, será realizada a citação com hora certa, indepen­ dentemente de qualquer decisão judicial (CPC, art. 228, caput e § 1“). Aliás, nem mesmo para o ato prévio, de intimar o parente ou vizinho, será necessária decisão ou autorização judicial. Realizada a citação com hora certa, o oficial dejustiça de­ verá se informar das razões da ausência do acusado, certificando todo o ocorrido e deixando a contrafé do mandado de citação com pessoa da família ou com vizinho (CPC, art. 228, § 2°).” Além disso, o escrivão deverá enviar carta ao acusado, dando-lhe ciência de todo o ocorrido (CPC, art. 229).” 9.2.5 Citação e revelia A Lei n° 9.271/1996 modificou a redação do art. 366, caput, do CPP, passando a prever a suspensão do processo penal quando, cumulativamente; (1) o acusado for citado por edital; (2) não comparecer a juízo; (3) não nomear defensor. Tais requisitos tiveram que ser relidos diante da mudança do momento procedi­ mental do interrogatório no procedimento comum, após a reforma do CPP, de 2008. Tendo em vista que o interrogatório deixou de ser o primeiro ato após a citação, sendo deslocado para o final da audiência de instrução e julgamento, no caso de citação por edital, a aplicação do art. 366 nâo mais exige que o acusado não tenha comparecido nem constituído defensor. Embora raro, se o acusado citado por edital não nomeia defensor, mas compare­ ce a juízo para informar que não o tem, ojuiz deverá nomear-lhe defensor, seguindo normalmente o processo. Por outro lado, se o acusado, após ser citado por edital, constituir defensor, o processo terá seguimento normal, não havendo cogitar de seu comparecimento ou nào, pois isso somente deverá ocorrer posteriormente, na au­ diência de instrução e julgamento. Em suma, no caso de acusado citado por edital que não constituir defensor, nao deverá ser aplicado o novo art. 396-A, § 2“, devendo o juiz, logo após o prazo de dez dias do art. 396, caput, aplicar o art. 366 e suspender o processo. Caso, citado poi 41. Embora o an. 227 do CPC preveja que o oficial de justiça voltará “no dia imediato , n® âmbito civil tem se entendido que não é necessário que seja imediatamente no dia se^m à terceira tentativa, podendo ser em data mais distante designada pelo oficial de jusnça. 42. A mesma disciplina está prevista no art. 251 do Novo CPC. 43. No mesmo sentido é o art. 252 do Novo CPC.

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edital, o acusado compareça pessoalmente para solicitar um defensor, o juiz deverá nomear-lhe um, aplicando-se, então, o art. 396-A, § 2°, do CPP. Além da suspensão do processo, também haverá suspensão do prazo prescricional. Na prática, isto poderia levar a uma hipótese de imprescritibilidade, nos casos em que o processo ficasse, indefinidamente, suspenso, até que o acusado fosse localizado. Para evitar tal problema, a jurisprudência se fixou no sentido de que o processo ficará suspenso pelo prazo prescrícional, segundo a pena máxima cominada.®® Após este prazo, a prescrição voltará a correr.®’ Na prática, duplica-se o prazo prescrícional. O juízo também poderá, ao suspender o processo, decretar a prisão preventiva do acusado (CPP, art. 366, caput), desde que estejam presentes as hipóteses do art. 312 do CPP Não se trata de uma prisão preventiva obrigatória pelo simples fato de o icusado não ter sido localizado para citação pessoal ou não ter comparecido ao pro:esso. Não é possível, somente por não se ter encontrado o acusado, presumir a fuga porunto, a necessidade da prisão para assegurar a aplicação da lei penal. Se assim psse, o dispositivo seria inconstitucional, por violação da presunção de inocência CR, art. 5“, LVII). Mesmo no caso de suspensão do processo, ojuiz poderá determinar a realização ie provas urgentes (CPP, art. 366, caput). Embora o antigo § 1° do art. 3 6 6 tenha lido revogado pela Lei n° 11.719/2008, é evidente que as provas urgentes deverão iêr produzidas em contraditório, pois, de um lado, o Ministério Público deve estar áresente em todos os atos processuais, sob pena de nulidade (CPP, art. 564, III, d, |íde outro, nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, poderá ser processaio sem defensor (CPP, art. 261, caput). Assim sendo, da designação da audiência Kyerão ser intimados o Ministério Público e o querelante, se for o caso, bem como pverá ser nomeado um defensor dativo para o acusado nâo localizado e citado piar edital. p Há divergência sobre o conceito de urgência. Uma corrente entende que somen­ te seriam urgentes as provas previstas no art. 225 do CPP (provas ad perpetuam rei pmoriam).®« Outros posicionam-se no sentido de que qualquer prova testemunhal êjirgente, tendo em vista que o tempo pode apagar da memória das testemunhas os ios de que têm ciência.®' Preferível a primeira posição. Se o legislador pretendesse A matéria, que foi objeto de muita polêmica, restou pacificada com a Súmula n° 415 do STJ; “O período de suspensão do prazo prescrícional é regulado pelo máximo da pena cominada”. |S. STJ, HC n° 84.982/SP. UWa jurisprudência: STp HC n° 8^«SPF»tòP, RHC n° 83.709/SP(RTJ 196/589), RHC n° 85.311/ I^P; STJ, RHC n“ 21.373/DF. M âD STF, decidiu que “o eventual esquecimento dos fatos pelas testemunhas, em razão da passagem do tempo, não seria fundamento idôneo para antecipar a oitiva delas” (HC n° jU4.519/DF).

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P rocesso Penal

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que a prova testemunhai sempre fosse produzida, assim o teria dito, determinando que o processo fosse suspenso somente após a oitiva das testemunhas. Além disso, a produção obrigatória da prova oral contraria a finalidade da lei, que é evitar que um processo inútil se desenvolva e que o contraditório não seja violado pela falta de presença de acusado no processo.™ 9 .2 .6 Vícios da citação No regime do CPP, a ausência de citação é causa de nulidade absoluta no processo (CPP, art. 564, III, e); já a inobservância das formalidades da citação causará nulidade relativa do ato (CPP, art. 564, IV). Contudo, não se pode aceitar que o vício de citação possa acarretar apenas uma nulidade relativa. Como destaca Espínola Filho, “considera-se perfeitamente equivalente à falta de citação, notificação ou intimação, a feita por forma diversa da prevista em lei”.®“ A citação é ato formal, cuja subsistência depende da perfei­ ção dos requisitos estabelecidos para a sua execução.®“ A citação é premissa para o exercício da ampla defesa e do contraditório, e requisito necessário para que se tenha um devido processo legal. Se a omissão de “formalidades essenciais” do ato de citação não gerou prejuízo, não haverã nulidade. Já se houve prejuízo para o acusado, a nulidade será absoluta, não havendo falar em preclusão ou sanatória da nulidade. O comparecimento espontâneo do acusado sana a nulidade por falta de citação (CPP, art. 570, primeira parte). Já a parte final do art. 570 estabelece que, porém, o juiz deverá ordenar a suspensão ou o adiamento do ato, quando reconhecer que a irregularidade da citação poderá prejudicar direito do acusado. Tal regra visava pre­ servar o exercício pleno do direito à ampla defesa, que exige tempo necessário para sua preparação (CADH, art. 8.2, c). Assim, embora o acusado já pudesse ser considerado citado pelo comparecimento emjuízo, ojuiz deveria adiar o ato. Tal regra tinha razão de ser quando o ato posterior à citação era o interrogatório do acusado. Todavia, como a reforma de 2008 alterou o procedimento comum e, depois da citação, deverá ser apresentada uma resposta escrita pelo advogado do acusado, a parte final do art. 570 do CPP dificilmente terá operatividade.

9.3 Intimação A intimação do Ministério Público será sempre pessoal (CPP, art. 370, § 4°, c.c LONMP - Lei n" 8.625/1993, art. 41, IV), não sendo possível a sua realização pela^

48. Esta posição acabou prevalecendo najurisprudência, sendo sufragada pela Súmula no 455 do STJ^ “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP devÇj ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo 49. Espínola Filho, Código. .. v. 3, p. 533. 50. Bento de Faria, Código..., v. 1, p, 404.

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imprensa. A intimação pessoal náo significa, contudo, a necessidade de que o Promotor dejustiça coloque o seu “ciente” nos autos.’' Também o defensor nomeado deve ser intimado pessoalmente, nâo sendo admitida sua intimação pela imprensa (CPP, art. 37 0 , § 4 “), ou por carta com avi­ so de recebimento.” A expressão “defensor nomeado” inclui o defensor dativo (advogado privado nomeado pelo ju iz) e o defensor público (Lei n° 1.060/1950, art. 5°, § 5 °).” J á o advogado (CPP, art. 37 0 , § 1“), seja defensor constituído pelo acusado, seja advogado do querelante, ou advogado do assistente de acusação, será in ti­ mado pela imprensa, devendo a intim ação incluir o nome do acusado, sob pena [de nulidade. Caso não haja órgão de publicação dos atos judiciais na comarca, a intimação será ^feita diretamente pelo escrivão, por mandado, ou por via postal, com comprovante de Irecebimento (CPP, an. 370, § 2°). Ao contrário da citação, que deve ser realizada por oficial dejustiça, a intimação jderá ser feita pelo escriváo, mediante certidão nos autos (CPP. art. 370, § 3“). Por fim, as testemunhas, em regra, são intimadas pessoalmente (CPP, art. 370, laput c.c. art. 351).”

A TO S D E C O M U N IC A Ç Ã O P R O C ESSU A L C n A Ç Ã o J ^ > Ciên cia do acusado da existência do processo.

IN T IM A Ç A O ^ ^ ^ Com unicação de ato processual pretérito às partes.

N O T lF lC A C Ã O ^ Com unicação às partes, auxiliares do ju ízo e testemunhas quanto __________^ realização de ato futuro; contém com ando de fazer/não fazer.

A nova posição da jurisprudência é no sentido de que se considera intimado o Promotor de j Justiça na data da entrega dos autos com vista ao Ministério Público: STF, HC n° 83.917-7/ ' SP, HC n” 83.225/MS; STJ, REsp n° 530,338/RJ. . Na jurisprudência: STF, HC n° 92.408-5/MG. Nesse sentido; STF, HC n° 105.469/Rj, HC n” 102.597/SP. O STJ já decidiu, porém, que ‘"não se pode exigir que a intimqjjã§;,^jdefensor público seja feita por mandado na pessoa |do mesmo membro oficiante da c a u ^ ’, bastando a intimação do Defensor Público-Geral |{HCn°43.629/AP). ÈNo entanto, na Capital do Estado de São Paulo, as testemunhas podem ser intimadas por via postal (carta com “AR”), quando os interessados e o Ministério Público concordarem ((Lei n° 3.947/1983, art. 9“).

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Processo Penal

CITA ÇÃ O

C ita ç ã o = e x ig ê n c ia

contraditório e ampla defesa -

E fe ito s d a c it a ç ã o

C om unicação dos atos processuais Citação por mandado

Requisitos intrínsecos: art. 352 do CPP

Requisitos; art. 354 do C P P

373

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Processo Penai

C it a ç ã o p o r e d it a l

I Acusado não encontrado Lei 11.719/2008 - Citação por edital do acusado que se ocultava - substituída pela citação com hora certa ^

Devem ser esgotadas as tentativas de localização

Não é necessário que o ju iz expeça ofício ao Ministério da Fazenda, ao Tribunal Regional Eleitoral, V a órgãos de classe ou entidades assemelhadas ,

C it a ç ã o c o m h o r a c e r t a

Cabível quando o réu se oculta para obstar a citação

Aplicação analógica dos arts. 227 a 229 do C P C

C om unicação dos atos processuais

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C IT A Ç Ã O E R E V E L IA

Acusado citado por edital

n.

Não com parece N v em juízo yv

Não nomeia defensor

Requisitos cumulativos

V í c i o s d a c it a ç ã o

Suspenção do processo penal e do prazo prescricional/ possibilidade de decretação de prisão preventiva

~ Z '}........ N a prática, duplicação do prazo prescricional

; I ^ ;

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Processo Penal

IN T IM A Ç Ã O Ente

Forma de intimação

Ministério Público

Pessoal

Defensor nomeado

Pessoal/Carta com A R

Advogado Testemunhas

Regra: Imprensa oficial Exceção (não havendo imprensa oficial na com arca): mandado/via postal Pessoal

Capítulo 10 Da prova 10.1 Teoria geral da prova W. 1.1 Noções preliminares O processo penal, normalmente, envolve uma controvérsia fática. Há uma im­ putação de fatos penalmente relevantes pelo Ministério Público ou pelo querelante e a negativa de tais fatos pela defesa. Eis o ponto mais difícil do processo: proceder à reconstrução histórica dos fatos, de acordo com as regras legais que disciplinam a investigação, a admissão, a produção e a valoração das provas.' A prova é apontada como o meio pelo qual ojuiz chega à verdade, convencendo-se da ocorrência ou inocorrência dos fatos juridicamente relevantes para o julgamento 'do processo. Atualmente, tem-se consciência de que a verdade absoluta ou ontológica 'ê algo inatingível. Verdade e certeza são conceitos relativos. A “verdade” atingida no processo - e também fora dele - nada mais é do que um elevado ou elevadíssimo grau de probabilidade de que o fato tenha ocorrido como as provas demonstram. Por outro ládo, a certeza, enquanto aspecto subjetivo da verdade, também é relativa. O juiz tem KCrteza de um fato quando, de acordo com as provas produzidas, pode racionalmente psnsiderar que uma hipótese fática é a preferível entre as possíveis. Ou seja, em linaagem mais simples, ojuiz tem certeza quando as provas o fazem acreditar que o seu onhecimento é verdadeiro.

|jl. Justamente por isso, o juiz costuma ser comparado com o historiador, pois a tarefa de ambos é uma reconstrução histórica na qual, com base em dados obtidos no presente, procura-se reconstruir fatos passados. Há, contudo, algumas diferenças. Na atividade do juiz, há uma limitação extema quanto ao objeto da investigação. O ju iz, diferentemente do historiador, nào investiga os fatos que tem vontade, mas os fatos que são delimitados pela imputação contida na denúncia. Uma segunda diferença é que a atividade do ju iz encontra-se limitada quanto aos meios de pesquisa. Para o historiador, qualquer fonte de pesquisa é, a principio, apta à reconstrução dos fatos. Já no processo, o ju iz possui inúmeras limitações, bastando citar j impossibilidade de utilização de provas ilícitas e ilegítimas. Finalmente, uma tllSfeïa-Æiierença relevante é que o ju iz tem a obrigatorie­ dade de decidir ao final. Fnquanto o historiador pode abandonar a pesquisa sem chegar a uma conclusão definitiva sobre como ocorreram os fatos do passado, o ju iz é obrigado a decidir, mesmo que esteja na dúvida sobre um fato relevante, situação em que terá que se valer das regras sobre o ônus da prova.

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P r o cesso P enal

10.1.2 Processo penal, prova e verdadeA verdade processual traduz-se em umvalorque legitima a atividadejurisdicional, não se podendo considerar justa uma sentença que não tenha sido precedida de um processo estru turado segundo regras que possibilitemuma correta verificação dos fatos. J ustiça e verdade são, portanto, noções complementares ao exercício do poder.®Se assim não fosse, seria melhor que o processo fosse decidido pela sorte, jogando-se dados.® Todavia, a “verdadejudicial”, até mesmo por força de limitações legais decorrentes das regras sobre a admissão, produção e valoração da prova, jamais será uma verdade absoluta. Trata-se, pois, de uma verdade necessariamente relativa, que seja a “maior aproximação possível” daquilo que se denomina verdade, tout court. De qualquer forma, mesmo aceitando-se a impossibilidade de se atingir um co­ nhecimento absoluto ou uma verdade incontestável dos fatos, não é possível abrir mão da busca da verdade, que é o único critério aceitável como premissa para uma decisão justa. O juiz deve procurar atingir o conhecimento verdadeiro dos fatos para, diante da certeza de sua ocorrência - ou inocorrência realizar a justiça no caso concreto. Nesse sentido, a relação entre verdade e prova não é uma relação de identidade, mas uma relação teleológica. Embora se adote um conceito de verdade como correspondência, isso náo sig­ nifica que a relação entre prova e verdade adotada seja uma relação conceituai ou de identidade absoluta. Valemo-nos, nesse ponto, da explicação de Ferrer Beltrán, sobre como deve ser entendido o enunciado “p está provado”. Não significa nem que “p é verdadeiro”, o que seria uma relação conceituai, nem que “p foi estabelecido pelojuiz”. Neste ultimo caso, sem dúvida o convencimento psicológico do juiz é uma condição necessária, mas não suficiente, à qual deve acrescentar-se a aplicação, na formação do convencimento do juiz, de critérios de racionalidade e regras da lógica.® Assim sendo, o enunciado “p está provado” deve ser entendido como sinônimo de “há elementos de prova suficientes a favor de p”. isso não quer dizer que a proposição, porque está pro­ vada, seja verdadeira. Uma hipótese fática pode resultar provada ainda que seja falsa.* Assim sendo, afirmar que “pestá provado" denota que este enunciado será verdadeiro quando se dispuser de elementos de prova suficientes a favor de p, e falso quando nào se dispuser de elementos de prova a favor de p ou quando eles forem insuficientes.® Todavia, isso não exclui que o enunciado possa ser considerado verdadeiro, porque confirmado por suficientes elementos de prova, embora não corresponda, efetiva­ mente, à realidade dos fatos. 2. Tratamos do tema com maior profundidade em; Badaró, Ônus da prova..., p. 24 e ss. 3. Gõssel, El principio de Estado..., p. 23. 4. Barbosa Moreira, Processo civil e processo penal..., p. 206. 5. Ferrer Beltrán, Prova everità..., p. 69. 6. Ferrer Beltrán. Prova everitd..., p. 39. 7. Ferrer Beltrán, Prova everità..., p, 40.

D a p ro v a

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Embora nào se ignore a importância das consequências do giro linguístico, prin­ cipalmente o pap^ de intermediação entre a linguagem e a realidade, isso não autoriza quese rompa todáe qualquer conexão entre o conhecimento e a realidade. Considerar que a linguagem pode operar uma desconexão entre a realidade e o conhecimento dos objetos implicaria a imprestabilidade do próprio conceito de verdade. Como bem explica Taruffo; “[...] o linguistic tum leve o efeito de renunciar nitidamente qualquer conexão entre linguagem e mundo, e de colocar todo o problema da verdade no âmbito intemo da dimensão linguística da experiência e do conhecimento. Afirmando que o conhe­ cimento, a realidade e a verdade sâo exclusivamente produtos da linguagem, acabou por negar a existência de qualquer realidade independentemente da linguagem que pudesse determinar a verdade ou a falsidade de qualquer pensamento.”® A realidade externa existe e constitui o padrão de medida, o critério de referência que determina a verdade ou a falsidade dos enunciados,® no caso, da imputação feita no processo penal. A verdade, portanto, é apreendida e nâo constmída. Quem apenas reconhece a existência de uma exatidão processual nega a existência de uma verdade independentemente do sujeito, perde a consciência sobre a verdade e a falsidade e, com isso, também, a diferença que existe entre ambas.*“ ^ De qualquer forma, mesmo em uma premissa epistemológica que aceita um jtbnceito de verdade como correspondência, é preciso ter a plena consciência de que ^ina identidade absoluta é inatingível. Mais do que uma constatação epistemológica, M uma garantia política para o acusado reconhecer o caráter relativo da verdade que pode ser atingida em qualquer tipo de processo, inclusive no processo penal. Nâo tótiste mais a outrora tão propalada “verdade real”, muito menos o atingimento de ® verdade é o fim último do processo penal. Foi a crença em um modelo cientifico ^ e permitiria, em qualquer caso, obter a verdade absoluta sobre os fatos, de um lado, ' rimportància política de um modelo de concentração de poder que desse ao julgador peios ilimitados para procurar tal verdade - mas, se sabia, sempre a “alcançaria” - que stificaram o modelo inquisitório. Aceitar que a verdade nào pode significar mais de uma probabilidade elevada de i haja uma correta representação pelo sujeito cognoscente do objeto a ser reconhecigafasta a justificativa de que deve haver poderes ilimitados na busca de uma verdade poluta, que seria o fim último contra o qual não se poderiam levantar barreiras. , Além de limites epistemológicos, há limites legais que podem e devem ser im­ otos quanto à investigação das fontes de provas, quanto à admissão e produção dos rios de provas e, em alguns casos, quanto à própria valoraçâo da prova. Basta pensar vedação da utilização de p r jjp s ^ i t a s ou produzidas com violação de princípios ^Taruffo, La semplice verità..., p. 76. LsTarufío, La semplice verità..., p. 78. Gõssel, La verdad en e l..., p. 117-118.

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que regem o justo processo para perceber, claramente, que é inadmissível uma ilimi­ tada busca da “verdade material”." Partindo de tal premissa, não tem sentido procurar distinguir a denominada verdade formal - que se aplicaria ao processo civil - daquela outra que, em contra­ posição, costuma-se chamar de verdade material - que seria buscada no processo penal. Tanto a verdade formal quanto a material não são verdades absolutas. Do ponto de vista epistemológico, bastaria a conclusão de que a verdade é uma só. Não existem várias verdades, porçóes de verdade, ou algo parcialmente verdadeiro. A verdade é um conceito absoluto. Algo somente é verdadeiro quando há uma identidade entre o objeto e a representação que o sujeito cognoscente laz desse objeto. Assim, ou há identidade e o conhecimento é verdadeiro, ou não há identidade, e o saber é falso. A falta de identidade entre o objeto e a representação, esta sim, admite graus; um conhe­ cimento pode ser falso em graus ou níveis maiores ou menores." Por tudo isso, é hora de sepultar a velha e desgastada dicotomia entre verdade formal e verdade material." No entanto, retirar a verdade do trono em que reinava absoluta no processo penal não significa desterrá-la. Se a verdade não é o centro do processo penal, nâo há como negar, por outro lado, que a verdade exerce um papel importante no processo. 11. Segundo Figueiredo Dias (Direiío..., v. 1, p. 193), “a verdade material deve ser entendida em um duplo sentido: no sentido de uma verdade subtraída à influência que, por meio de seu comportamento processual, a acusação ou a defesa possam exercer sobre ela; mas tam­ bém no sentido de uma verdade que, não sendo ‘absoluta’ ou ontológica’, há de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a qualquer custo, mas processualmente válida”. O mesmo conceito é adotado por Grinover, Liberdades públicas..., p. 61. .j 12. Na doutrina, negando essa falsa dicotomia: Barbosa Moreira, A Constituição..., p. 118; Grinover, A iniciativa probatória..., p. 83, 13. Há autores que consideram que a “verdade material” seria um dos princípios do processo penal. O “princípio” seria, melhor dizendo, a busca da verdade material como uma finali­ dade do processo penal. Mesmo que se queira dar um significado absoluto e se considere, ingenuamente, ser plenamente atingível a verdade material, há no processo penal brasileiro regras legais que impõem limitações a essa busca desenfreada da verdade. Entre elas, podem ser citadas a absolvição por insuficiência de provas (CPP, art. 386, Vll) e a vedação da revisàd criminal pro societatis (CPP, art. 621, c.c. o art. 625, § 1°). O processo penal consensual; que por meio da transação penal (Lei n° 9.099/1995, art. 76) possibilita a aplicação de umj pena de multa ou restritiva de direitos, sem que haja necessidade da verificação judicial^ da veracidade dos fatos - e, até mesmo, quando os fatos imputados não correspondam à j verdade - , é um exemplo de modelo processual que, ideologicamente, não tem na verdadK um escopo a ser seguido. A verdade real é, por assim dizer, substituída pela verdade conseig suada. Segundo Grinover et al. (Juizados especiais..., p. 44), “ao lado do clássico princtp da verdade material, agora temos que admitir também a verdade consensuada". Tamb Prado (Sistema acusatório..., p. 250) observa que, no processo penal consensual a bus da verdade é substituída pela prevalência da vontade convergente das partes”. No me“ sentido, Barros (A busca da verdade..., p. 45) entende que “a investigação sobre a verr toma-se despicienda em tais casos”.

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Não se trata de eliminá-la, mas de deslocá-la do lugar de centralidade, até então ocu­ pado, para um ponto diverso, secundário. A verdade nâo é o fim último do processo penal e, sua busca não pode se dar a partir de uma premissa de que os fins justificam os meios. No caso em que uma limi­ tação à descoberta da verdade se justifique para fazer prevalecer outro valor - como 0 respeito à dignidade humana, à proteção da intimidade, à preservação da imparcia­ lidade do julgador - igualmente ou mais relevante para que se profira uma decisão justa, é de admitir a adoção de regras legais antiepisiêmicas, desde que fundamentais para preservar o outro valor em jogo. Isso porque, se a descoberta da verdade é essencial ao processo e uma condição necessária para ajustiça da decisão, certamente não é o único fim do processo.*® Como explica Damaska, não sendo a verdade o único fim do processo, mesmo métodos epistêmicos “optimais” podem nào ser adequados no contexto do processo.*’ ^ A busca da verdade não é o fim último do processo penal, mas um meio para a correta aplicação da lei penal. O processo penal, enquanto instrumento estatal para que o legítimo exercício do poder punitivo, segundo as regras do devido processo legal, necessita verificar a correção ou a falsidade da imputação de um fato definido como crime atribuído a alguém. *®Para tanto, as provas permitirão ao julgador, segundo ?Cçitérios racionais de valoração, concluir se o enunciado constante da imputação tem éíementos suficientes que o confirmem. O enunciado será considerado verdadeiro quando as provas fornecererii elementos que o confirmem.

jí| /.3 Conceitos e significados sobre a prova A palavra prova é polissêmica e seu estudo transcende ao Direito, envolvendo a pistemologia, a Semiótica, a Psicologia e outras ciências afins. ' Em uma primeira aproximação, prova é tudo o que é apto a levar o conhecimento , .,,._guma coisa a alguém. No entanto, esta é apenas uma das acepções do vocábulo ^|qva. Tanto na linguagem comum quanto no campo do direito, a palavra prova possui õ^jros significados. É comum indicar pelo menos três deles: (1) atividade probatória; ieio de prova; (3) resultado probatório.

t

Prova como atividade probatória signibca o conjunto de atos praticados para a cação de um fato. É a atividade desenvolvida pelas partes e, subsidiariamente, pelo juiz, na reconstrução história dos fatos (por exemplo, a prova da alegação incumbe a I a fizer-CPP, art. 156).

jM ^ a m a s k a , II diritto..., p. 175. * l5.ffl)araaska, II diritto..., p. 175. * 16:^ítida a distinção na evolução pro’^ S l a l italiana, em que o art. 299 do CPP de 1930 evia entre as funções do juiz instrutor a realização de todos os atos necessários ao “acamcnto delia veritâ". já no CPP de 1988, o art. 187.1 define o objeto da prova: “1. Os 3 tos que se referem à imputação, à punibilidade e à determinação da pena e da medida ^ e segurança”.

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A prova também pode ser considerada o meio de prova. Isto é, o instrumento por meio do qual se introduzem no processo os elementos de probatórias. É nesse sentido que se fala em prova testemunhal, prova pericial etc. Finalmente, a prova pode ser identificada com o resultado probatório, isto é, o convencimento que os meios de prova geram no juiz e nas partes. Nesse sentido, por exemplo, o art. 312 do CPP se refere à “prova da existência do crime”. Visando evitar confusões terminológicas, também é importante distinguir; (1) fonte de prova; (2) meio de prova; (3) elemento de prova; (4) resultado probatório. A fonte de prova é tudo que é idôneo a fornecer resultado apreciável para a decisão do juiz, porexemplo, uma pessoa, um documento ou uma coisa. As fontes de provas sáo anteriores ao processo (por exemplo, alguém que viu um acidente é testemunha do acidente, mas o meio de prova somente ocorrerá se houver um depoimento judicial dessa testemunha). Os meios de prova sâo os instrumentos com os quais se leva ao processo um ele­ mento útil para a decisão. São os instrumentos por meio dos quais as fontes de provas sâo conduzidas ao processo; o depoimento da testemunha, a perícia no instrumento do crime etc. Com exceção das provas pré-constituídas (por exemplo, os documentos), os demais meios de prova, era especial os decorrentes de fontes orais (testemunhas e vítimas), deverão ser produzidos em contraditório judicial, na presença das partes e do juiz. Flemento de prova é o dado bruto que se extrai da fonte de prova, ainda não valorado pelo juiz. Finalmente, resultado probatório é a conclusão do juiz sobre a credibilidade da fonte e a atendibilidade do elemento obtido.'’ A distinção entre fonte de prova e meio de prova é relevante, na medida em que possibilita compatibilizar o processo penal acusatório com os poderes instrutórios do juiz. O juiz não pode ser um investigador de fontes de provas. Como já visto, a atividade de investigação pressupõe a eleição mental, ainda que provisória, de uma hipótese preferível a ser investigada. E nessa escolha há um comprometimento psi­ cológico com a hipótese eleita, que coloca em risco a imparcialidade do investigador. Portanto, quem investiga não pode julgar. Coisa diversa, porém, é admitir que, uma vez existindo nos autos do processo a notícia de uma fonte de prova - que não foi investigada pelo julgador, mas que se teve conhecimento por atividade das partes -, o juiz possa determinar sua introdução no processo, mediante a produção do meio L7. A distinção é comum na doutrina italiana: cf. Ubertis, Prova (in générale), p. 307; Fassone, Dalta “cenezza”..., p. lU O -lllL O CPP italiano de 1988 distingue claramente: (1) fonte de prova; (2) meio de prova; (3) elemento de prova; (4) resultado probatório. Distingue também os: (a) meios de provas; (b) dos meios de obtenção da prova (mezzi di ricerca di prove): uma interceptaçâo telefônica, uma busca e apreensão etc., que visam à obtenção do elemento probatório a ser utilizado no processo. Na doutrina nacional a distinção é feita por: Gomes Filho, Notas sobre a..., p. 308-309.

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de prova correspondente. Por exemplo, havendo dúvida sobre um fato relevante, e existindo no boletim de ocorrência o nome de uma testemunha presencial, o juiz, tendo conhecimento da existência de tal fonte de prova (a testemunha), poderá de­ terminar a produção do meio de prova correspondente (o depoimento da testemunha em juízo). Além disso, ao determinar a produção do meio de prova, o ju iz não sabe, de antemão, qual o resultado probatório que poderá advir da produção de tal meio de prova; positivo, negativo ou inconclusivo. Por exemplo, poderã comprovar ter sido o acusado o autor do crime, poderá comprovar que não foi o acusado o autor do crime, ou poderá não fornecer elementos de prova seguros sobre a autoria delitiva.

10.1.4 Meios de prova e meios de obtenção de prova A doutrina mais moderna tem procurado distinguir os meios de prova dos meios de obtenção de prova. Tal dicotomia já encontrou acolhida legislativa no CPP portu­ guês de 1987 e no CPP italiano de 1988. Também o adota o Projeto de CPP brasileiro i-P L S n " 156/2009. só A diferença é que, enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao çònvencimento do juiz sobre a veracidade ou nâo de uma afirmação fática (por exem|plo, o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios íide obtenção de provas (por exemplo, uma busca e apreensão) são instrumento para a yçplheita de elementos ou fontes de provas, estes, sim, aptos a convencer ojulgador (por feem plo, um extrato bancário [documento] encontrado em uma busca e apreensão ^pmiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto |d9 julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo ||p resultado de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos. Em regra, os meios de obtenção de prova implicam restrição a direitos funda‘%entais do investigado, em geral liberdades públicas ligadas à sua privacidade ou ímtimidade ou à liberdade de manifestação do pensamento. É o que ocorre na quebra sigilo bancário ou fiscal, em que há restrição ã intimidade (CR, art. 5°, X ), na busca niciliar, que implica restrição à inviolabilidade do domicilio (CR, art. 5°, XI) ou, nda, à interceptação telefônica, realizada como exceção constitucionalmente prevista ^Wrdade de comunicação telefônica (CR, art. 5”, Xll). A infiltração do agente policial também deve ser considerada um específico ^io de obtenção de prova, de aplicação restrita aos casos de criminalidade orgaada, visando a descoberta de fontes de provas que levarão à posterior produção §p^;meio correspondente. Assim, por exemplo, o agente infiltrado descobre quem |p os funcionários públicos que cedem à corrupção do grupo, bem como onde e ,tio se dão os pagamentos, visajy^^qsterior quebra de sigilo bancário ou meio pfova pertinente. Identifica onde é odepósito da droga e a rota utilizada para seu nsporte, o que poderá justificar futuras medidas de busca e apreensão ou prisões ^agrante, e assim sucessivamente. Não poderá ele, porém, servir como teste&ha em juízo, sob pena de se ter um depoimento absolutamente incontrolável.

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pois qualquer fato por ele narrado relativo ao grupo e seus integrantes teria foros de verdade absoluta. Como produzir a contraprova diante de uma afirmação do agente infiltrado? Se incluísse em seu depoimento fatos inexistentes ou agentes que deles não participaram, ou se, por outro lado, omitisse determinado fato ocorrido ou se calasse sobre um integrante que desejasse proteger, novamente nào haveria como descobrir a falta com a verdade.

70.7.4.7 Meios de prova Meios de prova são os instrumentos pelos quais se leva ao processo um elemento de prova apto a revelar ao juiz a verdade de um fato. 0 CPP disciplina os seguintes meios de prova: exame de corpo de delito e perícias em geral (arts, 158 a 184), confissão (arts. 197 a 200), perguntas ao ofendido (art. 201), testemunhas (arts. 202 a 225), reconhecimento de pessoas ou coisas (arts. 226 a 228), acareação (arts. 229 e 230), documentos (arts. 231 a 238), indícios (art. 239), busca e apreensão (arts. 240 a 250). Tal classificação, contudo, não é isenta de críticas. O interrogatório do acusado (CPP, arts. 185 a 196), embora previsto no título da prova, em face da previsão consti­ tucional do direito ao silêncio (art. 5“, LXIII), constitui, na verdade, meio de defesa. Do mesmo modo, a confissão. Embora seja tradicionalmente catalogada entre os meios de prova e assim seja considerada, de forma quase unânime, pela doutrina, tal não nos parece. A confissão é o resultado de uma declaração de vontade que deve ser formalizada, podendo ser realizada dentro ou fora do processo. Assim, a confissão extrajudicial deverá ser consubstanciada em algum documento, e será este documento 0 meio de prova produzido no processo, e nào a própria confissão. J á a confissão j udi­ cial ocorre em sede de interrogatório, não sendo, portanto, um meio de prova, mas o resultado eventual do interrogatório. Neste caso, o meio de prova, para aqueles que assim 0 consideram, será o próprio interrogatório. ‘® 18. A questão, contudo, não é pacifica na doutrina, havendo três posições: (1) o interrogatório é meio de prova, porque o CPP o coloca entre os meios de prova: Camargo Aranha, Da prova..., p. 98; (2) o interrogatório é um meio de defesa, mais especificamente de autodefesa, diante do direito ao silêncio do acusado: Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 247; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 77; Tourinho Filho, Pro­ cesso..., V. 3, p. 298-299; (3) o interrogatório tem natureza mista, sendo tanto um meio de defesa quanto um meio de prova: Frederico Marques, ElemenCos..., v. 2, p. 321; Tomaghi, Curso V. 1, p. 359; Campos Barros, O interrogatório..., p. 322; Noronha, Curso. .. p. 107; Damásio E. dejesus. Código..., p. 176; Mirabete, Processo Penal, p. 297; Nucci, 0 valor..., p. 165; Pedroso, Prova penal, p. 34. 19. A questão é analisada no processo civil por Dinamarco (instituições..., v. 3, p. 100): “aprópria confissão e os fatos confessados vêm ao conhecimento do juiz em declaração endereçada a ele (petições) ou por meio de algum meio de prova realizado no processo. Como declaração de conhecimento de fatos, ela pode ser prestada no depoimento pessoal do confitente, ou constar de documento trazido por ele ou seu adversário. [...1 Ela não é portanto um meio de prova embora sua própria efetividade e a dos fatos confessados sejam suscetíveis de vaiei

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O indício também não é, em si, um meio de prova. Indício é um fato provado que permite, por um raciocíiiio indutivo-dedutivo, concluir pela existência de outro fato. O indício é o ponto de partida do qual o juiz realiza um processo mental que permite concluir pela existência de outro fato. O rol do CPP não é taxativo, podendo ser mencionada, como prova atípica no processo penal, a inspeção judicial (CPP, art. 3°, c.c. CPC, arts. 4 4 0 a 443).®“ Deve ser lembrado, ainda, que a chamada “reprodução simulada dos fatos” (CPP, art. 7“) é providência igualmente destinada a obter elementos de prova. O CPC prevê que “Todos os meios legais, bem como os m oralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hdbeis p ara provar a verdade dos fatos, em que se fu n d a a a ç ã o ou a defesa" (art. 332).®*

W. 1.4.2 Meios de obtenção de prova Meios de obtenção de provas, também denominados meios de investigação ou de pesquisa de provas, são instrumentos para a colheita de fontes ou elementos de prova. ; ‘p O Único meio de obtenção de prova disciplinado pelo CPP é a busca e a apreensão, embora elencada, erroneamente, entre os meios de prova. Há outros meios de obtenção de provas previstos em leis especais: a interceptação das comunicações telefônicas, disciplinada na Lei n° 9.296/1996; a interceptação sunbiental (nominada na Lei n° 12.850/2013); as chamadas “quebras” dos sigilos le­ galmente protegidos, como o financeiro (regidos pela Lei Complementam“ 105/2001), õ fiscal (CTN, art. 198), o sigilo profissional, entre outros. O agente infiltrado, previsto nos arts. 10 a 14 da Lei n" 12.850/2013, também eum meio de obtenção de prova.®® Não se trata de um meio de prova, não podendo q agente infiltrado ser reduzido à mera testemunha como uma simples fonte oral de íiírova- Tanto assim que a infiltração se inclui entre os “procedimentos de investigação e|ormação de prova”, para ser utilizada “em tarefas de investigação”. Não, pois, de um meio de prova que se presta, diretamente, a convencer o julgador (o que poderia ter essa função seria o depoimento prestado em juízo pelo agente infiltrado, sobre fatos que teve conhecimento durante o penodo em que integrou a organização criminosa), mas a obtenção de elementos relevantes para a reconstrução dos fatos (os lugares como elemento de convicção do juiz - desde que trazidos ao processo por meio de um dos meios de prova admitidos.” jAOç A inspeção judicial está prevista nos arts. 478 a 481 do Novo CPC. %|T. No Novo CPC, o art. 366 prevê que: “As panes têm direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que náo especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos era que se funda,o. pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”. Isso fica claro no caput do art. 3° da Lei n° 12.850/2013, que prevê; “Em qualquer fase da iíí; persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes |i imriDs de obtenção da prova:... VU infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11”. (destaques nossos). 'i -

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onde a droga fica armazenada, os agentes públicos que são corrompidos, as formas de lavagem de dinheiro utilizadas pela organização criminosa, os locais de venda de produtos ilícitos etc.). Uma característica dos meios de obtenção de prova apontada pela doutrina é o seu caráter de surpresa. Ou seja, sua eficiência visando à efetiva colheita de elemen­ tos de prova úteis depende do desconhecimento do investigado de que é ou será alvo de busca e apreensão, de interceptação telefônica etc. Justamente por isso afirma-se que nestes casos o requerimento, a admissibilidade e a efetiva realização de tal meio devem ocorrer sem a ciência da parte investigada, sendo o resultado de tal operação submetido, posteriormente, ao contraditório diferido. De fato, na grande maioria deles, o sucesso do meio de obtenção de prova depen­ de do desconhecimento de sua realização. Se o investigado souber que estará com as linhas telefônicas interceptadas, nada de relevante será falado. Se tiver conhecimento de que haverá busca e apreensão domiciliar, retirará de sua residência ou local não aberto ao público os bens que lhe possam incriminar. Obviamente, o agente infiltrado tem que permanecer no mais absoluto sigilo. No entanto, no caso de quebra de sigilo bancário ou fiscal, como os dados relevantes para a investigação estão armazenados emórgãos públicos (por exemplo, fazenda nacional) ou privados (por exemplo, insti­ tuições bancárias), era relação aos quais o investigado não terá acesso, será impossível alterá-los ou suprimi-los, não havendo necessidade de que o meio de obtenção de prova seja realizado de modo a surpreender o investigado ou acusado. Em tais casos, o contraditório deve ser realizado previamente à autorização do meio de obtenção de prova. Se. de um lado, não tem sentido intimar o investigado para se manifestar previamente sobre o cabimento de uma busca e apreensão ou pedido de interceptação telefônica, de outro, é perfeitamente possível que o investigado se manifeste previa­ mente sobre pedido de quebra de sigilo bancário ou fiscal. Com isso, possibilita-se à defesa demonstrar a desnecessidade ou abusividade da medida, impedindo quebras quando não há elementos contra o investigado, ou em relação a período impertinente, ou visando atingir contas bancárias irrelevantes para a investigação etc.

W. 1.5 Prova atípica e prova anômala 0 art. 332 do CPC estabelece que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que nào especificados neste Código, são hábeis para provara verdade dos fatos, em que sefunda a ação ou a defesa". Embora não haja um dispositivo semelhante do CPP, há consenso de que também não vigora no campo penal um sistema rígido de taxatividade dos meios de prova, sendo admitida a produção de provas nâo disciplinadas em lei, desde que obedecidas determinadas restrições.™ 23. Greco Filho (Manual..., p. 188) afirma que. além dos meios legais, também se admitem outros “desde que consentâneos com a cultura do processo moderno, ou seja, que respeitem os valores da pessoa humana e a racionalidade”.

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É controvertido, contudo, o que se deve entender por prova atípica. Inicialmen­ te, não se pode confundir tipicidade probatória, entendida como a previsão de um procedimento probatório típico para a produção de um determinado meio de prova, com a simples nominação de uma prova. Por exemplo, o CPP faz referência à “repro­ dução simulada dos fatos” (art. 7°), vulgarmente conhecida como “reconstituição do crime”. Não lhe indica, porém, nenhum procedimento.™ Nos casos em que a lei estabelece um determinado procedimento para a pro­ dução de uma prova, o respeito dessa disciplina legal assegura a genuinidade e a ■ capacidade demonstrativa de tal meio de prova. Toda vez que tal procedimento probatório não é seguido, o problema que se coloca não é saber se o meio de prova produzido é típico ou atípico, mas sim se os requisitos e condições previstos em lei, mas que não foram observados na admissão ou produção da prova, eram ou nào essenciais para tal meio probatório.™ ^ Em suma, é necessário distinguir a prova atípica da “prova irritual”, isto é, da proíya típica produzida sem a observância de seu procedimento probatório. Por exemplo, :em um reconhecimento pessoal, suprimir a primeira fase, de descrição da pessoa a ser /reconhecida, havendo um mero apontamento do acusado. Outro exemplo seria a oitiva Je testemunha, em que ojuiz não desse oportunidade para reperguntas das partes.™ Além disso, a prova atípica não pode ser confundida com uma prova anômala, ue é uma prova típica, utilizada ou para fins diversos daqueles que lhes são próprios, para fins característicos de outras provas típicas.” É o que ocorre, comumente, quando a oitiva de uma testemunha é substituída ela juntada de uma declaração. Trata-se da produção de uma prova típica, no caso, ■documento particular, em substituição a outro modelo probatório, no caso, a prova Stemunhal.™

A admissibilidade de provas atípicas não pode servir de pretexto para a produção de provas anômalas. Quando a lei estabelece um determinado procedimento probatório para a pro­ dução de um meio de prova, este procedimento não pode ser desvirtuado. Não se nega que o juiz possa produzir meios de prova atípicos. Não poderá, porém, a pretexto de produzir uma prova atípica, desviar-se de um meio probatório típico (Laronga, Le prove atipiche..., p. 9), 5. Na doutrina estrangeira; Cavallone, II giudice..., p. 350. No mesmo sentido: Ubertis, La , prova..., p. 73-74. A distinção é comum na doutrina estrangeira: Laronga, Le prove..., p. 13; Ubertis, La prova..., p. 73. Na doutrina nacional: Badaró, Provas atípicas..., p. 344; Gomes Filho e Badaró, Prova , e sucedâneos..., p. 190. i7- A referência à prova anômala é encontrada em Laronga, Le prove..., p. 9. Na doutrina naE cional: Badaró, Provas atípicas..., p. 344. g.íN a doutrina, negando a possi^lfeldé de tal substituição, por infringir o contraditório, que é essencial à produção da prova oral: Gomes Filho, Direito à prova..., p. 169-170; Id., Notas sobre a..., p. 316; Badaró, Provas atípicas..., p. 348; Gomes Filho e Badaró, Prova e sucedâneos..., p. 187. Na jurisprudência; TJSP, HC n° 368.417-3/9/19-00, Correição Parcial n° 145.555-3/1.

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10.1.6 Das provas pré-constituídas e provas constituendas: diferenças quanto ao regime do contraditório Isso porque, a distinção entre a natureza das fontes de prova não tem razão de ser em si, mas enquanto implicam diferentes modalidades de produção do meio de prova.®“ As provas pré-constituídas dizem respeito a fontes de conhecimento pré-existentes ao processo, enquanto que as constituendas são constituídas e produzidas com atos do processo.™ As provas constituendas se formam no âmbito do processo, enquanto que as provas pré-constituídas existem fora do processo, em procedimentos extraprocessuais.®* As provas constituendas, como, por exemplo, aquelas decorrentes de fontes de provas pessoais (p. ex.: vítimas e testemunhas), têm sua produção no curso do próprio processo, exigindo a realização de atividade processuais das partes e do juiz, bem como demandando tempo para sua produção em contraditório, já as provas pré-constituídas, como os documentos, são simplesmente juntadas aos autos do processo, já tendo sido criadas previamente e extra-autos. Justamente por isso, 0 juízo de admissibilidade e o procedimento de produção de tais provas são diversos. Aliás, nesse ponto, o próprio ordenamento jurídico diferencia o regime legal de admissão da prova documental, dos demais meios de prova.®®Justamente por se tratar de prova pré-constituída, é desnecessário um prévio juízo de admissibilidade, nâo havendo necessidade sequer de se perquirir sobre a relevância do documento.®® A prova documental é diretamente produzida, isto é, juntada aos autos na própria petição na qual, impropriamente, “se requer a juntada” de algo que já se está juntado aos autos. No máximo, há umjuízo a posteriori, em razão de alegações de inadmissibilidade da prova documental, mas por critérios jurídicos de exclusão, como, por exemplo, se tratar de uma carta obtida por meios ilícitos. 29. Como explica Cordero (Tre siudí ...,p . 55) quanto a estnitura do ato aquisitivo, “proxe che preesistono nella realtà extraprocessuale, si contrappongono quelle formate nel processo”. 30. Comoglio, Le prove..., p. 8. 31. Taruffo, La prova ..., p. 352. 32. No processo penal, ante a sua evidente relevância, o legislador preestabelece a necessidade de oitiva da vítima, que não se confunde com testemunha e, sequer, precisa ser arrolada. 0 artigo 201, caput, do Código de Processo Penal prevê que: "Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser 0 seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações” (desta­ quei). Mesmo se tratando de provas constituendas, diante da sua inquestionável relevância, posto que a vítima sempre terá algo a esclarecer sobre o modo, o momento ou o autor do delito, o legislador determina a oitiva da vítima. ; 33. Somente quanto ao documento cuja juntada tenha sido determinada e,x officio pelo jiuZj é que se exige o juizo lógico de relevância. O art. 234 do CPP prevê que: “Art 234. Se ó^ juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou oA defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, pa^ sua juntada aos autos, se possível”, (destaquei).

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Quanto ao momento de produção da prova documental, há ampla liberdade probatória das partes para a juntada de documentos em qualquer fase do processo.®® A mesma liberdade, porém, não existe para a produção da prova decorrente de fonte pessoal, sujeita a limites legais de admissibilidade e produção bem mais rígidos.®’ Há restrição legal quanto ao momento de requerimento da prova oral, o número de testemunhas e o rito para a produção da prova testemunhal. Quanto a este último aspecto, Comoglio assevera que a oralidade da produ­ ção do depoimento, em contraditório de parte, na presença do ju iz, “configura um denominador mínimo d t fo r m a oral e de controle dialético”, que não pode ser “substituído por uma equivalente/orma de depoim ento escrito, realizado fora do contraditório”.®« Porém, embora seja inegável a importância do contraditório, possibilitando is partes uma interlocução prévia sobre tudo aquilo que possa interferir na decisão judicial, sendo considerado um elemento estrutural do processo, ele não deve ser considerado uma “condição geral e absoluta para utilização do meio de prova”.®' Como explica Taruffo, a regra segundo a qual a prova deve se formar em contraditório ^ale somente no processo, ou seja, para as provas constituendas, que propriamente são criadas no processo; já para as outras provas, isto é, as pré-constituídas, o importante |que seja garantido o contraditório, não para a formação da prova,®« mas para a sua yaloração.®“ Neste caso, basta que as provas pré-constituídas sejam submetidas ao contraditório, antes da decisão judicial. É exatamente no sentido acima que deve ser interpretado o caput do art. 155 do ^|*P,que, com base na garantia do contraditório, distingue entre prova, produzida em contraditório, de um lado, e elementos informativos colhidos na investigação, produzidos m fase policial, sem a dialética de partes, de outro. Nào se confundem, pois, atos de prSva e atos de investigação. .i

A necessidade de que os meios de prova decorrente de fontes pessoais sejam produzidas em contraditório decorre do valor heurístico de tal garantia. O contradi­ tório, possibilitando o funcionamento de uma estrutura dialética, que se manifesta gajpotencialidade de indagar e de verificar os contrários,®“ representa um mecanismo eficiente para a busca da verdade. Mais do que uma escolha de política processual, o 34. No regime do Código de Processo Penal, o ari. 231 prevê que: “Salvo os casos expressos ^ em lei, os partes poderão apresentar documentos em qualquer fa s e do processo" (destaquei). «ÚS,' Usa-se aqui a distinção tal qual exposta por Taruffo (La ..., p. 441): prova real é aquela t i constituída de uma coisa, documental é aquela constituída de um documento (mas qualquer coua pode ser um documento) e pessoal é aquela fornecida por uma pessoa. ^„36. jLe Prove civile ... cit., p. 259-260. ^T^Taniffo, La prova d e ija t t i... cit., p. 403. '^_JiÓs documentos, explica Camelutti (La Prova Civile, 2 ed. Roma; Edizioni Dell'Ateneo, 1947, p. 291) “è una prova che no si fa sotto gli occhi di chi ne usa”. ÉSiidein, ibidem, p. 403. ‘b)- Dé Luca, II sistema delle ..., p. 1261.

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método dialético é uma garantia epistemológica na pesquisa da verdade/' As opiniões contrapostas dos litigantes ampliamos limites do conhecimento do juiz sobre os fatos relevantes para a decisão e diminuem a possibilidade de erros/’ A distinção entre provas “produzida em contraditório” e provas “submetidas ao contraditório", segundo Ubertis, equivaleàs expressões “contraditório sobre a. prova” e “contraditório para a prova”, que implicam, respectivamente, um contraditório/raco e um contraditório JorteÁ^ A observância do contraditório, no caso, em sua face mais forte e eficiente, além de uma escolha epistemológica, trata-se, também, de uma imposição que o legislador ordinário não pode deixar de acolher em relação à produção da prova oral, na medi­ da em que a Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. 8.2,/, prevê que o acusado tem o “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos". O dispositivo convencional assegura o direito ao confronto, com inspiração da VI Emenda da Constituição dos EUA, cuja ideia central, no dizer de Malan, “é a seguinte: o right o jcon/rontatíon impõe que todo o saber testemunhal incriminador passível de valoraçâo pelo juiz seja produzido de forma púbiica, orai, na presença do julgador e do acusado e submetido ã inquirição deste último. Logo, a declaração de uma determinada testemunha não pode ser admitida como elemento de prova contra o acusado, a não ser que ela tenha sido prestada nas sobreditas condições”. " Além de assegurar o direito de produziras suas provas e participar da produção, em confronto, das provas da parte contrária, o direito ao confronto fortalece o sistema acusatório. Enquanto no método inquisitório a busca da verdade é conduzida unilateralmente, de forma epistemologicamente comprometida, por um inquisidor que busca, a todo custo, a confirmação de uma verdade por ele pré-estahelecida e escolhida, no 41. Ubertis, Principi..., p. 3 6 .0 contraditório, para Magalhães Gomes Filho (A motivação.... p. 39) possui “um vaior heurístico, constituindo a mais adequada metodoiogia para a completa apuração dos fatos”. 42. Nesse sentido: Gomes Filho, A motivação ... cit., p. 39. 43. Ubertis, Giusto processo ..., p. 17-18. 44. Malan (Processo pena!.... p. 79-80). E, em outra passagem, especifica o conteúdo de tal direito, com base na lição de Stefano Maffei: “O direito ao confrontopossui um conteúdo normativo multifacetado, se consubstanciando no direito fundamental do acusado: (0 à produção da prova testemunhal em audiência pública; (ii) a presenciar a produção da prova testemunhal; (iii) à produção da prova testemunhal na presença do julgador do mérito da causa; (iv) à imposição do compromisso de dizer a verdade às testemunhas; (v) .a conhecer a verdadeira identidade das fontes de prova testemunhal; (vi) a inquirir as fontes de prova testemunhal desfavoráveis, de forma contemporânea à produção da prova testemunhal. A esse rol parece razoável acrescentar o direito do acusado a se comunicar de forma livre^reservada e ininterrupta com o seu defensor técnico, durante a inquirição das testemunhas (idem, p. 87).

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sistema acusatório, informado pelo contraditório, a reconstrução histórica dos fatos é baseada em um confronto dialético entre as provas produzidas pelas partes na presença do juiz, permitindo um resultado imparcial e de melhor qualidade.®’ Por todo o considerado, aprova testemunhal deve ser produzida em contraditório, o que não se confunde com a mera submissão, a posterior, de uma prova produzida inquisitorialmente, a um contraditório diferido. A garantia da defesa está na institu­ cionalização do poder de confrontação da acusação por parte do acusado.®* No processo acusatório, o acertamento do fato deve ocorrer segundo um modelo ' dialético, e sob esse perfil, no que diz respeito às provas constituendas, decorrentes de fontes pessoais, “a oralidade é funcional ao contraditório, porque permite o máximo de dialeticidade processual”.®®

10.1.7 Prova emprestada Prova emprestada é a provaproduzida em um determinado processo e que depois é trasladada, na forma documental, para outro processo. No segundo processo, em que se junta a prova emprestada, embora trasladada na forma documental, ela terá o valor probante originário (porexemplo, de prova testemunhal). A análise da admissão da prova emprestada no processo penal não chegará a resultados satisfatórios ao se buscar uma única teoria geral comum a todos os meios (He provas. Para tanto, porém, não é necessário que se estabeleçam regimes especiais Éara cada um dos meios de prova. p j Tomando como parâmetro as diferenças quanto ao exercício do contraditório, é ^ ficien te distinguir as provas pré-constituídas e as provas constituendas, em especial p ó que toca ao respeito ao contraditório. Para que a prova originária de um processo possa ser validamente trasladada »para outro processo, é necessário que: (1) a prova do primeiro processo lenha sido produzida perante ojuiz natural; (2) a prova produzida no primeiro processo tenha pssibilitado o exercício do contraditório perante a parte do segundo processo; (3) júe o objeto da prova seja o mesmo nos dois processos; (4) que o âmbito de cognição primeiro processo seja o mesmo do segundo processo. O primeiro requisito que tem sido exigido pela doutrina para que prova produzida 1 um processo possa ser validamente utilizada em outro processo é que tenha sido Qduzida na presença do juiz natural.®* Tal exigência não significa que, em ambos Magalhães Gomes Filho, Provas ... , p. 251. Ferrajoli, Diritto e r a g i o n e p. 130. I, Tonini, La prova ..., p. 75. Nesse sentido: Grinover, Prova emprestada..., p. 58; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 119. No caso de meios de obtenção de provas, " protegidos por sigilo constitucional, o STJ entendeu que o empréstimo da prova fica con­ dicionado à autorização do juiz que determinou, originariamente, a obtenção do meio de

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os processos, ojuiz deva ser o mesmo. Náo se trata de identidade física do juiz. Ojuiz natural, nesse contexto, deve ser entendido como sinônimo de autoridade judiciária, isto é, um sujeito legalmente investido do poder jurisdicional. Obriamente, nào se poderão emprestar provas produzidas perante autoridades nâo jurisdicionais, como as resultantes de processos administrativos (por exemplo, processos administrativos disciplinares), em inquéritos policiais por fatos diversos, ou em processos arbitrais.™ 0 segundo requisito é o respeito ao contraditório. ™Não basta, porém, apenas que no segundo processo a prova, ou melbor, o documento por meio do qual se traslada a prova do processo originário tenba sido submetido a posterior contraditório judicial. No caso de fontes de provas orais, cuja produção do meio de prova correspondente deve ocorrer em contraditório (por exemplo, oitiva de uma testemunha ou da vítima), é necessário que, em ambos os processos, o contraditório tenha se desenvolvido entre as mesmas partes ou, pelo menos, que no processo originário tenha figurado como parte aquele contra quem se pretenda fazer valer a prova emprestada.” E, especificamente no que toca à prova testemunhal como prova emprestada, é da essência da prova testemunhal a sua produção em contraditório, com imediatidade prova e que, portanto, é o responsável pela preservação de seu sigilo (STJ, RMS n° 16.429/SC).

49. Em semido contrário, para Grinover (Prova emprestada..., p. 58), a necessidade de respeito ao juiz natural significa que o juiz do processo em que foi produzida a prova originária seja 0 mesmo juiz do processo em que se vai trasladar a prova emprestada, posto que deve se tratar do juiz competente. No mesmo sentido posicionam-se Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 119-120), que acrescentam; “a rigor, para o transporte puro e simples de uma prova, de um processo para outro, seria necessário que 0 contraditório no processo originário tivesse sido instituído perante o mesmo juiz, que também seja ojuiz da segunda causa (enténdendo-se, com o termo juiz', não a pessoa física investida na função, mas o órgão jurisdicional constitucionalmente competente)". 50. Aliás, em relação à prova emprestada Couture (Fundamentos .... p. 160) assevera que “el problema no es tanto un problema de formas de la prueba, como un problema de garantias dei contradictorio". Evidente que a exigência de respeito ao contraditório - assim como a necessidade de produção perante o juiz natural - deve ser interpretada de forma diversa no que diz respeito às provas pré-constituídas, que não são produzidas em contraditório, mas apenas submetidas ao contraditório posterior, como se verá no item 5. 51. Há posição mais restrita na doutrina, considerando que a prova emprestada deve ser produzida no processo originário com as mesmas partes do segundo processo; Moniz de Aragão, Exegese do Código..., v. 4, p. 62; José Manoel de Arruda Alvim e Tereza Arruda Âlvim, Manual..., v. 2, p. 233. No processo penal; Rangel, Direito..., p. 393. Na doutrina estrangeira; Lessona, Trattato..., v. 1, p. 14-15. Era sentido diverso, considerando bastar que aquele contra quem vai ser utilizada a prova tenha sido parte no primeiro processo: Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 307-308; Grinover, Prova emprestada..., p. 62; Aranha, Da prova..., p. 255; Talamini, Prova emprestada..., p. 95; Grinover. Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 119. Nesse último sentido, o STÉ já assentou que “a garantia constitucional do contraditório - ao lado, quando for o caso, do princípio do juiz natural - é o obstáculo mais frequentemenie oponível à admissão e ã valoração da prova emprestada de outro processo, no qual, pelo menos, não tenha sido^parte aquele contra quem se pretende fazê-la valer" (STF, HC n° 78.794/MS). No mesm(^ sentido: TJSP, RT 667/267.

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das partes. Aliás, a CADH assegura, em seu art. 8.2,/, entre as garantias processuais mínimas dos acusados; “o direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunale de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos”.” Em suma, para que seja assegurado o direito de inquirir as testemunhas, no caso de prova testemunhal emprestada, é fundamen­ tal que a defesa tenha participado, inclusive com direito a reperguntas, da oitiva no processo originário, posto que, no segundo processo, o testemunho será juntado na í forma de documento, sendo inviável a inquirição. Sem a possibilidade de inquirição f no processo originário e no processo que recebeu a prova emprestada, a violação ao ;i art. 8.2,/, da Convenção Americana de Direitos Humanos é evidente.” I

Todavia, tanto a exigência de respeito ao contraditório, quanto a necessidade de nodução perante ojuiz natural, devem ser interpretadas de forma diversa no que diz espeito às provas pré-constituídas. É da essência das fontes de provas orais que sua jrodução se dê em contraditório perante ojuiz. Para estas, exige-se, pois, que sejam produzidas em contraditório judicial.” Já em relação às fontes de provas reais, que preexistem ao processo (por exemplo, uma carta, ou extrato bancário, ou um contrato), D^que se tem é ajuntada de um documento aos autos do processo, sendo submetido jo contraditório de partes, mas a sua produção não se dará em contraditório. Neste çàso, não há por que não admitir a utilização, como prova emprestada, de documento |ue tenha sido originariamente juntado em um processo administrativo e que seja isteriormente trasladado, como prova emprestada, para um processo jurisdicional. [èste segundo processo, o documento será submetido ao contraditório de partes. Seria 52. Gomes Filho (Direito ã prova..., p. 169) considera que a prova testemunhal produzida sem ' a observância do contraditório “atinge a própria natureza do ato tido como probatório, sua própria existência, a solução deve ser a mesma reservada para as provas inadmissíveis, que jamais poderão ser utilizadas pela sentença”. 53. Na jurisprudência, já se reconheceu que a prova emprestada, isolada, não é suficiente para a condenação, porque “impossibilita o exame da questão para a defesa, dificultando o esclarecimento de aspectos importantes” (TJSP, JT J 181/263). De forma semelhante, o STF, decidiu que a prova emprestada “não deve funcionar como prova propriamente dita, t mas como indicio corroborador de outras provas” (HC n° 67.064-4/RS). Fm tal julgado, a expressão indício não foi utilizada no sentido do art. 239, mas como uma prova levior. Não é a melhor posição. Se a prova que se pretende emprestar tem uma fonte oral, o contradi­ tório é essencial à própria produção da prova, de forma que, sem que a parte do segundo gprocesso tenha participado do contraditório do processo originário, a prova não poderá ser ' utilizada. O TJSP já decidiu que, “em hipótese alguma, por violar o princípio constitucional do contraditório, gerará efeitos contra quem não tenha figurado como uma das partes do ^processo originário” (RT 667/267). No mesmo sentido; TJSP ApCrim. n” 257.376-3. De Pforma diversa, se o contraditório fo i exercido no primeiro processo, o valor da prova emprestada Tdeve ser pleno. Por outro lado, pode-se a a ^ 4 § " t e de uma prova emprestada que não exige I contraditório na sua produção, como um documento, e neste caso a prova originária ^ deverá ter o mesmo peso que no processo originário. 1 ^ ^ Para Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 119), “se prova emprestada foi indevidamente transportada para o segundo processo, em violação Kão princípio do contraditório, configurará prova ilícita” (destaques no original).

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admissível, por exemplo, que se utilizasse co m o prova emprestada um contrato entre 0 acusado e uma instituição financeira, que seja trasladado de um processo adminis­ trativo perante o Banco Central ou a Comissão de Valores Mobiliários. 0 terceiro requisito é queo objeto da prova seja o mesmo em ambos os processos. Por exemplo, não se pode emprestar uma prova produzida em um processo civil sobre guarda de filho, em que se fez prova de que o pai, por usar substância entorpecente, não poderia ter a guarda da criança, para demonstrar que o acusado era usuário de drogas, em um processo penal.” Finalmente, o âmbito da cogniçãojudicial e, consequentemente, do exercício do contraditório deve ter sido o mesmo, em ambos os processos. Não se pode aceitar, por exemplo, que uma prova produzida em um processo cautelar, com cognição sumária, seja trasladada para um processo penai condenatório, de cognição plena. Obviamente, tal restrição não diz respeito às medidas cautelares de produção antecipada de prova, nem aos chamados meios de obtenção de prova, como a interceptação telefônica. Além desses aspectos, é necessário que no processo anterior, em que foi originaria­ mente produzida, a prova tenha obedecido todos os requisitos legais. Por outro lado, como será trasladada na forma documental, é preciso que o seu ingresso no processo de destino se dê com observância das regras sobre produção de prova documental.” Fvidente, pois a prova a se trasladada deve ser uma prova validamente produzida.™ Não se transportam provas ilícitas ou ilegítimas. Por outro lado, a prova produzida no processo originário deve ser trasladada em sua integralidade para o processo de destino.’* Ou seja, não se pode pretender transportar apenas pane da documentação do meio de prova, o que impediria uma valoração completa da mesma. Assim, por exemplo, no caso de transporte de uma prova pericial, não se pode levar apenas o laudo inicial, deixando de transportar a resposta aos quesitos complementares ou os esclarecimentos orais dos peritos. No caso de uma prova testemunhal, nào será admissível juntar apenas o termo em que consta 0 depoimento, mas não juntar a parte em que houve a contradita e o seu resul­ tado. Se houve a instauração de um incidente de falsidade documental em relação a um documento juntado aos autos, não se pode trasladar para outro processo apenas o documento em si. Em suma, para que a prova emprestada possa ser admitida é necessário que no processo originário ela tenha sido produzida perante um autoridade investida 55. Nesse sentido: ,ámaral Santos, Prova judiciária..., v. 1, p. 314; Rangel, Direito..., p. 393. Já para Camargo Aranha (Da prova..., p. 255) basta que os fatos sejam semelhantes. Em sentido parcialmente contrário, Tatamini (Prova emprestada.... p. 103), embora reconhecendo tal necessidade, entende que não se trata de um requisito específico da prova emprestada, mas de um pressuposto genérico de peninència e relevância de qualquer meio probatório. 56. Grinover, Prova emprestada ..., p. 63. 57. Nesse sentido: Rangel, Direito... cit., p. 446; Talamini, Prova emprestada... cit.. P- 192. 58. Guedes, Persuasão racional..., p. 273.

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da função jurisdicional, em contraditório de partes, ou ao menos dele tendo par­ ticipado o sujeito contra quem se pretende fazer valer a prova no processo ao qual será trasladada- Além disso, é necessário que o processo originário e o processo derivado tenham o mesmo nível de cognição e de possibilidade de exercício do contraditório, e vertam sobre o mesmo themaprobandum . Por fim, é de se exigir que no processo originário a prova tenha sido lícita e legitimamente produzida e que o ato de documentação em que se registrou tal prova seja integralmente transportado para o processo derivado. Há forte posição jurisprudencial no sentido de que não se reconhece a nulida­ de do processo, pelo indevido aproveitamento da prova emprestada produzida sem desrespeito ao contraditório de partes, se não tiver sido a única prova utilizada para formar o convencimento judicial.™ Tal posicionamento é criticável por partir de uma premissa, não demonstrada no campo epistemológico e psicológico, de que o , jjrocesso de valoração da prova para o convencimento judicial se forma de maneira atomlstica, considerando isoladamente cada prova, e não em um contexto holístico, valorando-as em seu conjunto,™ ainda que após as valorações isoladas. Em um siste­ ma do livre convencimento racional e motivado, é muito difícil aceitar que se possa “pinçar” uma prova e, simplesmente, afirmar que a “soma” do convencimento gerado pelas provas restantes ainda é suficiente para a manutenção do convencimento.«' No jnínimo, seria de exigir a realização de uma nova valoração, em todas as suas etapas, [^.conjunto da prova remanescente. De qualquer forma, tal concepção nâo pode ser jaçeita nos processos em que a prova emprestada tenha sido valorada pelo Conselho ^ S en ten ça no Tribunal dojúri, pois, sendo o veredicto imotivado, não há como saí|ér se o convencimento se deu parcial ou totalmente com base na prova emprestada lilégalmente admitida.

^0.1.8 Objeto da prova ^ Embora seja comum a afirmação de que o objeto da prova são os fatos, o que Sé provam não são os fatos, mas sim as “alegações dos fatos”. Os fatos são acontecitiíèntos históricos que existiram ou não existiram. Assim, os fatos ou existem ou são ^aginários. O que pode ser verdadeiro ou falso e, portanto, passível de prova são as ffirmações quanto à existência do fato. I

Na jurisprudência: STE HC n° 67.707-0 (RT 690/380). Como explica Damaska (II diritto..., p. 55-56), a concepção holistica dos processos mentais considera que não é possivel separar ou decompor o valor de cada elemento informativo da |y valoração global, não sendo possivel atribuir valores a cada um dos elementos isoladamente, I' para depois somá-los. ' Taruffo (La semplice verità..., p. 65) destacâ^ue^ifesquisas empiricas no campo da psicologia ‘ mostram que os jurados tendem a decidir a partir de uma concepção holistica, chegando a B sua conclusão sobre os fatos valorando a plausibilidade de “histórias completas" sobre os pfatos, sem desenvolver raciocinios analíticos sobre as circunstâncias específicas da história e sobre cada um dos elementos de prova.

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Na sistemática do CPC, não são objetos de prova (art. 334) os fatos (rectius: as afirmações sobre os fatos) impertinentes (não dizem respeito ao fato principal objeto do processo), os irrelevantes (dizem respeito a fatos secundários, ser relação inferencial com o objeto do processo e, portanto, não influenciam na decisão da causa), os incontroversos (afirmados por uma parte e não contestados ou confessados pela outra), sobre os quais haja presunção legal (dispensa a parte de tal prova, conferindo ônus à parte contrária), e os fatos notórios (que são do conhecimento geral, público e notório). Fatos impertinentes são os fatos que nâo integram o fato principal objeto do processo. São irrelevantes os fatos secundários, isto é, os fatos que nâo integrando o objeto do processos, tem uma relação lógica com estes e, uma vez demonstrados, permitem inferir a ocorrência ou nào do fato principal, influenciando na decisão da causa, já os fatos incontroversos são aqueles que foram afirmados por uma parte e nâo contestados ou confessados pela outra. Fatos presumidos são aqueles que a lei dispensa a produção da prova, em razão da demonstração de outro fato que, segundo o legislador, permite inferir a ocorrência do fato objeto da prova e por ele presumido. Por fim, os fatos notórios são aqueles que são do conhecimento geral, público. Devem ser provados, portanto, os fatos pertinentes, relevantes e que nào sejam notórios nem presumidos. No processo penal, embora não haja regra semelhante, os fatos impertinentes, irrelevantes e notórios não são objeto de prova. Entretanto, mesmo os fatos incon­ troversos vêm a ser objeto de prova (por exemplo, não é porque o réu confessou que ele deve ser condenado). já quanto ao direito, por aplicação analógica do art. 337 do CPC, se o juiz de­ terminar, a parte terã que provar o teor e a vigência do direito municipal, estadual, estrangeiro e consuetudinãrio. jamais serã objeto de prova o direito federal.®’

I0 .L 9 Momentos probatórios O direito à prova envolve cinco momentos distintos: (1) investigação; (2) pro­ positura; (3) admissão; (4) produção; (5) valoraçâo.®’ O direito à investigação está ligado à busca de fontes de provas. Taldireito sempre foi reconhecido, ainda que sem preocupação de estudá-lo sistematicamente, ao Mi­ nistério Público e ao acusador privado, sendo exercido, principalmente, por meio do inquérito policial. Recentemente, têm-se intensificado as discussões sobre os poderes investigatórios do Ministério Público. Ainda que o tema seja polêmico, reconhecido o 62. Embora o Direito Penal e o Direito Processual Penal, segundo a repartição constitucionai de competência legislativa, sejam leis federais, é possível que surjam problemas que envolvam leis estaduais ou municipais, por exemplo, em crimes tributários compreendendo tributos destes entes federativos, ou em crimes praticados por funcionários públicos etc. 63. Normalmente, a doutrina aponta apenas os quatro últimos momentos, não fazendo referência ao momento da investigação. A necessidade do reconhecimento de um direito à investigação das fontes de prova é destacado por Gomes Filho, Direito á prova..., p. 88.

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direito de investigação da acusação, em respeito ao princípio da igualdade de partes, deverá ser conferido i ^ a l direito à defesa, com a necessidade de uma disciplina legal do direito de investigação particular. O direito à proposição da pro va significa a possibilidade de as partes requererem ao juiz a produção das provas sobre os fatos pertinentes e relevantes. Normalmente, a proposição de provas da acusação, ocorre por ocasião do oferecimento da denúncia ou queixa. Já no caso do acusado as provas são propostas quando da apresentação da denominada resposta escrita do art. 396-A do CPP, em que deverá “especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas" (art. 396-A, caput). Nesse ponto, merece destaque, também, o direito à produção da prova contrária. Partindo da garantia constitucional do direito de defesa, Taruffo explica que a outra face do direito à prova “consiste em geral no direito de contradizer a prova proposta pela parte contrária ou produzida de ofício pelo juiz e, em particular, o direito à prova contrária”, razão pela qual é “evidente que o direito à prova nâo implica somente a I possibilidade de requerer prova ou produzir as próprias provas, mas também a pos7 sibilidade de discutir e contrastar a prova albeia”.«® , As partes têm o direito à admissão ou ao deferimento do requerimento de propofc sição das provas que sejam lícitas, pertinentes e relevantes. A admissão ou deferimento p: das provas se dá por decisão judicial. Correlato ao direito à proposição de provas lícitas g íé o direito de exclusão das provas inadmissíveis. A inadmissibilidade é uma sanção àprocessual que visa a impedir que provas viciadas ingressem no processo e possam influenciar, de alguma forma, o convencimento judicial. Diferentemente da nulidade, que opera ex post factum , a inadmissibilidade é uma sanção que se aplica ex ante, nos is em que a lei expressa e previamente veda determinada prova. Uma vez requerida e admitida a produção da prova, surge para a parte o direito 'produção da prova. Os meios de prova, com exceção das provas pré-constituídas, Ij^evem ser produzidos em contraditório, na presença das partes e do juiz natural. yNão basta, pois, o contraditório sobre a prova, sendo exigido o contraditório na projução da prova. Excepcionalmente, a prova documental não precisa ser produzida 1 contraditório, bastando que seja submetida a um contraditório diferido, após sua ífebva juntada aos autos.«’ Finalmente, assiste às partes o direito à valoração da prova produzida. De nada ^iantaria o direito de investigar, requerer, ter admitida e produzida a prova, se no pmento culminante do processo o ju iz pudesse, simplesmente, ignorar a prova, pda prova produzida deve ser valorada pelo juiz. É óbvio que ojuiz não é obrigado a olher a prova, considerando-a sempre atendível. O ju iz pode examinar e valorar a rpva, mas considerá-la insuficiente para convencê-lo da ocorrência de um determina-

_________ Michele Taruffo. II dirittto... p. 98. '..Justamente por isso que os elementos de informação produzidos no inquérito policial não í i ' são provas em sentido técnico, mas meros atos de investigação de fontes de provas, que possibilitarão a produção do meio de prova, durante o processo.

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do fato. Não pode, porém, ignorar a prova produzida. Todo e qualquer meio de prova produzido deveser valorado pelo juiz. E, nesse ponto, a fundamentação da sentença tem um papel essencial para a aferição do respeito ao direito à prova. W .l.W Os critérios lógicos d e adm issibilidade das provas Ainda que não seja um direito absoluto, o reconhecimento de um verdadeiro direito à prova exige que se trabalhe com um regime de inclusão, admitindo todos os meios de prova requeridos pelas partes, salvo nos caso em que resultam vetados pela lei. 0 Código de Processo Penal tem regra geral no § 1° do art. 400: “As provas serão produzidas numa só audiência, podendo o ju iz in deferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias.^ (destacamos) Os critérios lógicos de inadmissâo de provas manifestamente impertinentes ou irrelevantes,™são utilizados tranquilamente pela doutrina ejurisprudência, até mesmo por se tratar de consequências da m áximafruscraprobaturquodprobatum non relevam. Nos países de common law, o conceito de relevância, e mais, a ideia de admissão de toda prova relevante é bastante tranquila.*® A regra 402 da Federal Rules ofEvidence, dos Estados Unidos da América, prevê a admissibilidade geral das provas relevantes, salvo se houver previsão em contrário na Constituição, em lei federal ou em outra regra estabelecida pela Suprema Corte dos EUA. Os conceitos de relevância e pertinência, embora não sejam de distinção fácil, vêm encontrando adequado tratamento na doutrina. Na doutrina italiana, a relevância diz respeito à enunciação de um fato que será objeto do meio de prova, que deve se dotado de verossimilhança e pertinência. Esse fato enunciado que se pretende provar deve ser um fato verossímil, isto é, verificável cotn base nos aparatos de conhecimento disponíveis graças às leis da lógica ou da 66. Regra idêntica, para o procedimento dos crimes dolosos contra a vida está prevista no § 2° do art. 4 1 1 , incluído pela Lei n° 11.689/2008. Dispositivo semelhante já existia para os Juizados Especiais Criminais, prevista no § 1" do art. 8 1 da Lei n° 9.099/1995; “§ 1° Todas as provas serão produzidas na audiência de instrução e julgamento, podendo ojuiz limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias". O Projeto de Código de Processo Penal - PLS 156/2009, que, com clara inspiração no Código de Processo Penal italiano (art, 190), prevê, nas disposições gerais sobre a prova, no art. 162 caput, que: “as provas serão propostas pelas partes” . E, completando a regra geral que assegura um verda­ deiro direito à prova, prevê os critérios de exclusão no art, 16 3, caput: “O juiz decidirá sobre a admissão das provas, indeferindo as vedadas pela lei e as m anifestam ente impertinentes ou irrelevantes" (destacamos). 67. Outra manifestação do princípio da relevância é a exclusão de provas que sejam manifestameníe supérfluas, ou superabundantes. 68. No direito inglês, Richard May (Criminal evidence..., p. 8 ) explica que “the gold rule of admissibility is that all evidence which is relevant is admissible and that which is irrelevant is inadmissible”. Nos EUA, a admissibilidade das provas relevantes é prevista na 402 da Federal Rules of Evidence.

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ciência/® Já a pertinincia significa que o fato objeto da prova, em caso de resultado positivo do meio de prova, terá influência sobre a decisão. Nos casos em que, qualquer que seja o resultado da operação probatória, ele não terá influência na decisão, a prova não deve ser admitida. Por outro lado, nos palses de common law, os critério lógicos mostram-se um pouco diversos, estando ligados às noções de m ateriality e relevancy. A expressão materiality diz respeito à relação ou conexão entre o que pode ser demonstrado pelo meio de prova e o fato principal a ser provado.™Jã o conceito de relevancy diz respeito ' à aptidão do meio de prova para demonstrar a existência ou inexistência de um fato, através do qual seja possível realizar uma inferência sobre o fato principal." De qual­ quer forma, é importante destacar que o conceito de m ateriality não se estabelece no plano da maior ou menor idoneidade ou aptidão probatória do meio requerido, mas no plano lógico e abstrato da pertinência entre o fato que se pretende provar e o fato i principal. Por outro lado, o teste de relevância diz respeito à relação entre um fato ' secundário - em relação ao qual, por inferência se poderá chegar ao fato principal - e j aquilo que pode ser demonstrado pelo meio de prova." Hã, pois, uma relevância lógica do fato que se pretende provar, com vista à inferência do fato principal." ?■ Em ambos os casos, não é necessário um prognóstico quanto ao êxito ou a efejividade do meio de prova. Deve se considerar que, por hipótese, os meios de prova gerem o resultado pretendido pela parte que o requereu e, a partir de tal premissa, »Concluir se ele demonstraria positiva ou negativamente o fato principal (materiality) àu o fato secundário (relevancy). Acrescente-se a observação de Damaska, de que os conceitos de relevância da prova ip seu valor são duas noções distintas, ainda que interligadas: o primeiro depende iiiicamente do potencial cognoscitivo que a informação poderá trazer e o segundo épende da credibilidade que o meio de prova, seja ele oral ou real.™ De qualquer forma, uma coisa é clara: em qualquer sistema que se analise, e in;pendente das variações terminológicas encontradas, o juízo de admissibilidade da |69. Nesse sentido, é o conceito de Domini (Le prove..., p. 2 19 ), que exemplifica: “ não tem, por exemplo, esse requisitos, o enunciado de que o imputado teve um comportamento If/ irracional porque agiu em uma noite de lua cheia". |p. Segundo Damaska (II diritto delle prove .., p, 83) o termo relevância se refere “à potencial idoneidade de um elemento de informação para suportar ou negar a existência de um fato principal (Jactum probandum )”. No mesmo sentido, Taruffo (Studi su lla rilev an za.. ., p. 1 2 1 ) afirma que “a evidence é m aterial quando apta a provar um fa c t in issue”, entendida essa expressão como fato principal ou factu m probandum. RÍ. Na doutrina nacional, cf.; Magalhães Gomes Filho, Direito d prova..., p. 1 3 1 . I L Magalhães Gomes Filho, Princ^lfe'^d-ais da prova..., p. 40. O núcleo do conceito de relevância, segundo Taruffo (Studi su lla rilevan za ..., p. 120), é constituído da relação entre o fato sobre o qual verte a prova e o fato que se precisa provar para proferir a decisão.

K4. Damaska, II diritto delle prove..., p. 83.

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prova exige uma relação lógica entre o themaprobandum e e o tema que o meio de prova poderá demonstrar. Isto é, o meio de prova deve ter a aptidão de demonstrar um fato que se relaciona com o thema probandum, seja diretamente (materiality, no conceito anglo-americano), ou mesmo indiretamente (relevancy, no conceito de common law)J^ mas de forma a influenciar decisivamente no resultado do processo (pertinência, na acepção dos países de civil law). Ressalte-se, ainda, que os limites lógicos devem ser tratados de forma diversa nas provas pré-constituídas e nas provas constituendas. A provas constituendas, como, por exemplo, aquelas decorrentes de fontes de provas pessoais (vítimas, testemunhas e eventualmente o próprio acusado), têm sua produção no curso do próprio processo, exigindo a realização de atividades processuais das partes e do juiz, bem como de­ mandando tempo para sua produção em contraditório. Jã as provas pré-constituídas, como os documentos, são simplesmente juntadas aos autos do processo, já tendo sido criadas prévia e extra-autos. Justamente por isso, o juízo de relevância deve ser mais intenso nas provas constituendas, pois eventual admissão de uma prova irrelevante causará desperdício de tempo e atividade processual em quantidade muito maior. Já no que diz respeito à prova documental, explica Taruffo, elas nâo sâo sujeitas a nenhuma seleção prévia, a partir de juízos lógicos, porque “o critério de relevância serve apenas para evitar atividades processuais inúteis e, portanto, não vale a pena aplicá-lo quando, sendo a prova pré-constituida, a sua produção nào implica atividade propriamente processual” Aliás, nesse ponto o próprio ordenamento jurídico diferencia o regime legal de admissão da prova documental, dos demais meios de prova." Justamente por se tratar de prova pré-constiiuída, é desnecessário um prévio juízo de admissibilidade por critério lógicos, não havendo necessidade de se perquirir sobre a relevância do documento. A prova documental é diretamente produzida, isto é, juntada aos autos no ato em que, impropriamente “se requer a juntada” de algo quejá está juntado aos mesmos. No máximo, há um juízo a posteriori, em razão de alegações de inadmissibi­ lidade da prova documental, mas por critério jurídicos, como se tratar de uma carta obtida por meios ilícitos. No regime do Código de Processo Penal, o art. 231 prevê 75. Procurando sintentizar tais conceitos, Taruffo (Studi sulla riievanza..., p. 12 3) explica que “se pode considerar coerente com o sistema da law o f evidence a teoria que liga a noção de materiality àquela de fact in issue, enquanto pressuposto necessário da relevancy, entendida como aptidão da evidence em fornecer a prova de um fato principal” . 76. Taruffo, La prova dei..., p. 346. 77. No processo penal, ante a sua evidente relevância, o legislador preestabelece a necessidade de oitiva da vítima, que não se confunde com testemunha e, sequer, precisa ser arrolada. 0 art. 20 1, caput, do Código de Processo Penal prevê que; “Sempre que possivel, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ; ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações j (destacamos). Mesmo se tratando de provas constituenda, diante da sua inquestionável ^ relevância, posto que a vítima sempre terá algo a esclarecer sobre o modo, o momento o u ^ o autor do delito, o legislador determina a oitiva da vítima. íJ

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que as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo. Há, pois, ampla liberdade probatória das partes para a juntada de documentos no processo. Voltando à análise da regra geral de admissibilidade das provas relevantes, é de se destacar, por fim, que nos sistemas probatórios em que às partes é assegurado um verdadeiro direito à prova, os critérios de admissibilidade devem ser concebidos a partir de um regime d e inclusão ; a regra é que os meios de prova requeridos pelas partes devem ser admitidos. Somente haverá exclusão nos casos de manifesta irrelevância ou impertinência do meio probatório requerido pelas partes. Inverter os sinais dessas premissas seria trabalhar com um regime de exclusão: em regra não se admite a prova, salvo se a parte demonstrar que a mesma é pertinente e relevante. Em um sistema com esse cariz, o direito à prova nâo passaria de uma falsa promessa. Somente as provas manifestamente irrelevantes não devem ser admitidas. Conse­ quência disso é que os motivos lógicos de exclusão das provas somente justificarão o indeferimento em casos extremos, de evidente ausência de conexão entre o fato a ser demonstrado pelo meio de prova requerido e o themaprobandumJ^ Os códigos, explica Sentis Melendo, partem do pressuposto que, na dúvida, a prova deve ser admitida.®“ Assim sendo, não cabe à parte que requereu a prova demonstrar sua pertinência êrelevância. O juiz é que poderá, constatando a m anifesta irrelevância da prova, indeferi-la. Repita-se, a regra é a admissão, a exceção é a não admissão. Ou seja, somente sna hipótese em que o juiz estiver convicto da irrelevância do fato, ou de que a prova proposta é impertinente, deverá indeferir a diligência requerida pela parte.®“ No caso Vde dúvida, a prova deve ser aceita, qualificando sua atendibilidade ou não no momento da entença.®* f Ç 1.11 Provas ilícitas -,r

10.1.1 l . l Provas ilícitas e provas ilegítim as: d istin çõ es

0;|| > A doutrina nacional tem empregado a distinção proposta por Ada Pellegrini ííTinover que, com base em Nuvolone, considera que provas contrárias à lei perten||pi ao gênero das provas ilegais, que, por sua vez, se dividem em duas espécies: ■gfpvas ilegítimas e provas ilicitas. As provas ilegítimas são aquelas produzidas com lyiolação de normas processuais (por exemplo, oitiva de uma testemunha, sem dar artes o direito de perguntas). As provas ilícitas são obtidas com a violação de nors de direito material ou de garantias constitucionais (por exemplo, um “grampo fefònico” ilegal).*® Magalhães Gomes Filho, Princípios M rm sd^prova... cit., p. 40. Sentis Melendo, La prueba..., p. 283.

'

|í., Amaral dos Santos, Da Prova Judiciária..., v. 1, p. 2 2 7. :;^l.;D evis Echandia. Teoria general de la prueba ju d icial..., v. I, p. 206. !& !;Grinover (Liberdades públicas..., p. 98-99) ensina que “a prova serã ilegal toda vez que cap ® racterizar violação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento, de natureza

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Do ponto de vista do direito material, a prova ilícita será colhida com infringência de normas ou princípios previstos na Constituição para proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade. Constituem provas ilícitas, por exemplo, as obtidas com violação do domicílio (CR, art. 3“, XI), ou das comunicações telefônicas ou postais (CR, art. 5°, XII), as conseguidas mediante tortura ou maus-tratos (CR, art. 5“, III), as colhidas com infringência à intimidade (CR, art. 5°, X), entre outras. Justamente porque tais bens jurídicos são de alta relevância, o legislador tipifica como crime sua violação. Assim, a obtenção da prova ilícita, normalmente, acarreta o cometimento de um delito, como a violação de domicilio (CP, art. 150), de correspondência (CP, art. 151), de segredo profissional (CP art. 154) e a tortura (Lei n° 9.455/1997, art. 1°) etc. Violada a norma material (por exemplo, violação de correspondência), havia uma sanção de direito material (por exemplo, pena do crime do art. 151 do CP). Por outro lado, desrespeitada uma norma processual (por exemplo, ouvir testemunhas sem intimar as partes), havia apenas uma sanção processual (por exemplo, nulidade da prova testemunhal). Foi justamente essa circunstância, qual seja de haver apenas uma sanção material, normalmente, de natureza penal, para a violação das liberda­ des públicas, que levou à adoção da teoria do male captiim, bene retentum. Em outras palavras, como não havia sanção processual para a violação da regra de direito ma­ terial, o autor da lesão seria punido no plano do direito material, mas a prova ilícita introduzida no processo era validamente valorada. Havia, pois, um isolamento dos dois planos - material (prova ilícita) e processual (prova ilegítima) - , inclusive no que dizia respeito à sanção pelo desrespeito à norma. A Constituição, ao assegurara inadmissibilidade processual da prova ilícita, estabeleceu uma “ponte” entre os dois planos, do direito material e do direito pro­ cessual. A “inadmissibilidade” é uma “sanção” processual, para uma violação de uma regra material. Com isso, uma violação de regra material (por exemplo, violação de correspondência) passou a ter, além de uma sanção material (a pena pelo crime de violação de correspondência), também uma sanção processual. Em suma, as provas ilícitas, atualmente, sâo sancionadas tanto no plano material, com a pena pelo delito correspondente, como no campo processual, com a inadmissibilidade de tal prova. Embora a Constituição considere, expressamente, inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos, não estabelece, contudo, de forma explícita, a con­ sequência que deriva da admissão dessa prova ilícita no processo, mesmo esbarrando ã ________________________^ I J ; J . » _ j ________ — _í - o T i f i n C i I em tal vedação constitucional. Diante disso, a doutrina se posicionava no sentido de que “as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição, e agora pela lei. processual ou material. Quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova {rectius, o meio de prova) será ilegítima (ou ilegalmente produzida); quando, pelo contra- ; rio, a proibição for de natureza material, a prova será ilícita (rectiu.t, a fonte de prova 5« * ^ ilicitamente colhida). Será nesse sentido mais estrito que nos referiremos às 'provas ilícitas A distinção doutrinária foi expressamente acolhida pelo Plenário do STF, no julgamento do^ HC n“ 69.912-0/RS (LE.X-STF 183/320).

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inadmissíveis, não são tidas como provas. Trata-se de nâo ato, de não prova, que as reconduz à categoria de inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas: nào têm aptidão para surgirem como provas. Daí sua total ineficácia”.®®O desentranhamento da prova ilicitamente admitida do processo foi expressamente previsto na nova redação do caput do art. 157 do CPP; “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas". Poder-se-ia imaginar que a vedação da utilização da prova ilícita representa uma indevida limitação à busca da verdade material e ao próprio livre convencimento do juiz. Todavia, como já destacado, a própria busca da verdade nào é ilimitada e não representa um fim que possa ser atingido a qualquer custo. No processo e, principal­ mente, na atividade probatória, os fins sâo tão importantes quanto os meios. Por outro lado, a livre valoração da prova deve ser entendida no contexto do material probatório validamente produzido. A valoração da prova, como momento do processo dinâmico da atividade probatória, se insere na última etapa, após a admissão e a produção da prova. Nas fases prévias, porém, devem ser inadmitidas ou excluídas as provas obtidas por meios ilícitos.

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W. 1.11.2 Um a nova proposta de co n ceitu a çã o das provas ilícitas

* A reforma do CPP de 2008, na disciplina legal do regramento constitucional da Redação da prova ilícita, parece não ter adotado a conceituação da prova ilícita segun­ do os parâmetros doutrinários e jurisprudenciais que vinham sendo tranquilamente içeitos, a partir da distinção entre provas ilícitas (violação de regras de direito material) jrovas ilegítimas (violação de regras processuais). Isso porque a nova redação do caput do art. 157 do CPP prevê; “São inadmissíveis, hen do ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em olação a normas constitucionais ou legais". Ou seja, para a caracterização da prova ícita, não se fez qualquer distinção entre natureza da norma violada, se de direito íaterial ou processual. A ausência de distinção poderá causar confusões,®® por exemplo, na definição ” “ sanção processual aplicável pela violação da norma; em caso de qualquer violação lonstituição ou à lei, mesmo que processual, a prova será inadmissível e, em caso ingresso no processo, deverá ser desentranhada?

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Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 138. Magalhães Gomes Filho (Provas..., p. 266) conclui que: “ Não parece ter sido a melhor, -assim, a opção do legislador nacional por uma definição legal de prova ilícita, que, longe >íde esclarecer o sentido da previsãucoi^iiucional, pode levar a equívocos e confusões, jí; fazendo crer, por exemplo, que a de regras processuais implica ilicitude da prova • e, em conseqüência, o seu desentranhamento do processo” . No mesmo sentido, Grinover, I Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 13 3 ) consideram que “a ’ falta de distinção entre a infringência da lei material ou processual pode levar a equívocos i e confusões” ,

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Todavia, embora não se possa desprezar a distinção entre prova ilícita e ilegítima, quer quanto ao momento de produção do meio, quer quanto à sanção aplicável, o certo é que há muitas zonas de intersecção entre uma e outra e, do ponto de vista do conjunto de meios de prova que poderão ser valorados pelo julgador, as diferenças sejam mínimas. Quanto ao momento, afirma-se que, naprova ilícita, o vício ocorre quando de sua obtenção (por exemplo, no momento em que se capta a conversa telefônica), enquanto na prova ilegítima a ilegalidade ocorre na sua produção (por exemplo, no momento em que se indefere a pergunta à testemunha).®’ Embora normalmente a ilicitude se dê relativamente à obtenção de uma prova, isto é, durante a execução de um meio de obtenção de prova (por exemplo, uma interceptaçâo telefônica ou busca e apreensão), é possivel que a ilicitude ocorra no próprio processo, durante a produção da prova. Basta pensar em um acusado que seja torturado, ou submetido à hipnose, ou compelido a tomar o “soro da verdade”, durante seu interrogatório. Haverá ilicitude na produção de um meio de prova durante a instrução processual. Se um padre prestar depoimento sobre algo que teve conhecimento durante uma confissão, o vício que acarretará a ilicitude da prova testemunhal se dará na própria produção do meio de prova. De outro lado, do ponto de vista do material que poderá ser valorado para a for­ mação do convencimentojudicial, não terã maiores reflexos a distinção entre prova ilícita e prova ilegítima, na medida em que, tanto a prova obtida ilicitamente quanto a prova produzida ilegitimamente nào poderão ser valoradas pelo juiz. Não se pode ignorar que as regras sobre admissão e produção da prova têm por escopo último uma correta seleção do material que poderá ser valorado pelo juiz para a formação de seu convencimento. Por outro lado, quanto à sanção processual, afirma-se que a prova ilícita é inad­ missível, o que evita o seu ingresso no processo, enquanto a prova ilegítima será san­ cionada com a nulidade de sua produção, uma sanção, portanto, expost Jactum. Além disso, a prova ilícita não poder ser renovada, enquanto em relação à ilegítima “impõe a necessidade de sua renovação, nos termos do que determinar o art. 573 do CPP”.« Nào há como negar que a inadmissibilidade impede o ingresso, no processo, de uma prova ilícita, o que não ocorre na teoria das nulidades. Porém, na grande maioria dos casos, o reconhecimento da ilicitude da prova ocorre a posteriori, quando o meio proibido já ingressou no processo (por exemplo, reconhece-se a ilicitude de umainterceptação telefônica, depois de já realizada a operação técnica e juntado aos autos o laudo de degravação ou os registros das conversas). Neste caso, a consequência do reconhecimento da ilicitude da prova não será a inadmissibilidade (impedir o ingres­ so), mas o seu desentranhamento (excluir do que não deveria ter ingressado). Do ponto de vista da dinâmica procedimental, sob o aspecto cronológico da imposição 85. Magalhães Gomes Filho, Provas..., p. 266.

86 . Magalhães Gomes Filho, Provas..., p. 266.

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da sanção, não haverá diferença prática entre o desentranhamento (e não a inadmis­ sibilidade) e a nulidade. Mesmo a alegada impossibilidade de renovação da prova ilícita (sancionada com a inadmissibilidade) e a necessidade de renovação da prova ilegítima (sancio­ nada com a nulidade) não é uma regra absoluta. A não repetição da prova ilícita não decorre de uma característica ontológica de tais provas. Como o vício da ilicitude costuma ocorrer na obtenção da fonte de prova, o fator surpresa desaparece após a sua produção e, no caso, o posterior reconhecimento judicial da ilicitude. Seriá de todo inútil, anos após a realização de uma interceptação telefônica ilícita, que o juiz autorizasse uma nova interceptação para tentar captar o mesmo conteúdo de conversa entre as mesmas partes. Mas não seria impossível! Por outro lado, não são todos os meios de obtenção de prova em que o fator surpresa é decisivo. De : fato, dificilmente teria qualquer êxito uma interceptação telefônica ou uma busca : e apreensão em que o investigado soubesse previamente da autorização judicial, li Entretanto, na quebra de sigilo bancário e fiscal, a surpresa não é fator determinante. # Assim, caso se reconhecesse a ilicitude na obtenção de dados bancários ou fiscais de g um investigado (por exemplo, porque obtido sem ordem judicial), nada impediria que houvesse, posteriormente, uma ordem judicial válida determinando o forneci^ mento dos mesmos elementos de prova. De outro lado, embora os atos processuais nulos devam ser, em regra, repetidos, para sua realização válida, tal regra não é indefectível. Basta pensar na nulidade de [ãima sentença ultra petita. O ato é inegavelmente nulo, e não haverá qualquer necesiidade de renovação. Basta que o tribunal, ao reconhecer o vício, exclua do julgado parte em que se foi além do pedido (por exemplo, o reconhecimento de uma causa pe aumento de pena), mantendo, no mais, intacta e sem necessidade e renovação, á sentença. Mesmo no campo probatório, não é desarrazoado considerar que, em /jelaçâo a determinados meios de prova, a violação de uma regra processual poderá mprometer definitivamente a capacidade epistêmica de tal meio. Por exemplo, um s^iréconhecimento pessoal realizado sem a observância do rito probatório do art. 226 CPP, em que um único suspeito seja levado à presença da vítima para que esta o nheça - ou não - como autor do crime. Mesmo que tal prova, com resultado posi|vo, seja anulada, é de se questionar a possibilidade se repetir tal ato posteriormente, ndo o rito adequado, em virtude do grande potencial de sugestionabilidade que a ;ova ilegitimamente produzida causa. No segundo ato de reconhecimento, a vítima •vavelmente reconheceria o acusado não porque se lembraria dele na cena delitiva, porque se recordaria dele no reconhecimento ilegítimo anterior. Em suma, mais relevante que distinguir entre nulidade e inadmissibilidade, é ver a inutilizabilidade da pr«jpsilgíta, impossibilitando a sua valoração.®® O CPP italiano, em seu art. 19 1, disciplina as provas ilegitimamente produzidas, e seu comma 1°, prevê: “As provas produzidas com violação de vedações estabelecidas por lei nâo podem ser utilizadas".

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Ainda no que toca às repercussões do reconhecimento da prova ilícita, em especial a chamada prova ilícita por derivação, não há diferença do resuludo a que se chegaria, quer a prova fosse ilícita, quer ilegítima. Isso porque considera-se prova ilícita por derivação a prova que em si é lícita, mas teve por origem ou fonte uma prova ilícita. Ou seja, por haver um nexo causal entre a prova ilícita originária e a prova em si lícita, posteriormente produzida, esta será atingida pelo “efeito a distância" da prova ilícita.“ No entanto, aos mesmos resultados se chega aplicando o princípio da causalidade que rege o sistema das nulidades: “a nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dele diretamente dependam ou sejam consequência” (CPP, art. 573, § 1°). Até mesmo as exceções à prova ilícita por derivação poderiam ser compreendidas do princípio da causalidade. Na chamada “fonte independente", como bem observa Magalhães Gomes Filho, “nem mesmo seria correto falar em exceção à regra de con­ taminação da prova derivada, pois na verdade o que se exclui é a própria relaçáo de causalidade”.“ E, mesmo no caso de utilização de uma prova ilícita por derivação, em relação à qual se constatasse que a prova seria inevitavelmente descoberta por uma investigação legal, seria de considerar que a valoração do meio de prova derivado da prova ilícita não seria nula, por ausência de prejuízo. Na dicção do art. 566 do CPP, “não será declarada a nulidade de ato processual que não houver injluído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa". Por fim, e mais relevante, é de considerar que as linhas que demarcam a distinção entre prova ilícita e prova ilegítima, se abstratamente consideradas bem demarcadas, na prática, muitas vezes se mostram apagadas ou inseguras. Isso porque, em muitos casos, há violações de dispositivos constitucionais ou legais que teriam um aspecto bifronte, podendo ser lidos, de um lado, como uma garantia constitucional de proteção das liberdades públicas, e, de outro, como um regramento processual delimitando os mecanismos para realização de um meio de prova ou de obtenção de prova. Uma interceptação telefônica autorizada por juiz incompetente será uma prova ilícita ou ilegítima? Violou-se uma regra constitucional que assegura a liberdade das comunicações telefônicas, que somente pode ser restringida mediante autorização judicial, sendo uma prova ilícita? Ou a regra constitucional foi respeitada, na medida em que há autorizaçãojudicial, mas se desrespeitou uma regra processual de repartição de competência, sendo a prova ilegítima? Outro exemplo; uma busca e apreensão domiciliar, realizada fora das exceções constitucionais, mas com uma ordem judicial não motivada, será uma prova ilícita ou ilegítima? Considerando-se que foi desrespeitada a garantia constitucional da inviolabilidade do domicilio, ao qual se teve acesso sem ordem judicial, a prova será ilícita. Por outro lado, caso se considere que há ordem judicial, mas esta é 88. O tratamento a partir da noção de “efeito a distância” (femwirkung) é comum na douuina alemã, como explica Costa Andrade, Sobre as proibições..., p. 17 2 e ss. 89. Magalhães Gomes Filho, Prova..., p. 268, citando ainda julgados do Tribunal Supremo espanhol que, em tais casos, se refere à "desconexão causai” .

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nula, porque não decorrente de decisão motivada, o vício será processual, sendo a prova ilegítima, i Substancialmente, o que não se pode negar é que, em ambos os exemplos, os meios de obtenção de provas foram produzidos violando regras constitucionais e le­ gais, prejudicando seriamente direitos do investigado ou acusado, o que impede que o meio obtido seja utilizado para a formação do convencimento judicial, que somente pode se fundar em provas legalmente produzidas. * Ressalte-se, ainda, que a demarcação entre a violação de regras de direito ma­ terial, de um lado, e de direito processual, de outro, nâo é uma constante no direito comprado. Em profundo estudo, Tereza Armenta Deu destaca a tendência geral de restringir o conceito de prova ilícita aos casos de violações de direitos constitucionais, “em atenção a um critério utilitarista que permita, ao menos, garantir o respeito a tais direitos”, ainda que para isso se tenha que remeter os demais casos de ilicitudes probatórias para outros tratamentos, como o das nulidades ou irregularidades.™ Por certo, entre os direitos constitucionais cuja violação caracteriza uma prova í ilícita, devem ser incluídos os direitos processuais, em especial as garantais constitufecionaís dos acusados, que integram o devido processo legal; juiz natural, contraditório, lãmpla defesa, presunção de inocência, motivação, publicidade etc.®‘ ( 90. Armenta Deu, La prueba ilícita..., p. 80. Aliás, é nesse sentido o art. 1 1 da Ley Orgânica dei Poder Judicial Espanol, que prevê: “Art. 1 1 . No surtirán efecto las pruebas obtenidas, directa o indirectamente, violentando los derechos o Ubertades fundamentales” . No mesmo sentido posiciona-se a doutrina argentina, embora empregando a terminologia “prueba ilegal”, mas no mesmo sentido que a doutrina pátria se refere à prova ilícita. Como explica Carlos Edward (La prueba ilegal..., p. 17), “a prova ilegal se relaciona intimamente com as garantias que estabelece a Constituição Nacional a favor do imputado no desenvolvimento do processo penal; definimos precisamente a prova ilegal como a obtenção de elementos de prova em violação das garantias constitucionais; quer dizer que o núcleo central da prova ilegal radica justamente no quebramento dessas garantias” . ^ 9 1 . Nesse sentido, na doutrina espanhola, posiciona-se Miranda Estrampes (El concepto de prueba..., p. 52): “A vulneraçâo dos direitos fundamentais pode ter lugar não só no mo­ mento da obtenção da fonte de prova, mas também no momento de sua incorporação e produção no processo. Entre estas últimas se encontrara aquelas provas cuja prática não respeitou as garantias constitucionais de contraditório, oralidade, publicidade e imediação, impostas pelo art. 24.2 da Constituição espanhola, e conectadas com o direito fundamen­ tal da presunção de inocência. Dentro da categoria dos direitos fundamentais devemos incluir tanto os denominados substantivos, como os processuais, basicamente contidos no art. 24 do texto constitucional” . Ainda com os olhos voltados para o direito comparado, nos países de common law é comum a distinção entre exclusionaries rules fundadas, de um lado, em extrinsic policys e, de outro, em intrinsic policys. Como explica Damaska (il diritto delle prove..., p. 24), citando NVig^jat^íEvidence in Trials at Common Law, por P. Tillers, Boston, 19 8 3, l, H, p. 689), as exclusionary rules o f extrinsic policy sâo regras que afastam li elementos dotados de valor probatório, para salvaguardar outros valores não conexos com a busca da verdade; as exclusionary rules o f intrinsic policy são entendidas como “as regras de exclusão de provas ditadas pelo interesse de uma correta apuração da verdade". Trata-se, pois, de distinção que não se funda no caráter da norma violada, se de direito material ou

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Emsuma, podem ser definidas como provas ilícitas as provas obtidas, admitidas ou produzidas com violaçào das garantias constitucionais, sejam as que asseguram liberdades públicas, sejam as que estabelecem garantias processuais. Os meios de provas obtidos ilicitamente são inadmissíveis no processo, e, se nele indevidamente ingressarem, devem serdesentranhados. Em um ou em outro caso, jamais poderão ser valorados pelo juiz. O desentranhamento da prova dos autos é apenas o mecanismo técnico para assegurar uma proibição de valoração da prova ilícita. Ressalte-se que tal posicionamento não implica a negação da doutrina clássica sobre o tema, que se formou a partir da respeitabilíssima posição de Ada Pellegrini Grinover sobre as provas ilícitas, mas uma ampliação de seu campo de incidência, na busca de um conceito operacionalmente mais útil para a finalidade de garantir o respeito às garantias constitucionais que asseguram direitos fundamentais, sejam de conteúdo material, sejam de natureza processual. 10.1.11.3 Prova ilícita por derivação Com a reforma de 2008, o CPP passou a ter uma disciplina expressa sobre a prova ilícita por derivação. O § Udoart. 157 prevê que; “São também inadmissíveis as provas derivadas das ilicitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras". Até então, a vedação da prova ilícita por derivação era defendida apenas em sede doutrinária e jurisprudencial. Correta a previsão legal da inadmissibilidade da prova ilícita por derivação. Entretanto, o mesmo não se pode dizer da forma com que o legislador disciplinou as exceções à teoria da prova ilícita por derivação. A denominada Derivative Evidence Doctrine, criada pela jurisprudência norte-a­ mericana, ficou conhecida como Fruit o f the Poisonous Tree, ou seja, frutos da árvore venenosa. A prova ilícita por derivação é uma prova que, em si mesma, é licita, mas que somente foi obtida por intermédio de informações ou elementos decorrentes de uma prova ilicitamente obtida. Por exemplo, encontra-se um cadáver em cumprimento a

processual. Também no direito alemão as chamadas proibições de provas nâo se baseiam na natureza da norma violada. Informa Gõssei (Las prohibiciones de prueba..., p. 15 1) que, quanto às teorias formais da proibição de provas, uma primeira grande divisão distingue i as proibições de práticas de prova e as proibições de valoração da prova. Por sua vez, no ,5 que se refere à proibição de prática de provas a doutrina distingue;( 1 . 1 ) proibição de temas | probatórios, (1.2) proibição de meios de prova, (1.3 ) proibição de métodos probatórios, e ; j (1.4) proibições probatórias relativas. Nesse sentido, cf., também, Roxin, Derecho Procesal Pena!..., p. 191. Sobre o tema, pode ser consultado o profundo estudo de Gõssel, La prueba ^ ilícita en el proceso... p. 1Õ9-258. Tanto na doutrina de com m on law quanto entre os autores alemães, temas eminentemente processuais, como, por exemplo, a vedação do testemunho de ouvir dizer ou a proibição de obrigar o acusado a produzir prova contra si mesmo, sâó | | tratados no conjunto das exdusionary rules e das proibições de práticas de provas.

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um mandado de busca domiciliar (prova em si lícita), mas a informação do local em que o cadáver estava foi obtida por meio de uma confissão mediante tortura. A posição mais razoável e que melhor garante os direitos individuais é aquela que reconhece que a ilicitude da obtenção da prova se transmite às provas derivadas, que, igualmente, devem ser consideradas inadmissíveis no processo, Não se pode admitir a utilização da prova ilícita por derivação, sob pena de burlar a própria inadmissibi­ lidade da prova ilícita.“' É necessário, portanto, admitir um efeito reflexo da prova ilícita, que atinge as provas - em si lícitas - que dela derivam.“® ‘ Todavia, na própria formulação da doutrina norte-americana do fru it o f the p oi­ sonous tree a vedação da prova ilícita por derivação não é absoluta. Admite-se a prova ilícita por derivação nos casos em que há quebra do nexo causai entre a prova ilícita original e a pro va derivada. São apontadas três exceções: ( 1) attenuation o f the taint (2) independent source e (3) inevitable discovery. No tocante à exceção baseada na attenua­ tion o f the taint, há três elementos que caracterizam a referida exceção; the time period I between the illegality and the acquisition o f the secondary evidence (o período de tempo f entre a ilegalidade e a aquisição da prova secundária); the occurrence o f intervening events (a ocorrência de eventos intervenientes) e theflagrancy o f the initial illegality J (a flagrância da ilegalidade inicial).“® Procurando incorporar tais exceções, em sede legislativa, a Lei n° 11.690/2008 tratou da questão nos §§ 1° e 2° do art. 157 do CPP. As exceções à vedação da prova ilícita por derivação vêm previstas na parte final do § 1“: “São também inadmissíveis jis provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo d e cau salidade tre umas e outras, ou quando as derivadas pu derem ser obtidas p or um a fo n te in de­ xe das prim eiras". A A primeira exceção - quando não evidenciado o nexo causai entre umas e ou•as - nâo se trata de uma ressalva à regra principal - de inadmissibilidade das provas aderivadas da ilícita - , mas de sua nào incidência. Se não há um nexo de causalidade Rentre uma prova, isto é, a prova originária ilícita, e a outra, a prova dela derivada, em 92. Como observa Magalhães Gomes Filho (Provas..., p. 267), “ De nada valeriam tais restrições à admissibilidade da prova se, por via derivada, informações colhidas a partir de uma vio­ lação ao ordenamento pudessem servir ao convencimento do juiz - nessa matéria importa ressaltar o elemento profilático, evitando-se condutas atentatórias aos direitos fundamentais e à própria administração correta e leal da justiça penal". 93. No julgamento do já citado HC n° 6 9.912-0/R S, o Min. Sepulveda Pertence (L ex-JS T F 183/300) afirmou que a “doutrina da invalidade probatória do/ruit o f the poisonous tree é a única capaz d e dar eficiência à garantia constitucional da vedação da inadmissibilidade da prova ilícita” . Posteriormente, contudo, o Pleno do STF acolheu a teoria da prova ilícita por derivação, no julgamenfí|tto»âc n° 7 3.351-4 /S P e do H C n° 72.588/PB. Para uma análise da doutrina norte-americana; Robert Bloom e Mark Brodin, Constitutional Crim inal Procedure..., p. 16 7-16 9 . Na doutrina nacional, tais exceções são mencionadas por; Magalhães Gomes Filho, Direito à prova..., 10 8 -10 9; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 16 2 -16 3 .

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si, lícita, nem mesmo se coloca o problema da prova ilícita por derivação. A hipótese, portanto, é dispensável e desnecessária.“’ Já 0 § 2“ do art. 157 do CPP, ao procurar definir o que se considera como fonte independente, foi extremamente infeliz. A regra legal, pretendendo definir a fonte independente, parece ter definido outra exceção, da descoberta inevitável, fazendo-o, porém, em termos tão amplos que pode anular a própria regra geral da vedação das provas ilícitas derivadas: “Considera-se fonte independente aquela que por si só, se­ guindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”. A prova ilícita, conforme já assinalado pela doutrina e jurisprudência anterior­ mente citadas, é inadmissível no processo. Se nele ingressar, será considerada um não ato, ou meio de prova juridicamente inexistente. Da mesma forma, a prova ilícita por derivação não deve ser admitida no processo, salvo se houve quebra do nexo de cau­ salidade entre ela e a prova originariamente ilícita, o que pode ocorrer, por exemplo," nos casos de uma fonte independente ou de uma descoberta inevitável.“* 10.1.12 Prova por videoconferência Aanálise da possibilidade da realização de atos probatórios por videoconferência pressupõe fixar a premissa de que os meios probatórios nào devem se guiar, sempre e necessariamente, por um critério de maior eficácia. Pode haver razões de outra natureza quejustifiquem uma restrição a um meio probatório, ainda que, em tese, ele se mostre eficaz para a reconstrução dos fatos. Assim, por exemplo, não se admite a tortura ou o emprego do “so ro da verdade”, ou ainda de Iie detectors, como meios proba­ tórios legítimos. É nesse contexto que se deve analisar o emprego da videoconferência. A videoconferência é uma forma de produção de meios de prova que possibilita, sem queas fontes probatórias estejam na presença do julgador, uma “contextuai, efetiva e recíproca visibilidade das pessoas presentes em ambos os locais, e a possibilidade de ouvir o que é dito”.“® No Direito Comparado, a realização de atos processuais por videoconferência surgiu nos Estados Unidos, no caso de adolescentes vítimas de crimes sexuais, para evitar novo contato direto comseus agressores. Atualmente, os países europeus também admitem a videoconferência. Na Itália, inicialmente, admitiu-se a oitiva de pessoas que colaboravam com ajustiça; posteriormente, admitiu-se a participação do acusado na videoconferência. Na Alemanha, tem sido admitida a videoconferência, com espe­ cial destaque para a necessidade de motivação do ato, que deve ser excepcional, não bastando para justificá-lo uma presunção de necessidade, decorrente do crime objeto 95. Magalhães Gomes Filho, Provas..., p. 268. 95. Na doutrina; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 130.

97. Voena, Ora/iíá..., p. 119,

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do processo. A Holanda também admite a oitiva de testemunha por videoconferência, com a ressalva de que iião haja descaracterização do rosto da testemunha por recursos digitais. A legislação da Suíça admite, inclusive, sistema de teleconferência apenas com a transmissão de voz, o que se denomina “conferência telefônica”. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem admitido a videoconferência, desde que haja possibilidade de recíprocas e contextuais visualização e audição em ambos os ambientes. Por outro lado, não aceita a prática do ato a distância, se houver apenas a oitiva do som, ou se não for visto o contexto em que a testemunha depõe. Do ponto de vista da compatibilidade da videoconferência com o sistema cons­ titucional, é necessário distinguir o interrogatório, de um lado, e a oitiva de teste­ munhas - ou outro meio de prova - , de outro. No caso do interrogatório, a questão toca diretamente ao exercício da autodefesa. Já no caso de oitiva de testemunhas o problema está ligado mais diretamente ao exercício do contraditório e o direito ao confronto do acusado. p A questão da possibilidade de realização de interrogatório a distância, ou por ivideoconferência, foi objeto de muitas polêmicas, desde que surgiu, entre nós, o Jchamado interrogatório on-line. A doutrina majoritária, desde o primeiro momento, ^manifestou-se contrária à realização de tal forma de interrogatório.™ Diversamente, na jurisprudência, vinha prevalecendo o entendimento de que àis interrogatórios são válidos, desde que asseguradas determinadas condições que ;ârantam a publicidade do ato, a ampla defesa e a comunicação reservada do acusado !òm seu defensor, tudo isso mediante recursos audiovisuais em tempo real.®® Posteriormente, o STF declarou a inadmissibilidade do interrogatório por vi§3conferência porque havia um claro óbice de legalidade para sua realização por il forma."” No caso de réu preso, havia apenas a previsão de que o interrogatório bderia ser realizado no próprio estabelecimento penitenciário em que o acusado se hcontrasse (CPP, art. 185, § 1°). Tratava-se, porém, de ato entre presentes, e não a istância, por videoconferência. O panorama se modificou com a edição da Lei n° 11.900/2009, que alterou o P, passando a prever a possibilidade de realização de interrogatório de acusado Eso por meio de videoconferência (CPP. art. 186, §§ 2° a 6°). Além disso, também Nesse sentido; Oliveira, Resolução n° 05/02..., p. 2-4; Fernandes, A falácia dos..,, p. 1-2; . Weis, Manifestação do conselheiro..,, p. 4-5. O STJ negou a ordem de habeas corpus, por considerar que inexistia demonstração de |j. prejuizo na realização do interrogatório por videoconferência, mas destacou que “a frieza da imagem digitalizada em nada a u x ili o Juiz na captura da verdade real” (RHC n° 6.272/ gr, SP). Posteriormente, contudo, o^ífe^^Ttdfnitiu o interrogatório por videoconferência, desde Ipjque tomadas determinadas cautelas, considerando que a videoconferência “harmonizou pi as exigências da ampla defesa c do contraditório com celeridade, segurança e presteza na lálprodução da prova e com a prolação das sentenças” (RHC n° 15.558/SP). STF, HC n° 88.914/SP, Rei. Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, j, 14/08/2007, v.u.

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possibilitou a realização de “outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, einquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido" (CPP.art. 185, § 8°)."*' Em linhas gerais, é boa a disciplina legal da videoconferência para a realização de interrogatório de acusado preso e para a oitiva de testemunhas presas. Antes da realização do ato. fica assegurado o direito de entrevista do acusado com seu defensor, mediante “canais telefônicos reservados para a comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum” (CPP, art. 185, § 5“). Também se prevê a fiscalização da sala de audiência reservada no estabelecimento prisional destinada à realização de atos por videoconferência (CPP, art. 185, § 6°). Por fim, é coneta a exigência de decisão fundamentada (CPP, art. 185, § 2°), da qual as partes deverão ser intimadas com antecedência de dez dias (CPP, art. 185, § 3°). Há, porém, críticas aos critérios de precedência no que concerne à forma de realização do interrogatório. O CPP estabelece a seguinte ordem quanto à forma de realização do interrogatório do acusado preso cautelarmente: (1) em regra, o interrogatório é realizado no estabelecimento penitenciário; (2) excepcionalmente, no interrogatório se fará videoconferência; (3) finalmente, em caráter subsidiário, o interrogatório em sala de audiência. Ora, a ordem deveria ser diversa. Mesmo no caso de acusado preso, a regra deveria ser o interrogatório entre presentes, na sala de audiência. Não sendo possível o interrogatório em Juízo, deveria ter precedência o interrogatório no estabelecimento penitenciário e, somente em último caso. diante da justificativa concreta da impossibilidade de realização do interrogatório entre presentes, a realização do interrogatório por videoconferência. É inegável que há alguma limitação ao exercício da autodefesa, no caso de inter­ rogatório, ou do contraditório, no caso da oitiva de testemunhas, no ato realizado por videoconferência, se comparados com tais atos realizados entre presentes. Assim, a possibilidade de emprego da rideoconferência somente se justificaria no caso de um rol estrito de crimes graves ou situações concretas que demonstrassem ser necessário o emprego de lal meio tecnológico. Somente nestes casos, além de a utilização da video­ conferência ser adequada e necessária, haveria proporcionalidade, em sentido estrito, entre a restrição legítima que a utilização da videoconferência causaria aos direitos

101. Anteriormente, o primeiro diploma legal que permitiu a realização de atos processuais por videoconferência foi a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, incorporada ao ordenamento nacional por meio do Decreto n° 5.015, de 12/03/2004, cujo art. 18, item 18, ao disciplinar as medidas de assistência judiciária recíproca, admite a oitiva de testemunhas por videoconferência. No plano interno, o Estado de São Paulo editou a Lei Estadual n° 11.8 19 , de 05/01/2005, estabeleceu que “nos procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e audiência de presos, poderão ser utilizados aparelhos de videoconferência, com o objetivo de tornar mais célere o trâmite processual, observadas .. as garantias constitucionais” (art. 1"). A doutrina apontava, contudo, a inconstituciona-| lidade da referida lei: Gomes Filho, Garantismo à paulista..., p. 6; Scarance Fernandes, inconstitucionalidade..., p. 7; Badaró, A Lei Estadual..., p. 2.

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da autodefesa e do contraditório, constitucionalmente assegurados, e os benefícios que o não encaminhamento a juízo de acusado preso trariam para a persecução penal. E, neste ponto, a formulação de hipóteses com elevado grau de generalidade, como alguma das previstas nos incisos do § 2° do art. 185 do CPP, acaba por permitir uma restrição ao exercício daautodefesa, sem lei clara, estrita e precisa, que estabeleça as situações em que tal restrição poderá ocorrer. Em suma, é necessário aprimorar a disciplina da realização do interrogatório s da oitiva de testemunhas por videoconferência, em especial no que diz respeito à ordem de realização do ato a distância, priorizando os atos na sede de juízo, bem como na definição de hipóteses estritas de seu cabimento. De outro lado, não é possível compartilhar a crítica que parte da doutrina formula contra o interrogatório por videoconferência, no sentido de sua incompatibilidade com a CADH. Ao disciplinar o direito de liberdade pessoal, a CADH (art. 7.5), prevê gue “toda pessoa detida ou retida deve s e r conduzida, sem dem ora, à presen ça d e um ju iz ou outra autoridade autorizada p ela lei a exercer as funções judiciais e tem o direito de ser ju lg ad a dentro de um p razo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo” (destacamos). Uma interpretação literal de tal dispositivo ; poderia sugerir que o acusado tem o direito de ser levado, pessoalmente, à presença fló juiz, o que implica a impossibilidade do interrogatório a distância ou por videoj&nferência.*“®Nâo é essa, porém, a melhor interpretação. O que o art. 7.5 da CADH íMtegura é o direito a uma rápida verificação judicial da legalidade da prisão. Hitters p^plica que este dispositivo normativo se liga ao direito de defesa, coincidindo com ^preceituado pelo art. 8.2, b, e tem em vista “a possibilidade de concessão rápida ^ 'lib erd a d e condicional nos casos em que ela seja possível”.*“®Em suma, seria uma antia semelhante àquela prevista na Constituição brasileira, no art. 5“, LXII, que égura que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados Piediatamente a o j u i z - ”í; Por outro lado, do ponto de vista da eficácia do meio, assevera-se ser necessário ® u iz , pessoalmente, “sentir” o acusado, destacando-se a importância de se estar àra a cara” e com o olhar nos olhos do acusado, tendo a possibilidade de ter contato reto com suas reações, uma hesitação, um silêncio, um movimento corpóreo, tudo ) de suma relevância para o juiz formar o seu convencimento. Isso, porém, muitas |es já não ocorreria. Embora sem previsão no CPP, era freqüente a realização de KÍTogatórios por carta precatória. Ou seja, antes da reforma de 2008, além de se Mecar a citação, deprecava-se também a realização do interrogatório, que era o priáro ato após tal cientificaçâo. Todavia, com a mudança do procedimento comum, &do o interrogatório sido d e ^ ^ sa ^ para o final da audiência de instrução, debates : Nesse sentido; Cintra Júnior, Interrogatório ‘on-line'..., p. 3; Lopes, Modernidade inútil, 5; Oliveira, Resolução n° 05/02..., p. 3. Hitters, Derecho Internacional..., t. II, p. 137.

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e julgamento, nâo será útil para a marcha procedimental sua interrupção para que o interrogatório seja realizado por carta precatória. Além disso, nesse caso, a autodefesa não será exercida perante o juiz da causa, mas ante umjuiz que somente realizará tal ato. Obviamente, em tal caso, o interrogatório por videoconferência, perante o juiz do feito, mostra-se um meio de defesa mais eficaz que a simples leitura posterior de um interrogatório reduzido a termo pelo juiz deprecado. Ao mais, é preciso lembrar a advertência de Perfecto Ibanez, no sentido de que “a informação que as pessoas podem transmitir mediante a linguagem gestual ou cor­ poral, que normalmente acompanha as suas palavras, está carregada de ambiguidades e é de muito difícil interpretação sem risco de erro. Mais ainda em um só contato e por quem carece de recursos técnicos para esse fim’’.‘°’ Qualquer juiz que pretenda motivar suas decisões segundo regras racionais de valoraçâo da prova não encontrará lugar para utilização em seu discurso valorativo de elementos cuja utilização nâo seja suscetível de justificação racional. Fora de um modelo de intima convicção, em que impressões subjetivas podem contar mais do que a razão, de nada adiantará, para fins de formação do convencimentojudicial, o contato “cara a cara” do juiz com o acusado. Outro problema diz respeito à oitiva de testemunhas por videoconferência, também admitido pelo § 8° do art. 185 do CPP, no caso de testemunhas presas cautelar­ mente. Interpretando-se estritamente os princípios processuais, a prova testemunhal deve ser produzida na presença das partes e do juiz, instituindo-se um verdadeiro contraditório, com o contato direto do juiz com as provas, em respeito à imediatidade. Isso nâo ocorre, pelo menos nos moldes tradicionais pelos quais se interpretam tais princípios, na oitiva de testemunha por videoconferência. Todavia, tais regras náo são absolutas e admitem temperamentos. Aceita-se a oitiva de testemunhas por carta precatória (CPP, art. 222), carta de ordem ou carta rogatória. Evidente que haverá uma melhor colheita na prova e uma melhor formação do convencimento do juiz, se 0 próprio magistrado que irá sentenciar o feito, colher o depoimento da testemunha residente em outra comarca ou outro país, embora por videoconferência. Também em relação à oitiva de testemunhas por videoconferência, não há in­ compatibilidade com a Constituição ou com tratados de direitos humanos. A CADH, em seu art. 8.2,/, assegura ao acusado o “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, com testemunhas ou peritos, de outras que possam lançar luzes sobre os fatos”. A redação de tal dispositivo tem ins­ piração nitidamente norte-americana. Nos Estados Unidos, a VI emenda assegura o right o f conjrontation, isto é, o contato facc-to-Jace do acusado com as testemunhas. 104. Perfecto Ibanez, Sobre o valor... p. 28. 105. Todavia, como destaca Donatiela Nappi (Primi osservazioni..., p, 150-151), a Suprema Corte dos EU.A vem entendendo que o direito de confrontar-se com a testemunha não é absoluto, podendo sofrer restrições se outros interesses mais relevantes o justificarem. Ao mais, tem-se considerado, também, que o direito de confrontação, que não é absoluto, mesmo assim fica garantido com a possibilidade de exercício do contraditório e da cross

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A principal finalidade do right o f confrontation é impedir que provas realizadas antes do julgamento, na fase pre-trial, sejam utilizadas. Adaptando tais conceitos para o nosso sistema, o que; se impede é que sejam considerados como provas os depoimentos colhidos no inquérito policial, como estabelece o art. 155, caput, do CPP. É da essência da prova oral a sua produção em contraditório. Assim, o direito à prova assegura que a testemunha possa ser submetida ao exame dialético das partes. Não significa, porém, que seja essencial a sua realização por ato entre presentes. t

W. 1.13 Sistemas de valoração da prova Historicamente, há três sistemas de valoração da prova; (1) provalegalou tarifada; (2) íntima convicção ou do julgamento secundum conscientian; (3) livre convencimento ou persuasão racional. No sistema da prova legal, em sua fase rudimentar, prevaleciam as ordálias ou âjuízos de Deus, bem como os duelos. A prova era revelada por Deus, e o juiz apenas IfSeguia tal resultado. Na evolução do sistema da prova legal, passou-se para a prova Atarifada, na qual a lei estabelecia, previamente, quais os meios de prova aptos a pro^var cada fato e qual o valor de cada meio de prova. Sâo resquícios desse sistema no ord mamento brasileiro a necessidade da prova por instrumento público (CPC, art. ”v366) e a vedação da exclusivamente testemunhal em determinados contratos (CPC, art 401). No processo penal, a prova do estado das pessoas somente poderá ser feita na forma determinada pela lei civil (em regra, instrumento público, como certidão de ca amento, certidão de óbito etc. - CPP, art. 155, parágrafo único). No sistema da intima convicção, o juiz julga de acordo com o seu convenci■>■■106010 pessoal, mas não precisa motivá-lo ou justificar o julgado, podendo levar em onta para a formação do seu convencimento, inclusive, provas que não constavam ô processo, ou fruto do seu próprio conhecimento privado. Este sistema foi adotado pelo Código Napoleônico de 1808. No sistema atual, a única previsão de julgamento pela íntima convicção é no Tribunal dojúri, na decisão dos jurados (CPP, art. 472).

f

No sistema da persuasão racional ou do livre convencimento, ojuiz é livre para decidir, mas deverá fazê-lo somente levando em conta as provas existentes no processo iípiod non est in actis non est in mundus). Além disso, o ju iz deve valorar as provas de lÓTina lógica e racional, confrontando umas com as outras, segundo as regras de ló|i^ e experiência. Todo o seu convencimento deverá ser motivado (CR, art. 93, IX ), Mão pela qual também é denominado sistema do livre convencimento motivado. É êfistema adotado no Código de Processo Penal. ^ Importante, contudo, observar que, do ponto de vista histórico, o livre convenci­ mento sofreu uma grande mutaçã|(^^[^^o transformou de uma garantia de liberdade, ^ um instrumento de arbítrio. m |$i examirtation por videoconferência, ainda que a testemunha náo esteja na sala de audiência ê, consequentemente, perante o acusado.

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Processo Penai

0 livre convencimento não era um critério positivo de decisão sobre a verdade, mas um critério alternativo à prova legal, que pré-estabelecia o que era suficiente e necessário para determinar a condenação e a pena (por isso positivo). Todavia, como lembra Ferrajolli, na cultura pós-iluminista, o livre convencimento que era só um princípio negativo, e acabou se transformando, em um critério discricionário de valoraçâo da prova, sendo “uma das páginas politicamente mais amargas intelectualmente mais deprimente da história das instituições penais”.*“* Nesta linha de buscar conter os abusos do livre convencimento e, principalmente, para garantir o princípio do contraditório enquanto elementos formador da prova judicial, é que a nova redação do caput do art. 155 do CPP acaba por limitar a valora­ ção judicial, no que diz respeito aos elementos do inquérito policial: “O juizform ará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas". A interpretação de tal dispositivo, contudo, exige alguns esclarecimentos pre­ liminares. 70.7.13.1 O valor dos elem entos inform ativos d o in qu érito policial Para analisar o valor dos elementos informativos colhidos no inquérito policialque não produzidos em contraditório - terão no futuro processo penal, a novamente é relevante a distinção entre provas pré-constituídas, de um lado, e constituendas, de outro. Toda vez que o elemento de informação colhido no inquérito policial diga respeito a umafonte real, por se tratar de uma prova pré-constituída, é perfeitamente possível ao juiz penal valorá-lo no momento de sentenciar. Assim, por exemplo, contratos, recibos, cartas e extratos bancários que tenham sido obtidos e juntados aos autos do inquérito policial serão passíveis de valoração. Isso porque, as provas pré-constituídas não exigem o contraditório em sua formação. Será necessário, apenas, que tais documentos sejam, no curso do processo penal, submetidos ao contraditório.*™ Neste caso, inclusive, por nào se tratar de prova produzida em contraditório, nào se aplica sequer a ressalva de que não se poderá utilizar ex clu siv am en te tais ele­ mentos para a formação do convencimento judicial. Será perfeitamente possível que aafirmaçâo sobre um fato seja provada exclusivamente com documentos que tenham sido obtidos no inquérito policial. Por exemplo, comprovar que eram os sócios da empresa, com base em um contrato social juntado na investigação, ou comprovara

106. Diritto e ragione

..., p.

118.

107 Embora o Código de Processo Penal não tenha regra expressa, deve ser aplicado, por analogia, o art. 398 do CPC, que prevê a manifestação da parte contrária, no prazo de cinco dias, toda vez que uma das partes junte documento aos autos, o que é uma decorrência princípio do contraditório.

Da prova

417

data de um determinado negócio de compra e venda, de acordo com a escritura obtida durante o inquérito. Já no caso de provas constituendas, que decorram d e fontes pessoais e devam ser produzidas em contraditório de partes, perante ojuiz da causa, em regra, não poderá ser valorado na sentença um elemento gnoseológico obtido em inquérito. Isso porque a oitiva de tal pessoa - testemunha ou vítima - pela autoridade policial não se dá em contraditório de partes e perante um juiz terceiro e imparcial. Quando muito, tal depoimento poderá servir de confronto, com outro prestado em contraditório de partes perante ojuiz, para, a partir de contradições e divergências de conteúdo, dar-se maior, menor ou mesmo nenhum peso, por falta de credibilidade do depoente, ao conteúdo do depoimento. Jamais, porém, se poderá optar por uma cômoda aceitação da versão proferida inquisitorialmente no inquérito, ao invés do depoimento de conteúdo diverso prestado em contraditório de partes. Seria ignorar totalmente o potencial heurístico do contraditório, enquanto mecanismo dialético de verificação da resistência de uma tese a hipóteses conflitantes. Essa distinção é fundamental para uma interpretação da regra geral da primeira parte art. 155, caput, do CPP, quando prevê: “O ju iz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. A toda evidência, lex dixi plus quam voluit. A restrição não dita pelo legislador, mas fdecorrente do regime de aplicação diferenciada do regime do contraditório em relação ^ps meios de prova hauridos de fontes reais é; “o ju iz poderá formar a sua convicção ela livre apreciação da prova pré-constituída colhida na investigação, desde que a |úbmeta ao posterior contraditório judicial”.

W. 1.13.2 O valor dos elementos não produzidas em contraditório: corroboração p O CPP não veda a valoraçâo dos elementos de informação colhidos no inquérito Ipolicial. Muito menos, prevê a exclusão física dos autos do inquérito policial, depois |e instaurado o processo penal. A restrição prevista no tantas vezes lembrado art. 155 do CPP, apenas impossibi­ lita o juiz formar o seu convencimento exclusivamente*« com base nos elementos de aformação colhidos no inquérito policial.*“®Não se trata, pois, de regra de exclusão O Projeto de Lei n° 4.205/2001, que se transformou na Lei n° 11.690/2008, que alterou a redação do caput do art. 155 do Código de Processo Penal, em sua redação originária não trazia o advérbio “exclusivamente". A redação era: “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova p ro d jj^ a em contraditório judicial nào podendo fundaraentar sua decisão nos elementos in fo r® u ^ 's colhidos na investigação, ressalvados as provas ^ cautelares, irrepetiveis e antecipadas E, como a frase era construída em sentido negativo, a diferença era enorme! Na versão inicial, os elementos informativos colhidos no inquérito policial simplesmente não podeP | “riam ser valorados, nem mesmo em caráter de corroboração ou confirmação. Havia, pois,

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^

absoluta, mas de limite legal à valoração, como uma espécie de prova legal negativa. O legislador estabelece a insuficiência probatória do inquérito para, isoladamente, fundamentar uma condenação penal. Há, pois, a necessidade de interpretar o advérbio exclusivamente, e duas exe­ geses diversas se apresentam: (1) considerar que a possibilidade de valoração de ele­ mentos de informação produzido sem contraditório - ainda que em sentido de mera corroboração - é inconstitucional, por violar a garantia do contraditório, bem como incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, que assegura ao acusado o direito a confronto da prova decorrente de fonte oral; (2) sem reconhecer a inconstitucionalidade e a incompatibilidade convencional, procurar dar uma inter­ pretação conforme a Constituição e, por isso mesmo, restritiva da referida disposição. 0 segundo ponto de vista é o que tem prevalecido. Numa exegese mais positi­ vista, interpreta-se o novo caput do art. 155, com o acréscimo da palavra exclusiva­ mente. que, como já visto, tem um sentido bastante diverso da redação originária do projeto de lei. Ou seja, os elementos de informação do inquérito policial poderão ser valorados quando nâo forem exclusivos, isto é, quando estiverem corroborados por provas produzidas emjuizo.'“’ De certo modo, antes mesmo da Reforma de 2008 do uma proibição absoluta de valoração. Magalhães Gomes Filho (A prova ..., p. 251), um dos autores do anteprojeto, explica: “Apesar do estabelecimento dessa importante distinção, vinculando a própria noção de prova ao atendimento do contraditório judicial, o legislador de 2008 nâo acolheu integralmente a proposta do Poder Executivo, que vedava, de forma absoluta, a utilização das informações trazidas pela investigação na formação do convenci­ mento do juiz. Ao contrário, ao introduzir na nova redação do art. 155 do CPP o advérbio exclusivamente, a Lei 11.690 permite que elementos informativos da investigação possam servir de fundamento ao juízo sobre os fatos, desde que existam, também, provas produ­ zidas em contraditório judicial. Em outros termos: para chegar ao resultado da prova, ou seja, à conclusão sobre a veracidade ou falsidade de um fato afirmado, o juiz penal pode servir-se tanto de elementos de prova (produzida em contraditório) como de informações trazidas pela investigação. Só não poderá se utilizar, diz a lei, exclusivamente de dados informativos da investigação”. 110. Nesse sentido, a jurisprudência do STF: “Os depoimentos retratados perante a auto­ ridade judiciária foram decisivos para a condenação, não se indicando nenhuma prova conclusiva que pudesse levar à responsabilidade penal do paciente. II - A tese de que há outras provas que passaram pelo crivo do contraditório, o que afastaria a presente nulidade, náo prospera, pois estas nada provam e sáo apenas indícios. 111 - O acervo probatório que efetivamente serviu para condenação do paciente foi aquele obtido no inquérito policial. Segundo entendimento pacifico desta Corte não p od em subsistir co n d en a çõ es p en ais/an dadas unicam ente em prova produzida na fa s e do in qu érito p o lic ia l, sob p e n a d e g rav e afronta às g a­ rantias constitucionais do contraditório e da plenitude de defesa.” (STF, HC n° 103.660/SF).

Igual é 0 posicionamento do STJ: “ 1. Segundo entendimento desta Corte, a p rova idônea para animar sentença condenatória deverá s er p rod u zid a cm ju íz o , sob o criv o d o con traditório e da am pla defesa, de m oda que se m ostra im possível in v ocar p a r a a co n d en a çã o , som en te elementos colhidos no inquérito, se estes não fo re m con firm ad os d u ran te o cu rso d a instrução criminal.

2. Não existindo, nos autos, prova judicializada suficiente para a condenação, nos termos do que reza o artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal, impõe-se a absolvição do recorrente. 3. Recurso especial provido para, reconhecendo a violação aos artigos 155

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CPP, já se encontrava na jurisprudência o entendimento de que as informações da fase investigatória nãp constituem base suficiente para uma condenação, mas podem ser levadas em conta se forem “confirmadas”, ainda que parcialmente, por provas colhidas em contraditório.*" Ou seja, se os elementos de informação produzidos no inquérito policial fossem confirmados por provas produzidas em contraditório, poderiam fundamentar uma sentença condenatória. Todavia, neste caso, o valor de tais “elementos de informação” serã praticamente nenhum! Se há outras provas produzidas em contraditório ju d i­ cial, o que o juiz valora são estas “provas”, e nào os elementos informativos colhidos durante o inquérito. Neste caso, pOrém, é preciso estabelecer o sentido da corroboraçâo exigido pelo art. 155 do CPP."' Inicialmente, como jã exposto, tal corroboraçâo só será exigida quanto se tratar de fonte pessoal de prova, isto é, no caso de depoimento de testemu­ nha ou de declarações do ofendido prestadas inquisitonalmente no inquérito policial. De outro lado, o advérbio exclusivamente do art. 155 do CPP deve ser entendido em |seu sentido substancial, e não formal. Tanto os elementos de informação do inqué[rito quanto as provas em contraditório devem ser convergentes, apontando para um ^convencimento judicial no mesmo sentido. Não será possível ao julgador, no caso em e 386, inciso VII, ambos do Código de Processo Penal, absolver o recorrente (STJ, RESp 1.253.537/SC, 6 Turma, Rei. Min, Maria Thereza de Assis Moura, j. 01.09.2011, v.u); “O reconhecimento do Paciente pela testemunha na fase do inquérito policial por fotografia, além de não ter sido confirmado em juízo, restou isolado dos demais elementos probantes, na medida em que nenhuma outra prova foi apontada pelo juízo sentenciante ou pelo Tribunal para corroborar a participação do Paciente no delito. 2. Ordem concedida para, cassando a sentença e o acórdão impugnados, absolver o Paciente do delito imputado, nos termos do art. 386, inciso IV, do Código de Processo Penal" (STJ, HC 115.598/RJ). No mesmo sentido: STJ, HC 118.296/SP, HC 124.438/ES. Nesse sentido: TRF-1 Região, ACR 23962/MG. Em sentido contrário, é digno de reprodução o voto do Des. Amilton Bueno de Carvalho em que se destacou; “[...) valor algum tem a prova oral oriunda da fase policial. É que lá não são observadas as mínimas garantias de um processo penal democrático e garantista - autoridade equidistante, pu­ blicidade, contraditório e ampla defesa logo, imprestáveis ao processo. Tais elementos desempenham único papel; instrumental ao oferecimento da denúncia e nada maisl" (TJRS, ACr no 70018347765, 5’ Cãm. Crim., Rei. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 07,03.2007, v.u), p.2. Evidente que a análise de se houve efetiva corroboraçâo ou convencimento isolado irá depender da motivação da sentença. E, neste caso, o sistema mostra-se imprestável para o Tribunal do Júri, que com votos não motivados impede tal controle. Se, nos debates perante os jurados, tais elementos de informação puderem ser mencionados ou lidos livremente pelas partes e, assim, levadas em consideração pelos juizes leigos, que não estão obrigados a motivar suas decisões sobre os fat^s^gei^ossível uma condenação baseada exclusivamente com base nos elementos de inforiliaçab colhidos no inquérito policial. Deverá, pois, ser anulado o julgamento. Solução diversa foi dada pelo TJRS, no seguinte julgado, em que foi dado provimento ao recurso e absolvido acusado que havia sido condenado pelo júri, somente bom base em provas produzidas no inquérito policial, sem corroboraçâo em juizo (Ap, Crim. n° 70051474591).

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que haja provas produzidas em contraditório em um sentido, e elementos colhidos no inquérito no outro sentido, ficar com essa versão e, com base nela, condenar o acusado. Nesse caso, substancialmente, o acusado terá sido condenado exclusivamente com base nos elementos de formação colhidos no inquérito, sem a observância do contraditório. Por fim, é de se ver que a corroboração das provas deve ter por objeto uma mesma afirmação sobre fato juridicamente relevante para a decisão da causa, independente­ mente deser o mesmo tipo de prova, ou a mesma fonte de prova. Assim, as declarações do ofendido, na polícia, sobre quem seja o autor do crime, podem ser corroboradas pelo depoimento judicial de uma testemunha, ou vice-versa. O depoimento da tes­ temunha A, prestado no inquérito policial, sobre a discussão que antecedeu o delito, pode ser corroborada pelo depoimento, em juízo, da testemunha B, ou o contrário.

W. 1.13.3 Exceções ao contraditório: as provas cautelares, antecipadas e irrepetiveis Resta analisar as três exceções legais em que o legislador permite que ojuiz valore, diretamente, os elementos informativos colhidos no inquérito policial, aparentemente, sem nem mesmo a necessidade de corroboração por prova judicial. 0 tantas vezes jã citado parágrafo único do art. 155 prevê três exceções em que os elementos de informação produzidos no inquérito policial e, portanto, sem obser­ vância do contraditório, poderão ser valorados pelo juiz e fundamentar um decreto condenatório: “ressalvadas as provas cautelares, não repetiveis e antecipadas”. Ou seja, a regra é que, para a formação do convencimentojudicial, são valorá­ veis apenas as provas produzidas em contraditório. Os elementos de informação não contraditórios, colhidos no inquérito policial, não têm valor pleno, somente sendo dotados de força corroborativa, quando existentes outras provas no mesmo sentido, produzidas em contraditório. Por outro lado, no caso das três exceções - provas cautelares, antecipadas e irrepetiveis - não se exige a confirmação por outros meios, sendo tais elementos bastantes em si para uma condenação, porque ressalvados na parte ftnal do referido dispositivo legal. Em linhas gerais, a “prova” irrepetível nào é produzida nem submetida ao contra­ ditório; a prova cautelar é produzida sem observância do contraditório, normalmente durante o inquérito policial, sendo posteriormente apenas submetida a contraditório judicial; as provas antecipadas, são produzidas em juízo, com contraditório anteci­ pado, ainda que se esteja na fase do inquérito policial. Na prova cautelar, a urgência na obtençáo ou no exame do elemento probatório faz com que não se possa instaurar um contraditório contemporâneo a sua produção. Aprodução de uma prova em contraditório demanda tempo que, nesse caso, é inimigo da urgência. Sempre lembrado é o exemplo da prova pericial a incidir sobre um elemento pessoa ou coisa - perecível ou mesmo cujas caracteristicas se alterem com o passar do tempo (p. ex.: exame necroscópico ou perícia no caso de lesões c o r p o r a i s ) . Assim, |

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não há possibilidade de nomear um perito, intimar as partes, aguardar a formulação de quesitos, encaminháTlos ao perito... Faz-se a perícia, normalmente, apenas com quesitos formulados pela autoridade policial. Depois de produzido o laudo, e juntado aos autos, na fase processual, o resultado dessa perícia será submetido a contraditó­ rio judicial. As partes poderão pedir esclarecimentos aos peritos, formular quesitos complementares, nomear assistente técnico para apresentação de parecer, ouvir o perito em audiência. Evidente que, ainda assim, as possibilidades oferecidas por um contraditório diferido são sempre menores que aquelas decorrentes de uma prova produzida em contraditório. Esta, contudo, nâo é uma característica ontológica da prova pericial. Há provas periciais que não tem tal caráter de urgência e, portanto, são cautelares. Por exemplo, a perícia para avaliação do valor da coisa furtada ou um exame grafotécnico A urgência também costuma estar ligada aos meios de obtenção de prova que, também, necessitam da surpresa para o seu êxito. É o caso, por exemplo, das interceptações telefônicas ou buscas e apreensões. Impossível, em tais casos, um contraditório prévio ou o contemporâneo à obtenção do meio. Mas, a urgência também não é carac­ terística indefectível dos meios de obtenção de prova. É possível que uma decisão que afaste o sigilo bancário ou fiscal, seja precedida de contraditório das partes. Como em tais meios de obtenção de prova, os dados a serem obtidos não podem ser acessados, alterados ou destruídos pelo investigado, já que estão armazenados com terceiros, a regra é que se produzam em contraditório de partes. éfu Passando às provas irrepetíveis, elas decorrem de uma situação de contraditório impossível, em razão de causas que incidem externamente sobre a fonte de prova, im­ pedindo sua aquisição processual em contraditório. A impossibilidade pode decorrer de causa natural (por exemplo: a morte da testemunha) ou de um comportamento ilícito do acusado ou de terceiro (por exemplo: violência, ameaça, suborno ou mesmo assassinato do depoente). Prevalece o posicionamento no sentido de que a irrepetibilidade que autoriza a valoração judicial do elemento de prova colhido sem contraditório é aquela que decórre de fatores imprevisíveis, quando da sua obtenção. Isso porque, se era previsível a ocorrência de fator externo que poderia tomar irrepetível o ato (por exemplo: a morte dá testemunha enferma), o correto é produzir antecipadamente a prova, em juízo e êm procedimento contraditório,*" nos termos do art. 225 do CPP.**® Assim, por exemplo, seria uma prova irrepetível, caracterizando uma das exceções ^parte final do caput do art. 155 do CPP, seria admissível a valoração do depoimento déhma testemunha, ou seja, de uma prova constituenda, obtido em inquérito policial 113. Magalhães Gomes Filho. Prova..., p. llf. o art. 225 prevê que: “Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermi°** P*” velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento”.

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e, portanto, sem contraditório de partes, que quando prestou seu depoimento fosse jovem e saudável, mas vitimada por um acidente de carro, veio a falecer."® Por fim, era relação à prova antecipada, a urgência em sua realização decorre do risco conhecido e previsível de perecimento da fonte de prova ou mesmo da grande dificuldade em produzi-lo no momento procedimental adequado. Assim, por exemplo, no caso de uma testemunha presencial de um crime que seja muito idosa ou esteja acometida de grave e irreversível doença, ou mesmo no caso de uma vítima de tenta­ tiva de homicídio que apresenta risco de morte, não é possível aguardar o término do inquérito policial, o oferecimento da denúncia, a citação e resposta do acusado e, por fim, a designação de audiência de instrução ejulgamento para, só então, ouvir tais pessoas que tem relevantes informações sobre os crimes. Evidente que, em tal caso, pode haver restrições - em graus variados - ao con­ traditório. Pouco prejuízo ocorrerá, se tal antecipação já se der no curso do processo, com denúncia oferecida. Isso porque, neste caso, já se sabe quem é o acusado e o fato sobre o qual terá que se defender. Mais difícil será a situação, no caso de antecipação da prova na fase do inquérito policial, pois os fatos poderão ainda náo estar perfei­ tamente delimitados, ainda que já haja um investigado indiciado ou alguém contra quem tenha sido determinada uma medida cautelar ou meio de obtenção de prova. De qualquer forma, trata-se de uma situação que possibilita o contraditório em momento contemporâneo a produção da prova, ainda que esta se dê antecipadamente, em razão dos riscos acima narrados. A distinção entre prova irrepetível e prova antecipada tem relevantes efeitos práticos. Na prova irrepetível, não houve contraditório na sua produção e náo poderá mais haver, porque a fonte de prova, por fatores imprevisíveis, não mais está dispo­ nível. Já na prova antecipada, fatores previsíveis de risco de indisponibilidade da fonte de p r o v a justificaram sua produção antecipada, mas em contraditório de partes e perante um juiz. Em suma, numa não há contraditório; noutra, ele se realiza antes do momento normal. Com se observa, o ponto mais sensível em termos de valoração é a “prova irre­ petível”."* Isso porque, náo é produzida em contraditório, seja antecipado, seja em seu momento normal, seja diferido. Das três exceções, é a de mais baixo potencial epistemológico, na medida em que não se trata de atenuação, mas de ausência de contraditório. Por tal motivo, e mesmo diante do texto legal, não seria desarrazoado, na hipótese de prova irrepetível, ainda que se admita que esse elemento de informação produzido sem observância do contraditório possa ser valorado pelo juiz no momento de formação do seu convencimento, questionar o seu valor ou força probante. Seria possível con115. Magalhães Gomes Filho. Prova.... p. 200. 116 Justamente porque nâo foi produzida em contraditório, não se trata de prova em sen­ tido técnico, mas de ato de investigação realizado sem contraditório, cuja fonte tomou-se indisponível, sendo irrepetível a produção do meio de prova correspondente.

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denar um acusado, com base exclusivamente em no depoimento de uma testemunha prestado no inquérito policial, cuja posterior produção em contraditório judicial se mostre impossível (por exemplo: porque a testemunha faleceu)? Se a resposta for positiva, aceitando sua valoraçâo plena, sem qualquer ressal­ va, a parte final do art. 155, caput, do CPP, estará violando a garantia do art. 8 (2 ) ( 0 da CADH, pois o acusado poderá ser condenado, exclusivamente, com base em um depoimento de uma testemunha que não estava presente no Tribunal, não lhe sendo dada oportunidade de inquiri-la. Preferível, portanto acolher a solução intermediária quem vem sendo adotada pela Corte Europeia de Direitos Huma­ nos, que considera incompatível com o art. 6 (3 )(d ) da Convenção Europeia de Direitos H um ano"’ uma condenação penal fundada exclusivamente ou de forma i preponderante em depoimentos prestados antes da fase judicial, sem observância do contraditório."® Em conclusão, as provas cautelares e as provas antecipadas, se produzidas du­ rante o inquérito policial, embora impliquem restrição ao contraditório, poderão ser jyaloradas, isoladamente, pelo juiz. Já as provas irrepetiveis, por se tratar de situação de fopn traditório impossível, têm baixíssimo potencial heurístico, razão pela qual, mesmo idiante da exceção da parte final do art. 155, caput, do CPP, não serão suficientes para mdamentar uma condenação penal, sob pena de violar o art. 8 ( 2 )(0 da Convenção tmericana de Direitos Humanos. |0.7.14 Ônus da prova"® p.

10.1.14.1 N o ç õ e s g e r a is

O ônus envolve as noções de poder e de liberdade, e, justamente por isto, aprola-se das faculdades. Há ônus quando o exercício de uma faculdade é condição ^l^ra se obter uma determinada situação de vantagem ou para impedir uma situação fevantajosa. O ônus, portanto, é uma faculdade cujo exercício é necessário para a jnsecução de um interesse, É sempre lembrada a posição de Goldschmidt, segundo a qual os ônus são um jperativo do próprio interesse, que se manifestam sob a ameaça de um prejuízo.*™ idavia, o desincumbir-se de um ônus pode não sõ evitar consequências desfavoráveis, imo resultar em uma vantagem. O referido dispositivo consagra o direito do “acusado a interrogar as testemunhas de . acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação". CEDH, Caso Barberá, Messegué e J ^ a r d o * Espanha, sentença de 06.12.1988. J.; Já analisamos o tema era obra especInSlíÔnus da prova no processo penal. São Paulo; RT, 2003), cuja leitura se sugere ao leitor que deseja um estudo mais aprofundado da questão. ^tjPara evitarmos repetições, deixaremos de incluir nas notas a referência ao nosso posicioi-namento em tal estudo, c Goldschraidt, leoria general... p. 82-83.

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Ônus é um imperativo do próprio interesse; uma faculdade cujo exercício é condição necessária ou relevante para a obtenção de uma posição de vantagem ou para não sofrer um prejuízo.*®' Existem ônus perfeitos (ou absolutos) e imperfeitos (ou relativos). Ônus perfeito ou absoluto é uma faculdade que, se nâo for exercida pela parte, necessariamente lhe acarretará uma desvantagem ou a privará de uma vantagem (por exemplo, o ônus de recorrer). Já os ônus imperfeitos ou relativos são faculdades que, sea parte delas nâo se desincumbir, poderá lhe advir uma desvantagem, ou poderá implicar a privação de uma vantagem. Todavia, a desvantagem não será uma consequência necessária e obrigatória do não se desincumbir do encargo (por exemplo, o ônus da prova).

10.1.13.2 Ônus da prova: espécies Transportando esses conceitos para o campo probatório, o ônus da prova é a faculdade de os sujeitos parciais produzirem as provas sobre as afirmações de fatos relevantes para o processo, cujo exercício poderá levá-los a obter uma posição de vantagem ou impedir que sofram um prejuízo. A Constituição assegura a presunção de inocência, que tem como um dos seus aspectos fixar a regra de julgamento do processo penal: in dubio pro reo. O ônus da prova não é um ônus absoluto. Há duas atenuações importantes do onus probandi, que fazem com que o nâo se desincumbir de tal encargo não gere, como 121. Os ónus, embora apresentem alguma semelhança com as obrigações e com os deveres, com estes não se confundem. Coube inicialmente a Goldschmidt (Tcoría general..., p. 82), com base nos imperativos processuais, elaborar tal distinção; os deveres são imperativos impostos pelo interesse de um terceiro ou da comunidade, enquanto os ônus são um im­ perativo do próprio interesse. As obrigações, enquanto imperativos do interesse do credor, geram uma posição juridica negativa para o devedor, era decorrência da qual o credor, titular do direito subjetivo correspondente, pode exigir-lhe o cumprimento da obrigação. Aquele que descumpre uma obrigação pratica um ato ilícito, em decorrência do qual lhe pode ser imposta uma sanção para o adimplemento da prestação não cumprida, sujeitando-o à execução forçada. Os deveres são um imperativo perante uma coletividade ou perante toda a sociedade- Trata-se, também, de uma posição jurídica passiva, que acarreta uma desvantagem para aquele-em relação a quem foi instituído o dever O dever pressupõe a existência de um sujeito ativo a quem interessa o seu cumprimento pelo sujeito passivo. Por fim, os ônus são um imperativo do próprio interesse. E, neste caso, estão situados no campo da liberdade, pelo que representam posições jurídicas licitas, mesmo quando há o seu descumprimento. Ao direito subjetivo corresponde uma obrigação. O poder tem como correlato a sujeição. Já perante o ônus, não há qualquer posição contraposta. Não há outro sujeito que não o próprio onerado. Ao mais, a parte contrária nào quer outra coisa senão que o onerado náo se desincumba de seus ônus. O cumprimento do ônus interessa ao próprio sujeito onerado, enquanto, na obrigação, a sua satisfação interessa ã outra parte, titular do direito subjetivo correspondente. O inadiraplemento de uma obrigação ou de um dever gera uma situação de ilicitude e traz como conseqüência a possibilidade de uma sanção. Já o descumprimento de um ônus configura um ato hdio e não é sancionado. A diferença, portanto, está na titularidade do interesse em relação a quem ocorrerá o prejuízo ou a conseqüência negativa, se o interesse é alheio, há obrigação; se próprio, há ônus. f |

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consequência inexorável, o julgamento desfavorável; (1) os poderes instrutórios do juiz; (2) a regra da comunhão das provas. Em um sistema em que somente as partes pudessem produzir provas, sendo o juiz absolutamente inerte, o nào se desincumbir do encargo de provar necessariamente acarretaria a derrota processual. Todavia, nos sistemas em que o ju iz possui poderes instrutórios, ainda que de forma subsidiária, o ônus da prova sofre uma atenuação. Como facilmente se percebe, mesmo que a parte não se desincumba de seu ônus sub­ jetivo, é possível que o julgamento não lhe seja desfavorável, porque o ju iz acabou determinando a produção de uma prova que demonstrou um fato favorável à parte que se omitiu em prová-lo. Por exemplo, mesmo que o Ministério Püblico não tenha produzido prova suficiente da autoria, é possível que ojuiz determine a produção de uma prova de ofício, que demonstre que o acusado cometeu o crime. Por outro lado, há a regra da comunhão ou aquisição da prova; uma vez produzida a prova, o juiz poderá valorá-la, independentemente da parte que a produziu. Assim, a prova produzida por uma parte poderã ser valorada em favor da outra parte. Diante de tal regra, ainda que uma das partes não se desincumba de seu ônus subjetivo, é possível que o julgamento não lhe seja desfavorável, porque a outra parte acabou produzindo uma prova contrária ao seu próprio interesse e favorável à parte que se : omitiu em prová-lo. ' ff A doutrina costuma distinguir dois aspectos do ônus da prova; o subjetivo e o 7 objetivo. O ônus da prova subjetivo diz respeito a quem deverá provar cada fato. f Consequentemente, determina quem sofrerá a consequência negativa pelo fato não y,provado, lendo a função de exercer uma pressão psicológica sobre a parte onerada, T direêionando a sua atividade probatória. Tal influência se dá, normalmente, ao longo 1 da fase instrutõria. De outro lado, o ônus da prova objetivo disciplina como o juiz d e v e r á julgar, no momento de sentenciar, se estiver em dúvida sobre fato relevante. Trata-se de uma regra de julgamento, que tem como destinatário o juiz. A regra de ;•julgamento, ou ônus objetivo da prova, só é aplicada no momento de sentenciar. No processo penal, diante da garantia constitucional da presunção de inocência, •'.órião há distribuição do ônus da prova, que pesa todo sobre a acusação. Trata-se de ■.Kümônus da prova unidirecional, não havendo, pois, distribuição do ônus da prova, mo ocorre no processo civil. Além disso, em decorrência da garantia constitucional presunção de inocência, também nâo são admitidas no processo penal presunções ;ais ou judiciais contra o acusado. 1 0.1.14.3 Ô nus d a p rov a q u a n to a o s ele m e n to s d o crim e A doutrina é uniforme no sentido de.que a dúvida sobre a conduta típica, inuindo em tal conceito a ação ou a ornBsaÔ’, bem como o nexo causal com o resultado aralístico, quando estes forem exigíveis, levará a um julgamento absolutório. O ônus da prova da autoria delitiva, bem como da participação no concurso de géntes, pesa sobre a acusação. Curiosamente, contudo, tem prevalecido na doutri-

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na e na jurisprudência o entendimento de que, se o acusado alega um álibi, pesaria sobre ele o ônus da prova de demonstrar que estava em outro lugar, no momento da prática delitiva. Não é 0 posicionamento correto; invocar um álibi é negar a autoria delitiva. Tra­ ta-se de negativa per positionem. A negativa pode ser simples (por exemplo, nào fui eu 0 autor do crime) ou pode ser uma negativa per positionem ou positiva (por exemplo, não fui eu, pois estava em outro país no momento do crime). Ora, se o álibi não com­ provado, ou até mesmo o álibi provadamente mendaz, significasse o reconhecimento da autoria, seria muito melhor nunca alegar qualquer álibi, simplesmente negando a autoria, pois o ônus da prova continuaria a pesar sobre a acusação. Por outro lado, o fato de 0 álibi ser mentiroso nâo significa, por si só, como conseqüência inexorável, que quem alega o álibi seja o autor do fato imputado. Não há a conseqüência lógica de ser 0 acusado o autor do crime. Isso somente ocorreria se não houvesse uma terceira possibilidade: ou o álibi é verdadeiro e o acusado não praticou o delito, ou o álibi é falso e 0 acusado foi o autor do crime. Por exemplo, é perfeitamente possível que alguém que está sendo acusado de um crime que não cometeu, pois estava na casa de sua amante, alegue um álibi falso, por motivos óbvios. Demonstrada a falsidade do álibi (por exemplo, que não estava no clube com amigos), não seria correta a conclusão de que 0 acusado é o autor do crime. No tocante ao elemento subjetivo do delito, a doutrina e ajurisprudência têm distinguido, para efeitos de distribuição do ônus da prova, o dolo da culpa stricto sensii. A acusação tem o ônus de provar o elemento subjetivo do delito, quando se tratar de forma culposa. Assim incumbirá ao Ministério Público ou ao querelante o ônus da prova da negligência, imprudência ou imperícia do acusado.'" Quanto ao dolo, prevalece a posição de que ele é presumido, a partir da prova dos demais elementos que compõem o tipo penal. Diante desta presunção, seria o acusado quem teria o ônus de provar que não agiu dolosamente. Discorda-se de tal entendimento. O dolo não é presumido. Não basta a prova dos elementos objetivos do delito, para que deles se presuma o dolo. Por ser um esta­ do anímico, o dolo nào é um fato que possa ser objetivamente demonstrado. Assim, para a sua demonstração, parte-se de elementos objetivos exteriores que permitirão inferir o elemento subjetivo. São os fatos e, principalmente, a forma pela qual o autor cometeu o delito que indicam o elemento subjetivo do agente.'™

122. Na doutrina: Noronha, Curso ... p. 117; Mirabete, Processo Penal, p. 283; CamargoA nha, Da prova..., p. 11; Morais e Lopes, Da prova..., p. 36; e Lopes, O õnus..., p. 152. 123. Nesse sentido; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 289; Noronha, Curso .... p-U Mirabete, Processo Penal, p. 283; Camargo Aranha, Da prova..., p. 11; e Lopes, O ônus...,j p. 152. Observe-se, ainda, que a presunção diz respeito apenas ao dolo genérico, e nâo ao | dolo especifico, que deve ser provado pela acusação: Manzini, Trattato di diritto penale..., p l,p , 514. 1 124. Embora represente posição minoritária, merece destaque o acórdão do extinto TACrimSP,| em que o Juiz Wilson Barreira assim decidiu: “para a demonstração do dolo direto, cai

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A presunção do dolo representa flagrante violação da presunção de inocência. Presumir a ocorrência do dolo é estabelecer uma presunção contrária à presunção de inocência, o que não se pode admitir. Nem a lei nem a jurisprudência podem alterar a regra de julgamento do processo penal consubstanciada no in dubio pro reo. A presun­ ção de dolo nada mais é do que uma regra de julgamento no sentido de que, bavendo dúvida se o acusado agiu ou não dolosamente, deverá ser condenado, pois incumbia a ele provar que não agiu dolosamente. Em última análise, representa a adoção do in i dubio pro societate, que faz incidir sobre o acusado o ônus da prova de sua inocência. >■ A questão da dúvida sobre as excludentes de ilicitude é um dos temas que mais têm suscitado debates quanto ao âmbito de aplicação do in dubio pro reo. Se bouver certeza de sua ocorrência, a absolvição é inquestionável. Por outro lado, em um processo em que nâo tenba sido alegada uma excludente ou que não baja qualquer prova de sua ocorrência, deve ser ela considerada não provada, sendo condenado o acusado, se provados os demais elementos do delito e a sua autoria. Toda a discussão .Surgia quando bavia dúvida sobre a existência de uma excludente de ilicitude. Em butras palavras, tendo sido alegada, por exemplo, a legítima defesa e, bavendo dúvida sobre sua ocorrência, ojuiz deverã proferir uma decisão condenatória ou absolutória? A posição predominante na doutrina era a de que a dúvida sobre a excludente desfavorecer o acusado: provados todos os elementos do delito, se houvesse Úvida sobre a existência de uma excludente, o acusado devia ser condenado.*®’ Era la transposição simplista da regra, segundo a qual o autor tem o ônus de provar o |to constitutivo de seu direito, no caso, a ocorrência do fato típico, enquanto o réu |jn 0 encargo de provar os fatos impeditivos do direito do autor, que seriam as exclu;ntes de ilicitude e culpabilidade.*®* Discorda-se de tal entendimento. Foi correto o acréscimo da parte final do inciso [Jio art. 386 do CPP, prevendo que, em caso de “fundada dúvida” sobre a excludente ilicitude, o acusado deve ser absolvido. Tal regra nada mais é do que um corolário presunção de inocência enquanto regra de julgamento no processo penal, impon),o in dubio pro reo. O delito, em seu aspecto formal, é o fato típico, antijurídico e terizador da receptação dolosa, devem ser examinadas as circunstâncias que envolvem a infração e a própria conduta do agente” (RJTACrimSP 31/252). |5. Na doutrina: Tomaghi, Instituições..., v. 3, p. 472; Noronha, Curso .... p. 117; Mirabete, I Processo Penal, p. 262; e Morais e Lopes, Da prova..., p. 36. Nesse sentido, no tocante ao estado de necessidade, o extinto TACrimSP decidiu que: “o estado de necessidade, por ser 1'ttfato excludente de ilicitude, tem que ser provado para que possa ser acolhido. O ônus da |j, prova, no transcorrer da ação penal, pertence ao réu que o alega” (RJDTACrim 13/211). Mesmo depois da Lei n° 11.690/2008, no mesmo sentido continuam a se manifestar: Damásio E. de Jesus, Código..., p. 159; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 268. Nesse sentido; Tomaghi, Instituiçõds)^“'^^!; p. 471; Camargo Aranha, Da prova..., p. 14; |í Mirabete, Processo Penal, p. 283. Em sentido contrário, negando a possibilidade de simples aplicação da regra processual civil no campo penal: Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 38; Silvajardim, Direito..., p. 201; Dinamarco, A instrumentalidade..., p. 246, nota 11; r Barandier, As garantias..., p. 13.

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culpável. O direito de punir nasce do cometimento de um delito, mas para se efetivar depende de uma condenação em um processo penal em que sejam verificados todos os seus elementos. Afirmar que o fato constitutivo é somente o fato típico e considerar as excludentes de ilicitude e de culpabilidade como fatos impeditivos do direito de punir equivale a dizer que o delito é, tão somente, o fato típico, sem qualquer consideração acerca do caráter ilícito desta conduta e da reprovabilidade do seu autor. A distinção entre fatos constitutivos, impeditivos e extintivos do direito alegado em juízo decorre de um processo de simplificação analítica da fattispecie que não pode ser aplicado ao processo penal, em favor da parte acusadora e em prejuízo do acusado, pois significaria admitir uma condenação sem que houvesse prova de todos os elementos do delito. Na prática, exigir que o acusado prove a existência de eventual causa excludente de ilicitude ou culpabilidade é inverter o ônus da prova."' Em consequência, a sentença penal condenatória exige, ao lado da prova dos elementos que integram o tipo penal (fato constitutivo positivo), também a demonstração da inocorrência das excludentes de ilicitude e de culpabilidade, para que possa surgir o direito de punir estatal (fato constitutivo negativo). Quando o réu afirma que agiu em legítima defesa ou em estado de necessidade, não se trata de alegação de um fato novo ou contraposto ao fato constitutivo do direito do autor. Não há alegação de um fato diverso do fato constitutivo do direito de punir, mas sim uma forma indireta de negar o cometimento do delito. Em outras palavras, a legítima defesa não é alegação de um fato impeditivo, mas a negação do fato cons­ titutivo do direito de punir. *" Há também uma corrente intermediária; para ser absolvido, o acusado não tem o ônus de demonstrar plenamente a ocorrência da excludente de ilicitude, mas tem o ônus de gerar uma dúvida razoável no espírito do juiz, quanto a sua ocorrência. Em consequência, bastará que a tese defensiva da ocorrência da excludente tenha um “grau de probabilidade", enquanto a acusação deverá provar plenamente a inocorrência da excludente. Haveria para a defesa, portanto, um ônus probatório diminuído, era seu aspecto quantitativo, bastando gerar uma dúvida razoável, impedindo que o juiz tivesse a certeza da inocorrência da excludente."“ Contudo, afirmar que, para ser absolvido, o acusado tem o encargo de gerar uma dúvida sobre a excludente equivale a dizer que o Ministério Público tem o ônus de comprovar plenamente que não ocorreu a excludente, para que o acusado seja con­ denado. Entre a certeza e a ignorância, que são os dois extremos que podem existir em relação ao conhecimento de um fato, somente pode existir a dúvida. Se, para a absolvição basta a dúvida sobre um fato, em consequência, para a condenação será 127. Nesse sentido: Karan, Sobre o ônus..., p. 66. 128. Nesse sentido: Gomes Filho, A presunção de inocência e o ônus..., p. 3; S ilva Jardim , Direito..., p. 212; Barandier, ônus da prova, p. 7; e Karan, Sobre o ônus..., p. 72. 129. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos ... v. 2, p. 289; Greco Filho, A prova..., P36; Dinamarco, A instrumentalidade..., p. 251; Lopes, O ônus..., p. 152.

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necessária a certeza, pois esta é o estado de ânimo em virtude do qual se estima uma coisa como induvidosa. Neste caso, os defensores da teoria intermediária, ao conside­ rarem que o acusado tem o õnus de gerar düvida no juiz, também devem reconhecer que, no tocante à mesma excludente, o acusador tem o ônus de trazer ao juiz a certeza de sua inocorrência. De qualquer forma, a divergência parece ser apenas terminológica, pois afirmar que o acusado tem o ônus de gerar uma dúvida razoável equivale a dizer que, na dú­ vida, o ju iz deve absolvê-lo.’™ Por fim, não se pode confundir o ônus da prova com o interesse em provar determinado fato. O acusado não tem o ônus de provar a existência da excludente de ilicitude, nem mesmo o ônus de gerar dúvida, mas tem interesse em provar a sua ocorrência. Sendo o ônus da prova uma regra de julgamento, que somente deve ser utilizada no momento decisório, ante a dúvida do ju iz sobre fato relevante, é eviden­ te que o acusado tem interesse em provar que a excludente efetivamente ocorreu. Demonstrada a existência da excludente, a sentença será absolutória, não sendo sequer necessário recorrer às regras sobre o ônus da prova. Este interesse, contudo, não se confunde com o ônus de provar. Se o acusado, embora interessado em provar plenamente a ocorrência da excludente, não consegue levar ao juiz a certeza de sua ocorrência, mesmo assim, se surgir dúvida sobre sua ocorrência, a consequência será a absolvição. Em tal caso, fica claro, portanto, que o acusado tinha interesse em provar, ; por exemplo, a legitima defesa, mas isto não significa que tivesse o ônus de demonstrar rã ocorrência da excludente de ilicitude. ■r V

Quanto à culpabilidade, e em especial as suas excludentes, a questão de dúvi|Ía sobre sua ocorrência apresenta peculiaridades em relação aos demais elementos 130. Nesse sentido: Borges da Rosa, Comentários..., p. 261; Gomes Filho, A presunção de ino­ cência e o Onus..., p. 3; Silvajardim, Direito..., p. 214; Barandier, Onus da prova, p, 7; Rangel, Direito..., p. 299; Karan, Sobre o ônus..., p. 63-64. Nesse sentido, na jurisprudência, embora se trate de posição minoritária; TJSP, RT 805/563 e Ap. Crim. n° 218.582-3. Transportando esse raciocínio para o ônus objetivo, a regra de julgamento quanto às excludentes de ilicitude é in dubio pro reo. Entretanto, afirmar que o ônus da prova da inocorrência das excludentes de ilicitude incumbe ao Ministério Público ou ao querelante, posto que a dúvida sobre sua ocor­ rência implica absolvição do acusado, não significa que, em todo e qualquer caso, o acusador deve provar sua inocorrência. Se não foi alegada qualquer excludente pela defesa, não tendo surgido nem mesmo uma dúvida remota sobre sua ocorrência, desnecessária a prova de que o fato não foi acobertado por uma causa de exclusão da antijuridicidade. Em tal caso, a prova negativa da excludente resulta implícita da reconstrução dos fatos, podendo set deduzida até mesmo das alegações do próprio acusado. No entanto, sempre que suija dúvida sobre sua ocorrência, caberá ao Ministério Público provar que a excludente nào existiu. Havendo dú­ vida, o acusado será absolvido. Nagraqde maioria dos processos, a questão específica sobre a existência da excludente surge em3feÃ)rrência de alegação do acusado. Conmdo, por nâo se tratar de exceção em sentido estrito, é possivel que a questão suija em decorrência das provas produzidas, independentemente de qualquer alegação defensiva. Mesmo neste caso, 1 0 juiz deverá conhecê-la e, caso nào haja prova que lhe permita extrair uma certeza sobre a ocorrência ou não da excludente, o caminho será a aplicação do in dubio pro reo.

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do delito. A tipicidade é definida em termos positivos, com a descrição de todos os elementos exigidos para a configuração da conduta típica. Assim, a inocorrência da tipicidade decorre da não verificação destes elementos. Por seu turno, quanto à antijuridicidade, o problema se coloca em termos absolutamente inversos. O legis­ lador nâo descreve quando uma conduta é antijurídica, limitando-se a disciplinar as causas que implicam sua exclusão. Assim, enquanto a tipicidade é definida em termos positivos, a antijuridicidade o é negativamente. A culpabilidade, por sua vez, do ponto de vista doutrinário, pode ser definida em termos positivos, isto é, para que se possa afirmar a culpabilidade é necessário que se verifiquem a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Trata-se, pois, de conceito construído de forma positiva. Contudo, o legislador limitou-se a definir a culpabilidade em termos negativos. Assim, a lei penal brasileira não determina em que circunstâncias ocorre a culpabilidade. Ao contrário, são previstas apenas hipóte­ ses em que se exclui a culpabilidade. A doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP. art. 26), a idade inferior a 18 anos (CP, art. 27), ou a embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior (CP, art. 28, § 1°), excluem a imputabilidade. 0 erro de proibição, ou erro sobre a ilicitude do fato (CP, art. 21. caput), afasta a potencial consciência da ilicitude. Por fim. a exigibilidade de conduta diversa pode ser afastada pela coação moral irresistível ou pela obediência hierárquica (CP, art. 22). Diante deste panorama, adúvida sobre a culpabilidade normalmente se apresen­ ta em termos de ocorrência ou não de uma causa de exclusão da culpabilidade. Por exemplo, o acusado alega a menoridade, ou a embriaguez fortuita, ou erro de proibição, ou, ainda, coação moral irresistível. Nestes casos, poder-se-ia afirmar que o acusado é que teria o ônus da prova, por ter alegado um fato impeditivo do direito de punir. Na verdade, porém, quando alega menoridade, embriaguez fortuita, ou doença mental, o acusado está negando o fato constitutivo do direito do autor, no que toca à imputa­ bilidade. Trata-se de negativa indireta, visto que não é uma simples negativa do fato constitutivo, mas a afirmação de um fato diverso, com ele incompatível. Da mesma forma, ao se invocar o erro de proibição, está-se infirmando a potencial consciência da ilicitude. A coação moral irresistível e a obediência hierárquica sâo negativas da exigibilidade de conduta diversa. Em consequência, a dúvida sobre a menoridade, a embriaguez fortuita ou a doença mental é dúvida sobre a imputabilidade. A falta de certeza sobre o erro de proibição é falta de certeza sobre a potencial consciência da ilicitude. A incerteza sobre a coação moral irresistível ou a obediência hierárquica é incerteza sobre a exigibilidade de conduta diversa. A despeito disso, prevalecia na doutrina o entendimento de que o ônus da prova das excludentes de culpabilidade incumbia ao acusado."* Tal posicionamento, que 131. Na doutrina: Noronha, Curso . , p. 117; Damásio E. de Jesus, Código..., 2006, p. 155; Mirabete, Processo Penal, p. 262; Morais e Lopes, Da prova..., p. 36, Baptista, 0 mito da verdade..., p. 133. Na jurisprudência prevalecia o entendimento de que o ônus da prova

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já não encontrava justificativa à luz da presunção de inocência, em seu aspecto do in dubio pro reo, restou',absolutamente superado, diante da nova redação do inciso VI do art. 386 do CPP, dada pela Lei n° 11.690/2008, que prevê a absolvição se houver “fundadas dúvidas” sobre a existência de excludente de culpabilidade. Por tudo já considerado, sendo a culpabilidade um elemento do crime e, conse­ quentemente, não sendo suas excludentes um “fato impeditivo do direito de punir”, também relativamente às excludentes de culpabilidade deve ser aplicado o in dubio pro , reo. A dúvida sobre uma excludente de culpabilidade deve ser resolvida favoravelmente ao acusado, levando à sua absolvição.’”

W. 1.15 Critérios de decisão: o problema dos standards probatórios No relacionamento entre verdade e prova, podem ser destacados momentos ou contextos distintos. Há o momento da descoberta, há o momento da valoraçâo e o momento da decisão. Nâo é comum, na doutrina nacional, fazer a distinção entre momento da valoraçâo e momento da decisão. A atividade valorativa tem por objeto os meios de prova, que deverão ser confrontados e valorados segundo regras lógicas e racionais. A valoraçâo leva à decisão sobre a veracidade ou não de uma determinada afirmação sobre os fatos. I Todavia, os momentos de valoraçâo e decisão não se confundem, e, mais relevante do que isso, são regidos por estatutos distintos. O contexto da valoraçâo é eminente[ mente racional. Em um sistema de persuasão racional, as regras jurídicas não devem ter influência sobre como valorar os meios de provas. Questão diversa diz respeito ao critério de decisão. Cabe ao legislador, a partir de um determinado valor que deseje tutelar, estabelecer critérios de decisão que poderão variar, por exemplo, segundo o ibem juridico em jogo, ou a natureza do processo. ^

Esse é o campo dos critérios de decisão, ou qual o grau de convencimento que se exige do julgador para poder decidir que um fato está provado. O tema dos (/“critérios de decisão”, também denominados “standards probatórios” ou “modelos ide constatação", tem sido muito pouco explorado pela doutrina processual penal Jarasileira, que geralmente se limita a apreciar a questão sob o enfoque do in dubio pro mo, mas não dos diversos graus que se podem exigir do julgador para que considere da excludente pesa sobre a defesa. Assim, decidiu o extinto TACrimSP, em caso de inexigibilidade de conduta diversa (Ap. n° 1.184.385/8), de coação moral irresistível (Ap. n® 1.112.309/6 e Ap. n° 814.695) e de cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico (RJDTACrim 26/256). E, mesmo apOs a Lei n° 11.690/2008, no mesmo sentido continuou a se manifestar Damásio E. dejesus. Código..., p. 159. |32. Nesse sentido, na doutrina: Frec(tramitem ao juiz “por ouvirem dizer”. A “testemunha de ouvir dizer” não pode ser aceita como verdadeira prova tesgmunhal, mas sim como uma “prova de segunda mão”. Devem, segundo Bento de Paria, “ser consideradas elementos indignos de informação, sem o caráter de teste|ünho"."® Tal elemento de informação pode ser válido para que se descubra a fonte e'prova originária, isto é, a testemunha presencial, e produzir esta prova em juízo, npetanto, a testemunha indireta nâo é prova válida para o juiz formar o seu conven­ ie n te . A “testemunha de ouvir dizer” não tem nenhuma responsabilidade por seu ítemunho, mesmo que ele não corresponda à verdade. Além disso, seu depoimento, ànto ao fato, não poderia ser explorado contraditoriamente, pois ela não é fonte ginária dos fatos."® Ii.supralegal, teriam que reconhecer que o art. 8.2,/, da CADH. revogou o § 1° do art. 221 do CPR Camelutti, La prova..., p. 143. '■|Cótiigo..., V . l , p. 268. ^ 2^ arte da doutrina aceita, com reservas, o testemunho de “ouvir dizer”: Camargo Aranha, Ta prova..., p. 160; Fragoso, Jurisprudência criminal, p. 523. Todavia, nenhum valor pode

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De acordo coma forma de percepção dos fatos, as testemunhas podem ser visuais ou auditivas. As testemunhas visuais sào aquelas que prestam depoimento sobre o que viram. Já as testemunhas auditivas prestam testemunho sobre o que ouviram."’ Quanto ao objeto, as testemunhas podemser próprias e impróprias. Testemunha própria é aquela que depõe sobre o thema probandum, isto é, sobre o objeto do litígio. Já a testemunha imprópria é aquela que prestará depoimento sobre um ato do processo, por exemplo: a testemunha instrumentária do auto de prisão em flagrante, quando o acusado se recusa a assiná-lo ou não souber ler (CPP, art. 304, § 3°).

W. 7.4 Dever de depor, proibição de depor e dispensa de depor Em regra, toda pessoa pode servir como testemunha (CPP, art. 202), e tem o de­ ver de depor (CPP, art. 206, primeira parte). Nào se pode fazer qualquer distinção em razão de idade, sexo, nacionalidade, condição social ou econômica, fama ou reputação. Há, contudo, pessoas que estão dispensadas do dever de depor. Podem se recusar a depor “oascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, 0 irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado” (CPP, art. 206, segunda parte)."® Os parentes da vítima não estào dispensados do dever de depor. Todavia, excepcionalmente, os parentes do acusado terão o dever de depor se “nãofor possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se à prova do fa to e de suas circuns­ tâncias” (CPP. art. 206, terceira parte),’" ser dado a tal testemunho. Uma das características da prova testemunhal, lembra Manzi­ ni (Trattato..,, V. 3, p. 291), é a imediatidade; a testemunha deve manifestar percepções sensoriais recebidas imediatamente por ela em relação a um fato passado, que no presente deve ser provado. É necessário que a testemunha reproduza uma percepção originária e direta do fato a ser provado, isto é, por ela imediatamente recebido. No testemunho indireto há uma cognição reflexa, que não fornece elementos seguros de informação, até mesmo porque a testemunha direta nâo terá qualquer responsabilidade pelo que a testemunha indireta tenha dito. 225. As testemunhas auditivas, contudo, não podem ser confundidas com as testemunhas indiretas ou de ouvir dizer. Quanto às testemunhas auditivas, é importante distinguir duas situações. É perfeitamente possível que uma testemunha tenha tomado conhecimento dos fatos, pelo sentido da audição, como, por exemplo, quando escuta a conversa de duas pes­ soas que planejam matar uma terceira pessoa. Tal testemunho é absolutamente válido. Tal situação, contudo, não pode ser confundida com a das testemunhas “de ouvir dizer”, isto é, testemunhas que não presenciaram o fato sobre o qual irão depor, tendo apenas recebido informações sobre o fato de outra pessoa, esta, sim, testemunha presencial. 226. A dispensa aplica-se também no caso de parentesco decorrente de adoção (extinto TA­ CrimSP, RT 417/251). A relação de parentesco considerada não é a do momento do crime, mas sim a existente por ocasião do depoimento, pois é neste momento que a necessidade de preservação dos laços familiares deve ser observada. 227. Como la! situação é excepcional, deve ser aplicada restritivamente, por exemplo, nos casos de crimes cm que a vítima e o autor sejam parentes, ou quando o delito seja cometido dentro do âmbito familiar. Nesses casos, o interesse público na busca da verdade se sobrepõe ao interesse particular de harmonia nas relações familiares. Mesmo obrigados a depor, tais

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Os diplomatas também podem se recusar a depor fora de seus respectivos países. 0 art. 31, § 2°, da Cpnvenção de Viena sobre Relações Diplomáticas prevê que; “O agente diplomático não é obrigado a prestar depoimento como testemunha”. Por fim, há pessoas que estão proibidas de depor sobre fatos que tenham conhe­ cimento em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e que devam guardar segredo (CPP, art. 207, primeira parte). Todavia, mesmo estas pessoas poderão vir a depor, se a parte interessada no segredo (por exemplo, o paciente) desobriga a pessoa que tem conhecimento do segredo (por exemplo, o médico). Mesmo assim, o detentor do segredo somente prestará seu depoimento, se assim quiser, podendo preferir não depor. Em suma, se não estiver desobrigado, há vedação ao depoimento que, se des­ respeitado, caracterizará crime de violação de segredo profissional (CP, art. 154). Uma vez desobrigado do segredo, a testemunha terá a faculdade de depor, não podendo o juiz lhe impor o testemunho.®®® 70 .7 .5 Lugar d o d ep o im en to Em regra, a oitiva das testemunhas acontece na sede do juízo (CPP, art. 792, caput). Excepcionalmente, as testemunhas que, por idade ou velhice, estejam impos­ sibilitadas de comparecer ao fórum para depor serão ouvidas onde estiverem (por exemplo, na sua residência, no hospital etc.), como permite o art. 220 do CPE Outra exceção é prevista no art. 221, caput, do CPP, que confere a determinadas autoridades a prerrogativa de marcar o local (por exemplo, na casa do Presidente da República ou no gabinete do senador), o dia e a hora que desejam ser ouvidas.®®“ s As testemunhas residentes fora da comarca em que tramita o processo serão ouvidas por carta precatória (CPP, art. 222, caput). A testemunha não é obrigada a se deslocar para comarca diversa da qual reside para prestar seu depoimento. Nada impede, porém, que, espontaneamente, compareça na sede do juízo em que corre o processo, para ser ouvida pelo juiz da causa. 1 Tem prevalecido o entendimento de que, no caso de oitiva de testemunhas por jCarta precatória, basta que a parte seja intimada da expedição da carta precatória pelo testemunhas não prestam compromisso de dizer a verdade (CPP, art. 208). Também nao podem ser condenadas pelo crime de falso testemunho (TJSP, Ap. n° 317.411-3/3-00). 128. Nesse ponto a restrição em relação ao advogado é mais intensa, pois, mesmo que deso­ brigado pelo cliente da proibição de depor, o Código de Ética e Disciplina da OAB, em seu art. 26, estabelece que “o advogado deve guardar sigilo, mesmo em depoimento judicial, sobre o que saiba em razão de seu ofício, cabendo-lhe recusar-se a depor como testemunha, [...] mesmo que autorizado ou solicitado pelo constituinte”. 29. O Plenário do STF decidiu Questão de Ordem em Ação Penal n° 421/SP, no sentido de que, “Passados mais de trinta d^as.seraque a autoridade que goza da prerrogativa prevista no caput do art. 221 do Códig(í*Sfe>TOcesso Penal tenha indicado dia, hora e local para a sua inquirição ou, simplesmente, nào tenha comparecido na data, hora e local por ela mesma indicado (...] impõe-se a perda dessa especial prerrogativa, sob pena de admitir-se que a autoridade arrolada como testemunha possa, na prática, frustrar a sua oitiva, indefi­ nidamente e sem justa causa”.

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juízo deprecante, mas que não é necessária a intimação da data em que foi designada audição no juízo deprecado."“ Nos termos da Súmula n° 155 do STF: “É relativa a nulidade do processo criminal por falta de intimação da expedição de precatória para inquirição de testemunha”. Por outro lado, a Súmula n° 273 do STJ determina que; “Intimada a defesa da expedição da carta precatória, torna-se desnecessária intimação da data da audiência no juízo deprecado”. Tais posicionamentos implicam violação ao contraditório e à ampla defesa, na medida em que impedem a “ciência bilateral dos termos e atos do processo”. Não se justifica exigir que a defesa diligen­ cie no juízo deprecado para saber a data da designação da audiência, mormente em um país com as dimensões do Brasil. Além disso, não haveria qualquer dificuldade prática para que ojuiz deprecado determinasse a intimação do advogado do acusa­ do, da designação da audiência no juízo deprecado. No sistema originário do CPP, em que o advogado era intimado pessoalmente, havia dificuldade para a intimação da designação no juízo deprecado. Todavia, com o acréscimo do § 1° do art. 370, não haverá qualquer dificuldade para a intimação pela imprensa da designação da audiência no juízo deprecado. No caso de testemunha que esteja presa, a Lei n° 11.900/2009 estendeu-lhe a disciplina do interrogatório por videoconferência (CPP, art. 185, § 8“). Assim, estando presente uma das situações do § 3" do art. 185, a testemunha presa deverá ser ouvida por meio de videoconferência, em vez de comparecer ao fórum, seja no caso em que se encontre em estabelecimento da própria comarca em que tramita o processo, seja em caso de comarca diversa, o que evitará, neste último caso, a expedição de carta precatória e, principalmente, permitirá que se mantenha a unidade da audiência de instrução, debates e julgamento.

10.7.6 Procedimento probatório As testemunhas de acusação são arroladas na denúncia ou na queixa (CPP, art. 4 1) e as de defesa na “resposta escrita” (CPP, art. 396-A). O assistente de acusação não pode arrolar testemunhas, pois ingressa no processo após o oferecimento da denúncia (CPP, art. 2 68).™‘ Poderã, contudo, formular perguntas às testemunhas (CPP, art. 271). Uma vez arrolada a testemunha e deferida a prova testemunhal, a parte tem o direito de ouvi-la. Além disso, qualquer das partes poderá requerer a oitiva de testemunhas apõs o encerramento da instrução, nos termos do art, 402. 230. Em sentido contrário, embora represente posiçáo isolada: STF, HC n° 73.822/PB. Por outro lado, no que toca à defensoria pública, tem prevalecido o entendimento de que hi de ser observada a prerrogativa de intimação pessoal, pouco importando que a realização da audiência ocorra em virtude de carta precatória, jutzo deprecado. Nesse sentido: STF RT 780/532; TRF H Região, HC n“ 2009.01.00,029554-4. 231. Já se admitiu, contudo, a oitiva de testemunhas arroladas pelo assistente de acusado, que ocorreu antes do início da instrução, e em número que somado ao das testemunn j arroladas na denúncia não ultrapassou o número legal: TJSP, RT 789/606.

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Ojuiz também pode, de ofício, determinar a oitiva de pessoas referidas por outras testemunhas (CPP, art. 209, § 1°), bem como de toda e qualquer pessoa que considere relevante para o processo (CPP, art. 209, caput) 3^^ Quanto ao número de testemunhas, no procedimento ordinário serão inquiridas “até 8 (oito) testemunhas arroladas pela acusação e 8 (oito) pela defesa” (CPP, art. 400, caput). Nesse número de testemunhas não são computadas as que não prestam com­ promisso , bem como as testemunhas do juízo (CPP, art. 40 0 , § 1“). No procedimento sumário podem ser ouvidas até cinco testemunhas (CPP, art. 532).®®® Quanto à produção da prova, as testemunhas, em regra, prestam o seu depoimento em audiência. Com a reforma de 2008, passou a ser prevista uma audiência una de instrução ejulgamento, na qual serão ouvidas tanto as testemunhas de acusação quanto as de defesa (CPP, art. 400, caput). Também no procedimento sumário será realizada audiência una de instrução ejulgamento (CPP, arts. 531, caput). No procedimento sumarissimo da Lei n° 9.099/1995 já se previa audiência una, na qual serão ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa (art. 81, caput). Antes de iniciar o depoimento, a testemunha deverá ser identificada, “devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com ; qualquer delas” (CPP,art. 203). No caso de testemunha protegida, a Lei n° 9.807/1999 prevê a possibilidade de preservação da identidade, imagem e dados pessoais da teste­ munha protegida (art. 7, caput, inc. IV) e, em caso excepcionais, até mesmo a alteração, por completo, do nome da testemunha (art. 9“).®®'' 232. Já se considerou, contudo, que, “se o Ministério Püblico não apresenta o rol de testeÍ7' munhas com o oferecimento da denúncia, é-lhe defeso apresentá-lo em aditamento à peça acusatória, bem como ao Juiz ouvi-las como suas, substituindo-se a iniciativa de parte, pois seu poder é meramente supletivo, exercido antes de proferir a sentença” (TJDp RT 766/663). 233. O ofendido não é testemunha e deve ser ouvido mesmo que nâo tenha sido arrolado, não sendo, portanto, computado no número de testemunhas (TJSP, RT 592/324). 234. No Estado de São Paulo, o Provimento n° 32/2000, da Corregedoria Geral d eju stiça, autoriza a omissão “de endereços e dados de qualificação” das testemunhas ou vítimas ameaçadas ou atemorizadas (art. 3°). O TJSP considerou que caracteriza cerceamento de defesa a omissão dos nomes das testemunhas por violação ao princípio da ampla defesa e do devido processo legal (RT 804/568). Por outro lado, o STF entendeu que “Cabe frisar que o sigilo tal como assegurado pelo Provimento n° 32/2000 da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, não ofende os princípios da ampla defesa e do contraditório, pois, embora imponha a anotação em separado do nome e dos dados de qualificação da testemunha protegida, bem como o seu arquivamento em pasta própria, permite, por outro lado, o acesso do defensor do réu a tais dados, possibilitando, desse modo, o pleno exercício da defesa, sem obstar, inclusive, a apresentação da contradita antes do depoimento: 'Legal ^ a determinação de omissão dos riáfes-dks testemunhas na denúncia e no libelo-crime. Tal ato não esbarra nas garantias constitucionais, mormente quando aos advogados dos réus foi permitida a participação na inquirição das testemunhas” (RHC n° 89.137/SP)”. No mesmo sentido posicionou-se o STJ: “A alegação de nulidade decorrente da supressão do nome da testemunha realizada com base na Lei n° 9.807/1999 e no Provimento n° 32 da Corregedoria

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Vigorava no processo penal brasileiro o denominado “sistema presidencialis­ ta”, em que as partes formulavam as perguntas ao juiz, e este as formulava para as testemunhas, na redação originária do art. 212 do CPP Além disso, ojuiz iniciava a inquirição, cabendo às partes apenas o direito a fazer reperguntas, após as respostas dadas ao juiz. Com a reforma de 2008, ojuiz passou a ter um papel apenas subsidiário na produção da prova testemunhal. As perguntas passaram a ser feitas diretamente pelas partes, e não mais por intermédio do juiz, a quem restou apenas a possibilidade de complementar as indagações das partes. O art. 212, caput, prevéque “asperguntas serãoformuladas pelas partes diretamente à testemunha [...j”. E o parágrafo ünico prevê que: “Sobre os pontos não esclarecidos, 0 ju iz poderá complementara inquirição". As expressões “pontos não esclarecidos” e “complementar” deixam claríssimo que não cabe aojuiz a inquirição inicial, que é atri­ buída às partes, no caput do artigo. As partes perguntam diretamente e as testemunhas respondem. Se das respostas restaralgum ponto não esclarecido, ojuiz complementará a indagação. Ora, complementara inquirição exige, naturalmente, que já tenha havido uma indagação inicial, no caso, das partes. Assim sendo, à luz da nova sistemática do art. 212 do CPP, é inadmissível a praxe de muitos juizes que insistem em iniciar a inquirição das testemunhas, permitindo que, depois, mediante reperguntas, as partes complementem a inquirição. 0 procedimento probatório é exatamente o oposto."’ As perguntas deverão ser feitas inicialmente pela parte, que arrolou a testemu­ nha e depois, pela parte contrária. As testemunhas arroladas pela acusação terão seu depoimento iniciado pelas indagações da acusação (Ministério Público ou querelan­ te), depois pelo assistente de acusação, se houver, e, por último, pela defesa. Após as perguntas das partes, ojuiz poderá complementar pontos não devidamente esclare­ cidos. Inversamente, as testemunhas arroladas pela defesa serão indagadas inicial­ mente pela defesa, depois, pela acusação e, por último, se houver, pelo assistente de acusação. Mesmo em relação às testemunhas dojuizo, a inquirição deverá ser diretamente pelas partes, cabendo ao juiz, depois, complementar a inquirição. Nesse caso, em respeito ao contraditório e ã ampla defesa, primeiro deverá perguntar a acusaçáo e, em seguida, a defesa, que sempre deve falar por último no processo. Após as partes, eventuais pontos não esclarecidos serão complementados pelo juiz. Mesmo no sistema de indagação direta pelas partes, o juiz deverá ficar atento durante a inquirição, não admitindo a formulação das perguntas “que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de Geral de Justiça do Estado de São Paulo, não compromete o direito constitucional de ampla defesa, tampouco configura descumprimento das normas processuais penais, nào havendo, por isso, como reconhecer qualquer nulidade no processo" (HC n° 229.910/SP). 235. Tem prevalecido, na jurisprudência, o entendimento de que inversão do procedimento gera nulidade, mas que essa é relativa e seu reconhecimento depende da demonstração de prejuízo; STJ HC n® 171.85 l/MS, AgRg no AREsp n° 49.889/SP; HC n° 251.737/RS.

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outra já respondida”|(CPP, art. 212, caput, segunda parte). No caso de indeferimento das perguntas, o juiz‘deverá fazer constar no termo a pergunta e o motivo da recusa em formulá-la. Tal providência preserva a possibilidade de controle da correção ou não do indeferimento da pergunta, em caso de eventual recurso. Também devem ser evitadas as perguntas sugestivas ou que possam induzir a resposta. O juiz não deverá permitir que a parte se limite a indagar se a testemunha ratifica 0 que disse anteriormente em seu depoimento policial."® Também não pode aceitar , que a testemunha se limite a dizer que não tem nada a acrescentar ao que já foi dito na fase policial, mantendo integralmente suas declarações anteriores. Em tais formas de indagação há evidente violação ao contraditório, impedindo que as partes e o juiz tomem contato direto com a narrativa da testemunha. Ao mais, contradições nas res­ postas, osacréscimos de fatos nào mencionados anteriormente ou omissões de pontos relevantes que constaram do depoimento anterior podem ser indicadores seguros da falta de credibilidade das testemunhas. Por outro lado, se a testemunha, por duas ou mais vezes, for persistente e coerente, sempre narrando os fatos de maneira uniforme, ao menos em seus pontos essenciais, ojuiz terá um indicador seguro da credibilidade do testemunho. Ao responder as perguntas, a testemunha não deverá manifestar suas opiniões pessoais, “salvo quando inseparáveis da narrativa do fato” (CPP, art. 213).

10.7.7 Contradita Contradita é a forma processual adequada para se arguir a suspeiçâo ou a inidoneidade da testemunha. A contradita diz respeito à própria testemunha, em si, e não ao conteúdo do seu depoimento. Aliás, a testemunha deve ser contraditada antes tnesmo de prestar o seu depoimento, tão logo seja qualificada. O momento para se arguir a contradita, segundo o art. 214 do CPP, é “antes de iniciado o depoimento” (CPP, art. 214, primeira parte). Excepcionalmente, contudo, é possível que a contradita seja realizada após o encerramento do testemunho, quanjdo somente durante a narrativa tornarem-se conhecidos os motivos que indiquem )ã parcialidade (por exemplo, a testemunha é amásia do acusado) ou a indignidade i^por exemplo, a testemunha já foi condenada várias vezes por falso testem unho)."' 836. Nesse sentido já decidiu o STJ: “A produção da prova testemunhal é complexa, envol­ vendo não só o fornecimento do relato, oral, mas, também, o filtro de credibilidade das informações apresentadas. Assim, não se mostra lícita a mera leitura pelo magistrado das declarações prestadas na fase inquisitória, para que a testemunha, em seguida, ratifique-a. 3. Ordem concedida para anular a peçal a partir da audiência de testemunhas de acusa­ ção, a fim de que seja refeita a colhettamà prova testemunhal, mediante a regular realização das oitivas, com a efetiva tomada de depoimento, sem a mera reiteração das declarações JA prestadas perante a autoridade policial” (HC, n° 183.696/ES). f l . Por tal motivo, Tomaghi (Curso..., v. 1, p, 416) entende que até mesmo a parte que arrolou a testemunha poderá contraditá-la.

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O legislador não estabeleceu umrol de hipóteses ou motivos que autorizem a con­ tradita. Preferiu valer-se de expressões com conteúdo jurídico indeterminado, permi­ tindo que sejam contraditadas as testemunhas “suspeitas de parcialidade” ou “indignas de fé”. Caberá à parte arguir o motivo, que deverá ser avaliado pelo juiz, como apto ou não a gerar uma suspeita de parcialidade ou que tome a testemunha indigna de fé. Para a definição dos casos de parcialidade, pode ser aplicado analogicamente, com as devidas adaptações, o art. 254 do CPP, que trata dos motivos de suspeição do juiz.®®* A contradita deve ser acolhida quando houver simples “suspeita” de parcialidade, não sendo exigida a “certeza” da parcialidade. Ojuiz deverá consignar a arguição da contradita, indagar a testemunha sobre os fatos objetos da contradita e consignar as suas respostas. Diante das respostas, aco­ lherá ou rejeitará a contradita (CPP, art. 214, segunda parte). Rejeitada a contradita, a testemunha será ouvida normalmente. Acolhida a contradita, ojuiz poderá adotar três atitudes, de acordo com o motivo da contradita; (1) excluir a testemunha, não lhe tomando o depoimento, nas hipóteses do art. 207 do CPP; (2) tomar o depoimento da testemunha, mas sem lhe deferir o compromisso, nas hipóteses do art. 206, parte final, e do art. 208 do CPP; (3) tomar o depoimento da testemunha, que deverá prestar o compromisso de dizer a verdade, nos demais casos.®®“

W. 7.8 Valor probatório da prova testemunhal No processo penal, a prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado, embora se trate de prova sujeita a influências e sentimentos que podem afastá-la do caminho da verdade. 238. Xavier de Aquino (A prova..., p, 50) apresenta as seguintes hipóteses; “as pessoas que mantêm com a vítima, ou com o acusado, laços íntimos de amizade, inimizade, dependência econômica, bem como os malfeitores, os suspeitos de colusão (acordo anterior para pres­ tar depoimento em certo sentido), os corruptos ou subornados etc.”. Segundo Camargo Aranha (Da prova..., p. 122-123), os motivos que podem fazer com que as testemunhas sejam “suspeitas ou inidôneas” podem ser divididos em quatro grupos: (1) “antecedentes justificadores de má personalidade” (por exemplo, condenados criminalmente, as meretrizes, os vadios, o jogador, o ébrio...); (2) “suspeitas de parcialidade" (por exemplo, amizade íntima, parentesco, inimizade profunda, relação de dependência econômica); (3) suspeita de suborno; (4) defeitos encontrados no próprio depoimento (por exemplo, afetação ou animosidade; exageros em um certo sentido; omissão da origem do conhecimento dos fatos; afirmações inverossímeis; contradições ou incoerências). Não concordamos que a meretriz, o jogador, o ébrio sejam pessoas que, por si sós, sejam indignas de fé. A validade do testemunho da meretriz foi reconhecida pelo extinto TACrimSP (RT 549/347) mas que também já admitiu com reservas (extinto TACrimSP, RT 556/333), Nào se influenciando por preconceitos ou falsos moralismos, o STJ decidiu, acertadamente, que “o homossexual não pode ser recusado como testemunha, pois a nacionalidade, a religião, a profissão e a conduta moral não podem ser considerados motivos para retirar o valor do testemunho, em face do princípio da igualdade, registrado na Constituição da República” (RT 763/536). 239. Em sentido contrário, considerando que nesta hipótese a testemunha contraditada será ouvida como informante, sem prestar compromisso, cf.: Câmara Leal, Comentários..., v. 2, p. 49.

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Na avaliação do depoimento, o ju iz deve estar atento a dois fatores: (1) o sujeito que prestou o depoimento; (2) o conteúdo da sua narrativa. Quanto ao sujeito, nào se poderá dar o mesmo valor ao testemunho de uma pessoa que presta compromisso de dizer a verdade e de outra que não tem tal obriga­ ção. Também nào se pode dar o mesmo valor a uma testemunha em relação à qual se acolheu a contradita. No tocante ao conteúdo da narrativa, o ju iz deve dar especial importância para informação da testemunha sobre as “razões de sua ciência” (CPP, art. 203). Além dis­ so, a quantidade de detalhes do testemunho é um fato importante em sua valoraçâo. Depoimentos com conteúdo indeterminado não podem fornecer uma real percepção dos fatos. Os fatos sâo acontecimentos concretos e inseridos em um contexto, devendo ser narrados em seus detalhes. Outro aspecto relevante é a persistência do testemunho, isto é, a testemunha ter apresentado versões uniformes todas as vezes que tenha sido ouvida. Versões isentas de contradições e hesitações devem ter maior valia. Há entendimento de que pequenas contradições, em aspectos circunstanciais, podem ser aceitas, não retirando o valor do testemunho. Tal posição não pode ser aceita integralmente. Quando uma testemunha tem a intenção de mentir ou é preparada para mentir, normalmente o que ela tem condições de decorar ou criar é o fato principal. Em tais casos, a única forma de demonstrar que a testemunha está mentindo são as contradições ou incoerências que irão ocorrer em relação aos pontos secundários, sobre os quais a testemunha não foi “preparada” para responder. A homogeneidade dos testemunhos é relevante também quando se comparam depoimentos de testemunhas diferentes. É comum a assertiva de que as divergências em aspectos secundários de depoimentos prestados por testemunhas diferentes é algo natural, indicando, inclusive, que nào bouve um concerto prévio entre ambas para falsear a verdade, ou que podem ser frutos das imperfeições do psiquismo humano. Todavia, tal posição não pode ser aceita de forma absoluta. Quando as testemunhas são preparadas para mentir, elas decoram apenas o fato principal e se preparam para, em relação a ele, não apresentarem contradições. Já nos aspectos circunstanciais, muitas vezes surgem diferenças gritantes, e até mesmo assertivas absolutamente in­ compatíveis. Nestes casos, os testemunhos perdem credibilidade mesmo em relação lao fato principal. * Há casos especiais que precisam ser analisados separadamente: o depoimento das crianças e o depoimento dos policiais. I Quanto ao testemunho dos policiais, há correntes radicais, que, pelo seu pró­ prio extremismo, devem ser descartadas. Uma dessas correntes entende que o fato le a testemunha ser policial, por si só, não a toma impedida de depor, não havendo Hualquer disposição legal neste sert^Q^Âo contrário, o policial não se enquadra nas pipóteses do art. 207 do CPP, devendo ser dado ao seu depoimento o mesmo valor qualquer outra testemunha. De outro lado, há corrente oposta, no sentido de que >policiais, pela simples condição funcional, seriam suspeitos. Deve prevalecer uma

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posição intermediária; se os policiais não podem ser considerados suspeitos, pelo simples fato de serem policiais, por outro lado, é inegável o seu interesse na demons­ tração da legalidade de sua atuaçáo nos atos investigatórios praticados, pelo que seus depoimentos têm valor relativo, devendo ser cotejados com outros elementos de provas existentes nos autos, em especial o testemunho de pessoas estranhas aos quadros da polícia. Não se pode esquecer que as testemunhas são, por definição, terceiros imparciais, sem qualquer interesse no processo, o que nào é exatamente o caso dos policiais em relação aos crimes por eles investigados. Por tais motivos, nào se deve admitir que seja proferida uma sentença condenatória com base exclusiva no depoimento de policiais, ainda que estes se mostrem harmônicos entre si. A criança, por natureza, é uma pessoa imatura psicologicamente, dotada de forte poder de imaginação e grande sugestionabilidade. Além disso, a criança, normalmente, não tem maturidade moral suficiente para compreendera relevância ou a importância em dizer a verdade e o prejuízo que a mentira pode causar para a busca da verdade. Por tudo isto, o testemunho infantil deve ser visto com reserL'a, o que não significa que seja inadmissível. Ao contrário, o próprio legislador admite o testemunho do infante, sem qualquer restrição quanto ao seu cabimento (CPP, art. 202). 0 que não se defere ao menor de 14 anos é compromisso de dizer a verdade (CPP, art, 208). Por tudo isso, o testemunho infantil não é suficiente, por si só, para fundamentar a sentença, mas poderá ser levado em conta pelo juiz para a formação do seu convencimento se corroborado por outros meios de prova.™“ Por fim, é de observar que no sistema do livre convencimento não mais vigora o brocardo testis m o , íesíis nuíío, típico do sistema da prova tarifada. Mesmo havendo uma única testemunha, desde que o seu depoimento tenha aptidão para convencer o julgador, poderá ser suficiente para a formação do convencimento judicial.

10.8 Acareação 10.8.1 Conceito e características A acareação consiste em colocar duas ou mais pessoas, sejam elas acusadas, vítimas ou testemunhas, em presença uma da outra, para que esclareçam pontos controvertidos de seus depoimentos, sobre fatos ou circunstâncias relevantes para a solução da causa. Em última análise, trata-se de colocar duas pessoas frente a frente para verificar quem falou a verdade e quem errou ou mentiu.™' ^ A acareação pode ocorrer tanto durante o processo quanto no inquérito policial. Normalmente, a acareação é realizada durante o inquérito policial, sendo ranssim^ sua realização em jutzo. 240. Na doutrina, Borges da Rosa (Comentdrios..., p. 322) e Pedroso (Prova..., p. 87-88) a possibilidade da condenação com base apenas no depoimento infantil, Na j u r í s p m TJSP, Ap. n° 352.708-3/5-00; extinto TACrimSP, RT 713/359, 241. Camargo Aranha, Da prova..., p, 105.

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Pode haver acareação: (1) dos acusados entre si; (2) do acusado com a testemu­ nha; (3) do acusado com o ofendido; (4) das testemunhas entre si; (5) dos ofendidos entre si; (6) do ofendido com a testemunha. Há dois pressupostos para a acareação. O primeiro deles é que somente existe acareação em relação a declarações já prestadas, não podendo ser acareadas pessoas que ainda não tenham sido ouvidas. Além disso, é necessário que as divergências digam respeito a pontos relevantes, isto é, a fatos realmente importantes para o processo. 10.8.2 P roced im en to p ro b a tó rio A acareação pode ser determinada de ofício pelo juiz, ou requerida pelas partes. O requerimento de acareação pelas partes normalmente se dá por ocasião do art. 402 do CPP, ou logo após a ocorrência da divergência. No inquérito policial será determinada pela autoridade policial ou requerida pelas partes (CPP, art. 14). Tem se entendido que, mesmo havendo divergências sérias, a acareação nâo é providência obrigatória, ficando ao prudente critério do juiz ou da autoridade poli­ cial.™’ Tal posicionamento, na prática, implica negar às partes o direito à prova no que diz respeito à acareação. Se há requisitos legais, uma vez presentes, é direito da parte ter deferido o seu pedido de acareação. ' Determinada a acareação, os acareados serão notificados para comparecer em juízo (ou na delegacia de polícia para que seja realizada a acareação. Dispensa-se a qualifi|çação dessas pessoas porque já existente nos autos, bastando uma simples remissão à |folha respectiva. Ojuiz ou a autoridade policial deverá 1er os depoimentos, explicando [uais os pontos de divergência e indagar dos acareados, para que os expliquem (CPP, rt. 229, parágrafo único). Os acareados não prestam o compromisso de dizer a verdade, nem antes nem depois da acareação. Para o acusado e o ofendido, tal dever não se impõe. As testemu­ nhas já o prestaram anteriormente.™' A lei não determina quem fará as reperguntas. Além do juiz, as partes também oderão fazer reperguntas aos acareados sobre os pontos discordantes. Ao final, será lavrado um termo sobre o ato de acareação (CPP, art. 229, parágrafo taico).™’ Î2. Na jurisprudência: STJ, RT 784/549. Mais incisivo, decidiu o STJ que; “É entendimento ptJ pacifico que a acareação não é direito subjetivo da parte. O Juiz da causa, com o uso de seu » poder discricionário, avaliando a situação concreta, decide sobre a necessidade ou não de tal meio de prova. (...) Mesmo havendo sérias divergências, porém, a acareação não é providência ^ obrigatória, cabendo a decisão ao prudente arbitrio do Juiz. O indeferimento do pedido da parte, portanto, não caracteriza cerceamento de acusação ou defesa" (RT 780/568). p . É a opinião de Tornaghi, Curso..., v.*^^pT"437. Em sentido contrário. Bento de Faria ^ (Código..., V . 1, p. 286) e Acosta (O processo..., p. 241) entendem que os acareados devem prestar compromisso. Inellas (D a prova..., p. 100) entende que a autoridade policial ou o ju iz deve des­ crever, “na parte final do termo, o comportamento dos acareados; quem demonstrava

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No caso da testemunha ausente, tecnicamente não ocorre acareação, e sim con­ fronto.®” Se uma testemunha prestar depoimento que diviija do depoimento já prestado por outra testemunha (por exemplo, testemunha de defesa ouvida após a testemunha de acusação, em audiências distintas), ojuiz dará conhecimento à testemunha presente dos pontos da divergência, consignando-se no auto o que a testemunha explicar. Se a testemunha presente voltar atrás, e concordar com a testemunha ausente, a prova estará encerrada. Se subsistir a discordância, o juiz expedirá carta precatória para a autoridade do lugar onde resida a testemunha ausente, transcrevendo-se as declara­ ções desta e as da testemunha presente, nos pontos em que divergirem, bem como o texto do referido auto, a fim de que se complete a diligência, ouvindo-se a testemunha ausente sobre tais pontos (CPP, art. 230). O confronto, isto é, a acareação entre ausentes, “só se realizará quando não importe dem ora prejudicial ao processo e o ju iz a entenda conveniente" (CPP, art. 230, parte final). Com a Lei n° 11.900/2009, que estendeu a disciplina do interrogatório por vide­ oconferência (CPP, art. 185, § 8°) para outros meios de prova, entre eles a acareação, será possível, desde que um dos acareados esteja preso, e presente uma das situações do § 3“ do art. 185, a realização de “acareação por videoconferência”. Se a acareação verdadeira, entre presentes, é de utilidade escassa, no confronto, seja por precatória, seja por videoconferência, como as pessoas são ouvidas separa­ damente, fatalmente manterão seus depoimentos originais. O fator fundamental da acareação é o vínculo psicológico resultante da presença, frente a frente, das pessoas cujos depoimentos foram conflitantes.®”

10.8.3 Valor probatório Normalmente, a acareação não dá o resultado esperado. Se o acareado estava de má-fé, tendo mentido deliberadamente, dificilmente modificará sua narrativa. A acareação, em si, não tem valor probatório, mas serve como elemento para que ojuiz possa valorar os depoimentos das testemunhas, as declarações do ofendido e o interrogatório do acusado. nervosismo; quem estava calmo; quem suava, esfregava as mãos, gaguejava ou tinha boca seca". Como explica Tomaghi (Curso..., v. 1, p. 43 8 ), a “descrição objetiva das atitudes” permitirá que as partes possam argumentar, o ju iz formar o seu convenci­ mento e a superior instância contrastar o acerto da sentença. Discorda-se de tais po­ sicionamentos. Embora não se desconheça que tais comportamentos ou reações dos acareados possam ser consideradas pelo juiz, parece temerário que uma sentença possa ter por fundamento tais elementos de convicção. Até mesmo porque haverá extremo subjetivismo em tal análise. 245. Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p, 338. 246. Nesse sentido: Camargo Aranha, Da prova..., p. 107.

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10.9 R econhecim ento d e pessoa ou coisa

10.9.1 Conceito

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O reconhecimento de pessoa ou coisa é um meio de prova no qual alguém é chamado para descrever uma pessoa ou coisa por ele vista no passado, para verificar e confirmar a sua identidade perante outras pessoas ou coisas semelhantes às descritas. Trata-se de ato eminentemente formal, para cuja validade é rigorosamente ne­ cessária a observância do procedimento probatório previsto no art. 226 do CPP.™' O reconhecimento possui três fases; (1) descrição da pessoa ou coisa; (2) com ­ paração da pessoa ou coisa com outras semelhantes; (3) indicação da pessoa a ser reconhecida. O reconhecimento de pessoas, normalmente, é feito com o suspeito ou com o acusado, como forma de confirmar uma suspeita ou de comprovar a autoria delitiva. É possível, também, que o reconhecimento recaia sobre o ofendido, para confirmar se ele realmente foi a vítima do crime, ou sobre testemunha que tenha dito presenciar o crime, para se apurar se realmente o presenciou. O reconhecimento visa ao descobri­ mento da identidade física da pessoa, pouco importando seu nome e demais dados qualificativos.™® Tem prevalecido o entendimento de que o reconhecimento pessoal não é ato probatório obrigatório na instrução da causa, ficando sujeito ao “prudente arbítrio do juiz".™“Discorda-se, pois assim considerar é violentar flagrantemente o direito à prova, p reconhecimento pessoal é medida eficaz e, sem dúvida, pertinente, tanto para que o Ministério Püblico comprove a autoria delitiva, quanto para que a defesa demonstre a negativa de autoria. Condicionar o direito à prova ao arbítrio do juiz é anulá-lo!

10.9.2 Procedimento A primeira etapa da descrição do reconhecimento pessoal é a descrição da pessoa a ser reconhecida (CPP, art. 2 2 6 ,1). Trata-se de fase obrigatória, sendo imperativo o inciso 1; “a p essoa que tiver de f a z e r o reconhecim ento será convidada a d escrev er a pessoa que deva s e r recon hecida” (destacamos). Deve-se procurar obter o máximo de elementos possíveis sobre a pessoa a ser identificada. Esta fase é fundamental, pois o reconhecimento envolve um ato de percepção passada e um ato de memória.

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547. Na jurisprudência, contudo, tem prevalecido o entendimento de que o reconhecimento S; mesmo que realizado sem a observância do art. 226 do CPP é válido, diante do princípio da liberdade probatória e da possibilidade de produção de provas atípicas. 548. Para Espínola Filho (Código..., v. 3„.p. 144), a pessoa chamada a efetuar o reconheci­ mento assume o papel de teste1âíSilf»?fe, portanto, deve prestar o compromisso de dizer a verdade, salvo se estiver isenta dessa obrigação como testemunha. Se a pessoa chamada a fazer o reconhecimento for a vítima, também está isenta de tal compromisso, por não ser testemunha verdadeira. |49. Na jurisprudência: STF RT 784/549.

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Se a descrição for diversa das características da pessoa que se pretende reconhecer, o reconhecimento será destituído de valor.*“ Por óbvio, por ocasião do reconhecimento pessoal, a pessoa que fará o reco­ nhecimento não poderá ver o acusado antes de descrevê-lo. Se assim ocorrer, a prova estará comprometida. A segunda fase é de comparação. A pessoa a ser reconhecida deve ser colocada, se possível, ao lado de outras que tenham as mesmas caracteristicas. A providência, nos termos do inciso II, não seria obrigatória, mas facultativa, devendo ser realizada, se possível. Todavia, sem a realização da segunda fase, a terceira fase também ficará impossibilitada, sendo ínfimo o valor probatório do “reconhecimento" que seja rea­ lizado em tal caso.*” O inciso II, primeira parte, refere-se a “qualquer semelhança”. Entendemos que não basta qualquer semelhança, mas sim um conjunto de dados semelhantes. Se não houver uma semelhança entre as pessoas ou coisas a serem reconhecidas, o reconhe­ cimento será nulo, por defeito formal. Em outras palavras, deverão ser confrontadas pessoas do mesmo sexo, origem racial, estatura, idade...*’* Por fim, na terceira fase, deverá a pessoa que procede ao reconhecimento indicar, entre as pessoas postas em comparação, qual foi efetivamente reconhecida, devendo a identidade desta constar do termo a ser lavrado (CPP, art. 226, II, parte final). Se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, nâo diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que o acusado não veja a pessoa que realiza o reconhecimento (CPP, art. 226,111). Tal possibilidade, contudo, não terá aplicação na fase da instrução criminal ou no plenário de julgamento pelo Tribunal do Júri (CPP, art. 226, parágrafo único). Com a Lei n° 11.900/2009, passou a ser possivel a realização de reconhecimento pessoal por videoconferência: como náo há limitação legal, em tese, tal poderá ocorrer 250. Há posição contrária, no sentido de que o fato de o reconhecedor nào ser capaz de descrever o reconhecido nâo deve impedir que o ato se realize (Tornaghi, Curso..., v.l, p. 430; Mirabete, Processo Penal, p. 334). Náo concordamos com tal posicionamento, ame os termos categóricos do inciso l. Além disso, é justamente a descrição das caracteristicas da pessoa a ser reconhecida que permitirá avaliar a veracidade do reconhecimento. 251. A jurisprudência, contudo, é tranquila quanto à facultatividade da fase de comparação: STF, RT 601/389; STJ, HC n®7.80241J, HC n" 38,69 3/SP, HC n®37.559/RS, HC n° 18.996/PE, RHC n° 10.199/SP; TJSP, RT 730/585; TACrimSP. RT 830/577, RT 812/588, RT 806/561, RT 704/352. Todavia, como advertia Bento de Faria (Código..., v l, p. 283), o reconhecimento deve ser sempre realizado iníer plurens. Não deve ser aceito, portanto, que o reconhecimento pessoal seja realizado apenas com a apresentação da pessoa que deva ser reconhecida. 252. Embora a necessidade de semelhança entre as pessoas seja defendida pela doutrina (Ca­ margo Aranha, Da prova..., p. 177), a jurisprudência tem admitido a validade do reconhe­ cimento, mesmo que não haja qualquer semelhança; TJSP, RT 744/560; extinto TACrimSP, RT 736/649.

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porque a pessoa a ser reconhecida está presa, ou porque o sujeito a realizar o reco­ nhecimento de outreni encontra-se detido. Em qualquer caso, deverá ser respeitado o procedimento do art. 226 do CPP, embora o reconhecimento não vá se realizar entre presentes, mas a distância, por meio de videoconferência. A toda evidência, neste caso, é fundamental que o equipamento utilizado permita absoluta nitidez das imagens. O mínimo comprometimento de sua qualidade impedirá que se dê valor ao ato, que sequer deverá ser realizado em condições técnicas deficientes. Se várias pessoas forem chamadas a reconhecer um mesmo acusado (por exemplo, diversas vítimas de um mesmo assaltante), cada uma delas deve proceder ao reconhe­ cimento separadamente, para evitar influências de uma sobre as outras (CPP, art. 228). Do reconhecimento deverá ser lavrado auto pormenorizado, subscrito pela au­ toridade, pela pessoa chamada a proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas (CPP, art. 226, IV). Também é possível a realização do reconhecimento de coisas, como o objeto material do delito, o produto ou o instrumento do crime e, mesmo, o lugar do crime.®’®

10.9.3 Valor probatório O reconhecimento pessoal já foi apontado como a mais falha e precária das pro­ vas. A principal causa de erro no reconhecimento é a semelhança entre as pessoas.®’‘' ^ A avaliação do valor probatório do reconhecimento envolve um fator essencial: ^ confronto entre a descrição antecipadamente feita e os traços físicos da pessoa Identificada. Por isso, é necessária a estrita observância do procedimento probatório previsto no art. 226 do CPP, para que o reconhecimento pessoal possa ser validamente felòrado como prova.®” pb I O reconhecimento fotográfico tem sido aceito como meio de prova válido, desde flue nâo seja possível a realização do reconhecimento pessoal. O principal argumento pâra a aceitação do reconhecimento fotográfico é, justamente, que se trataria de um |ttieio de prova atípico”. Todavia, o reconhecimento fotográhco nâo é uma prova atípica, mas um meio : prova irritual, que vulnera o procedimento probatório previsto no art. 226, subs!. Nesse sentido: Noronha, Curso..., p. 121. h Gorphe {La critica..., p. 232-233) ainda aponta outros fatores que concorrem para o erro do reconhecimento: as más condições de percepção, por exemplo, o fato de ter ocorrido à f ,i noite, sob o influxo da emoção, ou com defeito de atenção, em um tempo bastante curto... )5. Há posição jurisprudencial intermediária, no sentido de que pode ser aceito o reco­ nhecimento pessoal, sem a observância das formalidades do art. 226, desde que não seja a '■ única prova em que se baseia abí^adafação: extinto TACrimSP, RT 806/561, RT 755/652. Semelhante é a posição de Tomaghi (Instituições..., v. 4, p. 57): “jamais, portanto, poderia r aceitar-se como reconhecimento a identificação de uma pessoa insulada, sozinha. Isso, porém, não significa que o juiz não pudesse vir a convencer-se, mercê deste ato”. No mesmo sentido posiciona-se, também, Camargo Aranha, Da prova..., p. 179.

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tituindo a segunda fase de comparação física e ao vivo da pessoa a ser reconhecida pela comparação fotográfica. Não se trata, pois, de um simples caso de prova atípica, que seria admissível ante a regra do livre convencimento judicial. As formalidades de que se cerca o reconhecimento pessoal são a própria garantia da viabilidade do reconhecimento como prova, visando a obtenção de um elemento mais confiável de convencimento. Diante da vulneração do procedimento probatório previsto no art. 226, o reco­ nhecimento fotográfico não pode servir de fundamento para a condenação.'’' Também tem sido admitido como prova atípica o apontamento do acusado na audiência, pela vítima ou pelas testemunhas, dando-lhe o mesmo valor probatório do reconhecimento formal. Todavia, a indicação do acusado é prova irritual, não po­ dendo ser admitida no processo. 0 reconhecimento envolve uma percepção presente e uma pretérita. Há, também, um ato de memória, invocando percepções guardadas na memória, para compará-las com percepções atuais. A única forma de conferir a percepção pretérita, bem como a correspondência entre o confronto das percepções, é com a descrição da percepção pretérita, o que não ocorre na indicação do acusado. Ao mais, mormente no caso em que o acusado está algemado na sala de audiência, há um forte componente de sugestionabilidade no reconhecimento.'’®

256. No reconhecimento fotográfico, os dados disponíveis serão muito menos precisos, por exemplo; se a fotografia for apenas do rosto, dados como peso e altura anteriormente des­ critos nào poderão ser conferidos. É inegável que as fotografias se prestara a confusões e erros, muito maiores do que o reconhecimento pessoal, porque a imagem não proporciona os elementos do exame físico, como o gesto, o andar, a mudança da expressão. Altavilia (Psicologia judiciária..., v. 1, p. 407) explica que: “a recordação da estatura é completada com a da corporatura, podendo, muitas vezes, uma semelhança de quadratura de ombros, de obesidade, levar a um falso reconhecimento. Assim, como também pode ter importância aquilo que se chama fisionomia motora, isto é, a maneira como uma pessoa caminha, se move, gesticula’’. Todos estes dados relevantes para o reconhecimento da pessoa não sâo retratados na fotografia. Aliás, antigo julgado lembra, com razão, que “a fotografia já era conhecida quando da promulgação do Código de Processo Penal e se ele não a incorporou entre os meios de prova é porque entendeu nâo ser, como nào é, muito segura” (extinto TACrimSP RT 476/388). 257. Frederico Marques (Elementos..., v. 2, p. 334) e Mirabete (Processo Penal, p. 336) aceitam o reconhecimento fotográfico como meio de prova. Predomina, contudo, a corrente oposta, negando-lhe valor probatório: Espínola Filho, Código.v, 3, p. 143; Fragoso,Jurisprudência criminal, p, 520, Noronha, Curso..., p. 124; Camargo Aranha, Da prova..., p. 182; Gomes Filho, Notas sobre..., p. 316. Ajurisprudência aceita o reconhecimento fotográfico, com a ressalva de que, isoladamente, não poderá fundamentar uma condenação penal (STF, RT 706/417; STJ, RT 821/532; extinto TACrimSP, RJDTACrim 28/214, RJDTACrim 31/247). devendo estar conoborado por outros elementos probatórios (STE RT 817/505, RT 736/545; STJ, AgRg no AREsp no 192.334/SE; HC n” 56.723/SP, HC n” 22.907/SP; extinto TACrimSP, RT 799/614, RT 741/627). 258. Negando valor a este “ato de apontar simplesmente tête-d-téte” o acusado do delito, cf. voto do Min. Marco Aurélio no HC n" 77.576, Rei. Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, j. 02/02/1999, RTJ 179/1065.

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10.10 Prova docum ental

10.10.1 Conceito Em sentido amplo, documento é qualquer suporte material que represente um fato juridicamente relevante. É todo e qualquer objeto que serve para demonstrar a verdade de um fato, como escritos, fotografias, pinturas, filmes... Em sentido estrito, documento são os escritos que servem como prova em juízo. O CPP refere-se apenas aos documentos escritos, isto é, aos documentos em< sentido estrito (CPP, art. 232). Os documentos escritos podem ser instrumentos ou papéis. Instrum entos são os escritos confeccionados com a finalidade de provar determinados fatos (por exemplo, uma escritura), enquanto os papéis são os escritos que não foram produzidos com o fim determinado de provar um fato, mas que vêm a servir de prova (por exemplo, uma carta). O documento é uma prova histórica real,

10.10.2 Características No documento há dois elementos: (1) comunicativo; (2) certificante. O elemento comunicativo é a representação de um pensamento ou de uma ocor­ rência. O elemento certificante é a demonstração de que tal representação é exata e exprime a verdade.*’® Outros aspectos importantes dos documentos que precisam ser distinguidos são: (1) fato representativo, isto é, o próprio documento (por exemplo, uma carta); (2) fato representado, que é o conteúdo do documento (por exemplo, a narrativa constante da carta).*“ Veracidade do documento é a existência real do que no documento se contém, se relata ou se expõe. Autenticidade é a certeza de que o documento provém do autor nele indicado, havendo coincidência entre o autor aparente e o real. A autenticidade, porém, náo envolve apenas a identificação do autor, mas também outros dados como local e data de produção do documento. P Os documentos públicos gozam de presunção de autenticidade. Isto é, são con[síderados autênticos, até que tal característica lhes seja contestada, pela alegação de [lua falsidade. Já os documentos particulares somente serão considerados autênticos squando reconhecidos e aceitos por aquele contra quem o documento faz prova (por faem plo, reconhece de sua autoria a carta em que narra ter cometido o crime).*®*

fiL__________ 59. Frederico Marques, Elemeníos.Ç^(jRN2/p. 345. |60. A distinção é feita, em doutrina, por Amaral dos Santos, Da prova..., v. 4, p. 47, nota 42; Frederico Marques, Elementos..., v. 2, p. 345; Noronha, Curso..., p. 126. 61. Para Frederico Marques (Elementos..., v. 2, p. 3 4 7 ) a autenticidade não se confunde com a nominalidade. É possivel a existência de um documento autêntico, mas apócrifo. Por

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10.10.3 Espécies Quanto à origem o documento poderá ser: (1) püblico; (2) particular (CPP, art. 232, caput). Documento público é aquele expedido na forma da lei, por um funcio­ nário público, no exercício de suas funções (por exemplo, uma escritura lavrada por tabelião, uma sentença proferida pelojuiz etc.). Documento particular é aquele escrito e assinado, ou somente escrito, ou somente assinado, por particulares. Em outras pala\Tas, é o documento que não é lavrado por funcionários públicos, no exercido regular de suas funções. No entanto, se ao documento público faltar qualquer requisito legal para sua autenticidade, seja pela incompetência do funcionário, seja pela preterição de formalidades legais, equivalerá a documento particular, desde que devidamente assinado. Quanto à forma o documento pode ser: (1) original; (2) cópia (CPP, art. 232, parágrafo único). Documento original é o que se apresenta em sua forma genuína. Já as cópias são reproduções dos documentos originais. A cópia do documento, devidamente autenticada, terá o mesmo valor do docu­ mento original (CPP, art. 232, parágrafo único). Quanto à produção, o documento pode ser: (1) produção espontânea; (2) produção provocada. A produção espontânea se faz com a exibição ou juntada pela parte. Já a produção provocada ou coacta se faz nos termos do art. 234, por ordem do juiz, bem como quando o documento é apreendido em função de medida cautelar de busca e apreensão.

W. 10.4 Documento eletrônico Na era da informática e, principalmente, da internet, cada vez mais tem se tor­ nado frequente a utilização dos chamados “documentos eletrônicos", em especial os chamados e-malls. Inicialmente, é de observar que o e-mail, isto é, a correspondência eletrônica enviada de um computador para outro, pela internet, não possui um substra­ to material. “O documento eletrônico pode ser entendido como aquele que foi gerado ou arquivado por sistema computadorizado, em meio digital. Os pontos críticos desse tipo de documento são: a comprovação da identidade das partes (autoria e aceitação) e a prova do seu conteúdo e da sua integridade.”'™Não se trata, portanto, de um do­ cumento escrito, isto é, um suporte cartáceo, que contenha signos estampados, nos termos do art. 232, caput, do CPP. O e-mail. como documento eletrônico, não se confunde com o papel impresso pelo destinatário do e-mail, reproduzindo o conteúdo do próprio e-mail. Neste caso. exemplo, uma carta anônima. Diversamente, para Bento de Faria (Código..., v. 1, p. 288-89) “o documento deve individuar o respectivo autor. Não têm, pois, esse caráter os escritos anônimos”. 262. Queiroz, Assinatura digital..., p. 381-382,

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o que se tem é um documento particular, mais especificamente, papéis, no conceito do an. 232, caput, do GPP, cuja autenticidade deve ser reconhecida pela parte, para que possa ser tido como tal. A Medida Provisória n° 2.200-2, de 24/08/2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), estabelece, no seu art. 10, que “consideram-se documentos públicos ou particulares, p ara todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta medida provisória”. De acordo com a origem do e-mail, ele será um documento público (se emitido por um funcionário público no exercício de suas funções) ou um documento particular (emitido por pessoa que não seja funcionário público).“ ' De qualquer forma, tanto o documento eletrônico público quanto o documento eletrônico particular gozam de “presunção de autenticidade”. O regime dos docu­ mentos eletrônicos modifica as regras gerais do CPP, em que somente os documentos públicos presumem-se autênticos (CPP, art. 235). No regime do documento eletrô­ nico a diferenciação não leva em conta a origem de quem o emitiu, mas sim o órgão emissor do certificado digital. O documento certificado pelo ICP-Brasil presume-se autêntico (MP 2.200-2/2001, art. 10, § 1°), enquanto o documento certificado por outro meio de comprovação de autoria e integridade será considerado autêntico e íntegro, “desde que adm itido pelas partes com o válido ou aceito pela pessoa a quem fo r oposto os documentos” (an . 10, § 2“). Em suma, os documentos eletrônicos certifit cados por outro órgão que não seja o ICP-Brasil seguem o mesmo regime do CPP para os documentos particulares. Outra importante diferença é que, em relação aos documentos eletrônicos com rtificaçâo digital, não se aplica a distinção entre documento original e cópia. pois “os Ipcumentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com 'garantia da origem e de seu signatário, na forma da lei, sâo considerados originais para _ todos os efeitos, nos termos do artigo 11 da Lei n° 11,419/2006".“ ’ ÉO. 10.5 P roced im en to p ro b a tó rio . A juntada do documento nos autos pode se dar por determinação do juiz, ex Mficio, ou a requerimento das partes (CPP, art. 234). i ' Em regra, os documentos podem ser juntados aos autos em qualquer fase do processo (CPP, art. 231). A única exceção está prevista no procedimento do tribunal ^63. “As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verda| 'u deiros em relação aos signatários” (MP n® 2.200-2/2001, art. 10, § 1°). Quando a norma se refere à presunção de veracidatíl^jttaL.expressáo deve ser entendida como presunção de autenticidade (aspecto formal) e não presunção de veracidade (conteúdo). A certificação digital, por um órgão público, no caso o ICP-Brasil, eqüivale, em relação aos documentos escritos, a um reconhecimento de firma. STJ, SEC n® 7.878/EX.

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dojúri, exigindo que os documentos que serão lidos em plenário sejam juntados “aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte" (CPP.art. 479,capuí).“’ Na prova documental, o momento de requerimento da prova se confunde com o momento da sua produção: na petição em que se requer ajuntada dos documentos, ele já é levado aos autos. 0 juízo de admissibilidade da prova acaba ocorrendo após a sua juntada. Em caso de juízo negativo, a consequência será o desentranhamento, posto que a prova já foi produzida. Embora o CPP não tenha regra expressa, deve ser aplicado, por analogia, o art. 398 do CPC, que prevê a manifestação da parte contrária, no prazo de cinco dias, toda vez que uma das partesjunte documento aos autos,'“ que é uma decorrência do princípio do contraditório.'®' Ajuntada do documento poderá também dar ensejo a incidentes probatórios. O incidente de falsidade documental é a forma de contestar a autenticidade do documento particular (CPP, arts. 145 a 148). Todavia, no processo penal, o incidente não é o único meio de demonstrar a fabidade documental. Outros meios de prova existentes nos autos poderão demonstrar que o documento não é autêntico (por exemplo, testemu­ nhas que tenham presenciado alguém adulterando o documento). A firma de documentos particulares será submetida a exame pericial, quando contestada a sua autenticidade (CPP, art. 235). Não há razão para que a lei tenha li­ mitado a perícia aos documentos particulares. Embora o documento público goze de presunção de autenticidade, a firma nele aposta pode ser contestada, sendo cabível realização de pericia para lhe comprovar a autenticidade. Não se admitem no processo as cartas particulares interceptadas ou obtidas por meio criminoso (CPP, art. 233). Trata-se de vedação à utilização da prova ilícita já existente muito antes da previsão constitucional do art. 5°, LVl. Se o documento estiver em língua estrangeira, deverá ser traduzido (CPP, art. 236). 265. Anteriormente à reforma de 2008, havia outra restrição, prevista na redação originária do art. 406, § 2°, do CPP, que vedava a produção da prova documental depois de encerrada a instrução no juízo da acusação, isto é, na fase das alegações finais da primeira fase do procedimento dos crimes dolosos contra a vida. 266. Não se caracteriza como documento os pareceres jurídicos juntados ao processo. Nes­ se sentido, na jurisprudência, o STF decidiu que “(...) pareceres opinativos (...) não se equiparam a documentos (...)” (RE 93.243, rei. Min. Thompson Flores, DJ 05.12.1980), e que a eventual “(...) juntada de parecer da lavra de importante jurista (. . .)” sequer “(.. ) induz à abertura de vista à contra-parte (...)” (RE 357.447-AgR-ED, e ROHC n° 94.350-1/ SC -R T 880/473). 267. A doutrina entende que o desrespeito a tal regra gera apenas nulidade relativa (Mirabete, Processo Penal, p. 278), com o que concorda a jurisprudência: STF, RT 740/55; TJRS, RJT JERGS 182/134. Pensamos diversamente: a não intimação da parte gera nulidade absoluta, por implicar violação direta ao principio constitucional do contraditório.

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10.10.6 Valor probatório Para a compreensão do valor do documento, é necessário distinguir os aspectos extrínseco e intrínseco, isto é, a forma e o conteúdo dos documentos, respectivamente. Todo documento escrito contém determinadas afirmações (conteúdo ou aspecto in­ trínseco); além disso, considerado graficamente, o documento escrito afirma-se como proveniente de determinada pessoa, quer por seu contexto, quer por sua assinatura. Outros aspectos extrínsecos relevantes são a data e o local em que foi constituído o documento. Tais elementos, contudo, são eventuais, e não obrigatórios. Por sua vez, quanto à autoria, o documento que nâo possa ter a sua autoria identificada, como os escritos anônimos, não pode ter qualquer valor probatório. É possível que o conteúdo seja falso, mas o documento seja autêntico (por exemplo, uma declaração falsa, por afirmar um fato que não ocorreu, assinado por uma pessoa que sustenta tê-lo visto). Por outro lado, é possível que o conteúdo seja verdadeiro, mas o documento não seja autêntico (por exemplo uma declaração de um fato que realmente ocorreu, mas que não foi feita pela pessoa cuja assinatura consta do documento). É possível, ainda, que o documento não seja verdadeiro nem autêntico (uma declaração de algo que não existiu feita com falsa assinatura daquele que seria 0 declarante). Para valoração da prova documental deve-se distinguir o documento público do documento particular. O primeiro presume-se autêntico, enquanto o segundo deve ter a sua autenticidade provada no processo. 1 Presume-se a autenticidade do documento público, que faz prova do seu aspecto sextrínseco. Já quanto ao seu aspecto intrínseco, isto é, ao seu conteúdo, o documento público somente faz prova das afirmações e dos fatos consumados na presença do |tabelião ou de outro oficial público. No caso de declarações perante um oficial públi7ço, o documento público faz prova de que a pessoa disse o que consta do documento ipúblico, na presença do oficial público, mas não prova que o fato, objeto da declaraiMo, efetivamente ocorreu conforme declarado. O conteúdo da declaração deverá ser ovado pelos meios normais de prova. Já os documentos particulares precisam ser autenticados, o que se faz, normalmen;e, pelo reconhecimento de firma, se assinados, ou pelo reconhecimento de sua autenti­ cidade, pela parte contrária ou pelo próprio autor do documento. Se o documento não for assinado, nem tiver sua autoria reconhecida, a letra ou a firma do documento paricular poderã ser submetida a exame pericial para se constatar sua autenticidade ÍGPP, art. 235). O exame pericial para a constatação da autenticidade do documento, láseado na comparação de letras, denominado exame grafotécnico, está disciplinado no art. 174 do CPP. Finalmente, poderá ter sua autenticidade comprovada por prova çstemunhal, de quem tenha visút^aúfor do documento confeccioná-lo. Quanto à falsidade documental, ela poderá ser material quando diz respeito ».aspecto extrínseco do documento - sua forma - , ou intelectual, - quando relaiyaao aspecto intrínseco - conteúdo. Há falsidade material quando, por exemplo.

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o documento se apresenta originário de uma pessoa da qual, efetivamente, não provem. Há falsidade ideológica quando a declaração contida no documento não corresponde à verdade,

10.11 Indícios e presunções W.! 1.1 Conceito 0 art. 239 do CPP define 0 indicio: “Considera-se indicioaci rcunsídncia conhecida e provada, que, tendo relação com o Jato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.

Para Maria Thereza Rocha Assis Moura: “Indicio é todo rastro, vestígio, sinal e, em geral, todo fato conhecido, devidamente provado, suscetível de conduzir ao co­ nhecimento de um fato desconhecido, a ele relacionado, por meio de um raciocínio indutivo-dedutivo” Emhora o CPP discipline o indício entre os meios de prova, o indício nào é um meio de prova, mas o resultado probatório de um meio de prova. O indício é o fato provado, que permite, mediante inferência, concluir pela ocorrência de outro fato. 0 que pode ser provado é o fato indicativo (por exemplo, uma testemunha que viu o acusado com uma faca suja de sangue e a vitima esfaqueada aos seus pés). O indício é o fato certo que está na base da inferência da presunção. Em outras palavras, o indício é o ponto de partida da presunção. Ou, visto pelo outro lado, a presunção é um juízo fundado sobre um indício.“®

10.11.2 Raciocínio incJiciário Segundo o art. 239, no indício há um raciocínio indutivo. Aindução consiste na passagem do particular para o geral: de dados singulares, de casos observados, induz-se uma conclusão genérica, uma lei universal. Já na dedução tornam-se explicitas verdades particulares contidas em verdades universais: o ponto 268. Moura, .4 prova par indício..., p, 38 _69. Etn dUersos dispositivos o CPP usa a palavra indício com significado diverso do art. 239. ®expressão “indicio suficiente de autoria"; já o art. 413. caput, refere-se a indícios suficientes de autoria"; por outro lado, o art. 126 exige “indícios veementes da proveniência i ícita dos bens . Nesses dispositivos, a palavra indício significa uma prova mais tenue, não sendo necessário que haja prova capaz de convencer o juiz de que o réu é autor 0 c ito. Trata-se de critério de probabilidade e não de certeza. Para decretação da pnsao ou para a pronúncia, é necessário um inicio de prova ou mesmo um conjunto de provas que mdique como provável a autoria, mas nâo será necessária a certeza da autoria. Alias, em tais casos, muitas vezes, esse “indicio" de autoria consistirá no testemunho de a guém que presenciou o crime, ou um documento no qual se confessa o delito, ou mesmo em um in ício propriamente dito, como a impressão digital na arma do crime. Assim, não se trata necessariamente, de prova indireta ou do conceito técnico de prova indiciaria. 0 mdico de autoria", muitas vezes, decorre de uma prova direta.

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de partida é uma verdade universal, com base na qual se chega a uma verdade menos geral contida implicitamente na verdade universal. A despeito da dehniçào legal, a questão é controvertida na doutrina, predomi­ nando o entendimento de que no indício há um raciocínio dedutivo.™“

W. 11.3 Valor probatório Diante do princípio do livre convencimento, o indício nào tem valor predeter-‘ minado. Nào havendo escala de valor entre os meios de prova, o indicio não vale nem mais nem menos que outras provas. Modernamente, o indício não pode ser considerado prova semiplena, como ocorria no sistema da prova legal. O primeiro requisito para que a prova indiciária tenha valor é que o fato indiciário esteja plenamente provado, sendo conhecido e induvidoso. Uma vez provado o fato indicante ou fato de base, deve-se analisar a natureza da regra utilizada como fundamento do raciocínio inferencial. Se a inferência tiver por base uma regra da experiência (por exemplo, quem é encontrado com a coisa roubada é o autor do roubo), a conclusão extraída do indício será apenas provável, mas nunca uma certeza. Por seu turno, se o indício estiver fundado em um princípio da razão (por exemplo, o princípio da contradição; nada pode ser e não ser ao mesmo tempo), a conclusão será uma “certeza”. Em suma, é tanto mais forte o valor probatório do indício quanto mais forte for a relação entre o fato indicante e o fato indicado, íj Prevalece o entendimento de que uma pluralidade de indícios, desde que coe­ rentes e concatenados, pode dar a certeza exigida para a condenação. Por outro lado, : embora a certeza absoluta seja inatingível, não é razoável admitir a condenação com ; base em um único indício, por mais veemente que seja. Tal situação nâo permite que se considere atingida a “elevadíssima probabilidade” necessária para a condenação penal. O indício, que permite um raciocínio inferencial com base em uma regra de ‘ normalidade, ou do que comumente acontece, jamais autorizará umjuízo de certeza, _mas sim de mera probabilidade, o que é insuficiente para a condenação.™'

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Também nâo é de admitir que um indicio sirva de base para outra inferência dndiciária, isto é, que um indício seja a base de outro indício. Se o indício é o fato Í70. No sentido de que há um raciocínio dedutivo posicionam-se: Tomaghi, Curso..., v. 1, p** p. 453; Camargo Aranha, Da prova. .. p. 166; Greco Filho, Manual..., p. 200. No sentido de que o raciocínio é indutivo: Noronha, Curso..., p. 130. já Maria Thereza Moura (A prova..., p. 380) entende que o raciocínio judicial é indutivo-dedutivo, uma vez que o juiz deve partir de um caso particular, para chegar a uma regra geral. O resultado do raciocínio não pode ser pura regra de lógica. j é h Na jurisprudência prevalece*cífetc'ndimento de que um conjunto de indícios co e­ rentes e concorrentes constitui prova suficiente para autorizar a condenação (extinto TACrimSP. RJDTACrim 34/69, RJDTACrim 16/133: TJMT, RT 480/359). Por outro lado, I ; um único indício tem sido considerado insuficiente para a condenação (extinto TA|í .CrimSP, Ap. n° 1.144.159/8).

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conhecido e provado, permite inferir outro fato. A base, isto é, o fato indiciante, deve estar provada. E um único indício não será apto a provar o fato de base, pois, no má­ ximo, um indício isolado fornecerá uma probabilidade, segundo o que normalmente ocorre, de que o fato indicado seja verdadeiro. Impossível, pois, um juízo de certeza, ainda que considerada um conceito não absoluto.

10.11.4 Indícios e presunções Vários autores tratam os indícios como sinônimos das presunções. Muitas legis­ lações tratam os indícios e as presunções como meios de provas. Indícios e presunções apresentam estreita vinculação com a noção de prova, mas não são meios de prova. São denominados “sucedâneos da prova”, entre os quais se incluem, também, provas legais e ônus da prova. Muitas vezes o legislador utiliza-se de expedientes que se assemelham aos meios de prova, mas não o são. Assim, além dos meios de prova, há outros caminhos para que se chegue ao resultado do processo. Não sâo meios de provas, pois não se destinam a levar ao juiz a verdade sobre um fato. Entretanto, sâo instrumentos que possibilitam que o juiz julgue o processo, ainda que não tenha certeza sobre a ocorrência ou não de um fato relevante para a decisão.

10.11.5 Espécies de presunções Tradicionalmente, as presunções podem ser classificadas como presunções judiciais ou simples (praesumptiones hominis) e presunções legais (praesiimpüones iuris). Estas, por sua vez, se distinguem em presunções absolutas (iuris et de iure) e presunções relativas (iuris tantum). A presunção, contudo, náo é um meio de prova, mas uma operação mental, baseada em uma prova. Na presunção judicial o juiz passa de um fato provado a outro não provado, por meio de uma atividade intelectiva. Com base na prova de um determinado fato, que não constituio themaprobandum, ojuiz, mediante um processo mental, concluique ocoueu outro fato, este, sim, objeto da prova. Provada a ocorrência do fato X, ojuiz presume a ocorrência do fato Y. O que autoriza esse raciocínio judicial é a relação entre os fatos. Essa conexão entre o fato conhecido e o fato ignorado pode ter naturezas diversas. Do ponto de vista lógico, pode haver uma relaçáo de implicação necessária entre a proposição que enuncia o primeiro fato como existente e a proposição que manifesta a existência do segundo fato, o que eqüivale a dizer que o conhecimento do primeiro fato produz, inevitavelmente, o conhecimento do segundo. Em tais casos, a regra inferencial será uma regra de validade universal."' 272. C om o observa Taruffo (Certezza e probabilità..., p. 89). há regras universais no campo da lógica (por exemplo, o principio de não contradição), da matemática (v.g.; a ângulos internos de um triângulo é igual a 180“) e nas ciências físicas (“a regra da inércia )■jí

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Em outro caso, porém, a inferência se baseia em uma regra que, embora não tenha validade universal, isto é, ainda que a proposição do fato provado nâo implique inevi­ tavelmente a proposição do fato ignoto, a experiência comum permite afirmar a sua existência na maior parte dos casos, sendo o segundo fato uma consequência “normal” ou “frequente” do primeiro. Como explica Chiovenda, “a presunção equivale a uma convicção fundada na ordem normal das coisas”.*" No entanto, embora haja boas razões para considerar verdadeiro o fato presumido, não fica excluída a possibilidade de que sua enunciação possa ser falsa. A situação é semelhante na presunção legal relativa. O elemento comum entre a presunção judicial e a legal relativa é que, em ambas, passa-se de um fato conhecido e provado para outro fato. A diferença entre a presunção judicial e a presunção relativa é que, na primeira, quem estabelece a relação entre o fato conhecido e o fato desconhecido é o órgão ju ­ dicial, já na segunda é o próprio legislador quem determina a relação entre tais fatos. Por fim, quanto às presunções absolutas, cabe destacar que nâo pertencem ao direito processual, mas sim ao direito material, nâo guardando relação direta com a disciplina probatória.

W. 11.6 Presunções simples, presunções relativas e o ônus da prova É comum encontrar na doutrina e na jurisprudência afirmações de que a presun­ ção inverte o ônus da prova. Não há tal inversão. A presunção provoca uma alteração na distribuição do ônus da prova. A presunção dispensa a parte por ela beneficiada do ônus da prova de uma ale­ gação fática que, normalmente, lhe incumbiria (o fato presumido) e atribui à outra parte o encargo de provar o fato contrário. Ao mais, as presunções relativas, alémdealterarem a distribuição do ônus da prova, também implicam mudança no objeto da prova. Presumido um fato X, que não coin­ cide com o thema probandum, infere-se um falo Y, que é o verdadeiro objeto da prova. Caberá à parte beneficiada pela presunção, que teve o ônus da prova alterado em seu favor, provar a ocorrência do fato X que, a princípio, seria irrelevante para o processo. Em suma, as presunções relativas nada mais sâo do que regras especiais de dis­ tribuição do õnus da prova. Mais precisamente, são regras que estabelecem uma dis­ tribuição do ônus da prova diversa daquela que vale para a generalidade dos processos. ^ Justamente por isso não se admite no processo penal brasileiro uma presunção relativa em favor da acusação. Diante da presunção de inocência, a regra dejulgamento que vigora no processo penal é in reo. Isso significa que todo o ônus da prova incumbe ao Ministério Público ou ad querelante. Inverter o ônus da prova significaria adotar a regra oposta: in dubio pro societate, ou, expresso em outros termos, in dubio ' í n . Chiovenda, Instituições..., v. 3, p. 199.

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contra reum. Como a presunção de inocência tem hierarquia constitucional, não pode ser alterada por nenhuma lei, que seria inconstitucional."® De outro lado, não haverá nenhum óbice a que se estabeleçam presunções favo­ ráveis ao acusado, pois isto não violaria a presunção de inocência."’ Contudo, não haverá utilidade prática em tal presunção, nos processos penais condenatórios. As presunções relativas dispensam seu beneficiado do ônus da prova que normalmente lhe incumbiria. No processo penal condenatório, contudo, o acusado já não possui nenhum ônus probatório, nào tendo sentido falar em dispensar alguém de algo que nâo existe."® Somente naqueles casos em que não tem aplicação a presunção de ino­ cência - por exemplo, na execução penal - , teria utilidade instituir uma presunção em favor do acusado, ou melhor, no caso, do condenado. Em suma, no processo penal, nâo è possível a existência de qualquer regra que supere a presunção de inocência, sendo inadmissíveis quaisquer presunções relativas em favor do Ministério Público ou do querelante. Por outro lado, seria possível a criação de presunções legais em favordo acusado. Tais presunções, contudo, seriam inúteis, posto que o acusado já tem a seu favor, como regra ampla e geral, a presunção de inocência.

10.11.7 Presunções absolutas A presunção absoluta ou iuris eí de iure é tradicionalmente apontada como aquela que “não admite prova em contrário". As presunções absolutas nada têm a ver com o processo e com a prova, pertencendo ao direito material. As presunções absolutas têm a forma de presunção, mas conteúdo de uma norma material. São expedientes de técnica legislativa que provocam uma simplificação da fattispecie, facilitando a atribuição de um direito em favor daquele em beneficio de quem ela foi instituída. Na verdade, a presunção absoluta é uma forma especial de o legislador regrar uma relação jurídica ou criar um afattispecie, a partir da pressuposição de que determina274. Também não seria possivel uma emenda constitucional visando a criar uma presunção contrária ao acusado, posto que a presunção de inocência, sendo uma garantia individual da Constituição, não pode ser alterada por se tratar de cláusula pétrea. 275. Segundo Jimènez de Asúa (Tratado..., v. 4, p. 257). a possibilidade de defesa contra o ladrão noturno remonta à Lei das XII Tábuas: 5i noctii furtum fiat, furan autem aliquis occiderit, impune esto. 276. O Código Penal brasileiro de 1890 estabelecia, no art. 35, § 1°, que “reputar-se-á praticado em defesa própria ou de terceiro o crime cometido na repulsa dos que, à noite, entrarem ou tentarem entrar na casa onde alguém morar ou estiver, ou nos pátios e dependências da mesma, estando fechadas, salvo os casos em que a lei o permitir”. Trata-se de uma presun­ ção de legítima defesa. Todavia, como o in dubio pro reo também se aplica às excludentes de ilicitude, tal regra mostra-se desnecessária. Segundo Jimènez de Asúa (Tratado-, v. 4, p. 257), a possibilidade de defesa contra o ladrão noturno remonta à Lei das .XII Tábuas. Si noctu furtum fiat, furem autem aliquis occiderit, impune esto.

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das situações, consideradas requisitos de existência ou de inexistência deste direito, não poderão ser contestadas ou infirmadas. A presunção absoluta influi na própria estrutura da norma material. Barbosa Moreira, de forma muito esclarecedora, explica: “Suponhamos que, em regra, a existência ou validade de certo ato, ou a produção de certo efeito, fique condicionada à concorrência dos elementos ou requisitos a, b e c, mas que, nalguma hipótese particular, quiçá para facilitar a satisfação do interesse julgado merecedor de mais forte proteção, queira o legislador dispensar um deles - c, por exemplo. Em vez de dizer que bastam a e b para que exista ou valha o ato, ou pata que se produza o efeito, diz que, sob aquelas circunstâncias peculiares, se presume (de modo absoluto) a presença de c.”™®

10.12 Busca e apreensão O CPP disciplina a busca e a apreensão no Título destinado às provas. Todavia, não se trata, propriamente, de meio de prova, mas, como já exposto, de meio de ob­ tenção da prova. A busca e a eventual apreensão da coisa ou da pessoa, em si, nada provam. Entretanto, por meio da busca e da apreensão se conservam os elementos de provas apreendidos (por exemplo, diários, cartas, livros contábeis). Posteriormente, dependendo da fonte de prova (pessoa ou coisa) obtida, deverá ser produzido o meio de prova correspondente. Assim, por exemplo, as cartas ou diários serão juntados ao processo como documentos (estes, sim, serão os meios de prova); no caso de um livro contábil poderá ser submetido à perícia para, por exemplo, verificar eventual crime de sonegação fiscal. Mesmo no caso de busca pessoal, a pessoa encontrada e submetida à custódia serã apenas uma fonte de prova. Se, por exemplo, se tratava de vítima de crime de extorsão mediante sequestro ou de redução à condição análoga à de escravo, poderá comparecer ajuízo e prestar declarações. O meio de prova, contudo, não será a busca e a apreensão da pessoa, mas as “declarações do ofendido”. Normalmente, à busca sucede a apreensão do que se encontrou. Provavelmente, por haver essa normal relação de meio a fim, o CPP tratou dos dois institutos como se fossem inseparáveis e indissociáveis. Todavia, embora não seja comum, é possível separar a busca da apreensão, podendo uma ocorrer sem a outra. Há casos em que a busca é positiva, mas não se apreende o que foi buscado. Assim, por exemplo, no caso de busca de criminosos, haverá a sua prisão, e não sua apreensão (CPP, art. 240, § 1°, á}- No caso de busca de pessoas, como a vítima de um delito, à busca seguirá imediata apreensão, mas a pessoa será, em seguida, posta sob custódia da autoridade ou de seus agentes. Por outro lado, é possível que a apreensão não seja precedida de busca, como ocorre quando a coisa é entregue espontaneamente à autoridade, lavrando-se i apenas o auto de exibição e apreensão (por exemplo, o autor do crime confessa o delito |e!éntrega a arma ao delegado íj^ólfcia).'®® ,^77

As presunções..., p. 63.

■ ^ 78 Na doutrina, a distinção entre a busca e a apreensão é encontrada em: Sérgio Pitombo, Do sequestro..., p. 60; Cleunice Pitombo, Da busca..., p. 88-89; Nucci, Código..., p. 506.

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A busca consiste em ato de procura de pessoa ou coisa.*’® Já a apreensão é medida assecuratória que toma algo de alguém ou de algum lugar, com a finalidade de produzir prova ou preservar direitos. É lição corrente que a busca e a apreensão podem ocorrer antes mesmo da ins­ tauração do inquérito policial (por exemplo, quando o policial faz uma busca pessoal diante da fundada suspeita de que um transeunte esteja portando uma arm a), durante o inquérito policial (por exemplo, uma busca domiciliar na casa do suspeito visando encontrar instrumento do crime), durante o processo (por exemplo, busca para en­ contrar provas que teriam sido ocultadas) e até mesmo ao longo da execução penal (por exemplo, busca domiciliar para verificar se o condenado se encontra em casa, no período que deve cumprir pena em prisão domiciliar).*“ A busca e a apreensão podem ser determinadas ex officio pelo juiz ou mediante requerimento das partes (CPP, art. 242).

10.12.1 Busca domiciliar As hipóteses de busca domiciliar estão disciplinadas no § 1° do art. 240 do CPP. A busca domiciliar é uma restrição legal ao direito da inviolabilidade do domicílio, assegurada no art. 5°, XI, da CR; “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo pen etrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou p ara prestar socorro, ou, durante o dia, por determ inaçáo judicial". Sem o consentimento do morador, somente se poderá ingressar no domicílio alheio em caso de flagrante delito, ou em decorrência de ordem judicial, neste último caso, apenas durante o dia. Por se tratar de restrição a direito individual, não se pode presumir o consentimen­ to do morador, somente sendo possível a busca sem mandado quando este franquear a entrada em sua residência.*®* A definição de domicílio deve ser ampla, compreendendo, a teor do disposto no art. 246 do CPP, e art. 150, § 4“, do CP: (1) qualquer compartimento habitado; (2) 279. Segundo Cleunice Pitom bo (D a b u sca ..., p. 9 6 ), busca “é ato do procedim ento persecutivo penal, restritivo de direito individual (inviolabilidade da intimidade, vida privada, domicilio e integridade física ou mental), consistente em procura, que pode ostentar-se na revista ou no varejamento, conforme a hipótese; de pessoa (vítima de crime, suspeito, indiciado, acusado, condenado, testemunha e perito), semoventes, coisas (objetos, papéis e documentos), bem como de vestígios (rastros, sinais e pistas) da infração”. 280. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 345; Nucci, Código..., p. 507. Na jurisprudên­ cia, o STJ considerou regular a busca e apreensão de objetos relacionados com o crime, feita pela autoridade policial, com fundamento no an. 6°, 11, do CPP, ao tomar conhecimento de fato delituoso, antes mesmo da instauração do inquérito policial (RT 665/333). 281. Na jurisprudência, já se decidiu que “o ônus de comprovar o consentimento do denun­ ciado na entrada dos agentes policiais em sua residência é do Estado" (TRF 2® Região, RSE n° 2005.51.01,505835-5).

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aposento ocupado de habitação coletiva; (3 ) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. Assim, para fins de busca e apreensão, devem ser considerados “domicílio” as casas e os apartamentos propriamente ditos, devidamente habitados, bem como as áreas contíguas, como quintais e garagens. Também será coitsiderado “casa” o quar­ to de hotel, de pousada, de pensão ou qualquer outro lugar fechado utilizado como morada de alguém (por exemplo, edifício abandonado que esteja sendo utilizado como moradia de andarilhos). Igualmente serão reputados casa, para fins de busca domiciliar, o consultório médico, o escritório de advocacia, ou outro lugar não aberto ao público em que alguém exerce profissão.'®' Magalhães Noronha lembra que “o domicílio não é apenas a casa onde a pessoa desenvolve sua atividade, isto é, o edifício propriamente dito, mas também outros lugares, como o carro do saltimbanco, a cabina de um carro, o quarto de hotel, o escri­ tório etc., e dependências são os lugares complementares, como o jardim, o quintal, a garagem etc., não franqueados ao público”.'®' No caso da busca em veículo, se for utilizado apenas como um meio de transporte, deverá seguir a regra das buscas pessoais, não sendo necessária a expedição de mandado judicial de busca. Todavia, excepcionalmente, tratando-se de veículo que sirva de mora­ dia, como trailers, barcos, cabines de caminhóes, ou mesmo carros que sirvam de casa, por exemplo, para ciganos, deverão ser obedecidas as regras das buscas domiciliares.'®® O art. 240, § 1°, do CPP prevê os casos em que é cabível a busca domiciliar: Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, p ara: a) prender criminosos; b) apreender coisas achadas ou obtidas p or meios criminosos; c) apre­ ender instrumentos d efalsificação ou de contrafação e objetos falsificad os ou contrafeitos; d) apreender arm as e munições, instrumentos utilizados na prática de crim e ou destinados afim delituoso; e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou á defesa d o réu; f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecim ento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fa to ; g) apreender pessoas vítimas de crimes; h) colh er qualquer elem ento de convicção.'®’ 282. Por outro lado, também pata fins de busca e apreensão domiciliar, deve ter incidência o § 5° do art. 150 do CP, que dispõe: “Não se compreendem na expressão ‘casa’: I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n° U do parágrafo anterior; II - tavema, casa de jogo e outras do mesmo gênero”. 283. Magalhães Noronha, Curso..., p. 94. No direito português, Maia Gonçalves (C ódigo..., p. 392) reproduz julgado da Relação de Évora, em Portugal, na qual se considerou que se sujeita ao regime de buscas domiciliares: “apesar de ter residência noutro local, deve ser havida como sua residência a tenda um cigano na qual esteja a viver com a companheira e os filhos e onde tenha perten.çes domésticos e roupas”. 284. Nesse sentido: CleunllÊ^^^Htòmbo, Da bu sca..., p. 143; N ucci, C ódigo..., p. 5 1 1 . Na jurisprudência, em sentido contrãrio, considerando que cabine de caminhão em que foi encontrada uma arma não se equipara a casa: extinto TACrimSP, RJTACrim 15/176. 285. Há divergência sobre ser o rol taxativo ou exemplificativo. No sentido de que o rol é taxativo: Mirabete, Processo Penal, p. 347. Diversamente, para Nucci (Código..., p. 511) é

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No que toca à pessoa vítima do crime, não se cogita a possibilidade de mantê-la apreendida depois da busca. Deverá a autoridade apreendê-la e, imediatamente, colocá-la sob custódia, que tem o sentido de proteção, e não de restrição (CPP, art. 245, § 6°). A apreensão de cartas tem gerado controvérsia, diante da garantia constitucio­ nal da inviolabilidade do sigilo de correspondência (art. 5°, XII). Parte da doutrina manifesta-se pelo caráter absoluto da inviolabilidade da correspondência, o que impossibilitaria a busca de cartas. Outros, contudo, defendem a possibilidade de violação da correspondência, por considerar que a garantia constitucional não tem um sentido absoluto.™* No caso de busca em escritório de advocacia, o CPP prevê que nâo é permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito (CPP, art. 243, § 3°). Por outro lado, o EAOAB - Lei n° 8.906/1994 - , em seu art. 7°, com a redação dada pela Lei n° 11.767/2008, prevê, entre os direitos do advogado, “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefô­ nica e telem ática, desde que relativas ao exercício da advocacia". Não se trata, porém, de inviolabilidade absoluta, como deixa claro o § 6“ do art. 7°, acrescido pela mesma lei: “Presentes indícios de autoria e m aterialidade da prática de crime por parte de ad­ vogado, a autoridade Judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, especifico e porm enorizado, a ser cumprido na presença de repre­ sentante da OAB Embora se admita a busca e apreensão em escritório de advocacia, no caso de indícios de cometimento de crimes pelo advogado, o § 6° do art. 7° do EÁOAB veda “a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do adpossível o emprego da analogia. Para Bento de Faria (Código..., v. 1, p. 355), o rol não é taxativo, sendo possível a estipulação por outros preceitos legais. Nega, porém, a possibi­ lidade de analogia. 286. Pela impossibilidade da busca; Mirabete, Processo penal, p. 346; Gomes Filho, Direito ã prova..., p. 123; Morais e Lopes, Da prova penal, p. 141; Cleunice Pitombo, Da busca..., p. 218. Pela possibilidade da busca: Moraes, Direito constitucional, p. 77; Scarance Fernan­ des, Processo penal..., p. 82; Nucci, Código..., p. 514. Na jurisprudência, o STF admitiu a possibilidade da devassa de cartas de presidiários pela administração penitenciária (HC n° 70.814/SP). O TJSP também considerou que a inviolabilidade da correspondência não é absoluta; Ap. n° 109.019-3, Ap n° 177.130-3. 287. O STF considerou legítima a busca e apreensão realizada em escritório de advocacia, “no caso em que restou demonstrado nos autos que o escritório de advocacia onde foram encontrados os documentos que ora se pretende os desentranhamentos era utilizado pelo paciente, também para o gerenciamento de seus negócios comerciais” (HC n° 96/407). De se destacar que a legalidade da busca, nesse caso, não pode ser aceita em relação a documentos que digam respeito à atividade estritamente advocatícia, mas a documentos que estejam no escritório, não em razão de atividade típica de cliente-advogado, mas sim em razão de atividade empresariais também desenvolvidas pelo advogado.

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vogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes”. Assim, documentos que digam respeito à estratégia da defesa, como cartas em que o cliente narra os fatos ao advogado, ou agendas em que estejam registrados fatos comprometedores do acusado, nâo poderão ser apreendidos. Em suma, a inviolabilidade dos escritórios de advocacia é absoluta, em relação ao ad­ vogado que exercer regular e licitamente a advocacia. Por outro lado, se o advogado for coautor ou partícipe de um crime, não terá tal proteção, sendo possível a busca e apreensão em seu escritório. I

W. 12.2 Busca pessoal A busca pessoal importa restrição à garantia constitucional da intimidade (CR, art. 5“, X).*«A busca pessoal incide sobre a pessoa humana, abrangendo seu corpo, suas vestes (que é um provável meio de ocultação de coisa) e outros objetos ou coisas que estejam em contato com o corpo da vitima ou que por ela sejam transportados (bolsas, mochilas, malas etc.). A busca pessoal poderá recair sobre o suspeito, o indi­ ciado, o acusado, a vítima e até mesmo sobre terceiras pessoas.“ ® Para o deferimento da busca pessoal, assim como em relação à busca domiciliar, é necessário que haja “fundadas razões” que a autorizem. O § 2“ do art. 240 do CPP prevê que é possível a busca pessoal nas hipóteses das letras b a / e letra h do § 1“ do mesmo artigo, que sào: (b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; (c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; (d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; (e) descobrir objetos necessários à prova de in­ fração ou à defesa do réu; (f) apreender cartas, abertas oú nâo, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; (h) colher qualquer elemento de convicção. Excepcionalmente, contudo, a busca pessoal pode ser realizada sem ordem ju ­ dicial, nos casos do art. 244 do CPP, isto é: (1) no caso de prisão, (2) quando houver “fundada suspeita" de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo do delito, (3) no curso de medida de busca domiciliar. Quando se efetua a prisão de alguém, até mesmo por segurança, deve-se fazer a busca pessoal. Se há ordem judicial para a busca domiciliar, não teria sentido que não se pudesse fazer busca nas pessoas que estejam na casa a ser revistada. Já na hipótese de posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam o corpo de delito, é necessário que haja fundada suspeita de que a pessoa esteja portando tais objetos. 288. Além desse fundamento, sempre lembrado pela doutrina, Cleunice Pitombo (Da bus­ ca..., p. 127-128) acrejjfgqtá/ainda, as garantias de que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante e de que é assegurado ao preso o respeito à integridade física e moral (art. 5®, lU e XLIX). 289. Nesse sentido: Sérgio Pitombo, Do sequestro..., p. 69; Cleunice Pitombo, Da busca..., p. 130.

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A expressão “fundadas suspeitas” é criticável, por ser “ambígua e oca”.™“ Suspeita é uma mera conjectura ou desconfiança, mesmo que frágil, de alguma coisa ou contra alguém. Trata-se de um estado subjetivo, cuja demonstração nào tem um referencial concreto seguro. O CPP deveria ter exigido mais, como “indícios” ou “fun­ dados indícios”, justamente no caso em que franqueia a busca pessoal a autoridades e agentes policiais, prescindindo do mandado judicial.®“’ Há divergência sobre quem teria atribuição para realizar tais buscas. Nào se dis­ cute sobre a possibilidade de a autoridade policial, federal ou civil, e de seus agentes realizá-las, até mesmo porque constitucionalmente lhes incumbe a atividade de polícia judiciária (CR, art. 144, § 1°, IV, e § 4°). Por sua vez, no caso de policiais militares, a matéria é controvertida. A polícia militar, embora tenha por finalidade a prevenção ao cometimento de crimes, também tem o escopo de atividade de imediata repressão aos delitos. Assim, nào se pode con­ ceber que, na atividade de policiamento preventivo e de imediata repressão a crimes que estejam ou acabaram de ser cometidos, o policial militar não possa, desde que respeitados os requisitos legais, realizar uma busca pessoal, havendo a fundada suspeita de que alguém porta uma arma ou certa quantidade de droga.®“® Por outro lado, há consenso no sentido de que os guardas municipais não podem realizar buscas pessoais. Por expressa previsão constitucional, cabem-lhes apenas a proteção de bens, serviços e instalações municipais, não lhes sendo atriWída nenhuma função de prevenção ou investigação de crimes.®“® 290. Cleunice PíLombo, Da busca..., p. 137. V 291. O STF já decidiu que “a ‘fundada suspeiLa’, prevista no art. 244 d^ CPP, náo pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um blusão’ suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas de direitos e garantias individuais e caracte­ rizadoras de abuso de poder” (HC n" 81.305-4/GO). No mesmo sentido, adverte Nucci (Código..., p. 517) que, “quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável”. 292. Pela admissibilidade: Nucci, Código..., p. 521. Contra; Cleunice Pitombo, Da busca. , p. 177-178. 293. Pinto Ferreira (Comentários..., v. 5, p. 246) observa que “A Constituição de 1988 atribuiu ãs Guardas Municipais a tarefa de proteção aos bens, serviços e instalações do Município, conforme dispuser a lei (art. 144, § 8“), nâo as fazendo auxiliares da Polícia Militar nem lhes conferindo função repressiva dos crimes”. Lesley Gasparini Leite e Diógenes Gasparini (Guarda Municipal..., p. 203) também destacam que às guardas municipais “não lhes ca­ bem, portanto, os serviços de polícia ostensiva, de preser\'ação da ordem pública, de Polícia Judiciária e de apuração das infrações penais. Aliás, essas competências foram essencial­ mente atribuídas à Policia Militar e à Policia Civil”. Na jurisprudência, o TJSP considerou ilegal a prisão em flagrante realizada por guardas municipais, uma vez que decorrente de busca pessoal ilegal: “a Guarda Municipal não tem poder de polícia e, em consequência.

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Nâo se deve confundir a busca pessoal com a inspeção corporal, isto é, um exame do corpo da própria pessoa para a sua identificação, ou descoberta de sua idade, ou verificação de lesóes deixadas pelo crime.'®® Na busca pessoal propriamente dita, ao se dar a busca e realizar a revista na pessoa, é possível proceder a inspeçóes oculares, bem como ao emprego de meios mecânicos, com exames radioscópicos, para a procura da coisa objeto da medida.'®’ Com certa frequência há casos em que pessoas ingerem drogas acondicionadas em embalagens especiais, ou então ocultam objetos nos cabelos, na boca e até mesmo no reto oli na vagina.'®® Obviamente, nesse caso, a busca invasiva deverá ser realizada somente em caso de extrema necessidade, quando não puder se dar por ^aCtameio menos gravoso, “que a decência e a suscetibilidade legítima impõem”.'®' No caso de busca pessoal em mulheres, para evitar abusos e resguardar o pudor, até mesmo porque os atos de busca podem ser bastante invasivos, esta será realizada por outra mulher (CPP, art. 249). A regra, porém, não é absoluta. Embora a busca deva ser feita, preferencialmente, por outra mulher, é possivel que seja realizada por homem, para evitar o retardamento ou prejuízo da medida.'®®

W. 12.3 Procedimento da busca e apreensão Nos casos de prisão em flagrante, por óbvio, não se exige o mandado de busca domiciliar. O art. 241 do CPP também estabelece que o mandado é dispensável quando a busca for realizada pela própria autoridade policial ou judiciária. O dispositivo é criticável. A CR estabeleceu que a garantia da inviolabilidade do domicílio somente pode sofrer restrição mediante ordem judicial (art. 5°, XI). Assim, salvo hipótese de flagrante delito, mesmo que a busca seja realizada pela autoridade policial, serão necessárias a determinação judicial e, consequentemente, a expedição do mandado de busca.'®® Por outro lado, se a autoridade judiciária executar a medida, ojuiz estará se trans­ formando em um investigador, cumprindo medidas destinadas à obtenção de provas,

não poderiam seus agentes abordar pessoas na rua e submetê-las à revista pessoal” (RHC n° 362.766-3/7). 294. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 203. 293. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 203. 296. O TRF da Terceira Região considerou legítima a realização, sem mandado judicial, de busca pessoal mediante exame radiológico seguido de lavagem estômaco-intestinal em caso de agente que ingere quantidade de droga em cápsulas, para transportá-la no interior de seu organismo, realizando assim o tráfico de drogas (RT 799/704). No mesmo sentido, na doutrina; Pedroso, Prova penal, p. 130. 297. A expressão é de Borges da Rosa, Comentdrios..., p. 372. 298. O TJSP jã considerou legal busca em mulher feita por policial do sexo masculino, que se limitou às vestes, sem atingir o corpo da pessoa (Ap. n" 326.059-3). 299. Nesse sentido: Cleunice Pitombo, Da busca..., p. 126; Nucci, Código..., p, 518.

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o que implicará a perda de sua imparcialidade. Não se trata de simples deferimento de um meio de prova, mas da busca de uma fonte de prova diretamente pelo juiz que se transmuda de julgador em investigador.'“ Os requisitos intrínsecos do mandado de busca vêm definidos no art. 243 do CPP. O mandado de busca deverá; “I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem; II - mencionar o motivo e os fins da diligência; III - ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir”. O inciso I trata da identificação do local ou da pessoa que sofrerão a busca. 0 inciso U se refere aos motivos, isto é, à razão que levou ao deferimento da medida, em especial o crime que é objeto da investigação e sua relação com o local ou com a pessoa que sofrerão a busca. A precisa definição do motivo da busca é fundamental para que se distinga, no caso de apreensão, o que foi apreendido corretamente no âmbito da ordem judicial, e o que é conhecimento fortuito, que foi encontrado e eventualmente apreendido, mas nào estava autorizado no âmbito da decisão judicial. Trata-se, pois, a razão geradora da diligência. Por outro lado, os jins da diligência dizem respeito à identificação da pessoa ou coisa a ser buscada, delimitando com precisão o objeto da busca e, com isso, evitando abusos ou devaWas desnecessá­ rias e exorbitantes. O inciso III trata dos elementos de autenticação do mandado de busca. O § 1® do art. 243 prevê que, se, além do mandado de busc^', também houver ordem de prisáo, a prisão constará do próprio mandado de bus^a. O dispositivo sugere que bastará um único mandado, que servirá para a busca e para a prisáo. Todavia, para evitar problemas, inclusive burocráticos do cumprimento de ambas as medidas, é melhor que sejam expedidos dois mandados distintos, um de busca e ou outro de prisão.'®' Quanto aos requisitos extrínsecos, isto é, relacionados com o cumprimento do mandado de busca, o art. 245, caput, do CPP prevê que, em regra, a busca deve se realizar de dia, salvo se o morador consentir que seja realizada durante a noite. Basta, porém, que a diligência tenha se iniciado durante o dia, para que possa continuar e ser concluída no período noturno.'®* 300. De qualquer forma § 1° do art. 245 determina que, “se a própria autoridade der a busca, declarará previamente sua qualidade e o objeto da diligência”. A comprovação da qualidade de juiz se dará, normalmente, pela apresentação da identidade funcional. 301. Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 521. 302. Nesse sentido; Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 359; Cleunice Pitombo, Da busca..., p. 176. O CPP não estabelece o conceito de noite, havendo divergência na doutrina. Uma posição considera que dia é o período que decorre das seis horas da manhã às seis da tarde. Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 359; Espínola Filho, Código..., v. 3, p. 97. O u t r o s entendem

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Antes de entrarem na casa, os executores da diligência deverão ler o mandado de busca ao mqrador, que será instado a abrir a porta do local. Se a própria autoridade judiciária for dar a busca, não será necessário o mandado (CPP, art. 241, caput), mas neste caso o juiz deverá declarar previamente sua qualidade e informar ao morador o objeto da diligência (CPP, art. 245, § 1“). Para uma maior lisura da medida, deverá o juiz informar, também, o motivo da diligência. O morador deverá ser instado a, voluntariamente, entregar o que se procura |CPP, art. 245, § 5°). Somente se não o fizer, poderá se passar à execução forçada da busca. Em caso de desobediência do morador, os executores da medida poderão arrombar a porta e forçar a entrada (CPP, art. 245, § 2°). No interior elo juiz. Quanto ao seu procedimento, será ouvido o juiz preparador do feito e, depois, a parte contrária. No caso do desaforamento pelo excesso de serviço, não se aplicará a previsão de suspensão do julgamento pelo relator, prevista no art. 427, § 2°, do CPP, pois, no desaforamento em razão da demora para a realização da sessão, o que se pretende é exatamente o oposto, isto é, o pronto julgamento pelo júri. 217. Comentando o art. 558 do Código de Processo Civil de 1973, mas em lição igualmente válida para o dispositivo projetado, Carneiro ( 0 novo..., p. 74) observa que “o fumus boni íuris, igualmente imprescindível à concessão desta liminar acautelatória, decorre da exigência de que seja relevante a fundamentação contida na petição do agravo em prol à reforma da decisão interlocutória recorrida”. 218. Na jurisprudência: STF, HC n° 69.955-3/GO. 219. A jurisprudência tem dado grande importância às informações do juiz de comarca ori­ ginariamente competente, sobre a ocorrência ou não do motivo do desaforamento: STF, RT 5927409; STJ, HC n° 14.254/MS; TJSP, RT 5927324. 220. Nesse sentido; Greco Filho: Manual..., p. 400. 221. Nesse último sentido, posiciona Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 180. N a jurispru­ dência: STF, RT 581/390.

Procedimento ordinário, sumário e sumaríssimo e procedimentos especiais

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/3.5. 12 A celera çã o d o ju lg am en to O § 2“ dò art. 428 prevê um novo mecanismo, que nâo se trata propriamente de um desaforamento (mudança de uma comarca para outra), mas uma “aceleração” do julgamento, na mesma comarca em que corre o feito. Não se trata de verdadeiro de-jí saforamento, posto que não haverá alteração da competência territorial: o acusado será julgado pelo Tribunal d ojú ri da mesma comarca em que se encontra tramitando 0 processo, realizando-se o julgamento, de forma mais rápida,. i Emsuma, havendo pauta para a realização da sessão dejulgamento, “nas reüniões periódicas previstas para o exercício", se o juiz-presidente não designar a realização da sessão durante aquele ano em que o processo foi prépaWdo, caberá o pedido de “aceleração do julgamento”. O § 2° prevê que “o acusado poderá requerer” a imediata realização do julgamento. Assim, a legitimidade é exclusiva do acusado, nâo podendo a aceleração do julgamento ser requerida pelo acusador ou determinada de ofício pelo juiz. 13.5.13 O rdem dos ju lg am en tos No que concerne à ordem dos julgamentos pelo jú ri, o art. 42 9 ,caput, do CPP estabelece que, “salvo motivo relevante que autorize alteração na ordem dos julgam en­ tos, terão preferência: I - o s acusados presos; 11 - dentre os acusados presos, aqueles que estiverem há mais tempo na prisão; 111 - em igualdade de condições, os precedentemente pronunciados”. O motivo relevante que autoriza a não observância da ordem acima pode ser, por exemplo, ejulgamento de um réu solto, em detrimento dos presos, para evitar a prescrição. Embora os processos de acusados presos cautelarmente tenham preferência em relação aos processos de acusados soltos, estes também têm direito a um julgamento emprazo razoável, por força do disposto no art. 5°, LXXVIII, da Constituição, e no art. 8.1 da CADH. Inegavelmente,aconsequência da violação do direito ao processo penal no prazo razoável é muito mais séria no caso de acusados presos, posto que a prisão cautelar toma-se ilegal, surgindo o direito ao desencarceramento. Entretanto, se em uma comarca houver um número excessivo de acusados presos, todos os processos de acusados soltos serão preteridos, segundo a ordem do art. 429, caput, do CPP, o que poderá levar ã violação do direito ao processo no prazo razoável. Neste caso, a dificuldade ou a falta de pauta para a realização de sessão dejulgamento não será jus­ tificativa para que o Estado se exima do dever de julgar em prazo razoável, posto que a existência de tal direito implica o dever do Estado de criar e aparelhar os órgãos do Poderjudiciário para que este tenha condições de dar uma adequada e efetiva pres­ tação jurisdicional no prazo razoável, em cumprimento desse dever fundam ental.'" 222. Cf. L opesjr. e Badaró, Direito ao processo..., p. 69. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no caso Moreira de Azevedo, sentença de 23/10/1990, decidiu que o Estado é responsável pelo conjunto de sua estrutura judiciária e não apenas pelo juiz que atua no

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A violação de tal direito, por falta de aparelharaento estatal, gera o dever de in­ denizar por parte do Estado. 13 .5 .1 4 A fu n ç ã o d o s ju rados e a organização d o júri O Tribunal d o jú ri é composto por um juiz de direito, que é o seu presidente, e 25 jurados sorteados dentre os alistados. Destes 25 jurados serão sorteados os 7 que constituirão o conselho de sentença em cada sessão dejulgamento (CPP, art. 447). O serviço dojúri, isto é, servir como jurado, é obrigatório.**' Sua recusa injusti­ ficada implicará multa no valor de um a dez salários mínimos, a ser fixada pelo juiz, de acordo com as condições econômicas do jurado (art. 436, § 2°). Poderão ser jurados os cidadãos maiores de 18 anos e de notória idoneidade (CPP, art. 436, caput). Não há limite máximo de idade. No entanto, os maiores de 70 anos estão dispensados de tal obrigação, caso assim o requeiram sua dispensa (CPP, art. 437, IX), embora possam servir como jurados. É vedada a exclusão dos trabalhos do júri em razão de discriminação baseada em “cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução" (CPP, art. 436, § 1°). O Tribunal d o jú ri é uma instituição democrática, e dele devem participar cidadãos de todas as categorias e classe sociais, sem qualquer^ discriminação.**’ Não tem sentido apenas alistar cidadãos das cjasses sociais maisl aquinhoadas, devendo participar dajustiça popular os elementos dignos e honestos,) probos e esclarecidos de todas as camadas sociais.**’ No passado, nào faltava quemi defendesse uma composição elitista para o Tribunal d o jú ri. posicionamento queji expressamente, tornou-se inaceitável diante do novo dispositivdJÍegal. Isso nào significa, porém, que qualquer pessoa possa ser alistWa. Na medida em* que se exige a “notória idoneidade” (CPP, art. 436, caput), continua a valera advertênciaj de Frederico Marques; “pessoas de mã fama, indivíduos desqualificados, os vadioseos que mourejam indignamente em atividades ilícitas ou proibidas - esses se encontrara impossibilitados, de antemão, de figurar na lista dos jurados".**®

223.

224.

225. 226.

processo. Entre nós, o STF já decidiu que, “verificado o excesso de prazo, impõe-se a expe-, dição de alvará de soltura, cumprindo ao Estado aparelhar-se para proceder ao julgamento das ações em tempo razoável’’ (HC n° 87.102/SE). O STJ também já reconheceu excesso de prazo da prisão por falta de aparelhamento do Estado: HC n° 37.342/RJ. ^ Em compensação, o art. 441 do CPP determina que “nenhum desconto será feito nos; vencimentos ou salários do jurado sorteado que comparecer às sessões do júri", porque, tais dias serão considerados dedicados ao desempenho de serviço público (Damásio E. de: Jesus, Código..., p. 377). j; O Tribunal do Júri foi instituído no Brasil antes da proclamação da Independência. 0 ; Decreto de 18/07/1822 criou o Tribunal d o jú ri para os delitos de imprensa. O Tribuna! era composto por 24 juizes de fato, selecionados “de entre os homens bons, honrados, intelligentes e patriotas’’. Frederico Marques, A instituição..., v. 1, p. 96. Idem, ibidem, p. 90.

Procedimento ordinário, sumário e sumarissimo e procedimentos especiais

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A recusa ao serviço do jü ri, motivada por convicção religiosa, filosófica ou política, importará o dever de prestar serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto o serviço não for prestado (CPP, art. 438, caput)}^'' O § 1“do art. 438 prevê que se entende por serviços alternativos “o exercício de atividade de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, no Poder Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade conveniada para esses fins”. Caberá ao juiz fixar o serviço alternativo, de acordo com os “princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (CPP, art. 438, § 2°). Os casos de isenção da função de jurado estão previstos no art. 437 do CPP; as pessoas enumeradas nos incisos 1 a VIII estão isentas pelo simples exercício do cargo ou função pública; os maiores de 70 anos poderão requerer a isenção (inciso IX) e qualquer pessoa poderá requerê-la, “demonstrando justo impedimento” (inciso X). O art. 439 do CPP prevê que “o exercício efetivo da fu n ção de ju rado constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade m oral.” Por outro lado, também garante o direito de “preferência, em igualdade de condições, nas licitações pú­ blicas e no provimento, mediante concurso, de cargo ou função pública” (CPP, art. 440). Há controvérsia sobre o conceito de “exercício efetivo”. Para uns, o exercício efetivo significa que o jurado deve ter participado do conselho de sentença;®®®outros entendem que basta ter sido incluído entre os 25 jurados, mesmo não tendo integrado o conselho de sentença, por não ter sido sorteado ou porque foi recusado.®®“ O art. 445 do CPP estabelece que “o jurado, no exercício dafun ção ou apretexto de aercê-la, será responsável criminalmente nos mesmos termos em que o são osjutzes toga­ dos”. O dispositivo era desnecessário, ante a previsão do art. 327 do CP, que considera funcionário público aquele que exerce função pública ainda que transitoriamente e semremuneração. Assim, os jurados poderão cometer não todo e qualquer crime pra­ ticado por funcionário público contra a Administração Pública (CP, arts. 312 a 326). 127. O novo dispositivo veio suprir lacuna existente na legislação. No regime anterior, o art. 435 do CPP previa a perda dos direitos políticos. Todavia, como a Constituição de 1988, em seu art. 15, inciso IV, prevê que “é vedada a cassação dos direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de 1...] recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5°, V lll”. Assim, para a perda dos direitos políti­ cos, era necessário que, além da recusa ao serviço dojúri, o cidadão também se recusasse a cumprir a prestação alternativa. Agora, nos tennos do disposto no § 1° do art. 438, o serviço alternativo consistirá “o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, fi­ lantrópico ou mesmo produtivo, no PoderJudiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade conveniada para esses fins”. 778. Exigindo a participação no Conselho de sentença; Franco, Código..., v. 2, p. 234; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 189; Nucci, Código..., p. 772. Explica Borges da Rosa (Comenídrios..., p. 534) que “o efetivo exercício da função terá que ser provado mediante certidão, passada pelo escrivão do Júri, de ter o jurado funcionado no conselho de sentença que julgou o réu R... no dia tal, em tal cidade". 779. No sentido de que basta estar incluído entre os 25 jurados, mesmo que nâo sorteado para compor o Conselho de Sentença: Espínola Filho, Comentários..., v. 4, p. 374; Noronha, Curso..., p. 243; Mirabete, Processo Penal, p. 554.

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Para o funcionamento do Tribunal dojúri, anualmente o juiz-presidente elabora uma lista de 800 a 1.500 jurados, nas comarcas de mais de 1.000.000 habitantes; 300 a 7 0 0 jurados, nas comarcas de mais de 100.000 habitantes, e de 80 a 4 0 0 jurados, nas comarcas de menor população (CPP, art. 425, caput). Nas comarcas que necessitarem, poderá ser aumentado o número de jurados, de acordo com a lei de organização judiciária (CPP, art. 425, § 1“) Também será possível a organização de uma lista de jurados suplentes (CPP, art. 425, § 1°). Os nomes dos jurados suplentes também serão colocados em cédulas que ficarão depositadas eni urna especial, denominada “urna dos suplentes”. O procedimento para o alistamento dos suplentes é igual ao da lista geral. Para elaboração da lista dos jurados, o juiz-presidente requisitará “às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnamas condições para exercer a função de jurado” (CPP, art. 425, § 2“). Além disso, poderá ojuiz se valer do seu conhecimento pessoal para elaborar a lista? A resposta é negativa, na medida em que a escolha deve ser aleatória, evitando direcionamento ou predileções."' Primeiro é publicada a lista provisória, até o dia 10 de outubro de cada ano (CPP, art. 426, caput). Esta lista poderá ser modificada de ofício, pelo próprio juiz, ou em virtude de reclamação de qualquer do povo. Posteriormente, até o dia 10 de novembro, é publicada a lista definitiva (CPP, art. 426, § 1°). A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, é publicada por meio da imprensa e divulgada por editais afixados à porta do,^difício do Tribunal (CPP, art. 426, caput). Nesta lista, há os nomes dos jurados, convindicação das res­ pectivas profissões. Depois de publicada a lista definitiva, serão feitas cédulas com o nome e o endereço de cada jurado, que serão depositadas em urna própria, na presença de representante do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e da De­ fensoria Pública, sendo depois a urna fechada à chave, sob a responsabilidade do juiz (CPP, art. 426, §3°). O art. 426, § 4®, prevê que “o jurado que tiver integrado o conselho de sentença nos 12 (doze) meses que antecederem à publicação da lista geral fica dela excluído”. Segundo a doutrina, tal medida visa acabar com a figura do chamado “jurado profis­ sional”. A previsão é exagerada. Deve-se evitar o “jurado de carteirinha”, posto que contrário ao espírito do Tribunal dojúri, cuja estrutura não se compatibiliza com um 230. Na cidade de São Paulo, o Provimento n° 744/2000, do Conselho Superior da Magistra­ tura, prevê o alistamento de 38.000 jurados para os cinco tribunais do júri, assim divididos: 14.000, para o 1° Tribunal dojúri; 6.000, para o 2° Tribunal dojúri; 6.000, p a r a o 3° Tribunal d ojúri; 6.000, para o 4” Tribunal dojúri; 6.000, para o 5“ Tribunal dojúri. 231. Nesse sentido, Nucci, Código..., p. 771. Reformulamos, assim, na edição anterior, nossa posição.

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corpo permanente e estável dejulgadores. Entretanto, o fato de ojurado ter integrado o conselho de sentença uma única vez não o torna um “jurado profissional”. Seria melhor que houvesse a previsão de um número maior de participações do jurado para que ele fosse considerado impedido.™* Por outro lado, embora sem uma previsão expressa, a referência temporal dos “12 (doze) meses que antecederem à publicação da lista geral” indica tratar-se de uma vedação apenas para o ano seguinte (por exemplo, um jurado que integrou o conselho de sentença em julho de 2011 fica impedido de integrar a lista geral do ano de 2012, mas poderá figurar na lista de 2013 ou dos anos subsequen|;es). Não se trata, pois, de uma vedação perpétua, que impediria, para sempre, que o j uf ado pudesse participar novamente de um tribunal dojúri.*™ ^ O dispositivo projetado cria um verdadeiro requisito negativo para a seleção do jurado. Assim, se, por equívoco, o nome do jurado que integrou o conselho de sentença vier a ser incluído na lista no ano seguinte, se ele integrar algum conselho de sentença, o julgamento será absolutamente nulo, por vício de formação do conselho desentença (CPP, art. 564, III, j) .já n a hipótese em que o jurado impedido lenha inte­ grado o Tribunal dojúri, isto é, seja incluído na lista geral e sorteado para as sessões, sem, contudo, chegar a integrar o conselho de sentença, a violação da lei, em regra, não causará qualquer prejuízo, pelo que não haverá falar em nulidade. Anualmente, será completada a lista dos jurados (CPP, art. 426, caput e § 4°), como decorrência da regra do § 4“ do art. 426: como todos osjurados que no ano anterior tenham integrado o conselho de sentença ficam automaticamente impedi­ dos de participar da lista geral dos jurados no ano subsequente, naturalmente a lista deverã ser completada.

13.5.15 Formação e convocação do júri O sorteio dos 25 jurados que comporão o Tribunal d ojú ri, no Distrito Federal, é realizado de 10 a 15 dias antes do primeiro julgamento marcado para a reunião (CPP, an.433,§ 1“).*™ 232. Na cidade de São Paulo, em que o Tribunal do jú ri funciona permanentemente, e não em sessões periódicas, havia o sistema de jubilação dos jurados. O revogado Decreto-lei n° 9.008, de 24/02/1938, e o art. 103, III, da antiga Consolidação das Normas da Gorregedoria-Geral dajustiça dispunham que seria jubilado ojurado que perfizesse um número de seis pontos (um ponto para cada comparecimento e mais um pelo fato de haver servido efetivamente como membro do Conselho de Sentença). 233. Em sentido contrário, embora criticamente, é a posição de Nucci (Código..., p. 773), que afirma: “poderia ter constado que tal afastamento se daria por certo período (um, dois, três anos, por exemplo), podendo haver o reingresso. Aliás, em Comarcas pequenas, não há tantas pessoas aptas a funcionar como juradas. Enfim, pela atual redação da lei, participando do Conselho de Sentença, em determinado ano, não mais retomará ao Tribunal Popular". 734. A norma é inconstitucional, na pane que disciplina o período de sorteio dos jurados na Justiça Estadual, tendo em vista que se trata de disposição típica de organização judiciária, cuja competência legislativa, nos termos do disposto no art. 123, § 1°, da Constituição, é de iniciativa do Tribunal de Justiça dos Estados. Justamente por esse motivo o novo art.

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O sorteio é feito em recinto a portas abertas, e o juiz tirará da urna geral as 25 cédulas com os nomes dos jurados. Estas 25 cédulas sâo recolhidas em outra urna, denominada “urna do sorteio”. Serão intimados a participar do sorteio o Ministério Público, a OAB e a Defenso­ ria Pública (CPP, art. 432). Todavia, a audiência de sorteio não será aditada pelo não comparecimento das partes (CPP, art. 433, § 2“). Os jurados sorteados serão convocados para a sessão de julgamento, por correio ou por qualquer outro meio hábil (CPP, art. 434, caput). O juiz também mandará expedir o edital, que será afixado à porta do edifício do Tribunal dojúri, com a relação dos jurados convocados, os nomes dos acusados e dos advogados, além de conter o dia, hora e local das sessões de julgamento (CPP, art. 435).

13.5.16 Do julgamento pelo júri 13.5.16.1 Verificação da presença das partes e testemunhas Antes de instalar os trabalhos, ojuiz deve verificar se estão presentes os sujeitos processuais que atuarão durante a sessão, em especial, aqueles cujo não compareci­ mento implicará a não realização da sessão. Se nâo comparecer o órgão do Ministério Público, o presijlente adiará o julga­ mento para o primeiro dia desimpedido da mesma reunião (CPP, art. 455, caput). Sea ausência foi injustificada, o fato deve ser comunicado ao Procurador-Geral dejustiça (CPP, 455, parágrafo único). Caberá, então, ao Procurador-Geral, de acordo comas regras internas do Ministério Público, aplicar eventuais medíMas visando punir ad­ ministrativamente o promotor de justiça faltoso, bem como tá ^ a r as providências necessárias para que haja um promotor preparado para atuar, em substituição ao faltante, caso novamente não compareça à sessão. A falta do defensor do acusado implicará a não realização do julgamento. Se sua ausência se der por escusa legítima, ojuiz se limitará a designar novo julgamento. Se o não comparecimento for injustificado, e o acusado possuir defensor constituído, será notificado a constituir novo defensor, sob pena de lhe ser nomeado um dativo. 0 acusado tem o direito de ter defensor de sua confiança (CPP, art. 263). Por seu tumo, se o defensor era dativo, ojuiz deve destituí-lo e nomear outro defensor. Em qualquer caso de não comparecimento injustificado, o juiz deverá comunicar tal fato ao presi­ dente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (CPP, art. 456). Com a reforma do CPP, o não comparecimento do acusado normalmente não impedirá a realização do julgamento (CPP, art. 457, caput). A nova regra tem como fundamento o direito ao silêncio (CR, art. 5“, LXIII). Se o acusado passou a ter a faculdade de se calar em seu interrogatório, sem que de tal silêncio se possa extrair 453 apenas remete à legislação local de organização judiciária de cada Estado disciplinar o período em que se reunirá o Tribunal do Júri, para a realização de suas sessões.

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qualquer consequência negativa (CPP, art. 186, parágrafo único), não seria razoável exigir que o acusado comparecesse ao julgamento se, em plenário, ainda que para nada dizer em seu interrogatório. Sua presença serviria, tão somente, para submetê-lo à degradante cerimônia de se sentar no banco dos réus, perante toda a comunidac|p. Há situações, porém, em que, em razão de justo motivo, o acusado solto vê-se im ­ possibilitado de comparecer à sessão de julgamento. Assim, havendo justificativa prévia do acusado solto, comprovando a impossibilidade de comparecimento na sessão dejulgamento, em virtude, por exemplo, de doença grave, deverá se^ adiada a sessão d eju lgam ento."’ Quanto ao acusado preso, o § 2°do art. 457 do CPP-jafflhém assegura o direito de não comparecimento à sessão dejulgamento. Todavia, justamente pelo fato de estar preso, exige-se um cuidado maior; o não comparecimento do acusado não poderá ser interpretado como manifestação tácita de vontade de que o julgamento se realize sem a sua presença. Assim, para que o julgamento ocorra sem sua presença, será neces­ sário, nos termos da parte final do § 2° do art. 457, que tanto o acusado quanto o seu defensor requeiram, por escrito, a dispensa de comparecimento. Juridicamente, a medida é absolutamente correta. Se, de um lado, caberá princi­ palmente à defesa julgar a conveniência e a repercussão do não comparecimento do acusado na sessão dejulgamento, de outro, o acusado é que se submeterá à degradante cerimônia de se sentar isolado e abaixo até mesmo do seu defensor, no humilhante “banco dos réus”. Contudo, nâo se pode esquecer que, embora do ponto de vista jundico o silêncio não possa ser utilizado contra o acusado, a aplicabilidade de tal ressalva é de difícil verificação, na medida em que o julgamento dos jurados não é motivado. Mais do que isso, sob o aspecto psicológico, principalmente para um corpo dejulgadores leigos, o fato de o acusado de um crime não comparecer para se defender poderá significar uma espécie de fuga de suas responsabilidades ou a ausência de uma defesa efetiva a ser apresentada perante os jurados."® De qualquer forma, é legítimo ao acusado e a seu defensor optarem por uma ou outra estratégia. Não comparecendo o advogado do assistente de acusação,"' em regra, o ju l­ gamento não será adiado (CPP, art. 457, caput). Todavia, se a ausência ocorrer por 235. Gomes, Cunha e Pinto (Comentdrios..., p. 149) afirmam; “Em casos excepcionais nos parece que não estaria o ju iz impedido de adiar o julgamento, diante de uma justificativa bastante e seriamente razoável”. 236. Tubenchlak (Tribunal d ojú ri..., p. 168) não considera conveniente a possibilidade de julgamento sem a presença do acusado, afirmando que “não é plausível que os ‘Cidadãos do Povo’ sejam instados a julgar um concidadão que nâo tiveram a oportunidade de ver”. 237. Quanto ao assistente de acusação, a redação foi infeliz. O assistente de acusação é o pró­ prio ofendido, ou seu representante legal, em caso de incapacidade, ou, ainda, seu sucessor, em caso de morte. O assistente apenas irá se manifestar, na sessão de julgamento, por seu advogado. Por exemplo, no caso de homicídio, em que o pai da vitima se habilite como assistente de acusação, o seu nào comparecimento será irrelevante, desde que o advogado por ele constituído esteja presente. Assim, por não comparecimento “do assistente”, deve-se entender o não comparecimento do “advogado do assistente", cuja ausência não impede a

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motivo justificado, comprovando antes do início da sessão, ojuiz poderá adiá-la (CPP, art. 457, § 1°). É de ressaltar que, se o assistente de acusação ainda não tiver sido ad­ mitido nos autos, para que possa intervir no plenário de julgamento, sua admissão deverá ser requerida com antecedência mínima de cinco dias (CPP, art. 430). Trata-se de exceção à regra geral de que o assistente de acusação pode se habilitar “em todos os termos da ação ptiblica” (CPP, art. 268), “enquanto não passar emjulgado a sen­ tença” (CPP, art. 269). Obviamente, se o ofendido ou seus sucessores já tiverem se habilitado, anteriormente, como assistentes de acusação, poderão participar da sessão dejulgamento normalmente. Não comparecendo o advogado do querelante, em regra, o julgamento não será adiado (CPP, art. 457, caput). A norma, contudo, deve ser interpretada com algumas ressalvas. Inicialmente, é preciso distinguir as hipóteses de açào penal privada subsidiária e de ação penal exclusivamente privada. No caso de ação penal exclusivamente privada - em virtude de conexão de um delito com um crime dolo­ sos contra a vida - , o não comparecimento do advogado do querelante, sem motivo justificado, implicará perempção (CPP, art. 60, III). No caso de o não compareci­ mento se dar por motivo justificado, a sessão dejulgamento deverá ser adiada (CPP, art. 457, § 1°).®®® De outro lado, em se tratando de açào penal privada subsidiária, o não comparecimento do advogado do querelante autorizará'a retomada da ação penal pelo Ministério Público, nos termos do art. 29 do CPP, dqsde que a ausência não ocorra por motivo justificado (CPP, art. 457, § 1°), hipóteseem que a sessão de julgamento deverá ser adiada.®®“ Em qualquer caso, salvo motivo de força maior, a justificativa para o não comparecimento deverá ser comprovada antes do início da sessão (CPP, art. 457, §1°). Em regra, o não comparecimento de qualquer testemunha não será motivo para o adiamento. Todavia, se a testemunha que nào compareceu foi arrolada pela parte, que requereu a sua intimação por mandado, declarando não prescindir do depoimento, e indicando o local em que pudesse ser encontrada, terá ojuiz duas opções (CPP, an. 461, § 1°): (a) adiar o julgamento para o primeiro dia útil desimpedido, quando será realização da sessão de julgamenlo. Melhor, portanto, a redação em relação ao querelante, que é a seguinte; “advogado do querelante". 238. Cabe aplicar, por analogia, nesse caso, as novas disposições dos §§ 1° e 2° do an. 265, acrescidos pela Lei n" 11.719/2008, que, embora referentes ao “defensor", são perfeitamente aplicáveis ao advogado do querelante. 239. Aliás, nesse sentido era a antiga redação do art. 451, embora se referindo ao "acusador particular": “Não comparecendo o réu ou o acusador particular, com justa causa, o julga­ mento serã adiado. ..". No sentido de que deve ser adiada a sessão, mas apenas em relação ao crime perseguido mediante ação privada, mas podendo ser realizado o julgamento do crime doloso contra a vida, cf. Mendonça, Nova reforma..., p. 77. Discorda-se de tal entendimento, pois a reforma foi inspirada pelo propõsito de evitar ao máximo a cisão de julgamento. Nesse contexto, toda a sessão deverá ser adiada. Aliás, seria bastante estranha a realização de uma sessão de julgamento do Tribunal do Júri tendo por objeto apenas um crime qne não seja doloso contra a vida.

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ordenada a sua condução coercitiva; (b) suspender os trabalhos e mandar conduzi-la coercitivamente. Esta última providência, principalmente nos grandes centros, é prati­ camente inviável, por causar excessiva demora dos trabalhos. No novo dia designado, gC, ainda assim, a testemunha não comparecer, o julgamento deverá ser realizado (CPp art. 461, § 2°). No entanto, mesmo que arrolada em caráter de imprescindibilidade, sea testemunha não foi encontrada no local indicado, o julgamento não será adiado, pois era ônus da parte fornecer o endereço correto da testemunha, indicando« local em que pudesse ser encontrada. 1 Cabe lembrar que a testemunha que, sem justa causa, deixar de comparecer, in­ correrá ainda em multa de um a dez salários mínimos, serm ptejuízo de ser processada pelo crime de desobediência (CP, art. 330), podendo ser conduzida coercitivamente (CPP, art. 458),

13.5.16.2 Verificação da urna, chamada dos jurados e instalação No dia e hora designados para reunião do júri, estando presente o órgão do Mi­ nistério Público, o defensor, o acusado e as testemunhas, ojuiz-presidente verifica se a urna contém as cédulas com os nomes dos 25 jurados sorteados e manda que o escrivão faça a chamada (CPP, art. 462). Se comparecerem pelo menos 15 jurados, o juiz declarará instalada a sessão (CPP, art. 463, caput). Se o número de jurados presen­ tes for inferior a 15, o ju iz não instala a sessão, sorteando os suplentes, se for o caso, e convocando nova sessão dejulgamento (CPP, art. 464). Na prática, à medida que osjurados chegam ao fórum, o escrivão vai colhendo as assinaturas deles, de modo que, previamente, o ju iz tome conhecimento de quantos jurados compareceram e se hã ou não quorum para instalar a sessão. Logo, quando o juiz ingressa em plenário com o promotor significa que a sessão será instalada. Com a reforma do CPP, se presentes pelo menos 15 jurados dentre os 25 que compõem o Tribunal do Júri, não será realizado o sorteio dos suplentes; este apenas ocorrerã se náo for atingido o número mínimo de 15 jurados (CPP, art. 464). Os nomes dos suplentes sorteados serão consignados na ata, determinando o juiz sua notifica­ ção para comparecimento na próxima sessão dejulgamento. Aos suplentes, quando convocados, são aplicáveis os dispositivos referentes às dispensas, faltas; escusas e equiparação a responsabilidade penal (CPP, art. 446).

13.5.16.3 Pregão e adiamentos Iniciada a sessão, ojuiz-presidente abre a uma, retira todas as cédulas e recoloca na uma apenas aquelas com os nomes dos jurados presentes. O oficial dejustiça fará o pregão,*” certificando tal diligência nos autos (CPP, art. 463, § 1°). O pregão consiste na chamada das partes e das testemunhas. 240. Como observa Nucci (Roteiro..., p. 15), o pregão serve mais para dar conhecimento às pessoas presentes de quem é o acusado e quais serão as testemunhas, do que para convidar

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Esse momento é extremamente importante porque eventuais nulidades relativas ocorridas após a pronúncia deverão ser alegadas logo depois do pregão, sob pena de preclusão (CPP, art. 571, V). O art. 460 do CPP determina que, antes mesmo de ser constituído o conselho de sentença (mas após a instalação da sessão), as testemunhas sejam recolhidas a um lugar de onde não possam ouvir o depoimento das outras testemunhas, devendo ficar separadas as testemunhas de acusação das de defesa. Na prática, porém, assim que chegam ao fórum e se identificam para o Oficial dejustiça, as testemunhas já são recolhidas para a sala das testemunhas, antes mesmo de se instalar a sessão. Estando presentes as partes e o advogado do acusado, e não havendo outro motivo para o adiamento, o juiz inicia o sorteio dos sete jurados que irão compor o conselho de sentença (CPP, art. 467).

13.5.16.4 Impedimentos, suspeições e incomunicabilidade dos jurados Antes do sorteio do conselho de sentença, ojuiz advertirá os jurados dos impe­ dimentos, suspeições e incompatibilidades (CPP, art. 466, caput). No procedimento d ojú ri há regras próprias quanto a impedimentos (CPP, art. 448) dos jurados, bem como vedações específicas de atuação. Por outro lado, o § 2° do art. 448 do CPP determina que também se aplicam aos jurados^as hipóteses de impedimento, suspeiçâo e incompatibilidades do juiz togado, previstas nos arts. 252 e 254 do CPP. São impedidos de servir no mesmo conselho marido e mulher, ascendentes e descendentes, sogro e genro ou nora, irmãos, cunhados, durante OpCunhadio, tio e sobrinho, padrasto ou madrasta e enteado (CPP, art. 448, caput e in c i^ s). Havendo o impedimento (rectius: incompatibilidade) por parentesco ou relação de convivência, servirá o jurado que foi sorteado em primeiro lugar, restando “impedido” apenas o segundo parente sorteado (CPP, art. 450). Ressalte-se que o legislador novamente utiliza, de forma equivocada e sem cla­ reza, os conceitos de impedimento e incompatibilidade. Embora a distinção entre os impedimentos e as incompatibilidades seja apenas terminológica, posto que destituída de relevância prática, segundo nosso entendimento, o impedimento decorre de fato­ res objetivos que colocam em risco a imparcialidade do juiz, porque ele ou pessoas a ele ligadas já exerceram ou estão exercendo outras funções no mesmo processo, ou têm interesse no feito (CPP, art. 252). Já a incompatibilidade decorre do parentesco entre juizes que poderiam atuar em um mesmo órgão colegiado (CPP, art. 253, e, em relação ao júri, art. 448, caput e § 1°).™' Portanto, no caso do art. 448, caput e § l°,as o acusado, seu defensor e o promotor dejustiça para ocuparem seus lugares no plenário, até mesmo porque, em regra, neste momento, as partes já estão em seus lugares. 241. Nesse sentido, considerando que os impedimentos estão previstos no art. 252 e as in­ compatibilidades no art. 253 do CPP; Greco Filho, Manual..., p. 232.

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situações disciplinadas são de incompatibilidade, posto que tratam da relação de dois juizes integrantes^ de um mesmo órgão colegiado. O art. 449 prevê hipóteses em que o jurado “não poderá servir”. Embora nâo o dizendo, trata-se de situações equiparáveis aos impedimentos, posto que decorrem do exercício da função de juiz em atos do mesmo processo (inciso 1) ou processo que envolva o mesmo fato (inciso II). O inciso I do novo art. 4 49 do CPP considera impedido de atuar o jurado que tiver funcionado em julgam ento anterior do mesmo processo. Aliás, antes mesmo de ser incorporada ao CPP, tal regra jã decorria de entendimento jurisprudencial, sufragado pela Súmula n° 206 do STF, que estabelece: “É mlítiG^ulgamento ulterior pelo jú ri com a participação de jurado que funcionou em julgamento anterior do mesmo processo”. A hipótese do inciso II impede de participar do julgamento ojurado que jã tenha integrado o conselho de sentença em julgamento de corréu do mesmo fato.*’ * Isso porque, no caso de o jurado ter participado no julgamento anterior sobre o mesmo fato, imputado a coautor, seria impossível controlar se o seu convencimento, íntimo e imotivado, foi tomado com base nas provas e no debate do primeiro ou do segundo processo. Haveria, portanto, um fortíssimo risco de vulneraçâo do contraditório. Finalmente, o inciso III considera impedido o jurado que tenha, antes do ju l­ gamento, manifestado a intenção de condenar ou absolver o acusado. Trata-se de hipótese de claríssima perda da imparcialidade. Se do conselho de sentença participar um único jurado impedido, suspeito ou com relação de incompatibilidade com outro jurado, o julgamento será nulo. Cabe destacar que, na sistemática anterior, havia o entendimento de que o vício somente geraria a nulidade, se houvesse prejuízo, que era identificado com a relevância da participação de tal jurado no resultado final da votação, por exemplo, se a condenação ou absolvição ocorresse por 4 votos a 3. Todavia, diante do novo procedimento para a apuração dos votos dos quesitos, segundo o qual, tão logo sejam atingidos mais de três votos positivos ou negativos, encerra-se a apuração, o placar final não mais será conhecido. Assim, será impossível saber se houve ou não relevância matemática na participação de tal jurado. Por outro lado, osjurados excluídos por impedimento ou suspeição ou incom­ patibilidade serão computados para a constituição do número legal (CPP, art. 4 5 1 ), 242. Antes mesmo da reforma do CPP, já era esse o entendimento dominante na doutrina, cf.: Frederico Marques, O júri no direito brasileiro, p. 242; Florêncio de Abreu, Comentá­ rios..., V . 5, p. 334; Espínola Filho, Código..., v. 4, p. 498. O posicionamento também era adotado há décadas pela jurisprudência do STF, RTJ 53/780, RTJ 72/208, RExt. n° 74.985/ MG, RExt. n° 105.48l/MT. O STJ tem entendido que “a participação de jurado, no mesmo processo de julgamento do corréu, acarreta a nulidade do julgamento, se a condenação se deu por quatro a três, pois espelha evidente prejuizo para a defesa" (REsp n° 23.917/MG). No mesmo sentido: STJ, HC n° 12/SC.

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isto é, para que se atinja o mínimo de 15 jurados para a instalação da sessão (CPP. art. 463). Entretanto, se em consequência das suspeições ou das recusas peremptórias não houver 7 jurados para a formação do conselho de sentença, o julgamento será adiado para o primeiro dia desimpedido, após o sorteio dos suplentes (CPP, art. 471). É o que se denomina “estouro da urna". O CPP também não prevê claramente o momento de arguiçâo da suspeição dos jurados. A exceção deve ser arguida oralmente (CPP, art. 106), no instante em que o nome for sorteado para compor o conselho de sentença.®" Se for arguida a suspeição do presidente do Tribunal, do órgão do Ministério Püblico, dos jurados ou de qualquer funcionário, e esta for desacolhida, os trabalhos prosseguirão. Em qualquer caso, a arguição deverá constar da ata (CPP, art. 470). Caso seja reconhecida a suspeição ou o impedimento do juiz-presidente dojúri ou do representante do Ministério Público, o júri deverá ser adiado para que seja realizada nova sessão. O mesmo ocorrerá, no caso de vício relativo a funcionário, se não for possivela sua substituição imediata. Finalmente, acolhidos a suspeição, o impedimen­ to ou a incompatibilidade dos jurados, a sessão somente será adiada se, em razão da exclusão, não houver um mínimo de sete jurados para formar o conselho de sentença (CPP, art. 471). I

Além dos impedimentos, suspeições e incompatibilidades, antes mesmo de proceder ao sorteio dosjurados, ojuiz também advertirá os juradas de que, uma vez sorteados, não poderão se comunicar entre si e com terceiros, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do conselho de sentença e pagamento de multa (CPP, art, 466, § 1“). A finalidade da incomunicabilidade é garantir a ausência de interferência de um Jurado na formação da convicção de outro jurado, bem como a influência de terceiros em relação aos jurados. Diferente do previsto no CPP, a quebra da incomunicabilidade não implica apenas a exclusão do jurado do conselho de sentença, mas a dissolução do conselho de sentença, se for constatada durante o julgamento, ou a nulidade absoluta do Jul­ gamento, caso somente seja constatada depois de encerrada a sessão.®" A incomunicabilidade dosjurados é com os demais jurados e também com ter­ ceiros estranhos ao conselho de sentença. Quanto aos demais membros do conselho de sentença, a incomunicabilidade não é absoluta. A lei não veda a comunicação entre 243. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 162; Tourinho Filho, Processo ... v. 2, p. 682; Noronha. Curso..., p, 266; Mirabete, Processo Penal. p. 231; Nucci, Código ... p. 286; Na jurisprudência; STF, RT 590/436. Em sentido contrário, entendendo que a arguiçâo deve se dar antes do sorteio, cf.: Damásio E. de Jesus, Código.... p. 390. Neste Ultimo sentido, na jurisprudência, STF HC n” 71.722riy. 244. Na jurisprudência, o TJRS anulou julgamento em que houve “a emissão de palavra, por jurado, diante dos demais, denotando sua posiçáo condenatória antecipada sobre o julgamento, dirigidas ao advogado de defesa, durante o intervalo do Júri” (RT 790/685).

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os jurados, desde que sob a fiscalização do juiz e sobre assuntos alheios ao julgamen­ to. Por outro lãdo, relativamente a terceiros, a incomunicabilidade é absoluta, isto é, sobre qualquer assunto.™’

13.5.16.5 Verificação das cédulas, sorteio dos jurados e recusas Após as advertências do art. 466, o juiz abre a urna e verifica a cédulas, nela recolocando somente aquelas com os nomes dos jurados presentes. Passa, entãp, ao sorteio dos jurados. À medida que as cédulas forem tiradas da urna, o ju iz as lera, e a defesa e, depois dela, a acusação poderão recusar os jurados sorteados, até três cada uma, sem indicar os motivos da recusa (CPP, art. 468, São ^s denominadas “recusas peremptórias”, em que as partes não precisam esclarecer os motivos pelos quais recusaram os jurados. Trata-se de uma das poucas situações em que a defesa se manifesta antes da acusação no processo penal.™® Embora o novo dispositivo preveja que “a defesa e, depois dela, o Ministério Públi­ co poderão recusar...”, isso não significa que sempre será dada a palavra ao Ministério Püblico. Se a defesa, que fala primeiro, recusar o jurado, ele já estará ele excluído, não sendo necessário colher a manifestação do Ministério Público. Até mesmo porque seria de todo inútil. Recusado o jurado pela defesa, o acusador não “queimaria” uma recusa para afastar um jurado já recusado. Por outro lado, a sua “aceitação” não teria nenhum significado, na medida em que a recusa da defesa já impediria a participação do jurado. Se dois ou mais acusados estiverem sendo julgados no mesmo processo, poderão acordar que um só defensor faça as recusas, em nome de todos. Se não houver con­ cordância, cada defensor será indagado se aceita ou náo o jurado. O § 1° do art. 469, com a redação dada pela reforma do CPP de 2008, trouxe uma grande novidade. No regime do revogado art. 461, se cada defensor exercesse 0 direito à recusa, em caso de divergência, isto é, um aceitasse e o outro recusasse o jurado, colhia-se a manifestação do Ministério Público: se este também recusasse, o jurado estaria excluído; se aceitasse, o julgamento seria cindido. No novo regime do § 1“ do art. 469 nào há mais a previsão de que, depois da divergência entre as recusas dos defensores, se colherá a manifestação do Ministério Público, como previa a parte final do antigo art. 4 6 1 :“ 1... 1salvo se este, recusado por um réu e aceito por outro, for 245. Na jurisprudência: STF, RT] 104/1267; TJSP, RT 581/299. Assim, a incomunicabilidade entre os jurados não se estende até o momento em que não estão em sessão, mas em reces­ so, desde que a comunicação nâo se refira aos fatos em julgamento (STp RTJ 104/1267). O TJSP anulou julgamento em que o jurado usou o telefone, dizendo que estava telefonando para sua família (RT 581/299). 246. Segundo Noronha (Curso..., p. 266) “não é muito consentâneo com essa plenitude a defesa pronunciar-se antes da acusação na aceitação ou recusa do jurado”. Aliás, tem-se entendido que a inversão na ordem das recusas, primeiro manifestando-se o Ministério Público e depois a defesa, não anula o julgamento. Cf.: Damásio F. d ejesus. Código..., p. 391. Na jurisprudência: TJSP RT 494/308.

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também recusado pela acusação”. Assim, recusado ojurado por um defensor, não se passará a palavra ao outro defensor ou ao Ministério PúbUco. Tal interpretação não decorre apenas de não ter havido a reprodução da regra anterior, mas principalmente da nova sistemática criada no referido parágrafo: “A separação dos julgamentos so­ mente ocorrerá se, em razão das recusas, nào for obtido o número mínimo de 7 (sete) jurados para compor o Conselho de Sentença”. Só há uma única causa de separação do julgamento: não ser obtido o número mínimo de sete jurados. Isso reforça o entendi­ mento de que, recusado ojurado por um defensor, ele será diretamente excluído, sema necessidade colher a manifestação dos dem ais."’ Assim, se o primeiro defensor recusa ojurado, não se colhe a manifestação do outro advogado e do Ministério Público; seo primeiro defensor aceita, colhe-se a palavra do outro defensor; se ele recusa, ojurado estará excluído e não se ouve eventual defensor de terceiro ou mais corréus, nem do acusador. Finalmente, se todos os defensores tiverem aceitado ojurado, aí sim, será ouvido o Ministério Público, que poderá aceitar ou recusar o jurado. Nesse sistema, não haverá oportunidade de cisão do julgamento por “divergências” de recusas, pois, não aceito ojurado por um, recusado estará, e não se colhe mais a manifestação dos demais defensores ou do Ministério Público. Em suma, nesse sistema, ou ambos os corréus sáo julgados em conjunto, na primeira sessão designada para o julgamento, porque mesmo diante das eventuais recusas foi possível compor o conselho de sentença com sete jui^dos, ou, em caso negativo, nenhum acusado serã julgado nessa oportunidade, mas em futuras sessões a serem designadas, sendo julgado, em primeiro lugar, o acusado a quem for atribuída a autoria ou participação (CPP, art. 469, § 2°). y Será raro o caso de impossibilidade dejulgamento, principalmente se houver apenas dois corréus. Como ao todo serão 9 recusas, basta que 16 jurados estejam pre­ sentes para que o julgamento não deixe de ser realizado, salvo se houver impedimento, incompatibilidade ou suspeição de algum jurado. O mesmo conselho poderá conhecer de mais de um processo na mesma sessão de julgamento, se as partes o aceitarem. Neste caso, contudo, osjurados deverão prestar novo compromisso (CPP, art. 452). Não haverá, porém, nova escolha do conselho de sentença ou possibilidade de recusar osjurados, até mesmo porque as partes já aceitaram o conselho constituído. Todavia, é difícil que isto ocorra, posto que, nor­ malmente, a intimação para aquele dia dejulgamento é feita apenas para as partes e as testemunhas de um único processo. 247. Nesse sentido; Mendonça, Nova reforma..., p. 84; Aury Lopes Jr., Direito..., v. 2, p. 267Em sentido contrário, Nucci (Tribunal do júri, p. 166), interpretando o novo art. 469 do CPP, entende que, “sorteado o primeiro jurado, o juiz confere com o defensor de um deles se o aceita ou recusa. Imagtnando-se que recuse o jurado, será este dispensado. Anota-se a recusa do primeiro corréu. Deve-se, de toda forma, consultar o outro defensor e o órgão acusatório. Estes podem aceitar o jurado, mas ele será e.xcluído”. Nesse mesmo sentido: Gomes, Cunha e Pinto, Comentários..., p. 164.

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13.5.16.6 Compromisso dos jurados Formado o conselho, o juiz, levantando-se, e com ele todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação (CPP, art. 472): “Em nome da lei, concito-vos a exa­ minar esta causa com im parcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames dajustiça". Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz, responderão: “Assim o prom eto”. Como observa Frederico Marques, não se trata de verdadeiro juram ento, ^ a s sim de compromisso.®" De se observar, porém, que a denominação “jurado” a é v ^ d o “juramento” que era feito no tempo do Código de Processo Criminal do Império.®" Em seguida, os jurados receberão cópias da decisão de pronúncia e do relatório do processo (CPP, art. 472, parágrafo único).

13.5.16.7 Oitiva da vítima e das testemunhas Depois do compromisso dosjurados, inicia-se a instrução plenária, composta dos seguintes atos: (1) oitiva da vítima, sempre que possível; (2) oitiva de testemunhas de acusação; (3) oitiva de testemunhas de defesa; (4) eventuais acareações, reconhe­ cimentos de pessoas ou coisa e esclarecimentos orais dos peritos; (5) interrogatório do acusado. A vítima, sempre que possível, será ouvida, prestando suas declarações (CPP, art. 201). Será possível sua oitiva, por exemplo, em um caso de tentativa de homicí­ dio. Cabe lembrar que a vítima não é testemunha, e assim sendo, sequer precisa ser arrolada na fase do art. 422. Após a vítima, passa-se às ouvidas das testemunhas de acusação, e depois as de defesa. No jú ri, diversamente da sistemática adotada para os procedimentos em geral, pelo novo art. 212, caput, do CPP, a inquirição se inicia pelas perguntas do juiz (CPP, 473. caput). Após ojuiz, as testemunhas de acusação serão inquiridas “pelo Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado”. No caso de ação penal privada, primeiramente deverá perguntar o querelante, que é a parte principal, e de­ pois dele o Ministério Público. que apenas intervém em todos os atos da ação privada. Posteriormente, serão ouvidas as testemunhas de defesa, com a seguinte ordem de inquirição: ojuiz, o defensor, o acusador particular, o promotor, o assistente (CPP, art. 473, § 1“). 248. Frederico Marques, Elementos..., v. 3, p. 231. 749. O juramento era previsto no art. 253: “Fórmula do juramento. Juro pronunciar bem, e sinceramente nesta causa, haver-me com franqueza, e verdade, só tendo diante dos meus olhos Deus, e a Lei; e proferir o meu voto segundo a minha consciência”. Também era previsto o juramento no art. 278, para o Júri da Sentença.

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Se houver testemunhas do juízo, elas deveráo ser ouvidas antes das testemunhas de acusação. Em qualquer caso, as perguntas do Ministério Público, do querelante, do assistente de acusação e da defesa são feitas diretamente pelas partes, sem a intermediação do juiz. O juiz, porém, deve ficar vigilante quanto às perguntas das partes, indeferindo, por exemplo, as que sejam impertinentes ou indutivas. Já as perguntas dos jurados não serão feitas por eles diretamente às testemunhas, mas por intermédio do juiz (CPP, art. 473, § 2°). O CPP não estabelece o momento em que tais perguntas serão feitaS. Como os jurados são juizes, melhor considerar que o farão logo após ojuiz- presidente, e antes das reperguntas das partes.'™ Embora as perguntas nào sejam diretas, o juiz- presidente deverá ficar bem atento para evitar que, na formulação de perguntas, o jurado revele seu ponto de vista, quebrando a incomunicabilidade e gerando a nulidade do julgamento.'” A desistência de testemunha anteriormente arrolada somente poderá ocorrer se houver anuência da parte contrária e dos jurados. Se qualquer um destes desejar ouvir a testemunha, mesmo que a parte que a arrolou tenha desistido do seu testemunho, ela deverá ser ouvida. O art. 473, § 3“, do CPP determina que, se houver divergências sobre pontos essenciais entre as testemunhas, ojuiz deverá proceder à acareação destas, nos termos do art. 229, parágrafo único. i As testemunhas ainda poderão ser reinquiridas durante a réplica ou a tréplica ' (CPP, art. 473). ]

73.5.76.8 Acareações, reconhecimentos de pessoas oififoisas e esclarecimentos dos peritos \

jj

A primeira parte do § 3° do art. 473 do CPP prevê, expressamente, a possibilidade 1 de realização de acareação, de reconhecimento de pessoas ou coisas e de esclarecimen­ tos orais dos peritos. Caso as partes desejem que os peritos prestem esclarecimentos orais na sessão de julgamento, deverão requerê-los previamente, nos termos do art. ; 4 2 2 ,c.c .o a rt. 1 5 9 ,§ 5 ”,I.

73.5.76.9 Leitura de peças

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A parte final do § 3° do art. 473 do CPP representa uma mudança radical da reforma ; do Tribunal do Jüri. A partir de uma interpretação a contrario sensu de tal dispositivo 250. Mendonça, Nova reforma..., p. 91. Em sentido contrário, Mugenot Bonfin e Parada Netíji (0 novo procedimento..., p. 195) entendem que os jurados farão as perguntas apõs as panes,^ com base em argumento topográfico: “parece mesmo ser esta a vontade da lei ao tratar dí j inquirição pelos jurados somente no § 2“ do art. 4 7 3 " . ) 2 5 1 . O s depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa nâo mais serão r e d u z i d o s aí escrito. O atual art. 4 7 5 do C P P prevê que o registro dos depoimentos e do interrogatõnO| “será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, eletrônica, estenotipia ou técnica| similar, destinada a obter maior fidelidade e celeridade na colheita da prova".

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haverá a impossibilidade de utilização, na sessão dejulgamento, das provas produzidas no inquérito piplicial ou mesmo no iudicium accusationis, com exceção das colhidas em carta precatória, bem como das provas cautelares, antecipadas ou irrepetiveis. Essa importantíssima inovação procura preservar a oralidade do procedimento do Tribunal d ojúri, impondo que, em regra, as provas sejam produzidas na própria sessão dejulgamento, possibilitando aos jurados um melhor conhecimento dos fatos. Nasistemálica originária do CPP, muitas vezes osjurados analisavam a prova conibase apenas nas leituras que a acusação e a defesa faziam dos testemunhos produzidosfanteriormente, sem que as testemunhas fossem ouvidas na sua presença. Inegavelmente, a formação do convencimento dos jurados será muito melhor ^ as testemunhas forem inquiridas perante o conselho de sentença, podendo inclusive os jurados formular perguntas a elas, consoante o disposto no art. 473, caput e § 2“, do CPP Na sessão de julgamento, portanto, poderá ser aplicado, em sua plenitude, o sistema da oralidade, com concentração, imediatidade e identidade física do juiz.*™ Correta a impossibilidade de utilização, no procedimento dojúri, dos elementos de informação produzidos durante o inquérito policial. Tais elementos não sào “pro­ vas”, em sentido estrito, não podendo ser valorados pelo juiz para a formação do seu convencimento, no momento do julgamento do mérito. Provas, em sentido estrito, sào somente os elementos de convicção produzidos em contraditório, na presença dojuiz e das partes. O art. 155 do CPP, com a redação dada pela Lei n° 11.690/2008, estabelece que “o juizformarásua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório ju di­ cial, não podendo fu ndam en tar sua decisão exclusivam ente nos elem entos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetiveis e antecipadas” (destacamos). Tal sistemática nâo poderia ser aplicada no procedimento do júri, em que a decisão dos jurados é imotivada. Se os elementos de informação produzidos no inquérito policial pudessem ser lidos em plenário, seria impossível saber se os juizes leigos se utilizaram ou não de tais informativos para a condenação ou absolvição do acusado. E, neste caso, o jú ri, que é garantia constitucional do acusado, acabaria lhe sendo prejudicial, na medida em que elementos informativos produzidas na fase inquisitiva poderiam se tornar fundamento exclusivo para a condenação. 252. Frederico Marques (Elementos..., v. 2, p. 234), analisando a oralidade no júri brasileiro, destacava: “Infelizmente, a praxe, entre nós, é bem outra. O procedimento d ojúri somente guarda da oralidade o torneio dialético que se trava entre acusação e defesa. As provas que foram produzidas no ‘sumário de culpa’ são lidas aos jurados, que, assim, tomam contato muito superficial com as questões de fato que devem julgar. Como o Código de Processo Penal admite que sejam dispensados os depoimentos já ouvidos na instrução do judicium accusationis (art. 561, n. IV), e declara facultativo arrolarem-se testemunhas no libelo (art. 417, §2°), ou na contrariedade (art. 421, parágrafo único), é muito difícil haver inquirição em plenário. Ojurado se vê, deste modo, na contingência de decidir, com sua livre convicção, baseado apenas em peças escritas do processo, ou no que lhe dizem os eloquentes oradores que ocupam, respectivamente, a tribuna de acusação e a de defesa. Decide ojurado, portanto, sem um direto contato com a prova, a não ser em casos excepcionais e esporádicos”.

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Mais complexa, contudo, é a questão relativa à impossibilidade de leitura dos meios de prova produzidos no iudicium accusationis. Tais provas foram produzidas perante o juiz, sob o crivo do contraditório, com plena possibilidade de as partes indagarem as testemunhas, o que poderia sugerir que não haveria problema em admitir a sua leitura em plenário. No entanto, não foram produzidas perante órgão competente para o julgamento do fato, isto é, o conselho de sentença. Mais do que isso, diante da possibilidade, agora expressa, de os jurados fazerem perguntas às testemunhas (CPP, art. 473, § 2°), a simples leitura da peça poderia gerar dúvida no espírito dosjurados, que facilmente seria resolvida pela formulação de uma pergunta complementar à testemunha ou ao ofendido. E nada disso será possível, ao se admitir a simples leitura do depoimento anterior, produzido em contraditório, mas perante apenas o juiz togado. Nâo é correta, por outro lado, uma interpretação restritivíssima do dispositivo, mas que vem prevalecendo, no sentido de que é vedado apenas e tão somente que as partes requeiram “a leitura de peças” consistentes nos depoimentos anteriormente prestados.®’®Tal posicionamento baseia-se num mero jogo de palavras, violador do espírito da lei, que buscava estabelecer uma verdadeira oralidade na sessão dejulga­ mento. Entender que as partes não podem “requerer a leitura” dos depoimentos, mas podem “ler" os depoimentos é sofismar. Nem se diga que o objetivo do novo § 3° era apenas dar maior celeridade ã sessão dejulgamento, limitando as enfadonhas “leituras de peças”. Se assim fosse, nâo haveria nenhuma razão lógica para possibilitar a leitura das “provas colhidas por carta precatória” e das “provas cautelares, antecipadas ou nâo repetíveis”. Para estas não seria necessária a celeridade? Finalmente, é de considerar que, na versão originária do Projeto de Lei n“ 4.203/2001, o aiT 421, caput, previa que tais provas seriam excluídas dos autos. O legislador, contudôs optou por alterar tal sistemática e, nos termos do art. 473, § 3“, embora mantendo tais provas nos autos, impediu sua leitura. Obviamente, o dispositivo nâo pretendia apenas impedir que as partes requeressem a leitura... Ao mais, a admissão de que sejam lidos pelas partes eventuais depoimentos pres­ tados na fase do inquérito policial e dojuízo de acusação fere o direito ao confronto do acusado, assegurado no art. 8.2,/, da CADH, que prevê o “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemu­ nhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos”.®” As fontes 253. Tal interpretação é dada, por exemplo, por Mendonça (N ova reform a..., p. 93): “As demais peças (colhidas durante o inquérito policial, por exemplo) poderão ser lidas, mas apenas pelas partes, no momento e durante o prazo fixado para os debates orais”. 254. Em trabalho pioneiro na doutrina nacional, sobre o direito ao confronto, Diogo Malan (Direito ao confronto..., p. 78) explica: “A ideia central é a seguinte: o right o f confronta­ tion impõe que todo o saber testemunhal incriminador passível de valoração pelo juiz seja produzido de forma pública, oral, na presença do Julgador e do acusado e submetido i inquirição deste último. Logo, a declaração de uma determinada testemunha não pode ser admitida como elemento de prova contra o acusado, a não ser que ela tenha sido prestada

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de prova orais, que puderem comparecer ao tribunal, ou serão arroladas pelas partes, e seus depqimentos tomados em contraditório, perante as partes e o juiz natural, ou não poderão ser lidos os seus depoimentos anteriores. Nem se diga que tal forma de interpretar impede a busca da verdade ou m es^o a plenitude de defesa. Justamente em respeito a uma correta reconstrução histórica dos fatos é que se estabeleceu a exceção, admitindo a leitura das provas cautelares, antecipadas, irrepetíveis e colhidas por carta precatória. Se uma testemunl|a já tiver morrido, seu depoimento será uma prova irrepetível, que poderá ser lida em plenário. Se uma testemunha for idosa ou doente e com risco de não mais estar viva à época da sessão dejulgamento e seu depoimento for colbid^amecipadamente, nos termos do art. 225 do CPP, será possível a leitura, por se tratar de prova antecipada. Se uma testemunha reside em outra comarca e foi ouvida por precatória, seu depoimento poderá ser lido em plenário. Entretanto, se uma testemunha for saudável, residente na comarca e sem ne­ nhum impedimento para comparecer à sessão de julgamento, ou as partes a arrolam para prestar depoimento perante os jurados, ou ficarão impossibilitadas de ler o seu depoimento. Fica claro, portanto, que a interpretação propostas ao § 3° do art. 473 não impedirá ou dificultará a defesa ou a “busca da verdade”. Apenas eliminará o comodismo de se preferirem sessões sem testemunhas em plenário, ou dificultará algumas “estratégias” das partes que preferem não “arriscar” um depoimento em plenário, quando já têm um depoimento anteriormente prestado quejá lhes seja sa­ tisfatório. Será que a leitura também satisfará plenamente os jurados? Será que, diante da leitura de um depoimento e, o que é pior, da “interpretação” de um depoimento pelo defensor ou pelo Ministério Público, não preferirão os jurados ouvir, de viva voz, 0 que efetivamente sabe a testemunha? Em suma. melbor a nova sistemática adotada, no sentido de que o jú ri seja ver­ dadeiramente oral, com imediatidade e o contato direto dos jurados com a prova oral que terão de valorar para a formação do seu convencimento. nas sobreditas condições". E, em outra passagem, especifica o conteúdo de tal direito, com base na lição de Stefano Maffei: “O direito ao confronto possui um conteúdo normativo multifacetado, se consubstanciando no direito fundamental do acusado: (i) à produção da prova testemunhal em audiência pública; (ii) a presenciar a produção da prova testemunhal; (Ui) à produção da prova testemunhal na presença do julgador do mérito da causa; (iv) à imposição do compromisso de dizer a verdade às testemunhas; (v) a conhecer a verdadeira identidade das fontes de prova testemunhal; (vi) a inquirir as fontes de prova testemunhal desfavoráveis, de forma contemporânea à produção da prova testemunhal. A esse rol pa­ rece razoável acrescentar o direito do acusado a se comunicar de forma livre, reservada e ininterrupta com o seu defensor técnico, durante a inquirição das testemunhas” (id., p. 85-86). Obviamente, o direito ao confronto será violado, para não dizer anulado, caso a acusação possa se limitar a 1er o depoimento anterior em plenário. Nesse caso, à defesa terá sido negado o direito de produzir e presenciar a produção da prova em audiência, na presença do julgador de mérito, no caso, o Conselho de Sentença, inquirindo as testemunhas desfavoráveis, contemporaneamente à produção de tal prova oral.

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13.5.16.10 Interrogatório do acusado No final da instrução, o juiz-presidente interrogará o acusado. O art. 474 esta­ belece uma disciplina específica para o interrogatório no plenário do júri, já incor­ porando e explicitando as mudanças no sistema do interrogatório, provocadas pela Lei n° 10.792/2003. Deve ser seguida a ordem geral do art. 188 do CPP, segundo a qual. primeiro, o juiz interrogará o acusado e, depois, serão formuladas as perguntas das partes sobre pontos a serem esclarecidos. Os jurados também poderão formular perguntas, por intermédio do juiz (CPP, art. 474, § 2°). Não há previsão do momento em que os jurados poderão formular per­ guntas. Aplicando-se a regra de que os jurados sâo juizes, as perguntas destes devem ser realizadas após as perguntas do juiz-presidente e antes das perguntas das partes.™* Após os jurados, poderão fazer perguntas o promotor, o assistente de acusação e a defesa (CPP, art. 474, § 1“). Embora não haja previsão legal, no caso de ação privada subsi­ diária, perguntará primeiro o querelante, depois o Ministério Público e, por fim, a defesa. Principalmente diante da possibilidade de perguntas do Ministério Público e do assistente de acusação, é fundamental que o acusado seja cientificado do seu direito ao silêncio, bem como que o juiz explique aos jurados que o silêncio do acusado não importa confissão e não poderá ser interpretado em seu prejuízo (CPP, art. 186, parágrafo único).

13.5.16.11 Uso de algemas O novo § 3° do art. 474 disciplina o uso de algemas, prev^ido o seu emprego absolutamente excepcional. Em regra, “nâo se permitirá o uso de Ijgemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário dojúri”. Excepcionalmente, contu­ do, serão utilizadas “se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade fisica dos presentes”.®” De observar que, mesmo em relação aos acusados presos cautelarmente, a regra é estarem sem algemas durante o julgamento em plenário.®™ Isso decorre do respeito à dignidade humana e da própria presunção de inocência, como regra de tratamento do acusado.

255. Nesse sentido: Mendonça, Nova reforma..., p. 94. 256. O STF já vinha destacando o caráter excepcional do uso de algemas durante o julgament que somente “não constitui constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes" (HC n° 71,195/SP). Em outro julgado, decidiu: “O uso legitimo de algemas não é arbitrário, sendo de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que tanto venha a ocorrer, e para evitar agressão do preso contra os próprios policiais, contra terceiros ou contra si mesmo" (HC n° 89.429/RO). Recentemente, contudo, o STF editou a Súmula Vinculante n° 11, e.xatamente sobre a excepcionalidade do uso de algemas, como será analisado tiifra. 257. Em síntese, como afirmam Gomes, Cunha e Pinto (Comentários...., p. 185), “não se trata de sustentar a equação preso-uso obrigatório de algemas’".

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Ademais, é de destacar que, no dia 13/08/2008, apenas alguns dias após o início da vigência da;Lei n° 11.689/2008, o STF aprovou a Sümula Vinculante n° 11, exata­ mente sobre o uso de algemas: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato proc^sual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.” t Da leitura conjugada do § 3° do art. 474 do CPP com a Súmula Vinculante n° 11 do STF extrai-se que o acusado somente poderá entrárafgÈmado em plenário se houver prévia decisão judicial, escrita, devidamente fundamentada, que indique, com base em elementos de prova existentes nos autos, uma situação concreta de ne­ cessidade excepcional do uso de algemas. De observar que a lei trata de três hipóteses autorizadoras: “ordem dos trabalhos”, “segurança das testemunhas” ou “garantia da integridade física dos presentes" .Já o preceito sumular permite o uso excepcional de algemas no caso de “receio de fuga” ou de “perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”. A expressão “ordem dos trabalhos” do art. 474, não incluída no enunciado da Súmula Vinculante n“ 11, deve ser interpretada restritivamente, posto que, se a ordem dos trabalhos puder ser mantida com o emprego de meios menos gravosos, o uso de algemas não deverá ser autorizado. Quanto à fundamentação, por óbvio, não bastará repetir os termos da lei - ou da súmula - , ou invocar a gravidade abstrata do delito imputado ao acusado. Além disso, diante da expressão “absolutamente necessário", no caso de simples dúvida sobre a necessidade do uso de algemas, não se poderá impor sua utilização.*“ Por fim, se a sessão dejulgamento for realizada com o acusado algemado, sem que tenha sido proferida prévia decisão, ou no caso de, posteriormente, tal decisão vier a ser considerada nula (por exemplo, por vício de fundamentação) haverá, nos termos da parte final do enunciado da Súmula Vinculante n° 11 do STF, “nulidade [... 1 do ato processual a que se refere”. Isto é, o ato processual será a sessão dejulgamento, que padecerá de nulidade. 258. Apenas a título exemplificativo, já se considerou corretamente fundamentada a utili­ zação de algemas por que; “Na hipótese, houve alusão à desmedida e ostensiva violência perpetrada pelo autor, mas também pelo fato de ser ele professor de artes marciais (‘faixa preta de karatê e faixa marrom de Jiu-jítsú). Assim, mostra-se necessário o emprego das algemas a fim de imobilizar o paciente e preservar a integridade física dos agentes envolvi­ dos na sua captura” (STJ, RHC n° 28.292/BA); “fn casu, bem se desincurabiu a autoridade que presidira a assentada, quando motivou a restrição nas peculiaridades do local em que realizado o julgamento e nas observações realizadas pelos agentes da segurança. O prédio do Fórum encontrava-se era reforma, tendo sido efetuada a sessão no auditório da OAB - espaço claramente improvisado. Ademais, o paciente, de acordo com o relato dos respon­ sáveis pela escolta, demonstrava, pelo seu retrospecto, condições pessoais que conduziam à necessidade da providência constritiva” (STJ, HC n° 189.619/SP).

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13.5.16.12 Debates orais Durante os debates, por óbvio, falará primeiro o acusador e depois, a defesa (CPP, art. 476, §3"). O promotor deverá dar ciência aos jurados da acusação a ser sustentada, o que deverá ser feito com fundamento na pronúncia. Se houver assistente de acusação, este falará depois do promotor (CPP, art. 476, § 1°), mas dentro da mesma uma hora e meia para a acusação. No caso de ação penal privada subsidiária, primeiro falará o querelante e de­ pois dele, o Ministério Público. A mesma ordem será observada na réplica (CPP, art. 476. § 2 “). Finda a acusação, o defensor terá a palavra para defesa (CPP, art. 476, § 3“). 0 tempo destinado à acusação e à defesa é de uma hora e meia para cada. Se houver réplica e tréplica, cada parte disporá de mais uma hora (CPP, art. 477, caput). Se houver mais de um acusador ou mais de um defensor, eles deverão combinar entre si a distribuição do tempo. Não havendo acordo, caberá ao juiz disciplinar a divisão de tempo, não podendo ser excedido o prazo legal (CPP, art. 477, § 1°). Havendo mais de um acusado, o tempo para a acusação e para a defesa será acrescido de uma hora, perfazendo, pois, o total de duas horas e meia. O tempo de réplica e de tréplica será ampliado para duas horas (CPP, art. 4T7, § 2 °).'’® Ao ser indagado pelo juiz se deseja fazer uso da réplica, o promotor deve se limitar a dizer “sim” ou “nào”, sem acréscimos. Se o Promotor dejustiça fizer comentários sobre a acusação, por exemplo, quejá está satisfeito por ter demonstrado a culpabili­ dade do réu, a defesa terá o direito de treplicar.'“ ^ Prevalece o entendimento de que o assistente de acusação também deve ser consultado se deseja ou não fazer uso da réplica, mesmo que o promotor a tenha re­ jeitado.'®* É duvidoso que a parte secundária e assessória possa se sobrepor à vontade da parte principal. Muitas vezes, inclusive, podendo prejudicá-la se, por exemplo, nada houver a acrescer à acusação já formulada, o que significará somente dar mais tempo para a defesa. 0 promotor não pode desistir do uso da palavra para a acusação, sob pena de nulidade (CPP. art. 564, lU, /). Há divergência sobre a possibilidade ou não de o Pro­ motor d eju stiça pleitear a absolvição do acusado. Deve ser admitido o pedido de absolvição, até mesmo em atenção à independência funcional. Todavia, neste caso, tendo em vista a indisponibilidade da ação penal, o promotordeverá expor a acusação 259. Para Damásio E. dejesus (C ódigo... p. 397) constitui mera irregularidade o excesso de prazo para os debates. Na jurisprudência: TJSP, RT 632/289. 260. Nesse sentido: Porto, Júri..., p. 126, nota 220; Marrey, Teoria..., p. 364; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 213-214; Damásio E. dejesus. Código..., p. 398. 261. Nesse sentido: Damásio E. dejesus. Código..., p. 398; Nucci, Código..., p. 786; Mugenot Bonfin e Parada Neto, O novo procedimento..., p. 113.

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e explicar o conteúdo da prova, para somente depois concluir manifestando-se pela absolvição. Logo, conhecendo os fatos eas provas, os jurados poderão até mesmo votar pela condenação, caso discordem da conclusão do Ministério Público.®*® O defensor não pode renunciar à defesa, quer por não fazer uso da palavra, qu^t para pedir a condenação do acusado. Em tais casos o acusado estará indefeso (CPP, af t. 4-97, V). Haverá nulidade do processo (CPP, art. 564,111, í), devendo o ju iz dissolver 0 conselho de sentença. Em consequência, não se admite que a defesa peça a conde­ nação do acusado. Contudo, desde que isso não implique ausência de defesa, diante de um conjunto probatório desfavorável, pode ser vantajoso pedir a condenação por um crime menos grave, por exemplo, por um homicídtaculposo, ou mesmo por um homicídio privilegiado. O que não é possível é concordar, pura e simplesmente, com 0 pedido de condenação do Ministério Público.®*® Embora o interrogatório seja fonte dos quesitos (CPP, art. 4 82, parágrafo único), tem-se admitido que a defesa possa sustentar outra tese, diversa da apresentada pelo acusado (por exemplo, acusado nega a autoria e o advogado sustenta a legítima defe­ sa). Também pode a defesa apresentar teses alternativas (por exemplo, negativa de autoria, como tese principal ou, caso afirmada a autoria, como tese subsidiária, que se reconheça o crime culposo ou a legítima defesa).®*® Há divergência sobre a defesa poder ou não inovar na tréplica, aduzindo tese não mencionada anteriormente. Uma corrente nega tal possibilidade, por afirmar que isto violaria o contraditório, causando surpresa ao acusador, que nào teria mais oportuni­ dade para rebater tal argumento.®*’ No entanto, a plenitude de defesa deve prevalecer sobre o contraditório, podendo a defesa inovar na tréplica, o que somente ocorrerá se 262. Admitem o pedido de absolvição pelo Ministério Público: Whitaker, Jury..., p. 82; Noronha, Curso..., n. 144, p. 271; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 210; Mirabete, Processo Penal, p. 568; Capez, Curso..., p. 613. Na jurispmdéncia: TJSP, RT 496/265. Negando tal possibilidade, cf.: Frederico Marques, A instituição..., p. 186; Borges da Rosa, Comentários..., p. 566. Por outro lado, Damásio E. de Jesus (Código..., p. 378) admite que o assistente de acusação pode ir à réplica, se o promotor pedir a absolvição. Na jurispmdéncia: TJSP, RT 468/304. 263. Como destacam Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 258), “não é admissível, evidentemente, a concordância do defensor cotn a tese acusató­ ria; entretanto, nos casos em que a prova é totalmente adversa, isso não pode significar um empenho cego na demonstração da inocência do réu, a ponto de desacreditar o trabalho do advogado; uma defesa consistente e ardorosa, que se limite apenas ao pedido de certos benefícios legais, abrandamento da pena ou afastamento de qualificadoras e agravantes pro­ postas pela acusação, certamente será muito mais eficiente e consentânea com a exigência constitucional”. Pela impossibilidade de a defesa pedir a condenação; Frederico Marques, A instituição..., p. 190-191; Borges da Rosa, Comentários..., p. 506; Marrey, Teoria..., p. 366. 264. Marrey (T eoria..., p. 36 3 ) admite a apresentação de tese diversa pelo acusado. Pela admissibilidade de teses alternativas: Marrey, Teoria..., p. 382; Damásio E. de Jesus, Códi­ go..., p. 405; Mirabete, Processo Penal, p. 569; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 212. Na jurispmdéncia; STF, RT] 80/450. 265. Nesse sentido, pela impossibilidade de inovar na tréplica manifestam-se: Porto, Jú ri..., n. 94, p. 127; Marrey, Teoria..., p. 365; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 214; Damásio E.

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o Ministério Publico nào antevir as possíveis teses que, aliás, são questões jurídicas, e não questões de fato. Ao mais, seria perigoso para a defesa guardar uma boa tese para a tréplica, pois poderia ficar sem oportunidade de alegá-la, se o promotor não fosse à réplica.*« Além disso, a matéria poderá ser objeto de apartes do Ministério Público, contra-argumentando e expondo argumentos para refutar as novas alegações defensivas. O inciso XII do art. 497 do CPP passou a disciplinar os apartes, antes nào previstos em lei, embora fizessem parte da tradição dojúri, sendo considerados, até mesmo, a “a alma dos debates”. Borges da Rosa explica que “a expressão ‘aparte’, isto é, ‘à parte’, ‘ao lado’, consiste em palavra oU frase pronunciada enquanto outrem está falando, ou quando outrem está falando”.*®’ Os apartes devem ser breves (nâo se admitindo o “discurso paralelo”), moderados e limitados ao propósito de apoiar ou desaprovar asserções ou pedir um esclarecimento quanto a um ponto exposto.*®® Anteriormente, os apartes eram solicitados à parte que estivesse fazendo uso da palavra. Todavia, na nova sistemática do art. 497, XII, não é mais o interlocutor que concederá ou negará o aparte à parte contrária; ojuiz-presidente é que “poderá conce­ der” o aparte,*®® por prazo de até três minutos. Uma vez concedido o aparte, o tempo concedido à outra parte será acrescido ao tempo do orador que estiver com a palavra. É possível que, depois dos debates, haja a reinquirição de testemunhas já ouvidas em plenário. Se a acusação fizer tal requerimento na réplica, a oitiva deve ser logo depois, antes da tréplica. Se o requerimento for feito pela defena, a testemunha deve ser ouvida depois da tréplica.*’®

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dejesus. Código..., p. 399; Capez, Curso..., p. 614. Na jurisprudê^eia: STJ, REsp n° 65.379/ PR;TJSP, RT 661/268, RT 485/299. f Nesse sentido, pela possibilidade de inovar na tréplica; Greco Pilho, Manual..., p. 408; Nucci, Roteiro..., p. 59. Na jurisprudência, destacando que “à acusação cabe prever os argumentos que o acusado pode apresentar, pois, afinal, se trata de questão técnica e não mero exercício de imaginação”; TJSP, RT 696/331. No mesmo sentido: TJSP, RT 661/268, RT 630/303, RT 536/344. O TJSP já anulou julgamento do júri por nâo ter sido elaborado o quesito quanto á lese apresentada somente na tréplica (HC n° 458.601-3/0). Recentemente, o STJ anulou julgamento em que não foi elaborado quesito sobre a tese de inexigibilidade de conduta diversa, arguida somente na tréplica (HC n° 61.615/MS). Borges da Rosa, Comenídrios..., p. 562. Marrey, Teoria,.., p. 339. E Tourinho Filho (Processo..., p. 212) explica que “devem os apartes ser corteses, nada impedindo que tenham certa dose de humor, sem resvalar para aqueles que produzem hilaridade circense". Se os apartes foram excessivos, o juiz-presidente, valendo-se de seu poder de regular os debates (CPP, art. 497, 111), deve garantir o uso da palavra para aquele que se sente prejudicado pela intervenção, solicitando àquele que faz os apartes que se abstenha de se manifestar quando não concedidos os apartes. Se não for atendido, em último caso, deve dissolver o conselho de sentença, e determinar que se oficie ao órgão cabível (Corregedot-Geral do Ministério Público, Corregedor-Geral da Defensoria Pública ou Tribunal de Etia e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil) para as providências disciplinares. Nesse sentido: Espínola Filho, Comentdrios..., v. 4, p. 456; Frederico Marques, Elemen­ tos..., V . 3, p. 238; Marrey, Teoria..., p. 375. Já Tourinho Filho (Processo..., v. 4, 2005, p-123)

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13.5.16.13 Vedação de utilização de argumentos A regra do atual art. 478, que não encontra correspondente na sistemática ante-; rior, consubstancia-se em importante instrumento para evitar que argumentos não necessariamente corretos, mas com fortíssimo poder de persuasão, principalmei|te perante os juizes leigos, possam levar a um resultado injusto. Como destaca Mirjan Damaska, “em um contexto no qual um corpo de juizes ocasionais e laicos lutam para chegar a um veredicto, a exclusão de específicas Unhas argumentativa^adquire notável importância”.” * No tocante à decisão de pronúncia e eventual acórdão que a confirme, não se admitirá a sua utilização para influenciar os jurados. Nao^opriam ente a pronúncia em si, mas a importância do magistrado que a prolatou, seja pela sua idoneidade e senso dejustiça, seja por seu conhecimento jurídico, muitas vezes é explorada em plenário. Nos casos em que a tese defensiva é a negativa de autoria, não raro enfrenta-se 0 argumento acusatório de que a defesa é infundada, tanto assim que, se o acusado fosse inocente, o juiz ou o tribunal, ou ambos, não o teriam pronunciado. Nesse ponto, é de destacar que o legislador não foi incoerente ao prever, de um lado, que a acusação em plenário será feita “nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores quejulgaram admissível a acusação” (art. 476, caput) e, de outro, que durante os debates não se poderá, sob pena de nulidade, fazer referência “à decisão de pronúncia, às decisões posteriores quejulgaram admissível a acusação" (art. 4 7 8 ,1). A parte final desse último dispositivo, quando se refere a “como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado”, diz respeito tanto ao uso de algemas quanto à decisão de pronúncia. Ou seja, o acusador pode até ler a pronúncia para expor aos jurados com precisão qual o fato objeto da acusação. Não poderá, porém, se referir à pronúncia, ainda que não a leia, ou ao magistrado que a proferiu, como argumento de autoridade. Esqueceu-se o legislador, porém, da hipótese mais grave, qual seja a invocação, no segundo julgamento, do argumento de autoridade do Tribunal dejustiça que deu entende que, no caso de requerimento da acusação, as testemunhas deverão ser reinquiridas antes da réplica, e no caso da defesa, antes da tréplica. Diversamente, Nucci (Código..., p. 801) entende que a reinquirição deve ocorrer dentro do tempo da parte que a requereu, durante a réplica ou a tréplica. 271. Damaska, II diritto..., p, 74. Aliás, no sistema da common law, muitas regras de exclusão probatória, por fatores intrtnsecos, estavam ligadas justamente ao sistema de julgamento pelo júri e tinham a finalidade de “filtrar" o material probatório a ser valorado pelos jura­ dos, havendo uma clara limitação na discussão do júri. Embora no art. 478 não se trate, propriamente, de exclusão de provas, mas sim de exclusão de argumentos, a razão de ser da regra é a mesma. Justamente por isso discorda-se da critica de Gomes, Cunha e Pinto (Comentdrios..., p. 206), no sentido dc que o dispositivo impõe “uma verdadeira e inaceitável censura” e de que, nos discursos do júri, cada parte “que utilize a arma mais eficaz para alcançar seu objetivo". Ora, trata-se de aceitável, razoável e justificável censura, do ponto de vista argumentativo.

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provimento ao recurso para submeter o acusado a novo julgamento, porque a abso­ lutória anterior fora manifestamente contrária à prova dos autos, ou, ao contrário, porque a condenação não encontrava qualquer amparo nos elementos instrutórios. Quanto ao uso de algemas, é de destacar a recente decisão do STF, em que se considerou que a visão de um réu algemado impressiona os presentes a um tribunal e exerce forte influência sobre os jurados, induzindo-os a pensar que a decisão do juiz de mantê-lo assim foi tomada porque ele apresenta periculosidade,” ' O novo dispositivo foi criticado por Nucci: “O acusador, então, em lugar das algemas, passa a ler aos jurados a decisão que decretou a prisão preventiva ou a folha de antecedentes do réu. Não estão vedadas tais peças. Pode dizer, à vontade, que ele está preso, pois é perigoso, e não mencionar uma palavra acerca das algemas. Aliás, nem precisa. Os jurados estão vendo o réu algemado e não são tolos.” E conclui; “A vedação imposta pelo art. 4 7 8 ,1e II, do CPP, em nosso entendimento, além de ingênua, beira à inconstitucionalidade. Cerceia-se o direito de qualquer das partes de explorar as provas lícitas”."* Discorda-se. Se a leitura do decreto de prisáo preventiva ou da folha de an­ tecedentes for feita com o objetivo de extrair uma “presunção de culpa”, haverá indevida influência no julgamento dos jurados e eventual veredicto condenatório será nulo. As hipóteses do art. 4 7 8 não são nmnerus clausus. Não será apenas, única e exclusivamente, nestes casos que os jurados serão influenciados. Qualquer outra linha argumentativa, com finalidade persuasiva, mas que possa induzir o jurado a erro, implicará nulidade dejulgam ento. A diferença ^'que, nas hipóteses dos incisos I e II do novo art. 478, demonstrada a situação de bfôse - o acusado foi pronunciado, ou o acusado está algemado, ou, ainda, o acusacío permaneceu etn silêncio, o que indica que seja culpado - , haverá nulidade, posto que o legislador, previamente, considera que neste caso haverá evidente prejuízo. No entanto, em qualquer outra hipótese, desde que se demonstre concretamente que linhas argu272. STF, HC n° 91.952/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, Pleno, j, 07/08/2008, v.u. Do voto do relator lê-se: “Manter o acusado em audiência, cora algema, sem que demonstrada, ante práticas antenores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento no júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados”. O TJSP em antigo julgado, decidiu: “Irrito o julgamento do júri se o réu permaneceu algemado durante o desenrolar dos trabalhos sob a alegação de ser perigoso, eis que tal circunstância interfere no espírito dos jurados e, consequentemente, no resuludo do julgamento" (RT 643/285). De forma semelhante decidiu o TJRS: “A repercussão do fato e comoção da comunidade não constituem motivos para que o acusado seja algemado, medida excepcional e drástica que pode ofender a dignidade da pessoa humana e até interferir negativamente na concepção dos jurados no momento de decidir" (RT 785/692). 273. Nucci, Tribunal dojú ri, p. 149.

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mentativas seguidas pelas partes efetivamente influenciaram, de forma indevida e falaciosa, o convencim ento dosjurados, a nulidade também será de se reconhecer. Aliás, mesmo antes do novo dispositivo, era isso o que a jurisprudência fazia no tocante a indevido argumento de presunção de culpa a partir da “periculosidade” do acusado que estivesse algemado.®®® K No que diz respeito à leitura da “folha de antecedentes”, tal prática deveria ser banida, posto que pode claramente induzir o jurado a erro pela propensão de con­ siderar que quem já delinquiu uma vez deve ser o autor de um novo crime |que se lhe atribui. Não é por outra razão que, no sistema da common law, existe a regra de caráter (character rule), que proíbe a admissão de provauies^onadora do caráter do acusado. Antonio Magalhães Gomes Filho explica que tais provas relacionadas aos antecedentes do acusado “poderiam levar o jú ri a reconhecer sua culpabilidade em função de outros fatos, e não daquele pelo qual está sendo efetivamente julgado”.®®’ De outro lado, não hã qualquer inconstitucionalidade ou “exclusão de provas Ucitas”. A decisão de pronúncia, o uso de algemas e o silêncio do acusado não são “provas". O novo art. 478 não determina a exclusão de qualquer prova, mas impede que se utilize uma determinada “linha argumentativa”. A vedação não é quanto à prova dos fatos, mas quanto ao argumento utilizado para persuadir os jurados. São coisas distintas. Entretanto, ainda que se queira considerar a questão sob o ângulo probatório, o fato de uma prova ser lícita não significa que, necessariamente, poderá ser utilizada. Há muito a doutrina da common law, exatamente por influência dojúri, criou as exclusionaries rules, que. na expressão dejohn Langbein, “têm um propósito essencialmente profilático”.®®*Entre tais regras de exclusão há as rules o f intrinsic policy, cuja finalidade gnosiológica é proteger os jurados de certas provas, que poderiam ser mal empregadas, por lhes ser atribuído um valor diverso do que realmente possuem, e as rules o f extrinsic policy, que visam a proteção de direitos fundamentais, em especial as liberdades públicas. E, como lembra Diogo Malan, “são bastante comuns, no âmbito da common law, regras criadas com base mais na experiência do que na lógica, que excluem meios probatórios relevantes, mas cujo impacto no julgador é considerado maior do que a sua força probante”.®®®

13.5.16.14 Juntada de documentos Durante o julgamento nâo será permitida a produção ou leitura de documento que náo tiver sido juntado aos autos, com antecedência mínima de três dias úteis (CPP, art. 479, caput). Tal previsão é uma exceção ã regra de que os documentos podem ser juntados no processo a qualquer momento (CPP, art. 231). A razão de ser de tal regra 274. Nesse sentido, cf. jurisprudência citada na nota 149. 275. Gomes Filho, Direito ã p ro v a ..., p. 96. 276. Historical foundations of the law of evidence; a view from the Ryder sources, Columbia Law Review, New York, n. 96, p. 1195, 1996, apud Malan, Direito ao confronto..., p. 36-37. 277. Malan, Direito a o confronto..., p. 39.

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é evitar que uma das partes seja surpreendida no momento do julgamento, inviabili­ zando o exercfcio do contraditório e a produção de contraprova. O prazo regressivo de três dias*™ é para a juntada do documento, mesmo que a comunicação à parte contrária ocorra a menos de três dias do julgamento.*’®E, para a parte, desde que protocolada a petição acompanhada do documento com a antecedência exigida por lei, eventual demora dos serventuários para efetivamente “juntar” a petição e os documentos aos autos não impedirá a sua leitura em plenário. Tal prazo é insuficiente e poderá impedir o direito à contraprova da parte contrária. Mudando-se o termo inicial do prazo da data em que o documento fosse “comunicado à parte contrária”, como constava da redação anterior do art. 475, para o momento em que o documento tiver sido “juntado aos autos”, o prazo deveria ser sensivelmente ampliado. Mesmo a atual previsão de que “seja dado ciência à outra parte” poderá ser de pouca serventia porque, se o documento for juntado exatamente três dias antes, é possivel que a intimação so­ mente venha a ocorrer um ou dois dias antes do julgamento, quando não mais poderá juntar documentos. A situação será ainda mais grave no caso em que a cientificação não seja realizada até a sessão dojúri. Neste último caso, não será possível a realização do julgamento, devendo ojuiz adiar a sessão, redesignando-a para data futura. O parágrafo único do art. 479 do CPP estabelece, de forma detalhada, que “com­ preende-se na proibição deste artigo a leitura de jornais ou qualqher outro escrito, bem com oaexibição de vídeos, gravações,^^fotografias, laudos, qiiadros,\croqiiF^'ou qualquer 278. O STF entendeu que o prazo é regressivo, e que se o documento for juntado no ter­ ceiro dia antes do julgamento, cabe a sua leitura: “1. O pedido da.defesa para juntada de documentos, cuja leitura pretendia realizar em plenário, não podéria ter sido indeferido, pois foi protocolizado exatos três dias ames da data do julgamentê. Art. 475 do CPP. Im­ possibilidade de interpretação extensiva para prejudicar o réu" (RT 874/506). No caso, o júri seria realizado no dia 18.04.2002 e o pedido de juntada era do dia 15.04.2002. Ou seja, não é necessário preservar o prazo inteiro de três dias, juntado o documento 4 dias antes do julgamento. 279. Não é possivel concordar com posição doutrinária que, saudosa da amiga redação do art. 475, considera que o prazo de três dias continua a ter por termo inicial a comunicação da parte contrária. Representando esse posicionamento. Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 219) afirma que: “O prazo não é contado a partir da data em que o documento ou obje­ to foi levado ao protocolo ou despachado, mas simplesmente, inicia-se a partir da devida intimação. É como deixa entrever o art. 479". Nesse mesmo sentido; Mugenot Bonfin e Parada Neto, O novo procedimento..., p. 102. 280. Nucci (Roteiro..., p. 102) observa que “não tem a jurisprudência impedido a exibição de fitas gravadas (vídeo ou somente áudio) de programas de televisão e rádio, contendo entrevistas de pessoas ou do próprio acusado, falando sobre o caso, desde que tenha sido respeitada a ciência à parte contrária no triduo legal”. Na jurisprudência, já se decidiu que "o uso de gravação sonorizada em Plenário é admissível, se a parte contrária for devida­ mente cientificada da juntada de fita cassete, cuja autenticidade não foi contestada” (TJSP, RT5U/326). 281. Marrey (Teoria..., p. 372) afirma que “a exibição em Plenário, pelo defensor, de croqui do local do crime, não anexado aos autos com antecedência legal e com surpresa para a acusação, justifica que se ordene novo julgamento".

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putro meio assem elhado, cujo conteúdo versar sobre a m atéria de fa to submetida à apre­ ciação ejulgam ento dos jurados”. Por outro lado, tem sido admitida a leitura de livros dóutrinários“ ' e de repertórios de jurisprudência nâo juntados aos autos, desde que não se refiram ao caso concreto que está em julgamento.“ * De observar, ainda, que peças e documentos juntados em desrespeito ao art. ^79 çonstituirão provas ilegítimas, por violação de regras processuais, e a sua leitura em ple­ nário acarretará a nulidade do julgamento,“ ®não havendo que exigir a “demonstração do prejuízo”, ante a natureza imotivada das decisões dos jurados. Será impossfvel saber se tal documento ou peça foi relevante para a formação do convencimento dos jurados, ou mesmo se a ele foi dada apenas uma importância acessória no convencimento dos juizes leigos. Por tal motivo, a nulidade, nesse caso, deve ser considerada absoluta, até mesmo porque seria impossível à parte prejudicada demonstrar o prejuízo.“ ’

J3.5.16.15 Conclusão dos debates e esclarecimentos aos jurados Concluídos os debates, o juiz indagará dos jurados se estão habilitados a julgar ou se precisam de mais esclarecimentos (CPP, art. 480, § 1°). Se qualquer dos jurados necessitar de novos esclarecimentos sobre questão de fato, ojuiz prestará os esclare­ cimentos à vista dos autos (CPP, art. 480, § 2“). 282. Em sentido contrário, o STJ considerou não haver nulidade em o juiz-presidente ter impedido que a defesa exibisse ao Conselho de Sentença, obra doutrinária de medicina legal, não juntada anteriormente aos autos, com o escopo de comprovar a tese da legítima defesa (REsp n” 1.303.548/ES). Discorda-se, não se tratava de um parecer analisando o caso em julgamento, mas uma obra com lições genéricas de medicina legal, o que não se enquadra no conceito do art. 479 do CPP, que tem como requisito o “conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida ã apreciação e julgamento dos jurados". 283. A jurisprudência tem admitido a leitura de reportagem sobre fato análogo (TJSP, RT 642/287), ou sobre a violência em geral (TJSP, RT 645/281). Também se admitia a utilização, sem a intimação da parte contrária, de boneco para ilustrar as teses (TJMS, RT 788/651) ou gráficos do corpo da vítima (TJSP, RT 516/298). A leitura de folha de antecedentes da víti­ ma (TJSP, RT 610/337) ou autos de processo anterior contra o acusado (TJSP, RT 581/285) igualmente exigem a observância do prazo legal de ciência da parte contrária. Embora com alguma divergência, tem prevalecido o entendimento de que o conceito de documento do art. 475 deve ser amplo, incluindo-se, por exemplo, as vestes da vítima (TJSP, RT 588/303). Em sentido contrário, considerando que a vedação nâo se aplica à arma do crime: STJ, REsp n“ 262.817/PR, TJSP, RT 774/563, RT602A539. Pela inadmissibilidade de utilização da arma do crime (TJSP, RT 440/375). 284. Nesse sentido, referindo-se às provas ilícitas, mas em lição igualmente aplicável às prova ilegítimas, Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 138) destacam que “o veredicto dos jurados, porém, será irremediavelmente nulo, até porque a ausência de motivação impede o conhecimento das razões de julgar”. 285. Não é este, contudo, o entendimento prevalecente. No regime anterior, predominava o entendimento de que a inobservância da regra do antigo art. 475, que corresponde ao atual art. 479 do CPP, gerava nulidade relativa: cf. Damásio E. dejesus, Código..., 2006, p. 379. Na jurisprudência: STF, RTJ 98/927. Em relação ao novo art. 479 do CPP, Damásio E. de Jesus, Código..., p. 400, mantém a posição de que se trata de nulidade relativa.

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Prevalece na doutrina o entendimento de que os esclarecimentos são apenas quanto às questões de fato, como, aliás, decorre do texto legal. Obviamente, não poderá o juiz, por exemplo, esclarecer se a legítima defesa restou ou não provada.®**

13.5.16.16 Provas essenciais e dissolução do conselho de sentença Se a verificação de qualquer fato, considerado essencial para a decisão da causa, não puder ser realizada imediatamente, o ju iz dissolverá o conselho de sentença e ordenará a diligência necessária para tanto (CPP, art. 481, caput). No caso de a dili­ gência necessária se tratar de prova pericial (por exemplo, exame na arma do crime, ou pericia sobre o estado mental do acusado), oju iz, desde logo, nomeará o perito e formulará os quesitos, facultando às parte também preparar seus quesitos e indicar assistente técnico, no prazo de cinco dias (art. 481, parágrafo único). Por outro lado, se a prova essencial puder ser realizada imediatamente, como a oitiva de uma testemunha referida residente na Comarca, que possa ser conduzida ao fórum sem demora, ojuiz deve apenas suspender os trabalhos, até que possa produzir a prova, prosseguindo, posteriormente, com o julgamento.

13.5.16.17 Leitura dos quesitos Não havendo dúvidas dosjurados a serem esclarecidas, nem diligências a serem realizadas, o juiz deverá proceder à leitura dos quesitos, indagandb das partes se têm requerimento ou reclamação a fazer, devendo constar da ata qualquer requerimento ou reclamação nâo atendida (CPP, art. 484, caput). A leitura dos quesitos deve ocorrer em público, ainda no pleçário, e nào na “sala secreta” (CPP, art. 484, parágrafo único). Se as partes não concordarem com os que­ sitos, prevalece o entendimento de que deverão se manifestar neste momento, sob pena de preclusão (CPP, art. 564, parágrafo único, c.c. o art. 571, Vlll). No entanto, se o vício na elaboração dos quesitos for de tal ordem que impeça o conhecimento da vontade dosjurados,™® porque levou o conselho de sentença à perplexidade sobre o fato sujeito à decisão, a nulidade será absoluta, não havendo que falarem preclusão.®**

286. Para Nucci (Código..., p. 806) é possível que os jurados também necessitem de esclare­ cimentos sobre questões de direito, por exemplo, "querer o jurado ler, diretamente, algum artigo de lei, citado pela parte. Cabe ao magistrado prestar o esclarecimento e. sendo o caso, encaminhar ao jurado o Código Penal ou outro texto legal pertinente”. 287. O STJ já considerou haver nulidade no caso em que “além da ausência de quesito obri­ gatório - acerca da tentativa - , o terceiro quesito, nos termos em que foi formulado pelo Juiz Presidente (se o réu 'quis o resultado morte ou assumiu o risco de produzi-lo', con­ forme bem ressaltou o acórdão impugnado, gerou uma confusão generalizada, na medida em que ‘não se sabe se os jurados queriam absolver o acusado de um dos crimes ou apenas pretendiam desclassificar a infração’...)." (STJ, HC n° 232.236/SP). 288. Na jurisprudência, no sentido de que a nulidade é relativa, devendo ser arguida logo após a leitura, sob pena de sanatória: STF, HC n" 101.799/MT; TJSP, RT 677/358. No sentido de que, havendo incompreensão da vontade dos jurados, a nulidade será absoluta: STF, HC n

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Ainda em plenário, o juiz deverá esclarecer aos jurados o significado de cada quesito (CPP, art. 484, parágrafo único). Normalmente, o juiz explica, em relação a cada um deles, em que sentido se manifestam a acusação e a defesa (por exemplo, ambos pedem que se vote “sim”, ou a acusação pede que se vote “sim ” e a defesa que se vote “não” etc.).

13.5.16.18 Sala secreta Lidos os quesitos, o ju iz anunciará que se vai proceder ao julgamento, i com osjurados, o Ministério Público, o assistente, o querelante, o defensor, o escrivão e 0 oficial dejustiça se dirigirão para a sala especial, para leyar^efeito a votação (CPP, art. 485, caput). Na impropriamente denominada “sala secreta", as partes não poderão fazer qualquer intervenção que possa perturbar a ordem dos trabalhos (CPP, art. 4 8 5 , § 2°). Nào havendo sala especial, ojuiz determinará que o público e o acusado se reti­ rem do plenário (CPP, art. 485, parágrafo único), nele permanecendo apenas o juiz, os jurados, o representante do Ministério Público, o defensor, o escrivão e o oficial dejustiça.

13.5.16.19 Quesitos O quesito é uma pergunta ou uma indagação formulada aos jurados, sobre um dado fático posto em julgamento, devendo ser respondido de forma negativa ou positiva. A indagação deve ser feita em proposições simples, com clareza e sem que possa haver qualquer dubiedade. O art. 482, parágrafo único, determina que “os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão”. Os quesitos devem ser formulados em indagações afirmativas, não sendo possível utilizar a forma negativa, que pode causar confusão nos jurados e levar a respostas equivocadas.*®® Se estiver em julgamento mais de um acusado (por exemplo, julgam ento si­ multâneo do autor material e do mandante do crime), o juiz formulará uma série de quesitos para cada um dos acusados. Também, se houver mais de um crim e (por

101.799/MT, HC n° 85.295/SP, RTJ 104/540. RTJ 96/590. De observar que não há justificativa legal para ml distinção, uma vez que a hipótese de nulidade por deficiência dos quesitos está prevista no parágrafo ünico do art. 564, nào sendo elencada no rol das nulidades sanáveis (CPP, art- 572). Assim, qualquer nulidade envolvendo os quesitos deveria ser absoluta. 289. Nesse sentido: Frederico Marques, O júri..., p. 257; Marrey, Teoria..., p. 459; Mirabete, Processo Penal, p. 579; Nucci, Código..., p. 809. Na jurisprudência: STF, RTJ 80/450, RT 619/376; TJSP, RT 623/267. Marrey (Teoria..., p. 459) lembra que “ao jurado leigo uma resposta positiva pode anular uma pergunta em forma negativa e uma resposta negativa pode ensejar uma conclusão positiva, em razão da existência de duas negativas. Com isso, o julgamento pode tomar-se ambíguo”.

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exemplo, homicídio em conexão com resistência), deverá ser formulada uma série de quesitos para cada um deles (CPP, art. 483 § 6°). O primeiro quesito a ser formulado diz respeito à materialidade delitiva (por exemplo, 1° No dia..., por volta de... horas, no (local) desta cidade, a vítim a.. .foi atingida por projéteis e sofreu as lesões descritas no laudo de exame de corpo de delito de fls . ...?), Entendemos que a lei não mais autoriza, como ocorria no regime originário do CPP, que o primeiro quesito seja desdobrado em (1.1) materialidade e autoria; (1.2) nexo causal. Eventuais problemas relacionados à ausência de nexo causal serão resol­ vidos no 3° quesito em que, genericamente, se indaga sobre a absolvição. Necessário analisar a evolução legislativa para compreender o ponto de vista defendido. O antigo inciso I do art. 484 dispunha que “o primeiro versará sobre o fato principal, de conformidade com o libelo”. Predominou o entendimento de que o “primeiro” quesito deveria ser desdobrado em dois quesitos: o primeiro tratando da materialidade do fato e da autoria (1° 0 acusado..., no dia..., por volta de ... horas, no (local) desta cidade, com o emprego de revólver, efetuou disparos contra..., o qual foi atingido por projéteis e sofreu as lesões descritas no laudo de exame de corpo de delito de fls. ...),e o segundo sobre o nexo causal entre as lesões sofridas e a morte, ou seja, sobre a letalidade da conduta (2° Tais lesões deram causa à morte do ofendido?). Por sua vez, no novo regime simplificado instituído pela reforma de 2008, a redação alterada do art. 483 o CPP prevê um primeiro quesito sobre “a materialidade do fato” (inciso I) e um segundo sobre “a autoria ou participação” (inciso II). Ora, principalmente diante do propósito simplificador, náo se pode considerar que, para fins de quesitação, a expressão “fato principal”, da redação anteríSr do inciso I do art. 484, equivalha à nova expressão “materialidade do fato”, do nos^ inciso I do caput do art, 483 do CPP O “fato principal" envolvia a materialidade e a autoria. A “materialidade do fato", por seu turno, não toca à autoria delitiva ou a nexo causal. A autoria ou participação será resolvida em quesito específico, no caso, o segundo quesito (CPP, art. 483, caput, 11). Já a relação de causalidade se resolve no inciso geral sobre absolvição (CPP, art. 483, caput, HI). Diante do regime atual, não se poderá “desdobrar” o primeiro quesito em dois, incluindo a materialidade no primeiro quesito, e formulando uma segunda indagação sobre o “nexo causal" ou a “letalidade da conduta”.™' 290. Cf., por todos. Porto, JUri..., p. 131. No caso de tentativa de homicídio, no segundo que­ sito indagava-se: “2° Assim procedendo, o acusado deu inicio à execução de um homicídio, que não se consumou por circunslâncias alheias à sua vontade?". 291. Em sentido contrário, Nucci (Tribunal do júri..., p. 236) continua a sugerir um primeiro quesito apenas sobre a “materialidade”, em verdade, conduta e materialidade, mas ainda formula um segundo quesito, sobre a “letalidade”. Posição intermediária é defendida por Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 221): “Na elaboração dos quesitos, o primeiro versará sobre a materialidade o fato. Às vezes, há necessidade de desdobrá-lo. Assim, no homicídio, indaga-se, por primeiro, se a vítima recebeu ferimentos. Depois, se foram letais. Em seguida.

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De se reconhecer, contudo, que na prática forense não tem sido este o ponto de vista prevalecente. O primeiro quesito, sobre a materialidade do fato, tem sido desdobrado em dois quesitos: o primeiro indagado sobre a conduta e o resultado, e o segundo, sobre o nexo causal. O segundo quesito será sobre a autoria (2° O acusado ... efetuou os disparos d í arma de fo g o contra a vítima?'). O terceiro quesito será: O acusado deve ser absolvido ?

i

Todas as teses que não envolvam a materialidade (indagada no primeiro qiíesito) e a autoria (objeto do segundo quesito) devem ser resolvidas neste terceiro quesito sobre a absolvição do acusado. TO quesito, contudo, não deverá mencionar a tese defendida que pode levar à absolvição (por exemplo; 3° O acusado deve ser absolvido por ter agido em legítima defesa?). Trata-se do único quesito cuja redação é predeterminada pela lei. O quesito sobre absolvição é obrigatório, que deverá ser formulado, mesmo que as teses defendidas em plenário envolvam apenas a materialidade e a autoria, e já tenham sido refutadas pelos jurados, nas respostas positivas aos quesitos anteriores.™* Por exemplo, a defesa pode ter negado a autoria delitiva, o que não foi aceito pelos jurados, que responderam positivamente ao segundo quesito, mas também decidiram que o acu­ sado deveria ser absolvido por outro fundamento, ainda que não alegado em plenário, como por exemplo, a legítima defesa ou outra causa diversa da autoria.™' A ausência de formulação desse quesito obrigatório é causa de nulidade absoluta do julgamento.*®’ No caso de tentativa de homicídio, em que a vitima tenha sido atingida, se os dois quesitos sobre materialidade e autoria forem respondidos positivamente, haverá um quesito específico sobre a tentativa (CPP, art. 483, § 5°), antes do quesito sobre a absolvição. Diante do propósito simplificador, o quesito deverá ser; “3“ O acusado ... tentou m a ta ra v í t i m a ? " . Respondido “sim” ao quesito da tentativa, passa-se à formulação do quesito sobre a absolvição.

292. 293.

294. 295.

a pergunta sobre a autoria. Às vezes, a indagação sobre a materialidade cabe integralmente num só quesito”. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 240. Nesse sentido decidiu o STJ: “Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o quesito previsto no art. 483, III, do Código de Processo Penal, é obrigatório e, dessa forma, não pode ser atingido pela regra da prejudicialidade descrita no parágrafo único do art. 490 do mesmo diploma legal. Precedentes. O fato de a decisão dos jurados se distanciar das provas coletadas durante a instrução criminal nào justifica a renovação da votação ou caracteriza contrariedade entre as respostas. Fventual discordância da acusação deve ser abordada por meio do recurso próprio, nos termos do art. 593, ill, alinea d, do Código de Processo Penal. 3. Osjurados são livres para absolver o acusado, ainda que reconhecida a autoria e a materialidade do crime, e tenha o defensor sustentado tese única de negativa de autoria” (HC n° 206.008/SP). STJ HC n® 254.568/PB. Caso se opte por continuar a formular o quesito de maneira mais complexa, descrevendo os elementos da tentativa, sugere-se: “2° Assim procedendo, o acusado deu inicio d execução

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No caso da chamada “tentativa branca”, uma interpretação literal do inciso I do caput do art. 483 do CPP impossibilitaria a formulação do primeiro quesito, posto que não há “materialidade” do fato se a vítima não foi sequer atingida pelo ato agressivo do acusado. Assim, há que se interpretar o dispositivo no sentido da “potencialidade” de lesão à integridade física da vítima: “1“ No dia..., por volta de ... horas, no (local) desta cidade, a vítima... foi alvo de disparo de projéteis de arma de fogo, sem que fosse atingida?"; “2° O acusado ... efetuou os disparos de arma de fogo contra a vítima?”; “3“ O acusado ... tentou matar a vítima?" Há uma regra específica no § 4° do art. 483 do CPP. para o caso de desclassificação: “Sustentada a desclassificação da infração para outra de competência dojuizsingular, será form ulado quesito a respeito, para ser respondido após o segundo ou terceiro quesito, conform e o caso" (destacamos). O dispositivo procurou disciplinar, legislativamente, o que se costumava distinguir, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, como “desclassificação própria” e “desclassificação imprópria”. A doutrina, contudo, não utiliza tais con­ ceitos de maneira uniforme. Uma corrente defendia que a desclassificação própria é aquela que, afastando uma figura indagada (por exemplo, tentativa de homicídio), não afirma a existência de qualquer figura (crime de lesões corporais leves, graves etc.); já a desclassificação imprópria é aquela que, afastando uVna figura indagada (por exemplo, homicídio doloso), sustenta a existência de outãa figura penal (por exemplo, homicídio culposo).®“* Outra corrente entendia que a desclassificação própria é aquela em que se nega a competência dojúri parajulgar o caso, quando, uma vez afirmad|p o primeiro quesito (autoria e materialidade), negava-se o segundo quesito (intençãàcriminosa, no caso da tentativa ou do crime culposo, ou nexo causai). Já a desclasaficação imprópria seria aquela em que, afirmados os dois primeiros quesitos e, portanto, reconhecido o crime doloso contra a vida e a competência do tribunal do júri, em resposta a algum quesito defensivo (por exemplo, participação dolosamente distinta ou excesso cul­ poso), reconhece-se que o acusado deve ser punido por outro crime.®“® No caso de desclassificação própria, por exemplo, se a defesa alegar que o crime foi culposo, deverá ser formulado o quesito especial sobre a desclassificação, antes do quesito sobre a absolvição, por se tratar de desclassificação própria (CPP, art. 483, § 4°).®“* Diante do propósito de simplificação dos quesitos, que inspirou a reforma do CPP, não será necessário indagar a modalidade de culpa em sentido estrito invocada de um homicídio, que nao se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade?". Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 232) admite ambas as formulações. 296. Cf.; Porto, Jtíri..., n. 97, p. 130; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 417; Mirabete, Processo Penal, p. 585; Demercian e Maluly. Curso..., p. 523-524. 297. Nucci, Roteiro..., p. 78. 298. Nesse sentido; STJ, HC n° 183.737/SP, reconhecendo, inclusive, a nulidade absoluta do julgamento por falta de formulação de quesito obrigatório.

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pela defesa,®““ bastando a pergunta genérica sobre ter o acusado agido com culpa (3° O acusado agiu com culpa?). O § 4° do art. 483 também permitirá resolver, com simplicidade, os problemas referentes à desclassificação imprópria, em especial os relacionados com o excesso nas excludentes de ilicitude. Nestas hipóteses, o quesito de desclassificação dex^rá ser formulado após o terceiro quesito, sobre a absolvição. Para que possa surgir a questão relativa ao excesso, deverá estar em debate ocorrência ou não de uma excludente de ilicitude. Assim, se os jurados acolherem a tese defensiva de que houve, por exemplo, legítima defesa, deverão responder “sim ” ao terceiro quesito, “absolvendo” o acusado. N enhum pjjjblem a haverá neste caso. Entretanto, se a defesa alega a ocorrência da excludente de ilicitude e o órgão da acusação, em plenário, passando a admitir a excludente, alega que houve excesso, seja doloso ou culposo, a solução dependerá da resposta ao terceiro quesito. Caso res­ pondam “sim”, absolvendo o acusado, estarão acolhendo a tese de defesa, de legítima defesa, e consequentemente afastando a tese do excesso, doloso ou culposo. Já no caso oposto, se a maioria dos jurados responder “não”, estará afastando a tese de legítima defesa e, por exclusão, acolhendo a tese da acusação de excesso, doloso ou culposo, conforme o que tiver sido alegado.®““ Finalmente, é de observar que a simplificação, tal qual formulada, provavelmente nâo conseguirá solucionar todos os possíveis problemas do júri. Sem preocupação de esgotar as hipóteses, analisa-se apenas uma delas. Quando a defesa alegar que o acusado agiu em legítima defesa, mas, subsidiaria­ mente. alegar a inimputabilidade, poderã haver problema para identificar a vontade 299. Nesse sentido, antes da reforma do CPP: Frederico Marques, O jú ri..., p. 365; Porto. Jú r i..., n. 102, p. 136; Marrey, Teoria..., p. 636. 300. Nesse sentido, Stoco, Tribunal d o jú r i..., p. 228. Situação mais com plexa ocorrerá quando a defesa alegar, como tese principal, a excludente, por exemplo, a legítima defesa, e, como tese subsidiária, o excesso culposo, caso a resposta ao terceiro quesito seja “não”, será impossível aferir a vontade dosjurados. Se quiserem acolher a tese da legítima defesa, responderão “sim” no terceiro quesito, absolvendo o acusado, e o resultado será plena­ mente compreensível. Se quiserem adotar a tese acusatória, por exemplo, condenação por homicídio doloso, e rejeitar as teses defensivas, tanto a principal - por exemplo, legítima defesa - quanto a subsidiária - por exemplo, excesso culposo - , responderão “não”, e o acusado terá sido condenado. Contudo, se os jurados entenderem que houve excesso cul­ poso, e desejarem acolher a tese defensiva subsidiária, como deverão votar? Não poderão votar “sim” ao quesito sobre absolvição, pois isto implicaria acolher a tese principal, de ocorrência de legítima defesa. Teriam, pois, de responder “não” ao terceiro quesito. Neste caso, porém, será impossível saber se estarão acolhendo a tese acusatória, qual seja con­ denação por homicídio doloso, com exclusão das teses defensivas de legítima defesa e do excesso culposo, ou se estarão acolhendo a tese defensiva subsidiária, isto é, reconhecendo a ocorrência de excesso culposo na legítima defesa, que eqüivale a condenar por homicídio culposo por equiparação. Para a resolução de tal impasse, formula-se um quesito sobre a desclassificação, no caso, desclassificação imprópria, após a resposta “nâo” ao terceiro quesito, nos termos do novo art. 483, § 4°, do CPP

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dos jurados. Para acolher qualquer das teses osjurados deverão responder “sim” ao terceiro quesito, absolvendo o acusado. Como saber, porém, se estarão absolvendo o acusado por acolherem a tese principal da legítima defesa, ou a tese subsidiária, fun­ dada na Ínimputabilidade? Não se olvide que há relevância prática nesta distinção, na medida em que, no primeiro caso, haverá absolvição “plena”, enquanto no segundo por se tratar de absolvição imprópria, deverá o juiz-presidente impor medida de se­ gurança ao acusado. A forma de solucionar tal impasse seria a previsão de um quesito específico sobre a Ínimputabilidade, no caso do art. 26; caput, do CP„a ser votado após a afirmação da absolvição, quando tal tese fosse alegada por qualquer das partes.™' Todavia, mesmo sem previsão legal, outra solução não restará senão a formulação de um quesito espe­ cífico, após a resposta positiva ao terceiro quesito. O acusado já estará absolvido, mas restará saber se por ínimputabilidade ou não. Assim, deve ser elaborado um quarto quesito, indagando dos jurados se o acusado era inimputável ao tempo do crime.™* A resposta positiva implicará a absolvição por ínimputabilidade, com a imposição de medida de segurança pelo juiz-presidente. já a resposta negativa significará a absol­ vição pela tese principal (por exemplo, legítima defesa). Voltando ao esquema normal de quesitação, no caso de resposta negativa ao três primeiros quesitos, o quarto quesito será sobre causas de diminuição de pena. Portanto, no caso de homicídio privilegiado, por ser o privilégio uiba causa de di­ minuição de pena, deverá ser votado antes do quesito relativo às qualificadoras.™' Obviamente, se houver mais de uma causa de diminuição, deverá haver um quesito para cada uma delas. O quinto quesito; ojuiz deverá indagar aos jurados sobre as cargas de aumento de pena e as qualificadoras. Em verdade, para cada causa de aumento e para cada qualificadora, deverá haver um quesito independente, o que permitirá a apreciação individualizada de cada uma. As circunstâncias agravantes e atenuantes não mais serão objeto de quesitação. Caberá ao juiz-presidente, de acordo com o que foi sustentado em plenário, no mo301. Nesse sentido, com a sugestão acima, cf. Badaró. Projeto de Lei n® 4.203/2001..., p. 209. 302. O correto será a formulação de um quesito positivo, indagando se o acusado era inimptttável, em vez de um quesito negativo, indagando se o acusado não era imputável, posto que o novo art. 482, parágrafo único, do CPP prevê a formulação de quesitos afirmativos. Em razão da busca de uma simplificação do questionário, o quesito poder ser, apenas: “4° O acusado..., ao tempo do crime, era inimputável?” Todavia, caso se opte pela formulação de quesitos mais detalhados, nos moldes do que prevalecia no sistema anterior, o que se mostrará contrário ao espirito da reforma, sugere-se a seguinte redação: “4“ O acusado..., ao tempo do crime, em rirtude de doença mental (ou era virtude de desenvolvimento mental incompleto; ou em virtude de desenvolvimento mental retardado), era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato (ou era inteiramente incapaz de se determinar de acordo com o entendimento do caráter ilícito do fato)?". 303. Nesse sentido: Marrey, Teoria..., p. 386. Na jurispatdència; STE HC n° 53.175/RS.

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niento da dosimetria da pena, considerar e valorar, dentre aquelas que foram alegadas pelas partes, aquelas que restarem provadas. Havia divergência, antes da reforma do CPP, sobre a possibilidade ou não de forinúlação de quesito sobre o crime continuado. Uma corrente afirmava que o conselho de sentença não deve ser indagado sobre o crime continuado, porque esta constitui matéria atinente à fixação da pena, sendo de competência exclusiva do juiz-presidente.™’ Outra posição defendia que era possível a formulação do quesito sobre o crime continuado. Como o crime continuado - e o mesmo vale para o concurso formal im­ plica o reconhecimento de causa de diminuição de pena, tal matéria deverá ser objeto de indagação aos jurados, nos termos do art. 483, caput, do CPP.

13.5.16.20 Votação dos quesitos O conselbo de sentença passará a votar, sob a presidência do juiz, os quesitos que Ibe forem propostos. O juiz não permitirá que os acusadores ou os defensores perturbem a livre ma­ nifestação do conselbo, podendo determinar que seja retirado da sala aquele que se portar inconvenientemente (CPP, art. 485, § 2“). Para a votação dos quesitos, o juiz mandará distribuir aos jurados pequenas cédulas, feitas de papel opaco e facilmente dobráveis, recebendo cada jurada uma cédula com a palavra “sim" (normalmente em vermelbo) e outra com a palavra “não" (normalmente em preto), a fim de, secretamente, serem realizados os votos (CPP, art. 486). Depois de distribuídas as cédulas, o juiz lê o quesito que deve ser respondido e o Oficial dejustiça recolhe as cédulas com os votos dos jurados e as cédulas não utilizadas (CPP, art. 487). Primeiro, serão recolhidos os votos, na chamada “um a de carga” (CPP, art. 486). Normalmente, a primeira uma é passada no sentido anti-ho­ rário, começando a recolher os votos a partir do primeiro jurado aceito. Entregue a urna da carga ao juiz, o Oficial dejustiça recolhe as cédulas não utilizadas, na “urna de descarga”, normalmente em sentido horário, começando pelo sétimo jurado, até 0 primeiro. Os §§ 1° e 2" do art. 483 do CPP disciplinam a forma de apuração dos votos. No novo regime, nâo mais haverá a proclamação do número de votos “sim” e de votos “não” para cada um dos quesitos. Assim, apurados os votos do primeiro quesito, sobre a materialidade delitiva, se mais de três votos forem “não”, estará encerrada a votação, com a absolvição do acusado (CPP.art. 483, § 1“). Por outro lado, se mais de três votos forem “sim”, passa-se à votação do segundo quesito, sobre a autoria (CPP, art. 483, § 2°). Novamente, caso a maioria vote “não”, encerra-se a votação, sendo absolvido 0 acusado. No caso de a maioria dos votos ao segundo quesito ser positiva, passa-se 304. Na jurisprudência; STJ, HC n° 186.396/PB, HC n” 194.737/PB. 305. Nesse sentido: Marrey, Teoria..., p. 404; Damásio E. dejesus, 2003, Código..., p. 368.

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à votação do terceiro quesito, indagando se o acusado deve ser absolvido (CPP, art. 483, § 2°). A resposta positiva absolve o acusado e encerra a votação. Também para eventuais quarto e quinto quesitos, a apuração deverá seguir os moldes dos §§ 1° e 2° do art. 483. Isto é, apurados mais de três votos positivos, ou negativos, encerra-se a apuração e proclama-se apenas o resultado. Ou seja, após a votação de cada quesito, o presidente, verificados os votos e as cédulas nâo utilizadas, mandará que o escrivão registre no termo a votação de cada quesito, bem como o “resultado dejulgam ento" (CPP, art. 488, ca p u t).^ Na atual sistemática não se declara “o número de votos afirmativos e o de negativos”.®“®As­ sim, não se declarará nem constará do termo de votação, por exemplo, “por 5 votos a 2, responderam ‘sim’ ao segundo quesito”, mas apenas “por mais de três de votos, respondido ‘sim’ ao segundo quesito”.®“®Com isso preserva-se o sigilo das votações. A melhor forma de apurar os votos, sem demonstrar o número de votos afirmativos ou negativos é o juiz abrir para si todos os votos, um a um, sem qualquer indicação do conteúdo das cédulas, na medida em que são abertas. Depois de estar com todos os sete votos abertos para si, mostra para os presentes a existência de quarto votos “sim”, ou de quatro votos “nào”, conforme o resultado da votação. Com isso, não haverá qualquer dúvida sobre o resultado da votação, por um lado, e não se saberá, de outro, se houve ou nào votos divergentes. A contagem dos votos é feita quesito a quesito.

'

Apurado e anu nciado o resultado - e não o número de votos positivos e negativos ao primeiro quesito - , sendo o caso de prosseguimento da votação, as cédulas seráo devolvidas aos jurados e passar-se-á à votação do segundo quesito, sgfido tal proce­ dimento seguido até o último quesito a ser votado. As decisões dojúri serão tomadas por maioria de votos (CPP, art. 489). 306. No regime atuerior, entendia-se que a falta de juntada aos autos do termo especial de votação não gerava nulidade, mas simples irregularidade, posto que não há previsão de tal hipótese no art. 564 do CPP Nesse sentido: TJSP, Ap n° 293.240-3. Contudo, observa Nucci (Código..., p. 825), após a reforma de 2008, que, se alguma das partes questionar o termo de votação, afirmando que a sentença foi proferida em desconformidade com as respostas dos quesitos, haverá nulidade, em razão de prejuízo à decisão da causa (CPP, art. 566). 307. STF, HC n“” 104.308/RN. 308. Todavia, a forma de proclamar o resultado nào significa que o juiz, ao apurar mais de 3 votos “sim", deve parar de apurar os demais votos daquele quesito. Sem revelar o resultado, deverá continuar a abrir as cédulas dos votos e, depois, as cédulas descartadas, para verificar se não houve nenhum erro na votação. Ora, se o parágrafo único determina que do termo de votação constará a conferência das cédufas não utifizadas, com maior razão também de­ verão ser conferidas todas as cédulas utilizadas nos votos. Assim, por exemplo, apurado o primeiro voto “sim", o segundo voto “não” e mais o terceiro, quarto e quinto votos “sim”, o juiz-presidente proclama o resultado, ‘‘por mais de três votos, respondido ‘sim’ ao quesito”. Ainda assim, porém, deverá verificar as duas últimas cédulas, ainda que não declare nem faça constar o seu conteúdo no termo. Idêntico procedimento deverá adotar com as cédulas de descarte.

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Se, pela resposta dada a quaisquer dos quesitos, o ju iz verificar que ficaram pre­ judicados os áeguintes, assim o declarará, dando por finda a votação (CPP, art. 490, parágrafo único). Na verdade, a votação somente será considerada finda, na hipótese de prejudicialidade absoluta, quando é impossível continuar a votação (por exemplo, respondido negativamente o primeiro quesito sobre a materialidade ou o segundof* sobre a autoria, encerra-se toda a votação). É possível, também, a ocorrência de uma prejudicialidade relativa, que não encerra a votação, apenas tomando desnecessária a votação de alguns quesitos (por exemplo, acolhido o quesito do homicídio priv^egiado, pelo motivo de relevante valor moral, fica prejudicado o quesito da qualificadora por motivo fútil). Se a resposta a quaisquer dos quesitos estiver em contradição com outra resposta já proferida, ojuiz, explicando aos jurados em que consiste a contradição, submeterá novamente à votação os quesitos a que se referirem tais respostas (CPP, art. 49 0 , caput). Se assim não o fizer, o juiz será absolutamente nulo.*“®Na verdade, se o juiz utilizar corretamente o art. 490, parágrafo único, do CPP, impedindo a votação de quesitos prejudicados, dificilmente haverá tal contradição. Finda a votação, o termo especial da votação (CPP, art. 488) será assinado pelo juiz e pelos jurados (CPP, art. 491). 1 3.5.16.21 S en ten ça Concluída a votação, caberá aojuiz-presidente elaborar a sentença, nos termos do art. 492 do CPP. A sentença dojúri é subjetivamente complexa, por ser o resultado da soma de dois atos decisórios proferidos por sujeitos distintos; o veredicto dos jurados (quanto ao fato e à autoria) e o pronunciamento do juiz (absolvendo ou condenando e, neste caso, fixando a pena). Esta sentença possui algumas peculiaridades, em relação às demais sentenças penais. Inicialmente, o ju iz não tem o dever de fundamentar a decisão, como faria em um processo julgado pelo juiz singular (CPP, art. 381, III e IV ), devendo apenas se reportar às respostas dos jurados. A sentença também dispensa o relatório (CPP, art. 381, II).**“ Aliás, já foi feito, na própria sessão dejulgamento, um relatório do processo sobre os atos anteriores à sessão dejulgamento (CPP, art. 472, parágrafo único). No caso de sentença condenatória, caberá ao juiz a fixação da pena, devendo considerar, independentemente de qualquer resposta dos jurados, as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (CPP, an. 492, l, a ), bem como as circunstâncias agravantes (CP, arts. 6 1 a 62) e atenuantes (CP, arts. 65 e 66) invocadas pelas partes durante os debates (CPP, art. 4 9 2 ,1, b). Por outro lado, as causas de diminuição de pena (CPP, art. 483, caput, IV) e as causas de aumento de pena e qualificadoras (CPP, art. 483, caput. 309. Na jurisprudência: STF, HC n° 101.799/RJ, RHC n° 81.748AIJ. 310. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 3. p. 249.

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P ro ce sso P en al

V) serão objeto de indagação aos jurados. Em relação àquelas reconhecidas pelos jurados, caberá ao juiz-presidente dosar a pena, entre os limites mínimos e máximos previstos em lei (CPP, art. 4 9 2 ,1, c ). Em suma, na prática, o juiz somente irá valorar por si mesmo as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP e as circunstâncias agravantes e atenuantes, estas últimas, desde que invocadas nos debates. A alínea d do inciso I do art. 4 9 2 do CPP determina que o ju iz, na sentença “ob serv ará as dem ais disposições do art. 3 87 deste Código". Assim, o juiz-presi­ dente, nos termos do inciso IV do art. 387 do CPP; “IV - fix a r á valor mínimo para rep aração dos danos causados p ela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido".^'' Quanto às prisões cautelares, a alínea e do inciso 1 do art. 492 dispõe que o juiz “mandarã o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á ã prisão em que se encontra, se pre­ sentes os requisitos da prisão preventiva". Em sintonia com o novo art. 387, parágrafo único, do CPP acrescido pela Lei n° 11.719/2008, e depois renumerado para § 1®pela Lei n® 12.736/2012, nâo mais existe a prisão como efeito automático da sentença penal condenatória. Finalmente, a alínea/ do art. 492, I, dispõe que o ju iz “estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação", previstos nos arts. 91 e 92 do CP. Por outro lado, se o acusado for absolvido, o ju iz deverá mandar colocá-lo imediatamente em liberdade (CPP, art. 492, II, a). Além disso, a alínea b do inciso II, do mesmo artigo, dispõe que o juiz “revogará as medidas restritivas provisoria­ mente decretadas", tendo em vista as alterações promovidas pela Lei n° 12.403/2011, que introduziu várias medidas cautelares alternativas à prisão-.^CPP, art. 319 e 3 2 0 ). Todavia, o dispositivo deve ser interpretado, também, visaçdo às medidas cautelares patrimoniais porque, se o acusado foi absolvido, devem ser revogadas eventuais medidas assecuratórias impostas, como o sequestro de bens (CPP, art. 125) e a inscriçáo da hipoteca legal (CPP, art. 141), ante o desaparecimento do fum us boni iuris. Finalmente, no caso de a absolvição decorrer de ínimputabilidade, nos termos do art. 26, caput, do CP, o juiz deverá aplicar a medida de segurança cabível (CPP, art. 492, II, c, c.c. CP, art. 97, caput).

13.5.16.22 Desclassificação pelo conselho de sentença É possível que, no momento do Julgamento, o conselho de sentença desclassifi­ que o crime doloso contra a vida para outro tipo de crime não doloso contra a vida. 0 art. 492, § 1°, primeira parte, dispõe que; “Se houver desclassificação da infração para 311. Os deinais dispositivos do art. 387, quais sejam o inciso V, que previa a aplicação pro­ visória de interdição de direitos e medida de segurança, e o inciso VI, que dispunha que o juiz determinaria a publicação da sentença, não mais lèm aplicação por serem incompatíveis com a reforma da Parte Geral do CP, de 1984.

Procedimento ordinário, sumário e sumarissimo e procedimentos especiais

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outra, de competência do ju iz singular, ao presidente do Tribunal do Jú ri caberá proferir sentença em seguida...”. No regime anterior, mesmo sem regra expressa, a doutrina e a jurisprudência distinguiam os efeitos da desclassificação, conforme se tratasse de desclassificação própria (votada antes do quesito sobre absolvição) ou da desclassificação imprópria?^ (votada após a resposta negativa ao quesito da absolvição). Ocorrendo a desclas­ sificação própria, encerrava-se a votação dos quesitos e o juiz-presidente passava a ser competente para o julgamento do caso, com total liberdade de julgai^ento, porque foi negada a existência de um crime doloso contra a vida, podendo inclusive absolver o acusado.®*®Já na desclassificação imprópria, çpmo o conselho de sentença previamente havia afirmado a sua competência (com ã resposta positiva aos dois primeiros quesitos, reconhecendo a existência de um crime doloso contra a vida), as respostas aos demais quesitos deveriam continuar, ficando o juiz-presidente vinculado à decisão dosjurados. Uma hipótese comum de desclassificação imprópria ocorre quando os jurados reconhecem o excesso culposo na legítima defesa. Neste caso, os jurados admitem a existência de um crime doloso contra a vida, mas que é punido com a pena do homi­ cídio culposo. Assim, havendo crime doloso contra a vida, remanesce a competência do conselho de sentença. Não se trata, pois, de verdadeira desclassificação, posto que, ontologicamente, o crime continua a ser doloso contra a vida. Aliãs, é exatamente por este motivo que tal situação é denominada desclassificação “imprópria”.®*® Por outro lado, se os jurados absolverem o acusado, por negarem o primei­ ro, o segundo ou o terceiro quesito, o jú ri continuará com petente para apreciar eventual crime conexo, posto que, ao absolvê-lo, os jurados julgaram a causa, isto é, julgaram um crime doloso contra a vida, não havendo que se cogitar de desclassificação.®*® No caso da desclassificação para crime que seja infração penal de menor potencial ofensivo (por exemplo, desclassificar uma tentativa de homicídio para lesão corporal leve), o novo § 1° do art. 492 estabelece que, se for desclassificada a infração para outra atribuída à competência do juiz singular, ao presidente do tri­ bunal caberá proferir em seguida a sentença. E a parte final do referido dispositivo determina que ao juiz-presidente caberá, também, proferir sentença aplicando, “quando o delito resultante da nova tipificação f o r considerado p ela lei com o infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei n” 9.099, de 26 de setembro de 1995”. 312. Nesse sentido: Porto, Júri..., p. 138; Mirabete, Processo Penal, p. 586; Nucci, Roteiro..., p. 78; Id. Código..., 2006, p. 816. 313. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 433. 314. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 248; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 416; Greco Filho, Manual..., p. 158-159; Demercian e Maluly, Curso..., p. 526. Na juris­ prudência; TJSP, RT 753/591, RT 606/328, RJTJSP 53/330.

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P ro cesso P enal

A nova parte final do § 1° do art. 492, acrescida pela reforma do CPP de 2008, não pode ser aceita. A disciplina deveria ser exatamente oposta, estabelecendo que, na hipótese de desclassificação para infração de menor potencial ofensivo, o processo deveria ser remetido aojuizado Especial Crim inal,'" tendo em vista que a competência daquele órgão também é de natureza constitucional, sendo prevista no art. 98, caput, I, para o caso de infrações penais de menor potencial ofensivo.'" Por violar o disposto no art. 98, caput, I, da CR, a parte final do novo § 2° do art. 492 do CPP deve ser considerada inconstitucional, sendo-lhe negadas eficácia e aplicação. Se tal dispositivo for aplicado, e ojuiz-presidente do tribunal do júri julgar, ainda que em razão de desclassificação, uma infração de menor potencial ofensivo, a decisão será irremediavelmente nula por violar regra constitucional de competência, no caso, competência objetiva em razão da matéria.''* Assim, diante da desclassificação para infração de menor potencial ofensivo, ojuiz-presidente deverá remeter os autos aojuizado Especial Crim inal,'" para que o Ministério Público formule proposta de transação penal. O acusado, então, deverá ser intimado para audiência para aceitação ou não de tal proposta. Somente em caso de não aceitação é que deverá ser proferida sentença.'" Antes, porém, em respeito ao contraditório, deverá ser dada oportunidade às partes para se manifestarem e, inclusive, se necessário, produzirem provas sobre a nova qualificação jurídica dos fatos.

315. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 247. 316. Em sentido contrário posiciona-se Mendonça (Nova reform a..., p. 135), entendendo que, no caso de desclassificação para infração de menor potencial ofensivo, o próprio juiz-presidente deve aplicar a transação penal, nos termos do art. 492, § fc. De observar, porém, que o citado autor parte da premissa, defendida por Pacelli (Curso..., p. 755), de que a competência dosjuizados Especiais Criminais não tem natureza constitucional e, muito menos, que lhe seja privativa a celebração de transação penal. Também para Damásio E. dejesus. Código..., p. 416, ojuiz-presidente deve julgar o fato. 317. Grinover et al. (Juizados..., p. 88) explicavam, diante da redação anterior do § 2° do art. 492, que, “Pelo sistema do Código de Processo Penal, em face da desclassificação, cabe ao juiz presidente do Tribunal do Júri proferir sentença (art. 492, § 2®). Mas, quando a desclassificação for para infração de menor potencial ofensivo, outra deve ser a solução, pois a competência passa a ser do Juizado Especial Criminal. Transitada em julgado a decisão desclassificatória, os autos serão remetidos aojuizad o competente, onde será designada audiência prevista nos arts. 70-76 da lei. Não hã outra solução, pois a competência dosjuizados para as infrações de menor potencial ofensivo, por ser de ordem material e por ter base constitucional, é absoluta”. Em sentido contrário, considerando correto o julgamento pelo juiz presidente, cf.; Gomes, Cunha e Pinto, Comentdrios..., p. 235. 318. Segundo a jurisprudência formada no sistema anterior, o juiz-presidente deverã aguardar o trânsito emjulgado e então remeter o processo aojuizado Especial Criminal: STJ, STJ, RHC n® 7.908/AC, RT 762/565. 319. Nesse sentido; Grinover et al.. Juizados... p. 88; Damásio E. de Jesus, Código..., 2006, p398; Tourinho Filho, Comentários á Lei..., p. 31; Nucci. Tribunal do Júri, p. 350; Na juris­ prudência; STJ, RHC n° 7.601/AC, RT 763/520; TJSP, Ap n® 1.079.407.3/3.

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De qualquer forma, segundo a jurisprudência, o juiz deverá aguardar a preclu­ são da decisão desclassificatória para, somente então, remeter o processo ao Juizado Especial Criminal.*“ Nosjuizados especiais será designada audiência preliminar, visando a celebração de transação penal. Caso a proposta não seja aceita, caberá ao juiz julgar o caso (não será cabível, por óbvio, novo oferecimento da denúncia).*'* Mais frequente ainda será a hipótese de o crime, para o qual foi desclassificada a infração, admitir a suspensão condicional do processo (Lei n° 9.099/1995, art. §9), embora não se trate de infração de menor potencial ofensivo (por exemplo, desclassi­ ficação de tentativa de homicídio para lesão corporal graves;,CP, art. 129, § 1°). Neste caso, não deverá o juiz-presidente, de plano, proferir sentença, porque-após o trânsito emjulgado da decisão do jú ri-s e rá necessário conceder prévia oportunidade para que 0 acusado aceite ou nào a proposta de suspensão condicional do processo, que deverá ser feita pelo Ministério Público. Portanto, o juiz-presidente não proferirá sentença condenatória em plenário, mas apenas fará menção à Lei n“ 9.099/1995, encerrando ejulgamento, mas aguardando para, ouvido o Ministério Público, proferir a melhor solução ao processo.*" Em princípio, nada impede que a proposta seja formulada, oralmente, na pró­ pria sessão de julgamento do Tribunal do Jú ri e, uma vez aceita, o juiz-presidente profira a sentença simplesmente homologando-a.*'* Em tese, um óbice à medida acima apontada poderia ser a necessidade de que ocorresse a preclusão da decisão dojúri que desclassificou o crime. Assim, ter-se-ia que aguardar o término do prazo para eventual recurso e, somente no caso de sua não interposição, seria formulada, posteriormente, a proposta de suspensão condicional do processo. Todavia, é possível que o Ministério Público e a defesa renunciem ao direito de recorrer de tal decisão, com o que esta estará preclusa, e será possível a formulação da proposta. Ao mais, se 0 Ministério Público propõe a suspensão condicional do processo e a defesa a aceita, na própria sessão dejulgamento, terá havido preclusão lógica do direito de recorrer contra a desclassificação d ojú ri, em razão da prática, por ambas as partes, de ato in­ compatível com a vontade de recorrer.

320. Na jurisprudência: STJ, RT 762/565. 321. Nesse sentido: Grinover et a l,Ju iza d o s... p. 79; Damásio E. d ejesus, Código..., 2006, p. 398; Tourinho Filho, Comentdrios à Lei..., p. 31; Nucci, Código..., p. 817; Na jurisprudência: STJ, RT 763/520. 322. Na jurisprudência: STJ, HC n° 39.021/DF, REsp n° 481.943/MS, HC n“ 24.677/RS; TJSP, RT 761/575. 323. Em sentido diverso, entende Nucci (R oteiro..., p. 79) que, sucedendo a desclassifi­ cação, “coníorme o crime, poderá ocorrer transação ou aplicação de suspensão condi­ cional do processo, caso o promotor concorde. O ju iz, nesses casos, não dará sentença condenatória em plenário, mas apenas íará menção à Lei n° 9.099/95, encerrando o julgamento, mas aguardando para, ouvido o Ministério Público, proferir a melhor so­ lução ao processo".

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P r o c es s o P enal

13.5.16.23 Leitura da sentença O juiz-presidente deverá ler a sentença em plenário. Normalmente, durante a leitura da sentença todos permanecem de pé. embora a lei assim não o exija.

13.6 Procedimento dos crimes falimentares 13.6.1 Noçõesgerais Atualmente, os crimes falimentares não mais estão sujeitos a procedimento especial. A Lei n° 11.101/2005 revogou os dispositivos do CPP que disciplinavam o procedimento especial dos crimes falimentares, bem como revogou o Decreto-lei n° 7.661/1945. Os crimes falimentares estão previstos nos arts. 168 a 178 da Lei n° 11.101/2005. Por outro lado, o art. 185 da Lei n° 11.101/2005 determinava que se aplica aos crimes falimentares o procedimento previsto nos arts. 531a 540 do CPP, que pos­ teriormente foram revogados pela lei 11.719/2008. De observar, porém, que, quando a lei de falências entrou em vigor, tais dispositivos tratavam de dois procedimentos distintos; o extinto procedimento judicialiforme, que se aplicava às contravenções penais (arts. 531 a 538), e o procedimento sumário, que ainda estava em vigor, e era aplicável aos crimes punidos com detenção. A doutrina entendia que era este último procedimento, o sumário dos crimes punidos com detenção, que devia ser aplicado aos crimes falimentares.*™ Todavia, diante das mudanças operadas pela Lei n° 1L719/200H que passou a prever um único procedimento comum sumário, nos arts. 531 a 538\(io CPP, este de­ verá ser o procedimento aplicável aos crimes falimentares. O procedilmento sumário deverá ser aplicado, inclusive, aos crimes dos arts. 168 e 172 da Lei n“ 11.101/2005, cuja pena máxima cominada é superior a quatro anos, tendo em vista que o art. 185 da Lei de Falências, que determina a aplicação do rito sumário, é regra especial, em relação à regra geral do art. 394, § 1”, I, do CPR*'* Sendo aplicável o procedimento sumário, poderão ser arroladas apenas cinco testemunhas (CPP, art. 532), mesmo que se trate de crime com pena má.xima cominada superior a quatro anos. O antigo procedimento especial, previsto nos arts. 503 a512doC PPe nos arts. 103 a 113 do Decreto-lei n° 7.661/1945, foi revogado pelo art. 200 da Lei n° 11.101/2005. A principal característica do procedimento especial dos crimes falimentares era a previsão de um inquérito judicial (CPP, art. 509, c.c. Decreto-lei n° 7.661/1945, arts. 103 a 107). No entanto, como a nova Lei de Falências não faz qualquer referência ao inquérito judicial da falência, a fase de investigação preliminar voltou a se dar por meio do inquérito policial (art. 187). 324. Nesse sentido; Gomes Filho, Breves anotações.,., p. 12; Bítencourt, Aspectos procedi­ mentais..., p. 10. 325. Nesse sentido: Polastri Lima, Manual..., p. 687; Nucci, Código. .. p. 854.

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13.6.2 Extinção d o in qu érito ju dicial O Decreto-lei n“ 7.661/1943 previa que a fase inicial da persecução penal se processasse perante um juiz de direito, e não de uma autoridade policial. Falava-se, assim, em inquérito judicial.®®* A Lei n° 11.101/2005 extinguiu o inquérito judicial no caso de crimes falimen ta­ res.®®®Atualmente, o administrador judicial apresenta ao juiz da falência um relatório, que deverá conter a , “!...] exposição circunstanciada, considerando as causas da falência, o proce­ dimento do devedor, antes e depois da sentença, e outras informações detalhadas a respeito da conduta do devedor e de outros responsávSs,-se‘houver, por atos que possam constituir crime relacionado com a recuperação judicial ou com a falência, ou outro delito conexo a estes.” (LF, art. 186, caput). Caso o relatório do administrador judicial, que deve estar instruído com o laudo do contador encarregado do exame da escrituração do devedor, contenha todos os elementos necessários para a caracterização do crime, inclusive aptos a configurarem a justa causa, o Ministério Público, ao receber os autos, deverá oferecer denúncia (LF, art. 187, caput, primeira parte). Caso contrário, deverá requisitar a abertura de inquérito policial (LF, art. 187, caput, parte final).®®* Nâo existe mais a opção pelo inquérito judicial. A investigação preliminar dos crimes falimentares passou a ser feita por meio de inquérito policial.®®“ 326. Em virtude da peculiaridade de se tratar de um inquérito judicial e, principalmente, ante a previsão de contestação do falido no art. 106 do Decreto-lei n° 7.661/1945, havia controvérsia doutrinária sobre o caráter contraditório do inquérito faliraentar. Na doutrina, pelo caráter contraditório: Frederico Marques, Elementos..., v. 3, p. 348; Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 246. Em sentido contrário, pela natureza inquisitória: Mirabete Processo Penal, p. 600; Greco Filho, Manual..., 1999, p. 438; Rangel, Direito..., p. 142. De outro lado, prevalecia o entendimento de que não era necessária intimação do falido para contestar. O referido art. 106 limitava-se a prever que, no prazo de cinco dias, após o término do prazo do Ministério Público para se manifestar sobre o relatório do sindico, “poderá o falido contestar...". Por fim, prevalecia o entendimento de que a contestação do falido não era obrigatória. Haveria apenas a faculdade de, no prazo legal, se assim o desejasse, contestar as opiniões do síndico e as alegações dos credores. Consequentemente, se náo fosse apresentada a contestação, náo era necessário que o juiz nomeasse um defensor para tanto. 327. O STJ decidiu que: “l. A Lei n° 11.101/05, entre outras alterações no Decreto-Lei n° 7.661/45, excluiu, nos crimes falimentares, o inquérito judicial. 2. No caso, a supressão do inquérito judicial, porque reduz o exercício do direito de defesa - norma processual com reflexos penais concretos e prejudiciais - , só se aplica aos delitos ocorridos a partir da entrada em vigor da Lei n° 11.101/05” (AgRg no HC n° 72.770/RJ). 328. Ressalte-se que, não é mais dado ao administrador judicial requerer a instauração do inquérito, como podiam fazer o síndico e os credores, no regime do Decreto-lei n° 7.661/1945, arts. 103, § 1", e 104, respectivamente. Pelo novo texto, o administrador judicial e os credores habilitados nem supletivamente poderão requerer a instauração do inquérito, agora, inquérito policial. 329. No sentido da extinção do inquérito judicial: Gomes Filho, Breves anotações..., p. 12; Bitencourt, Aspectos procedimentais..., p. 8. Destaque-se que, de um lado. Gomes Filho (op. e loc. cit.) manifesta-se favoravelmente a tal supressão, enquanto Bitencourt (op. e loc. cit.)

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P r o cesso P en a l

13.6.3 A ç ã o p e n a l subsidiária O Decreto-lei n° 7.661/1945 previa uma ação penal subsidiária especial, nos casos em que o Ministério Público pedisse o apensamento dos autos do inquérito (equivale ao pedido de arquivamento) ou nâo oferecesse a denúncia: opinio delicti negativa (art. 108, parágrafo único). Tal posiçáo era incompatível com art. 129,1, da CR, que confere o monopólio da ação penal pública ao Ministério Público. A única exceção vem prevista no art. 5“, LIX, que somente admite a ação penal subsidiária em casos de inércia do Ministério Público. De qualquer forma, o art. 184, parágrafo único, da LF deixa claro que a ação penal privada subsidiária da pública somente poderá ser intentada, se transcorrido o prazo legal, sem que o Ministério PúbUco tenha oferecido a denúncia. Tem legitimidade para a propositura da ação privada subsidiária o administrador judicial ou qualquer credor habilitado.'™ 13.6.4 Sentença declaratória da falência O art. 507 do CPP previa que “a ação penal não poderã iniciar-se antes de declarada a falência". O dispositivo gerava grande polêmica doutrinária quanto à natureza da sentença falimentar.''' A nova Lei de Falências, procurando tomar partido em tal dissepso doutrinário, dispõe que a sentença que decreta a falência é condição objetiva de punibilidade dos crimes falimentares (art. 180).'™ ' 13.6.5 R eceb im en to da d e n ú n cia A Lei n“ 11.101/2005 não mais prevê, expressamente, a necessidade de funda­ mentação da decisão de recebimento da denúncia, o que é um evidei^e retrocesso.'"

330.

331.

332. 333.

entende que a nova lei cometeu um “pecado capital”, e “em verdadeiro retrocesso, prevê a requisição de inquérito policial, para uma atividade que a polícia brasileira nunca esteve, não estã e nunca estará preparada e aparelhada para exercê-la”. Corretamente, observa Bitencourt (.Aspectos procedimentais..., p. 7) que, se tais sujeitos têm legitimidade para propositura de ação penal privada subsidiária, também terão legiti­ midade para se habilitarem como assistente de acusação, no caso de ação pública. Para Frederico Marques (Elementos..., v. 3, p. 333) e Greco Filho (Manual..., 1999, p. 438) a sentença que decretava a falência era elemento implícito do tipo penal. De outro lado, Hungria (Código..., V. 1, p. 231), Fragoso (Lições..., p. 222) e Noronha (Curso..., p. 283) entendiam que a sentença falimentar era condição objetiva de punibilidade, Havia também autores que adotavam uma teoria mista. Para Damásio E. dejesus (Código..., 2002, p. 389-390), citando argumento de Ferraz de Alvarenga, a sentença falimentar é condição de procedibilidade, nos crimes antefalimentares, e elemento do tipo, nos crimes pós-falimentares. Igual era o posicionamento de Tourinho Filho, Processo..., 2003, v. 4, p. 151. Para Tomaghi (Curso..., v. 2, p. 246) e Mirabete (Processo Penai, p. 597) a sentença falimentar era condição objetiva de punibilidade, nos crimes antefalimentares, e pressuposto do crime, nos pós-falimentares. Cabe destacar que, no substitutivo aprovado pela Câmara, a sentença de falência era condição de procedibilidade (an. 240). Nesse sentido, na jurisprudência: STJ, n° HC 85.016/RS. No regime anterior, o rece­ bimento da denúncia devia ser fundamentado. (Decreto-lei n° 7.661/1945, art. 109, § 2°)

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1 3 . 6. 6 C o m p etên cia d o ju iz crim in al

i O art. 183 da LF prevê que processo penal falimentar deve se iniciar e se desen­ volver perante o juiz criminal da comarca em que “tenha sido decretada a falên cia, concedida a recuperação ju dicial ou hom ologado o plano de recuperação extrajudicial'’. Substancialmente, há alteração do regime anterior. No Decreto-lei n° 7.661/1945, a denúncia era oferecida perante ojuiz cível da falência (art. 109, caput) e, depois de recebida a denúncia ainda pelo juiz cível, os autos eram encaminhados ao juiz criminal (art. 109, § 2“). No novo sistema, nào há mais o oferecimento da denúncia perante o juiz cível nem a sua remessa, depois de recebida, ao juiz criminal. Retoma-se, pois, ao regime originário do CPP, cujo'ãfTT504 do CPP dispunha que ação penal deveria ser intentada no juízo criminal. Tal dispositivo havia sido revogado pelo Decreto-lei n° 7.661/1945, que em seu art. 109, § 2°, determinava que a ação criminal devia ser proposta no juízo cível da falência. Posteriormente, com o recebimento da denúncia pelo juiz cível, os autos deveriam ser remetidos para o juiz criminal.*™

13.7 Do procedimento dos crimes praticados por funcionários públicos 13.7.1 Reflexos da Lei n ° 11.71 9/2008 n o p ro ce d im e n to e sp e cia l As mudanças no procedimento comum ordinário, introduzidas pela Lei n° 11.719/2008, hzeram surgir dúvidas sobre a vigência do procedimento especial dos crimes praticados por funcionários públicos, previsto nos arts. 513 a 518 do CPP. Um primeiro posicionamento seria no sentido de que o § 4 “ do art. 3 9 4 do CPP não teria incidência sobre o procedimento especial dos crimes praticados por funcionários públicos, dehnido nos arts. 513 a 519 do CPP, tendo em vista que este e a Súmula n° 564 do STF dispunha que: “a ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já hou­ ver sentença condenatória”. Tratava-se, pois, a teor do entendimento sumular, de nulidade relativa, posto que sanãvel, ante a prolação da sentença condenatória. Aliás, mesmo sem previsão expressa, todo recebimento de denúncia, por ser decisão, deve ser fundamentado para atender à exigência do art. 93, IX. da CR. Nesse sentido, em relação à sistemática da Lei n" 11.101/2005: Bítencourt, Aspectos procedimentais..., p. 9-10. 334. No Fstado de Sâo Paulo, o art. 15 da Lei n° 3.947/1983 dispóe que o juiz criminal será ojuiz civel da falência. Assim, mesmo diante da nova previsão do art. 183 da Lp o processo continuará a ser instaurado e a se desenvolver perante o juiz civel da falência que é, por equiparação, o juiz criminal da falência. Contudo, como corretamente observa Gomes Filho (Breves anotações..., p. 12), “com a sistemática agora adotada para a apuração dos crimes falimentares, em que não hã mais o inquérito judicial, desaparecem as razões de simplificação e celeridade que recomendaram a edição da lei estadual paulista. É que o juiz da falência não terá nenhuma atribuição na investigação criminal, nem a ele caberá, como ocorria na vigência da lei revogada, o recebimento da denúncia ou da queixa subsidiária. Assim, tudo recomenda a revogação da lei estadual". A jurisprudência, contudo, tem se posicionado em sentido contrário, reconhecendo a aplicação da regra paulista que estabelece regra própria de competência: STJ, HC n° 106.406/SP, HC n“ 85.147/SE

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é procedimento especial, em relação ao qual já havia previsão de resposta prévia ao recebimento da denúncia.™’ Assim, continuar-se-ia aplicando, in totum, o rito especial dos crimes funcionais. Considerando que a jurisprudência se firmou no sentido de que, no procedimento comum, o recebimento da denúncia se dá logo antes mesmo da citação, o procedimento especial permite uma melhor defesa. A terceira posição era no sentido de revogação do procedimento especial dos crimes praticados por funcionários públicos. Justamente diante da regra de extensão do § 4° do art. 394 do CPP, o procedimento especial dos arts. 513 a 518 do CPP foi revo­ gado, O que o procedimento especial dos crimes praticados por funcionários públicos tinha de diverso ou especializante era, justamente, a possibilidade de uma resposta anterior ao recebimento da denúncia (CPP, art. 514) e, no caso de seu acolhimento, uma sentença de rejeição da denúncia com aptidão de fazer coisa julgada material (CPP, art. 516). Ora, a resposta escrita do art. 514, caput, encontra correspondente na nova resposta escrita do art. 396-A do CPP, com a diferença de que o prazo foi reduzido de 15 para 10 dias. Por outro lado, a possibilidade de rejeição da denúncia, por “inexis­ tência do crime ou da improcedência da ação" (art. 516), corresponde à nova absolvição sumária do art. 397."® Em suma, com a reforma, o que era um procedimento especial passou a ser a regra, isto é, o rito comum, pelo que o procedimento especial não tem mais razão para subsistir. Obviamente, a terceira corrente parte da premissa de que, no procedimento comum, o momento procedimental do recebimento da denúncia é o do art. 399, isto é, depois da resposta escrita, e não o do art. 396, caput, qual seja antes da referida resposta. A terceira corrente entende que a resposta preliminar do art. 514^0 CPP continua em vigor, mesmo após as modificações do procedimento comum, tt^s, por força do disposto no art. 394, § 4°, após o recebimento da denúncia, deve-se sêguir o disposto nos arts. 395 a 399 do CPP.” * Foi esta última a corrente que acabou prevalecendo, O posicionamento, contudo, é criticável pois, na prática, acaba por misturar os dois procedimentos, gerando uma duplicidade de atos desnecessária: em um mesmo procedimento haverá a resposta escrita do art. 514 do CPP e, depois, se recebida a denúncia, a resposta do art. 396-A, do mesmo código.” ®Além disso, gera uma incerteza sobre 335. Nesse sentido: Polastri Uma, Manual..., p. 808. 336. No sentido da revogação tácita dos arts. 513 a 518 do CPP, em razão da previsão do § 4“ do art. 394 do CPP, cf.: Pacelli, Curso..., p. 795; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 261; Aury Lopes Jr., Direito..., v. 2, p. 202. 337. Damásio E. dejesus. Código..., p. 423. 338. Nesse sentido, destacam Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes {As nulidades..., p. 240) que “realizar duas vezes atos semelhantes, um consistente na resposta preliminar do art. 514 e outro na resposta do art. 397, ofenderia o princípio da economia processual representaria procrastinação desnecessária do procedimento e nada acrescentaria de efetivo ao direito de defesa, pois não teria o acusado outro caminho a não ser reiter«r na segunda resposta as razões da primeira”.

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0 momento de oferecimento de rol de testemunha para a defesa, se na primeira ou na segunda resposta.

73.7.2 C ab im en to d o procedim ento Os arts. 513 a 518 disciplinam o procedimento especial dos “crimes de respon­ sabilidade dos funcionários públicos”. A expressão “crime de responsabilidade” é infeliz, pois, em sentido amplo, abrange as infrações político-administrativas/praticadas pelo Presidente da República e ministros de Estados, normalmente julgadas por órgão político, tendo como penalidade a perda do cargo e a inabilitação para o seu exercício por certo período de tempo. O procedimento e s p e ç i^ o s crimes praticados por funcionários públicos se aplica aos processos relativos aos crimes previstos nos arts. 312 a 326 do CP, isto é, aos crimes funcionais próprios e impróprios, que sáo os crimes praticados por funcionário público contra a Administração Pública. Se houver aditamento da denúncia, para atribuir ao acusado crime funcional em um processo cuja imputação não previa, originariamente, crimes funcionais (por exemplo, denúncia por apropriação indébita aditada para peculato), deve-se aplicar o procedimento especial dos crimes praticados por funcionários públicos,®" para quem considera que tal rito continua em vigor. Há posicionamento no sentido de que, na hipótese de concurso de agentes, só se aplica o procedimento especial ao funcionário público, nào ao outro corréu que não ostente tal qualidade.®" Discordamos de tal posicionamento. Adotar o procedimento especial somente para o funcionário público implicaria misturar dois procedimentos: 0 procedimento especial para o funcionário público e o procedimento comum para 0 corréu que não ostenta tal qualidade. Deverá ser adotado um procedimento único e, no caso, para que nâo haja prejuízo, deve-se utilizar o procedimento especial dos funcionários públicos, para todos os réus, por ser o mais amplo. Havendo crime funcional conexo com outro crime nào funcional, há divergên­ cia sobre o procedimento aplicável. Tem predominado o entendimento de que deve se aplicar o procedimento especial apenas para o crime funcional, e o procedimento comum para o outro delito.®®* Como já destacado, não é possível a adoção simultânea 339. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 416; Mirabete, Processo Penal, p. 605; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 409; Tourinho Filho, Código..., v. 2, p. 170-171. A mesma posiçáo é defendida por Nucci (Código..., p. 860) que ressalva: “se houver lastro no inquérito policial, dispensa-se a defesa preliminar”. Na jurisprudência: TJSP, RT 654/270, TJSP RT 567/312. 340. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 605; Grinover, Magalháes Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 242; Nucci, Código..., p. 857; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 425; Tourinho Filho, Código..., v. 2, p. 170; Polastri Uma, Manual..., p. 808. Na jurispmdéncia: STp HC n“ 70.778/PA, HC n° 70.536/RJ; STJ, RHC n° 22.164/MG, HC n“ 5.785/RJ; TJSP JT J 232/366. 341. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 605; Tourinho Filho, Código..., v. 2, p. 170. * Na jurispmdéncia. afastando o procedimento especial: STJ, HC n° 160.332/SP RHC n° 21.731/MA.

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de dois procedimentos distintos, o que implicaria criar um terceiro procedimento não previsto em lei. A reunião dos processos por conexão terá como consequência a adoção de um único procedimento. Normalmente, neste caso, deveria ser aplicado o procedimento comum, porque costuma ser o mais amplo. Contudo, na hipótese de concurso entre o crime funcional e o crime comum, deve ser aplicado o procedimento especial dos crimes funcionais, para ambos os delitos, por ser o que permite a mais ampla possibilidade de defesa.™' Costum a-sejustihcara existência do procedimento especial por dois motivos; (1) completar a proteção que a lei penal confere aos elçvados interesses da Adminis­ tração Pública, para resguardá-la quanto à probidade, ao decoro e a sua segurança; (2) proteger o próprio funcionário público que, em decorrência do exercício de suas funções, pode ser alvo de acusações infundadas e caluniosas, até mesmo por motivos políticos.™* 13.7.3 C o m p etên cia e fo ro p o r prerrogativa d e fu n ção Se o acusado que cometeu o crime funcional gozar de foro por prerrogativa de função, não se aplica o procedimento especial dos arts. 513 e seguintes do CPP, mas sim o procedimento previsto na Lei n° 8.038/1990 para os crimes de competência originária do STF e STJ (arts. 1° a 12). Aliás, não é por outro motivo que o art. 513 se refere a crimes “cujo processo ejulgamento competirão aos juizes de direito”. No caso de foro por prerrogativa de função, os processos competirão aos Tribunais e seguirão 0 procedimento da Lei n“ 8.038/1990. De outro lado, a Lei n“ 8.658/1993, em seu art. 1°, determina qtje se apliquem os arts. 1° a 12 da Lei n° 8.038/1990 às ações penais de competência ^riginária dos TJseT R F s. 342. É a posição de Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 242. Existem, ainda, outras posições. Greco Filho (Manual..., p. 416) entende que deve ser aplicado o procedimento do crime mais grave, mesmo que não seja o procedimento especial. Nesse sentido, na jurisprudência; STJ, RSTJ 92/372. Convém observar, contudo, que nesse caso, normalmente, o crime mais grave seguirá o procedimento comum ordinário, que traria prejuízo ao acusado, por implicar defesa menos ampla do que aquela prevista no procedimento especial, caso se entenda que, no procedimento comum, o recebimento da denúncia ocorre antes da resposta escrita. Por outro lado, adotando-se a posição que defendemos, no sentido de que no novo procedimento comum o recebimento da denúncia somente pode ocorrer após a resposta do art. 396, nâo haverá diferença significativa, ao menos na fase inicial, em se adotar o procedimento especial ou o procedimento comum ordinário. Finalmente, destaque-se a posição de Demercian e Maluly (Curso..., p. 546), no sentido de nâo aplicação do procedimento especial em tal caso, deixando implícita a apli­ cação do procedimento comum. Nesse último sentido, na jurispradència: STF, RT 731/508, RTJ 66/67; TJSP, JT J 232/366. Nesse mesmo sentido; Nucci, Código..., p. 857. 343. justamente por isso, prevalece na jurisprudência o entendimento de que, se q u a n d o da instauração do processo o acusado já deixou o cargo de funcionário público, não se aplica o procedimento especial, sendo desnecessária a resposta escrita: Na jurisprudência: STJ, RSTJ 3/781; TJSP. RT 704/310,

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Com a revogação da Sümula n° 394 do STF - “cometido o crime durante o exer­ cício funcional, jtrevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito Ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício” se o funcionário público deixa o cargo que ocupava quando do cometimento do delito, nâo se aplicava o procedimento previsto na Lei n®8.038/1990, mas sim o pro­ cedimento especial previsto nos arts. 5 1 3 a 5 1 6 d o CPE Todavia, pouco tempo depois, a Lei n® 10.628/2002 restabeleceu o regime da antiga Súmula, ao acrescentar o § 1° ao art. 84 do CPP, com o seguinte teor: “§ 1°. A competência especial por prerroga^va de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”. 0 STF, contudo, declarou inconstitucional tal dispositivo.'” Hn suma, atualmente, se 0 funcionário público cometeu o crime no exercício da função, e depois deixou o cargo, nào mais gozará de foro por prerrogativa de função e, consequentemente, o procedimento a ser aplicado, perante o juiz de primeiro grau, será o procedimento especial do CPP. 73.7.4 D enúncia A denúncia deve ser acompanhada de documentos e justificações que façam presumir a existência do delito (CPP, art. 513). É o fum us boni iuris que caracteriza a justa causa para a ação penal. Tal situação é raríssima. Normalmente, o processo dos crimes praticados por funcionários públicos é precedido de inquérito policial, que acompanha a denúncia.'” Por um período formou-se entendimento no sentido de que, realizado o inqué­ rito policial, não havia necessidade de notificação para resposta escrita (CPP, art. 514, caput), posto que a denúncia não estava instruída com “documentos ou justificações” (CPP, art. 513). Esse posicionamento acabou sendo sufragado pela Súmula n® 330 do STJ: “É desnecessária a resposta preliminar de que trata o art. 514 do Código de Processo Penal, na ação penal instruída por inquérito policial”.'” Não era exata a premissa de que a resposta escrita somente é necessária se a denúncia ou queixa estiver instruída com “documento ou Justificações” e que, ao 344. STF. ADIn n° 2 .7 9 7 , Pleno. Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13709/20 05, m.v., DJÜ 26/09/2005. 345. Todos os crimes funcionais são processados mediante ação penal pública incondicionada. A referência à queixa, no art. 513, como lembra Espínola Filho (Código..., v. 5, p. 172), diz respeito apenas às hipóteses de ação penal subsidiária (CPP, art. 29). 346. Tal interpretação, contudo, é equivocada, por desconsiderar a evolução histórica do pro­ cesso penal brasileiro. Os arts. 513 e 514 do Código de Processo Penal tiveram sua origem nos arts. 152 e 153 do Código de Processo Criminal do Império de 1832. Assim, no processo penal imperial, se a denúncia ou queixa fosse acompanhada de papéis ou Justificações (art. 152, Cód. Proc. Crim. de 1832), era necessário abrir oportunidade para a resposta escrita ao funcionário público (art. 153, Cód. Proc. Crim. de 1832). Há referência a documentos e justificações, e nào ao inquérito policial, porque este somente foi criado mais tarde, com a Lei n® 2.033/1871, e regulamentado pelo Decreto n® 4.824/1871.

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contrário, se estiver acompanhada de inquérito policial, tal resposta será desneces­ sária. Antes do surgimento do inquérito policial, já havia tal previsão. E, mesmo após a criação do inquérito policial, a exigência de que o juiz desse oportunidade de o denunciado oferecer resposta escrita tornou-se ainda mais evidente. Se a in­ tenção do legislador fosse excluir a aplicação do procedimento especial, quando precedido de inquérito, bastaria que expressamente assim dispusesse, como fez, por exemplo, relativamente aos crimes inahançáveis (CPP, art. 514, caput). A redação do dispositivo seria: “Nos crimes ahançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma e não instruída com inquérito policial, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notihcação...”.®" Em resumo, a despeito do teor da Súmula n° 330 do STJ, entendemos que, quer a denúncia esteja instruída com “documentos ou justihcações” - o que é pouco comum - , quer esteja fundada em inquérito policial, será necessária a notihcação do acusado para apresentar a resposta escrita (CPP, art. 514). Após a edição do preceito sumular, o STF, por seu plenário, reconheceu ser a defesa do art. 514 do CPP imprescindível mesmo quando a denúncia estiver lastreada em inquérito policial.®®® Obviamente, mesmo antes da resposta escrita do acusado, ojuiz poderá, de plano, rejeitar a denúncia, nos casos do art. 395, caput, do CPP.

13.7.5 Resposta escrita

^

A grande peculiaridade do procedimento especial é a existência de um contra­ ditório prévio ao recebimento da denúncia, cuja hnalidade é resguardar o agente püblico contra denúncias injustas e infundadas, a que hcaria exposto pelo cargo que ocupa. No procedimento especial, a “resposta preliminar” somente tem cabimento no caso de crimes funcionais ahançáveis. Se os crimes forem inahançáveis, será aplicado o procedimento comum.®®“ Todavia, com a nova redação dada pelo art. 323 do CPP, pela Lei n° 12.403/2011, todos os crimes funcionais são ahançáveis. 347. A referência a ‘‘documentos e justificações” no art. 513 do CPP deveu-se muito mais a um descuido do legislador. Seja intencional ou nào a referência a “documentos ou justifi­ cações", o certo é que elas não se mostram excludentes da notificação da resposta escrita. 348. STF, HC n° 85.779/Rj. No mesmo sentido, posteriormente; STF, HC n° 95.969/SP, HC to 90.746/SP. O STJ, contudo, continua posicionando-se em sentido contrário, pela desne­ cessidade da resposta escrita no caso de prévio inquérito policial; HC to 148.435/SP, HC n” 144.425/PE, HC to 104.028/SP. 349. Com a Lei n° 6.416/1977. que alterou o inciso 1 do art. 323 do CPP, eram afiançáveis todos os delitos funcionais, com exceçáo dos crimes de excesso de exação (CP, art. 316, § 1°) e facilitação de contrabando ou descaminho (CP, art. 318). Assim, em todos os demais, era necessária a notificação para a apresentação de “resposta escrita”. Noronha (Curso. -, P292) observa que o procedimento especial deveria se estender aos crimes inafiançáveis. A mesma crítica é formulada por Espínola Filho (Código..., v. 5, p. 180) e Frederico Marques (Elementos.... v. 3, p. 380). A origem da ressalva é o art. 160, § 2“, do Código de Processo Criminal de 1832.

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^ O procedimento dos crimes praticados por funcionário público prevê um con­ traditório prévio ao recebimento da denúncia (CPP, art. 514, caput), notificando-se 0 acusado para oferecer resposta escrita, no prazo de 15 dias. Este prazo poderá ser dilatado pelo juiz, se o acusado justificar a necessidade de maior prazo para a produção da prova de sua inocência, como o processamento da justificação em outra comarca.*™ O CPP refere-se à “notificação”, mas tal ato tem natureza de citação, uma vez que dá ciência ao acusado de que existe um processo penal contra ele, facultando-lhe comparecer em juízo para se defender. O legislador, partindo da premissa equivocada de que não existe processo antes do recebimento da denúncia, preferiu denominar tal ato de notificação, para somente após o recebimento da denúncia referir-se à “citação” (CPP, art. 517).*” A resposta escrita pode ser apresentada por advogado ou pelo próprio acusado, sem advogado, como assegura o art. 514, caput, c.c. o art. 516, ambos do CPP.**' O parágrafo único do art. 514 do CPP afasta a necessidade de notificação (recíius; citação) do acusado para apresentar resposta escrita em duas hipóteses: (1) o acusado não foi localizado; (2) o acusado reside em outra comarca. Nestes casos, o juiz nomeará um defensor que apresentará a resposta preliminar. Assim, no caso de acusado residente em outra comarca, o CPP não prevê a possibilidade de notificação por carta precatória para que seja apresentada a de resposta escrita, o que fere os prin­ cípios do contraditório e da ampla defesa. Mesmo no caso de acusado residente em outra comarca, deverá ojuiz expedir carta precatória para sua citação, facultando-lhe a apresentação da resposta escrita.*** Na resposta escrita o acusado pode ju n tar documentos e ju stificações que provem a inexistência do crime ou a improcedência da ação penal. Normalmente, a defesa deverá se fundar na alegação de que o fato não existiu, ou na sua atipicidade. 350. Admitindo a dilação do prazo: Bento de Faria, Código..., v. 2, p. 101, Espínola Filho, Código..., V. 5. p. 183; Noronha, Curso..., n. 158, p. 293. 351. Nesse sentido posicionam-se Borges da Rosa (C om entdrios..., p. 3 95) e Greco Filho (Manua!..., p. 416). Em sentido contrãrio, entendendo tratar-se de verdadeira notificação, e nâo de citação, pois esta somente teria lugar após o recebimento da denúncia: Tomaghi, Curso..., V . 2, p. 254; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, 2005, p. 205-206. 332. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 251; Mirabete, Processo Penal. p. 607. Em sentido contrário, Tourinho Filho (Código..., v. 2, p. 169) entende que a resposta somente pode ser apresentada por advogado, nos termos do disposto no art. 1°, do Estatuto da Advocacia. 353. Nesse sentido: Tourinho Filho, Código..., v. 2, p. 169; Greco Filho, Manual..., p. 416; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 242-243; Nucci, Código..., p. 851. Em sentido contrário, considerando não será cabível a notificação por precatória, devendo o juiz da causa nomear defensor para apresentação da resposta, nos termos do parágrafo único do art. 514 do CPP: Damásio E. dejesus Código..., p. 424; Mirabete, Processo Penal, p. 606. Nesse último sentido, na jurisprudência; TJSP, RT 609/295. No caso de o acusado nào ser encontrado, Espínola Filho (Código..., v, 5, p. 178) e Noronha (Curso..,, n. 157, p. 292) recomendam que, antes de nomear-lhe um defensor, seria prudente que o juiz requisitasse à polícia a localização de seu paradeiro. Aliás, tal hipótese é rara de acontecer, uma vez que, normalmente, o endereço do funcionário público é conhecido e consta dos seus assentos funcionais.

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ou ainda na negativa de autoria. Pode também ser alegada a ocorrência de excludente de ilicitude ou a extinção da punibilidade. Tais defesas para serem acolhidas devem estar plenamente provadas. O art. 516 do CPP prevê que o ju iz rejeitará a denúncia “se convencido” da inexistência do crime ou da improcedência da ação. Na dúvida sobre tais requisitos, deverá ojuiz receber a denúncia. A ausência de notificação para que o acusado apresente resposta escrita constitui nulidade, havendo divergência sobre sua natureza. Uma corrente entende tratar-se de nulidade relativa, que deve ser alegada por ocasião das alegações finais, sob pena de preclusão (CPP, art. 5 7 2 ,1 ) O u t r a corrente entende tratar-se de nulidade absoluta, por impedir a realização de fase procedimental essencial para o direito de defesa, além de violar o interesse da Administração Pública em náo ver seus funcionários indevi­ damente processados. Haverá nulidade por ter deixado o juiz de observar o “prazo concedido para a defesa” (CPP, art. 564, III, e, terceira parte), que caracteriza nulidade absoluta, uma vez que não está sujeita à sanatória, nos termos do art. 5 7 2 ,1, do CPP."’ Se o juiz deixar de abrir prazo para resposta escrita, caberá correição parcial, porque tal omissão implicará inversão tumultuária dos atos do processo.” ® Por ou tro lado, uma vez notificado, se o acusado deixar de apresentar a resposta escrita, 0 processo prosseguirá normalmente. A resposta escrita não é peça essencial do processo, e, uma vez concedido o prazo para sua apresentação, o feito poderá prosseguir sem ela. Determina o art. 515, caput, do CPP que os autos permanecerâò em cartório durante o período da resposta escrita. Todavia, o Estatuto da Ad\'Ocacia assegura ao advogado o direito de vista dos autos fora de cartório (art. 7°, XV). Mesmo no caso de prazo comum, visando a garantir a ampla defesa, o juiz deve disciplqiar a vista dos autos fora de cartório, em prazos distintos, para cada um dos corréus.'^’ 13.7.6 R eceb im en to da denúncia Prevalece o entendimento de que, por ser mero despacho, o ato de recebimento da denúncia nào precisa ser motivado.” ® 354. Nesse sentido, considerando que a nulidade é relativa: Espínola Filho, Código..., v. 5, p. 179, Mirabete, Processo Penal, p. 606; Damásio E. delesus. Código. .. p. 424; Nucci, Código..., p. 858. Na jurisprudência: STF, HC n° 71.237/RS, RTJ 123/816, RTJ 124/686, RTJ 110/601, RT 646/346; STJ, HC n° 13.568/RJ, RHC n® 8.770/SP, RHC n® 8.19 l/SP; TJSP, RT 568/285. 355. Nesse sentido, considerando que a nulidade é absoluta: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 240; Tourinho Filho, Processo. .. v. 4, 2005, p. 222; Capez, Manual..., p. 590. Na jurisprudência: STF, RT 572/412; STJ, RSTJ 34/64; TJSP, RT 613/290, RT 526/317. 356. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 606; Damásio E. d ejesus. Código..., p. 424; Tourinho Filho, Código..., v. 2, p. 171. Na jurisprudência; TJSP, RT 536/301. 357. Nesse sentido: Nucci, Código..., p. 852. 358. Nesse sentido: Damásio E. de Jesus, Código..., p. 425; Greco Filho, Manual..., p- 417; Mirabete, Processo Penal, p. 607. Na jurisprudência: STF, RHC n° 63.54 l/SP; STJ, RHC n° 17.974/SC, HC n® 36.528/SP HC n® 14.440/SP

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No entanto, por considerarmos que tal ato tem natureza de decisão, em face do art. 93, IX, da CR, é necessária a sua motivação. Aliás, tendo havido uma “resposta escrita” antes do recebimento da denúncia, em que normalmente são expostos argu­ mentos de fato e de direito visando à rejeição da denúncia, é inadmissível que o ju iz possa, laconicamente, proferir um “despacho” não fundamentado: “recebo a denúncia, cite-se o réu”. De nada adianta dar ao acusado o direito de oferecer uma defesa ver­ dadeiramente prévia ao recebimento da denúncia, se ele não tiver como saber se seus argumentos foram ou nâo considerados pelo juiz. Nâo exigir a fundamentação do qto de recebimento da denúncia, principalmente nos procedimentos em que há um cdntraditório prévio ao juízo de admissibilidade da acusação, é anular o direito de defesa. Não hã recurso da decisão que recebe a denúncia ou a queüfa. Caberá, contudo, habeas corpus para alegar quaisquer das hipóteses do art. 395, caput, do CPE Recebida a denúncia, o acusado deverá ser “citado” de tal ato (CPP, art. 517). Na verdade, não se trata de citação, mas sim de intimação. O acusado já foi citado anterior­ mente, logo após a autuação da denúncia, quando lhe é concedida a oportunidade de apresentar resposta escrita, embora o CPP chame tal ato de “notihcação” (art. 514, c a p u t) . “Citado" o acusado, segue-se o procedimento comum ordinário, independen­ temente de a pena prevista para o crime ser ou não superior a quatro anos, ante a previsão expressa do art. 518 do CPP.®’“ Tendo em vista que será seguido o procedi­ mento ordinário, na denúncia ou queixa, e na resposta, poderão ser arroladas até oito testemunhas (CPP, art. 401, caput), mesmo que se trate de crime punido com pena máxima inferior a quatro anos. Todavia, o “seguir o procedimento comum ordinário”, diante da Reforma do CPP, exigirá adaptações. Isso porque, anteriormente, o próximo ato após a citação era o in­ terrogatório, seguindo-se a “defesa prévia” para, somente depois, ter início a instrução. Diante do novo rito ordinário, se a resposta não for acolhida e a denúncia for recebida, ojuiz deverã citar o acusado para apresentar a resposta do art. 396-A, momento em que poderá oferecer exceções e arrolar testemunhas e requerer diligências. Isso por­ que, na resposta do art. 514, caput, ainda não se requer qualquer diligência defensiva. 13.7.7 R ejeiçã o da d e n ú n cia O ato de rejeição da denúncia tem a natureza de sentença, devendo ser funda­ mentado nos termos do disposto no art. 381, III, do CPP. 359. O art. 518 determina que, “na instrução criminal e nos demais termos do processo, observar-se-á o disposto nos Capítulos 1 e III, Título l, deste Livro”. O Capítulo I com­ preende os arts. 395 a 405, que tiveram suas redações alteradas pela Lei n° 11.719/2008, passando a conter a nova disciplina do procedimento comum ordinário. Por outro lado, o Capítulo 111 era composto pelos arts. 498 a 502, que foram revogados pelo art. 3° da Lei n" 11.719/2008. Assim, sem razáo, Pollastri Lima (Manual..., p. 809), ao concluir que o art. 518 do CPP foi revogado e, partindo de tal premissa, que após o recebimento da denúncia deverá ser seguido o procedimento comum ordinário ou sumário, de acordo com a pena prevista para o delito.

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A sentença que rejeita a denúncia, por reconhecer a inexistência do crime (por exemplo, pela atipicidade do fato, ou pelo reconhecimento de excludente de ilicitude) ou a improcedência da denúncia (por estar provado que o acusado nào é o autor do fato) faz coisa julgada material.*“ Uma vez mais, é de observar a impropriedade de considerar em vigor o procedimento especial e fazer incidir sobre o mesmo as regras do novo procedimento comum, a teor do § 4°, do art. 394 do CPP. Em verdade, tal “rejeição da denúncia”, após a resposta do acusado, que reconhecer que “inexistiu crime”, nada mais é do que uma absolvição sumária, porque o fato é atípico, ou por­ que está comprovada excludente de ilicitude ou culpabilidade. Idêntica, portanto, às situações do novo art. 3 9 7 ,1 a III, do CPP.*®‘ A despeito de se tratar de uma absolvição initio litis, como formalmente o ato será de rejeição da denúncia, será cabível o recurso em sentido estrito, nos termos do art. 581,1, do CPP. Também é possível a rejeição liminar da denúncia, nos termos do art. 395, caput, do CPP. Nestes casos, obviamente, a sentença fará apenas coisa julgada formal e desafiará recurso em sentido estrito (CPP, art. 581,1).*®'

13.8 Procedimento dos crimes contra a honra 13.8.1 Noçõesgerais Havia dois procedimentos especiais para os crimes contra a honra: (1) o proce­ dimento especial dos arts. 519 a 523 do CPP; (2) o procedimento especial da Lei de Imprensa - Lei n" 5.250/1967, arts. 43 a 48. O procedimento especial do Código de Processo Penal (arts. 519 a 523), que se aplica aos crimes contra a honrâl previstos no Código Penal (CP, arts. 138 a 140), desde que estejam sujeitos ã ação penal de inicia­ tiva privada, continua a existir, embora com pouca aplicação prática. Por outro lado, procedimento especial previsto na Lei de Imprensa - Lei n° 5.250/1967, arts. 43 a 48 - , que era aplicável aos crimes de calúnia, injúria e difamação, previstos naquela lei (arts. 20 a 22), deixou de existir, tendo em vista que o STF, considerou que a referida lei especial não foi recepcionada pela Constituição de 1988.*®* No tocante ao procedimento especial do CPP, seu âmbito de incidência foi bastante reduzido em virtude da alteração do conceito de infrações penais de menor potencial 360. Nesse sentido: Greco Filho, Manual..., p. 416. 361. Como observa Pacelli (Curso..., p. 792), irapõe-se a uniformidade de decisões judiciais, na forma, então, do art. 395, art. 397, na fase preliminar, e, após a instrução, do art. 386, todos do CPP, quando se tratar, por óbvio de decisões absolutórias e ou de rejeição da peça acusatória. 362. Fmbora sem previsão legal, Mirabete (Processo Penal. p. 605) entende que, apresentada a resposta escrita, e antes de receber ou rejeitar a denúncia, ojuiz deve ouvir o Ministério Público, em respeito ao contraditório. 363. O STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 130-7/DF, em julgamento realizado no dia 30/04/2009, por maioria de votos, declarou a não recepção de toda a Lei n° 5.250/1967.

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ofensivo. A nova redação do art. 61 da Lei n° 9.099/1995, dada pela Lei n® 11.313/2006, de ampliar o limite da pena máxima - de um para dois anos também eliminou a ressalva dos “casos em que a lei preveja procedimento especial” (redação originária do art. 61, parte final, da Lei n° 9.099/1995).

a lé m

Os crimes de calúnia, difamação e injúria do CP são punidos como penas máxi­ mas que não excedem dois anos, devendo ser considerados infrações penais de menor potencial ofensivo, e estão sujeitos, em regra, ao procedimento sumarissimo da Lei n®9.099/1995 (arts. 69 a 8 3 ).'« Excepcionalmente, contudo, mesmo sendo infraçõe^ penais de menor potencial ofensivo, é possível que não seja aplicadtfo procedimento sumarissimo, nas hipóteses em que o juiz do Juizado Especial Criminal remeta o feito para o juiz comum, quer porque o acusado não foi localizadffÇ deverá ser citado por edital (art. 66, parágrafo único, da Lei n° 9.099/1995), quer porque, em razão da complexidade do caso, é impossível o oferecimento de queixa oral (art. 77, §§ 2° e 3®, daLein® 9.099/1995). Em razão da norma de extensão do § 4° do art. 394 do CPP, os arts. 395 a 399 do CPP também deverão ter incidência sobre o procedimento especial dos crimes contra a honra. Todavia, não tem sentido que tal integração se dê já no início do procedimento, antes mesmo da audiência de reconciliação (CPP, art. 520), que tem por finalidade Justamente impedir o desenvolvimento de um processo, nos casos em que as partes se reconciliem. Assim, somente no caso de tal conciliação restar infrutífera, e a queixa vier a ser recebida, é que poderão ter incidência as novas regras sobre a etapa inicial do procedimento comum ordinário.'®’ Esquematicamente, o procedimento especial dos crimes contra a honra do CPP pode ser assim resumido: (1) oferecimento da queixa; (2) possibilidade de rejeição liminar da queixa; (3) notificação do querelante e do querelado para a audiência de reconciliação; (4) audiência de reconciliação; (5) possibilidade de conciliação e arqui­ vamento do processo; (6) citação; (7) resposta e, eventualmente, exceção da verdade ou da notoriedade do fato; (8) possibilidade de absolvição sumária; (9) recebimento da queixa; (10) audiência de instrução, debates e julgamento. Na audiência de instrução ejulgamento ocorrerão: (10.1) oitiva da vítima; (10.2) oiúva de testemunhas de acusação e de defesa; (10.3) esclarecimentos dos peritos; (10.4) acareações e reconhecimentos de pessoas ou coisa; (10.5) interrogatório; (10.6) requerimento oral de diligências complementares; (10.7) debates orais; (10.8) sentença oral. 364. Em sentido parcialmente diverso, Nucci (Código..., p. 846) entende que “cabe a pos­ sibilidade de transação, mas depois de tentada a conciliação, prevista nos arts. 520 a 522, pois esta é, sera dúvida, mais benéfica ao querelado. Não conseguida, busca-se a transação. Pode-se encerrar, caso haja sucesso, ou continuar, com o recebimento da queixa, seguindo-se o rito da Lei 9.099/1995, adaptado à possibilidade de oferecimento de exceção da verdade ou de notoriedade do fato". 365. Nesse sentido: Aury Lopesjr., Direito..., v. 2, p. 206; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 243.

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13.8.2 Cab im en to O procedimento especial dos crimes contra a honra (CPP, arts. 519 a 523) é apli­ cável aos delitos de calúnia, difamação e injúria previstos no CP, desde que se trate de hipótese de ação penal de iniciativa privada. A ausência de referência à difamação, na denominação do capítulo - Do processo de julgamento dos crimes de calúnia e injúria, de competência do juiz singular tem uma razão histórica. No Código Penal de 1890 não havia o crime de difamação que era uma modalidade de injúria (art. 317, b ). No entanto, o legislador processual esqueceu-se que, com o projeto de Código de Processo Penal de 1941, havia também o projeto de Código Penal de 1940, que tripartia os crimes contra a honra em calúnia injúria e difamação. De qualquer forma, o CPP faz referência à “exceção de fato notó­ rio”, que somente é cabível no crime de difamação. Evidente, pois, que o procedimento especial se aplica também ao crime de difamação.®** Por outro lado, a referência a ju iz singular justihca-se porque, quando o CPP foi elaborado, os crimes contra a honra praticados por meio de imprensa eram julgados por um júri de imprensa, então disciplinado pelo Decreto n” 24.776, de 14/07/1934. Se o querelado gozar de foro por prerrogativa de função, aplica-se o procedi­ mento previsto nos arts. 1° a 12 da Lei n“8.038/1990, inserindo-se neles os incidentes relativos à audiência de reconciliação e a exceção da verdade e de n^otoriedade do fato. O mesmo procedimento será aplicável no caso de competência dos TJs e TRFs, uma vez que o art. 1° da Lei n° 8.658/1993 determina que se apliquem as normas do art. 1° ao art. 12 da Lei n° 8.038/1990, às ações penais de competência originária desses tribunais.®*® 13.8.3 A u d iên cia de recon ciliação A nota característica que dá especihcidade ao procedimento especial dos crimes contra a honra previsto no CPP é a realização de uma audiência de reconciliação, após o oferecimento da queixa. Tal possibilidade somente ocorre no caso de ação penal de iniciativa privada. A possibilidade de reconciliação é uma decorrência do caráter dispositivo da ação penal de iniciativa privada. Uma vez que o querelante pode dispor da ação, poderá, também, se reconciliar com o seu ofensor, pondo hm ao processo. Como na ação penal de iniciativa pública vigora a regra oposta, da indisponibilidade da ação penal (CPP, art. 42), não cabe a audiência de reconciliação. Assim, os arts. 520 a 522 são aplicá366. Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 267-268. 367. Nesse sentido: Frederico Marques, Elementos..., v. 3, p. 322; Tourinho Filho, Processo..., V . 4, p. 268; Damásio E. de Jesus, Código..., p. 425; Mirabete, Processo Penal, p. 609. Etn sentido contrário, na jurisprudência, entendendo que a regra do art. 520 não se aplica ao procedimento da ação penal privada de competência originária dos tribunais, por ausência de previsão legal, na Lei n° 8.038/1990: STF, HC to 77.962/SP; Inq to 1.247/DF

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veis apenas no caso de ação penal de iniciativa privada. Aliás, em tais dispositivos há referência expressa à “queixa”, “querelante” e “querelado”. Há divergência sobre a consequência do não com parecim ento do querelante à audiência de reconciliação. Uma primeira corrente entende que, se o querelante não comparecer, por se tratar de ação penal de iniciativa privada, haverá peremp­ ção, nos termos do art. 60, III, do CPP.*®® Outros, com posicionam ento oposto, consideram que o querelante tem a faculdade de comparecer ou não à audiência, e que o seu nâo comparecimento significará apenas uma forma tácita de manifestar a vontade de não se reconciliar com o seu ofensor. Acrescentam , também, que não pode haver perempção porque ainda não há processo nem relação juríd ica processual.*®® O argumento de que não pode haver perempção, porque ainda não há ação penal, não é correto. O exercício da ação penal se dá com o oferecimento da denúncia ou da queixa, e não com o seu recebimento pelo juiz. Oferecida a queixa, já há processo e ação penal, embora antes da citação do querelado a relação processual ainda esteja incompleta. Viável, pois, em tese, a ocorrência de perempção, pelo não compareci­ mento do querelante ao ato processual que deva estar presente. Quanto ao outro argumento, de que ninguém pode ser forçado a se reconciliar, tal posicionamento é correto. Entretanto, mesmo que o querelante não queira a re­ conciliação - e ninguém poderá exigir que ele se reconcilie - , o seu comparecimento ajuízo é uma imposição legal, ainda que seja para dissentir da reconciliação. O art. 520 é claro ao dispor que “o ju iz oferecerá às partes oportunidade p a r a se reconcilia­ rem, fa z en d o -a s com parecer em ju íz o e ouvindo-as...’'. É evidente, pois, que há um dever de comparecimento, e, se tal dever for desrespeitado, sem justificativa, haverá perempção da ação. No tocante ao querelado, seu nào comparecimento também gera divergência. Parte da doutrina entende cabível a condução coercitiva, nos termos do art. 260 do 368. No sentido de que haverá perempção: Câmara Leal, Comentários..., v. 3, p. 360; Frederico Marques, Elementos..., v. 3, p. 323; Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 262, Tourinho Filho, Processo..., V . 4, p. 273; Noronha, Curso..., p. 300; Mirabete, Processo Penal, p. 612. Na jurisprudência: TARS, RT 646/323; extinto TACrimSP, RT 573/396, RT 554/374. 369. No sentido de que náo ocorrerá perempção: Damásio F. dejesus, Código..., p. 429; Nucci, Código...,p. 862; Demercian e Maluly, Curso..., p. 545. Na jurispmdência, considerando que não há perempção, porque a ação penal só se inicia com o recebimento da queixa: STJ, RFsp n" 605.871/SP Recentemente, o STF também tião reconheceu a perempção, considerando que: “A presença do querelante na audiência preliminar não é obrigatória, tanto por ser ato anterior ao recebimento ou rejeição da queixa-crime, quanto pelo fato de se tratar de mera faculdade conferida às partes. 4. A ausência do querelante à audiência preliminar pode ser suprida pelo comparecimento de seu patrono" (RT 850/522). No mesmo sentido: STp HC n» 71,219/PA; STJ, HC n° 24.218/MG, RFsp n° 187.111/PR, RFsp n° 125.022/PA. Por outro lado, o extinto TACrimSP considerou que não há perempção se o querelante, ao ser intimado para a audiência de reconciliação, peticiona informando que nâo tinha interesse em se recompor com a querelada, justificando a sua ausência (RT 608/348).

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CPP.'™ Outros, partindo da premissa de que a conciliação é incompatível com coerção, negam a possibilidade de condução forçada.'" A melhor interpretação é que o art. 520 impõe o comparecimento de ambas as partes. A audiência de reconciliação tem a natureza de uma condição de prosseguibilidade da ação penal. A açâo já se iniciou, com o oferecimento da queixa, mas não poderá prosseguir, inclusive no que toca ao seu recebimento, antes da realização da audiência. Não se trata de uma condicionante para o oferecimento da queixa - co­ mumente denominada condição de procedibilidade - , mas sim de um requisito para o seu recebimento. Não é condição para o exercício do direito de açâo, mas para o prosseguimento da ação já exercida.'™ Isso não quer dizer que, sempre, será necessária a realização da audiência de reconciliação. O juiz deverá rejeitar liminarmente a queixa, antes mesmo de designar audiência de reconciliação, nas hipóteses do art. 395, caput, do CPP.'*' A parte final do art. 520 do CPP, procurando destacar o caráter informal de tal audiência, prevê que ela seja realizada sem a presença de advogados. O juiz deve ou­ vir as partes “separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termos”. A razào de ser do dispositivo é permitir que a audiência de reconciliação seja um ato “inteiramente informal, funcionando ojuiz como verdadeiro pacificador” das partes,'" “aconselhando-as paternalmente, mas sem imposição nem constrangimen­ to”. ' " A despeito disso, a parte do dispositivo em que estabelece a realização do ato sem a presença dos advogados é incompatível com o art. 93, IX, da CR, que asseguraa 370. Nesse sentido: Espínola Filho, C ó d ig o ..., v. 5., p. 196; Tornaghi, Curso^;., v. 2, p. 267; Tourinho Filho, P ro cesso ..., v. 4, p. 273; Noronha, C u rso..., n® 161, p. 300; M íabete, Processo Penal, p. 612. ^ 371. Nesse sentido: Tourinho Filho, P r o c e s s o ..., v. 4, p. 273; Greco Filho, M an u al..., p. 418; Nucci, C ó d ig o ..., p. 862. 372. Frederico Marques (E le m e n to s ..., v. 3, p. 325), Noronha (Curso ... n® 161, p. 300), Mi­ rabete (P ro c esso P en a l, p. 6 1 1 ) e Delmanto (C ó d ig o ..., p. 297) denominam tal situação de condição de procedibilidade especial, o que pode gerar confusões tenninológicas. Justamente porque a ação jã foi exercida, Tourinho Filho (P rocesso...,v . 4, p. 273) entende tratar-se de “condição imprópria de procedibilidade”. Pelo mesmo motivo, Aury Lopesjr. (Direito..., v 2, p. 20 5 , nota 23 0 ) considera que “não se trata de condição para o exercício da ação penal” e o que se tem é um mero ato procedimental. 373. Antes mesmo da Reforma do CPR a doutrina já admitia a rejeição da queixa, nos crimes contra a honra, se a inicial fosse inepta, ou se já estivesse extinta a punibilidade, ou ainda se a parte que a formulou fosse ilegítima, ou se por qualquer outro motivo faltasse justa causa para a ação. Nesse sentido: Greco Filho, M an u a l..., p. 41 8; Damásio E. de Jesus, C ó d ig o ..., p. 4 29; Mirabete, P ro cesso P en al, p. 611. Na jurispaidência anterior, em caso de inépcia da queixa: extinto TACrimSP, R JD TAC rim SP 21/372; extinto TAMG, RT 609/392. Caso seja designada audiência, em tais hipóteses, será cabível h a b e a s corp u s para afastar a ilegalidade. Todavia, o extinto TACrimSP já decidiu ser incabivel o h a b ea s corpu s estando o feito na fase de audiência de reconciliação (HC n® 127.238). 374. Tornaghi, C u rso ..., v. 2, p, 261. 375. Câmara Leal, C o m en c á r io s ..., v. 3, p. 362.

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publicidade dos atos processuais e, mesmo no caso de publicidade restrita, estabelece que a lei poderá restringir a publicidade dos atos “às partes e a seus advogados, ou somente a estes”. Ou seja, jamais um ato processual poderá ser praticado sem o acesso dos advogados. Em suma, o art. 520 não foi recepcionado pela nova ordem constitu­ cional, na parte em que afasta a presença dos advogados da audiência de reconciliação, posto que incompatível com o art. 93, IX, parte final, da CR.®®* Ocorrendo a reconciliação, o querelante deverá assinar um termo de desistência da queixa, que será arquivada (CPP, art. 522). A desistência da^ueixa é uma c^usa especial de extinção da punibilidade, não prevista no art. 107 do CP. Normalmente, no caso de queixa, após o seu oferecimento, a forma de disposição prevista em lei é o perdão. Também não se trata de renúncia, pois esta é prévia ao exercício do direito de queixa. De qualquer forma, extinta a punibilidade, pela reconciliação, a consequência será o arquivamento dos autos. Embora o art. 522 do CPP sugira que somente será lavrado o termo na hipótese de desistência da ação, convém que este seja lavrado também no caso de não haver recon­ ciliação, inclusive para atestar que foi tentada a reconciliação, conforme exige o CPP. Restando infrutífera a reconciliação, ojuiz deverá receber a queixa, se estiverem presentes os requisitos legais. Determina-se, então, a citação do acusado para apresentar resposta do art. 396-A, por força da norma de extensão do § 4° do art. 394, ambos do CPP. Seguindo-se posteriormente, nos termos do procedimento comum ordinário,®®® nada impede que o acusado seja citado na própria audiência de reconciliação. 13.8.4 Exceçã o da verdade A exceptio veritatis é uma defesa material direta, por meio da qual se nega o fato constitutivo do direito do autor. A exceção da verdade não é uma verdadeira exceção material, pois nesta o réu admite como verdadeiro o fato constitutivo do direito do autor, opondo-lhe, contudo, fato impeditivo, modihcativo ou extintivo. Na calúnia e na difamação contra funcionário público no exercício da função, a falsidade é elemento do tipo penal. Se o fato desonroso imputado nào é falso, mas verdadeiro, a conduta é atípica. Assim, quando o acusado ahrma que o fato ofensivo que ele atribui à vítima é verdadeiro, está se limitando a negar o fato constitutivo do direito de punir, ainda que 0 faça de forma indireta, isto é, não pela simples negação, mas pela asserção de um fato incompatível com aquele constante da acusação (negatio per positionem') 376. Com fundamento diverso, qual seja o art. 133 da CR, Aury L o p esjr. (Direito..., v. 2, p. 205) também entende que o advogado deve estar presente na audiência de reconciliação. 377. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 243. 378. Para uma análise mais aprofundada da nossa posição, cf.: Badaró, Ônus da prova..., p. 386. Em sentido contrário, para Frederico Marques (Elementos..., v. 3, p. 3 2 5 ) trata-se de verdadeira “exceptio, porquanto o réu admite a existência do fato constitutivo da imputação, mas invoca circunstância que impede tal fato de enquadrar-se em descrição legal típica”.

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O art. 523 do CPP se refere ao “querelante”, dando a entender que a exceção da verdade somente seria cabível nos crimes de ação penal privada. Todavia, no caso de ação penal pública condicionada, por calúnia ou por difamação contra funcionário público, em razão da sua função (CP, art. 145, parágrafo único, parte final), também é cabível a exceção da verdade, por previsão expressa do parágrafo único do art. 139 do CP.*'® Neste último caso, quem deverá responder à exceção da verdade, “contes­ tando-a”, será o Ministério Público.*®“ A exceção da verdade deve ser oferecida no prazo do art. 396-A, em petição própria, quando da apresentação da “resposta escrita”.*®' Não possui, todavia, base procedimental autônoma. Não baverá, nem mesmo, autuação em apartado.*®' Arguida a exceção, o querelado será intimado para contestá-la, no prazo de dois dias, oportunidade em que poderá acrescentar testemunhas àquelas por ele já arroladas na queixa, até o número máximo de testemunhas, ou substituir as então arroladas. As testemunhas arroladas na exceção da verdade e em sua contestação não serão ouvidas em separado. A prova da veracidade do fato se dará com a produção das demais provas, ao longo da instrução da causa. Assim, primeiro, serão ouvidas as testemu­ nhas arroladas pelo querelante, pouco importando se foram arroladas na queixa ou na contestação da exceção da verdade. Não cabe ao juiz manifestar-se sobre a exceção da verdade previamente, o que somente deverá ser feito no momento da sentença, quando ojuiz também analisará a autoria delitiva e os demais elementos do crime.*®* Se a exceção da verdade não for protocolada no prazo legal, o querelado nâo poderá oferecê-la posteriormente. Isso não significa, porém, que o qitqrelado ficará impossibilitado de provar que o fato ofensivo à honra do querelante era %%rdadeiro.*®® 379. Nesse sentido; Tourinho F ilh o, P rocesso..., v. 4, p. 2 7 4 -2 7 5 . Na jurisprudência, nesse último sentido: STJ, RT 726/614. i 380. Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 274-275. 381. Nesse sentido; Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p. 279; Damásio F. d e je s u s. Código..., p. 431. 382. No sentido de que exceção deve ser ofertada em peça própria, distinta da resposta do art. 396-A do CPP; Noronha, Curso..., p. 301; Damásio F. d ejesus. Código..., 2006, p. 417; Nucci, Código..., p. 858; Demercian e Maluly, Curso..., p. 545. Em sentido contrário, Greco Filho (Manual..., p. 419) afirma que, “apesar do Código, no aspecto redacional, dar a entender o contrário, a exceção da verdade ou da notoriedade do fato deverá ser apresentada na defesa prévia, independentemente de peça autônoma. Não há previsão legal de autuação cm apenso". 383. Na jurisprudência; extinto TARj, RT 747/761; extinto TACrimSP, RJDTACrimSP 27/86. 384. Não é possivel concordar, portanto, com a posição de Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 2 1 1 ); “E se o querelado ou réu não arguir a exceção da verdade ou da notoriedade do fato quando da defesa prévia (recíius: da resposta)? Não mais poderã fazê-lo. Tampouco deverá o juiz permitir que a Defesa faça reperguntas (rectius: perguntas) sobre a veracidade ou falsidade do fato que o agente imputou ao ofendido”. Mirabete (Processo Penal. p. 558) também entende que “nào arguida a exceção da verdade na defesa prévia nào poderão ser ouvidas testemunhas nem apresentadas provas sobre a veracidade da imputação, jã que se

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Poderá fazê-lo por meio das testemunhas já arroladas na resposta à denúncia ou me­ diante documentos ou quaisquer outras provas que ainda possam ser produzidas. O não oferecimento da exceção da verdade, no prazo legal, apenas impedirá que o quere­ lante possa arrolar novas testemunhas ou substituir as anteriormente arroladas, como lhe permite o art. 523 do CPP. Sendo a falsidade elemento do tipo penal, mesmo que não seja oposta a exceção da verdade, para que seja proferida a decisão condenatória, deverá haver prova de que o fato desonroso imputado era falso. Por outro lado, mesmo que não tenha oposto a exceptio veritatis, o acusado poderá provar que o fato por ^le imputado é verdadeiro. Suponha que uma das testemunhas arroladas na respostà à queixa saiba que o fato imputado é verdadeiro. Sobre isto poderã ser indagada, e, se sua resposta convencer o ju iz de que o tal fato não é falso, o acusSclodeverá ser absolvido, por ser atípica a sua conduta, mesmo que não tenha ofertado a exceção da verdade.“ ’ A única restrição probatória que decorrerá da não utilização da exceção da verda­ de é a impossibilidade de o querelante substituir as testemunhas arroladas na queixa ou apresentar novas para completar o número legal de testemunhas, como faculta o art. 523 do CPP.“ « No crime de calúnia, se o querelante gozar de foro por prerrogativa da função (CPP, art. 85), uma vez ofertada e processada a exceção da verdade, caberá ao Tribunal competente o julgamento da exceção da verdade. A razão de ser de tal regra é evitar que, por vias indiretas, um juiz de primeiro grau possa declarar o cometimento da prática de um crime por quem goza de foro por prerrogativa de função.“ ’ Justamente prevê expressamente um procedim ento especial para a arguição”. O autor admite, porém , que “nada impede que, a qualquer momento, se permita ao querelado arguir a exceptio ve­ ritatis’’. Discordamos de ambas as posições. A exceção da verdade não pode ser ofertada a qualquer tempo, mas somente por ocasião da resposta. Após isto, não mais caberá a exceptio. Contudo, isto nâo quer dizer que, a qualquer tempo, o acusado não possa provar que o fato por ele imputado é verdadeiro, valendo-se para tanto de qualquer meio de prova legalm ente admitido. Mas, repita-se, em tal caso não se tratará da exceção da verdade prevista no art. 523, mas apenas de prova da inexistência de um dos elem entos do tipo penal. 385. O extinto TACrimSP já decidiu, corretamente, que “nâo se vê incompatibilidade processual e material entre eventual preclusão da exceção da verdade no 1®grau da jurisdição, com a pro­ dução da prova documental no 2® grau, instruindo a incotrformidade recursal” (RT 607/307). 386. Sendo a exceção da verdade uma defesa m aterial direta, não se aplica a ela a regra reus excipiendo fit actore. É incorreto afirmar, portanto, que o ônus da prova na exceção da verdade cabe ao acusado. Também não poderá haver presunção da falsidade, por ser ela elemento integrante do tipo penal. O ônus da prova da falsidade do fato desonroso incum be ao acusador, e a dúvida sobre tal elemento deve ser decidida em favor do imputado. Na jurisprudência: extinto TACrimSP, RT 607/307. 387. Por exem plo, um prefeito m unicipal oferece queixa-crim e contra um cidadão que afirmou que o chefe do Executivo recebeu dinheiro para praticar determinado ato administrativo. O querelado oferece exceção da verdade para provar que, realm ente, o prefeito praticou o crime de corrupção passiva. Se a exceção da verdade fosse julgada pelo ju iz de primeiro grau, ainda que indiretamente, u m ju iz estaria considerando o prefeito corrupto - se acolhesse a exceção da verdade - ou inocente - se rejeitasse a exceptio veritatis - , quando o ju iz natural para tal causa é o Tribunal d eju stiça.

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por isso, a aplicação do art. 85 somente se justifica no caso de imputação da calunia, mas não de difamação contra funcionário público no exercício da função.®®® Todavia, na hipótese do art. 85 do CPP, o processamento da exceçáo, inclusive com a oitiva das testemunhas, hcará a cargo do juiz de primeiro grau, em que tramitar o processo pelo crime contra a honra. O Tribunal será competente apenas para o jul­ gamento da exceção. Acolhida (declarando o fato imputado verdadeiro) ou rejeitada (declarando o fato ofensivo imputado falso) a exceção pelo tribunal, a decisão do processo pelo crime contra a honra voltará a ser de competência do juiz do primeiro grau que, obviamente, hcará vinculado à decisão do Tribunal.®®“ O art. 85 do CPP estabelece um critério funcional de competência, pelo objeto do juízo. Caberá ao juiz de primeiro grau julgara autoria e todos os demais elementos do crime contra a honra, com exceção da falsidade do fato imputado, que será de compe­ tência do Tribunal. A inobservância do art. 85 do CPP, quer porque o Tribunal acabou julgando a ação penal por crime contra a honra, quer porque ojuiz de primeiro grau julgou a exceção da verdade, será causa de nulidade absoluta do processo. 13.8.5 Exceçã o da notoriedade d o fato Fato notório é aquele que ocorreu à vista do público ou é sabido de todos.®““ Além da exceção da verdade, o art. 523 do CPP também faz referência à “exceção da notoriedade do fato”, que somente é cabível no caso de difamação.®“' ' A exceçáo da notoriedade do fato deve ser oferecida quando da apresentação da resposta (CPP, art. 396-A). Não haverá procedimento próprio nem atuação em apartado. O procedimento é o mesmo da exceção da verdade, com prazo de doip dias para contestar e a possibilidade de o querelante substituir as testemunhas arriadas na queixa ou completar tal rol até o número de oito testemunhas.®“®

388. Nesse sentido, decidiu o STJ: “Conforme entendim ento pacificado no Supremo Tribu­ nal Federal, ainda que o ofendido goze de foro especial por prerrogativa de função, nào se aplica o disposto no artigo 85 do Código de Processo Penal quando o fato imputado não for definido como crime, mas apenas ofensivo à sua reputação” (STJ, HC n" 29.862/SP). 389. Na jurisprudência, quanto ao processamento da exceção: TJRS, RJTJRJ 166/1997. Quanto à competência: STF, RTJ 88/476; TJSP, RT 615/258. Finalmente, quanto ao julgamento: STF, RT 613/392, RT 578/403. 390. Hungria, Código..., v. 6, p. 75. 391. Nesse sentido: Tom aghi, Curso..., v. 2, p. 263; M irabete, Processo Penal, p. 614. Para Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 280-281) a exceção da notoriedade do fato é cabível em qualquer forma de difamação; não sendo cabível na hipótese de injúria, pois nesta o que se imputa ao ofendido não são fatos ofensivos à honra, mas sim qualidades negativas. Já Frederico Marques (Elementos..., v. 3, p. 330), Nucci (Código..., p. 864) e Aury Lopesjr. (Direito..., v. 2, p. 206) têm posiçáo mais restrita, entendendo que a exceção da notoriedade do fato refere-se ao delito de difamação de funcionário público, no exercício das suas funções. 392. Aliás, por se tratar de exceção de notoriedade do fato, a princípio, seria desnecessária a previsão de complementação ou substituição de testemunhas. Como os fatos notórios

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Segundo Hungria, a exceçáo da notoriedade do fato serve para demonstrar a boa-fé do querelado, isto é, a ausência do conhecimento da falsidade.*®* Neste caso, ainda que o fato imputado seja objetivamente falso, se vinha sendo propalado por todos e o acusado acreditava, sinceramente, que tal fato era verdadeiro, a exceção da notoriedade do fato acabará por demonstrar a ausência de dolo, tornando atípica a conduta. Aliás, por este fundamento, a exceção da notoriedade do fato somente seria cabível no caso de calúnia e difamação, esta última se cometida contra funcionário público em razão da função, pois somente nestes crimes a falsidade é elemento dq tipo penal. Há, porém, outra hipótese de cabimento. A exceção da notoriedade do fato tam­ bém pode destinar-se a demonstrar a falta de ofensividade da cohíTOta. Como destaca Tomaghi, não há como tirar a boa fama de quem já não a tinha.*®® Ou seja, como todos estavam atribuindo um fato desonroso ao querelante, este já estava difamado, com sua honra objetiva abalada. 13.8.6 P edid o de explicações O pedido de explicação não está disciplinado no CPP, havendo referência, apenas, ao art. 144 do CP. É comum na doutrina a afirmação de que o pedido de explicações tem a natureza de uma interpelação, seguindo o procedimento das notificações avulsas, previsto no CPC (arts. 867 a 873).’®* Na edição anterior, defendíamos que a analogia devia ser buscada na Lei de Imprensa, cujo art. 25, caput, disciplinava o pedido de explicações nos seguintes termos: “Se de referências, alusões ou frases se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julgar ofendido poderá notificar judicialmente o responsável, para que, no prazo de 48 horas, as explique”.*®®O art. 25 da Lei de imprensa previa que, uma vez admitido o pedido de explicações, ojuiz devia determinar a intimação do requerido, a fim de que, no prazo de 48 horas, explicasse as referências, alusões ou frases tidas como caluniosas, difamatórias ou injuriosas. Com isso, não havia a designação de audiência para que o ofensor prestasse as explicações, o que era uma providência desnecessária, visto que tais esclarecimentos poderão ser feitos por escrito. Todavia,

não são objeto de prova (CPP, art. 3°, c.c. CPC, art. 3 3 4 , I), não haveria necessidade de prová-los. De qualquer forma, o querelante poderá demonstrar, justam ente, que os fatos alegados não são notórios, isto é, não são do conhecim ento geral. 393. Hungria, Código..., v. 6, p. 74, 394. Tomaghi, Curso... v. 2, p. 263. No mesmo sentido, afirma Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 276) que, “se o fato ofensivo à honra é notório, não pode o pretenso ofendido pretender defender o que ele perdeu, e cuja perda caiu no domínio público, ingressando no rol dos fatos notórios". 395. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p, 271. 396. Nesse sentido posiciona-se Tucci, Pedido de explicações, p. 303.

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diante do posicionamento do STF, considerando nâo recepcionada a Lei de Imprensa tal aplicaçáo não mais será possível. Na ausência de uma disciplina específica na lei processual penal, a disciplina legal do pedido de explicações deverá ser, por analogia, a dos arts. 861 a 866 do CPC, que regulamentam o procedimento das justificações.™’ Assim, deverá ojuiz determinar a citação do requerido (CPC, art. 862) e designar audiência, na qual este será ouvido para, querendo, prestaras explicações (CPC, art. 863). O art. 144, segunda parte, do CP prevê que: “Aquele que se recusa a dá-las [as explicações] ou, a critério do juiz, não as dã satisfatórias, responde pela ofensa". 0 dispo­ sitivo é mal redigido, podendo induzir o intérprete a conclusões equivocadas. O teor das explicações não será julgado no próprio pedido de explicação, pelo magistrado perante o qual esse tramita. Somente por ocasião da sentença, no caso de futura ação penal privada, é que ojuiz da causa irá valorá-las.™® Apenas recebe as explicações do requerido, ou atesta que ele não as prestou, entregando posteriormente os autos para o requerente, no prazo de 48 horas, independentemente de traslado (CPC, art. 865). Quem irá apreciar o pedido de explicações, ou melhor, as explicações prestadas ou a recusa em fazê-lo, é o juiz da ação penal condenatória. O pedido de explicações nào é obrigatório,™® sendo possível o oferecimento da queixa, sem o prévio pedido de explicações. No entanto, se realmente há dúvida sobre o caráter ofensivo das afirmações ou alusões, ou ainda se há dúvida sobre contra quem se dirigiam as ofensas, a falta de maiores esclarecimentos poderia acarretar uma rejeição da denúncia ou queixa, por falta de justa causa.’« O pedido de explicações é cabível tanto no caso de açáo penal de injciativa pri­ vada quanto no caso de ação penal de iniciativa pública. Neste último caso, porém, o legitimado ativo para o pedido de explicações será o ofendido, e nâo o Ministério Público.’*" 397. Nesse sentido, mesmo no regime anterior, considerando que deveria ser designada au­ diência, já era a doutrina prevalecente: Tornaghi, C urso ... v. 2. p. 261; Frederico Marques, E lem en to s..., v. 3, p. 329. 398. Nesse sentido: Fragoso, Lições d e d ir eito p en a l. Parte especial, p. 209; Bitencourt, Código..., p. 57 7 ; Nucci. C ód ig o P e n a l..., p. 47 7 Cabe observar que, embora o caput do art. 866 do CPC determine que “A justificação será afinal julgada por sentença ”, o parágrafo único do mesmo artigo deixa claro que “O ju iz não se pronunciará sobre o mérito da prova, limitando-se a verificar se foram observadas as formalidades legais”. Em sentido contrário, Costa Jr. (C o m en tá rio s ..., v. 2, p. 90) entende que “aquele que se recusa a dar explicações, como aquele que, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa. É no instante do pedido, portanto, que o magistrado haverá de julgar se satisfazem, ou não, as explicações”. 399. Nesse sentido: STJ, REsp 204.291/SP 400. Uma vez interposto o pedido de explicações, o juiz que o conhecer está prevento para julgar a ação penal condenatória (CPP, art. 8 3 ). Nesse sentido: Greco Filho, M anual..., p418. Na jurisprudência: STF, RT 619/382; TJSP, RT 625/264. 401. Nesse sentido; Tourinho Filho, P r o c e s s o ..., v. 4, p. 270; Damásio E. d ejesu s. C ódigo..., p, 4 2 8 ; Delmanto, Código..., p. 3 1 0 -3 I I . Na jurisprudência, extinto TACrimSP, RT 621/319.

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Se o requerido do pedido de explicação gozar de foro por prerrogativa de função, em caso de posterior açâo penal, o pedido de explicação já deverá ser aforado no órgão superior, que detém a competência originária também para o pedido de explicações."® O pedido de explicações nào será cabível se jã estiver extinta a punibilidade,"® ou se as afirmações estiverem acobertadas por imunidade parlamentar do art. 53, caput, da CR"® ou pela imunidade judiciária prevista no art. 142,1, do CP,"’ ou, ainda, se as assertivas forem explícitas e não gerarem qualquer forma de dúvida."* Se for indeferido o pedido de explicações, caberá apelação, com fundamento ilo art. 593, caput e H, do CPP."® Todavia, diante da exiguidade do prazo decadenciál, que não se suspende nem se interrompe, muitas vezes não será possível aguardar o julgamento do recurso. Neste caso, mesmo com risco de indeferimento, melhor será o oferecimento da queixa, para evitar a decadência.

13.9 Procedimento dos crimes contra a propriedade imaterial í 3.9.1 N o ç õ e s g e r a is A propriedade imaterial, no mundo moderno, representa um valor que necessita de uma proteção em sede penal. Atualmente, a propriedade imaterial é penalmente tutelada por dois diplomas legislativos: o Código Penal (art. 184) e a Lei de Proprie­ dade Industrial (L P I),- Lei n° 9.279/1996 (arts. 183 a 195).® 28. TJRS, HC n“ 70020372793. 29. Em sentido contrário, negando a possibilidade de utilização do habeas corpus, por consider^ que baverá apenas risco mediato à liberdade de locomoção: Pacelli de Oliveira, Atualização do processo penal..., p. 31. Náo é possível concordar com tal posicionamento. No caso de ser determinada, ilegalmente, medida alternativa à prisão, nâo se tratará de risco mediato à liberdade de locomoção, mas de efetiva coação, ainda que nào consubstanciada em privaçta^ da liberdade, mas de mera restrição da liberdade de ir e vir. J

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Também se aceita a utilização do habeas corpus para a impugnação da decisão judicial de quebra de sigilo bancário, fiscal, de dados ou telefônico, que contenha alguma ilegalidade, como a falta de fundamentação, a incompetência da autoridade que determinou a medida, ou até mesmo sua adoção fora das hipóteses legais. Embora pareça que em tais casos apenas estaria sendo lesado o direito à intimidade ou liberdade das comunicações, é de reconhecer que, ao menos de forma mediata, também haverá riscos para a liberdade de locomoção (por exemplo, o resultado da interceptação po­ derá servir de fundamento para um pedido de prisão preventiva ou até mesmo para uma sentença condenatória), sendo cabível o habeas corpus:^ " No caso de crime ambiental, em que o acusado seja pessoa jurídica, o habeas corpus nâo será adequado, pois a pessoa juridica não se süjeitaà pena privativa de li­ berdade. Na hipótese de ilegalidade durante o processo deverá ser interposto mandado de segurança (por exemplo, para “trancar ação penal” por fato atípico).®' Era tranquilo o posicionamento de que a existência de um recurso específico para impugnar o ato que ameaça ou viola a Uberdade de locom oção não afasta a possibilidade de utilização do habeas corpus, que constitui remédio mais ágil para a tutela da liberdade do indivíduo.®' Tal posicionamento, recentemente, sofreu séria mudança, em especial no que diz respeito ao cabimento do habeas corpus originário, substitutivo de recurso em habeas corpus, tanto no âmbito do STF, quanto no do STJ. Hoje, predomina o entendimento que o habeas corpus não é cabível no caso de dene­ gação de habeas corpus anterior, devendo ser utilizado o recurso ordinário em habeas corpusJ^ Obviamente, tal restrição implica sérias limitações à defesa da liberdade de locomoção e, principalmente, faz com que o STF deixe de controlar ilegalidades que afetam a liberdade de locomoção, nos casos de simples violação a lei.®® Pouco tempo 30. Na jurisprudência, em relação à quebra do sigilo telefônico: STF, HC n° 84.869/SP, HC n° 80.949/RJ. Em relação aos sigilos bancãrio e fiscal: STE Al n° 573.623-QO/RJ, HC n° 79.191/ SP. Com relação ao sigilo telefônico: TRF-S," Reg., HC to 2007.03.00.040647-l/MS. 31. Nesse sentido: extinto TACrimSP, MS to 413.768/1. Jã se decidiu, porém, pelo cabimento do habeas corpus considerando que “mostra-se desproporcional a compreensão do habeas corpus sob a ótica vetusta de ação voltada para proteção da liberdade fisica e individual” (TRF-l.® Reg., HC to 2005.01.00.06237-9/BA). 32. Na jurisprudência: STJ, HC n“ 45.029/GO, STJ, HC to 19.300/SP; STJ, HC to 17.797/RJ. Não se aplica ao habeas corpus a restrição consubstanciada na Súmula to 267 do STF: “Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”. 33. A mudança da jurisprudência ocorreu, no STF, no HC n° 109.956/PR, julgado em 07.08.2012, pela 1.” T., tendo por relator o Min. Marco Aurélio. No mesmo sentido, pos­ teriormente, entre tantos outros: HC to 104.045/RJ, HC to 108.181/RS, HC n° 114.550/ AC, HC to 114.924/RJ. No âmbito do STJ, a mudança foi registrada no HC n° 221.200/ DF. No mesmo sentido, posteriormente: HC to 268.885/SC. HC to 270.007/SP, HC to 131.970/RJ, HC to 167.453/RJ. 34. Isso porque, interposto habeas corpus perante o TJ ou TRF, se este for negado, porque tal tribunal entende que não houve ilegalidade no ato, serã cabível o ROHC para o STJ. Se este também entender que não houve ilegalidade. Nada mais poderá ser feito. Isso porque não existe recurso para o STF contra denegação de ROHC, e também não será cabível o recurso

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depois, a posição restritiva foi abrandada, passando o STF a admitir o cabimento do habeas corpus “impetração substitutiva toda vez que a liberdade de ir e vir, e não somente questões ligadas ao processo-crime, á instrução deste, esteja em jo g o na via direta, quer porquanto expedido mandado de prisão, quer porque jã fo i cumprido, encontrando- se o paciente sob custódia”. " Por outro lado, como ainda é possível a concessão de habeas corpus de oficio mesmo nos casos em que não se conhece o habeas corpus voluntariamente interposto por considerar que no caso era cabível o recurso ordinário em habeas corpus, o STJ e o STF, se considerarem que está demonstrado o constrangimento ilegal, concederão a ordem ex ojficio/^ Tal situação, portanto, criada pela mudança jurisprudencial, nâo parece ter trazido racionalidade ao sistema, mas, ao contrário, tornou-o ilógico na medida em que não se conhece do habeas corpus, mas tem-se que analisá-lo para ver se não é o caso de concedê-lo de ofício! E, o que é pior, além de ilogicidade, abre-se a porta para perigosa seletividade e discricionariedade. , 16.4.3 Legitim idade 16.4.3 .7 Legitim ados ativos Trata-se de ação popular em que o legitimado ativo é qualquer pessoa, física ou ju ríd ica ," nacional ou estrangeira (CPP, art. 654, primeira parte). Quanto ao estrangeiro, embora o caput do art. 5° da CR assegure os direitos e garantias apenas aos “estrangeiros residentes no Pais”, tem-se admitido a utilização do habeas corpus em favor de pacientes estrangeiros em trânsito em território nacional,"

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extraordinário, na medida em que náo se trata de violação da constituição, mas de violação de lei infraconstitucional. A mudança de posicionamento se deu no HC 115.50 l/SP, julgado em 11.06.2013, novamente tendo por relator o Min. Marco Aurélio, que como justificativa para a mudança, aduziu: “Sensibiliza a angústia da comunidade jurídica e académica com a circunstância de o recurso ordinário seguir parâmetros instrumentais que implicam a demora na submissão ao órgão competente para julgá-lo. Isso acontece especialmente nos Tribunais de Justiça e Federais, onde se aponta que, a rigor, um recurso ordinário cm habeas corpus tramita durante cerca de crés a quatro meses até chegar ao Colegiado, enquanto o cidadão permanece preso, cabendo notar que, revertido o quadro, a Uberdade, ante a ordem natural das coisas, cuja força é inafastável, não lhe será devolvida. O habeas corpus, ao contrário, tem tramitação célere, em razão de previsão nos regimentos em geral". Tal possibilidade foi ressalvada no STF no HC n“ 109.956/PR e no STJ no HC n° 221.200/ DF, e vem sendo tranquilamente aplicada. Admitindo a interposição por pessoa juridica, cf.: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes. Recursos.... p. 280; Rangel, Direito..., p. 728. Na jurisprudência: TJSP, RT 598/322; RT 432/280. Nesse sentido: Bento de Faria, Código..., v. 2, p. 252; Espínola Filho, Comentários..., v. 7, p. 235; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 280. O STF já decidiu que “É inquestionável o direito de súditos estrangeiros ajuizarem, em causa pró­ pria, a ação de habeas corpus. eis que esse remédio constitucional - por qualíficar-se como

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bem como para a defesa da liberdade de locomoção de extraditandos**e, até mesmo, para atacar prisão civil decretada pelo não pagamento de alimentos.™ Necessário distinguir o impetrante (quem promove o habeas corpus) do pa­ ciente (quem sofre a ameaça ou o constrangimento em sua liberdade). O impetrante é substituto processual do paciente.®' Trata-se, porém, de um substituto processual peculiar, posto que não se pode negar ao substituído - o paciente - sua intervenção como litisconsorte.®' Em caso de dúvida sobre o interesse do paciente no julgamento da ordem, éste deve ser consultado, e, manifestando-se contrariamente, o habeas corpus não deverá ser julgado, por falta de interesse de agir.®* Para a aferição do interesse, a procuração, embora desnecessária no habeas corpus, pode ser um instrumento útil. Como lembra Pontes de Miranda, “o paciente pode passar procuração para requerer habeas corpus. Na generalidade dos casos, é supérflua. Apenas serve para provar - havendo düvida - que o paciente quis que se impetrasse”.®® Obviamente, o paciente tem que ser uma pessoa, isto é, um ser humano cuja liberdade de locom oção esteja violada ou ameaçada.®* Também deve se tra­ tar de pessoa ou pessoas individualizadas, não se admitindo a medida em favor

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verdadeira ação popular - pode ser utilizado por qualquer pessoa, independentemente da condição juridica resultante de sua origem nacional" (STp HC n° 72.391-8/DF). No mesmo sentido: STF HC n” 80.923/SC. Na jurisprudência: STF HC n°81.709/DF Na jurisprudência: STF HC n° 57.655/SP. Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 280. Idem, ibidem, p. 280. Nesse sentido: Bento de Faria, Código..., v. 2, p. 251; Barcelos de Souza, Doutrina e prática..., p. 51; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 281; Castelo Branco, Teoria e prática..., p. 155. O CPPM também estabelece, no art. 470, § 1°, que “o pedido será rejeitado se o paciente a ele se opuser”. Pontes de Miranda, História e prática..., p. 389: Barcelos de Souza (Doutrina e prática..., p. 25) faz referência a habeas corpus impetrado na Argentina, em outubro de 1990, em favor de três cachorros que estavam presos e “inco­ municáveis”, por lerem mordido um homem. A Câmara de Tucumã concedeu a ordem. Entre nós, o STF não conheceu de habeas corpus preventivo em favor de pássaros que estavam na iminência de aprisionamento em gaiolas, no Rio de janeiro, destacando que a expressão “alguém”, usada repetidas vezes no CPP, exige o constrangimento a pessoa física (STF RJT 63/399). Mais recentemente, em setembro de 2005, foi objeto de notícia na mídia a impetração de um habeas corpus por um Promotor dejustiça do Meio Ambiente de Salvador, Bahia, em favor da chimpanzé “Suíça” que se encontrava aprisionada no Parque Zoobotãnico Getúlio Vargas (Jardim Zoológico). Apontou-se como autoridade coatora o Diretor de Biodiversidade da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh). Na fundamentação, asseverou-se que “é preciso enfrentar a questão dos direitos dos ani­ mais náo humanos a partir da necessidade dc se expandir o rol dos sujeitos de direito para além da espécie humana, outorgando-lhes personalidade juridica". E concluiu pedindo a concessão a ordem “em favor da chimpanzé ‘Suíça’, determinando a sua transferência para o Santuário dos Grandes Primatas do GAP”.

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de pessoas indeterminadas (p. ex.: sócios de uma agremiação ou moradores de alguma casa).®* O Ministério Püblico pode impetrar h abeas corpus no exercício de sua função (CPP, art. 654, caput, parte final, c.c. Lein“8.625/1993eLeiComplementarn°75/1993) desde que em favor do paciente. Não se tem admitido, porém, que o Ministério Pú­ blico interponha habeas corpus para a tutela de interesse da acusação.®® Também se reconheceu a ilegitimidade do Ministério Público para postular o reconhecimento de incompetência de juízo, por intermédio de habeas corpus, quando nào manifesto 0 interesse da defesa.®* 16.4.3.2 Legitim ado passivo O legitimado passivo no habeas corpus é a própria autoridade coatora, e não o órgão a que ela pertence (por exemplo, é o delegado de polícia, e não a policia civil), embora este seja litisconsorte da autoridade coatora. O particular, segundo a doutrina prevalecente, pode ser legitimado passivo.®“Na jurisprudência, podem ser encontrados vários exemplos de particulares como coator: no caso de internação em asilo," ou em hospital, por não pagar as despesas,*' ou em clínica para tratamento de dependentes químicos.™ Há, contudo, posição contrária, entendendo que, no caso, por haver crime contra a liberdade individual (CP, arts. 146 a 149), o mais prático é invocar auxílio da autoridade policial.” No entanto, o fato de poder pedir auxílio à polícia não exclui a opção do habeas corpus.^'' Aliás, mesmo no caso de autoridade püblica, esta também poderá estar cometendo algum crime, como abuso de autoridade ou constrangimento ilegal, o que nâo afasyt o cabimento do habeas corpus. v 46. Cf.: Bento de Faria, Código..., v. 2. p. 252: Barcelos de Souza, Doutrina e prática..., p, 28. Na jurisprudência, não conhecendo de pedido em favor de professores da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, cf.; STJ, HC n° 1.4U-9/RS. 47. Na ju rispru d ên cia: STF, HC n° 69.889/ES; STJ, HC n° 43.824/BA; TJD E HC n° 2008.00.2.013702-3. 48. Na jurisprudência: STE HC n° 91.510/RN. 49. Nesse sentido; Frederico Marques, Elementos..., v. 4, p. 282; Tourinho, Processo.... v. 4, p. 577, Mirabete, Processo Penal. p. 773; Noronha, Curso..., p. 405; Rangel, Direito..., p. 736; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 283: Castelo Bran­ co, Teoria e prática..., p. 156. Aliás, cabe lembrar que, na Inglaterra, o Habeas Corpus Act de 1816 estendeu a admissibilidade do writ às detenções realizadas por particulares. Na jurisprudência: STJ, RHC n“ 4.120-0/RJ. 50. Na jurisprudência: TJSP, RT 577/329. 51. Na jurisprudência: TJPR, RT 418/301, RT 489/389; TJMS, RT 484/349. 52. Na jurisprudência: STF, HC n° 72.391-8/DE HC n“ 75.347-7/MG; TJSP Rec. ex oficcio n 437.414.3/2. 53. Nesse sentido; Bento de Faria, Código...., v. 2, p. 247; Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 396; Demoro Hamilton, Temas..., p. 175. 54. Nesse sentido; Barcelos de Souza, Doutrina e prática..., p, 42.

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A comparação da disciplina constitucional do habeas corpus com a do mandado de segurança demonstra que, no caso do habeas corpus, o sujeito passivo poderá ser particular. No habeas corpus, a Constituição se limita a prever que haja “ilegalidade ou abuso de poder" (art. 5°, LXVIII), enquanto o mandado de segurança é cabível quando “o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exércício de atribuições do Poder Público” (art. 5°, L X IX ). Inexiste, pois, em relação ao habeas corpus, a exigência de que a ilegalidade provenha de autoridade pública. \ , Por fim, não podem ser coniúndidos a autoridade coatora e crdetentor. O art. 658 deixa bem claro tal distinçãoia autoridade coatora é a responsável pelo ato de coação ou pela ameaça à liberdade qe locomoção do paciente (pofÇxemplo, ojuiz que decreta a prisão), enquanto o deteiitor apenas executa os atos para efetivar a decisão da autoridade coatora (por exemplo, o diretor do presídio ou o carcereiro).

16.5 Pressupostos processuais O habeas corpus não exige que ^ impetrante tenha capacidade postulatória. O Estatuto da Advocacia exclui a impetfação de habeas corpus das atividades privativas da advocacia (Lei n“ 8.906/1994, art.,1“, § 1°). Espínola Filho considera que “nem mesmo a capacidade civil é exigida; àp menor, ao surdo e mudo sem instrução, ao interditado, se reconhece a qualidade de impetrante, desde que as suas condições pessoais lhes permitam a manifestação'de vontade”. " Cuida-se, porém, de ampliar demasiadamente a legitimidade do habbas corpus que, sem dúvida, trata-se de ação popular, cuja legitimidade para a ação é a mais ampla possível. No entanto, isso não autoriza a dispensar a capacidade processual. Nâo se pode confundir legitim atio ad causam, que no habeas corpus é geral (ação popular), com legitim atio ad processum, que exige ser o impetrante capaz para o exercício de direitos." Por outro lado, tendo 0 impetrante capacidade processual, dispe^sa-se a capacidade postulatória. Também nào é necessária a apresentação de procuração, por se tratar de açáo penal popular, com legitimação para qualqufer do povo. Também nâo se exige procu­ ração para a interposição de recurso ordinárici^em habeas corpus." Aliás, nesse ponto, é frequente o erro cometido na prática de considerar que o paciente é o recorrente. Na verdade, a parte que ocupa o polo ativo no habeas corpus é o impetrante, normalmen55. Espínola Filho, Comentdrios..., v. 7, p. 232. No mesmo sentido, em relação ao menor rela­ tivamente incapaz, posiciona-se Guimarães (O habeas-corpus..., p. 58) que acrescenta: “os juizes, em caso dessa ordem, e a fim de acautelarem melhor os interesses da justiça e do incapaz, devem dar-lhe um curador que o ajude na defesa de seus direitos". 36. Barcelos de Souza, Doutrina e prática..., p. 49. 57. O STF, no HC n° 73.455/DF, decidiu que: “Quem tem legitimação para propor habeas corpus tem também legitimação para dele recorrer. Nas hipóteses de denegação do writ no Tribunal de Origem, aceita-se a interposição, pelo impetrante - independentemente de habilitação legal ou de representação - , de recurso ordinário constitucional. No mesmo sentido, mais recentemente; STF, RT 853/500.

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te um advogado que atua sem procuração - por se tratar de ação popular, em favor do paciente - o beneficiado potencial do recurso. Logo, essa posição processual do impetrante não se altera no recurso. A parte que irá recorrer é o próprio impetrante ainda que em favor do paciente. Os requisitos da petição de interposição são previstos no § 1“ do art. 654 0 pedido deve ser formulado por escrito’®e em língua portuguesa.’* A petição de­ verá conter a qualificação do paciente e da autoridade coatora (letra a),“ embora relativamente a esta, tem-se admitido a mera indicação do cargo, sem a menção ao nom e.*' Também deverá ser qualificado o impetrante (letra c), que deverá assinar a petição de interposição, não tendo sido admitido o pedido anônimo ou apócrifo,*' ou formulado em petição “subscrita mediante rabisco ilegível, de autoria desconhecida”.** Já se decidiu, porém, com evidente acerto, que, “[... 1 no exame de petição inicial de habeas corpus, há de proceder-se sem a visão ortodoxa, estritamente técnica, imposta pela legislação instrumental no tocanteà peça primeira de outras ações. A premissa mais se robustece quando a inicial é da autoria do próprio paciente, mostrando-se este leigo relativamente à ciência do Direito. Esforços devem ser empregados objetivando o aproveitamento do que redigido.”*® 58. Barcelos de Souza (Doutrina e prática ... p. 142) indaga que, “se se admite o pedido telefô­ nico, que não passa de um requerimento oral, por que se recusar o pedido feito oralmente na presença do juiz?”. Resposta: “tudo leva a admitir que, em casos excepcionais, acolha o juiz um pedido oral”. 59. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recjirsos..., p. 285; Castelo Branco, Teoria e prática..., p. 137. O STF não conheceu de habeas carpus redigido na língua espanhola, destacando que “A petição com que impetrado o haheàs corpus deve ser redigida em português, sob pena de não conhecimento do writ constitucional (CPC, art 156, c/c CPP. art. 3.”). eis que o conteúdo dessa peça processual deve ser acessível a todos, sendo irrelevante, para esse efeito, que o juiz da causa conheça, eventualmente, o idioma estrangeiro utilizado peto impetrante. A imprescindibilidade do uso do idioma nacional nos atos processuais, além de corresponder a uma exigência que decorre de razões vinculadas a própria soberania nacional, constitui projeção concretizadora da norma inscrita no art. 13, caput. da Carta Federal, que proclama ser a língua portuguesa o idioma oficiai da República Federativa do Brasil'“ (STF, HC n° 72.391-8/DF). 60. Espínola Filho (Código..., v 7, p. 238) observa que, "se forem muitos os pacientes, todos eles hão de ser mencionados, não se tolerando generalizações”, por exemplo, “e outros". 61. Nesse sentido; Espínola Filho, Código..., v. 7, p. 240; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 287; Castelo Branco, Teoria c prática..., p 157. Em sentido contrário, para Câmara Leal (Comenldrios. .. v. 4, p. 207) “náo basta, pois, designat a autoridade coatora pelo seu cargo, mas é essencial que se decline o nome individuar. 62. Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 286. Em sentido contrãrio. conhecendo o habeas corpus, “embora não contenha a petição de habeas corpus assinatura e nem impressão digital, não se pode deixar de tomar conhecimento, se a toda evidência está o paciente a sofrer constrangimento ilegal" (TJSP, RT 418/69). 63. Extinto TACrimSP, JT.XCrimSP 24/191. 64. Na jurisprudência: STF, HC n° 80.145-5/MG.

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Aliás, se o juiz e o tribunal podem conceder habeas corpus de ofício (CPP, art. 654, § 2°), não há razáo para o excesso de rigor da apreciação dos aspectos formais da impetração.*’ Tem-se admitido, contudo, a impetração por telex, fax, correio e até mesmo por telefone, neste caso, reduzida a termo.** Também é possível, nos termos do art. 3° da Lei n° 11.419/2006, a impetração por meio eletrônico.*®

16.6 Competência

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A definição da competência para o julgamento do habeas corpus é orientada, basicamente, pelos critérios de território e hierarquia. Será eompetente o Tribunal imediatamente superior, com competência para apreciar recursos ordinários em re­ lação à matéria (CPE art. 650). No caso de atos praticados por particulares ou por delegado de polícia, a com­ petência será do juiz de direito da comarca em que ocorreu o fato (CPP, art. 70, caput, por analogia), e, se houver mais de um juiz, a competência será determinada pela distribuição (CPP, art. 75). Se a autoridade coatora for juiz de direito, a competência será do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal. Em relação aos Juizados Especiais Criminais, se a autoridade coatora for o juiz de direito atuante no Juizado, o habeas corpus deverá ser interposto junto à Turma Recursal. Já no caso em que a própria Turma Recursal for coatora (por exemplo, pra­ tica ilegalidade no julgamento de apelação), por exclusão, inicialmente prevaleceu 0 entendimento de que a competência é do STE A Súmula n° 690 do STF estabelece que: “compete ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados especiais criminais”. Recentemente, contudo, 0 plenário do STF alterou essa orientação, passando a entender que o habeas corpus deverá ser impetrado perante os TJs ou TRFs.*® 65. Nesse sentido: Barcelos de Souza, Doutrina e prática ... p. 142: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos ... p. 286. 66. O extinto TARS já conheceu habeas corpus impetrado por via telefônica, desde que recebido o telefonema pela secretaria do tribunal, o mesmo fosse reduzido a termo, “onde a Secretária deu fé e autenticidade do recebido, presume-se que dita funcionária tenha, depois de recebido, retelefonado ao paciente/impetrante checando a mensagem e logrando extrair dai autenticidade e veracidade do informe telefônico” (RT638/333). Como observa Barcelos de Souza (Doutrina eprática..., p. 141), se o CPP permite, nas infrações inafiançáveis, a requisição da captura, por vià lekfõnica (art. 699), é de se admitir também o pedido de habeas corpus pelo telefone. 67. Além dissn,- a petição enviada por e-mail, normalmente deverã estar acompanhada de documentos, que deverão ser digitalizados. De qualquer forma, ainda que não esteja cor­ retamente instruída, com a vinda das informações da autoridade coatora, normalmente são encaminhadas cópias das principais peças do processo. 68. A mudança se deu no julgamento, pelo Plenário, do HC n° 86.834/SP, em 23/08/2006. Merece destaque, contudò. o voto vencido do Min. Sepulveda Pertence, que destacou: “os juizados fugiriam ao seu jupposito, isto é, dar agilidade ao processamento das causas.

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Se a autoridade coatora for Tribunal dejustiça ou Tribunal Regional Federal a competência para o habeas corpus será do STJ. É necessário, porém, analisar o grau de cognição do Tribunal; se, no julgamento de uma apelação ou de outro recurso de sua competência, o Tribunal dejustiça conheceu da matéria em que se alega haver a coação (por exemplo, ilegalidade na fixação da pena) ou se o Tribunal poderia ter conhecido por se tratar de questão que ele poderia analisar, de ofício, mas não o fez (por exemplo, nulidade absoluta), ele será autoridade coatora. Por outro lado, tratando-se de matéria que nâo foi devolvida ao conhecimento do Tribunal (por exemplo, havia ilegalidade na fixação da pena, mas a apelação analisou apenas a injustiça da condenação) ou no caso de não conhecimento do recurso, o Tribunal, por não ter podido se manifestar sobre a matéria, não será autoridade coatora.« Há controvérsia sobre a competência para julgar o habeas coi-pus, quando a auto­ ridade coatora é o membro do Ministério Público, prevalecendo o entendimento de que a competência é do Tribunal dejustiça ou Tribunal Regional Federal, conforme se trate de membro do Ministério Público Estadual ou Federal.’® ;

16.7 Procedimento

Basicamente, o procedimento compõe-se dos seguintes atos; (1) petição inicial; (2) pedido de informações à autoridade coatora; (3) informações da autoridade coalora; (4) parecer da Procuradoria dejustiça; (5) julgamento. ,

No procedimento nâo há previsáo de liminar. A praxe a admite, desde que pre­ sentes os requisitos d o fumus boni iuris e pericufum in mora, por aplicação analógica ' do procedimento do mandado de segurança (Lei n° 12.016/2009, art. caput, III).’* quando constitucionais, se este tivesse que se sujeitar aos Tribunais de Alçada ou Tribunais dejustiça e, posteriormente, ao Superior Tribunal de justiça e Supremo Tribunal Federal*. 69. Na jurisprudência: STJ, HC n° 9.473/SP. 70. O principal argumento a fundamentar tal posição é o [ato de o promotor dejustiça gozar de foro por prerrogativa de funçáo, sendo que a concessão da ordem de habeas corpus implicaria, indiretamente, o reconhecimento da prática de algum crime pelo representante do Ministério Público (abuso de autoridade, desobediência, prevaricação etc.). Nesse sentido, o an. 247 do Regimento Intemo do TJSP prevê a competência das câmaras criminais para “processar e julgar os habeas corpus impetrados contra atos de juizes de primeira instância, membros do Ministério Público e outras autoridades". A corrente minoritária, à qual nos filiamos, considera que a competência será do juiz de primeiro grau, porque o an. 650, § 1°, faz referência ao fato de a violência ou coação ser proveniente “de autoridade judiciária de igual ou superior jurisdição", e o promotor dejustiça não é autoridade jurisdicional, não havendo relação hierárquica entre Ministério Público e Poder Judiciário. Além disso, se o juiz pode analisar todos os demais atos do Ministério PúbUco, como oferecimento da denúncia, pedido de prisão preventiva etc., também deve ser reconhecida a sua competência para apreciar um pedido de habeas corpus em que o promotor dejustiça seja autoridade coatora. N a jurisprudência, pela competência dos Tribunais: STfi RE n° 141.209-7/SR No sentido de que a competência é do juiz de direito; TJSP, RJTJSP 146/327; TJSP, RT 584/337; extinto TACrimSP, RT 515/353. 71. Embora seja comum afirmar que a liminar concede uma medida cautelar, tendo por fun­ damento o poder geral de cautela (CPC, art. 798), cabe observar que todos os exemplos

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O CPP prevê a possibilidade de o juiz determinar a apresentação do paciente, se este estiver preso (art. 656, caput). Trata-se, porém, de medida facultativa, e que se encontra em total desuso, sendo substituída pelo pedido de informações à autoridade coatora (CPP, art. 662). Aliás, o próprio nome habeas corpus significa “tome o corpo”, pois originalmente era uma medida que se destinava a obter o comparecimento físico de alguém perante o Tribunal. O pedido de informações à autoridade coatora é facultativo (CPP, arts. 6 6 2 e 664), somente sendo previsto para o habeas corpus de competência originária dós tribunais. Por analogia, a mesma regra tem sido aplicada no caso de habeas corpüs impetrado perante o ju iz de primeiro grau. _ No habeas corpus, em regra, não há fase instrutória. Isto não significa, contudo, que não haja produção de prova. Obviamente, o pedido de habeas corpus deverá ser instruído com documentos. Também as informações da autoridade coatora costumam vir acompanhadas de documentos. Em suma, no procedimento não há fase instrutória, mas há instrução. E no julgamento do habeas corpus deverão ser analisadas as provas produzidas. Há, portanto, exame de prova: da prova pré-constituída que acompanha a petição inicial, da resposta ao pedido de informação e de qualquer outra prova do­ cumental juntada aos autos.®' Se o pedido tiver por finalidade discutir apenas uma questão jundica, por mais complexa que seja, mesmo assim poderá ser tratada em habeas corpus. Até mesmo para o trancamento da ação penal é possível o exame da prova, desde que seja para demonstrar a total ausência de prova, que caracteriza falta de justa causa. Trata-se, porém, de uma análise negativa das provas, tendo por objeto a inexistência de qualquer prova. Nào se poderá, contudo, diante da prova existente, fazer uma análise valorativa ou comparativa, discutindo se é ou não suficiente para a caracterização da justa causa. / que costumam ser dados como hipóteses de medidas cautelares obtidas liminarmente são de antecipação de tutela, parcial (por exemplo, suspender o indiciatnento, a tramitação do inquérito ou da ação penal, até o julgamento do habeas corpus visapdo ao trancamento da ação) ou total (por exemplo, ser colocado em liberdade enquanto fespera o julgamento em que se pleiteia a concessão de liberdade provisória). Justamente fjor isso é equivocado o indeferimento sob o fundamento dc que se trata de “liminar satisfativa”. Se mesmo para direitos patrimoniais é admitida a antecipação de tutela (CPC,|art. 273), com maior razão deve ser admitida para a tuteia da liberdade. No caso de indeferimento da liminar, nâo tem sido admitida a interposição de novo habeas corpus, perante Tribunal Superior, contra ato do relator, pelo indeferimento da liminar, uma vez que isto significaria supri­ mir o exame da legalidade pela turma, no Tribunal de origem. A Súmula n° 691 do STF estabelece que “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal superior, indefere a liminar". 72. No caso de habeas corpus preventivo, tem sido aceita a expediçàolde ofícios e a conversão do julgamento em diligência (extinto TACrimSP, RT 472/340) e; até mesmo, a oitiva de testemunhas arroladas na petição inicial (TJSP, RJTJSP 74/294:|TJSP, RT 456/395; TJSP, RJTJESP 18/353). I

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O CPP náo prevê a intervenção do Ministério Público no habeas corpus. Poste­ riormente, o Decreto-lei n° 552/1969 passou a disciplinar esta intervenção, apenas em segundo grau. O assistente de acusação não poderá intervir no habeas corpus contra ato profe­ rido na ação penal condenatória, uma vez que sua intervenção somente poderá ocorrer na própria açào penal condenatória (CPP, art. 268).™ O querelante, no caso de impetração decorrente de ação penal privada, pode intervir no habeas corpus que vise ao trancamento da ação penal, por ser titular da persecução penal.'® Após os autos irem com vista ao relator, este deverá colocar o habeas corpus em julgamento, na sessão seguinte, independentemente de prévia intimação ou publi­ cação da pauta, podendo, contudo, ser adiado o julgamento para a sessão seguinte (CPP. art. 664, caput). Na sessão dejulgamento, a decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desem­ pate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente (CPP, art. 664, parágrafo único).

16.8 Ônus da prova Quando o habeas corpus envolve controvérsia fática, sendo necessárias atividade probatória e, consequentemente, valoração de tal prova pelo tribunal, naturalmente poderá surgir o problema do ônus da prova enquanto regra dejulgamento.'* Comprovada a ilegalidade ou o constrangimento ilegal, inegave^ente a or­ dem deverá ser concedida. Por outro lado, demonstrada a legalidade dá prisão ou a ausência de constrangimento ilegal, denega-se o habeas corpus. Entretanto, o que fazer quando há dúvida, diante dos documentos produzidos, se a prisão ou ameaça de prisão é ilegal?" 73. Na jurisprudência: STF, RT 914/464, EDcl no HC n° 85.629/RS; STF, HC n» 84.022/CE; STJ, REsp n” 12.607/RJ; STJ, AgRg nos EDcl no RHC n° 505/SP; TJSP, RT 546/318; TJSP. RT 543/307; extinto TACrimSP, RT 557/350. Em sentido contrário: TJRJ, RT 533/393. 74. Na jurisprudência: STF, EDcl no HC n° 85.629/RS; STF HC n° 70.029/CE. Já se admitiu, inclusive, para o trancamento de inquérito policial que tenha por objeto crime a ser perse­ guido mediante ação privada (extinto TACrimSP, MS n° 438.728/4). Em sentido contrário; extinto TACrimSP, RT 500/321. 75. A Súmula n° 431 do STF estabelece que: “É nulo o julgamento de recurso criminal, na segunda instância, sem prévia intimação ou publicação da pauta, salvo em habeas corpus . 76. Para uma análise mais detalhada da questão, cf.: Badaró. Ônus da prova. .. p. 227-251. 77. Destaque-se que estão sendo analisadas apenas as situações em que o habeas corpus é utilizado com o efetivo remédio judicial para tutela da liberdade de locomoção. Ou seja, quando tem caráter liberatório, diante de uma privação já consumada à liberdade de ir e vir, ou diante de uma ameaça iminente a tal liberdade, em especial no caso de habeas corpus preventivo contra decisões judiciais que decretam prisões preventivas ou temporárias.

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Predomina, amplamente, o entendimento de que, havendo controvérsia fática, se os fatos não estiverem suficientemente provados, a ordem deverá ser negada.™ Em outras palavras, o ônus da prova no habeas corpus é do impetrante, que deverá demonstrar os fatos por ele alegados.™ A questão, contudo, exige que se analise a prisão cautelar, desde o seu momento inicial. Como já visto, no campo das medidas cautelares processuais penais restriti­ vas da liberdade, vigora o princípio da legalidade, ou seja, as prisões cautelares são apenas aquelas previstas em lei e nas hipóteses estritas que a lei autoriza, havendo qtn princípio de taxatividade das medidas cautelares pessoais. Assim, se o juiz verificar, do ponto de vista fático, a ocorrência da situação con­ creta prevista em lei, que autoriza a prisão cautelar, decretará a prisão. Por outro lado, se houver dúvida sobre a presença dos requisitos legais da prisão preventiva, não se prende. Para a decretação da prisão cautelar vale, pois, a regra in dubio pro libertate. Uma vez decretada a prisão cautelar, o habeas corpus funciona como um me­ canismo para verificação da legalidade da decisão que decretou a prisão, cabendo ao tribunal analisar se a prisão foi ou nâo regularmente decretada. O juiz já exam i­ nou anteriormente, e o tribunal deverá verificar novamente as provas, proferindo uma decisão fundamentada, em que explicite as razões de convencimento de que a hipótese legal autorizadora da prisão deve incidir diante da situação concreta demonstrada e comprovada. Ou seja, o juiz decreta a prisão e o tribunal revê se a prisão foi legalmente decretada. Diante disso, concluir que no habeas corpus cabe ao impetrante o ônus da prova da lesão ou ameaça ao direito de liberdade significaria afastar a necessidade de uma demonstração cabal da hipótese autorizadora da prisão. De nada adiantaria afirmar que a prisão somente pode ser decretada pelo juiz diante da certeza da ocorrência da hipótese legal que a autoriza, se se concluísse, na sequência, que, mesmo que tenha sido decretada a prisão ilegal - cuja ilegalidade poderia ser justam ente por não estar demonstrada a situação autorizadora da prisão - , no habeas corpus caberia ao impetrante o ônus da prova da ilegalidade e que, na dúvida, a ordem deveria ser 78. O STF já decidiu que: “O habeas corpus não comporta, em si, fase probatória. Os elem entos de convicção devem ser revelados com a impetração, podendo decorrer dos docum entos anexados pelo impetrante ou das informações prestadas pela autoridade apontada com o coatora. A inexistência de demonstração inequívoca dos fatos alegados obstaculiza a co n­ cessão da ordem, mormente quando das demais peças dos autos não exsurge a respectiva procedência" (HC n° 73.377/RJ, RT 734/623). 79. Nesse sentido decidiu o TJSP: “a opção do interessado pelo remédio heroico lhe acarreta, porém, o ônus de provar a liquidez e a certeza de seu direito" (RT 671/319). No mesmo sentido decidia o extinto TACrimSP; “é impossível a concessão da ordem de habeas cor­ pus, no qual se pleiteia o regime prisional aberto e o livramento condicional em favor do pafciqnte, na hipótese em que a prova pré-constituida e as informações prestadas não dão conta ^Iqna, como é de rigor nesta via, de que o condenado tem direito indiscutível a esses benefíciosNnão se vendo com a necessária nitidez, portanto, eventual constrangim ento ilegal a ser sanado pelo remédio heroico" (H C n° 375.988/0).

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denegada.®“ Ao se admitir tal situação, acabaria havendo uma “inversão do ônus da prova”. Isso porque, se em caso de dúvida fosse decretada a prisão e, uma vez interposto o habeas corpus, tivesse o impetrante que demonstrar, acima de qualquer dúvida, quea prisão era ilegal, o in dubio pro libertate teria se transformado em indubio contra libertate. A regra é a liberdade e a exceção, a prisão, que somente pode ocorrer nos casos expressamente previstos em lei. Não há prisão cautelar sem lei. Não há aplicação da lei que autoriza a prisão sem verificação judicial da hipótese legal. Não há convencimento judicial da necessidade da prisão se houver dúvida sobre a ocorrência da hipótese legal. Na dúvida, deve prevalecer a liberdade, seja quando for analisado o pedido de prisão, seja quando, em habeas corpus, se verificar a legalidade de uma decisão anterior que decretou uma prisão cautelar. Finalmente, é de afastar a equivocada conclusão de que, quanto aos aspectos fáticos, as informações da autoridade coatora gozam de presunção Juris tantum, de sua veracidade e exatidão.®' As informações têm natureza narrativa, consistindo na exposição declarativa feita pela autoridade coatora ao juiz ou tribunais que buscam informações sobre a prisão objeto do habeas corpus. Assim, poderão ou não tomar controverso um ponto afirmado na impetração. E, no caso de contradição entre o que afirma o impetrante e o que narra a autoridade coatora nas informações, as provas, em especial as documentais, é que indicarão aojulgador como decidir. Na dúvida, decide-se pela liberdade ou pela prisão? Afirmar que as informações da autoridade coatora gozam de presunçãojuiis tantum significaria concluir que, no habeas corpus, haveria uma regra dejulgamento, de caráter doutrinário, que implica uma especial distribuição do ônus da prova, no caso, privilegiando a posição da autoridade em detrimento da liberdade.®' 80. Depois de explicar que o direito de liberdade, assim como os demais direitosíundamentais, pressupõe a "mediação legislativa, isto é, a conformação legal dos respectivos procedimentos (ou processo) através dos quais os cidadãos possam dinamizar a efetivação desses direitos", Canotilho (O ónus da prova..., p. 173-174) indaga: “a pretexto de o direito probatório se considerar, por vezes, com o direito exclusivamente processual poderá o legislador processual estabelecer regras probatórias conducentes a uma distribuição injusta do ónus da prova? Quais os critérios jurídico-m ateriais que poderão vincular o legislador na definição do re­ gime jurídico da prova?". E, na sequência, responde o constitucionalista português: “Um limite material restritivo da liberdade de conformação da prova pelo legislador é constituído pela especial dignidade e importância atribuída a determinados bens constitucionais (vida, liberdade, integridade física). Isso justifica que. quando alguns direitos invioláveis estejam sujeitos a restrições e estas restrições pressuponham a existência de determinados factos acoplados a juízos de prognose, o ónus da prova pertçnce não a quem invoca o direito mas a quem cabe decretar as restrições. Assim, por exemplo, quando estiver em causa a aplicação de uma medida privativa de liberdade em caso de perigosidade crim inal baseada em grave anomalia psíquica, o ónus da prova pertence não ao titular do direito à liberdade, mas às entidades (judiciais ou outras) que solicitam a medida de segurança". 81. Na doutrina, defendendo o posicionamento aqui contestado, cf.: Frederico Marques, Ele­ mentos . . . , V. 4, p. 42 6 : Castelo Branco, Teoria e prática..., p. 165. 82. Uma vez mais merece ser citado Canotilho (O ónus da prova..., p. 175) quando adverte, “quando a medida da ju sta distribuição do ónus da prova é fundamental para a garantia de um direito, se devam evitar teorias abstractas e apriorlsticas (com o a já referida de Rosem-

Habeas corpus

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Correto, por outro lado, o posicionamento de que, na ausência ou demora injus­ tificada da autorii^de em prestar as informações, o habeas corpus deve ser concedido, por considerar verdadeiras as alegações da impetração.®* Se o ponto afirmado pelo im­ petrante, e que reafirma o direito fundamental de liberdade, não restou controvertido, não surgirá questão a ser resolvida pela reconstrução histórica dos fatos. E, assim, por mais este motivo, é de reafirmar o direito fundamental da liberdade.

N A T U R E Z A JU R ÍD IC A A ção constitucional - proteção do direito de liberdade de-locom oção

N O T ÍC IA S H IS T Ó R IC A S Habeas Corpus passou a ter status constitucional a partir da Constituição de 1891

T U T E tA JU R IS D IC IO N A L

C O N D IÇ Õ E S D A A Ç Ã O

Possibilidade jurídica do pedido: Ú n ico caso de impossibilidade: mérito da decretação de prisão disciplinar pela justiça militar - podem ser questionados os aspectos de legalidade

Interesse de agir: Q ualquer caso de coação ou ameaça de coação à liberdade de locom oção - privação da liberdade - pena restritiva de direitos conversão = dano potencial - regime mais gravoso do que fixado em sentença - medidas cautelares alternativas á prisão - quebra de sigilo

y V_____________

Legitimidade: - Ativa: qualquer pessoa (impetrante + paciente) - fbssiva: Autoridade coatora (pessoalmente - não o órgão a que pertence) - Particular (p. ex.: internação em hospital)

y V

berg) e se im ponbam soluções probatórias não aniquiladoras da própria concretização de direitos, liberdades e garantias” 83. Nesse sentido: Pontes de Miranda, História e prática..., p. 3 8 3 ; Frederico Marques, Elemen­ tos..., V . 4 , p. 4 2 6 ; Barcelos de Souza, Doutrina e prática..., p. 157; Castelo Branco, Teoria e prática..., p. 165.

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TUTELA JURISDICIONAL

C O M P ETÊ N C IA Regra - território/hierarquia - CPP, art. 650

^

Casos Especiais Coator

Com petência

fbrticulares/deiegado de polícia

)uiz de direito da comarca

lu iz de Direito

TI/TRF

|uiz de Direito (juizado especial)

Turma Recursal

Turma recursal

TI/TRF

TJ/TRF

ST|

Membro do Ministério Público

TI/TRF

P R O C E D IM EN TO

Petição inicial

Pedido de informações à autoridade coatora

Informações da autoridade coatora

\ Parecer da y Procuradoria / de fustiça

lulgamento

Capítulo 17 Revisão criminal 17.1 N oçõesgerais A revisão criminal se justifica em face da falibilidáde Kumana, que toma neces­ sária a existência de mecanismos que permitam a correção dos erros e a prevalência dajustiça. Os recursos representam uma forma de privilegiar a busca pela justiça e o aprimoramento das decisões judiciais. Todavia, em virtude da exigência de segurança jurídica, condição necessária para o desenvolvimento social, a partir de um determi­ nado momento nâo são mais admitidos os recursos, e o valor segurança - expresso na coisa julgada - passa a prevalecer sobre o valor justiça. No processo penal, uma condenação errônea que tenha transitado em julgado significa a perpetuação de uma gravíssima injustiça, que indevidamente priva um indivíduo de um de seus direitos mais relevantes; a liberdade. É necessário, portanto, que, mesmo após o trânsito emjulgado, haja algum mecanismo para fazer aflorar a justiça, corrigindo erros cuja perpetuação seria inaceitável. Embora incluída entre os recursos, prevalece o entendimento de que a revisão criminal tem natureza de ação autônoma de impugnação das decisões judiciais transitadas emjulgado.' A revisão criminal é instituto relativamente recente, tendo sido criado como o Código de Instrução Criminal francês de 1806. No Brasil, sua origem histórica é o Decreto n° 848, de 11/10/1890, que instituiu a revisão criminal perante o Supremo Tribunal Federal. Não há previsão de revisão pro societate, no sistema brasileiro. A compre­ ensão dessa natureza histórica do instituto, porém, exige uma análise da evolução constitucional brasileira. Na Constituição de 1891 e na Constituição de 1934, a revisão criminal era uma garantia individual com status constitucional, somente cabível em favor do condenado, competindo seu julgamento, sempre, ao STF, in­ dependentemente de a condenação ter sido proferida por juiz de primeiro grau ou Posteriormente, a revisão criminal passou a ter assento constitucional, sendo prevista na Constituição de 1891 (art. 81 ) e na Constituição de 1934 (art. 76, 3 ), som ente “em favor dos condenados". As Constituições posteriores não repetiram tal previsão. Na Constituição de 1988 a revisão criminal não foi prevista entre os direitos e garantias individuais, embora esteja mencionada na competência originária do ST F (ait. 1 0 2 ,1, j ) , do STJ (art. 105, l, e) e dos TRFs (art. 1 0 8 ,1 , b).

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por outro tribunal.' Na Constituição de 1937 nào bouve previsão do cabimento da revisão criminal. A Constituição de 1946 voltou a admitir a revisão constitucional em favor dos condenados, mas somente para os julgados proferidos pelo próprio STF.* De outro lado, não havia previsão constitucional da revisão criminal das de­ cisões proferidas por outros tribunais. As Constituições de 1967 e 1969 também mantiveram a previsão de que competia ao STF a revisão criminal das suas decisões sem explicitar, contudo, que a revisão caberia somente em favor dos condenados.® Finalmente, na Constituição de 1988, a revisão criminal não foi prevista entre os direitos e garantias individuais, estando mencionada apenas na competência ori­ ginária do STF, do STJ e dos TRFs, sempre em relação aos próprios julgados.’ Não há mais, porém, a previsão de que a revisão se dê “em benefício dos condenados”. A omissão, certamente, não se deu por mero esquecimento, principalmente, diante dos paradigmas constitucionais. Assim sendo, atualmente, nào há vedação expressa na Constituição para a revisão pro societade. Todavia, há um óbice ao legislador infraconstitucional para a criação de revisão criminal das sentenças absolutórias transitadas emjulgado; a CADH, em seu art. 8.4, prevê entre as garantias processuais mínimas, que “o acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos Jatos". Permitir uma revisão criminal que possa transformar uma absolvição passada em julgado em uma condenação penal é submeter o acusado a um novo processo pelos mesmos fatos. Nào se pode considerar a vedação do bis in idem como limitada à repetição de ações penais condenatórias idênticas. Uma ação condenatória que resulte em absolvição e uma revisão criminal por societate pelo mesmo fato violam a garantia do art. 8.4 da CADH. Em suma, além de ser um traço histórico do ordenamento brasileiro o cabimen­ to da revisão criminal apenas em favor do condenado, há também uma vedação, de status constitucional, pela integração da CR com a CADH - ou supralegal, conforme 2. O arL. 81 da ConsLíLuição de 1891 previa: “Os processos findos, em maLéria crime, poderão ser revistos a qualquer tempo, em benefício dos condenados, pelo Supremo Tribunal Federai, para reformar ou confirmar a sentença”. O art. 76, n. 3, da Constituição de 1934 previa que: “.À Corte Suprema compete: (...] 3) rever, em benefício dos condenados, nos casos e pela forma que a lei determinar, os processos findos em matéria crim inal, inclusive os militares e eleitorais, a requerimento do réu, do Ministério Público ou de qualquer pessoa". 3. O art. 101, IV previa que compelia ao STF rever, em benefício dos condenados, as suas decisões criminais, em processos findos. 4. O art. 114,1, m, previa que compete Supremo Tribunal Federal processar e julgar, origina­ riamente, “as revisões crim inais e as ações rescisórias de seus julgados”. Idêntica redação foi dada ao art. 119 ,1 , m, com a EC n° 1, de 1969. 5. O art. 102, l,j, prevê com petirão ST F processar ejulgar, originariamente “a revisão crimi­ nal e a ação rescisória de seus julgados”. Idêntica é a redação do art. 1 0 5 ,1, e, em relação à competência originária do STJ. Finalmente, o art. 108, 1, b, prevê que compete originanamente aos TRFs processar e julgar “as revisões crim inais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juizes federais da região”.

Revisão criminai

se considere a natureza dos tratados de direitos humanos revisão das senteriças absolutórias transitadas emjulgado.

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impedido a criação de

17.2 Condições da ação 77.2.7 Possibilidade jurídica do pedido A revisão criminal só é possível se houver sentença penal condenatória tran­ sitada em julgado. Embora o art. 621, caput, do CPP, se refira ao “processo findo”,- o que permitiria incluir as sentenças terminativas, a revisão criminal somente é possível no caso de sentença condenatória transitada em julgado. O art. 625, § 1“, exige que 0 requerimento seja instruído com “a certidão de haver passado a n Julgado a sentença condenatória". Por outro lado, é de se admitir a revisão da sentença “absolutória im própria”, que impóe medida de segurança ao acusado inimputável (CPP, art. 386, parágrafo único, III), visto que há em tal ato conteúdo sancionatório, diante da imposição de medida de segurança.® Também é cabível a revisão criminal se tiver ocorrido a extinção da punibilidade, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (por exemplo, anistia, graça ou indulto). Se a extinção da punibilidade ocorreu sem que ainda houvesse uma sentença penal condenatória transitada emjulgado (por exemplo, decadência, perdão do ofendido, prescrição retroativa etc.), a revisão nào é cabivel. É possível a utilização da revisão criminal contra as decisóes do jú ri. Mesmo diante da garantia constitucional da soberania dos veredictos, prevalece o entendi­ mento de que o Tribunal, ao julgar a revisão, deve exercer tanto o juízo rescindente (cassando a coisa julgada) quanto o juízo rescisório (alterando a decisão errônea, substituindo-a por outra). Em linhas gerais,® o principal fundamento dessa corrente doutrinária é que a soberania dos veredictos não é violada quando o Tribunal de justiça dá provimento a uma revisão criminal, para alterar uma decisão do Tribunal dojúri, e absolver quem foi condenado pelos jurados,® uma vez que, tanto a revisão criminal (que é garantia constitucional implícita) quanto a soberania dos veredictos são garantias da liberdade, que deverá prevalecer sempre.“ Em outras palavras, diante 6. Na jurisprudência: STJ, REsp n” 329.346/RS: TJSP, RT 524/353. 7. Para uma análise detalhada de todos os argumentos favoráveis e contrários a tal solução, cf.; N u cci,Jú ri..., p. 104-124. 8. Nesse sentido: Marrey et a l.. Teoria e p ra tica d o jú ri..., p. 105; Noronha, Curso..., p. 239. 9. Nesse sentido; Frederico Marques, A instituição..., p. 54; Tourinho Filho, P rocesso..., v. 4, p. 84; Mirabete, P rocesso p e n a i, p. 524; Mossim, Revisão..., p. 9 3 ; Grinover, Magalhães G o­ mes Filho; Scarance Fernandes, Recursos.... p. 2 4 1 ; Scarance Fernandes, Processo pen al..., p. 182-183. Na jurisprudência: TJSP, RT 708/302; extinto TACrimSP, RT 548/331; T JR J, RT 5947372. No mesmo sentido, mas com fundamento parcialm ente diverso, Maria Elisabeth Queijo (D a revisão crim in a l.., p. 195) afirma que a revisão crim inal é garantia da am pla de­ fesa, nâo podendo ser restringida em razão da garantia do acusado consistente na soberania

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de uma condenação transitada emjulgado, proferida por um júri soberano, admite-se que o tribunal dejustiça possa exercer ojudicium rescidens, cassando a coisa julgada e também o judicium rescisorium, substituindo a condenação por absolvição. Tal posição parte da premissa de que a soberania dos veredictos é uma garantia do acusado, que não pode ser usada em seu desfavor,™ impedido a revisão criminal. Há, contudo, corrente diversa, embora minoritária, que defende que o tribunal deveria se limitar a exercer o juízo rescindente, afastando a coisa julgada da condenação proferida pelo júri, e determinando que o acusado fosse submetido a novo julgamento pelo tribunal popular." A soberania dos veredictos nào é, apenas, uma garantia da li­ berdade, uma vantagem concedida aos acusados. Trata-se de uma garantia institucional do Tribunal d o jú ri." Náo há júri que não seja soberano. Soberano para decidir em um ou outro sentido: o júri é soberano ao absolver, mas também é soberano ao condenar. Quando o legislador constituinte desejou, fez a distinção estabelecendo uma garantia do tribunal popular com intuito de favorecero acusado. Logo, foiassegurada a plenitude de defesa, embora nào haja regra semelhante quanto à plenitude de acusação. No que toca à soberania dos veredictos, não se assegurou a soberania dos veredictos absolutórios. 0 característico do júri é a soberania dos veredictos, pro et contra o acusado. Justamente por isso, a segunda corrente, embora minoritária, é a mais correta. As hipóteses de cabimento da revisão criminal - que caracterizam sua causa de pedir - são previstas nos incisos do art. 621 do CPP. Contrariar o texto expresso da lei penal (CPP, art. 6 2 1 ,1) A expressão “lei penal” deve ser interpretada de forma ampla, incluindo qual­ quer tipo de ato normativo invocado como fundamento da condenação. Abrange, portanto, a Constituição (por exemplo, pela utilização de prova ilícita -^art. 5“, LVII), a lei complementar (por exemplo, CTN, nos crimes tributários), a lei ordinária ou delegada, e até mesmo a lei estrangeira aplicadaao processo. No caso de normas penais em branco, poderá haver violação da norma complementar (porexemplo, portaria da Anvisa, nos crimes da Lei n° 11.343/2006). Da mesma forma, será cabível a revisão criminal contra sentença que viole lei processual penal (por exemplo, violação do art. 384 do CPP). Aliás, a hipótese de provimento da revisão, para anular o processo (CPP,

dos veredictos. Tourinho Filho (Processo..., v. 4, p. 600) também admite que o Tribunal dê provimento à revisão e absolva o condenado sob o seguinte fundamento: “se a soberania dos veredictos é dogma constitucional, também o é, e em maior grau, a tutela do direito de liberdade, tendo este, a toda evidência, maior prevalência". 10. Tubenchlak, Tribunal do júri..., p. 162. 11. Nesse sentido; Romeiro, Elementos..., p. 54; Wohlers. Revisão criminal e soberania, p. 234; Nucci, Júri.,., p. 116. Badaró, Tribunal dojúri..., p. 374-375. 12. Nucci Qúri.. ., p. 972), depois de afirmar que “os princípios que regem a instituição do júri não possam ter validade somente para uma das partes", explica que “a soberania dos veredictos nâo pode ser interpretada como sendo uma garantia direta da liberdade do indivíduo, isto é, ela nào é serviçal da liberdade do homicida ... Assim sendo, não pode funcionar somente em favor do réu”.

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jrt. 626, caput), normalmente decorrerá de error in procedendo, pela inobservância de norma processual; Também baverá erro na aplicação da lei penal no caso de erro na subsunção dos [atos à lei penal, isto é, equivocada qualificação jurídica dos fatos (por exemplo, o acusado não era funcionário público e foi condenado por peculato em vez de apro­ priação indébita). A jurisprudência tem entendido que, se bouver divergência de interpretação, nâo cabe a revisão criminal, pois a contrariedade ao texto legal deve ser frontal, não ■ cabendo a revisão se foi dada interpretação razoável do dispositivo invocado.'* Contrariar a evidência dos autos (CPP, art. 6 2 1 ,1) É cabível a revisão criminal quando a condenação tiver contrariado a evidência dos autos, desde que essa contrariedade seja frontal. Tem prevalecido o entendimento de que, diante da exigência de que a “evidência” dos autos tenba sido contrariada, se a decisão se apoiar em qualquer prova, mesmo que inferior ou mais fraca que as demais, deve-se negar provimento à revisão criminal.'® No entanto, se a análise global do conjunto probatório não for suficiente para sustentar a decisão condenatória transitada emjulgado, a revisão será cabível por outro fundamento; se a análise do conjunto probatório valorado na sentença condenatória permitir a conclusão de que a prova não era segura a ponto de afastar a “dúvida razoável” da inocência, a revisão criminal seria cabível por ter sido violado texto expresso de lei penal (art. 6 2 1 ,1, primeira parte), no caso, o art. 5°, LVII, da CR, e o art. 386, VII, do CPP. Se nào bavia prova suficiente, e mesmo assim o acusado foi condenado, o dispositivo constitucional e a respectiva regra que asseguram o in dubio pro reo foram violados. '* 13. Nesse sentido: STJ, REsp n° 739.256/SP, REsp n° 706.042/RS. Por outro lado, porém, embora se tratasse de ação rescisória, mas em raciocmio igualmente válido pata a revisão criminal, o STF já entendeu que cabe ação rescisória, quando a sentença transitada em julgado tenba violado interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal, mesmo que a interpre­ tação seja posterior ao julgado (STF, EDcl no RE n° 328.812/AM). 14. Grinover, Magalbães Gomes Filbo e Scarance Fernandes (Recursos..., p. 252) entendem que não basta qualquer prova isolada a sustentar a sentença condenatória para que a revisão não seja cabivel. 13, Em sentido substancialmente coincidente, mas com fundamento diverso, decidiu o STF; “O polêmico fraseado “contra a evidência dos autos” (inciso 1 do artigo 621 do CPP) é de *' ser interpretado à luz do conteúdo e alcance do Direito Subjetivo à presunção de não cul­ pabilidade, serviente que é (tal direito) dos protovalores constitucionais da liberdade e da justiça real. São contra a evidência dos autos tanto o julgamento condenatório que ignora a prova cabal de inocência quanto o que se louva em provas insuficientes ou imprecisas ou contraditórias para atestar a culpabilidade do sujeito que se acbe no polo passivo da relação processual penal. Tal interpretação homenageia a Constituição, com o que se exalta o valor da liberdade e se faz justiça material, ou, pelo menos, não se perpetra a injustiça de condenar alguém em cima de provas que tenham na esqualidez o seu real traço distintivo" (HC n° 92.435/SP). O entendimento é correto. Todavia, acredita-se que, na hipótese, o fundamento deveria ser a primeira parte do inciso l do art. 621, e não a segunda parte de tal dispositivo, que trata da “decisão contrária à evidência dos autos”.

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Depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos (CPP art 621,11) ’ Cabe a revisão criminal quando a condenação se baseou em prova falsa. A falsidade poderá ser apurada, previamente, em processo penal (por exemplo’ condenação por falso testemunho ou falsa perícia), ou poderá ser demonstrada ná própria revisão criminal. Também poderá ser comprovada por sentença transitada emjulgado proferida em açào declaratória da falsidade documental no âmbito civi) (CPC, art. 4“, II). Deve haver nexo da causalidade direto entre a prova falsa e a condenação. Isio é, sem a prova falsa, o acusado não teria sido condenado, mesmo diante das demais provas existentes nos autos. Se, mesmo com a exclusão da prova falsa, houver outros elementos de prova suficientes para sustentarem a decisão condenatória, deverá set negado provimento à revisão. Caso a condenação tenha se baseado em prova ilícita, caberá a revisão, mas seij fundamento será a violaçào de dispositivo de lei (art. 6 2 1 ,1), no caso, o art. 5“, LVI, da Constituição e o art. 157, caput, do CPP. Após a sentença, se descobrirem novas provas da inocência do condenadc (CPP, art. 621,111) Por fim, a revisão criminal é cabivel quando surgirem novas provas da inocência do acusado. Esta hipótese alargou o conceito de revisão criminal, que historicamente era cabível somente no caso dejulgamento defeituoso, pois, de acordo com as provas existentes nos autos, a sentença condenatória foi correta, não merqcendo crítica Somente diante de uma prova nova, que será somada às anteriores, é qiíe se percebera que uma decisão diversa seria a mais correta. A prova “nova” não precisa ser posterior ao processo. É possível a revisãc criminal com base em elemento probatório que já existia anteriormente, mas era desconhecido da parte (por exemplo, uma carta em que terceira pessoa confessava c crime pelo qual outrem foi condenado), ou que por motivo estranho à sua voniad* não pôde ser utilizado (por exemplo, era um documento acobertado por segredo), f possível, também, que o documento tenha se tornado conhecido durante a tramitaçãc do processo, mas em fase procedimental em que nâo mais teria influência na causí (por exemplo, no prazo para interposição dos recursos especial e extraordinário, en que nào se discute questão de fato). Cabivel ainda a revisão em relação às provas que já estavam nos autos quando dc julgamento originário, mas que foram ignoradas pelo julgador.'® Ou seja, do ponto di vista da cogniçãojudicial e de sua influência na causa, trata-se de “documento novo" pois ainda náo foi valorado nem exerceu influência no convencimento judicial. 16. Nesse sentido: Tomaghi, Curso.... v. 2, p. 367: Médice, Revisão..., p. 163. N a doutrina estran geira, Manzini, Tratatto..., v. 4, p. 882. Na jurisprudência: extinto TACrimSP, RT 728/543.

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Por fim, a “prova nova” pode se referir, também, a descoberta científica que retire toda a base da condenação." Por exemplo, algum tempo depois de alguém ter sido condenado por homicídio mediante envenenamento, a ciência demonstra que tal substância ministrada à vítima é inofensiva para a saúde humana. De outro lado, não é necessário que se trate de prova sobre fato já alegado pelo acusado em sua defesa ao longo do processo. A revisão criminal pode ter por fun­ damento prova nova, relativa a fato novo, ainda que não tenha sido anteriormente invocado pela defesa (por exemplo, no processo o acusado negou a autoria e surge prova de que o crime ocorreu em legítima defesa). A prova nova baseada em fonte oral (depoimento de testemunha ou oitiva da vitima) deverá ser produzida mediante justificação (CPP, art. 3“, c.c. CPC, arts. 861 eseguintes),™ em contraditório, perante um juiz de primeiro grau de jurisdição. Não basta simples declaração escrita, mesmo que mediante escritura pública, pois é da essência do testemunho e das demais fontes orais sua produção em contraditório, na presença do juiz e das partes, com possibilidade de perguntas e reperguntas.™ Para a procedência da revisão, a prova nova deve ser decisiva, no sentido de alterar o convencimento anterior. Se o novo documento gerar dúvida em face do con­ junto probatório existente, a revisão, embora conhecida, será julgada improcedente. Tal posicionamento, prevalecente na jurisprudência, nâo deixa de consistir em uma substancial injustiça e em iniquidade injustificável. No caso de uma sentença condena­ tória, o acusado poderá apelar e, se convencer o tribunal de que a prova é dúbia, deverá ser provida a apelação com sua absolvição. No entanto, se em vez de apelar, deixar a sentença transitar emjulgado, e logo após interpuser revisão criminal, a demonstração da mesma dúvida não levará ao provimento da revisão, mas ao seu improvimento, segundo o posicionamento prevalecente. Substancialmente, porém, no primeiro caso, aplicou-se o in dubio pro reo, e no segundo a mesma dúvida foi resolvida contra reum.

17.2.2 Interesse de agir A existência de coisa julgada a ser rescindida gera a necessidade da revisão criminal. Náo há outro meio para cassar a coisa julgada, senão mediante decisão do Poder Judiciário. Contrariamente, a revisão não cabe antes do trânsito em julgado, devendo a petição inicial ser instruída com certidão de trânsito emjulgado da sentença condenatória (CPP, art. 625, § 1“). O art. 621, caput, refere-se a “processos findos”. 17. Manzini, Tratatto..., v. 4, p. 879. 18. No Novo CPC não existirá mais o procedimento de jurisdição voluntária das notificações, assim, deverã ser seguido, para o procedimento de produção antecipada de prova, previsto nos artigos 378 a 380, cabível, entre outras hipóteses, quando “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação” (art. 378, caput, inc. III). 19. O STJ não admitiu revisão com base em declaração da vítima prestada em Cartório (HC n° 12.094/SP), nem com fundamento em escritura declaratória de confissão extrajudicial de terceiro (HC n“ 14.883/RJ).

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Em tese, seria de reconhecer o interesse do acusado em, mesmo após o trânsito emjulgado, obter a mudança do fundamento da absolvição; por exemplo, em face dos efeitos civis da condenação penal. Todavia, embora seja, em tese, configurável o inte­ resse de agir, o pedido de revisão será juridicamente impossível, pois este pressupõe uma sentença condenatória transitada emjulgado.™

17.2.3 Legitimidade No tocante aos legitimados ativos, a revisão criminal poderá ser interposta pelo próprio condenado, por procurador ou, no caso de morte do condenado, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (CPP, art. 623). Também deve ser reconhecida a legitimidade do companheiro ou companheira do condenado, ante o reconhecimento constitucional da entidade familiar (CR, art. 226, § 3“). Há divergência sobre a legitimidade do Ministério Público, prevalecendo o posicionamento que nega tal possibilidade, por não haver expressa previsão legal." O legitimado passivo da revisão é o Estado, representado pelo Ministério Públi­ co, cujo parecer tem a natureza de verdadeira contestação. Isso não impede, porém, que o Ministério Público concorde com o pedido da revisão. Nos casos em que há cumulaçào do pedido revisional com o pedido de indenização pelo erro judiciário, o Ministério Público será substituto processual da Fazenda Pública (CPP, art. 630). O ofendido, que pode ser diretamente atingido pela decisão, inclusive perdendo o título executivo judicial, nào é legitimado para intervir na revisão, embora devesse sê-lo.

t 17.3 Pressupostos processuais Não é necessária capacidade postulatória para a propositura da revisão criminal. O art. 623 do CPP, expressamente, prevê a possibilidade de o condenado interporá revisão criminal, independentemente de advogado. Todavia, diante do art. 133 da CR, que considera o advogado indispensável à administração da justiça, bem como do art. 1° da Lei n° 8.906/1994, a questão passou a suscitar controvérsia. A melhor forma de conciliar os interesses em jogo é permitir a revisão pelo próprio condenado, nomeando-se, em seguida, advogado para arrazoar o pedido." 20. Na jurisprudência, nào conhecendo da revisão criminal; STJ, REsp n" 329.346/RS; extinto TACrimSP, Revn” 119.328. 21. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 4, p, 597; Mirabete, Processo Penal. p. 733. Na jurisprudência: STF, RHC n» 80.796/ SP, RT 795/524; extinto TAMG, RT 694/375. Em sentido diverso, para Grinover, Magalháes Gomes Filho e Scarance Fernandes (Recursos..., p. 245), a legitimidade do Ministério Público decorre da regra geral de legitimação para os recursos, prevista no art. 577, caput. do CPR 22. O STJ tem admitido a revisão interposta pelo condenado: HC n° 13.634/SR REsp n° 112.421/ SP. Em sentido contrário. Castelo Branco (Teoria e prática..., p. 137) entende que somente o advogado pode interpor revisão criminal.

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_Nào há prazo para a propositura da revisão criminal, que pode ser intentada a qualquer tempoj até mesmo após o cumprimento da pena ou a morte do condenado (CPP, art. 622, caput). Quanto à competência para o julgamento da revisão, o art. 624 do CPP atribui ao STF o julgamento da revisão de suas condenações, e ao TFR, Tribunais dejustiça e Tribunais de Alçada, a revisão de suas condenações. Caso, contudo, o STF não tenba conhecido o recurso extraordinário, ou o STJ não tenha conhecido o recurso especial, a competência para a revisão continuará a ser do TJ ou do TRF, conforme o caso.™ Atualmente, a competência do STF está prevista no art. 102, í, j , da CR. Há támbém previsão de competência originária para a revisão de seus julgados para o STJ (CR, art. 103,1, e) e para os TRFs (CR, art. 1 0 8 ,1, b)7 Embora o Código Eleitoral silencie sobre a revisão criminal, como há previsão de aplicação subsidiária do CPP (CE, art. 364), caberá ao TRE a revisão dos seus julgados e das sentenças condenatórias dos juizes eleitorais. O TSE terá competência para a revisão dos seus julgados.

17.4 Procedimento Embora o art. 625, caput, do CPP se refira ao “requerimento”, o ato inicial da revisão criminal, mais do que mero requerimento, tem natureza de verdadeira petição inicial, que deve ser instruída com a certidão do trânsito emjulgado (CPP, art. 625, § 1°), sob pena de indeferimento liminar pelo relator (CPP, art. 623, § 3°). Diferentemente do habeas corpus, para a propositura da revisão crim inal é necessário que o advogado apresente o instrumento de procuração, prevalecendo 0 entendimento de que nào são necessários poderes especiais para a propositura da revisão.™ O relator pode determinar o apensamento dos autos originais ao pedido de revisão (CPP, art. 623, § 2°). Tal medida é necessária, principalmente, no caso de surgimen­ to de novas provas da inocência do acusado, ou na hipótese de a condenação ter se baseado em provas falsas, pois em ambas as situações será necessário um cotejo do elemento de prova que fundamenta a revisão criminal com as provas anteriormente produzidas no processo. O relator poderá indeferir, liminarmente, a revisão (CPP, art. 623, § 3°). Contra tal indeferimento cabe recurso inominado para o órgão competente para julgar a revisão (CPP, art. 623, §3°). O CPP não prevê a possibilidade de concessão de liminar no procedimento da revisão criminal. Normalmente, não teria cabimento a concessão de liminar, pois é difícil uma situação em que se possa demonstrar o fumus boni iuris. Entre a afirmação 23. Pacelli de Oliveira, Curso..., p. 752. 24. Na jurisprudência: STF, RT 567/401; TJSC, RT 624/348. Em sentido contrário, pela neces­ sidade de poderes especiais: TJSP, RT 674/298.

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contida na petição inicial da revisão criminal e a sentença penal condenatória transi­ tada emjulgado, em princípio, deve se dar prevalência à última. Excepcionalmente contudo, será cabível o pedido de liminar, se presentes ofumus boni iuris e o periculutn in mora, aplicando-se, por analogia, as disposições do CPC sobre o poder geral de cautela (CPC, art. 798), ou mesmo a antecipação de tutela (CPC, art. 273). O pedido de revisão criminal será distribuído a um relator e revisor, devendo funcionar com relator desembargador ou ministro “que nào tenha pronunciado decisão em qualquer fase do processo”. " Tal regra se aplica, também, ao juiz que proferiu a sentença e, depois, foi promovido para o tribunal. Se o pedido de revisão não for indeferido liminarmente pelo relator, será abena vista ao procurador-geral para parecer, no prazo de dez dias. Como já exposto, mais do que simples parecer, trata-se de verdadeira resposta à ação, sendo o Ministério Público o único legitimado passivo, inclusive no caso de pedido de indenização, em que atuará como substituto processual da Fazenda Pública. Após o parecer, os autos seguem para o relator, por dez dias, e depois para o revisor, pelo mesmo prazo de dez dias (CPP, art. 625, § 5°). Na sessão dejulgamento é possível a realização de sustentação oral. Contra o acórdão proferido no julgamento da revisão criminal nào cabe apelação - por se tratar de ação de competência originária do Tribunal - nem embargos infrin­ gentes -cabíveis contraas decisões não unânimes, contrárias ao acusado, proferidas em grau de apelação ou recurso em sentido estrito. Por outro lado, são cabíveis embargos de declaração, recurso especial e extraordinário. Os embargos de declaração sempre sâo cabíveis, mesmo nos casos em que nâo se admite recurso. Já os recu i^ s especial e extraordinário são cabíveis nos casos de decisão de única instância dois tribunais, por exemplo, da revisão criminal.

17.5 Ônus da prova Tem prevalecido o entendimento de que, na revisão criminal, há uma inversão do õnus da prova, aplicando-se o in dubio pro societate. Afirma-se que, diante do trânsito emjulgado da condenação penal, não mais se aplica a garantia do estado de inocência, assegurada até “o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5°, LVII). Diversamente, Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes enten­ dem que não há inversão do õnus da prova, mas apenas aplicação da regra do ônus da prova, segundo a qual incumbe ao autor o ônus dà prova do fato constitutivo do seu direito (CPC, art. 333,1) ou, como previsto no campo penal, que “o õnus daprova incumbe a quem alega" (CPP, art. 1 5 6 )." 25. O STF decidiu, recentemente, que não há nulidade, porém, no caso em que o “desembar­ gador que atuou no julgamento da apelação foi designado relator para o acórdão da revisão criminal, uma vez que proferiu o primeiro' voto vencedor" (HC n° 100.243/BA - RT 904/529). 26. Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 259.

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A divergência, contudo, parece ser terminológica. Afirmar que incumbe ao autor 0 ônus da prova do fato constitutivo do seu direito (CPC, art. 3 3 3 ,1) - que ele é ino­ cente - equivale a dizer que, se o Tribunal estiver na dúvida sobre a ocorrência ou nâo da causa de pedir, deverá negar provimento à revisão criminal, mantendo a condena­ ção. Ou seja, a dúvida será resolvida contra o acusado que requer a revisão criminal.

17.6 Efeitos da sentença absolutória Provida a revisão criminal e absolvido o seu autor, são restabelecidos todos os, direitos perdidos em virtude da condenação (CPP, art. 627). O provimento da revisão, com a consequente absolvição do ccffldenado, também restabelece outros direitos perdidos em razão dos efeitos penais secundários e efeitos extrapenais da condenação. Por exemplo, deverá haver a devolução da fiança perdida; haverá recondução à função püblica perdida; o pai voltará ao exercício do pátrio poder; 0 deserdado passará a ter direito de receber a herança perdida; o donatário deverá ter restituída a doação anteriormente perdida etc. O art. 580 do CPP, embora esteja inserido na parte geral dos recursos e tenha por finalidade disciplinar o litisconsórcio unitário na açâo penal condenatória (prevendo a extensão dos efeitos da decisão ao corréu que não recorreu), também terá aplicação em sede de revisão criminal.'® Assim, interposta a revisão criminal por um dos conde­ nados, desde que seu provimento se dê por fundamento comum aos demais acusados, a decisão objeto da revisão se estenderá a estes.'® 27. O fundamento, contudo, será diverso daquele para aplicação do art. 580 do CPP, no caso de recurso. Quando se trata de recurso e, portanto, antes da formação da coisa julgada, referida regra significa que haverá uma extensão da decisão favorável proferida no julga­ mento de um dos corréus, ao outro acusado que nâo tenha recorrido. Consequentemente, a interposição do recurso, por um dos litisconsortes, com fundamento comum, impede a formação da coisa julgada, inclusive, em relação ao que não recorreu. Já no caso de revisão criminal, que pressupõe a existência de coisa julgada condenatória, a aplicação da regra tem outra consequência e um fundamento diverso. Não se trata de recurso de um a impedir a formação da coisa Julgada em relação ao corréu que não recorreu. Haverá, na extensão da decisão favorável proferida em revisão criminal, a extensão da decisão para além das partes - o revisionado e o Ministério Pühlico - fazendo com que a decisão atinja terceiros - no caso, o condenado que foi corréu no processo. Trata-se, pois de uma decisão com eficãcia ultra partes, havendo uma superação dos limites subjetivos da coisa julgada que se forma no acórdão da revisão criminal. A razão de ser dessa quebra da ortodoxia processual é sim­ ples, sendo o fundamento comum, e sendo possível propor a revisão criminal a qualquer tempo, nada impediria que o corréu, que não tivesse interposto a revisão criminal, diante do êxito na revisão criminal alheia, formulasse, posteriormente, pleito idêntico e obtivesse o mesmo benefício. Neste caso, contudo, poderia permanecer preso, ou mesmo com a carga infamante, de uma condenação injusta, por um tempo maior, que poderia ser facilmente evitado. Assim, a extensão da decisão proferida na revisão criminal, com fundamento no art. 580 do CPP, atende a um propósito de buscar, de forma mais célere, e com economia processual, reparar um erro que não pode se perpetuar por formalismo. 28. Na jurisprudência: STF, HC n“ 75.039/SP; STJ, HC to 16.863/SP HC n° 5 .8 6 l/RS; TJSP, RT 190/159; extinto TACrimSP, Rev to 113.256. Por outro lado, o STF já negou a extensão, em

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17.7 Coisa julgada O acórdão da revisão criminal também faz coisa julgada e, diante da eficácia negativa desta, não será possível a repetição de duas revisões criminais idênticas Todavia, para que haja identidade de processos é necessário que ambas as revisões tenham as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir. Se houver um novo fundamento (por exemplo, primeira revisão, por ter a decisão violado a lei, e segunda revisão, por ter a decisão se fundado em prova falsa), não haverá identidade de processo, e a primeira coisa julgada da primeira revisão não será óbice para a pro­ positura da segunda revisão. Mesmo no caso de identidade de fundamentos, se a revisão se basear em hipótese concreta diversa, a coisa julgada da primeira revisão criminal não impedirá a proposi­ tura da segunda revisão, pois, sendo diversas as causas de pedir remotas, não haverá identidade de processos. Por exemplo, se ambas as revisões se baseavam em prova nova da inocência, mas no primeiro caso tal prova era uma testemunha presencial que negou o reconhecimento pessoal do condenado e, no segundo caso, a prova nova era uma testemunha que confirmava o álibi, os processos seráo diversos.™

17.8 Indenização pelo erro judiciário A responsabilidade objetiva do Estado, pelo erro judiciário, encontra fundamento constitucional no art. 5°, LXXV, que prevê, entre os direitos e garantias individuais, o direito à indenização pelo erro judiciário. O CPP prevê duas exceções em que não é cabível a indenização pelo erro judiciário. A exceção prevista na letra b do § 2° do art. 630, referente à bipótese de ação penal privada, não mais subsiste. Primeiro, porque o inciso LXXV do art. 5° da CR, ao prever a indenização pelo erro judiciário, não faz qualquer ressalva quanto à natureza da açào. Ao mais, embora a ação seja privada e tenha sido movida pelo particular, o responsável pela condenação injusta ou ilegal foi o próprio Estado.™ Dependendo das circunstâncias, o Estado terá ação regressiva contra o querelante. sede de revisão criminal, quando o benefício obtido por um dos condenados, em revisão criminal, já bavia sido expressamente negado, ao outro corréu, por decisão de instância superior, “isto porque a instância inferior não pode estender a mercè que concede a conéu qu ejá a teve especificamente negada pela instância superior” (RT 549/341). 29. O mesmo fenômeno ocorre nas demais hipóteses de cabimento. No caso de revisáo por ter a condenação se baseado em prova falsa (por exemplo, na primeira revisáo ale­ gou-se a falsidade do exame de corpo de delito), não baverá óbice para uma segunda revisão em que se alegue a falsidade de outra prova (por exemplo, um testemunho). Igualmente, no caso de a decisão contrariar texto de lei penal, se os artigos invocados na primeira e na segunda revisões forem diversos, nâo há que se cogitar do óbice da coisa julgada. 30. A doutrina manifesta-se pela náo recepção do referido dispositivo: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, Recursos..., p. 266; Tourinho Filho, Processo v. 4, p. 707; Mirabete, Processo Penal. p. 746; Pacelli de Oliveira, Curso..., p. 753.

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Já a hipótese prevista na letra ado § 2° do art. 630 trata do erro decorrente de falta imputável ao prqprio condenado. Cuida-se de dispositivo que decorre do princípio da causalidade, com a consequência de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza." Mesmo assim, a vedação somente subsiste no caso de culpa ou dolo ex­ clusivo do condenado, com excludente da responsabilidade objetiva do Estado. Por exemplo, no caso em que um pai confessa, falsamente, prática do crime para inocentar 0 seu filho, verdadeiro culpado. Por outro lado, no caso em que haja concorrência de culpas, cabendo ao Estado parte da responsabilidade pelo erro, a indenização será devida. Assim, por exemplo, se a confissão foi obtida mediante coação, será devida a indenização. Reconhecido o direito à indenização, o Tribunal se limitará a estabelecer o an debeatur, cabendo ao condenado promover a liquidação, no âmbito civil (CPP, art. 630, § 1“). No caso de condenação perante aju stiça Federal ou do Distrito Federal, responderá a União; se a condenação tiver sido proferida pela Justiça Estadual, res­ ponderá o respectivo Estado.

N O Ç Õ E S G ER A IS A ção autônoma - impugnação - decisões judiciais contraditórias transitadas em julgado

C O N D IÇ Õ E S D A A Ç Ã O

31. Diverso é o posicionamento de Damásio E. dejesus (Código..., p. 511), no sentido de que nenhuma das duas exceções foi recepcionada pela nova ordem constitucional, ante a au­ sência de ressalva no inciso LXXV do art. 5° da CR. Em sentido oposto, para Greco Filho (Manual. .. p. 431), ambas as hipóteses continuam em vigor.

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PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS Não há prazo para propositura (pode ocorrer após a morte do condenado)

Não é necessária capacidade postulatória

Competência para julgamento: CPP, art. 624

P R O C E D IM EN TO

(

Artigo 625, CPP

EFEITO S D A SE N T EN Ç A A B S O L U T Ó R IA Z Restabelecimento de todos os direitos perdidos em razão da condenação e dos efeitos secundários e extra-penais desta

A revisão interposta por um dos réus aproveita aos demais, desde que o provimento se dê por fundamento comum

IN D E N IZ A Ç Ã O PELO ER RO lU D IC IÃ R IO

Capítulo 18 Medidas cautelares 18.1 Teoria geral da tutela cautelar processual penal 18.7.7 Espécies de medidas cautelares Do ponto de vista doutrinário, de há muito se reconhece a autonomia do processo cautelar como um tertius genus, contraposto ao processo de cognição e ao de execução.' A existência de uma tutela cautelar, ao lado da tutela de conhecimento e da tu­ tela executiva, nâo é exclusividade do processo civil.' No processo penal também há tutela cautelar. No CPP, embora sem um tratamento sistemático, há medidas cautelares pessoais e medidas cautelares patrimoniais ou reais. As medidas cautelares pessoais são: (1) prisão preventiva (arts. 3 1 2 a 3 1 5 )e medidas cautelares alternativas à prisão (arts. 319 e 320). A prisão em flagrante, também disciplinada no CPP, com a reforma da Lei n° 12.403/2011, passou a ser uma pré-cautela, um estágio inicial da prisão preventiva ou de medidas cautelares alternativas à prisão não podendo ser considerada uma medida cautelar autônoma. Por outro lado, as medidas cautelares patrimoniais previstas no CPP são: (1) sequestro de bens imóveis (CPP, arts. 125 a 131), sequestro de bens mó1. Para Liebman (Unità dei procedimento..., p. 110) o que caracteriza o processo cautelar é a sua função instrumental, auxiliar, em face de um processo principal, em relação ao qual visa garantir a proficuidade do resultado. Também Camelutti (Diritto e processo..., p. 355) refere-se ao processo cautelar como um tertius genus, e ressalta que se trata de processo e nâo de mero procedimento, o que destaca sua autonomia em relação ao processo principal. Anteriormente, Calamandrei (Introduzione alio..., p. 164), embora negando que o processo cautelar tivesse característica e estrutura autônoma, já reconhecia a autonomia da função cautelar e do prowedim ento cautelare em relação às tutelas de conhecimento e de execução. Na doutrina nacional, cf., por todos, Lacerda, Comentdrios..., v. 8 , 1 .1, p. 4. 2. Barbosa Moreira (O processo cautelar..., p. 270) afirma ser equivocada a classificação da tutela cautelar como um tertius genus, ao lado da tutela cognitiva e da executiva. Diz o pro­ cessualista: “Creio que ela mais verdadeiramente se contrapõe ao processo de conhecimento e ao processo de execução considerados em conjunto, jã que um e outro têm natureza satisfativa, visando portanto a tutela jurisdicional imediata, ao passo que o processo cautelar se distingue precisamente por constituir uma tutela mediata, uma tutela de segundo grau". E Bedaque (Tutela cautelar..., p. 183), partindo das mesmas premissas, afirma que “daí resulta que a classificação tríplice (cognição, execução e cautelar) nâo é homogênea”, e conclui, “por isso, parece mais adequado considerá-la como modalidade de tutela auxiliar das demais, destinadas sempre a garantir, mediante medidas provisórias, o resultado definitivo”.

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veis (CPP, art. 132), especialização e registro da hipoteca legal (CPP, arts. 134 e 135) arresto de bens imóveis prévio ao registro e especialização da hipoteca legal (CPP, art 136) e, por fim, arresto subsidiário de bens móveis (CPP, art. 137).

18.1.2 Características das tutelas cautelares Dentre as características da tutela cautelar, a doutrina tem destacado a ins­ trumentalidade hipotética, a acessoriedade, a preventividade, a sumariedade, a provisoriedade. Há, porém, outras características que nem sempre são lembradas pela doutri­ na, mas que são fundamentais para a compreensão da tutela cautelar e, em especial, para a análise dos limites de constrição a ser validamente imposta por uma medida cautelar de natureza patrimonial. A referibilidade e a proporcionalidade são também características da tutela cautelar.

18.1.2.1 Instrumentalidade hipotética !

Muitas vezes no curso do processo o fator tempo -o u melhor, a demora para quese obtenha o provimento final, faz com que seja necessária alguma medida para assegurai a utilidade e eficácia desse futuro provimento, quando vier a ser proferido. Assim, as medidas cautelares surgem como um instrumento que assegura o provimento final. No entanto, como normalmente a instrução ainda não está concluída, não se pode decidir com base em um juízo fundado em cognição profunda e exauriente. Decide-se, então, não com a certeza, isto é, concluindo pela existência ou não do delito, mas de acordo com um juízo de probabilidade, decorrente do fumus cominisfi delicti, deque ao final será aplicado o direito de punir, por meio de uma sentença penal condenatória; Em suma, a condenação é a hipótese mais provável. Nesse sentido que se fala de uma instrumentalidade hipotética. Ou seja, a medida cautelar será um instmmento para assegurar o resultado de uma hipotética condenação. Por outro lado, há autores que preferem se referir a uma dupla instmmentalidade como característica da medida cautelar. O processo não é um fim em si mesm.o mas um instrumento para a realização do direito material. Esse posicionamento, correto no campo processual civil, é reforçado no campo penal. Sendo o direito penal um instrumento de coação indireta, e náo havendo a possibilidade de impo­ sição da sanção penal, senão por meio de processo, resta potencializado o carátei instrumental do processo penal em relação ao direito penal.' Trata-se, pois, de uma instrumentalidade necessária. A essa premissa, de que o processo é um instrumento do direito material, deve ser somada uma segunda, de que medida cautelar é um instrumento para assegurara 3. Obviamente, tais observações não se aplicara no caso do charaado processo penai consen­ sual, em que é possivel a imposição de sanção penal de multa ou restritiva de direito, por simples consenso e sem um prévio devido processo legal.

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utilidade e a eficácia do resultado final do processo. Há, portanto, uma dupla instrutnentalidade ou instrumentalidade em segundo grau.®

18.1.2.2 Acessoriedade A acessoriedade, enquanto característica da tutela cautelar, está ligada à noção de que o provimento cautelar nâo é um fim em si mesmo, não tendo aptidão de so­ lucionar e satisfazer a situação de direito material carecedora de tutela jurisdicional. Para tanto, haverá outro provimento, dito principal, que irá prestar, ao finál, a tutelajurisdicional de forma definitiva. Cabe observar que no processo penal brasileiro não é correto falar em processo cautelar e processo principalrHáemedidas cautelares - e não processos cautelares autônomos - que são assessórias do processo principal, no caso, o processo penal em que se busca uma tutela condenatória. De qualquer forma, mesmo que nâo haja um processo cautelar autônomo, isso nâo impede que se considere a medida cautelar como uma medida assessória, porque não se trata de algo bastante em si, mas um mecanismo de um provimento final, no qual definitivamente será aplicada a pena, ou declarada a inocência do acusado. 18.1.2.3 Preventividade A tutela cautelar é preventiva, isto é, sua finalidade é prevenir a ocorrência de um dano irreparável ou de difícil reparação, durante o tempo necessário para que se desenvolva o devido processo legal para, ao final, possa proferir um provimento que confira a tutela jurisdicional a quem tem direito. No caso do processo penal, por meio da tutela cautelar se busca conservar um estado de fato (por exemplo, sequestrando o bem que seja proveito do crime) ou impor determinada constrição a direitos do acusado (por exemplo, a prisão preventiva ou a proibição de ausentar-se do país), evitando que o longo tempo do processo possa gerar a inutilidade ou ineficácia do provimento final, no caso. de provável sentença penal condenatória. No entanto, nem toda medida com função assecuratória ou preventiva possui natureza cautelar. Já advertia Calamandrei que não se pode “fazer confusão entre tutela preventiva e tutela cautelar: conceitos distintos, ainda que haja entre eles relação de gênero a espécie”.’ Realmente, se, de um lado, toda tutela cautelar é preventiva, de 4. Calamandrei (Introduzione..., p. 175-176) se referia a uma instrumentalidade qualificada, ou seja, “elevada ao quadrado”, ou seja, um “instrumento do instrumento". Na doutrina nacional, o mesmo ponto de vista é referido por Weber Batista, Liberdade provisória..., p. 6. 5. Calamandrei, Introduzione..., p. 172. Na doutrina nacional, Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (Recursos..., p. 346) destacam que “não se deve confundir tutela preventiva com tutela cautelar ou antecipatória: esta tem caráter instrumental e visa a assegurar o próprio processo, razão pela qual o provimento que a concede tem caráter provisório; na tutela preventiva, ao contrário, ocorre uma verificação prévia do direito, em face da urgência do remédio postulado, mas a providência judicial adotada assume o caráter

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outro, há modalidades de tutelas jurisdicionais preventivas que não são cautelares porque concedidas em caráter definitivo, baseadas em cognição profunda, ainda què possa haver limitação quanto ao tipo de prova que pode ser produzida, como é o caso do habeas corpus ou do mandado de segurança preventivos.

18.1.2.4 Provisoriedade A provisoriedade é uma característica da tutela cautelar, embora não lhe seja exclusiva.« Há outras formas de tutela não cautelares que não são definitivas.’ No entanto, não se pode negar que toda tutela cautelar tem natureza provisória.® O provi­ mento cautelar é provisório porque seus efeitos perdurarão até a superveniência de um evento sucessivo.® A eficácia da medida cautelar perdurará até que seja proferido o provimento final, do processo cognitivo ou executivo,™ este, sim, definitivo. No processo penal, a medida cautelar pessoal (por exemplo, uma prisão preventiva) ou patrimonial (por exemplo, o sequestro de bens) será eficaz até que ocorra o trânsito emjulgado da sentença penal." Por outro lado, a provisoriedade implica o conceito de temporário, mas nào coincide com este. Embora do ponto de vista gramatical as palavras possam ser usadas como sinônim as," é possível fazer uma diferenciação, para fins processuais, no que

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de definitividade. Nessa última situação enquadram-se o habeas corpus e o mandado de segurança preventivos, pois para a concessão destes remédios o órgão jurisdicional resolve completa e definitivamente sobre direito aplicável à hipótese noticiada", (destacamos) Na doutrina processual civil, entre nós, Marinoni (Tutela inibitória..., p. 55) também destaca a indevida confusão entre tutela cautelar e tutela preventiva. jBedaque, Tutela cautelar..., p. 120. Nesse sentido, Calamandrei (Introduzione..., p, 168-169), reconhecendo a provisoriedade como caracteristica dos provimentos cautelares, afirma que “essa provisoriedade, de fato, não é uma característica exclusiva dos provimentos cautelares”. Chiovenda, Principi..., p. 225. Calamandrei, Introduzione..., p. 168. Com observa Bedaque (Tutela cautelar..., p. 146), o caráter provisório das medidas cautelares “decorre diretamente da instrumentalidade em relação ao provável pronunciamento a ser emitido no processo dito principal". No mesmo sentido, Frederico Marques (Elementos..., V 1, p 328) explica que “a providência que se pede na ação cautelar é eminentemente provisória, ficando na dependência do que for ordenado no processo principal”. Ressalve-se, apenas, que náo há ação e processo penal cautelar autônomos no sistema brasileiro. No mesmo sentido, Carnelutti (Processo di esecuziane, v. l , p. 246) já observava que “o provimento cautelar é, por sua natureza, destinado a atuar durante o processo ou, mais exatamente talvez, até a definitiva composição da lide”. Por outro lado, observa Saad Gimenes (As medidas assecuratórias..., p. 71) que “Esta situação futura pode ser dada pela medida definitiva, ou então por evento que retire a instrumentali­ dade da medida cautelar, ou seja, a medida deve durar enquanto dure a situação de perigo, subsistentes também seus pressupostos”. Neste sentido, afirmando que provisório significa transitório, passageiro, temporário, entre outros: Laudelino Freire, Grande e novíssimo dicionário..., v. 4, p. 4180; Silveira Bueno, Grande dicionário..., v. 6, p. 3238, Caldas Aulete, Dicionário..., v. 4, p. 2977.

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diz respeito à maneira pela qual cessará a eficácia da medida, conforme seja provisória ou temporária. Â simples temporariedade de uma situação, isto é, sua duração limi­ tada no tempo, não é de fato suficiente para caracterizá-la como provisória. Nos atos provisórios seu limite temporal ou de duração está condicionado à ocorrência (ou a não ocorrência) de outra situação processual.'* Como diz Foschini, “a provisoriedade, assim, é uma temporariedade condicionada à verificação de uma futura situação”.'® Assim, a prisão preventiva é provisória porque em tese tende a perdurar até seja revogada ou substituída pelos efeitos da sentença transitada em julgado. Já prisão temporária, como o próprio nome indica, é temporária, isto é, terá o término dos seus efeitos condicionado não a uma decisão de um futuro processo ou qualquer outra situação processual, mas sim ao transcurso de um determinado lapso de cinco dias, ou de 30 dias, conforme o caso. De qualquer forma, o relevante é que uma medida cautelar jam ais poderá durar para sempre, e, muito menos, terá aptidão de resolver definitivamente a situação carecedora de tutela jurisdicional. Nesse sentido, em termos de tutela cautelar, a provi­ soriedade é considerada como antônimo de definitividade, expressão esta entendida no sentido de solução definitiva, perene, apta a durar para sempre.

18.1.2.5 Cognição sumária A tutela cautelar não se baseia em um j uízo de certeza. Somente para o provimento final, que de forma definitiva atuará a regra de direito material, é que se exige um juízo de certeza, que no processo penal é imperativo constitucional por força da garantia da presunção de inocência, com o seu consectário probatório do in dubio pro reo. Nem poderia ser diferente. Justamente em razão da urgência da medida cautelar,'* que deve ser proferida antes do término da instrução e do processo, não é possível ao juiz exercer uma cognição profunda dos pressupostos fáticos para a aplicação da 13. Apresentados estes esclarecimentos, distinção feita por Ramos (A tutela de urgência..., p. 90), no sentido de que “a temporariedade é um traço caracteristico da tutela cautelar. A provisoriedade não o é” (destaques do autor), diverge do posicionamento por nós defendido apenas do ponto de vista terminológico. Isso porque Ramos (op. e loc. cit.), ao explicar o conceito de temporário, esclarece: “entende-se por temporariedade a característica de que a tutela cautelar é deferida para remediar uma situação de perigo - seja ao direito material que o processo visa garantir, seja ao próprio processo. Dessa maneira, nasce para durar um certo tempo, que é o tempo da tramitação do processo. Depois de cumprir esta função, é substituída por uma medida definitiva”. Ora, a substituição por outra situação processual é característica das medidas provisórias, e não das medidas temporárias. 14. Foscbini, Sistema..., v. 1, p. 504. 15. Segundo Ovídio B. da Silva (Curso..., v. 3, p. 45 ), “nâo se pode pensar em verdadeira tutela de simples segurança instrumentalizada por meio de um procedimento ordinário, pois a urgência é uma premissa inarredável, de todo o provimento cautelar. A cognição exauriente que o magistrado tivesse de desenvolver, quando fosse convocado para pres­ tar tutela cautelar, além de supérflua e inútil, seria incompatível com a urgência que se presume sempre existir”.

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regra de direito material, cabendo-lhe decidir com base em cognição sumária.'® Exa­ tamente por ser sumária, afirma-se que a cognição exercida pelo ju iz é limitada em sua profundidade,'^ permanecendo em um nível superficial.'® Inegavelmente, a questão da certeza é estranha ao processo cautelar. O juiz não decide com base no ius, mas no fumus boni iuris. E porque precisa decidir logo, ante o perigo da demora, não é possível desenvolver atividade cognitiva no mesmo grau de profundidade daquela desenvolvida para o provimento definitivo, no qual se busca a certeza do direito pleiteado. Calamandrei explica que “[...1 a função dos provimentos cautelares nasce, pois, da relação que se passa entre esses dois termos, a necessidade de que o provimento seja eficaz e a inaptidão do processo ordinário a criar, sem demora, o provimento definitivo. Os provimentos cautelares representam uma conciliação entre as duas exigências geralmente contras­ tantes na Justiça, ou seja: a da celeridade e a da ponderação. Entre fazer logo, porém mal, e fazer bem, mas tardiamente, os provimentos cautelares visam, sobretudo, a fazer logo, deixando que o problema do bem e do mal, isto é, da justiça intrinseca do provimento, seja resolvido mais tarde com a necessária ponderação, nas necessárias formas do processo ordinário.”'“ Contudo, a assertiva de que na tutela cautelar tem lugar uma summaria cognitio, realizada em nível superficial, pode levara interpretações perigosas no processo penal. A menor profundidade da cognição, se mal compreendida, pode significar uma maior facilidade na obtenção da tutela cautelar, o que nem sempre corresponde à realidade. A profundidade da cognição é um conceito relativo. Para afirmar que algo é “su­ perficial” (no sentido de sumário) é necessário conhecer os extremos da profundidade. Em outras palavras, nada é “profundo” em si mesmo. Somente é possível dizer quealgo é “mais profundo”, ou “menos profundo", em relação à outra coisa que se encontre no mesmo plano vertical. Assim, somente quando comparada com a cognição exer16. Nesse sentido: Calamandrei, Introduzione..., p. 200-201; Tarzia, La tutela cautelare..., p. XXI. Na doutrina nacional, cf.: Sanches, Poder..., p. 30; Ovídio B. da Silva, As ações..., p. 33 e 65; id., Curso..., V. 3, p. 44; Bedaque, Tuteia cautelar... p. 181; Marinoni, Tutela cautelar..., p. 23. 17. Segundo sistematização proposta por Watanabe (Da cognição..., p. 83), a cognição pode ser vista em dois planos distintos; horizontal (extensão, amplitude) e vertical (profundi­ dade). A cognição, no plano horizontal tem por limite os elementos objetivos do processo: pressupostos processuais, condições da ação e mérito. Neste plano, a cognição pode set plena ou limitada (ou parcial), segundo a extensão, já no plano vertical, a cognição pode ser classificada, segundo o grau de sua profundidade, em exauriente (completa) e sumárta. 18. Segundo Dinamarco (Medidas cautelares..., p. 351), “exatamente por causa do perigo da demora, não se pode, no processo cautelar, chegar a uma análise de profundidade. O juiz, na instrução sumária que faz no processo cautelar, nâo passa da superfície, apreciando, apenas, o quesito da aparência da existência de um direiio”. Na doutrina estrangeira, Chiovenda (Instituições..., v. 1, p. 387; id.. Principii..., p. 227) refere-se ao “exame superficial (summaria cognitio)". No mesmo sentido, modernamente, Proto Pisani, Lezioni..., p. 602. 19. Calamandrei, Introduzione..., p. 175.

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cida no “processo principal”, é possível afirmar que a cognição exercida no processo cautelar é “menós profunda”, ou “superficial”, ou ainda “sumária”/“ Mesmo assim, tal expressão somente terá sentido quando se referir ao mesmo “plano vertical”, que no caso será o direito material ou a relação material controvertida. Neste sentido, a cognição “sumária” da tutela cautelar verifica a probabilidade da existência do direi­ to, enquanto a cognição plena, exercida para conferir a tutela jurisdicional definitiva, analisa a própria certeira da existência do direito. Por outro lado, analisando a cognição cautelar em relação ao próprio processo cautelar, isto é, em relação tão somente aos requisitos necessários para a concessão da tutela cautelar, verifica-se que tal cognição não sofre, em si, qualquer limitação quanto à sua profundidade.™ Na verdade, a limitação está no thS h ad ec idendum, e não na cognição exercida para a análise de tal tema. No processo cautelar o thema decidendum - diferentemente do “processo prin­ cipal” - não é caracterizado pela afirmação de existência de determinados fatos que 0 integram, mas tem por objeto a mera probabilidade de sua existên cia." Para que ojuiz possa conceder a tutela cautelar não é necessária a prova da existência do dano ou a certeza do direito. Bastam a probabilidade de dano (periculum in mora) e a pro­ babilidade do direito (fumus boni iuris). Em suma, o thema decidendum do processo cautelar não é um tema de certeza, mas um tema de probabilidade.^^ Entretanto, no tocante ao próprio tema do processo cautelar - probabilidade de dano e probabilidade do direito - , a cognição é exauriente porque não sofre qualquer restrição em sua profundidade. Assim, ojuiz somente pode conceder a tutela cautelar quando existir prova dos requisitos exigidos pela lei: fumus boni iuris e periculum in mora.^'' Tais requisitos, contudo, não são requisitos de certeza, e sim de probabilidade.™ Consequentemente, a parte que requereu a tutela jurisdicional corre o risco de nâo obtê-la, se não fornecer prova que convença o juiz do fumus boni iuris e do periculum in mora. Isto é, se não houver demonstrado a probabilidade do direito e a probabilidade do perigo.

18.1.2.6 Referibilidade Por referibilidade deve-se entender a característica da tutela cautelar consistente em vinculá-la e conectá-la a uma determinada situação concreta de direito m aterial, em 20. Nesse sentido: Lombardo, Natura e caratteri..., p. 303. 21. Idem, ibidem, p. 485. 22. Segundo Frederico Marques (Manual..., v. 4, p. 339), “deve baver uma pretensão provável, como objeto indireto ou mediato do processo cautelar”. 23. Lombardo, Natura e caratteri..., p. 503. 24. Idem, ibidem, p. 498. 25. Nesse sentido: Arieta, í prowedimenti..., p. 48; Lombardo, Natura e caratteri,.., p. 494. Na doutrina nacional, Frederico Marques (Manual..., v. 4, p. 339) observa que “bá, por isso, na sentença cautelar, umjuizo de probabilidade, como lastro da aplicação da providência requerida”.

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relação à qual o provimento cautelar terá finalidade de assegurar. Como explica Ma­ rinoni, “na tutela cautelar há sempre referibilidade a um direito acautelado. 0 direito referido é que é protegido (assegurado) cautelarmente”. " No processo penal, a tutela cautelar assegura um direito acautelado, no caso o hipotético direito de punir relativo a crime específico, objeto da imputação formulada na denúncia do processo em relação ao qual a cautelar se mostra necessária. Assim se um acusado responde a processo por roubo, e está ameaçando uma testemunha de outro processo a que também responde, pelo crime de calúnia, não se poderá ser decretada a prisão ou qualquer outra medida cautelar pessoal no primeiro processo por conveniência da instrução criminal, visto que a ameaça foi realizada em relação à instrução de outro processo. Somente neste segundo feito haverá referibilidade. De forma semelhante, no tocante às medidas cautelares patrimoniais, a referibilidade significa que, por exemplo, em um processo por corrupção, o sequestro de bens deva incidir sobre o proveito que o corrupto obteve por tal delito (o imóvel comprado com o dinheiro recebido), mas não poderá atingir outro bem, ainda que também ilícito, que seja proveito de crime diverso e que não integre tal processo, v.g., um carro comprado com dinheiro furtado.

18.1.2.7 Proporcionalidade Quanto à proporcionalidade, deve-se entender que o gravame causado pela tutela cautelar deve ser proporcional à constrição ou restrição que poderá ser causada ao direito, com o provimento final do processo que se pretende acautelar." Marta Saad Gimenes explica ainda que “deve haver exame da proporcionalidade não só no que toca à aplicação da medida, mas também à sua duração, extensão e tambéiji execução”." Aliás, na tutela cautelar, a proporcionalidade é uma decorrência lógica da ins­ trumentalidade e da provisoriedade. Se a medida cautelar for mais gravosa que o provimento final a ser proferido, além de desproporcional, também não será dotada do caráter de instrumentalidade e acessoriedade inerentes à tutela cautelar. O ins­ trumento não pode ir além do fim ao qual ele serve. O assessório segue o principal, mas nào pode superá-lo ou ultrapassá-lo. Por outro lado, mesmo no que diz respeito à provisoriedade, náo se pode admitir que a medida provisória seja mais severa que a medida definitiva que irá substituí-la e a qual ela deve preservar.

18.1.3 Legalidade das medidas cautelares penais O princípio da legalidade também se aplica às medidas cautelares. No processo penal, mormente em tema de prisão processual, nào existem medidas cautelares atí26. Marinoni, Tutela cautelar.., p. 79. 27. Para uma análise da proporcionalidade, no que se refere às prisões cautelares, cf.: Badaró, A prisão preventiva e o principio da proporcionalidade..., p. 159-185. 28. Saad, As medidas assecuratórias..., p. 78.

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picas. Não há, como no processo civil, a previsão de um poder geral de cautela do juiz que o autorize á decretar medidas cautelares não previstas em lei. Como explica Magalhães Gomes Filho: [...] não se pode cogitar em matéria criminal de um “poder geral de cautela”, por meio do qual ojuiz possa impor ao acusado restrições nâo expressamente previstas pelo legislador, como sucede no âmbito da jurisdição civil; tratando-se de limitação da liberdade, é imprescindível a expressa permissão legal para tanto, pois o princípio da legalidade dos delitos e das penas nâo diz respeito apenas ao momento da cominqção, mas à “legalidade da inteira repressão”, que põe em jogo a liberdade da pessoa desde os momentos iniciais do processo até a execução da pena im posta.'“ -

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As prisões cautelares são apenas aquelas previstas em lei e nas hipóteses estritas que a lei autoriza. Há, pois, um princípio de taxatividade das medidas cautelares pessoais,®“ que implica admitir somente aquelas medidas previstas no ordenamento jundico. A vedação das medidas cautelares atípicas no processo penal sempre este­ ve ligada à ideia de legalidade da persecução penal. Ou seja, as medidas cautelares processuais penais são somente aquelas previstas em lei e nas hipóteses estritas que a lei as autoriza.®* Somente assim será possível evitar a arbitrariedade e o casuísmo, dando-se total transparência às “regras do jogo”.®' O princípio da legalidade das medidas cautelares processuais penais também é previsto, expressamente, no CPP português®® e no CPP italiano,®® e, entre os países sul-am ericanos, no CPP chileno.®’ Também é digno de destaque o CPP mo­ delo para Ibero-América, que prevê, dentre os princípios básicos, que: “as únicas medidas de coerçâo possíveis contra o acusado são as que este Código autoriza; terão caráter excepcional e serão proporcionais a pena ou medida de segurança e correição que se espera do procedimento, com estrita sujeição às disposições pertinentes” (art. 3.3). 29. 30. 31. 32. 33.

Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 57. A expressão é de Delmanto jr.. As modalidades..., p. 72. Odone Sanguiné, Clamor pühlico..., p. 294. Isasca, A prisão preventiva..., p. 104. No Código de Processo Penal português, a previsão é encontrada no art. 191 (princípio da legalidade) “1. A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, era função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei”. 34. No Código de Processo Penal italiano, o Livro Quarto, sobre Medidas Cautelares, principia o Capítulo I do Título I com as Disposições Gerais sobre Medidas Cautelares Pessoais, e o art. 272 dispõe; “As liberdades da pessoa podem ser limitadas com medidas cautelares somente de acordo com as normas do presente título”. 35. O art. 5° do CPP chileno, no Título I, sobre os “Princípios Básicos”, prevê; “Art. 5° Legali­ dade das medidas privativas ou restritivas de liberdade. Não se poderá citar, arrestar, deter, submeter a prisão preventiva nem aplicar qualquer outra forma de privação ou restrição de liberdade a nenhuma pessoa, senâo nos casos e na forma assinalados pela Constituição e as leis”.

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Poder-se-ia objetar que o Código de Processo Penal brasileiro, mesmo diante da recente reforma, nâo estabeleceu um princípio da legalidade das medidas cautelares A resposta estaria, para quem lê o Código à luz da Constituição, no próprio direito à liberdade (CF, art. 5“, caput), garantido pelo devido processo legal, isto é, que ninguétn será privado da liberdade sem o devido processo legal (CF, art. 5°, LIII). No entanto ainda que se queira uma norma expressa e explícita, tendo por objeto direto as medidas cautelares, é de considerar que a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)' em seu art. 7, ao assegurar o direito à liberdade pessoal, prevê: “7.1 Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. 1.1 Ninguém pode ser privado de sua liberda­ d e fisica , salvo pelas causas e nas condições previam ente fix a d as pelas constituições políticas dos Estados-partes ou p elas leis de acordo com elas promulgadas", (destacamos) Há, pois, também entre nós, a garantia expressa da legalidade quanto às causas e condições em que se admite a privação ou restrição da liberdade. E se, segundo o po­ sicionamento atual do STF, as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos têm status supralegal, logo, o art. 7.2 da CADH deve prevalecer sobre o art, 3“ do CPP, que permite a analogia, e sobre o art. 798 do CPC, que prevê o poder geral de cautela." Ressalte-se, ainda, que, embora o art. 7.2 se refira à “privação de Uberdade", este dispositivo tem sido interpretado com amplitude pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de forma a compreender não apenas a privação da Uberdade, mas também o caso de restrição da liberdade." No C aso C haparro Álvarez, a CIDH deci­ diu que “este número do artigo 7 reconheceagarantia primária do direito à liberdade fisica: a reserva de lei, segundo a qual, unicamente através de uma lei pode se afetar o direito à liberdade pessoal”.« Em outro julgado, decidiu: “A Corte estabeleceu em sua jurisprudência que as medidas cautelâres que afetam, entre outras, a liberdade pessoal do processado têm um caráter excepcional, já quese encontram limitadas pelo direito à presunção de inocência e os princípio de legalidade, necessidade e proporcionalidade, indispensáveis em uma sociedade democrática.”" 36. O dispositivo prevê que: “Art 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capitulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação". No Novo CPC, a tutela provisória possui como gêneros, a tutela de urgência e a tutela da evidência. Por sua vez, a tutela de urgência se subdivide em tutela antecipada e tutela cautelar e antecipada (art 292). 0 art. 295 do Novo CPC estabelece que: “O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória". 37. No mesmo sentido, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, analisando dispositivo equivalente a Convenção Européia de Direitos Humanos, no caso, o art. 5°. entende que a diferença entre privação e restrição da liberdade é meramente de grau ou intensidade, e não de natureza ou substância. Cf.: Caso Guzzardi vs. Itália, Sentença de 06/11/1980, § 93. 38. CIDH, Caso Chaparro Álvarez y Lapo íniguez vs. Equador, sentença de 21/11/2007 (Exce­ ções Preliminares, Fundo, Reparações e Custas), § 56. 39. CIDH, Caso Palamara Iribarne vs. Chile, sentença de 22/11/2005 (Fundo, Reparações e Custas), § 197.

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18.1.4 Processo cautelar e medidas cautelares penais Não faltou quem vislumbrasse, também no processo penal, uma verdadeira ação penal cautelar, dando origem a um processo cautelar autônomo.™ No entanto, diver­ samente do campo civil, na seara penal, a tutela cautelar nâo é prestada por meio de um verdadeiro processo cautelar, autônomo em relação ao processo principal.®' Frederico Marques adverte que, “[...] para a sistematização segura do assunto, é preciso não transformar em mo­ dalidade de ação penal simples incidentes processuais nascidos no curso da relação processual. Só se pode falar em ação quando, com o pedido cyje nela se contém, se instaura uma relação processual. Outras atividades postulatórias, e são muitas, que qualquer dos sujeitos processuais exerça, refogem do conceito de ação.”®' No processo penal, a tutela cautelar é prestada independentemente do exercício de uma ação cautelar,®* que daria origem a um processo cautelar. Há, apenas, simples medidas cautelares, sem a necessidade de um processo cautelar autônomo e com base procedimental própria.®® Como bem esclarece Tucci, as medidas cautelares penais; “[...] são pleiteadas mediante simples requerimento, e concedidas até indepen­ dentemente de iniciativa do interessado, no mesmo iter procedimental; sem necessi­ dade, portanto, de petição inicial e de correspondente sentença, feita resposta do juiz ao pedido do autor.”®’ 40. Camelutti (Lecciones..., v. 2, p. 73) afirma existir, também no campo penal, “procedimento”, “processo” e “ação cautelar”. 41. Destaca Bedaque (Tutelacautelar..., p. 150) que “o estudo da cautelar deve ser feito a partir da ideia de tutela jurisdicional, sendo absolutamente irrelevante o aspecto de essa modalidade de medida ser concedida mediante o exercício do direito de ação, em processo autônomo, ou como decisão incidental no procedimento em curso. Ação cautelar, processo cautelar, medida cautelar incidente, são apenas mecanismos para obtenção da tutela cautelar”. 42. Tratado..., v. 2, p. 41-42. 43. A existência de uma verdadeira ação cautelar foi negada por boa parte da doutrina estrangeira: Massari, II processo..., 1934, p. 21-22. Santoro, Manuale..., pp. 485-6; Leone, Trattato..., v. 1, p. 154; Alcala-Zamora e Levene Hijo, Derecho..., t. 11, p. 70. 44. Afirma Greco Filho (Manual..., p. 110), ao comentar a classificação das ações penais que “inexiste ação ou processo cautelar. Há decisões ou medidas cautelares, como a prisão preventiva, o sequestro, e outras, mas sem que se promova uma ação ou se instaure ura processo cautelar diferente da ação ou processo de conhecimento. As providencias cautelares são determinadas como incidentes no processo de conhecimento". Tucci (Processo e..., p. 496497) fala na “impossibilidade de conceber-se um processo penal cautelar, bem como uma ação (ação da parte) penal cautelar" pois, segundo o Autor, “no processo penal hã lugar somente, para a adoção de medidas cautelares, efetivãveis, quer no processo de conhecimento, quer no de execução" (grifo no original). 45. Sequestro prévio..., p. 142. No mesrao sentido, negando a existência de ação cautelar no processo penal brasileiro: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 206; Badaró, Tutela cautelar..., p. 206; Saad Gimenes, As Medidas Assecuratórias..., p. 36.

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Mesmo o habeas corpus, que indiscutivelmente é uma ação penal que dá origem a um processo penal autônomo, nào é um processo penal de natureza cautelar.®* Em suma, não há no sistema processual penal brasileiro um verdadeiro processo penal cautelar. O que existe são medidas cautelares - pessoais ou patrimoniais - que funcionam como incidentes de outro processo. Não há processo cautelar autônomo

J 8 .1.5 Tutela cautelar e a impossibilidade de antecipação de tutela no processo penal Não é preciso justihcar a necessidade de que o sistema processual preveja medidas que assegurem a efetividade da tutela jurisdicional, procurando minorar os males do tempo sobre o processo. A tutela cautelar e a tutela antecipada têm a mesma razão de ser; eliminar, ou ao menos minorar, os males do tempo. Ambas, pois, são hlhas da demora processual. Daí poderem ser consideradas espécies do gênero tutela de urgência.®® A tutela cautelar tem por hnalidade assegurar a utilidade e a ehcácia de um provimento jurisdicional futuro. Ante o perigo da demora, até que seja concedida a tutela jurisdicional apta a satisfazer dehnitivamente a pretensão do autor, é necessário garantir que tal provimento, a ser proferido em tempo futuro, náo se tome inócuo em virtude da morosidade do processo. Trata-se, pois, de uma tutela assecuratória ou conservativa. já a tutela antecipada - diga-se, desde já, tutela antecipada em caráter provisório - também é vista como uma forma de eliminar os males da demora processual, mas náo com o objetivo de assegurar o resultado futuro, e sim propiciai| desde logo, uma antecipação, total ou parcial, dos efeitos da tutela jurisdicional que será proferida em tempo ainda distante. Ou seja, antecipam-se os efeitos do provimento satisfativo a ser futuramente emitido para satisfazer, ainda que provisoriamente, os interesses do autor. Trata-se, pois, de uma tutela satisfativa. Em ambas, pois, há uma urgência que se traduz no pressuposto do periculum in m ora. Há, porém, diferença da urgência em um ou outro caso. A doutrina italiana há muito distingue duas espécies de periculum in mora: de um lado, existe o periculo di infruttuosità, e de outro, o periculo di fardività.®* Ambos devem ser combatidos

46. Frederico Marques (Elementos..., v. 4, p. 20) afirrqa que o habeas corpus seria um verdadeiro processo penal cautelar, como medida de contracautela. 47. Nesse sentido; Dinamarco, Instituições..., v. I, p. 161; Bedaque, Tutela cautelar.., p. 158-159; Oliveira, Efetividade e processo cautelar..., p. 92; Theodoro Júnior, Curso..., v. 2, p. 370. 48. Cf., por todos, Proto Pisani, Lezioni..., p. 660. Na doutrina nacional, cf. Bedaque, Tutela cautelar.., p. 171, nota 177. Embora sem usar tais expressões, merece destaque a posição de Tomaghi (Instituições..., v. 3. p. 7), que distingue o perigo de insatisfação do risco da satisfação tardia: “a esses dois tipos de periculum in mora correspondem teas modalidades de providências acauteladoras: na primeira, o que se antecipa é a decisão de mérito, embota em caráter provisório; na outra, apenas se adiantam providências que tendem a preservar

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por meio de uma tutela de urgência. Se há perigo que o provimento dehnitivo seja “infrutuoso”, isto é, que a tutela dehnitiva seja inehcaz, devem ser adotadas medidas conservativas. Por sua vez, na hipótese de o provimento futuro ser tardio, devem ser antecipados os efeitos de tal provimento.®“ Em suma, tanto a tutela cautelar quanto a tutela antecipada são provisórias, per­ durando até que seja proferido outro provimento jurisdicional, que será dehnitivo e satisfativo. Há, portanto, elementos comuns em ambas, embora também apresentem diferenças especíhcas. v Prevalece, amplamente, na doutrina nacional, p entendimento que a tutela ante­ cipada, por já ser apta a satisfazer o interesse do jurisdicipnaido, ainda que em caráter provisório, não tem natureza cautelar, que somente pode ter por escopo assegurar ou conservar a utilidade e a ehcácia da tutela dehnitiva." A divergência, realmente, parece ser terminológica, e nào de conteúdo: ambas as correntes reconhecem a diferença entre medidas de urgência que, de um lado, conservam um estado de coisa, sem propiciar uma satisfação imediata e, de outro lado, medidas de urgência que antecipam efeitos práti­ cos do futuro provimento, satisfazendo provisoriamente, pois, a pretensão do autor. Em sua grande maioria, a doutrina processual penal olvidou da distinção - mais terminológica do que de conteúdo - entre a tutela cautelar e a tutela antecipada.’ *

a instrução do processo (como no caso de apreensão de objetos destinados à prova), ou assegurar a execução (como no caso do arresto de bens do devedor)”. Tal distinção é ex­ pressamente acolhida por Campos Barros, Processo penal cautelar, p. 185. 49. Nesse sentido: Proto Pisani, Lezioni..., p. 660. Na doutrina nacional, cf. Bedaque, Tutela cautelar..., p. 171. 50. Nesse sentido; Marinoni, Tutela cautelar.., p. 79; Oliveira, Efetividade e processo cautelar..., p. 92; Theodoro Júnior, Curso..., v. 2, p. 370; Dinamarco, Instituições..., v. 1, p. 161. Na doutrina processual penal: Ramos, A tutela de urgência..., p. 95. Era sentido contrãrio, destaca-se a po­ sição de Bedaque (Tutela cautelar.., p. 300-301), que não vê incompatibilidade entre a tutela antecipada e a tutela cautelar: “se ambas têm a mesma função no sistema e são estrumralmente provisórias, por que distingui-las? Inexiste razão histórica ou sistemática para não incluir as antecipatórias no rol das cautelares. A discussão acaba sendo meramente terminológica, pois temos duas categorias de tutelas não definitivas destinadas ambas a evitar que o tempo neces­ sário à segurança jurídica acabe tomando inútil o resultado do processo, com denominações diversas. Além disso, toda a doutrina reconhece outras características comuns a essas tutelas, como a cognição sumãria, a precariedade e a referência a outra tutela, exatamente aquelas que determinam a natureza cautelar do provimento. Ora, se possuem tantos aspectos que as aproximam, melhor será tratá-las em conjunto e submetê-las ao mesmo regimejuridico. Esse parece ser o real interesse no estudo comparativo das espécies de tutelas provisórias, as de caráter meramente conservativo e as que possuem conteúdo antecipatório. Dada a similitude existente entre elas, aconselhável recebam o mesmo tratamento jurídico. Irrelevante conside­ rá-las como modalidades de cautelar, ou reservar essa denominação apenas para a conservativa ou não antecipatória. Importante, sim, é determinar sua substância e demonstrar que ambas existem com a mesma finalidade e possuem características praúcamente iguais". 51. Apresentando a preocupação de analisar as medidas cautelares processuais penais em con­ fronto com a tutela antecipada: Ramos, A tutela de urgência..., p. 95; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 62-68.

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Todavia, do ponto de vista prático, diante da consagração expressa do princípio da presunção de inocência da Constituição de 1988, extraíram-se as seguintes conse­ quências quanto ao tratamento do acusado ao longo do processo: ( 1 ) a presunção de inocência não é incompatível com a prisão antes do trânsito em julgado, desde que tal prisão tenha natureza cautelar; (2 ) é incompatível com a presunção de inocência qualquer forma de prisão antes do trânsito emjulgado, que constitua execução penal provisória ou antecipada.’' Diante de tais premissas, somente serão compatíveis com o estado de inocência medidas cautelares propriamente ditas, isto é, prisões processuais ou medidas caute­ lares alternativas à prisão que tenham natureza conservativa. De outro lado, não será constitucionalmente legítima qualquer medida que tenha por finalidade antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da condenação penal e, portanto, seja satisfativa, ainda que em caráter provisório. Para definir se uma medida visa conservar a utilidade e eficácia do provimento futuro a ser proferido na ação penal condenatória (tutela cautelar conservativa) ou se tem por finalidade antecipar efeitos práticos da sentença condenatória (tutela an­ tecipada), nâo se deve considerar a situação fática ou os efeitos práticos da medida,” mas o escopo ou a finalidade que orienta a decretação da medida. Exatamente nesse ponto é que se pode questionar a natureza cautelar - isto é, de conservação de um estado de fato - das medidas alternativas que têm a fina­ lidade extraordinária de evitar a reiteração criminosa. Ora, em tal caso, o que se observa é uma nítida e inconteste antecipação parcial de um dos efeitos da conde­ nação penal, qual seja de prevenção especial. Como explica Antoi^io Magalhães Gomes Filho, náo se enquadra nas exigências de caráter cautelar propriamente dita a finalidade de “[...] prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos cri­ mes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado. Parece evidente que nessas situações a prisão não é um “instrumento a serviço do instrumento”, mas uma antecipação da punição, ditada por razões de ordem substancial e que pressupõe o reconhecimento da culpabilidade.”’® 52. Como explica Magalhães Gomes Filho (Presunçãode inocência..., p. 43), diante da presunção de inocência, “antes da sentença final, toda antecipação de medida punitiva l -l viola esse princípio fundamentar, sendo, pois, “inconciliável com o princípio constitucional qualquer forma de execução provisória do julgado penal". 53. Do ponto de vista prático, considerando o grau de privação do direito de liberdade, não há diferença substancial entre uma prisão preventiva e uma pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado. 54. Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 67-68. No mesmo sentido: Sanguine, Clamor público..., p. 276-277; Delmanto, Medidas substitutivas..., p. 279, nota 27; Aury L o p esjr, O novo regim e... p. 93.

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De reconhecer, porém, que ajurisprudência, de forma tranquila, vinha admitin­ do, em relação à;prisão preventiva para a garantia da ordem pública, que a reiteração criminosa poderia ser um dos fundamentos para a sua decretação.” Além disso, não se pode negar que, em diversos ordenamentos jurídicos, há previsão de alguma forma de medida de urgência, seja ela privativa de liberdade, seja alternativa à prisão, que cumpre finalidades não cautelares, mas escopos substanciais, isto é, de antecipação de pena.’« , Justamente por isso, tem-se defendido, na doutrina nacional, visando à prisão preventiva, mas em raciocínio que se poderá pretender transpor para as medidas alter­ nativas à prisão, que, nestes casos, ainda que a medida não SfejEwestritamente cautelar e, portanto, perfeitamente compatível com a presunção de inocência, tais formas de antecipação de pena se justificariam a partir de uma colidència de direitos fundamen­ tais, a ser solucionada pelo emprego da regra da proporcionalidade." Não é possível, porém, concordar com tais posicionamentos, nem aceitar a cons­ titucionalidade da parte final do inciso 1 do caput art. 282 do CPP, quando permite a prisão preventiva para evitar a reiteração criminosa. Tal dispositivo tenta, por meio de uma troca de etiquetas, chamar de cautelar o que, substancialmente é uma medida de segurança preventiva que, com base em uma pretensa periculosidade do agente, busca cumprir uma finalidade de prevenção especial. Isso, contudo, não é suficiente para mascarar sua patente incompatibilidade com a presunção de inocência.’«

18.2 Medidas cautelares pessoais No processo penal brasileiro existiam, em tese, cinco modalidades de prisões cautelares: (1) prisão em flagrante; (2) prisão temporária; (3) prisão preventiva; (4) prisão decorrente de sentença condenatória recorrível; (5) prisão decorrente de pronúncia. A Lei n° 11.689/2008, ao alterar o regime da pronúncia e não mais prever, como efeito automático da pronúncia, a necessidade de o acusado ser preso, conforme constava da redação do art. 408, § 1®, do CPP, acabou por extinguir tal modalidade de prisão processual. Por outro lado, a Lei n° 11.719/2008, ao revogar o art. 594 do CPP, e diante do parágrafo único - atual § 1®do art. 387 do CPP, acabou por extinguir a prisão para apelar. 55. Nesse sentido, apenas entre os julgamentos mais recentes: STF, HC n° 106.816/PF, HC n° 105.834/PA, HCn® 106.702tiy, HCn° 106.713/SC, HCn® 104.877/RJ; STJ, HCn® 119.391/ CF, HC n° 166.903/CE, HC n° 176.437/PE, HC n® 186.722/SP. 56. Sobre o tema, cf., infra, item 18.2.3.6.1, em especial, nota 131. 57. A compatibilidade da prisão para garantia da ordem pública, com o sistema constitucional e, em especial, com a presunção de inocência, é defendida, à luz da proporcionalidade, por Bechara, Prisão cautelar..., p. 192; lokoi. Prisão preventiva..., p. 204; Zanoide de Moraes, Presunção de inocência..., p. 416 e ss. 58. Magalhães Gomes Filho, Medidas cautelares..., p. 24.

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Em suma, após a reforma do CPP de 2008, passaram a existir, no sistema bra­ sileiro, apenas três modalidades de prisões cautelares: prisão temporária, prisão em flagrante delito e prisão preventiva. Estas modalidades de prisões cautelares ou processuais costumam ser cbamadas de “prisões provisórias”, em contraposição à prisão que constitui sanção penal na modalidade de pena privativa de liberdade que é uma prisão “definitiva”, somente imposta após o trânsito emjulgado da con­ denação penal. Mais recentemente, com as mudanças da Lei n° 12.403/2011, a prisão em flagrante deixou de ser uma modalidade autônoma de prisão cautelar, tornando-se apenas um momento inicial, pré-jurisdicional, da prisão preventiva ou de outra medida cautelar alternativa à prisão. Será uma medida transitória, efêmera, sem aptidão para subsistir autonomamente, razão pela qual não é mais correto considerá-la uma modalidade de prisão cautelar. Aliás, justamente por isso, como se verá, parte da doutrina vem tratando-a como prisão pré-cautelar. Ou seja, atualmente, existem como modalidades autônomas de prisão cautelar apenas a prisão preventiva e a prisão temporária. Embora do ponto de vista prático e fático nào baja grande distinção entre as prisões cautelares e a prisão como sanção penal consistente em pena privativa de liberdade, limitando-se aos locais distintos de encarceramento, nào se pode confundir a prisão como forma de cumprimento de pena privativa de liberdade (sanção penal) com a prisão processual de natureza cautelar. Os fundamentos e as bipóteses que autorizam cada uma delas são distintos. Uma radical transformação do sistema de medidas cautelares pessoais ocorreu com a Lei n° 12.403/2011. Finalmente, entre os extremos da prisáo g. da liberdade provisória foi inserida uma série de medidas cautelares al terna tivas.à prisão, que apresentam uma escala crescente de graus de restrição da liberdade de locomoção do acusado. Mais importante do que a criação de medidas intermediárias, foi definir, de forma expressa no § 6° do art. 282 do CPP, que prisão preventiva passou a ser a medida extrema, somente admissível quando nenhuma das outras medidas cautelares alternativas à prisão - e, portanto, menos gravosa em termos de restrição à liberdade de locomoção - se mostrar adequada à situação carecedora de cautela. O juiz, portanto, não pode raciocinar a partir da prisão, e, somente quando ela se mostrar excessiva, cogitar da aplicação de medida alternativa menos gravosa. 0 raciocínio deve ser exatamente o contrário; estando presente uma das situações que justificam a imposição de uma medida cautelar pessoal (CPP, art. 282, caput, l), o ma­ gistrado deve iniciar o juízo de adequação (CPP, art. 282, caput, II), a partir da menos gravosa, e, se esta não se mostrar adequada, ir ascendendo em uma escala crescente das medidas alternativas mais leves para as mais gravosas, e, somente se nenhuma delas se mostrar adequada, chegar à prisão preventiva. Do ponto de vista didático, porém, não há prejuízo em começar a exposição do sistema pela formas de prisáo cautelar, até mesmo para facilitar a comparação com as medidas menos intensas.

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18.2.1 Características das medidas cautelares pessoais

18.2.1.1 Necessidade e adequação das medidas cautelares A reforma legislativa de 2011 sobre as medidas cautelares pessoais procu­ rou incorporar a proporcionalidade com o critério para a aplicação das medidas cautelares/® O torm entoso tema, objeto de divergências infindáveis e filigranas doutrinárias, foi tratado legislativam ente em seus subitens ou su bprin cípjos da necessidade, da adequação e, em alguma medida, da proporcionalidade ém sentido estrito. O art. 282, caput, dispõe que: As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I - n ecessidade para aplicação d a lei penal, p ara a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de in/rações penais; II —a d e­ quação da m edida à gravidade do crime, circunstâncias do fa to e condições pessoais do indiciado ou acusado, (destacamos) Como facilmente se percebe, o dispositivo legal, além de não mencionar a máxi­ ma ou subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, utilizou os conceitos de necessidade e adequação em sentido diverso daqueles que vêm sendo empregados na doutrina que, de forma amplamente majoritária, tem entendido que a regra ou princípio da proporcionalidade é composto pelos subprincípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.«® Em doutrina, afirma-se que o juízo de adequação é um juízo de verificação de uma relação de meio a fim. O meio empregado deve ser apto a realizar o interesse que merece maior proteção. É, pois, uma relação de causalidade entre a medida restritiva adotada e o fim a que se destina.«' Na seqüência, tem-se o juízo de necessidade da medida, também conhecido como proibição de excesso ou busca de alternativa menos gravosa. O que se objetiva é invadir a esfera de liberdade do indivíduo o mínimo necessário, na comparação entre as diversas medidas que tenham se mostrado adequadas ao atingimento da finalidade de proteção ou realização do direito fundamental. Finalmente, tem-se a proporcionalidade em sentido estrito. Além de ser ade­ quado aos fins que se destina e ser o meio menos gravoso entre os diversos aptos a realizar o escopo pretendido, as desvantagens que o emprego de tal meio causará ao direito fundamental de menor peso serão menos intensas que as vantagens advindas 59. Nesse sentido, Delmanto (Medidas substitutivas..., p. 280) afirma que “a exigência dos critérios da necessidade e da adequação não poderia, de fato, deixar de existir, até mesmo por observância do principio da proporcionalidade”. No mesmo sentido: Moreira Porto, Projeto de Lei n. 4.208/2001..., p. 73. 60. Sobre a regra da proporcionalidade, cf., supra, cap. 1, seção 1.13. 61. Barros, O princípio..., p, 79.

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de seu emprego para a proteção do direito de maior peso. Trata-se, pois, de uma “la l de ponderação”.®' Todavia, a Lei n° 12.403/2011 trilhou outro caminho ao dehnir as caractensticál da necessidade e adequação das medidas cautelares pessoais. E o fez para dar a tais^ expressões o sentido que normalmente o têm no campo processual penal. Na searg criminal, para a imposição de alguma medida cautelar, seja ela pessoal ou real, se^' sempre imperativo verihcar, por primeiro, se há necessidade de tal medida e, sendo imprescindível sua imposição, em um segundo momento, buscar entre as medida| possíveis a mais adequada, entendida esta, como a que impõe uma restrição menos gravosa ao direito do acusado a ser afetado pela medida cautelar. E foram nesses tennos que o legislador empregou as expressões necessidade e adequação no novo art. 282, caput, do CPP. O critério da necessidade, previsto no inciso l do caput do art. 282, deve ser en­ tendido como o reverso da adequação, enquanto subprincípio da proporcionalidade! também denominado idoneidade: se não há necessidade de qualquer medida, não há hm a ser atingido e, portanto, qualquer intervenção no direito fundamental repre­ sentará uma violação a tal direito.®® Nào se decreta uma medida sem que haja a sua “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução crimina! e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais”. Sí tais hns não estão presentes, isto é, cautela instrumental, cautela hnal ou prevenção de crimes, a medida é desnecessária. Ou seja, qualquer intervenção no direito funda­ mental nào será idônea, por ausência de relação de meio-a-hm. Por outro lado, e em umjuízo sucessivo, havendo necessidade de jutela cautelar e dispondo o legislador de um leque de medidas cautelares, com intensidades variadaí de restrições ao direito fundamental, será adequada aquela que impuser menor restri ção ao direito fundamental. Ou seja, a adequação do inciso II do caput do art. 282 esU sendo utilizada no sentido de “necessidade”, “subsidiariedade”, ou de “alternativí menos gravosa”, enquanto subprincipio ou máxima da proporcionalidade.®® É nesst último sentido que deve ser interpretado o “critério da adequação”. Conforme cons tou da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n“ 4.208/2001, houve a “ampliação do 62. Stumm, Principio da proporcionalidade..., p. 80. Como explica lokoi {Prisão preventiva..., p. 40), “a lei da ponderação é aquela que pode ser traduzida como correlação entre o princípio satisfeito e o princípio mitigado, pois quanto maior é o grau de mitigação de um princípio, deve ser proporcionalmente maior a satisfação do outro". 63. Não é possível concordar, pois, com Flávia D’Urso (Principio constitucional..., p. 110), quando, analisando o Projeto de Lei n° 4.208/2001, assevera que; “o vocábulo necessidade é empregado como sinônimo da mãxima da proporcionalidade". 64. Novamente, é de discordar de Flávia D’Urso (Principio constitucional...,p. 110), aoasserir que: “a expressão adequação, que neste estudo recebeu a concepção de meio apropriado aos objetivos da persecução penal (com lastro em j . j. Gomes Canotilho), no projeto vem utilizada no conceito aqui referendado como subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito".

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leque de medidas cautelares diversas da prisão cautelar, proporcionando-se ao juiz a escolha dentro de critérios de legalidade e proporcionalidade, de providências mais justadas ao caso concreto”. Na busca desse ajustamento ao caso concreto, o inciso II ioçapttt do art. 282 estabelece que as medidas cautelares serão decretadas segundo o antério da “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fa to e condições pessoais do indiciado ou acusado". E o dispositivo é complementado pelo § 6° do mesmo artigo: “A prisão preventiva será determinada quando não fo r cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 3 1 9 )”. Esse último dispositivo determina, claramente, qjúê a busca de adequação ao caso concreto será guiada pelo caráter subsidiárid da prisão preventiva.®’ Ou seja, pela regra de adequação da “alternativa menos gravosa” É) direito de liberdade do acusado ou investigado. No tocante às medidas alternativas à prisão, também deve-se aplicar a regra i é adequação, privilegiando sempre a medida menos gravosa. Há, entre elas, nas palavras de Cordero, uma “progressão aflitiva”,*® estabelecendo a lei “uma certa progressão da gravidade das diversas medidas”,*' da medida de menor restrição para a de maior restrição. Por exemplo, em uma escala crescente, da menor para a maior restrição, podem ser citadas; proibição de ausentar-se do país (art. 320), proibição de ausentar-se da comarca (art. 319, IV), recolhimentodomiciliarnoturno (art. 319, V). Neste iter inserem-se, ainda, a depender do caso concreto, mas sempre com alguma restrição da liberdade de locomoção do acusado, o “comparecimento periódico em juízo” (art. 3 1 9 ,1) e a “proibição de acesso ou frequência a determi­ nados lugares” (art. 319, II). Do ponto de vista prático, porém, o relevante é que, se não houver necessidade de proteção da investigação ou instrução (cautela instrumental) ou de assegurar a aplicação da lei penal (cautela final), ou de evitar a reiteração criminosa,*® nenhuma medida cautelar poderá ser imposta. Em outras palavras, qualquer medida cautelar será desnecessária. Por outro lado, ainda que um destes escopos esteja presente no caso concreto e, portanto, haja necessidade da medida, é de buscar, entre as diversas possibilidades legais, a que seja mais adequada ao caso concreto, não se podendo determinar a medida de prisão, quando outra menos gravosa seja adequada ao atingi­ mento da finalidade, cuja necessidade se busca privilegiar. Não será, pois, adequada, medida mais gravosa, quando houver alternativa igualmente eficaz, que implique menor restrição ao direito fundamental. 65. Como bem analisa Delmanto (M edidas substitutivas..., p. 281) em face do então projeto de lei, “um dos objetivos da Reforma do Código de Processo Penal vigente é justamente tornar a prisão preventiva uma medida de aplicação efetivamente excepcional e subsi­ diária, devendo-se dar preferência, sempre que possível, ã aplicação de medida cautelar menos severa!”. 66. Cordero, Procedura penale..., p. 492. 67. Marques da Silva, Curso..., v. 2, p. 250. 68. Tal critério, contudo, não pode ser aceito por implicar antecipação dos fins da pena. e não medida cautelar enquanto assecuratório do próprio processo.

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18.2.1.2 A proporcionalidade da prisão preventiva: pena provável a ser aplicada O art. 282, caput, deixou de mencionar a proporcionalidade em sentido estrito como uma das caracteristicas da medida cautelar. Tal omissão, todavia, não afasta a exigência, que decorre do próprio caráter instrumental, acessório e provisório de toda e qualquer medida cautelar. Qualquer medida cautelar nâo é um fim em si mesma, mas um instrumento para atingir a finalidade de assegurar a utilidade e eficácia de um futuro provimento prin­ cipal. Justamente por isso, a cautelar é sempre provisória, vigorando enquanto não se profere o provimento principal que irá substituí-la. Em outras palavras, a medida cautelar, de natureza assecuratória, sempre deve ter em vista uma medida satisfativa e definitiva, resultado do reconhecimento do direito debatido no processo principal, que exige tempo para ser reconhecido.« Transportando esses conceitos para o processo penal, pode-se dizer com Cordero que “medida cautelar e quantificação da pena são termos correlativos”.™ E, embora a prisão preventiva, do ponto de vista teleológico, nào seja uma “pena antecipada”, como adverte Maurach, o mal real causado pela prisão preventiva deve ser parecido, quanto aos efeitos realmente produzidos, aos da pena." Na prisão pre­ ventiva, o acusado não deve pagar um preço que ele provavelmente não será chamado a pagar nem mesmo depois da condenação." Há, pois, um princípio de proporcionalidade que governa as medidas cautelares e, em especial, a prisão cautelar. Consequência disso é que ojuiz nào deve se limitar a analisar “profva da existên­ cia do crime e indício suficiente de autoria” para a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). Esses critérios são indicadores do denominado/umus commissi deíicti, isto é, da probabilidade, baseada em uma cognição sumária, de que o acusado seja 0 autor de um delito. São elementos necessários, mas não suficientes para a prisáo cautelar.” 69. Como explica Bedaque (Tutela cautelar..., p. 182), “ã exceção da cautelar destinada a an­ tecipar atos de produção de prova, todas as demais modalidades exigem do juiz exame da relação de direito material, ainda que de forma superficial". 70. Cordero, Procedura penale..., p. 473. No mesmo sentido, Grevi, Misure cautelari..., p. 299. 71. Reinhart Maurach, Tratado de Derecho Penal. Tradução de ju an Córdoba Roda, Barcelona, 1962. V. 2, p. 551, apud Weber Batista, Liberdade provisória, p. 10. 72. Zappalã, Le misure cautelari..., v. 1, p. 447. Ou, como explica Geraldo Prado (Excepcionali­ dade da prisão..., p. 122), “não se pode, portanto, retirar do imputado, cautelarmente, bem da vida que ele provavelmente não perderá caso venha a ser definitivamente condenado". 73. Nesse sentido, cf.: Grevi, Libertà personale..., p. 340. De forma semelhante, Aur)' Lopes Jr. (Introdução critica..., p. 206), analisando a proporcionalidade como um dos princípios que governam as prisões cautelares, afirma que o juiz, diante do caso concreto, “deverá ponderar a gravidade da medida imposta com a finalidade pretendida, sem perder de vista a densidade do fumus commissi delicti e do periculum libertatis”.

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A análise do “direito hipotético” nâo deve se limitar à “probabilidade de uma condenação”. Há mais a ser considerado nesse juízo prognóstico. Ojuiz deverá também considerar a probabilidade de que seja imposta uma pena privativa de liberdade a ser executada em regime prisional.®® Somente no caso em que se anteveja, com base nos elementos concretos existentes nos autos, que o acusado terá que se submeter a uma pena privativa de liberdade, a prisão cautelar será proporcional ao provimento definitivo que ela visa assegurar. Caso o prognóstico judicial seja de que a pena a ser imposta será somente ,de multa,®’ ou uma pena privativa de liberdade que será substituída por pena restri tivaW direito, ou, ainda, uma pena privativa de liberdade que será condicionalmente suspensa (sursis),®® ou, finalmente, uma pena privativa de liberdade a serTümprida em regime aberto, será ilegal a decretação da prisão preventiva, posto que desproporcional ao resultado final do processo cuja utilidade se quer assegurar.®® Sob a ótica da tutela cautelar, é correto asseverar que, se a medida cautelar for mais gravosa que a pena a ser ao final imposta, não será dotada dos caracteres de instrumentalidade e acessoriedade inerentes ã tutela cautelar. Mesmo no que diz respeito à provisoriedade, não se pode admitir que a medida provisória seja mais severa que a medida definitiva que irá substituí-la e a qual ela deve preservar. Ou seja, nào se pode impor a prisão preventiva se a pena previsível a ser aplicada ao final do processo não for privativa de liberdade, a ser cumprida em regime de encarceramento. 74. Nesse sentido: Benetti, Prisão provisória..., p. 272; Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 72; Sanguiné, Prisão provisória..., p. 100; Greco Filho, Manual..., p. 275-276; Ramos, A tutela de urgência..., p. 115; Scarance Fernandes, Processo penal..., p. 57; Araújo, Teoria..., p. 388; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 261-262; Geraldo Prado, Excepciona­ lidade da prisão..., p. 122. 75. Embora analisando a hipótese de liberdade provisória em que o preso se livra solto, Weber Batista (Liberdadeprovisória..., p. 43-44) afirma que, na hipótese em que o crime é punido tão somente com pena de multa, “em razão da pequena importância da infração cometida, é desproporcional a gravidade da providência cautelar consistente na restrição máxima da liberdade do processado, não justifica sua imposição” (destaque nosso). Observamos, con­ tudo. que essa desproporção não ocorre somente em vista da pena cominada, mas também considerando a provável pena a ser aplicada. 76. No CPP italiano, o art. 275, n. 2-bis, introduzido pela Lei n° 332, de 08/08/1995, estabelece que; “Não pode ser disposta a medida cautelar se ojuiz considera que com a sentença possa ser concedida a suspensão condicional da pena”. Na doutrina nacional: Scarance Fernan­ des, Processo penal..., p. 57. Grevi (“Libertà personale ...”, p. 340) vai além, afirmando que deve ser considerada, também, a possibilidade de concessão de perdão judicial, anistia ou indulto, como fatores demonstradores da desproporcionalidade. 77. De forma semelhante, mas sem afirmar a impossibilidade de decretação da prisão, para Delmanto Jr. (As modalidades..., p. 142-143) o ju iz “deverá estar bastante atento à even­ tual desproporcionalidade e à excepcionalidade da prisão preventiva”. Na jurisprudência, embora se referindo à razoabilidade em vez de proporcionalidade; TRF Quarta Região. HC n° 2002.04.01.011925-2/RS. Em sentido parcialmente diverso, mas chegando ao mesmo resultado de inadmissibilidade da prisão, posiciona-se lokoi. Prisão preventiva..., p. 196, considerando que no caso não haverá adequação qualitativa da prisão.

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Sob um enfoque da regra da proporcionalidade em sentido amplo, é possivel afir­ mar que prender cautelarmente quem ao final do processo, segundo a pena provável a ser aplicada, não será sancionado com pena privativa de liberdade implica utna restrição à liberdade de locomoção que viola o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Não baverá ponderação entre a importância da realização do fim (as­ segurar o cumprimento de uma pena não privativa de liberdade ou mesmo a instrução de um processo cuja condenação não será cumprida em regime de encarceramento) e a intensidade de restrição ao direito fundamental da liberdade de locomoção pela prisão cautelar. A vantagem produzida pela prisão cautelar não supera as desvantagens advindas da sua utilização no caso de penas concretas não privativas de liberdade. O art. 313 do CPP, ao definir, em tese, a classe de delitos em relação aos quais é admissível a prisão, é inspirado na ideia de proporcionalidade. Não se pode deixar de observar, inclusive, que a Lei n° 12.403/2011 restringiu ainda mais os delitos pas­ síveis de prisão preventiva, quando comparado com a redação anterior.™ Em linhas gerais, somente se admite a decretação da prisão preventiva em crimes punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, segundo a nova redação do inciso I do caput do art. 313. Comparado com o dispositivo anterior, a prisão pre­ ventiva era cabível em todos os crimes punidos com reclusão. A mudança procurou harmonizar, à luz da proporcionalidade, as hipóteses de cabimento da prisão preven­ tiva com as hipóteses em que, no caso de condenação, a pena privativa de liberdade poderá ser substituída por restritiva de direito.™ Se ao final o condenado não será levado à prisão para cumprir sua pena, nâo é proporcional prendê-lo cautelarmente no curso do processo! Em suma, a Lei n° 12.403/2011 perdeu grande oportunidade d^ dar um passo adiante. A proporcionalidade não deve ser buscada somente tendo etn vista a pena cominada ao delito, mas considerando-se a pena que provavelmente será aplicada, ainda que com base em uma cognição sumária. Em nenhuma hipótese, e por nenhum dos motivos que caracterizam o periculum libertatis, pode-se decretar a prisão preven­ tiva se nâo há prognóstico de cumprimento efetivo de pena privativa de liberdade. Embora a necessidade de observrância da proporcionalidade em sentido estrito seja mais evidente em relação à prisão preventiva em ponderação com a pena projeta­ da, sua aplicação se impõe como um principio geral das medidas cautelares, devendo ser aplicável também às novas medidas cautelares alternativas à prisão. Por exemplo, não é possível admitir que a medida alternativa da,suspensão de habilitação para di78. Anteriormente, regra geral do art. 3 1 3 ,1, do CPP, com a redação da pela Lei n° 6.416/1977, era cabível a prisão preventiva nos crimes dolosos “punidos com reclusão”. 79. Com as mudanças introduzidas no Código Penal pela Lei n° 9.714, de 25/11/1998, mesmo nos crimes punidos cora reclusão, desde que não cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, se a pena privativa de liberdade aplicada - e nào a pena cominada - for de até quatro anos, poderá ser substituída por restritiva de direitos e multa, ou por duas penas restritivas de direito (CP, art. 44),

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rigir veículo automotor perdure mais que o período segundo o qual, de acordo com o estado dos autos, se projete como aquele a ser aplicado no caso do crime de trânsito de lesão corporal.

18.2.1.3 Contraditoriedade Uma grande novidade da Lei n° 12.403/2011 é a previsão de um contraditório prévio à decretação das medidas cautelares. O novo § 3“ do art. 282 estabelece que: “Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessária, permanecendo os autos em juízo.” Destaque-se que a exigência de contraditório prévio é aplicável, em tese, tanto à prisáo preventiva quanto às medidas alternativas à prisão. Afirma-se “em tese” porque, segundo o que normalmente acontece, haverá perigo de ineficácia da decretação de prisão preventiva se a decisão judicial for precedida pelo contraditório de partes. De qualquer forma, mesmo em relação à prisão, não se pode, porém, “exagerar-se o perigo, nem pressupô-lo".«® Por seu turno, no caso de medidas alternativas à prisão, muitas vezes o contraditório prévio em nada comprometerá a sua eficácia. Além dos casos de decretação da medida cautelar, embora o texto legal não o diga, 0 contraditório prévio deverá ser aplicado nas hipóteses de: ( 1 ) revogação da medida cautelar; (2 ) substituição da medida cautelar por outra, mais gravosa ou mais benéfica; (3) reforço da medida cautelar, por acréscimo de outra medida em cumulaçâo (que não deixa deser “pedido de medida cautelar”); (4) atenuação da medida cautelar, pela revogação de uma das medidas anteriormente impostas cumulativamente com outra. Por outro lado, embora o § 3® do art. 282 preveja que “o juiz, a o receber o pedido de medida cautelar [...]", nâo significa que não se precisará observar o contraditório prévio no caso de decretação ex officio de medida cautelar durante o processo. A Lei n" 12.403/2011 deveria, de uma vez por todas, eliminar a possibilidade de decretação de medidas cautelares de ofício pelo julgador, e com isso preservar sua imparcialidade, mantendo-o inerte e desinteressado, fortalecendo o sistema açusatório. No entanto, se o contraditório é necessário no caso de ato de parte, com maior razão deverá ser observado no caso de decretação de medidas ex officio do juiz. Se no caso de medida requerida pela parte (isto é, o Ministério Público, o querelante ou o assistente de acusação) o legislado teve a preocupação de que a medida não surpreendesse “a outra parte”, isto é, o investigado ou acusado, com muito maior razão, no caso de medidas decretadas pelo juiz, de ofício, a nào observância do contraditório prévio surpreenderá “as duas partes”! Assim sendo, quando o juiz antevir a necessidade de uma medida cautelar, e não houver grande urgência ou perigo de ineficácia a medida, deverá. 0. A advertência é de Marques da Silva (Curso..., v. 2, p. 254), comentando regra semelhante do art. 194.2, do CPP português.

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previamente, determinar que as panes se manifestem sobre a eventual decretação da medida cautelar que se julga necessária e adequada.®'

18.2.1.4 Excepcionalidade da prisão preventiva A nova redação do § 6° do art. 282 do CPP, dada pela Lei n° 12.403/2011, deixa claro que a prisão preventiva é medida excepcional, somente podendo ser aplicada quando não for adequada nenhuma das medidas alternativas: “a prisão preventiva será determinada quando n ãojor cabível a sua substituição por outra medida cautelar (an 3 1 9 )”. Isto é, somente se decreta a prisão preventiva quando todas as outras medidas menos gravosas se mostrem inadequadas para afastarem a situação de perigo que justifica a necessidade de se impor alguma medida cautelar. Ou, o que seria o reverso da medalha, as medidas cautelares alternativas à prisão são preferíveis em relação à prisão preventiva. O caráter excepcional ou subsidiário da prisão cautelar se justifica na medida em que sempre se deve privilegiar o meio menos gravoso e que causa menor restrição possível ao direito de liberdade. Sendo necessária a imposição de alguma medida cautelar, inicialmente deve-se buscar tutelar o processo, seja quanto à instrução cri­ minal, seja quanto ao seu resultado final, por meio de medidas cautelares alternativas à prisão (CPP, arts. 319 e 320). Somente quando nenhuma das medidas alternativas se mostrar adequada às finalidades assecuratórias que o caso exige, seja pela sua apli­ cação isolada, seja por sua imposição cumulativa, é que se deve verificar o cabimento da medida mais gravosa, no caso, a prisão preventiva. O dispositivo, porém, pode ser criticado na medida em que revela o ato falho do legislador que parece ainda ter em mente que o sistema de medidas Cautelares gravita em torno da prisão preventiva, seu epicentro, ao redor do qual girani todas as demais medidas. Mais grave ainda do que tal mentalidade inspirar o legislador é se tal forma de pensar influencia as decisões judiciais. O magistrado que continuar a raciocinar a partir da prisão preventiva, como primeira, principal e preferencial medida, eventualmente podendo ser “substituída” por “outra medida cautelar”, tal qual um “favor judicial” ou um “benefício” generosamente concedido ao acusado, estará violando o caráter subsidiário da prisão e o reconhecimento da liberdade do acusado como regra no pro­ cesso. A redação do dispositivo deveria ser, portanto, “quando não for cabível medida cautelar diversa da prisão (art. 319) o juiz poderá determinar a prisão preventiva”.

18.2.1.5 Cumulatividade As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. O § 1“ do art. 282 do CPP prevê que: “As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente". 81. Nesse sentido, cora relação ao Projeto de Lei n° 4.208/2001, cf. Delmanto, Medidas substi­ tutivas..., p. 281. Em sentido, contrário, já comentando a n° Lei 12.403/2011, cf. Bonfim, Reforma..., p. 40.

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Tal regra, porém, precisa de uma interpretação restritiva no que se refere à cumulatividade. Por certo, no caso da decretação da prisão preventiva (arts. 312 e 313) ou no caso em que tal prisão substitua a prisão em flagrante (art. 310, II), não será possível cumulá-la com outra medida cautelar, posto q u ejá se estará impondo ao investigado ou acusado o grau máximo de restrição cautelar, privando-o de suaf' liberdade de locomoção. Ou seja, a prisão preventiva somente pode ser imposta de forma isolada. Por outro lado, não sendo o caso de decretação da prisão preventiva, pos^o que as finalidades cautelares de assegurar a instrução processual (cautela instrumental) ou de garantir a aplicação da lei penal (cautela final) podem ser atingidas, de forma adequada, pela imposição de uma medida cautelar diversa díprisão e, portanto, me­ nos gravosa, tais escopos cautelares poderão ser atingidos pela imposição de uma só das medidas diversas da prisáo, previstas nos arts. 319 e 3 2 0 (por exemplo, proibição de ausentar-se da comarca), ou por mais de uma delas, imposta de forma cumulativa (a proibição de frequentar determinados lugares, cumulada com a proibição de se ausentar da comarca).

18.2.2 Prisão em fiagrante 18.2.2.1 Conceito e finalidade A prisão em flagrante é uma medida que se inicia com natureza administrativa, sendo depois jurisdicionalizada, tendo por finalidade, de um lado, evitar a prática criminosa ou deter o seu autor e, de outro, tutelar a prova da ocorrência do crime e de sua autoria. A prisão em flagrante é um ato complexo, que exige a conjugação de vários atos parciais que redundam na prisão em flagrante delito. Relevante distinguir, pelo menos, três momentos distintos: ( 1 ) a prisão-captura; (2 ) a lavratura do auto de prisão em flagrante; (3) a prisão-detenção. Depois destes momentos em que o ato se realiza perante a autoridade policial, ganha relevo, com a reforma da Lei n° 12.403/2011, a verificação judicial da prisão em flagrante, nos termos do art. 310, caput, do CPP. Em seu novo regime, a prisão em flagrante se restringirá a um momento inicial de imposição de medida cautelar de prisão. Justamente por isso, tem sido considerada uma “pré-cautela”.®' Em outras palavras, a prisão em flagrante somente subsistirá entre a lavratura do auto de prisão em flagrante e a análise judicial da legalidade da prisão e da necessidade de manutenção de prisão cautelar ou de sua substituição por medida diversa da prisão.

18.2.2.2 Classificação Quanto à necessidade de sua realização, o art. 301 do CPP distingue a prisão em flagrante facultativa e a prisão em flagrante obrigatória; qualquer do povo pode 82. Aury Lopesjr., O novo regime..., p. 30.

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(flagrante facultativo), e as autoridades policiais e seus agentes devem (flagrante obrigatório), prender quem se encontre em flagrante delito.«'

18.2.2.3 Situação de flagrante O art. 302 do CPP define quais são as situações de flagrante delito; no inciso I tem-se a verdadeira situação de flagrante delito: a pessoa “está cometendo a infração pen al”. No inciso II, o crime não está mais sendo cometido (não é uma ação presente) mas a pessoa “acaba de cometer” a infração. Ambas as hipóteses são consideradas pela doutrina flagrante próprio. Já no inciso 111 há previsão de situação que costuma ser denominada flagrante impróprio ou quase flagrante: quando o agente "é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação quefaça presumir ser autor da infração”. A expressão “logo após” indica que nào pode haver solução de continuidade entre o cometimento do delito e o início da perseguição.«’ Não importa o tempo que durar a perseguição, isto é, o tempo transcorrido entre o momento do crime e o da captura (horas ou até dias). Desde que não haja solução de continuidade, pouco importará o tempo da perseguição. Finalmente, a hipótese do inciso IV é denominada flagrante presumido (inciso IV); o agente “é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração”. As hipóteses do flagrante impróprio e do flagrante presumido, do ponto de vista do lapso temporal entre o crime e a prisão em “flagrante delito", sâo equivalentes. Não há diferença de conteúdo, do ponto de vista cronológico, entre as expnessões “logo após” e “logo depois”. São equivalentes, exigindo “uma relação de imediatidade”,«’ isto é, imediatamente depois do crime cometido.«“ 83. Existem exceções constitucionais e legais em favor de sujeitos que exercem determinadas funções públicas que impedem a prisão em flagrante. Não podem ser presos em flagrante delito os diplomatas (CPP, art. 1°, I, c.c. o art. 29 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, incorporada pelo Decreto n° 56.435/1965). Os parlamentares, incluindo os deputados federais e senadores (CR, art. 53, § 2“), bem como os deputados estaduais (CR, art. 27, § 1“), somente podem ser presos em flagrante delito, por crime inafiançável. De forma semelhante, os magistrados (Loman, art. 33, II) e os membros do Ministério Públi­ co (LONMP, art. 40, 111), bem como os advogados, por motivo de exercício da profissão (EAOAB, art. 7“, § 3°), também somente podem ser presos em flagrante delito, por crime inafiançável. 84. Justamente por isso, o STJ já decidiu que “Não caracteriza flagrante impróprio a hipótese em que a suposta autora do delito é encontrado em sua residência por agente policial, em diligências efetuadas a partir de denúncia anônima" (RHC n° 23.650/MG). 85. Tourinho Filho, Manual..., p. 603. 86. Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 362. Ajurisprudência, contudo, tem feito uma distinção, e dado maior elastério à expressão “logo depois", entendendo que pode ser até mesmo al­ gumas horas. De outro lado, Delmanto Jr. (,4s modalidades..., p. 105) objeta que deve haver uma interpretação mais restrita que a dada à e.xpressão “logo após”, em virtude da maior

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Como facilmente se percebe, somente na hipótese do inciso I o agente encontra-se, realmente, em situação de flagrante delito. Em todas as demais circunstâncias, há uma equiparação legal de hipóteses fáticas em que o crime não está sendo cometido, mas foi cometido há pouco tempo, ao estado de flagrância.®®

18.2.2.4 Situações especiais O flagrante preparado ou provocado é aquele em que ocorre a prisão de alguém, tendo havido um agente provocador da prática do crime, normalmente integrante da própria polícia, que induziu ou instigou o autor a cometer o délitoj justamente para poder prendê-lo. Em suma, flagrante preparado é o flagrante gor obra de agente pro­ vocador. O agente provocador induz o indivíduo a cometer um críme, para prendê-lo em flagrante delito. Trata-se de crime impossível (CP, art. 17), nos termos da Súmula n° 143 do STF, que estabelece: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.®® O flagrante provocado ou preparado nào se confunde com o flagrante espera­ do. Neste, diante da notícia de que um crime poderá ser praticado, a polícia toma as providências para prender em flagrante aquele que irá cometer o crime. O relevante para distingui-lo do flagrante provocado é que, no flagrante esperado, a policia vigia 0 local do crime, esperando que o agente, espontaneamente, pratique o delito. Não há induzimento ou provocação para a prática delitiva.®“ O chamado flagrante diferido ou retardado é fruto de uma inovação da lei de combate ao crime organizado. O art. 8°, caput, da Lei n° 12.850/2013 prevê, entre os mecanismos de obtenção de prova que: “Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa ã ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no m omento mais eficaz à form ação de provas e obtenção de inform ações” (destacamos). fragilidade probatória. Pensamos que a raaior ou menor “certeza visual" da ocorrência do crime não influi na consideração do aspecto temporal. Tanto na hipótese do inciso III quanto na do inciso ly há “presunção" de flagrante delito. E, em ambas, quanto maior o tempo transcorrido entre a prática do crime c a pessoa ser encontrada com instrumentos do crime, ou ser iniciada a sua perseguição, menos segura será tal presunção. 87. Nesse sentido parece ser a posição de Tomaghi (Curso..., v. 2, p. 52), que qualifica a hipótese do inciso 1 de flagrante real e as demais de quase flagrante. 88. A referida súmula também terá cabimento se a preparação do flagrante se der por um par­ ticular, e nâo por um agente policial. 89. Todavia, como corretamente observa Nucci (Código..., p. 633), mesmo no caso de fla­ grante esperado, a situação de vigia pode gerar a impossibilidade do crime, quando o esquema de vigilância preparado pela polícia é infalível. Realmente, seja pelo número de policiais, seja pelo local em que eles e o autor do crime se encontram, seja pelo grau de vigilância e proximidade dos agentes e o grau de proteção que podem exercer sobre o bem penalmente tutelado, pode haver situações concretas em que seja impossível a consumação do delito.

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Ou seja, a autoridade ou agente policial pode deixar de realizar a prisão ent fla grante no momento em que o crime está ocorrendo para obter maiores informações sobre o funcionamento e os membros da organização criminosa. Obviamente, a autori­ dade policial, no momento posterior, quando descobrir os elementos mais relevantes não poderá realizar a prisão em flagrante, pelo ato pretérito que foi tolerado visando à eficácia da investigação, uma vez que não mais existirá qualquer das situações de flagrante do art. 302.*“ Nâo se trata, porém, de uma nova modalidade de prisão em flagrante, ou da dis­ ciplina legal de uma nova situação de flagrante delito. Há, apenas, uma autorização legal para que a autoridade policial e seus agentes, que, a princípio, teriam a obrigação de efetuar a prisão em flagrante (CPP. art. 301, 2* parte), deixem de fazê-lo, visando a uma maior eficácia da investigação. A prisão em flagrante nos crimes permanentes apresenta peculiaridades, jus­ tamente pela natureza do crime, no que toca ao seu momento consumativo. O crime permanente é aquele em que o momento consumativo se protrai no tempo. Por exemplo, a extorsão mediante seqüestro é um crime permanente, pois, enquanto a vítima estiver no cativeiro, o crime estará se consumando. O art. 303 do CPP dispõe que: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência" 7' A prisão em flagrante no crime habitual também tem suscitado dútndas. O crime habituai é composto por uma série reiterada de atos que, isoladamente, não caracterizam crime (por exemplo, exercício ilegal da medicina). Assim, um ünico ato (por exemplo, receitar uma única vez, um único remédio) não caracteriza o crime, pois não estará satis­ feito o elemento da babitualidade, que exige a reiteração da conduta no tm p o . Embora baja controvérsia na doutrina, tem prevalecido o entendimento de que é impossível o flagrante no caso de crime babitual, posto que a “certeza visual” do cometimento do delito jamais cobriria o conjunto de atos necessários para caracterização da reiteração de condutas. Haveria, apenas, a percepção de um único ato isolado que, em si, nào é crime. No momento da visualização do ato, o que se constata é um indiferente penal.*' Obviamente, isso não impede que, diante da visualização de tal ato e, principal­ mente, do encontro de outros elementos de informação que indiquem a possível prática 90. Tourinho Filho (Manual..., p. 610) denomina tal modalidade de “flagrante protelado”. 91. A regra do art. 303 do CPP é apenas uma regra de reforço ou explicitação. Mesmo que não existisse, a prisão em flagrante seria perfeitamente possível. Se o crime está se consumando, há a possibilidade da prisão em flagrante, na sua modalidade de flagrante próprio (CPP, art. 302.1). 92. Na doutrma, pela impossibilidade da prisão em flagrante no crime habitual: Frederico Marques, Elementos..., v. 4, p. 89; Tourinho Filho, Manual..., p. 604; Castelo Branco, Da prisão em flagrante..., p. 71; Nucci, Código..., p. 633; Pedroso, Prisão em flagrante . , p 295. Em sentido contrário, admitindo o flagrante, desde que no ato flagrado fique patente a habitualidade; Greco Filho. Manual..., p. 256; Mirabete, Processo Penal, p. 406; Polastri Uma, A tutela cautelar..., p, 228.

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de outros atos em momentos pretéritos por exemplo, encontro de fichas de pacientes ou receituários usiados no consultório do falso médico), se instaure inquérito policial para a investigação do crime. A prisão em flagrante no caso de crimes perseguidos mediante ação penal públi­ ca condicionada e açâo penal privada apresenta peculiaridade. O auto de prisão em flagrante é uma das formas de dar início ao inquérito policial. Assim sendo, fica sujeito às regras dos §§ 4“ e 5° do art. 5® do CPP. No crime de ação pública condicionada, o inquérito não pode começar sem a representação da vítima, e no crime de açâo perial privada, sem o requerimento da vítima. Como é possível a qualquer do povo prendíer quem se encontre em flagrante delito (CPP, art. 301) e não se pode exigir que o leigo conheça quais são os crimes de ação penal pública condicionadáfõu privada, não fica vedada a realização da prisão-captura em tais delitos. Entretanto, apresentado o con­ duzido para a autoridade policial, esta nâo deverá lavrar o auto de prisão em flagrante e, muito menos, recolhê-lo à prisão (prisão-detenção), sem que haja a representação ou o requerimento da vítima.®'

18.2.2.5 Formalidades do auto de prisão em flagrante delito A “competência” (rectius: atribuição) para a lavratura do auto de prisão em fla­ grante é da autoridade policial do local em que ocorrer a prisào-captura, mesmo que esta se dê em local diverso do da prática do crime (por exemplo, crime ocorrido em São Paulo e, após perseguição, o agente é preso em Diadema, o auto será lavrado nesta última cidade). Se no local da captura não houver autoridade policial, o condutor deverá apresentar o preso para a autoridade policial do lugar mais próximo (CPP, art. 3 0 8 ).®’ No auto de prisão em flagrante deverão ser ouvidos o condutor, duas testemunhas presenciais e o conduzido (CPP, art. 304, caput). Esta, porém, é a situação normal de auto de prisão em flagrante, que poderá sofrer variações. Se não houver as duas testemunhas presenciais, poderão ser ouvidas duas testemunhas da apresentação do preso (CPP, art. 304, § 2®). As testemunhas de apresentação e as testemunhas presenciais têm finalidades distintas. As testemunhas presenciais depõem sobre o crime que foi praticado e sua autoria. Já as testemunhas de apresentação atestam apenas o fato de alguém ter sido apre­ sentado para a autoridade policial pelo condutor, que afirma ser ele o autor do delito. É óbvio que, do ponto de vista probatório, a primeira situação gera muito mais segurança. 93. Parte da doutrina entende que, neste caso, a vítima poderia ratificar a prisão no prazo de 24 horas, por analogia ao prazo da nota de culpa: Pedroso, Prisão em flagrante, p. 297; Mi­ rabete, Processo Penal, p. 406; Greco Filho, Manual..., p. 234. Não se pode aceitar tal ponto de vista, que transige com a liberdade. Seria o caso de se indagar a que título teria ficado preso o indivíduo, se nas 24 horas a vítima não ratificasse a prisão? 94. Na doutrina entende-se que a “incompetência” da autoridade que lavrou o auto nào acarreta a sua nulidade: Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 268; Polastri Uma, A tutela cautelar..., p. 238. Na jurisprudência: STF, RHC n° 59.476-0/ MG; TJSP, RT 684/321.

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Tem prevalecido o entendimento de que o condutor pode servir como testemunha Basta uma simples leitura do art. 304, caput, do CPP para se concluir de forma diversa O dispositivo prevê que a autoridade policial ouvira “o condutor e colherá, desde logo sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguido, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem [...]’’. (destacamos) Há clara e evidente distinção entre as figuras do condutor e das testemunhas. Se bastasse uma ünica testemunha, a redação seria o “condutor e a testemunha”. Além disso, a exigência de oitiva de duas testemunhas serve de elemento de convencimento para a autoridade policial, no sentido de que a prisão-captura efetuada pelo condutor é correta e legitima. Se o preso não souber 1er, o auto de prisão em flagrante deverá ser assinado por duas testemunhas, que presenciaram a leitura deste (CPP, art. 304, § 3*). Estas duas testemunhas de leitura do auto de prisão em flagrante não se confundem com as duas testemunhas presenciais do crime, que atestam a ocorrência do delito, nem com as testemunhas de apresentação, necessárias no caso de ausência de testemunhas presenciais. As testemunhas de leitura somente comprovam que o auto de prisão em flagrante foi lido para o preso analfabeto. O conduzido que, no caso, está sendo preso em flagrante poderá, obviamente, valer-se da garantia constitucional do direito ao silêncio (art. 5°, LXUI). Diante da redução da idade de maioridade civil pelo CC de 2002, para 18 anos, não é mais necessária a nomeação de curador para a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, caso o preso seja menor de 2 1 anos.*’ A Lei n° 11.113/2005 alterou a sistemática de registro das declarações no auto de prisão em flagrante. No regime originário do CPP, as oitivas eram re^stradas em sequência, uma ao término da outra, em uma mesma e única peça. A nova’redaçâo do art. 304, caput, do CPP prevê que os depoimentos do condutor, das testemunhas e o interrogatório do conduzido serão tomados em peças distintas, lavrando-se um termo para cada uma delas, que integrará o auto de prisão em flagrante. A finalidade de tal modificação foi permitir que, após suas declarações, o condutor e as testemunhas (normalmente policiais) sejam liberados, não tendo que aguardar a lavratura de todo o auto de prisão em flagrante.** 93. Nesse semido: Nucci, Código..., p. 636. 96. Cabe observar que a sequência narrada pelo art. 304, § 1“, do CPP não corresponde à realida­ de. Segundo a lei, a autoridade policial primeiro ouve o condutor, as testemunhas e o preso, já como atos integrantes da lavratura do auto de prisão em flagrante. E, somente depois, se de tais oitivas resultar “fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão" (prisão-detenção). Nesse sistema, poderia ocorrer que, após a oitiva de todos os sujeitos necessários para a lavratura do auto, a autoridade policial concluísse que não há suspeita contra o conduzido - ou que a conduta nâo constitui crime, ou que não há situação de flagrante - deixando de efetuar a prisão do conduzido. Na prática, a autoridade policial, informalmente, ouve o condutor, as testemunhas e o conduzido e, somente se con­ cluir pela ocorrência do crime e cabència da prisão em flagrante, é que passará à lavratura formal do auto de prisão em flagrante, com a consequente prisão-detenção do conduzido.

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As formalidades do auto de prisão em flagrante são sacramentais e constituem elementos essenciais do ato, cuja inobservância acarreta a nulidade do auto. De qual­ quer forma, a nulidade atinge apenas o auto de prisão como instrumento de coação cautelar da liberdade de locomoção, não gerando, porém, repercussão no processo, em especial, na sua expressão probatória.*® Do ponto de vista dinâmico, é de ressaltar que a autoridade policial poderá, em razão das oitivas realizadas, concluir ou nào pela ocorrência de um crime e, em caso positivo, se há ou não situação de flagrante delito. É nesse sentido que deve ser inter^ pretada a regra do art. 304, § 1°, do CPÇ que prevê; “resultando das respostas fu n d ad a a suspeita contra 0 conduzido, a autoridade mandará recolhê-lojt prisão (desta­ camos) A contrario sensu, se das respostas não resultar “fundada a"suspeita contra o conduzido”,*®a autoridade policial não mandará recolhê-lo à prisão, soltando-o.** O dispositivo, contudo, não prevê que não se lavrará auto de prisão em flagrante, mas que, após a lavratura, não se determinará o recolhimento do conduzido à prisão.'““ Em suma, será lavrado o auto de prisão em flagrante mas, depois, o autuado não será recolhido à prisão.'“' 97. No sentido da nulidade: Frederico Marques, Elementos..., v. 4, p. 73; Ramos, A tutela de urgên­ cia..., p. 227; Nucci, Código..., p. 637; Polastri Uma, A tutela cautelar..., p. 236. Destaque-se a posição de Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades..., p. 267) que, embora fundamentando a nulidade no art. 564, inciso IV, consideram-na absoluta, “por infringência à garantia constitucional". 98. Quanto ao standard probatório exigido, estas fundadas suspeitas nâo se identificam com um juizo de certeza, mas sim de probabilidade. Nesse sentido, Tomaghi (Instituições..., v. 3, p. 302) explica que “haverá/undada suspeita contra o conduzido quando os fatos apontados pelas pessoas que depuseram perante a autoridade autorizam a ter como provável que ele, conduzido, seja autor da infração” (destaques no original). 99. Partindo da distinção entre “captura” e “recolhimento”, Tomaghi (instituições..., v. 3, p. 302) explica que “o fato de alguém ser preso, isto c, capturado, não significa que deve ser necessariamente recolhido ã prisão. O § 1“ do art. 304 mostra que, se das declarações do condutor, do conduzido e das testemunhas a autoridade nâo infere fu n dada suspeita contra o conduzido, deve relaxar a prisão”. No mesmo sentido posiciona-se Tourinho Filho (Pro­ cesso..., V . 3, p. 528), para quem a autoridade policial poderá “relaxar a prisão”, e completa: “não poderã mandar recolhè-lo ã prisão”. Melhor, para evitar confusões com o “relaxamento da prisão em ílagrante”, usar a terminologia de Frederico Marques (Elementos..., v. 4, p. 75), “quando a autoridade não se convencer de que há indícios da autoria, o conduzido será solto”. 100. Tanto assim que as “respostas" a que se refere o § 1° do art. 304 são aquelas dadas durante a oitiva do condutor, das testemunhas e o “interrogatório do acusado", tal qual previsto no caput do mesmo artigo, que finda com a seguinte disposição: “lavrando, a autoridade, afinal, o auto”. Ou seja, depois das respostas das oitivas, que já integram o auto de prisão em flagrante, será lavrado, ao final, pela autoridade policial, o próprio auto. 101. Em sentido contrário posiciona-se Cogan (Legítima defesa..., p. 4 5 9 ), considerando que, em tais casos, a autoridade policial, verificando que não houve crime, sequer lavrará o auto de prisão em flagrante, limitando-se a elaborar simples boletim de ocorrência sobre os fatos.

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Embora o § 1®do art. 3 04 se refira a “fundada suspeita contra o conduzido”, pa_ recendo indicar que se trata de juízo apenas quanto à autoria delitiva,™* há corrente que lhe dá uma interpretação mais lata, a abranger tudo o que afastasse a existência de uma infração penal.™' De fato, do ponto de vista da existência do/umus commissi delicti, enquanto pressuposto geral de toda e qualquer medida cautelar, náo parece razoável e justo prender em flagrante delito seja quem não é autor - não há indícios suficientes de autoria - seja quem praticou fato que não é crime, incluindo em tal expressão não só a tipicidade, como também a ilicitude e a culpabilidade. É o melhor posicionamento, que denota grande preocupação com a liberdade do cidadão.'« Diversamente, nos casos em que a autoridade policial entender que o autuado deverá ser recolhido à prisão, poderá conceder-lhe fiança, agora nos novos limites do art. 322 do CPP.

18.2.2.6 Infração cometida na presença de autoridade ou contra autoridade A lavratura do auto de prisão em flagrante assume um colorido especial quando o crime é cometido na presença de autoridade ou contra autoridade, no exercício de sua função. O art. 307 do CPP prevê que constarão do auto de prisão em flagrante o fato de o crime ter sido cometido contra ou na presença de autoridade, no exercício de sua função, bem como a voz de prisão dada ao preso, e “as declarações que fiz er o preso e os depoimentos das íestemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelas 102. Nesse sentido, Nucci (Código..., p. 638) afirma que “isso se dá no tocante ã avaliação da autoria, mas não quando ao autoridade policial percebe ter havido ilguma excludente de ilicitude ou culpabilidade, pois cabe ao juiz proceder desta lorma”. ‘ 103. Para Espínola Filho (Código.., v. 3, p. 356): “pode suceder não haja uma infração punível, ou que dessa infração, segundo os esclarecimentos idôneos e sem discussão das testemu­ nhas, não seja autor o preso; então, a autoridade policial não deve manter uma prisão, que nâo se justifica, e soltará o autuado, remetendo imediatamente o instrumento da autuação em flagrante para o juiz, para apreciação, salvo se achar mais prudente deixar, também a determinação da soltura ao magistrado, a quem submeterá o caso, incontinente”. De forma semelhante, elencando hipóteses ainda mais amplas, Magalhães Noronha (Curso..., p. 164) afirma que nem sempre, porém, haverá lugar a custódia do preso: “pode acontecer que, pelos esclarecimentos prestados, a autoridade verifique, v.g., não ter havido crime e sim apenas um ilícito civil; que não é o capturado o autor do crime; que se acha extinta a punibilidade (novatio legis etc.) e outras causas ou circunstâncias”. Admitindo que a autoridade policial, após a lavratura do auto, deixe de ordenar a prisão, por inexistência de crime, quando verificar alguma excludente de ilicitude. Cf.: Frederico Marques, Elementos..., v. 3, p. 77, nota 42; Marrey, Legitima defesa..., p. 386. 104. Tal solução ainda evita a discussão se a liberdade provisória do art. 310 pode ou não ser concedida pela autoridade policial. Em sentido negativo, considerando-a ato privativo do juiz, cf.; Franco, Código. .. p. 368; Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 154. Mais enfático, Tornaghi (Instituições..., v. 3, p. 283) afirma que “A lei brasileira foi, a meu ver, prudente. Deixar ao executor da prisão a faculdade dc apreciar a existência da causa de licitude é demais arriscado. Só o juiz poderá fazer esse juizo de valor e terá de agir com toda prudência".

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testemunhas”. Em outras palavras, não haverá necessidade de oitiva do condutor, até mesmo porquê ninguém conduzirá o preso até a autoridade, visto que o crime ocorreu na presença da própria autoridade. Se esta for um delegado de polícia, o auto por ele lavrado será imediatamente encaminhado ao juiz a quem couber tomar conhecimen­ to do fato delituoso (CPP, art. 307, parte final). Caso contrário, se a autoridade que ■ lavrou o auto for o próprio juiz de direito, não haverá necessidade de remessa do auto de prisão em flagrante ou de comunicação ao juiz de direito, salvo se não se tratar de juiz competente para o conhecimento da causa. A autoridade a que se refere o art. 3 07 do CPP é aqUela que tem poderes para lavratura do auto de prisão em flagrante, sendo, portanto, ju iz ou delegado de polícia. Por certo, no caso de um crime cometido na presença de juiz de direito, e tendo ele lavrado o auto de prisão em flagrante, está impedido para atuar no processo que eventualmente venha a se instaurar por tal fato. A perda da imparcialidade objetiva será evidente e incontesté.'“

18.2.2.7 Comunicação da prisão em flagrante e sua apreciação judicial Lavrado o auto de prisão em flagrante delito, o art. 306, caput, do CPP prevê que a prisão será imediatamente comunicada à autoridade judiciária, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (CPP, art. 306, caput). A CR assegura que a prisão em flagrante seja imediatamente comunicada “áfam ília do preso ou à pessoa por ele indicada” (art. 5°,LX II, 2“ parte)."" A Lei n" 12.403/2011 acrescentou a necessidade de comunicação imediata da prisão ao Ministério Público, o que se toma relevante para que possa requerer o que entenda conveniente, por ocasião da apreciação judicial da prisão em flagrante (CPP, art. 310). A imediata comunicação da prisão do caput do art. 306 não se confunde com envio do auto de prisão em flagrante ao juízo, em 24 horas, para a sua “jurisdicionalização”. 105. Nesse sentido; Tourinho Filho, Manual..., p. 608; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 268; Nucci, Código..., p. 642. Em sentido contrário, Polastri Uma (A tutela cautelar..., p. 237), embora reconheça que o referido artigo “deixe a entender que o juiz também poderia lavrar o flagrante”, nega tal possibilidade, por consi­ derar que “não mais se pode admitir que o juiz venha a se tomar inquisidor”. 106. Analisando a questão. Castelo Branco (Da prisão..., p. 81-82) explica que “a lei brasileira não derrogou as normas sobre suspeiçâo no caso de infração praticada contra o juiz [...] A suspeiçâo para o processo que nasce da ofensa, todavia, é inquestionável”. No mesmo sentido, considerando que o juiz que presidiu a lavratura do auto de prisão em flagrante não pode presidir a ação penal, cf.; Damásio E. dejesus. Código ..., p. 248. 107. Todavia, o STJ já decidiu que a comunicação tardia da prisão feita pela família do preso constitui mera irregularidade, não sendo apta a anular a prisão em flagrante (RHC n° 10.220/ SP). Na doutrina, Tourinho Filho (Manual..., p. 607) afirma que a falta de comunicação não invalida o auto de prisão em flagrante. Contrariamente, no sentido de que a não comunica­ ção ã família do preso gera nulidade do auto; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 273. Nesse último sentido, na jurisprudência: extinto TAMG, RT 657/318.

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prevista no § 1° do mesmo artigo. No mesmo prazo também será enviada cópia do auto de prisão em flagrante para a Defensoria Pública, caso o autuado não informe o nome de seu advogado. Uma vez lavrado o auto de prisão em flagrante pela autoridade policial, ele deverá ser comunicado imediatamente à autoridadejudiciãria competente, para a verificação da legalidade da medida. Além disso, no prazo máximo de 24 horas, a contar da lavratura do auto de pri­ são em flagrante, será dado ao preso a nota de culpa, que é um documento assinado pela autoridade que lavrou o auto, dele constando o motivo da prisão, o nome do condutor e das testemunhas (CPP, art. 306, § 2°). Com a nota de culpa assegura-se o cumprimento da garantia constitucional de que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão”.'“® Após a comunicação do auto de prisão em flagrante delito, o art. 310, caput, do CPP prevê que o juiz terá as seguintes alternativas: I - relaxamento da prisão, se ile­ gal; II - decretação da prisão preventiva, se não for cabível qualquer outra medida alternativa; e III - conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança. A regra do inciso primeiro reproduz a garantia constitucional de que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridadejudiciãria" (art. 5°, LXV). Por outro lado, sendo legal a prisão, ojuiz deverá verificar a necessidade de impor alguma medida cautelar. Neste caso, deverá começar, sempre, pela medida de menor gravidade. Primeiro, poderá conceder a liberdade provisória (CPP, art. 310, caput, III) em duas hipóteses: se verificar que o fato foi praticado em situação de excludente de ilicitude (CPP, art. 310, parágrafo único) ; ou se, arbitrada a fiança, a situaçqo econômica do acusado nào lhe permitir prestá-la (CPP, art. 35 0 ).'“* O inciso III do art. 310 deve 108. AnLigo precedente do STF considera que “a omissão do motivo da prisão na nota de culpa não gera a nulidade do flagrante" (RT 433/455). O STJ já reputou que há mera irre­ gularidade, nào havendo que se falar em nulidade, na “ausência do nome do condutor na nota de culpa” (RHC n° 7.122A>A), ou no caso de “o mero erro material na consignação da data da prisão na nota de culpa” (RHC n° 20.625/BA), ou ainda no caso de “mera deficiência da capitulação do delito” (RHC n° 7.890/RJ). No mesmo sentido se manifestou o extinto TACrimSP, RT 529/369. 109. Com a Lei n° 12.403/2011, deixou de existir a hipótese de liberdade provisória sem fiança, em que o acusado podia se livrar solto, ante a nova redação do art. 321 do CPR que anteriormente linha a seguinte redação: “Art. 321. Ressalvado o disposto no art. 323,111 e IV, o réu livrar-se-á solto, independentemente de fiança: I - no caso de infração, a que não for, isolada, cumulativa ou alternativamente, cominada pena privativa de liberdade; II quando o máximo da pena privativa de liberdade, isolada, cumulativa ou alternativamente cominada, nâo exceder a três meses”. Aliás, tal instituto já havia sido esvaziado pela Lei n» 9.099/1995. Como os crimes e contravenções penais que admitiam que o investigado se livrasse solto, por serem infrações de menor potencial ofensivo, e a regra do art. 69, parágrafo único, da Lei n° 9.099/1995, praticamente impediu a prisão em flagrante delito no caso de infrações penais de menor potencial ofensivo, na prática deixou de ocorrerem situações em que o investigado se livrava solto.

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ser complementado pelo disposto no art. 321, que prevê a possibilidade de o juiz con­ ceder a liberdade provisória, isoladamente, ou cumulada com outra medida cautelar. Não sendo o caso de concessão de liberdade provisória, poderá aplicar medidas cautelares alternativas à prisão, incluindo a fiança (CPP, art. 310, caput, II, 2’ parte), isolada ou cumulativamente (CPP, art. 282, § 2®). Por fim, poderá decretar a medida mais gravosa, isto é, a prisão preventiva (CPP. art. 310, caput, II, 1®parte). Evidente, pois, que a prisão passa a exigir motivação idônea. Em um primeiro momento, justificando a inadequação das medidas menos gravosas. Em uma segunda etapa, expondo com base em quais elementos dos autos se eonqfui pela presença do fumus commissi deíicti e do percilum libertatis (CPP, art. 312), bem como do requisito negativo do art. 314 e, finalmente, que se trate de uma das hipóteses do art. 313 do CPP. Assim, ante as alterações promovidas pela Lei n° 12.403/2011, não basta mais que o juiz conclua que “o flagrante está formalmente em ordem, aguarde-se a vinda dos autos principais". Se assim o fizer, sem indicar concretamente o motivo pelo qual a prisão em flagrante deverá ser convertida em prisão preventiva (art. 310, caput, II, pri­ meira parte), a manutenção do acusado preso caracterizará constrangimento ilegal, por ausência de motivação para a prisão. No entanto, isto ainda não basta. Para converter a prisão em flagrante em prisão preventiva será necessário justificar, concretamente, serem “inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão” (art. 310, caput, II), bem como não ser o caso de concessão de “liberdade provisória, com ou sem fiança” (art. 310, caput, III). Embora o art. 310, caput, não o preveja, é evidente que o ju iz poderá, mesmo diante de uma situação de legalidade da prisão em flagrante delito, concluir que não há necessidade de imposição de qualquer medida cautelar. Nesse caso, não se trata de relaxamento do flagrante, posto que este será legal, mas Simplesmente de não con­ vertê-lo em nenhuma medida cautelar, colocando o autuado em liberdade.

18.2.3 Prisão preventiva A prisão preventiva é a prisáo cautelar por excelência. E, antes da Lei n° 12.403/2011, era a medida em torno da qual gravitava todo o sistema de medidas cautelares pessoais. Em linhas gerais, é possível afirmar que. para a decretação da prisão preventiva, é necessária a presença do pressuposto positivo, isto é, do/umus commissi deíicti con­ sistente na prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, aliado a pelo menos uma das hipóteses de periculum libertatis do mesmo dispositivo, quais sejam os requisitos da garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal (art. 312, caput). Há, também, o pressuposto negativo do art. 314 do CPP, não podendo ter “ter o agente praticado o fa to nas condições previstas nos incisos I, II e II do caput do art. 23 do Código Penal”, isto é, acobertado por excludente de ilicitude. Tudo isso, porém, somente

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poderá justificar a preventiva caso se estiver diante de uma das suas hipóteses de cabimento definidas no art. 313 do CPP.

18.2.3.1 Momento para decretação Nos termos do disposto no art. 311 do CPP, a prisão preventiva pode ser decretada tanto durante o inquérito policial quanto no curso da açào penal. Tal sistemática poderia ser adequada no regime originário do CPP em que não existia a prisão temporária. Todavia, com o advento da Lei n" 7.960/1989, que criou a prisão temporária, que somente é cabível durante o inquérito policial, e tem requisitos mais tênues que os da prisão preventiva, não tem mais sentido, diante de uma inter­ pretação sistemática, a decretação da prisão preventiva no curso do inquérito policial. Aliás, se já bá o fumus commissi delicti, isto é, indício de autoria e prova da materiali­ dade delitiva para a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312), também baverá justa causa para ação penal. Em suma, ou, de um lado, é cabível a prisão preventiva e também já se têm elementos para o oferecimento da denúncia, e em tal contexto seria ilegal a continuação do inquérito policial, sem denúncia oferecida, mormente estando preso o acusado, ou, de outro lado, ainda não bá elementos suficientes para a prisão preventiva, no que toca à “plausibilidade do direito de punir", e também não se pode exigir o oferecimento da denúncia. É um contrassenso, porém, entender qu ejá bá indícios de autoria e prova da materialidade delitiva para que seja decretada a prisão preventiva, mas que ainda não bá justa causa para a ação penal. Aliás, é de destacar que, no caso de investigado preso, o inquérito policial deve ser concluído no prazo de dez dias (CP^P, art. 10) e, em qualquer caso, o Ministério Público somente pode requerer a devolução dos autos do inquérito policial para a autoridade policial quando houver diligências “impres­ cindíveis ao oferecimento da denúncia" (CPP, art. 16), o que não será o caso, se a prisão preventiva estiver decretada. A questão, contudo, ganhou novos contornos, a partir da Lei n“ 12.403/2011, na medida em que a prisão em flagrante delito tornou-se uma medida pré-cautelar, e, se por ocasião da sua jurisdicionalização for constatada a necessidade de imposição de medida cautelar, sendo adequada somente a medida extrema da prisão, não será possível converter a prisão em fiagrante em prisão temporária. Nesta hipótese, outro caminho não restará a nâo ser a conversão da prisão em flagrante em prisão preven­ tiva (CPP, art. 310, caput, 1, primeira parte). Haverá, portanto, prisão preventiva no inquérito policial. Isso não invalida, porém, a premissa de que, se há fumus commissi delicti para converter a prisão preventiva em prisão em flagrante, haverá justa causa para a ação penal, caracterizando, portanto, constrangimento ilegal o não oferecimento da de­ núncia e a volta dos autos à polícia com pedido de prazo para realização de diligência. Isso porque ou lal diligência náo será imprescindível ao oferecimento da denúncia, porque já há/umus commissi delicti e justa causa para a ação penal ou, caso contrário, se

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a diligência for realmente imprescindível, é porque ainda nào há justa causa e também o pressuposto do árt. 312 do CPP. 18.2.3.2 Legitim idade p ara req u erer a p risão A prisão preventiva pode ser requerida pelo M inistério Público. Também pode ser requerida pelo querelante, no caso de açáo penal privada. As partes da ação penal podem requerer medidas cautelares para instrumentalizá-la, em caso de necessidade de tutela cautelar. I Por outro lado, com a alteração do art. 311, promovida pela Lei n° 12.403/20 í 1, 0 assistente de acusação também passou a ter legitimidade p ^ íi requerer a prisão preventiva. Tal previsão é incompatível com o papel de parte secundária ou ad coad ­ juvandum do assistente."“ Somente a parte acusadora, isto é, o Ministério Público na ação penal pública, ou o querelante, na açâo pena privada, podem promover a ação penal e, consequentemente, medidas cautelares para lhe assegurarem a utilidade e eficácia. Poder-se-ia chegar ao cúmulo de o Ministério Público, isto é, a parte principal, ser contrário à prisão, mas o assistente, a parte secundária e subordinada ao interesse daquela, requerer a prisão! No que toca ao juiz, a Lei n° 12.403/2011 restringiu a possibilidade de decretação de prisão preventiva ex officio, o que somente poderá ocorrer no curso da ação penal (CPP, art. 311, c.c. o art. 282, § 2°), isto é, depois de oferecida a denúncia ou queixa. Em contrapartida, no curso do inquérito policial ou de qualquer outra forma de in­ vestigação preliminar, não será possível a decretação da prisão pelo juiz, de ofício. Em tal hipótese, somente mediante requerimento do Ministério Público ou representação da autoridade policial. A restrição é correta. À luz de um processo penal acusatório, em que haja clara separação das funções, não se deve admitir que o ju iz tenha poderes para decretar medidas cautelares ex officio, principalmente no curso da investigação, quando sequer há imputação formulada pelo Ministério Público ou querelante. Se o juiz, em tal con­ texto, decretasse uma prisão, comprometeria, inevitavelmente, sua imparcialidade. A mudança, contudo, deveria ser mais ampla, impedindo, também, que no curso do processo o juiz pudesse decretar a prisão preventiva de ofício. Ainda que em tal momento já haja denúncia ou queixa, mesmo assim o risco de perda da imparcialidade é muito grande, sendo melhor impedir totalmente tal possibilidade."* Por fim, foi mantida a possibilidade de a autoridade policial representar pela decretação da prisão preventiva (CPP, art. 311, parte final). Obviamente, nào se trata de requerimento, mas de representação. A autoridade policial não é parte. Não 110. Nesse sentido, pela inconstitucionalidade da nova hipótese de legitimação, cf.; Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 131. 111. Mais enfático, no sentido da inconstitucionalidade da nova previsão, por ser incompatível como sistema acusatório: Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 129.

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formula pretensão alguma. Assim sendo, sua representação nâo deve ser dirigida ao juiz, mas ao Ministério Público, para que este, considerando-a correta, requeira a prisão preventiva. Nem se argumente que a representação pode ser dirigida ao juiz, pois este, ante tal ato da autoridade policial, mas sem manifestação do Ministério Público, ou até mesmo com parecer contrário, poderia decretar a prisão cxojfjficio. Durante o inquérito há expressa vedação para tanto (CPP, art. 282, § 2°). Mesmo no curso da ação penal, será uma medida que nâo se originou de requerimento de parte, tendosido formulada ou por quem tem apenas poder para investigar, ou por ato de oficio de quem deveria se reservar a importantíssima missão de julgar, e apenas julgar.

18.2.3.3 Legitimidade para decretar a prisão Som ente o ju iz de direito, mediante decisão fundamentada, poderá decretar a prisão preventiva. No caso de ação penal de competência originária dos tribunais, a prisão deverá ser decretada pelo desembargador ou pelo ministro que for o relator da ação penal.

18.2.3.4 Pressupostos positivos para a decretação da prisão preventiva Os pressupostos positivos para a decretação da prisão preventiva são previstos no art. 312, caput, CPP: a prisão preventiva poderá ser decretada “quando houver prova da existência do crim e e indício suficiente de au toria” (destacamos). Trata-se, pois, do que se convencionou denominar/umus commissi deíicti. Há dois aspectos a serem considerados: (1) existência do crirrje; (2) autoria. Quanto à existência do crime, ou seja, a materialidade delitiva, é necessário que haja “prova”, isto é, certeza de que o fato existiu.'" Neste ponto, há uma exceção ao regime normal das medidas cautelares, na medida em para a caracterização do/umus boni iuris há determinados fatos sobre os quais o juiz deve ter certeza, não bastando a mera probabilidade. 112. Grinover, Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades .... p. 290) observam que “é indispensável, quanto ao fumus boni iuris, que o juiz demonstre a tipicidade do fato e sua real existência, apontando provas em que se apoia sua convicção, sendo imprescindível o laudo de exame de corpo de delito quando a infração deixar vestígios (art. 158, CPP)”. Também para Greco Filho (Manual ..., p. 244) “Prova do fato significa convicção da exis­ tência da materialidade da infração. Era princípio, em se tratando de infração que deixou vestígios, a presença do exame de corpo de delito”. Da mesma forma, segundo Tornaghi (Curso v. 2, p. 90) a expressão prova da existência do crime “deve ser entendida como prova de existência do fato criminoso em sua materialidade”. A lei exige, segundo Tou­ rinho Filho (Processo penal, v. 3, p. 484) que “haja prova da materialidade delitiva”. Para Campos Barros (Processo penal cautelar, p. 194) a expressão “prova da existência do crime corresponde a tipicidade comprovada”, isto é “uma realidade fática da qual não se tenha düvida", acrescentando, ainda, que “é certo que em se tratando de tipo que se compõe dc elementos normativos e subjetivos do injusto, estes também deverão ser valorados”.

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Já quanto a autoria delitiva, não se exige que ojuiz tenha certeza da autoria, bas­ tando que haja elementos probatórios que permitam afirmar, no momento da decisão, a existência de “indício suficiente", isto é, a probabilidade de autoria.™* Cabe destacar, que neste ponto, a expressão indício foi utilizada no sentido de uma simples “prova leve” ou uma prova semiplena de autoria.™® São esses os pressupostos positivos para a decretação da prisão preventiva; há, também, os pressupostos negativos. /

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18.2.3.5 Pressupostos negativos para a decretação da prisão preventiva A prisão preventiva também não será decretada se o juizconstatar que o agente praticou o fato acobertado por uma das excludentes de ilicitude (CPP, art. 314). Ou seja, se alguém pratica um fato típico que seria passível de prisão preventiva (CPP, art. 313), mesmo havendo necessidade cautelar (CPP, art. 312, caput), não poderá ser decretada a prisão preventiva se o fato tiver sido praticado acobertado por excludente de ilicitude (CP, art. 23) ou de culpabilidade. O investigado ou acusado permanecerá em liberdade. Embora o CPP determine que a prisão não será decretada “se ojuiz verificar pelas provas constantes dos autos” ter sido fato acobertado por excludente de ilicitude, não se exige a certeza da ocorrência de tal excludente. “Verificar” nâo é a mesma coisa que “ter certeza".™* Aliás, não se pode ignorar que, em sede de medidas cautelares, não se exige uma cognição exauriente, bastando a cognição sumária dos requisitos da medida. Se há fortes elementos a indicar que, provavelmente, o fato foi praticado em uma situação de excludente de ilicitude, não estará caracterizado o fum us commissi delicti."^ 113. Frederico Marques (Elementos ..., v, IV, p. 115) entende que “há indícios suficiente de autoria, quando o réu é o provável autor do crime”. Também para Campos Barros (Processo penal cautelar, p. 194) “‘indícios suficientes’ significa probabilidade certa de autoria e não simples possibilidade”. Da mesma forma, segundo Tourinho Filho (Processo Penal, v. 3, p. 90) não se trata de certeza, mas de probabilidade de autoria. 114. No art, 312, caput, do CPP, o legislador, certamente, utiliza-se da expressão “indícios" em sentido diverso daquele empregado no art. 239, querendo se referir a um dado probatório que possa dar suporte a um juizo positivo da autoria, embora não haja certeza da mesma (sobre os significados da palavra indício, cf. supra, subseção 10.11,1). Segundo Grinover, Gomes Filho e Scarance Fernandes (As nulidades .... p. 118) a expressão indício em tal dispositivo refere-se a uma “prova semiplena”. Também para Tomaghi (Curso ..., v. 2, p. 91) a expressão indício foi empregada “no sentido de provas leves, provas fracas”. 115. Fm antigo julgado, citado por Espínola Filho (Código..., v. 3. p. 405), o extinto Tribunal de Apelação de São Paulo decidiu que o art. 314 do CPP “nào quer significar que ojuiz tenha uma certeza absoluta de que assim mesmo aconteceu, mas que ele está seguro da presunção, da probabibdade de terem os fatos acontecidos segundo as provas colhidas no inquérito policial, modificáveis, por sem dúvida, durante a instrução que irá presidir” (RT 145/512). 116. Nesse sentido, Nucci (Código..., p. 670) observa que “não se exige, nesse caso, a perfeita constatação de que a excludente estava presente, mas indícios fortes da sua existência”.

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Tal conceito, embora correto, é insuficiente. Pela própria natureza das prisões cau­ telares e ante a necessidade de uma probabilidade de condenação futura, é necessário trabalhar com um conceito ampliado defumus commissi delicti, incluindo, além da ino­ corrência de excludentes de ilicitude, a não verificação de excludentes de culpabilidade. Isso porque, se ao final do processo estiver demonstrada a existência de uma excludente de ilicitude ou de culpabilidade, ou mesmo houver fundada dúvida sobre suas ocorrências, o acusado deverá ser absolvido, nos termos do inciso VI do art. 386 do CPP Evidente que, nesse contexto, se, no curso da investigação ou do processo, estiver provada ou mesmo houver fundada dúvida nâo apenas sobre a existência do crime, mas também sobre as excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, haverá uma injustificada limitação da liberdade pessoal do acusado se lhe for imposta ou mantida uma medida cautelar, em especial, a prisão preventiva."® Logo, não só a prisão preventiva, mas nenhuma medida cautelar - por exemplo, prisão em flagrante, prisão temporária ou medidas alternativas à prisão - , deverá ser aplicada ou mantida quando estiver demonstrada a ocorrência de causa excludente de ilicitude, ou também quando houver “dúvida sobre a sua verificação”."® Por tudo isso, a regra que hoje se encontra no art. 314 do CPP, vedando a prisão preventiva quando o juiz verificar “ter o agente praticado o fa to nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23” do CP, deveria transformar-se em regra geral de toda e qualquer medida cautelar."* Estaria mais bem situada, portanto, como um dos parágrafos do novo art. 282 CPP. Todavia, como demonstrado, por ser da estrutura das medidas cautelares o prognóstico de uma condenação penal, nada impede que a regra do art. 314 seja lida e aplicada como uma regra geral de aplicabilidade de todas as medidas cautelares, sob pena de se impor ao investigado ou acusado uma constrição cautelar quando ausente o fumus commissi delicti. Pela mesma razão, tudo o que foi exposto se aplica também às excludentes de culpabilidade: se o juiz verificar, pela prova dos autos, que o agente praticou o fato em condições que exclua a culpabilidade, não poderá decretar a prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar, por analogia com o art. 314 do CPP*“ 117. Nesse sentido, no tocante ao processo penal português, cf.: Marques da Silva, Curso..., v. 2, p. 241. 118. Marques da Silva, Curso..., v. 2, p. 240. 119. Analisando tal regra, ressalta Frederico Marques (Elementos..., v. 4, p. 47): “Não deve considerar existente o fumus boni juris, ou a probabilidade da imputação, a não ser quando exista fato típico comprovado, e também antijuridicidade. [...| Parece-nos que, se evidente o erro de fato, ou também alguma das dirimentes do art. 18 do Cód. Penal, o juiz não imporá medida coercitiva, por falta de justa causa. Seria injustificável que, não havendo probabilidade alguma de condenação do réu, por estar plenamente demonstrada a existência de dirimente, o juiz ainda o mantivesse sob custódia preventiva”. No mesmo sentido, cf. Webei Batista, Liberdade provisória..., p. 55-56. 120. Embora não chegando a tal ponto, parte da doutrina considera que, caso tenha ocorrido prisão em flagrante delito, pelas mesmas razões, o juiz deverá conceder a liberdade provisória.

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18.2.3.6 Requisitos positivos da prisão preventiva

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Para a decretação da prisão preventiva, o CPP estabelece pressupostos (art. 312, caput, segunda parte), requisitos positivos (arts. 312, caput, primeira parte), requisitos negativos (art. 314) e as hipóteses de cabimento da prisão (art. 313). Embora a prisão preventiva seja uma medida cautelar típica, o periculum libertatis é definido por meio de conceitos amplos, sem a descrição precisa de situações fáticas que o caracterizariam.

18.2.3.6.1 Garantia da orderh pública A expressão “ordem pública" é vaga e de conteúdo indeterminado. A ausência de um referencial semântico seguro para a “garantia da ordem pública” coloca em risco a liberdade individual. Ajurisprudência tem se valido das mais diversas situações reconduzíveis à garantia da ordem pública: “comoção social”, “periculosidade do réu”, “perversão do crime”, “insensibilidade moral do acusado”, “credibilidade da justiça", “clamor público”, “repercussão na mídia”, “preservação da integridade física do indiciado”... Tudo cabe na prisão para garantia da ordem p ú b lica."' Magalhães Gomes Filho explica que: “[...] à ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento provisório que nâo se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação de liberdade adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em “exemplaridade”, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento dejustiça da sociedade; ou, ainda. também por analogia com o art. 310, parágrafo único, do mesmo Código. Basileu Garcia (Comentários..., v. 5, p. 137) já anotava, no início de vigência do CPP, que “a restrição do favor legal de que tratam os arts. 3 1 0 e 3 1 4 ã s hipóteses de justificativas dá ensejo a situações de desigualdade. O benefício poderia ter sido ampliado a todas as causas de impunidade". De forma semelhante, Frederico Marques (Elementos..., v. 4, p. 77) entendia que “o preceito do art. 310 estende-se, igualmente, a alguns casos de dirimentes dos arts. 17 e 18 do Cód. Penal”. Magalhães Noronha (Curso..., p. 164), depois de observar que o CPP nâo estendeu liberdade provisória às excludentes de culpabilidade, destacava: “não seria exagero abrangè-las, máxime em relação ao erro de fato, à coação irresistível e à estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico”. Era, também, o posicionamento de Tomaghi (Instituições..., v. 3, p. 284); “acho que a lei poderia ter estendido o beneficio aos casos de dirimentes”. Ainda no regime anterior, manifestando-se pela aplicação analógica do caput [atual parágrafo único] do art. 310 do CPP, no caso de excludente de ilicitude: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 595; Weber Batista, Liberdade provisória..., p. 55; Nucci, Código..., p. 644. 121. Embora, na prática, se utilize tranquilamente tal requisito da prisão preventiva, é correta a critica de Magalhães Gomes Filho (Presunção de inocência..., p. 69) no sentido de que a prisão para garantia da ordem pública fere a garantia da legalidade estrita em termos de restrição da liberdade. Como bem aponta Tourinho Filho (Manual..., p. 614), os juizes se transformam em “sismógrafos” da opinião pública, expressando sua “idiossincrasia por este ou aquele crime”.

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em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitarem novos crimesuma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras, relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do acusado. Parece evidente que nessas situações a prisão não é um “instrumento a serviço do instrumento”, mas uma antecipação da puniçáo, ditada por razões de ordem substancial e que pressupõe o reconhecimento da culpabilidade.”*" Quando se prende para “garantir a ordem pública”, não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório. Ao contrário, o que se está pretendendo é a antecipação de alguns efeitos práticos da condenação penal. No caso, privar o acusado de sua liberdade, ainda que juridicamente tal situação não seja definitiva, mas provisória, é uma forma de tutela antecipada, que propicia uma execução penal antecipada.*" Em precisa e feliz síntese, afirma Geraldo Prado: “[... I a inconstitucionalidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública (e da ordem econômica) não decorre exclusivamente do que ela nào é: de não se tratar de medida cautelar. Esta prisão é inconstitucional também pelo que ela é: medida de policia judicial que antecipa a punição, o castigo, e o faz mais gravemente desvinculada da questão controvertida no processo - se o acusado é penalmente responsável pela conduta que lhe é atribuída - valendo-se do processo como mero veículo ou pretexto para impor privação de liberdade”.*'® Entretanto, não há como negar que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública tem sido constantemente utilizada pelos tribunais pátrios, aiiSda que com algumas restrições. De uma maneira geral, não tem sido aceita a prisão decretada

122. Magalhães Gomes Filho, Presunção dc inocência..., p. 67-68. No mesmo sentido, também merecendo transcrição, o posicionamento de Odone Sanguiné (Clamor público..., p. 238259); “quando se argumenta com razões dc exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito etc., que evidente­ mente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva político-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre ‘funções reais’ (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza". 123. Na doutrina, destacando que a prisão para garantia da ordem pública não tem finalidade cautelar; Frederico Marques, Elementos..., v. 4, p. 49-50; Delmanto Jr., As modalidades..., p. 156; Lopesjr., Introdução critica..., p. 208. Em sentido parcialmente diverso, Ramos (A tutela de urgência..., p. 143) considera que “a prisão preventiva decretada por garantia da ordem pública não é cautelar nem antecipatória, mas medida judiciária de policia, justificada e legitimada pelos altos valores sociais em jogo”. 124. Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão.,., p. 142-143.

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com base apenas na gravidade abstrata do delito, mesmo quando se trate de crime hediondo.'" Também não tem sido aceita a identificação da “ordem pública” com o “clamor público”, pois este era requisito apenas para que não se concedesse a liberdade provi­ sória (CPP, art. 323, y em sua redação anterior) - “nos crimes punidos com re c lu s a , que provoquem clamor público” - , mas nâo é fundamento para a decretação da prisão preventiva.'™ ^ Há casos em que se decretou a prisão preventiva para garantia da ordem pública até mesmo para assegurar a integridade física e a vida do acusado, diante de ameaças de linchamento. Trata-se de evidente abuso e ilegalidade. O Esta^p falha no seu dever de assegurar a integridade física e a vida de todo e qualquer cidadão, inclusive aquele que está sendo acusado de um delito, e quem paga pelo inadimplemento estatal é o próprio acusado.*" Não se deve aceitar que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública seja decretada muito tempo após a prática delitiva. Difícil aceitar que necessidade de assegurar ou garantir a ordem pública subsista muito tempo depois do cometimento do delito.*“ Por fim, é observar que a Lei n° 12.403/2011 acabou por restringir o espectro de hipóteses em que a garantia da ordem pública poderia justificar a prisão pre­ ventiva. Isso porque o inciso I do caput do art. 282, ao definir os casos de necessidade cautelar, estabeleceu, como tantas vezes já destacado, que as medidas cautelares somente poderão ser decretadas por “necessidade p ara aplicação da lei penal, p a r a a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressam ente previstos, p ara ev itar a prática de infrações penais". (destacamos) A prisão para garantia da ordem pública não tem finalidade de assegurar a “instrução criminal" nem a “aplicação da lei penal”, até mesmo porque tais escopos são expressamente previstos no próprio caput do art. 312, ao lado da garantia da ordem pública. Portanto, a única interpretação que, de ma­ neira menos imperfeita, poderia compatibilizar o art. 282, caput, 1, com o caput do art. 312 é considerar que a prisão preventiva para “garantia da ordem pública” representa

125. Na jurisprudência, não admitindo a prisão com base na gravidade abstrata do crime; STF, HC to 90.862/SP, HC to 88.408/SP, HC to 8 7 .0 4 1/PA, HC to 81.126/SP; STJ, RHC to 11.755/RS, HC to 18.633/SP. 126. Na jurisprudência, afastando o “clamor püblico” como fundamento da preventiva: STF, HC to 87.041/PA, HC-QO n° 85.298/SP; STJ, HC n° 33,770/BA, HC to 4.926/SP; TJSP. HC to 311.499-3/0-00. 127. Na doutrina, negando a possibilidade da prisão: Costa Manso, 0 processo..., p. 617; Campos Barros, Processo..., p. 198; Weber Batista, Liberdade provisória, p. 78, Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 511; Nucci, Código..., p. 659. 128. Nesse sentido, já decidiu o STF, em relação a uma prisão requerida mais de três anos após os fatos (HC to 90.063/SP). O STJ não admitiu a prisão quase um ano após o fato (RT 653/357). Na doutrina. Ramos (A tutela de urgência..., p. 361) destaca que “não é razoável aceitar-se uma medida de urgência requerida e decretada muito tempo após o fato”.

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um dos “casos expressamente previstos" em que a medida, por exemplo, a prisáo, é decretada “para evitar a prática de infrações penais”. Ou seja, mesmo para aqueles que admitem a constitucionalidade da prisão para garantia da ordem pública,'" sua 129. Justamente ante as inúmeras críticas doutrinárias quanto à vagueza da expressão ordem pública, a permitir que a prisão preventiva assumisse finalidades não cautelares, o Projeto de Lei n° 4.208/2001, optou-se por substituir tal hipótese de periculum libertatis por outra, que desse mais concretude e delimitasse melhor a hipótese de cabimento. Assim é que, em sua versão original, o Projeto de Lei n° 4.208/2001 propôs a seguinte redação para o art. 312 do CPP; “Art. 312. A prisão preventiva poderã ser decretada quando verificados a existência de crime e indícios suficientes de autoria e ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa". Ou seja, a prisão preventiva passaria a ser um dos “casos expressamente previstos" de medida “cautelar" necessária “para evitar a prática de infrações penais”. Ainda que a proposta significasse um avanço, não se pode deixar de observar que, em uma visão estrita de que as medidas cautelares visam assegurar a utilidade e a eficácia do provimento final, sendo admissíveis, pois, cautelas instrumentais (que asseguram a investigação ou instrução) ou cautelas finais (que asseguram a aplicação da lei penal), embora o disposi­ tivo proposto tenha delimitado em muito o campo de incidência da prisão para fins nâo processuais, a proposta continuava a admitir prisões que não tinham natureza cautelar! A mesma critica foi feita por Fabio Delmanto, Medidas cautelares..., p. 293. 130. Em diversos países há modalidades de prisões que não têm função estritamente caute­ lar, mas visam, em alguma medida, a antecipar funções da futura sanção penal. Não sào, pois, prisões para fins processuais, mas prisões com finalidades de direito material, ainda que decretadas no curso do processo, nào tendo finalidade cautelar e sendo incompatível com a presunção de inocência. Alguns ordenamentos jurídicos se valem, .inclusive, da mesma expressão “ordem pública" constante do CPP brasileiro. Assim, por exemplo, o CPP francês admite a detention provisoire, com a finalidade “de pôr fim a uma turbação excepcional e persistente à ordem pública, provocada pela gravidade da infração, as cir­ cunstâncias de seu cometimento ou a importância do prejuízo que ela cause" (art, 114, § 3). Em Portugal, o art. 204 do CPP, ao definir os requisitos gerais da “medidas de coacção” estabelece, na alínea c, o “perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do acusado, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa". Especificamente no que loca à reiteração criminosa, a LECrim espanhola, no art. 503, n. 2, prevê, entre as circunstâncias que autorizam a prisión provisional, que “considere o ju iz necessária a prisão provisória, atendidos os antecedentes do imputado, as circunstâncias do fato, o alarme social que seu cometimento produziu ou a frequência com a qual se cometam fatos análogos”. Também a StPO alemã, no § 121, n. 2, prevê que a prisão preventiva é aplicável a determinados tipos de infrações graves, constantes de um expresso rol legal, se “o acusado é fortemente suspeito de [...) reiterada ou continuadamente, cometer uma grave ofensa à ordem jurídica nos termos dos § I .1 se determinados fatos tornam fundado o receio de perigo de que, antes do julgamento, o acusado possa cometer mais delitos graves do mesmo tipo, ou que continuará a sua aú\udade criminosa, que aconselham a prisão preventiva, como forma de obviar o perigo que ameaça". Na Itália, o art. 274, c, do CPP prevê que as medidas cautelares são determinadas “quando, por específica modalidade e circunstância do fato e pela personalidade da pessoa submetida à investigação ou do imputado, dessumida de comportamentos ou atos concretos ou dados os seus antecedentes criminais, subsiste o concreto perigo que estes cometam graves delitos com uso de armas ou outros meios de violência pessoal ou dirigidos contra

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aplicação tem que ficar restrita aos casos em que se busca evitar a reiteração criminosa.‘*‘ Em outras palavras, o inciso I do caput do art. 282 impede que se identifiquem, como hipóteses de garantia da ordem pública, situações como exemplaridade, pronta reação ao delito, aplacar o clamor público de proteção da própria integridade física do acusado, entre outras que a vagueza da expressão “ordem pública” possibilitava. 1 8 .2 .3 .6 .2 Garantia da ordem econôm ica A Lei n“ 8.884/1994 que, entre outras providências, dispunha sobre a preven­ ção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, acrescentou ao art. 312 do CPP mais uma hipótese autorizadora da prisão preventiva; a pfisãerpara a garantia da “ordem econômica”. A prisão para garantia da ordem econômica tem sido identificada com situações de crimes que envolvam vultosos golpes no mercado financeiro, abalando a credibi­ lidade na ordem econômica ou do sistem a financeiro. **' A prisão para garantia da ordem econômica não é, tal qual aquela para garantia da ordem pública, uma medida de natureza cautelar.*" Não se destina a ser um ins­ trumento para assegurar os meios (cautela instrumental) ou resultado do processo (cautela final). Ao contrário, sua finalidade é perm itir uma execução penal anteci­ pada, visando aos fins de prevenção geral e especial, próprios da sanção penal, mas não das medidas cautelares.**®

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a ordem constitucional ou ainda delitos de criminalidade organizada ou da mesma espécie daquele pelo qual é processado". Nesse sentido, Magalhães Gomes Filho, Medidas cautelares..., p. 41. Na doutrina: Delmanto Jr., As m odalidades..., p. 164. Para Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 513), tal prisão poderia ocorrer no caso dos crimes previstos no art. 4°, IV e VII, da Lei n° 8.137/1990. De forma mais ampla, Mirabete (Processo..., p. 418) refere-se aos crimes do “art. 20 da Lei n° 8.884/1994, como os das Lei n° 8.137, 7.492/1986, 1.521/1952 etc.". Discorda-se da última opinião, pois a Lei n° 8,137/1990 distingue, claramente, os crimes contra a ordem tributária (arts. 1° e 2°) dos crimes contra a ordem econômica (arts. 4°, 5° e 6°). Embora não se negue que uma lesão à ordem tributária possa ter repercussões na ordem econômica como um todo, do ponto de vista legal, e do bem jurídico penalmente tutelado, trau-se de situações distintas. E, portanto, diante de um princípio de legalidade estrita, não se pode admitir que uma prisão para a garantia da “ordem econômica” abarque hipóteses de prisão para a garantia da ordem tributária. Se o legislador, assim o desejasse, teria sido expbcito. Acrescentaria a possibilidade de prisão preventiva para a garantia da “ordem econômica e tributária” ou “ordem econômica incluindo a ordem tributária”. Parte da doutrina vê em tal hipótese uma espécie de prisão para garantia da ordem pública, considerando até mesmo desnecessário o acréscimo legislativo. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 491; Ramos, A tutela de urgência..., p. 144; Nucci, Código..., p. 659; Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 142-143. Na doutrina: Delmanto Jr., /is modalidades..., p. 156; Aury Lopesjr., Introdução crítica..., p. 208; Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 142-143. Uma vez mais, destaque para a posição de Ramos (A tutela de urgência..., p. 145) que considera que a prisão pre­ ventiva decretada por garantia da ordem econômica não é cautelar nem antecipatória, mas

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De se lembrar, ainda, que nos crimes contra o sistema financeiro, definidos na Lei n° 7.492/1986, além dos requisitos previstos no art. 312 do CPP, há ainda outro fundamento legal para a decretação da prisão preventiva, qual seja a “magnitude da lesão causada” (art. 30). Tal critério, contudo, é inconstitucional por nâo ter natureza cautelar. Aliás, se a magnitude da lesào causada ao bem penalmente tutelado guardasse natureza cautelar, certamente seria aplicável a todo e qualquer delito. E, nesse caso, por exemplo, em um crime de homicídio, a “magnitude da lesão causada”, isto é, a morte sempre justificaria a prisão.*" Ao mais, diante da clara previsão das necessidades de toda e qualquer prisão cautelar, na nova regra do art. 282, caput, I, do CPP, a magnitude da lesão não se enquadra em qualquer delas; não é cautela instrumental nem final, e também não pode ser considerado um dos “casos expressamente previstos” em que a prisão é decretada “para evitar a prática de infrações penais”.

18.2.3.6.3 Conveniência da instrução criminal Normalmente, as situações de prisão “por conveniência da instrução criminal" são aquelas em que o acusado está ameaçando ou subornando testemunhas ou peritos, ocultando ou destruindo provas, ou buscando furtar-se ao comparecimento a atos de instrução em que sua presença seja necessária, como no reconhecimento pessoal."® Trata-se de prisão cautelar instrumental. Sua finalidade não é diretamente asse­ gurar a eficácia do resultado final do processo em si (por exemplo, evitar a fuga que impediria o cumprimento da sentença), mas sim conservar os meios ou instrumentos (provas) para que se possa chegar a tal resultado (sentença condenatória). Com a reforma da Lei n° 12.403/2011, a prisão preventiva enquanto cautela instrumental passou a ser também cabível não só em caso de necessidade para a “instrução criminal", isto é, produção de provas no curso do processo, como também para a “investigação criminal”, ou seja, a colheita de elementos de informação durante o inquérito policial ou outra forma de investigação preliminar. Tal situação poderá ocorrer, por exemplo, quando o juiz, ainda no curso do inquérito policial, converta a prisão em flagrante em prisão preventiva (CPP, art. 310, caput, II). medida judiciária de policia. A jurisprudência, contudo, vem reconhecendo a validade de tal modalidade de prisão. 135. Na jurisprudência, o STF já decidiu que “o vulto da lesão estimada, por si só, náo cons­ titui fundamento cautelar válido" (HC n“ 82.909/PR). N,o julgamento do HC n° 86.758-8/ PR, tal ponto de vista foi reiterado pelo STF, mas se acrescentou: “no entanto, é pertinente conjugar a magnitude da lesão e a habitualidade criminosa, desde que ligadas a fatos con­ cretos que demonstrem o ‘risco sistêmico’ à ordem pública ou econômica, ou a necessidade da prisão para impedir a continuidade delitiva". Na doutrina, pela inconstitucionalidade, por se tratar de antecipação da pena: Ramos, A tutela de urgência..., p. 146. 136. Embora reconhecendo o caráter cautelar de tal prisão, a doutrina destaca seu caráter ingênuo (porque não impede a destruição das provas) e prejudicial (porque impede o pleno exercício do direito de defesa). Nesse sentido: Weber Batista, Liberdade provisória, p. 73-76; Magalháes Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 70-71.

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Por outro lado, náo se poderá justificar a necessidade da prisão preventiva, por conveniência da investigação ou instrução criminal, porque o investigado ou acusado se recusou a colaborar com a instrução criminal, visto que isso violaria o seu direito a não produzir provas contra si mesmo (CR, art. 5°, LVIII). Do exercício de um direito não podem advir consequências jurídicas negativas."’ Por outro lado, o fato de o acusado ser policial civil ou militar também nào justifica, por si só, a decretação da prisão preventiva, por não ser indicativo suficiente da necessidade da medida. Haverá maior reprovabilidade da conduta, o que deverá ensejar uma pena mais grave, mas não a prisão cautelar obrigatória."®

18.2.3.6.4 Assegurar a aplicação da lei penal A prisão “para assegurar a aplicação da lei penal” é necessária para evitar que, diante da provável fuga do acusado, pelo temor da condenação, venha a ser frustrada a futura execução da sanção punitiva. O perigo de fuga ocorre, por exemplo, quando o investigado ou o acusado prepara-se para deixar o seu domicílio, desfaz-se dos bens imóveis, procura obter passaporte, compra passagem aérea para o exterior, ou de outra forma demonstra desejo de empreender viagem não justificada por outro motivo (por exemplo, para lua de mel) ou revela a outrem o propósito de fuga. Trata-se, claramente, de uma hipótese de prisão cautelar pelos fins a que se des­ tina: assegurar a utilidade e a eficácia de um provimento condenatório que se mostra provável, diante do fumus commissi deíicti. Tal situação tem sido denominada prisão cautelar final. Não basta, porém, morar perto da fronteira, ou dispor de fácil mobilidade no território nacional ou até mesmo para o exterior."® 137. Como destacou o STF: “Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de permanecer calado (art. 5°, LXIII), o que faz com que a resposta à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não se prende alguém para que exerça uma faculdade. [...) Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser, sera necessidade de prisáo. Ordem concedida" (STF, HC n° 95.009). 138. Na jurisprudência: STF, HC n“ 85.64l/SP, HC n° 84.087/RJ; TJRS, RSE n“ 70017142238. Em sentido contrário, admitindo a prisão em tal hipótese, tendo em vista que a pessoa, designada pelo Estado para a proteção da sociedade, termina por cometer crimes, causando natural temor às testemunhas, a serem ouvidas na instrução: STF HC n° 78.235/AM, TJMS, HC n° 2004.010407-3/0000-00. 139. Merece ser transcrito brilhante julgado do TJRG: “Entendo que o raciocínio de que pode furtar-se à aplicação da lei penal por residir próximo à fronteira, em princípio, po­ deria levar à mesma conclusão em relação a qualquer réu que, por infelicidade sua, para fins processuais, tivesse a desdita de residir próximo à fronteira de país vizinho. Teríamos, assim, réus em processo penal divididos em duas categorias: aqueles que moram longe da fronteira que, em princípio, teriam mais dificuldade de ultrapassar os limites desta, e buscar a impunidade em país limítrofe, e aqueles que moram próximo à fronteira e que, mediante minutos deambulando, poderiam buscar a impunidade ou refúgio em território

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Também não é fundamento suficiente para a prisão preventiva o acusado ser pessoa rica, bem como não se justifica que, pelo simples fato de ter má situação eco­ nômica, deva ser preso. Nos dois casos haveria discriminação indevida, quer quanto ao rico, quer quanto ao pobre.*®“ O acusado não residir no “distrito da culpa” nâo pode gerar uma presunção de que a prisão é necessária para assegurar a lei penal.*®* Nem mesmo o fato de o acusado ter efetivamente fugido pode ser considerado um elemento que, por si só, justifique a prisão preventiva, visto que tal fuga pode ter por propósito impedir sua submissão a uma prisão que julga ilegal, e que será atacada por meios judiciais.*®' Também a fuga do distrito da culpa, por temor de represália da família das vítimas, nào é suficiente para autorizar a prisão preventiva.*®*

18.2.3.6.5 A nova situação de periculum libertatis: o descumprimento de medida cautelar alternativa à prisão A Lei n° 12.403/2011 acrescentou um parágrafo único ao art. 312 do CPP, prevendo a possibilidade de decretação da prisão preventiva, em caso de descumprimento de medida cautelar alternativa à prisão.

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de país vizinho. Não podemos dividir réus por força de domicílio, raízes ou vánculaçòes a determinadas regiões do Estado, de forma a ensejar a aplicaçáo de dispositivos que poderão segregar a liberdade deles de maneira diversa" (RJTJRGS 169/78). De outro lado, o STF já decidiu que não justifica a prisão preventiva a “mobilidade ou trânsito pelos territórios nacional ou internacional” (HC n° 71.289/RS). No mesmo sentido: STF, HC n° 86.758-8/PR. O STF já decidiu que não é fundamento válido para a prisão preventivà “a boa ou má situação econômica do acusado” (HC n° 72.368/DF). No mesmo sentido: STF, HC n° 95.005/SP, HC n° 86.758-8/PR. Em outro julgado, o STF decidiu que “o poder econômico do réu, por si só, nâo serve para justificar a segregação cautelar, até mesmo para nâo se conferir tratamento penal diferenciado, no ponto, às pessoas humildes em relação às mais abastadas (caput do art. 5° da CF). Hipótese, contudo, que não se confunde com os casos em que se comprova a intenção do acusado de fazer uso de suas posses para quebrantar a ordem pública, comprometer a eficácia do processo, dificultar a instrução criminal ou voltar a delinquir. No caso, não se está diante de prisão derivada da privilegiada situação econômica do acusado. Trata-se, tão somente, de impor a segregação ante o fundado receio de que o referido poder econômico se transforme em um poderoso meio de prossecução de práticas ilícitas" (HC-QO n“ 85.298/SP). Nesse sentido: STF, HC n° 95110/SC. Aliás, o TRF já decidiu que, nem mesmo o fato de “ser o réu estrangeiro, residente no exterior, nào justifica, per si stame, a imposição da custódia cautelar” (TRF Quarta Região, HC n” 2005.04.01.006356-9). Na doutrina: Ramos, A tutela dc urgência... p. 383; Delmanto jr., As modalidades..., p. 150. O STF já decidiu que “agride a garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisáo, houvesse o cidadão de submeter-se previa­ mente á efetivação dela" (HC n° 82.903-l/SP). No mesmo sentido; STF, HC n“ 79.78I-4/SP, HC n" 82.585-1/PA, HC n“ 82.279/ES. HC n“ 80.826/CE, HC n» 81.180/MG. Em sentido conlrário, considerando a fuga como fundamento válido para a prisão: Nucci, Código—, P663. Na jurisprudência: STJ, RHC n° 9.0724’A; TJSP, HC n“ 187.159-3/1. STJ, HC n° 88.821/MT.

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No que toca à prisão preventiva por descumprimento de medida alternativa à prisão (art. 312, parágrafo único), é de observar que tal hipótese de periculum libertatis recentemente criada se soma às anteriormente existentes de garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a apli­ cação da lei penal (art. 312, caput). Há, porém, entre elas uma diferença fundamental. Os já conhecidos requisitos indicadores do perigo de liberdade, mantidos no agora caput do art. 312, autorizam que se decrete, desde o início, a prisão preventiva. Ou seja, são hipóteses que permitem, desde o início, a prisão. Trata-se, pois, de requisitos^de periculum libertatis que autorizam originariamente a decretação da prisão preventiva. Já a nova situação do parágrafo único, de descumprimen^ de medida alternativa, permite uma prisão preventiva em substituição à medida altertiativa descumprida. Ou seja, náo se trata de situação em que, desde o início, permitiria decretar a prisão preventiva. Ao contrário, exige uma situação originária de necessidade de tutela cau­ telar, mas que encontre adequação em medida alternativa à prisão, e é justamente o descumprimento de tal medida, originariamente adequada (por exemplo, proibição de sair da comarca), que implicará reforço da necessidade de cautela com exigência de medida mais restritiva, no caso, a prisão. Resta saber se a hipótese é uma situação em que o mero descumprimento da medida alternativa é bastante em si para a decretação da prisão preventiva, isto é, ante o simples fato do descumprimento, ojuiz, respeitado o contraditório, jã estaria auto­ rizado a decretar a prisão preventiva, ou se algo mais seria exigido no caso concreto. Não é possível aceitar que o simples descumprimento baste para o que ju iz pos­ sa - ou o que seria pior, deva - decretar a prisão preventiva. Se assim se interpretar o dispositivo, estar-se-á diante de uma hipótese de periculum libertatis abstrato, in­ dependentemente da análise do perigo no caso concreto.*®® Há uma variada gama de medidas alternativas à prisão, e o descumprimento de uma medida de pouca restrição não parece justificar op lege a imposição da medida excepcional. Pode ser que uma medida intermediária baste para resolver a necessidade cautelar que o caso exige. Por outro lado, há casos de graves descumprimentos e hipóteses de pequenos desvios. Nestes últimos, a cumulação com outra medida ou a sua substituição por outra mais gravosa, ainda que não a prisão, basta! Assim como a prisão preventiva originariamente decretada somente será cabível nas hipóteses do art. 313 do CPP, isto é, em regra, para os crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos (inciso I), também a prisão preventiva decretada em substituição à medida alternativa à prisão (art. 312, parágrafo único) somente será cabível nas hipóteses do art. 313 do CPP. Logo, no caso de um crime de pequeno potencial ofensivo, se houve a decretação de uma 144. Adverte Geraldo Prado (Excepcionalidade da prisão..., p. 143) que a nova regra do parágrafo único do art. 312 do CPP prevê hipótese “que nâo se destina a superar o perigo processual que aflija a instrução criminal ou a atuação da lei penal", tendo, ao contrário “caráter de sanção processual".

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medida alternativa à prisão (por exemplo, proibição de ausentar-se da comarca) que, posteriormente, foi descumprida, o juiz náo poderá decretar a prisão preventiva. Ora, ainda que tenha havido descumprimento da medida alternativa à prisão, se o prognóstico é que ao final do processo não será aplicada pena privativa de liberdade, náo tem sentido impor ao acusado, a prisão preventiva, mesmo tendo havido prévio descumprimento de medida alternativa à prisão. A restrição da liberdade decorrente da prisão preventiva, em tal caso, não seria proporcional com eventual benefício que a prisão poderia causar para assegurar a instrução ou a aplicação da lei penal.

18.2.3.7 Hipóteses de cabimento da decretação da prisão preventiva Não bastam, porém, os requisitos positivos do art. 312 e o requisito negativo do art. 314 do CPP. Para a prisão preventiva ser decretada é necessário, também, que esteja presente uma das situações do art. 313 do CPP. Todas as situações do caput do art. 313 do CPP envolvem crimes dolosos. Portanto, fica excluída, de plano, a possibilidade de contravenção penal, ou de crime culposo. A primeira hipótese de cabimento do caput do art. 313 é tratar-se de “crimes dolo­ sos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos" (inciso I). Certamente haverá discussão se, no caso de causas de aumento ou diminuição de pena, estas deverão ter ou não incidência para a verificação ou não da situação do inciso I. O mesmo se diga no caso de concurso material de crimes, em que se poderá discutir sobre a consideração da pena de cada crime, de forma isolada, ou a soma das penas máximas.*” Por outro lado, nos incisos II e III do caput d o art. 313 do CPP, a prisão é cabível não em razào da pena cominada, mas da condição do investigado ou acusado e da espécie de crime, respectivamente. Para estes, em tese, nào vigora a restrição com base no quantum máximo da pena. Será cabível a prisão preventiva se o acusado for reincidente em crime doloso, ressalvada a chamada “prescrição da reincidência” (inciso II). Isto é, somente será cabivel a prisão se o investigado já tiver sido condenado irrecorrivelmente antes por um crime doloso - e não ter transcorrido mais de cinco anos do cumprimento da pena - e tornar a praticar outro crime doloso. Finalmente, o inciso III do art. 313 admite a prisão preventiva “se o crime envolver violência doméstica e fam iliar contra a mulhei; criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência’’. 145. Para Geraldo Prado (Excepcionalidade da prisão..., p. 146), no caso de concurso de crimes, deverá ser considerada isoladamente a pena de cada crime. 146. Tal regra, contudo, deve ser interpretada com cuidado, para evitar a imposição de uma prisão preventiva desproporcional. Há casos de violências físicas gravíssimas, em que o acusado deverá ser sancionado com pena privativa de liberdade, sem direito a sursis ou qualquer outro benefício. Em tais hipóteses, presentes os demais requisitos, a prisão preven­ tiva será necessária, adequada e proporcional. Mas, por outro lado, há situações de lesóes

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Nesses casos, porém, não basta a simples natureza do delito, sendo acrescida uma exigência teleológica: a prisão se destinará a garantir a execução de medidas protetivas quejá tenham sido decretadas, mas tenha havido descumprimento ou haja concreto perigo de descumprimento.*®' Ressalte-se que, tratando-se de crimes que envolvem violência doméstica com penas máximas superiores há quatro anos (por exemplo, lesão corporal grave), a prisão preventiva já seria cabível com base no inciso I do caput do art. 313 do CPP, não se exigindo a finalidade de garantir a execução de medida protetiva. Assim sendo, o inciso III tem por destino os crimes punidos com pena inferior a quatro anos, para os quais a prisão estaria vedada pelo inciso I, mas que resultem de violência doméstica, como o caso de lesões corporais leves. A Lei n° 12.403/2011 acrescentou um parágràfo único ao art. 313 do CPP, pre­ vendo uma “nova”*®®hipótese de cabimento da prisáo preventiva: “[...] quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta nâo forn ecer elementos suficientes para esclarecê-la [...]” (CPP, art. 313, parágrafo único). De início, é de destacar que não se trata de uma nova situação de periculum liber­ tatis. Tais requisitos vêm definidos no art. 312 do CPP e, ainda que se possa considerar que, no caso de dificuldade de identificação do acusado, haveria, em tese, o requisito da cautela final, com a necessidade da prisão para assegurar a aplicação da lei penal, o corporais leves, mesmo que qualificadas por se tratar de violência doméstica (CP, art. 129, § 9°, acrescido pelo art. 44 da referida lei), que admitem, em tese, a suspensão condicional do processo (CP, art. 77). Em tais hipóteses, a imposição de uma prisão preventiva não estará assegurando a utilidade e a eficácia da futura sentença penal. Se a pena privativa de liberdade vai ter seu cumprimento suspenso, a prisão cautelar será excessiva, desproporcional e ilegal. 147. Como explicam Grandinetti Castanbo de Carvalbo et al. (Comentários ã lei..., p. 111), em lição reproduzida por Geraldo Prado (Excepcionalidade da prisão..., p. 147): “De iní­ cio, se constata que a prisão preventiva somente pode ser decretada se alguma medida de proteção o tiver sido previamente, e existir o risco concreto de seu descumprimento. Não basta o risco abstrato de descumprimento da medida. Há que existir fundadas razões para passar-se a uma medida mais gravosa e o juiz deve consignà-las na decisão que decretar a prisão, sob pena de sua ilegalidade. Nem todo descumprimento de medida de proteção, porém, pode fundamentar a decretação da prisão preventiva. Não se pode nunca perder de vista o instituto de que se está cogitando: trata-se de uma prisão processual, que tem natureza e objetivos definidos peia ciência do Direito Processual Penal, que nâo podem ser deturpados". 148. Em sua redação originária, o art. 313 do CPP, 11, tinha como hipótese de incidência da prisão preventiva: “II - nos crimes afiançáveis, quando se apurar no processo que o indiciado é vadio ou quando, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou indicar elementos suficientes para esclarecê-la”. A mesma redação foi mantida pela Lei n" 5.349/1967. Posteriormente, o dispositivo foi alterado pela Lei n° 6.416/1973, que passou a prever: “11 - punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la". Como facilmente se percebe, nâo bouve mudança substancial quanto a ser cabível a prisão na bipótese de baver dúvida sobre a identidade e o acusado nào fornecer elementos para esclarecê-la. Tal previsão sempre existiu, com a diferença que antes, em tal caso, a prisão poderia ser decretada, tratando-se de crime afiançável e, na última redação, nas mesmas circunstâncias, nos crimes punidos com detenção.

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próprio requisito do art. 312, capuí, já autorizaria a prisão em tal caso.'®* O que o art. 313 disciplina, seja no seu caput, seja no parágrafo único, são as hipóteses de incidência em que será em tese cabível a prisão preventiva. Por certo, não se exigirá a conjugação do parágrafo único com uma das hipóteses do caput do mesmo art. 313. Se assim o fosse, o dispositivo seria de total inutilidade, pois a hipótese de incidência já decorreria dos incisos do caput. Entretanto, ainda que assim o seja. não se pode admitir que a hipótese de incidência do parágrafo único do art. 313 seja interpretada de forma amplíssima a admitir a prisão em qualquer caso, isto é, por qualquer infração penal, seja crime ou contravenção, seja crime doloso ou culposo, seja punido com reclusão ou detenção, pela simples dúvida sobre a iden­ tificação do acusado. Em tal caso, nâo será cabível a prisão preventiva por falta de proporcionalidade em sentido estrito com a pena que poderá ser aplicada, como se verá no próximo item.

18.2.3.7.1 A proporcionalidade com a pena provável a ser aplicada"® Embora nâo prevista expressamente, toda prisão preventiva - e cautelar, de uma maneira geral - exige outro requisito; a proporcionalidade entre a prisão cautelar e a provável pena a ser aplicada ao finai do processo."* Assim, mesmo nas hipóteses de cabimento da prisão preventiva do art. 313 do CPP, se a prisão preventiva for mais gravosa que a pena que se espera ser ao final im­ posta, a medida não será dotada dos caracteres de instrumentalidade e acessoriedade inerentes à tutela cautelar. Ainda no que diz respeito à provisoriedade, não se pode admitir que a medida provisória seja mais severa que a medida definitiva que a irá substituir e que ela deve preservar. ' Ainda que se trate de uma das hipóteses de cabimento da prisão preventiva (CPP, art. 313) e esteja presente o pressuposto positivo (art. 312), o pressuposto negativo (art. 314) e um dos requisitos da prisão (art. 312), é de se acrescentar que a prisão somente será cabível se houver a previsão de aplicação de uma pena privativa de li­ berdade a ser cumprida em regime de encarceramento. Se assim não fosse, mesmo no caso de infração penal de menor potencial ofensivo (por exemplo, injúria), em que ao final não será possível uma sanção que supere a pena de multa, o acusado poderia ser preso preventivamente, porque há dúvida sobre sua identidade. O mesmo se diga em relação a um crime culposo (por exemplo, incêndio culposo), ou ainda um crime doloso punido com detenção (por exemplo, supressão ou alteração de marcas em ani­ mais) ou reclusão (por exemplo, furto simples), caso seja possível prognosticar que. 149. O mesmo se diga em relação à necessidade de identificação para a conveniência da instrução criminal, por exemplo, por permitir a intimação e participação do acusado em atos instrutórios, ainda que este pudesse se valer do nemo tenetur se ipsum accusare. 150. Analisamos o tema com maior profundidade em A prisão preventiva e o principio da proporcionalidade..., p. 159-185. 151. Sobre o tema, cf., supra, subseção 18.2.1.2.

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ao final do processo, em caso de condenação, eventual pena privativa de liberdade será substituída por jtena alternativa ou mesmo poderá ser suspensa em razão do sursis. Em todos estes casos, não será cabível a prisão preventiva. Em suma, a prisão preventiva jamais poderá ser imposta quando, com base em cognição sumária, se antevir que a pena a ser imposta ao final, provavelmente, não será uma pena privativa de liberdade, ou esta terá sua execução suspensa."* Não cabe a prisão preventiva se, ao final do processo, o acusado nào terá que cumprir uma pçna privativa de liberdade, mesmo que a pena máxima cominada seja superior a quàtro anos (art. 313, caput, I ) , ou o acusado seja reincidente em crime doloso (art. 313, caput, II), ou ainda, se trate de crime de violência doméstica (art. M 3 j;a p u t, III). O mesmo se diga no caso em que há dúvida sobre a identidade do investigado ou acusado (CPP, art. 313, parágrafo único). Por outro lado, em tais situações poderá será cabível, em tese, mas sempre dependendo da verificação das situações concretas, a imposição de medida cautelar diversa da prisão (CPP, arts. 319 e 320).

18.2.3.8 Necessidade de fundamentação No caso da prisão preventiva, o periculum in m ora costuma ser identificado com 0 periculum libertatis. Todavia, as situações concretas que caracterizam as hipóteses de periculum - garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei p enal- devem estar demonstradas, estremes de dúvidas, para que o juiz decrete a prisão. É comum a assertiva de que a lei se contenta com um mero juízo de probabili­ dade relativamente ao fum us boni iuris. Tal posição, contudo, precisa ser entendida em termos. O art. 312 indica dois elementos que compõem o fum us commissi delicti: a prova da “existência do crime e indício suficiente de autoria”. Assim, quanto à mate­ rialidade delitiva é necessário que haja prova, isto é, certeza de que o fato existiu. Se o juiz sequer tem convicção de que ocorreu um crime, não se pode admitir, sob pena de patente arbitrariedade, que seja determinada a prisão de alguém por um fato que nem se sabe se efetivamente existiu ."' Neste ponto, há uma exceção ao regime normal das medidas cautelares, posto que, para a caracterização do/umus boni iuris, há determinados fatos sobre os quais o juiz deve ter certeza, não bastando a mera probabilidade. 152. Nesse caso, “a medida-meio seria mais gravosa do que a medida-fim” e, como assevera Og Fernandes (Constituição, processo..., p. 60), “a providência cautelar não pode incidir na pessoa do acusado com mais intensidade que a sanção”. 153. Nesse sentido, embora com alguma variação terminológica; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 276; Campos Barros, Processo penal cautelar, p. 194; Greco Filho, Manual..., p. 263; Tomaghi, Curso..., v. 2, p. 90; Tourinho Filho, Processo penal, v. 3, p. 484. Aliás, Bento de Faria (Código..., v. 1, p. 368) já afirmava que “a prova do crime, isto é, a demonstração de sua ocorrência, sem possivel dúvida, por meio do corpo de delito, direto ou indireto, Nâo bastam, portanto, a seu respeito, indícios ou presunções, seja qual for a sua veemência”.

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Por sua vez, quanto ao outro elemento, relativo à autoria delitiva, não se exige que o juiz tenha certeza da autoria, bastando que haja elementos probatórios que permitam afirmar, no momento da decisão, a existência de “indicio suficiente”, isto é. a probabilidade de autoria.*’® No tocante ao peticulum libertatis, sua análise deve resultar de uma avaliação mais aprofundada das circunstâncias que indiquem a necessidade da medida excepcional. *™ Ao mais, tendo em vista que, de um lado, há existência de um rol de medidas cautelares alternativas à prisão (CPP, arts. 319 e 320) e, de outro, o caráter excepcional da prisão preventiva, que somente será adequada “quando não Jo r cabível a sua substi­ tuição por outra medida cautelar" (CPP, art. 282, § 6°), deverã o juiz justificar porque nenhuma das medidas alternativas à prisão é, no caso concreto, adequada para a necessidade cautelar que se apresenta. Por certo, não bastará repetir os termos da lei e afirmar que nenhuma outra medida é adequada. O magistrado terá que demonstrar, de acordo com elementos concretos, que cada uma das medidas alternativas menos gravosas que a prisão nào se mostra suficiente para eliminar a hipótese de necessidade (CPP, art. 282, caput e I) que exige a imposição de uma medida cautelar. Havendo mais de um acusado, tanto no que toca aos indícios de autoria quanto no que diz respeito ao periculum libertatis, a decisão que decreta a prisão deve ser individualizada, levando em conta as condições pessoais de cada um dos acusados, sob pena de nulidade,*’®pois pode haver indícios de autoria de um deles, e nào haver de outro, ou os elementos de informação indicarem que apenas um pretende fugir. O juiz deverá fundamentar sua decisão em fatos concretos, que demonstrem que a manutenção do acusado em liberdade colocará em risco a instrução criminal ou a provável condenação penal. Nâo bastam, pois, meras conjecturas, temores infundados, ou simples suspeitas. Muito menos poderá ojuiz limitar-se a repetir as palavras da lei ou utilizar fórmulas vazias e sem amparo em fatos concretos.*’® 154. Frederico Marques (Elementos. .. v. 4. p. 115) entende que “há indícios suficientes de autoria, quando o réu é o provável autor do crime". No mesmo sentido: Campos Barros, Processo penal cautelar, p, 194; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 90; Badaró, Onus da pro­ va..., p. 424. Cabe destacar que. neste ponto, a expressão indício foi utilizada no sentido de uma simples “prova leve” ou uma prova semiplena de autoria. 155. Na doutrina: Magalhães Gomes Filho, Presunção de inocência..., p. 79; Grinover, Maga­ lhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades.... p. 275; Badaró, Onus da prova..., p. 429. 156. Nesse sentido: Grinover, Magalhães Goines Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. T16-Tn\ Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 153. Na jurisprudência: TJSP, HC n° 386.660-3/9. 157. Antes mesmo da Constituição de 1988, o STF já reconhecia que, para a decretação da prisão preventiva, é necessário que “o juiz lenha razões fundadas da existência de motivos que aconselhem a medida” (RHC n“ 60.275-4/PR, RT 573/489). No mesmo sentido, tam­ bém decidiu o STJ: “a prisão preventiva, medida extrema que implica sacrifício à liberdade individual, concebida com cautela à luz do principio constitucional da inocência presumida, deve fundar-se em razóes objetivas, demonstrativas da existência de motivos concretos

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Assim, a prisão preventiva nâo pode se fundamentar em meras suposições de fuga, com base na possibilidade de uma pena elevada ou no poder econômico do acusado. No que toca à prisão por conveniência da instrução criminal, não basta que 0 juiz diga, simplesmente, que assim agiu por conveniência da instrução criminal/ É preciso que demonstre com fatos, com elementos do processo, que naquele caso concreto a prisão se faz necessária.'“ Além disso, a prisão não pode ser um corolário automático da imputação] o que significaria restaurar um regime de prisão preventiva obrigatória. A decretação àa pri­ são não pode ter por fundamento apenas a gravidade abstrata do crime (por exemplo, por se tratar de tráfico de drogas ou de roubo). Aliás, tal prisão-, além de desrespeitar a garantia constitucional da motivação das decisões judiciais, também fere a presunção de inocência, uma vez que decorreria do tipo penal imputado, independentemente da necessidade concreta da medida.*’* Também não deve ser aceita a chamada motivação a d relationem , em que ojuiz acolhe como razões de decidir os argumentos lançados em outro ato, em especial, no requerimento de prisão formulado pelo Ministério Püblico. Não há em tal forma de decidir a explicitação por parte do magistrado das suas razões de decidir, não bastando 0 reenvio à justificação contida na manifestação de uma das partes ou, até mesmo, em outra decisão do próprio juiz. Assim agindo, o juiz desrespeita a exigência do art. 93, IX, da CR.*“ susceptíveis de autorizar sua imposição. A mera alegação de que o réu em liberdade poderá evadir-se do distrito da culpa, dificultando a aplicação da lei penal, não autoriza nem justifica a decretação de custódia cautelar” (RHC n° 9.344/PA); “a atemorização de testemunhas para justificar a prisão preventiva cora base na conveniência da instrução criminal, segundo entendimento pretoriano, deve ser por base em dados sólidos e nào meras conjecturas” (STJ, HC n° 13.921/CE). De outro lado, o STJ anulou decreto de prisão em que “oju iz nada adiantou sobre a sua convicção quanto à necessidade da prisão cautelar, apenas repetindo os termos da lei” (RT 703/358). 158. O STJ considerou ilegal a prisão, por falta de fundamentação, em decisão na qual se supôs que o réu, em liberdade, iria ameaçar testemunhas, sem demonstrar elemento concreto que justificasse a prisão cautelar (HC n° 100.565/SP). 159. Najurisprudència:STJ, RH Cn‘>11.755/RS. 160. Na doutrina; Tucci, D ireitos e garantias..., p. 236-237. Na jurisprudência: TJSP, RT 681/347. Mesmo para autores que admitem, com reservas, a motivação per relationem, ela deverá ter como ato referido outro ato jurisdicional, e nâo um ato de uma das partes. Nesse sentido, Magalhães Gomes Filho (A m otivação..., p. 201), que destaca, ainda, que tal forma de decidir “pode comprometer ura dos objetivos processuais da motivação, que é assegurar a imparcialidade da decisão, pois não é certo que as próprias razões do provimento sejam dadas por uma das partes”. Em sentido contrário, admitindo a remis­ são aos fundamentos invocados pelo Ministério Público: Ramos, A tutela de urgência..., p. 347. Nesse último sentido, o STF, admitiu com válida decisão que decretou a prisão preventiva adotado como fundamentação o requerimento do Ministério Público, sem sequer iranscrevê-lo (STF, HC n° 102.864/SP). No mesmo sentido, admitindo a moti­ vação cora mera remissão aos fundamentos invocados pelo Ministério Público: TJSP, RT 653/297.

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Finalmente, não se pode aceitar que o decreto de prisão mal ou insuficientemente fundamentado seja “completado”, pelo acréscimo de argumentos novos, pelas instân­ cias superiores, em julgamento de habeas corpus ou recurso da defesa.*«* Esse indevido “reforço de fundamentação” pelo tribunal não será apto a afastar a insuficiência da motivação da prisão. Em suma, a concessão de uma medida cautelar exige, quanto ao periculum in mora, prova plena dos fatos com base nos quais ojuiz irá inferir o perigo de dano. Se estiver provada a ocorrência ou a inocorrência de tais fatos, ojuiz deverá, respectivamente, deferir ou indeferir a providência requerida, indicando concretamente os elementos de prova que permitiram chegar a tal conclusão.

18.2.3.9 Prisão domiciliar A Lei n° 12.403/2011 passou a prever a prisão domiciliar. Não se trata, porém, de uma modalidade autônoma de medida cautelar pessoal,*«* mas de uma forma especial de cumprir a medida de prisão preventiva. Trata-se de uma “substituição" da medi­ da cautelar de prisão preventiva, como deixa claro o caput do art. 318; “Poderá ojuiz substituir a prisão preventiva pela dom iciliar quando [...]”. A questão nâo é meramente terminológica, havendo reflexos práticos em considerar a prisão domiciliar verdadeira modalidade de prisão. Por exemplo, o tempo de prisão domiciliar será considerado para fins de detração, nos termos do art. 42 do CP, que se refere à “prisão provisória”. A prisão domiciliar é, por certo, espécie de prisão provisória. No máximo, poder-se-ia considerar que a prisão domiciliar (CPP, arts. 317e318)é uma medida substitutiva da prisão preventiva, e não uma medida altemativaà prisão.*«' A prisão domiciliar consiste “no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial" (CPP, art. 317, caput). As hipóteses de cabimento da prisão domiciliar, inspiradas em razões humani­ tárias, estão previstas no art. 318 do CPP; “I - maior de 80 (oitenta) anos; II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; IV - gestante a partir do 7° (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.” 161. Nesse sentido: Geraldo Prado, Excepcionalidade da prisão..., p. 151-152. Na jurispru­ dência, negando a possibilidade de “reforço de fundamentação": STF, HC n° 106.546/SP, HC n“ 87.04l/PA; STJ, HC n“ 199.533/SP, HC n“ 30.732rilJ. 162. Obviamente, a prisão domiciliar, enquanto modo excepcional de cumprimento da medida cautelar de prisão preventiva, nào se confunde com a hipótese de recolhimento em residência particular do condenado beneficiário do regime aberto, enquanto forma de cumprimento de pena privativa de liberdade, previsto no art. 117 da LEP. 163. Aliás, é por tal motivo que tal medida vem disciplinada em um capitulo próprio, o Capítulo IV, denominado “Da prisão domiciliar", e não no Capítulo V cujo título é “Das outras medidas cautelares”, que tem por objeto as medidas alternativas à prisão.

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Embora o art. 3 18 utilize o verbo “poderá”, é de considerar que, demonstrada a hipótese de incidência do art. 3 1 8 , o ju iz deverá determ inar o cum primento da prisão preventiva em prisão domiciliar.*®® Ou seja, deve-se ler o “poderá” com o “deverá”. Para a sua concessão, o ônus da prova incumbirá ao requerente, normalmente 0 investigado ou acusado que tenha a prisão preventiva decretada contra si. Todavia, nada impede que, desde que no momento em que se decrete a prisão preventiva, o juiz determine o seu cumprimento em prisão domiciliar, caso a hipótese legal já es­ teja demonstrada (por exemplo, se no inquérito policial já houve cópia da certidão de nascimento ou de documento de identidade, comprobatório de que o investigado é maior de 80 anos).

18.2.3. W Revogação da prisão preventiva O art. 316, primeira parte, do CPP dispõe que: “O ju iz pod erá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a fa lta de motivo p ara que subsista". Sempre que necessária, a prisão poderá e deverá ser decretada. Por outro lado, tornando-se desnecessária, a prisão preventiva deverá ser revogada. Não se deve confundir o relaxamento da prisão preventiva com a sua revogação. A prisão preventiva ilegal será relaxada. É mandamento constitucional que “ap r isã o ilegal será imediatamente relaxada pela autoridadejudiciãria" (art. 5°, LXV). Coisa dis­ tinta é a revogação da prisão preventiva que foi legalmente decretada, mas no curso da persecução penal tornou-se desnecessária. Assim, por exemplo, a prisão preventiva será ilegal quando decretada em processo penal que tenha por objeto crime culposo, ante a vedação do art. 313, caput, do CPP. A prisão também poderia ser originariamente legal, mas que no curso do processo tenha se tornado ilegal, por exemplo, se houve excesso de prazo na duração da prisão preventiva (CR, art. 5°, LXXVIII). Assim, seja por ilegalidade originária ou superve­ niente, a prisão ilegal será relaxada. A revogação da prisão preventiva, por sua vez, ocorre quando esta era legal e necessária, mas no curso do processo tornou-se desnecessária. O exemplo clássico é a prisão para a conveniência da instrução criminal, porque o acusado está ameaçando a vítima ou a testemunha, e a prisão toma-se desnecessária após a audiência em que elas foram ouvidas.*®’ 164. Como explica Geraldo Prado (Excepcionalidade da prisão..., p. 157), “trata-se de direito subjetivo do preso, independentemente de b preceito empregar o verbo ‘poder’ a indicar inexistente poder discricionário do juiz”. 165. Na doutrina: Ferraz, Prisão preventiva..., p. 50. Na jurisprudência: STJ, RHC n° 3.423/RJ. O STF já considerou que não subsiste motivo para a prisão uma vez encerrada a instrução; HC to 83.806/SP, HC to 81.126/SP Acrescente-se ainda que o STF decidiu que, em tal caso, nem mesmo a mera possibilidade de a testemunha ser novamente reinquirida pode justificar a não revogação da prisão preventiva (RT 806/463). Em sentido contrário, na doutrina, para

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Finalmente, não se devem confundir as situações de relaxamento e revogação da prisão cautelar com a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança. No CPP, com a reforma da Lei n° 12.403/2011, a liberdade provisória passou a ser cabível, em substituição à prisão em flagrante, em duas situações: ( 1) no caso de o juiz verificar a existência de excludente de ilicitude (CPP, art. 310, parágrafo único); (2) no caso em que, por sua situação econômica, o investigado ou acusado não possa pagar a fiança (CPP, art. 350). A Constituição garante que “ninguém serd levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança" (art. 5°, LXVl). Em suma, relaxa-se a prisão ilegal e revoga-se a prisão desnecessária. Finalmente, é de considerar que, se a proporcionalidade é requisito implícito para a decretação da prisão preventiva, a desproporcionalidade autoriza a sua revogação. A falta de proporcionalidade entre a pena provável que poderá ser aplicada e a prisão cautelar autoriza a revogação desta. A revogação é medida d eju stiça quando a prova colhida na instrução con­ vence o ju iz de que o réu será absolvido. Nesse caso, nào deverá o ju iz esperar a sentença absolutória para revogar a prisão decretada para assegurar a aplicação da lei penal. Também nâo haverá necessidade da prisão preventiva se deixar de haver proporcionalidade entre a prisão cautelar e a pena que se antevê como provável. Em um e em outro caso, o desenrolar da instrução demonstrou que a aparência do direito com base na qual a medida foi deferida não correspondia à realidade. Em suma, entre os motivos necessários para a subsistência da prisãoilnclui-se a proporcionalidade da medida cautelar em relação à provável pena privativa de liberdade a ser aplicada. Se prisão cautelar tornou-se desproporcional, não há mais motivo para que ela subsista, devendo ser revogada. 18.2.4 Prisão tem porária A prisão temporária, instituída pela Lei n° 7.960/1989, é uma modalidade de prisão cautelar, de duração limitada no tempo, a ser utilizada durante a fase da inves­ tigação policial, destinada a evitar que em liberdade o investigado possa dificultar a colheita de elementos de informação durante a investigação policial de determinados crimes de maior gravidade. Ramos (A tucela de urgência..., p. 236), o término da oitiva das testemunhas não autoriza a revogação da prisão preventiva, tendo em vista a possibilidade de produção de provas etn segundo grau, como permite o art. 616 do CPP. No caso de procedimento do júri, já se decidiu que nâo tem sentido manter-se preso o réu, quando as testemunhas, que teriam sido ameaçadas durante a primeira fase da colheita da prova (juciicium accusationis), deixam de constar do rol da acusação por ocasião do libelo ou, diante da reforma, no requerimento do novo art.422 do CPP. Nesse sentido, na jurisprudência: TJSP, MS n° 155.723-3/7. Na doutrina: Nucci, Código..., p. 624.

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i 8.2.4. í Hipóteses de cabimento Para que a prisão temporária seja compatibilizada com a garantia da presunção de inocência, que tem como um dos corolários a admissão de prisão processual somente em caráter cautelar, a interpretação das hipóteses de cabimento da prisáo temporária do art. 1“ da Lei n° 7.960/1989 deve ser feita à luz do periculum libertatis e do/umus commissi delicti. Os incisos I e II representam as hipóteses de periculum libertatis: o primeiro como uma garantia instrumental e o segundo como uma garantia final. Já o fumus com m isfi delicti encontra-se previsto no inciso III que, aliás, traz o rol dos crimes que admitem a prisão temporária. Assim, para que a prisão seja legítima, devêráJtaver a conjugação do inciso III com o inciso I, ou do inciso III com o inciso II. Obviamente, se os três incisos estiverem presentes, a prisão será cabível. Por outro lado, a presença isolada de qualquer dos incisos não autoriza a prisão.*“ Certo é, pois, que não é possível a decretação da custódia temporária com base apenas em um dos incisos do art. 1° da referida lei. De outro lado, a prisão temporária somente tem cabimento no caso de investigação de um dos delitos previstos no inciso III do art. 1“ da Lei n° 7.960/1989. Além do inciso III, que caracteriza ofumus commissi delicti, faz-se necessária a ocorrência de uma das hipóteses previstas, ou no inciso I, ou no inciso II, que consubstanciam o periculum libertatis.**' Por fim, é preciso.demonstrar a ocorrência de situações fáticas previstas em tais incisos que caracterizam ofumus boni iuris (inciso III) e o periculum libertatis (inciso I ou II). Obviamente, não basta a mera repetição do texto da lei, posto que indispensável a demonstração da ocorrência concreta das hipóteses abstratamente previstas em lei, sempre com base em elementos de provas existentes no inquérito policial. O inciso I dispõe que: “quando imprescindível p ara as investigações do inquérito policial". Normalmente, a imprescindibilidade da prisão para a investigação criminal decorrerá de situações concretas nas quais, se o investigado permanecer em liberdade, poderá dificultar ou impedir a investigação, pela destruição de provas ou por ameaçar testemunhas ou vítimas. Nâo poderá fundamentar a prisão temporária a necessidade de oitiva do investigado. Se pode permanecer calado, sendo este um direito constitu­ cional, não há sentido em prendê-lo para que seja ouvido. 166. Na doutrina: Patrícia André, Prisão temporária..., p. 398; Grinover, Limites constitucio­ nais..., p. 91; Scarance Fernandes, Prisão temporária..., p. 85; Grinover, Magalhães Gomes Filho e Scarance Fernandes, As nulidades..., p. 280; Gomes Filho, A motivação..., p. 230; Tourinho Filho, Manual..., p. 610-611. Referida interpretação encontrou acolhida no STJ: RHC n° 1.60 l/RS. Em sentido parcialmente diverso, para Polastri Lima (A tutelacautelar..., p. 248), sempre devem estar presentes o inciso 1 e o inciso III, sendo o inciso 11 meramente complementar, e não essencial. 167. Deve-se observar que a prisão temporária também se aplica aos crimes hediondos (Lei n° 8.072/1990, art. 2°, § 4“) e, neste caso, terá cabimento mesmo no caso de delitos elencados apenas no art. 1”, Lei n° 8.072/1990, não previstos na Lei n° 7.960/1989 (p. ex.: o crime do art. 273 do CP). Nesse sentido: Nucci. Código..., p. 690.

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Já o inciso II prevê o cabimento da prisão temporária “quando o indiciado não tiver residência fix a ou não forn ecer elementos necessários ao esclarecimento de sua iden­ tidade". Nesse ponto, é de destacar que, diversamente da prisão preventiva, na qual o legislador se valeu de uma expressão com conteúdo jurídico amplo, “assegurar a aplicação da lei penal” (CPP, art. 312, caput), cabendo ao juiz, no caso posto, identi­ ficar situações concretas que caracterizam o perigo para a aplicação da lei penal, na hipótese de prisão temporária, o legislador previamente estabeleceu quais as situa­ ções concretas que autorizam a prisão: (1) não ter residência fixa; (2) não fornecer elementos de identificação. Assim, fora destas hipóteses, náo pode o magistrado criar outras, nem pode invocar uma “cláusula genérica” do perigo de fuga, sob pena de violar o princípio da legalidade da prisão cautelar, que tem como corolário a taxatividade de suas hipóteses de cabimento. Além disso, nem sempre a prisão temporária, neste caso, terá por finalidade evitar uma possível fuga. Muitas vezes - e isto decorre das hipóteses de cabimento do inciso II - seu fundamento será a dificuldade de localizar o investigado, cuja presença pode ser necessária para algum ato de investigação, por exemplo, participar de um reconhecimento pessoal. Em linhas gerais, poder-se-ia identificar a hipótese de prisão preventiva por con­ veniência da instrução criminal com a prisão temporária “quando imprescindível para as investigações da inquérito policial ” (Lei n° 7.960/1989, art. 1°, I). Da mesma forma, a prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal apresenta alguma semelhança com a prisão temporária “quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade" (Lei n" 7.960/1989, art. 1°, II), uma vez que ambas as situações caracterizariam um “perigo de fuga”. Todavia, em relação à prisão temporária, nào há nenhuma hipótese de cabimento que qé assemelhe à prisão preventiva para “garantia da ordem pública”. 18.2.4.2 M om en tos p ara a d e c r e ta ç ã o da p risão tem porária A prisão temporária somente pode ser decretada durante a fase de investigações, isto é, durante o inquérito policial. Uma vez oferecida a denúncia, nâo mais será cabível tal modalidade de prisão cautelar. Caso a prisão cautelar ainda se mostre necessária, o Ministério Público, den­ tro do prazo de duração da prisão temporária, deverá oferecer denúncia e requerer a decretação da prisão preventiva, que substituirá a prisão temporária. O § 7“ do art. 2° da Lei n° 7.960/1989 prevê que, vencido o prazo da prisão temporária, “o preso deverá ser posto imediatamente em liberdade, salvo se j á tiver sido decretada sua prisão preventiva". Entretanto, neste caso, não podem ser confundidas as hipóteses que caracterizam o periculum libertatis nas duas modalidades de prisão. Igualmente, a prisão preventiva sucessiva à prisão temporária deverá ter funda­ mentação própria, não podendo o juiz simplesmente se reportar aos fundamentos da prisão temporária, posto que se trata de medidas cautelares distintas, e com requisitos diversos.

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18.2.4.3 Legitimados para requerer a prisão temporária A prisão temporária será decretada pelo juiz em duas hipóteses (Lei n®7.960/1989, art. 2°, caput): (1) representação da autoridade policial; (2) requerimento do M inis­ tério Público. No caso de representação da autoridade policial, ojuiz deverá, antes de decretar a prisão, ouvir o Ministério Público (art. 2°, § 1°). Não é possível a decretação da prisão temporária e x officio pelo ju iz, assim como não poderá ojuiz, no caso de representação da autoridade policial, e sem oitiva do Ministério público, decretá-la de ofício. Em qualquer das duas hipóteses, a prisão será ilegal, devendo ser relaxada.

18.2.4.4 Prazo e término da prisão temporária A prisão temporária terá duração máxima de cinco dias, prorrogáveis, em caso de extrema e comprovada necessidade, por mais cinco dias. Em suma, seu prazo máximo será de dez dias. No entanto, a Lei n®8.072/1990 ampliou tais prazos, para os crimes nela previs­ tos, para trinta dias, prorrogáveis por mais trinta dias, podendo a prisão temporária atingir sessenta dias, o que se mostra excessivo e absolutamente desnecessário. Aliás, uma investigação criminal que perdure sessenta dias, com o acusado preso, viola a garantia do processo no prazo razoável (CR, art. 5®, LXXVIII), que se aplica também ao investigado preso, durante o inquérito policial ou outra forma de inves­ tigação criminal.'«® É possível que o juiz decrete a prisão temporária por prazo inferior ao prazo máximo de prisão. Nada impede, por exemplo, no caso de crime hediondo, que ojuiz decrete a prisão temporária por cinco ou dez dias. O cômputo do prazo deve se dar de acordo com a regra do art. 10 do CP, começando a fluir do dia em que se deu o encarceramento e encerrando-se no último minuto do quinto dia (por exemplo, se a prisão se efetuou em uma segunda-feira, vencerá às 23 horas e 59 minutos da sexta-feira).'«« Por outro lado, uma vez efetivada a prisão temporária, vencido o prazo de duração, o investigado deverá ser colocado imediatamente em liberdade, independentemente da expedição de alvará de soltura (Lei n® 7.960/1989, art. 2“, § 7°). É possível também que, durante o período de vigência da prisão, a a u to ri­ dade policial, já tendo realizado determinada diligência (por exem plo, a oitiva do investigado ou a realização de seu reconhecim ento pessoal), entenda que a prisáo se tom ou desnecessária. Neste caso, a autoridade policial não poderá, sim plesm ente, colocar o investigado em liberdade. Ao con trário, deverá re168. Nesse sentido, Lopesjr. e Badaró, Direito a o processo..., p. 89 e ss. 169. Nesse sentido: Freitas, Prisão temporária, p. 138.

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presentar ao ju iz que a decretou, para que revogue a prisão temporária que se tornou desnecessária.*'“

18.2.4.5 Fundamentação da decretação da prisão temporária O art. 2“, § 2°, da Lei n" 7.960/1989 prevê que “o despacho que decretar a prisão tem porária deverá ser fundamentado e prolatado dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas a partir do recebimento da representação ou do requerimento". Nào se trata de despacho, e sim de decisão, na qual o juiz deve analisar os requisitos de cabi­ mento da prisão temporária. Sendo decisáo, a necessidade de fundamentação decorre da própria exigência constitucional do art. 93, IX,*'* O juiz deverá indicar qual o crime, pelo qual a prisão é decretada, deverá, neces­ sariamente, ser um dos delitos previstos no inciso III do art. 1°. Além disso, deverá apontar as “fundadas razões”, com base nas investigações até entáo realizadas, que lhe permitem concluir que o investigado seja o autor ou tenha participado da prática delitiva. Obviamente, não se exige a demonstração da certeza de autoria, mas deve haver elementos indicando que a autoria, ou a participação, é ao menos provável.*" Além do fumus commissi delicti, deverá o juiz indicar, também com base nos ele­ mentos de investigação, a ocorrência de uma das situações fáticas do inciso I ou do inciso II do art. 1°. Deverá demonstrar, concretamente, por que a prisão é imprescin­ dível para a investigação, o que normalmente implica indicar uma situação em que a presença do acusado seja fundamental para o inquérito policial. Já a demonstração de que o investigado nào tem residência ou se recusa a fornecer elementos de identificação é mais difícil. Ocorrerá quando, por exemplo, os dados cadastrais foramjhegativos quanto à residência, ou quando o investigado, em alguma diligência, não fotriecerseu nome ou outros dados de qualificação, como a filiação. O art. 2“ da Lei n° 7.960/1989 prevê a possibilidade de prorrogação da prisão temporária “em caso de extrema e comprovada necessidade". Como se vê, se o decreto de prisão temporária exige motivação segura e relevante, no caso de prorrogação da medida, dada a sua própria natureza cautelar, sâo necessários fundamentos ainda mais sólidos e evidentes do que aqueles da decretação da medida. Em outras palavras, a prorrogação exige uma razão maior do que o fundamento invocado para a prisáo, ou seja, só pode ser determinada em casos extremos. *'* 170. Não admitindo a soltura pela autoridade policial sem que o juiz determine a soliura do preso: Ramos, A tutela de urgência..., p. 240; Nucci, Código..., p. 650. 171. Na jurisprudência, reconhecendo a nulidade por falta de fundamentação: e.xtinto TAPR, HC n° 45.891-3. 172. Para Tourinho Filho (M anual..., p. 611), “fundadas razões são razões convincentes, sérias”. 173. Nesse sentido: Mirabete, Processo Penal, p. 429. De forma semelhante, Magalhães Gomes Filho (A motivação das decisões..., p. 202) entende que ojuiz deve indicar de forma expressa “o porquê da ‘extrema e comprovada' necessidade”.

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18.2.5 Medidas cautelares alternativas à prisão

18.2.5.1 Ndvas medidas alternativas à prisão preventiva’^“ Os arts. 319 e 320 do CPP preveem medidas alternativas à prisão preventiva ou prisão em flagrante d elito."’ Não se trata, pois, de medidas substitutivas da prisão. A diferença é fundamental. No caso de medidas substitutivas, a prisão preven­ tiva é concretamente cabivel, mas ojuiz pode deixar de aplicá-la, substituindo-a por medida menos gravosa, não privativa de liberdade."« ■> Se se aplicarem medidas alternativas, estar-se-á diante de uma situação em que, concretamente, ou se admite a prisão preventiva, ou se admites^utra coisa, isto é, uma das medidas cautelares dos arts. 319 ou 320, acrescidos pela Lei n° 12.403/2011. Não haverá situação em que ambas as modalidades de medidas cautelares - prisão preventiva, de um lado, e medidas alternativas dos arts. 319 e 320, de outro - sejam, em concreto, igualmente possíveis. Se a prisão é cabível, significa que o grau de cautelaridade exigido para o caso é máximo, sendo insuficiente a imposição de medidas menos gravosas, porque não assegurarão suficientemente a instrução ou os fins do processo. Por outro lado, nas hipóteses em que a necessidade de assegurar a instrução ou a aplicação da lei penal possa ser suficiente e adequadamente garantida por uma medida menos intensa que a prisão preventiva (por exemplo, proibição de ausentar-se 174. O item reproduz, parcialmente, o capítulo denominado Medidas cautelares alternativas à prisão preventiva - Comentários aos artigos 319-320 do CPP, na redação da Lei 12.403/2011, In: Og Fernandes, Medidas cautelares..., p. 205-297. 175. Alternativo, segundo o Dicionário Houaiss (p. 169), vem do antepositivo alter que, por sua vez, vem do latim alter, a, um, significando “um outro, outrem; outro, diferente; oposto, contrário”. O léxico explica, ainda, que alter vem da raiz al (‘outro’) + o sul. de cp. tero, (cf. gr. hé-tero), alter passou a ser empregado na época imperial como sinônimo de alius (ver as etim. de aliás e álibi). Alternativo, portanto, tem o significado de alternância ou oposição entre duas coisas. O Dicionário Houaiss (p. 169) registra alternativa como “sucessão de coisas reciprocamente exclusivas que se repetem com alternância; uma de duas ou mais possibilidades pelas quais se pode optar”. Há, porém, indicação de acepção mais ampla: “sistema de duas ou mais proposições em que a verdade dc uma implica a falsidade das outras, através da utilização do conectivo ‘o ú ”. Por sua vez. Caldas Aulete (Dicionário con­ temporâneo..., V . 1, p. 177) registra, como significado de “alternativa”: “opção, escolha entre duas coisas, entre duas posições”. Também para Aurélio B. H. Ferreira (Novo dicionário..., p. 75), alternativa tem o significado de “sucessão de coisas reciprocamente exclusivas; opção entre duas coisas”. 176. É o que estabelece, por exemplo, a StPO alemã, em seu § 116: “O juiz pode suspender a execução de uma ordem de prisão que somente está justificada pelo perigo de fuga, quando medidas menos graves fundassem o prognóstico de que a finalidade da detenção preventiva também poderá ser alcançada por elas. Se consideram, em particular [...] O juiz pode também suspender a execução de uma ordem de prisão que estivesse justificada pelo perigo de entorpecimento, quando medidas menos graves fundassem o prognóstico de que elas o diminuirão consideravelmente. Se consideram especialmente, a ordem de não admitir contatos com corréus, testemunhas e peritos”. No sentido de que tais medidas são substitutivas: Gomez Colomer, El proceso alemán..., p. 111; Roxin, Derecho..., p. 272.

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do País, ou o recolhimento domiciliar noturno), a toda evidência, o cárcere mostrar-se-á exorbitante e excessivo, nâo sendo justificável a privação da liberdade de locomoção de quem a Constituição presume inocente.

18.2.5.2 Natureza: as novas medidas alternativas à prisão são medidas cautelares? Como já exposto, as medidas cautelares têm finalidade puramente assecuratória não sendo aptas a satisfazer, ainda que provisoriamente, a situação de direito material em relação a qual se busca a tutela jurisdicional. Isso significa que, no processo penal, as medidas cautelares pessoais poderão ter por finalidade assegurar a investigação ou a instrução, de um lado, ou assegurar a aplicação da pena, de outro. Ou seja, poderão ser, respectivamente, cautelas instrumentais (isto é, probatórias) ou finais. Por certo, o art. 282, caput, I, o CPP identifica, além dessas duas necessidades, verdadeiramente cautelares, a possibilidade de decretação de medidas, rotuladas de cautelares, “nos casos expressamenteprevistos, para evitar apráticad e infrações penais". E, como se verá, há medidas previstas no rol do art. 319 para as quais, expressamente, o legislador prevê que a medida terá a finalidade de evitar a reiteração criminosa. No entanto, seriam tais medidas verdadeiramente cautelares? A partir de tal premissa é que serão analisadas as novas medidas alternativas à prisão previstas nos novos arts. 319 e 320 do CPP, para verificar se sâo verdadeira­ mente cautelares, isto é, conservativas, ou se, ao contrário, são apenas rotuladas de cautelares,*®® embora sejam, substancialmente, satisfativas e antecipatórias da pena. Nas medidas alternativas à prisão previstas no art. 319 do CPP e na medida do art. 320 do mesmo Código, a Lei n° 12.403/2011 não estabeleceu os requisitos específicos caracterizadores do periculum libertatis. No entanto, o art. 282,1, prevê a regra geral quanto à finalidade das medidas cautelares pessoais: só serão decretadas quando houver “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais". Há, pois, duas finalidades gerais ou ordinárias - cautela instrumental (ou probatória) e cautela final - e uma especial ou extraordinária, somente cabível nos casos “expressamente previstos" em lei, de “evitar a prática de infrações penais". No que se refere às medidas alternativas à prisáo, nào há previsão de uma finalidade específica em relação ao comparecimento periódico emjuizo (art. 319, caput, I), ha­ vendo, apenas, a exigência de que o comparecimento ocorrerá “no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades". Também nào se pode identificar uma explícita necessidade legal para a medida de proibição de manter contato com 177. Essa “troca de etiquetas” pode ser verificada em Bonfim (Reforma..., p. 58) que, para­ lelamente ao que denomina “cautelaridade processual, que garante o normal iter procedi­ mental", refere-se também a uma “cautelaridade social, cujo escopo é proteger a sociedade de indivíduos perigosos".

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pessoa determinada, dado que o legislador se limita a estabelecer que, “por circuns­ tâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante” (art. 319, caput, III). Nenhuma indicação de escopo há nas medidas de recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos (art. 319, caput, V ), na monitoração eletrônica (art. 319, caput, IX) e na proibição de ausentar-se do País (art. 3 20). Em suma, as medidas alternativas dos incisos I, III, V e IX do caput do art. 319 e a do art. 320 do CPP podem ter finalidade de cautela instrumental ou de cautela final, por aplicação da regra geral do art. 282, caput e I, do CPR De certa maneira, a fiança (art. 319, caput e VIII) tam hén^ode se prestar a am­ bas as finalidades, na medida em que a lei prevê que ela será cabível “para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial". Principalmente por assegurar o compareci­ mento aos atos processuais, é possível considerá-la como destinada tanto a facilitar a instrução quanto a assegurar a aplicação da lei penal. Ou seja, a fiança (art. 319, caput e VIII) também cumprirá as funções de cautela instrumental e de cautela final. Por outro lado, a finalidade de cautela instrumental, para assegurar a investiga­ ção ou a instrução, encontra-se prevista para a medida de “proibição d e ausentar-se d a Com arca" (art. 319, caput e IV). Finalmente, o escopo extraordinário, que exige expressa previsão legal, de evitar a reiteração criminosa, foi estabelecido em relação à “proibição de acesso ou frequência a determinados lugares” (art. 319, caput e II), “à suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira” (art. 319, caput e V I), e, por fim, à “internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável.” (art. 319, caput e VII). Ou seja, as medidas alternativas dos incisos II, VI e VII do caput do art. 319 podem ter finalidade de evitar a reiteração criminosa.

18.2.5.3 Pressuposto, requisitos e hipóteses de cabimento das medidas alternativas à prisão Nenhuma medida cautelar pessoal no processo penal poderá ser decretada sem que haja/umus commissi delicti e periculum libertatis. Não é diferente com as medidas cautelares alternativas à prisão previstas nos arts. 319 e 3 20 do CPP. Além disso, é preciso definir as hipóteses abstratas de incidência das medidas alternativas à prisão. De se considerar que se trata de constrições ou interdições menos gravosas do que a prisão preventiva, para a qual há uma delimitação clara do campo de incidência no art. 313 do CPP. Ainda que inexista previsão legal expressa, a decretação de qualquer medida alternativa à prisão preventiva exige a presença do pressuposto positivo do fum us com m issi delicti, consistente na prova da existência do crime e indício suficiente de

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autoria.*®® Ressalte-se que a intensidade de elementos probatórios exigidos para que o juiz se convença da existência de um crime e da probabilidade da autoria delitiva para as medidas dos arts. 319 e 320 do CPP éa mesma exigida para a prisão preventiva. Para a decretação das medidas alternativas à prisão também é necessário que, ao pressuposto positivo, se some ao menos uma hipótese de periculum libertatis. As medidas alternativas à prisão dos incisos I, III, V, VIII e IX do caput do art. 319 e a do art. 320 do CPP poderão ser decretadas quando necessárias “para aplicação da lei penal, p ara a investigação ou a instrução criminal” (CPP, art. 282, caput, I, P parte). Para a medida de proibição de ausentar-se da comarca é prevista somente a finalidade de cautela probatória ou instrumental (CPP, art. 319, caput e IV). Finalmente, em relação às medidas alternativas dos incisos II, VI e VII do caput art. 319, o legislador, observando a exigência da parte final do inciso I do caput do art. 282, expressamente previu que poderão ser decretadas para evitar a reiteração criminosa. Finalmente, embora sem previsão expressa, também para a decretação de me­ didas alternativas à prisáo, deve-se observar, por analogia com a disciplina da prisão preventiva, o pressuposto negativo do art. 314 do CPP, consistente em “ter o agente praticado o Jato nas condições previstas nos incisos l, II e III do caput do art. 23 do [Có­ digo Penai]”. Nem poderia ser diferente. Verificada uma hipótese de excludente de ilicitude - e o mesmo vale para as excludentes de culpabilidade - , não há que consi­ derar presente o fumus commissi delicti. As medidas cautelares não se fundam em um juízo de certeza do direito de punir. Busca-se a plausibilidade do direito invocado, isto é, a aparência ou viabilidade do direito de punir. Se a dúvida sobre a excludente conduz, ao final do processo, à absolvição, a mesma dúvida, no curso do,processo, não pode levar à imposição de medida cautelar. Estar-se-á acautelando o quê? Ainda que se trate de decisão segundo o estado dos autos, se o provável é a absolvição, nâo há plausibilidade do direito de punir, sendo inviável a medida cautelar pessoal, seja ela prisão preventiva, seja medida alternativa à prisão! ‘®* Finalmente, no que diz respeito ãs hipóteses de incidência das medidas alter­ nativas à prisão, a Lei n° 12.403/2011 não forneceu qualquer parâmetro.*®® Dife178. Com razão, Moreira Porto (Projeto de Lei n. 4.208/2001..., p. 72), analisando o PL n° 4.208/2001, observava; “nào obstante inexistir menção expressa no art. 282 do Projeto de Lei n“ 4.208/2001, entendemos que também deve haver prova da existência do crime e in­ dícios suficientes de autoria para decretação das medidas cautelares alternativas, porquanto consistem no fumus boni iuris indispensável a decretação de qualquer medida cautelar". No mesmo sentido; Delmanto, Medidas substitutivas..., p. 280. 179. Nesse sentido, no tocante ao processo penal português, cf. Marques da Silva. Curso..., V. 2, p. 241. 180. A única exceção é a medida de “internação provisória" do imputável ou semi-imputável, do inciso VI do caput do art. 319, que somente pode ser aplicada “na hipótese de crimes praticados com violência ou grave ameaça". No PL n" 4.208/2001 havia também uma pre­ visão específica, que náo se manteve, no texto aprovado, para o “recolhimento domiciliar , que somente era cabível nos “crimes punidos com pena mínima superior a dois anos .

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rentemente do que ocorre com a prisão preventiva, em relação à qual o art. 313 do CPP estabelece as hipóteses em que, abstratamente, o encarceramento é cabível, não há regra semelhante para as medidas alternativas à prisão. Certamente, nos casos em que é cabível a prisão preventiva, em especial na hi­ pótese de maior incidência, qual seja “nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos” (CPP, art. 313, caput e I), também serão cabíveis, em tese, as medidas alternativas dos arts. 319 e 320. Concretamente, porém, caberá ao juiz verificar qual é a mais adequada (CPP, art. 282, caput e II), quer entreã prisão preventiva, de um lado, e as medidas alternativas, de outro, observando o caráter subsidiário da prisão (CPP, art. 282, § 6°), quer entre as diversas medidas alternativas entre si, segundo os diferentes graus de restrições da liberdade existentes entre elas. Mais complicado é definir se serão cabíveis as medidas alternativas dos arts. 319 e 320 nos crimes menos graves, para os quais não cabe a prisão preventiva, somente admissível nas hipóteses do art. 313 do CPP. A resolução da questão exige a compre­ ensão de que o legislador definiu como regra geral a ideia de adequação das medidas cautelares (CPP, art. 282, caput e II), não se podendo impor uma restrição mais gra­ vosa, quando cabível outra medida igualmente eficaz ao fim que se busca - uma das situações de necessidade (CPP, art. 282, caput e 1). Assim, para situações mais graves, devem existir medidas mais restritivas. De outro lado, para situações menos graves, serão adequadas medidas menos intensas e que restrinjam em menor grau a liberdade de locomoção. Conclui-se, pois, que as medidas alternativas podem incidir em hipóteses de delitos menos graves que aque­ les que admitem a prisão preventiva (CPP, art. 313),™' ainda que não haja previsão expressa nesse sentido.'®* 181. Nesse sentido; Nucci, Prisão e liberdade..., p. 67. Nesse mesmo sentido, com relação ao PL n° 4.208/2001, cf. Schietti Machado Cruz, Prisão cautelar.., p. 149. 182. O único limite, embora bastante lato, é que não se pode aplicar qualquer medida caute­ lar “à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada com pena privativa de liberdade", nos termos do § 1“ do art. 283 do CPP. No CPP italiano, o art. 280 estabelece as condições gerais de aplicabilidade das medidas cautelares, e prevê, no comma 1°, que as medidas cautelares diversas da “custódia cautelar" podem ser aplicadas somente nos processos por crimes para os quais a lei estabeleça a pena de ergaslolo ou de reclusão superior, no máximo, a três anos; no comma 2“ é previsto que a “custódia cautelar no cárce­ re” pode ser aplicada somente para os delitos, consumados ou tentados, para os quais seja prevista a pena de reclusão não inferior no máximo a quatro anos. Já no regime português, o CPP prevê, para cada uma das medidas de coerção pessoal diversas da prisão preventiva, os delitos a que poderão ser aplicadas, com base na pena máxima cominada: a submissão a termo de identidade e residência cabe em qualquer crime (art. 196); a caução somente é cabível aos crimes punidos com pena de prisão (art. 197.1); a obrigação de apresentação periódica é cabivel no caso de crimes punidos com pena de prisão de máximo superior a seis meses (art. 198); a suspensão do exercício de funções, de profissão ou de direito, é cabível se o crime for punível com pena de prisão de máximo superior a dois anos (art. 199); a proibição de permanência, de ausência e de contatos, cabível para os crimes dolosos puníveis com pena de prisão de máximo superior a três anos (art. 200); a obrigação de

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Além da necessidade e da adequação, tal interpretação também se alinha com a necessidade de observância da proporcionalidade em sentido estrito.

18.2.5.4 Características: preferibilidade e cumulatividade Entre as características das medidas cautelares alternativas à prisão preventiva recém-criadas pela Lei n" 12.403/2011, previstas no art. 319 e no art. 320 do CPP podem-se destacar a preferibilidade e a cumulatividade. O novo sistema de medidas cautelares pessoais deixa claro que as medidas cau­ telares alternativas à prisão são preferíveis em relação à prisão preventiva, dentro da ótica de que sempre se devem privilegiar os meios menos gravosos e restritivos de direitos fundamentais. Sendo necessária a imposição de alguma medida cautelar para tutelar o processo, seja quanto à instrução criminal, seja quanto ao seu resultado final, a primeira opção deverá ser uma medida cautelar alternativa à prisão (CPP, arts. 319 e 320). Somente quando nenhuma das medidas alternativas for adequada às finalidades assecuratórias que o caso exige, seja pela sua aplicação isolada, seja por sua imposição cumulativa, é que se deverá verificar o cabimento da medida mais gravosa, no caso, a prisão preventiva. Nesse sentido é que deve ser interpretado o novo § 6° do art. 282: “a prisão preventiva será determinada quando n ãojor cabível a sua substituição por ou­ tra medida cautelar (art. 3 1 9 )”. A preferibilidade das medidas cautelares alternativas à prisão tem, como reverso da moeda, a excepcionalidade da prisão preventiva. A prisão preventiva é a extrema ratio, somente podendo ser determinada quando todas as outras medidas alternativas se mostrarem inadequadas.'®* De se esclarecer que, embora o art. 319 preveja a “substituição" da prisão “por outras medidas cautelares”, as medidas do art. 319 não são “substitutivas” d(i prisão, mas medidas “alternativas” à prisão preventiva, como já destacado. Nào se trata de caso em que se podia impor a prisão, mas esta é substituída por medida menos grave. Desde o momento inicial, já se mostrava adequada medida diversa da prisão preventiva, sendo, pois, excessivo o encarceramento. Por tal motivo, o § 6° do art. 282 não deveria se referir a “substituição por outra medida cautelar”. A prisão nâo será substituída, porque náo poderá ser imposta! Se a prisão não é concretamente adequada, deverá ser aplicada, inicial e preferencialmente, apenas medida alternativa à prisão preventiva (CPP, art. 282, § 6°). Isso não exclui, porém, o inverso. A prisão preventiva poderá ser substitutiva das medidas alternativas à prisão. É possível que, no momento em que se decretou medida alternativa, fosse ela adequada a atingir o objetivo de assegurar a instrução ou o resultado do processo, fazendo-o de forma menos gravosa que a prisão prevenperLtianència n a habitação, taLnbém cabível para os crimes dolosos puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (art. 201); e a prisão preventiva é cabivel, igualmente, para os crimes dolosos puníveis com pena de prisáo de máximo superior a três anos (art. 2 0 1 .1 .a).

183. Zappalà, Le misure cautelari..., p. 447.

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tiva. Entretanto, diante de uma situação nova, quer em razão do descumprimento da medida alternativa imposta isolada ou cumulativamente, quer em razão de um novo estado de fato - e as medidas cautelares são sempre adotadas rebus sic stantibus - , pode ser que somente a prisáo preventiva tenha se tomado adequada, não havendo meio cautelar menos gravoso apto a atingir tal finalidade. Nesse caso extremo, a medida alternativa à prisão será convertida - por inadequação em razão da insuficiência - em prisão preventiva. Quanto à aplicação integrada das “outras medidas cautelares”, é fundamental a regra do § 1° do art. 282: “As medidas cautelares poderão ser aplicãdas isolada ou' cumulativamente”. Por certo, no caso da decretação da prisão preventiva (arts. 312 e 313) ou no caso em que esta substitua a prisão em flagrante (art. 310, caput e II), não será o caso de cumular a prisão preventiva com outra medida cautelar, uma vez que já se estará impondo ao investigado ou acusado o grau máximo de restrição cautelar, privando-o de sua liberdade de locomoção. *®®No entanto, nâo sendo o caso de decre­ tação da prisão preventiva, tendo em vista que as finalidades cautelares de assegurar a instmção processual (cautela instmmental) ou de garantir a aplicação da lei penal (cautela final) podem ser atingidas, de forma adequada, pela imposição de uma medida cautelar diversa da prisão, poderá ser imposta uma só medida alternativa à prisão, prevista nos arts. 319 e 320, ou mais de uma delas, de forma cumulativa.

18.2.5.5 VariabilicJade das medidas cautelares alternativas à prisão As medidas cautelares alternativas à prisão, assim como toda e qualquer medida cautelar, estão sujeitas a variações no curso da persecução penal. O novo § 5° do art. 282 do CPP prevê que “Oju iz poderá revogar a m edida cautelar ou substituí-la quando verificar a fa lta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”. Assim, uma vez decretada quaisquer das medidas cautelares alternativas à prisão, mudanças do estado de fato subjacente ao momento de sua decretação, ou mesmo o surgimento de novas provas que alterem o convencimento judicial sobre o fum us commissi delicti ou o periculum libertatis, podem levar à necessidade de: ( 1 ) revogação da medida cautelar; (2 ) substituição da medida cautelar por outra, mais gravosa ou mais benéfica; (3) reforço da medida cautelar, por acréscimo de outra medida em cumulação; (4) atenuação da medida cautelar, pela revogação de uma das medidas anteriormente imposta cumulativamente com outra. 184. Em relação ao regime português. Marques da Silva (Curso..., v. 2, p. 277), analisando a medida de “obrigação de permanência na habitação”, entende que “à semelhança do que acontece com a prisão preventiva, esta medida não pode ser aplicada cumulativamente com as outras”. Diversamente, ainda na doutrina portuguesa, Maia Gonçalves (Código..., p. 433), em anotação ao art. 201, destaca que “esta medida é cumulável com qualquer outra, desde que não haja incompatibilidade, natural ou legal, como sucede com a prisão preventiva, a obrigação de apresentação de apresentação periódica (art. 198°) e a caução (art. 205°)”. Nesse último sentido, também: Gonçalves e Alves, A prisão preventiva..., p. 130.

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A hipótese mais comum a justificar a variação da medida cautelar alternativa à pri­ são, seja para impor outra em cumulação, seja para substituí-la por medida mais gravosa é o seu descumprimento. Todavia, é importante destacar que nem todo descumprimento deverá, necessariamente, dar lugar a um novo provimento judicial, de substituição ou cumulação da medida, mas apenas aqueles descumprimentos que, por suas caracteris­ ticas, sejam de tal ordem, que permitam considerar que a medida originária não é mais suficiente e adequada para fazer frente à mudança da situação cautelar.™’ Em qualquer dessas situações, embora o novo texto do § 3“ do art. 282 não o diga,™« haverá necessidade do respeito ao contraditório prévio, “ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”. Se, no que toca à prisão preventiva, normalmente, houver o perigo de ineficácia da medida, caso se instaure o contraditório prévio,™’ no caso de medidas alternativas à prisão, muitas vezes o contraditório prévio em nada comprometerá a sua eficácia, principalmente nas hipóteses de substituição, reforço, atenuação e revogação. Nesse ponto, é de destacar que, em relação à fiança, o CPP estabelece os casos de cassação (arts. 3 3 8 e 339), reforço (art. 340), quebramento (art. 341) eperda (art. 344). Assim, para a fiança, fora dessas hipóteses legais, nâo poderá haver sua revogação ou cassação. Nada impede, porém, que, no curso da fiança, ojuiz imponha em cumulação outra medida alternativa (por exemplo, proibição de frequentar determinados locais) ou, caso a fiança seja cassada, no mesmo ato o juiz imponha outra medida alternativa (por exemplo, recolhimento domiciliar noturno). Quanto às demais medidas alternativas à prisão, não precisará haver descum­ primento para que o juiz as substitua por outra mais grave (por exemplo, substituir o comparecimento periódico aju ízo por proibição de ausentar-se da conjarca), ou determine a cumulação da medida alternativa originariamente imposta cóm outra medida (por exemplo, cumular a proibição de frequentar determinados locais com o monitoramento eletrônico) ™®A substituição poderá ocorrer nos casos em que haja simples alteração do estado de fato (por exemplo, o acusado muda de emprego, e a nova atividade exige constantes viagens para outras cidades, tendo-lhe sido imposta a proibição de ausentar-se da comarca), ou da situação processual (por exemplo, já ter sido ouvida a testemunha em relação a qual se impôs ao acusado a proibição de manter contato). Também caberá a substituição caso surjam novas provas que alterem a convicção judicial sobre o fumus commissi deíicti (por exemplo, substituir a fiança, 185. Vittorio Grevi, Misure cautelari..., p. 304. 186. A dicção do § 3“ do art. 282, ao prever que “o juiz, ao receber o pedido de medida cau­ telar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo", parece se referir apenas ao pedido para decretação da medida. 187. Mesmo em relação à prisão, não é demais lembrar a advertência de Marques da Silva (Curso..., V . 2, p. 254), comentando regra semelhante do art. 194.2 do CPP português, no sentido de que não deve “exagerar-se o perigo, nem pressupô-lo”. 188. Nesse sentido, em relação ao sistema português. Marques da Silva, Curso..., v. 2, p. 283.

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por liberdade provisória sem fiança do art. 310, parágrafo único, se surgirem provas de que o fato foi praticado em situação de excludente de ilicitude) ou o periculum libertatis (por exemplo, substituir a proibição de ausentar-se do país por uma fiança elevada, caso 0 acusado adquira uma aeronave ou helicóptero, dando sinais de que poderia fugir).Justamente por isso, é fundamental que o juiz realize um “controle permanente da subsistência das condiçóes de aplicabilidade das medidas cautelares pessoais” .'®* Por outro lado. como o juiz pode, independentemente de qualquer mudança fática ou probatória, revogar a medida por insubsistência ex ante das condições que havia legitimado a sua aplicação, também poderá modificá-la em razão de uma revaloração da relação de necessidade, adequação e proporcionalidade, com base exclusivamente em fatos preexistentes.**“ Também será possível aoj uiz simplesmente revogar a medida alternativa àprisão, não ficando o acusado sujeito a qualquer outra medida cautelar, no caso em que esta se mostre totalmente desnecessária. Assim, por exemplo, se o acusado for absolvido em primeiro grau, ainda que a sentença seja passível de recurso, desaparecerá o/umus commissi delicti, e o juiz deverá revogar a medida cautelar alternativa à prisão que es­ teja em vigor, nos termos do inciso II do parágrafo único do art. 386 do CPP. A mesma providência deverá ser tomada no caso de proferir sentença extintiva da punibilidade, ou mesmo se houver o arquivamento do inquérito policial.*** Finalmente, no caso de trânsito emjulgado da sentença penal condenatória, a medida cautelar também será revogada, ou m elh o r,m ed id a cautelar, provisória por natureza, deixará de existir, sendo substituída pela sanção imposta definitivamente na sentença.

18.2.5.6 Taxatividade das medidas alternativas à prisão ou poder geral de cautela? Quando vigorava o reducionismo bipolar das medidas cautelares pessoais, argu­ mentava-se que, ante a inaceitável omissão legislativa, ojuiz penal poderia, aplicando por analogia (CPP, art. 3°) o poder geral de cautela previsto no CPC, decretar medidas cautelares processuais atípicas, isto é, não previstas em lei. E, complementando-se tal raciocínio, fundamentava-se a necessidade de se socorrer de medidas nâo previstas em lei, in bonam partem, isto é, para beneficiar o acusado, pois, caso contrário, teria o juiz que decretar a sua prisão preventiva ou mantê-lo preso em flagrante delito. A Lei n° 12.403/2011 instituiu várias medidas intermediárias, situadas entre a prisão cautelar e a liberdade provisória. Estaria, assim, de uma vez por todas, sepultada 189. A frase é de Zappalà (Le misure cautelari..., p. 471), que se refere a um “princípio de persistência das condições de aplicabilidade das medidas cautelares". 190. Idem, ibidem, p. 472. 191. Nesse sentido: Pacelli de Oliveira, Atualização do processo penal..., p. 31. Embora não baja regra expressa no que toca às medidas alternativas à prisão, nesse ponto cabe a analogia com o art. 337 do CPP, na parte em que disciplina os efeitos de tais sentenças em relação à fiança.

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a discussão sobre a possibilidade de utilização do poder geral de cautela no processo penal? Uma resposta simplista seria; sim, pois agora passou a existir o que antes faltava! Todavia, a questão exige uma análise mais atenta, ainda que seja para chegar à mesma resposta positiva. Isso porque, mesmo diante do novo catálogo de medidas alternativas, poder-se-á argumentar que o rol não está completo, ou que sempre poderão surgir novas necessidades de outras medidas alternativas, ou, ainda, que poderia ser necessário ampliar a finalidade prevista na lei para as novas medidas alternativas.**' Assim, mesmo diante do estabelecimento de um amplo conjunto de medidas alter­ nativas à prisão pela Lei n° 12.403/2011, cabe verificar se ainda seria admissível a utilização de um poder geral de cautela no processo penal brasileiro. A solução de tal problema deve partir da consideração de que as novas medidas dos arts. 319 e 320 do CPP são medidas alternativas à prisão, e não substitutivas da prisão. Tal premissa é fundamental para compreender o equívoco do argumento de que a adoção de uma medida cautelar atípica ocorreria em benefício do acusado, por evitar uma prisão que seria excessiva e mais gravosa do que a situação exigia.**® O ar­ gumento comumente utilizado, antes da Lei n° 12.403/2011, continha uma falácia; se havia necessidade de imposição de uma medida cautelar e, se para o atingimento de tal fim, bastava uma medida menos gravosa que a prisão - ainda que outrora sem previsão legal, como, v.g., a entrega do passaporte ou o afastamento do funcionário público de suas funções - , o encarceramento cautelar não poderia ser considerado adequado, por impor ao direito de liberdade uma restrição constitucionalmente injustificável. Logo, se as alternativas legais eram a prisão ou a liberdade, e a prisão não se mostrava adequada, outro caminho não restaria, no marco da legalidade, senão a concessão da liberdade provisória, no caso de prisão em flagrante delito, ou a não decretação da prisão preventiva, com a manutenção da liberdade plena, nos demais casos. Portanto, corretamente estabelecidas as premissas, não se tratava de medidas atípicas para “beneficiar o acusado”, que assim não seria preso cautelarmente, mas de medidas atípicas que restringiam seu direito de liberdade mais do que o permitido em lei, uma vez que, nâo sendo adequada a prisão cautelar, o acusado deveria ficar em liberdade, provisória ou plena, conforme o caso. O mesmo raciocínio deve ser aplicado no caso das novas medidas alternativas à prisão do arts. 319 e 320 do CPP. Se uma medida alternativa - ainda que atípica-é suficiente, isso significa que a prisão nâo é adequada e, sendo excepcional (art. 282, § 192. Nào é necessário, sequer, recorrer ao direito estrangeiro. Basta comparar as novas medidas criadas nos arts. 319 e 320 do CPP pela Lei n° 12.403/2011 com o conjunto das medidas cautelares alternativas à prisão previstas no Projeto de Lei n° 156/2009, para concluir que o legislador poderia ter ido além, estipulando outras medidas ou mesmo finalidades mais amplas às medidas recém-criadas. 193. Nesse sentido, e com bem elaborados argumentos, Schietti Machado Cruz, Prisão caute­ lar..., p. 178-181. No mesmo sentido, cf.: Alves, O poder geral..., p. 430-437; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 123; Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 81; Lima, Nova prisão..., p. 379.

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6°), em nenhuma hipótese poderá ser aplicada. De outro lado, no campo das medidas alternativas, deye-se buscar, entre as legalmente previstas, a menos gravosa. Por fim, se nem a menos intensa das medidas se mostrar adequada “d gravidade do crime, cir­ cunstâncias do fa to e condições pessoais do indiciado ou acusado” (art. 282, II), é porque, no caso, não se deve impor qualquer medida cautelar alternativa à prisão. Deverá, pois, o acusado permanecer em liberdade. Portanto, a adoção de medidas atípicas, porque nâo previstas em lei como aptas a privar ou restringir o direito de liberdade em sede de medida cautelar, encontra inafastável barreira no pressuposto formal do princípio da legalidade. Ainda que a medida seja adequada, necessária e proporcional, se a restrição ao direito fundamental não estiver prevista em lei, nào será legítima. Cuellar Serrano, após observar que a su­ peração do princípio da legalidade pode levar a “uma função pervertida” do princípio da proporcionalidade,**® destaca que “a inobservância do princípio da legalidade evita toda discussão posterior sobre o principio da proporcionalidade”. Há, portanto, um princípio de legalidade para as medidas cautelares pessoais, privativas ou restritivas da liberdade. Consequentemente, caso se considere que o novo rol de medidas dos arts. 319 e 320 do CPP é insuficiente, ou mesmo se se entender que as hipóteses de cabimento de tais medidas devam ser ampliadas para que possam atingir outras finalidades, será necessária modificação legislativa. Me­ didas cautelares devem ser criadas, ampliadas ou alteradas por lei, não por criação jurisprudencial! Em suma, em termos de privação ou restrição da liberdade, em sede de persecu­ ção penal, a lei é o limite e a garantia. Não é possível aplicar o poder geral de cautela e decretar medidas cautelares atípicas diversas daquelas previstas nos arts. 319 e 3 2 0 do CPP, nem aplicá-las para finalidades não previstas em lei. **’ Ninguém pode ser privado de sua liberdade senão pelo devido processo legal (CF, art. 5“, LIV), o que inclui nào se impor qualquer privação ou restrição da liberdade, por qualquer medida cautelar, a não ser nas hipóteses previstas na Constituição ou nas leis.

18.2.5.7 Medidas em espécie 18.2.5.7.1 Comparecimento periódico a juízo O novo inciso I do caput do art. 319 do CPP prevê o “comparecimento periódico em ju izo”, nos seguintes termos: “comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, p ara inform ar e justificar atividades”. 194. Alias, é de destacar que, segundo Cuellar Serrano (Proporcionalidad y derechos jundamentales ... p. 69), o princípio da proporcionalidade se assenta em pressupostos e requisitos, sendo seu pressuposto formal o princípio da legalidade. 195. Nesse sentido: Aury Lopes Jr., O novo regime..., p. 18-19; Luiz Flávio Gomes, An. 282 comentários..., p. 46; Bonfim. Reforma..., p. 25. Para Madeira Dezem (Medidas cautelares pessoais..., p. 15), “em princípio”, o rol de medidas é taxativo.

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Como não há definição específica da finalidade da medida, em tese, o compare­ cimento periódico a j uizo poderá cumprir as finalidades de cautelar instrumental e de cautelar final, segundo a regra geral do art. 282, caput, 1,1® parte, do CPP. A princípio, é possível impor que alguém compareça periodicamente a juízo com a finalidade de assegurar a aplicação da lei penal (cautela final). Tal se daria se o escopo da medida fosse manter atualizado o endereço do acusado, ou de não permitir que, por longo período, fique o juízo sem notícia sua e, o que seria pior, sem saber onde localizá-lo. ™«Também seria possível que a medida tivesse a finalidade, ainda que mediata, de uma cautela instmmental, assegurando a realização de meios de prova: seria mais fácil encontrar e intimar o acusado para atos processuais cuja realização exija sua presença. Nesse último caso, é certo que o acusado poderá se recusar a participar de atos probatórios cujo resultado puder lhe ser incriminador, por exemplo, reconheci­ mentos pessoais, fornecer parâmetros gráficos para perícia de comparação de escritos etc. Todavia, o nemo tenetur se ipsum accusare permite que o acusado, se quiser, não participe do ato autoincriminador, mas não impede que, voluntariamente, aceite a realização do meio de prova. Em tal contexto, a medida alternativa do inciso I do caput do art. 319 poderá facilitar que o acusado seja encontrado, intimado e compareça a juízo, ainda que tenha o direito de, perante o juiz, validamente, negar-se a praticar o ato probatório, sem que de tal recusa se possam extrair elementos de convicção que lhe sejam desfavoráveis. A medida de comparecimento periódico a juízo não poderá ter a finalidade de evitar a reiteração criminosa, pois tal finalidade exigiria expressa previsão legal, nos termos do inciso I, 2® parte, do caput do art. 282, o que inexiste em tal medida. A Lei n° 12.403/2011 não seguiu os modelos estrangeiros em que o /omparecimento não precisa ocorrer somente em juízo, mas também pode se dar nâ delegacia de polícia ou perante outras autoridades designadas pelo juiz.™’ O legislador não estabeleceu a periodicidade do comparecimento. Caberá ao juiz, na decisão em que determina a medida, estabelecer a frequência do com­ parecimento, adequando-as às circunstâncias do caso. Poderá determinar o com­ parecimento mensal, bimestral, trimestral... Também poderá, no curso da medida. 196. Para Aury Lopesjr. (O novo regime..., p. 129), “é uma medida que permite, a um só tem­ po, o controle da vida cotidiana e também certificar-se do paradeiro do imputado, servindo como instrumento para tutela da eficácia da aplicação da lei penal”. 197. O art. 198 do CPP português prevê a medida de “obrigação de apresentação periódica", “a uma entidade judiciária ou a um certo órgão de policia criminal". Já o CPP italiano prevê apenas a medida de “obrigação de apresentação à policia judiciária" (art. 282). Na França, o § 5° do art. 138 do CPP estabelece a figura do controle judiciário, que implica, entre outras obrigações, “apresentar-se periodicamente aos serviços, associações habilita­ das ou autoridades designadas pelo juiz”. Na Alemanha, o § 116.1 da StPO prevê, entre as medidas menos drásticas que podem levar à suspensão da ordem de prisão, “a ordem de apresentação periódica ao juiz, à autoridade de execução penal ou ante uma autoridade por ele determinada". Fntre nós, Aury Lopesjr. ( 0 novo regime ... p. 128) critica o legislador por não permitir o comparecimento em delegacia de polícia.

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e sempre por decisão fundamentada, em contraditório, alterar a periodicidade de comparecimentó. Assim, por exemplo, caso decretada com finalidade instrutória, serã possível, durante a instrução, que o comparecimento seja mensal (tornando mais fáceis a localização e intimação do acusado) mas, após tal fase, a periodicidade do comparecimento seja dilargada.**® Quanto à finalidade do comparecimento, embora haja previsão de que ele ocorrerá “para informar e justificar atividades” do investigado ou acusado, no caso da suspensão condicional do processo, para a qual há condição semelhante,*** na prática tal escapo tem sido ignorado, limitando-se ao comparecimento em secretaria, para que o acusado assine um livro de registro de comparecimento, sem qualquer indagação ou exigência de comprovação da atividade. Embora a lei não o preveja, é evidente que o comparecimento deverá ser pesso­ al,'“ não se podendo admitir que o acusado cumpra a medida por meio de procurador ou por intermédio de seu advogado. Nada impede que, caso o acusado nâo resida na comarca ou seção judiciária em que tramita o processo, o cumprimento da medida de comparecimento a ju íz o seja deprecado para o local de sua residência.'®* 1 8 .2 .5 .7.2 Proibição de acesso ou frequência a determinados lugares A medida de proibição de acesso ou frequência a determinados lugares foi assim prevista; “íí - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, p or cir­ cunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado perm anecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações” (art. 319, inciso II). Trata-se de um dos casos em que o legislador, expressamente, como exige a parte final do inciso I do caput do art. 282, estabeleceu uma medida “cautelar”, com a finalidade de “evitar o risco de novas infrações”. Embora não se possa concordar com a previsão de uma medida rotulada de cautelar, mas com finalidade de evitar a reiteração criminosa,'®' no caso em análise, não parece que a medida de proibição de 198. Lembra Cuellar Serrano (Proporcionalidad y d erechos..., p. 209) que “a determinação do conteúdo da obrigação, isto é, do lugar, dia e hora do comparecimento, fica submetido ao principio da proporcionalidade”. 199. A Lei n° 9.099/1995, em seu art. 89, § 1°, IV, prevê, entre as condições obrigatórias da suspensão condicional do processo, o “comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades”. 200. A medida equivalente, enquanto condição obrigatória da suspensão condicional do processo, é disciplinada de forma mais detalhada, no art. 89, § 1°, IV, da Lei n° 9.099/1995, que prevê o “comparecimento pessoal e obrigatório ajuízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades” (destacamos). 201. Pacelli Oliveira, Atualização do processo penal... p. 17. 202. Aury L op esjr. ( 0 novo regime..., p. 132) destaca, com todo o acerto, que “a medida nasce com um defeito genético: sua discutível cautelaridade e, portanto, constitucionalidade. Não se vislumbra tutela do processo ou de seu objeto, aproximando-se da problemática

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contato com pessoa determinada possa assumir a finalidade de imposição de uma pena antecipada. Mesmo porque, no regime das penas restritivas de direito do art. 44 do CP, não há sanção penal que se assemelhe à imposição de uma interdição de contato com outrem. Assim, embora o inciso II do caput do art. 319 do CPP se refira ao risco de rei­ teração criminosa, “quando, p or circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela perm anecer distante" (art. 319, III), mediatamente, a medida acabará tendo a natureza de uma cautela instrumental ou probatória, imposta para preservar e proteger a prova, no caso de fontes orais, como testemunhas ou vítimas, evitando ameaças, agressões, tentativas de suborno e outras atitudes do mesmo gênero. Necessário distinguir “acesso” de “frequência”. O acesso é a simples ação de entrar ou ingressar em um determinado local, não tendo a expressão qualquer conotação de reiteração ou repetição; já a frequência traduz a ideia de repetição sistemática de um fato ou comportamento, no caso, a repetição sistemática habitual do investigado ou acusado em um lugar específico.'®* Fácil perceber que a vedação de simples acesso é situação mais gravosa, por impedir uma única presença no local vedado, enquanto na proibição de frequência, um único ingresso não caracterizará descumprimento da medida cautelar. Assim, dependendo das “circunstâncias re­ lacionadas ao fato”, bem como do grau ou intensidade do risco de cometimento de novas infrações, o juiz poderá determinar a proibição de frequência, ou, em caso cuja necessidade cautelar seja mais intensa, até mesmo a proibição de acesso, isto é, de um único ingresso em tal local. Não há qualquer explicitação legal sobre a espécie de lugar cujo acesso ou fre­ quência poderá ser objeto de restrição. Assim, poderá ser restrito o acesso a locais públicos (por exemplo, praças ou parques em que há venda de drogas), locais privados abertos ao público (por exemplo, campos de futebol, casas de prostituição ou bares) e até mesmo locais privados (por exemplo, casa de uma testemunha ou da vítima). De qualquer forma, deve haver uma relação ou nexo entre o local cujo acesso se proíbe e a prática do delito (por exemplo, impedir um integrante de torcida organizada que frequente estádios de futebol),'“ uma vez que a finalidade da medida é afastar o acusado de locais que podem facilitar ou mesmo estimular a prática delitiva.'®’ A decisão deverá precisar e individualizar perfeitamente o local (por exemplo, bar de nome tal, da rua tal, número tal), inclusive no que diz respeito a caracterísprisão preventiva para garantia da ordem pública, dado seu caráter de prevenção especial manifesta". No mesmo sentido, em relação ao PL n° 4.208/2001, negando natureza cautelar a tal medida, cf. Scbietli Macbado Cruz, Prisão cautelar..., p. 152. 203. Nesse sentido: Bonfim, Reforma do Código..., p. 44; Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 433. 204. Nesse sentido; Silvio Maciel, Art. 319 - comentários..., p. 183; Bonfim, Reforma do..., p. 44. 205. Nesse sentido: Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 434; Uma, Nova prisão..., p. 359.

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ticas do local, quando necessário (um parque público, incluindo o estacionamento para veículo).™«.

18.2.5.7.3 Proibição de contato com pessoa determinada A medida alternativa de proibição de manter contato com pessoa determinada está prevista no inciso III do caput do art. 319 do CPP, nos seguintes termos; “proibição de manter contato com pessoa determ inada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela perm anecer distante”. v O dispositivo legal não estabelece uma finalidade específica para a medida de proibição de manter contato com pessoa determinada. Em tese, portanto, poderá cumprir as finalidades de cautela instrumental e de cautela final (CPP, art. 2 8 2 ,1 ,1* parte). No entanto, a previsão legal de que a medida seja imposta “quando, p orei rcunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela perm anecer distante” (art. 319, III) indica que o escopo da medida é, realmente, de uma cautela instrumental, imposta para preservar e proteger a prova, no caso de fontes orais, como testemunhas ou vítimas, evitando ameaças, agressões, tentativas de suborno e outras atitudes do mesmo gênero. Difícil imaginar uma situação concreta em que a medida possa ser utilizada para a finalidade de assegurar a aplicação da lei penal. Talvez, por exemplo, a proibição de contato com alguém que falsifique ou venda passaporte falso, para facilitar uma fuga. Nesse caso, porém, o que se deverá coibir é, antes de tudo, a atuação do falsário, que também estaria a cometer crime! O art. 319, III, faz referência à “pessoa determinada”, não limitando a proibição do contato somente à vítima. Assim, será possível proibir que o acusado tenha con­ tato com a vítima, com testemunhas e, até mesmo, com eventuais corréus,™’ tudo a depender do caso concreto. Trata-se, pois, inegavelmente, de uma medida com finalidade cautelar. Diversamente de outras medidas alternativas à prisão, na medida do inciso III o legislador nâo estabeleceu, expressamente, a finalidade de “evitar a prática de infrações penais”. Assim sendo, embora se pudesse cogitar do emprego da proibição de man­ ter contato com determinada pessoa (por exemplo, vítimas) para evitar a reiteração criminosa, como no caso agressões reiteradas ou ameaças contumazes, não havendo 206. Todavia, não parece possível, ante a exigência de interpretação estrita de toda e qual­ quer norma que restrinja direitos fundamentais, que se admita a possibilidade de proibir o acesso a uma determinada cidade, o que poderia implicar excessiva restrição a outros direitos como o direito ao trabalho, à livre escolha da moradia, o contato com familiares e amigos etc. 207. Nesse sentido: Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 436; Polastri Lima, Da prisão..., p. 157. No direito comparado, o § 116, 2, da StPO dispõe no sentido de que pode ser de­ terminada a proibição de contato do acusado com corréus. No mesmo sentido, na doutrina espanhola: Cuellar Serrano, Proporcionalidady derechos..., p. 217.

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previsão expressa nesse sentido, a medida não pode ter tal finalidade extraordinária, como prevê o inciso I, 2° parte, do art. 282 do CPP. Também não parece que a medida possa ser concretamente uma forma de impo­ sição antecipada de pena, dado que, no regime das penas restritivas de direito, não há sanção penal que se assemelhe à imposição de uma interdição de contato com outrem. O legislador não estabeleceu a forma de contato que poderá ser proibida. A toda evidência, o contato pessoal é o mais importante. Entretanto, principalmente em termos de desenvolvimento tecnológico, não deverá se excluir o “contato virtual” ou “a distância”.“ ®Por meio de ligaçóes telefônicas, MSN, Skype, WhatsApp. Voip, e-mail e redes sociais, o mundo virtual tem possibilitado contatos intensos, reiterados e com uma frequência de dezenas de vezes ao longo de um mesmo dia. Nào raro, tais formas de comunicação são utilizadas para a prática de ofensas, ameaças, incitações à violência... Assim sendo, em determinadas situações, impedir o contato pessoal, mas não vedar o contato virtual, poderá ser totalmente ineficaz, pois o que não será possível conseguir pessoalmente poderá ser atingido por meios telepresenciais.'®* No que diz respeito ao contato pessoal, o legislador náo estabeleceu qualquer delimitação espacial. Por certo, em cada decisão o magistrado deverá, concretamen­ te, estabelecer o limite desse contato, normalmente prevendo certa distância de nào aproximação, porexemplo, 200 metros ou 1 quilõmetro."“Tambémépossívelqueseja estabelecida a proibição de contato delimitando-se determinados locais, por exemplo, no local de trabalho da vítima, durante sua jornada laborativa.'" De qualquer fonna, será necessário muito cuidado do juiz na delimitação espacial da medida, que não poderá ser muito diminuta (por exemplo, 5 ou 10 metros), sob 208. Nesse ponto, é de destacar que a denominada Lei Maria da Penha foi mais explícita, prevendo, entre as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, “III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: [...] b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação” (art. 22, 111, b). (destacamos). 209. No sentido de que o conceito de contato é amplo, abrangendo não apenas o contato pessoal, mas também telefônico ou por outros meios de telecomunicações, cf.: Maciel, Art. 319 - comentários..., p. 183; Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 435; Nicolitt, Novo processo..., p. 84. 210. Novamente o paralelo com a Lei Maria da Penha é oportuno, pois nela se prevê, entre as medidas protetivas de urgência, a proibição do agressor de “aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor” (Lei n° 11.340/2006, art. 22, 111, n). Quapto a tal dispositivo, já se fixaram, por e.xemplo, distâncias de 300 metros (TJRJ, HC n° 0055060-41.2009.8.19.0000) e de 1 quilômetro (TJRJ, Ag n° 0052185-54.2007.9.19000). 211. Náo se tratará, por certo, da medida de proibição de frequentar determinados locais, prevista no inciso II do caput art. 319, pois esta tem por finalidade especifica evitar a reite­ ração criminosa. .Além disso, em tal independe se alguém estará ou não presente no local cujo acesso é vedado. Já a medida de inciso 111 do art. 319 tem por caracteristica impedir o contato do acusado com determinada pessoa. No caso, a referência, por exemplo, ao locai de trabalho, terá por objetivo simplificar a delimitação espacial da restrição de contato, facilitando, inclusive, a sua fiscalização.

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pena de ineficácia, ou extremamente ampla (por exemplo, não frequentar determinada cidade ou bairro), a ponto de restringir demasiadamente outros direitos do acusado (por exemplo, ter que deixar de trabalhar na cidade onde labora, ou de residir no bairro em que mora). O critério de adequação (art. 282, caput, II) não se manifesta apenas na escolha da medida mais adequada aos fins perseguidos, mas também na escolha da modalidade de execução, não devendo prejudicar o exercício de outros direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer.™' ^ Ainda que haja delimitação precisa, com a fixação de uma distância em metros que deverá ser respeitada para evitar o contato, para que fique caracterizado o des­ cumprimento da medida, será necessário que o acusado se aproxime conscientemente da pessoa com a qual deve evitar o contato.'** Não se poderá considerar que houve violação da medida se, por exemplo, fixada uma zona de exclusão de 200 metros, o acusado encontrar-se, ocasional e involuntariamente, com a pessoa, em um teatro ou em um restaurante. 1 8 .2 .5 .7 .4 Proibição de ausentar-se da com arca A “proibição de ausentar-se da Comarca” vem prevista no inciso IV do caput do art. 319 do CPP, nos seguintes termos; “proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução". Trata-se de medida alternativa à prisão para a qual a lei expressamente previu a finalidade, sendo uma medida cautelar instrumental ou probatória. Sua razão de ser é impedir que o acusado ou investigado, ausentando-se da comarca, não possa ser localizado para a intimação de futuro ato investigatório ou instrutório para o qual sua presença seja necessária. Todavia, nâo se pode deixar de ressaltar que a medida provavelmente será de baixa eficácia, posto que seu destinatário será o acusado ou investigado, que poderá, validamente, se recusar a participar do ato instrutório, com base na garantia constitucional do nemo teneturse ipsum accusare. E certo que, se ele não deixar a comarca, será mais fácil intimá-lo para participar do ato. No entanto, se o investigado ou acusado pode se recusar a produzir prova contra si mesmo, facilitar sua intimação valerá muito pouco. Além disso, não se pode ignorar que, em determinados casos, se residente em outra comarca, em local certo e deter­ minado, o ato probatório poderia ser praticado mediante carta precatória. De outro lado, a previsão pode ser criticada por ter uma finalidade demasiada­ mente restrita. A medida de proibição de ausentar-se da comarca seria muito mais efetiva se também tivesse a finalidade de assegurar a aplicação da lei penal. Caso nào houvesse um efetivo e iminente perigo de fuga, a simples proibição de ausentar-se da 212. Marques da Silva, Curso..., v. 2, p. 248-249. 213. Nesse sentido: Pacelli Oliveira, Atualização do processo penal... p. 18; Mendonça, Prisão e outras medidas... p. 435.

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comarca poderia ser adequada enquanto cautela final. Entretanto, sem haver previ­ são legal, nào é possível concordar com quem defende que seria possível, também, aplicar tal medida para evitar o risco de fuga.*™ Trata-se de posição que somente pode ser aceita de legeferenda. De acordo com o direito posto, há inegável restrição quanto à finalidade da medida do inciso IV do caput do art. 319: apenas cautela probatória. E, sendo as medidas cautelares pessoais regidas pelo princípio da legalidade, nâo se pode aceitar qualquer forma de poder geral de cautela, mormente quando se trata de ausência de medida específica, mas de pretender adotar uma medida legalmente prevista, para finalidade diversa da disposta em lei.*" O princípio da legalidade, em seu aspecto de taxatividade, vincula rigorosamente a aplicação da medida, à previsão legislativa, somente sendo cabível nos casos e nos modos previstos em lei.*" No caso, nào há omissão, mas deliberada escolha do legislador quanto à finalidade da medida,*" exclusivamente voltada para a proteção ou tutela da atividade probatória. Por outro lado, cabe destacar que a medida alternativa de proibição de ausen­ tar-se da Comarca poderá ser fixada com ressalvas, admitindo-se, por exemplo, que o acusado não possa se ausentar da comarca (por exemplo, Sào Paulo), exceto para realizar suas atividades profissionais diárias (por exemplo. porque trabalha em uma fábrica em São Bernardo do Campo). Também será possível que o juiz estabeleça um prazo em que o acusado não poderá ficar ausente da comarca: por exemplo, por mais de três dias. ou mais de cinco dias. ou outro período que o juiz considere justificado e que não comprometa a necessidade da medida.*™ No caso dajustiça Federal, a divisão territorial denomina-se seção judiciária ou, quando esta é subdividida, subseção. Neste caso, ao investigado ou acusado poderá ser imposta a medida de proibição de ausentar-se da seção ou subseção judiciária.*™

214. A posição criticada é defendida por Pacelli Oliveira, Atualização do processo penal..., p. 19. 215. Embora reconhecendo que “a medida seria melhor utilizada para minorar o risco de fuga”, Aury Lopesjr. (O novo regime..., p. 133-134) adverte que, “como não vemos espaço hermenêutico para, por passe de mágica, mudar de ‘tutela da lei penal’ para ‘tutela da prova', a medida deve ser usada nos limites legais, e não subvertida". 216. Grevi, Misure cautelari..., p. 293. 217. Cabe lembrar que, na redação originária do PL ú 4.208/2001, não havia a previsão da medida de proibição de ausentar-se da Comarca. O inciso iV do art, 319 previa; “proibição de ausentar-se do país, em qualquer infração penal para evitar fuga ou quando a permanência seja necessária para a investigação ou instrução”. Como se observa, a medida era mais tênue, pois a proibição era de ausentar-se do país, e nâo da Comarca. Mas sua abrangência era mais ampla quanto à finalidade, pois, além da cautela probatória, também previa a cautela final, extraível da expressão “para evitar fuga”. 218. A proposta se inspira na ressalva do art. 328 do CPP que prevê; “O réu afiançado nâo poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante, ou ausentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde serã encontrado". 219. Nesse sentido, Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 436.

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Todavia, em determinados casos, será necessário fazer uma interpretação teleológica do dispositivo, pois, no caso dasjustiças Estaduais, normalmente as comarcas corres­ pondem a cada uma das cidades. Na Justiça Federal, porém, a Seçãojudiciária abarca a área territorial de todo um Estado, ou, então, de determinados Estados que possuem apenas duas ou três subseções judiciárias. Nestes casos, nada impede que a medida seja delimitada não pela área territorial da seção ou subseção, mas da cidade em que reside o acusado, ainda que nào seja esta a sede da seção ou subseção. 1 8 .2 .5 .7 .5 Recolhimento domiciliar noturno

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A medida de recolhimento domiciliar no período noturno ç„dos dias de folga, prevista no inciso V do caput do art. 319, não apresenta qualquer delimitação quanto à sua finalidade: “recolhimento dom iciliar no período noturno e nos dias de fo lg a quando 0 investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos" 7^° A medida assegura a per­ manência do acusado ou investigado em sua residência no penodo de sua inatividade, isto é, quando não estiver trabalhando. Não havendo qualquer explicitação da finalidade da medida, em tese, poderá ser decretado o recolhimento domiciliar noturno para assegurar a investigação ou instrução criminal, bem como para garantir a aplicação da lei penal, segundo a regra geral das cautelares (CPP, art. 2 8 2 ,1, P parte). Ou seja, o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga poderá ser uma cautela instrumental ou uma cautela final. Não poderá, por outro lado, ser decretada para evitar a reiteração crim i­ nosa, pois tal finalidade extraordinária exigiria expressa previsão legal (CPP, art. 282, II, parte final), o que inocorre no inciso V do caput do art. 3 1 9 ."* Todavia, concretamente, é difícil imaginar uma efetiva finalidade cautelar, ins­ trumental ou final, para a medida do inciso V Não se imagina em que o recolhimento domiciliar noturno possa auxiliar na investigação ou na instrução. Poder-se-ia objetar que, sem sair de casa durante a noite, o acusado não poderia destruir prova, ameaçar testemunhas, corromper peritos etc. Entretanto, não poderia fazer tudo isso no período diurno? Ou mesmo durante a noite, por interposta pessoa? De outro lado, será no mínimo ingênuo acreditar que o recolhimento noturno poderá justificar uma cautela final, por impedir ou mesmo dificultar a fuga. Quem pretender se furtar da aplicação da lei penal também poderá, sem esforços muito maiores, fugir durante o dia. Para a concessão da medida, a lei exige que o “investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos”. Tem-se admitido que a medida seja adotada no caso em que o investigado ou acusado não tenha trabalho, mas esteja estudando.'" 220. Medida semelhante é encontrada no art. 201 do CPP português. 221. Em sentido contrário, para Maciel (Art. 319 - comentários..., p. 180), “a medida também pode servir para garantir a ordem pública se tiver por finalidade evitar crimes”. 222. Nesse sentido: Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 438; Nicolitt, Novo processo..., p. 87.

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Para que a medida se mostre efetiva, será preciso que haja condições de fisca­ lizar seu cumprimento. O juiz poderá determinar que a polícia judiciária fiscalize o cumprimento da medida, bem como que oficial dejustiça verifique a presença do acusado no domicílio, no período noturno ou dias de folga. Além disso, uma vez implementada a monitoração eletrônica, poderá ser ela imposta cumulativamente com o recolhimento domiciliar noturno, como um meio efetivo e seguro de verifi­ cação de seu cumprimento. Ojuiz, ao decretara medida, deverá explicitar, cronologicamente, o que se enten­ de por período noturno (por exemplo, das 18 horas até as 6 horas do dia seguinte).'™ Deverá, também, definir quais serão os dias de folga em que ocorrerá o recolhimento; se somente nos finais de semana (e, neste caso, se será somente no domingo, ou no sábado e domingo), ou se também inclui os feriados (neste caso, definindo se sâo apenas os feriados nacionais ou também os estaduais e municipais). Por implicar privação de liberdade, ainda que parcial, o tempo em que o inves­ tigado ou acusado ficar submetido ao recolhimento domiciliar noturno deverá ser considerado para fins de detração p en al."’ 1 8 .2 .5 .7 .6 Suspensão de função pública ou atividade econôm ica ou financeira A medida de suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira tem sua finalidade estabelecida, ainda que indiretamente, na lei. O inciso VI do caput do art. 319 prevê que a medida é cabível “quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais”. " ’ Logo, sendo o receio da prática de infrações penais requisito da medida, não é difícil concluir que sua finalidade é evitar a prática de infrações penais, impedindo que algum funcionário público investigado por crime cometido no exercício de sua função ou em razão de que ela possa continuar a se valer ilegalmente da mesma função para reiteração delitiva. Assim, em princípio, fica excluída sua aplicação no caso de acusados que estejam sendo investigados ou já tenham sido denunciados por crimes que não guardem relação com a função pública que exerçam porque, nesse 223. Nicolitt (Novo processo..., p. 88) defende a possibilidade de a medida ser concedida para quem trabalha no periodo noturno, pois a negativa implicaria violar o “princípio constitu­ cional da valorização do trabalho e da isonomia do trabalhador”. Em sentido contrário, cf. Bonhm, Reforma do Código..., p. 49. 224. Nesse sentido: Pacelli Oliveira, Atualização do processo penal..., p. 20; Polastri Lima, Da prisão..., p. 159. No Código Penal português há previsão expressa, no art. 80.1, em relação à pena de permanência em habitação: “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada”. 225. Medida semelhante já era encontrada na Lei n° 11.343/2006, cujo art. 56, § 1°, prevê a possibilidade de afastamento cautelar do funcionário público de suas atividades, no caso dos crimes dos arts. 33, capul, e § 1°, e 34 a 37 da mesma lei.

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caso. a função não contribuiria em nada para possibilitar a reiteração criminosa.*™ Seu campo mais comum, portanto, será o dos crimes contra a administração pública. Por exemplo, poder-se-á suspender do exercício da função de um fiscal corrupto que exija dinheiro para não autuar empresas por ele fiscalizadas. Contudo, não se poderão suspender suas atividades, se o mesmo fiscal praticar, por exemplo, lesão corporal grave em uma briga de bar. Como já ressaltado, impossível aceitar que a finalidade de “evitar a prática de infrações penais” se compatibilize com os escopos de medidas processuais penais' que sejam verdadeiramente cautelares e, com tais, simplesmente assecuratórias ou conservativas.**’ Entretanto, ainda que se pretenda aplicar o riovel dispositivo com essa finalidade, a ausência de maiores delimitações quanto aos requisitos legais de sua aplicação certamente trará uma série de problemas, com claro com ­ prometimento da estrita legalidade que se deve exigir das medidas cautelares no processo penal. A lei não estabelece se a decisão que determinar a medida deverá ou não estabelecer um prazo de duração da suspensão, ou se ela vigorará enquan­ to houver necessidade. Também não está claro que tipo de função pública será atingida pela lei. Diante da pobreza do texto legislativo, poderá haver dúvida sobre a possibili­ dade de a medida do inciso VI do caput do art. 319 ser imposta no caso de funções públicas decorrentes de mandatos eletivos. No direito comparado, o CPP italiano expressamente prevê què a medida de suspensão do exercício de função pública “não se aplica aos ofícios eletivos decorrentes de direta investidura popular”.**®Entre nós, mesmo no silêncio da lei, a resposta deve ser, igualmente, negativa.**® Analisando a mesma questão no direito português, o Tribunal Constitucional, com fundamentos igualmente aplicáveis à situação do direito pátrio, negou tal possibilidade, observando que a lógica da situação legislativa “[...] está em não permitir que um mandato emergente do mandato popular seja suspenso ou perdido, senão a titulo de pena, em virtude de sentença condenatória 226. Nesse sentido, exigindo um nexo funcional entre a prática delitiva e a medida a ser adotada; Lima, Nova prisão cautelar..., p. 363. No mesmo sentido, em relação ao PL n° 4.208/2001, cf. Schietti Machado Cruz, Prisão cautelar..., p. 163. 227. Assim como era relação a outras medidas com a mesma finalidade, Aury Lopes Júnior (O novo regime..., p. 135) aponta a “discutível constitucionalidade" da medida do inciso Vi do art. 319, pois “nâo se tutela o processo ou seu objeto, aproximando-se tal medida a uma (ilegal) antecipação da função de prevenção especial da pena”. 228. CPP italiano, art. 289, comma 3. 229. Era sentido contrário, Pacelli Oliveira (Atualização do processo penal..., p. 21) defende que “função pública há que se entender ioda atividade exercida junto à Administração Pú­ blica, seja em cargo público, seja em mandatos eletivos (de natureza política)” (destaques no original). De forma semelhante posiciona-se Mendonça (Prisão e outras medidas..., p. 442) ressalvando apenas “aqueles que possuem imunidade absoluta ã prisão preventiva. Assim, se o Presidente da República não pode ser preso em nenhuma hipótese, também nâo pode ser suspenso de suas atividades".

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definitiva por crimes praticados no exercício de funções. Na realidade, dificilmente seria congruente com a proeminência do princípio democrático que o exercício de um mandato popular pudesse ser suspenso a título de medida cautelar ou preventiva em processo penal, ainda mais antes mesmo da pronúncia definitiva da prática de um crime”."® Semelhante é o posicionamento de Cuellar Serrano, ao analisar a possibilidade de suspensão do exercício de cargos ou funções públicas, de pessoa que integre ou se relacione com grupos armados ou indivíduos terroristas ou rebeldes, sem distinguir entre distintos cargos e funções públicas: “[...] asoberania nacional reside no povo espanhol, a teor do art. 1.2 da C.E., e a restrição dos direitos políticos dos representantes dos eleitores dificilmente se justi­ fica, a vista do direito da presunção de inocência e do ponto de vista da legitimidade democrática, antes que se profira sentença condenatória por delito que leve à pena acessõria de suspensão do cargo público. De outra parte, os benefícios que a medida oferece - evitar a utilização das instituições democráticas em interesse dos grupos terroristas - são, sem dúvida, menores que os prejuízos que derivam da degradação do direito à presunção de inocência e a limitação, ainda que seja em volume muito pequeno, do princípio de democracia representativa”."* Some-se a isto que, nos casos do CPP italiano e do CPP português, há limites temporais fixados em lei para a duração da suspensão da função pública, já no caso brasileiro, em que a lei não estabelece o prazo máximo de duração da medida, caso se interprete o conceito de função pública, de forma ampla, a abranger as funções de­ correntes de mandatos eletivos, a suspensão da função poderá se prestar, facilmente, como um mecanismo para uma cassação, de fato, do mandato eletivo. Nâo convence o argumento de que, “[...] se é possivel a medida mais gravosa (prisáo preventiva), não há restrição para aplicação de medidas menos graves (suspensão da função pública). O que não se pode é declarara perda do cargo do Deputado ou Senador, pois isso depende de um procedimento constitucionalmente previsto”. " ' Na prática, suspender, sem limitação temporal, o exercício da função do depu­ tado ou senador, principalmente no período final do mandato, significará, de fato, determinar a perda do cargo, com base em cognição sumária de órgão do Poderjudi­ ciário, e sem observar o regramento constitucional. Além disso, em relação à prisão preventiva, há limites legais de hipótese de sua incidência (CPP, art. 313); já as medidas 230. Tribunal Constitucional de Portugal, acórdão n° 41, de 26 de janeiro. Processo n° 481/1997, que decidiu “interpretar a norma constante da alínea a) do n“ 1 do artigo 199° do Código de Processo Penal como não abrangendo os litulares de cargos politicos". 231. Cuellar Serrano, Proporcionalidad y derechos..., p. 222. 232. O argumento é de Mendonça. Prisão e outras medidas..., p. 442.

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alternativas, em tese, são cabíveis em relação a qualquer crime para o qual seja prevista pena privativa de liberdade (CPP, art. 283, § 1“). No direito comparado, há previsão de que a medida de suspensão da função pú­ blica somente pode ser aplicada nos casos em que da futura condenação puder resultar a interdição dos mesmos direitos como pena acessória ou efeito da condenação.'” Embora não se possa aplicar a medida cautelar com a finalidade de antecipação de pena, não há como negar a existência de uma relação de proporcionalidade entre a pena a ser aplicada e a medida cautelar que poderá ser imposta para assegurá-la, nãó sendo admissível uma medida cautelar mais gravosa que a pena que ela pretende as­ segurar.'®’ O acessório (cautelar) deve seguir o principal (condenado), não podendo impor uma interdição mais gravosa que a provável pena. Assim sendo, realmente, não é possível admitir uma medida cautelar de suspensão da função pública em um processo que tenha por objeto um crime que, em caso de condenação, nâo terá como efeito secundário a possibilidade de suspensão ou perda do cargo.'®’ Por exemplo, o crime de “emprego irregular de verbas ou rendas públicas" é apenado com detenção de um a três meses, ou multa (CP, art. 315). Não tem sentido, neste caso, aplicar ao funcionário público, no curso do processo, a medida de suspensão da função pública, se nem ao final ele corre o risco de perder o cargo."® Por outro lado, nada impede que se determine a suspensão de apenas parte da atividade normalmente desenvolvida pelo funcionário público,'®' segundo a lógica do “sacrifício mínimo do direito afetado”,®®®segundo o qual deve-se buscar invadir a esfera de liberdade do indivíduo no mínimo necessário. Finalmente, tem-se discutido sobre a possibilidade de, no caso de suspensão de atividade funcional, haver também a suspensão da remuneração do funcionário 233. Nesse sentido, o § 132a da StPO alemã prevê que: “Se existirem fundados motivos para supor que virá a ser aplicada uma inabilitação (§ 70 do Código Penal), o ju iz pode decidir a proibição provisória do exercício de profissão, de um ramo da profissão, de ofício ou de um ramo de ofício”. No mesmo sentido manifesta-se Maia Gonçalves (Código..., p. 429), em relação ao processo penal português, embora não haja regra expressa. Entre nós, idêntico posicionamento é defendido, em relação à medida do inciso VI do caput do art. 319 do CPP, por Polastri Lima, Da prisão..., p. 160. 234. Sobre o tema, cf., supra, item 18.1.2.7. 235. O CP prevê, no art. 92, caput, 1, como efeito da condenação penal, “a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de li­ berdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos”. 236. Isso não impede, porém, que sejam tomadas as medidas cabíveis no âmbito adminis­ trativo. 237. Nesse sentido, quanto à medida “sospensione daWesercizio di un pubblico ufficio o servizo”, o art. 289, comma 1°, do CPP italiano prevê a interdição temporária, “no todo ou em parte”, das atividades inerentes à função ou serviço público. 238. Vittorio Grevi, Misure cautelari..., p. 313.

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público."® Não convence o argumento de que a remuneração poderia ser parcial ou totalmente suspensa, porque o empregado nâo está trabalhando, e isto geraria uma situação de iniquidade, em comparação com outro funcionário que, para perceber sua remuneração, tenha que desempenhar normalmente sua função. Não se trata de falta, afastamento ou licença voluntária. Ao contrário, o funcionário foi coativamente afastado de suas funções, em processo no qual ele é presumido inocente e sem que haja uma declaração judicial transitada em julgado de sua culpa. Correto, portanto, que não se efetue qualquer desconto.*’® Passando para a outra medida interditiva prevista no mesmo inciso VI, a de sus­ pensão de atividades econômicas ou financeira, igualmente a nova disciplina legal é insuficiente e lacunosa. Como a sua finalidade será evitar a reiteração criminosa, também nesse ponto é de se exigir um nexo funcional entre a medida de suspensão da atividade econômica e o crime cometido porque o objetivo é evitar que um acusado a quem se impute um crime cometido no exercício de atividade econômica ou financeira possa continuar a atuar no mercado, reiterando na prática dos chamados crimes do colarinho-branco. Embora sem previsão expressa, a medida está ligada a crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n° 7.429/1986), crimes contra o mercado de capitais (arts. 27-C, 27-D e 27-E da Lei n" 6.385/1976), crimes contra a ordem econômica (arts. 4“, 5®e 6° da Lei n® 8.137/1990), crimes contra as relações de consumo (art. 7®da Lei n®8.137/1990 e art. 61 e seguintes da Lei n° 8.078/1990), e outros do mesmo gênero. Certamente surgirá controvérsia sobre a possibilidade ou nâo de a suspensão atin­ gir todo tipo de atividade econômico-financeira. A extensão e amplitude de tal conceito poderão colocar em risco o direito ao trabalho e a livre-iniciativa econônâca.*’ ' Ao mais, não se pode perder de vista que o CPP apresenta o grave vício de náo estabelecer um prazo máximo de duração da suspensão que, somado com a conhecida demora de tramitação dos processos, poderá transformar uma medida de suspensão de atividade econômico-financeira em uma proibição de atividades econômico-financeiras. 239. No sentido de que a remuneração deve ser mantida, cf.: Bonfim, Rejorma..., p. 50; Nicolitt, Novo processo..., p. 88. Nesse sentido, na jurispnidência, considerando que a suspensão dos vencimentos viola a presunção de inocência: STF, RE n° 482.006/MG. Em sentido contrário, Mendonça (Prisão e ouCras medidas..., p. 447) admite a “suspensão parcial do pagamento dos salários daquele funcionário público que tiver suas funções suspensas, nos termos do art, 319, inc. VI”, 240. Maciel (Art. 319 - comentários..., p. 185) invoca, por analogia, o art. 147, capuí, da Lei n° 8.112/1990, que possibilita o afastamento cautelar do funcionário público, no processo administrativo disciplinar, expressamente estabelecendo que tal se dará “sem prejuizo da remuneração”. 241. A Constituição prevê, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1°, caput, IV). Reforçando esse último ponto, a CR estabelece, entre os princípios gerais da atividade econômica, que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei" (art. 170, parágrafo único).

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No processo penal lusitano, embora nâo haja previsão expressa quanto à suspen­ são de “atividade dé natureza econômico ou financeira”, mas apenas de “atividades em geral”, o art. 199.1, a, do CPP português deixa claro que somente é possível a suspensão de “profissão ou atividade, cujo exercício dependa de um título público ou de uma autorização, ou homologação de autoridade pública”. De fato, mesmo sem previsão expressa nesse sentido no direito pátrio, não parece que se possa suspender qualquer atividade econômica, mas somente aquelas que sejam objeto de regula­ mentação ou exijam autorização legal (por exemplo, funcionamento de instituição, financeira, concessionárias de serviços públicos etc.).'®' Caso contrário, qualquer atividade econômica poderia ser suspensa, paralisando todo ejqualquer tipo de ati­ vidade, o que poderia violar outros direitos fundamentais comó o direito ao trabalho e a liberdade de iniciativa econômica. Ao mais, não havendo limitação temporal, a medida poderia implicar, ainda que indiretamente, uma forma de o Poderjudiciário proibir o exercício de determinadas atividades econômicas, com base em cognição sumária e sem a observância de um prévio devido processo legal. Ao mais, nas ativi­ dades não sujeitas a qualquer tipo de fiscalização ou controle diretos, a possibilidade de verificar o cumprimento da medida seria praticamente nenhuma. Qual seria, por exemplo, o sentido de suspender a atividade de uma costureira, ou de um padeiro, ou de uma cartomante? De qualquer modo, é de se admitir que seja determinada a suspensão apenas parcial da atividade de natureza econômica ou financeira afetada pela medida interditiva.'®* Finalmente, é de se observar que, enquanto as demais medidas alternativas à prisão são coercitivas, impondo graus variados de restrição da liberdade de locomo­ ção, a medida de “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira" (art. 319, VI) é uma medida interditiva, que suspende o exercício de direitos específicos do investigado ou acusado. Isso não significa, contudo, que necessariamente seja uma medida de menor gravidade. Podendo “incidir sobre aspectos tão significativos da vida de relações do indivíduo”,'®®é extremamente difícil afirmar, em abstrato, que os gravames que pode causar sobre o indivíduo serão menos intensos que os das medidas coercitivas, mormente aquelas de menor restrição, por exemplo, a simples proibição de ausentar-se do país. 242. Em sentido contrário, Mendonça (Prisão e outras medidas..., p. 443) defende a possibi­ lidade de se suspender “qualquer emprego ou atividade privada”. 243. Há regra expressa, nesse sentido, no CPP italiano, no art. 290, comma 1°, em relação à medida de “proibição temporária de exercício de determinadas atividades profissionais ou empresariais”, que poderão ser interditados, temporariamente, “no todo ou em parte". 244. Zappalà, Le misure cautelari..., p. 458. Na doutrina espanhola, Cuellar Serrano (Propor­ cionalidad y derechos..., p. 218) refere-se a “graves perjucíos a los cidadanos" que a medida pode causar. Na doutrina nacional. Aury Lopesjr. (O novo regime..., p. 136) afirma que “a medida é das mais gravosas e deve ser utilizada com parcimônia". Também Pacelli Oliveira (Atualização do processo penal..., p. 20) destaca tratar-se de uma medida “extremamente gravosa aos direitos fundamentais”.

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De qualquer forma, por se tratar de uma medida de suspensão temporária de função ou atividade, é importante que o ju iz , ao decretar a medida, estabeleça um prazo máximo de sua duração, sem prejuízo de que, ao término, possa prorrogar a medida. A preocupação em fixar um prazo de duração se justifica para impedir que uma medida interditiva, de suspensão de direitos específicos do acusado, distintos da liberdade, se transforme em uma proibição indefinida do exercício da função ou atividade. 1 8 .2 .5 .7 .7 Internação provisória do acusado inimputável ou semiimputável A internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração, foi prevista no inciso VII do caput do art. 319. Trata-se de um dos “casos expressamente previstos” em que a “medida cautelar" poderá ser imposta porque necessária “para evitar a prática de infrações penais” (art. 282, caput, inciso 1, 2° p arte).'" Como já exposto, nào é possível identificar nessa finalidade de evitar a reiteração criminosa uma verdadeira natureza cautelar. Trata-se de instituto semelhante à medida de segurança preventiva prevista na parte geral do Código Penal de 1940, ditada com finalidade de segurança püblica'’®e, portanto, de difícil compatibilidade com a presunção de inocência. Nâo se trata de medida instituída primordialmente com finalidade terapêutica, visando o início imediato de tratamento, de forma mais eficiente e adequada, para os acusados que, estando presos cautelarmente, tenham constatada a inimputabilidade, com necessidade de submissão imediata a tratamento em regime de intem ^ ão hospi­ talar. Nesse caso, inclusive, o cumprimento da prisão preventiva em estabelecimento psiquiátrico já era possível pela aplicação ao preso prorisório, cuja imputabilidade tivesse sido constatada, dos institutos da Lei de Execução Penal.'’® 245. Não é possível, portanto, concordar com Mendonça (Prisão e outras medidas..., p. 453) quando sustenta que a internação provisória poderá ser aplicada “não apenas quando hou­ ver risco de praticar novas infrações penais, mas também quando houver risco â instrução criminal ou â aplicação da lei penal”. 246. Nesse sentido, na Alemanha, em relação à medida equivalente de internação provisória em hospital psiquiátrico (StPO, § 126a), há expressa previsão de que a internação somente ocorrerá quando “necessária para a segurança pública”. Comentando tal dispositivo, afirma Roxin (Derecho..., p. 321) que a medida é necessária “por razões de segurança comum e, para ela, proporciona um instrumento de segurança imediatamente eficaz”. 247. Mais especificamente, o art. 108 da LEP prevê que: “O condenado a quem sobrevier do­ ença mental será internado era Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico”. Por outro lado, o parágrafo único do art. 2° da mesma lei dispõe; “Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pelajustiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária”. Nesse sentido, cf.: Silva Franco, Código Pe­ nal..., p. 880; Ponte, Inimputabilidade e processo..., p. 58 Delmanto, Medidas substitutivas..., p. 297, nota 47; Nucci, Código..., p. 350.

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Também não se confunde com a internação provisória para possibilitar a realiza­ ção da pencia no incidente de insanidade mental, caso em que a medida terá inegável natureza de cautela instrumental, por visar assegurar a realização de ato probatório, já sendo prevista no caput do art. 150 do CPP. A internação provisória do inciso VII do caput do art. 319 do CPP exige que peritos concluam ser o acusado imputável ou semi-imputável.*’®O dispositivo não estabelece, contudo, se a medida somente é aplicável ao investigado ou acusado que, no momento do crime era inimputável ou semi-imputável, ou se também poderia ser aplicada no caso de Ínimputabilidade ou semi-imputabilidade superveniente^’® Partindo da premissa que nâo se trata de uma verdadeira medida cautelar, com fina­ lidade de cautela final ou de cautela instrumental, mas de uma iffêdida de segurança preventiva, nào há por que deixar de aplicá-la em ambos os casos. Substancialmente, se há necessidade de imposição de uma medida privativa de liberdade ao investigado ou acusado que, em um determinado momento da persecução penal, encontra-se em estado de Ínimputabilidade ou semi-imputabilidade, não há sentido algum em reco­ lhê-lo em uma cadeia pública ou outro estabelecimento destinado ao cumprimento de prisão preventiva de imputáveis. Assim sendo, e ante a inexistência de qualquer ressalva do legislador, é de admitir a aplicação da internação provisória do inciso VII do art. 319 tanto aos que já eram inimputáveis ou semi-imputáveis, no momento da prática do fato, quanto àqueles em que tal condição seja superveniente.*" Necessário, ainda, que se trate de crime cometido com violência ou grave ameaça. Ao que parece, o legislador reformador somente se preocupou com a periculosidade do agente, caso ele possa reiterar na prática de fato grave, mas não no caso de fatos de menor gravidade, cometidos sem violência ou grave ameaça. Tudoa indicar, como dito, que a medida tem nítida finalidade de “segurança da sociedade”, e não de um escopo terapêutico, visando à recuperação do inimputável ou semi-imputável. O emprego da palavra peritos, no plural, não significa que o investigado ou acu­ sado tenha que ser examinado por dois peritos. A regra deve ser lida à luz do art. 159, caput, do CPP, com a redação dada pela Lei n° 11.690/2008, segundo o qual os exames de corpo de delito e outras perícias devem ser realizados por um perito. Por outro lado, a expressão “quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável” não exige que, necessariamente, se trate de um laudo elaborado em 248. Segundo Nucci (Prisão e liberdade..., p. 85). “apesar de se exigir a conclusão pericial de ínimputabilidade ou semi-imputabilidade para a adoção da medida, conforme o caso, deve o juiz valer-se de seu poder geral de cautela, determinando a internação provisória, antes mesmo do laudo ficar pronto, pois é incabível manter-se em cárcere comum o doente mental, que exiba nítidos sinais de sua enfermidade”. 249. Ressalte-se que, para o caso de ínimputabilidade superveniente, o art. 152 do CPP prevê a suspensão do processo (§ 1°), com a possibilidade de internação do acusado “em mani­ cômio judiciário ou em outro estabelecimento” durante o periodo de suspensão (§ 2“). 250. No sentido: Nicolitt, Novo processo..., p. 91; Lima, Nova prisão..., p. 366, No mesmo sen­ tido, em relação ao PL n° 4.208/2001, cf. Schietti Machado Cruz, Piisõo cautelar.., p. 166.

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incidente de insanidade mental.'” Até mesmo porque, muitas vezes, levam-se meses para a elaboração de tal laudo. Ao mais, como a medida do inciso VIII do caput do art. 319 poderá ser aplicável ao acusado que seja imputável ou semi-imputável, ao tempo da imposição da medida, e não no momento do crime,'’' poderão ser utilizadas outras provas da inimputabilidade para os fins de juízo de adequação da medida de internação provisória, por exemplo, exames recentes realizados em outro processo criminal, perícias realizadas em processos civis de interdição, ou mesmo laudos ou exames realizados por médicos que já acompanhavam e tratavam do acusado, antes da prática do fato. Obviamente, o local de cumprimento da internação provisória nào será o mesmo destinado aos presos cautelares im putáveis.'" O investigado ou acusado semi-im­ putável ou inimputável que for submetido à internação provisória deverá ficar em hospital psiquiátrico ou estabelecimento equivalente que tenha condições adequadas para o tratamento médico, admitindo-se até mesmo a internação em estabelecimen­ tos particulares, que tenham condições mantê-lo custodiado, caso não haja vaga nos Hospitais de Custódia e Tratamento.'" Por implicar privação de liberdade,'" o tempo em que o investigado ou acusado inimputável ou semi-imputável ficar submetido à internação provisória deverá ser considerado para fins de detração penal,'’®seja em relação à eventual pena,'’' seja quanto ao prazo mínimo de aplicação da medida de segurança.

18.2.5.7.8 Fiança A fiança foi prevista como medida cautelar alternativa à prisão no inciso VIU do caput do art. 319, com as seguintes finalidades; “para assegurar o compatecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada á ordem ju d icial”. 251. Por certo, obrigatório para que, ao final do processo, se constate a condição de inimputabilidade e se absolva o acusado, com imposição de medida de segurança. 252. Nucci, Prisão e liberdade..., p. 85. 253. Nesse sentido: Nucci, Prisão e liberdade..., p. 85; Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 456. 254. Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 457. 255. Correta a critica de lokoi (.Prisão preventiva..., p. 161), analisando o PL n° 4.208/2001, no sentido de que “seria mais correto que a medida estivesse disciplinada juntamente com as outras medidas privativas da liberdade dé locomoção, uma vez que a estas se assemelba”. De fato, nào se trata de simples restrição da liberdade de locomoção, mas de sua privação. 256. Nesse sentido, cf.: Maciel, Art, 319 - comentários..,, p. 180; Polastri Uma, Da prisão..., p. 159. 257. A possibilidade de imposição de pena somente poderá ocorrer admitindo-se a imposição da medida de internação provisória no caso de inimputabilidade superveniente ao fato. Em tal bipótese, se bouver recuperação das faculdades mentais do acusado, poder-lbe-á ser imposta uma pena ao final do processo.

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Assegurando o comparecimento do acusado ao processo, a fiança tem natureza tipicamente cautelar. Assume a função de cautela processual na medida em que o acusado é obrigado a comparecer aos atos do processo, incluindo atos probatórios. Também poderá ser uma cautela final, garantindo a aplicação da lei penal, quer porque o valor ou objetos dados em fiança poderão ser utilizados para o pagamento da pena de multa e de prestação pecuniária (CPP, art. 336), quer porque exercerá pressão psi­ cológica para o comparecimento do acusado para o início de cumprimento da pena, em caso de condenação transitada emjulgado, evitando com isso o perdimento da fiança (CPP, art. 344). Importante destacar que, no caso da fiança, ou melhor, liberdade provisória me­ diante fiança, sua natureza foi parcialmente alterada, pois, se de um lado continua sendo possível aplicar a fiança como uma contracautela da prisão em flagrante (art. 310, caput, III), de outro, a fiança assumiu também a natureza de medida cautelar alternativa à prisão (art. 319, caput, VIII), que poderá ser aplicada como medida autônoma, isoladamente ou em cumulação com outras medidas diversas da prisão, que também passaram a ser previstas no art. 319 do CPP, segundo o disposto no art. 319, § 4 °, c.c. o art. 282, § 1“. Ou seja, com a sistemática instituída pela Lei n° 12.403/2011, a fiança passou a ter natureza híbrida, podendo ser tanto uma medida cautelar autônoma quanto uma contracautela à prisão. 18.2.5.7.8.1 Cabimento e os crimes inafiançáveis As hipóteses de cabimento da fiança são definidas negativamente: o art. 323 dis­ põe sobre os crimes para os quais não será cabivel a fiança; o art. 324 prevê situações em que, para os crimes em relação aos quais, em tese, a fiança seria cabível, esta não poderá ser concedida. A nova redação do art. 323, dada pela Lei n° 12.403/2011, limitou-se a reproduzir as vedações constitucionais de concessão de fiança, isto é, os crimes considerados inafiançáveis.'" Destaca-se que o juiz, na apreciação do pedido de liberdade provisória mediante fiança, pode e deve fazer umjuízo sobre a adequação da qualificação jurídica provisória dada aos fatos, seja no auto de prisão em flagrante, seja na portaria de instauração do inquérito policial ou em seu relatório, ou ainda na própria denúncia. Mesmo que a 258. Em três incisos do art. 5° da Constituição há previsões de inafiançabilidade: “XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos tennos da lei”; “XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”; “XLIV - constitui crime inafiançável e impres­ critível a açâo de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

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denúncia tenha sido recebida com base em uma determinada qualificação jurídica, nada impede que, para fins de concessão de fiança, o ju iz examine, incidentalmente, e com base nos elementos até então disponíveis, tal qualificação, e considere cabível a fiança, mesmo na hipótese de uma qualificação jurídica provisória que, em tese, não a admitia.*« O inciso I do art. 323 prevê a vedação da fiança “no caso de crimes d e racismo", que são tipificados na Lei n° 7.716/1989. De outro lado, o inciso II do mesmo artigo passou a vedar a fiança “nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos". O crime de tortura é definido no art. 1“ da Lei n®9.455/1997, cujo § 6° já previa; “0 crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia". Ressalve-se que a vedação da liberdade provisória não deve ser aplicada ao § 2° do art. 1 °, que prevê: “Aquele que se omite em fa c e dessas condutas [as condutas do caput e do § 1°], quando tinha 0 dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detençáo de um a quatro anos”. Tal conduta não configura, propriamente, o crime de tortura, não sendo cometida com violência fisica ou psíquica. Tanto assim que sua pena é “detenção, de um a quatro anos”, ou seja, a metade da pena de “reclusão, de dois a oito anos”, prevista para as figuras delitivas do caput e do § 1° do mesmo art. 1°. Aliás, o tratamento diferenciado é expresso no que se refere ao regime inicial de cumprimento de penal. O § 7° do art. 1° da referida lei especial dispõe: “O condenado por crim e previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2°, iniciará o cumprimento da pena em regime fech ad o”. No tocante ao trãfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o art. 44, caput, da Lei n® 11.343/2006 veda a concessão de liberdade provisória, com oulsem fiança, aos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1®, e 34 a 37 da referida lei. Contudo, é de ob­ servar que, posteriormente ao início de vigência da Lei de Drogas, a Lei n° 11.464/2007 alterou a redação do art. 2°, II, da Lei n® 8.072/1990: antes, os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo eram insuscetíveis de “fiança e liberdade provisória”; depois, foi-lhes vedada apenas a “fiança”. Houve, pois, revogação da vedação da liberdade provisória, para o tráfico de drogas e figuras afins. Ressalte-se que a revogação da vedação da liberdade provisória sem fiança, para o crime de tráfico ilícito de drogas, e figuras afins, não é decorrência da simples apli­ cação da regra de direito intertemporal que prevê: lex posterior derogat priori. Sendo o tema disciplinado em lei própria, em princípio, eventual conflito de leis deveria ser resolvido pela regra lex specialis derogat lex generalis. No caso, contudo, a lei comum (Lei dos Crimes Hediondos), que fazia expressa referência à matéria disciplinada 259. Nesse sentido, tratando da concessão da liberdade provisória no regime anterior à Lei n° 12.403/2011; Fragoso, Jurisprudência criminal, p. 270-1; Pedroso, Processo penal..., p264; Scarance Fernandes, A reação defensiva..., p. 219-220. Na Jurisprudência: TJSP, RJTJSP 141/425, HCn® 202.190-3.

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pela lei especial (liberdade provisória com ou seu fiança no caso de tráfico de drogas), foi alterada posteriormente à vigência da lei especial e no ponto em que disciplina o instituto da lei especial (a vedação da liberdade provisória sem fiança). Não se trata, portanto, de situação em que ocorreu mudança de lei comum, que nada prevê sobreT um tema anteriormente regido por lei especial. Nesta última bipótese, sim, seria de se aplicar, mesmo que a lei especial seja anterior, a regra lex specialis derogat lexgeneralis. Referentemente ao crime de terrorismo, é de observar que não bá, no ordena­ mento jurídico nacional, a tipificação do crime de terrorismo, nâo tendo como ser aplicado tal dispositivo. Por fim, mas não menos relevante, o inciso II veda a fiançãpara os crimes “defini­ dos como crimes hediondos”. O rol dos crimes hediondos é definido no caput do art. 1” da Lei n° 8.072/1990. Acrescente-se que o parágrafo único do referido artigo prevê que: “considera-se também hediondo o crim e de genocídio previsto nos arts. I 2 “ c 3 “ da Lei n" 2.889, d e i" de outubro de 1956, tentado ou consumado”. No entanto, como já esclarecido, a nova redação do inciso II do caput do art. 2° da referida lei apenas veda a concessão de fiança, náo mais existindo a proibição de liberdade provisória sem fiança. Finalmente, no que diz respeito à previsão do novo inciso III do art. 3 23, não se admite a fiança “nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. A previsão não trata de uma classe ou categoria de delitos, como nos demais incisos. Em tese, diversos crimes tipificados no Código Penal ou em leis especiais poderão ser cometidos em tais circunstâncias, devendo ser considerados inafiançáveis. Em suma, para nenhum desses delitos, seguindo mandamentos constitucionais, admite-se a fiança. Não há, porém, qualquer vedação da liberdade provisória sem fiança, que, com a Lei n° 12.403/2011, passou a ficar restrita aos casos do art. 310, parágrafo único, e art. 350, ambos do CPP Ao mais, inexiste qualquer óbice, consti­ tucional ou legal, para que, em relação a tais crimes, insuscetíveis de fiança, não se admita a imposição de qualquer ou tra das novas medidas alternativas à prisão do arts. 319 e 320 do CPP. Há, ainda, a previsão de inafiançabilidade em outras leis especiais.'®' Estariam estas vedações revogadas, ante a nova sistemática da Lei n° 12.403/2011, ou, por se tratar de leis especiais, a solução da questão se daria segundo a regra lex specialis derrogat legi generalis? Novamente a resposta é negativa. Quando uma lei especial excepciona uma regra geral, o faz diante da inadaplabilidade daquela disciplina co­ mum para as peculiaridades dos casos regidos pela lei especial. Obviamente, no caso 260. O parágrafo único do art. 1° da Lei n° 8.072/1990 foi acrescido pela Lei n" 8.930/1994. 261. O art. 7° da revogada Lei n“ 9.034/1995 vedava a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa participação na organização criminosa. Não há vedação equivalente na nova Lei n° 12.850/2013; o art. 3° da Lei n“ 9.613/1998 vedava a concessão de liberdade provisória, com ou seu fiança, aos crimes de lavagem de dinheiro.

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de uma verdadeira revolução na disciplina da lei geral, que passa a seguir um sistema completamente novo, não se pode, pura e simplesmente, negar aplicação à nova lei geral, ou melhor, ao novo sistema global de medidas cautelares pessoais, às situa­ ções disciplinadas pela lei especial porque desaparece, em tal caso, a justificativa de adoção do fator de diferenciação. E, àquilo em que nâo houve incompatibilidade do sistema especial com o novo regime geral, deverá este ser aplicado, principalmente, em seus aspectos novos e inexistentes no momento em que se buscou uma disciplina diferenciada na lei especial. Em outras palavras, ainda que nâo se apliquem, nas leis especiais, os institutos da liberdade provisória, com ou sem fiança, não há por que deixar de aplicar as novas medidas alternativas à prisão, dos arts. 319 e 320 do CPP. Resumindo o exposto, em comparação com o regime anterior, constata-se, facil­ mente, que a reforma das medidas cautelares, acertadamente, pela nova redação no art. 323 do CPP, limitou-se a reproduzir as hipóteses de inafiançabilidades constitucionais, ampliando o conjunto dos crimes ahançáveis.™' Há, porém, uma crítica que se pode endereçar à inafiançabilidade de certos crimes. Na sistemática atual, não tem sentido um delito ser inafiançável. No regime originário do CPP, em que a fiança era a principal hipótese em que os acusados colhi­ dos em flagrante delito tinham para responder ao processo em liberdade, considerar um crime inafiançável era, na prática, determinar o destino do acusado, que teria que permanecer preso durante todo o processo. Todavia, desde a mudança da Lei n° 6.416/1977, com a introdução do antigo parágrafo único do art. 310, admitindo a liberdade provisória, para qualquer delito, independentemente de sua gravidade, nos casos em que não estivesse presente qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, deixou de haver qualquer sentido em considerar fim crime ina­ fiançável.'” Ou seja, se o investigado ou acusado tivesse sido preso em flagrante delito, não poderia obter a concessão de fiança, mas poderia responder o processo em liberdade provisória, sem fiança, nos termos do então introduzido parágrafo único do art. 310 do CPP. Emsuma, ser um crime inafiançável deixou de ser sinônimo de responder o processo preso. 262. Assim, deixou de existir a principal hipótese de inafiançabilidade, baseada na pena co­ minada em abstrato, como anteriormente se previa no antigo inciso i do art. 323 do CPP: “nos crimes punidos com reclusão em que a pena mínima cominada for superior a 2 (dois) anos”. Aliás, tal regra já decorria de uma ampliação dos casos em que se admite a fiança, em razão das alterações promovidas pela Lei n° 6.416/1977. No regime originário do CPP, a fiança era cabível somente nos crimes punidos com detenção, uma vez que o inciso 1 do art, 323 não permitia a concessão de fiança “nos crimes punidos com pena de reclusão, salvo ao réu maior de setenta anos ou menor de vinte e um, no caso de não ser superior a dois anos o máximo da pena cominada”. 263. Embora incisiva, é correta a crítica de Nucci (Prisão e liberdade..., p. 20): “Não fosse a demagogia do constituinte, poder-se-ia instituir fiança, sim, para os autores de tais delitos graves, a fim de fixã-los no distrito da culpa. Ser considerado crime inafiançável termina por constituir um favor legal e não um gravame. Sem nada pagar, o acusado, por delitos graves, deixa o cárcere”.

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18.2.5.7.8.2 Cabimento e hipóteses de inafiançabilidade

Mesmo não se tratando dos crimes previstos no art. 323, a fiança somente não será concedida nas hipóteses do art. 324 do CPE Trata-se de um conjunto de situações subjetivas (ligadas ao investigado ou acusado) e objetivas (relacionadas à prisão em si) em que não será cabível a fiança. O art. 324 do CPP prevê que não será concedida a fiança: “I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente con­ cedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código." A quebra da fiança ocorre nas hipóteses do art. 341 do CPP. Se o acusado já foi beneficiado pela fiança e deixou de cumprir os vínculos que lhe foram impostos, terá a sua fiança considerada quebrada. Em tal contexto, não será razoável admitir uma segunda fiança. Quem já descumpriu a primeira caução real dificilmente irá manter-se vinculado ao processo uma segunda vez. “11 - em caso de prisão civil ou militar.” A fiança, sendo uma medida de contracautela processual penal, não pode ser empregada como sucedâneo de prisão de outra natureza jurídica. De observar que, quando o dispositivo se refere á prisão do militar como situação em que não é cabível a fiança, isso inclui tanto a prisão nos casos de transgressões militares quanto a prisão nos casos de crimes militares propriamente ditos.*« “III-(R evogado.); IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preven­ tiva (art. 3 1 2 ).” A razão do dispositivo é óbvia: se a prisão cautelar é necessária, posto que estão presentes os requisitos da prisão preventiva, não será possível permitir que o acusado permaneça em liberdade provisória.*“ Se a única medida adequada é a prisão preventiva, sendo inadequadas as medidas alternativas (CPP, arts. 319 e 320), porque presente uma das situações de periculum libertatis do art. 312, caput, do CPP, a fiança será inadequada ao caso, isto é, não terá força de coerção suficiente para cumprir a necessidade cautelar exigida para a situação. Aliás, se no novo regime das medidas cautelares pessoais a prisão preventiva passou a ser a ultima ratio (CPP, art. 282, § 6“), estando presentes os motivos que a autorizam, não só a fiança, mas como todas as outras medidas cautelares alternativas à prisão, serão inadequadas ao caso. 264. Uma, Nova prisão..., p. 416. 265, No entanto, neste caso, é necessário verificar a proporcionalidade da prisão em face da pena que provavelmente será aplicada. Se a perspectiva for de uma pena que não tenha que ser cumprida na prisão, não haverá sentido em manter preso o acusado, para que depois, ao ser condenado, cumpra a pena em liberdade.

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18.2.5.7.8.3 Legitimidade para conceder a fiança

A fiança poderá ser concedida pelo juiz, em qualquer caso, e também pela auto­ ridade policial, nas bipóteses do art. 322, caput, do CPR No regime anterior, o delegado de polícia podia conceder a liberdade provisória nos casos em que o investigado pode “livrar-se solto” (CPP, art. 321, c.c. o art. 304, § 1 °), bem como pode conceder liberdade provisória mediante fiança, nos crimes punidos com detenção ou nas contravenções (CPP, art. 322, caput). ALein" 12.403/2011 mantevea possibilidade de a autoridade policial conceder a fiança nos crimes de menor gravidade, mas alterou o critério para “infrações cuja pena privativa de liberdade m áxima não seja superior a 4 (quatro) anos". A razão de ser da mudança foi procurar ampliar as hipóteses em que a fiança pode ser concedida pela autoridade policial, buscando compatibilizar o novo limite com as bipóteses em que será cabível a substituição de eventual pena privativa de liberdade por restritiva de direito, de acordo com o inciso I do caput do art. 44 do CP, com a re­ dação dada pela Lei n° 9.714/1996. Se, ao final do processo, em caso de condenação, o acusado nào ficar preso, nào haverá justificativa para mantê-lo em prisão cautelar no curso do inquérito policial, nem que seja por poucos dias, até que o juiz aprecie a prisão em flagrante. Tem prevalecido o entendimento de que, no caso de causas de aumento ou diminuição de pena, inclusive no que toca ao crime continuado e concurso formal, tais fatores deverão ser considerados para definir se se trata de “infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos”.“ ®Aliás, esse já era o entendimento dos tribunais, quando consideravam o limite para o çabimento ou não da fiança, como restou sintetizado na Súmula n° 81 do STJ: “Não se concede fiança quando, em concurso material, a som a das penas mínimas cominadas fo r superior a dois anos de reclusão”. Todavia, embora na maior parte dos casos o espectro de atuação da autoridade policial tenha sido ampliado, não se pode ignorar que há delitos punidos com detenção, cuja pena máxima cominada é superior a quatro anos, por exemplo, as modalidades de crimes contra as relações de consumo do art. 7" da Lei n“ 8.137/1990.'®' Ou seja, antes da Lei n° 12.403/2011, em caso de prisão em flagrante delito, a autoridade policial podia conceder fiança. Agora, não o poderá mais.'®® 266. Nesse sentido: Maciel, Art. 322 - Comentários..., p. 197. 267. O preceito sancionador do referido artigo prevê: “Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa”. 268. Partindo de uma interpretação teleológica da mudança legislativa, que teve a finalidade de ampliar as hipóteses em que a autoridade policial pode conceder a fiança, há posição doutrinária no sentido de que a autoridade policial poderia continuar a conceder fiança, em caso de crime punido com detenção, sendo a pena máxima cominada superior a quatro anos. Nesse sentido: Nicolitt, Novo processo..., p. 95-96, invocando o princípio da vedação de retrocesso.

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A autoridade policial com atribuição para arbitrar a fiança será aquela que pre­ sidir a lavratura dò auto de prisão em flagrante, pouco importando se a prisão tenha ou não se verificado em comarca diversa daquela em que o juiz serã territorialmente competente para o processo.™® Por outro lado, o juiz de direito pode conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança, em qualquer infração penal. No caso de crime punido com pena máxima superior a quatro anos, somente ojuiz poderá arbitrar a fiança (CPP, art. 322, parágrafo único). Nos processos de competência originária dos Tribunais, caberá ao desembar­ gador ou ao ministro-relator a concessão da liberdade provisória. 1 8 .2 .5 .7 .8 .4 Valor da fiança Os limites máximos e mínimos são fixados de acordo com a gravidade do crime, tendo por parâmetro a quantidade de pena máxima (CPP, art. 325, caput) . já os crité­ rios de valoraçâo são previstos no art. 326 do CPP, com destaque para a capacidade económica do acusado ou do indiciado (CPP, art. 325, § 1°). Com a Lei n° 12.403/2011 passaram a ser previstas apenas duas “faixas” com base na “pena privativa de liberdade, no grau máximo”: (a) para as penas não superiores a quatro anos, a fiança será fixada de 1 a 100 salários mínimos (art. 325, caput, I); (b) para as penas superiores a quatro anos, o valor será de 10 a 200 salários mínimos (art. 325, caput, II). Para estabelecer concretamente, entre tais limites, o valor da fiança, os critérios de valoraçâo são definidos no art. 326 do CPP: “Para determinar o valor da fiança, a autoridade terá em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circuns­ tâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento.” Dentre todos, sem dúvida, o mais relevante dos fatores é a condição pessoal de fortuna do investigado ou indiciado, isto é, sua situação económica,*™ para que a fian­ ça não se tome “illusoria para o rico, nem impossível para o pobre”, na feliz frase do Código de Processo Criminal do Império (art. 109, § 2°). Exatamente por isso, o inciso II do § 1° do art. 325 prevê que, se a situação econômica do preso o recomendar, ojuiz poderá reduzir o valor da fiança em até 2/3. Como o menor valor da fiança é de um salário mínimo (art. 325, caput, I), reduzido até 2/3 (§ 1°, II) equivalerá, atualmente, à quantia de R$ 262,67. De outro lado, o inciso III do § 1° do art. 325, com a redação dada pela Lei n° 12.403/2011 aumentou, consideravelmente, o fator multiplicador a ser reputado pelo juiz, para os investigados ou acusados que gozarem de boa situação econômica: no regime anterior, a fiança poderia ser “aumentada [...] atéod écu plo”; 269. Lima, Nova prisão cautelar.., p. 406-407. 270. Para Basileu Garcia (Comenídrios..., v. 3, p. 266-267) “a supremacia desse elemento informativo é mcontestável”.

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agora, poderá ser “aumentada em até 1.000 (mil) vezes”. Como os valores da fiança podem atingir o máximo de 200 salários mínimos (art. 325, caput, II), sendo tal valor aumentado em até 1.000 vezes (§ 1°, III), poderá atingir 200.000 salários mínimos, que em valores atuais eqüivale a R$ 157.600.000,00! Por certo, diante da elasticidade do critério, assim como antes, e agora com maior razão, não está o juiz obrigado a fazer o aumento em 1.000 vezes, representando este apenas o limite máximo permitido em lei. Assim, poderá ojuiz fixar qualquer valor superior ao máximo do art. 325, caput (aumentado, por exemplo, no dobro, triplb, décuplo, ou em 100 vezes), não podendo, porém, ultrapassar 1.000 vezes."* 1 8 .2 .5 .7 .8 .5 Destino dos bens dados em fiança A fiança é uma garantia real, e “consistirá em depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar” (CPP, art. 330, caput). Embora normalmente a fiança seja prestada em dinheiro, diante do substancial aumento de seu valor, é possível que se tome mais freqüente a fiança prestada por outros meios, em especial, mediante hipoteca de imóveis. Prestada a fiança, se ao final do processo o acusado for condenado, a quantia dada em fiança que excede ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, deverá ser-lhe restituída (CPP, art. 336, c.c. o art. 347). O legislador não prevê a ordem de preferência para o pagamento, no caso de con­ denação. Na ausência de regra expressa, a destinaçào preferencial deve ser inspirada pelo art. 326, que estabelece os fatores que o juiz deverá considerar ao e^abelecer o valor da fiança, havendo menção às custas, sem referência à reparação do dano ou às penas de prestação pecuniária e multa. Resta definir, depois das custas, entre a pena de multa e a reparação do dano, qual deverá ser considerada em segundo lugar."’ Entre as penas, de um lado, e os efeitos civis secundários da condenação penal, de outro, a multa e a prestação pecuniária deverão ter preferência sobre a reparação do dano 271. Nesse sentido, quanto à previsão originária do CPP, que se referia ao triplo, cf.: Câmara Leal, Comentários..., v. 2, p. 328. 272. Basileu Garcia (Comentários..., v. 3, p. 347) entende que a analogia deve ser buscada no art. 140 do CPP, que dispõe; “As garantias do ressarcimento do dano alcançarão também as despesas processuais e as penas pecuniárias, tendo preferência sobre estas a reparação do dano ao ofendido”. Discorda-se. O dispositivo em comento diz respeito à destinaçào dos bens objeto de registro e especialização da hipoteca legal, e do arresto prévio à hipoteca legal. Trata-se de medidas cautelares reais destinadas a assegurar a reparação do dano causado pelo delito e, portanto, nada mais natural que, em relação a elas, a reparação do dano tenha primazia. Não é esta, porém, a natureza da fiança, que constitui cautela real, destinada a criar vínculos do acusado com o processo, visando a assegurar tanto a realização do mesmo, quanto o cumprimento de provável condenação penal. E, neste caso, a preferência deve-se dar em relação aos efeitos penais da condenação e não seus efeitos civis, de caráter secundário.

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causado pelo delito."* Em suma, embora sem regra expressa, a ordem de preferência deverá ser: primeiro, o pagamento das custas; depois, a pena de multa ou pena restritiva de direitos; e, por último, a “indenização do dano” causado pelo delito. Já em caso de absolvição ou extinção da punibilidade, ou mesmo no caso em que a fiança seja declarada sem efeito (por exemplo, por ter sido cassada), o valor caucionado será restituido integralmente ao acusado, sem desconto, sendo atualizado monetariamente, em caso de prestação em dinheiro (CPP, art. 337)."® Por fim, é de observar que há contradição entre a regra do art. 337 do CPP, p.revendo que o valor da fiança será restituído, se “passar em julgado a sentença que houver absolvido 0 acusado ou declarada extinta a ação penal”, e o inciso II do parágrafo único do art. 386 do mesmo Código, com a redação dada pela Lei n° 1 1.6§0/2008 que dispõe: “na sentença absolutória, oju iz I •■•] ordenará a cessação das medidas cautelares”. Obvia­ mente, o último dispositivo disciplina os efeitos da sentença absolutória recorrível. E, sendo a fiança uma medida cautelar, com a absolvição ojuiz deverá ordenar a cessão das medidas cautelares, inclusive a fiança, mesmo antes da sentença “passar em julgado”. A resolução do conflito do art. 337 com o art. 386, parágrafo único, II, do CPP deve se dar com a prevalência do último dispositivo,"’ até porque com a absolvição desaparece o fumus commissi delicti, pressuposto de toda e qualquer medida cautelar pessoal. Se nâo há o pressuposto da medida cautelar, o valor da fiança já deve ser res­ tituído ao acusado, corrigido monetariamente, mesmo antes do trânsito emjulgado e ainda que haja possibilidade de reforma da sentença pelo tribunal.

18.2.5.7.8.6 Vicissitudes da fiança: cassação, reforço, quebra e perda As chamadas vicissitudes da fiança"® são acontecimentos que podem suceder no curso do inquérito ou processo, quando já concedida a liberdade provisória mediante fiança, podendo levar à sua modificação ou extinção. A cassação da fiança ocorre quando, após ter sido concedida a medida, o ju iz verifica que ela não era cabível (CPP, art. 338). Por exemplo, o afiançado não era 273. Câmara Leal, Com entários..., v. 2, p, 336. Em sentido contrário, Mendonça (P risão e outras medidas..., p. 364-365) considera que “deve ser dada preferência ao pagamento da indenização do dano causado â vltima". 274. O art. 337 do CPP merece uma interpretação mais ampla, aplicando-se a outras formas de prestação de fiança que não o valor em dinheiro. No caso de depósito de pedras, objetos ou metais preciosos, achando-se tais coisas em mãos de depositário püblico, o levantamento se dará mediante mandado do juiz. Quando a fiança for constituída por hipoteca, deverá o juiz proferir decisão, declarando extinta a hipoteca, determinando seu cancelamento junto ao Registro de Imóveis. Por fim, se a fiança consistir em caução de títulos, deverá ser providenciado o seu cancelamento no Registro de Títulos e Documentos. 275. Nesse sentido; Mendonça, Prisão e outras m edidas..., p. 367. Em sentido contrário, afirma Câmara Leal (Comentários..., v. 2, p. 380-381) que, “enquanto nâo houver sentença definitiva, absolutória ou condenatória, a fiança continua vigorando, de modo que seu levantamento só poderá realizar-se depois da sentença final passada em julgado”. 276. A expressão é de Tomaghi, Curso..., v. 2,p. 120.

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primário, mas reincidente em crime doloso. Por outro lado, é possível também que a fiança seja cassada porque, diante da mudança da classificação delitiva, o novo crime seja inafiançável (CPP, art. 339). Por exemplo, concedida a fiança, há posterior ofere­ cimento de denúncia pelo crime de racismo, e não por simples difamação no exercício das funções públicas. O reforço se dá quando a fiança prestada foi, por engano, insuficiente, ou quando houve depreciação do material dado em fiança (por exemplo, certa quantia em ouro) ou o perecimento do bem hipotecado (por exemplo, destruição da casa em razão de uma forte chuva). Outra situação em que pode ocorrer a necessidade de reforço da fiança é quando houver inovação da classificação do crime, e, em consequência, forem alterados os patamares de valores em razão da pena máxima (CPP, art. 340, parágrafo único) Embora o legislador não tenha previsto, por equidade, no caso de modificação da fiança, com alteração de seu valor para menos, deverá haver uma redução da fiança. É medida de lógica e dejustiça: “assim como a majoração desse valor obriga ao reforço da fiança prestada, sua diminuição, por idêntica razão, justificaria a redução da fian­ ça”.*" E tal poderã ocorrer, quer em razão da mudança da classificação da infração, inclusive com alteração das faixas de fiança, nos termos do caput do art. 325, quer caso de valorização dos objetos dados em fiança. O parágrafo único do art. 340 prevê que, determinado o reforço, se tal não ocorrer, a fiança serã considerada sem efeito e o réu recolhido à prisão (CPP, art. 340, parágrafo único). Tal dispositivo necessita de uma releitura após a nova sistemática das medidas cautelares alternativas à prisão. No regime anterior, em que somente se trabalhava com liberdade provisória ou liberdade, de fato nâo havia outra opção. Ou fiança, ou restituía-se a prisão em flagrante. Todavia, diante da nova sistemática, com a introdução de várias medidas alternativas à prisão, não tendo havido o reforço, nem sempre será necessário restabelecer a prisão, segundo dispõe o § 4“ do art. 282 do CPP. Se for possível assegurar o processo, mediante medida alternativa menos gravosa, poderá o juiz aplicar outra medida do art. 319 do CPP em substituição à fiança não reforçada, ou mesmo mantera fiança em valores inferiores ao devido,*™ cumulando-a com outra medida. A fiança será considerada quebrada nas hipóteses do art. 341, como veremos a seguir. O inciso I prevê o quebramento quando o acusado, intimado para ato do processo, deixa de comparecer, sem motivo justo. O inciso II, acrescido pela Lei n° 12.403/2011, prevê a quebra da fiança se o acusado deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo, por 277. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentários. .. v. 2, p. 368; Basileu Garcia, Comentários..., V. 3, p . 322. 278. Mas que em alguma medida se prestará para as finalidades previstas no art. 336 do CPP, além de permanecer o reforço psicológico de apresentação para o cumprimento da pena, para evitar o perdimento (CPP, art. 344).

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exemplo, quando “tenta se evadir da citação ou da intimação do oficial dejustiça ou quando apresenta atestados falsos solicitando a redesignação do ato”."* Também haverá quebramento da fiança, nos termos do novo inciso III, se houver o descumprimento de medida cautelar alternativa à prisão imposta cumula­ tivamente com a fiança. Neste caso, o descumprimento da outra medida terá como efeito conjunto o quebramento da fiança. Logo, além de autorizar a substituição da medida, também implicará a perda da metade do valor dado em fiança, em razão de seu quebramento. A última novidade acrescida pela Lei n° 12.403/2011 é o inciso ly que prevê o quebramento da fiança em caso de o investigado ou acusado “resistir injustificadamente a ordem judicial”. O dispositivo é amplo e vago. Por certo, a resistência justificada, isto é, com justa causa, à ordem judicial não implicará o quebramento da fiança. Por exemplo, não se considerará quebrada a fiança se o acusado, amparado pelo direito de não produzir prova contra si mesmo, recusar-se a fornecer material para exame grafotécnico. Assim sendo, afirma Eugênio Oliveira Pacelli; “[...] pode-se entender a previsão legal apenas como reforço de fundamentação quanto à necessidade do comparecimento obrigatório a todos os atos do processo e sempre que a tanto intimado, nos precisos termos do art. 327 e art. 328 do CPP. Assim, a resistência injustificada seria às obrigações do Termo de Fiança, a serem entendidas como ordens dojuízo.”' “ No que toca à obrigação do art. 328 do CPP, prevendo que o réu afiançado “não poderá, sob pena de quebramento da fiança, mudar de residência, sem prévia perm issão da autoridade processante, ou ausentar-se por mais de 8 (oito) dias d e sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado", é de se esclarecer que náo é necessária autorização do juiz para que o acusado mude de residência. Os antigos comentadores do dispositivo entendiam que a mudança de residência exigia prévia autorização judicial. Ou seja, o acusado não poderia mudar de residência sem que ojuiz assim o autorizasse.'®* Tal interpretação não mais pode prevalecer, mormente diante dos inegáveis problemas de moradia, sobretudo nos grandes centros urbanos. Portan­ to, a velha regra deveria ter sido alterada para prever que haveria o quebramento se o acusado mudasse de residência “sem prévia comunicação à autoridade processante".'®' 279. Mendonça, Prisão e outras medidas..., p. 370. 280. Pacelli de Oliveira, A tualização do processo p en al..., p. 22. A colhendo expressam ente tal ponto de vista, cf. M endonça, Prisão e outras medidas..., p. 371. 281. Nesse sentido: Basileu Garcia, Comentários..., v. 3, p. 2 7 5 -2 7 6 . Espínola Filh o (Código..., v. 3, p. 5 0 3 ) também exigia prévia autorização para mudança e acrescia que o ju iz, “n atu ­ ralmente, não tolerará uma transferência para lugar inaccessível às intim ações”. Câm ara Leal (Comentário..., v. 2, p. 3 3 5 ) ia além: “A lei nào proíbe que o réu afiançado mude de residência, o que aliás poderia fazer com toda procedência”. 282. Sobre o dispositivo, assim se m anifesta Nucci (C ódigo..., p. 6 8 9 ): “crem os exageradas as condições desse artigo. O importante é saber onde encontrá-lo, sem necessidade de que obtenha permissão prévia para mudar de endereço” (destaque no original).

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Por fim, o inciso V prevê hipótese que anteriormente já existia, de quebramento da fiança no caso em que o afiançado “praticar nova infração penal dolosa”. No caso de nova infração culposa, não haverá quebramento da fiança. Há controvérsia sobre qual momento da persecução penal, ou com base em qual grau de convencimento, em que se considera que houve a prática de nova infração penal, tendo prevalecido, con­ tudo, o entendimento de que não é necessária a condenação transitada emjulgado.™* No caso de quebra da fiança, metade do valor será perdido, “cabendo ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, sefo r o caso, a decretação da prisão preventiva” (CPP, art. 343). Com a Lei n° 12.403/2011, deixou de ser efeito automático do quebramento o recolhimento do afiançado à prisão. Assim, mesmo quebrada a fiança, poderá ojuiz determinar, em vez da prisão preventiva, por exem­ plo, a proibição de ausentar-se da comarca (art. 319, caput e IV), ou a monitoração eletrônica. Somente nos casos em que nenhuma destas medidas alternativas à prisão se mostrar adequada, isolada ou cumulada com outras, poderá ser imposta, mediante decisão fundamentada, a prisão preventiva. Finalmente, o perdimento da fiança ocorre quando o acusado não se apresenta para “o início do cumprimento da pena definitivamente imposta” (CPP, art. 344). Trata-se, por óbvio, de pena imposta por sentença transitada emjulgado. O perdi­ mento ocorrerá em relação a qualquer espécie de pena, mesmo para aquelas que não exigem propriamente uma “apresentação” para um comportamento ativo de início de cumprimento. O perdimento implicará a perda da totalidade do valor ou da coisa dada em fiança, sendo seu valor, deduzidos as custas e demais encargos do processo, recolhido ao Fundo Penitenciário Nacional (CPP, art. 345).

18.2.5.7.9 Monitoração eletrônica A Lei n° 12.403/2011 também institui a monitoração eletrônica co m o medida alternativa à prisão. No entanto, o inciso IX do caput do art. 319 limitou-se a prevê-la, sem qualquer outro acréscimo ou explicação.™® Não se preocupou em estabelecer 283. Para Câm ara Leal (Comentários..., v. 2, p. 3 7 1 ) “não haverá quebramento da fiança se a autoria não estiver plenamente comprovada". Já para Bento de Faria (Código..., v. I, p. 3 9 7 ) “relativamente à infração penal não basta que seja simplesmente imputada a respec­ tiva prática, tornando-se necessária, a meu ver, a prova de, pelo menos, ter sido iniciada a instrução criminal por seu motivo”. Mais tênues ainda eram os elementos exigidos por Espínola Filho (Código..., v. 3, p. 5 04-505): “não nos parece razoável exigir seja essa nova violação da lei penal reconhecida em sentença condenatória, ainda que recorrivel; basta haja a prova da materialidade do fato, sendo a autoria apontada por indícios suficientes, sem causa de exclusão de criminalidade; era suma, as mesmas condições, sob as quais é decretada a prisão preventiva, quando obrigatória”. Por fim, mas não menos relevante, Ba­ sileu Garcia (Comentdrios..., v. 3, p. 275-2 7 6 ), embora entendesse que “nâo é indispensável a sentença condenatória", afirmava: “deve-se concluir que a autoridade apreciara com a mesma liberdade que lhe é atribuída no decidir sobre outros aspectos da conduta do réu". 284. O m onitoram ento eletrônico não estava previsto na versão originária do Projeto de Lei n" 4.208/2001, tendo sido inserido no texto legal no processo legislativo, por emenda do Senador Demóstenes Torres.

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seus requisitos legais ou, ao menos, sua finalidade. Também nada disciplinou quanto à forma de execuçãò ou o prazo de duração da medida. O monitoramento eletrônico foi inserido no ordenamento jurídico nacional pela Lei n® 12.258/2010, que alterou a Lei de Execução Penal, passando a admiti-lo como mecanismo de controle para as saídas temporárias do condenado em regime semiaberto (LEP, art. 122, parágrafo único, c.c. o art. 146-B, caput e 11), bem como do condenado que esteja em prisão domiciliar (LEP, art. 146-B, caput e IV). Voltando à nova medida cautelar alternativa à prisão, como o legislador nada es­ tabeleceu quanto ao escopo da medida, ela poderá, em tese, cumprir tanto a finalidade de cautela instrumental quanto a de cautela final, segundo a regra geral do inciso I do caput do art. 282 do CPE Todavia, concretamente, o monitoramentíTéletrônico poderá ser utilizado, com maior eficiência, para assegurar a aplicação da lei penal, como uma forma mais branda e, quiçá, mais eficaz - dependendo da natureza do equipamento - que a prisão preventiva. Também dependendo das características do equipamento, e, em especial, da sua aptidão de localizar o acusado com precisão, o que é possível nos aparelhos com GPS (Global Positioning System), o monitoramento eletrônico também poderá ser utilizado cumulativamente com outras medidas alternativas à prisão para fiscalizar o seu cumprimento. Será o caso, por exemplo, da fiscalização do cumprimento da proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (art. 319, II), da proibição de ausentar-se da comarca (art. 319, IV), do recolhimento domiciliar noturno (art. 319, V) ou até mesmo da proibição de ausentar-se do país (art. 320). Certamente surgirão questionamentos sobre a constitucionalidade da utilização de tal meio, em razão do seu aspecto altamente ínvasivo da intimidade, bem como por sua possível violação da dignidade humana, em especial pelos efeitos estigmatizantes que poderá gerar, caso o aparelho seja ostensivo ou mesmo, de alguma forma, possa ser percebido pelas pessoas. Todavia, se tal mecanismo impedir o crescente número de encarcerados, jã terá sido de valor inestimável, pois nada é mais degradante e ofen­ sivo do que as prisões, em que os detidos são submetidos a todo tipo de privações, humilhações, violência e abusos, quer pelos agentes estatais, quer pelos outros presos. Entretanto, antes do advento de uma lei - e nào mero ato regulamentar do Poder Executivo, posto que inserto no contexto de legalidade estrita - disciplinado todos os aspectos necessários para o funcionamento e controle da monitoração eletrônica, não será possível sua aplicação."’ Nem mesmo mediante aplicação analógica dos dispositivos da Lei de Execução Penal, posto que se destinam a finalidades distintas. Será necessário definir sobre o modelo de monitoramento eletrônico. Por exem ­ plo, no chamado monitoramentoativo, oequipamento (tomozeleira ou bracelete, por exemplo) é colocado junto ao monitorando e ligado a uma central, sendo possível. 285.

Em sentido contrário posiciona-se Mendonça (Prisão e outras medidas..., p. 4 6 3 ), co n ­ siderando que “o m onitoram ento poderã ser aplicado independentem ente de qualquer regulamentação infralegal ou legal posterior".

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inclusive, em caso de utilização de GPS, saber sua exata localização, em tempo real. De outro lado, no denominado monitoramento passivo, um equipamento é programado para efetuar chamadas para um local designado, conferindo-se, por reconhecimento de voz, se o acusado nele se encontra. Outra questão importante a ser definida é se a implementação da medida de­ penderia ou não da anuência do investigado ou acusado, que poderia recusar-se a se submeter ao monitoramento eletrônico, ficando, obviamente, sujeito a outros tipos de medidas cautelares pessoais.™® 1 8 .2 .5 .7 .1 0 Proibição de ausentar-se do país A última medida cautelar alternativa à prisão, de proibição de ausentar-se do país, é prevista no art. 320 do CPP. É a menos severa das medidas alternativas à prisão, pois o grau de restrição à liberdade de locomoção será muito pouco intenso. O legislador não estabeleceu a finalidade da medida alternativa. Assim sendo, é possível aplicá-la para qualquer das duas finalidades ordinárias do inciso I do caput do art. 282 do CPP: “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal". Normalmente, a medida do art. 320 do CPP terá uma finalidade de dificultar a fuga do investigado ou acusado, sendo, portanto, uma cautela final. Não se pode excluir, porém, que a medida também seja utilizada com finalidade probatória, assegurando a realização de um ato instrutório em que seja necessária a presença do investigado ou acusado, obviamente respeitando-se a garantia do nemo tenetur se ipsum accusare. O art. 320 estabelece a forma de cumprimento da medida: “A proibiçã^ de ausen­ tar-se do País será comunicada pelo ju iz às autoridades encarregadas defiscalizar as saídas do território nacional, intimando-se o indiciado ou acusado para entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas". Para que a proibição de ausentar-se do país seja uma medida cautelar efetiva, será necessário que, além da entrega do passaporte, também haja a comunicação da 286.

Exem plo de legislação recente sobre a m atéria vem de Portugal. A medida de vigilân­ cia eletrônica havia sido disciplinada, inicialmente, pela Lei 122, de 20/08/1999, que foi recentemente revogada pela Lei 33, de 02/09/2010. Esta lei regulamentou a utilização de meios técnicos de controle a distância (vigilância eletrônica) tanto para a fiscalização do cumprim ento da medida de coerçâo de obrigação de permanência em habitação (CPP, art. 2 0 1 ) quanto de execução de determinadas penas. Na nova lei portuguesa, há previsão expressa de respeito à dignidade humana e aos direitos e interesses jurídicos não afetados pela medida (art. 3 .1 ), bem com o necessidade de consentim ento do acusado (art. 4.1), revogável a qualquer tempo (art. 4 .6 ), bem com o das pessoas maiores de 16 anos que com ele coabitem (art. 4 .4 ). No que toca â medida de coação de obrigação de permanência na habitação, oju iz pode associar tal medida à obrigação do acusado não contatar, por qualquer meio, com determinadas pessoas (art. 16.2). Deverão ser elaborados relatórios trimestrais de acompanham ento da execução da medida (art. 17), bem com o há o dever de o juiz reexaminar a necessidade da decisão a cada 3 meses (art. 18.1).

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proibição para as autoridades encarregadas de fiscalizar a saída do território nacio­ n al,"’ porque, por exemplo, em relação aos países do Mercosul, é possível a saída do território nacional utilizando o documento de identidade civil, nâo sendo necessária a apresentação de passaporte. O ju iz também deverá comunicar a medida à Polícia Federal,"® determinando que seja informado de qualquer tentativa do investigado ou acusado de tentar obter novo passaporte, no período de vigência da medida alternativa. Por sua vez, no caso de investigado ou acusado estrangeiro, também será reco­ mendável que a medida seja comunicada às autoridades diplomáticas de seu país, evitando-se, assim, que possa entregar o passaporte à autoridade judiciária brasileira, mas solicitar um passaporte temporário ou mesmo um novo passaporte na embaixada do país estrangeiro. Finalmente, é de observar que, embora a medida alternativa à prisão seja de proi­ bição de ausentar-se do país, para que se considere ter havido seu descumprimento não será necessário que o investigado ou acusado efetivamente tenha se evadido para Estado estrangeiro. A simples tentativa de retirar outro passaporte jã será suficiente para caracterizar o descumprimento da medida, cabendo ao julgador verificar a ade­ quação de substitui-la ou cumulá-la com outra medida alternativa e, nos casos mais graves, até mesmo, decretar a prisão preventiva. Também haverá descumprimento da medida se o investigado ou acusado, intimado da decretação da medida do art. 320 do CPP e da obrigação de entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, deixar de fazê-lo. 18.2.6 Lib erd ad e provisória 18.2.6.1 N o ç ó e s gerais No regime originário do CPP, a liberdade provisória era o gênero do qual são espécies a liberdade provisória com hança e a liberdade provisória sem fiança. Tal liberdade é denominada provisória, posto que é diversa da situaçào do acusado que responde ao processo preso cautelarmente, mas também não se confunde com o acusado que responde ao processo em liberdade plena, seja porque não foi preso em flagrante delito ou teve tal prisão relaxada, seja porque nào teve decretada contra si a prisáo preventiva, ou esta foi revogada. O acusado que estã em liberdade provisória, possui vínculos com o processo que, se descumpridos, poderão acarretar, em último caso, prisão cautelar. Não devem ser confundidas três situações distintas; (1) o relaxamento da prisão (CR, art. 5°, LXV), em flagrante delito ou preventiva, em razão de ilegalidade origi287. Nesse sentido: Bonfim , Reforma do Código..., p. 4 4. No m esm o sentido, em relação ao PL n° 4.208/2001, cf.; lokoi. Prisão preventiva..., p. 164. 288. Nesse sentido, Pacelli Oliveira, Atualização do processo penal..., p. 24.

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nária (por exemplo, não era situação de flagrante ou houve vício de motivação) ou posterior (por exemplo, por excesso de prazo da prisão); (2) a revogação da prisão (CPP, art. 316), pelo desaparecimento dos motivos de sua decretação (por exemplo, após a oitiva da testemunha que estava sendo ameaçada e motivou a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal) ; (3) e a liberdade provisória, como uma contracautela a uma prisão cautelar desnecessária, no caso da prisão em flagrante delito. A principal finalidade da liberdade provisória é impedir a manutenção de uma prisão cautelar desnecessária, ao mesmo tempo em que o acusado permanece vinculado ao processo. A liberdade provisória é uma situação intermediária entre a liberdade plena e a prisão cautelar. O acusado fica vinculado ao processo, sem os males da prisão cautelar. 18.2.6.2 N atureza ju ríd ica A liberdade provisória sem fiança é uma medida de contracautela, um substitutivo da prisão em flagrante delito (CPP, art. 310, caput e III). Diferentemente das demais medidas alternativas, e mesmo da fiança, a liberdade provisória sem fiança não pode ser originariamente decretada pelo juiz, mas trata-se de uma medida que substitui outra medida cautelar, ou melhor, pré-cautelar, no caso, a prisão em flagrante delito. Já a fiança é uma garantia real, podendo ser prestada em dinheiro, pedras pre­ ciosas, metais, títulos da dívida pública ou hipoteca inscrita em primeiro lugar (CPP, art. 330).™* A liberdade provisória é uma garantia constitucional: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei adm itir liberdade provisória, com ou sem fiança" (CR, art. 5°,LXVI). 18.2.6.3 Vedação da liberda de provisória Parte da doutrina costuma classificar a liberdade provisória em: obrigatória, permitida e vedada.'*® Todavia, não há razão em distinguir a liberdade provisória obrigatória da liberdade provisória permitida, com se esta fosse uma faculdade do juiz. Não há discriciona­ riedade judicial em campo de liberdade. Sempre que presentes os requisitos legais de uma das modalidades de liberdade provisória, ojuiz ou a autoridade policial deverão concedê-la. Assim, mesmo no caso da denominada liberdade provisória permitida, haverá obrigação de o juiz em concedê-la, uma vez presentes os requisitos legais.'*' 289. Na Lei n° 6.368 / 1 9 7 6 , havia uma form a de liberdade provisória consistente em uma garantia pessoal. No caso de prisão de m enor de 21 anos, que não pudesse pagar a fiança, a autoridade policial podia, ad referendum do juiz competente, determinar o recolhimento dom iciliar do preso na residência dos pais, parentes ou de pessoa idônea, que tinham que assinar termo de responsabilidade (Lei n° 6.368/1976, art. 24). 290. Nesse sentido; Mirabete, Processo Penal, p. 436. 291. Mesmo nos casos em que o legislador utiliza a palavra “poderá", como no art. 310, caput, do CPP, nào se trata de faculdade jud icial, mas de poder-dever.

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Existem, por outro lado, hipóteses em que a liberdade provisória é vedada pela lei (CPP, arts. 323 e 324). A Lei dos Crimes Hediondos, em sua redação originária, vedava a liberdade provisória com ou sem fiança (Lei n“ 8.072/1990, art. 2°, II). Todavia, com a alteração promovida pela Lei n° 11.464/2007, aos crimes hediondos restou vedada apenas a liberdade provisória mediante fiança (nova redação do art. 2°, II). Assim, inclusive, a lei se compatibiliza com a restrição constitucional, que apenas considera tais delitos inafiançáveis (art. 5°, XLIIl). No caso de crime organizado, era vedada a liberdade provisória, com ou sem fiança (Lei n° 9.034/1995, art. 7°), proibição esta que não mais subsiste na Lei n° 12.850/2013.'*' 292.

Também havia vedação da liberdade provisória no Estatuto do Desarm amento, cu jo art. 21 vedava a liberdade provisória no caso dos crim es definidos nos arts. 1 6 ,1 7 e 18 daquela lei. Todavia, no dia 02/05/2007, o STF, no julgam enlo da ADIn to 3.112/DF, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do art. 21 e dos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 do Estatuto do Desarmamento. O art. 14, parágrafo único, vedava a concessão de liberdade, mediante fiança, nos crimes de porte ilegal de arma (art. 14), e o art. 15, parágrafo único, vedava a liberdade provisória mediante fiança, no crim e de disparo de arma de fogo (art. 15). Já o art. 2 1 , vedava a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, nos cri­ mes de porte de arma de uso restrito (art. 16), com ércio ilegal de arma de fogo (art. 17) e tráfico internacional de arma de fogo (art. 18). E, especificam ente quanto ao art. 21, que vedada a liberdade provisória, o M inistro R elator Ricardo Lewandowski destacou em seu voto que “o te x to constitucional não autoriza a prisão ex lege, em face do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5°, LVII, da C F ), e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridadejudiciãria competente (art. 5°, LXI, da C F). A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5°, LV), que abrigam um conjun to de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a exaustão". De destacar, porém, a incoerência do ST F (HC to 93.302/SP e HC n° 92.495/PE), quando reconheceu que, no caso dos crimes de droga, prevalece a vedação de liberdade provisória, com ou sem fiança, do art. 4 4 , caput, da Lei to 11.343/2006, sobre a nova redação do art. 2°, 11, da Lei dos Crimes Hediondos, cora a redação dada pela Lei n° 11.464/2007, que passou a admitir a liberdade provisória sem fiança. Os mesmos fundamentos que levaram ao reconheci­ m ento da inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória, com ou seu fiança, do Estatuto do Desarmamento, valem, igual e integralmente, para a Lei de Drogas. De outro lado, mesmo que se considerasse a questão no plano infraconstitucional, o conflito entre a Lei n" 11.343/2006, que veda a liberdade provisória, e a Lei to 11.464/2007, que admite a liberdade provisória sem fiança, não deveria ser resolvido pelo critério de que a lei especial derroga a lei geral, mas sim de que a lei posterior derroga a lei anterior. Isso porque a Lei dos Crimes Hediondos, alterada pela Lei to 11.464/2007, aplica-se, por expressa previsão, ao tráfico de drogas, cujo art. 2°, caput, equipara aos hediondos. De registrar, em sentido contrário, a concessão da liminar, na MC no HC to 9 6 .7 1 5 , pelo Min. Celso de Mello, no seguinte sentido; “Vedação legal absoluta, em caráter aprioristico, da concessão de liberdade provisória. Lei de drogas (art. 4 4 ). Inconstitucionalidade. Ofensa aos postulados constitucionais da presunção de inocência, do due process o f law, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade. O significado do princípio da proporcionalidade, visto sob a perspectiva da ‘proibição do excesso’: fator dc contenção e conform ação da própria atividade normativa do Estado. Precedente do Supremo Tribunal Federal.: A Dln 3.112/ DF (Estatuto do Desarmamento, art. 2 1 )."

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18.2.6.4 C la ssifica çã o Mesmo após a reforma da Lei n“ 12.403/2011, ainda é possível considerar que a liberdade provisória é gênero, do qual são espécies: (1) a liberdade provisória mediante fiança e (2) a liberdade provisória independentemente de fiança. É o que prevê, clara­ mente, o art. 310, caput e III, ao se referir a “conceder liberdade provisória, com ou sem fiança”. Em um ou em outro caso, a liberdade provisória será sempre com vínculos. Por outro lado, com a reforma legislativa, a fiança, com já visto, passou a ter uma natureza híbrida, na medida em que pode ser uma medida alternativa à prisão, que poderá ser decretada autônoma e independentemente da prisão em flagrante (CPP, art. 319, caput e VIU), mas também uma contracautela à prisão em flagrante (CPP, art. 310, caput e III). Com a Lei n° 12.403/2011, passaram a existir no CPP apenas dois casos de liberdade provisória, sem fiança, e com vínculos: (1) no caso de o juiz verificar a presença de excludente de ilicitude, com o vínculo de “comparecimento a todos os atos processuais” (CPP, art. 310, parágrafo único); (2) no caso em que seja concedida a fiança, mas, sendo o acusado “pobre”, aplica-se-lhe a liberdade provisória do art. 350 do CPP, com os vínculos de sujeição do acusado “às obrigações constantes dos arts. 327 e 328” do CPP.™' A Uberdade provisória, com fiança, seja ela fixada em substituição ao flagrante (CPP,arts. 3 1 0 ,caput, ni),sejadecretadaautonomamente(CPP,art. 3 1 9 ,caput, VIII), estará, sempre, sujeita aos vínculos dos arts. 327 e 328 do CPP. 18.2.6.5 M om ento A liberdade provisória é cabível desde o inquérito policial (CPP, art. 332) até o trânsito emjulgado da sentença penal (CPP, art. 334). 18.2.6.6 C o n ce ssã o da liberda de provisória A liberdade provisória sem fiança somente poderá ser concedida pelo juiz, como expressamente prevê o art. 310, caput. Hl. 293. Com a nova sistem ática da Lei n° 12.403/2011, dei.xou de existir a liberdade provisória sem fiança e sem vínculos, consistente no acusado livrar-se solto, com o era previsto na redação anterior do art. 321 do CPR Na prática, contudo, tal dispositivo já era de ratisstma aplicação, na medida em que todos os casos em que o investigado poderia “livrar-se solto" sâo, atualmente, fiipóteses de infração penal de menor potencial ofensivo (Lei n®9.099/1995, art. 6 1 ) e, com o tal, sequer haverá lavratura do auto de prisão era flagrante delito, se o autor do fato for conduzido imediatamente aoju izad o Especial Criminal, ou se comprometer a nele comparecer (Lei n® 9.099/1995, art. 6 9 , parágrafo único, 1" parte). Assim sendo, nâo mais existe a hipótese de liberdade provisória sera vínculo do antigo art. 323. Também deixou de existir a liberdade provisória sem fiança, e com vínculos, introduzida pela Lei n° 6.416/ 1977, quando o ju iz verificasse a “in o con ên cia de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva" (CPP, art. 310, parágrafo único, em sua redação originária).

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Além disso, o parágrafo único do art. 310 estabelece que, “se o ju iz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente [...], poderá, fundam entadam ente, conceder-lhe liberdade provisória [...] (destacamos)”; e o art. 350, caput, dispõe que, “Nos casos em que couber fiança, o ju iz , verificando a situação econôm ica do preso, poderá conceder-lhe liberdade provisória [...] (destacamos)”. 18.2.6.7 Lib erd a d e p ro v isó ria n o ca so d e e xclu d e n te d e ilicitu d e O art. 310, parágrafo ú nico, do CPP, com a redação dada pela Lei n° 12.403/20L I, prevê a possibilidade de o ju iz conceder liberdade provisória ao acusado quando se convencer que o crime, na verdade, o fato típico, foi praticado em uma das bipóteses de excludente de ilicitude. Além das excludentes de ilicitude previstas na parte geral do CP, elencadas em seu art. 23, a liberdade provisória também é cabível no caso de excludente de ilicitude da parte especial do CP, por exemplo, na bipótese do art. 1 2 8 ,1, do CP. Pela mesma razão, tudo o que foi exposto se aplica também às excludentes de culpabilidade: se o juiz verificar, pela prova dos autos, que o agente praticou o fato em condições que exclua a culpabilidade, não poderá decretar a prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar, por analogia com o art. 314 do CPP. Há quem se insurja contra a aplicação da liberdade provisória do parágrafo único do art. 310 do CPP nos casos de excludentes de culpabilidade, pois quanto a estas “bá que se fazer um exame minucioso de cada um deles para verificar se a hipótese permite ou não a concessão da medida” Não é possível compartilhar de tal posição. De fato, em determinados casos, o exame da excludente de culpabilidade pode gerar maior dificuldade probatória do que o de exclusão de ilicitude, dificultando a aplicação da regra do parágrafo único do art. 310 do CPP às excludentes de culpabilidade. No en­ tanto, se a prova gerar uma dúvida razoável - ou mesmo uma certeza - da ocorrência da excludente de ilicitude, com o ser o acusado inimputável, por ser menor de 18 anos, não bá por que manter a prisão em fiagrante ou convertê-la em preventiva. Haverá, substancialmente, dúvida sobre elemento do crime a afastar o/umus commissi delicti. Para a liberdade provisória do art. 310, parágrafo único, do CPP, não é necessário um juízo de certeza da ocorrência da excludente. Basta, assim, a mera probabilidade de que o fato esteja acobertado por excludente de ilicitude. É o que se extrai da expressão “quando o ju iz verificar [...]”. Ao mais, não se pode perder de vista que se trata de um juízo quanto a o fu m u s commissi delicti, e não de um juízo de certeza para o julgamento da causa.'*’ Na liberdade provisória do art. 310, parágrafo único, do CPP, bá apenas um único vínculo; o comparecimento aos atos do processo (CPP, art. 310, parágrafo único, parte final, c.c. o art. 327). 294. A objeção, visando ao regim e anterior, era de Rangel, Direito..., p. 721. 295. No sentido de que basta um ju ízo de probabilidade; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 349.

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Não há restrição quanto ao tipo de crime ou à gravidade da pena para que seja concedida a liberdade provisória do art. 310, parágrafo ünico, do CPP. Todavia, não se pode deixar de criticar a previsão de que, no caso de verificação de excludente de ilicitude e, para nós, também de culpabilidade, ojuiz deve conceder liberdade provisória, que será vinculada, com a obrigação de comparecimento aos atos do processo. Estando provada a ocorrência de uma excludente de ilicitude ou de culpabili­ dade, ou mesmo havendo dúvida razoável sobre sua ocorrência, não haverá crime. Logo, havendo a constatação da inocorrência do delito, ou havendo dúvida sobre sua ocorrência, não há por que manter preso em flagrante delito quem, segundo o estado dos autos, não será condenado ao final do processo. Nojuízo de probabilidade típico das cautelares, mesmo que realizado com base em cognição sumária, não haverá o fumus commissi delicti, o que já é suficiente para afastar não só a prisão cautelar, como qualquer outra medida, mesmo que alternativa à prisão. Ou seja, a situação prevista no art. 310, parágrafo único, do CPP não deve levar à concessão da liberdade provisória, mas sim ao relaxamento do flagrante, posto que nâo haverá/umus commissi delicti. Se assim nâo for, além da ilogicidade do sistema, poderá haver grande iniqüidade. Imagine-se, por exemplo, um casal de desempregados que vá a um supermercado furtar comida para seu filho, que passa fome. Percebidos quando escondiam os ali­ mentos em suas vestes, o marido consegue fugir, mas a esposa é colhida em flagrante delito. Pois bem, ao marido fugitivo nâo se poderá impor a prisão preventiva, nos termos do art. 314 do CPP, ante a caracterização do estado de necessidade pqlo furto famélico. Já a esposa será autuada em flagrante delito, permanecerá presa e, qqando o juiz receber o auto de prisão em flagrante, deverá conceder-lhe a liberdade provisória sem fiança, do art. 310, parágrafo único, c.c. o art. 310, III, do CPP. A liberdade do marido será plena, a da esposa uma “liberdade provisória". E, por certo, a questão nào é só terminológica. A liberdade provisória do art. 310, parágrafo único, é uma liberdade vinculada, isto é, impõe ao liberado o dever de “comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”. 18.2.6.8 Liberdade provisória n o caso d o acusado "p o b re " A liberdade provisória do art. 350, caput, é um sucedâneo da liberdade provisória mediante fiança. Trata-se de modalidade de liberdade provisória sem fiança e com vín­ culo, conhecida como liberdade provisória do réu pobre. Tal expressão, atualmente, não é mais adequada, na medida em que a Lei n° 12.403/2011 não mais se refere à “motivo de pobreza”,'*® como constava na redação originária do art. 350 do CPP. 296.

O art. 3 2 , § 1“, do CPP traz o seguinte conceito de pobreza; “Considerar-se-á pobre a pessoa que não puder prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indis­ pensáveis ao próprio sustento ou da família". No regime anterior, afirmava Câmara Leal

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No que diz respeito ao requisito legal para a concessão da liberdade provisória do art. 350, caput, do CPP, basta que o juiz, “verificando a situação econômica do preso”, considere inadequada a fixação da fiança, mesmo em seu valor mínimo. Não é necessário, que se trata de pessoa pobre, muito menos de um mendigo ou indigente, ou um desempregado sem qualquer patrimônio. No caso da liberdade provisória do réu pobre, bá dois vínculos impostos para o acusado: o comparecimento aos atos do processo (CPP, art. 327) e não mudar de residência sem permissão do juiz, ou não se ausentar da comarca por mais de oito, dias sem comunicar o local em que pode ser encontrado (CPP, art. 328). Além de tais vínculos, a liberdade provisória do art. 350, caput, do CPP podgrá ser cumulada com as medidas alternativas dos arts. 319 e 320 do CPP (por exemplo, liberdade provisória, com proibição de frequentar determinados lugares). 18.2.6.9 U b erd a d e provisória m ed ian te fiança A fiança,™' com as alterações da Lei n° 12.403/2011, passou a ter natureza dú­ plice: como espécie de liberdade provisória, a ser aplicada em substituição à prisão em flagrante (CPP, art. 310, caput, lII) e como medida cautelar alternativa à prisão preventiva (CPP, art. 319, caput, VIII), que poderá ser aplicada originariamente.

18.3 Medidas cautelares patrimoniais Sendo a tutela cautelar um instrumento que visa assegurar a utilidade e a eficácia de um provimento jurisdicional a ser proferido em “outro” processo, dito “processo principal”, o estudo da tutela cautelar não pode prescindir da análise do conteúdo e da finalidade dessa tutela. Assim, quanto ao presente estudo, é necessário analisar qual a repercussão que eventual sentença penal condenatória terá em termos de “reparação” do dano causado pelo delito. A reparação do dano causado pelo delito é finalidade - ainda que secundária - da tutela penal condenatória.'*® Assim sendo, o sistema processual penal necessita de me­ didas cautelares que assegurem tal resultado, nas hipóteses em que o tempo necessário para a prolação do provimento condenatório permita que a situação patrimonial do (Comentdrios..., v. 2, p. 38 4 ) “o critério de miserabilidade do réu deve, a nosso ver, ser o mesmo adotado pela lei para o benefício d aju stiça gratuita”. 297. O regime legal da fiança já foi estudado, supra, no item 18.2.5.7.8. 298. As medidas cautelares processuais penais têm , inclusive, finalidade m ais ampla. O art. 140 do CPP dispõe que; “As garantias do ressarcimento do dano alcançarão também as des­ pesas processuais e as penas pecuniárias, tendo preferência sobre estas a reparação do dano ao ofendido”. Em tese, as despesas processuais e a pena de multa não devem ser tidas com o danos decorrentes do delito. Somente ao se considerar que, em sentido amplo, sempre que ocorre um delito o Estado também é vitima de tal crime, quer porque teve o ordenamento jurídico por ele instituído violado, quer porque terá despesas com a persecução penal visando a imposição da sanção ao culpado, é que se poderá admitir que o pagamento das despesas processuais e da pena de multa representam uma forma de “ressarcimento do dano".

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investigado ou do acusado se altere, gerando o risco de que, quando do provimento final, tal finalidade seja frustrada pela demora processual. A doutrina costuma elencar como medidas cautelares patrimoniais penais o sequestro,*®® a especialização e registro da hipoteca legal'“®e o arresto prévio à espe­ cialização e registro da hipoteca legal.'®* Mais especificamente, no CPP, são previstas as seguintes medidas assecuratórias; sequestro de bens imóveis (CPP, arts. 125 a 131); sequestro de bens móveis (CPP, art. 132); especialização e registfo da hipoteca legal (CPP, arts. 134 e 135); arresto'®* de bens imóveis prévio à especialização e registro da hipoteca legal (CPP, art. 136); arresto subsidiário de bens móveis (CPP, art. 137).'®'

299. Além dessas quatro m odalidades de sequestro do CPP, há quem entenda que ainda subsiste o sequestro do Decreto-lei n° 3.240/1941. Sobre o tema, cf., infra, item 18.3.1.5. 300. A especialização e registro da hipoteca legal não é uma medida cautelar, mas um procedi­ mento de jurisdição voluntária, tal qual ocorre no processo civil (CPC, arts. 1.205 a 1.210), promovido perante o ju iz penal. No regime do Novo CPC, a especialização e registro da hipoteca legal não mais dependerá de procedimento e decisão judicial específicos. O novo art. 4 9 2 prevê que “A decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não- fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária”. E isto valerá, inclusive, para a sentença contra a qual tenha sido interposta apelação com efeito suspensivo (art. 492, § 1°, inc. III). E para o procedimento de inscrição, bastará a “apresen­ tação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem jud icial, de declaração expressa do juiz ou de demonstração de urgência" (art. 492, § 2°). De qualquer forma, como a medida costuma ser tratada cora as cautelares, e porque inegavelmente tem a finalidade de assegurar a reparação do dano causado pelo delito, será analisada com o sequestro e o arresto. Nesse sentido, considerando que a hipoteca liçgal não tem natureza cautelar, mas sim de direito real: Ramos, A tutela de urgência..., p. 114; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 180-181. Em sentido contrário, reconhecendo a natureza cautelar da inscrição da hipoteca legal: Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 114-115. 301. Nesse sentido: Scarance Fernandes, O papel..., p. 153 e 192; Tornaghi, Curso..., v. 1, p. 210; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 28. Há, também, significativa corrente doutrinária que ainda inclui a restituição de coisa apreendida entre as medidas cautelares de natureza patrimonial: cf.: Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 391; Lima Polastri, A tutela cautelar..., p. 160. Em sentido contrário, negando natureza cautelar à restituição de coisa apreendida: Badaró, Tutela cautelar..., p. 260-286. 302. A Lei n® 11.435/2006 alterou o CPP para fazer uma correção term inológica, mudando para “arrestos” a denominação dos “sequestros", sobre bens imóveis e sobre bens móveis, prévio ao registro da hipoteca legal (CPP, arts. 136 e 137, respectivamente). A doutrina, inclusive, a despeito da terminologia legal, já denominava tais medidas de arresto. Nesse sentido: Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 236; Scarance Fernandes, O papel da vítima..., 192; Maria Thereza Moura, Medidas assecuratórias..., p. 189. Em sentido contrário, Tucci (Sequestro..., p. 145) nega que a medida prevista no art. 136 consista em arresto, posto que não poderia ser “dirigido indiscrim inadam ente a todo e qualquer bem integrante do patrimônio do indiciado ou acusado”, devendo ser indicado “expressamente, o bem ou os bens sobre os quais ele deva recair”. 303. Por outro lado, a denom inada Lei de Lavagem de Dinheiro perm ite ao juiz, inclusive de oficio, decretar “medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou

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Há, entre as medidas cautelares previstas no CPP, duas finalidades distintas; a medida de sequestro destina-se a assegurar o cumprimento do efeito da condenação consistente na perda do produto do crime. Já a inscrição e registro da hipoteca legal e o arresto prévio visam à reparação do dano causado pelo delito. Enquanto a primeira medida cautelar impede o lucro ilícito, a duas últimas asseguram a reparação do pre­ juízo causado à vítima. 18.3.1 Sequestro O CPP prevê o sequestro de bens imóveis (arts. 125 a 131) e o sequestro de bens móveis (art. 13 2) praticamente sob o mesmo regime. A úriica diferetiça é que o sequestro de bens móveis tem um requisito negativo de não ser cabível a busca e apreensão da coisa sequestrada que, obviamente, não se aplica ao sequestro de imóveis. Mais recentemente, a Lei n° 12.964/2012 alterou o Código Penal para prever a possibilidade da “perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime” (art. 91, § 1°), bem como possibilitou que “as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda” (art. 91, § 2°). Com isso, o legislador acabou por criar uma modalidade de “sequestro subsidiário”, que poderá atingir bens lícitos em valores equivalentes aos do produto ou proveito do crime, somente quando estes “não forem encontrados ou se localizarem no exterior”.®“’ 18.3.1.1 S eq u estro d e b e n s im óveis

18.3.1.1.1 Objeto O objeto do sequestro, isto é, as coisas que poderão ser sequestradas, são os bens imóveis que sejam produto direto ou indireto do crime. O art. 125 do CPP dispõe que “caberá o sequestro dos bens imóveis, adqu iridos pelo indiciado com os proventos d a infração, ainda que j á tenham sido transferidos a terceiro" (destacamos). Os “proventos da infração” sâo o seu produto indireto, por exemplo, um imóvel comprado com o dinheiro roubado. Em regra, nào cabe o sequestro do produto direto da infração (por exemplo, a coisa roubada), até mesmo porque tal coisa deverá ser apreendida pela autoridade policial, tratando-se de coisa móvel. Contudo, na ausência de norma ex­ pressa, a doutrina tem admitido que o sequestro do art. 125 do CPP tenha por objeto também o “produto direto da infração”, quando se trate de bens imóveis (por exemplo, o imóvel cuja propriedade a vítima enganada tenha transferido para o estelionatário).®“’ acusado, ou existentes em nom e de interpostas pessoas, que sejam instrum ento, produto ou proveito dos crim es previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes” (art. 4°, caput, da Lei n° 9.613/1998, com a redação dada pela Lei 12.683/2012). 304. Sobre o tema, cf., infra, cap. 18, item 18.3.1.5 305. Nesse sentido, cf.; Lyra, Com entários...,v. 2, p. 4 6 2 ; Frederico M arques, Tratado de di­ reito penal..., v. 3. p. 30 0 ; Pitom bo, Do sequestro..., p. 11; Tucci, Sequestro..., p. 143, N ucci,

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Não basta, porém, ser proveito de qualquer infração penal. Sendo o sequestro, como toda medida cautelar, um instrumento destinado a assegurar a utilidade e eficácia de uma provável sentença penal condenatória, somente poderá incidir sobre bens que tenbam relação com o próprio crime objeto da investigação ou da açào penal,*“ Caso contrário, não baverá referibilidade, o que é uma nota característica das medi­ das cautelares.*®' Nâo se podem sequestrar bens que integrem o patrimônio ilícito do acusado, mas que tenbam sido obtidos pela prática de um crime diverso daquele que é objeto do inquérito policial ou da ação penal em que se requereu a medida cautelar. Por exemplo, em um processo por crime de tráfico de drogas, realiza-se o sequestro de bens adquiridos com os preventos de um roubo que não é objeto dessa persecução penal. Ou mesmo no caso de uma pessoa que reitera na prática de um determinado tipo de delito, por exemplo, sonegação fiscal, no processo em que imputa a sonegação e um determinado tributo, não poderá baver o sequestro de bens que sejam proveitos de outro crime, ainda que também se trata de sonegação fiscal, diversa daquela objeto da ação penal que o sequestro visa instrumentalizar.

18.3.1.1.2 Requisito Para que a medida seja decretada, “bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (CPP, art. 126) (destacamos). O standard probató­ rio consistente em “indícios veementes”, embora nâo se identifique com a “certeza”, também não pode ser confundido com a “simples suspeita” ou mera “suposição”. Deve baver uma “elevada probabilidade” de que os bens sejam de proveniência ilí­ cita.*®® Por outro lado, como lembra Câmara Leal, “se bouver alguma outra bipótese também provável, não afastada pelos indícios, estes deixam de ser veementes e não autorizam o sequestro”.*®*

18.3.1.1.3 Legitimados A legitimidade para se pleitear o sequestro é ampla. A medida poderá ser requerida pelo Ministério Ebiblico ou pelo ofendido. Código..., p. 332. Em sentido contrário, para Mirabete (Processo Penal, p. 254), o cabivel seria a especialização da hipoteca legal. 306. Na jurisprudência, já se reconheceu ilegal o sequestro ante a “ausência de relação entre os bens sequestrados o crim e imputado ao paciente” (TJSP, RT 594/333). 307. Ramos (Tutela de urgência..., p. 9 4 ) exp lica que “a medida cau telar penal é referível também no sentido de que se liga somente ao processo de conhecim ento no bojo do qual é requerida. A situação de perigo e a tutela correspondente se conectam exclusivamente ao caso penal e aos seus aspectos mais diretos, como a situação da vitima, das testemunhas, dos elem entos sensíveis do fato crim inoso etc. Se transcende o caso penal e suas ramificações mais diretas, nâo há que se falar em tutela cautelar". 308. Como explica Tom aghi (Curso..., v, 1, p. 2 1 6 ): “indícios veementes sâo os que levam a grave suspeita, os que eloquentemente apontam para um fato, gerando uma suposição bem vizinha da certeza". 309. Câmara Leal, Comentários. .. v. l, p. 365.

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O CPP prevê que a medida também poderá ser decretada ex officio pelo juiz, ou mediante representação da autoridade policial (CPP, art. 126). Todavia, diante da mudança operada pela Lei n° 11.403/2011, a regra do art. 282, § 2°, do CPP que veda ao juiz a decretação de medidas cautelares ex officio durante a investigação revogou a possibilidade de o ju iz decretar o sequestro e x officio durante o inqué­ rito policial.'*“ No tocante ao ofendido, não há exigência de que o requerimento seja formulado apenas pelo assistente de acusaçáo. Assim, no curso da ação penal, mesmo o ofendi­ do não habilitado poderá requerer a medida.?** Obviamente, no curso do inquérito, em que nào cabe a assistência de acusação, a simples condição de ofendido também legitima o pleito.'** 1 8 .3 .1 .1.4 Momento Quanto ao momento, o sequestro poderá ser decretado “em qualquerfase do pro­ cesso ou ainda antes de oferecida a denúncia ou queixa” (CPP, art. 127). Isto é, poderá ser requerido tanto durante a ação penal, mas também na fase do inquérito policial. Neste último caso, porém, as investigações já deverão ter recolhidos elementos de informação aptos a demonstrar a existência dos “indícios veementes” da proveniência ilícita do imóvel a ser sequestrado.'*' 1 8 .3.1.1.5 Finalidade A finalidade do sequestro é assegurar o efeito da condenação penal consistente na perda, em favor a União, do produto ou do proveito da infração (CP, art. 91, caput, II, b). Secundariamente, porém, assegura, também, a reparação ao dano causado pelo delito, na medida em que o dinheiro obtido com a venda em leilão do bem perdido será destinado ao lesado ou a terceiro de boa-fé (CPP, art. 133, parágrafo único). No caso de sequestro de bens imóveis, o titular da coisa ficará dela desapossado ? Há posicionamento favorável na doutrina,'*’ inclusive sob o fundamento de que o art. 139 do CPP prevê que o depósito e a administração dos bens sequestrados ficarão sujeitos ao regime do processo civil que, de seu lado, determina que a guarda e a con310. Embora o § 2° do art. 282 deva ser interpretado à luz do caput do artigo, que prevê os princípios a serem aplicados às “medidas cautelares previstas neste T ítu lo”, que tem por objeto “Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória”, se o ju iz não pode decretar ex ojficio nem m esm o a prisão preventiva, com m uito m aior razão nâo poderá decretar medidas cautelares patrimoniais. 311. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 3 7 8 ; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 30; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 130. 312. Nesse sentido: Damásio E. d ejesu s. Código..., p. 135. 313. A referência a “antes de oferecida a denúncia ou queixa” permite que o sequestro ocorra com base nos malfadados “procedimentos crim inais diversos”, para aqueles que admitem tal forma de investigação preliminar. 314. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 3 7 8 ; Acosta, O processo..., p. 213.

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servação do bem ficarão a cargo de depositário ou administrador (CPC, art. 148).®*’ Todavia, é de ponderar que, no caso de bens imóveis, adquiridos como o proveito da infração, se a finalidade da medida é a futura venda em leilão (CPP, art. 133, caput), para posterior ressarcimento do lesado ou terceiro de boa-fé (CPP, art. 133, parágrafo único), não há problema em que, durante a medida, o próprio acusado, titular do imóvel, fique na posse do bem. Até mesmo porque, como o sequestro será objeto de registro na matrícula do imóvel, junto ao Cartório de Registro de Imóveis (CPP, art. 128), será difícil a sua alienação e, caso isso ocorra, eventual comprador não poderá alegar a boa-fé. Ou seja, o proprietário do bem sequestrado poderá ficar na posse da coisa constrita.®*® Em suma, a interação do regimejuridico do Código de Processo Penal com o Código de Processo Civil permite que o bem objeto do sequestro ou do arresto per­ maneça sob a posse de seu titular, que terá o dever de guarda e conservação sobre o bem. Caso contrário, a guarda ou a posse caberá a um depositário ou administrador, que deverá guardar e conservar o bem, sem poder utilizá-lo.

18.3.1.1.6 Levantamento O levantamento do sequestro é previsto no art. 131 do CPP. A primeira hipótese ocorre se o sequestro foi decretado durante o inquérito policial, e a açào penal condenatória não for intentada no prazo de 60 dias, a contar da data em que for concluída a diligência (art. 131, l).®*®Trata-se de prazo de eficácia da medida cautelar.®*® A constrição sobre o patrimônio do investigado não poderá 315. No mesmo sentido é a previsão do art. 159 do Novo CPC. 316. Nesse sentido: Pontes de Miranda, Comentários..., t. II, p. 4 3 1 , que acrescenta: “Se os bens penhorados, sequestrados ou arrestados ficam com o titular dos direitos sobre eles, e tal titular tem a posse imediata, a eficácia da penhora, do sequestro ou do arresto não precisa de depósito, pois a relação jurídica processual oriunda da penhora, do sequestro ou do arresto já existe e os deveres de guarda e conservação não dependem de qualquer nova relação jurídica, que seria a de depósito”. 317. O termo inicial do prazo é a data em que for concluída a diligência. No caso do sequestro de imóveis, considera-se concluída a diligência no momento em que for lavrado o compro­ misso do depositário (CPC , an . 825). Embora o art. 128 do CPP preveja que, “realizado o sequestro, o ju iz ordenará a sua inscrição no Registro de Imóveis”, tal inscrição tem apenas a finalidade de tornar público o sequestro, impedindo que terceiros que venham adquirir 0 imóvel possam alegar não ter conhecim ento da constrição. Todavia, o registro não é ato constitutivo do sequestro. Tanto assim que o dispositivo legal prevê que tal depois de “rea­ lizado” o sequestro. Isto é, a medida já existe antes de sua inscrição no Cartório de Registro de Imóveis. Nesse sentido; Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 3 5 7 ; Id., Curso..., v. 1, p. 221; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 54. 318. O STJ decidiu que: “o sequestro de bens im óveis, ordenado em face de existência de indícios de sua proveniência ilícita, é medida assecuratória incidente da ação penal, que somente perde a eficácia se não for oferecida a denuncia no prazo de sessenta dias, ‘ex vi' do art. 1 3 1 ,1 , do Código de Processo Penal” (REsp n° 130.366/DF, LEXSTJ 111/339). No mesmo sentido: STJ, RMS n° 25.486/MG.

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permanecer vigorando indefinidamente, sem que uma acusação seja formulada. A jurisprudência, contudo, tem admitido a flexibilização de tal prazo.*'* O segundo caso em que baverá o levantamento do sequestro é quando o tercei­ ro, a quem o bem sequestrado tiver sido transferido, prestar caução que assegure a reparação do dano (art. 131, II). Tal bipótese somente tem aplicação no caso de bem sequestrado que pertencera ao acusado, mas fora transferido para terceiro que alegue tê-lo adquirido de boa-fé.*™ Por fim, 0 sequestro será levantado “se for julgada extinta a punibilidade op absolvido o réu, por sentença transitada em julgado” (art. 131, III). Não se pode deixar de observar, porém, que a exigência de que se trata de “sentença transitada em julgado” foi revogada pela nova redação do inciso II do parágrafo único do art. 386 do CPP, com a redação dada pela Lei n° 11.690/2008, posto que, segundo tal dis­ positivo, na sentença absolutória o juiz “ordenará a cessação das medidas cautelares e provisoriamente aplicadas”. Aliás, tal regra nada mais é do que uma decorrência do desaparecimento do/umus boni iuris.

18.3.1.1.7 Influência do resultado do processo condenatório De se destacar que o fato de baver sentença condenatória não implicará, neces­ sariamente, a perda do proveito da infração. Para decretação do sequestro, bastam “indícios veementes da proveniência ilícita”, isto é, de se tratar de proveito da infração. Por seu tumo, para que a sentença condenatória tenba como efeito a perda, em favor da União, “do produto do crim e ou de qualquer bem ou valor que constituaproveito auferido pelo agente com a prática do fa to criminoso” (CP, art. 91, caput, II, b), será necessário juízo de “certeza” quanto à proveniência ilícita de tais bens. Assim, se o acusado que teve o seu bem sequestrado for condenado, mas ao final do processo nâo restar com ­ provado, além de qualquer dúvida razoável, que tal bem era proveito daquele delito (por exemplo, porque foi comprado com rendimentos lícitos ou valores recebidos em doação), nâo baverá o perdimento do bem que se supunba ser proveito de delito e estava sequestrado. De outro lado, tendo bavido o perdimento do bem sequestrado, porque ter restado provado tratar-se de produto ou proveito da infração (CP, art. 91, caput, II, b), o art. 319. Nesse sentido decidiu o ST J: “Apesar de não ter sido intentada a ação penal no prazo descrito no art. 1 3 1 ,1, do CPP, o sequestro merece ser mantido, considerando a excepciona­ lidade do caso e as inform ações ministeriais no sentido de não se tratar de inércia daquele órgão, mas, sim, de dificuldades no cumprim ento de certas diligências e na apuração dos fatos” (RMS n° 9.999/SP). Diversamente, na doutrina, no sentido de que se trata de prazo fatal, c l : Mirabete, Processo Penal, p. 256. Na jurisprudência, já se reconheceu o excesso de prazo, determinando o levantamento do sequestro em caso que o inquérito jã durava quase três anos (ST J, RMS n° 27.230/RJ), ou mais de cinco anos (STJ, HC n° 144.407/RJ) e até mesmo mais de sete anos (STJ, RMS n° 21.453/DF)! 320. Aliás, o próprio art. 9 1 , caput e II, b, do CP, ao prever com o efeito secundário da co n ­ denação a perda do produto do crim e, ressalva o direito do terceiro de boa-fé.

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133, caput, do CPP prevê que; “Transitada em julgado a sentença condenatória, ojuiz, de ofício ou a requerimento do interessado, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público". Tal medida deverá ser praticada pelo juiz penal, que dará cumprimento ao efeito secundário da condenação penal."* O dinheiro apurado com o leilão será destinado ao lesado (desde que tenha título para o ressarcimento, por exemplo, fixado na sentença penal condenatória) e ao terceiro de boa-fé, e eventual saldo remanescente recolhido ao tesouro nacional (art. 133, parágrafo ünico). 18.3.1.2 Seq u estro de bens m ó veis O sequestro de bens móveis segue o mesmo regime do sequestro de imóveis (CPP, art. 132). Obviamente, o objeto do sequestro serão os bens móveis que sejam produtos indiretos do crime. Há, porém, um requisito especifico: não ser cabível a busca e apreensão. Tra­ tando-se de bens que podem ser apreendidos (por exemplo, o bem furtado), deverá ser realizada a apreensão, quer na fase do inquérito policial, quer durante a ação penal. Justamente por isso, dificilmente caberá o sequestro do produto direto da infração penal. O produto do crime, por exemplo, a coisa furtada, o dinheiro obtido pelo estelionatário etc., deverão ser apreendidos, quer por se tratar de coisas obtidas por meio criminoso, quer por ser necessário à prova da infração (CPP, art. 240, § 1°, b e e, respectivamente). No mais, o sequestro de bens móveis segue o regime do sequestro de imóveis. Obviamente, no caso de bens móveis, não tem aplicação o art. 128 do ÇPP, que determina seja ordenado o registro do sequestro no Registro de Imóveis. Neíse caso, os bens sequestrados deverão ser depositados, aplicando-se, por analogia, o art. 139 do CPP,"* ficando sob a responsabilidade de depositário ou administrador judicial.'** 321. Quando a medida deve ser praticada pelo ju iz civel, o legislador expressamente assim estabelece, com o o fez no art. 143 do CPP Em sentido contrário, considerando que a me­ dida deve ser tomada pelo ju iz cível, a partir de uma interpretação extensiva do art. 143, cf.: Espínola Filho, Código..., v. 2, p 394; Câmara Leal, Comentários ... v. 1, p. 390; Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 422. 322. A referência à analogia se ju stifica, na medida em que o art. 139 disciplina o destino dos bens arresud os, e não dos bens sequestrados, segundo a redação dada pela Lei n° 11.435/2006. O citado dispositivo, anteriorm ente, referia-se ao sequestro, mas não se tra­ tava do sequestro do proveito da infração, do art. 132, e sim'do sequestro prévio à hipoteca legal (art. 136) e do sequestro subsidiário dos bens móveis (art. 137), cuja denominação foi alterada para arresto pela citada lei. 323. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 379; Magalhães Noronha, Curso..., p. 74; Maria Thereza Moura, Medidas assecuratórias..., p. 1491. Mais flexível é a interpretação de Ramos (A tutela de urgência..., p. 2 9 3 ): “no caso de bem móvel, a providência aconselhável será o depósito do bem em mãos do depositário público, do ofendido, de terceiro ou mesmo do próprio acusado. Q ualquer dessas pessoas ficará responsável pelo bem e não poderá dele se desfazer".

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18.3.1.3 M eios d e defesa contra o sequestro d e bens

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O CPP prevê, como meio de defesa contra o sequestro, a interposição de embargos (arts. 129 e 130 do CPP). Trata-se, em verdade, de três espécies distintas de embargos:®" (1) embargo do terceiro, estranho ao processo (CPP, art. 129); (2) embargo do acusado, para defesa de bens lícitos (CPP, art. 1 3 0 ,1); (3) embargo do terceiro de boa-fé. que adquiriu o bem do acusado (CPP, art. 130, II). No entanto, não há disciplina expressa quanto ao procedimento a ser adotado nos supracitados embargos. ' Todavia, a despeito da existência da expressa previsão de defesa por meio de embargos, a serem interpostos perante ojuiz penal, em primeiro grau, não falta quem admita que o sequestro possa ser atacado por meio de apelação, posto que se trataria de “decisão com força de definitiva” (CPP, art. 593, II). Há, também, aqueles que consideram cabível o mandado de segurança contra ato judicial. Em regra, a defesa deverá ocorrer por meio de embargos. No caso de terceiro, absolutamente estranho ao processo ou à investigação (por exemplo, homônimo do acusado), serão cabíveis os embargos de terceiro, com fun­ damento no art. 129 do CPP. Não havendo previsão legal específica, os embargos de terceiro seguem a disciplina dos arts. 1.046 a 1.054 do CPC.®" Como o procedimento aplicável aos embargos de terceiros é o procedimento do Código de Processo Civil, também quanto ao regime recursal. contra decisões tiradas nos embargos de terceiros (por exemplo, a decisão interlocutória que indefere a liminar, ou a sentença que julga os embargos), deve ser aplicado o sistema do Código de Processo Civil, sob pena de se “misturarem” os procedimentos, criando um terceiro e inadequado rito.®™ 324. Tais meios de defesa, como se verá, não se aplica ao novo “sequestro subsidiário”, pre­ visto no art. 91, § 2°, do Código Penal, acrescido pela Lei n° 12.694/2012. 325. Nesse sentido; Espínola Filho, Código.... v. 2, p. 381; Cardoso de Gusmão, Código..., p. 62; Magalhães Noronha, Curso..., p. 72; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 51; Saad G im enes, As medidas assecuratórias..., p. 143. No Novo CPC, os embargos de terceiro estão previstos nos arts. 6 72 a 679. 326. Há diferenças subsunciais nos regimes recursais do processo civil c do processo penal. A mais destacada delas é que, enquanto o CPC adota o princípio da recorribilidade das decisões interlocutórias (art. 522, caput), o CPP guia-se, em regra, pelo princípio inverso, da irrecorribilidade de tais decisóes, salvo aquelas expressamente previstas no art. 581. Assim, se o CPC prevê o agravo de instrum ento contra as decisões interlocutórias, serã este o recurso cabível contra a decisão interlocutória proferida no curso dos embargos de terceiro, que segue o procedimento da lei processual civil. Nesse sentido tem se posicionado a jurisprudência: “Os embargos do art. 129 do CPP sâo incondicionados e serão julgados nos termos da Lei Civil, porque visam à liberação do bem por estar ele excluído da possi­ bilidade, sequer em tese, da apreensão do Ju ízo Penal. Decisão que relegou, em embargos de terceiro, o julgam ento para após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Mera suspensão do processamento. Natureza da decisão que é interlocutória simples. Pro­ cedimento, entretanto, não regulado pelo Código de Processo Penal. Aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil. Agravo de instrumento como recurso cabível" (TJSP, Ap n° 139.405-3/9). No mesmo sentido: “Havendo dúvida plausível quanto ao recurso

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Os embargos de terceiro podem ser contestados, no prazo de dez dias, como determina o art. 1.053 do CPC.*" O legitimado passivo dos embargos será o ofendi­ do, nos casos em que ele tenba requerido o sequestro.*™ Se a medida foi decretada de ofício pelo juiz, ou foi determinada em face de representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público, a este caberá contestá-la.*™ O art. 1.048 do CPC, aplicável por analogia, dispõe que os embargos de terceiro poderão ser interpostos “a qualquer tempo no processo de conhecimento enquanto não transitada em julgado a sentença, e, no processo de execução, até 5 (cinco) dias depois da arrematação, adjudicação ou remição, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta". Aplicando-se tal regra ao regime processual penal, conclui-se que os embargos de tercei­ ros são cabíveis até o trânsito emjulgado da sentença penal condenatória.**® Também se tem admitido que, mesmo após o trânsito emjulgado, os embargos seja ofertados até cinco dias depois da arrematação, desde que antes da assinatura da respectiva carta.**' Os embargos de terceiro estranbo ao processo, com fundamento no art. 129 do CPP, devem ser julgados prontamente. A competência do processamento ejulgamento dos embargos de terceiro é do juiz penal que decretou a medida de sequestro.**' adequado contra decisão interlocutória proferida nos embargos de terceiro indeferindo o levantamento liminar do sequestro de bens realizado em procedimento criminal, admite-se excepcionalm ente o agravo de instrum ento, por analogia ao processo civil, em atenção ao princípio constitucional da ampla defesa" (TRF Quarta Região, Al n° 2 0 0 1.04.01.0363328). Também no tocante à apelação, os regimes são diversos, seja quanto ao prazo, seja quanto à forma de interposição, tudo aconselhando, para evitar dúvidas desnecessárias, adotar-se de modo integral o regime do CPC. 327. No novo CPC, o prazo para contestar é de 15 dias (art. 677). 328. Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 143. 329. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 383. No mesmo sentido: Saad Gimenes (As medidas assecuratórias..., p. 144), acrescentando que, neste caso, deve ser ofertada ao ofendido a possibilidade de se manifestar. Em sentido parcialmente diverso, para Câmara Leal (Comentários..., v. 1, p. 368) “quando o sequestro tenha sido determinado pelo ju iz ex officio, não haverá embargado”. Discorda-se, não poderá haver processo de uma parte só! 330. Nesse sentido: Espínola Filho, C ódigo..., v. 2, p. 3 8 6 ; Cam pos Barros, Processo penal cautelar..., p. 419. 331. Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 144. Na jurisprudência, decidiu o STJ que “O Código de Processo Civil nâo fixa o marco inicial para o oferecimento dos embargos de terceiro, de modo que o adquirente do imóvel objeto do sequestro decretado nojufzo Crimi­ nal pode opor embargos de terceiro no processo de liquidação e de execução, para defender direito seu, até cinco dias depois da arrematação, adjudicação ou remição, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta (art. 1.048 CPC)” (STJ, REsp n° 1 10.297/RJ). O art. 673, caput, do Novo CPC prevê que: “Art. 673. Os embargos podem ser opostos a qualquer tempo no processo de conhecimento enquanto não transitada emjulgado a sentença, e, no cumprimento de sentença ou no processo de execução, até cinco dias depois da adjudicação, alienação por iniciativa particular ou da arrematação, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta". 332. Nesse sentido: Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 53. O art. 1.049 do CPC prevê que: “Os embargos serão distribuídos por dependência e correrão em autos distintos perante o

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De outro lado, no que toca ao sequestro dos bens do próprio acusado ou investi­ gado, a defesa deve ser instrumentalizada por meio de embargos, com fundamento no inciso 1 do art. 130 do CPP. Tal dispositivo sugere que a defesa terá como fundamento exclusivo “não terem os bens sido adquiridos com os proventos da infração”. Isso não significa, porém, que somente poderá se defender fazendo prova plena da licitude dos bens. Sua defesa poderã ter por fundamento demonstrar que a medida foi deferida sem que houvesse “indícios veementes” da proveniência ilícita de tais b en s.«' Além disso, também poderão ser alegadas matérias processuais, como a incompetência do juiz que decretou a medida, a ilegitimidade de quem a requereu, ocorrência de litispendência, em face da existência de outro pedido jã em curso etc. Finalmente, há os embargos do terceiro de boa-fé, contra o sequestro de bens que tenham sido adquiridos do acusado por terceiro, sem saber que estes eram produtos ou proveitos do crim e.«’ Como explica Tourinho Filho, para que o terceiro de boa-fé possa se valer dos embargos, com fundamento no inciso II do art. 130 do CPP, deve estar caracterizada “sua insciência quanto à proveniência ilícita do imóvel, isto é, seu total desconhecimento de que o pretenso culpado o adquirira com os proventos da infração e, por isso mesmo, certo da ilicitude da aquisição”.'« Vai além Espínola Filho, afirmando que, “se hã negligência, tomando culposos o erro ou a ignorância, não se pode escusar o ato, sob pretexto de boa-fé”.««Além disso, a coisa deverá ter sido adquirida a título oneroso,«’ como expressamente exige o art. 130.1, e ao menos ajusto preço,«® pois quem “pede ou aceita preço vil, não age de boa-fé”.«® Não há disciplina, nem no Código de Processo Penal, nem no Código de Pro­ cesso Civil, dos embargos do acusado (CPP, art. 1 3 0 ,1) e dos embargos do terceiro de boa-fé (CPP, art. 130, II). Sobre seu procedimento há duas posições; (1) devemser mesmo ju iz que ordenou a apreensão”. Regra idêntica está prevista no caput do art. 6 7 4 do Novo CPC. Em sentido contrário, considerando que a medida deve ser interposta perante u m ju iz civil: Cam pos Barros, Processo penal cautelar, p. 418. 333. Nesse sentido: Marta Thereza M oura, Medidas assecuratórias..., p. 1 4 9 1 . Na ju ris p ru ­ dência, já se decidiu que, “não havendo indícios veementes que vinculem a aquisição dos bens ao provento do crim e, não pode ser decretado o sequestro, segundo dicção do art. 126 do Código de Processo Penal" (TJSC , ACr n® 2 0 0 5 .0 0 5 4 2 3 -5 ). 334. O art. 1.201 do C C dispõe que “é de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa”. 335. Tourinho Filho, Processo penal..., v. 3, p. 32. 336. Espínola Filh o, Código..., v. 2, p 385. No m esm o sentido. Câmara Leal (Comentários..., V . l , p. 3 7 0 ) assevera: “para que o terceiro adquirente de um imóvel, que o infrator não possuía antes do crim e e adquiriu depois com o produto da infração, possa alegar boa-fé, é necessário que a situação financeira anterior do transmitente não despertasse a natural suspeita de que o imóvel tivesse sido adquirido com os proventos do crim e". 337. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p 3 8 5 ; Tomaghi, Instituições..., v. 3, p. 25; Pitombo, Do sequestro..., p. 23; Campos Barros, Processo perutl cautelar..., p. 419; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 172; Saatl G im enes, As medidas assecuratórias..., p. 147, 338. Pitombo, Do sequestro..., p. 23. 339. Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 385.

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aplicados, por analogia, os procedimentos dos embargos de terceiro do CPP;"“ (2) os embargos serão simples manifestação de inconformismo do acusado ou terceiro, até mesmo porque somente serão julgados após a sentença do processo condenatório.®’* Ambos os embargos somente serão julgados, pelo juiz criminal,®’®após o trânsito em julgado da sentença da ação penal condenatória, a teor do parágrafo único do art. 130 do CPP O fato de ter a sentença condenatória transitado emjulgado, porém, não implica automaticamente a improcedência dos embargos. É possível que o acusado tenha sido condenado, mas demonstre que o bem sequestrado tinha origem lícita (por exemplo, foi comprado com o salário percebido regularmente pelo embargante). Por outro lado, como já destacado, há corrente que defende o cabimento da apelação, contra da decisão que defere o sequestro, por entender tratar-se de decisão com força de definitiva (CPP, art. 593, II).®’®Discorda-se de tal ponto de vista. A deci­ são que decreta o sequestro, como simples medida cautelar incidente - e não como um verdadeiro processo autônomo —, não é uma decisão definitiva ou com força de definitiva.®” Trata-se de decisão interlocutória, de natureza processual, que concede uma tutela cautelar com base em cognição sumária. O provimento é provisório, e, o que é mais relevante, nâo se trata de decisão que define o mérito, isto é, atua concre­ tamente a regra de direito material aplicável ao caso concreto. Nada disso ocorre na decisão que defere o sequestro. Aliás, tanto nâo se trata de decisão definitiva que, se o acusado que teve seus bens sequestrados não impugnar tal decisão, nào haverá coisa julgada. Basta considerar que. se ao final do processo ele for absolvido, o sequestro deverá ser levantado (CPP, art. 130, III). Evidente que a decisão que decreta a medida cautelar nào é definitiva, sendo incapaz de gerar coisa julgada material.®’* «

Por fim, o sequestro poderá ser atacado por meio de mandado de segurafiça contra ato judicial. Embora o enunciado da Súmula n° 267 do STF estabeleça que “não cabe 340. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p 386; Câmara Leal, Comentários..., v. 1, p. 37 1 ; Acosta, O processo..., p. 215. 341. Nesse sentid o posiciona-se Tourinho Filh o (Processo..., v.3, p .52 ): “aqui, entendemos nào se tratar de embargos, mas de contestação, nos termos do art. 8 0 2 do CPC". 342. A com petência é do ju iz crim inal, na medida em que será dele a com petência para as providências de leilão dos bens sequestrados. Em sentido contrário, considerando que a com petência será do juiz civel, cf.; Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 422. 343. Nesse sentido: Espínola Filho, C ódigo..., v. 2, p. 3 8 8 ; Cam pos Barros, Processo penal cautelar..., p. 4 3 5 ; Damásio E. d e je su s. Código..., p. 140; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 50; Mirabete, Processo Penal, p. 255; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 172, Nucci, Código..., p. 333. O STF já decidiu que “o recurso cabível da decisão que decreta o seques­ tro de bens, em processo-crime, nos termos do art. 125 do CPP, e a apelação criminal, nos term os do art. 59 7 , com efeito devolutivo” (STF RE ri° 106.738/MT). No mesmo sentido: STJ, REsp n° 258.167/MA; TJSP, RT 796/582. 344. Nesse sentido, negando o cabimento da apelação: Greco Filho, Manual..., p. 118; Maria Thereza Moura, Medidas assecuratórias..., p. 1491; Saad Gimenes, As medidas assecurató­ rias..., p. 141. 345. Ramos, A tutela de urgência..., p. 296.

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mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”/®®já se interpretava tal preceito sumular no sentido de que tal óbice não se aplicaria no caso de baver previsão recursal, mas sem efeito suspensivo, isto é, sem que bouvesse um mecanismo com suficiente grau de eficiência para pôr fim aos efeitos da ilegalidade. Tal posicionamento foi reforçado pelo novo regime legal do mandado de segurança, cujo art. 5®, II, prevê que; “Nào se concederá mandado de segurança quando se tratar [...) II -d e decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo”. Os embargos do acusado, cabíveis para atacar o seqüestro, não são recurso e, muito menos, têm efeito suspensivo. Aliás, os embargos do acusado e do terceiro de boa-fé, somente ocorrerão após o trânsito emjulgado da sentença condenatória (CPP, art. 130, parágrafo único). Obviamente, o manejo do mandado de segurança exigirá que se trate de bipótese na qual a ilegalidade puder ser demonstrada por prova pré-constituída, sendo um meio de defesa mais eficaz e expedito.*®' Najurisprudência, já se admitiu o mandado de segurança no caso de seqüestro “decretado por juiz incompetente ou que se prolonga no tempo por mais de sessenta dias sem que a ação penal tenha sido proposta” ,*®®bem como no caso em que o seqüestro deferido sem suporte legal,*®* ou ainda quando bá “prova cabal de que alguns dos bens foram adquiridos antes do delito”,*“ ou porque deveria ter bavido o levantamento do seqüestro, uma vez que o inquérito se prolonga por mais de três anos, sem que a denúncia tenba sido oferecida.*” O prazo de 120 dias para a propositura do mandado de segurança deve ser “con­ tados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado" (Lei n® 12.016/2009, art. 23). 18.3.1.5 S eqü estro su bsidiário d o art. 91, § 2°, d o C ódigo Penal O regime das medidas cautelares patrimoniais no processo penal brasileiro en­ contrava-se dividido de acordo com o efeito da condenação penal que se pretendia assegurar. 346. Mesmo para aqueles que admitem que a decisão que decreta o sequestro é apelável, com o que não se concorda, ainda assim seria cabivel o mandado de segurança, uma vez que o apelo não tem efeito suspensivo. Nesse sentido, na doutrina, cf.: Mirabete, Processo Penal, p. 255. Na jurisprudência, já se decidiu que, “não cabendo recurso ordinário com efeito suspensivo, o mandado dc segurança se impõe em resguardo do direito líquido e certo” (extinto TACrimSP, JUTACRIM-SP 32/134). No mesmo sentido: TJSP RT 424/318. Era sentido contrário, o STJ decidiu que “o levantamento do bloqueio, com a restituição dos valores apreendidos, podendo ser postulado mediante recurso próprio, inviabiliza seu requerimento pela via do mandamus. Incidência da Súmula 267 do ST F ” (STJ, RMS n° 17.225/MG). A defesa do cabim ento do mandado de segurança, mesmo que se considere cabível a apelação, por nâo ter este recurso, no caso, efeito suspensivo, foi reforçada pelo novo regime do mandado de segurança. 347. Nesse sentido: Damásio E. d e je s u s . Código..., p. 139; Saad G im enes, As m edidas asse­ curatórias..., p. 150, 348. Extinto TARS, RT 6Tin>96. 349. Extinto TACrimSP JUTACRÍM-SP 32/134, 350. TJSP, RT 594/333. 351. STJ, RMS n® 27.230/RJ.

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Para assegurar a perda do produto ou proveito do crime havia o sequestro de bens imóveis e o sequestro de bens móveis. Já para assegurar a reparação do dano causado pelo delito, havia a especialização e registro da hipoteca legal, o arresto de bens imóveis prévio à hipoteca legal e o arresto subsidiário de bens móveis. Esse panorama mudou com a edição da Lei n° 12.964/2012, que alterou o Código Penal para prever a possibilidade de mais um efeito civil da condenação penal: a “perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime” (art. 91, § 1°). Se há mais uma finalidade - ainda que secundária da condenação penal - é necessário, para se assegurar a utilidade e eficácia dessa tutela jurisdicional, que se prevejam medidas assecuratórias. O legislador, contudo, ao fazê-lo, não seguiu o melhor caminho. Ao invés de criar uma medida específica ou de expressamente estender o regime de uma das medidas já existentes para essa nova finalidade, adotou uma postura pouco clara. Acrescentou um § 2° ao art. 91 do Código Penal, estabelecendo que “as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda”. Como menciona, genericamente, “medidas assecuratórias previstas na legislação processual", poderia parecer, numa interpretação mais açodada, que qualquer uma das três medidas existentes - sequestro, especialização e registro da hipoteca legal e arresto - poderia ser utilizada para tal fim. Todavia, apesar da pouca clareza do legislador, não parece essa a melhor inter­ pretação. Primeiro, é de se identificar a finalidade de tutela que a medida busca assegurar. O Código Penal já previa a perda do produto ou proveito do crime como efeito da condenação penal (CP, art. 91, caput, II, b). Todavia, em tempos de lavagém de di­ nheiro, é raro que o criminoso conserve consigo o produto direto do crime, por ser um fortíssimo elemento de prova da autoria delitiva. Por outro lado, mesmo no que diz respeito ao proveito do crime, é comum que haja uma série de operações visando ocultar e dissimular a origem ilícita do bem, tornando muito difícil a prova de uma cadeia causai que ligue um determinado bem de propriedade do acusado com a sua origem criminosa. Justamente por isso, passou a ser efeito da condenação, além da perda do produto ou proveito do crime, também a “perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior.” (CP, art. 91, § 1°). Esse, porém, é um efeito secundário ou subsidiário, somente cabível quando não for possível a efetivação do efeito principal que é a perda do próprio “produto ou proveito da infração” (CP, art. 91, caput, II, b). A razáo da preferência é óbvia. O produto ou proveito da infração é bem ilícito que integra o patrimônio do acusado. Já o equivalente ao produto ou proveito, normalmente será um bem lícito! Justamente por isso, afirma-se que a nova medida do art. 91, § 2°, do Código Penal é um sequestro subsidiário, que ojuiz somente poderá aplicar quando não for

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possível decretar, em caráter primário e principal, o sequestro de bens imóveis (CPP, art. 125) ou o sequestro de bens móveis (CPP, art 132), a incidir sobre o próprio pro­ duto ou proveito do crime. Somente nos casos em que se identifica que o crime gera um ganho patrimonialmente aferível, mas não é possível atingir esse bem ilícito, seja porque “estes nào foram encontrados”, seja porque, mesmo encontrados “se localizam no exterior”, será possível a decretação do sequestro subsidiário do art. 91, § 2°, do Código Penal. De se ressaltar que a expressão “não foram encontrados” significa que houve procura, pesquisa, tentativa de localização pelos meios normais, mas elas se mostra­ ram infrutíferas. Neste caso, buscados mas não achados os bens que sejam produto ou proveito do crime, pode-se sequestrar “bens ou valores equivalentes”. O legislador não estabelece como requisito, a indicar a subsidiariedade, “serem difíceis de encontrar”. O requisito legal é “não forem encontrados”. Assim sendo, esta não poderá ser uma medida cautelar patrimonial inaugural. Deve-se decretar, primeiramente, o sequestro de bens (CPP, art. 125 ou 132) e somente quando este se mostrar inviável, porque o produto ou proveito não foi encontrado, passa-se ao sequestro subsidiário de bens ou valores equivalentes (art. 91, § 2°, do Código Penal). Obviamente, tal medida poderá incidir sobre bens ou valores que integram licitamente o patrimônio do investigado ou acusado. Por outro lado, uma vez que o objeto será “equivalente”, isto é, “de mesmo valor”, é preciso, que no requerimento se indique qual foi o produto ou proveito do crime e se estime o seu valor. Como esse produto ou proveito foi procurado e não encontrado, ou encontra-se no exterior, requerer-se-á o sequestro subsidiário de bens ou valores equivalentes. Como a medida não incide sobre objeto especifico - o produto ou o proveito - não é necessário que, na petição se indiquem quais bens ou valores deverão ser sequestrados. Mas havendo tal indicação, há mais chance de efetivo cumprimento da medida. A decisão judicial deverá indicar o valor específico a ser sequestrado. Poderá, outrossim, indicar um específico bem. Não poderá haver excesso na constrição. Se forem sequestrados bens ou valores cujo quantum seja superior ao valor estimado produto ou proveito do crime, será cabível o mandado de segurança para conter o excesso ilegal. Com relação ao momento, como a medida é subsidiária ao sequestro, assim como esse, poderá ser decretada “em qualquer fase do processo ou ainda antes de oferecida a denúncia ou queixa”, por aplicação subsidiária do art. 127 do CPP. Por fim, não é o caso de se cogitar de uma hipoteca legal ou de um arresto subsi­ diário - apesar de o aludido § 2° do art. 91 do CP se referir a “medidas assecuratórias previstas na legislação” - porque tais medidas patrimoniais não visam assegurar a perda do produto do crime, mas a reparação do dano causado pelo delito. Se o escopo do legislador fosse apenas o atingimento de bens lícitos do patrimônio do acusado, nada disso seria preciso, na medida em que para tanto, já é possível se valer da espe­ cialização e registro da hipoteca legal, ou do arresto de bens. Essas medidas, contudo.

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repita-se, não se destinam a assegurar a perda do produto ou proveito do crime, mas a assegurar a reparação do dano causado pelo delito. E, não se pode ignorar, que há crimes que geram grande ganho para o seu autor, mas nào causam um dano patrimo­ nial para terceiros, com é o caso do tráfico de drogas. Foi para esses casos, em que esse produto ou proveito nâo seja localizado, mas haja outros bens lícitos do investigado ou acusado, que se criou o sequestro subsidiário em análise. 18.3.1.6 Sequ estro d o D e cre to -le i n ° 3 .2 4 0 /1 9 4 1 : divergência sobre sua revogação O Decreto-lei n° 3.240/1941, anterior ao início de vigência do CPP, disciplinava uma modalidade de sequestro de bens em favor da Fazenda Púbtica. Antecipando a conclusão que se justificará na sequência, o Decreto-lei n° 3.240, de 08/05/1941, foi revogado por lei posterior de mesma hierarquia, no caso, o CPP - Decreto-lei n° 3.689, de 03/10/1941. O sequestro do Decreto-lei n° 3.240/1941 podia “recair sobre todos os bens do indiciado" (art. 4°, caput), desde que houvesse “indícios veementes da responsabili­ dade” (destacamos) do acusado (art. 3°, caput), por crime de que resultasse prejuízo para a Fazenda Pública (art. 1°). Tal sequestro, portanto, poderia atingir o patrimônio lícito do indiciado, seja ele adquirido antes ou depois do crime.®” Quanto ao momento, o sequestro do Decreto-lei n“ 3.240/1941 somente pode incidir na fase de inquérito policial ou de investigação preliminar, que sempre se re­ fere ao indiciado.®’®No entanto, o decisivo é que o decreto-lei estabelece prazo para a propositura da ação após a decretação do sequestro, que somente será decretado na fase do inquérito, exigindo-se, inclusive, representação da autoridade policial incumbida do inquérito policial: “Art. 2° O sequestro é decretado pela autoridadejudiciãria, sem audiência da parte, a requerimento do ministério público fundado em representação da autoridade incumbida do processo administrativo ou do inquérito policial. § 1° A ação penal terá início dentro de noventa dias contados da decretação do sequestro."®" 352. O sequestro do D ecreto-lei n° 3.240/1941 também pode atingir bens de terceiros, mas em relação a estes, somente bens adquiridos ilicitamente pelo terceiro, vez que o caput do art. 4° previa a possibilidade de o sequestro “compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave". 353. O an . 1° prevê que “Ficam sujeitos a sequestro os bens de pessoa indiciada por crime ...”. Por outro lado, nos termos do art. 4°, caput, “o sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado ...” (art. 4°, caput). Além disso, incumbe ao depositário “[...1 fornecer, à custa dos bens arrecadados, pensão módica, arbitrada pela autoridade judiciária, para a manutenção do indiciado e das pessoas que vivem a suas expensas” (art, 5°, n° 2) (destacamos). 354. Tal regra é equivalente a do art. 134 do CPP, que trata do prazo de eficácia do arresto prévio sobre os bens imóveis.

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Uma vez concedido o “sequestro” dos imóveis, o juiz deveria determinava, ex officio, “a averbação do sequestro no registro de imóveis”, e o Ministério Público promovia “a hipoteca legal em favor da fazenda pública” (art. 4®, § 2°, n° 1 e 2, res­ pectivamente). Já no caso dos bens móveis, ojuiz nomeava depositário (art. 4°, § 1°), a quem incumbia a guarda e conservação do bem. Como facilmente se percebe, não se tratava de um sequestro sobre os proventos da infração, nos moldes do previsto nos arts. 125al32d o C P P , mas sim de um “sequestro prévio à inscrição da hipoteca legal”, nos termos dos arts. 136 e 137 do CPP, em súa redação originária. A finalidade desse sequestro era assegurar o futuro perdimento em favor da Fazenda Pública, dos produtos e proveitos do crime (art. 8°), bem como o ressarcimento do prejuízo causado à Fazenda Pública (art. 9®X não satisfeito pela perda dos produtos ou proveitos do crime. E, o que é mais importante, do ponto de vista prático, enquanto o sequestro do CPP (arts. 125 a 132) incide somente sobre o patrimônio ilícito do investigado ou acusado, no caso, o produto direto ou indireto da infração, o sequestro do Decreto-lei n®3.240/1941 podia atingir todo o patrimônio do acusado, inclusive bens adquiridos licitamente. A doutrina já se manifestava pela ab-rogação do decreto, em razão do início de vigência do CPP.«’ Ajurisprudência, contudo, continua a aplicar tal diploma.«« Nâo há como acolher o posicionamento dos tribunais. O CPP deu nova disciplina às medidas assecuratórias, e, no caso, as medidas incidentes sobre os bens lícitos do investigado ou acusado para assegurarem a satisfação do dano são a especialização e registro da hipoteca legal (CPP, arts. 133 e 134), o arresto prévio à hipoteca legal (CPP, art. 136), incidente sobre imóveis do acusado e, finalmente, o arresto subsidiário, sobre bens móveis do acusado (CPP, art. 137). Não se pode deixar de observar que a chamada “Lei de Lavagem de Dinheiro" - Lei n° 9.613/1998 - , ao disciplinar a apreensão e o sequestro de bens, na redação originária do art. 4®, dispunha que, para a efetivação de tais medidas, se proceda “na forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal”. Por que nào houve referência ao Decreto-lei n° 3.240/1941? Cer­ tamente porque tal diploma foi ab-rogado pelo CPP. Por outro lado, a Lei n® 11.435/2006, que alterou o CPP, no que toca às medidas as­ securatórias, deixou ainda mais evidente queo sequestro do Decreto-lei n° 3.240/1941 nâo mais subsistia. Primeiro, porque, se ainda estivesse em vigor, a preocupação ter­ minológica a ele também deveria ter se estendido, passando a ser denominado arresto, na medida em que pode incidir, assim como as medidas dos arts. 136 e 137 do CPP, sobre todo o patrimônio do acusado. 355. Nesse sentido: Pitombo, Do sequestro. p. 107; Tucci, Sequestro..., p. 138; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias ... p. 95. 356. Nesse sentido: STJ, AgRg no RMS n° 24.083/PR, REsp n° I.124.658/BA, RCDESP no inq n® 561/BA, REsp n” 149.5Í6/SC, REsp n® 132.539/SC, RMS n” 4.151/PB. Em sentido contrário, pela revogação do Decreto-lei n® 3.240/1941: STJ, RMS n° 6.728/RS (RT 738/578).

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Pro ce sso Penal

Finalmente, porque a lei posterior regulou a mesma matéria, de forma diversa. O sequestro previsto no Decreto-lei n° 3.240/1941 era, no caso de bens imóveis, um “sequestro prévio à inscrição da bipoteca legal”, que passou a ser integralmente regu­ lado pelo CPP no art. 136. De outro lado, em relação aos bens móveis, a matéria passou a ser regida pelo arresto subsidiário de bens móveis, previsto nos arts. 137 e 139 do CPP. Aliás, essas medidas também eram cbamadas “sequestro”, no regime originário do CPP, tendo a Lei n® 11.435/2006 alterado suas denominações para “arresto”. Ou seja, o Código de Processo Penal, por se tratar de norma de mesma hierarquia, e que entrou em vigor posteriormente ao Decreto-lei n° 3.240/1941, ao disciplinar a mesma matéria daquele, de forma diversa, acabou por revogá-lo tacitamente.

18.3.2 Especialização e registro da hipoteca legal O art. 1.489, III, do CC confere hipoteca “ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinquente, p ara satisfação do dano causado pelo delito e pagam ento das despesas judiciais". A hipoteca legal é direito real sobre coisa alheia, que existe op Icge. Justamente por isso, o que se requer, como medida assecuratória no processo penal, não é a própria hipoteca, que decorre da lei, mas sim a sua especialização e registro*” da hipoteca legal.*’®Isso porque, embora a hipoteca legal se origine do direito à indenização, que nasce com o delito, somente se torna efetiva quando especializada e registrada,*’* passando a existir com tal.*“ Justam ente por isso, embora instituída por lei, a hipoteca legal depende, em muita medida, de decisão judicial do procedimento de especialização e registro, feito perante o juiz penal, em razão da prática de um crime, razão pela qual Pontes de Miranda arienomina hipoteca penal.*®' A especialização consiste em estimar valor da responsabilidade (isto é, o quan­ tum da responsabilidade civil), bem como estimar o valor do bem ou bens designados. Assim, no requerimento de especialização haverá duas operações: uma para estimar o valor do dano a ser reparado, outra para indicar o imóvel ou imóveis que serão ob­ jeto da hipoteca e estimar o seu valor (CPP, art. 135, caput). A hipoteca legal deverá 357. Embora o CPP faça referência à “inscrição” da hipoteca legal (art. 136, § 4°), a Lei de Registros Públicos prevê o “registro" da hipoteca (Lei n° 6.015/1973, art. 168,1, b). O Código Civil também prevê o “registro" da hipoteca: “Art. 1.492. As hipotecas serão registradas no cartório do lugar do imóvel, ou no de cada um deles, se o título se referir a mais de um”. 358. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 396; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 228; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 58; Scarance Fernandes; O papel..., p. 194; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 1 1 3 .0 art. 1.497 do CC estabelece que “as hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas". 359. Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 191. 360. Nesse sentido: Pontes de Miranda, Tratado de direito privado..., t. XX, p. 82; Ramos, A tutela de urgência..., p. 299. 361. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado..., t. XX, p. 140. Referido ponto de vista é acolhido, no processo penal, por Ramos, A tutela de urgência..., p. 298.

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incidir, concretamente, sobre o patrimônio do acusado na exata medida do que seja necessário para garantir a futura reparação do dano causado pelo delito. Poderá bastar a hipoteca de um ou de alguns bens. 18.3.2.1 O b jeto Os objetos que podem sofrer a incidência da hipoteca legal são todos os imó­ veis que licitam ente integram o patrimônio do acusado.™' Ressalte-se que mesmo o imóvel que seja bem de família poderá ser hipotecado, nos termos do art. 3°, VI, da Lei n° 8.009/1990.®” 1 8.3.2.2 R equ isito O requisito da especialização e registro da hipoteca legal é que “haja certeza da infração e indícios suficientes de autoria”. A expressão “certeza da infração” deve ser entendida no sentido de prova da materialidade delitiva,®" isto é, um juízo de certeza, ainda que provisório, da infração em sua parte objecti.^^^ 18.3.2.3 Legitim ados A legitimação para requerer a especialização e registro da hipoteca legal é, em regra, do ofendido (CPP, art. 134). Embora a lei não o preveja, no caso de o ofendido ser incapaz, o requerimento poderá ser feito por seu representante legal (CC, art. 1.490); no caso de sucessão, poderão fazê-los seus herdeiros (CC, art. 1.489,111); por fim, se o ofendido for a Fa­ zenda Pública, a especialização e registro da hipoteca legal incumbem ao Ministério Público (CPP, art. 142).®™ 18.3.2.4 M o m en to Quanto ao momento em que podem ser requeridos a especialização e registro da hipoteca legal, o art. 134 do CPP mostra-se contraditório, referindo-se ao “indiciado”, 362. Se o imóvel tiver sido obtido ilicitamente, deverá ser objeto de seqüestro (CPP, art. 125) seja ele produto direto ou indireto da infração. 363. O referido dispositivo prevê: “Art. 3° A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: [...] VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens". 364. Espínola Filho (Código..., v. 2, p 397) refere-se a “prova plena, tornando certa a exis­ tência da infração penal". Também para Magalhães Noronha (Curso..., p. 57) “é mister, consequentemente, que o fato esteja demonstrado, seja certa sua ocorrência”. 365. Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 58. 366. Nesse sentido: Magalhães Noronha, Curso..., p. 76; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 59; Ramos, A tutela de urgência..., p. 301.

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mas, ao mesmo tempo, estabelecendo que a medida poderá ser requerida “em qualquer fase do processo". A interpretação correta é considerar cabível a medida somente durante o processo, isto é, depois de oferecida a denúncia ou queixa, nào se admi­ tindo sua aplicação durante o inquérito policial.'«’ Se o legislador assim o desejasse, teria expressamente previsto, como o fez com o seqüestro, cabível “em qualquer fase do processo ou ainda antes de oferecida a denúncia ou queixa” (art. 127). Nâo é isso que consta do art. 134 do CPP, que apenas prevê a possibilidade de requerimento da hipoteca legal “em qualquer fase do processo”. Uma interpretação sistemática também leva à mesma conclusão. O art. 134 do CPP exige, para o registro da hipoteca legal, a “certeza da in/ração e indícios suficientes de autoria”. Ora, do ponto de vista probatório, com a existência de tais elementos, já estará caracterizada ajusta causa para a ação penal, e não há razào para a continuidade do inquérito policial, devendo ser oferecida a denúncia ou queixa. Além disso, se a especialização e registro da hipoteca legal pudessem ocorrer durante o inquérito po­ licial não teria qualquer sentido o arresto prévio à hipoteca e o arresto subsidiário de bens móveis, destinados a serem utilizados exatamente quando ainda não é possível requerer a especialização e registro da hipoteca legal.'«® 18.3.2.5 P rocedim ento O procedimento da especialização da hipoteca legal pode ser assim resumido: (1) petição; (2) nomeação de perito e apresentação do laudo; (3) manifestação das partes; (4) decisão do juiz (CPP, art. 135, §§ l°a 5 °). Como já visto, na petição em que requerer o registro e especialização da hipoteca legal, o ofendido “estimará o valor da responsabilidade civil, e designará e eúim ará o imóvel ou imóveis que terão de fic a r especialmente hipotecados" (CPP, art. 135, caput), devendo a petição estar instruída com as provas ou indicação de provas em que o ofen­ dido se fundar para estimar o valor da responsabilidade, bem como com documento comprobatório da propriedade do imóvel ou imóveis designados para o registro da hipoteca (art. 135, § 1°).'«® O avaliador judicial, e onde não houver, o perito nomeado pelo juiz deverá pre­ ceder ao arbitramento do valor da responsabilidade e a avaliação do imóvel ou imóveis designados (art. 135, caput e parte final, c.c. § 2°). 367. Nesse sentido: Câmara Leal, Comentdrios... v. 1, p. 378; Bento de Faria, Código..., v. 1, p. 199; Pitombo, Do sequestro..., p. 44; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 228; Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 425; Maria Thereza Moura, Medidas assecuratórias..., p. 1513; Saad Gi­ menes, As medidas assecuratórias..., p. 124. Em sentido contrário, admitindo a especialização e registro da hipoteca legal durante o inquérito policial; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 58; Ramos, A tutela de urgência..., p. 183; Polastri Lima, A tutela cautelar..., p. 183; Pacelli de Oliveira, Curso..,, p. 275. 368. Nesse sentido: Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 124. 369. Não basta a simples posse, a despeito de o § 1“ do art, 135 se referir a “imóveis que o responsável possuir".

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Apresentado o laudo, ojuiz ouvirá as partes no prazo de dois dias. Embora o § 3° do art. 133 preveja que as partes serão ouvidas “no prazo de dois dias, que correrá em cartório", a garantia do contraditório recomenda que os prazos não sejam comuns,®®“ e sim sucessivos, com o que se permitirá a retirada dos autos de cartório. Não será a diferença entre dois ou quatro dias, que tomará o incidente mais célere! Poderá o juiz, então, depois da manifestação das partes “corrigir o arbitramento do valor da responsabilidade, se lhe parecer excessivo ou deficiente" (art. 135, § 3°). Em­ bora o dispositivo somente se refira à correção do arbitramento do valor do dano, não fazendo igual determinação quanto à avaliação do imóvel ou imóveis, evidente qúe o juiz não ficará vinculado ao laudo do perito nesse segundo aspecto, como, aliás, não o fica em qualquer perícia (CPP, art. 182), podendo considerar cotft base nos elementos dos autos que seu valor deve ser reduzido ou ampliado.®®' O ofendido não poderá exorbitar, seja estimando um valor superior ao dano sofrido, seja subestimando o valor dos imóveis a serem atingidos pela hipoteca, seja requerendo o registro da hipoteca de mais imóveis do que necessário para assegurar a reparação do dano. Caberá ao juiz verificar se o valor dos bens especializados não excede o valor estimado da responsabilidade. O § 4° do art. 135 do CPP determina que “oju iz autorizará somente a inscrição da hipoteca do imóvel ou imóveis necessários à garantia da responsabilidade", evitando com isso a injustiça de serem onerados mais bens do que o necessário para a satisfação do débito. “Nem menos, nem mais”, como adverte Magalhães Noronha.®®' O arbitramento do valor da responsabilidade realizado na especialização e registro da hipoteca legal é provisório. A liquidação definitiva do valor do dano somente se fará após a condenação transitada emjulgado, quando será cabível novo arbitramento (CPP, art. 135, § 5°), a ser requerido perante o ju iz cível (CPP, art. 143). Contra a decisão que defere ou indefere o registro da hipoteca legal cabe apelação, com fundamento no art. 593, II, do CPP.®®®

18.3.2.6 Finalidade A finalidade da especialização e registro da hipoteca legal é assegurar e fazer valer o direito real de garantia (CC, art. 1.489, III), visando resguardar parte do patrimônio do acusado para a reparação do dano causado pelo delito e, em caráter secundário, para o pagamento da pena de multa e das despesas processuais (CPP, art. 140). Segundo 370. Em sentido contrário, defendendo que o prazo seja comum, cf.: Tomaghi, Comentários..., V. 1, t. II, p. 373. 371. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p 401; Câmara Leal, Com entários..., v. 1, p. 380. 372. Curso..., p. 77. 373. Nesse sentido; Frederico Marques, Elementos..., v. 4, p. 227; Mirabete. Processo Penal, p. 260. Na jurisprudência nesse sentido, e negando expressamente a possibilidade de utilização do agravo de instrumento do CPC, cf.; TRF-3“ Reg., RT 742/730.

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Tomaghi, o artigo estabelece verdadeira “ordem preferencial”. “Primeiro é ressarcido o ofendido e em seguida o terceiro de boa-fé; depois as despesas processuais, vindo após a multa. O saldo é recolhido ao Tesouro Nacional.”*'® Mesmo depois de registrada a hipoteca legal, o proprietário não será desapossado de seu bem imóvel.*'* A hipoteca não transmite ao credor hipotecário nem a posse, nem a propriedade, nem os frutos e rendimentos da coisa.*'® Por outro lado, caso seja oferecida caução pelo acusado, o ju iz poderá deixar de mandar proceder à inscrição (rectius: registro) da hipoteca legal (art. 135, § 6®). Por outro lado, em caso de absolvição transitada emjulgado, a hipoteca deverá ser cancelada, o mesmo valendo para as hipóteses de extinção da punibilidade (CPP, art. 141). J8 .3 .3 A rresto prév io à e s p e c ia liz a ç ã o e registro d a h ip o te c a legal O arresto prévio à especialização e registro da hipoteca legal era originaria­ mente denominado “sequestro” prévio à hipoteca legal. Como já destacado, a Lei n® 11.435/2006 alterou a redação do art. 136 do CPP, passando a denominar tal medida de “arresto”.*" Há duas espécies de arresto: (1) arresto de bens imóveis, prévio à especialização da hipoteca legal (CPP, art. 136); (2) arresto subsidiário de bens móveis (CPP, art. 137). O primeiro tende a ser substituído pelo registro da hipoteca legal, enquanto o segundo permanece como arresto, e, posteriormente, na fase de execução será auto­ maticamente convertido em penhora. O arresto dos bens imóveis, prévio ao registro da hipoteca legal, pocjerá recair sobre o patrimônio lícito do acusado.*'® Assim, sua incidência não fica limitada aos bens ilícitos, sejam eles produto ou proveito de crime, como ocorre com o sequestro. Por outro lado, por ser tal medida cautelar e provisória, visando possibilitar outra medida assecuratória,*'* no caso a especialização e o registro da hipoteca legal, o CPP estabelece um prazo de eficácia. O arresto será revogado, se no prazo de 15 (quinze) dias nâo for promovido o processo de registro da hipoteca legal (CPP, art. 374. Tomaghi, Comentdrios..., v. 1, t. II, p. 364. 375. Nesse sentido: Pitombo, Sequestro..., p. 38; Campos Barros, Processo penal cautelar.., p. 431; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 121, nota n° 486. 376. Tomaghi, Comentários..., v. 1, t. II, p. 369. 377. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 396; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 228; Scarance Fernandes, O papel..., p. 194; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 113. O art. 1.497 do CC estabelece que “as hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas". 378. Nesse sentido: Damásio E. d ejesus. Código..., p. 142. Na jurispmdência: TRF-4“ Reg., AgRg no MS n“ 1999.4.01.022170/PR (RT l l S n i S ) . 379. Por tal motivo, Campos Barros (Processo penal cautelar.., p. 427) considera a medida o art. 136 “uma pré-cautela com relação a hipoteca legal”.

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136)/®“ Além disso, uma vez levantado o arresto prévio, porque não requeridos a es­ pecialização e registro da hipoteca legal, o juiz não atenderá a outro pedido de arresto prévio à hipoteca legal.®®* A finalidade do arresto de bens imóveis prévios à especialização e registro da hipoteca legal é assegurar que tal bem não seja alienado enquanto ainda nào se têm elementos suficientes para se requerer a hipoteca legal.®®* Assim, primeiro se arrestam os bens imóveis, possibilitando que, com o desenvolvimento da investigação, se possam colher os elementos necessários a caracterizar a justa causa para a ação penal, pferecendo-se assim a denúncia ou queixa (CPP, art. 395, caput e III), e, ao mesmo témpo, caracterizando a “certeza da infração e indícios suficientes da autoria”, necessários para se requerer a hipoteca legal, nos termos do art. 134 do CPP. Mesmo assim, isso não afasta a necessidade de que, também para o arresto prévio ao registro e especialização da hipoteca legal, se estime o valor da responsabilidade e o valor dos imóveis, não podendo a constrição ser excessiva.®®' Exatamente por isso, não tem sentido aplicar aos bens imóveis que tenham sido arrestados o regime de depósito do art. 139 do CPP. Se com o registro e especialização da hipoteca legal o proprietário do imóvel não perderá a posse de seu bem, não tem sentido que, durante a medida preliminar de arresto, de curta eficácia temporal, se realize o depósito.'®’

18.3.4 Arresto subsidiário de bens móveis O arresto subsidiário de bens móveis era, originariamente, denominado “seques­ tro” subsidiário de bens móveis. A Lei n® 11.435/2006 alterou a redação do art. 137 do CPP, passando a denominar tal medida de “arresto".'®’ O arresto subsidiário sobre bens móveis segue o mesmo regime do arresto prévio ao registro da hipoteca legal, que recai sobre imóveis do acusado. Hã, porém, um 380. Diante de tal prazo de eficácia, Pitombo (Do seqüestro..., p. 48) afirma que “a posição ancilar desta modalidade de seqüestro [do art. 136 do CPP], em relação à hipoteca legal, surge manifesta”. 381. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 406. 382. Justamente por isso, não é possível concordar com Tourinho Filho (Processo..., v. 3, p. 66) quando conclui que “o pedido somente poderá ser formulado uma vez satisfeitos os pressupostos: a) prova da materialidade do crime; b) existência de indícios suficientes de autoria”. Ora, se tais requisitos já estiverem satisfeitos, não há por que requerer o arresto prévio, já se podendo postular diretamente a especialização e registro da hipoteca legal. 383. Nesse sentido: Espínola Filho, C ódigo..., v. 2, p. 409; Campos Barros, Processo penal cautelar.., p. 433; Tourinho Filho, Processo..., v. 3, p. 66. 384. Nesse sentido: Magalhães Noronha, Curso..., p. 78. 385. Nesse sentido: Espínola Filho, Código..., v. 2, p. 396; Tomaghi, Curso..., v. 1, p. 228; Scarance Fernandes, O papel..., p. 194; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p, 113. O art. 1.497 do CC estabelece que “as hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas".

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requisito específico: o investigado “não possuir bens imóveis ou os possuir de valor insuficiente”.Justamente por isso, trata-se de medida “subsidiária e complementar”™® ao arresto prévio ao registro da hipoteca legal, incidente sobre imóveis. O arresto subsidiário sobre bens móveis somente poderá incidir sobre bens suscetíveis de penhora. Os bens penhoráveis são todos aqueles não elencados nas vedações do art. 649 do CPC. Realizado o arresto subsidiário e complementar de bens móveis do art. 137 do CPP, o proprietário será desapossado da coisa que lhe pertence, que deverá ficar depositada em mãos de terceiros.®®® O art. 139 do CPP prevê o destino dos bens mó­ veis arrestados: “O depósito e a adm inistração dos bens arrestados ficarão sujeitos ao regime do processo civil”. A doutrina é tranquila ao concluir que tal regimejuridico é o dos arts. 148 a 150 do CPC.®®® Ou seja, o bem arrestado deverá ficar sob a guarda e conservação de depositário ou administrador (CPC, art. 148), que fará jus a uma remuneração por seu trabalho, fixada pelo juiz (CPC, art. 149, caput), respondendo, ainda, pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte (CPC, art. 150).®®* Isso não quer dizer, contudo, que, sempre que houver o arresto, será necessário que o bem seja confiado a um terceiro depositário. O proprietário do bem arrestado poderá ficar na posse da coisa constrita,®*“ na qualidade de depositário. Em suma, a interação do regime jurídico do Código de Processo Penal com o Código de Processo Civil permite que o bem objeto do sequestro ou do arresto per­ maneça sob a posse de seu titular, que terá o dever de guarda e conservação sobre o bem. Caso contrário, a guarda ou a posse caberá a um depositário ou administrador, que deverá guardar e conservar o bem, sem poder utilizá-lo. Durante o período em que estiver em vigor a medida, embora tendo íiavido o desapossamento da coisa, o § 2“ do art. 137 do CPP estabelece que “das rendas dos 386. A expressão é de Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 430. 387. Nesse sentido: Campos Barros, Processo penal cautelar..., p. 430; Magalhães Noronha, Curso..., p. 78; Maria Thereza Moura, Medidas assecuratórias..., p. 1509; Saad Gimenes, As medidas assecuratórias..., p. 120, nota n° 481. 388. Nesse sentido: Mirabete, Código..., p. 380; Damásio E. dejesus. Código..., p. 136; Nucci, Código..., p. 340. 389. O mesmo regime está previsto no Novo CPC, respectivamente nos art. 159, art. 160, caput e art. 161. É óbvio que o depositário deverá guardar e conservar a coisa, mas, nunca usá-la. Analisando os deveres do depositário, Barbi (Comentários..., v. 1, t. II, p. 607) ex­ plica que: “no exercício de sua função de guarda e conservação, cabe-lhe manter a coisa depositada, sem usá-la em interesse próprio ou alheio, receber rendimentos do imóvel, se estiver arrendado, pedir ao juiz a alienação judicial do bem, se de fácil deterioração, ou se exigir grandes despesas para sua guarda, nos termos do art. 1.113”. 390. Nesse sentido: Pontes de Miranda, Comentários..., t. 11, p. 431. Em sentido contrário, posiciona-se Espínola Filho (Código..., v. 2, p. 411), ao comentar o art. 139 do CPP, afir­ mando não poder “permitir-se a um individuo, réu num processo, por infração penal, ficar como depositário de bens, que lhe são sequestrados, e só podendo aceitar-se seja o depósito confiado ao terceiro".

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bens móveis poderão ser fornecidos recursos arbitrados pelo Juiz, p ara a manutenção do indiciado e de sua fam ília". Por outro lado, tratando-se de coisas fungíveis e facilmen­ te deterioráveis (por exemplo, alimentos perecíveis), o § 1° do art. 137 possibilita a alienação antecipada, em leilão, na forma do art. 120, § 5°, do mesmo Código. 18.3.5 Da a lien a ç ã o a n tecip a d a 1 8 .3 .5 .1 F inalidade e h ip ó te s e d e ca b im en to A alienação antecipada nâo é uma novidade no sistema jurídico brasileirO; Tal medida surgiu entre nós, na disciplina especial dos crimes de droga, com a Léi n° 9.084/1999, que alterou o art. 34 da Lei n° 6.368/1976. Postçriormente, o instituto foi mantido, com poucas diferenças, na Lei n° 10.409/2002. A atuaf Lei de Drogas, Lei n° 11.343/2006, tratou da alienação antecipada de bens sujeitos à constrição cautelar no art. 62 e foi a grande fonte inspiradora do regime especial nos crimes de lavagem de dinbeiro, previsto no art. 4.“-B da Lei n° 9.613/1998, acrescido pela Lei n° 12.683/2008. Agora, com a Lei n° 12.694/2012, a alienação antecipada foi inserida no regime geral do Código de Processo Penal. O novo art. 144-A do CPP, acrescido pela Lei n° 12.694/2012 prevê a alienação antecipada dos bens sobre os quais tiver incidido medida cautelar patrimonial: o caput do referido prevê a finalidade e as hipóteses em que cabe a alienação antecipada. O escopo da medida é a preservação do valor dos bens. Por outro lado, quanto às situações ou bipóteses que admitema alienação, sempre inspiradas pelo escopo mencionado, a lei prevê e admite a medida extrema quando os bens “estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação”; ou quando bouver “dificuldade para sua manutenção”. O conceito de alienação, quando o bem estiver sujeito “a qualquer grau de deterioração ou depreciação”, é amplíssimo e necessita de interpretação restritiva. Deterioração é ação, processo ou resultado de algo ou alguém que se deteriora. De­ teriorar, por sua vez, significa: tomar(-se) pior; sofrer transformação que corrompa a qualidade original; estragar. Não seria exagero afirmar que praticamente todas as coisas da natureza, com o simples passar do tempo, se deterioram! Ainda mais que a lei se contenta com “qualquer grau” de deterioração. Também a palavra depreciação tem sentido bastante amplo: ação ou resultado de depreciar; ou, diminuição de preço ou valor. Depreciar quer dizer: “reduzir preço ou valor de, desvalorizar”. Ou seja, qualquer redução de preço ou valor se subsome a bipótese legal. E, mais do que isso, tal situação nada mais é do que o reverso da medaIba, em relação ao escopo da medida de alienação antecipada, qual seja, preservação do valor dos bens. Sem uma interpretação bastante restrita do caput do art. 144-A do CPP, pratica­ mente qualquer bem constrito poderá ser antecipadamente alienado, em uma des­ proporcional e injustificada restrição ao direito de propriedade de alguém que ainda é presumido inocente.

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Não hã que se admitir, por exemplo, que nos casos de bens infungíveis, qualquer grau de deterioração ou depreciação sej a suficiente para a alienação. Basta imaginar a casa onde se mora ou trabalha, computadores, automóveis, joias entre tantos outros bens que, em regra, perdem valor com o passar do tempo. A segunda hipótese que autoriza a alienação antecipada é a dificuldade para a manutenção da coisa, mas, sempre, com vista ao escopo de preservação do valor do bem. Consequentemente, num caso de manutenção difícil, que não haja risco de perda de valor da coisa, não há porque se proceder à alienação antecipada. Pense-se, por exemplo, em uma coleção de quadros ou esculturas. Ainda que haja dificuldade para a sua manutenção, pela delicadeza dos materiais, se o passar do tempo não faz diminuir o preço de tais bens, não há porque aliená-los, mormente por seu caráter infungível. Logo, as situações de alienação antecipada, quais sejam, possibilidade de deterio­ ração ou depreciação bem, de um lado, e dificuldade para sua manutenção, de outro, devem ser interpretadas em vista do objeto de preservação do valor do bem constrito. Uma depreciação normal pelo tempo, que nào leve a relevante depreciação do valor, não autoriza a alienação antecipada. Da mesma forma, dificuldades de manutenção do bem, que não levem ao comprometimento de seu valor por má ou inadequada condição de conservação, também não justifica a alienação antecipada.

18.3.5.2 Procedimento O procedimento para a alienação antecipada de bens objeto de medidas cautelares está disciplinado nos §§ 1“ a 6" do art 144-A do CPP O CPP não disciplina o procedimento de alienação antecipada de forma detalhada, pelo que o interprete terá que se socorrer, subsidiariamente, das regras especíàis que disciplinam tal instituto na Lei de Lavagem de Dinheiro e na Lei de Drogas. Não há previsão de como deve ser feito e autuado o pedido. Segundo o art. 4.“-A, caput, da Lei n° 9.613/1998, o pedido de alienação antecipada deve ser feito mediante petição, por escrito. Tratando-se de procedimento incidental, a lei prevê que haverá autuação em apartado e que os autos tramitem em separado do processo principal (art. 4-A, caput). Quanto à legitimidade para requerer a medida, segundo o caput do art. 4-A, acrescido pela Lei n° 12.683/2012, o pedido poderá ser formulado pelo Ministério Público ou por solicitação (rectius: requerimento) da “parte interessada”. A expressão “parte interessada” pode se referirão acusado, ao terceiro em nome de quem estava o bem e, até mesmo, ao ofendido que tenha requerido a medida as­ securatória. Nào se descarta a possibilidade de o próprio titular do bem que, normalmente, será o acusado, requerer a alienação antecipada. Tal medida - que de forma alguma implicará assunção de culpa - pode ser uma forma de preservar seu patrimônio, mi­ nimizando os danos materiais que poderá sofrer, seja em caso de condenação, seja na hipótese de absolvição. Imagine-se, por exemplo, que a constrição recaia sobre um

Medidas cautelares

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veículo relativamente novo e com poucos quilômetros rodados. Os longos anos de tramitação do pròcesso, que normalmente se estenderá por períodos mais extensos pela natural complexidade da causa, farão com que, quando a sentença transitar em julgado, o valor do bem seja muito pequeno. Assim, tanto no caso de condenação, em que haverá o dever de reparar o dano, quanto na hipótese de absolvição, em que o acusado terá direito ao levantamento do bem, o aludido automóvel terá um baixo valor de mercado. Já se tiver sido alienado antecipadamente, o valor estará preserva­ do, tendo sido depositado em instituição financeira, e acrescido de remuneração da conta judicial. ■ Também poderá requerer a alienação antecipada, na coridição de “parte interes­ sada”, o terceiro em relação ao processo que tenha bem de sua titularidade constrito por alguma medida patrimonial, sob o fundamento de que se trata de bem “existente em nome de interposta pessoa”. Ainda que o proprietário não tenha sido denunciado e não seja parte da ação penal condenatória, o será da medida cautelar patrimonial e, portanto, terá legitimidade para pleitear, em relação à medida assecuratória, o que for necessário para defesa de seu direito de propriedade. Finalmente, o ofendido do crime tem legitimidade para requerer a alienação an­ tecipada. Mais do que isso, poderá até mesmo ter requerido a própria medida cautelar patrimonial, não se lhe podendo negar o direito de requerer a alienação antecipada. A lei não define o momento da persecução penal em que se dará a alienação ante­ cipada.®*' Obviamente, deverá ser posterior ao da efetivação da medida assecuratória e anterior ao trânsito emjulgado. Se a medida for daquelas somente utilizáveis no curso do processo, como a es­ pecialização e registro da hipoteca legal, evidente que a alienação antecipada não se dará durante a investigação .Já no caso de medidas que possam ser decretadas no curso do inquérito policial ou investigação preliminar, quais sejam, o sequestro, o arresto e a busca e apreensão, coloca-se mais intensamente o problema de admitir ou não a alienação antecipada ainda no curso do processo. Via de regra, nào se deve admitir uma medida tão gravosa e irreversível, antes de haver denúncia oferecida. Se não há nem mesmo justa causa para a ação penal - se houvesse, certamente já haveria denúncia - como admitir que possam ser alienados, antecipadamente, os bens dos investigados? Mais do que isso, no caso do sequestro e do arresto subsidiário, se tais medidas forem tomadas no curso do inquérito, sua eficácia estará temporalmente limitada, e cessará caso a denúncia nâo seja oferecida: em 60 dias, no caso de sequestro (art. 1 3 1 ,1, do CPP), e em 15 dias, no caso do arresto subsidiário (art. 136doCPP). Por tudoisso, não éd ese admitir a alienação antecipada no curso do inquérito. 391. Seria melhor, nesse ponto, seguir o modelo da Lei n° 11.343/2006, cujo art. 62, § 4°, prevê: “Após a instauração da competente ação penal, o Ministério Püblico, mediante petição autônoma, requererá ao juízo competente que, em caráter cautelar, proceda à alienação dos bens apreendidos...".

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P r o c e ss o P en al

Mesmo no caso de busca e apreensão, que, em tese, se for decretada no curso do inquérito policial, não tem prazo legal de eficácia com vistas ao oferecimento da denúncia, não se admite que a medida se prolongue indefinidamente no tempo.**' Sobre o conteúdo de tal requerimento, novamente a lei é silente. Por analogia, deve-se aplicar ao § 1° do art. 4°-A da Lei n° 9.613/1998 que exige a relação de todos os bens, “com a descrição e a especificação de cada um deles, e informações sobre quem os detém e local onde se encontram”. É necessário que o pedido individualize e especifique todos os bens cuja aliena­ ção antecipada se requer, devendo indicar sua natureza, características, fabricante, modelo, número de série etc. Nào será suficiente a simples referência a “todos os bens aprendidos constante do auto de fls. x ”. Cada bem deverá ser descrito e individualizado. Assim, por exemplo, no caso de imóveis, deve se indicar a localização, o proprietário, o número da matrícula e o cartório em que está registrada; em se tratando de veículo, deve se especificar o seu proprietário, a marca e modelo, a placa e o ano de fabricação, além do número do Renavam. No caso de apreensão ou seqüestro de dinbeiro, o valor deve ser individualizado e especificado no auto de apreensão ou de seqüestro, devendo permanecer depositado •em conta judicial destinada para tal fim (CPP, art. 144-A, § 4°). Evidente que não tem sentido cogitar de alienação antecipada de dinheiro. Já em se tratando de apreensão de moeda estrangeira, embora não seja possível propriamente sua alienação, pode ser requerida a sua conversão em numerário nacional. A mesma providência deve ser tomada no caso de títulos, valores mobiliários ou cbeques emitidos como ordem de pagamento (art. 144-A, § 4°). « Não bá previsão de intimação das partes sobre o laudo de avaliação. t