Pontes para o Infinito - O lado humano das matemáticas

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Pontes para o Infinito - O lado humano das matemáticas

Table of contents :
O MEDO DA MATEMÁTICA
Introdução....................................................................... 9
Parte I - Fantasiando
UM CERTO TESOURO
Lógica e demonstração ............................................................ 19
A LOCALIZAÇÃO DO PONTO DE FUGA
Limite e cálculo ................................................................. 31
PENSAMENTO IRRACIONAL
Continuidade e números............................................................ 41
ALÉM DO INFINITO
Teoria cantoriana dos conjuntos e números transfinitos ........................... 51
IDEIAS SINGULARES
Infinidades naturais ............................................................. 65
INVENÇÃO DA REALIDADE
Aplicação da matemática abstracta................................................. 11
SIMETRIA ABSTRACTA
Teoria das grupos ................................................................ 83
UM REINO DE MUITAS POSSIBILIDADES
Dimensão.......................................................................... 91
MUITO BARULHO PARA NADA....
Zero e o conjunto vazio ......................................................... 103
Parte II - Compromisso
NADA COMO O SENSO COMUM
Geometria não euclidiana ........................................................ 115
MATÉRIA DE FÉ
Teorema de Gödel ................................................................ 125
Parte III - Optimização
A BOLA DE CRISTAL FOSCA
Teoria das probabilidades e estatística
ENTRE AS DAMAS E O XADREZ
137
Teoria dos jogos de dois adversários ............................................ 147
O APELO DA SELVA
Teoria dos jogos de três adversários ............................................ 153
IMAGINAÇÃO ELÁSTICA
Topologia
A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA
161
Teoria das catástrofes .......................................................... 169
DA GUERRA E DA PAZ
Análise combinatória ............................................................ 183
Cronologia ...................................................................... 191
Glossário ....................................................................... 195
Bibliografia .................................................................... 199

Citation preview

IVEMOS num país em que o sistema educativo, em vez de revelar · vocações e desenvolve'r capaçidades, · quase sempre desmotiva a· curiosidade, castiga o espírito crítico, não é capaz dê · reforçar a natural alegria de descobrir e. aprender. Também você que sempre detestou a • matemática,' isto é, que sempre teve uma ideia errada sobre o que a mateiná-· tica podia ser, não poderá deixar de encantar-se com este conjunto de ensaios onde, numa linguagem admiravelmente coloqui_ al, se transmitem informações centrais sobre teorias complexas . . Abrangendo um leque que .inclui, entre outros, temas como as simetrias. cósmicas, a antimatéria, a geometria plana e os números racionais, Michael . Guillen ultrapassa a· fronteira dos quadros cheios de equações para cond_uzir · · . o leitor a uma dimensão desconhecida do pensamento matemático. Nessa dimensão, onde os modos de pensar o espaço, o tempo e a realidade· alterarão, decerto, _a nossa compreensão do quotidiano, o matemático é 'um . · «artista da imaginação», cujos triunfos e contrariedades se revelam em cada um destes ensaios. Pontes para o Infinito é uma obra cheia de imaginação e rigor escrita por um especialista que é câpaz de tornar absorvente mesmo poético aquilo que, antes., poderia parecer impenetrável e prosaico . ..

V

e





Michael Guillen é licenciado em Física, Matemática e Astronomia pela Universidade de Cornell. Ensina matemática e física na Universidade de Havard e colabora como perito científico no noticiário da cadeia .de televisão CBS.

CIÊNClf.\ ABERTA 15

MICHAEL GUILLEN

Pontes para o Infinito O Lado Humano das Matemáticas

Tradução de JORGE DA SILVA BRANCO

gradiva

Titulo original inglês: Bridges to lnfinity © 1983 by Michael Gui//en Tradução de: Jorge da Silva Branco Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira Capa: Armando Lopes Composição, impressão e acabamento: Tipografia Guerra/ Viseu Reservados todos os direitos para Portugal a: Gradiva - Publicações,

L,tla

Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -Telefs.: 674067/8 1300 Lisboa 1.8 edição: Março, 1987

Para os meus pais, com amor

AGRADECIMENTOS Entre os muitos amigos e colegas para quem, duma maneira ou de outra, fiquei em divida ao escrever este livro desejo agradecer muito particularmente a Jane Livermore, Lars Wahlbin, Iain Johnstone, Richard Liboff, Warren Coates, Norma Bowles, Robin Raphaelian, Linda Greer French, Mary Nadler e Joyce Boorn. Por não regatearem oportunas criticas ou elogios, conforme o caso, e pelo enorme esforço despendido em prol deste livro, vai o meu gn:nde reconhecimento para Sallie Gouverneur, agente literário, e Janice Gallagher, editor. Muito especialmente, desejo agradecer a Laurel Lucas, cujos afectuosos cuidados, úteis comentários e esforços sobre-humanos na preparação do manuscrito me possibilitaram escrever um livro melhor do que aquele que, sem o seu auxilio, eu teria conseguido escrever.

Introdução

O MEDO DA MATEMÁTICA O homem é formado por corpo, mente e imaginação. O corpo é defeituoso, a mente é mentirosa, mas a imaginação fez dele um ser notável. Em algumas centúrias, a imaginação humana tornou a vida neste planeta uma intensa prática de todas as mais belas energias. John Masefield, Shakespeare and Spiritual Life

A maior parte das razões que me levaram a escrever este livro podem ser referidas a uma ocorrência do século xvm, no dia em que o grande matemático alemão Leonhard Euler se encontrou com o eminente intelectual francês Denis Diderot, ateu convicto, a quem apresentou uma prova matemática, espúria, da existência de Deus. Segundo parece, Euler aceitara um convite de Diderot, que ao tempo se encontrava na corte do czar russo. No dia da sua chegada, Euler procurou Diderot e proclamou: «Monsieur, (a + bº)/n = X, donc Dieu existe; répondez!» [Cavalheiro, (a + bº)/n = X, portanto, Deus existe. Responda!] Anteriormente, Diderot tinha já eloquente e vigorosamente refutado numerosos argumentos filosóficos para a existência de Deus, mas neste momento, incapaz de compreender o significado da equação matemática que Euler lhe apresentara, sentiu-se intimidado e não proferiu palavra. 9

PONTES PARA O INFINITO

Esta história é exemplo típico das relações entre matemáticos e não matemáticos na nossa sociedade - relações que, na realidade, não existem mesmo. Não é meu propósito censurar quem quer que seja em particular pelo facto de a matemática ser tão largamente incompreendida, mas apenas lembrar a todos nós que ela é incompreendida. O mutismo de Diderot ilustra bem a reacção da maior parte das pessoas perante a matemática - incluindo pessoas tão inteligentes como Diderot - e é o sintoma primário da velha maleita conhecida actualmente como o medo da matemática. O medo da matemática é aquele pavor patológico e a humilhação confusa que a matemática provoca em centenas de milhões de pessoas, reacção que tem sido uma constante ao longo da história. Mas, enquanto a doença praticamente não mudou, as consequências para as suas vítimas, essas sim, mudaram drasticamente. Para Diderot, isso significava a incapacidade de avaliar, de per si, o singular e complexo papel que a matemática desempenha em todos os assuntos humanos, incluindo a questão da existência de Deus. Mas, para um cidadão dos nossos dias, sofrer dessa doença implica que, além dos males que afligiam Diderot, se seja privado de qualquer conhecimento profundo do nosso complexo mundo tecnológico. E, sem esse conhecimento, não passamos de espectadores do que acontece nesse mundo. É difícil sobrestimar o valor que os números têm na nossa descrição da realidade física e metafísica e, ao invés, subestimar a incapacidade que um doente do medo da matemática tem para apreciar em pleno essas mesmas descrições. Galileu exprimiu uma vez a importância dos números para as ciências físicas dizendo que o «livro da natureza» estava escrito na linguagem da matemática. E a cabala, do judaísmo, mais não é do que um dos muitos exemplos do enorme significado místico que a maior parte das religiões atribuem aos números. 10

INTRODUÇÃO

O medo da matemática, tal como a senilidade, é, na verdade, não um, mas o conjunto de vários males, cada um dos quais proveniente de determinada ideia errada acerca da matemática. Os mais importantes deles, ilustrados pelo confronto de Euler e Diderot, serão, consoante espero, prontamente reconhecidos por quem quer que leia este livro. Em primeiríssimo lugar, o medo da matemática deriva do desconhecimento dos limites da mesma matemática. Sem dúvida, Diderot ficou muito atrapalhado com a interpelação de Euler, porque ignorava que a matemática ainda não se tinha lançado sequer na abordagem dos problemas do infinito, quanto mais dos de Deus. Como se diz no ensaio «Atrás do infinito», foi só para os finais do século XIX que o matemático alemão Georg Canter formulou os métodos que nos permitem aclarar a natureza do infinito e do que está por detrás dele. Isto soa como uma grande proeza e foi na realidade, como foi também o primeiro elo duma cadeia de acontecimentos discutida no ensaio inicial do livro, «Um certo tesouro», e que revelou aos matemáticos algumas das deficiências inerentes à matéria da sua especialidade, já que até então os matemáticos acreditavam piamente na capacidade infalível e ilimitada da matemática de definir a verdade logicamente. As imperfeições e deficiências postas a descoberto serviram, em última análise, para evidenciar os atributos humanos da matemática, ao revelar não somente as suas fraquezas, mas também a persistência e o optimismo com que os matemáticos modernos lutam no intuito de ultrapassar as limitações. As mesmas imperfeições servem ainda para dividir a história da matemática em períodos que denomino, neste livro, de «Fantasiando», «Compromisso» e «Optimização», os quais correspondem, respectivamente, aos tempos antes, dur~te e depois da revelação, decorrida entre o meio do século passado e o começo do actual. De acordo com esta divisão, a secção «Fantasiando» refere-se às matérias elaboradas quando ainda se

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PONTES PARA O INFINITO

acreditava na infalibilidade da matemática. A secção «Compromisso» inclui um par de ensaios em que se discutem os dois mais destacados incidentes que mudaram a imagem até então existente da matemática. Finalmente, a secção «Optimização» é formada por ensaios sobre diversos tópicos formulados em grande parte no nosso século, com os matemáticos já compenetrados das fraquezas da sua arte. Convido o leitor a detectar, em cada ensaio, o respectivo quadro mental particular dos matemáticos. De certo modo relacionada com o desconhecimento das extremas limitações da matemática, temos também a grande confusão que se faz sobre o que ela é e não é, confusão que igualmente contribui para a criação do medo da matemática. Diderot ter-se-ia sentido muito melhor no encontro com Euler se ao menos soubesse que a matemática não é uma ciência porque não é capaz de provar ou negar a existência de objectos reais. De facto, o que aos matemáticos verdadeiramente interessa é que as suas invenções sejam lógicas, e não realistas. Isto não quer dizer que as invenções matemáticas não correspondam a objectos reais. Assim acontece na maior parte dos casos, se não em todos. Com efeito, a coincidência entre as ideias matemáticas e a realidade natúral é tão extensa e tão bem documentada que merece uma explanação. Não esqueçamos, no entanto, que tal coincidência não resulta de qualquer esforço dos matemáticos para serem realistas - bem ao invés, as suas ideias são frequentemente muito abstractas e de início dificilmente se lhes descortina qualquer correspondência com o mundo real. O que acontece é as ideias matemáticas acabarem por ser aplicadas, com êxito, na descrição de fenómenos reais, como veremos com algum pormenor no ensaio «Invenção da realidade». A maior parte dos pensadores, ao debruçarem-se sobre esta notável concatenação entre os mundos da matemática e da realidade, consideram, como o fez Galileu, que isto ê uma

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INTRODUÇAO

indicação da base matemática da natureza. Deste modo, porque os matemáticos falam a linguagem da natureza, seria de esperar que o que eles dizem usualmente nos traga, quando sem intenções reservadas, algum conhecimento da realidade. A minha explicação pessoal da referida coincidência supõe que a imaginação humana é literalmente um sexto sentido. De acordo com isto, o facto de as ideias matemáticas se tomarem com tanta frequência realistas deve-se simplesmente a elas não serem apenas invenções, mas também observações. Creio que percebemos a realidade com a nossa imaginação, da mesma maneira como o fazemos com os outros cinco sentidos, sendo a coincidência entre o mundo real e as percepções deste sexto sentido semelhante à que existe entre o mesmo mundo real e as percepções sensoriais da vista, ouvido, paladar, tacto e olfacto. Ao contrário dos demais cientistas, que observam a natureza por intermédio de todos os cinco sentidos, os matemáticos usam quase exclusivamente o sentido da imaginação. Isto é, os matemáticos estão tão familiarizados com o sexto sentido como os músicos estão com os sons, os gastrónomos com os paladares e os aromas e os fotógrafos e cineastas com a vista. Esta comparação sugere ainda que os matemáticos são artistas da imaginação, tal como os músicos, os gastrónomos, os fotógrafos e os cineastas, nos respectivos domínios sensoriais. Através das suas singulares criações, os matemáticos dão-nos informações da realidade sem a intenção, ou a capacidade, de provar que algo existe ou não. A última confusão acerca da matemática, ilustrada pela reacção de Diderot à enigmática questão de Euler, é na verdade tão comum entre os matemáticos como entre os não matemáticos e consiste na suposição de que a matemática só pode ser convenientemente expressa em termos de símbolos. Esta noção errada tem conduzido numerosos matemáticos a desdenhar, por fúteis, todos os esforços para explicar na linguagem ordinária os resultados matemáticos e leva igualmente os não matemáticos a 13

PONTES PARA O INFINITO

perderem a esperança de virem algum dia a compreender a matemática. Na verdade, já de há muito que a maior parte das pessoas se convenceram definitivamente de que nunca saberão o que quer que seja de matemática. De todos os aspectos do medo da matemática que descrevi, este último em particular poderia facilmente ser eliminado se os matemáticos se dispusessem a uma mudança de atitude, mas, triste é dizê-lo, muitos deles ainda pensam como o matemático inglês do nosso século G. H. Hardy, o qual escreveu no seu livro A Matematician's Apology que a explicação da matemática em termos da linguagem vulgar era actividade para mentes de segunda ordem. Os que fazem matemática devem desprezar os que explicam matemática aos outros - presumivelmente Hardy considerava tais esforços como uma parva perda de tempo, antecipadamente votada ao fracasso. Com o risco de os meus colegas considerarem a minha mente como de segunda ordem, escrevi este livro porque acredito, como o eminente matemático Bernhard Riemann, que é possível levar a uma audiência de não matemáticos o conteúdo conceptual da matemática. Aquando da sua admissão como académico na agora famosa Universidade de Gotinga, Riemann apresentou um trabalho sobre um tópico altamente técnico - os fundamentos da geometria - sem nele incluir uma única equação. A sua oração, aguardada com a maior expectativa por toda a Universidade, teve um êxito retumbante. Foi com o exemplo de Riemann sempre em mente que escrevi os presentes ensaios em inglês vulgar, sem recorrer a equações. Isto não implica de modo algum que o tenha feito por condescendência. Procurei, sim, escrever de modo que tanto Diderot como Riemann os aprovassem, por muito modestos que os ensaios sejam. Além de fornecer os recursos necessários para vencer o medo da matemática, estes ensaios, segundo espero, ainda despertarão 14

INTRODUÇÂO

em alguns dos leitores a mesma excitação com a matemática que eu sinto desde criança. Ao le~- estes escritos, o leitor possivelmente concordará comigo em que a imaginação dos matemáticos se aplica tão frutuosamente às questões da vida como às da aritmética ou da geometria. Se assim acontecer, então consegui vencer na tentativa de debelar ainda outra confusão acerca da matemática. Confusão esta que consiste em considerar a matemática como anti-septicamente racional e, daí, ter ela pouca ou nenhuma relevância para os caracteristicamente irracionais comportamentos e actividades dos seres humanos, convicção expressa por Aldous Huxley no seu livro Views of Holland: «Aprendemos que nada é simples e racional, excepto o que nós próprios inventámos; que Deus não pensa como Euclides nem como Riemann.» Como defendo, por exemplo, nos ensaios «Entre as damas e o xadrez», «O apelo da selva», «Simetria abstracta» e «Nada como o senso comum», uma compreensão da matemática pode auxiliar-nos de modo inestimável nas nossas tentativas multidisciplinares para compreender -~- natureza e a existência humanas. Huxley e os que pensam como ele não deram atenção à possibilidade de os matemáticos não serem meros inventores de ideias antitéticas das complexidades da vida. Na realidade, eles podem olhar a vida mediante um sentido incisivo, um sentido capaz de perceber coisas que os outros cinco não podem, um sentido que Diderot, com todo o seu brilhantismo e perspicácia, nunca desenvolveu, embora pudesse tê-lo feito. Porque a imaginação dos matemáticos pode ser cultivada e não requer dotes especiais de inteligência, apenas o desejo de conhecer os caminhos da matemática e dos matemáticos.

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PARTE I

FANTASIANDO

Lógica e demonstração

UM CERTO TESOURO A demonstração é um ídolo aos pés do qual os matemáticos se torturam a eles próprios. Sir Arthur Eddington

São raras as pessoas que não preferem a certeza à dúvida, mas ainda mais raras são as que logram adquirir certezas. É como se a certeza fosse um tesouro escondido e desejássemos possuir um mapa que nos levasse até ele. À volta do ano 300 a. C., os matemáticos pensavam ter encontrado um tal mapa nas linhas mestras da lógica de Aristóteles. Euclides seguiu essas linhas ao provár os teoremas da geometria (estudo das formas), aclamados nos 2000 anos seguintes como modelos de certeza. Contudo, durante a fase final do século XIX, quando os matemáticos, guiados ainda pelos mesmos princípios da lógica aristotélica, tentaram provar os teoremas da aritmética (estudo dos números), foram descobrir um tesouro de paradoxos em vez das certezas que buscavam: a lógica de Aristóteles era defeituosa. Esta revelação dividiu os matemáticos em várias escolas de pensamento, cada uma das quais teimando possuir o tal mapa que permitiria a todos recuperar um infalível padrão de demonstração. Este divisionismo foi ultrapassado em 1931, ainda por uma outra revelação, com a qual foi decretado não 19

PONTES PARA O INFINITO

haver nenhum caminho concebível para obter certezas completas em matemática. Tinha esta sentença um tal carácter de definitiva que desencorajou parte do grémio dos matemáticos, enquanto inspirava outros a procurar um desvio que permitisse rodear o obstáculo - sempre sem qualquer êxito. E, assim, a maior parte dos matemáticos aprenderam a aceitar a dúvida como urna componente familiar do seu trabalho, conquanto alguns se revelem ainda muito relutantes e acalentem a esperança de recuperar a certeza que em tempos se acreditou ser apanágio da matemática. A onda da certeza matemática teve o seu ponto mais alto cerca de 300 a. C., com o aparecimento de Organon, de Aristóteles (organon, palavra latina que significa «instrumento da razão»), e dos Elementos, de Euclides. Nesse tempo acreditava-se que o Organon oferecia o caminho para a certeza lógica, enquanto os Elementos eram o tesouro da própria certeza. Na sua obra, Aristóteles reduziu os até então mal definidos processos do raciocínio dedutivo a 14 regras e alguns cânones, pelos quais as conclusões podiam ser derivadas apropriadamente das hipóteses. Entre os cânones incluía-se a lei da identidade (qualquer coisa é idêntica a ela própria), a lei da contradição (nada pode simultaneamente ser e não ser) e a lei do terceiro excluído (qualquer coisa é verdadeira ou falsa, não há nenhuma terceira possibilidade). Os cânones pretendiam exprimir verdades que a maior parte de nós consideramos do senso comum, enquanto as regras eram o resultado do meticuloso estudo dos silogismos feito por Aristóteles. Um silogismo é um exercício, em três passos, do raciocínio dedutivo com a forma seguinte: (se) Todos os homens são mortais (e se) Sócrates é homem (então) Sócrates é mortal 20

UM CERTO TESOURO

As duas primeiras afirmações são as premissas e a terceira é a conclusão, que, como Aristóteles realçou, «se segue necessariamente» às premissas. Podemos pôr em dúvida as premissas, como o mesmo Aristóteles explicou, mas, se as regras do raciocínio dedutivo tiverem sido respeitadas, não pode haver quaisquer dúvidas sobre a conclusão. Por exemplo, podemos discutir sobre a veracidade das premissas Todas as pessoas felizes são amáveis e

José é uma pessoa feliz, mas não se pode discutir que destas premissas se segue necessariamente que José é amável. É precisamente a isto que chamamos certeza lógica e, porque tudo era afirmado em termos dum silogismo arquétipo, as regras lógicas de Aristóteles foram largamente entendidas como guias para se alcançar a certeza. (Mais tarde, os lógicos medievais acrescentaram cinco novas regras às catorze originais.) Na sua obra magna os Elementos, Euclides seguiu os princípios do raciocínio dedutivo para deduzir centenas de teoremas da geometria a partir somente de dez hipóteses, que eram uma mistura de senso comum (duas coisas iguais a uma terceira são iguais uma à outra) e asserções plausíveis acerca de pontos, linhas e planos matemáticos (existe sempre uma linha recta que passa por dois pontos quaisquer). Os matemáticos podiam, e assim de facto fizeram, pôr em dúvida algumas das premissas euclidianas, mas, como Aristóteles tinha demonstrado, era impossível duvidar das conclusões. Todos os teoremas de Euclides eram argumentos da forma Se ... então, deduzidos de acordo com as regras da lógica. Quem acreditasse na infalibilidade das regras de Aristóteles era compelido a acreditar serem os teoremas de Euclides modelos de certeza lógica, qualquer que fosse a sua opinião sobre as premissas. 21

PONTES PARA O INFINITO

Durante mais de 2000 anos depois do primeiro aparecimento do Organon e dos Elementos, tanto os matemáticos como os filósofos, cientistas e literatos acreditavam que na lógica de Aristóteles e no raciocínio dedutivo tinham um meio de obter toda a segurança num vasto conjunto de matérias. Durante o século XIII, o escol.:. tico italiano Tomás de Aquino serviu-se do raciocínio aristotélico para corroborar a veracidade de pontos em matéria de fé, incluindo a existência de Deus. O tomismo, como passou a ser designada esta síntese do aristotelismo e do cristianismo, era .tão influente que o papa Leão XIII publicou em 1879 uma encíclica em que o declarava a filosofia oficial da igreja católica romana. Outra ardente declaraçà0 de fé na infalibilidade do raciocínio dedutivo foi a decisão de numerosíssimos matemáticos, nos finais do século XIX, de fazerem para a aritmética o que Euclides fizera para a geometria. Tinham como propósito reformular a salgalhada de resultados aritméticos, acumulados durante séculos, encaixando-os num qualquer formato lógico. Muitos daqueles resultados tinham sido aceites sem demonstração, sobretudo por terem todas as aparências do senso comum. Por exemplo, ninguém tivera alguma vez a ideia de pôr em dúvida a lei da tricotomia, que afirma que qualquer número ordinário ou é zero, ou é positivo, ou é negativo. Esta lei era olhada como tão indiscutível como aqueloutra que diz que qualquer momento no tempo pertence ou ao passado, ou ao presente, ou ao futuro, e, por conseguinte, ninguém iria imaginar que ela pudesse ser falsa. Ela de facto não é falsa, mas o caso é que, passados já cem anos, os matemáticos ainda não conseguiram prová-la, tal como acontece com numerosas outras verdades aritméticas. Só agora a velha indiferença deu lugar a um apetite esfomeado de aquisiyão da certeza lógica em matérias de aritmética. Aqueles matemáticos esperavam poder realizar uma pesquisa rotineira segundo os moldes euclidianos, mas, na verdade, isso não foi mais do que o começo de fútil caçada a um tesouro inexistente. 22

UM CERTO TESOURO

Foi o matemático alemão Gottlob Frege um dos primeiros a declarar ter terminado a tarefa. Trabalhara desde 1893 até 1902 para derivar centenas de teoremús da aritmética a partir dum punhado de hipóteses e o resultado tangível do seu labor foi um monumental tratado em dois volumes, Grundgesetze der Arithmetik ( Leis Fundamentais da Aritmética). As premissas, como as de Euclides, podiam ser postas em dúvida, mas as conclusões tinham sido obtidas de acordo com os princípios do raciocínio dedutivo, consistentes, ainda que tecnicamente não idênticos, com os de Aristóteles. Portanto, o autor e os seus contemporâneos tinham todas as razões para considerar as Grundgesetze um modelo de certeza, tanto quanto os próprios Elementos. Não havia quaisquer motivos para pensar de outro modo, pelo menos até 1902, ano em que Frege dava os últimos retoques ao seu trabalho. Nesse mesmo ano, o matemático-filósofo inglês Bertrand Russell declarou que, no manuscrito do segundo volume, detectara um paradoxo, uma falha lógica, paradoxo que, mais do que um mero descuido da parte de Frege, era uma falha de lógica dedutiva. Talvez ninguém pudesse então dizer qual a envergadura da falha ou o que seria necessário para a eliminar, mas foi o bastante para que Frege reconhecesse que ela viciava todo o seu esforço de dez anos, levando-o a acrescentar um melancólico pós-escrito ao segundo volume: «Um cientista dificilmente encontrará algo de mais indesejável do que ser forçado a voltar ao princípio exactamente quando julga o trabalho já concluído, posição em que fui colocado por uma carta de Mr. Bertrand Russell, quando o meu livro ia entrar no prelo.» Especificamente, Russell aprofundara as aparentemente benignas noções de classe e de elemento de classe que Frege usara na Grundgesetze para descrever colecções de números. Consoante a lógica aristotélica, uma classe é qualquer conjunto de objectos - automóveis, pássaros, ou números, por exemplo - relacionados por determinadas similitudes qualitafü:as.

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PONTES PARA O INFINITO

Reciprocamente, uma classe é definida pelas semelhanças entre os seus membros. Para ser qualificado como membro duma classe particular, um determinado objecto deve possuir precisamente as semelhanças qualitativas dos membros já existentes, por muito incompatível que seja nas restantes propriedades. Enquanto os outros matemáticos da época aceitavam estas ideias sem pestanejar, Russell procedia à sua análise cuidadosa. «Parecia-me», escreveu ele mais tarde em My Philosophical Development, «que um~ classe ora é ora não é um membro dela própria. A classe das colheres de chá, por exemplo, não é outra colher de chá, mas a classe dos objectos que não são colheres de chá é um desses objectos que não são colheres de chá.» A maior parte das classes que podemos conceber é da espécie da das colheres de chá. As classes de sapatos, casas, lápis nenhuma delas é membro de si própria. Por outro lado, são poucos os bons exemplos de classes que se pertencem, que são membros delas mesmas. Por exemplo, o conjunto de tudo o que está impresso nesta página ainda é algo que está impresso nesta página e o conjunto de todas as ideias é também uma ideia. Em qualquer dos casos, a própria classe pode ser qualificada como membro porque, tomada como entidade simples, apresenta ainda as semelhanças qualitativas existentes entre os seus membros. De seguida, Russell dedicou atenção à inimaginavelmente gigantesca classe que contém todas «as classes que não são membros delas próprias». Chamemos-lhe classe NS. Esta classe inclui todas as classes que nos são familiares (classes de colheres de chá, de sapatos, etc.) e Russell pretendeu saber se essa classe NS era ou não membro de si própria. Foi ao tentar responder a esta interrogação que Russell descobriu o paradoxo na obra de Frege. Se assumimos que NS é membro de NS, isto é, membro de si própria, então a definição original de NS (classe que inclui todas as classes que não são

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UM CERTO TESOURO

membros de si próprias) impede NS de pertencer a NS. Mas, se, ao contrário, assumimos que NS não é membro de NS, não se inclui portanto a si própria, a definição de NS decreta que ela é membro de si própria: «Assim», como escreveu Russell, «cada alternativa conduz à sua oposta [lógica]. Este facto pôs termo ao deleite lógico em que me encontrava.» O paradoxo de Russell ilustra o facto de, seguindo as regras da lógica, podermos ser levados a resultados contraditórios. Como implicação intermédia, tínhamos que a lógica aristotélica deveria ser ou dotada dos meios necessários à remoção do paradoxo ou substituída por um método totalmente novo de obter certezas completas em matemática. Durante as três primeiras décadas do nosso século, os matemáticos discordavam de qual o caminho a seguir para pôr as coisas no são (ignorando que uma descoberta inesperada iria aplanar todas as suas diferenças de opinião). Das muitas correntes de pensamento que emergiram durante o trinténio, duas delas estavam especialmente viradas para a reabilitação da lógica de Aristóteles. Designadas por «logicistas» e «formalistas», os seus programas preocupavam os matemáticos do tempo. Os logicistas, chefiados pelo próprio Russell, pretendiam evitar o paradoxo de Russell modificando as regras para determinação dos membros duma classe. Concretamente, era seu desejo anular a priori a possibilidade de uma classe ser membro de si própria, para o que propunham que os princípios da lógica aristotélica fossem suplementados por o que chamavam «princípio do círculo vicioso», cujo enunciado rezava que «O que quer que envolva a totalidade duma colecção não deve ser um elemento da colecção». Com este reforço, a questão de saber se a hipotética classe NS é ou não membro de si própria seria resolvida por decreto, assim se evitando o paradoxo do círculo vicioso de Russell. Em contraste com estes, os formalistas criam que as deficiências reveladas pelo paradoxo se deviam não à própria lógica,

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PONTES PARA O INFINITO

mas ao conteúdo semântico da linguagem usada para expressar a lógica. Em particular, atribuíam a origem de muitos paradoxos, incluindo o de Russell, ao significado ambíguo da palavra «todo». Afirmações como «todas as regras têm excepção» são quer inócuas quer paradoxais, dependendo de se interpretamos a palavra «todas» como incluindo ou excluindo a afirmação de que faz parte. Incertezas destas são mais semânticas do que lógicas, insistiam os formalistas, e podem ser expurgadas simplesmente, limpando a lógica da sua coloração semântica. Defendiam portantp que os argumentos lógicos em matemática deviam ser reexpressos em termos de símbolos estritamente definidos e sem qualquer significado real, em vez de em termos de palavras. Cada uma das rotas descritas por estas e outras escolas de pensamento prometiam levar os matemáticos a regressar ao tesouro da certeza e até 1931 cada facção prosseguiu cheia de esperança o caminho que escolhera. Mas, nesse ano, todos os matemáticos ficaram estupefactos quando o lógico alemão Kurt Gõdel anunciou a sua descoberta de que nunca se poderia encontrar em matemática uma certeza completa por qualquer método baseado na lógica tradicional. Ironicamente, Gõdel provara as deficiências da lógica usando-a de modo muito claro. O fundamental da sua descoberta consistia em que qualquer tipo de prova baseada nos princípios autoconsistentes do raciocínio dedutivo era inadequado para estabelecer a veracidade ou falsidade de todo e qualquer teorema matemático concebível, exactamente como a lógica aristotélica era inadequada para levantar o paradoxo de Russell (ou seja, pertence a classe NS a si própria ou não?). Em resumo, sempre haverá em matemática questões que não podem ser solucionadas com certeza lógica. Além disso, Gõdel descobriu que qualquer remédio para uma questão inadequada se revelará igualmente inadequado. Donde o concluir-se que os propósitos tanto dos logicistas como dos formalistas estavam votados ao fracasso.

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UM CERTO TESOURO

Os resultados alcançados por Gõdel estimularam a invenção de sistemas lógicos não aristotélicos, de acordo com os quais uma afirmação pode ser diferente de verdadeira ou falsa. O mais simples é o chamado «sistema lógico trivalente», no qual uma afirmação pode ser verdadeira, falsa ou meramente possível. Tal sistema baseia-se no abandono da lei aristotélica do terceiro excluído e, porque abre a possibilidade de um teorema poder ser logicamente incerto, é consistente com a descoberta de Gõdel. Por esta razão, e porque os sistemas lógicos não aristotélicos são matematicamente interessantes, há presentemente matemáticos que se dedicam por inteiro ao seu estudo e desenvolvimento 1. Os esforços de outros matemáticos orientam-se preferentemente para uma acomodação da matemática às incertezas de Gõdel, tendência em nítido contraste com as lutas anteriores, que visavam libertar a matemática dos empecilhos e angústias do paradoxo de Russell. Em consequência das revolucionárias descobertas de Gõdel, a maioria dos matemáticos renunciaram definitivamente a olhar a matemática como um bastião da certeza. Entre eles incluía-se o matemático-filósofo húngaro Imre Lakatos, que em 1963 elaborou uma filosofia da matemática onde as incertezas de Gõdel se encaixavam bem. Lakatos descreveu a matemática de modo muito semelhante ao que o seu mentor Karl Popper usou para descrever a ciência, sempre com o estatuto duma tentativa e sempre sujeita a revisões, por vezes drásticas, motivadas por novas descobertas. Segundo as suas próprias palavras, «A matemática não pode crescer mediante um aumento monótono do número de teoremas estabelecidos fora de qualquer dúvida, mas sim através de uma cadeia incessante de hipóteses e suposições, especulações e críticas». 1 Destacou-se nesta pesquisa o matemático português Aniceto Monteiro, exilado político na Argentina e falecido há poucos anos. (N. do T.)

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PONTES PARA O INFINITO

Em 1981, o matemático e historiador Morris Kline seguiu muito aproximadamente a mesma via no seu livro M athematics: The Loss of Certainty, ao comparar um matemático com um rendeiro «que limpa uma área de terreno, mas apercebe-se da presença de animais selvagens escondidos no bosque à sua volta». Para aumentar a sua segurança, o rendeiro limpa uma área cada vez maior, mas nunca chegará a sentir-se absolutamente a salvo: «Os animais selvagens permanecem na vizinhança e um dia qualquer podem surpreendê-lo e matá-lo.» Similarmente, o matemático usa a lógica para limpar progressivamente o matagal da ignorância matemática, mas não deve esquecer que, em qualquer ocasião, podem surgir incompatibilidades lógicas capazes de, como as feras, destruir as suas esperanças nas certezas seguras. Contudo, as disposições mais recentes orientam-se para uma não completa acomodação às incertezas de Gõdel. Talvez porque lhes custe conviver com incertezas, os matemáticos preferem viver ainda o seu dia-a-dia como se os acontecimentos fundamentais deste século nunca tivessem ocorrido, ou talvez porque, como sugere Kline, lhes custe imenso acreditar que respeitem à sua actividade as questões levantadas pelas incertezas de Gõdel, como se elas fossem uma espécie de desastre que só acontece aos outros. Por uma razão ou por outra, os matemáticos presentemente «escrevem e publicam como se não houvesse incertezas», diz K.line. Na prática, se não mesmo por princípio, eles retêm a convicção pré-gõdeliana de que, como relatado pelo formalista alemão David Hilbert, «cada problema matemático definido tem por força de ser susceptível duma resolução exacta, quer na forma duma resposta real à questão posta, quer pela prova da impossibilidade de ser resolvido». Esta adesão a uma convicção que se provou não merecer crédito é o lado humano da matemática, em nada coerente com a imagem popular dum matemático, mas totalmente coerente com

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UM CERTO TESOURO

a natureza humana. Ao comportar-se como se a certeza existisse na matemática, os matemáticos actuais não se afastam muito daqueles inventores que crêem, contra toda a evidência, na possibilidade de construir uma máquina de movimento perpétuo. Mantêm-se as suas convicções na natureza do progresso humano, impelindo uma geração a provar como possível o que a geração anterior provou ser impossível. Na matemática, como em outros campos, e consoante Hilbert já dizia em 1900, «esta convicção[ ... ] é um poderoso incentivo. Constantemente ouvimos dentro de nós o eterno apelo: Eis o problema, procurem a solução. Ela pode ser alcançada pela razão pura, porque em matemática não há qualquer 'nunca o saberemos'». Em 1959, um desiludido Russell lamentava-se, dizendo que ansiava pela certeza como o povo anseia pela fé religiosa: «Penso que a certeza tem maiores probabilidades de ser encontrada na matemática do que em qualquer outra parte[ ... ] mas, após cerca de vinte anos de árdua labuta, chego à conclusão de que não há já nada que possa fazer no sentido de tomar indubitável o conhecimento matemático.» Sem dúvida, há e haverá muitos outros matemáticos que, como Russell, dedicam décadas da sua vida à pesquisa do tesouro da certeza. Enquanto assim for, é sempre possível que um deles o encontre, deste modo legando às gerações futuras o que os matemáticos anteriores nunca conseguiram: um infalível padrão de prova. Ensaios relacionados «Muito barulho para nada» «Matéria de fé»

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Limite e cálculo

A LOCALIZAÇÃO DO PONTO DE FUGA O querer é infinito e a execução confinada, O desejo é sem fronteiras e o acto um escravo do limite. Shakespeare, Troilus and Cressida

Somos uma espécie singularmente impaciente, impelida por qualquer tendência natural a procurar constantemente sair de nós próprios. Talvez isso não passe duma expressão da tendência universal referida por Darwin quando escreveu: «Enquanto a selecção natural actua unicamente por e para o bem de cada ser, todo o ambiente corpóreo e mental tende para a perfeição.» Ou talvez, como sugeriu o filósofo francês J. B. Robinet, seja uma tendência exclusiva da mente humana, «com nenhum outro fito que não seja exercitar a imaginação, inventar e aperfeiçoar». Em qualquer dos casos parece certo que aquilo para que tendemos - chamem-lhe perfeição, se assim quiserem - é uma meta inatingível. Pelo menos, não é verosímil que um dia alcancemos a perfeição - se de facto pudéssemos reconhecê-la - e cessemos então todos os esforços. Melhor, a perfeição será, no nosso quadro psicológico, como o ponto de fuga numa pintura, um 31

PONTES PARA O INFINITO

ponto imaginário no infinito, para o qual se dirigem todas as linhas mestras. Muito especialmente, a perfeição é como o limite assimptótico dos matemáticos: um ideal nomeável e de que nos podemos aproximar eternamente, mas sem nunca o atingir. Na matemática, o limite assimptótico é um conceito importante, que ainda hoje considero incrível, apesar de a ele me expor há muitos anos. Mas não me surpreendo com essa dificuldade, porque a ideia de limite assimptótico está intimamente ligada a um outro enigma renitente - o infinito. Isto toma-se especialmente visível em geometria, onde o conceito de limite assimptótico é ilustrado por uma linha limitadora infinitamente longa, chamada «assimptota». Por definição, uma outra linha pode aproximar-se cada vez mais duma assimptota sem nunca se encontrarem, como um avião que se aproxima duma pista sem no entanto aterrar. Mantenho um desejo secreto de que uma tal linha acabe por vencer a distância que vai dela até à assimptota, mas tal não acontece. À medida que as duas linhas convergem, a distância entre elas vai-se reduzindo continuamente a metade e não se atinge nenhum ponto para o qual a restante metade se anula por completo - nem mesmo no infinito. Eis precisamente o que considero inacreditável nos limites assimptóticos. Ao discuti-los, os matemáticos estão habilitados a falarem-nos de como as coisas se comportam no it;úinito. Na verdade, como veremos com alguns exemplos, não se trata de nenhuma façanha notável; os limites assimptóticos são, em certos casos, prontamente reconhecidos. Imaginemos então um polígono com muitos lados, inscrito numa circunferência, e imaginemos que o número de lados do polígono aumenta sistematicamente. Se bem que este processo seja interminável, estou certo de que se torna óbvio que o polígono tende para uma circunferência, a qual será o seu limite assimptótico. De modo semelhante, parece-me claro que o limite assimptótico da sucessão 0,9, 0,99, 0,999, 0,9999, etc., é simplesmente o número 1. 32

A LOCALIZAÇÂO DO PONTO DE FUGA

Na realidade, nunca chega a ser exactamente 1, mas os suces~ sivos termos têm valores que estão cada vez mais perto de 1. No entanto, na maior parte dos casos, o comportamento no infinito não é tão evidente, não obstante os matemáticos terem descoberto processos para realmente determinar o limite assimptótico. Muitos destes processos baseiam-se na capacidade de somar um número infinito de parcelas - coisa que pode parecer impossível, mas com a qual os matemáticos se familiarizaram nos últimos 300 anos. Utilizando esta habilidade, sabem, por exemplo, que 1 mais 1/2 mais 1/4 mais 1/8 mais 1/16 mais 1/32 e assim sucessivamente, ad infinitum, dá como resultado 2 - não aproximadamente 2, como se poderia pensar, mas exactamente 2.. Esta capacidade revelou-se de extrema importância na determinação dos limites assimptóticos, dado que estes, por definição, são o· resultado de progressões intermináveis. Por exemplo, imaginemos um polígono de três lados, um triângulo, inscrito numa circunferência com 25 mm de diâmetro. Em seguida imaginemos outra circunferência, inscrita nesse triângulo, depois um polígono de quatro lados, inscrito na segunda circunferência, de novo outra circunferência, um polígono de cinco lados, etc. Imaginemos então que continuamos indefinidamente este processo, inscrevendo alternadamente uma circunferência e 1.llD. polígono, este com mais um lado do que o anterior. Sem dúvida, as figuras inscritas vão sendo cada vez mais pequenas. Talvez o leitor calcule que o limite deste interminável processo é um ponto coincidente com o centro de todas as circunferências·e polígonos, mas a verdade é que não acontece assim. Lembremo-no~ de que um polígono .que aumenta constantemente o •número de lados tende para uma circunferência, de modo que o processo descrito acima, a partir dum determinado ponto, transforma-se quase na inclusão duma circunferência dentro de outra circunferência. Por outras palavras, a par da

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PONTES PARA O INFINITO

redução das figuras vai também diminuindo a diferença de forma e dimensões entre os sucessivos polígonos e circunferências, o que tem como resultado final a sucessão de figuras inscritas umas nas outras tender para uma pequena circunferência, concêntrica com a primeira, com aproximadamente 2 mm de diâmetro. Usando métodos análogos aos dos matemáticos, deveríamos ser capazes. de predizer com exactidão de que estado de perfeição (ou imperfeição) os seres humanos se aproximam constantemente, ou qual o tempo mínimo para a corrida dos 100 m, de que os nossos atletas se irão aproximando eternamente, sem nunca o alcançarem. Um dos mais rendosos investimentos da arte dos matemáticos de lidarem com limites assimptóticos foi o chamado «cálculo infinitesimal», prodigiosa teoria inventada por Isaac Newton e Gottfried Leinbitz, no século xvn. Esta teoria revela-se igualmente adequada à descrição de qualquer processo variável, com a possibilidade de codificar cada instante da mudança. Os cientistas da NASA usam-na para calcular a deslocação, instante a instante, dum satélite destinado a Saturno e os economistas para determinar em cada instante as tendências do mercado. Antes do século xvu, os matemáticos e os cientistas eram obrigados a descrever as mudanças com base em valores médios, referentes a intervalos de tempo mensuráveis, processo longe de ser ideal. Suponha-se, por exemplo, que se deseja determinar a evolução anual da precipitação no ponto mais húmido do território dos Estados Unidos, o monte Waialeake, em Kauai, ilhas Havai. De acordo com o almanaque, a precipitação média anual é de 12 346,9 mm, mas esta média, tomada isoladamente, nada nos diz sobre a variação ao longo do ano, com as flutuações a curto e longo prazo. Saberemos claramente muito mais se conhecermos a precipitação de um dia par~ o outro, ou, melhor ainda, de uma hora, ou um minuto, ou um segundo para os a seguir. Idealmente, saberemos tudo o que há a saber sobre a variação da precipitação no monte Waialeake quando 34

A LOCALIZAÇÂO DO PONTO DE FUGA

determinarmos a precipitação instante a instante - e é o cálculo infinitesimal que nos dá os meios técnicos para o fazer. A invenção do cálculo infinitesimal baseou-se no reconhecimento de que uma variação instantânea é o limite assimptótico para que tendem as variações médias, conceito que os matemáticos já conheciam muito antes de serem capazes de calcular tais limites assimptóticos. Por exemplo, calculavam o vencimento horário dum empregado dividindo o salário semanal pelo número de horas de trabalho na semana. Para calcular quanto ganhava o mesmo empregado num minuto dividiam o salário semanal pelo número de minutos de trabalho na semana; podiam continuar assim indefinidamente, gerando uma sucessão de médias respeitantes a intervalos de tempo cada vez menores. Mas não tinham possibilidades de calcular realmente o limite assimptótico desta sucessão. De acordo com o senso comum, o limite da sucessão será simplesmente o salário semanal dividido pelo número de pedacinhos de tempo infinitamente pequenos existentes na semana de trabalho. Mas este número é infinito e qualquer soma dividida pelo infinito dá zero, o que é um resultado sem sentido, pois implica que um empregado que ganha 10 000$ por semana ganhe nada em todo e qualquer instante da sua tarefa. Sem uma compreensão nítida das sucessões infinitas, os matemáticos pré-cálculo tinham tantas hipóteses de resolver o paradoxo como tinha um não matemático de calcular o limite assimptótico correcto da inclusão infinita de circunferências e polígonos. Com o cálculo infinitesimal ganhou-se a ferramenta adequada à descoberta do limite assimptótico duma taxa média, isto é, a taxa instantânea, e, deste modo, o meio de descrever padrões de variação com precisão perfeita. Este acesso dos matemáticos à perfeição traz-me à memória um postal que recebi em tempos e cuja ilustração apresentava um par de linhas férreas em perspectiva, com um grupo de homenzinhos de aspecto chocarreiro a espreitar por óculos para 35

PONTES PARA O INFINITO

o ponto do horizonte onde as linhas pareciam convergir. Como legenda, o postal tinha a frase: «Localizando o ponto de fuga.» Com os recursos técnicos para calcular limites assimptóticos parece que podemos dizer que os matemáticos sabem localizar pontos de fuga. Sem esses recursos, um tal ideal permaneceria fora do nosso alcance, muito como aquelas cordilheiras que parecem agarradas ao horizonte, independentemente do avanço que façamos na sua direcção. Por agora só podemos fantasiar acerca do que seria localizar perfeição nos nossos mais nobres esforços pessoais e sociais tão prontamente como calculamos taxas instantâneas ou qualquer outro limite assimptótico. Uma das dificuldades principais deriva do facto de o progresso nesses esforços não matemáticos quase nunca ser como uma sucessão com um qualquer padrão lógico, como acontece quase sempre em matemática. Mesmo que cada um de nós tivesse uma ideia clara do significado do progresso e da perfeição, é muito improvável que todas as nossas ideias convergissem para um único limite assimptótico. Neste sentido, as nossas tendências naturais não podem ser comparadas a linhas rectas dirigidas para um ponto de fuga; na realidade, as linhas são retorcidas, muitas apresentam-se desprovidas de qualquer objectivo e o ponto de fuga é uma mancha, grande e difusa. Há, contudo, exemplos fora da matemática em que o limite assimptótico parece passível de se definir tão bem como, digamos, no caso da sucessão 0,9, 0,99, 0,999, etc. São casos de comportamento re!ativamente determinista, em que todos os intervenientes se encontram empenhados num mesmo objectivo e cujo progresso colectivo é tão certo e regular como uma sucessão de números. Isto é verdade para muitas competições desportivas. Nas corridas, por exemplo, podemos esperar sem receios de qualquer espécie que as marcas dos corred_ores serão ae melhores possível.

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A LOCALIZAÇAO DO PONTO DE FUGA

Há alguns anos todos apostavam em que o limite assimptótico para os tempos da corrida da milha era de 4 minutos. Acreditava-se então que ninguém conseguiria correr aquela distância em 4 minutos, mas, em 1954, o inglês Roger Bannister fê-lo em 3 minutos e 59,4 segundos, após o que se passou a considerar impossível ultrapassar a barreira dos 3 minutos e 55 segundos. Até que, em 1958, o australiano Herb Elliot baixou o tempo para 3 minutos e 54,4 segundos. Eu próprio me dei ao trabalho de analisar todos os recordes da milha desde 1865, descobrindo que o factor de melhoria tem sido aproximadamente constante nos últimos 40 anos. Deste modo, os tempos da corrida da milha aparentam não se aproximar de qualquer assimptota previsível. O último recorde, estabelecido em 1981 pelo inglês Sebastian Coe, é de 3 minutos e 47,33 segundos - notoriamente abaixo dos 4 minutos. A menos que desejemos acreditar que alguém correrá um dia a milha num tempo absolutamente impossível de baixar, temos de considerar que o limite para o progresso na corrida da milha é um limite assimptótico. O que nos leva a perguntar qual a natureza exacta da força ou resistência que nos impede de alcançar esse limite, ainda que nos aproximemos dele cada vez mais. Presumivelmente, a origem da resistência está relacionada de qualquer maneira com as muito reais limitações de energia e força do ·corpo humano não ajudado. Para termos uma ideia de como se comporta esse mecanismo, imaginemos por um momento que o limite assimptótico em questão é a própria velocidade da luz (um corredor a essa velocidade gastaria 5,37 milionésimos de segundo para percorrer uma milha, aproximadamente o mesmo tempo que uma pessoa leva a reagir a um estímulo não esperado). Nesse caso, o mecanismo resistente é explicado pela teoria da relatividade restrita. De acordo com esta teoria, quando um objecto material se desloca com uma velocidade de cerca de 9/10 da da luz, é 37

PONTES PARA O INFINITO

necessária enorme quantidade de energia para o acelerar um pouco que seja. A razão física para isso é que, quando a velocidade dum ojecto se aproxima da da luz, grande parte da energia consumida para a sua propulsão converte-se inevitavelmente em massa do próprio objecto, que assim exige maior propulsão para se manter em movimento; esse acréscimo de propulsão vai-se converter em massa, e assim sucessivamente. Não sabemos muito bem porque são as coisas assim, mas estamos seguros de que isto é verdade. (Os electrões giram nos ciclotrões com velocidades cerca de 0,999 da da luz e os físicos observaram durante anos que tais electrões se comportam de modo pesadão, como se a sua massa fosse muitas vezes superior - exactamente previsto pela teoria.) O aumento de massa dum objecto material em aceleração combina-se com o abaixamento da capacidade de impulso das forças propulsoras, para tomar fisicamente impossível ao objecto atingir a velocidade da luz - apesar de, com um esforço extraordinário, poder aproximar-se arbitrariamente dela. Hipoteticamente, no limite assimptótico - à velocidade da luz -, a massa dum objecto toma-se infinita e toda a sua energia de propulsão se,converte em massa. Contudo, é evidente que, mesmo em condições ideais não realistas (nenhuma resistência do ar, por exemplo), o corpo dum corredor não pode, por si só, desenvolver a energia necessária para correr a uma velocidade em que estes efeitos relativistas se tomam notados, nem tem a força capaz de vencer os rigores dessas altas velocidades. Cada um de nós consome alguns milhares de calorias por dia; seriam necessárias 6000 calorias para nos levar à velocidade de 100 km por hora. Certamente, se há um limite para as nossas velocidades de corrida, situa-se ele muito abaixo da velocidade da luz, além de que temos de contar com outros mecanismos de resistência analogamente peculiares. Provavelmente, o melhor caminho para estimar o limite em questão será esperar até que a sucessão de recordes mundiais

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A LOCALIZAÇÃO DO PONTO DE FUGA

comece a variar cada vez menos. Isto ainda não aconteceu, mas, quando assim for, sabê-lo-emos imediatamente, porque, por um lado, os recordes serão cada vez mais raros e, pelo outro, as suas diferenças cada vez menores. Enquanto não tivermos algum conhecimento desse limite, provavelmente comportar-nos-emos como agora, como se não houvesse limite algum, atitude que é precisamente a que podemos esperar duma espécie cujo progresso se modela segundo um limite assimptótico. A mais destacada característica paradoxal de qualquer aproximação a um limite assimptótico é que o futuro promete ser uma interminável sucessão de progressos: quando atingimos um horizonte, descobrimos que há sempre outro. Só um certo conhecimento do limite assimptótico, obtido por qualquer via presciente, poderá possivelmente viciar esta ilusão, mas tal eventualidade não é de recear por parte duma espécie singularmente rebelde e intratável. De momento, não me parece provável que descobramos uma técnica, análoga ao cálculo infinitesimal, que nos possibilite identificar o ponto de fuga do progresso humano.

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Continuidade e números

PENSAMENTO IRRACIONAL A vasta e ideal hóstia que todos os Seus trabalhos Através das eras sem fim nunca revelarão Mark Akanside, Pleasures of Imagination

O mundo, segundo parece, está a tomar-se digital. Há registadores digitais, imagens digitais, computadores digitais e relógios digitais. Para mim, estes últimos são especialmente cativantes à luz da velha questão de se saber se o tempo flui de modo contínuo ou se o faz hesitantemente, por instantes separados chamados «cronões». Os relógios digitais da actualidade apoiam a segunda hipótese, mas a verdade é que estamos tão perto de resolver a questão como o estavam os velhos Gregos, quando a grande moda em matéria de relógios era a clepsidra, um relógio de água que apoiava a ideia do fluxo contínuo do tempo. De qualquer maneira, a questão é mais desencorajadora hoje do que nunca; enquanto os cientistas continuam a perguntar se o tempo é contínuo ou não, os seus colegas matemáticos mudaram a definição prática de continuidade, de uma que era cientificamente sensível para outra que é, na aparência, cientificamente impoderável. Agora só o próprio tempo nos pode dizer se os cientistas vão conservar a noção 41

PONTES PARA

n

INFINITO

matemática original de continuidade ou se adoptarão a modificada, para efeitos de estudarem o tempo. A principal razão que obriga os cientistas a saber o que os matemáticos têm a dizer sobre a matéria é que o modelo quantitativo da continuidade é uma linha numerada. É uma linha vulgar ao longo da qual os matemáticos dispõem os números seus conhecidos do estudo da aritmética. Neste contexto, a noção quantitativa de continuidade é representada por uma linha numerada, em que todo e qualquer ponto é rotulado com um número, de forma que não há qualquer intervalo não rotulado. A mais primitiva linha numerada não é contínua, nela figuram só os números inteiros 1, 2, 3, 4, etc., que, quando colocados a intervalos regulares sobre a linha, deixam obviamente falhas não rotuladas. A primeira linha numerada contínua foi a dos Gregos antigos, na qual os intervalos entre números inteiros eram interminavelmente subdivididos e postos em correspondência com os números fraccionários, aparentemente sem deixar nenhum ponto por rotular. Chamou-se-lhe «linha numerada racional» porque ao conjunto dos inteiros e fracções chamavam os Gregos «números racionais», por serem números que podiam ser expressos pela razão (ou quociente) de números inteiros (3 :2, 2 :7, 5: 1). Para Pitágoras de Samos, que acreditava não só na matemática, mas também na religião, a linha numerada racional representava o modelo ideal da continuidade. Pitágoras foi um dos cultores da cabala para quem a divindade se encontrava na imagem da continuidade, e especialmente nos números usados para a definir. Ele e os seus colegas atribuíam grande importância, por exemplo, à descoberta grega de que as oitavas musicais se produziam pelo dedilhar de cordas cujos comprimentos eram quocientes de números inteiros. Para os pitagóricos, isto era sinal seguro de que tudo no e acerca do universo, físico ou metafísico, podia ser descrito em termos de números 42

PENSAMENTO IRRACIONAL

racionais. A sua veneração pelos números levou-os a desenvolver uma complexa iconografia numerológica, base da moderna numerologia, na qual o número 1 era o divino criador (presumivelmente por ser o primeiríssimo número diferente de zero). Os números 2 e 3, por razões conhecidas só dos pitagóricos, representavam a feminilidade e a masculinidade, respectivamente; e daqui concluíram que o número 5 (feminilidade mais masculinidade) representava o casamento. Por falta de argumentos contra, os Gregos aderiram durante anos à linha numerada racional como modelo de continuidade. Foi somente dentro do século VI a. C. que os pitagóricos descobriram buracos no seu modelo e, por inferência, buracos na sua divindade, revolução que surgiu inesperadamente durante os seus esforços para resolver um problema aliás vulgaríssimo, cujo enunciado, numa versão prática, era: qual o comprimento duma sebe que divide diagonalmente em dois triângulos um terreno quadrado com 1 km de lado? Normalmente, os pitagóricos teriam resolvido o problema recorrendo ao seu próprio teorema, de acordo com o qual o comprimento da hipotenusa dum triângulo rectângulo pode ser calculado a partir dos comprimentos dos dois catetos. No passado, o teorema fora usado para resolver muitos triângulos rectângulos. Contudo, para grande consternação dos pitagóricos, o seu teorema neste caso revelava-se incapaz de fornecer uma resposta numérica exacta à pergunta. Os cálculos diziam apenas que o comprimento da sebe seria aproximadamente, não exactamente, quilómetro e meio; o valor exacto não fazia parte do seu vocabulário matemático, era, nos dois sentidos do adjectivo, um número irracional: literalmente, porque não era o quociente de dois números inteiros, e figuradamente, porque de modo nenhum encontrava lugar no universo conceptual dos antigos Gregos. Como os pitagóricos vieram a descobrir, aquele valor era apenas um entre muitos outros a ele semelhantes. 43

PONTES PARA O INFINITO

A descoberta dos números irracionais, que os pitagóricos consideravam herética e, à primeira vista, comprovadamente destinada à revogação, implicava que a linha numerada racional não era, afinal de contas, o modelo da continuidade. Imagine-se, por exemplo, um pau cujo comprimento seja o da diagonal do quadrado do problema de Pitágoras. Este pau tem um comprimento cuja realidade não pode ser negada, mas, quando confrontado com a linha numerada racional, a sua extremidade vai coincidir com um ponto não rotulado. Além disso, há ainda outros paus como este, cujos comprimentos só podem ser expressos em termos de números que não são nem inteiros nem fraccionários. Em resumo, a descoberta pitagórica significava que a linha numerada racional está crivada de intervalos que, dum modo inefável, existem entre os números fraccionários já infinitamente vizinhos uns dos outros. Nos séculos que se seguiram a esta descoberta, os números irracionais foram aceites pelos matemáticos como um mal necessário: necessário porque a sua aplicação nas descontinuidades da linha numerada racional permitiu criar outra linha numerada mais genuinamente contínua; e um mal porque era ainda pouco claro como aplicar os números irracionais à linha numerada racional. Havia muitos exemplos de números irracionais, mas não se dispunha, para eles, duma definição matemática aceitável. Pareciam não se relacionar logicamente com os números racionais, isto é, não se conhecia nenhuma receita para se obter números irracionais a partir de números racionais. Em contraste, os números racionais relacionavam-se logicamente uns com os outros em virtude do facto de todos eles serem quocientes de números naturais. Enquanto os matemáticos se reconheceram incapazes de reconciliar números irracionais e racionais, o conceito duma linha numerada irracional não foi tido como plenamente compreendido, apenas válido matematicamente. 44

PENSAMENTO IRRACIONAL

Já muito dentro do século XIX, um matemático que tentasse racionalizar os números irracionais seria ainda comparável a alguém que, numa reunião de família, se esforçasse por compreender como podiam alguns dos presentes, de aspecto extravagante, satisfazer os requisitos dos pergaminhos da mesma família. Em 1872, o matemático alemão Richard Dedekind encontrou um processo aceitável para relacionar os irracionais com os racionais, dando assim um nome ao havia muito desejado «super»modelo de continuidade: chamou-se-lhe «linha numerada real», por alusão ao hábito que os matemáticos traziam já do século XVI de chamar «números reais» ao conjunto de racionais e irracionais. Algumas décadas depois da proeza de Dedekind, outro matemático alemão, Georg Cantor, fez uma descoberta que iria abater os últimos cepticismos para com a constituição, aparentemente impossível, da linha numerada real. Com essa descoberta confirmou-se que, embora haja uma infinidade de números racionais, como os Gregos suspeitavam, há ainda mais números reais. E assim se confirmou também que a linha numerada real é de facto, de algum modo, mais contínua, mais densamente ocupada do que a linha numerada racional. Veja-se só o que isto significa! Na linha numerada racional, os números adjacentes encontram-se infinitamente juntos, mas na linha numerada real os números adjacentes encontram-se mais do que infinitamente juntos. Mesmo com espelhos, isso será para nós uma ilusão impossível de criar. Por exemplo, consideremos dois espelhos um em frente do outro. Ao olhar para um deles, vemos uma imagem repetida do outro. Imaginemos que cada imagem é uma marca na linha numerada. Aproximemos agora um pouco os dois espelhos, as imagens repetidas serão comprimidas e o espaço entre elas diminuirá. O espaçamento das marcas numa linha numerada racional corresponderá ao espaçamento entre imagens quando os dois espelhos se encontrem infinitamente próximos - por outras palavras, quando se 45

PONTES PARA O INFINITO

tocam; mas o espaçamento entre marcas numa linha numerada real terá de corresponder ao espaçamento entre as imagens quando os dois espelhos estejam mais próximos do que quando se tocam, o que só pode acontecer se os dois espelhos se interpenetrarem, como Alice, que entrou no espelho. Para os cientistas interessados em saber algo sobre o tempo, a imponderabilidade da linha numerada real apresenta um interessante dilema. Podem rejeitá-la por ser um modelo da realidade não científico (isto é, não mensurável), caso em que podem ser acusados de vistas curtas. Ou podem aceitá-lo como um modelo ·possível da realidade e ser então acusados de místicos. Nenhuma escolha é melhor do que a outra; assuma.mos, portanto, por momentos, que ambas as linhas, a racional e a real, são, cada uma à sua maneira, modelos válidos da realidade. Sendo assim, já não basta saber se o tempo é contínuo, mas, se o for, temos de apurar se é «racionalmente» ou «realmente» contínuo. Mas, se a resposta à primeira pergunta for negativa, não fica.mos muito melhor, porque isso significa que o que quer que seja no universo, incluindo ele próprio, se desenrola como nas fitas de cinema, imagem por imagem. E significa também que a existência temporal é uma sucessão de tiquetaques momentâneos, cuja aparência de continuidade é mera ilusão, como a criada pelo cinema e que se deve ao facto de a nossa vista reter as imagens o tempo suficiente para que cada uma delas se funda suavemente com a seguinte. Se as imagens fossem projectadas a uma velocidade muito menor do que a normal (24 por segundo), ou se a vista não as retivesse,já veríamos as descontinuidades, e a projecção cinematográfica aparecer-nos-ia aos soluços. No caso do universo, temos indícios de que a realidade física também «pestaneja», mediante experiências efectuadas com instrumentos científicos que se comportam como olhos de muito fraca retenção. Se o tempo é descontínuo, os resultados des46

PENSAMENTO IRRACIONAL

tas experiências implicam que a velocidade de projecção da realidade será superior a 100 000 milhões de biliões (l seguido de 23 zeros) de imagens por segundo. Se o tempo é contínuo, todavia, põe-se então a questão de a sua continuidade ser a duma linha numerada racional ou real. Qualquer dos modelos é impossível de se verificar por medição directa, posto que, por assim dizer, se trata duma velocidade de projecção da realidade que será ou infinita ou maior ainda. O mais que uma medição directa pode fazer é mostrar que a velocidade de projecção da realidade deve ser superior a tantas imagens por segundo; nunca será possível verificar se essa velocidade é realmente infinita, e muito menos maior do que infinita. Mas já é possível apurar alguma coisa por experiências indirectas. Uma muito simples, que nos acode logo à mente, é tomar um inventário de vários fenómenos naturais, relacionados pelo tempo, para ver se os números racionais sozinhos já bastam para os descrever quantitativamente. Em caso afirmativo, isso pode sugerir que o tempo nada tenha que ver com os números irracionais, concluindo-se portanto que a linha numerada racional é um modelo adequado e preciso da continuidade temporal. Caso contrário, contudo - como os pitagóricos descobriram noutro contexto -, isso poderá sugerir que a linha numerada racional é um modelo inadequado para a mesma continuidade temporal. Para o inventário proposto teremos necessidade de distinguir um número racional dum número irracional. Ora o aspecto mais saliente dum número irracional é poder ele ser expresso somente por uma cadeia infinitamente longa de algarismos, sem qualquer estrutura aparente. Dois bons exemplos são a raiz quadradade2(1,414 213 562 ... )eonúmero 1t(pi),quese obtém por divisão do perímetro duma circunferência pelo seu diâmetro (3,141 592 654 ... ). Este número 1t, aliás muito popular, foi calculado explicitamente com centenas de milhares de casas

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PONTES PARA O INFINITO

decimais, sem se encontrar, como já se esperava, qualquer esquema na distribuição dos algarismos. (Isto é um ponto que considero incompreensível em relação aos números irracionais: os algarismos decimais sucedem-se ao acaso, mas não arbitrariamente. Se trocar as posições de apenas um par dos seus dígitos, deixarei de ter o mesmo número irracional. Cada número irracional tem o seu acaso único e cada um dos seus dígitos desempenha um papel único na criação desse acaso individualizado). Um número racional também pode ser escrito na forma duma sucessão infinita de dígitos, mas agora existe sempre uma estrutura discernível (2/35 é 0,057 142 857 142 857 14 ... , 1/99 é 0,010 101 010 1. .. e 6 é 6,000 00 ... ). Há decerto muitos fenómenos temporais conhecidos que poderemos descrever perfeita e exclusivamente em termos de números racionais. Vem-nos de imediato à ideia o movimento das cargas eléctricas num fio condutor. Pelas experiências do físico americano Robert Milikan, vencedor do Prémio Nobel em 1906, sabemos hoje que as cargas eléctricas são sempre múltiplos inteiros duma carga indivisível. Na realidade, há duas espécies de cargas elementares, ámbas com a mesma força, mas uma é positiva, enquanto a outra é negativa, de modo que cargas do mesmo sinal se repelem e de sinais contrários se atraem. Nos nossos dias há alguma especulação em tomo das cargas elementares, admitindo-se a existência de partículas subnucleares chamadas «quarks», dotadas de cargas eléctricas que valem 1/3 ou 2/3 da carga elementar, mas não há qualquer indício da existência do que quer que seja com carga eléctrica relacionada por um número irracional com a carga elementar. Temos depois a química, em que a dinâmica duma reacção é determinada em larga medida pelas propriedades dos elementos químicos nela envolvidos, as quais, por sua vez, estão associadas aos números atómicos dos elementos. Este número atómico é igual ao número de electrões em cada um dos seus átomos e é sempre um número racional - um 48

PENSAMENTO IRRACIONAL

número inteiro, para sermos precisos. Por exemplo, os elementos com os números atómicos 2, 10, 18, 36, 54 e 86 são quimicamente inertes, não reagem de modo nenhum com os demais elementos. Em contraste, os elementos com os números atómicos 9, 17, 35, 53 e 85, os chamados «halogéneos», são muito reactivos, especialmente para produzirem sais. De particular importância para nós e para as outras formas orgânicas da vida é o número 6, correspondente ao carbono. Este elemento tem uma afinidade particularmente elevada para com os outros elementos, formando longas cadeias nucleares como as dos aminoácidos, proteínas e ADN. Também em biologia, muitos fenómenos temporais são descritos em termos de números racionais. Cada espécie de planta ou animal, por exemplo, aparenta ser caracterizada por um número único de cromossomas na sua célula individual, e este número cromossómico, como o número atómico, é sempre inteiro. A despeito desta proeminência dos números racionais, a ciência necessita em absoluto dos irracionais. Durante mais de um século, os cientistas têm vindo a tomar nota, numa lista crescente, de grandezas cuja participação em quase todas as teorias científicas comprova a sua importância na descrição do espaço-tempo. Estas constantes naturais podem ser olhadas como uma estatística vital da natureza e justamente agora estão a ser encaradas como se cada uma delas fosse um número irracional. Por exemplo, uma destas constantes, a velocidade da luz, foi já medida até à nona casa decimal e ainda está por aparecer qualquer estrutura no arranjo dos algarismos. (Expressa em milhões de metros por sçgundo, a melhor determinação da velocidade da luz dá o número 0,299 792 458). Uma outra constante é a que descreve o comportamento dinâmico no nível atómico. Chamada constante de estrutura fina, também não apre.senta qualquer esquema na sucessão dos dígitos, calculados até à décima casa. (A melhor determinação dessa 49

PONTES PARA O INFINITO

constante, grandeza sem dimensões, é 0,007 297 350 3.) Só na física há mais de uma dúzia de tais constantes, medidas com certo número de casas decimais, no máximo 11, e nem uma sequer revelou ter qualquer estrutura na sucessão dos dígitos. Estes factos, que sugerem a existência de números irracionais em fenómenos naturais relacionados pelo tempo, chocam no entanto com uma dificuldade, porque em qualquer tentativa para medir um número irracional acontece que ele não pode ser medido. Ao determinar um número tal como a constante da estrutura fina, nunca poderemos ter a certeza de que na sucessão dos seus dígitos não existe uma estrutura, um qualquer segmento de algarismos que se repete exacta e indefinidamente. Por exemplo, talvez daqui a uma década se apure que a constante da estrutura fina é, digamos, 0,007 297 350 372 973, levando-nos a pensar que, com uma tal distribuição, no fim de contas ela é um número racional. Contudo, para isso é necessário que esta estrutura persista indefinidamente, à medida que se forem acrescentando mais casas decimais, coisa que nunca poderemos verificar. De tudo o que ficou dito concluiu-se que muito simplesmente, ao descobrir os números irracionais, os matemáticos criaram uma possibilidade que não pode ser comprovada por qualquer imaginável medição ou série de medições. Embora haja, matematicamente, uma distinção racional entre um tempo «realmente» contínuo e um tempo «racionalmente» contínuo, essa é uma distinção, para os empíricos, totalmente irracional. Ensaios relacionados «Além do infinito» «Matéria de fé»

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Teoria cantoriana dos conjuntos e números transfinitos

ALÉM DO INFINITO Du gleichst dem geist den du degreifstl. Goethe

Maravilha-me a imaginação humana, tão viva que frequentemente nos leva a debater os pontos mais finos das nossas fantasias. No passado, homens e mulheres inteligentes discutiam, e sobre isso discordavam, o número de anjos que caberiam numa cabeça de alfinete; hoje, os especialistas militares que acreditam nas possibilidades de sobrevivermos a uma guerra nuclear generalizada sofismam sobre os méritos relativos dos cenários do após-guerra. Por vezes seduz-nos tanto uma possibilidade conceptual que pomos de lado o nosso sentido prático normal das realidades. Em matemática, este poder da imaginação humana de nos embalar em sonhos de muito pormenor é levado constantemente aos mais extremos limites racionais. E o certo é que o êxito lhes sorriu de modo pouco usual nas recentes tentativas de

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Assemelhas-te ao pensamento que concebes.

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PONTES PARA O INFINITO

racionalizar, particularizar um dos mais inefáveis conceitos de todos os tempos, o do infinito. Durante milénios, até ao século XIX, a ideia de infinito era qualquer coisa de muito mal definida. Para os inclinados ao espiritualismo tinha vagas conotações teológicas e para os outros, incluindo cientistas e matemáticos, era um salto para qualquer coisa que se encontra fora dos limites do pensamento racional. Ao olhar assim receosamente para o infinito, somos, conforme G. Bernard Shaw escreveu em Man and Superman, como o bosquímano ·que não pode contar além dos seus dedos: «Para ele ... 11 é uma miríade incalculável.» Pelo século XVII, os cientistas e matemáticos começaram a falar como se o infinito pudesse vir algum dia a tornar-se um conceito racional, mas, não obstante, continuava a ser para eles um tema genérico, que se referia a toda e qualquer coisa incompreensivelmente grande. Não havia nenhuma distinção entre infinitos. Por exemplo, nos Diálogos Respeitantes a Duas Novas Ciências, Galileu exprime a sua crença de que uma linha de 3 cm de comprimento contém tantos pontos - um número infinito - como uma linha com o dobro do comprimento. Ele aceitava o paradoxo como podia fazê-lo uma pessoa para quem o universo não seria nem mais nem menos acessível, tivesse ele metade ou o dobro do tamanho. Um século depois de Galileu, os paradoxos do infinito, como os citados, tinham aumentado de número e severidade. Em 1851, num pequeno livro intitulado Os Paradoxos do Infinito, o matemático checo Bemhard Bolzano tentou realizar o primeiro tratamento inteiramente racional do assunto, mas, como resultado, não nos deixou de certeza mais próximos do infinito do que estávamos antes, se é que não ficámos ainda mais afastados. Se os matemáticos estão actualmente mais próximo de compreender o infinito do que em qualquer outra época, isso se deve principalmente à incisiva imaginação de Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor, um brando professor alemão de Mate52

ALltM DO INFINITO

mática que não tinha mais de 6 anos quando se publicou o livro de Bolzano. Cantor, que não tencionava debater o seu caminho para o infinito, como outros matemáticos no último quartel do século XIX, sentiu-se motivado por descobertas então recentes, que punham em causa a veracidade da geometria como fundamento da matemática. Os matemáticos encontravam-se num estado de pânico intelectual, trabalhando no sentido de substituir a geometria euclidiana por uma nova pedra basilar, que, como muitos acreditavam, deveria ser aritmética, e não geométrica. Mais concretamente, deveria ser um corpo de doutrina baseado conceptualmente nos números inieiros, fracções e números irracionais (números decimais, como 1t, que não são fracções), e não em pontos, linhas e planos. Era um objectivo vasto, mesmo vago, e os diferentes caminhos tomados pelos matemáticos conduziram-nos em diversas direcções. As passadas de Cantor levaram-no até ao infinito e, coisa absolutamente inesperada, ainda mais além. Cantor começou esta viagem da mente considerando uma finita «colecção [... ] de objectos, bem. definidos e distintos, da nossa intuição ou pensamento», a que deu o nome· de «conjunto finito». Com o propósito ost,msivo de inventar fundamentos aritméticos para a matemática, considerou conjuntos específicos de números, mas a sua definição também servia para conjuntos dos meses do calendário, de .pessoas ou do que quer que fosse. De acordo com os postulados em que Cantor se baseou, um conjunto será equivalente (em tamanho) a outro se for possível emparelhar numericamente os elementos de um com os elementos do outro. Segundo esta definição, pode procurar-se a equivalência de grandes conjuntos, como o dos lugares dum estádio e o dos _espectadores que os ocupam para assistir a qualquer acontecimento: se houver espectadores sem lugar, ou se sobrarem lugares não ocupados, os dois conjuntos não são equivalentes; caso contrário, são-no. 53

PONTES PARA O INFINITO

A definição de Cantor não exige que contemos, ou mesmo que conheçamos, as populações dos dois conjuntos para determinar se são ou não equivalentes. Foi isto, em última análise, que possibilitou a Cantor comparar e discriminar racionalmente diversos infinitos, isto é, mais precisamente, conjuntos de populações infinitamente grandes. Com estas poucas e primitivas ideias em mente, Cantor deu o primeiro passo para o infinito. Segundo ele, qualquer conjunto finito pode ser usado como degrau na definição de outro conjunto finito maior, e assim até ao infinito. Em cada passo, o conjunto maior comprelnde todos os subconjuntos que é possível extrair do conjunto imediatamente abaixo, entendendo por subconjunto quer um conjunto com nenhum, quer com alguns, quer ainda com todos os elementos dum dado conjunto. Na primeira hipótese temos o conjunto vazio, na terceira hipótese diz-se que o subconjunto é impróprio, designando-se os restantes por subconjuntos próprios. Qualquer conjunto com um ou mais elementos serve para o processo passo a passo de Cantor. Por exemplo, um conjunto de dois elementos (A, B) define, através dos seus subconjuntos, um outro conjunto de quatro elementos (A, B, AB e o conjunto vazio). Um conjunto de quatro elementos (A, B, C, D) define outrv de dezasseis elementos (A, B, C, D, AB, AC, AD, BC, BD, CD, ABC, ABD, ACD, BCD, ABCD e o vazio), e assim por diante. Com uma regra muito simples podemos dizer de imediato quantos subconjuntos contém um conjunto de x elementos, regra que aliás já era conhecida no tempo de Cantor. Os subconjuntos são tantos como 2 multiplicado por si próprio x vezes, o que normalmente se representa por 2x. Assim, em símbolos, um conjunto de dois elementos (x = 2) contém 22 = 4 subconjuntos e um de quatro elementos contém 2 4 = 2 x 2 x 2 x 2 = 16 subconjuntos, como vimos mais acima. 54

ALÉM DO INFINITO

Se Cantor tivesse parado aqui, ter-nos-ia dado uma prescrição racional e bem organizada para gerar um conjunto infinito, mas sem que necessariamente ele fosse atingido. O seu trabalho teria ganho a estima dos que afirmavam, e afirmam ainda hoje, que infinito é mais um verbo do que um substantivo, que o infinito resulta dum processo ilimitado e não é algo que possa ser nomeado. Como quer que seja, depois de inventar o «processo dos degraus», que acabámos de ver, Cantor procedeu no sentido de postular a existência dum conjunto verdadeiramente infinito. A propósito de atribuir aos números os principais papéis da sua teoria, Cantor estabeleceu como exemplo definitivo dum conjunto infinito os números naturais 1, 2, 3, 4, etc. Por outras palavras, na sua teoria, os números inteiros deviam ser tratados, não como uma interminável sequência, um verbo, mas como um verdadeiro conjunto infinito, um substantivo. Era como se, na sua visão do infinito, Cantor se tivesse inspirado na imagem evocada por uma linha dum poema de William Blake, «[ ... ] guardar o infinito na palma da tua mão». No decurso do seu devaneio poético sobre este assunto, Cantor não se limitou a referir a existência dum conjunto realmente infinito, pois o descreveu como, paradoxalmente, o único conjunto concebível que pode ser equivalente a partes de si próprio. Para o ilustrar, Cantor voltou uma vez mais aos números naturais: consideremos os números pares, dentro do conjunto dos números naturais. Podemos conjecturar que o conjunto dos pares, se bem que infinito, será metade do conjunto completo dos números naturais, o que está de acordo com a lógica do nosso dia-a-dia, em que o todo é equivalente à soma das suas partes. Contudo, de acordo com a definição canteriana de equivalência, o conjunto infinito dos números pares é exactamente equivalente ao conjunto infinito total dos números naturais.

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PONTES PARA O INFINITO

Na verdade, Cantor não provou essa equivalência emparelhando, um a um, cada número par com cada número inteiro; a_ prova foi indirecta, declarando ele ser inconcebível que um tal emparelhamento pudesse deixar de fora números de qualquer dos conjuntos, posto que estes são inesgotáveis. Para ele, se não para muitos dos seus contemporâneos, o paradoxo de que o todo pudesse ser igual a uma das suas partes era uma peculiaridade iniludível e racional do reino do infinito. Pelo menos foi um paradoxo que não deteve a sua imaginação, impedindo-a de prosseguir em frente, para lá dos conjuntos infinitos. Tal como usara coajuntos finitos para definir os passos na caminhada para o infinito, Cantor usou agora os coajuntos infinitos para definir os passos na caminhada além-infinito. A lógica manteve-se exactamente a mesma - a existência dum conjunto infinito implica a existência de outro conjunto maior, que, por sua vez, implica a existência de um outro ainda maior, e assim sucessivamente, ad infinitum. Em cada passo, o conjunto maior compreende todos os subconjuntos concebíveis do conjunto imediatamente anterior. Inclusivamente, podemos ainda usar a mesma fórmula que vimos atrás e que nos dá os saltos numéricos entre os diversos degraus infinitos; a única novidade é a de alguns símbolos introduzidos por Cantor. Para representar o número de elementos dum conjunto infinito «ordinário», Cantor inventou o símbolo N O (pronuncia-se «álefe zero»), formado pela primeira letra do alfabeto hebraico e pelo índice zero. De acordo com a nossa fórmula, um conjunto N 0, como, por exemplo, o dos números naturais, tem precisamente 2Xo subconjuntos concebíveis. Este número - 2 multiplicado N O vezes por si próprio - é maior do que N 0 , do mesmo modo que 2 4 (16) é maior do que 4. Temos assim o primeiro degrau além infinito, o primeiro número transfinito, que Cantor designou por N1 (álefe I). Umcoajuntocom N1 elementos,por sua vez, tem exactamente 2x1 subconjuntos, segundo degrau 56

ALÉM DO INFINITO

além-infinito, segundo número transfinito, N 2• E assim por diante. Um número transfinito é fantasticamente, absurdamente, grande. Há cerca de 10 000 milhões de estrelas na Via Láctea, cerca de 60 biliões (60 000 000 000 000) de. células no corpo humano e cerca de 300 000 biliões (300 000 000 000 000 000) de segundos são passados desde que nasceu o universo. O número total estimado de protões do universo, um dos maiores números do universo, escreve-se com 1 seguido de 79 zeros. Comparativamente, se fosse possível escrever explicitamente o número N 0, seria 1 seguido de infinitos zeros, enquanto N1 seria 1 seguido de mais do que uma infinidade de zeros. Pouco espanta, portanto, que a sequência de números transfinitos (N 0, N 1, N 2, ••. ) aparecesse a Cantor e a outros como sendo tão sem limites como o cosmo descrito por Immanuel Kant: É natural olhar [as nebulosas de] estrelas como sendo [... ] sistemas de muitas estrelas. [Elas] são exactamente universos. Pode-se, al~m disso, conJecturar que [todas juntas] [... ] constituem, por sua vez, um sistema ainda mais imenso [... ) o qual, talvez, e tal como o primeiro, nada mais é do que um membro numa nova combinação de membros! Nós [na Terra] vemos [só] os primeiros membros duma relação progressiva de mundos e sistemas, e a primeirà· parte desµ1 infinita progressão habilita-nos a reconhecer o que se deve conjecturar sobre o todo. Não há qualquer fim~.

Em 1874, Cantor publicou o seu trabalho, que o levara dos conjuntos finitos aos conjuntos infinitos e mais longe ainda. Em primeira mão, muitos matemáticos chamaram-no à pedra, desclassificando sumariamente os resultados da sua teoria porque discordavam da ideia platónica de tratar o infinito como se ele fosse um substantivo, enquanto outros entendiam que Cantor

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PONTES PARA O INFINITO

não prosseguira a argumentação até às suas conclusões lógicas. Para ser coerente, afirmavam eles, deveria tratar a sequência de números transfinitos como fizera com a dos números inteiros naturais - admitindo a existência dum conjunto alef infinito (N oo). Com um tal conjunto reciclaria o processo, para definir uma sucessão inteiramente nova de maior-do-que-N oo, ou conjuntos transtransfinitos. Representando-os pela segunda letra do alfabeto hebraico,] (bete), teríamos que a nova sucessão seria] 0, ]i, ]2, etc. Mas, para continuar coerente, diziam ainda os mesmos matemáticos, Cantor deveria tratar também esta sucessão como implicando a existência do conjunto bete infinito (] 00 ), voltando a repetir todo o processo mais uma vez, e outra, e outra. Se bem que Cantor nunca se tenha deixado persuadir por estas críticas, há hoje matemáticos que falam dum «infinito absoluto», que representam pela última letra do alfabeto grego, ómega (w), atribuindo-lhe a propriedade de ser o maior infinito concebível, um infinito que, por força da definição, nunca poderemos visualizar; mas, se pudéssemos, então é de presumir que seria fácil visualizar um infinito um pouco maior. O w dos matemáticos é qualquer coisa que nunca contemplaremos em pleno e, a esse respeito, não é muito diferente do Deus descrito por São Gregório: «Independentemente do progresso feito pela nossa mente na contemplação de Deus, ela não atinge o que Ele é, mas sim o que Lhe está abaixo.» Mesmo sem um w, contudo, a teoria dos conjuntos de Cantor veio finalmente a ganhar o favor da comunidade matemática. David Hilbert, um dos mais respeitados matemáticos na viragem do século, em 1910 classificou o trabalho de Cantor como «a mais admirável flor do intelecto matemático e um dos mais altos empreendimentos da actividade humana puramente racional». Analogamente, o matemático-filósofo inglês B. Russell

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ALÉM DO INFINITO

aplaudiu os talentos de Cantor como «provavelmente os maiores de que a época podia orgulhar-se». Uma das principais razões para estes elogios, então como agora, é o simples facto de, usando as noções cantorianas de conjunto e equivalência, ficarmos habilitados a comparar e distinguir infinitos que pareciam às gerações anteriores ser uma única entidade inconcebivelmente grande. As coisas passam-se como se, pensando em termos da teoria dos conjuntos, pudéssemos estender interminavelmente a escala da nossa imaginação, da nossa perspectiva. E os resultados, na sua maior parte, abriram-nos os olhos de modo inesperado. A primeira surpresa, descoberta pelo próprio Cantor, é a equivalência entre os conjuntos infinitos de números naturais e de fracções, o que, à primeira vista, parece falso. Se olharmos para o bordo duma régua graduada, vemos que entre dois números naturais quaisquer há espaço para uma infinidade de fracções, o que nos leva a concluir que as fracções são infinitamente mais numerosas do que os naturais. Mas, não obstante as aparências, Cantor provou que é possível emparceirar qualquer concebível fracção com um número natural. Dado que há N O números naturais, pela demonstração de Cantor concluímos ainda que há também N O fracções. Cantor também provou que o conjunto de números irracionais (decimais que não podem escrever-se.na forma de números inteiros ou fraccionários) é maior do que qualquer dos outros dois conjuntos. Uma vez mais, as nossas perspectivas convencionais dir-nos-iam que o contrário é que é verdade. Ao olhar, como há pouco, para o bordo duma régua, sentimo-nos atrapalhados para descobrir, entre as infinitas fracções, espaço onde caiba um único número irracional, quanto mais vários. E, de novo, de acordo com Cantor, entre duas fracções infinitamente próximas - fracções absolutamente adjacentes uma à outra habita uma infinidade de números irracionais, o bastante para 59

PONTES PARA O INFINITO

fazer com que a sua população total exceda as populações combinadas de inteiros e fraccionários. A maior parte dos matemáticos consideram notáveis tanto a prova como o resultado, quando mais não fosse, pelo rasgo de inteligência que representam. Cantor começou por imaginar todos os números irracionais numa lista simples, sem qualquer ordenação: 0,176 435 67 .. . 0,234 824 35 .. . 0,623 462 86 .. . e assim sucessivamente. Em seguida numerou as linhas desta lista, 1 0,176 435 67 ... 2 0,234 824 35 ... 3 0,623 462 86 ... Neste ponto, Cantor procurou determinar se, no processo, as duas listas, de naturais e irracionais, se esgotariam igualmente. Em caso afirmativo, concluir-se-ia que os irracionais, como os naturais, eram NO em número. Cantor, no entanto, provou que a resposta era negativa, descobrindo que pelo menos um número irracional será sempre excluído desta listagem e, portanto, não emparceirado com um número inteiro. Para encontrar esse número irracional toma-se o prímeiro algarismo do primeiro irracional da lista (1 no exemplo), junta-se-lhe o segundo algarismo do segundo número (3 no exemplo), etc. Assim se obtém o número irracional 0,133 ... Agora alteramos arbitrariamente cada um dos seus dígitos, do que resulta, por exemplo! o irracional 0,245 ... Aí está! Este irracional é diferente, por construção, do primeiro da lista no primeiro algarismo, do segundo da lista no segundo algarismo e assim por diante, ao longo de toda a lista. Em resumo, trata-se dum 60

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irracional que é diferente de todos os que figuram na lista e estão emparceirados com os números naturais, assim se provando que há mais irracionais do que naturais. Também com isto se prova que, enquanto podemos, em princípio, contar, um a um, a infinidade dos números naturais, nunca poderemos fazer o mesmo com os números irracionais, que são mais numerosos do que os inteiros e, portanto, mais numerosos do que aqueles que podemos contar. Cantor," reconhecendo este facto como consequência da sua demonstração, passou a referir-se aos inteiros (e, por consequência, aos fraccionários) como uma infinidade numerável e aos irracionais como uma infinidade contínua (ou não numerável). Estabelecer esta diferença qualitativa foi porém, para Cantor, mais fácil do que determinar a diferença quantitativa exacta entre as duas populações de naturais e irracionais. Até hoje ainda não se sabe exactamente quantos irracionais existem, embora se tenha estabelecido que o seu número não pode exceder N 1 • O próprio Cantor presumiu que o total de irracionais será exactamente N1, em grande parte porque é o infinito que se segue a N0 definido pela teoria dos conjuntos. Este palpite ficou conhecido como «hipótese do contínuo entre No e N1 • Evidentemente, mesmo com a ajuda da teoria dos conjuntos, a nossa imaginaçã~ não é ainda suficientemente incisiva para efectuar tais distinções apuradíssimas e concluir que a hipótese do continuo é verdadeira ou falsa. Além de aplicar as noções de conjunto e equivalência aos números aritméticos, Cantor também as aplicou aos pontos geométricos, com resultados que a ele próprio surpreenderam. Era sua intenção apenas comparar as populações de pontos em espaços de diferentes dimensões, desde a linha 1-D, ao plano 2-D, ao volume 3-D, etc., esperando que os seus alefs distinguiriam as várias populações por um qualquer modo simples, como, por exemplo, que um espaço de x dimensões tivesse Nx pontos. Mas o que Cantor veio a provar foi que há a mesma 61

PONTES PARA O INFINITO

infinidade de pontos em todo e qualquer espaço independentemente do número das suas dimensões. Os pontos numa linha podem ser emparceirados numericamente com os pontos num plano, os quais, por sua vez, podem ser emparceirados numericamente com os pontos num volume, etc. O único embargo nesta revelação é que o número total de pontos é tão incerto como o dos irracionais. Não se trata duma coincidência. O número de pontos numa linha é posto em correspondência directa com o número de irracionais por meio duma linha numerada, a qual, semelhante ao bordo duma régua graduada, nada mais é do que uma linha cujos pontos foram emparceirados com os naturais, os fraccionários e os irracionais. Ora, sem se saber ao certo quantos irracionais existem, não podemos saber quantos pontos há ao todo. Consequentemente, o que podemos dizer por agora é que o número de pontos num espaço de qualquer número de dimensões é sempre o mesmo, sempre maior do que a população de números inteiros e sempre equivalente à população de números irracionais. Cantor ainda mostrou que a população de pontos é a mesma, qualquer que seja o tamanho dum espaço; há tantos pontos nesta página em 2-D como há em todas as páginas deste livro ou em todo o universo em 4-D. Tivessem os filósofos medievais tomado conhecimento do trabalho de Cantor, naturalmente diriam que é possível acomodar tantos anjos pontuais numa cabeça de alfinete, como num fino disco em 2-D ou em todo o céu, um espaço presumivelmente com tamanho infinito e infinitas dimensões. Esta informação dada por Cantor e outros matemáticos, simultaneamente imaginativa e racional, não só nos pôs acima do bosquímano de Shaw, que só sabe contar os seus dedos, como inevitavelmente incrementou as nossas relações de percepção com o universo físico. Não há muito tempo - isto é, não mais do que alguns milhares de anos -, a humanidade não dispunha 62

AL'JtM DO INFINITO

dum numeral suficientemente grande para exprimir o número de grãos de areia de todas as praias de Terra, ele era tão infinitamente grande como a distância às estrelas. Então, Arquimedes inventou uma notação numérica que lhe possibilitou exprimir quantidades gigantescas, como nunca antes fora concebido. Com o seu sistema numérico, precursor do moderno sistema decimal, Arquimedes pôde lidar com dezenas de miríades, miríades de miríades e miríades de miríades de miríades. No seu tratado O Calculador de Areia, Arquimedes calculou realmente, pela primeira vez na história humana, o número de grãos de areia de todas as praias do mundo. Ainda mais significativamente, conseguiu estimar que «o número de grãos de areia contidos numa esfera com o tamanho do nosso universo é menor do que 1000 unidades de 7. ª ordem de números [que hoje escreveríamos 10s2, ou 1 seguido de 52 zeros]». Muito provavelmente, foi esta a primeira vez que alguém usou a expressão «menor do que» na descrição do universo. Decerto não foi a última, porque, de então até agora, um matemático após outro alcandorou-se com o poder da imaginação para ver o que os sentidos humanos não alcançam. E o que viram reduziu de tal modo o universo físico, que é agora a ocasião azada para responder afirmativamente, segundo creio, à questão teórica posta por Alexander Pope:

Aquele que numa vasta imensidade pode penetrar, Ver mundos dentro de mundos compor um universo, Observar como um sistema passa a outro sistema, Que outros planetas orbitam outros sóis, Que variados seres povoam cada estrela, Pode dizer porque o Céu nos fez como somos, Mas deste quadro, os suportes e ligações, As fortes conexões, belas dependências, Gradações exactas, logrou a tua penetrante alma Ver através? Ou pode uma parte conter o todo? 63

PONTES PARA O INFINITO

O universo físico deixou de nos conter inteiramente, se é que alguma vez o fez. Nós somos seres ao mesmo tempo finitos e infinitos, no sentido de que os nossos egos físicos são prisioneiros dum reino finito, mas não os nossos egos imaginativos. Desde os sonhos cantorianos, uma parte de nós libertou-se mesmo dos extremos limites postos pelas miríades de Arquimedes e presentemente vagueamos livremente para lá do infinito ordinário do universo ponderável. Ensaios relacionados «Pensamento irracional» «Ideias singulares» «Nada como o senso comum» «Matéria de fé»

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ln.finidades naturais IDEIAS SINGULARES Ver o mundo num grão de areia E o céu numa flor selvagem; Pôr o infinito na palma da tua mão E a eternidade numa hora. William Blake, Auguries of Innocence

Na matemática, infinito é o nome dado a qualquer coisa que seja maior do que o que a nossa mente pode imaginar. Por esta razão, sempre houve matemáticos que se negaram a considerar o infinito como um conceito completo e definido. Em vez disso, preferem ,considerá-lo como uma progressão interminável de objectos bem definidos, que nós somos capazes de imaginar, tal como a sucessão dos números naturais, l, 2, 3, etc. Mas, para outros matemáticos, infinito designa um conceito bem definido. Entre os que assim pensam conta-se - para o maior proveito da matemática - o alemão Georg Cantor, que, há cerca de cem anos, desenvolveu uma teoria de grande importância para a matemática moderna, a teoria dos conjuntos, na qual admitiu que o infinito pode ser encarado como um conceito completo e acabado. Uma questão emergente deste velho e perpétuo desacordo é a de saber se temos provas da existência na natureza dum infinito

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PONTES PARA O INFINITO

bem definido e demarcado. Se sim, os matemáticos teriam pelo menos uma justificação física para postular a existência dum infinito explícito. Se não, talvez tenham razão aqueles que negam a existência de bases para conceptualizar o infinito como uma entidade acabada. Ora acontece que há um manancial de provas científicas, velhas ou recentes, a favor da existência do infinito como um conceito bem definido. Não falo aqui da aparente infinidade do cosmo, mas de infinitos suficientemente circunscritos ou localizados para os podermos considerar objectos definidos e completos. O cosmo é até uma prova que joga a favor das conclusões opostas - que o infinito é uma progressão interminável, cuja globalidade somos incapazes de imaginar e muito menos de observar cientificamente. Uma das mais antigas encarnações dum infinito localizado é o electrão comum. Só em 1817 se conseguiu pela primeira vez isolar realmente, em laboratório, um electrão, mas, já no ano 600 a. C., o matemático-cientista jónio Tales especulara sobre a existência de partículas minúsculas que exsudariam uma força eléctrica. (Foi ele um dos primeiros a estudar os efeitos da atracção electrostática criada ao esfregar-se com lã um pedaço de âmbar.) No século xvm apurou-se, por via experimental, que a força eléctrica dum electrão enfraquece à medida que nos afastamos da partícula pontual. A experiência mais reveladora foi efectuada pelo engenheiro francês Charles Coulomb, o qual, em 1785, verificou que a força se reduz a 1/4 quando aumentamos a distância para o dobro. Mas da lei de Coulomb, como ficou a ser chamada, resulta também que, se nos aproximarmos da carga eléctrica, a força aumenta; se diminuirmos a distância para metade, a força quadruplica, de modo que, no próprio electrão, a força será infinita, uma corporização do infinito matemático. E, porque este infinito está confinado a um simples ponto, o electrão é na

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IDEIAS SINGULARES

verdade um infinito localizado - e portátil, pois o electrão move-se livremente. Por azar, dado que os nossos olhos não foram concebidos para nos facilitar a visão directa destes infinitos corpóreos, temos de vê-los através dos sentidos electrónicos de instrumentos científicos, como o contador Geiger e a câmara de descargas. (Estes instrumentos simplesmente sussurram ou faiscam na presença dum electrão, mas custa-me um bocado a engolir que tais exclamações modestas sejam bons indicadores do aspecto de infinitos localizados!). Na natureza há, no entanto, um outro exemplo significativo de infinito localizado e que temos possibilidade de ver. É o buraco negro, os restos carbonizados e superdensos duma estrela outrora activa. Quando uma estrela consome todo o seu combustível (na maior parte hidrogénio), a sua matéria arrefece e escurece e, como não há qualquer pressão centrífuga proveniente da combustão que contrabalance a pressão centrípeta da gravidade, dá-se o colapso da estrela sob o seu próprio peso. Se a massa da estrela não ultrapassar o triplo da do Sol, o colapso dá-se até determinado grau e depois pára. O diâmetro final da estrela valerá aproximadamente de 20 km a 5000 km, o que significa que a sua massa.se encontra concentrada num volume relativamente pequeno (como termo de comparação, o diâmetro actual do Sol é cerca de 1 500 000 km). A densidade destas estrelas mortas, conhecidas por «anãs brancas» e «estrelas de neutrões», é por conseguinte muito elevada: um pedaço da sua matéria do tamanho dum cubo de açúcar pode pesar 100 t. Isto é o que acontece se a estrela não tem grande massa, porque, se tiver, o processo de colapso continua até toda a matéria se concentrar - literalmente - num ponto, de modo que a densidade no final é infinita. A um tal objecto inimaginavelmente denso, a este infinito localizado, dá-se o nome de «buraco negro», porque a sua 67

PONTES PARA O INFINITO

gravidade é tão poderosa que até os raios de luz que passem na vizinhança são atraídos por ele. Qualquer objecto, como, por exemplo, uma nave, que comece a cair para um buraco negro não tem nenhuma possibilidade de lhe escapar, porque isso exigiria uma potência infinita. Porque um buraco negro se comporta como um irresistível aspirador de vácuo na região imediatamente à sua volta, considerava-se até há pouco que o seu aspecto, visto à distância, seria precisamente esse - um buraco negro; não tínhamos qualquer hipótese de ver esse ponto de densidade infinita, dado que qualquer raio de luz por ele emitido, assim se pensava, seria incapaz de lhe escapar e atingir os nossos olhos. Contudo, durante os últimos anos, alguns astrónomos aventaram a hipótese de um buraco negro, que girasse a velocidade suficientemente elevada, poder vencer a sua opacidade. O infinito localizado dentro dele poderia ser assim exposto, havendo mesmo a possibilidade de el~ emitir grandes quantidades de radiação, assim como se fosse um foguetório cósmico. Haverá deste modo ocasiões muito raras para vermos um infinito localizado, mas, na verdade, esta teoria é ainda muito discutível. De facto, só um físico (Joseph Weber, da Universidade de Maryland) afirma ter observado radiação proveniente do centro da nossa galáxia, de modo tal que seja plausível considerá-la oriunda dum buraco negro em rotação. No entanto, outros cientistas que observaram a mesma fonte de radiação não conseguiram encontrá-lo. Por agora, a questão dos buracos negros rotativos mantém-se ambígua. Porém, com respeito aos buracos negros «ordinários», a maior parte dos astrónomos está convencida de ter já localizado alguns entre as estrelas. Há sobretudo grandes certezas de que um demora no meio da constelação do Cisne, emparceirado com uma estrela vulgar. As razões para essas certezas provêm de pelo estudo dos movimentos erráticos da estrela se poder inferir a presença dum objecto maciço nas suas proximidades, mas,

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IDEIAS SINGULARES

como nada encontram na vizinhança, concluem que o companheiro invisível seja um buraco negro, a que foi dado o nome de Cisne X-1. De hamonia com a moderna astronomia, os buracos negros são ainda mais pequenos do que o que se pensava inicialmente, pois terão as dimensões do núcleo atómico - cerca de 0,000 000 000 000 1 cm de diâmetro -, e. além disso, mover-se-ão livremente como os electrões. Pensa-se que estes miniburacos negros se terão formado há 10 000 milhões de anos, pelas enormes pressões e temperaturas que reinavam no universo ainda jovem. Embora minúsculos, esses buracos negros serão, não obstante, bastante maciços (com a massa dum icebergue), podendo nós, portanto, sem grande esforço, ter uma ideia do grau de danos que eles causarão ao que quer que lhes passe perto. Desde que os miniburacos negros começaram a ser discutidos pelos astrónomos que muitas pessoas atribuíram a misteriosa explosão de 1908 em Tunguska, na Sibéria central, à colisão com a Terra dum desses velhos navegadores do espaço. Os residentes no local, contemporâneos da explosão, dizem ter visto uma bola de fogo atravessar o céu e tão brilhante que, a seu lado, «até a luz do Sol parecia escura». Não há, na realidade, nenhum processo de se saber o que se passou exactamente em Tunguska, mas é inegável que a colisão com um miniburaco negro libertaria grande quantidade de energia - segundo alguns cálculos, a correspondente a uma pequena bomba atómica. Aos infinitos localizados, tais como o electrão e o buraco negro, chamam os cientistas «singularidades». São, como vimos, pontos no espaço (e também, em alguns casos, no tempo) onde uma grandeza física se toma infinitamente grande. Como tal, a sua existência atenua o argumento de que não existe nenhuma base racional para a discussão do infinito, como se ele fosse global e definido. Uma singularidade é um infinito que podemos,

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PONTES PARA O INFINITO

em princípio, conter na palma da mão - de facto, no caso dos electrões, eles são biliões e biliões só na palma da mão. Desde que existem fisicamente, não parece ser arriscado defender a sua existência conceptualmente através da matemática. lsso não quer dizer que, ao reconhecer a existência de singularidades físicas, estejamos de qualquer forma perto de imaginar a amplidão do infinito; mas já nos é mais acessível pensar tal amplidão como uma entidade global, de limites definidos, em vez duma fronteira em expansãó perpétua e sem limites bem definidos. Além disso, mesmo que os cientistas não tivessem qualquer prova de singularidades como os electrões e buracos negros, haveria ainda uma via para pensarmos o infinito como um objecto definido e inteiro, aliás conhecido desde que pela primeira vez concebemos o infinito, lhe demos nome e começámos a debater as suas finas qualidades. A mais velha prova da existência dum infinito completamente limitado é a própria mente humana. Porque, embora contenha um infinito num volume relativamente grande comparado com um electrão ou um buraco negro, a mente não é menos singular do que estes.

Ensaio relacionado «Além do infinito»

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Aplicação da matemática abstracta

INVENÇÃO DA REALIDADE Este ministro de ministros, Imaginação, apanha O universo desconhecido, Como jóias numa taça de jaspe. John Davidson, There is a Dish to Hold The Seal

O filósofo grego Platão acreditava que toda e qualquer coisa concebível existe algures no universo. Muitos eruditos europeus do século xvm, incluindo o filósofo inglês Jokn Locke, também defenderam este ponto de vista, o que os levou a acreditar em relatos de· visões de sereias e outras excentricidades da imaginação humana. Esta noção de que, se qualquer coisa pode existir, então ela tem de existir é conhecida como o «princípio da plenitude». Hoje resta-nos uma hipótese duvidosa no que respeita aos objectos da nossa imaginação em geral, mas que é já uma verdade demonstrável quando se trata da imaginação matemática - e alguns destes são tão extraordinários quanto uma sereia pode ser. O princípio tem sido evocado em cada um

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Existe Um Prato Que Contém o Mar,

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PONTES PARA O INFINITO

dos ramos da matemática, mas em parte nenhuma com tanto afecto como na álgebra (estudo das relações aritméticas entre números). Sempre que, nos últimos quatro séculos, os algebristas encontraram uma nova e bizarra espécie de número, os cientistas descobriram que ela pode ser aplicada na descrição de qualquer coisa real. Estas evidências favoráveis ao princípio da plenitude são o mais digno de nota, porque, com muita frequência, as ideias em matemática são concebidas por mentes divertidas e imaginativas, que procuram em primeira mão ser racionais, e não realistas, de modo que a extensa coincidência entre o mundo inventado pelos matemáticos e o mundo natural não resulta meramente dum propósito por parte dos matemáticos para descrever a realidade. O objectivo da álgebra é estudar todas as ·relações entre os números mediante as operações aritméticas da adição, subtracção, multiplicação e divisão. Por exemplo, no estudo de relações aditivas simples, tal como 3 + 4 = 7, os algebristas provaram que a soma de dois números inteiros é sempre igual a um número inteiro. Um modo de exprimir esse facto é dizer que o conjunto dos números inteiros é «fechado» em relação à adição; ou, numa fórmula geral, x + y = z, onde as letras representam números inteiros. Os algebristas usam letras em representação de números porque isso os habilita a expressar concisamente uma relação aritmética genérica para toda uma classa de números. Quando todas as letras, excepto uma, numa destas relações específicas genéricas, são substituídas por números específicos, como em x + 4 = 6, a letra restante, x, assume o papel dum número desconhecido. No exemplo dado substitui um, e um só, número inteiro que satisfaz a equação, o que para os algebristas constitui um problema a ser resolvido. A equação x + 4 = 6 é uma das mais simples equações algébricas imagináveis: muitas pessoas conseguem resolvê-la de cabeça (a solução é x = 2). Outras equações algébricas não

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INVENÇÂO DA REALIDADE

podem ser resolvidas com tanta facilidade, como, por exemplo, no problema que consiste em encontrar um número inteiro, x, que satisfaça à equação x3 + x2 + 3x + 4 = 96 (a resposta é x = 4), e durante anos e anos os algebristas têm despendido muito tempo na elaboração de métodos para as resolver. Se recuarmos até ao século XVI, encontraremos os algebristas conhecedores somente de números positivos, embora há muito se soubesse que, ao resolver certas equações algébricas, a incógnita x por vezes se revelava como substituta de números de outra espécie. Na equação x + 3 = 2, por exemplo, x tem o valor - 1. Mas os números negativos eram um enigma para os algebristas de há 400 anos. Os números positivos podiam ser conceptualizados em termos de objectos tangíveis, como calhaus ou marcas numa folha de papel, mas era difícil aceitar a existência matemática de algo «menor do que nada», conforme o lastimava o matemático-filósofo francês do século XVII René Descartes. Sem um modo lógico de pensar os números negativos, sem um qualquer modelo conceptual, os algebristas estavam impossibilitados de compreender o que significava somar, subtrair, multiplicar ou dividir números negativos, razão por que tais números não eram aceites como objectos legítimos do estudo algébrico; e a sua presença em certas equações algébricas era tida como não possuindo maior significado do que a existência de palavras sem sentido na linguagem. Só· no século xvm os algebristas aprenderam a efectuar as operações aritméticas básicas com números negativos, os quais ficaram associados ao conceito de dívida. Por exemplo, se há um saldo negativo de 10 000$ na conta bancária do leitor, significa isso que o leitor deve ao banco essa quantia. Subtrair 10 000$ negativos é o mesmo que somar 10 000$ positivos, porque, como notou o matemático suíço Leonhard Euler em 1770, «anular uma dívida é o mesmo que fazer uma oferta». Os algebristas igualmente elaboraram as regras para multiplicar números negativos, coisa que é fácil ilustrar em termos 73

PONTES PARA O INFINITO

duma situação ordinária. Considere-se então que há duas espécies de eleitores numa eleição, os positivos, que na realidade lançam o seu voto e assim exercem uma influência positiva nos resultados da eleição; e os negativos, os que, qualificados para votar, não lançam contudo o seu voto. Estes eleitores também influenciam, com a sua abstenção, os resultados, mas de modo indirecto ou negativo. Para vermos como este exemplo se relaciona com a multiplicação de números negativós, imaginemos que um voto a favor de determinado candidato vale 10 pontos positivos e que um voto contra vale 10 pontos negativos. Ora há efectivamente dois modos pelos quais o candidato pode figurar com vantagem nos resultados: ou pelo lançamento dum voto positivo, voto a seu favor, por um eleitor positivo, ou pelo não lançamento dum voto negativo, voto contra, por um eleitor negativo. O primeiro caso ilustra a multiplicação ordinária de números positivos, isto é, se 5 eleitores positivos, favoráveis ao candidato ( +5), lançaram realmente os seus votos pró (a 10 pontos cada), então o candidato ganha um total de 50 (5 x 10) pontos positivos. O segundo caso ilustra a multiplicação ordinária de números negativos. Se 5 eleitores negativos são contra o candidato (- 5), todos negligenciam lançar os seus votos contra (a -10 pontos cada), e também neste caso o candidato ganha, indirectamente, um total de 50 (- 5 X -10) pontos positivos. Em resumo, tal como um número positivo vezes um número positivo, o resultado de um número negativo vezes um número negativo é sempre um número positivo. Esta regra é muitas vezes chamada «lei dos sinais» e, como todas as regras algébricas para combinar números negativos, costuma deixar as pessoas o mais possível perplexas. W. H. Auden exprime exactamente em duas linhas a sua impaciência para com a lei dos sinais: Menos vezes menos dá mais, A razão para isso não precisamos de discutir.

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INVENÇÂO DA REALIDADE

Contudo, a lei dos sinais não é realmente mais misteriosa do que a dupla negação na linguagem corrente, qualquer coisa de que a maioria não está desabituada. Em 1930, o cientista inglês P. A. Dirac aplicou o conceito de números negativos nos seus estudos teóricos de física nuclear, chegando assim à ideia de matéria negativa, ou antimatéria, como é agora designada. Concretamente, Dirac predisse a existência duma nova partícula elementar, que assimilou a um electrão negativo. De acordo com a teoria, esta partícula teria a massa dum electrão, mas seria dotada duma carga eléctrica positiva em vez de negativa, de modo que, se dois electrões, um positivo e outro negativo, se encontrassem muito próximos um do outro, ambos se aniquilariam instantaneamente. Esta última propriedade será a característica mais insólita do positrão, como Dirac chamou à sua partícula teórica, mas, mesmo assim, era a melhor hipótese sobre o que acontecerá a uma partícula ordinária, tal como um electrão, quando combinada com a sua parceira negativa - tal como a adição de 10 negativos com 10 positivos dá um resultado nulo. Em 1932, a previsão de Dirac foi confirmada em todos os aspectos, quando o físico americano C. D. Anderson identificou os traços de positrões na sua câmara de nevoeiro. Desde então, a existência de positrões foi confirmada por uma miríade de experiências laboratoriais que, além disso, revelaram a existência das correspondentes negativas para todas as partículas subnucleares conhecidas, incluindo o protão e o neutrão. Em consequência, a antimatéria é hoje reconhecida como uma parte significativa do mundo material, tal como os números negativos são constituintes importantes do mundo algébrico. A antimatéria é abundante no nível subnuclear, embora, por razões ainda não bem compreendidas, se verifique uma notável ausência no nosso ambiente terrestre. No entanto, alguns astrónomos admitem que haja disseminadas pelo universo estrelas e galáxias inteiramente constituídas por antimatéria. 75

PONTES PARA O INFINITO

Actualmente, conquanto as teorias científicas concordem em que a antimatéria é a corporização da negatividade matemática, há divergências sobre o que é exactamente negativo. De acordo com a teoria de Dirac, a explanação tem um pouco que ver com a energia: a presença dum positrão com energia positiva é a manifestação física da ausência dum electrão com energia negativa. Ou, por outras palavras, os positrões são tão positivamente sensíveis como a ausência de qualquer som é positivamente silêncio. Segundo o físico americano- Richard Feynman, a explicação da negatividade da antimatéria tem algo que ver com o tempo. Certamente, diz Feynmann, que um positrão a avançar no tempo é o equivalente físico dum electrão a recuar no tempo. Aqui, avançar está associado ao sentido positivo e recuar ao sentido oposto, negativo. Apesar de haver algumas vantagens técnicas na ideia de Feynman, os cientistas não dispõem ainda de provas empíricas que lhes permitam escolher entre as duas teorias. Não obstante, porque ambas usam o conceito de quantidades negativas, é correcto dizer-se que as partículas de antimatéria são a encarnação dos números negativos dos matemáticos. Se os números negativos eram para a álgebra do século xv1 aquilo que as medas de feno de Kandisky foram para a pintura do século XIX, então os chamados «números imaginários» seriam para a álgebra do século XVI o que o cubismo de Picasso foi para a pintura do século xx. Os números imaginários não são nem positivos nem negativos e impuseram-se aos algebristas insinuando-se sorrateiramente aqui e acolá na solução de certas equações algébricas. Tomemos uma equação ordinária tal como «x vezes x igual a 4» (x . x = 4), ou, de modo equivalente, «o quadrado de x igual a 4» (x2 = 4). Esta equação é satisfeita quando x é a raiz quadrada de 4, ou seja, quando x = 2, porque 2 é um número que multiplicado por si próprio dá 4. No calão algébrico, 4 é o 76

INVENÇÂO DA REALIDADE

quadrado de 2 (4 = 2 2) e, inversamente, 2 é a raiz quadrada de 4(2 =y4). Em «x ao quadrado igual a 1 negativo» (x 2 = - I), a equação será satisfeita quando x é igual à raiz quadrada de menos 1 (v-I), mas isso não existe para qualquer número positivo ou negativo. Não é essa raiz quadrada um número positivo, porque qualquer número positivo elevado ao quadrado é sempre um número positivo, e também não é um número negativo, porque (ver a lei dos sinais) o quadrado dum número negativo é sempre um número positivo, e x na equação é um número cujo quadrado é igual a um número negativo (-1). Portanto, o x em questão não é nem positivo nem negativo. Verificando estes factos, os algebristas dos séculos XVI e xvn sentiram-se muito perplexos, sem saber o que pensar do número -1, excepto que ele deveria ser um golpe do acaso, irracional e inconsequente. Descartes chamou «números imaginários» à raiz quadrada de -1 e de outros números negativos, enquanto o matemático alemão Gottfried Leibnitz se lhes referia como «uma maravilhosa inspiração do espírito de Deus». Estas designações enigmáticas eram a única descrição de que os algebristas da época dispunham, já que não tinham qualquer via lógica para pensar sobre os números imaginários e sem um modelo conceptual não podiam compreender o que significava somar, subtrair, multiplicar ou dividir quantidades imaginárias. Nesta perspectiva, não havia qualquer razão para crer que os números imaginários constituíam uma parte sensível da álgebra. Foi preciso esperar até 1797, ano em que o geodeta norueguês Casper Wessel descobriu um modo de os conceptualizar, para que fosse finalmente reconhecido pelos algebristas terem os números imaginários um lugar próprio, ao lado dos números reais (como se passou a chamar aos números positivos e negativos em conjunto). A chave consistiu em pensar os números imaginários como existindo matematicamente numa dimensão diferente da dos números reais - isto é, se os números reais

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PONTES PARA O INFINITO

fossem equiparados a coordenadas de longitude, então os imaginários seriam as coordenadas de latitude. Com este modelo simples em mente, Wessel descobriu como alargar o significado das operações aritméticas para os números imaginários serem incluídos na álgebra. Por exemplo, combinar um número real com um imaginário não é o mesmo que somar dois números reais, é semelhante, sim, a combinar a longitu_de com a latitude, daí resultando não uma soma numérica, mas algo como as coordenadas du1}1 ponto numa superfície. Cada ponto da superfície terrestre, ou duma carta, é codificado em termos das suas coordenadas longitude e latitude. Assim, de acordo com a conceptualização de Wessel, as relações algébricas entre números reais e imaginários podem ser inteiramente compreendidas através da superfície duma carta, em que cada ponto é individualizado por um par de números, um real e outro imaginário, este medido ao longo do eixo das latitudes (ou vertical) e o real ao longo do eixo das longitudes (ou horizontal). Wessel chamou a esta superfície matemática o plano complexo. Uns cem anos depois da revelação de Wessel, Albert Einstein e seus contemporâneos aplicaram o conceito de número imaginário aos seus estudos do espaço e do tempo. Um dos resultados foi a teoria da relatividade restrita, em que se postula que o tempo e o espaço são duas dimensões físicas diferentes, assim como que a longitude e a latitude do universo, o que significa que um ponto do universo só fica completamente definido quando são dadas as duas localizações espacial e temporal. Pelo menos esta parte da teoria joga com a experiência comum, porquanto, sempre que marcamos um encontro com alguém, decerto temos de especificar um lugar e um tempo. Consoante a mesma teoria, o único mapa preciso do universo é aquele em que a dimensão espacial se mede sobre um eixo de números reais e a dimensão temporal sobre um eixo de números imaginários.

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Isso implica que o universo seja uma manifestação física do plano complexo dos algebristas, o que é confirmado por todas as experiências efectuadas para comprovar a teoria. Desde 1905, ano em que Einstein criou a teoria da relatividade restrita, tem sido provado por medições laboratoriais que o universo é um lugar onde relógios em movimento marcam o tempo mais lentamente do que relógios em repouso e os objectos em movimento aparentam achatar-se na direcção em que se deslocam. Estes fenómenos são, segundo Einstein, indício de que o universo é a corporização duma superfície matemática complexa. Incluindo os números imaginários, a álgebra tradicional - isto é, a que foi estudada desde os Egípcios - é uma matéria auto-suficiente. Os números positivos, negativos e imaginários, em conjunto, constituem uma espécie algébrica simples. Podemos chamar-lhes «números tradicionais» e, se somarmos, subtrairmos, multiplicarmos ou dividirmos dois ou mais números tradicionais, o resultado será sempre um número tradicional. Isso não significa contudo que a álgebra tenha estagnado depois de 1797, quando Wessel fez a sua descoberta. Desde o começo do século XIX têm sido inventadas espécies algébricas inteiramente novas, com que nos entretemos e divertimos, resultando daí uma pletora de álgebras abstractas, cada uma auto-suficiente. Em cada álgebra abstracta, os números da álgebra tradicional são substituídos por números abstractos, cuja única semelhança com aqueles é poderem, de certa maneira lógica, ser somados, subtraídos, multiplicados ou divididos de modo auto-suficiente. Imagine-se por momentos que os números positivos, negativos e imaginários são para as espécies algébricas o que as diferentes raças humanas são para as espécies animais. Então, as várias espécies de números abstractos são tão diferentes dos números tradicionais, e entre si, como os elefantes, girafas e baleias são diferentes dos humanos. Além disso, desde 1840 que os algebristas foram além de imaginar espécies algébricas abstractas, para imaginar «espé79

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cies algébricas superabstractas», como em breve referiremos. Com números tradicionais e abstractos, não importa qual a ordem em que dois números são multiplicados, pois a resposta é sempre a mesma. Por exemplo, 2 x 3 = 3 x 2 = 6. Os números que obedecem a esta propriedade algébrica dizem-se «comutativos». Os números tradicionais e abstractos são comutativos, mas os números superabstractos não o são e, por não obedecerem a uma propriçdade que a maior parte das pessoas têm como garantida e inviolável, pode dizer-se que eles se encontram muito mais afastados da nossa experiência comum com números. Tais como os números tradicionais, muitas destas espécies algébricas abstractas e superabstractas foram aplicadas com êxito à descrição da realidade, de modo que o princípio da plenitude vai bem lançado no caminho de se tornar um facto consumado no que respeita às invenções da mente algébrica. Por exemplo, a espécie superabstracta de números chamados «matrizes» provou ser exactamente aquilo de que os cientistas necessitavam para a física subatómica. As matrizes foram inventadas recentemente, em 1860, pelos matemáticos britânicos James J. Sylvester e Arthur Cayley e, cerca de 60 anos mais tarde, o físico alemão Werner Heisenberg, pouco depois de aprender algo sobre elas, usou-as para edificar uma teoria completa acerca do comportamento das coisas em escalas subatómicas. Esta teoria veio a ser conhecida como a «teoria da mecânica quântica», com créditos bem firmados por numerosos ensaios e experiências efectuadas nas décadas subsequentes. É uma teoria repleta de teses revolucionárias acerca do mundo subatómico, cada uma ligada a uma das propriedades algébricas das matrizes. Por exemplo, a não comutatividade das matrizes associa-se à tese de que, quando uma intrusão provocada pelo acto de medir é suficientemente significativa para alterar o que quer que esteja a ser medido, então é importante a ordem pela qual duas ou mais

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INVENÇÂO DA REALIDADE

medições são efectuadas. Se se multiplicam duas ou mais matrizes, o resultado depende da ordem dos factores. É como dizer que, se se prova primeiro o vinho e depois o medimos, obtém-se um resultado diferente do que se obteria se a ordem das duas operações fosse trocada. Antes da mecânica quântica tinha-se por garantido ser possível, no caso de se usar discrição suficiente, observar e medir o mundo natural sem o perturbar, o que aliás se mantém verdadeiro em muitos domínios, como o da nossa experiência diária, em que, por exemplo, não tem importância a ordem por que um médico ausculta um doente e lhe mede a temperatura. Mas, segundo a teoria da mecânica quântica, em princípio não é possível efectuar medições no mundo subatómico eliminando inteiramente as perturbações causadas pela observação. Esta tese, conhecida como «princípio da incerteza» de Heisenberg, é a manifestação física da não comutatividade de matrizes. Isto é, os seus esforços para captar os segredos dos finos mecanismos do mundo natural terão sempre as marcas das nossas dedadas. As confirmações em álgebra do princípio da plenitude, combinadas com confirmações semelhantes em outros ramos da matemática, levam-nos a pensar que a imaginação dos matemáticos é como que um sexto sentido. Se até à data se tivessem encontrado os equivalentes físicos de apenas algumas ideias matemáticas isoladas, tinha-se todo o direito de falar em coincidências, mas, na verdade, a coincidência é suficientemente grande para que o matemático e físico alemão Eugene Wigner, vencedor do Prémio Nobel, se lhe referisse como «a efectividade não razoável da matemática» na descrição da realidade. Pode pensar-se que nos limitamos a inventar ideias que acontece servirem para descrever objectos sensíveis, mas, em vez disso, parece que a imaginação matemática é um sentido extra, com o qual percebemos o mundo natural, e sentido extremamente eficaz, porque as suas percepções da realidade vêm muito antes das dos outros sentidos. Quando assim pensada, a 81

PONTES PARA O INFINITO

coincidência entre o mundo natural e o mundo matemático não é mais misteriosa do que as coincidências entre o mundo natural e os mundos da audição, do tacto e do olfacto, coincidências essas que provam a afirmação de que os sentidos concordam uns com os outros simplesmente porque todos eles percebem diferentes aspectos duma única realidade simples. Considerar a imaginação matemática como um sexto sentido leva-me a perguntar a mim próprio se não poderemos fazer o mesmo para a imaginação humana em geral. Em caso afirmativo, é de aguardar que sereias, OVNIS, fantasmas e todas as outras criações da imaginação humana venham um dia a ser efectivamente descobertos; além disso, talvez se esteja ante aberrações dum sexto sentido que nos levem a acreditar que vemos o que na realidade não existe. Mesmo assim, pode ser que haja alguma particularidade da imaginação matemática - a sua racionalidade, por exemplo - que a torne menos susceptível de conceber objectos ilusórios, o que abonaria a invenção matemática como tendo elevada probabilidade de a sua realidade ser verificada. Se este sexto sentido matemático existe, por certo os biólogos modernos descobrirão que ele provavelmente tem evoluído, como todos os sentidos animais, para aumentar a nossa sobrevivência como espécie. «Perceber [... ] a realidade», declarou o biólogo francês François Jacob, laureado com o Prémio Nobel, «é uma necessidade biológica.» Ora, se a imaginação é o nosso sexto sentido, os números tradicionais, abstractos e superabstractos da álgebra não são apenas diversões dos algebristas, são, por nos ajudarem a perceber mais exactamente o mundo que nos rodeia, instrumentos da nossa sobrevivência. Ensaio relacionado «Simetria abstracta>>

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Teoria dos grupos

SIMETRIA ABSTRACT A Tigre, tigre, brilho ardente Nas florestas da noite, Que olho ou mão imortal Pode enquadrar a tua medonha simetria? William Blake, Songs of Experiencel

A arquitectura das cidades da Terra levaria um extraterrestre qualquer a considerar-nos criaturas essencialmente visualistas. Os edifícios são projectados com entradas arqueadas e janelas vidradas, coloridas ou com persianas - pormenores que sugerem a importância para os arquitectos da aparência do edifício. O extraterrestre, ao reconhecer o predomínio da simetria nas formas das nossas construções, poderá presumir que nós somos seres esteticamente sofisticados. A situação é análoga à das nossas observações da arquitectura da natureza, somos como o extraterrestre quando estudamos a Terra e o universo que nos rodeia. Primeiramente baseamo-nos somente nos nossos cinco sentidos, somos sensíveis às simetrias ostensivas que caracterizam o mundo natural, desde a simetria

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Canções da Experiência.

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visual da estrela-do-mar à simetria auditiva duma canção de pássaro. Contudo, nos últimos 150 anos, desenvolvemos um sentido especial vocacionado para as simetrias abstractas que só podem ser percebidas pela mente. Este sentido recebemo-lo pela teoria dos grupos, estudo matemático da simetria, e com ele a natureza apresenta-se-nos ainda mais simétrica, mais estética do que antes. A invenção da teoria dos grupos é geralmente atribuída à figura singularmente trágica de Evariste Galois, um francês temperamental morto aos 20 anos num estúpido duelo por causa, segundo as suas próprias palavras, duma «infame prostituta». Em 1829, com 17 anos, escreveu o seu primeiro trabalho, sobre o cálculo das raízes das equações algébricas do 5. º grau, assunto que o conduziu directamente à teoria dos grupos. A álgebra é o estudo matemático das relações numéricas e as equações algébricas são o meio pelo qual essas relações se exprimem. Se pensarmos que as equações estão para a álgebra como as frases estão para o português, então as raízes duma equação correspondem aos adjectivos e uma equação do 5. º grau é como uma frase com cinco adjectivos. As equações algébricas são catalogadas pelos matemáticos segundo o seu grau, o qual pode ser qualquer. Exactamente como o número de adjectivos numa frase reflecte a complexidade do pensamento que ela exprime, o grau duma equação algébrica reflecte a complexidade das relações numéricas expressas por ela. As relações numéricas que interessavam a Galois tinham tal complexidade que cada uma delas exigia exactamente cinco raízes para ser plenamente descrita. Neste seu primeiro trabalho procurou Galois um método sistemático de determinação dessas raízes, a fim de eliminar os processos empíricos e aleatórios até então usados pelos algebristas e que correspondiam a ter alguém de procurar adjectivos para as suas frases sem a ajuda dum dicionário ou vocabulário. 84

SIMETRIA ABSTRACTA

Anteriormente, já se tinham encontrado processos de resolução sistemática de equações de grau menor que 5. Por exemplo, para as equações do 2. º grau já se conhecia um processo desde os Babilónios e, para as do 3. º e 4. º graus, os processos respectivos haviam sido elaborados no século XVI pelos matemáticos italianos Scipione dai Ferro, Niccolo Fontana e Lodovico Ferrari, mas para as do 5. º grau e seguintes não se conhecia ainda nenhum método matemático de resolução. O primeiro trabalho de Galois foi um esforço que, embora nobre, não teve êxito, mas dois anos mais tarde teve a honra de fazer duas descobertas historicamente significativas: primeiro, provou que não há qualquer processo sistemático para a determinação das raízes de tais equações e, segundo, que algumas de tais equações têm como raízes números que normalmente saem fora do domínio da álgebra. Todos estes números são designados por «números transcendentes», os quais, na nossa analogia entre a álgebra o português, corresponderão a adjectivos de outra língua. A segunda parte da descoberta de Galois tem semelhanças com a convicção de muitas pessoas de que, quando os pensamentos atingem certo nível de complexidade, alguns deles desafiam-nos a ser descritos adequadamente com os adjectivos duma única língua. Para algumas pessoas, como, por exemplo, os poetas multilíngues, isso não passa duma verdade banal e indiscutível; para as restantes, que com frequência lutam debalde em busca de /e motjuste, isto não será tão evidente, mas poderá ser, pelo menos, plausível. De qualquer modo, foi por esta segunda descoberta que Galois ficou conhecido como o fundador da teoria dos grupos. As raízes da equação do 5. º grau, como foi por ele notado, podem ter comportamento diferente quando trocadas de ordem, dependendo de serem ou não todas algébricas.

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PONTES PARA O INFINITO

Se são, a sua troca na equação produzirá outra equação igualmente significativa, como na frase: «Ela é uma mulher robusta, fulgurante, saudável, extravagante e gregária», que se mantém inalterada no significado qualquer que seja a ordem dada aos adjectivos. Mas, se algumas das raízes são transcendentes, da sua troca resulta uma nova equação sem sentido, tal como na frase: «Ele é um robusto, fulgurante, saudável, extravagante cidadão belga», que fica coxa se pusermos o adjectivo «belga» no lugar de qualquer dos outros. Embora Galois não tivesse vivido o bastante para esclarecer todas as implicações desta descoberta, hoje percebemos que ela se associa ao conceito de simetria. Tal associação, propriedade fundamental da teoria dos grupos, é de natureza abstracta e pode ser ilustrada pela simetria espacial de cinco pontas da estrela-do-mar. Imaginemos que a estrela-do-mar se orienta de modo que um dos seus braços aponta directamente para cima. Um matemático dir-nos-á que, se rodarmos a estrela 0°, 72°, 144º, 216° ou 288°, aparentemente nada muda porque a estrela continuará a ter um braço a apontar para cima. Esta propriedade da estrela-do-mar, consequência directa da sua simetria, é designada pelos teóricos da teoria dos grupos por «invariância em relação a um grupo de rotações». Se agora imaginarmos que os braços da estrela-do-mar estão numerados de 1 a 5, é claro que o rodarmo-la segundo um dos seus ângulos de invariância corresponde abstractamente ao intercâmbio dos números dos braços. Assim, se a rotação for de, digamos, 72º, o braço n. º 1 é substituído pelo n. º 2, o n. º 2 pelo n.º 3, o n.º 3 pelo n.º 4, o n.º 4 pelo n.º 5 e o n.º 5 pelo n.º 1. Com este modo abstracto de representar as coisas, a simetria da estrela-do-mar é descrita não pela sua invariância em relação a um grupo de rotações, mas em relação a uma troca de números. É neste sentido abstracto que a teoria dos grupos associa a troca de números com a simetria e que as descobertas de Galois 86

SIMETRIA ABSTRACTÀ

acerca das raízes algébricas são equivalentes à percepção de que as relações numéricas podem ser tão simétricas como a estrela-do-mar. De acordo com a teoria dos grupos, estas relações são precisamente as descritas pelas equações algébricas do 5. º grau com raízes totalmente algébricas (isto é, sem raízes transcendentes). Num sentido abstracto, uma tal relação numérica tem a simetria duma estrela-do-mar de 5 pontas, porque a permuta das cinco raízes não altera o significado da equação que descreve a relação. Em resumo, é simétrica como a estrela porque, por direito próprio, é invariante para permutas numéricas, exactamente como a estrela. Em contrapartida, já não são simétricas aquelas relações numéricas descritas por equações algébricas do 5. º grau em cuja raízes se incluem alguns números transcendentes. São como uma estrela-do-mar cujos braços tivessem direcções ao acaso. Se uma tal estrela for disposta de modo que um dos braços se dirija para cima, qualquer que seja a rotação que se lhe dê, nunca ela se apresentará como inicialmente, excepto se a rotação for uma volta completa, de 360°. Juntamente com a simetria, a estrela perdeu a sua invariância em relação a um grupo de rotações ou, o que é o mesmo, a um grupo de permutas numéricas. Pela mesma razão, e de acordo com a teoria dos grupos, as relações numéricas descritas por raízes em que se incluem números transcendentes são tão assimétricas como a nossa hipotética e disforme estrela-do-mar. A única diferença reside no facto de a assimetria desta última ser prontamente visível, enquanto a das relações numéricas, embora não menos real, só pode ser percebida através da compreensão da teoria dos grupos. Isto torna a teoria dos gtupos um verdadeiro sentido extra, com o qual os cientistas têm podido avaliar a quanto da simetria estética da natureza seriam eles insensíveis, caso se limitassem a usar os cinco sentidos tradicionais. A teoria dos grupos tem-lhes possibilitado reconhecer a simetria das coisas 87

PONTES PARA O INFINITO

por uma simples olhadela às equações matemáticas que as descrevem. Em geral, se algo numa equação é invariante em relação a um grupo de permutações numéricas, isso indica que há simetria no que quer que seja que a equação descreve, e se não simetria física, pelo menos abstracta. Os físicos recorrem à teoria dos grupos para descrever as várias formas simétricas que as suas teorias imputam aos átomos. Consoante essas teorias, os átomos são núcleos envolvidos por nuvens electrónicas com a forma de esferas, esferas concêntricas, halteres, ioiôs e outros objectos simétricos. Semelhantemente, os químicos também usam a teoria dos grupos para visualizar a simetria no nível molecular. Por exemplo, descobriram que a forma duma molécula, por si só, é suficiente para afectar as suas propriedades físicas. Moléculas com simetria cúbica têm cheiro e paladar diferentes dos das moléculas de simetria piramidal. Da miríade de conhecimentos extra-sensoriais adquiridos através da teoria dos grupos, o mais notável é talvez a revelação duma certa simetria do próprio universo. Embora se trate de simetria do espaço e do tempo, duas grandezas prontamente observáveis, essa simetria não é observável pelos nossos sentidos, nem mesmo que fôssemos capazes de dar um pulinho para fora do universo e observá-lo como um pássaro. Segundo a teoria dos grupos, é uma simetria associada à lei da conservação da energia e do momento. (Momento é uma grandeza física relacionada com o movimento dos objectos.) Esta lei, que os físicos consideram universal, estipula que a quantidade total de energia e de momento no universo não diminui nem aumenta com todas as mudanças que ocorrem no mesmo universo. Em termos da teoria dos grupos, a lei da conservação da energia e do momento é uma propriedade de invariância dum objecto simétrico, o universo. Se usássemos uma equação para avaliar em cada instante o total de energia e momento, encon-

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SIMETRIA ABSTRACTA

traríamos que esse total não varia de instante para instante. Isto é, no universo nada se altera se permutarmos o valor da equação num dado instante com o valor em outro instante e, de acordo com a teoria dos grupos, esta invariância em relação a trocas numéricas significa que o universo é simétrico num determinado sentido abstracto. A possibilidade de vermos simetrias do cosmo em tais matérias tem inevitavelmente o efeito de nos sensibilizar para a beleza dos produtos das leis naturais, mesmo quando esses produtos não são esteticamente agradáveis aos nossos olhos. Assim, a teoria dos grupos faz de nós artistas em um outro mundo, e não meros observadores, dão-nos tanto prazer as simetrias da natureza como as da nossa própria arquitectura. Como nos pareceria o universo menos belo se fôssemos, usando as palavras de Hesse, «poetas sem versos, pintores sem pincel, músicos sem som» e, permita-se-me acrescentar, matemáticos sem a teoria dos grupos. Ensaio relacionado «Invenção da realidade»

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Dimensão

UM REINO DE MUITAS POSSIBILIDADES Um horizonte nada mais é do que o limite da nossa vista. Rossiter Raymond, A Commendatory Prayer

«Ah, sim, mas ele é um tipo com uma só dimensão ... » Escutei recentemente esta apreciação desdenhosa dum negociante e logo me recordei de Flatland, o mundo de ficção de Edwin A. Abbott, porque, nesta terra mítica de duas dimensões, as criaturas com uma dimensão são os párias, os intocáveis, merecedores do maior desprezo. Por mim teria hesitado em restringir aquele negociante a uma só dimensão, porque a experiência nos ensina que, quanto melhor conhecemos algo ou alguém, mais complexo nos aparece - ou, por outras palavras, mais dimensões se tornam nele patentes. Por outro lado, sabe-se que as crianças que gatinham num chão liso não hesitarão em fazê-lo numa escada, simplesmente porque não percebem os desníveis; o seu mundo tem estritamente duas dimensões e só quando estiverem mais desenvolvidas serão capazes de perceber mais correctamente o mundo, com três ou quatro dimensões. 91

PONTES PARA O INFINITO

Além disso, no decurso da história humana, a nossa crescente percepção do mundo natural foi atribuindo ao universo um número cada vez maior de dimensões, mas quase sempre essa percepção se manteve atrasada em relação ao pensamento matemático, no respeitante às dimensões. Com efeito, este pensamento desenvolveu-se de tal modo que actualmente os matemáticos falam com o maior à-vontade em mundos de infinitas dimensões e objectos com um número fraccionário de dimensões. Dado que a maior parte desta evolução ocorreu aproximadamente nos últimos cem anos, bem podemos imaginar como o universo aparecerá expandido daqui a cem anos. Há dois mil anos, para os Gregos, o universo tinha três dimensões, com base nos sentidos e nos princípios da geometria de Euclides. Em toda a sua volta viam os Gregos o mesmo que vemos hoje, um mundo preenchido com objectos dotados de comprimento, largura e altura, de modo que o mais natural para eles seria considerar que o recipiente de tais objectos também tinha comprimento, largura e altura. De acordo com Euclides, estes três atributos, comprimento, largura e altura, correspondem ao que hoje designamos matematicamente por dimensão. Na geometria euclidiana, uma linha tem unicamente comprimento e, portanto, é por excelência o objecto com uma dimensão. Um,plano, que possui somente comprimento e largura, será o arquétipo dos objectos de duas dimensões. Finalmente, um sólido, com comprimento, largura e altura, é definido como o modelo dos objectos tridimensionais. Deste modo, os matemáticos do tempo de Euclides concordavam com a noção do senso comum de que o universo é um universo em 3-D.

Esta qualidade de tridimensional manteve-se durante gerações e gerações após Euclides e qualquer especulação sobre uma quarta dimensão era por norma desacreditada como matematicamente inconcebível. Até o grande astrónomo alexandrino Ptolomeu refutou a ideia duma quarta dimensão, dizendo que,

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UM REINO DE MUITAS POBBIBILIDADEB

se é possível desenhar no espaço três eixos perpendiculares entre si, já não podemos acrescentar um quarto eixo que ainda seja perpendicular aos outros todos. Mas era inevitável que alguns especulassem sobre a existência algures dessa quarta dimensão. Contudo, até que houve uma base matemática ou lógica, os seus argumentos tendiam a tornar-se místicos. Um filósofo inglês de meados do século XVII, Henry More, foi ao ponto de insistir que os fantasmas existem e são os habitantes da quarta dimensão. Os argumentos como este, por serem falhos de credibilidade científica, não tinham grande influência na permanente e difundida impressão dum universo euclidiano em 3-D. A força do preconceito desta impressão era tal no tempo de More que, quando o matemático francês René Descartes expandiu a linguagem da geometria euclidiana de modo que lhe surgiu a possibilidade duma quarta dimensão, ele próprio a repeliu por irrealista. A abordagem cartesiana da geometria diferia da euclidiana por definir a dimensionalidade da linha, plano e sólido em termos distintos do comprimento, largura e altura. Assim, na teoria da geometria analítica, inventada por Descartes, as dimensões dum objecto estão correlacionadas com o número de coordenadas necessárias para a sua descrição. Por exemplo, uma linha é unidimensional por requerer só uma coordenada para a sua descrição. Imaginemos que a linha é uma rua: cada ponto na linha, ou cada casa na rua, pode ser univocamente referenciado por um só número. Um plano, que podemos comparar a uma terra chata, é bidimensional porque são necessárias e suficientes Juas coordenadas para o descrever: cada ponto no plano, como cada localização na superfície da Terra, fica univocamente referenciado por dois números, que podem ser a longitude e a latitude. De modo semelhante, um sólido é tridimensional porque três coordenadas bastam para o descrever. 93

PONTES PARA O INFINITO

A definição cartesiana de «dimensão» foi significativa para a época, não por ser melhor do que a euclidiana, mas por ser quantitativa em vez de qualitativa e se basear mais nas nossas capacidades lógicas do que nas experiências sensoriais. Enquanto Euclides confiava na nossa compreensão das qualidades da forma (comprimento, largura e altura), Descartes confiou na nossa compreensão da lógica dum processo analítico (um processo semelhante à cartografia multidimensional). Se a teoria de Descartes da geometria analítica tivesse visto a luz do dia num tempo menos agarrado à experiência sensorial e ao pensamento euclidiano, os matemáticos teriam naturalmente, sem constrangimento, reconhecido a lógica dum objecto em quatro dimensões, pois só se lhes exigiria o reconhecimento de que um tal objecto mais não é do que a entidade matemática que necessita de quatro coordenadas para ser adequadamente descrito. Por muito lógica que essa inferência fosse, não tinha contudo a força suficiente para vencer a relutância dos matemáticos em ao menos aceitar a possibilidade de existência de algo que não podiam visualizar. Argumentos como o de Ptolomeu continuaram dominantes e, consequentemente, a implicação da geometria analítica duma quarta dimensão perdeu-se, não exactamente para Descartes e sua geração, mas sim para umas quantas gerações posteriores. Só em 1854, quando o jovem matemático alemão Bernard Riemann anunciou uma nova extensão da geometria de Euclides e da geometria analítica de Descartes, a ideia duma quarta dimensão foi matematicamente reconhecida e elaborada. No seu desenvolvimento da geometria diferencial (matéria criada alguns anos antes pelo mestre de Riemann, Carl Friedrich Gauss) usou Riemann a linguagem cartesiana de definição de «dimensão», mas, em lugar de ignorar a implicação duma quarta dimensão matemática, procedeu ao seu desenvolvimento pormenorizado. 94

UM REINO DE MUITAS P088IBILIDADE8

Explicitamente, Riemann provou que, ao lado da geometria de Euclides, havia outras que se referiam a espaços de qualquer número de dimensões, desde zero ao infinito. O mundo tridimensional descrito por Euclides passou a ser tido francamente como uma das muitas possibilidades igualmente lógicas. Mais coisas são possíveis num mundo em 4-D do que num em 3-D. A uma pessoa num mundo em 4-D, os comportamentos e atitudes dum habitante dum mundo em 3-D parecerão tão achatados e confinados como a acção numa projecção cinematográfica, em 2-D, nos parece a nós. Contrariamente, a quarta dimensão é tão imperceptível para uma pessoa do mundo em 3-D como a terceira dimensão o é numa imagem de cinema em 2-D. Qualquer coisa que entrasse num mundo em 3-D proveniente da quarta dimensão pareceria não vir de parte alguma (sombras dos espectros de Henry More!). Isto significa que uma pessoa do mundo em 4-D poderia observar o mundo em 3-D sem ser notada, exactamente como se fosse um espectador em qualquer sala de cinema. Para criar a ilusão de profundidade bastar-lhe-ia pôr um par de óculos em 4-D. Outros mundos descritos pela matemática de Riemann nem sequer eram espaciais no sentido vulgar, como os de Euclides e Descartes. De acordo com Riemann, a dimensão matemática não necessita de se referir somente a espaços sensíveis; pode, com toda a lógica, referir-se a espaços puramente conceptuais, a que Riemann chamou «variedades». Ao dar este imaginativo salto para a abstracção, Riemann libertou a geometria, ainda mais do que o fizera Descartes, da dependência euclidiana das noções físicas de comprimento, largura e altura. Embora desde então tenha adquirido algumas conotações técnicas adicionais, uma variedade continua em geral a referir-se a um domínio - seja ele o das reservas de mercado, a economia ou um ser humano - cuja descrição é multifacetada, ou multidimensionada, como Riemann preferia dizer. Enquanto, para os geómetras anteriores, «espaço» se referia exclusivamente àquele 95

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reino familiar preenchido com galáxias, estrelas e planetas, para os geómetras actuais, a palavra «espaço» alargou o seu significado e passou a querer dizer «variedade». Deve destacar-se que a revolução riemanniana não foi apenas semântica. Ao falar, por exemplo, das reservas de mercado como variedades multidimensionadas, os matemáticos pensam literalmente num espaço geométrico no qual as coisas se comportam de acordo com certos teoremas matemáticos. A dimensão desse espaço geométrico corresponde precisamente ao número de factores que governam o comportamento das reservas de mercado. Se imaginarmos por momentos que tais reservas dependem tão-só de um único factor - digamos, as bainhas das saias -, representá-las-emos matematicamente por uma variedade em 1-D, uma linha, o que significa, entre outras coisas, que o estado das reservas de mercado será descrito em cada instante por um único número (a altura das bainhas) e ilustrado por um ponto algures ao longo da variedade unidimensional. Pensando do mesmo modo, um ser humano é uma variedade com um extraordinário número de dimensões - alguns dirão mesmo um número infinito de dimensões. O nosso comportamento é influenciado por uma variedade incalculavelmente grande de factores. Mesmo casos tão elementares como a decisão de sorrir ou não a um estranho, a qual poderá depender duma mão-chefa de factores, ou dimensões, tais como a duração do sono na noite anterior, a hora do dia, os sentimentos que na ocasião temos para com o nosso cônjuge, a segurança no nosso trabalho, o estado da economia, a estação do ano, a aparência do estranho, etc. E não é inconcebível que alguns dos nossos mais complexos comportamentos possam depender do estado pormenorizado do universo inteiro. É caso para lamentar os cientistas sociólogos. Uma das razões por que os seus êxitos parecem miseráveis quando comparados com os dos físicos é simplesmente a maior dificuldade da sua tarefa, e talvez mesmo a sua impossibilidade. Se consideramos 96

UM REINO DE MUITAB POBBIBILIDADEB

um ser humano corno um espaço geométrico extraordinariamente rnultidirnensionado, tentar descrevê-lo por completo, rnaternatica e cientificamente, é urna aventura que amesquinha esforços semelhantes para descrever o nosso universo em 3-D. Na verdade, o volumoso receptáculo dos físicos, o universo, é urna variedade das mais simples e de menores dimensões à nossa volta. De acordo em Einstein, é urna variedade em 4-D, e não em 3-D, como vulgarmente a percebemos. Em 1915, tirando partido da liberal definição riemanniana de «dimensão», Einstein concluiu que um modelo mais rigoroso para o universo será um domínio geométrico com três dimensões espaciais e uma temporal. Vale a pena realçar que uma tal asserção seria desprovida de significado matemático, não tivesse Riemann generalizado a definição de «dimensão» para lá das conotações puramente espaciais de comprimento, largura e altura. É que uma dimensão temporal não possui nenhuma destas qualidades, isto é, o tempo não se mede com uma régua graduada. Segundo Einstein, o universo.é uma variedade espácio-temporal em 4-D porque (na linguagem de Riemann) se requerem para o descrever três coordenadas espaciais e uma temporal. Cada um dos seus pontos fica univocamente referenciado por três números que especificam a posição e um número que especifica o tempo. Este é um modo técnico de dizer que, se desejamos encontrar-nos com alguém, temos de especificar um local e um tempo. O local contém sempre três peças separadas de informação (por exemplo, o ponto de encontro de duas ruas, na superfície da Terra) e o tempo uma peça de informação (meio-dia, por exemplo). Em certo sentido, Einstein provou que Ptolomeu não estava inteiramente incorrecto: a parte espacial do universo é tal que só pode acomodar três eixos coordenados. Porque uma das quatro dimensões é o tempo, o modelo einsteiniano do universo não é o mundo puramente espacial em 4-D descrito anteriormente. Nesse mundo não há qualquer tempo e, 97

PONTES PARA O INFINITO

portanto, nenhum movimento, tal como o conhecemos. Uma pessoa num mundo puramente espacial em 4-D existe simultaneamente em todas as localizações, mas, no nosso universo espácio-temporal em 4-D, uma pessoa está sempre num local em cada instante e os seus movimentos dum local para outro são restringidos pela sua velocidade máxima de deslocação. (A velocidade máxima absoluta no universo é a velocidade da luz no vácuo, cerca de 300 000 km por segundo. Nós, evidentemente, estamos sujeitos a velocidades muito menores.) Embora tenhamos levado dois séculos para reconhecer que o universo tem quatro dimensões e contém objectos com dimensões de várias espécies e números, bastaram-nos 60 anos para reconhecer que as dimensões de muitos outros objectos dentro do universo não são dadas por um núm~ro inteiro. E, uma vez mais, foi um matemático que nos chamou a atenção para essa possibilidade. Em 1975, Benoit Mandelbrodt, da IBM, consolidou e reinterpretou os trabalhos dispersos de muitos matemáticos antecedentes para mostrar que é matematicamente possível definir uma dimensão fraccionária, tal como 3/4-D, 1 1/2-D, etc. Ao desenvolver a sua tese, Mandelbrodt começou por se basear numa nova definição de «dimensão», apresentada pelo matemático alemão Felix Hausdorf cerca de 60 anos depois de Riemann ter apresentado a sua. Segundo Hausdorf, uma superfície ordinária, como e,sta página, tem duas dimensões porque necessitamos de multiplicar dois números (comprimento e largura) para calcular a área. Similarmente, um sólido ordinário, como um torrão de açúcar, tem três dimensões porque necessitamos de multiplicar três números para calcular o seu volume, e assim por diante. Hausdorf entendia que, seguindo esta regra simples, era possível catalogar todas as figuras geométricas concebíveis, desde zero-D até infinito-D. Mandelbrodt observou, contudo, que os matemáticos tinham no passado concebido figuras que desafiavam ser catalogadas

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UM REINO DE MUITAS POSSIBILIDADES

desta maneira e apresentou alguns exemplos de sua lavra, baseados em fenómenos naturais comuns, corno a linha de costa da Inglaterra: imagine-se um rectângulo com os lados todos recortados como aquela linha de costa. De acordo com Hausdorf, um tal rectângulo tem duas dimensões porque a sua área se calcula pela multiplicação do comprimento e da largura. No entanto, Mandelbrodt notou que a receita de Hausdorf era neste caso mais fácil de dizer do que de pôr em prática, pela dificuldade de decidir o que era propriamente o comprimento e a largura do rectângulo, sendo assim conduzido a um paradoxo que veio a ser reconhecido corno a marca de contraste dos objectos com dimensões fraccionárias. Quando vistos à distância, os recortes dos lados do rectângulo desvanecem-se, de modo que podemos dizer que o comprimento e a largura são, «a direito», 10 km e 20 km respectivamente e a área 200 km 2. Mas, visto de perto, o ondulado dos lados do rectângulo torna-se visível. Se seguirmos de automóvel ao longo de todas as enseadas e penínsulas, concluiremos que os lados são muito maiores do que 10 km e 20 km; talvez a largura meça cerca de 15 km e o comprimento perto de 30 km. Estas medidas são, sem dúvida, mais exactas e, seguindo de novo a receita de Hausdorf, calcularíamos para a área do rectângulo, neste segundo caso, o valor aproximado de 450 km 2. Porém, a estimativa feita com o auxílio dum automóvel é ainda menos exacta do que a que se obteria através duma pequena pulga que seguisse todas as minúsculas reentrâncias e saliências das linhas onduladas. «Em princípio», observa Mandelbrodt, «pode seguir-se cada vez mais pormenorizadamente ao longo de tais linhas, de forma que quanto mais nos ajustamos à linha de costa, mais a distância percorrida aumenta.» O paradoxo inerente à afirmação do Hausdorf consiste em que, à medida que melhora a estimativa do comprimento e da largura do rectângulo, piora o cálculo da área.

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Exemplos como este, que não se adaptam ao sistema de catalogação de Hausdorf, indicaram a Mandelbrodt, logo no começo dos seus estudos, que a definição de «dimensão» de Hausdorf tinha de ser alargada de modo a poder incluí-los. Foram os seus esforços para atingir esse objectivo que o levaram a preencher os intervalos da hierarquia dimensional de Hausdorf com uma teoria matemática das dimensões fraccionárias. Mandelbrodt descobriu que, no caso de objectos geométricos, tais como um rectângulo, o paradoxo desaparece desde que deixemos de insistir em que a área é o produto de dois números. Segundo a sua teoria, a regra correcta, livre de paradoxos, para o cálculo da área dum rectângulo é multiplicar, não dois números, mas um número pela raiz quadrada de um outro número, o que significa que o rectângulo é na verdade um objecto em 1,5-D. (Aqui, metade da unidade refere-se à raiz quadrada dum número; semelhantemente, um terço referir-se-á à rniz cúbica, etc. Portanto, multiplicar 1,5 números significa multiplicar um número pela raiz quadrada de outro.) Estes números ainda têm algo que ver com comprimento e largura, mas foram matematicamente redefinidos por Mandelbrodt de modo que não sejam afectados pelo ponto de vista que decidamos adoptar, seja ele cósmico, particular, molecular, atómico, subatómico ou qualquer outro ainda mais pequeno. O exemplo dum rectângulo com os lados semelhantes à linha de costa da Grã-Bretanha ilustra o modo como um objecto plano pode confundir o esquema dimensional de números inteiros de Hausdorf; um cubo com a superfície tão convoluta como o cérebro humano ilustra os mesmos factos para objectos sólidos. Para Hausdorf, esse cubo tem três dimensões porque o seu volume é calculado multiplicando-se três números: comprimento, largura e altura. Mas, tal como para o rectângulo, verificamos que a medição mais exacta destas três grandezas, ou seja, a que acompanha rigorosamente as convoluções mais finas, nos leva a sobrestimar enormemente o volume do cubo. Mandei100

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brodt descobriu que também este cubo é um objecto com um número fraccionário de dimensões, cujo volume é o produto de 2,8 números, e não de 3, e cuja dimensão portanto é 2,8. Mandelbrodt descobriu que muitos outros objectos familiares tinham dimensões fraccionárias. Entre os objectos planos incluem-se os cristais de gelo e os contornos das cordilheiras montanhosas e entre os sólidos temos os radiadores de automóveis e os intestinos humanos. Para cada um destes dois grupos, a regra de Hausdorf conduz a relações paradoxais entre as áreas ou volumes e os comprimentos dos lados. Mandelbrodt ainda descobriu que as dimensões fraccionárias típicas da paisagem terrestre são diferentes das de Marte, com base nas fotos do planeta vermelho obtidas pela NASA: a Terra ronda a dimensão 2, 1, enquanto Marte atinge cerca de 2,4. À vista, a principal diferença entre as duas paisagens é que a da Terra é um pouco menos denteada do que a de Marte. Uma consequência prática desta observação é poder-se gerar, através de computador, paisagens correspondentes a qualquer dimensão fraccionária particular. De facto, foi exactamente isto o que os realizadores do filme da Paramount Star Trek II fizeram para criar algumas paisagens de aspecto estranho, em vários planetas fictícios. Com esta teoria das dimensões fraccionárias, Mandelbrodt possibilitou-nos apreciar não somente a riqueza dimensional do nosso mundo terrestre, mas também a sua qualidade única. Graças aos trabalhos de Mandelbrodt, Riemann e Descartes acerca da natureza matemática da dimensão, o universo é hoje para nós textualmente mais rico do que o chato receptáculo espacial em 3-D, preenchido só com objectos de uma, duas ou três dimensões, como nos dias de Euclides. É tentador pensar que o futuro possa ser uma extrapolação do passado e que continuaremos a perceber mais dimensões na textura dó universo. Mas também podemos imaginar que, no futuro, a textura parecerá aumentar e diminuir, como se o universo fosse um 101

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novelo através do qual nos deslocamos. Esta possibilidade invoca algumas imagens da película Fantastic Voyage, em que alguns cientistas são reduzidos a um tamanho muito pequeno para explorar o interior dum corpo humano. As nossas primeiras ideias sobre o universo eram como se olhássemos de muito longe para um novelo - um ponto sem dimensões. De mais perto, o universo aparecia como um disco bidimensional, de superfície lisa; ainda de mais perto, a superfície em 2-D aparentava ter alguma textura em 3-D. Este último caso pode ser o ponto em que nos situamos actualmente no respeitante à nossa percepção do universo, um ponto em que se nos patenteia toda a riqueza da textura superficial. Se assim for, então aproximamo-nos do momento em que irromperemos através da superfície do novelo e a aparência de textura ricamente dimensionada dará lugar à aparência dum espaço escassamente povoado por fios unidimensionais. A menos que nos orientemos para um desses fios, voltaremos a perceber a textura em 2-D, depois em 3-D, dos seus cordões esfiados. Por certo não podemos antever com segurança qual destas possibilidades se verificará no futuro e mantém-se de pé a dúvida sobre se o número de dimensões que imputamos ao universo continuará a crescer regularmente oq_ flutuará. É contudo certo que o universo, como o negociante acusado de unidimensional, não deve ser julgado precipitadamente e com qualquer finalidade reservada. Porque, se a distinta linhagem de inspirados matemáticos nos ensinou qualquer coisa nos últimos 2000 anos, foi porque a dimensão está na vista e na imaginação do espectador.

Ensaios relacionados «Nada como o senso comum» «A face familiar da mudança»

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Zero e o conjunto vazio

MUITO BARULHO PARA NADA Trinta raios encastram-se num cubo de roda. Adapta o nada do seu interior ao propósito em mãos e ganharás o uso do carro. Amassa argila para fazer um vaso. Adapta o nada do seu interior ao propósito em mãos e ganharás o uso do vaso. Constrói portas e janelas para fazer uma sala. Adapta o nada do seu interior ao propósito em mãos e ganharás o uso da sala. Embora o que ganhámos seja Alguma Coisa, é ainda pela virtude do Nada que ela pode ser posta em uso. Lao Tsé

Os matemáticos podem orgulhar-se de se incluir entre as primeiras pessoas da história a reconhecer o valor do zero e a compreender e expressar a diferença entre o zero e o nada, que provaram ser de importância quase prodigiosa para o desenvolvimento da aritmética (estudo dos número~) como hoje a conhecemos. Entre 1100 e 1400 anos antes de nós, o zero encontrou um lugar permanente na aritmética. Aparentemente, não foi mais do que um trivíal acréscimo ao nosso alfabeto numérico, mas, na verdade, possibilitou-nos exprimir os números mais clara e facilmente do que até então. 1300 anos depois foi a vez de o nada ser admitido na aritmética, onde aliás nada tem que ver com o zero. Nada é o conjunto vazio e representa em aritmética o que uma tela virgem representa em pintura. Com o conjunto

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PONTES PARA O lNFINlTO

vazio, os matemáticos mostraram como qualquer número conhecido na aritmética pode ser criado a partir do nada. Para parafrasear Shakespeare, nunca antes ou depois os matemáticos fizeram tanto com tão pouco como quando fizeram tanto barulho para nada. Os Hindus introduziram o zero, a que chamavam sunya («vazio»), no seu sistema de numeração entre os séculos VI e IX d. C. O sistema de numeração actual descende directamente daquele e é conhecido pelos·matemáticos como «sistema decimal de notação posicional». Nele, qualquer número, por muito grande que seja, pode ser expresso com somente os dez dígitos básicos, de zero a nove. Além disso, a posição de cada dígito num número, tal como 8754, determina o seu valor real. Por convenção, o algarismo mais à direita (4) vale por ele próprio, o outro a seguir (5) vale ele próprio a multiplicar por dez, o outro (7) vale ele próprio vezes 100, etc. Antes que o sunya haja visto a luz do dia, os matemáticos que usavam sistemas de notação posicional normalmente deixavam espaços em branco onde agora escrevemos zeros. Por exemplo, setecentos e sete escrever-se-ia 7 7 em vez de 707. Porém, com frequência os espaços não eram suficientemente claros, facto que provocava ambiguidades incómodas e impeditivas do desenvolvimento da aritmética. Havia várias outras espécies de sistemas de ·numeração quando os Hindus criaram o seu, mas nenhum deles tinha o zero e portanto nenhum deles era tão fácil de usar. Por exemplo, havia o sistema de numeração romana, complicado e de manejo difícil, como sabe quem quer que tenha tentado usá-lo. Se para pequenos números ainda passava, para os grandes, os numerais romanos ganhavam o aspecto duma charada formidável. A representação no sistema romano de mil novecentos e oitenta e três é MCMLXXXIII - compare-se com o muito mais simples número hindu, 1983. 104

MUITO BARULHO PARA NADA

Os Gregos também tinham um sistema de numeração semelhante ao romano. Para representar o mesmo número 1983 escrevia-se no sistema grego T::ETNIIIAAA. Não é, portanto, de surpreender que a aritmética tenha florescido com os Hindus, senhores do zero, e não com os Gregos, hoje lembrados pelas suas proezas na geometria (estudo das formas). Nem é mais surpreendente do que o facto de o desenvolvimento da poesia (com a qual a matemática, corno forma de arte, tem sido muitas vezes comparada) em determinada cultura depender usualmente da expressividade da respectiva linguagem. Se o conceito matemático de zero nos possibilitou exprimir os números de modo mais conciso e rigoroso, então o conceito matemático de nada ajudou-nbs a elucidar as origens lógicas dos números. À volta de 300 a. C., quando Euclides usava a lógica para derivar as verdades geométricas a partir dum reduzido número de hipóteses, tornou corpo a interrogação de se o mesmo se podia fazer para a aritmética. Quando, finalmente, os matemáticos se lançaram em busca duma resposta a essa interrogação, nos finais do século x1x, não puderam chegar a acordo sobre o ponto de partida. Alguns desejavam começar pressupondo a existência matemática da sucessão natural dos números naturais (isto é, O, l, 2, 3, ... ), o alfabeto básico da aritmética, e prosseguir a partir daí, mas outros, corno o alemão Gottlob Frege, preferiam partir de mais atrás ainda, derivando a própria sucessão dos números naturais de um ou de alguns conceitos ainda mais primitivos. Um dos pontos de partida escolhido por Frege foi a noção comum de classe ou conjunto. Na matemática, corno em outros campos, conjunto é simplesmente um grupo de coisas; ou, segundo a definição do matemático alemão Georg Cantor, contemporâneo de Frege, um conjunto é «qualquer colecção[ ... ] de objectos da nossa intuição ou pensamento, bem definidos e distintos». Para Frege, a ideia de conjunto era urna noção ainda mais primitiva do que a da sucessão dos números naturais, e

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assim procedeu de modo a derivar a sucessão da noção de conjunto. Na realidade, com o auxílio de hipóteses adicionais, conseguiu derivar toda a artimética. Foi neste processo que reconheceu a diferença entre o zero e o nada. Nada é o conjunto vazio - conjunto com nenhum membro - que os matemáticos representam por um par de chavetas: { }. Este era também o único conjunto possível como ponto de partida de Frege, dado que começou por não admitir a existência de quaisquer números. Para ele, o conjunto vazio representava o momento imediato antes da criação, o potencial que ia tomar-se uma sucessão infinita de números. Até o próprio símbolo sugere o ser latente: duas chavetas envolventes do espaço vazio, que acabará por ser preenchido com uma sucessão crescente de números. Zero, ou nulidade, em contraste, é o conjunto cujo único membro é o zero, o que os matemáticos representam por {O}. Ao olhar para este símbolo, podemos ver o que Frege viu: o zero não é o nada, é na realidade alguma coisa. Na análise de Frege, {O} é a primeira concretização concebível do potencial matemático do conjunto vazio, o primeiro número natural, zero. Já é mais difícil reconhecer a diferença entre o nada e o zero em áreas fora da matemática. Por exemplo, quando recentemente permaneci em frente da escultura de Henry Moore, à entrada da álea leste da National Gallery of Art, em-Washington, vi na sua abertura central o potencial de muitas imagens. Ela era ao mesmo tempo nada e todas as coisas, e neste sentido era um modelo do conjunto vazio dos matemáticos. Mas nos escavados de outras esculturas apenas via modelos de zeros exactamente buracos. Uma das mais exactas analogias físicas do conjunto vazio é a noção física teórica de vácuo. É o exemplo por excelência do nada corpóreo, potencialmente capaz de gerar prodigiosas quantidades de matéria. Teoricamente, para induzir esta criação

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espontânea de partículas nucleares só se exige que o vácuo seja mergulhado num campo eléctrico muito forte. Até agora foi impossível comprovar directamente esta moderna concepção de vácuo, por a força do campo eléctrico requerido exceder tudo o que somos capazes de produzir artificialmente, se bem que, há pouco tempo, um grupo de físicos e químicos nucleares tenha proposto o recurso à acumulação ordenada dos campos eléctricos naturais superfortes gerados por aquilo a que chamaram «átomos superpesados». O único problema é que, presentemente, a existência destes elementos superpesados é também matéria de conjectura, de modo que não podemos ainda ter certezas sobre se o vácuo é na realidade nada, como pensam os físicos actuais, ou nulidade, como criam muitos dos filósofos gregos antigos. Tão impressiva como o vácuo dos físicos, vamos encontrar no relato bíblico da criação outra analogia do conjunto vazio. De acordo com a Bíblia, Deus criou o universo exactamente como Frege criou a sucessão dos números naturais - a partir do nada. Na sua peça Sapientia, a monja e dramaturga do século IX Hrovita de Gandersheim foi ainda mais longe: «O Autor do mundo[ ... ] criou o mundo a partir do nada e dispôs cada coisa em número, medida e peso, e então, no tempo e idade do homem, formulou uma ciência que revela maravilhas tanto mais frescas quanto mais a estudamos.» Gostaria de acreditar que a irmã Hrovita tivesse incluído a matemática na sua «ciência» e a utilização por Frege do conjunto vazio nas suas «maravilhas frescas». Se assim tivesse sido, creio que poderia incluir também, como maravilha fresca, uma recente reaplicação do conjunto vazio à aritmética pelo matemático inglês John Horton Conway, que em 1973 prosseguiu do ponto onde Frege parara, ao criar, a partir do conjunto vazio, não só os números naturais, fraccionários e irracionais, mas também outra espécie de números, até então desconhecidos, chamados «números surreais».

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Num manuscrito de treze páginas, Todos os Números, Grandes e Pequenos, Conway começa como começou Frege, com um punhado de ideias primitivas, incluindo o conjunto vazio e duas regras, a primeira das quais, definição lógica de número, pode ser visualizada pelos volumes duma enciclopédia dispostos ordenadamente numa prateleira. De acordo com a definição, o lugar dum volume no alinhamento, o seu número, pode ser inferido a partir dos conjuntos de volumes à sua esquerda e sua direita. Podemos determinar qual o lugar de, por exemplo, o volume nove, lugar esse que· é o que tem à sua esquerda os volumes de zero a oito e à sua direita os volumes de dez ao infinito. Portanto, cada volume, cada número, tem o seu próprio nicho, determinado univocamente pelos conjuntos à esquerda e à direita. Esta é a primeira regra de Conway. A segunda regra, aqui explanada também em termos dum conjunto de enciclopédias, determina que um número, tal como 5, é menor do que (ou igual a) um outro número, como, por exemplo, 9, se duas afirmações forem simultaneamente verdadeiras: (A) todos os volumes para a esquerda do primeiro número (5) são menores do que o segundo número (9) e (B) todos os volumes à direita do segundo número (9) são maiores do que o primeiro número (5). Esta regra foi necessária a Conway para impor uma ordem aos números por ele criados, a começar em zero: zero é menor do que 1, assim, precede 1; 1 é menor do que 2, assim, precede 2, etc. Porque não assumiu a existência de quaisquer números para com eles começar, Conway, tal como Frege, tinha à disposição apenas o conjunto vazio, a partir do qual criara a sucessão dos números naturais. Consequentemente, Conway considerou em primeiro lugar o número que tem tanto à esquerda como à direita o conjunto vazio, representado simbolicamente por { } : { }, e a que deu o nome de zero. Isto é, na teoria de Conway, como na de Frege, o zero é a mais primitiva realização do nada.

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Depois de criar o número zero, Conway dispunha de dois conjuntos para continuar a criação de números: o conjunto vazio, { }, e o conjunto contendo só o zero, {O}. Conway identificou o número 1 como o número cujo conjunto à esquerda é o conjunto que contém zero e cujo conjunto à direita é o conjunto vazio. Assim, neste ponto do génesis de Conway, o número 1 é flanqueado à esquerda por zero e à direita por nada. À esquerda é potencial já realizado (na forma do zero) e à direita é potencial ainda não realizado. Em cada ponto da sua criação, Conway escolhe sempre o número seguinte como aquele cujo conjunto à esquerda contém todos os números previamente criados e cujo conjunto à direita é o conjunto vazio. Ou, voltando à imagem da enciclopédia, em cada ponto, o novo volume acabado de criar é colocado à direita de todos os volumes já colocados na prateleira e à esquerda do espaço vazio, que nesta analogia tem o aspecto do vácuo dos físicos, representante do potencial de números ainda não trazidos à existência. Procedendo deste modo indefinidamente, Conway gerou toda a sucessão dos números naturais. Mas não se ficou por aqui, porque, com o mesmo processo, se lançou Conway na criação duma infinidade de números intermédios, tais como o número cujo conjunto à esquerda contém zero, {O} e cujo conjunto à direita contém de 1 ao infinito {l, 2, 3, ... }. Isto define um número algures entre zero e um. Assim, o conjunto-padrão de enciclopédias, os números naturais, fica ornamentado por uma quantidade interminável de volumes intermédios. Mas isto ainda não é tudo. Prosseguindo a lógica do seu método, Conway logrou criar números intermédios aos primeiros intermédios, depois números intermédios aos intermédios dos primeiros intermédios, etc., literalmente ad infinitum. O resultado é uma hierarquia ilimitada de números intermédios nunca antes nomeados em matemática. A teoria de Conway tem também inefáveis implicações gráficas. A sabedoria matemática tradicional defendia que uma

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linha numerada é uma nuvem de pontos, cada um dos quais pode ser rotulado por um número inteiro, fraccionário ou irracional, tal como 0,134 579 2 ... , cadeia de dígitos sem fim. Supõe-se que todos estes pontos (ou os seus rótulos numéricos) em conjunto formam um contínuo, sem qualquer espaço entre pontos adjacentes. A teoria de Conway, contudo, impele-nos a imaginar números que caem de qualquer modo em inimagináveis fendas naquela nuvem de pontos, e nas fendas deixadas por estes números, etc., etc. Com a sua teoria, Conway tornou digno de crédito aquilo sobre que muitas pessoas antes dele tinham especulado: que não há conceptualmente nenhum limite para o número de vezes que um objecto pode ser dividido. Todos os Números, Grandes e Pequenos, de Conway, evidencia o ilimitado potencial do conjunto vazio, mas também o da mente humana. A nossa energia criativa, como o nada, não é o que quer que seja que não seja potencial. É também uma indomável parte do ser vivo, como incontáveis experiências têm documentado. As pessoas privadas artificialmente de sensações, ao serem encerradas em tanques de água aquecida à temperatura do corpo, em silêncio e escuridão totais, acabam por sofrer de alucinações. Como se a mente humana nunca abdicasse da sua propensão para fazer alguma coisa a partir do nada, nem mesmo, ou especialmente, quando imersa na nulidade. Como o vácuo dos físicos, a mente humana pode ser induzida a criar pensamentos que aparentemente não provêm de parte alguma: ao longo dos anos, os matemáticos têm vindo a documentar este fenómeno comum. O alemão Carl Friedrich Gauss relembrava que durante muito tempo tentara sem êxito demonstrar um teorema da aritmética, até que, após alguns dias sem pensar no problema, a solução lhe surgiu «como um súbito relâmpago de luz». Também o matemático francês Henri Poincaré contava que trabalhara durante meses em determinado problema sem qualquer resultado positivo. Depois, num dia em que conversava com um amigo sobre um assunto totalmente 110

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diferente, Poincaré recordou-se de que «a ideia surgiu-me sem que qualquer coisa nos meus pensamentos anteriores parecesse ter-lhe preparado o caminho». Neste sentido, a mente humana é o autêntico conjunto vazio das teorias dos números de Frege e Conway e o conjunto vazio matemático mais não é do que uma entidade subordinada, criada pela mente à sua própria imagem e semelhança. E, se as experiências criativas de Frege e Conway foram algo de semelhante às de Gauss e Poincaré, então não foi a pensar em qualquer coisa em particular que eles contribuíram para o avanço da aritmética. E é às suas mentes, em particular, que ficamos a dever o processo de reconhecer a enorme diferença entre o zero e o nada.

Ensaio relacionado «Um certo tesouro»

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PARTE II

COMPROMISSO

Geometria não euclidiana

NADA COMO O SENSO COMUM Um grupo de caçadores saiu do acampamento para caçar o urso. Caminharam uma milha para sul, depois outra milha para este, encontrando um urso, que mataram. Voltaram então para o acampamento, verificando que ao todo tinham caminhado três milhas. Qual era a cor do urso? Adivinha americana

A tendência de julgar o mundo natural em termos do senso comum tem-nos levado, em várias ocasiões, a acreditar que o Sol realmente nasce e se põe, que as estrelas giram à volta da Terra, que a Terra é plana e o centro do universo. Todas estas crenças antropocêntricas são muito resistentes, mas nenhuma o é tanto como a de que o universo será, de certa maneira, uma mera extensão do ambiente terrestre. Até aos começos do século XIX acreditava-se que as leis da geometria euclidiana eram válidas em qualquer região do universo exactamente como na Terra. Era uma crença confortável e, quando finalmente foi desacreditada, o universo deixou subitamente de ser familiar e o senso comum voltou a perder crédito como juiz seguro das coisas. A causa deste descrédito foi a descoberta, em 1824, de outras geometrias além da de Euclides, igualmente válidas, mas que

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descrevem universos acentuadamente dessemelhantes. Com esta descoberta aventou-se também a hipótese de o nosso universo não ser euclidiano, mas corresponder antes a alguma das novas geometrias. Daí resultou o universo tomar-se uma entidade desconhecida, procedendo-se nas décadas seguintes à reformulação dos nossos conhecimentos sobre ele, o que foi particularmente conseguido nos anos 20 do presente século, com as ideias da teoria geral da relatividade. Desta vez, as nossas relações com o universo basearam-se não no senso comum, mas no senso incomum conferido pela geometria moderna. A geometria que acabou por ser identificada com-Euclides foi construída aos poucos no antigo Egipto, fruto de conhecimentos práticos adquiridos na agrimensura e arquitectura (a palavra «geometria» significa em grego «medida da Terra»). As ideias básicas sobre pontos, linhas, planos e sólidos foram formuladas pelo senso comum e pela experiência com marcos limítrofes, atalhos, quintas e blocos de granito. O importante conceito geométrico de linhas paralelas como linhas que nunca se encontram estava, sem dúvida, nas mentes egípcias, firmemente associado com as marcas deixadas pelas charruas ou pelos carros de duas rodas. Reportando-nos às origens, a geometria terá sido considerada uma simples colecção de truísmos matemáticos sobre o comportamento, na Terra, de pontos, linhas, planos e sólidos, mas, na realidade, os Egípcios e, com eles, os Babilónios e os Gregos entendiam que esse comportamento era o mesmo em todo o universo. No tempo de Euclides, cerca de 300 a. C., os astrónomos usavam os teoremas da geometria como se fossem leis científicas. Se imaginavam, como fez Eudoxo, que as estrelas se moviam numa enorme esfera de cristal, automaticamente admitiam que uma esfera no espaço é exactamente como uma esfera na Terra. E, se consideravam a distância entre dois corpos celestes, tinham por garantido que, no espaço, a mais curta distância entre dois 116

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pontos é dada por uma recta, justamente como na Terra (que consideravam plana). Em resumo, ao formular a geometria do universo, os astrónomos gregos aplicavam descontraidamente as suas experiências terrestres a uma arena muito maior do que a Terra. De certo modo, a contribuição de Euclides para a geometria somente serviu para intensificar a crença de que a geometria era uma ciência universal. O que ele fez foi mostrar como as centenas de teoremas geométricos acumulados ao longo de séculos se podiam derivar logicamente de dez postulados, entre os quais se incluíam os truísmos aparentemente universais: «Por dois pontos quaisquer passa sempre uma linha recta»; «Todos os ângulos rectos são iguais entre si»; «Se quantidades iguais são somadas a quantidades iguais, as somas são iguais»; e «O todo é maior do que as partes.» O trabalho de Euclides em matemática foi prodigioso e sem precedentes, tendo dado à geometria uma aura de verdade universal e irrefutável. Os únicos pontos duvidosos no apego de Euclides ao senso comum residiam nos segundo e quinto postulados, cujos enunciados eram, respectivamente: «Um segmento de recta finito pode ser prolongado indefinidamente para se tomar uma recta infinita» ; e «Dados uma linha recta e um ponto fora dela, existe uma e só uma recta que passa pelo ponto e é paralela à recta dada.» Ora, quer nos dias de Euclides, quer nos séculos subsequentes, muitos matemáticos exprimiram dúvidas de vários níveis sobre a genuinidade desses postulados. Não que duvidassem da sua veracidade - como o senso comum lhes indicava-, mas porque não concordavam com a afirmação de Euclides de que eram verdades evidentes. Em vez disso, os cépticos acreditavam que os dois postulados de Euclides eram na realidade teoremas, demonstráveis com base nos restantes oito. As reticências na aceitação dos dois postulados como verdades evidentes eram originadas pelas desconfianças de alguns matemáticos, entre os quais se contavam aqueles que não

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aceitavam verdades evidentes no que quer que fosse relacionado com o infinito e aqueloutros para quem o quinto postulado exprimia uma ideia de algum modo mais confusa do que os restantes postulados. Fosse por que razão fosse, todos estes matemáticos cépticos tinham relutância em aceitar o segundo e o quinto postulados de Euclides como matéria de fé e exigiam provas da sua veracidade, mas, ao mesmo tempo, nunca duvidaram de que tais provas um dia surgiriam. No entanto, essas provas nunca apareceram. Ao invés, num dia de 1824, o eminente matemático alemão Carl Friedrich Gauss recebeu uma carta de Farkas Bolyai, seu antigo colega de estudos e professor de Matemática, pedindo-lhe que apreciasse um manuscrito de seu filho János. O jovem Bolyai fizera uma descoberta espantosa que aparentemente vinha resolver finalmente as incertezas sobre o quinto postulado de Euclides. Em primeiro lugar, János tinha provado que o postulado das paralelas era de facto um postulado. Se se queria que fizesse parte da geometria de Euclides, tinha-se então de aceitá-lo como verdade evidente. Por outro lado, János também destruíra a velha crença na universalidade da geometria de Euclides, o que fez primeiramente substituindo o postulado das paralelas por um outro, aparentemente contrário ao senso comum: «Dados uma linha recta e um ponto fora dela, por este ponto passam infinitas paralelas à recta dada.» Depois, com este enunciado e os restantes nove postulados, deduziu János teoremas acentuadamente diferentes dos da geometria de Euclides, mas, tal como estes, logicamente bem fundamentados. Os teoremas de János, como ele próprio referiu, descreviam «um novo universo». Por causa do postulado das paralelas, a geometria deste «novo» universo nada tinha que ver com o nosso mundo terrestre. Gauss leu o manuscrito com grande interesse e uma sensação de familiaridade, porque de facto ele próprio também fizera as mesmas descobertas alguns anos antes, o que revelou numa 118

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carta ao pai Bolyai, explicando que se calara com receio do desagrado sincero que provavelmente provocaria entre os colegas. Naquele tempo, a geometria de Euclides era ainda reverenciada como uma bíblia e a descoberta em causa era semelhante à descoberta duma segunda bíblia que divergisse profundamente da primeira na descrição do cristianismo. Em 1832, o matemático russo Nikolaus I. Lobatchevski fez independentemente a mesma descoberta que János Bolyai e Gauss. Aparentemente, estes factos desanimaram o jovem Bolyai a ponto de desistir da carreira em Matemática e alistar-se na cavalaria. Quando os matemáticos souberam da descoberta de geometrias não euclidianas, reagiram com emoção, tal como Gauss previra. Começaram por dizer não parecer possível que a geometria euclidiana fosse somente uma de muitas geometrias, e não a geometria do universo, nem que uma geometria matematicamente válida se baseasse num postulado que não era uma verdade evidente. Principalmente o segundo ponto custava a aceitar, porque, se um Bolyai, um Gauss, um Lobatchevski podiam inventar um postulado que nada tinha que ver com a realidade nem com o senso comum e derivar dele um sistema matemático logicamente válido, forçoso era concluir ser a matemática, ela também, uma invenção. Em particular a geometria de Euclides era uma invenção, embora mais conforme ao senso comum do que a de Lobatchevski (como ficou conhecida a descoberta por três vezes). Para os finais do século passado, os matemáticos estavam já resignados às novas ideias que tanto haviam transtornado a visão tradicional da geometria euclidiana e admitiam já a possibilidade de o universo ser realmente descrito por uma geometria não euclidiana. Nessa época conheciam-se três variedades básicas de geometria, as duas referidas e a de Riemann, do matemático alemão Bernhard Riemann, que a inventou em 1854. 119

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Esta geometria de Riemann difere da de Euclides nos 2. º e 5. 0 postulados, que nela têm os seguintes enunciados: «Um segmento de recta finito não pode ser prolongado indefinidamente para se tomar uma recta infinita», portanto o oposto lógico do enunciado euclidiano; e «Dada uma recta e um ponto fora dele, não existe nenhuma linha que passe pelo ponto e seja paralela à recta dada.» As geometrias de Lobatchevski e Riemann, por se basearem em, pelo menos, um postuhtdo não conforme com o senso comum, com a nossa experiência confinada à Terra, descrevem os comportamentos de pontos, linhas, planos e sólidos em mundos não familiares aos nossos sentidos. Não obstante, é possível ter uma imagem desses dois bizarros mundos não euclidianos, em termos de duas figuras que nos são familiares. O mundo descrito pela geometria de Lobatchevski é como a superfície de duas trompas infinitamente longas e unidas, topo a topo, pelas suas campânulas. Dá-se-lhe o nome de pseudo-esfera, mas não se assemelha a uma esfera. Num tal mundo, as linhas rectas são linhas que correm segundo o comprimento da superfície da trompa. Com alguma concentração, é possível perceber como esta superfície obedece ao postulado das paralelas, ou seja, que por um ponto exterior a uma linha passam infinitas linhas paralelas àquela. É mais fácil dar uma imagem do mundo da geometria de Riemann, porque essa imagem é uma esfera e as rectas correspondem a arcos de círculo máximo, porque estes arcos dão a mais curta distância entre dois pontos sobre a esfera, tal como a recta o faz no plano. É também fácil ver que a esfera satisfaz os dois postulados definidores da geometria riemanniana, porque nela os segmentos de recta (os arcos de círculo máximo) não podem ser prolongados indefinidamente e as paralelas não existem porque dois quaisquer círculos máximos se cruzam sempre. 120

NADA OOMO O BENBO COMUM

O mundo em que a geometria de Euclides descreve a realidade também pode ser uma superfície, o plano ordinário. Nesse mundo - o mais familiar aos nossos sentidos-, as linhas rectas são exactamente linhas rectas no plano e é facílimo ver como este modelo satisfaz o postulado das paralelas: numa superfície plana, por um ponto exterior a uma recta passa uma só paralela a essa recta. Por outro lado, num plano os segmentos de recta podem ser prolongados indefinidamente. O problema, a ser resolvido mais pelos cientistas do que pelos matemáticos, de se determinar se o universo é como uma pseudo-esfera, uma esfera ou um plano só recebeu alguma atenção já muito dentro do nosso século, sobretudo porque os cientistas levaram muito tempo a convencer-se de que uma questão de tal relevância pode ser respondida cientificamente. Essa demora deveu-se ao facto de não se perceber como determinar a geometria de algo de que podemos ver somente uma parte reduzida. Foi Albert Einstein o primeiro cientista a afirmar que o problema era solucionável e a mostrar-nos como proceder para isso. Em 1915, Einstein publicou a sua teoria geral da relatividade, que explica como inferir a geometria global de qualquer coisa tão grande como o universo, pela coordenação de observações efectuadas sobre distâncias relativamente tão microscópicas como as presentemente acessíveis aos seres humanos. A essência dessa explanação pode ser ilustrada pela situação seguinte: imaginemos que a um cartógrafo se pede· que deduza a forma da Terra mediante caminhadas em determinada zona da sua superfície. Equipado com os melhores instrumentos, o nosso cartógrafo percorre 100 km sucessivamente em três direcções: sul, oeste e norte. O leitor naturalmente apostará que, se o cartógrafo em seguida percorrer 100 km para leste, terminará o passeio exactamente no ponto de partida, fechando um quadrado de 100 km de lado. Porém, a verdade é que o caminhante, no último troço do percurso, chegará ao ponto de

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partida antes dos 100 km, digamos, quando tiver percorrido 98 k.m. 1• Das duas, uma: ou o ponto de partida saiu do lugar durante o passeio, ou o instrumento de medida dos percursos está avariado. Que terá acontecido? O que aconteceu foi que o senso comum nos enganou, levando-nos a pensar que as quatro direcções cardiais são, numa superfície esférica, exactamente perpendiculares entre si, como numa superfície plana. Ora, nem o ponto de partida se deslocou nem o aparelho de medida está avariado. Na verdade, ficou-se foi a saber que a Terra não é plana. O cartógrafo não percorreu um quadrado perfeito porque a Terra é, grosso modo, uma esfera e a sua geometria é riemanniana, não euclidiana. Eis o que realmente aconteceu ao cartógrafo. Começando algures no hemisfério norte, caminhou primeiramente em direcção ao equador, ao longo dum meridiano, depois para oeste, ao longo dum paralelo, depois para norte, ao longo de outro meridiano, ficando no fim deste terceiro troço mais perto do ponto de partida, porque os meridianos convergem para o Pólo. (Podemos agora responder à adivinha de abertura do ensaio: o urso era branco porque o trajecto triangular percorrido pelos caçadores só faz sentido se o ponto de partida estiver no Pólo Norte.) Hoje, os astrónomos esperam inferir a geometria do universo por um processo semelhante ao que acabámos de descrever e esperam alcançar bons resultados, em parte pela confiança que depositam em Einstein e na sua teoria, em parte porque os seus conhecimentos das várias geometrias são já tão minuciosos

1 No hemisfério norte e a uma distância do equador superior a 50 km. Se essa distância for exactamente 50 km, o último troço do percurso serâ 100 km. Finalmente, para um ponto de partida mais perto do equador, ou no hemisfério sul, o último troço seria superior a 100 km. (N. do T.)

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e completos que o senso «incomum» faz já parte do seu pensamento. Através do senso incomum podemos aprofundar a nossa intimidade com as coisas, incluindo mundos hipotéticos, fisicamente inacessíveis e portanto estranhos ao nosso senso comum. Armados com telescópios ópticos ou de rádio e com a teoria de Einstein, os cosmólogos modernos procuram determinar a distribuição local da matéria, principalmente na forma de estrelas e nuvens difusas de gases luminosos e poeiras. O seu intento é decidir qual a geometria do universo, mas, até agora, as observações não têm sido suficientemente precisas para nos darem uma resposta sem ambiguidade. No entanto, vai-se reforçando a pouco e pouco a convicção de que a geometria do universo é a descoberta por Gauss, Bolyai e Lobatchevski. De certa maneira, este resultado é o segundo revés sofrido pela nossa tendência em exaltar o senso comum. Depois dos numerosos golpes contra ele dirigidos durante os últimos milénios, é caso para perguntar se podemos continuar a confiar nele ao estudar o extenso universo. Em suma, será, desta ou daquela maneira, o nosso senso comum universal? Os nossos conhecimentos das geometrias não euclidianas possibilitam-nos responder a esta pergunta. Presentemente, para os matemáticos é ponto assente que os mundos representados pelas geometrias de Euclides, Lobatchevski e Riemann, embora muito diferentes uns dos outros quando observados globalmente, são muito semelhantes quando observados em pormenor - todos parecem planos. Isto não deve surpreender-nos, já que, como sabemos, os nossos antecessores se enganaram durante muito tempo, julgando a Terra plana, e não esférica, através exclusivamente de observações locais a curta distância. Mas não há qualquer propriedade intrínseca que justifique esta primazia da geometria euclidiana - o universo, quando visto de muito perto, podia parecer lobatchevskiano ou riemanniano. É portanto o facto de 123

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parecer euclidiano que nos ajuda a compreender em parte as origens do nosso senso comum euclidiano. É tudo uma questão de escala; o nosso senso comum euclidiano nada tem que ver com a nossa humanidade nem com o meio humano em si. O senso comum que nos induziu, há 2000 anos, a acreditar na universalidade da geometria euclidiana depende somente da escala da nossa existência e da perspectiva dos nossos sentidos, e não de quaisquer tendências antropocêntricas especiais. Talvez haja algures no universo outras criaturas que, compartilhando a nossa perspectiva restrita, tenham igualmente venerado por algum tempo, no começo das suas histórias intelectuais, a geometria euclidiana. Ironicamente, por causa do senso incomum que adquirimos ao estudar as geometrias não euclidianas, o nosso senso comum foi a um tempo humilhado e exaltado. Humilhado, porque hoje sabemos não poder confiar nele para a compreensão do mundo; exaltado, porque hoje também sabemos com precisão matemática que, se existe vida extraterrestre, como crêem muitos astrónomos, o nosso senso comum é positivamente universal.

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Teorema de Godel

MATÉRIA DE FÉ O que é determinado, ordenado, factual, nunca chega para abarcar a verdade inteira. Boris Pastemak

Até há cerca de cinquenta anos, a verdade para os matemáticos foi sinónimo de demonstração lógica. Uma hipótese era verdadeira se podia ser logicamente demonstrada e falsa no caso contrário. Por esta razão, .os matemáticos actuavam num mundo de fantasia, no qual não havia lugar para a fé porque era possível demonstrar a verdade ou falsidade do que quer que fosse. Ao invés, no mundo familiar ao resto da humanidade, a fé descpenha papel de relevo no julgamento da verdade. Em particular, hipóteses controversas, como as teorias darwinianas e teleológicas sobre a origem da nossa espécie, são largamente aceites como verdadeiras, mesmo que isso não tenha sido demonstrado (e talvez nunca o venha a ser). Em 1931, contudo, o mundo fantasioso dos matemáticos tomou-se um pouco mais realista quando o lógico vienense Kurt Gõdel provou que existem e sempre existirão verdades matemáticas impossíveis de demonstrar por via lógica. Subitamente, o mundo matemático concedeu um papel formal à subjectividade, dado que o único modo de reconhecer uma verdade 125

PONTES PARA O INFINITO

indemonstrável, matemática ou de outra qualquer espécie, é aceitá-la como matéria de fé. (A subjectividade sempre teve um papel informal, a ponto de os matemáticos perseguirem e condenarem os pressentimentos e outras formas de intuição na formulação de hipóteses.) Foi uma modificação cujas consequências ainda não conhecemos bem, porque, se os matemáticos já se decidiram a admitir a existência de verdades indemonstráveis, continua ainda obscuro o papel que a fé desempenhará exactamente neste novo mundo post-godeliano. Na realidade, o velho mundo dos matemáticos começou, na viragem do século, a ceder o lugar ao novo, com o colocar da lógica sob suspeita. Até aí sempre a lógica gozara da fama de padrão infalível de demonstração. Alguns matemáticos, como o inglês Bertrand Russell, trouxeram para a liça paradoxos lógicos que não podem ser resolvidos sem certa reabilitação da lógica tradicional. Para cúmulo, grassa grande desacordo entre os matemáticos sobre qual remédio escolher de entre os possíveis. Estes acontecimentos foram particularmente aborrecidos na época, porque os matemáticos se encontravam então empenhados num esforço colectivo para deduzir verdades aritméticas, do mesmo modo que Euclides deduzira as suas verdades geométricas - isto é, logicamente, a partir de um pequeno conjunto de postulados. Era um esforço importante, porque, durante séculos, o desenvolvimento da aritmética processara-se ao acaso e muito tinha sido aceite sem demonstração, de modo que não se podia ter qualquer certeza sobre a solidez lógica do edifício aritmético. Mas os esforços despendidos foram vãos, dado que os debates se prolongaram até aos anos 30. Foi então que Gõdel invalidou esses esforços e pôs termo aos debates ao provar que sempre haverá verdades matemáticas indemonstráveis pela lógica. Isto foi já digno de nota, mas o que tomou a proeza de Gõdel ainda mais retumbante foi o facto de ele ter usado a lógica para incriminar a lógica. 126

MATJtRIA DE Flt

O caminho seguido consistiu em considerar uma hipótese como: «Usando a lógica, não é possível provar que esta hipótese é verdadeira.» Isto é muito semelhante à pergunta posta a uma senhora num programa recente de televisão: «É verdade que quando diz não, na realidade quer dizer sim?» Por causa da sua peculiar auto-referência, a hipótese de Gõdel conduz inevitavelmente a uma contradição, quer a suponhamos verdadeira quer falsa. Imaginemos, por um lado, que, por via lógica, provamos que a hipótese é verdadeira. Mas o ter sido provada verdadeira significa que contradissemos a afirmação de que «não se pode provar ser esta hipótese verdadeira», o que implica que a hipótese seja na realidade falsa. Em resumo, ao provar que é verdadeira provamos que é falsa, o que não tem sentido. Imaginemos, por outro lado, que, por via lógica, provamos que a hipótese é falsa. Isto significa que verificámos a afirmação de que «não se pode provar ser esta hipótese verdadeira», o que implica que a hipótese seja na realidade verdadeira. Ao provar que a hipótese é falsa provamos que é verdadeira, o que novamente não tem sentido. Ao mesmo tempo, torna-se evidente, como resultado desta análise, que a hipótese é verdadeira: «Por via lógica, não se pode provar que esta hipótese é verdadeira.» Não podemos dizer que provámos que a hipótese é verdadeira, porque então voltaríamos a cair em contradição lógica, mas podemos dizer que a hipótese, duma maneira ou doutra, é evidentemente verdadeira! Foi esta revelação que levou Gõdel a conjecturar haver um número indefinido de hipóteses matemáticas que se comportam deste modo, hipóteses que, extralógica, são verdades evidentes, mas que se furtam a qualquer demonstração lógica da sua veracidade. Chamar-lhes-emos aqui «verdades indemonstráveis». Gõdel não especificou quantas verdades indemonstráveis poderá haver em matemática nem clarificou a natureza da

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PONTES PARA O INFINITO

faculdade extralógica que habilita um matemático a reconhecer uma verdade aritmética que não pode ser demonstrada logicamente. Portanto, em princípio, os matemáticos têm agora de actuar num mundo onde cada hipótese matemática é potencialmente uma verdade indemonstrável e onde ainda não é claro a que espécie de princípio extralógico se deve acorrer ao avaliar a veracidade duma hipótese que se suspeita seja uma verdade indemonstrável. Um exemplo aritmético de tais hipóteses é a conjectura de Goldbacb, a qual nos diz que todo e qualquer número par é a soma de dois números primos. (Número primo é aquele que só é divisível por si próprio e pela unidade: 1, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23, etc.). Os números pares 2, 4, 6 e 8, por exemplo, podem ser expressos como a soma de dois números primos (1 + 1, 1 + 3, 3 3, ou 1 5 e 1 7, respectivamente). A conjectura foi formulada em 1742 pelo matemático alemão amador Christian Goldbach, que a submeteu à apreciação do eminente matemático suíço Leonhard Euler. Este foi incapaz de a demonstrar e até hoje ainda ninguém o conseguiu, conquanto se tenha levado a sua verificação até ao número 2 000 000. À luz da descoberta de Gõdel, a incapacidade dos matemáticos para, durante quase 250 anos, demonstrar a conjectura de Goldbach sugere que ela é ou uma verdade indemonstrável ou então uma falsidade plena, não obstante as provas a seu favor. E quanto mais tempo passa, menos evidente se torna qual das duas hipóteses é a verdadeira. Deste modo, é cada vez mais urgente para os matemáticos decidir quanto tempo esperar e qual o critério a usar na determinação de qual das hipóteses é provavelmente correcta. O uso da palavra «provavelmente», associada a decisões acerca de verdades matemáticas, era desconhecido no mundo de fantasia dos matemáticos pre-godelianos, mas agora a importância dessa decisão acertada não pode ser dissimulada.

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MATÉRIA. DE FÉ

Se nenhuma decisão for tomada, uma conjectura que pode ser verdadeira vai permanecer sem utilidade numa espécie de purgatório matemático. Mas, se a decisão tomada for errada, uma conjectura possivelmente falsa continuará a ser usada impropriamente, como base para outros resultados aritméticos. Em qualquer dos casos, a decisão não será definitiva. A questão do critério é em especial momentosa porque a descoberta de Gõdel garante que a base para um tal critério é necessariamente um qualquer princípio extralógico de fé. E a assimilação pela matemática de qualquer princípio de fé prende-se a uma mudança de carácter da própria matemática, se bem que a natureza exacta da mudança dependa em grande parte do princípio específico que for adoptado. À escolha dos matemáticos apresenta-se um vasto leque de princípios de fé, mas dois deles representam os extremos, a que chamo os princípios secular e místico, respectivamente. De acordo com o princípio secular, uma hipótese é declarada verdadeira a título experimental quando for a explanação mais simples dos testemunhos. Como tal, é um princípio que reflecte a convicção de que uma hipótese deverá ser intelectualmente estética - isto é, racionalmente plausível e concisa-, ao mesmo tempo que explica os testemunhos. Foi guiado por este princípio que no século XVI Copérnico veio a acreditar na teoria heliocêntrica do sistema solar, em desfavor da geocêntrica, então mais popular, embora ambas se coadunassem com os resultados disponíveis da observação. A fim de conciliar os movimentos observados dos planetas com a hipótese de a Terra se situar no centro do sistema solar, os geocentristas eram obrigados a imaginar um modelo bastante mais complicado para o sistema solar. Em contraste, as órbitas simétricas e ordenadas atribuídas aos planetas pelo modelo heliocêntrico de Copérnico despertavam um apelo intelectual muito maior. Baseado exclusivamente neste critério, Copérnico advogou a causa do heliocentrismo. 129

PONTES PARA O INFINITO

Este princípio secular é na ciência moderna um cânone de fé, a que em geral se chama «princípio da rasoira de Occam» (ou lei da parcimónia). William of Occam, filósofo escolástico do século XIV, foi o primeiro a avançar a ideia de que non sunt multiplicanda entia preater necessitatem («as entidades não devem ser multiplicadas além do necessário»), ideia que, parafraseada no século XIX pelo cientista austríaco Erust Mach, instrui os cientistas no sentido de acreditarem só naquelas hipóteses que explicam os dados da experiência de maneira objectiva e concisa. Ao contrário do princípio secular, o princípio místico da fé julga uma hipótese não apenas pela sua explicação dos testemunhos da observação, mas também pelo grau de consistência com uma filosofia qualquer, que atribua propósitos a todas as coisas. Portanto, enquanto o princípio secular implica que a veracidade duma hipótese depende só daquilo que podemos verificar com os nossos cinco sentidos, o princípio místico obriga ao acréscimo duma intencionalidade, factor não sensorial que tem de ser tomado em consideração ao determinar-se a veracidade. Este princípio de fé levou o arquidiácono William Paley, teleólogo do século XIX, a acreditar na hipótese de criação divina por ele designada «argumento-a-partir-da-forma» e a negar a hipótese da evolução de Darwin, apesar de ambas as hipóteses, como tinha acontecido com o sistema solar, explanarem os dados então disponíveis. Para explicar cientificamente a origem das expécies, Darwin foi conduzido a interpretar a variedade e a harmonia dos reinos animal e vegetal sem lhes atribuir qualquer propósito. Para Darwin, a harmonia e a variedade são o produto inevitável num processo sem qualquer finalidade que selecciona de entre as mutações genéticas acidentais somente as melhor adaptadas ao ambiente. Ao invés, a hipótese mística do argumento-a-partir-da-forma explica as mesmíssimas variedades e harmonia como sendo deliberadamente determinadas por um agente com um dado propósito. Ao contrário da hipótese de 130

MATltRIA DE FS

Darwin, esta é verdadeira para o princípio místico de fé e, por esta razão, Paley advogou-a. Nos seus famosos debates com Darwin, Paley apresentou o seu argumento mais ou menos assim: suponha que viaja através dos campos, quando de súbito dá conta de algumas rochas numa colina que desenham a frase BEMVINDO A MASSACHUSETTS. Muito provavelmente, não lhe ocorrerá duvidar de que essas rochas foram assim dispostas com determinado propósito, mas também é concebível que alguém afirme ser aquele arranjo das pedras apenas o resultado fortuito das forças geológicas naturais actuando durante muitos, muitos anos. Essa pessoa pode igualmente acreditar no aparecimento, fora de qualquer propósito, da vida humana na Terra. Contudo, independentemente das suas crenças, se você depende do arranjo das pedras para ter a certeza de que vai entrar em Massachusetts, necessariamente reconhecerá que a verdade pertence à interpretação teleológica. De outro modo, o seu comportamento seria irracional - você não pode seguir as duas hipóteses. Considere-se agora o olho humano. Tal como com as rochas, o olho, na qualidade de órgão sensitivo, pode ser interpretado como tendo um propósito ou como resultado das forças evolucionárias. Ora, qualquer que seja a sua crença, se você depende dos seus olhos para saber qual a aparência do mundo, tem de aceitar que a verdade reside na interpretação teleológica. Conclusão: dado que podemos argumentar de modo semelhante em relação a cada um dos nossos· estraordinários órgãos - incluindo o cérebro -, segue-se que o corpo humano foi criado com um propósito. No mundo da matemática sempre houve duas filosofias dramaticamente opostas, das quais é possível que resultem dois princípios de fé distintos, versões dos priricípios secular e místico. Os partidários da corrente secular, os formalistas, acreditam que a matemática é puramente uma invenção da mente humana 131

PONTES PARA O INFINITO

e, de acordo com eles, as hipóteses matemáticas não se referem a nada real. Provar uma hipótese significa apenas que ela é uma invenção bem sucedida, muito como um aeroplano que realmente voa. Opostos aos formalistas e partidários de uma filosofia de pendor místico, os platonistas pensam que a matemática, como ciência, é um meio infalível de descoberta da verdade que existe independentemente da mente humana. Para eles, as hipóteses matemáticas referem-se a objectos reais - as verdades matemáticas incorpóreas - e demonstrar uma delas é equivalente a verificar uma hipótese científica, tal como o geocentrismo. Admito a possibilidade dum debate entre platonistas e formalistas para determinação da verdade ou falsidade de hipóteses que, como a conjectura de Goldbach, ultrapassam o campo de acção exclusiva da lógica. Por um lado, os formalistas inclinam-se a considerar tais hipóteses como invenções falhadas, aceitando que uma invenção, se não foi ainda demonstrada após 250 anos de esforços, muito provavelmente nunca o será. Por outro lado, os platonistas, em que Gõdel se incluía, têm propensão a olhar as hipóteses matemáticas do género da conjectura de Goldbach como se fossem hipóteses científicas semelhantes ao moderno darwinismo - talvez impossíveis de provar, mas a nós recomendadas por um crescente corpo de testemunhos. Posto que Gõdel nos garante que sempre existirão hipóteses logicamente irresolúveis, é de presumir que desacordos como aquele se tomarão tão comuns no mundo da matemática como os desacordos sobre a existência de Deus no mundo real. Entretanto, no mundo do matemático de hoje, verdade não é sinónimo de demonstração lógica, mas, por outro lado, confiar na validade duma demonstração lógica acaba por ser também matéria de fé. E é assim porque Gõdel provou não só que 132

MATÉRIA DE FÉ

qualquer sistema lógico é incapaz de demonstrar todas as asserções matemáticas realmente verdadeiras, como ainda que qualquer sistema lógico é incapaz de demonstrar a sua própria consistência lógica. Ou, por outras palavras, acreditar na lógica é um esquema mental não menos subjectivo do que, digamos, acreditar num princípio de fé, secular ou místico, porque mesmo a lógica não pode ser verificada lógica ou objectivamente. Isto não quer dizer que a percepção tradicional, pelos matemáticos, da lógica como algo não sujeito a dúvida é impossível de conciliar com os resultados alcançados por Gõdel. Considere-se o geocentrismo, que, tal como a lógica, foi durante algum tempo largamente aceite como indubitável, com base numa crença, com muito de mística, no significado divino da vida na Terra. Nos anos recentes, o geocentrismo foi reconciliado com as realidades da ciência moderna pelo reconhecimento de que o nosso planeta ocupa uma posição única no sistema solar - a única propícia à vida -, mesmo que essa posição não coincida com o centro geométrico. Talvez que, no futuro, a velha confiança dos matemáticos na infalibilidade da lógica se venha a conciliar de modo semelhante com as realidades da matemática moderna. A descoberta de Gõdel deslocou a matemática do centro do mundo matemático, mas, ao fazê-lo, desafiou-nos a localizar uma posição excêntrica, embora única, para esta raridade entre os princípios de fé: uma apaixonada forma de crer que reconhece as suas próprias deficiências. Ensaio relacionado «Um certo tesouro»

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PARTE III

OPTIMIZAÇÃO

Teoria das probabilidades e estatística

A BOLA DE CRISTAL FOSCA Num pequeno número de coisas podemos ter toda a certeza [...] o principal meio de procurar a verdade baseia-se nas probabilidades. Pierre Simon de Laplace

Tudo o que os físicos têm aprendido sobre o mundo natural nos convida a aceitar a incerteza, mesmo no comportamento dos átomos, em tempos tido como predizível por completo. Até no ponto em que é ainda possível predizer o comportamento impredizível, dependemos da teoria matemática das probabilidades e da sua ramificação moderna, a estatística, que são, em alguns casos, a única. via para levar o nosso mundo impredizível a tomar-se predizível. Numa escala de imprevisibilidade, os comportamentos que, quando muito, podem ser descritos em termos de probabilidades, como, por exemplo, o comportamento dos dados, situam-se algures entre o comportamento totalmente previsível (translação da Lua em volta da Terra) e o completamente imprevisível (números gerados ao acaso). O comportamento completamente predizível ou determinista é o dos objectos que se encontram sujeitos a leis rígidas. Todo o futuro de tais objectos pode ser predito com base no conhe137

PONTES PARA O INFINITO

cimento do seu estado presente e das leis que governam a sua evolução. Por exemplo, todos os corpos celestes se movem de modo determinado, em obediência exclusiva à gravidade. Foi por causa dos êxitos obtidos na previsão dos movimentos dos astros, como o cometa de Halley, que muitos cientistas do século xvm admitiram a possibilidade de vir a prever com igual precisão o comportamento do que quer que fosse, incluindo um ser humano. Desnecessário dizer que hoje ainda prevemos o retorno do cometa de Halley muitíssimo melhor do que prevemos qualquer outro facto. No outro extremo da escala, dos comportamentos completamente imprevisíveis, situam-se aquelas entidades cuja conduta não é governada por qualquer espécie de lei. Tal comportamento notoriamente caprichoso é sem dúvida muito raro, se não mesmo inexistente: quer nas disciplinas físicas, quer nas sociais, ainda está por descobrir um fenómeno natural inteiramente impredizível, ou caótico, o que parece convir à maior parte dos cientistas, dado ser um ponto de fé em ciência que os mecanismos do universo sejam inteiramente racionais, e conduta impredizível é tudo o que quisermos menos racional. Porém, a ausência de qualquer modelo natural do caos cria dificuldades aos matemáticos e cientistas que, interessados em estudar o caos, pretendem construir modelos perfeitamente aleatórios. De facto, de meu conhecimento não existe ainda nenhum modelo do caos cujo comportamento não tenha revelado incluir algum esquema previsível. Entre os dois extremos da escala distribuem-se os comportamentos que com mais frequência encontramos no mundo. É o comportamento que, embora não governado por qualquer lei no nível individual, já é governado por leis estritas no nível colectivo. Tal é a natureza paradoxal do comportamento probabilístico, aquele que só pode ser descrito em termos de pro habilidade. 138

A BOLA DE CRISTAL FOSCA

Tomemos um exemplo: num espaço cheio de moléculas de ar, sistema que se sabe comportar-se probabilisticamente, a velocidade de cada molécula, isoladamente, é um valor entre O e 300 000 km/s (velocidade da luz). Falando antropologicamente, cada molécula pode escolher livremente a velocidade a que prefere deslocar-se. Mas, ao mesmo tempo, há uma lei da termodinâmica (a física da energia) que impõe um esquema completamente predizível à colecção de «livres escolhas». De acordo com essa lei, algumas velocidades serão mais ou menos representadas do que outras, conforme a temperatura do espaço. Esta situação dum espaço cheio de moléculas deve ser, grosso modo, análoga à duma sala cheia de pessoas esfomeadas, depois de ter sido anunciado que cada uma tem à sua escolha três tipos de refeição, mas que será servido um número limitado de refeições de cada tipo. Estes sistemas são simultaneamente caóticos e deterministas e podem parecer previsíveis, mesmo que o não sejam. A teoria das probabilidades dá-nos os meios matemáticos para predizer o futuro dos· sistemas probabilísticos com a precisão possível. Para a massa de ar, quer isto dizer que podemos predizer a sua evolução global: o sistema manter-se-á confinado ao espaço em que se encontra, a uma temperatura fixa, a menos que algo estranho interfira com ele. Mas o futuro específico de cada molécula não faz parte da predição. Em primeiríssimo lugar, a teoria das probabilidades clarifica o que queremos exactamente dizer com o termo «probabilidade», que se define, em termos hipotéticos, como o número de vezes em que determinado resultado foi encontrado em cada centena de ensaios efectuados infinitas vezes num sistema probabilístico, como é, por exemplo, o lançamento aleatório dum par de dados. Dizer que a probabilidade de saída do duplo seis é aproximadamente 5 em 100 (5 %) significa que numa cadeia infinita de lançamentos sairá o duplo seis cerca de cinco vezes em cada 139

PONTES PARA O INFINITO

centena de lançamentos, mas não significa que obrigatoriamente o duplo seis sairá cinco vezes em cada centena. Claramente, a definição de probabilidade é impossível de aplicar quando tomada à letra, porque, na realidade, não podemos lançar um par de dados, ou ensaiar qualquer outro sistema probabilístico, um número infinito de vezes e, portanto, nunca poderemos medir probabilidades de acordo com a sua definição teórica. Porém, segundo a teoria das probabilidades, podemos medir algo muito próximo da probabilidade definida teoricamente por observação dos resultados dum número muito grande de ensaios efectuados com um sistema probabilístico. Quanto maior o número de ensaios mais a probabilidade medida se aproximará da teórica. Da análise de longuíssimos registos (dezenas de milhões de casos) de nascimentos humanos e de lançamentos duma moeda apurou-se que a probabilidade de o nascituro ser do sexo masculino é aproximadamente igual à de saída de coroa qualquer coisa como 51 em 100. São, é certo, probabilidades medidas, mas temos o direito de pensar que estão muito perto das teóricas. Se a teoria das probabilidades esclarece o que queremos dizer com comportamento probabilístico, a estatística, sua filha, dá-nos o processo de reconhecer o que é determinista naquele comportamento probabilístico. Assim, com as suas técnicas - ou «artes negras»,, como lhes chama um colega meu -, os estatísticos podem prever o futuro de comportamentos que com frequência parecem bastante imprevisíveis. A este respeito, os estatísticos são os que mais se aproximam dos profetas, na matemática moderna. O elemento central do trabalho dos estatísticos é a amostra estatística. Isto é, as conclusões a que um estatístico chega em relação a uma população, seja ela de moléculas de ar, seja uma multidão de pessoas, são sempre elaboradas aos poucos através do estudo duma amostra dessa população. Em princípio,

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A BOLA DE CRISTAL FOSCA

os indivíduos incluídos numa amostra estatística devem ser representativos da população, em todos os aspectos, mas na prática é usualmente mais fácil e cómodo seleccionar uma amostra representativa só em alguns dos aspectos mais salientes. Numa população de pessoas, estes aspectos podem ser a raça, o sexo, a idade, a profissão. Em geral, os estatísticos têm técnicas pessoais para seleccionar amostras representativas e naturalmente que quanto mais acertadas forem essas selecções mais exacta será a informação que obterão sobre a população em globo. As técnicas variam de acordo com a eficiência com que a amostra é seleccionada, o modo de verificação da sua representatividade e outros factores dependentes da técnica específica usada. George Gallup é um estatístico cuja técnica - segredo profissional - é largamente acreditada como conduzindo a predições especialmente fidedignas sobre o comportamento probabilístico. Evidentemente, Gallup usa uma metodologia particularmente expedita (o seu pessoal recolhe as informações pelo telefone ou em inquéritos de porta a porta) e de confiança (a sua organização possui extensa biblioteca sobre demografia da América, por onde Gallup se guia na selecção de amostras estatísticas que sejam na verdade microcosmos da população global). Uma vez construída uma amostra, os estatísticos avaliam o comportamento dos seus elementos para algumas propriedades deterministas que lhes possibilitam fazer predições sobre o comportamento da população como um todo. Entre estas propriedades que, em número crescente, os estatísticos têm vindo a identificar destacam-se três pelo papel muito importante que desempenham e que são as percentagens, as médias e as correlações. Uma percentagem estatística é simplesmente a percentagem de indivíduos numa amostra que têm um comportamento particular. No caso das moléculas de ar, temos, por exemplo, a 141

PONTES PARA O INFINITO

percentagem de moléculas com velocidades elevadas. O conhecimento desta percentagem pode auxiliar o estatístico a predizer a rapidez com que as moléculas se difundiriam se fossem subitamente libertadas. Uma parte do problema que desafia os estatísticos consiste em decidir quais as percentagens que convém conhecer e o que é que elas, uma vez conhecidas, permitem predizer. Um problema desta natureza não tem nenhuma solução simples e a inexactidão é uma das razões por que os matemáticos se referem habitualmente à estatística, dizendo que tem tanto de arte como de ciência. A organização de A. C. Nielsen fez da determinação de percentagens estatísticas uma indústria informadora das administrações das emissoras de televisão. Cada amostra estatística é constituída por 1500 receptores instalados nas residências de famílias seleccionadas de modo a constituírem um segmento representativo da população americana. Aos membros de cada agregado pede-se que dêem uma relação das suas preferências e, com base nesta informação, a organização Nielsen determina as percentagens de expectadores dos diversos programas, percentagens que possibilitam decidir quais os programas que voltarão a ser projectados. Os nossos hábitos de espectadores tomaram-s·e tão conhecidos da indústria televisiva que em muitos casos é já possível prever quais os programas de maior aceitação ainda ant!:S de serem projectados. Isto também ilustra a natureza paradoxal do comportamento probabilístico - ao nível individual somos imprevisíveis, cada um de nós é ostensivamente livre de escolher o programa a ver na televisão; mas ao nível colectivo somos totalmente previsíveis. A média estatística é outra propriedade das amostras que nos auxilia nas predições do comportamento probabilístico. Na maior parte dos casos refere-se ao comportamento médio, que é o comportamento representativo, em certo sentido, dos vários comportamentos observados na amostra. Estes, por seu turno, 142

A BOLA DE CRISTAL FOSCA

serão representativos da miríade de comportamentos da população real. Quanto mais prevalecente um comportamento particular for numa população - a preferência pelo chocolate, por exemplo - mais peso terá na determinação do comportamento médio. É em geral sabido que as companhias de seguros depositam muita confiança nas médias estatísticas e na estatística em geral. As médias são a base das tabelas actuariais, as quais, por sua vez, são a base dos seus rendimentos. O facto de as companhias de seguros de vida terem lucros ao longo dos anos é prova bastante da previsibilidade do comportamento probabilístico e das grandes possibilidades de aplicação da matemática à antevisão de algo na aparência tão imprevisível como é a data da nossa morte. Actualmente, as companhias de seguros de vida podem dizer-nos com grande precisão a longevidade média de pessoas com os nossos hábitos, personalidade, herança genética, raça, proventos, etc. Na determinação dos aspectos deterministas do comportamento probabilístico é ainda vulgarmente usada a correlação estatística, cujo cálculo exige o tratamento de, pelo menos, duas amostras, uma das quais continua a ser a que foi escolhida para representar a população em estudo e a que se chama «amostra de referência». A outra é uma amostra predominante ou totalmente constituída por indivíduos que se distinguem por um qualquer traço específico, como fumarem cigarros. Se uma meticulosa comparação dos dois grupos revela quaisquer disparidades notáveis, estas são vistas como ligadas ao traço (fumar cigarros) que se sabe distingue as amostras. Na realidade, no caso dos fumadores versus o grupo de referência apurou-se haver uma percentagem de vítimas do cancro do pulmão menor na amostra de referência do que na dos fumadores. É portanto lícito dizer que o cancro do pulmão está correlacionado com o fumo, Tal correlação serve para predizer que quem fuma é mais susceptível de morrer de cancro do pulmão, e mais cedo do que 143

PONTES PARA O INFINITO

quem não fuma. As correlações desta espécie são de particular interesse para as companhias de seguros por serem indicadores de quais os clientes de alto ou de baixo risco. Algumas companhias têm usado ainda as correlações em campanhas publicitárias em que são oferecidos benefícios vários aos clientes de baixo risco. Por exemplo, há companhias que oferecem seguros de vida com taxas excepcionalmente baixas a mulheres brancas de meia-idade, saudáveis, não fumadoras e que não conduzem carros. Isto é consequência das altas correlações encontradas entre o cancro do pulmão e o fumar cigarros; a morte nas estradas e adultos jovens; a morte violenta e jovens negros; e ainda uma baixa esperança de vida dos indivíduos do sexo masculino em geral. Lastimavelmente, os mesmos meios usados para predizer o comportamento estatístico podem ser usados também para o influenciar, quer involuntária quer deliberadamente. Porque, ao informar-nos sobre o nosso comportamento colectivo previsível, as estatísticas podem influenciar a livre escolha ao nível individual a ponto de eliminar o aspecto caótico e imprevisível do comportamento probabilístico não influenciado. Sob tais influências, o nosso comportamento pode tornar-se tão determinista como o movimento do cometa de Halley. Admite-se que um caso destes tenha ocorrido, em proporções modestas, mas não irrelevantes, nas eleições presidenciais de 1980, com as candidaturas de Ronald Reagan e Jimmy Carter. Horas antes do fecho das urnas na costa ocidental já as redes de televisão vaticinavam, com base nos resultados de amostragens da costa leste, a vitória de Reagan. Se bem que não saibamos se isto realmente influenciou os votantes da costa oeste, é plausível que esta predição tenha quer desencorajado quer encorajado os eleitores ao darem o seu voto a um ou outro dos candidatos, quer ainda a absterem-se de votar. A estatística pode ser também indevidamente usada contra certo tipo de comportamento e, por associação, contra cer144

A BOLA DE CRISTAL FOSCA

tas pessoas. Por exemplo, com fundamento em determinadas médias estatísticas, alguns patrões podem sentir relutância em assalariar pessoas que não acertem com os perfis adaptados pelas respectivas empresas e, de modo similar, alguns proprietários de restaurantes não gostam de atender mulheres isoladas porque os estatísticos apuraram que esse tipo de cliente, em média, consome menos e monopoliza as mesas por mais tempo do que qualquer outro tipo. Mesmo quando a estatística é aplicada adequadamente e com sensibilidade, não está ainda esclarecido qual seja a sua utilidade na predição daquelas atitudes e decisões que historicamente se provou terem a mais significativa influência no futuro: a estatística somente nos revela os aspectos previsíveis do comportamento histórico humano, mas não os imprevisíveis, e foram estes que se provou terem mais consequências. Inovações como a máquina de vapor e o computador nasceram na mente de pessoas que seriam tudo menos do tipo médio. E, em geral, a vinda ao mundo de pessoas como Jesus, Sócrates, Newton e Einstein é tão imprevisível como influente, de modo que os efeitos das suas existências no nosso comportamento histórico são quase completamente caóticos. É natural perguntar se chegaremos a descobrir um processo matemático de predição dos aspectos caóticos de comportamento probabilístico, tal como aconteceu para os aspectos deterministas. Se assim suceder, o comportamento humano parecerá inteiramente determinista e seremos capazes de prever todo o futuro da nossa espécie e do nosso universo. A probabilidade dum tal acontecimento pode parecer-nos agora pequena, mas não é zero. Precisamente porque um aspecto do nosso comportamento é caótico, é impredizível, é que o aparentemente impossível será sempre provável.

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Teoria dos jogos de dois adversários

ENTRE AS DAMAS E O XADREZ Que jogue um só feixe da sóbria Razão, E os cristais de gelo da Fantasia fundirão! Rogers, Pleasures of Memory

Tem-se dito muitas vezes que os seres humanos se distinguem dos restantes animais pela sua capacidade de raciocínio, mas isto sempre me pareceu um modo pouco menos do que ambíguo de estabelecer o nosso conceito de espécie. Que é na realidade uma «capacidade de raciocínio», como podemos avaliá-Ia e em que grau temos nós esta mal definida capacidade? As respostas a estas perguntas podem ajudar-nos a melhor determinar a nossa posição entre as espécies animais e a colocarmo-nos, de uma vez para sempre, no lugar correcto. Um meio, aqui exposto, para atingir esse desiderato envolve a teoria dos jogos, estudo matemático dos conflitos racionais. No que se segue limitar-me-ei aos jogos de duas pessoas, em que a vitória duma implica a derrota da outra, como, por exemplo, o dominó. A principal razão que faz deste tipo da teoria dos jogos um meio apr,opriado à avaliação da nossa capacidade de raciocínio é a sua relação com lutas estritamente racionais, em que a emoção não desempenha papel algum. (As emoções são somente um 147

PONTES PARA O INFINITO

factor neste género de jogos, nos quais não há sempre equilíbrio entre os ganhos e perdas dos jogadores - como acontece, por exemplo, na competição comercial num mercado em expansão - e nos jogos com três ou mais jogadores.) O facto de o êxito dum jogador ser estritamente determinado pela sua capacidade de raciocínio faz destes jogos o teatro perfeito para a representação do nosso «programa evolucionário da espécie». A teoria dos jogos fundamenta-se em algumas asserções específicas em relação à natureza dum confronto para assegurar a sua racionalidade. Estas asserções são, em certo sentido, as normas da casa. Em primeiro lugar, considera-se que os dois jogadores são igualmente competentes. Admite-se também que os jogadores analisaram todas as suas opções antes de executarem uma jogada. E vamos ainda admitir que, para todos os efeitos, os jogadores estão, em cada instante, igual e completamente esclarecidos sobre todos os aspectos do progredir do jogo. Diz-se dos jogos que incluem esta última hipótese que são jogos de informação perfeita. Neles, de que são exemplo as damas e o xadrez, não há quaisquer segredos entre os jogadores, ao contrário dos jogos de informação imperfeita, como o brídege ou a sueca. É o mais importante resultado da teoria dos jogos do género que temos vindo a tratar que serve de base ao esquema evolucionário das espécies aqui apresentado. Este resultado, provado em 1923 pelo matemático alemão Jokn von Neumann, especifica que há uma só estratégia óptima associada a cada um dos possíveis jogos de dois adversários, de vitória-derrota e informação perfeita. A designação de estratégia óptima advém do facto de cada um dos jogadores não poder proceder melhor do que seguir o seu papel na estratégia. Para compreendermos o significado de «não poder proceder melhor» relembremo-nos de que um jogador, na teoria dos jogos, enfrenta permanentemente um oponente que lhe é igual 148

ENTRE AS DAMAS E O XADREZ

em todos os aspectos relevantes. Consciente disto, o «jogador A» sabe que, ao longo de todo o jogo, o «jogador B» luta com igual competência e tenacidade para acumular vitórias. Nestas circunstâncias, a única estratégia racional do jogador A é minimizar o ganho do seu adversário através da acumulação de vitórias e, consequentemente, da minimização das suas próprias derrotas. Mas, como de certeza este mesmo raciocínio perpassa pela mente do jogador B, o melhor que cada jogador pode esperar é que, ao terminar o jogo, lhe suceda do mal o menos. Umá estratégia óptima cai sempre numa de duas categorias, justa e injusta, conforme garanta um empate ou a vitória dum dos jogadores. O jogo do galo tem uma estratégia óptima justa, que assegura o empate: o primeiro jogador começa por marcar um canto e o segundo o centro. Num outro jogo, em que cada jogador retira um número qualquer de pauzinhos da pilha colocada sobre a mesa, ganhando o que retirar o último, a estratégia óptima é injusta porque, ao segui-Ia, o primeiro jogador ganha sempre. A existência de estratégias óptimas para os jogos de dois adversários, vitória-derrota e informação perfeita, dá-nos a oportunidade de aferir a capacidade de raciocínio dos jogadores, oportunidade que deriva do facto de um jogo perder atractivos para quem descobriu a sua estratégia óptima, posto que, nesse caso, conhecem de antemão o resultado do jogo, o que, como é evidente, anula os incentivos para jogar. Podemos estabelecer facilmente uma escala da capacidade de raciocínio dum grupo pela observação de quais os jogos preferidos pelos adultos desse grupo. Se habitualmente jogam o jogo do galo, é porque o consideram suficientemente desafiante, ou seja, não lhe descobriram ainda a estratégia óptima. Esse facto permite-nos colocar a sua capacidade de raciocínio algures abaixo da de outro grupo para quem o jogo do galo não passa dum entretém para crianças.

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PONTES PARA O INFINITO

No jogo das damas aproximamo-nos do limite da nossa capacidade de raciocínio. Numerosos jogadores conseguiram já elaborar estratégias de trabalho, o que nos permite esperar que esteja ao alcance da nossa razão a única estratégia óptima que a teoria afirma existir para cada jogo. Outro jogo, que ainda se aproxima mais dos limites do nosso raciocínio, é o xadrez, que tende a ser mais popular entre os intelectuais do que as damas. Na União Soviética, os mestres de xadrez são adestrados e tratados como realezas e mesmo nos Estados Unidos, onde não se chega a tais extremos, é-se facilmente inclinado a olhar os referidos mestres como génios. Boby Fisher é exemplo recente de jogador de xadrez americano cujos talentos e excentricidades lhe granjearam prodigiosa notoriedade. Outra indicação do enorme e estimulante desafio que o xadrez põe às nossas capacidades é o ainda recente recurso à ajuda do computador para elaboração de estratégias, mas, mesmo assim, o que até agora se conseguiu, embora já muito satisfatório, não é ainda a estratégia óptima. O xadrez não atrairia uma tal atenção e uma estima tão efusiva por parte duma espécie cuja capacidade de raciocínio fosse suficiente para descobrir a sua estratégia óptima.-Para uma espécie trans-xadrez, este jogo seria uma distracção tão trivial como o jogo do galo é para nós. Os jogadores trans-xadrez conheceriam de antemão, dos 20 triliões de triliões de triliões de movimentos possíveis, quais os que assegurariam um resultado, quer o empate quer a vitória de um dos jogadores, conforme a estratégia óptima do xadrez seja justa ou injusta, o que ainda não sabemos. O único processo de o xadrez continuar a interessar a jogadores trans-xadrez é estes acordarem em não usarem a estratégia óptima. Poderíamos fazer uma ideia razoável da posição que ocupamos numa escala teórica de capacidade de raciocínio consultando um inventário particularmente minucioso dos jogos 150

ENTRE AS DAMAS E O XADREZ

que são para nós um desafio e dos que o não são. No entanto, dadas as poucas observações feitas, podemos, quando muito, estimar que os limites das nossas capacidades se situam algures entre as damas e o xadrez. Ao colocarmo-nos, como espécie, no nosso lugar, a teoria dos jogos, usada deste modo, lembra-nos que temos limites mensuráveis. Em particular, será um severo lembrete para aqueles que gostam de usar as. definições da espécie humana como meio de a exaltar sobre todas as outras espécies. Informados do nosso lugar entre damas e xadrez, ficamos cientes de que as capaci-. dades de raciocínio são possuíveis por graus e que, na mesma escala, outras espécies tanto podem situar-se acima como abaixo. A teoria dos jogos, aplicada à avaliação da nossa capacidade de raciocínio, ainda nos diz mais alguma coisa sobre nós próprios - diz-nos que nos distinguimos tanto pela nossa jovialidade como pelo limite do raciocínio. A fascinação que sentimos pelos jogos prova não a nossa capacidade de raciocínio, como se poderá crer, mas a falta duma capacidade de nível mais elevado. Ora, como quanto mais alta uma espécie se situa na escala de raciocínio, menos joviais deverão ser os seus membros, ao reconhecer este aspecto daquilo que a teoria dos jogos nos diz sobre o significado de ser-se humano, temos de nos sentir felizes por não nos situarmos no topo da escala. Ensaio relacionado «O apelo da selva»

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Teoria dos jogos de três adversários

O APELO DA SELVA O aventureiro estâ em nós, discordante dos favores dados ao homem social que somos obrigados a ser. William Bolitho

Os tempos de crise económica parece que trazem à evidência o melhor e o pior das pessoas, que, do mesmo passo, se tornam ambiciosas e mais generosas, competitivas e cooperantes, pragmáticas e filosóficas, ansiosas e resignadas. Talvez que as pessoas não saibam como comportar-se por ignorarem se os seus interesses a longo prazo são melhor servidos por um comportamento individualista ou socialista. Na teoria dos jogos - teoria dos conflitos racionais -, esta tensão entre a personalidade privada e a social é tida como uma consequência inevitável da cooperação. As pessoas podem às vezes sentir que fari~ melhor se procedessem individualmente, sem as pressões da sociedade. A teoria dos jogos prediz que haverá dificuldades naturais associadas com a cooperação, mas também indica que a alternativa será eventualmente pior. Os seres humanos são animais sociais, talvez tanto por circunstância como por natureza. Os incentivos à cooperação, à formação de sociedades, podem apresentar-se mesmo em situações envolvendo apenas duas pessoas. 153

PONTES PARA O INFINITO

Consideremos então o jogo de duas pessoas conhecido como o «dilema do prisioneiro», no qual um inspector, desejando obter uma confissão de qualquer dos dois suspeitos de terem cometido juntos um assassinato, lhes apresenta a seguinte proposta: aquele que confessar será libertado, enquanto o outro provavelmente apanha 20 anos. Mas, se ambos confessarem, então cada um terá uma sentença de 5 anos. No caso de nenhum confessar, será aplicada a cada um a sentença de um ano. O dilema consiste em que, se cada prisioneiro particularmente optar pela confissão, pensando que no pior dos casos apanhará 5 anos e no melhor sairá imediatamente em lib~rdade, então seguramente ambos apanharão os 5 anos. Há nisto um incentivo para comportamento menos individualista, porque, se cada prisioneiro concorda em confiar que o outro não confessará, o pior que lhes sucede é passarem um ano na cadeia. Porém, aos mesmo tempo, tal cooperação levanta possíveis problemas. Por exemplo, cada um dos prisioneiros tem de considerar a possibilidade de jogo duplo. Além disso, a cooperação por vezes não só complica um jogo, como o torna insolúvel. É o que acontece no jogo, aparentemente simples, em que três pessoas procuram decidir como dividir entre si 3 contos. Assenta-se à partida que a maioria comandará todas as decisões. No caso de haver cooperação voluntária total, naturalmente cada pessoa receberá 1 conto. Mas, se admitirmos que os jogadores têm um nadinha de egoísmo e de oportunismo, é fácil pensar que dois deles decidam cooperar contra o terceiro e receber cada um 1500$. O banido, porém, pode não se dar logo por vencido, lançando um isco a um dos conspiradores com a promessa de que lhe deixará o melhor dos 3 contos divididos pelos dois. Mas, se esta proposta for aceite, o conspirador prejudicado poderá voltar ao ataque com uma contraproposta do mesmo género, e assim indefinidamente. 154

O APELO DA SELYA

Os jogos envolvendo três ou mais pessoas são matematicamente irresolúveis por causa da inevitabilidade de conflitos como o que acabámos de ver. Ou seja, se três ou mais jogadores são compelidos a competir ou cooperar sem restrições, é de esperar que a sua «sociedade» será sempre instável. Sem dúvida, o filósofo inglês Thomas Hobbes consideraria estas observações como prova da sua tese de que os seres humanos, fora da sociedade, se comportam anarquicamente. Três pessoas em luta por 3000$ podem não constituir uma anarquia, mas claramente desejam qualquer coisa que tome o seu jogo resolúvel. O filósofo inglês Jokn Locke também acreditava que o estado natural da humanidade era a anarquia, cada pessoa comportando-se individualmente, e escreveu, na sua obra Second Treatise of Civil Government: «Procurar fugir a este estado de guerra[ ... ] é uma das grandes razões que levam as pessoas a abandonar o estado natural para viverem em sociedade.» Deste modo, a sociedade tem objectivos forjados pelo homem, mas, para dela tirar partido, «fica cada um obrigado para com os demais». Historicamente, sempre temos concordado com a necessidade de «abandonar o estado natural», mas muito mais com isso do que com os processos mais apropriados para o realizar. De acordo com a teoria dos jogos em que há possibilidades para a cooperação, uma sociedade é estável quando for equitativa para os seus membros. Isto tem contudo diversas interpretações. Mesmo no caso de um grupo de pessoas concordar em, por exemplo, restringir a palavra «equitativa» a um significado financeiro, provavelmente nem assim haveria acordo. Para um socialista, a competição deverá ser eliminada e todas as pessoas deverão dividir com imparcialidade os recursos colectivos. Para um capitalista, a competição deverá ser mantida, apenas se exigindo a sua sujeição a certas regras de justiça, que assegurem a cada um compensações conformes com o seu 155

PONTES PARA O INFINITO

espírito empreendedor. Depois vêm aqueles que discordam de que equitativo se aplique às liberdades civis. A complicar, temos os partidários de Ayn Rand, para quem ao governo da sociedade apenas diz respeito «a protecção dos direitos individuais», enquanto outros, mais virados para John Stuart Mill, defendem que o governo deve providenciar pelo «bem comum». Não nos incomodemos com as disparidades dos filósofos; uma mera diferença de personalidade pode sabotar as perspectivas de um grupo se tornar uma sociedade coesa. Em termos da teoria dos jogos, a estabilidade de qualquer aliança depende decisivamente das remunerações para o~ seus membros: é geralmente aceite que uma pessoa só entra para um grupo ou se mantém nele se isso lhe for mais rendoso do que se estiver isolada. E então que alguém com confiança nas suas capacidades competitivas, talvez por o êxito lhe ter sorrido quando em estado natural, lutará por um sistema capitalista, enquanto as pessoas mais tímidas e diferentes muito provavelmente optarão por um sistema socialista. É óbvio que, a despeito destes obstáculos, se têm formado muitas sociedades, mas talvez que mais difícil ainda do que o seu nascimento seja a luta para se manterem. Os membros fundadores acabam por morrer e os descendentes, não tendo vivido o estado natural, podem não sentir a mesma necessidade de união nem de defender as alianças com o mesmo entusiasmo. Nas sociedades capitalistas, como os Estados Unidos, uma das questões mais prementes é a de se saber até onde pode um membro dum grupo acumular livremente bens pessoais sem prejuízo dos outros membros. Até onde podem ir as liberdades pessoais antes de tomar a sociedade tão primitiva como a das três pessoas tentando dividir 3 contos? No seu livro clássico Wealth o/ Nations, Adam Smith defende com firmeza a política do deixa-andar, na crença de que uma sociedade beneficiará globalmente das melhorias individuais. «Tanto quanto cada indivíduo [... ) se esforce como possa [... )

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O A.PELO DA. SELVA

para aplicar o seu capital em indústrias domésticas [... ] cada indivíduo necessariamente trabalhará no sentido de os rendimentos anuais da sociedade serem os maiores possível.» Smith parece sugerir que quanto mais individualmente forem as pessoas compelidas a comportar-se, mais socialmente acabam por se comportar, ainda que sem darem por isso. Mas também sugere que uma sociedade na qual as pessoas são forçadas, por regulamentação legal, a cooperar umas com as outras não será tão próspera como outra em que as pessoas cooperam somente se os seus interesses pessoais as levam a isso. Em 1951, o matemático americano John Nash publicou uma extensão válida da teoria dos jogos cooperativos, num trabalho apropriadamente intitulado Non-Cooperative Games 1• Esta extensão parece ser especialmente adequada ao tratamento do conceito do deixa-andar, por dizer respeito ao jogos de muitos adversários, em que cada jogador luta por maximizar os seus bens individuais, está ligado aos outros jogadores por algumas regras comuns e os seus desejos de cooperar são manifestados apenas pelo seu comportamento, e não por comunicação directa. As premissas de Nash são concordantes com as teses de Smith, mas já as conclusões de ambos divergem um pouco. A primeira coisa que Nash descobriu nos jogos não cooperativos, quando jogados repetidamente, foi que os resultados tendem para um de dois géneros de equilíbrio, a que chamou óptimo e subóptimo, respectivamente. O que comanda esta tendência é o facto de só nestes estados de equilíbrio ter um jogador boas probabilidades de receber ganhos ou de estar imune contra o pagamento de penalidades. Mas, embora ambos os equilíbrios sejam vantajosos do ponto de vista individual, Nash descobriu que só o equilíbrio óptimo serve os interesses colectivos do grupo.

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Jogos não Cooperativos.

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PONTES PARA O INFINITO

Para ilustrar as teorias de Nash vejamos o jogo não cooperativo chamado «estagnação», no qual cada jogador pode optar entre ficar no grupo ou isolar-se. As regrai, que se destinam a descrever a psicologia realista do grupo, especificam que, se a maioria decide sair do grupo, cada jogador dessa maioria recebe 100$. Se os dissidentes forem em minoria, então cada um deverá exportular 10$, enquanto os fiéis ao grupo nada pagarão nem receberão. Os jogadores não podem colaborar explicitamente antes de fazerem as suas jogadas, embora depois de jogarem várias vezes possam estar habilitados a conjecturar sobre as acções prováveis uns dos outros e tentem comunicar indirectamente pela insistência num certo padrão de comportamento. Deixa-andar ou não, as hipóteses particulares de Nash parece serem suficientemente válidas numa sociedade onde a comunicação directa nem sempre é fácil ou mesmo possível. Este jogo tem um equilíbrio óptimo, no qual todos os jogadores optam por se retirar do grupo, recebendo cada um, portanto, 100$. Há também um equilíbrio subóptimo, em que todos decidem permanecer no grupo, evitando o risco de pagar a penalidade. Logo que se atinja um destes equilíbrios, não há virtualmente nenhum incentivo para que qualquer dos jogadores abandone a posição assumida, posto que isso resultaria quase certamente numa perda individual. A política do deixa-andar promove aparentemente urna mentalidade de rebanho entre os jogadores; ao tentarem adivinhar as jogadas uns dos outros, com o propósito de aumentarem os seus bens individuais, os jogadores tanto podem cond.uzir o grupo inteiro para o destino menos desejável como para o mais desejável. Não é difícil reconhecer, nos seus vários aspectos, o equilíbrio subóptimo do jogo da estagnação em muitas sociedades de hoje. Numa economia doente, os maiores bancos podem agravar a situação geral por aplicação de altas taxas de juro, em parte porque cada um teme os riscos inerentes a ser o primeiro a baixá-los. Os passageiros que aguardam embarque num avião, na base

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O APELO DA SELJIA

de os primeiros a chegar são os primeiros servidos, estacam subitamente quando, perto da hora da partida, notam que alguém avança lentamente para a passagem. Mais seriamente, numa sociedade infestada de crimes, um cidadão pode decidir não intervir num acto criminoso de que é testemunha ocular pelo receio de ser atingido. Nestes exemplos, a reacção duma pessoa, do tipo «cada um por si», ante a situação do grupo apenas exacerba o problema e leva a sociedade a penetrar mais profundamente no seu equilíbrio subóptimo. Para espicaçar um grupo a sair do equilíbrio subóptimo é em geral necessário aplicar uma penalidad~ à decisão de permanecer no grupo. Melhor ainda será criar um incentivo para se is~lar por exemplo, reforços positivos no estilo sugerido pelo psicólogo B. F. Skinner. Em ambas as opções parece ser inevitável a existência duma autoridade central que coordene os esforços, voluntários ou obrigatórios, para sair do equilíbrio subóptimo. No primeiro dos meus exemplos, o U.S. Federal Reserve Bank, ou entidade análoga, poderia tentar desencadear o abaixamento das taxas de juro por um aumento de moeda em circulação. No segundo exemplo, a companhia pode distribuír pelos passageiros senhas numeradas que determinam a posição de cada um na fila de embarque, e no exemplo final pode-se legislar no sentido de punir os «maus samaritanos» ou, mais realisticamente, a autarquia pode instaurar programas de vigilância local. Perturbações económicas, criminalidade ascendente, altas taxas de desemprego - crises capazes de desagregar sociedades -, são talvez a maior aproximação de um estado natural que a humanidade moderna experimenta. No meio destas crises, cada um de nós é confrontado com algo que os nossos antepassados enfrentaram antes de se decidirem a unir-se. O jogo de muitos adversários que é a sociedade reduz-se assim ao jogo das duas pessoas que se encontram dentro de cada um de nós. É uma velha e não muito racional contestação entre as

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PONTES PARA O INFINITO

nossas tendências social e anti-social. Actualmente, a opção central a tomar por cada um de nós ainda se situa entre os chamamentos da sociedade e o apelo da selva. Ensaio relacionado

«Entre as damas e o xadrez»

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Topologia IMAGINAÇÃO ELÁSTICA O que é a forma, ou o que é a face Senão o mostrador da alma, ou o seu escrínio? Nathaniel Cotton, Pleasure

Conquanto seja de aguardar que o processo normal de envelhecimento altere um tanto a nossa aparência, podemos também esperar que muita coisa se mantenha inalterada. Tive ocasião de relembrar esse facto numa reunião recente de colegas de estudo porque, a despeito de aparentarem mais idade, prontamente reconheci todos eles pelas inconfundíveis maneiras de ser e personalidades. Pouco depois da minha chegada tinham-se-me varrido praticamente da memória as velhas aparências dos meus colegas - de certo modo, era como se nada tivesse mudado. Outros, tal como eu, sentem o mesmo prazer na descoberta da permanência dentro da mudança: os eleáticos em filosofia, os budistas na religião, os cubistas na pintura e os topólogos na matemática. Na realidade, o conceito de permanência na mudança é fundamental para várias outras artes da matemática: estú no coração da teoria dos grupos, que é o estudo das simetrias, e na década de 70 do século passado foi o referido conceito usado pelo matemático Felix Klein para 161

PONTES PARA O INFINITO

classificar as várias espécies conhecidas de geometria, incluindo a topologia. A própria topologia é um ramo da geometria, o relacionado com as propriedades dos objectos que não se alteram por dobragem, alongamento, dilatação ou torção, os elementos específicos das transformações topológicas. Por exemplo, quaisquer três pontos sobre a circunferência dum aro manterão as suas posições relativas por muito que o aro seja dobrado, alongado ou torcido. Uma propriedade como esta chama-se «invariante topológico», porque sobrevive aos rigores duma transformação topológica. Na sua atenção às propriedades qualitativas imutáveis das coisas, a topologia complementa a muito mais familiar geometria métrica, virada para a medição precisa dos ângulos larguras, distâncias, etc. Esta é a geometria que todos nós estudamos na escola, criada pelos Egípcios há mais de 2500 anos, para aplicação na agrimensura e na arquitectura. De facto, a palavra «geometria» vem do grego geo e metrein, que significam literalmente «medida da Terra». Para o geómetra métrico, para quem o tamanho dos objectos tem grande importância, uma circunferência que se alarga significa mudança. Para os topólogos, para quem os invariantes topológicos são o que interessa, uma circunferência que se alarga significa constância. O geómetra métrico chama a nossa atenção para o perímetro crescente da circunferência, mas os topólogos ignoram as mudanças superficiais na aparência da circunferência e notam que, durante todo o processo de ampliação, a circunferência continua a ser uma simples curva fechada, separadora sem ambiguidade de dois espaços, um interior e outro exterior. De certa maneira, portanto, se os geómetras métricos estudam os aspectos transitórios dos objectos geométricos, os topólogos estudam as suas almas, entendendo-se por «alma» dum objecto o conjunto das suas propriedades topológicas

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IMAGINAÇÂO ELÁSTICA

invariantes, porque elas, mais do que qualquer outra propriedade, são a essência do objecto. O que é, por exemplo, uma circunferência senão uma curva fechada com interior e exterior? E o que é uma argola senão uma superfície fechada com um buraco? Ao concentrar as atenções no que permanece quando tudo o mais muda ou é susceptível de mudança, a topologia estuda os mais fundamentais aspectos da existência geométrica. Sem a topologia, a geometria seria tão incompleta como a filosofia sem a metafísica. Desde 1736, quando o matemático suíço Leonhard Euler lançou os fundamentos da topologia, muito se tem aprendido sobre a constituição e as relações entre as almas dos objectos geométricos. Ficou-se a saber, por exemplo, que cada objecto tem uma alma (isto é, cada objecto é caracterizado por um conjunto de invariantes topológicos) e que, com muita frequência, o único meio de reconhecer se na realidade há alguma relação entre dois objectos na aparência muito diferentes é procurar ver se as suas almas são idênticas. Mas talvez o mais significativo resultado da topologia seja a identificação específica dos invariantes topológicos. Ao conhecê-los, o topólogo fica a saber as características essenciais da existência geométrica. Três dos mais fundamentais invariantes identificados até à data pelos topólogos são o número de dimensões, o número de bordas e o número de lados dum objecto. Cada uma destas propriedades mantém-se inalterada no caso de o objecto ser torcido, dobrado ou alongado. Uma tira de papel idealizada tem duas dimensões, um rebordo e duas faces (lados). Estas propriedades são a sua alma, porque, se desfigurarmos a tira à nossa vontade, ela continuará a ter duas dimensões, um rebordo e duas faces. Uma esfera tem duas dimensões, nenhum rebordo e dois lados, um cilindro tem duas dimensões, duas bordas e dois lados, e analogamente para qualquer outro objecto concebível. 163

PONTES PARA O INFINITO

Topologicamente falando, as almas aparentadas chamam-se «homeomorfas», objectos que, em virtude de terem os mesmos invariantes topológicos, são topologicamente invariantes. Uma bola de básquete vazia, por muito disforme que se apresente, é homeomorfa de outra bola cheia, porque ambas têm superfícies caracterizadas pelos mesmos invariantes. De facto, são homeornorfas as formas que uma bola de básquete possa tornar ao ser dobrada, torcida ou esticada. O conceito de homeomorfismo implica que a visão que os topólogos têm da geometria se assemelha à visão que certos artistas têm da realidade. Esses artistas, ao olharem para um objecto, tendem a ver todos os diferentes modos de o descrever e ainda comunicar o seu ser essencial. Monet deve ter reagido assim ante a Catedral de Rouen, quando decidiu pintá-la em muitas alturas do dia. Analogamente, os topólogos, ao olharem para um objecto, sentem-se obrigados a verem-lhe todas as diferentes formas homeomórficas que ele possa assumir sem deixar de ser o mesmo objecto. Além de unificar as coisas na geometria, a noção de homeomorfismo serve também para as classificar. Por exemplo, as variações homeomórficas da bola de básquete constituem uma categoria de almas aparentadas que inclui todos os objectos concebíveis em duas dimensões, com dois lados e sem rebordos. Qualquer categoria é estrita, no sentido de ser impossível transformar topologicamente um objecto pertencente a uma categoria num objecto de outra categoria. E é impossível porque o invariante topológico, a alma, dum objecto nunca pode ser dobrado, torcido ou dilatado, transformando-se no invariante topológico de outro objecto. Por outras palavras, as categorias topológicas são estritas exactarnente porque um objecto é classificado de acordo com a natureza da sua alma, a qual é indestrutível por transformações topológicas. Às transformações não topológicas, contudo, são as almas já muito sensíveis. Com tesoura e cola podemos fazer o que a

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IMAGINAÇAO ELÁSTICA

dobragem, torção e alongamento não conseguem, nomeadamente mudar o invariante topológico dum objecto pata o de outro objecto. Se a uma tira de papel, por exemplo, colarmos as extremidades, resulta um cilindro. Deste modo, com uma gota de cola passámos uma alma de duas dimensões, um rebordo e dois lados para outra com duas dimensões, dois rebordos e dois lados. Se, antes de colarmos, dermos a uma das extremidades uma torção de meia volta, criaremos .um objecto com alma ainda mais estranha, a da tira do Mõbius, com duas dimensões, um rebordo e um lado. Este objecto é pouco usual por ter só um lado, dado que a maior parte das superfícies imagináveis têm dois lados. Por esse motivo, uma tira de Mõbius pode ser inteiramente pintada sem que o pincel tenha de passar pelo rebordo. Outras propriedades estranhas tem ainda a tira de Mõbius, incluindo a descrita na seguinte paródia em verso: Um matemático revelou Que uma tira de Mõbius tem só um lado, E você há-de morrer a ,rir Se a cortar pelo meio, Porque verá que da divisão fica apenas uma peça.

Tudo junto, os resultados topológicos como este retratam, quase meta:fisicamente, um reino geométrico complexo, mas ordenado, cujos elementos são tão racionalmente interligados como os elementos vivos do mundo real. Como vimos, sabe-se que um objecto, como um ser vivo, tem uma identidade independente do meio em que vive, indestrutível por mudanças superficiais na aparência do objecto. Baseado que é nesta singular revelação, o corpo inteiro dos conhecimentos biológicos implica que haja uma ordem observável subjacente à variedade ostensivamente caótica do mundo geométrico. 165

PONTES PARA O INFINITO

Isto mesmo descobriu a ciência em relação ao mundo físico, mas com uma diferença importante: enquanto a ciência está ainda às turras com a maior parte das religiões na explicação da ordem observada no universo físico, há muito menos discordância sobre se a ordem do mundo geométrico testemunha algum desígnio. Neste caso, a única questão que se põe é a de saber se o desígnio é de nossa própria invenção, ou se nos foi revelado pelos nossos estudos em topologia. Em qualquer caso, esses estudos ajudam-nos a compreender não somente o mundo geométrico, como também o humano. É por isso que os topólogos estão, de muitas maneiras, mais avançados dos que os outros na compreensão da alma. São capazes de nos dizer especificamente o que significa ser uma tira de papel ou uma bola de básquete, mas somos muito menos esclarecidos quando se trata de saber o que significa ser humano, a julgar pelas nossas diferenças de opinião. Este dilema não é estritamente religioso: interessará muito mais a um ateu do que a um judeu. Que há em nós individualmente que sobrevive ao envelhecimento? E que há em nós colectivamente que possa sobreviver aos milhões de anos das futuras mudanças evolucionárias? Estas questões ainda insolúveis conduzem a outras maiores, as da nossa singularidade e de como pensarmos do nosso ajustamento no esquema das coisas; além de conduzirem também a uma questão mais modesta, a de como reconhecemos os velhos amigos numa reunião, sem nenhumas ajudas. Maneiras de ser e personalidades são propriedades e traços que, reminiscência de invariantes topológicos, na aparência se mantêm pouco alterados ao longo duma vida humana. Mas pergunto a mim próprio por que traços poderia distinguir os seres humanos dos outros animais, numa reunião realizada daqui a milhões de anos, intervalo de tempo suficientemente longo para que, se Darwin tinha razão, alguns aspectos tenham mudado profundamente.

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IMAGINAÇÃO ELÁSTICA

Hoje em dia, os critérios a que mais nos agarramos para distinguir as espécies animais baseiam-se em comparações dos traços físicos. Os taxonomistas modernos atingiram.já um muito bom nível na classificação dos animais de acordo com características como a razão entre os pesos do cérebro e do corpo, construção do esqueleto, modo de locomoção, número de dedos do pé, etc. Já estamos menos habilitados a definir as espécies com base em critérios mais subtis, como, por exemplo, as emoções. As emoções dum animal são quase relevantes para os taxonomistas actuais como o número de bordas dum objecto para a geometria métrica. E, todavia, estou em crer que nessa hipotética reunião, daqui a milhões de anos, seria somente apoiado em critérios tão subtis que eu teria qualquer hipótese de reconhecer a minha linha evolucionária. É meu pressentimçnto topológico que os nossos ditos espirituosos, mais do que a nossa aparência, são os invariantes evolucionários importantes, os análogos dos invariantes topológicos. Eles são o que significa ser humano e provavelmente continuarão a sê-lo no decurso da evolução. Ensaios relacionados

«Simetria abstracta» «Nada como o senso comum»

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Teoria das catástrofes

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA Não como o Caos, tudo pulverizado e triturado, Mas como o mundo harmoniosamente desordenado: Onde ordem na variedade nós vemos E onde as coisas, embora todas diferentes, todas concordam. Alexander Pope

A única certeza deste mundo, como diz o provérbio, é a da mudança e tudo o que a ciência nos ensina o confirma. O conteúdo do universo e o próprio universo estão num fluir implacável e constante. Coisas que parecem inalteráveis - montanhas, a atmosfera, o Sol -, na realidade suportam constantes e profundas mudanças, encontram-se num estado activo de equilíbrio. Mesmo as células dos nossos corpos são completamente (e invisivelmente) substituídas por outras 3:0 fim de aproximadamente sete anos. A nossa atitude ante a mudança, especialmente quando abrupta, mudou nas últimas décadas. No passado, o que acontecia de súbito, tal como mortes acidentais e desastres naturais, era associado a um qualquer agente inescrutável, como um deus caprichoso. As faces e os esquemas das mudanças abruptas eram-nos na maior parte enigmáticos e, portanto, 169

PONTES PARA O INFINITO

ameaçadores. No século xvn, durante o iluminismo, Isaac Newton reconheceu que muitos exemplos de mudança gradual - como o crescimento populacional - obedeciam a padrões previsíveis e representáveis por algumas leis matemáticas. Mas, mesmo então, e durante décadas depois, as mudanças repentinas pareciam insusceptíveis desse tratamento matemático e duma descrição racional satisfatória. Há cerca de vinte anos, o matemático francês René Thom logrou classificar as mudanças abruptas ou catástrofes, como lhes chamou. Foi por ele descoberto que a maior parte das catástrofes obedecem a esquemas descritíveis qualitativamente em termos de sete figuras matemáticas. Conquanto a sua descoberta não nos ajude a explicar as origens das mudanças abruptas, indica-nos pelo menos que elas não são tão irracionais e indisciplinadas como se pensava antes. Também foi descoberto que as mudanças bruscas que nos afectam pessoalmente, como as crises nervosas e os acessos espontâneos de cólera, são qualitativamente da mesma variedade que as ocorridas nas dilatadas paisagens cósmicas. Neste sentido, a teoria de Thom habilita-nos a reconhecer como nunca as faces da mutação catastrófica que constantemente transfigura o mundo natural. Num mundo dinâmico, tal como o nosso, é inevitável que os cientistas requeiram um processo matemático para estudar a mudança e foi sobretudo para corresponder a esta necessidade científica duma linguagem quantitativa que Newton inventou o cálculo. Concebeu-o para descrever mudanças graduais que se processam por pequenos passos contínuos, de modo que os cientistas o usam para calcular, por exemplo, o movimento dum planeta à volta do Sol, o crescimento da população, ou a velocidade constantemente crescente dum objecto em queda. Muito significativamente, a utilização do cálculo revelou que fenómenos de mudança gradual aparentemente distintos estão na realidade relacionados matematicamente. Por exemplo, a 170

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

equação exponencial que descreve o crescimento do valor duma conta banc;\ria é exactamente a mesma que descreve o crescimento de bactérias numa cultura, o crescimento normal duma população animal. Muito notavelmente, o cálculo habilitou-nos a relacionar e classificar todos os possíveis movimentos dum corpo num campo gravitacional. De acordo com o cálculo, esse corpo seguirá uma de apenas três trajectórias arquetípicas, dependendo unicamente da velocidade inicial. Nada do próprio projéctil tem importância, nem a sua forma, nem o peso, nem a densidade ou a composição química. Assim, dois projecteis, por muito diferentes que sejam, seguirão trajectórias idênticas desde que lançados com a mesma velocidade. Se um projéctil é lançado com uma velocidade inferior à velocidade orbital (que para o campo gravitacional da Terra é cerca de 7,6 km/s), o seu trajecto será sempre uma parábola, o arco de curvatura suave usualmente seguido por uma seta, uma bala ou uma pedra arremessada ao ar. Se o projéctil for lançado com uma velocidade entre a orbital e a de escape (cerca de 11 km/s no campo gravitacional da Terra), a sua trajectória será sempre uma elipse ou uma circunferência, como acontece com todos os planetas em translação à volta do Sol ou com todos os satélites da Terra. Finalmente, se a velocidade inicial for igual ou superior á velocidade de escape, a trajectória será uma hipérbole, semelhante a uma parábola com curvatura mais acentuada. Esta foi a trajectória seguida pelos astronautas americanos que viajaram até à Lua e por todas as naves lánçadas para os planetas. A descoberta destas categorias foi considerada na sua época tão revolucionária como as categorias de mudanças bruscas, de Thom, o é nos nossos dias. Contudo, os cientistas actuais não dispõem ainda de qualquer processo matemático, comparável em méritos ao cálculo de Newton, para descrever e relatar as mudanças abruptas. Por essa razão, aos biólogos depararam-se grandes dificuldades no estudo 171

PONTES PARA O INFINITO

teórico da divisão celular, fenómeno dos mais importantes em biologia, posto que as células tendem a dividir-se súbita e não gradualmente. Naturalmente, Thom não só teve consciência deste problema da biologia, como foi até motivado em parte por ele para desenvolver a sua teoria das catástrofes. Com efeito, os primeiros tópicos da teoria foram publicados, em 1968, numa série de livros intitulada Toward a Theoretical Biology. Científica e matematicamente, a teoria das catástrofes completa o cálculo. Enquanto este é uma teoria quantitativa de mudança gradual, é aquela, grandemente, uma teoria qualitativa de mudança súbita. Especificamente, a teoria das catástrofes é elaborada na linguagem da topologia, estudo matemático-qualitativo das formas, por sua vez um ramo da geometria fundado no século xvm pelo matemático suíço Leonhard Euler. Uma noção-chave da topologia particularmente evidente no tratamento matemático da mudança abrupta é a noção de equivalência topológica. Dois objectos são equivalentes topológicos se compartilham certos atributos essenciais, independentemente das dissemelhanças. Por exemplo, uma argola e uma chávena de café são equivalentes topológicos porque ambas têm um buraco, o qual é uma característica essencial, no sentido de que, se imaginarmos uma transformação da argola na chávena ou vice-versa, praticamente tudo no objecto se altera, excepto o buraco. A equivalência topológica é sempre determinada com base exclusivamente em tais atributos (qualitativos) imutáveis, e não pormenores (quantitativos) mutáveis, tais como o tamanho da argola ou a forma específica da chávena. Por esta razão, é possível, e mesmo frequente, dois objectos de aparência muito diferente serem topologicamente equivalentes. Ao desenvolver a sua teoria, Thom começou por procurar um processo análogo para relacionar catástrofes qualitativamente, mesmo as que possam parecer-nos tão diferentes como a chávena e a argola. Por este motivo, foi em busca duma analogia para o buraco, algum atributo essencial das catástrofes que 172

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

pudesse ser usado para as descrever e classificar matematicamente. Esse atributo é o número de factores que controlam a dinâmica duma catástrofe, entendendo-se por aqueles factores qualquer elemento duma situação subjacente às mudanças bruscas e capaz de afectar realmente o progresso e a direcção dessas mudanças. Por exemplo, o factor essencial controlador do enchimento (e, em última análise, a ruptura catastrófica) dum balão é a pressão do ar. A redução ou incremento deste factor basta para comandar a evolução do estado do balão. Esta descoberta, de que o número de factores de controlo é um atributo tão essencial a uma catástrofe como o buraco é para uma argola, é a base da definição de Thom de equivalência catastrófica. De acordo com a definição, dois ou mais exemplos de mudança abrupta são catastroficamente equivalentes se o comportamento de cada um for controlado pelo mesmo número de factores. O rebentamento dum balão é assim catastroficamente equivalente a toda e qualquer outra mudança brusca cujo comportamento seja comandado por um único factor de qualquer espécie. De modo similar, as restantes catástrofes são agrupadas conforme o seu comportamento seja comandado por dois, três ou mais factores. Esta definição, análoga à equivalência topológica, é o ponto essencial da teoria das catástrofes. Do ponto de vista conceptual, ela determina que, se dois fenómenos têm o mesmo número de factores, têm também o mesmo padrão de mudança, mesmo que não condigam quantitativamente e em ~utros pormenores. Seguindo a sua definição, Thom veio a descobrir semelhanças qualitativas entre catástrofes aparentemente não relacionadas. De certa maneira, a descoberta de Thom de que o atributo essencial duma catástrofe é o número de factores controladores do seu comportamento é comparável à descoberta de Newton de que o atributo esse~cial duma trajectória num campo gravitacional é a velocidade inicial do projéctil. Em ambos os domínios, 173

PONTES PARA O INFINITO

todos os outros atributos duma situação de mudança além do essencial são matematicamente inconsequentes, são máscaras disfarçadoras das faces da mudança, que, de qualquer modo, se assemelham fundamentalmente. Há, todavia, diferenças entre as descobertas de Thom e de Newton, porque, enquanto três categorias bastam para cobrir a situação gravitacional, nada menos de sete são necessárias para abarcar todos os casos mais conhecidos de mudanças abruptas no mundo natural. Além disso, enquanto os três modelos de trajectórias existem no espaço real e são, por conseguinte, facilmente visualizadas, as representações concretas dos sete arquétipos de catástrofes existem num espaço abstracto, matemático, e não são tão facilmente visualizadas. Talvez o modo mais fácil de fazê-lo seja imaginar, como Thom, que suportarmos uma mudança catastrófica é, qualitativamente, o mesmo que entrarmos em queda livre ao deslocarmo-nos sobre uma superfície geométrica - isto é, quer ao precipitarmo-nos, quer ao suportarmos uma mudança brusca, subitamente surgimos num lugar muito diferente daquele em que nos encontrávamos antes da queda. Tecnicamente, esta analogia significa que a matemática da teoria das catástrofes é semelhante, em alguns aspectos, à matemática das superfícies geométricas, matéria bem estabelecida e familiar à maior parte dos matemáticos. Podemos imaginar que os factores que comandam a progressão e o sentido duma catástrofe comandam o sentido e a progressão dos nossos movimentos sobre a correspondente superfície abstracta, a que por isso se chama «superfície de controlo», e a catástrofe é comparada à queda de qualquer ponto duma superfície de controlo e aterragem noutra. Por outro lado, concluiu-se que uma superfície de controlo tem tantas dimensões como factores de controlo tem a catástrofe real: cada factor controla o movimento ao longo duma dimensão. 174

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

Se pensarmos que as faces duma mudança abrupta são como paisagens geométricas perigosas, a principal descoberta de Thom foi a de que a maior parte das paisagens que observamos na natureza e em nós próprios envolvem somente riscos básicos e distintos, as sete faces familiares da mudança. Num esforço para nos ajudar a visualizá-las, Thom foi ao ponto de lhes dar nomes, evocativos das suas formas. Segundo a complexidade crescente, os arquétipos catastróficos são a dobra, a cúspide, a cauda-de-andorinha e a borboleta; a cauda-de-andorinha tem três variedades e a borboleta duas, assim se perfazendo o total de sete. A catástrofe em dobra, controlada por um único factor, apresenta a face mais simples de todas. A sua superfície de controlo não chega tecnicamente a ser uma superfície, é uma linha unidimensional horizontal que se encurva para baixo num dos extremos para formar a borda duma escarpa vertical. Consoante a teoria das catástrofes, esta é a visualização matemática abstracta dum balão em enchimento. Um aumento da pressão de ar no balão corresponde graficamente à deslocação sobre a linha no sentido do extremo escarpado, enquanto um abaixamento corresponde ao movimento em sentido contrário. Naturalmente, se continuarmos a encher o balão, acabamos por atingir um ponto em que a entrada de mais uma molécula de ar é suficiente para provocar o estoiro. Este ponto é o correspondente exacto da borda da escarpa e o rebentamento do balão corresponde à queda pela escarpa. Numa catástrofe de dobra, a escarpa não tem qualquer fundo, o que implica que, uma vez iniciada a queda, não há qualquer caminho de subida. No nosso exemplo, isto significa que, se o balão estoira, não há processo de voltar atrás. O processo de envelhecimento normal é também representado por uma catástrofe de dobra, em que o único factor de controlo é o tempo. Movimento em sentido contrário ao da escarpa representa rejuvenescimento, movimento para a escarpa repre175

PONTES PARA O INFINITO

senta a situação normal de envelhecimento. O nosso último instante de vida corresponde a situarmo-nos exactamente na beira da escarpa e a morte será cair por ela abaixo. Segundo a teoria das catástrofes, uma vida segue o mesmo padrão matemático de mudança que um balão em enchimento e a morte é qualitativamente semelhante ao rebentamento do balão, porque, quando alguém morre, não pode ser revivificada. Esta irreversibilidade não é verdadeira para a catástrofe cúspide, por definição uma mudança súbita comandada por dois factores. De acordo com a teoria de Thom, uma catástrofe cúspide distingue-se pelo modo por que ela pode recuperar, parcial ou completamente, da mudança catastrófica. O referido até aqui pode ser facilmente visualizado olhando para a face matemática da catástrofe cúspide. A região central da sua superfície bidimensional de controlo é dominada por uma elevação cuja sombra na superfície subjacente tem aproximadamente a forma triangular, como uma cúspide. Muito notavelmente, a configuração global da superfície é tal que, quando alguém cai da elevação, tem sempre possibilidade de voltar para cima, sem nunca sair da superfície de controlo. Para ilustrar as catástrofes do tipo cúspide, tomemos um desses brinquedos minúsculos, com a forma, por exemplo, duma rã e que contêm uma palheta elástica que, quando pressionada o suficiente, dá um estalido. O comportamento da rã é controlado por dois factores, a pressão dos dedos e a elasticidade da palheta metálica. Graficamente, a palheta na posição de relaxe corresponde a um ponto no topo da elevação, longe da borda, e pressionar a palheta com pressão crescente corresponde à aproximação da borda. Quando a pressão é suficiente, a palheta dobra-se subitamente com um estalido, o que corresponde a cair da elevação para a parte inferior da superfície de controlo, aí permanecendo enquanto a palheta for mantida dobrada. Finalmente, aliviar a pressão com recupe176

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

ração do estado inicial da palheta corresponde ao regresso da rã ao topo da elevação. Das sete catástrofes, a do tipo cúspide é aquela cuja face, cujo esquema matemático de mudança, se nos depara com mais frequência no mundo. A teoria das catástrofes não foi concebida para nos explicar porque é assim, mas decerto qualquer explanação válida terá de se referir ao predomínio de opostos e à mudança súbita e reversível que os relaciona. Reconhecem-se catástrofes cúspides em, por exemplo, alguns padrões de vigília e sono. Em geral, adormecemos gradualmente, mas por vezes a transição é mais abrupta, como depois dum trabalho pesado. Em tal caso, é sempre possível recuperar - acordar - da mudança catastrófica, o que é a marca inconfundível da catástrofe cúspide. Este tipo de catástrofe é também vulgar no comportamento instável dos maníaco-depressivos, nos episódios espasmódicos de guerra e paz entre nações irremediavelmente hostis e nas altas e baixas erráticas do mercado de valores. Como a rã de metal cada um destes exemplos envolve um salto brusco dum extremo para o outro, seguido da possibilidade de retomo ao extremo original. Por esta razão, por muito pouco relacionados que possam parecer superficialmente, estes fenómenos podem ser todos descritos com as mesmas fórmulas matemáticas e em termos do mesmo panorama catastrófico. Com a teoria das catástrofes, portanto, o mundo aparece-nos menos diferenciado do que sem ela. Os cinco tipos de catástrofes restantes têm carácter muito mais teórico e as respectivas superfícies de controlo são mais difíceis de visualizar do que a catástrofe cúspide. O problema com a visualização decorre principalmente do facto de as superfícies terem mais de duas dimensões, devido ao maior número de factores de controlo, o que as toma pouco semelhantes ao que normalmente entendemos por superfície. O mais que podemos fazer é imaginar o aspecto das suas sombras em

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duas dimensões, donde aliás lhes vieram os nomes. (Para destacar que estas superfícies são em grande parte matéria da imaginação, Thom referiu que o nome de catástrofe em cauda-de-andorinha lhe fora proposto por um seu colega cego, o matemático francês Bernard Morin.) A face da catástrofe borboleta surge-nos na natureza mais frequentemente do que a da cauda-de-andorinha. Matematicamente, a superfície de controlo (ou, melhor, a sua silhueta bidimensional) caracteriza-se por ter duas elevações localizadas na zona central e dispostas hierarquicamente, de modo que é possível cair do topo da mais alta e aterrar quer na outra quer na superfície da base. Em qualquer caso, tal como na catástrofe cúspide, é sempre possível regressar ao ponto inicial. Na maior parte dos exemplos de catástrofe borboleta, a elevação intermédia representa um compromisso entre o que quer que seja representado pela elevação mais alta e a base da superfície de controlo. Por exemplo, duas nações hostis, que qualitativamente se comportam como uma catástrofe borboleta, têm sempre a opção de negociar em vez de passarem directamente da paz para a guerra. Um dos poucos exemplos de catástrofes borboleta em que a elevação intermédia representa algo menos vulgar do que um compromisso relaciona-se com a doença conhecida por anorexia nervosa e que afecta principalmente as jovens. As doentes sem tratamento comportam-se como as catástrofes cúspides, oscilando entre períodos de jejum e de enfartamento. No entanto, recentemente, o matemático inglês E. C. Zeeman admitiu que, se a teoria das catástrofes é correcta, o fenómeno da anorexia nervosa pode passar de catástrofe cúspide a catástrofe borboleta pela introdução de factores de controlo adicionais. Zeeman colaborou com um psicoterapeuta inglês, que criou uma terapia para a anorexia baseada nessa hipótese e que exige que a paciente seja posta em transe, isto é, o estado da paciente passa por uma mudança brusca correspondente a um salto quer 178

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

do nível inferior (jejum) quer do superior (enfartamento) para o nível intermédio da catástrofe borboleta. É neste nível médio que os anorécticos se mostram mais receptivos aos conselhos psicológicos. Conforme Zeeman admite, quando a paciente está na fase de jejum, vê com ansiedade o mundo que a rodeia e, quando em fase de enfartamento, sente-se oprimida e subjugada por esse mundo. Mas, durante o transe, a paciente fica isolada e a sua mente liberta de alimento, como do desejo de evitar o alimento. Embora exemplos como estes evidenciem o potencial científico da teoria das catástrofes, há presentemente entre cientistas e matemáticos um debate sobre a utilidade científica a longo prazo. Os pessimistas defendem em geral que essa utilidade será cerceada pela natureza qualitativa da noção fundamental de equivalência catastrófica. Como vimos, a teoria considera equivalentes as catástrofes comandadas pelo mesmo número de factores, independentemente de todas as suas diferenças de pormenor. Ora os cépticos acerca do valor científico da teoria asseveram que são esses pormenores ignorados pela teoria o que interessa à ciência. No caso da anorexia nervosa, por exemplo, há sem dúvida o desejo de verificar que, para lá das observações qualitativas, a afecção segue um padrão arquétipo de comportamento susceptível de ser mudado para outro e até certo ponto haverá também o desejo de verificar se poderão existir pequenas variações no padrão arquétipo, na esperança de descobrir quais os traços específicos que tomam uma pessoa mais ou menos sujeita a adoecer de anorexia. Por muito verdadeiro que esse argumento possa ser, o carácter qualitativo da teoria de Thom é uma adição benvinda à matemática e também ao modo habitual da nossa cultura e época de ver as coisas. A teoria enriqueceu a linguagem da matemática, de modo que podemos agora referir-nos a mudanças abruptas como até há pouco não era possível. Adicionalmente, a teoria de Thom e os seus fundamentos qualitativos são também 179

PONTES PARA O INFINITO

contrapontos refrescantes para o domínio grandemente estagnado da análise quantitativa dos reducionistas. Como o físico alemão Bemhard Bavink disse uma vez, a teoria dá-nos a rara oportunidade de usar a matemática «para pôr o conceito de grandeza mensurável e contável em segundo lugar e em primeiro o conceito biológico básico de forma, ou gestalt». Enquanto tenha utilidade científica, a teoria de Thom revela as orações gémeas dos vitalistas, de que o todo é maior do que a soma das suas partes e que olhar para o todo pode ser muitas vezes mais esclarecedor do que perscrutar as suas partes. Em defesa destas noções, Thom adverte biólogos e físicos, no livro Structural Stability and Morphogenesis, dos riscos de olhar demasiado perto para qualquer coisa e desafia a vulgar crença reducionista «de que a interacção dum reduzido número de partículas elementares abarca todos os fenómenos macroscópicos, quando, de facto, à medida que a investigação se torna mais minuciosa, mais complicados são os acontecimentos, conduzindo por fim a um novo mundo por explicar, no qual não é possível discernir entre os factores relevantes para o nível macroscópico». No final de contas, a teoria das catástrofes permite-nos reconhecer que, na catalogação das mudanças, há alguma ordem nas variadíssimas mudanças que constantemente transfiguram o universo e seu conteúdo. Há trezentos anos, Newton descobriu que um objecto redondo de ouro, em voo, se comporta basicamente como, digamos, um outro quadrado e de prata. O único factor que determina a trajectória de cada uni, num campo gravitacional, é a velocidade inicial, de lançamento. Similarmente, Thom descobriu que a mudança súbita experimentada por uma mãe que acorda com um grito do seu filho segue o mesmo esquema matemático que todas as outras mães, independentemente da raça ou nacionalidade. No caso de Newton, a presença dum campo gravitacional determina que todos os movimentos graduais pertencem a 180

A FACE FAMILIAR DA MUDANÇA

uma de somente três categorias. Analogamente, Thom admite a possível existência dum campo vital que explique o facto de as mudanças bruscas, também elas, pertencerem a poucas categorias, segundo é de crer. O campo vital poderá ser exactamente como um «campo gravitacional ou electromagnético» e «todos os seres vivos serão partículas[ ... ] desse campo». Especulações mais modestas levar-nos-ão a ver na teoria de Thom uma elaboração matemática eloquente duma base para a nossa empatia com o mundo cultural. Ao catalogar fenómenos díspares, eles tomam-se menos misteriosos e mais familiares para nós; resta saber se as provas da presença aqui na Terra das sete categorias de catástrofes de Thom se estendem para fora do sistema solar, até outros mundos, talvez habitados por outros seres. Se a matemática é a linguagem universal, como muitos crêem, então as mudanças súbitas hão-de apresentar por toda a parte faces tão familiares como na Terra, sem prejuízo da necessidade de alguns ajustes ... Imaginemos um mundo onde os balões dão estalidos e as rãs estoiram. Ensaio relacionado «Localização do ponto de fuga»

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Análise combinatória

DA GUERRA E DA PAZ Os problemas do mundo possivelmente não podem ser resolvidos por cépticos ou cínicos, cujos horizontes se cingem às realidades óbvias. Precisamos de homens capazes de sonhar com coisas que nunca existiram. John F. Kennedy

O comediante George Carliu propôs uma vez um modo simples de promover a paz mundial: apresentarem-se todos os cidadãos uns aos outros e apertarem-se as mãos. A ideia era cativante, mas, ai de nós, não passava de pura fantasia - se cada um de nós seguisse o conselho de Carlin, cumprimentando uma pessoa diferente por segundo, ser-lhe-iam necessários cerca de 100 anos para completar a tarefa. A proposta jocosa de Carliu exprime sobriamente uma verdade acerca da existência humana, a saber, que muitas das nossas mais preciosas fantasias são comprometidas pela realidade das nossas limitações e, especificamente, pela nossa incapacidade de manejar grandes quantidades. Por exemplo, no nosso mundo de 4000 milhões de pessoas, onde uma guerra pode estalar entre quaisquer duas ou mais pessoas, há potencial para bem mais de l 00 000 milhões de biliões de conflitos diferentes. Com tantas combinações possíveis para quebrar a paz, é-nos 183

PONTES PARA O INFINITO

impossível viver livres de hostilidades, mesmo que cada um de nós passe parte do seu tempo em acções de pacificação. Também no mundo da matemática há problemas onde o enorme número de combinações de elementos anula os nossos meios para os resolver. Representativo disto é o velho problema do caixeiro-viajante, que consiste em saber como ordenar as cidades a visitar de modo que a distância total percorrida numa viagem seja a menor possível. A resposta é muito simples se as cidades forem poucas, mas, se forem muitas, digamos 50, então haverá que escolher o itinerário óptimo em mais de 10 000 biliões de itinerários diferentes. Os problemas como este, em que se lida com combinações de objectos, são tratados por um ramo da matemática chamado «análise combinatória» e que em geral consiste em calcular o total de combinações possíveis, com o propósito de reconhecer a que resolve o problema. Na maior parte dos problemas, esse total de combinações é um número pequeno, de modo que prontamente se conhece a solução. Tal é o caso de problemas como formar pares com 12 socos (66 soluções possíveis), formar fracções (próprias) com os dez primeiros números (45) ou agrupar doze convidados em três mesas separadas (220). Mas, noutros problemas, o número de combinações é tão astronómico - mais ainda do que o total de estrelas no universo inteiro - que nem o computador mais rápido do mundo pode debitá-las todas num espaço de tempo razoável. É o que acontece com o caixeiro-viajante que deve visitar 50 cidades. Tão estonteante é o número de combinação nesses problemas que a fantasia original dos matemáticos de serem capazes de os resolver foi substituída pelo propósito mais modesto de procurar soluções aproximadas, que só são óptimas num sentido menos-do-que-perfeito. Na análise combinatória é costume classificar a grandeza dum problema de acordo com o modo por que aumenta o tempo 184

DA GUERRA E DA PAZ

necessário a um computador para calcular todas as soluções possíveis quando aumenta o número de elementos do problema. (O número de elementos, ou dimensão do problema, é, no caso do caixeiro-viajante, o número de cidades a incluir no itinerário.) Há três graus de grandeza: por ordem ascendente, são o aritmético, o polinomial e o não polinomial. Nos problemas da classe aritmética, o tempo necessário ao computador para calcular todas as soluções possíveis cresce proporcionalmente à dimensão do problema. É o caso da pesquisa através dum conjunto de candidatos para encontrar o mais compatível com determinado perfil. Se duplicarmos ou triplicarmos o número de candidatos - isto é, a dimensão do problema -, duplicamos ou triplicamos o tempo de trabalho do computador. Nos problemas da classe polinomial, o tempo do computador cresce mais abruptamente, proporcionalmente a uma potência (quadrado, cubo, etc.) da dimensão. Serve de exemplo o problema de calcular quantas matrículas de automóvel se podem formar com três letras e três algarismos extraídos dum total de 26 letras e 10 algarismos, O a 9. (Resposta, 17 576 000.) Se duplicarmos ou triplicarmos o conjunto total de letras e algarismos, o total de combinações aumenta respectivamente 8 e 27 vezes (ou seja, dois e três ao cubo) e o tempo do computador aumenta correspondentemente. Nos problemas da classe não polinomial, o tempo de computador aumenta exponencialmente com a dimensão, segundo o mesmo padrão de incremento rápido duma população crescente de indivíduos reprodutores. Incluem-se nesta classe os problemas de elaboração de horários, o do caixeiro-viajante e o do estabelecimento de rotas aéreas. As companhias de aviação procuram estabelecer as paragens de modo a minimizar as despesas, ao mesmo tempo que prestam os serviços necessários ao maior número possível de cidades. No caso, por exemplo, duma companhia americana, a People's 185

PONTES PARA O INFINITO

Express, a mudança da prestação de serviços a 6 para 24 cidades significou que o número de rotas possíveis passou de 32 para 1 048 576. Ou seja, a um aumento de quatro vezes na dimensão correspondeu um aumento de 32 768 vezes nas combinações possíveis. Com tal complexidade, não admira que uma companhia aérea vulgar necessite de 30 pessoas, 2 computadores e 2 anos de trabalho para preparar um só plano global de voos. Nas duas primeiras classes de problemas da análise combinatória, bem como nos problemas de pequena dimensão da terceira, o crescimento do tempo de computador é suficientemente lento para que a resolução via computador não ofereça dificuldades. Mas já não se passa o mesmo com os problemas não polinomiais de dimensão maior, como os da dimensão do do caixeiro-viajante que tem de visitar 50 cidades, em que o mais rápido computador levaria 30 000 anos a calcular todas as combinações possíveis, não sendo previsível que no futuro haja computadores suficientemente rápidos para reduzir apreciavelmente aquele tempo. Estas limitações, que têm vindo a tomar forma nos últimos vinte anos, foram como que um balde de água fria nas esperanças dos matemáticos quando os primeiros computadores digitais apareceram, nos anos 40. Em vez de abandonar por completo a ideia de resolver problemas de grande dimensão da classe não polinomial, os matemáticos viraram-se para objectivos mais modestos, os de procura de soluções aproximadas com técnicas que não requerem o cálculo de todas as combinações possíveis. Tais técnicas de optirnização, corno são chamadas, dependem de os matemáticos serem antecipadamente capazes de escolher os critérios a que a solução verdadeira deve satisfazer. Formulam então uma solução que se conforme com esses critérios, em grande parte corno um professor formula um currículo que reflicta alguns critérios pedagógicos preconcebidos. Essa solução 186

DA GUERRA E DA PAZ

chama-se óptima por ir ao encontro dos critérios estabelecidos, mas, ao contrário da solução verdadeira, em geral não é perfeita nem única, pela simples razão de que os critérios utilizados também não são nem uma coisa nem outra. De facto, em geral eles pouco mais são do que suposições bem educadas. Uma solução óptima para o problema, de dimensão elevada, do caixeiro-viajante baseia-se na regra lapalissiana de que o viajante seguirá sempre para a cidade mais próxima daquela em que se encontre, critério obviamente baseado no senso comum. Embora este critério não nos conduza à solução verdadeira, normalmente não se desvia da perfeição mais de 20 %- Os matemáticos chegaram a esta conclusão comparando as soluções óptima e verdadeira do mesmo problema com dimensão suficientemente pequena para ser resolúvel, admitindo-se, aliás razoavelmente, que esta comparação é representativa do erro cometido ao usar a solução óptima em problemas de dimensão mais elevada. A não unicidade dos critérios de optimização é particularmente evidente nas tentativas, pelas companhias aéreas, de resolução dos problemas não polinomiais de planeamento. Normalmente, usam várias combinações de quatro cenários básicos de optimização, designados por planeamento voo-paragem, planeamento local, planeamento sem paragens e planeamento de ligações cruzadas, todos eles mais ou menos derivados do senso comum. No planeamento voo-paragem, os voos efectuam-se de cidade para cidade ao longo duma rota, o que permite prestar serviços eficientes em distâncias médias. No planeamento local, os voos efectuam-se entre as cidades dum segmento de rota, do que resulta um excelente serviço a curta distância. No planeamento sem paragens voa-se directamente para cidades afastadas, fornecendo-se assim um serviço rápido a grande distância. Finalmente, no planeamento de ligações cruzadas proporciona-se aos passageiros um maior número de opções de destino,

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PONTES PARA O INFINITO

escolhendo para término intermédio uma encruzilhada importante, como Chicago. Como é impossível efectuar voos entre quaisquer duas cidades, a um passageiro que deseje ir, por exemplo, de Providence, Rhode lsland, para Santa Bárbara, Califórnia, oferece-se-lhe a possibilidade de transbordo num aeroporto de grande movimento, algures ao longo da sua rota. Embora a incapacidade de computar grandes números de combinações tenha impelido os matemáticos a concentrar os seus esforços na formulação das soluções óptimas, uma recente descoberta na análise combinatória veio reacordar em alguns deles um pedacinho dos velhos sonhos. Em 1971, o matemático americano Richard Karp descobriu uma subcategoria de problemas da classe não polinomial, os quais são, em certo sentido, arquétipos para a classe inteira. Karp chamou-lhes problemas completos não polinomiais porque, conforme provou, se alguma vez os matemáticos resolverem exactamente um desses problemas completos, ficarão com isso a dispor das técnicas para resolver completamente todos os problemas da classe não polinomial. Incluído nestes problemas protótipos encontra-se o do caixeiro-viajante. A descoberta de Karp tanto pôs como não pôs os matemáticos mais perto de resolver problemas de grande dimensão da classe não polinomial. Isto é, ele não aumentou as nossas possibilidades de calcular grandes números de combinações, mas concentrou consideravelmente os desafios que se põem aos matemáticos e, ao fazê-lo, pô-los um nadinha mais perto do êxito. Mas, ao mesmo tempo, a análise combinatória actual continua a ser influenciada pela natureza humana, como por tudo o mais. Ao procurar soluções óptimas onde não é possível encontrar as verdadeiras, os matemáticos comportam-se como as pessoas que buscam uma situação de paz aproximada sempre que a verdadeira paz lhes é negada, sem prejuízo de continuarem a sonhar com o fun do conflito. Mas a comparação vai

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mais longe: os matemáticos têm tantas hipóteses de resolver o problema do caixeiro-viajante por 50 cidades como nós temos hipóteses de assegurar a paz mundial. Contudo, a natureza humana é tal que tanto a descoberta de .Karp como a proposta de Carliu despertarão em nós o mesmo senso de esperança, por muito remota que esta esperança seja. A esperança consiste em admitir que, se pudermos resolver um único problema-chave das grandes massas, quer o do caixeiro-viajante, quer o da estagnação dos conflitos humanos, todos os problemas com ele relacionados serão deste modo resolvidos.

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CRONOLOGIA Apresenta-se a seguir uma lista dos matemáticos referidos nos ensaios, com indicação dos anos em que viveram e uma breve descrição das suas coutribuições para a história da matemática,

A. C.

624-546 TALES DE M1LE1\J, considerado geralmente como introdutor do conceito de demonstração lógica na geometria. 569-500 PITÁGORAS DE SAMos, autor de numerosas contribuições para a história inicial da geometria, incluindo o teorema que tem o seu nome. Juntamente com a sua escola de continuadores, também desenvolveu as bases da moderna numerologia e descobriu os números irracionais. 426-348 PLATÃO, discípulo de Sócrates, formulou a filosofia das formas ideais, que influencia a actual filosofia platonista da matemática. 348-322 ARISTÓTELES, autor do Organon, trabalho fundamental para a lógica dedutiva tradicional. 330-275 EUCLIDES, professor de Matemática na antiga Alexandria, compilou e reformulou os tópicos da geometria grega, que transformou numa matéria simples, lógica e coerente. O resultado foi um volumoso tratado intitulado Elementos, que é, depois da Bíblia, o livro mais vendido em todo o mundo. 287-212 ARQUIMEDES desenvolveu um sistema numérico que possibilitou, pela primeira vez, expressar as dimensões do universo. Também deu importantes contribuições à matemática, as quais, de certa maneira, anteciparam o cálculo diferencial. D. C. 100-168 CLÁUDIO ProLOMEU, especialmente afamado pelo seu brilhante uso da matemática na astronomia.

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PONTES PARA O INFINITO 1596-1650 RENÉ DESCARTES (francês), reexprimiu os princfpios da geometria dum modo novo e produtivo, assim criando o ramo hoje conhecido por «geometria analítica». 1642-1727 SIR ISAAC NEWTON (inglês) criou, independentemente de Leibnitz, o cálculo diferencial. 1646-1716 BARÃO GOTIFRIED WILHELM VON LEIBNITZ (alemão) criou o câlculo diferencial, independentemente de Newton. 1707-1783 LEONHARD EULER (sufço), considerado o fundador da topologia. 1777-1855 CARL FRIEDRICH GAUSS (alemão) foi um génio enciclopédico, com contribuições praticamente em todas as âreas da matemâtica moderna. Em particular, fundou a geometria diferencial. 1790-1868 AUGUST FERDINAND MÕBIUS (alemão) contribuiu para o desenvolvimento inicial da topologia. 1793-1856 NICOLAS IVANOVITCH LoBAtCHEVSKI (russo) criou, independentemente de Bolyai e Gauss, uma geometria não euclidiana. 1802-1860 JANOS BoLYAI (húngaro) criou, independentemente de Lobatchevski e Gauss, uma geometria não euclidiana. 1811-1832 EVARISTE GALOIS (francês), contribuiu de modo fundamental para a teoria dos grupos. 1814-1897 JAMES J. SYLVESTER (inglês), com a invenção das matrizes, contribuiu, com Cayley, para a criação da âlgebra abstracta. 1821-1895 ARTHUR CAYLEY (inglês), com Sylvester, inventou as matrizes. 1826-1866 GEORGE FRIEDRICH Bi:RNHARD RIEMANN (alemão)! com os seus aperfeiçoamentos da geometria diferencial, criada por Gauss, contribuiu para o moderno conceito de dimensão. 1831-1916 JULIUS WILHELM RICHARD DEDBKING (alemão) clarificou a definição de números irracionais. 1845-1918 GroRo CANTOR (alemão), criador da teoria clâssica dos conjuntos, contribuiu para o moderno conhecimento do infinito. 1848-1925 GoTTLOB FREGE (alemão) formulou a aritmética em termos da lógica e da teoria dos conjuntos, bases da actual «nova matemâtica». 1849-1925 FELIX KLEIN (alemão) organizou os nossos conhecimentos de geometria, classificando as suas vârias formas. 1845-1912 JULES HENRI PoINCARÉ (francês) contribuiu para todos os ramos da matemâtica moderna. 1862-1943 DAVID HILBERT (alemão) contribuiu imenso para a matemâtica moderna e a sua filosofia.

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CRONOLOGIA

1872-1970 BERTRAND RUSSELL (inglês) contribuiu de maneira muito importante para a lógica e a filosofia da matemática. 1906-1978 KURT GõoEL (alemão), conhecido por ter provado que haverá sempre teoremas matemáticos impossíveis de demonstrar pela lógica. 1922-1974 IMRE LAKATOS (húngaro) incorporou os resultados obtidos por Gõdel numa filosofia da matemática conhecida por