Poesia
 9789710793072, 9789720793072

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Daniel Faria POESIA Eoiç-o oE

Vera Vouga

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ASSÍRIO

&

ALVIM

Daniel Faria

POESIA

edição

VERA VOUGA

A S S ÍR I O & A LV I M

I - CONFIDÊNCIA

Poesia Daniel Faria Publicado em Porrugal por Assírio & Alvim

© ©

Herdeiros de Daniel Faria Porro Editora,

2012

Edição revista pela Comissão de Edição de Daniel Faria l.ª edição: Maio de

2012

Assírio & Alvim é uma chancela da Porto Editora, Lda. Reservados rodos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem cransmicida, no todo ou em pane, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

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1

Portugal

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Execuço'.io grãfica Bloco Gráfico, Lda. Unidade Industrial da Mala. OEP. LEGAL 343687112 ISSN 978-972-0-79307-2

A cópia Ilegal viola os direitos dos autores. Os pre;udlcados somas todos nós.

C O N F I DÊ N C I A ( Prefácio à Poesia d e u m poeta maior)

Nas pdlpebras da noite Chorei cadências que me ensinaram que o Amor

Ama-se

Assim teus Olhos.

(Inédito)

Assim os nossos, dos que primeiro leram muitos ou cada um dos versos seus. Assim os nossos, Daniel, a quem deixou a sua herança, tão fabulosa quão delicada de gerir. Assim os nossos, mesmo que às vezes fatigados pelo longo trabalho de sombra e bastidor ou, por mo­ mentos, ensombrados por silêncios e reservas tão de aparente sem­ -razão. Assim os nossos quando, emergindo do complicado e inadiável quotidiano, reavemos a graça de reler versos seus, fonte contínua de deslumbramento. Assim os nossos, creio, os seus leitores, sem outra protecção contra o júbilo senão em cada sílaba a de aprender que o Amor Ama-se1• Assim seus / Olhos. 1 Todo o irálico aqui presenre é de Daniel Faria e pode ser enconrrado nesre volume en­ quanro nascente; foi livremenre segmenrado e recombinado, conforme o comexro concrero, e conjugado como fonte tramformada.

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Assim os nossos: houve um tempo, ainda não fechado, em que o nossos foi prodigamente rescrito. Falo de todos os amigos a quem deixou ler e confiou os seus poemas; unanimemente tocados, eles conservaram os textos que, sobretudo se inéditos, são peças preciosas para o Espólio e Ediçóes da sua obra, Daniel. Muitos dos seus amigos já ofereceram, para leitura ou para peças de um espólio ainda em formação, os papéis que alguma vez lhes confiou2• Falo de espólio com o rigor quase cruel a que o habituei, enquanto meu aluno, e que, por compreender tão pron­ tamente não ser senão o agudíssimo úuio defora do afecto, o levou a pôr nas minhas mãos as decisóes essenciais que o fariam passar de poeta prometedor a poeta. Refiro-me à organização, revisão e edição de Ex­ plicação das Árvores e de OutrosAnimais e Homens que são como Lugares mal Situados, publicados em 1998. Vê o Daniel como me lembro: pediu­ -me, ainda, para prefaciar os livros. Respondi que não o faria. Isto escrevo para dizer que resisti à tentação de aceitá-lo, explicando-lhe, autor então perplexo e pouco convencido, que não o faria a bem dos livros. Em li­ vros desta qualidade, de modo algum obra de um debutante, qualquer prefácio seria a mais. No entanto, se um dia se reunir um volume de poesia que peça um prefácio, disse ainda, aceitarei com alegria o privi­ légio de fazê-lo. Pouco depois (vê o leitor como me lembro) o Daniel reescrevia Ainda não sei ouvir a lâmina I Os gumes inumerdveis com que fere, cura, limpa, penetra I Os ouvidos como a espada do anjo o coração pri­ mogénito 11 ( ...) Ainda não sei ouvir os ventos ( ...) que a sussurram I Nos quatro cantos cardeais das direcções que mudam. Em Junho de 1999 Abriu-se em ferida a cerca do seu sopro, dei­ xando o Daniel a face da terra com Dos Líquidos de leve inacabado, a certeza de que Ninguém sabe reabrir as veias maternais e a pergunta 2 Os herdeiros de Daniel Faria, seus Pais, agradecem especialmente a Marcelino Ferreira, Joaquim Santos, Jorge Madureira, Manuel Mendes, Francisco Jorge Freiras, Nuno Higino Cunha e Rosa Maria Valente Goulão por rerem disponibilizado rodos os mareriais de que dispunham.

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Como se deixa ficar tudo e acrescenta à sua herança. Seguiu-se a edição póstuma, com intervenção circunscrita, de Dos Líquidos3•

No mesmo tempo teve início o duro e moroso depois. A inexo­ rável certeza de que Náuvio4 definitivamente diria Não voltarei para jantar I ( ...) jamais voltarei para sorrir, a incessante pergunta Como havemos de dizer I Como havemos de tocar tão levemente estes singula­ ríssimos instrumentos do fogo? Pedes ( ...) uma irmãjunto da dgua. Re­ pousa I Velar-te-ei.A lâmina abre passagem pelas inúmeras coisas con­ cretas a fazer: a constituição de um Espólio5, seu conhecimento, sua conservação; a legalização da autoria e respectiva representação; um projecto global, ainda que provisório, Daniel, da edição da sua obra, única justificação para todos os passos precedentes, visando, em úl­ tima análise, devolver à humanidade o que dela proveio e, num sen­ tido lato, lhe pertence: a obra de um poeta maior. A lâmina abre pas­ sagem ( ...) /Nos quatro cantos cardeais das direcções que mudam. É um trabalho moroso e duro, invisível, sem qualquer glória, ferido na raiz, na sua falta de resultados rápidos. É preciso resistir às solicitaçóes, mesmo que bem-intencionadas, de inéditos, à alegria de ver frutos imediatos do labor, à natural pressão de amigos ou de críticos, insis­ tentemente sugerindo que se publique a obra do autor. Sem o agasalho das asas I Agrilhoado no lado defora dofogo, aofrio, I Desatado pela did­

ria lâmina/( ...) Invejando o relâmpago I Rápido. Todo o rigor é resis­ tência, permanente memória de princípios quase sagrados, de edição - a extensa, se possível total, recensão, a colação ponderada, a pa3 A rapidez desra edição deve-se muito especialmente a Carlos Moreira Azevedo que, no próprio dia do funeral, manifesrou a inrenção de levá-la a cabo. Felizmenre, pôde cumpri-lo. 4 Pseudónimo ou quase-hererónimo de juvenrude; cf. «Recado a N áuvio», p. 395. 5 Para o efeiro, foram consrituidas duas Comissões, que represemo: uma Comissão de Edição inregrada por Francisco Topa, Francisco Saraiva Fino e por mim própria e uma Co­ missão de Espólio onde, para além dos mesmos, esrá presenre, em representação do Mosreiro de Singeverga, Bernardino da Cosra. Agradeço-lhes profundamente o imenso rrabalho dis­ crero, generoso e competente.

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ciente e subtil decantação dos líquidos, na condição da luz encarcerada dos futuros cristais; não confundir, em caso algum, obras inéditas com obras publicadas pelo autor, textos de juventude com textos de idade adulta; não esquecer, em qualquer circunstância, as preferências e, sobretudo, as reservas do poeta, quase sempre tão incisivas como a sua permanente, acerada, progressiva exigência. Tão radicais que, no seu caso, o levariam à desejada e total rasura dos três livros de juven­ tude onde, por exemplo, tão desarmantemente escrevera E a minha alma é pequena para gritar I O nome dos navios 11 O nome de todos os navios I O nome dos navios o nome I Dos meus amigos. Como havemos de dizer I Como havemos de tocar tão levemente o

ardente, puro, desigual, submerso fogo preso por vontade da mão que o ateou? Dai-me o pó que tenho como herança I ( ...) Dai-me a secreta erupção dos mortos, a cratera I Da estrela matutina 11 Dai-me a altura que ilumina I ( ...) Dai-me a chama, o inextinguível, ( ...) I Deixai-me começar a claridade I De quem vive para despenhar-se no mundo. Lem­

bra-se, Daniel, de, já bem perto do lançamento dos livros de 98, me ter, a muito custo, articulado o nome de Oxdlida e de A Casa dos Cei­ feiros, recusando-se a emprestar-mos por vergonha? De só me ter mostrado os exemplares onde tinha feito colagens e onde o texto dor­ mia escondido? De ter acrescentado, com a aflição de quem contem­ pla o Apocalipse em iminência, que alguém do nosso círculo tinha A Casa dos Ceifeiros? Lembro-me de ter respondido, com um sorriso, que as bibliotecas também o tinham e de, para poupar-lhe mais afli­ ções desnecessárias, ter ido à Biblioteca Municipal do Porto fotoco­ piar esses dois livros, que afinal li. Isto escrevo para dizer por que depois me mostrei implacável quanto à publicação de tudo o que não fosse a sua obra de maturidade - aquela sempre com que é correcto que um poeta apareça na sua praçafora do mundo - por si designada como a sua obra: Explicação das Árvores e de Outros Animais, Homens que são como Lugares mal Situados e Dos Líquidos. Os livros foram editados, 12

reeditados e lidos. Respeitados, amados. Suscitaram deslumbramento, na sua condição de voz tão branca e rasa, singela, límpida, pura, pode­ rosíssima. As crianças encostam a boca ao vidro da montra que vende o pão. Hd homens a abrir as mãos como livros. Eles abrem a palavra I A pe­ quena gi,esta - essa luz li ( ...) A pequena nascente no mel. Eles con­ templam o imenso motor em chama 1 Nos mecanismos da viagem ardente. Sem outra palavra para mantimento, eles desejam saber mais, teimosa­ mente mais - outra vez desdobrada a sua palavra cheia I De estrelas.

Passou pouco tempo mas passou muito tempo. Muitas pessoas sa­ bem versos seus de cor. Nunca conheci ninguém que não se comovesse com o poema As mulheres aspiram a casa para dentro dospulmões. Estou a um palmo do seu silêncio.Apareço para lançar uma ideia que alicerce I O coração - um ritmo mais tarde. Que a mão escreva tão exacta a ne­ cessdria travessia. Que eu oiça I A sua voz desde o interior da lâmina. Um editor atento e lúcido sugere uma edição de Poesia. Durante muito tempo penso que só incluirá os mesmos livros, sua escolha. Deixo crescer o tempo. Imagino o poeta sem dormir e parado como um verso I No meio do poema. Imagi,no o poema sem dormir. Sei as margens onde as crian­ ças cortam osjuncos. Ponho-me na toca dos bichos, nos seus olhosfechados I ( ...) Ponho-me na esfera celeste de uma criança que se senta no chão. ( O que desconheço: a casa. ( ... ) 11 O que mais recordo: os degraus.) Deixo crescer o tempo. Deixo crescer as ldgrimas. Ponho-me na esfera celeste de uma criança que se senta no chão. A porta I É um batente no princípio. Nem todos entram I Da mesmaforma. Penso, mais tarde, em

incluir, ainda que numa segunda parte do volume, os três livros de ju­ ventude publicados pelo autor, os únicos indiscutíveis porque foram reais, circularam no mundo, estão disponíveis nas bibliotecas: Uma Cidade com Muralha, livrinho de evidente circunstância, de estrutura algo apressada e flébil; ainda assim, marcado pelos altos lampejos do fulgor do fogo a haver; tenho marcada preferência por Oxdlida, um tí­ tulo que fazia corar o Daniel e muitos leitores correr a abrir o dicio13

nário (descobririam que designa urna qualidade de trevo) e onde se podem ler tantos poemas de que não gostaria de ver esses leitores pri­ vados O que dói I é o teu nome que ficou como mendigo I Descoberto em cada esquina dos meus versos. Nem eu devo hesitar em repor neste precoce e límpido volume, publicado sem revisão do autor sob o pseudónimo escolhido para o concurso literário em que foi pre­ miado, o justo nome de Daniel Faria; por último, Daniel, repare como A Casa dos Ceifeiros, a que chamou horrível e neo-realista, con­ tém futuros versos para a memória da humanidade: Os meus braços -

voam para o sul I Muito lhes dói o cimo das montanhas; De pedra em pe­ dra I Te peço 11 Não morras de sede 11 Ou de luz. Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo I Do sangue no amor, o movi­ mento parafora I O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos I Sentidos da palavra que sopra a sua voz I Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto I E encontro I O silêncio [imaginado] inigualdvel de quem escuta. Começo pelo meu, relendo. E encontro a gratidão vibrando nas entranhas de quem ouve a cítara. É preciso crivar horas e horas. É preciso desfalecer com a mão purificada. Até se pôr a boca no pó iluminado - A corda mais azul, a veia inesgotdvel I De quem ama. Ninguém mo sugeriu mas descobri por mim: posso fazer deste vo­

de reiteradamente conjugar que o Amor Ama-se.Até se pôr a boca no pó iluminado, A claridade vigja ( ...) I ( ...) o propagadíssimo I Movimento do amor. Todo o trabalho complementar - da soma de seis livros a um li­ vro -, como se vê, é declarado, acessório e volátil. Nada interfere no núcleo essencial a editar, o de seis livros de fixação não problemática, to­ talmente intocados6• Não fica o Daniel mais preso I Aos leves umbrais do meu pulso porque escrevo os seus versos nos muros. Se é preciso que eu coma sozinha o nevoeiro da provação I ( ...) Comerei a humildade de urna esco­ lha precária, imperfeita, levemente orbitando em redor do núcleo todo o tempo intocado do fogo, por isso mesmo livre, infinita, possível de ser feita uma outra vez. Apagarei ospassos e o cérebro como um rasto no deserto I ( ...) Farei de novo a escada ( ...) parafixar IA luz. E Partirei de novo na viagem I ( ...) nenhuma pedra ou senda repetida I ( ...) : Uma manhã depois de uma manhã. No tempo repetido encontrarei uma saída. Porro, Outubro de 2003

VERA VOUGA

O tamanho do teu nome Quase já não se nota

lume um livro. Um livro quase novo, já não urna simples soma. No­ mearei, é claro, as grandes partes com palavras suas, Daniel; proporei ao leitor que conheça o poeta, primeiro, na sua plenitude, e só depois nos livros editados que lhe foram escada. Do largo número de poemas inéditos de que dispomos, escolherei algumas peças, contemporâneas de cada um dos painéis, para fazer dois volantes afáveis, globais, ade­ quados a abrir e a fechar estas páginas inúmeras de luz total. Onde cada peça também valha por si. Mesmo se não mereço a matéria lumi­ nosa I ( ... ) , Trabalharei a partir da ceifo matinal ( ...) I, Quando como no princípio a manhã se abeira. A escolha não depende de nenhum dado prévio, senão da lenta e reiterada certeza de frequentar os poemas,

G Por analogia com a opção feira em Dos Líquidos, Daniel, foi restaurada a sua grafia ori­ ginal de crâneo e solestício. Foi esta a única intervenção efecruada.

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Na estrada onde caminhas Já não sei onde mora A cor do sol Pela estrada onde caminhas As curvas entornam-nos Sucessivamente.

(Inédito)

II

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ANTEMANHÃ

Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe Ter escrito com o sangue. Também poderia ter escrito as visões Se os olhos divididos em partes não sobrassem No vazio de ceguez E luz. Poderia ter escrito o que sei Do futuro e de ti E de ter visto no deserto O silêncio, o fogo e o dilúvio. De dormir cheio de sede e poderia Escrever O interior do repouso E ser faúlha onde a morte vive E a vida rompe. E poderia ter escrito o meu nome no teu nome Porque me alimento da tua boca E na palavra me sustento em ti. (Inédito)

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Precisava de falar-te ao ouvido De manter sobre a rodilha do silêncio A escrita. Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta. Da indigência. E da fadiga. Da tua sombra sobre a minha sombra E da tua casa. E do chão. (Inédito)

Sou gémeo de mim e tudo O que sou é Distância. Estou sentado sobre os meus joelhos Separado. Aquilo que une É um rumor. Não descanso. Sou urgência De outro sítio. E pudesse velar-me Longe Dos homens como se neles Adormecesse. (Inédico)

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A manhã move a pedra sem raiz O seu repouso de árvore em flor. Qualquer astro é menos que o repouso De uma pedra em flor.

Deixo o corpo à sombra da flor mais alta Ao redor de uma lâmpada Apagada. Acendo a morte. Sou um fio a prumo, uma nuvem Que passa Uma casa aberta e fechada

(Inédito)

(Inédito)

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III

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DAS MANHÃS

EXPLICAÇÃO DAS ÁRVORES E DE ÜUTROS ANIMAIS

Explicação das árvores e de outros animais

A primeira edição deste volume foi publicada pela Fundação Manuel Leão, Porto, 1998.

Depois das queimadas as chuvas Fazem as plantas vir à tona Labaredas vegetais e vulcânicas Verdes como o fogo Rapidamente descem em crateras concisas E seiva E derramam o perfume como lava E se quiséssemos queimar animais de grande porte Eles não regressariam. Mas a morte Das plantas é a sua infância Nova. Os caules levantam-se Cheios de crias recentes Também os corações dos homens ardem Bebem vinho, leite e água e não apagam O amor

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A estrela nasce da raiz carbonizada Do caule queimado Da roda dos bois afogueados Quando em chamas com cornos espigados Passam entre medas que alumiam o caminho para casa. O fogo é provisão e possessão O degrau na vida - ao meio A bússola que arde. E há constelações na mão Que leva o gado.

Largo é o aberto abandonado E o vazio é pata que sustenta De leveza o ramo. O pássaro amanhece E o seu bico não fere o seu canto.

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Como doem as árvores Quando vem a Primavera E os amigos que ainda estão de pé

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Como as crias no colo dobrasse as patas E nas pequenas hastes trespassasse O que separa E bebesse do chão aberto pelos cascos

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Para que visses Tão sinuosos como o interior dos búzios E o dispersar assustado dos cardumes Os olhos onde já não estão Nem eles próprios nem outros A florir

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Se fosses pássaro baterias as asas para destruir a armadilha Se fosses insecto deixarias círculos apenas ao redor da luz Se fosses abelha farias zumbir a revolta Mas és voo pela sombra Se fosses formiga carregarias a ordem, armazenarias a fadiga Se fosses flor polinizarias a terra Serias coroa incorruptível Se fosses flor através das estações

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Devo ser o último tempo A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos O cadáver onde a aranha decide o círculo. Devo ser o último degrau na escada de Jacob E o último sonho nele Devo ser a última dor no quadril. Devo ser o mendigo à minha porta E a casa posta à venda. Devo ser o chão que me recebe E a árvore que me planta. Em silêncio e devagar no escuro Devo ser a véspera. Devo ser o sal Voltado para trás. Ou a pergunta na hora de partir.

Ando um pouco acima do chão Nesse lugar onde costumam ser atingidos Os pássaros Um pouco acima dos pássaros No lugar onde costumam inclinar-se Para o voo Tenho medo do peso morto Porque é um ninho desfeito Estou ligeiramente acima do que morre Nessa encosta onde a palavra é como pão Um pouco na palma da mão que divide E não separo como o silêncio em meio do que escrevo Ando ligeiro acima do que digo E verto o sangue para dentro das palavras Ando um pouco acima da transfusão do poema Ando humildemente nos arredores do verbo Passageiro num degrau invisível sobre a terra Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores No meio de incêndios Estou um pouco no interior do que arde

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Apagando-me devagar e tendo sede Porque ando acima da força a saciar quem vive E esmago o coração para o que desce sobre mim E bebe

Tenho aflição por tudo o que morre Como tenho pavor por cada noite que cai. Como fui esquecer o caminho para fora? Infeliz que esqueci as sendas da caça. Comerei erva? Sol? Comerei estepes e estepes A arder? Vou-me pôr à mesa e esperar. Tenho aflição por toda a ausência não anunciada Acendi a luz por toda a casa e electrifiquei a voz Agora posso ampliar o clarão dos gritos. Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta Que fez o povo atravessar enxuto o interior da água. Vou-me sentar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida. Fazer de conta que estou a esperar.

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Encosto-me à morte sem amparo ou sombra Como o grão Abeiro-me da flor que virá e venho À superfície do teu sonho

Voz no vento passando entre poeira Edifício Árvore noutro poema Fico à sombra da vide e do esteio no Outono

Como se acordasse a mão que semeia No coração lavrado de quem faz a ceifa Rebento no interior da morte como o trigo

E enxerto a luz Em tudo o que nomeio

Rebento no interior do trigo E de qualquer planta que se assemelhe a ti

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Houvesse um sinal a conduzir-nos E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das [árvores A incomparável paciência de procurar o alto A verde bondade de permanecer E orientar os pássaros

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Explicação da pedra enquanto lume

Anuncio e pereço. Pedra redonda Removida e Redonda. Semente após a morte. Depois da mão do homem. Pão e Pedra Removida e Redonda. Paisagem aberta. Lado aberto. Pedra aberta Redonda e Redonda.

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A mão aberta já não liga E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas. Há nos meus olhos dois poços Na paisagem Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas. E é noite. No meio do escuro peço Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos Levo-a à boca e das chamas bebo Água

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A pedra tem a boca junto do ouvido E para dentro de si mesma sem cessar se diz. Se cair nos olhos Quebrar-se-á em pranto. Se rodar no dorso Vergar-me-á. Pesa-me no bolso E na cabeça. Não é um pensamento. É uma ideia ensimesmada. Uma pedra fechada Pelo lado de dentro.

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A pedra está poisada sobre si mesma No tempo da indigência não pedirás outra abundância Nenhum outro verso ou casa Nenhuma outra firmeza A semente rebenta ao peso da terra A voz das cigarras ao peso do calor Uma pedra pesa sobre a pedra As mãos unidas não têm força assim No caule a folha não tem esse equilíbrio

1 Se acender a luz Não morrerei sozinho

2 Ainda que adormeçam os pastores Não se há-de tresmalhar a canção Do forasteiro

E tu baloiças pelos olhos dentro Inundando de paisagens a ceguez

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Explicação das casas

A porta mora à espera De perfil se ensombra E descansa O degrau é paciência O umbral anúncio O silêncio é o lugar Onde baterão as mãos

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A casa vem das mãos para ficar desabrigada Arbusto por abrir Sono do bicho no degrau de entrada. A casa vem demolir o homem Envelhecer o pão. Casa mártir, planície muito viajada Cega a tactear as fendas das paredes. Morada de si mesma. Árvore Povoada.

Estou dentro de paredes brancas. Quatro paredes: a minha cela, O frio, a solidão e o meu catre. A luz entra sempre de noite. Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei O que tive e a cadeira não serve o meu repouso. Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres O vazio que persiste à minha beira. Tenho um pequeno sonho de uma janela para abrir: E que paisagem não seria estar feliz!

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Mesmo no interior do quarto És o lado de fora da casa Os inúmeros degraus da casa. A mais antiga Criança subindo-os um a um

Não fui margem sem outra margem onde ligar os braços Mas fui o tempo sol to para entrançar os meus cabelos E o movimento dos teus pés descalços Não fui a solidão inteira nem reclusa Para o único repouso entre o silêncio Nem fui a flor exausta defendendo-se De toda a mão que a quis despetalar Não fui a casa que a si mesma se abrigou Nem a morada que nunca se acolheu Mas o tempo a pedir que me deixasse Naquilo que não fui vim encontrar-me E sempre que te vi recomecei

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Os homens descansam na sombra Pensam em silêncio Na meditação do pássaro. Por dentro só o rumor Das enxadas os afasta. mulheres esfregam o soalho Interrogam em silêncio A meditação dos homens. Por dentro só o rumor Das vassouras os comove E brancas as casas.

1 De manhã vendeu a casa e o arado Atrás de si a mulher roçando os socos. Quando o pai morreu ela dissera: Não terei saudades deste mundo.

As

As

2 Na madeira da casa estão os líquenes. Não chegam para adornar os seus cabelos Mas podem curar muitas doenças.

casas.

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Sei bem que não mereço um dia entrar no céu Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra

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Explicação do labirinto

AQUI LES E PÁTRO C LO

Nem sucessivas e sucessivas migrações de aves Perfarão a distância que agora nos separa Mas esta nau não me levará a casa E seguir-te não será morrer

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LAB I RI NTO I

Não voltarei a dividir As aves - o canto e as asas Para encontrar o peso exacto Do corpo que se eleva Não voltarei junto das ondas Nem do cabelo ondulado da mulher Vou construir o labirinto para a morte Deitar o corpo sobre o pó para morrer

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LAB I RI N TO I I

A meada doba e roda a mão fechada Em seu silêncio de coisa destruída Como despetalada uma corola aberta Boca, ferida, cratera Círculo que resiste à forma da palavra. A teia é movimento que persiste Em sua paciência. Como Ariadne costurando umbrais Para que Teseu possa vir do nada.

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LAB I RI NTO I I I

No meio do caminho da nossa vida No meio do poema, havia Uma pedra onde reclinar a cabeça. A mulher andava no meio das estradas Por sobre o mundo tecendo e destecendo Duas asas que o pai soldava para o filho. No meio do filho estava o labirinto E o touro de Ariadne puxado por um fio Lavrando No coração de Teseu cão manso No meio da idade aonde existe O primeiro sinal do solestício.

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P E D RA D E S ÍS I F O I

Carrega a água amotinada Nos olhos de Narciso, pequeno Sísifo, Pequeno pirilampo dentro do rochedo Pequena luz dentro do prodígio. Rola a semente, sossega nos socalcos A viagem sempre repetida De enrolares a pedra é redonda A vida

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P E D RA D E S f S I F O I I

Agora medirei o tempo Pela vara erguida ao meio-dia Pela areia a descer o coração E o sono Pela cinza no cabelo de Jacob Pelas agulhas no colo de Penélope Agora lavarei a minha face Sem perturbar os círculos da água Medirei o tempo pelo peso da pedra De Sísifo, perto do cimo E pelo musgo que dificulta A firmeza dos seus pés Partirei sozinho na viagem Sem nenhuma pedra ou senda repetida E no tempo repetido acharei uma saída Uma manhã depois de uma manhã

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Do inexplicável

O homem pensa na razão para o pousio No centro dos seus dias sem descanso. E no desassossego de acudir ao tempo Sempre que o seu repouso foi ver crescer os filhos. Ele que foi mais que astro a revesar-se Irmão dos ritmos invisíveis sobre a terra Familiar dos anjos que pousam sobre a vida.

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O homem lança a rede e não divide a água O pobre estende a mão e não divide o reino

No meio da tempestade corrigiu o saibro do caminho Adivinhou o tempo em que as asas das libélulas se enxugavam

É tempo de colheitas e não tenho uma seara Nem um pequeno rebento de oliveira

Regressou como quem repetiu o nosso nome cada dia Regressou como quem repetiu o caminho cada dia Alimentou-nos como o sangue que circula em cada veia E repetiu o regresso em cada dia

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Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse E era tarde. Sozinho em tempos não fora a falta de ninguém E o que doía não tinha o quisto da doença Só o espaço sereno das coisas que se deixam. Acontecera que nada se fizera fora Do coração. Acontecera que passara a noite a abrir os olhos Para não se interromper A estender a mão para estar vivo E certo de que nem ele próprio se abeiraria de si mesmo Pois ocupara-se rigorosamente de ausentar-se. Mesmo se caminhara muito devagar Sem outro meio para esperar que o visitassem. Ele que é agora o que nunca repousou O que nunca encontrará o sítio do sossego A não ser que haja o equilíbrio na vertigem Uma luz parada no meio da voragem.

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O nome parece a infância. Quando na velhice é termos vindo Sem pressa Para dentro Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai É um fruto. O nome é ainda O modo como chamas. O nome é a arma contra mim. O maior perigo. Com os teus lábios podes destruir-me.

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Estranho é o sono que não te devolve. Como é estrangeiro o sossego De quem não espera recado. Essa sombra como é a alma De quem já só por dentro se ilumina E surpreende E por fora é Apenas peso de ser tarde. Como é Amargo não poder guardar-te Em chão mais próximo do coração.

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Como reporás a terra arrastada Para a boca? Foges e foges E repousas à sombra da velocidade. E ao extinguires-te dizes Tudo O que podia ser dito Sobre a luz.

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Guarda a manhã Tudo o mais se pode tresmalhar Porque tu és o meio da manhã O ponto mais alto da luz Em explosão

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Anoitece como num dia de acidentes. De noite viajo pelo tacto. Ponho também o ouvido sobre a face dos signos E decifro a noite escura como um astro Uma estrela, um silêncio, pois vivo das palavras Como líquen nelas. Peço que a luz eléctrica ilumine o homem E subo golo a golo essa corrente. Na sombra gero os olhos cheios de água Apago a casa cheia de janelas.

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Socorre-me, devolve-me a leveza Da tão primeira nuvem que avistares

Caminha para dentro dos cercos No interior não te faltarão provisões. Novos vizinhos te darão acolhimento Mais fiéis do que os amigos Dias e noites maldizendo-te em silêncio A proximidade Encosta-te às vedações para guardares Com minúcia a dolorosa divisão da paisagem O para ti e o para além A solidão infinita de ocupares um lugar Caminha para dentro Onde gira a nora e o burro é cego E os círculos perfeitos. Não te há-de faltar A distância

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Caminho sem pés e sem sonhos Só com a respiração e a cadência Da muda passagem dos sopros. Caminho como um remo que se afunda.

O meu projecro de morrer é o meu ofício Esperar é um modo de chegares Um modo de te amar dentro do tempo

Os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes Para que a elevação e a profundidade se conjuguem. Avanço sem jugo e ando longe De caminhar sobre as águas do céu.

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Um coração de sangue Um coração de xisto e aço Um coração angular e redondo Como a pedra que te abre Do interior do chão Um coração solar De granito De carne Curado da noite de nascença Um coração de homem Um coração de homem vivo Um coração de criança ao colo Interior - Mais interior do que o sangue no coração que me darás Peço um coração Nuclear

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Últimas explicações

EXPLICAÇÃO DA M A D RU GADA

Água entre muralhas: O orvalho

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EXP L I CAÇÃO DA TAR D E

EXP L I CAÇÃO DA N O ITE

U m rapaz assobia, a luz pende a cabeça. Os carros chiam chorando O ar cansado dos bois. Morre a tarde, o rapaz assobia Longe longe daqui

Sobre a água estarei solto de caminhos Dos que vierem nenhum barco é para ti

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Não deixes a candeia acesa Dorme: basta-me essa luz

E X P L I CAÇÃO DA LÂM PADA

O homem cercou-se de noite E com a foice que trazia e ceifava Cortou os pulsos procurando o sol E as pupilas à procura de água

EXPL I CAÇÃO DA LUZ

O azulejo lava a sua luz Tem o brilho Do movimento exacto Dos seus vestidos E o seu rosto é limpo. Com suas próprias mãos Sem acabar se acaricia. A luz lava o brilho Do azulejo. A luz o lava No seu vestido E o seu rosto é um. Com suas próprias mãos O quebra e inicia.

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E X P L I CAÇÃO D O CÂNTA RO

O ninho do morcego É o ouvido do homem

EXP L I CAÇÃO D O S CÂNTAROS

Puseram-nos rodilhas à cabeça Um modo antigo de nos virem coroar

O homem tem um cântaro À cabeça Só um ouvido à escuta poderá fendê-lo O homem é uma caverna O cântaro o seu segredo

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EXP L I CAÇÃO DAS MARÉS

EXP L I CAÇÃO D O T RÁ F E G O

O navio atravessa o sentido dos corpos

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As casas vomitam a luz pela janela Do enjoo das casas naufragam As mulheres

Seta no degrau O pé descendo

2 Costureiras cosendo o pão E verso sobre o verso esta pedra A casa animal dos animais

3 Leve Crina Cereal Masculina

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EXP L I CAÇÃO D O H O M EM

Não me verga a velhice nem o peso do crâneo Mas os olhos cansados na dor de te não ver. O chão tornou-se a última paisagem. No mais longínquo da terra te levantas E vejo erguer-se a poeira dos teus pés.

OUTRA EXP L I CAÇÃO D O H OM EM

Sem sede nem repouso Perdido no andar nos lembra A amplitude De pés j untos desce à água E nem o gume da corrente poderá Desatar-lhe os tornozelos E ao descer nos lembra O torvelinho

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EXP L I CAÇÃO DA G RAV I D A D E

EXP L I CAÇÃO D O P OETA

A lei das coisas é tombar ln terrogando-se: Só o pássaro vive para o voo. Quando pousa é igual ao homem que se senta Para pensar. O homem pensa que nada é mais profundo Que depois de Deus os filhos e os sismos.

Pousa devagar a enxada sobre o ombro Já cavou muito silêncio

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Como punh al brilha em suas costas A lâmin a contra o cansaço

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E X PLI CAÇ ÃO DA ES CUTA

Ninguém me chama Escuto o calcanhar do pássaro Sobre a flor E não respondo

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EXPLI CA Ç ÃO DE RI CARDO REIS

Os rios amo, lídia, lentos E largos sobre o solo. Que em um dia as crianças se banhando neles Se enxugam ao sol e correm. E pela velocidade podem Aos astros comparar-se.

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EXP L I CAÇ ÃO DA C E I FA

Colho espigas E teço a minh a teia Amarro espigas molh os de espigas Ato e desato o cabelo das aranhas

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EXPL I CAÇÃO D O J U G O

O homem n o corpo da mulher Puxou todo o dia o arado Do choro dela Beberam os bois E à noite Morreram ao seu lado

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E X P L I CAÇÃO DA C E G U E Z

EXP L I CAÇÃO D O S O R R I S O

Quando o pirilampo morreu O homem disse: fiquei cego Mesmo continuando a ouvir os ralos Não acharei o caminho para casa Tinha roubado um pára-raios velho E pondo-o à cabeça esperava

A mãe disse-lhe escreve-me De lá de longe para onde vais E ela disse não é longe casar E a mãe sorria cega de dor E parecia de deslumbramento

A mãe

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EXP L I CAÇÃO DA C U RA

EXP L I CAÇÃO D O A L P E N DRE

O precipício não tem futuro ou desalento Mas um carreiro que atravessa as giestas e o trevo Um carreiro que chega ao seu destino Como a lenha podada ao fogo A madrugada aos olhos do mocho. O desamparo não tem as mãos juntas Mas o peito dividido A abelha no coração do pólen Fazendo circular o zumbido. O coração tem uma roldana a girar No eixo do desvio Os olhos de criança diante do que passa. E a canção é mão que se afadiga A sarar do degrau e do perigo.

Porque em seu peito nunca tive aberta A veia exacta para lhe ser sangue

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EXP L I CAÇÃO DA AU SÊN C I A

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais s e transformou Não rodou mais para a festa não irrompeu Em labareda ou nuvem no coração de ninguém. A mudança fez-se vazio repetido E o a vir a mesma afirmação da falta. Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa Nem se cumpriu E a espera é não acontecer - fosse abertura E a saudade é tudo ser igual.

EXP L I CAÇÃO DA E S P E RA

Quando me sentarei ao sol Despido Líquen vivendo Da inclinação dos ramos? Quando crescerei como nuvem Mão leve sobre a fronte Da doença? Quando repousarei Ausente sem sofrer Qualquer ausência?

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EXPLI CAÇÃO DA D I S TÂ N C I A

Mesmo que o vagar m e aproximasse Do que és E cada dia me entregasse a outro Dia E a encruzilhada se desamarrasse Em minhas mãos

Ú LT I MAS EXPL I CA Ç Õ E S

Explicação da casa

Onde a mulher e a centopeia se levantam E a manhã é uma aranha atarefada E a viúva desmancha cada teia

Explicação da dúvida

Do seu próprio corpo se alimenta E a sua obsidade é a aflição

Explicação do milagre

A centopeia cruzou os cem caminhos O mendigo desfez encruzilhadas

Explicação do amor e do orvalho

Uma fogueira no meio da noite cercada Por um homem com os olhos rasos de água

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Outra explicação do amor e do milagre

Maior dos meus amigos, maior Dor que me reparte Ausência que me une, maior Olhar que me comove Silêncio Quando o silêncio me responde

HOMENS QUE S ÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS

Explicação da herança

Duro é abandonar o que houve de sentido e obedecer Mas o mover das pálpebras foi o que herdámos dos pássaros Diante dos olhos só se repete o passar

A mesma explicação da herança

Muito pouco Restará Depois da fome o sabor do pão Depois da sede o correr da água O feixe de lenha à cabeça Da mulher incendiando O cair da tarde

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Homens que são como lugares mal situados

A primeira edição deste volume foi publicada pela Fundação Manuel Leão, Porto, 1998.

Examinemos um homem no chão Testemos a transformação de um homem por terra A sua natureza tão diferente da lava, a sua maneira mineral De adormecer. O que mais interessa é ver o seu lugar rodando para perceber o eixo Que o move no mundo Ou como pode a sua posição orientar as aves e os astros. Interessa também a pedra que ele agarra como alimento Ou que mão escolhe para lhe servir de funda - se é que não usa a própria boca para lançar o grito. Examinemo-lo quando desperta para percebermos de onde vem Para sabermos se o caminho se repete. Se abre os olhos Prontos a receber imagens ou então como alguém que desmaiou Ao chocar contra si próprio. Interessa perceber os motivos da colisão, se acaso Terá mastigado a pedra até a misturar no sangue. Examinemos a sua semelhança com um meteoro que cai Uma fisionomia sem vocação para subir ao céu O peso do seu corpo quando o nosso olhar o levanta. Interessa perceber o íman que cria para nós um lugar junto dele 1 19

Um lugar dentro dele. Há um olhar que nos desloca A placa giratória do amor?

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Interessa também o coração que ele agarra como fruto que colhe Ou que veia abre no corpo para beber - se não é que é a pedra o que ele bebe com as mãos. Examinemo-lo como quem sai de casa e vê o seu irmão Examinemo-lo voltado, em viagem, a orientação discreta De quem cava no peito a bússola. Interessa reparar como tropeça no mistério E se levanta a pedra para compreender.

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos Porque tinha uma mulher no pensamento Sei que os lavava como se os contasse Sei que os enxugava com a luz da mulher Com os seus olhos muito claros voltados para o centro Do amor, na operação poderosa Do amor Sei que cortava os cabelos para procurá-la Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava O cabelo no seu sangue Na água corrente Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir E a mulher cantava para o homem respirar

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mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo, As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados Ao peso dos pássaros que se abrigam.

As

É à janela dos filhos que as mulheres respiram Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas Transformam-se em escadas Muitas mulheres transformam-se em paisagens Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem Cheias de rebentos mulheres aspiram para dentro E geram continuamente. Transformam-se em pomares. Elas arrumam a casa Elas põem a mesa Ao redor do coração.

As

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O filho é o carrossel à volta da mãe O carrossel no coração da mãe A luz dos carrosséis e a música E leva a mãe no seu cavalo O cavalo gira à volta viúvo A mãe é a festa sempre em luto Por isso aviva a luz como quem mergulha nela E conhece o escuro como quem já só faísca Na criança E procura um brilho, o metal que não oxida Eles são uma roleta em voltas sucessivas O tambor de um revólver O estoiro de uma bala repentina A viuvez é um buraco no centro da cabeça A família é um buraco absurdo sobre a casa - uma gruta sem acesso Há um cadáver nos olhos do acaso Cheira a pólvora como o instante que dispara E está imóvel como um dia sem saída

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O carrossel tem um cavalo que galopa O menino tem as rédeas e espera A idade da despedida

Homens que são como lugares mal situados Homens que são como casas saqueadas Que são como sítios fora dos mapas Como pedras fora do chão Como crianças órfãs Homens sem fuso horário Homens agitados sem bússola onde repousem Homens que são como fronteiras invadidas Que são como caminhos barricados Homens que querem passar pelos atalhos sufocados Homens sulfatados por todos os destinos Desempregados das suas vidas Homens que são como a negação das estratégias Que são como os esconderijos dos contrabandistas Homens encarcerados abrindo-se com facas Homens que são como danos irreparáveis Homens que são sobreviventes vivos Homens que são como sítios desviados Do lugar

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Homens que são como projectos de casas Em suas varandas inclinadas para o mundo Homens nas varandas voltados para a velhice Muito danificados pelas intempéries

Homens que trabalham sob a lâmpada Da morte Que escavam nessa luz para ver quem ilumina A fonte dos seus dias

Homens cheios de vasilhas esperando a chuva Parados à espera De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito dobrados pelo pensamento Que vêm devagar como quem corre As persianas Para ver no escuro a primeira nascente

Homens muito voltados para um modo de ver Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro De si mesmo Homens tão impreparados tão desprevenidos Para se receber Homens à chuva com as mãos nos olhos Imaginando relâmpagos Homens abrindo lume Para enxugar o rosto para fechar os olhos Tão impreparados tão desprevenidos Tão confusos à espera de um sistema solar Onde seja possível uma sombra maior

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Homens que escavam dia após dia o pensamento Que trabalham na sombra da copa cerebral Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas Homens todos brancos que abrem a cabeça À procura dessa pedra definida Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento Livre. Que vêm devagar abrir Um lugar onde amanheça. Homens que se sentam para ver uma manhã Que escavam um lugar Para a saída.

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Não levantemos os homens que se sentam à saída Porque se movem em seus carreiros interiores Equilibram com dificuldade uma ideia Qualquer coisa muito nítida, semelhante A uma folha vazia E põem ninhos nas árvores para se libertarem Da gaiola terrível, invisível muitas vezes De tão dura Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades Que encostam a cabeça aos ferros Sem outras mãos onde agarrar as mãos Sem outra cabeça onde encostar o coração Não lhes toquemos senão com os materiais secretos Do amor. Não lhes peçamos para entrar Porque a sua força é para fora e a sua espera É a féinabalável no mistério que inclina Os homens para dentro Não os levantemos Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos A qualquer instante

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Mas basta-me um quadrado de sossego

Amanhecemos sem materiais suficientes para a luz total Embora nos estiquemos como cabras nos penhascos para os arbustos Mais tenros, esticamo-nos para não nos doer a lembrança Das manhãs tão sossegadas dos cavalos nos pastos Explico que amanhecemos mastigando as ervas venenosas Buscando um som mais poderoso do que o bater dos cascos Um balido interior reunindo rebanhos Uma palavra fonte múltipla como o úbere das cabras Amanhecemos cheios de sede como se viéssemos de um outro hemisfério Num galope rápido Esticando-nos como arbustos tenros chamando Amanhecemos nocturnamente fincando os joelhos nos penhascos Levantamo-nos para sacudir as crinas para escovar os cavalos Amanhecemos sem braçados bastantes para a luz Queimados pelas palavras. Organizamos rebanhos junto das águas A ndamos nas margens no meio da tarde. Esticamo-nos para sermos setas de fogo Ou o som dos chocalhos trespassando Os mais tenros rebentos das chamas.

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Repito que vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido Correndo ao lado dele, correndo para ele - era assim Que eu queria que fosse a linguagem veloz: Uma casa para a infância com trepadeiras Para que as palavras ficassem como frutos no alto. Repito a corrida na memória quando estou parado Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado De locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secr Do amor. Sei que estou em viagem na palavra que se move. Repito o trajecto para ver o poema de novo - era assim Que eu queria que fosse a linguagem de uma coisa amada Correndo ao meu lado, correndo para mim no mecanismo violento Do amor. Era nele que eu queria a casa com trepadeiras Onde as palavras ficassem silenciosas e altas como um pátio interior.

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É por isso que adormeço numa luz em movimento E escolho um espaço para ver o espaço de frente A sua cor de silêncio nocturno e desenho Uma maneira quieta de estar nele tranquilo Há nesse espaço uma fonte , um anim al que desperta Uma criança que navega com as próprias mãos. Bebo com as mãos juntas. Há uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco A sede. A água mult iplica-se porque a tiro do coração Que escuta. Há um espaço no corpo que pode ser um lugar. À sombra posso olhá-lo até o ver Posso tocar as chagas no corpo E posso beber dele morrendo Nele como quem entra de tanto O desejar.

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que voa Há muitos metros entre um animal no chão E a escada que desço para me sentar ego Mas basta-me um quadrado de soss Para a distância absoluta

Foi um tempo branco, repetidamente lavado nas próprias mãos Desviando a transparência do rosto para a noite Um tempo branco muito diferente da verdade Muito diferente das estrelas que se apagam

onde me debruço defi nitivo Está para além do que se vê a janela Não é uma aparição . frente camdo em ir se sem r nça alca e pod se Nem

Foi um tempo muito branco Mais doloroso do que os olhos sempre abertos no escuro Inimaginável quando pus de fora a cabeça, as mãos - tendo deposto o que trazia nelas O corpo todo E saí como um paralítico depois do milagre Na forma de quem grita por socorro

o um para-quedista que desce Só no fim da paisagem estou de pé com místico Suspenso como os santos num arroubo Erguido como um anjo em suas asas vem E sinto-me ser alto com o um astro. Nu Como se fosse um hom em Que levita

Foi um tempo branco porque era mudo não havia nenhuma palavra que pudesse apagá-lo Um tempo tão manso como um lobo que não morde Um tempo tão branco Tão raso E

Saí como um coxo que caminha sobre tempo tão liso Tão branco Que pensei que era um muro aquele tempo estar ali E bati contra ele como uma badalada que demora E

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era branco, um som que nunca ouvi 1 35

Tornei-me peso Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores Peso da ceguez nos meus olhos contaminados Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens Pedras internas golpeando-me Tornei-os incapazes das visões Das visões interiores e por fora Da aparência Afoguei os olhos no peixe das imagens Um peixe cheio de canais mudando as suas cores Doendo-me muito nos olhos cobertos Por escamas

Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aqu ário Um aquário sem nada den tro dele, dinamitei de vazio Aquilo que na transparência tinha material explosivo Uma força concreta, a capacidade de um cenário Devastado E dinamitei o vazio e enco ntrei um peso Humano que não se afun dava:

Era um milagre como Lázaro vindo para fora! Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa E que partia o pão. E eu vi que era ele Que partia O pão.

Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens E estava cego, estava coberto de fantasmas Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas Porque as imagens não tinham rostos nas janelas Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume, Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver 1 36

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Agora és um animal que pensa Amanhã um animal que dorme Mas tens uma noite inteira para dormires do mesmo lado Hoje és um dia que começa outra vez Como se hoje pudesses plantar o dia que não acaba Um animal que come a sombra diurna daquilo que é pensado És um alimento Agora és um alimento que dorme Do mesmo lado da mão direita de quem colhe Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga Agora és um animal que se propaga no sono Que pesa menos do que o sonho ou um pássaro Um animal que se eleva em seu instinto de máquina És agora uma máquina montada para a morte Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta. E fabricas um homem que se afasta Do mundo 1 38

Para encontrar o golp e no s o no

1 Acordei com as narinas a sangrar um perfume Como um santo quando acaba de morrer E debrucei-me para dentro Para encontrar o golpe no sono. Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros Que quebrava vasilhas de barro. Disse-lhe: bebe do meu sangue. E ela rasgou-me as veias com os cacos E deu de beber aos pássaros

2 Acordei também com os pássaros E estudei a posição em que os bordava Nos seus vestidos E disse: para que lhes espetas a agulha no coração E ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo

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Ela pôs-me o dedal sobre os olhos Um vaso pequenino com que me ministrou o sono Apagou em mim os instintos da caça. Estou ferido nas narinas e nos pulmões, Digo-lhe: sufoco. Ela ordenou que os pássaros batessem as asas E fez circular o ar.

Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca, Espetou-me um anzol na língua e puxou-me As palavras. Foi então que pensei que ia morrer Afogado.

7 4 Acordei dentro do poço Do ar E soube que podia respirar dentro da água Porque a mulher estava cercada de peixes. Disse-lhe: porque quebras aquários contra os joelhos? Ela mastigava e não me respondeu, Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar

5 Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar: A mulher era uma ilha de todos os lados Na sua força de um redemoinho parado.

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Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo Com a boca cheia de búzios em forma de palavras. Soube que era possível respirar dentro das palavras Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os ouvidos. Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno tear.

8 E eu disse à mulher: destece-me Até que alguma coisa me pense para dentro Como se alguém me chamasse Como se badalasse um sino ao redor Dentro de mim. A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio - disse Dos teus novelos.

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Assemelhei-me a um xilofone de silêncio A um estrondo muito forte que só se ouvia em silêncio. Gritei: então canta! Ela pegou na minha tristeza e começou a dobar.

A mulher guardou-me no útero

10 Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço E disse: é agora que vou descer. Acordei no meio da descida e pensei: Ah, quem dera a mulher lançasse a sua trança A prumo.

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E eu vi quanta morte existe ao redor de quem nasce. Pergu ntei à mulher: porque estás de luto? Ela abriu o regaço e vi como nas fotografias do holocausto Exactamente como nas manhãs depois dos terramotos Cadáveres e cadáveres de peixes e de pássaros 13 Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado E gritei para fora do poço: existe alguém desse lado? Eu estava no fundo, eu estava morto e vi Que os peixes e os pássaros Ressuscitavam.

A mulher lançou a sua mão Eu estava na palma da mão Eu era uma linha que se apagava Uma linha que ninguém sabia ler. Eu disse à mulher: Ah, fecha a mão Para me guardares

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Se fores pelo centro de ti mesmo

SARA

Sara senta-se nos degraus das casas destruídas Sara é o nome do deserto É o nome da videira estéril É o nome à espera de ter filhos Sara está velha de estar Sozinha. Está sentada e desfaz A bainha dos seus vestidos

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A E S C RAVA D E SARA ( G n 2 1 , 8 - 2 1 )

No deserto há uma mulher e um arbusto E a mulher é Agar Sentada no odre vazio Com os olhos cheios de lágrimas À distância de um tiro de arco Para não ver o filho morrer No deserto há um poço. A mulher Escolhida no Egipto No deserto há um flecheiro O menino que dormiu sob o arbusto Agar tem um véu que voa Ao lado das setas do seu filho

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S E PA RAÇÃO D E A B RAÃO E LOT ( G n 1 3 )

Se fores pela direita Olharei em redor Se fores pela esquerda e descansares Olharei em redor O meu olhar há-de acompanhar-te Como a poeira à volta dos teus pés Se desceres à planície E fizeres a tenda com o véu da mulher Não desviarei o olhar Não dividirei a túnica Se fores pelo centro de ti mesmo Tactearei Abrirei a mão e estarás próximo Basta respirares E olharei em redor

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A M O RTE DE J O NATAS ( 2 S m 1 , 1 7- 2 7 )

SAREPTA ( 1 Rs 1 7 , 7 - 2 4 )

Houve um amigo que mais do que as mulheres Como David explicou ao morrer Jonatas Esteve David disse-o ao chorar sobre o seu leito

Fora dos muros da cidade me visitou Junto dos muros Equilibrou-me o feixe de lenha na cabeça De um modo que me abençoava E como pedra que medita no coração Do pedreiro Voltei de novo para casa E acrescentei a sua ausência À viuvez.

Seu leito quer dizer o de David Que Jonatas não teve onde deitar-se Nem a mãe nem a terra (nem o sono) O seu corpo caiu. Depois morreu A espada está cravada no seu corpo Já não de Jonatas. No corpo de David

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E L I S EU ( 1 Rs 1 9 , 1 9 -2 1 )

S UNAM (2 Rs 4 , 8 -3 7 )

Preparou a refeição com a lenha do arado Para ser sulco na terra e resistir

O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada. Tens a memória e sobre o banco à tarde A mulher. Vamos construir - disse - um quarto no terraço Quatro paredes de tijolo e uma lâmpada ao centro Uma cadeira, uma mesa. A bilha Ficará connosco e beberá aqui.

Preparou a refeição com a lenha do arado Para ser fogo a propagar a luz Preparou a refeição com a lenha do arado Porque tinha fome e o coração em chamas Preparou o coração com a lenha do arado Para ser a lâmina do arado e o arado A palavra em seu gume a ferir e a gerar

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O absurdo pode sempre visitar-te quando estiveres no campo E o teu filho te disser: a minha cabeça Pondo a mão sobre a nuca, tendo largado a. foice. O absurdo pode sempre parar à tua porta Com o teu filho sobre o j umento pardo Pode sempre visitar-te no rosto da mulher - Era meio-dia sobre os meus joelhos E chamarás. Abrirás em cada dia Uma nova entrada por onde possa visitar-te Sentar-se aí ao teu lado. Onde costumas envelhecer.

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J UNTO D O S R I O S DA BAB I LÓ N IA [ S I 1 3 6 ( 1 3 7 ) ]

Nas margens dos rios imaginando pontes Quando já só no nosso pensamento deslizavam Debaixo da sombra das nossas liras Ali nos pediam - em solo alheio Que cantássemos canções da nossa terra. Como poderíamos cantar a nossa infância Tão longe, num país estranho? Os salgueiros têm folha persistente Sob a sombra persistente a mudez Junto dos rios da Babilónia Foi a única das nossas alegrias

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O REG RES S O D O S RIOS DA B A B I L Ó N I A

S e a chama não contiver o fogo E transbordar Se a morte da semente Enegrecer até ao luto os campos Se a agulha entre os novelos Brilhar ainda Se o regresso abrir o pesponto Da nossa boca fechada Se o silêncio for quebrado Por chamar-te E se enxugar os olhos for rever-te Ó bem-amada

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E LO G I O DA M U L H E R ( P r 3 1 , 1 4)

O coração da mulher é alto Mas nem só por isso a mulher oscila Ela é como o navio mercante Que chega carregado de grão A mulher é o tear dentro da vida Nem só por isso a mulher é mais que a vida Ela é como o navio mercante Que chega carregado de grão

C O ELETH ( Ec l 1 2 , 1 -7)

Lembra-te do teu Criador nos dias da mocidade A c ua única herança para os dias da desgraça. Cava fundo o coração para a lembrança An tes que digas não tenho mais prazer Antes que a noite seja noite e não vejas mais o sol nem as estrelas nem [os filhos voltem as nuvens depois da chuva como a viuvez que Antes Antes do dia em que as mulheres, uma a uma, pararem de moer, Quando a escuridão cair sobre os que olham pela janela Quando se fecha a porta da rua e o ruído não diminui Quando se acorda com o canto do pássaro e as palavras desaparecem Quando a altura se assemelha aos sustos que se apanham no caminho Quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se torna pesado Quando o tempero perde o sabor Antes que a tua única herança seja a lembrança Antes que o fio de prata se rompa e a roldana rebente no poço Antes de tudo isto Põe uma escada e sobe ao cimo do que vês

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RAQU E L ( J r 3 1 , 1 5 )

Do lado de Ramã matam-se os cordeiros E Raquel em luto no coração dos filhos bombeia o sangue Com as fundas lança-lhes a vida Ela come o chão como planta que respira E no fio do seu pranto desfaz os seus sentidos Gerou o que não vive o menos do que o nada É mãe do que não vive e não quer ser consolada

LAM E N TA Ç Õ E S ( L m 1 )

Que solitária está a cidade Enviuvou a mais povoada Das nações. Está de luto a que foi mãe E em trabalhos forçados Passa a noite a dobar a sua noite À luz do pequeno brilho da lembrança Não há a consolá-la nenhum dos seus amantes Cresce o silêncio nos degraus de entrada E encontra inimigos quando estende a mão Foi levada para fora das muralhas Foi levada para terra estéril. Foi humilhada E posta ao serviço das escravas. Dorme ao relento e sem repouso Tomada de aflição. Perseguida até ao fim Das suas forças Mesmo no sono é cercada Está mais perdida do que numa encruzilhada E venda os olhos porque qualquer luz

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Ou a mínima palavra (ou a noite) Lhe ferem os olhos rompidos de saudade E nem os mendigos nas estradas Têm um coração cão só

E Z E QU I EL ( Ez 1 2 , 1 -2 0 )

Arruma as tuas alegrias E faz as malas como se fosses emigrante Leva contigo todas as coisas E parte de dia como se fosses emigrante Para que possas levar também a luz Abre a cal. O flanco do muro Porque vais como emigrante e precisas De regressar Na parede faz uma abertura Para que os que passam vejam o teu rosto E não digam: vai beber ao poço Vai visitar um parente no estrangeiro Ninguém chora por razões assim Parte de tarde, dobrando a luz Cobrindo o rosto de cinza e de sombra Porque és um povo que abandona a tua casa E nos teus passos eu arraso o teu país

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A M U L H E R A D Ú LT E RA

F I L H O P RÓ D I G O

Não turbam a água dos meus olhos As pedras que me atiram sobre o corpo

Cada cidade acrescentou a minha fuga E o desvio aproximou-me do perigo. Além do que mereço, além, agora Queria ser deserto e trabalhar nos campos Abençoando a fome enquanto ceifo o trigo.

As tuas mãos vazias este muro Branco me doem muito mais

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ZAQU E U

A árvore foi a forma de te ver E desci para abrir a casa. De me teres visitado e avistado Entre os ramos Fizeste-me passagem Da folha ao voo do pássaro Do sol à doçura do fruto. Para me encontrares me deste A pequenez.

CHARLES D E F O UCAULD

Pensa que morrerás mártir. Entre talhas Ao cair ressoará o teu corpo sobre o bojo. Pensa que morrerás Esta tarde. Com o sangue no peito a marcar o umbral Da tua morada. Nu morrerás E desconhecido. Na terra só o adorno Possui o reconhecimento Pensa que morrerás No chão À tua porta. E nunca mais acabarás De regressar

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Uma espécie de anj o ferido na rai z

Examinemos também a escrita O solo negro deixado pelo fogo O mecanismo semelhante às queimadas Deixando a terra arável na sua devastação. Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está escrita A palavra nova A pedra onde corre o sangue. Enquanto perguntas pelas dez palavras. Põe a boca na palavra líquida Examina o coração de carne em vez da escrita antiga O verbo onde jorra a palavra incessante Há dentro dela uma pedra nupcial

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E posso escrever com ele a abertura A passagem para dentro Os umbrais na própria carne Pôr o coração no interior para soldar Uma pulseira humilde. Uma aliança Com o que respira. Um pulso aberto não dói mais Do que uma mão fechada que bate. Numa porta que se fecha por dentro sem ninguém É sempre possível abrir-se-nos o pulso separado como um divórcio Em litígio, suturado, pulso costurado Pela própria mão que o desune Mas é sempre possível redigir com ele Pensá-lo como uma ferida que se cura E escrever como um homem que corre em pensamento Escolhendo as paisagens ou as divisões da casa Para o descanso É sempre possível mudar de casa sem mudar de movimento Acompanhando a rotação da terra e o germinar da idade No mesmo rigor explosivo que o corpo suporta na geografia do [mundo e do amor. Um pulso aberto, como qualquer palavra a meio: Fenda que não dói mais Do que um fruto cortado antes do tempo Do que uma ave em voo perdendo a sua sombra

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Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio Restauro-a Dou-lhe um som para que ela fale por dentro Ilumino-a

Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou um cego seguindo as mãos - sim, toco as palavras nas suas superfícies e utensílios. A primeira palavra que os olhos viram, agora que a recordo,

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa Reunida numa forma comparada à lâmpada A um zumbido calado momentaneamente em enxame Ela não se come como as palavras inteiras Mas devora-se a si mesma e restauro-a A partir do vómito Volto devagar a colocá-la na fome

parecia uma imagem - sim, um som desenhado como um fóssil (falo de fóssil, mesmo que ele demore muito a aparecer no que digo) , um som do tamanho de um azulejo: agora que me lembro que era [uma palavra que brilhava nos meus olhos ao vê-la (ver uma palavra era uma planta muito diferente, um oxigénio muito difícil de se respirar) .

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza Como um homem nadando para trás E sou uma energia para ela

Sim, agora vejo que falo, embora possas pensar que sigo pelo tacto a [escrita. Sim, eu leio e decifro. E agora sei que oiço as coisas devagar.

E ilumino-a

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Entrei na sombra como alguém que via Entrei devagar no ritmo de um salmo E havia luz Era uma luz como uma árvore quando cresce E estando em flor era um dia inteiro

Alguma coisa trazia a candeia para dentro -havia uma noite dentro [de casa ­ Para dentro do peito - havia uma força cega no sangue Era um vulto que a trazia, era a memória que acordava Era um vaso de petróleo para a voz arder - Fui eu que fundi a voz ao ouvi-la -

Entrei com a sombra pela cintura como algo conquistado Com o sangue a escorrer-me para os pés. Mas mesmo Que não sangrasse eu entrava em triunfo Inteiramente vencido.

Alguma coisa trazia a noite para dentro, para dentro do poema Enquanto eu escrevia como se fosse uma palavra de manhã Uma mãe a chamar o filho

Entrei para um laço sem saída porque era um nó aberto E tinha os pés regados pelo sangue que dá vida Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre

Eu trazia uma candeia na garganta onde o silêncio aceso me queimava Era a mim que a mulher chamava pela noite dentro O meu nome era a chama no silêncio

Entrei em morte sucessiva no que vive Era a luz de uma árvore quando cresce E se ensombra para não ficar sozinha

Eu vim para dentro e sentei-me como se fosse uma palavra Cansada. Alguma coisa trazida na palavra para dentro Do poema - e havia uma força cega No poema: Era um verbo de sangue para o silêncio arder

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Juro que vi o anjo E recuei. E vi que estava mutilado Como um homem situado sem lugar.

Existia, no entanto, um poema a recuar A entrar numa carapaça branca, uma folha amarfanhada Uma espécie de anjo ferido na raiz Não na raiz das asas, mas na raiz da comunhão Existia nele um voo a recuar, emagrecendo, Sem as proporções exactas calculadas para o equilíbrio Não que existisse uma forte instabilidade, era um recuo Um passo terrível para trás Eu pus as mãos convidando-o para a frente Trinquei os lábios até falar apenas com palavras De um vermelho vivo E vi o poema mutilado a recuar Verguei-me em forma suspensa de quem interroga Pus a mão sobre a boca: não conhecia Outro gesto para o salvar Ele recuava como a teia de Penélope quando caía A noite. Fiquei descoberto ao frio Sem conseguir adormecer. Não havia luz diurna nem silêncio que o fizessem avançar. O poema Recuava como se o anjo o perseguisse 1 78

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Para o instrumento difícil do silêncio

Trago os instrumentos do fogo p0nho-os na boca Ponho-os no coração Trago os instrumentos da respiração _ Uma montanha, uma árvore que lhe dá abrigo E suspendo-os

nos ramos como pinhas que dão sombra Um lugar fresco para os deportados de Sião nas margens Trouxe também os instrumentos dos mineiros Uma luz na cabeça voltada para o pensamento Um olhar profundo O modo prisioneiro de virem livremente para fora E trago

todos os instrumentos na circulação do sangue e na ocupação [permanente Das mãos Para o instrumento difícil Do silêncio

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Mas tu existes. Os dias somam ruína à ruína E o a vir multiplicará A miséria. Apodreço não adubando a terra E cada dia somado a cada hora Não completa o tempo. Sei que existes e multiplicarás A tua falta. Somarei a tua ausência à minha escuta E tu redobrarás a minha vida.

Mas tu cresces abundante como um ano bom És uma benção como um ano bom Enches-nos a casa como um ano bom

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Porque a morte tem o seu tempo A ruína soma ruína, à cabeça Equilibra a existência desmoronada e inteira. Tu és o que edifica Tu constróis mil vezes. Porque o raio tem o seu tempo. És o clarão, a lâmpada, a estrela Somas luz à luz. Não és a luz, és mais que a luz Porque a noite tem o seu tempo.

És o pé de criança sobre o meu pé Sob re a parte interior da minha mão e sobre o meu peito És o peso do que permanece No meu ombro És como a terra fértil Estás à minha beira E alcanço-te do cimo dos montes Tenho um lugar na terra e frio Como um arbusto de manhã Sou o teu irmão mais novo Tenho um lugar Como as raízes, saudade De dormir sobre os teus pés És a balança, és o baloiço Divides-me e não me perco És o sopro, o redemoinho no barro És a chuva sobre as casas A inclinação dos telhados

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O vira-vento de cascas cruzadas De eucalipto A tua mão é plana e funda Sou pedra na água A raiz que ficou Do que foi cortado, o grito Da tua boca

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D e veres o meu lugar. De me veres só Apagando a luz do quarto cada noite No escuro a respirar como um clarão. De me veres do lado exterior Muro, fenda no muro e sem força Para esperar. De te hospedares em mim. De descobrires A posição da árvore fixa no crescimento Da árvore que agora sou circulando com dificuldade Do fruto cortado Para ocupar-me as mãos. De o veres empunhado como arma Para afastar o medo. De veres a casa. De estares à minha beira e no quarto ao lado Vazio, no vazio búzio De ocupares o vazio para o libertar. De veres a pedra branca dos meus olhos Seixo dos rins Pedra polida de tanto rebentar Primavera de si mesma. De anunciares em silêncio O nada que salva a minha mão perdida Remo à superfície teimando contra O peso âncora de fechar os olhos E inclinar O corpo afogado. 1 89

De perdoares. Por ter-me apagado tão longe de te ser luz De te ser lâmpada horas e horas, à noite E no Inverno. Da transparência que engana A presença do mundo Da obediência, da aceitação, do enjoo. De poderes abrir a vida como quem abre a casa Da casa que tu salvas com um sinal de sangue. De poderes arrastar a mesa para o centro da cozinha. De seres para ordenar colinas Campo cultivado Encosta e declive da minha vida cobrindo-se de erva. De seres a benção, o alimento e a abundância E vasto Administrador de água em redor dos pés Dos calcanhares, dos tornozelos Mendigo, servo, milionário no milagre. De acordares da espera Da doença, arbusto que minga sem raiz Da tua mão - a tua mão pode curar-me Pequeno movimento De o seres às minhas redes Bunho e bulir Das folhas na paisagem. Da casa na paisagem. Estou por terra e vejo já do alto Com a saliva a saber-me Ao bolor do chão. De estar preparado e de ter um nome. De estar sentado e inútil - como se tudo à minha volta me cegasse Apodrecendo a cadeira e o soalho. E de me erguer como um odor da terra - como a tempestade Cansado, cansado. Sem força para ver a tua face. 1 90

H á u ma palavra pessoa Uma palavra pregada ao silêncio de dizer-se como nunca fora ouvida E nela dizer-se posso existir. Só posso viver cabendo nela Habito-a Como Jonas o grande peixe. Ela pronuncia-me Traz-me em viagem do nada para o silêncio - exemplifico-o com a luz de um homem que ressuscita - sustenta-me Como o jejum alimentando Nínive Mas também posso ser um vaso para ela - um vaso não, outra coisa qualquer que não consigo comparar às coisas da terra - um lugar tão verdadeiro Que mesmo a luz em suas praças, pátios e alpendres Só imprecisamente é capaz de assinalar

E como salva a cinza em Nínive espalhando-se Eu posso propagá-la E posso amá-la até me transformar.

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Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo De o transformar. Este é o dia transformado Pelo modo como apoio este dia no chão. Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando os fixo Na atenção. E fico atento, fico deitado porque não sei crescer Num terreno que se levante. Cresço na clareira de um homem que é uma palavra Na sua túnica inteira Porque este é o sítio do dia sem horário Sem divisões E ponho-me de frente no seu lado, Nos seus braços abertos para me unir E entro pelo lado aberto e ardo - como Elias Em chamas subindo para o céu.

Se o fogo destruir a casa E apagar a cal que caia a casa Onde irei escrever o teu nome? E se não escrever o teu nome Como direi a alegria ao mundo? Ainda que vigie como um sistema de alarme E encha a minha boca de sirenes Como direi na minha casa em chamas Que és a única luz? O chão carbonizado é a erosão do meu destino Respeito o luto e não vou abrir caminhos: Mas se tu és também o incêndio Como não rebento na cinza? E se o fogo destruir o homem que caia a casa E apagar o coração Como explicarei aos sem abrigo O teu auxílio? O relento não pode vergar-me Porque sou mais resistente do que o hissope: Mas se o fogo consome o sopro que me mantém de pé Que chama porei na fronte quando o teu anjo vier?

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Cruz, rosa Dos ventos sem direcção que não seja o centro. Coluna Sustentada pelos braços como um amigo que chega. Rosa De orvalho e sangue para o corpo trespassado de sede. Árvore Que bebe do homem. Árvore Em silêncio onde escutamos a palavra Em carne viva. Verbo Tão inteiro que se fez espelho.

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D o s Líquidos

Para que nasças no mês anterior Para que nasças muito antes de chegares Para que amanheças já aberta e recortada No tempo anterior à tua vinda Para que amanheças Ó rosa anterior Para que venhas Mesmo antes de seres compreendida. Ainda Antes da terra te poder gerar. Ó rosa já florida

A primeira edição deste volume foi publicada pela Fundação Manuel Leão, Porto, 2000.

Das nascentes

Há homens a abrir as mãos como livros Superfícies intensas sem ruído - as nascentes No rochedo liso, no deserto imprevisto É quente o silêncio. É quieto de uma claridade Atenta. Eles o abrem - o orvalho E nem sempre o atravessa o lume É sempre de manhã que se abrem as correntes Abrem os escritos sem abrir os lábios Eles sussurram sobre os ouvidos Do homem que fala sozinho Nem sempre abrem a porta de quem está em sua casa Nem a ferida que se cura com o tempo Abrem uma fonte e um lugar à frente. Cada afluente E o seu leito. Abrem Os anzóis profundos dos sinais

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Eles trazem em nós as águas e pousam-nos No chão (É junto à sombra, é onde a luz pode crescer) Eles trazem a resina, uma ave Persistente. Estão a abrir Os ovos, os pinhões, os rebentos Estão a ler o interior das cascas, o fundo Dos leitos O miolo de um silvo Uma folha Uma pedra nova assinalada Para ser

Eles abrem a palavra A pequena giesta - essa luz Abrem uma pinha na infância Quando despertam Quando abrem as mãos à pulsação Dos livros, eles abrem No favo o sinal A pequena nascente no mel

Pedra Silvo Folha nova caindo outra vez

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D O L I V RO DO ÊXO D O

O deserto alongava-se até à idade

De uma geração �ós éramos a única planta das areias A partida contínua e adiada. Quantos E quantos passos não estivemos descalços Procurando nos pés gretados a nesga Para o regresso As crianças perguntavam o que era a nata e o leite Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos As mulheres calculavam em pensamento A altura que teriam os filhos entre as árvores Quando chegassem à terra distante do mel

DO L I VRO D O S N Ú M E RO S

Como são penetrantes o s vales que se prolongam nos olhos que [transbordam de visões Transbordam como cântaros à beira da corrente Como aloés plantados ao redor do acampamento Como imagens de cedros vindo à memória de repente Transbordam as palavras de quem vê e cai Com os olhos cheios de sementes Ele vê, mas não é para agora Ele contempla, mas não de perto Planta cedros para os anos futuros Carrega cântaros para a sede que vem Como são belas moradas as crianças prolongando-se Como as palavras de Balaão que sopra nos juncos Palavras do homem no lugar penetrante De quem ouve. Palavras De quem cai em êxtase e se ergue pelo tacto Contempla por entre os aloés e os dedos A criança que acampou connosco agora

O menino que abre uma estrela e nos convoca Ele contempla. Ele vem. Ele é um cedro que transborda Palavras de quem vê e derrama Os olhos e os cântaros sobre si 204

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Eu era uma lança cravada no chão O mensageiro, um aqueduto A candeia em flecha para um coração tão duro Casa mais dolorosa D O LIVRO D E E Z E QU I EL

Aconteceu no trigésimo ano no quarto mês no quinto dia Quando estava como pedra no meio do exílio Arbusto sempre consumido entre os deportados Quando estava na margem Quando me sentei junto do Cobar Os céus abriram-se abriram-se Os meus olhos Líquen aberto na parede e no tronco Mínimo rebento recente no musgo Aos cinco dias do quarto mês múltiplo Em visões Ezequiel filho de Buzi Da terra dos caldeus de junto do Cobar Com as mãos sobre mim e sobre os olhos Vi um vento que vinha de Alquila sorvendo Era a roda, era a nuvem, o relâmpago no eixo Do fogo, nos cascos fendidos dos bichos Nos dois olhos de cobre abraseado Senti a pata direita dos novilhos

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Ele disse hás-de morar nesse lar de escorpiões E do que estava escrito ele o abria Para eu comer Palavras enroladas como um caminho sem saída Um rolo violento como um cerco Ele mo deu a provar Na boca era cheio de sons iguais ao movimento Das fustigas O ruído das asas dos animais ao tocarem-se O ruído das rodas quietas dos animais ao passar O paladar pesou como febre no meu corpo Sete dias em Tel Abib entre os exilados Banhado no Cobar, pedra no fundo, estive Em silêncio e nudez no meio deles

�u era uma presa de água que não corria Agua parada para espelhar o céu Por estar na terra como raiz preparada A sua mão pôs-me de pé Os meus ouvidos chegaram à escuta Guardei-me no oráculo como a semente no fruto Com a palavra cosi a língua ao palato

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Bati com as mãos Pateei com os pés Gritei chegou o fim, chegou o fim O pó subiu e entrou-me para os olhos DO L I VRO D E ZACARIAS

Eu vi o luto De manhã falei ao povo À tarde minha mulher morreu

A pedra escolhida estalava nas mãos de Zorobabel A pedra aos gritos, a pedra no fio de prumo O livro aéreo ignorava ainda o ritmo das migrações As mulheres com as asas da cegonha semeavam o alqueire Entre a terra e o céu As

oliveiras antigas tinham a luz de várias luzes

Com olhos por dentro saíram os quatro cavalos eólicos A pedra angulava-se para lançar o rebento

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D O L I V RO D O S ACTOS D O S A P Ó S T O L O S

A luz de Damasco é um grito Para a ovelha que regressa A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair Do grão - cega tanto como os olhos De um homem perseguido quando se volta Para nós A luz de Damasco golpeia. É circuncisão Que abre, limpa, a luz de Damasco É dura. Da dureza Das pedras que um mártir j unta com as mãos Com que empedra o caminho para a morte. A luz De Damasco é esse lume Da oração de um mártir ao morrer

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D O LIVRO D O A P O CA L I P S E

Onde há uma estrela há u m homem nocturno Um homem hemisférico que pensa na luz. Ele sabe que a lâmpada é o cordeiro. Sabe que a cidade Não precisa do sol nem da lua. O homem acende na cidade O pensamento. O cordeiro está em pé como que degolado e o sangue Corre da ferida viva como um braseiro. A lâmpada Abre uma constelação no chão: o livro Que nomeia e nutre os ressuscitados. O homem põe a estrela na direcção da vida Um astrolábio celeste. Não precisa do sol nem da lua Porque tem o cordeiro em pé e de frente. Ele sabe que o cordeiro é uma pedra que está ferida E roda-a devagar até ele próprio ser a fonte. O homem j unta as duas mãos como quem bebe E queima-se nas mãos, na boca, nas entranhas Com o lume muito novo da bebida.

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DAS I N S TRUÇÔES D E S . C O L U M B AN O , ABAD E

A claridade vigia aqueles servos Que ele encontra - com a candeia nos olhos Nos lábios, na garganta. Quem dera Que a mim me acordasse também do coração paralítico E entornasse no meu sangue o propagadíssimo Movimento do amor - o próprio cimo das visões. Quem dera que o lume Descesse como a candeia dos que recebem quem chega O clarão mais cortante Do que para o astrónomo em pleno dia a lembrança do que bri Quem dera propagasse em mim a ferida incendiária de amá-lo co [ex E melhor. Quem dera a minha lâmpada não se extinguisse pela noite Fora, e a minha casa iluminasse quem entra Avivada para mim e brilhando para os outros, a lâmpada Sempre acesa para nunca se quebrar. Ditosa vigília Que clareasse e caldeasse a vida para o centro Da mão Que ilumina a porta que abre diante de quem vem Pela meditação batendo assiduamente. E depois Que vendo os olhos gerassem na sua própria água A corrente O amor que as águas não podem apagar. 212

D O L I V RO D O S S O L I L Ó QU I O S 1

ó extensão infinita na parcelinha da minha alma És 0 meu conhecedor - ó amplitude ó tu mão sobre o meu crâneo Manhã nos meus olhos, aurora e fogueira neles Que te veja - ó incêndio ó primeiro goivo queimando o verdadeiro Terreno onde enraizo o lume. Ó roseira Na minha alma, casquilho nela e rosa e lâmpada Que acende o aroma. Flor em fogo da sarça transformada Inteiramente em água. Acrescenta Coriscos e trovões e lâmpadas e tempestades Aos meus olhos Que nasçam neles e rompam as nascentes Tu esposo todo encharcado em sangue. Faz a mim que abrace a ti que és muito grande - lençol que alimpa Que repousa, cura - ó chaga nupcial de dentro E de fora E faz-me que te possua Tu que me atravessas como um exército Meu acorro e meu ajudador, minha muralha comprida e palavra Trespassadora - mais do que toda a espada talhante. Abre os ouvidos de dentro das minhas orelhas Que eu oiça A tua voz desde o interior da lâmina - ó pastor

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Que escutas o meu balir no interior do rebanho. Tu és fermento que engrandece o meu pão Eu fui-te a esponja erguida de vinagre E ardo vivo por ser-te o alimento. D O L I V RO D O S S O L I LÓQU I O S 2

De neblina somos. Vaidade, faísca Faúlha daquilo que se extingue, o que se apaga Inumerável nada Apedrejas-me com a mesma pedra que me dás Para o descanso Pisam-me os cascos do veado em chamas hastes emaranhadas no lume

As

Pelo cacto procuro o caminho das águas Cego - e os olhos a quererem abrir-se Como as chagas

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D O LIVRO DAS M E D I TAÇÕ E S 1

No celeste orvalho e no vital refresco se mitigam os ardores Apagam-se as chamas e cessam os trabalhos. Reclino-me um pouco desconjuntado na estrutura do teu corpo Como quem caminha nos amenos bosques da escritura. Devagar Corro notando e colhendo as saudáveis, as vigorosas ervas das sem Mastigo-as como quem lê repetindo E torno a devorá-las na memória. Celeste sumo do livro que é a fonte Represa aonde vou beber seguro.

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D O L I V RO DAS M ED I TA Ç Õ E S 2

Portanto farei uma escada no coração. E pelos degraus subirei da minha casa Até bater com o pensamento no altíssimo. Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto Sempre atento como a águia quando fixa o sol Sem pestanejar. Farei portanto a escada no deserto para fixar A luz. Da minha casa subirei sem palavras Em silêncio, portanto, pisando o coração.

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D O L I V RO P R I M E I RO D A N O I T E E S C U RA, D E SÃO J OÃO DA CRUZ 1

D O LIVRO DAS M E D I TA Ç Õ ES 3

Que a mão escreva tão exacta a necessária travessia Que a mão escreva em si mesma esse dever de fruto que cresce Esse sumo que a escrita bebe para saciar quem lê Mesmo se nada lhe vem ao pensamento quando lhe apetece esc11 [nos vi Que a mão escreva na língua o que a língua há-de cantar Que ela escreva no interior da boca A transparência de quem dá a mão à mão de quem conduz Escreva como um archote no caminho de quem não encontra Escreva como quem arruma a luz no quarto antes de sair Com a caligrafia demorada de uma planta em crescimento Que ela escreva no caule de cada rebento O grito novo

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princípio não se entende o amor, o sequioso vazio E vamos anunciando de lugar em lugar o arbusto sítio Na al ma onde a terra é mais seca. É um

Ao

ver o solestício avançar pelo obscurecer ao redor Da noite - o lugar sensitivo é um vestido que se descarna E rudo é padecer. A princípio não se sente De sacrifício

·

A união das coisas desiguais - tudo é o laço ditoso Com mil imperfeições. A princípio não se entende a largueza Do lugar. O amor estreita o laço e unir É sufocar o sequioso peito que amamenta

A nudez .

O princípio da noite é pôr o pé no chão. É pegar No pão com bolor e comer O bolor - sequioso

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D O L IVRO P RI M E I RO DA N O IT E E S C U RA, D E SÃO J OÃO DA CRUZ 2

A princípio a mão que se leva à boca é o espelho E vêem-se na mão as linhas do rosto a padecer A transmutação das vestes. Tudo é miséria Nos trajes festivos. Há, portanto, certa alegria Na vileza deles. Na leveza. Nas redondezas. Todo o trabalho d As primeiras luzes. E elas podem-se colher, podem irradiar A palavra Como no princípio. Quando era de Deus ela cegava Quando era o espelho e ninguém se espelhava nela. Ou via. Em Descalço se pudesse arder sem se consumir o lugar Do arbusto anoitecido

D O LIVRO P RI M E I RO DA N O I T E E S C U RA , D E S Ã O J OÃO DA CRUZ 3

A princípio as trevas alumbram. Porque no escuro

O coração pára de correr. Secando a água Secam os caminhos, perdem-se os companheiros De viagem, perdem-se as casas dos vizinhos. A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar Em silêncio. É a humildade humedecendo 1 O corpo descalço e consumido A noite activa a noite - é um motor imenso

De lume. O arbusto a princípio é a própria inclinação Da cabeça Queimada nos cabelos, consumida em pensamentos A princípio não se entende a sede, a inclinação, o vazio

E vamos cavando de lugar em lugar a expansão Do arbusto que transborda. De toda a terra A alma é a mais árida - um imenso motor em chama Nos mecanismos da viagem ardente A princípio não se sente

O amor - a humidade amanhecendo O coração ressequido

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D O L I VRO S E G U N D O DA N O I T E E S C U RA D E SÃO J OÃO DA C RU Z 1

'

É preciso portanto concluir a noite para passar A outra noite. Quando se deixa de mugir O úbere o leite seca o úbere, seca a mão A mão ofusca-se. É preciso exercitar Os dedos, espremê-los nas obras das dificuldades pacientes É preciso desfalecer com a mão purificada Irrigada como o coração cheio de sangue É preciso purificar pela sede o sangue enquanto Deus Exercita a noite. Enquanto é a morada Que cresce destruindo a casa

� casa está mortificada - a violência que abriga E uma mansidão vertiginosa. A sabedoria É um trabalho cheio de tempestades. Em jejum Nem só a casa desmaia. Deus Sobe os degraus com a noite nos braços

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D O L I VRO S E G U N D O DA N O I T E E S C U RA , D E S Ã O J OÃO DA C R U Z 2

A alma que Deus leva adiante é uma pulsação frágil. Uma sombra cá fora incandescente do cárcere O discurso, mesmo o interior, é um mecanismo Engolido pelo amoroso gole. Faltam Os mensageiros duráveis - não é uma falha Da noite intensamente tecida. Na malha negra vê-se Como nos limites raia A perfeição - uma agulha Uma mancha fresca retesada entre a raiz absoluta e o mais alto Apagamento. A porta É um batente no princípio. Nem todos entram Da mesma forma. Sim Que sabemos das aparências? É necessário cobrir os olhos incuráveis - o manto A bre-se à lixívia - uma estrela imensa. A união É desposarmo-nos brancos Sem palavras

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D O L I VRO S EG U N D O D A N O I T E E S C U RA , D E SÃO J OÃO D A CRUZ 3

Das núpcias o abandono mana - o espírito Frutifica. O fruto é como o noivo a estender a mão A boca é um alimento - o silêncio Que se comunica. A comunicação do vazio nutre E une. No anel há mais do que um único Dedo partilhado Há o sangue silencioso onde se purifica o ouro O ouro desnuda-se, a memória é branca Como o corpo da amada - a amada passa No crisol o fuso da pobreza O amante tece da pobreza o vestido novo O ouro enriquece-se de trevas, a noite enriquece o centro Das pupilas. O acto Excede o acto - só há o quieto brilho Do olhar infuso. A violenta Escuridão de se abeirar da luz

D O L I V RO S E G U N D O DA N O ITE E S C U RA , D E SÃO J OÃO D A CRUZ 4

Até se pôr a boca no pó iluminado Até se tocar com os lábios as pedras Quadradas - as pedras cerradas com seus dentes É bom esperar em silêncio Deus vem com o cinzel Silencioso - a luz que muito obscurece Os objectos até que possam Reverberar O braço divino cinzela e não se vê O seu raio. Ele que os fez não se compõe dos átomos Nem todos os que se aproximaram viram Sem ceguez - nem eu sabia Que em sua mão se revesava o sol Deus vai removendo os solos A carne Vai escrevendo com o dedo Deus despovoa. O Apóstolo Disse: nada tendes e tudo possuís

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D O L IVRO S E G U N D O D A N O I T E E S C U RA , D E S Ã O J OÃO DA C R U Z 5

Entendo agora a nudez do pobre E posso tocar-lhe como quem toca a alma às escuras Mesmo sem a tremenda noite com que lhe toca a mão divina O terceiro modo da paixão são os extremos. Agora entendo Os dedos dos cegos Agora entendo o ovo e o mártir quando é cercado para morrer Entendo o ventre do bicho marinho, o fundo dos golfos E já sei como abrem os ressuscitados os olhos no sepulcro Sei o que é ser vomitado nas praias O que é voltar a terra firme - ao dia mais do que à luz

DO MAN U S C RI TO C D E SANTA TERESA DO MENINO JESUS 1

A lâmpada já estava apagada. Certifiquei-me. Não era um grão, uma vagem aberta nem a manhã. Esperei para testemunhar a felicidade na luz Da certeza - sim minha madre tinha vomitado A claridade do sangue - pensei É o céu Era a janela todavia, a enfermidade, a fenda Voluntária. Não era minha madre Toda a casa terrestre demolida.

Sei o que é o ouro no fogo e no inferno Sei o que é renascer pelas águas

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D O M A N U S C RITO C D E SANTA T ERESA DO MENINO JESUS 2

Imagino que nasci num país coberto por espesso nevoeiro E que nunca contemplei o risonho aspecto da natureza inundada É verdade que desde a minha infância oiço falar E sei que para lá dele, na minha pátria, há outro E que é por esse que aspiro cada dia. Não é uma história inventada por um habitante que não volta p [a l Por um homem triste que pára na velhice ou em frente do arado É uma realidade brilhante como um rei em combate Um herói a coroar-se das trevas que venceu

DO SACR I F f C I O DE I SAAC

Queimará o monte, o filho, a lenha A morte, as areias, a viagem O deserto, a túnica, as estrelas Nunca será bastante o incêndio

Se é preciso que eu coma sozinha o nevoeiro da provação Ainda que me doa a humidade do reino luminoso Comerei a obediência - há por certo Uma região mais íntima na circulação das minhas veias Uma outra terra que pensa a minha morada Um perfume, uma maravilha, um repouso Para a cabeça dos que lutam com bravura Eu, porém, não disperso a energia. Reúno-a Para o amor Viro costas ao duelo como a medalha no peito do esposo E respiro até à última gota do sangue. Minha madre Eu corro 228

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Dos líquidos

Quando eu era uma criança de muletas Escudei o alicerce de coisas paradas Observei as coisas que se moviam No olhar estático das coisas que meditam. Era Girúrgico Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio [coração. peregrino e outro e outro. Estavam parados um dei Escu Contemplavam os passos percorridos No perímetro da meditação. Anotei que os alicerces do movimento são líquidos Constantes. Primeiro líquido: a água, nas coisas altas as nuvens E penso também nos rios. Segundo líquido: a saliva Que curou os cegos. Terceiro líquido: o ar porque me lembro Do relâmpago, da velocidade das coisas que caem. O sétimo líquido: O sangue do cordeiro. Quando eu era uma criança parada Quando não andava numa cadeira de rodas a empurrar o corpo com [as mãos Escudei o movimento dos líquidos Segui o derrame da semente ao morrer Caminhasse eu porém e seguiria O fio de água no olhar de quem amei. 233

Quando vier o meio-dia e da noite só tiver uma certa semelhan O poder de incandescência do peixe quando vem à superfície Quando vier como um golfinho E estiver sobre as águas como um reflexo que não se afunda - Como a barca onde não há tempestades no homem que dorme Abrirei as mãos de um modo semelhante às recordações Quando as imagens como nuvens sem movimento Vierem içar sua raiz. Quando a luz vier rasgar a carne como âncora E as ideias me deixarem como miríades e miríades de cardumes Cantarei em silêncio sem dizer nenhuma Palavra amada ou conhecida E não experimentarei o eco onde alguns procuram Uma presença que os una. Quando vier a manhã na minha boca sem ferir ninguém E um estranho cantar ao meu lado - Alguém que nem saiba o meu nome Alguém que parta enquanto durmo Quando a onda se quebrar e o rasto mantiver a direcção E as miríades e miríades de imagens se extinguirem uma a uma.

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Quando nadei profundamente na morte Trouxe a mão ao cimo - era a superfície O arb usto húmido a respirar fora das águas A embarcação da infância A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente Trouxe a mão à tona da morte - o reflexo Do remo movido sobre a agulha da bússola O peixe que espera sobre todas as águas Quando aquática a flor no tronco escavava A minha última jangada nas correntes

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Quando a embarcação lançava o seu lugar Quando baixava a sua âncora, a raiz Da rosa nos ventos que a desfolham - corola marítima Pétala a pétala ela perdia o movimento velas Desciam - de noite o sopro Deve ser dado aos astros

As

Acendia-se a escura ondulação dos que regressam Ao sono. Mergulhavam Ao tocarem a noite é que se levantam As

Quando a tua casa se vai tornando a cesta de vime Pedes um rio, uma irmã junto da água Uma margem que venha pousar-te fora da corrente Quando a tua casa está de frente para a derrocada Como um ninho a fazer-se por um pássaro que não chega Quando a luz agasalhada da mulher que toma banho Toma o teu corpo nos braços Quando a tua casa é voltares a casa Ao regaço aquático da tua mãe Nadas nela quando dormes em palácios Quando adormeces j unto às sarças no meio dos rebanhos Mergulhas nela como num baptismo

estrelas Quando a tua casa se torna uma cabana E dentro dela só há a claridade Do teu corpo continuamente a ruir

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Do ines gotável

Abriu-se em ferida a cerca do teu sopro E deixas vindimar-me quem quer Que passe Até o muro é sombra que não floresce Enquanto me repetem a pergunta Tu me cultivaste Tu deixaste a geada sobrevir

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Amo-te no intenso tráfego Com toda a poluição no sangue. Exponho-te a vontade O lugar que só respira na tua boca Ó verbo que amo como a pronúncia Da mãe, do amigo, do poema Em pensamento. Com todas as ideias da minha cabeça ponho-me no silêncio Dos teus lábios. Molda-me a partir do céu da tua boca Porque pressinto que posso ouvir-te No firmamento.

Amo-te como um planeta em rotação difusa E quero parar como o servo colado ao chão. Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito Vasilha que ergues em tua mão de oleiro Cálice que não pudeste afastar de ti.

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Sem outra palavra para mantimento Sem outra força onde gerar a voz Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede Que cavaste no meu canto, amo-te Sou cítara para tocar as tuas mãos. Podes dizer-me de um fôlego Frase em silêncio Homem que visitas Ó seiva aspergindo as partículas do fogo O lume em toda a casa e na paisagem Fora da casa Pedra do edifício aonde encontro A porta para entrar Candelabro que me vens cegando. Sol Que quando és nocturno ando Com a noite em minhas mãos para ter luz.

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos E quero cair em desuso Fundir-me completamente. Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo Os focos celestes que a candeia humana não iguala Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer. Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te Voltado para mim Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

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Amo-te na carne que tomaste do chão que aplaino Com as mãos Com as palavras que escrevo e apago Na areia, no cérebro. Amo-te com o cérebro em ferida Pensando-te Remédio que derramas em mim a tua medicina, a mane No meu corpo. Até que repouse como enfermo No teu leito. Amo febrilmente amo o dia Em que disseres: Larga A tua enxerga! - E ande

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Amo 0 caminho que estendes por dentro das minhas divisõe s. Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo Se se reco rda dos movimentos migratórios E das

estações.

Mas não me importo de adoecer no teu colo De dormir ao relento entre as tuas mãos.

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Neste lugar transitório mantém-me mendigo Desviando-me de mim - não Da tua mão. Dá-me como. Conduz-me Para a esquerda e para a direita, roda-me sempre Para a saída Deixa-me ser a porta no eixo Posta para trás pela mão de quem entra Deixa-me ser o chão assiduamente Quero ganhar a forma Do degrau A forma da mão que se abre quando nada tem E quero a mão, no entanto. Interessam-me alguns instrument()f [ A língua para me calar As rótulas, os calcanhares, os rins

Observei-te sabendo já que eras um homem - a cabeça De pelicano dobrado O bico que te rasgava para fora Adoeci como lâmpada que se funde A coroa de espinhos sobre mim - a lembrança Dobrei-me nas tuas asas Nas chagas ainda quentes No voo como gota de sangue no peito Que vive. No rnração Que partes e distribuis com as mãos

O corpo inteiro, completo Para morrer

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Como um pássaro entre um bando De disparos Tu moves as agulhas, tu unes de novo As minhas asas à curva do céu

Todas as minhas fontes vêm de ti nascentes E amo-te com a constância do moribundo que respira Já sem saber de que lado o visita a morte As

Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois [dos temporais Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas Desconheço o colar onde unes tudo Procuro entender como é que moldas Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão Sei que és tu que me levantas Que remendas o meu corpo cada dia Em ti encontro a pulsação Que rebenta - uma artéria como nunca Tinha jorrado. Cratera onde durmo Recluso, árvore à chuva Em dificuldade extrema De respiração Ponho a cabeça entre os ramos, lanço os braços para [fora 25 0

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E desço à verdura das tuas mãos Como as manadas que buscam as minas Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam Faltam-me no chão duro das promessas Os joelhos Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesses como Queria amar-te tanto

Deixo crescer o cabelo sobre os pés divinos Deixo crescer as lágrimas. Vêde como planto A minha vida (Põe a cadeira pequena ao teu lado Não mereço sentar-me no teu colo) No chão onde escreve e apaga Deixa-me conhecer a caligrafia da palavra Onde farei a casa. Afasta-me O cabelo dos olhos com o dedo indicador

O que sei da unidade é a túnica Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida É o livro escrito por dentro e por fora Silêncio escrito por dentro Palavra escrita a toda a volta da história O que sei do céu É a mão com que sossegas os ventos Desço à escritura como os veados aos salmos

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Enquanto tenho o lume corro Enquanto sou a labareda e a força de queimar Ao meio-dia - diz-me ó que vais descendo - onde Te apascentas Para que também eu coma, para que eu também corra Enquanto as folhas estão orvalhadas Enquanto o sol marca na sombra da hora A transumância. Enquanto A corrida me abrasa

f,stoU a um palmo da parede. Pergunto - se queres saber o que oiço O que disseste a Elias: Elias O que fazes aqu i? alceio os meus olhos Co nco-ce o que nunca escrevo nos muros Jun co-me aos animais com sede Sim,

Escou a um palmo do teu palmo e depois Não escás nas águas nem na sede ou no teu nome Escou a um palmo do teu silêncio e alteio A boca mais alta do meu grito

O silêncio.

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Transforma o coração na coisa desamada No vaso a transbordar que quebras com a boca E asperge a tua pulsação no meu sangue

chagas são vivas como as guelras dos peixes Assim eu posso respirar-te ó árvore Pulmonar onde o aroma se difunde

As

Abre-se vivo o peito como as águas Meu caminho plano ó porta encostada À chaga que me cerca o coração

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1 Consomes-te, não podes apagar-te Com o bater da mão sobre o teu peito 2

Mineral desde o seu centro em labaredas Animal tão afastado das nascentes

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Escolhi a morte para ficar contigo - Planta filial e nómada Feixe de lenha que Isaac carrega na pergunta Viagem que inaugura A árvore nova, videira Que se estende sobre todos os ramos Escolhi-te também para depois

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Procuro o trânsito de um homem que repousa em ti Como se desvia um homem do seu coração para seguir viagem Como deixa ficar tudo e acrescenta à sua herança Procuro conhecer os símbolos, os marcos miliares Diurnos, como se lêem Sinais de fumo e o ângulo dos pombos - e todas as coisas Que nos chegam da distância

Procuro o lento cimo da transformação Um som intenso. O vento na árvore fechada A árvore parada que não vem ao meu encontro. Chamo-a com assobios, convoco os pássaros E amo a lenta floração dos bandos. Procuro o cimo de um voo, um planalto Muito extenso. E amo tanto A árvore que abre a flor em silêncio.

Procuro saber como se fecham os pés dentro dos teus Percursos Como se põe descalço um homem que necessita De atravessar-se E desejo outra vez desdobrada a tua palavra cheia De estrelas Para que as recorte, para que as ponha no silêncio Vivas Na minha boca e nas minhas mãos Em chamas

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Pastagem onde o pastor descansa Onde a flor da erva muda o curso dos rebanhos Ombro do pastor onde derramo as lágrimas Onde desconjunto a minha carne sobre a carne. Quero ser água no curso do seu sangue - caudal que corre No meu corpo como um eixo Por mim todo em torrente e deslaça

nossas cabeças são como as ameias que vigiam S ão co m o as pupilas nas torres - vem cercá-las Com as fronteiras dos territórios não avistados

As

nós mais alto do que as montanhas quando lhes tocam os [astros E no mais fundo de nós Como um pai que gerou antepassados Escás sobre

A pulsação verdejante Sobre as nossas decisões desceste Igual à mão no ombro quando se aconselha um filho Coroa luzindo como um anjo ao relento Desataste-nos do pó desfivelando as sandálias Tu caminhas sobre os nossos pensamentos

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Vimos a pedra vazia no interior da terra . A manhã. Nós não tocámos a luz Inesperada. Pensámos Que já o sono sendo eterno te afastara E que farol que foste Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava

Ele é o cavador e o trabalho e a vinha É ele que tem os aguaceiros de Outono -

Nunca mais, pensámos, dormirias na proa E quase desaprendêramos a guiar o barco Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa Seria ver multiplicar-se A nossa fome como o peixe e como o pão

Ele nem sequer se assemelha à luz nunca tocada E estende sobre nós a cura Os ramos da oliveira como o braço de quem afaga Ele faz-nos provar o paladar inesgotável da escrita Ele parte a broa e dá-nos ambas as mãos

Chegámos a terra porém e esperavas-nos Os pés furados como conchas sobre a areia E sentámo-nos em redor para comer

É ele que conserva o mecanismo dos pássaros É ele que move os moleiros quando param os moinhos É ele que puxa a corda dos bois e a linha Do céu que assinala os limites dos montes

Ele tem a giesta onde faz nascer a neblina Ele abriga-nos, é ele que tem as nuvens Ele tem o desenho das copas que dão fruto

Ele é que eleva o corpo dos santos, é ele Que amestra o pólen para o mel, ele decide A medida da flor na farinha Ele deixa-nos tocar a orla dos seus mantos

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Do sangue

Também poderia ter escrito de ter provado no deserto O silêncio, o dilúvio A pequena península de água Que o silêncio não enxuga

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Começa no verbo o que escrevo. A palavra Que deixo na pequena pedra branca Do fermento. O pão que cresce ignorado Começo devagar a meda rítmica No eixo que corta dos dois lados E fere - os pulsos primeiro e a língua Porque trabalho com os dedos e as veias Abertas a lama onde sou terra e água Começa nele a primeira fonte. Assim A pedra cresce Com seu sangue derramado. Lâmina que deixa A sede em ambos os lábios. Começa Assim leveda A meda de água. E o que escrevo é a fonte Transformada

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Trabalho a partir da existência da luz E de certos minerais Mesmo se não mereço a matéria luminosa Da terra. soprada donde o homem vem. A ânfora, o vidro. E recolho O fogo Quando como no princípio a manhã se abeira Trabalho a partir da ceifa matinal. Experimento A paveia antiga do homem vergado, o rumor enxugado do líquido Na névoa, no orvalho, na carne Da palavra calculando o voo Pelo reflexo sobre as águas: no início Trabalho na água que a voz movimentou Gerando os sismos: e sou O hú mus, o barro nas margens O homem que nunca compreendeu

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Ainda não sei ouvir a lâmina Os gumes inumeráveis com que fere, cura, limpa, penetra Os ouvidos como a espada do anjo o coração primogénito

Vej o o pedreiro à chuva a abrir aquedutos para o coração Vejo o pastor a alinhar orifícios na cana do j unco Vejo os gestos do mudo dispondo o silêncio

A lâmina abre passagem e águas no deserto daqueles que escu Ainda não sei ouvir os ventos múltiplos que a sussurram Nos quatro cantos cardeais das direcções que mudam

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Voz pisada como o vinho De onde bebo A perda dos sentidos Silêncio tão pisado que não verte O verbo Silêncio encruzilhado Na voz do homem calado no caminho

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O sangue não carboniza os sons para que os aguarde

brasas na garganta A voz não se funde mesmo sendo O mineral que fere As

Acrescento terra sucessiva sobre os lábios Mas não encontro o sopro por onde de novo O barro possa aspirar-me ao segredo Do húmus. E necessito tanto Do subsolo. Como se fora O grão ou os sismos

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-

Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e no' Uma ideia que passa cheia de janelas intermitentes como pi [transfor Borboletas rápidas - há esta imagem respirando

Escrevo do lado mais invisível das imagens Na parede de dentro da escrita e penso Erguer à altura da visão o candeeiro Branco da palavra com as mãos

Pensativamente entro na viagem visível de uma intuição premedi Que diferença faz à posição do meu corpo a rotação da terra? Vi Num único lugar

Co mo a paveia atrás do segador Vej o os pés descalços dos que correm E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

·

k vezes ando descalço por uma linha encerrada No corpo Encostado ao ferro arrefecido pelas estações que passam. Pouca Lhe é dada para poder germinar. Dentro da terra

Correi. Como o segador seguindo o segador Numa ceifa terrestre, tombando. Digo: Imaginai

Ou de uma veia cortada. Faço às vezes o trajecto inverso do sangue Medito encostado às pulsações mais amadas. Pouca terra me foi dad( Para calar sempre. E amo Anónimo a luz transitória. O pulso interno de uma luz interrniten

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Estás na terra plana e o teu cabelo não ondula Amadureço onde há sol - o teu cabelo nas mãos Queimo a lenha dos montes que carregámos juntos Paveia a paveia apascento-me Da terra Palavra a palavra

Ponho sete vezes a terra sobre esta terra, sobre esta raiz afogada Para afundar-me no crescimento vegetal da noite pelos anos Espalhando a madrugada. Vencesse o negrume Como este caule. Musgo sem aurora, esta pequena nervura Que procuro na sobreposição dos solos. Também a fluência da água A sombra fresca da vinha em que me deito. Eu que também me [embriago No sangue Planta tão aconchegada aos lábios - e desde sempre a derramar-se O verbo. Desejo o útero de tudo, tento Gerar Muito mais do que a oliveira fecunda. E nunca Por mim mesmo fecho a casa É aos alicerces que comparo o anjo que me guarda. É em casa Que recebo tudo o que me deixa ao relento O verbo

de carne - seu respirar perpétuo tão profundo de longe Sem nunca me morder, nem me agarrar com os dentes Quero aproximar-me, aproximar A boca de uma escrita. E não sei onde

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A nuvem é noite sobre o viajante às escuras A candeia é branca no tacto do cego que a segura O trovão ilumina A vigília. O cão do cego clareia Como o relâmpago Toco a queda onde o cego aperta ao peito tudo o que equilibra Toco-lhe a mão como quem se queima nas esferas - Mesmo de olhos fechados a janela existe nos dias de chuva; Rogo que me ensine a esconder as pupilas A tirá-las da rosa enevoada quando ainda não brotou O sono - a trazer a oliveira à aurora A nudez

A lâmpada está no espelho e não é um rosto

Seria um insecto mas o voo queima. Os filamentos mínimos das suas antenas N unca poderiam ser duas asas - ou mais - para as imagens.

O sono está desperto no espelho que se apaga E a lâmpada se fosse lâmpada murcharia como a flor. O cego - mostro-o - não é um rosto. Ele é a mão No espelho. Ele sente no que dorme a vigília E encontra na mão reflectida um outro cacto A linha imaginada, a linha decisiva.

Ele ergue a noite branca. A nuvem Desliza porque o cego a conduz

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É sob a silenciosa sombra dos sobreiros Que colho a erva amarga, a memória Do exílio

Tapas as palavras sem socorro no escuro Cegas o grito que foge pela vida que o atinge O s m úsculos rítmicos exercitando contra si próprio a queda

Quebro contra a testa o pequeno caule Como quem em si mesmo assinala o lugar do golpe E nele sopro o assobio do pássaro no último canto (Sei bem quando é que no homem as águas Se reúnem)

As

Conheço o sossego apontado pelo vértice dos redemoinhos A hora exacta em que as cegonhas abandonam as torres Sei como recolhem as asas quando cessam o voo Com o sabor amargo no sono sopro a sombra do trevo O redemoinho humano - como na rosa dos ventos As quatro folhas cardeais. Reúno os versos, os vértices Das torres, do assobio, das asas, do golpe Sopro o sangue angular dos movimentos

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ondas que o lançam rebentam-te na língua Aco rdas com o sal na boca, com os gritos na cabeça Ampli ficando os búzios Com a pólvora sonora nas mãos - cascos explosivos Que profundidade terias se afogado voltasses À superfície? Fechas os olhos que se fecham dentro dos teus olhos O corpo estilhaçado como a planta tenra Debaixo do granizo Não adormeces com o ruído das conchas Desenrolando-se. As pálpebras. O poema Indo e regressando nas pupilas

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1 A flor está poisada no lugar de florir Mesmo quando a abelha no-la traz à boca A flor no favo poisa apenas o silêncio 2

A semente está poisada no lugar de padecer 3 A abelha também morre de deixar De corola em corola a raiz

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único Recado que repito para que me não esqueça. Pedra Que trago para sentar-me no banquete A única glória no mundo - ouvir-te. Ver Quando plantas a vinha, como abres A fonte, o curso caudaloso Da vergôntea - a sombra com que jorras do rochedo Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa Chaga do pastor Que abriu o redil no próprio corpo e sai Ao encontro da ovelha separada. Cerco Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes A flor - várias árvores cortadas Continuam a altear os pássaros. Os caminhos Seguem a linha do canivete nos troncos As mãos

acima da cabeça adornam As águas nocturnas - pequenos Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

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Caem - quero fechar-me e cair. O silêncio Alveolar expira - e eu Estendo-as sobre a mesa da aliança

Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo Do sangue no amor, o movimento para fora O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos Sentidos da palavra que sopra a sua voz Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto E encontro O silêncio inigualável de quem escuta Eis porque as minhas entranhas vibram de modo igual Ao da cítara Eu peneiro as entranhas e encontro a dor De quem toca a cítara. A frágil raiz De quem criva horas e horas a vida e encontra A corda mais azul, a veia inesgotável De quem ama Encontro o silêncio nas entranhas de quem canta Eis porque o amor vibra no espírito de quem criva O músico incompleto peneira a ideia das formas Eu sopro a água viva. Crivo O sofrimento demorado do canto Encontro o mistério Da cítara 286

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Das inúmeras águas

Com a vara calculei a distância entre os dias A vara, pensei, vai florir Posso incliná-la para uma criança a colher

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A criança fecha os olhos no muro Conta o tempo que os amigos demoram A transformar-se Fecha os olhos no interior dos números Olha para dentro e em redor e encontra-se A si mesma A criança pergunta se há-de ir ter consigo Ela quer encontrar os amigos, ela quer Que lhe respondam. Ela calcula a voz alta A altura do muro, a progressão do silêncio

Um pássaro em queda mesmo Quando é proporcional à pedra Que tomba do muro nunca Alcança a mesma coloração do musgo - Já nem sequer falo do tempo Em que mudam a pena Para fazeres ideia pensa Como perde um homem a idade De encontrar os ninhos Retém na memória: o homem cai. Desloca-se O pássaro para que as estações não mudem É dessa rotação que o muro Pode cercar-se sem ninguém o construir. O cerco Do voo é a pedra da idade Para fazeres uma ideia pensa Em engoli-la

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Apareço na fenda do muro Pareço os rios nos mapas Pareço os rios no chão - um risco Na orientação incerta - o rasto De um homem que procura uma ideia Apareço para lançar uma ideia que alicerce O coração - um ritmo mais tarde. Eu que nunca Aprenderei por onde É que o muro - o mundo - começa a dividir

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Sei o mês exacto por medo de perder-te Ainda. Como as viúvas indo para a missa Cobrindo-me de luto, curva Tão dolorosa, pondão desasteado, mendigo A quem tivéssemos dado pão. A porção Exacta, sei-a - eu dividi Para dar-ta inteira - a minha vida

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Como nos degraus a sombra nos olhos de Ezequias - Nunca curado da distância Nunca curado da subida Foste a sombra À sombra Minguando

Dos campos que cultivei duas sementes restaram O centro Da pedra e as mãos Dentro da segunda cultivei a hora de afastar-me (Não havia ninguém a quem dizer Já vou) Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada A companhia dos pássaros) Abri os braços como as vides nos bardos Hora após hora (e depois delas) te esperei

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Chamavas os bois com a mão Mais mansa. A mão Com que adubavas a terra Com que puxavas o banco Para a frente da lareira Com que me mediste Palmo a palmo na infância

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Costumo poisar os dedos, tactear Até ser o homem que volta para casa Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta Costumo estendê-las continuamente A rua também passa à minha frente Cada dia e não sabe quando vens

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Construo o meu casulo até as cisternas transbordarem (Nem sempre o coração é um caudal Oculto) . Construo, nem sempre construo (Nem sempre o coração irriga a morte) Desenhando no chão a altura das casas Construo o respirar de uma geração perpétua O certo trabalho de podador na árvore O ciclone plantado e benigno. Construo e planto Com o graveto que alisa transbordando (Nem sempre o sangue represa o coração)

Ponho-me na toca dos bichos, nos teus olhos fechados Na transumância dos animais que buscam os pastos mesmo quando [morrem Como qualquer estação que há-de vir Como astro que repousa de dia para dia semelhante à estéril que [amamenta a sua dor Ponho-me na semente como abelha que procura o pólen Ponho-me na esfera celeste de uma criança que se senta no chão Pedra que se abre no calor fechado das mãos

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Calculo uma doença difícil e definitiva Um sono que não se apaga no sono, ou melhor, Um verso parado no meio de um poema. Imagino o poeta sem dormir e parado como um verso No meio do poema. Imagino o poema sem dormir. Tento explicá-lo, compará-lo a Noé na arca Saudoso de colocar de novo os pés descalços sobre a terra. Penso que os animais saem de dentro das palavras E vêm ter comigo Que querem ter um nome como no princípio Que querem beber. Tu não sabes como te chamas, não sabes o nome das plantas Esqueceste o nome dos teus irmãos E nem mesmo a tua mãe te traz uma palavra à boca. Faço a inclinação de quem encosta o rosto ao focinho dos bichos Com saudades do calor de uma voz que chama. Nem mesmo eu sei dizer que terra firme lhes peço Que alicerces fundos cavam quando pousam As patas muito mansas sobre mim.

Queria ter a posição dos claustros A posição do monge antigo que os varre A posição do moribundo que pergunta as horas A posição das árvores quando as crianças sobem A posição dos ramos quando os ninhos nascem A posição de alguém que já não mora. Queria Como se tivesse A posição da casa e alguém me visitasse

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Atiro uma pedra à água Atiro a minha casa à terra Deixo a pedra no degrau enxuto Para vir pôr o pé no chão Canso-me como o degrau onde o homem hesita

pedra na terra. Oiço a pedra badalar nos sinos. Estou muito mais distante do que aquilo que a pedra atirada pode [alcançar. Estendes-ma: um punho de trevas. A hora. A pedra que bate nos sinos. A

Na minha casa sou um utensílio que se vai quebrar Na minha casa sou alguém que vai morrer Cansa-me muito estar como a pedra entre as mãos Limpo os vidros anos e anos A pedra vem à superfície e é Uma casa à janela sem ninguém

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Sento-me entre os que cantam em círculos E decoro a melodia improvisada E embora cante ao longo do caminho Fico sozinho ao chegar a casa Mesmo quando estou sentado em casa Canto mas não sei onde vivo Sei as margens onde as crianças cortam os juncos Sei que a música pode salvar um homem que se afoga sem nada Taparei no entanto os ouvidos para descer humanamente ao fundo Mesmo que aí a voz me seja o oxigénio necessário Mergulharei voluntariamente na quietude ou na infância De estar em silêncio Quero aprender nas águas uma energia para escutar Um instrumento sonoro, fecundo. A nervura Da onda dobrando-se numa e noutra e noutra Vinda A concha acústica do búzio que ritma a embarcação Sanguínea. A navegação de quem avista Uma praça fora do mundo

Sem o agasalho das asas Agrilhoado no lado de fora do fogo, ao frio, Desatado pela diária lâmina Na condição da luz encarcerada no astro Para ser nas viagens sinal. Um aviso, um dedo no céu Acordado pela sempre quotidiana órbita do lume Acocorado sempre na cinza para foco Sem qualquer intermitência Gume Invejando o relâmpago Rápido De longe descobre a semelhança Do amor Com o pássaro Que não faz ninho Que não segue a presa Que não deixa o corpo por um pouco Desejar Qualquer coisa diferente de morrer

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E multipliquem os pássaros que cantam E completo o Outono venha Folhas e folhas aspergindo a última respiração coisas sobre a minha Respiração E todos os meus anos j u ntos se festejem de uma só vez e eu morra Agora E sobre este dia todos os dias Desçam Como inúmeras águas sobre uma gota de sangue

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Dou-te a minha ausência e a noite da escada Que desceres para desmanchares os degraus Dou-te o degrau que ninguém quer à minha beira A minha mão para que possas decidir A direcção em que devo morrer

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A noite veloz bate a lâmpada azul contra as casas A luz que estilhaça A sirene. A noite bate na luz da lâmpada Quebrando-a Soubesse eu a canção que cantam os mortos para não adormecer Soubesse eu soldar o silêncio Existe sempre alguém que passa e que bate na noite A zumbidora lâmpada azul para não adormecer Na morte Soubesse eu estilhaçar a noite. Soubesse eu morrer Iluminando

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Do que sangro

que desconheço: a casa. O modo como a encontrei de noite As formas das coisas que vi quando observei a transparência O vidro no fogo sofrendo a forma que o vai quebrar (Vi que nada do que existe é inteiro) o

Digo-o porque mo revelaram: uma é a claridade Do sol. Outra a claridade da lua e outra a claridade Das estrelas. Há ainda diferença de estrela para estrela Na claridade. (Vi Que tudo era igual à ressurreição dos mortos) que procurei: a claridade da morte O u precisando - se se pode regressar pelo mesmo Caminho que se toma para casa O

que medito (na cela nocturna) : diferenças da luz da candeia no homem Quando desce O

As

O que mais recordo: os degraus

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Entro. Conheço a minha casa. É mansa Sinto-lhe a respiração. Dorme sobre os meus pés À chuva Estende o patamar aos primeiros rios

Corro tal como o s bichos quando as ervas nascem No coração tenro Avanço na ondulação difícil Enrolo os ventos para que só eu amaine

Mora nas margens para ser a mais matinal Das nascentes - a escuta

Conheço a minha morte e enrolo as minhas mãos A tentação de as pôr sobre os olhos

Junto na concha das mãos as palavras Iniciais. Posso dar de beber Aos que caem Aos que encostam o ouvido à orla Marítima. À bainha da mãe

Quero ver-te mesmo quando sangro

Posso juntar as margens. Ou soltar a água E correr

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Virias - calculo, e embalo a casa O baloiçar que aprendeu nos ventos Estendendo a linha vagarosa da viagem pelos anos Puxando o j umentinho, o meu sangue sobre as fendas

A casa abre fendas dos pés à cabeça E ergo-a como quem necessita de estancar o sangue Não consigo libertá-la da dinamite que trouxe das pedreiras - Os veios caudalosos das pedras mais urgentes A circulação em todos os compartimentos O miolo do lume é de líquido quente como o sangue Se estivesse bom tempo - prometi - para a travessia Passaríamos devagar a linha Do horizonte Carrego a casa como um fardo Carrego-a como promessa, e o rasto Carrego a explosão da pedreira nos montes O que sangro Para o tempo da colheita queria um j umentinho Costurar a casa tábua a tábua, encerar o soalho Estendê-lo com passadeiras por dentro e por fora De mim. Calcetar-me e aplanar-me e pensar Vem

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E a contínua rebentação Ajeitai-lhe a rodilha Observai pelas guelras se são frescos os pregões Não percais o troco como os ecos na distância

Quem me dera adormecer em frente do teu sono quem me dera Bater à porta como se estivesses sempre do lado de dentro Quem me dera ter guardado a chave sob o terceiro vaso No terceiro pátio - os teus papéis com recados A contar no sentido de quem entra 1 Quem chegar primeiro sobe As persianas. Rega as plantas. Abre De par em par as janelas. Eu sou A que vai chegar acartando Os feixes de lenha na cabeça 2 Deixei ficar comida para aqueceres Com a boca, com a fome. Pede licença se saíres da mesa. Já te ensinei Que múltiplos são os anjos que nos guardam Deves sempre partilhar o teu pão

4 Chama os teus irmãos para a missa Das onze. Este domingo são eles a tocar Chama-os com as trombetas do Juízo Com as palmas com que enxoto as galinhas Com a voz do que clama no deserto: (Prepara-lhes o leite) - Preparai os caminhos do Senhor

5 Lembra à tua irmã que os medicamentos do pai Estão na gaveta do meio Ele está todo o dia no meu pensamento É aí que vireis ao meio-dia chamá-lo Para comer 6 Quando vier a vossa avó buscar o crivo Não deixeis que o seu puxo se desfaça Com os ventos

3 Se vier a peixeira comprai verdinhos Comprai-lhe a verdura dos anos O modo como equilibra a canastra 318

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-

Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de [imaginar E há imagens na cerra Que n unca lhe lembram o céu A mulher muitas vezes avança A mulher muitas vezes caminha pela borda Do vestido. Pudesse tocar A fímbria ou a franja de roda a casa Ela a sararia. Ela sairia Com o cabelo solco Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha A cerzir o brilho. A mulher remenda A lâmpada apagada. Por dentro O coração ponteia alguma luz A vida roda, o vestido rompe-se A mulher é um barco quando se afunda A hélice gira - gera como planta Em redor da luz. A mulher Anda em redor como corola Sem pólen A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados 320

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Há uma mulher a morrer sentada Uma planta depois de muito tempo Dorme sossegadamente Como cisne que se prepara Para cantar Ela está sentada à janela. Sei que nunca Mais se levantará para abri-la Porque está sentada do lado de fora E nenhum de nós pode trazê-la para dentro Ela é tão bonita ao relento Inesgotável É tão leve como um cisne em pensamento E está sobre as águas É um nenúfar, é um fluir já anterior Ao tempo Sei que não posso chamá-la das margens

A sombra da

figueira não me lembra a sombra. vezes sou o ramo que se quebra s Muita Sem tempestades. que tenho na memória é semelhante à tristeza no sangue E o sangue não me lembra o figo quando escorre O mel. A mulher estéril vê o homem deitar-se com a escrava A so mbra

A figueira

lança a sua sombra sobre a parede da casa

Bran ca

fecha os olhos para ouvir no escuro das folhas A mulher quase nunca se assemelha ao céu Sem nuvens A mulher

O sangue

não ocupa mais o coração do que um filho que nasce A mulher não queria ser um tronco cheio de ramos A mulher

imagina uma colmeia cheia de favos Debruça-se à janela como a inclinação dos telhados

Como se os ninhos (como se os filhos ao pescoço) a vergassem

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Os milímetros leves De um corpo que não comece no chão D eixai-me começar a claridade D e quem vive para despenhar-se no mundo D ai- me a chama, o inextinguível, dai-me Para que me aqueça a boca - o pão Dai-me da água ou da resina de um ramo Ou o baloiço apenas Da sombra, a verdura que o move O aroma que sobe o equilíbrio das folhas Dai-me o oxigénio para aves que passam O chão de combustíveis adubado pelas águas Um pássaro de líquido, de vento, de coisas viajadas O movimento do mundo O mundo desloca-me em segredo sem que os homens mudem Dai-me o pó que tenho como herança A escarpa onde seca a rocha A erva, muito antes Da corola que se cega em suas pétalas

Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias Ó mãe que me cortas o cabelo - o meu cabelo Adorna-te muito mais do que os anéis Dá-me um pouco do teu corpo como herança Uma porção do teu corpo glorioso - não o que já tenho O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus Dá-me o pão do céu porque morro Famin to, morro à míngua do alto Tenho saudades dos caminhos quando me deixas Em casa. Padeço tanto Penso tanto Canto tão alto quando calculo os corpos celestes Ó infinita ó infinita mãe

Dai-me a secreta erupção dos mortos, a cratera Da estrela matutina Dai-me a altura que ilumina A dança das folhas no redemoinho, a dança De um pé que não comece na terra 324

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-

Dizei-me em que caminho o nómada se me iguala Dizei-me por onde é que o peregrino passa E por que passa e com que túnic a Com que veste em baloiç o ele romp e o rasto Cavo profundamente até ser poço e peço A rota que avance pelo exacto centro Da solidão Sozinho no terreno enxuto pelas águas Terra quente onde as chuvas molham menos Do que a sombra, cavo. Dizei-me Em que arbustos bebem as areias Fazei-mas chegar à boca - as pedras Onde os cactos nascem Mostrai-me qual a mão que mata a sede Ou com que punho eu a ergo do chão

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Tenho os olhos fechados para que não os enxugue ninguém Há na ambulância do cérebro fechado um moribundo Que espera no trânsito uma buzina para morrer Poiso o auscultador e imagino o armistício Da mão trazendo ao ouvido o silêncio - no silêncio Não sou acompanhado sequer pelos meus passos Poiso a cabeça entre as mãos como a ideia que perdeu sentido Debruço a cabeça, maré definitiva - queria ser um búzio A ressoar o céu - sou uma boca Em gemidos. Tenho a cabeça fechada À!> entranhas comovidas A boca fechada para que ninguém a divulgue O ar de um pulmão - respiro - prestes a romper-se Que assobio, que sirene lança? A respiração Não esbraceja - é aflito Que o trânsito se estrangula. Fecho A circulação ao cérebro. O pensamento É o próprio transeunte. Ele está preso na palavra Ele fecha as montras da rua calmamente

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Ninguém mo ensinou mas descobri por mim Uniste aos nossos pulsos o milagre das mãos A vara que me auxilia é de longe que a arranca Aquele que faz a monda. É já longe que se abre No interior da morte Não adianta escolher um terreno onde estacá-la De pedra em pedra o rio não salta para fora Da corrente. De silêncio em silêncio não se guarda No peito como pulsação o segredo Não nascem como o lírio as pequenas constelações. Nem achá-las · As quatro folhas do trevo

Amarro dois degraus para não subir Sozinho. Monto no meu cavalo - o meu cavalo Não vai para minha casa Medito sobre o rasto que não cabe no meu destino Na nossa escada era difícil transportar os familiares defuntos E os familiares enfermos - vê meu pai como me lembro Como aprendi a amarrar as vergônteas das vides A minha viagem é mais funda do que os rios É mais funda a tua mão - vê como me lembro - ela sabe Onde é que o meu corpo não suporta as correntes Amarro dois degraus para não subir

Ninguém planta a vinha como quem descobre uma fonte Mais do que o vinho ninguém aguarda a sede nova Ninguém se enxerta por si mesmo ano após ano Ninguém mo ensinou fui eu que descobri

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A árvore, uma nora de sombra

1

Sou a casa ao lado de outra casa e volto-me Para a rua As crianças encostam a boca ao vidro da montra que vende o pão

Já me ensinaram que o sol Não morre. Eu acredito Na noite (o meu coração morre às escuras)

Invejo cada vez mais de repente os que dormem No passeio - os anjos que os guardam Muitas vezes nem vão dormir a casa

2

Têm a mesma luz dos candeeiros que a manhã apaga - os anjos Já nem sei Se invejo mais as ruas ou o corpo com asas

É verdade que acredito no homem Que não fala (no homem que comunica Com as mãos) . Acredito Na dor reveladora das coisas decepadas 3

Sou a porta e bato de casa em casa Sou quem vem abrir - e não há ninguém A árvore, uma nora de sombra

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É verdade que estou muito triste Na terra (já me indicaram a estrada Com luz pública) . Estou sentado nos degraus Como alguém que parou de subir

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As águas mudam por dentro de outras águas Por muito que podem as plantas Nunca mais encontrarão os rios antigos Ninguém sabe reabrir as veias maternais Fecham-se as nascentes. Muitos foram Os seus cursos. Os regaços das mães Recolhem a lenha. Houve um tempo Em que a água foi a rodilha a equilibrar-nos nelas Quando a rodilha enegrece Quando enegrecem os vasos da água e do fogo O primeiro lume é que começa a secar A raiz do mundo, a labareda em que se levanta A nuvem Pouco a pouco é que a nuvem vai Deitando fora o céu Ninguém sabe sair das coisas terrestres que são tristes Queimar a lenha Mesmo quando o vento vem enxugar as lágrimas Há chuvas - coisas tristes antes e depois 332

As areias, as sementes delas Junto a palha que se leva ao focinho De um gado sem água. Isto escrevo Para dizer que muitas imagens morrem No meu sangue Cozemo-las primeiro para curarmos o corpo de meu pai Depois o deserto avançou-me nas palavras. Encontrei As minhas pulsações nos pulsos delas Isto escrevo para dizer que o deserto Cresce depois Nos que se lembram de ter bebido amiúde O deserto volta-se Como a mulher que dança A curva é igual à imagem nua A curva é comparável à mão que perde a luz A mão perde o poder de chegar à boca as areias quentes O poder de pousar na ondulação uma simples folha de orvalho Ou outras fontes

333

Mesmo os que sabem o que é o som da água sobre o toldo A madrugada, a amêndoa A névoa húmida, o barro do poço No pensamento Perdem o frágil o poder da vegetação A mão que parte do dilúvio entra por mim como um focinho na água Isto escrevo como se fosse capaz de gerar uma palavra inundada Uma gota no deserto Como se a sede me ensinasse a caminhar sobre a palavra

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Do ciclo das intempéries

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página E aproveito o facto de teres chegado agora Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia. A magnó lia cresce na terra que pisas - podes pensar Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita, Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor, Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre Apesar de nós. Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo, Mesmo que a recuses Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame, A colherei. A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

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2

3

Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia Do poema de Luiza Neto Jorge que nunca veio A minha casa - ela própria dava flor Ela riscava nas folhas Ela era grande mesmo quando a magnólia não crescia

Nem ela sabe por onde te conduzo agora. A chuva cai sobre a copa de ambas, quero dizer, Sob re a chaminé da casa e sobre a planta Sob re a magnólia pronunciada e a magnólia Que cresce como a videira testamentária - mãe Bíblica no eixo da casa. Se quiseres posicionar-te Em relação à magnólia materna e à árvore que se abre nos versos Ou entre ambas as faces da página Perscruta no que te digo o aroma premeditado Procura-o esmagando uma a uma as pequenas sílabas - foi [esmagando-me, acredita, Que aprendi o que sei hoje: há uma diferença Entre a magnólia que nos cresce fora E aquela que regamos com o sangue.

Esta magnólia não é como a dela uma magnólia pronunciada É uma magnólia de verdade a todo o redor - maior E mais bonita do que a palavra

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339

4

5

Se te puseres à escura a magnólia pode ser uma árvore de fruto A escuta enche-nos de sumo como um poço no meio dos pátios A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão A outra mão. Ela não tem medo De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo. Ela levanta-me da terra Como os tufões e os bandos dos pássaros.

Começo, pois, no alto a saciar-te. Explico-te o ciclo Das intempéries e das migrações. Se puderes ficar em silêncio Não te igualarás à magnólia, mas repousarás Como o musgo que lhe cresce no tronco. És tu que cresces, afinal. És tu que sobes - Mesmo se já abandonaste a minha infância Aos ramos que te ofereço. Dou-te também Poder para a arrancares deste poema Ou até de roda a minha terra interior E de a transplantares noutros lugares - nos versos seguintes. Se a guardares como um tesouro verás como brilha Como acende a pulsação dos pássaros - o seu canto, Da ida e da vinda, aos teus ouvidos.

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34 1

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7

O tesouro é então a magnólia segredada entre nós dois É o canto que circula entre os lábios, a seiva Entre o nosso cérebro e o seu próprio coração. O coração do poema é a magnólia ao vento. Abro Os braços, as veias, e digo Tu que te abrigas fora da casa. E a minha promessa É esta - o banco que de pedra existe Junto da magnólia permanece Mesmo quando a sombra Seca. E o pássaro parte. E a flor Depois das chuvas não vem.

Magoa ver a magnólia cair. Acredita. O relâmpago vem Sobre ela. A tempestade. As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens. Somos muito frágeis os dois neste poema Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros Sem nenhum terreno pulmonar intacto Para depois de nos olharmos um de nós dizer Plantêmo-la aqui - aqui É o meu pulso, a minha boca É a retina com que procuras, é a madeira da porta Com que te fechas em casa. Prometo-te Eu nunca vou fechar os olhos As mãos.

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Sobre ti. Tu és a criança sentada Que olha para o céu. Há um tesouro No céu - um coração novo. Reconheces A magnólia estelar? O interstício solar Da pupila celeste? Ela está sobre ti E contempla - é verdade que é pelas lágrimas Que começam as visões.

8 Prometo-te a palma da minha mão para a escrita. Cerca-a de magnólias, cerca-me. Podes fechar a escrita No interior da mão ou na boca dos livros Podes esquecê-la ou libertá-la dos mil botões Que ela sopra no interior dos homens. Podes mandá-la àqueles que mais amas Ou como pétalas e mensagens nas anilhas das aves Aos teus próprios inimigos. Podes desarmá-la para propagares as chamas. Dou-te, como desde sempre, o poder De escreveres na pele da minha mão As promessas que te fiz. Sabes que existo E que vou repetir-te todas as coisas outra vez.

Sim. Agora posso explicar-te o mistério das águas. Debruça-te como ele quando escreveu no chão Irás entender - elas jorram das palavras.

estações, por exemplo - não sou o único que o digo -, Não rodam à maneira dos carrosséis no largo. No Outono A magnólia é pensativa como o homem Que te olha por detrás da janela onde te escrevo. No Inverno os vidros vão embaciando - aproxima A tua mão da paisagem que resta Como se fora o lado do verbo que encarnou. Repara No banco de pedra - ele está As

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IV

-

DAS MADRUGADAS

UMA CIDADE COM MURALHA

PREFÁC I O

Busquemos apenas palavras repetidas

As

gaivotas mais altas Mais perdidas

As

A primeira edição deste volume foi publicada pela Biblioteca Municipal do Porto, 1992.

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ANTE C O M EÇO

Uma cidade Uma muralha Uma ponte Uma cidade Um menino A mulher E a muralha Que se refaz no desfazer E um punhal Um poema de guerra e de granito Da torre Da muralha Das gaivotas E das coisas que não eram de granito Da Sé casa de Deus Do rio ainda Visto das varandas mais remotas (Hoje. Ontem. Mais que ontem. Anteontem. Ontem. Hoje ... Quase amanhã)

- Vtimos ao Porto ( ..) e cerquemo-lo por uma parte. ( ..) E em bre­ ves dias o tomaremos porque na cidade não hd quem pelejar connosco ( ..) ( . .) Quando os da cidade souberam como os castelhanos eram em aquele lugar e a vontade com que vinham, houveram todos seu acordo, dizendo uns aos outros: - Estas gentes ( ..) vêm com a intenção de cercar a cidade e a tomar se puderem. Pois nós, cercados deles, ou nos deixaremos aqui cercados como gado em curral e não sairemosfora, ou lhe poremos praça. Se não sairmosfora isto serd a nós mui grande míngua epasmo, pois cumpre todavia de sairmos, cd em outra guisa que vergonha seria a nossa? Veremos nós a cidade cer­ cada dos nossos inimigos que querem de nós honra e provar para quanto somos, e nós não curarmos delo e estarmo-los olhando do muro como mulheres? ( . .) saiamos a eles em toda a guisa, e nenhum haja receio, cd Deus serd em nossa ajuda.

Fernão Lopes

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Passaram homens, mulheres e crianças, correndo, gemendo, e gritando filhos e outros (. . .) pelos uns

Arnaldo Gama

II

I

(Ontem)

(Hoje) Cresce uma pedra no muro De uma muralha aberta Ao cair do tempo Serenas crescem as ervas Sobre o corpo que alheio olha Os seus homen s Que crê ainda Comb atem lá muito ao longe E caem ameias pedra a pedra Ao grito mais agudo da mulher E diz ouvi-la há muito tempo Chorará a morte do seu filho

barcas uniam a cidade Ao limite onde se erguia o outro chão Onde dizem moravam sempre abertas Janelas e asas de gaivotas As

Um fio de olhar sustinha as margens À mesma distância de um menino Que saltava e corria pela ponte Baloiçando nos passos como nuvem A quem deram o dom de deslizar Mas um dia as velas sucumbiram E as barcas partiram uma a uma Como ondas de um rio assassinado E numa barca que partiu foi embalado O menino que corria pela ponte

E entretanto Embala o pó e canta Uma história de homens que virão Um dia Com nomes de vitória

Junto à muralha uma mulher de mão ao vento Parecia acenar a cada barca E chamava um nome de menino

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Enquanto lhe diziam: - Vai lá morto - Nas barcas que corriam para o mar -

( ..) burgo antigo com a sua dinastia de comerciantes ( . .)

E quanto mais diziam mais se erguia Mais - cada vez mais - para chamar

Ó meu severo berço de granito

Eça de Queirós

Antó nio Sousa

III (Dizem que ontem) mãos eram de granito Os olhares eram de granito De granito era a própria pedra

As

(Trouxeram pedra para o peito do menino) De granito eram as palavras Que se trocavam ao preço das moedas As moedas eram de granito Aos balcões de granito se comprava Aos balcões de granito se vendia Os negócios eram de granito Os sonhos (E o granito crescia no menino)

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Junto à muralha uma mulher de mão ao vento Parecia acenar a cada barca E chamava um nome de menino

(Ontem)

IV

V (Mais que ontem)

Uma mulher Vendia flores j unto à muralha E as flores não eram de granito E as flores cresciam na muralha As gaivotas voavam sobre o vento E traçavam com o voo novas ruas E à beira da rua vinha a casa (E a casa crescia no menino)

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(Nos dias de mais que ontem) O menino brincava no seu quarto Nos seus gestos leves com as pedras Que o Outono deixara ali caídas Os barcos do Douro tinham ido Só restavam gaivotas sobre o rio E varandas com roupas esquecidas Bandeiras que caíam devagar

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Porto - cidade de luz de granito

José Gomes Ferreira

VII

VI (Idem)

O menino saltava sobre a ponte Amava as barcas as gaivotas Ouvia as varinas e sabia Os corações não eram de granito Os lábios não eram de granito

(Idem)

Vinham subindo pelas ruas Os gatos E um braçado De homens bêbedos antigos Riam e abriam muito as bocas À espera da chuva p'ra lavar A língua e o cimo das narinas O Outono saltava sobre as barcas Despindo as casas em cinzentos Movimentos de um bailado imperceptível De cinzento embriagava-se o granito Escravo do fogo que rasgava Um pregão luminoso até ao rio

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Para a minha alma eu queria uma torre como esta, assim alta, assim de névoa acompanhando o rio.

E de ld os poetas avistaram Um deus terrível magoado Espetar um punhal sobre a muralha

(Onde o ontem podia ser hoje)

Jorge de Sena

IX

VII I (Onde o ontem podia ser hoje) Nem o sonho era maior do que essa torre Nem sequer uma mão cheia de flores Nem tão pouco as crinas de um cavalo Que dormia no colo do menino Nada era maior do que essa escada De degraus e degraus até às hastes Mais altas e mais frágeis dos gemidos Pela doce tristeza de se ver O musgo dos telhados de tão alto

(Anteontem) Sentadas sob tristes padieiras As mulheres pediam o porquê Desse punhal cravado nos olhares Sem entender - o menino - este pedido No colo da mãe ouvia apenas O breve rumor de estranhos mares

Nada era maior do que o granito E de lá os poetas avistaram Um deus terrível magoado Espetar um punhal sobre a muralha Nada era maior do que essa escada Nem o sonho era maior do que essa torre Nem sequer uma mão cheia de flores Nem tão pouco os olhos do menino 362

363

X

XI

(Idem)

(Idem)

E iam com os seus aventais pretos Simples como iam com a alma Mulheres que caminhavam de joelhos Iam para a casa aonde Deus Mora no silêncio do granito Erguer ao alto os filhos nus Num grito que pedia um berço forte Para embalar sem ferida essa nudez E enquanto oravam e choravam O menino Olhando a mãe não percebia Por que é que Deus era maior do que essa torre Alta alta muito alta Mais alta do que as aves desse dia

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E então Esquecidas Bandeiras Que caíam devagar As mulheres Era Outono E desprendiam os cabelos E prendiam o olhar No olhar de Deus

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Naqueles que foram e ficaram Como fogo que alimenta a nossa vida E que assim ao chegar o novo vento Nos seja ó Pai Alheio o silêncio das ruínas E mais forte o grito de vitória XII (Idem)

Eis agora roubadas ao silêncio A voz e a oração dessas mulheres - Ó Deus vem reparar nos teus e vê Que nós não somos desta pedra E que sem a tua mão é tudo frágil Até mesmo estes gritos estes gestos Estes braços estas portas de granito

Um punhal é ferida em nossa carne E ameaça o olhar dos nossos filhos E engole devagar o nosso grito

Ó Deus Mais forte seja o som profundo e claro Do arrastar dos calcanhares do inimigo Como se neles pesasse inteiro o mundo Ó Pai E vem velar connosco os nossos filhos Os filhos que quiseste fazer teus

E então derrubaremos a muralha Pois assim claramente nós veremos Que a nossa muralha é o nosso Deus

Ó Pai perdoa este regresso De quem não soube amar-te além das forças E vem retirar este punhal Que vieram espetar nos nossos ombros

E não nos mates naqueles que nos levaram Dentro do peito na partida

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junto à muralha uma mulher de mão ao vento Parecia acenar a cada barca E chamava um nome de menino

(Ontem) XIV

XII I

(Ontem)

(Voltando ao ontem)

Pelas águas tingidas foram barcas Cumprindo o seu sonho de partir

Ao entrar Em casa Inda chamava

E num grito de mulher ia embalado Um menino breve adormecido

Sem parar A ausência Do seu filho

E as gaivotas afundando-se nas águas Tingiam as asas com o sangue Retomando-se em prece até ao céu

E na casa Crescia Um longo eco

(silêncio)

As barcas uniam a cidade Ao limite onde se erguia o outro chão Onde dizem moravam sempre abertas Janelas e asas de gaivotas

Como se Também ela Assim chamasse

E um fio de olhar sustinha as margens À mesma distância de um menino Que saltava e corria pela ponte Baloiçando nos passos como nuvem A quem deram o dom de deslizar

A alegria O regresso E o menino

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E entretanto Embala o pó e canta Uma história de homens que virão Um dia Com nomes de vitória

(Hoje) XV

ÜXÁLIDA (Hoje. Quase amanhã)

Cresce uma pedra na muralha De um muro aberto além do tempo E mesmo que não cheguem esses homens Que virão com nomes de vitória Jamais deixaremos de aguardar O regresso dos rostos vencedores Esperaremos nessa torre onde podemos Olhar o ontem e ver o amanhã Dessa torre muito alta aonde iremos Com flores e com gestos acenar A uma barca que leva ainda embalado Um menino que canta sem cansaço - Rema cavalinho rema sempre Que temos que chegar ao outro lado

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ANTEMAN HÃ

No fim dos teus dedos Começam os olhos das aves Não me pergunte a poesia Nada mais Apenas sei o fim de teus dedos Não me pergunte a poesia Se choram os olhos das aves

A primeira edição deste volume foi publicada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa, Porto, s/d ( 1992), mantendo o pseudó­ nimo, de concurso literário, de Cérjio Lage. O autor não reviu essa edição, pelo que não teve a oportunidade de retirar o pseudónimo.

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ANTEAURO RA

ASAS D E N O M I NADAS

A chuva deixou pegadas enormes na tarde Quase não se nota o rastro do sol

Um quarto Vazio

Como havemos de dizer Como havemos de tocar tão levemente os nossos corpos

Sem Nada

Repousa Velar-te-ei

Busco Uma pomba Inacabada

A chuva deixou rios enormes nas faces Como havemos de olhar tão serenamente Repousa Repousa

um leve suspiro e a vida nos dese::obre quase não se nota o sol

Triste Assassinada Junto ao rio

Velar-te-ei

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375

AU RO RA

C I G ARRA

Uma lágrima de luz inacabada Bate contra o cais Sucumbe e jaz

Amei a vida Como se fora um castigo

Uma gaivota alada inacabada Voa pelos olhos Se desfaz

Cantei-a Como se fora um feitiço Agora chora Esse canto calado Sacie-te a voz Agasalhe-te o pranto Que fizeste no Verão? Vendeste o teu canto? Não vendi Dei-o às aves A qualquer viandante Oh leva-me flores Quando já o meu corpo Caído não cante

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H I STÓ RIAS D O PAÍS D E H E LENA

fTACA

Havia marinheiros No país de Helena Que morriam ao pôr do sol

O que dói É não poder apagar a tua ausência e repetir dia após dia os mesmos gestos

E havia Helena que sonhava Fazer um dia tranças às ondas E um berço muito grande para o mar

O que dói é o teu nome que ficou como mendigo Descoberto em cada esquina dos meus versos O que dói é tudo e mais aquilo que desteço Ao tecer para ti novos regressos

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NAfA D E

I N FÂ N C I A

e jogava ao pião com Deus enquanto minha mãe estendia roupa e o meu pai mendigava pão e minha alegria nesse tempo era muito próxima da dos meninos e de Deus que ganhava sempre e não sei quem perdi primeiro: o pião ou Deus apenas sei que Deus continua a jogar com outros meninos

Ela lava a roupa No rio Ela estende a roupa E o vento Enquanto ele procura outros seios Ela lava Ela chora Ela lava

e que no Outono quando saio à praça nos sentamos e falamos muito do suave rodopiar das folhas

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M O N Ó LO G O

Dizes: Que as mãos envelheçam Para te acariciar o rosto Sem qualquer sentimento de amor ou ódio Digo: A rendição de Goa O regresso das naus que partiram e não voltaram Dizes: Sou fruto que espera Sou ave que sonha Sou rio que voa Digo: Sofro

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AS P RA ÇAS

Levam cântaros Como se levam andores Meninas de barro Das grandes tranças Passam nas praças Com gestos leves Rapazes berram Palavras longas Levam olhar Desabotoado As raparigas Dos grandes seios Dançam o corpo Sobre os seus socos Bailam com saias De muito sol Rapazes fortes

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( PA RT ) I DA

Ciganos vivos Corpos cativos Do movimento Passam seus dedos Nos belos lábios Partem-se cântaros Desfaz-se a água Em pés descalços Cruzam-se os corpos Ardem as saias Voltam-se ao vento Chamam cavalos Pela cintura Um braço escuro Como um aceno Que vão partir

384

Vou para um outro mundo que não tenha fim ou uma barca a mais Vou para um outro dia que não tenha sombras ou sabor a sol Vou para um outro sonho que não tenha aves ou palmas de mãos

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OXÁLI DA

A CASA D E CECÍLIA

Quando os olhos ardem Só a chuva passa E ouve E pára A descer Degraus Inertes

Ó casa e cal da casa e esquina da casa que suspende o voo da rua Ó Cecília e janela da tristeza da casa e trança de Cecília espalhando o pó da casa e o pó da rua que vem da casa da rua que molda a casa o olhar de Cecília Ó jardim da casa de Cecília e candeeiro da rua de Cecília e ó rua e casa e ó choro da casa e ó noite da casa e ó estrela ferida de Cecília

que tempo negro é o telhado da casa que casa pesa nos ombros de Cecília?

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387

AS MAN HÃS

B I O G RA F I A

Nasceu No adro (do medo) Viveu Na praça (da vida) Morreu No rio (da sorte)

Das manhãs Apenas levarei a tua voz Despovoada Sem promessas sem barcos E sem casas Não levarei o orvalho das ameias Não levarei o pulso das ramadas Da tua voz Levarei os sítios das mimosas Apenas os sítios das mimosas pedras As nuvens O teu canto As

Levarei manhãs

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E madrugadas

F RA G M EN T O S

(1) O silêncio É uma mão cheia de água que queima O cansaço

E S P UM A CALCÁRIA

Toda a inércia Se reduz ao movimento Dos telhados caiados Pelo vento

(2) E vem do chão um barco As velas tocam-te os ombros Onde dorme um veado de vento (3) E agora ficaste mais preso Aos leves umbrais do meu pulso Onde escrevo gaivotas nos muros (4) O silêncio Uma mão Cheia de fogo que apaga O cansaço 390

391

SONO DÍGLIFO

No silêncio de mim Nas paredes Fria a calma Das sombras Semeadas Pelos campos De trigo Chegamos? Rios ocultos Bordados na outra face Da boca A água Chegamos?

ESTIO

S e e u adormecer não me censures Sai e deixa-me entregue aos sonhos Vai sentar-te no campo onde se morre maduro E espera-me para treparmos árvores e colhermos ninhos

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393

A U S Ê N C IA

RECA D O A NÁUV I O

Ouvir-te-ei Ainda que os segredos As amoras me chamem

Náuvio: Não voltarei para jantar Não precisas de pôr flores em todas as jarras E água fresca Em todo os quartos.

Diz-me Que existirão lágrimas para chorar Na velhice Na solidão

Quando eu chegar Leremos a tal história com que choraste Despiremos as camas Taparemos os móveis.

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Náuvio: Jamais voltarei para sorrir. Não precisas de iluminar o tempo

Fala

Fala Ouvir-te-ei A coragem Alguém de nós que já não está

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A RTE P O É T I CA

A palavra despe-se O silêncio despe-se Nus Os sexos ardem Os seios da palavra Os músculos do silêncio O silêncio E a palavra O poeta E o poema

396

A CASA DOS CEIFEIROS

P Ó RT I C O

Com o s meus amigos aprendi que o que dói às aves Não é o serem atingidas, mas que, Uma vez atingidas, O caçador não repare na sua queda.

A primeira edição desre volume foi publicada, com o nome de auror Daniel Augusro, pela Associação de Esrudantes da Faculdade de Teologia do Porro, 1 993.

399

O F fC I O

Preciso cerzir a fronte. Vou amainar as faces E aplainar os lábios.

B RA Ç O S AB E RTOS

Separei os braços E exilei o peito Doeu-me tanto Que não sei chorá-lo

400

40 1

M EN D I G O S

M U LH E R

Nas soleiras ao relento Querem ser como os frutos. Cair Se cair for um destino Como se o chão fosse o seu lugar.

Antes da noite Brunirás os montes Bordarás a chuva Tecerás o tempo Com as tuas lágrimas Lavarás o vento

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MAN HÃ

O voo inclinando O abismo: A seta que o caçador não segurou No arco. E sangra o dorso daquela a quem amou E a lembrança de havê-la segurado Nos braços.

LUGAR

Habito a casa Que me desabita Passa ao longe a casa aonde mora O meu olhar E a esperança E doem-me as janelas abertas Das casas sem moradores E os peitoris doutros corpos Este templo é do deus em que não creio

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C O M O O S QUE C H EGAM

Como os que chegam Arrastando as sandálias da poeira De instante nenhum regresso ileso Pois rendi-me - indefeso A quem nunca me cercou nem me venceu

CONFIDÊNCIA

A minha vida Um mendigo à chuva A mão estendida. O corpo Dobrado sobre os joelhos Pedaço de terra Volteando sob a luz Uma criança semeando Flores E aves e pássaros Comendo as sementes E na morte. O regresso Das flores em mim

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RAM O D E A ME N D O E I RA

ASCESE

Os lábios pequeninos São brancos de perfume

Há o s que s e deitam sobre a relva Como sombras que dormem sobre túmulos. Tu, porém, dormes sobre a morte A longa ausência que há dentro dos poemas

E rodeiam Os pés de um cavalo Que morre galopando Uma crina Branca A florir

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EVA

Não chores Eva. Repara que sem nome A alegria não pode chamar-te do fundo dos dias Longos da grande tristeza. Deram-te um nome. A vida agora já pode chamar-te A morte já pode chamar-te Alegra-te ó Eva sorri.

R E N D I ÇÃO

Deponho

as

armas:

Primeiro a voz Depois a luz Por fim as mãos E então posso morrer Se não for noite

Não chores Eva o teu nome Têm nomes os barcos as flores E apenas os nomes nos restam Tudo o mais é levado ao partir. Não chores Eva. Os teus filhos sob o sol vão cantar-te E teu nome será o seu grito De esperança maior e de luz.

/

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411

AQU I P E Ç O

Aqui peço Que proa alguma divida os seios Das varinas Aqui não separe As formas repetidas Nas casas e nas conchas Nos corpos e nos barcos

S O B RE A AREIA

Sobrevoar o rosto Como uma terra alheia Perceber que tudo se incendeia Ao estender do corpo

Aqui reúna Os passos dos homens E os das gaivotas Os braços com as suas asas Aqui onde a sombra dos braços É maior que a sombra das asas

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P E RC U R S O

1

MÃOS D E P E D RA

Queria a noite sempre ao meu lado E um barco onde reclinar a cabeça

Deixo a cabeça poisar Sobre o ombro da água. Estou perto do fim E não vejo a morte.

Queria sempre o braço de minha mãe A baloiçar as amarras que me prendem Às marés E as minhas mãos são grandes E pesam como um rochedo Como a espada suspensa Sobre a minha boca

2 Caio sobre os teus passos E a sede na voz já não me espanta Já não me fere um pulso de revolta.

E a minha alma é pequena para gritar O nome dos navios O nome de todos os navios O nome dos navios o nome Dos meus amigos.

3 Cumpro a vocação de não poder.

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415

O S P ESCADO RES

Os filhos dos pescadores São pequeninos búzios De silêncio E de sonoro fervilhar de ondas ruas dos pescadores São como o convés dos barcos E como o soalho das casas Dos pescadores

O S LAÇOS

1

Não venhas assim erguida como a lança de um guerreiro que guarda [imóvel o vento

As

mulheres vestem-se com redes E usam as conchas no lugar dos brincos E nos dias em que choram As ondas são manhãs sobre o meio-dia As

II Entenderei por que s e fecham os quartos n o interior Quando deveriam ser barcos A cruzar casas distantes

III Que interessam os laços? se alguém me chama Por que não devo ir?

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417

ALUCI NAÇÃO

MAR F U N D O

E fosse um barco Ou a mulher do homem Que vai no barco

Falta água. Nas mãos em concha Encalharam barcos

Pedra Somente pedra

Ao pé do mar As coxas se desfazem Devagar.

Para as manhãs

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419

BARCO S O LTO

Dançar na proa Conquistar O mastro

420

CAN ÇÃO PARA U M F I M D E VERÃO

Espiga colhida Um campo e a foice A eira e o milho' O colo ou o chão

42 1

MÃOS I N C EN D IADAS

Sou o fogo e a sede e as flores Pertenço ao sol, sou do sol dos meus dias Incendiados na dor das ausências E sou. Sou do mar dos navios Desses apenas que partem Da cor de um aceno que exausto É rouco no seu agitar

E A G O RA E S C O N D O

Das manhãs abri Os pulsos do sol E agora escondo Meus cutelos na somb ra

E pertenço à dor das espadas E àquelas que vestem o luto Preparando o dia da guerra Entre os irmãos - os seus filhos E caminho da minha infância Por entre as bilhas da água Levedando o barro e o linho

1

i'

E do colo sou E ouvindo adormeço Ouvindo o regresso De minha mãe 422

42 3

E S T UÁRI O

Espero por ti e já é tarde Petrifico e choro e já é tarde

I M I G RAÇÃO

Os meus braços voam para o sul Muito lhes dói o cimo das montanhas

Apenas os versos são de mármore É líquido o mais e dói-me a sede Deste fogo aceso que não arde

424

425

QUA S E NADA

C O M BATE

E os cavalos passam Sobre o chão de cinza

Sei o tamanho do Verão Pelo lugar que divide as mãos

E no voo das aves Ateiam suas crinas

E pelo subir sinuoso Que mais e mais rompe os vestidos Pelos golpes desferidos sei O tamanho profundo das espadas

426

427

O MENINO

DÁLIAS

O menino apunhalou sua mãe Com uma pedra no peito A assassinou

Que desvendas?

Agora é j ulgado Por trazer presos à cintura Os cabelos de sua mãe

428

Folhos e rendas Silêncio e pele

429

O C O R P O , A C O L U NA

O corpo, a coluna Que sustenta a pedra Angular do dia O corpo surgindo Do breve cinzel da alegria

430

E S P E RA

Nos andaimes Constroem-se os corpos As mulheres ao entardecer Esperam

43 1

S I RACUSA

FOSSES TU

De pedra em pedra Te peço

Fosses tu uma ave ou uma folha E o Outono te viria desprender

Não morras de sede Ou de luz

432

433

A CASA D O S CEI F E I RO S

Assim eles concluíam as casas: Incendiavam os telhados de colmo.

434

V

-

ANTEAURORA

Foram pétalas Ou olhos de deusas O que calquei? Não Não digam Eu sei Que foram sonhos (Inédito)

437

A espessura do sol Cabe na boca

Pai Tenho medo de morrer depois da morte Tenho medo de morrer antes da vida

O Verão Está quase a terminar

(lnédico)

Não O diremos a ninguém ( Inédico)

438

439

Ouve a luz Como ainda tem o sabor das algas

Mãe Manda a águia Que come o meu fígado Ir embora

Deixei-lhe escrito um recado Das nuvens

Mãe Grita Chama por Hércules

Não te esqueças de ouvir a luz Não te esqueças que ao sol pôr Também eu morro

Mãe Tenho vida

Não te esqueças (Inédito) (Inédito)

440

44 1

Diário

,

INDICE

Seja o que for Será bom. É tudo. (Inédito)

442

1

-

CONFID�NCIA

Prefácio à Poesia de um poeta maior - Vera Vouga

9

I I - ANTEMANHÁ (Inéditos) Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe . . . . . . . . . . . . . . .

19

Precisava de falar-te ao ouvido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

20

Sou gémeo de mim e tudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

21

Deixo o corpo à sombra daflo r mais alta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

22

A manhã move a pedra sem raiz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

23

I I I - DAS MANHÃS (Livros da idade adulta) EXPLICAÇÃO DAS ÁRVORES E DE ÜUTROS ANIMAIS . . . . . . . . . Explicação das árvores e de outros animais . . . . . . . . . . . . . . . . . Depois das queimadas as chuvas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

27 29 31

A estrela nasce da raiz carbonizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

32

Largo é o aberto abandonado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

33

Como doem as árvores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

34

Como as crias no colo dobrasse as patas . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

35

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36

Para que visses .

Sefosses pássaro baterias as asas para destruir a armadilha . . . . .

37

Devo ser o último tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

38

Ando um pouco acima do chão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

39

Tenho aflição por tudo o que morre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

41

445

Encosto-me à morte sem amparo ou sombra . . . . . . . . . . . . . . . . Voz no vento passando entre poeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Houvesse um sinal a conduzir-nos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Explicação da pedra enquanto lume . Anuncio e pereço. . . . . . . . . . . . . . . A mão abertajá não liga . . . . . . . . A pedra tem a bocajunto do ouvido . A pedra está poisada sobre si mesma . Se acender a luz . . . . . . . . . . . . . . .

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Explicação das casas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A porta mora à espera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A casa vem das mãos para ficar desabrigada . . . . . . . . . . . . . . . Estou dentro de paredes brancas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mesmo no interior do quarto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Não foi margem sem outra margem onde ligar os braços . . . . . . Os homens descansam na sombra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . De manhã vendeu a casa e o arado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sei bem que não mereço um dia entrar no céu . . . . . . . . . . . . .

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Explicação do labirinto . Aquiles e Pátroclo . . . Labirinto I . . . . . . . . Labirinto II . . . . . . . . Labirinto III . . . . . . . Pedra de Sísifo I . . . . Pedra de Sísifo II . . . .

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Do inexplicável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O homem pensa na razão para o pousio . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O homem lança a rede e não divide a água . . . . . . . . . . . . . . . No meio da tempestade corrigiu o saibro do caminho . . . . . . . . Acontecera que as coisas se destruíssem sem que nelas sobrevivesse. . . O nome parece a infância. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estranho é o sono que não te devolve. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como reporás a terra arrastada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Guarda a manhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anoitece como num dia de acidentes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Socorre-me, devolve-me a leveza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Caminha para dentro dos cercos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Caminho sem pés e sem sonhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O meu projecto de morrer é o meu oficio . . . . . . . . . . . . . . . . . Um coração de sangue. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Últimas explicações . . . . . . . . . Explicação da madrugada . . . Explicação da tarde . . . . . . . . Explicação da noite . . . . . . . . Explicação da lâmpada . . . . . Explicação da luz . . . . . . . . . Explicação do cântaro . . . . . . Explicação dos cântaros. . . . . Explicação das marés. . . . . . . Explicação do tráfego . . . . . . Explicação do homem . . . . . . Outra explicação do homem . Explicação da gravidade . . . . Explicação do poeta . . . . . . . Explicação da escuta . . . . . . . Explicação de Ricardo Reis . . Explicação da ceifa . . . . . . . .

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Explicação do j ugo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação da ceguez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação do sorriso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação da cura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação do alpendre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação da ausência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação da espera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Explicação da distância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Últimas explicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS . . . . . . . . .

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Homens que são como lugares mal situados . . . . . . . . . . . . . . . . Examinemos um homem no chão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Sei que o homem Lavava os cabelos como sefossem longos. As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões . . . . O filho é o carrossel à volta da mãe . . . . . . . . . . . . . . . . Homens que são como lugares mal situados. . . . . . . . . . . Homens que são como projectos de casas . . . . . . . . . . . . . Homens que trabalham sob a lâmpada . . . . . . . . . . . . . Não levantemos os homens que se sentam à saída . . . . . .

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Mas basta-me um quadrado de sossego. . . . . . . . . . . . . . . . . Amanhecemos sem materiais suficientes para a luz total . . . . Repito que vivo enclausurado na agiiidade de um animal nascido Épor isso que adormeço numa luz em movimento . . . . . . . . Há muitos metros entre um animal que voa . . . . . . . . . . . . . Foi um tempo branco, repetidamente Lavado naspróprias mãos. Tornei-me peso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Dinamitei depois tudo o que em mim tinhaforma de aquário Agora és um animal que pensa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

448

1 19

Para encontrar o golpe no sono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acordei com as narinas a sangrar um perfume . . . . . . . . . . . . . . Acordei também com os pássaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ela pôs-me o dedal sobre os olhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acordei dentro do poço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Trinquei o vidro e ouvi o coração da mulher estalar: . . . . . . . . . . Ela sorveu-me o sangue, curou-me a boca, . . . . . . . . . . . . . . . . . Acordei dentro desse pensamento como um homem salvo . . . . . . . E eu disse à mulher: destece-me . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Assemelhei-me a um xilofone de silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Debrucei-me sobre a meada estreita, o estreito poço . . . . . . . . . . . A mulher Lançou a sua mão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A mulher guardou-me no útero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acordei com os olhos comidos como um corpo depois de sepultado. . . Se fores pelo centro de ti mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sara. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A escrava de Sara. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Separação de Abraão e Lot . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A morte de Jonatas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sarepta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eliseu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sunam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Junco dos rios da Babilónia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O regresso dos rios da Babilónia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Elogio da mulher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Coeleth . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Raquel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lamentações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ezequiel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A mulher adúltera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449

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Filho pródigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Zaqueu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Charles de Foucauld . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Uma espécie de anjo ferido na raiz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Examinemos também a escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um pulso aberto não dói mais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio . . . . . . . . . . Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou um cego . . . Entrei na sombra como alguém que via . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alguma coisa trazia a candeia para dentro - havia uma noite dentro de casa - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Existia, no entanto, um poema a recuar . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Para o instrumento difícil do silêncio . . . . . . . . . . . Trago os instrumentos dofogo . . . . . . . . . . . . . . . . Mas tu existes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mas tu cresces abundante como um ano bom . . . . . Porque a morte tem o seu tempo . . . . . . . . . . . . . . És o pé de criança sobre o meu pé. . . . . . . . . . . . . . De veres o meu lugar. De me veres só . . . . . . . . . . . Hd uma palavra pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo . . . . . . . . . . . . . Se o fogo destruir a casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cruz, rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Dos LÍQUIDOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Para que nasças no mês anterior . . . . . . . . . . . Das nascentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Hd homens a abrir as mãos como livros . . Eles trazem em nós as dguas e pousam-nos Eles abrem a palavra . . . . . . . . . . . . . . . 450

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Do Livro do Êxodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro dos Números . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro de Ezequiel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro de Zacarias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro dos Actos dos Apóstolos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro do Apocalipse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Das Instruções de S. Columbano, Abade . . . . . . . . . . . . . . Do Livro dos Solilóquios 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro dos Solilóquios 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro das Meditações 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro das Meditações 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro das Meditações 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do Livro Primeiro da Noite Escura, de São João da Cruz 1 . D o Livro Primeiro da Noite Escura, de São João da Cruz 2. Do Livro Primeiro da Noite Escura, de São João da Cruz 3. Do Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz 1 . Do Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz 2. Do Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz 3. Do Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz 4. Do Livro Segundo da Noite Escura, de São João da Cruz 5 . Do Manuscrito C de Santa Teresa do Menino Jesus 1 . . . . . Do Manuscrito C de Santa Teresa do Menino Jesus 2 . . . . . Do sacrifício de Isaac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Dos líquidos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando eu era uma criança de muktas . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando vier o meio-dia e da noite só tiver uma certa semelhança . Quando nadei profondamente na morte . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando a embarcação lançava o seu lugar. . . . . . . . . . . . . . . . Quando a tua casa se vai tornando a cesta de vime. . . . . . . . . .

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Do inesgotável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abriu-se em ferida a cerca do teu sopro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amo-te no intenso tráfego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amo-te como um planeta em rotação difosa . . . . . . . . . . . . . . . . Sem outra palavra para mantimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos . . . . . . . . . . . . . . . Amo-te na carne que tomaste do chão que aplaino . . . . . . . . . . . Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões. . . . . Neste lugar transitório mantém-me mendigo . . . . . . . . . . . . . . . Observei-te sabendo já que eras um homem - a cabeça. . . . . . . . Todas as minhas fontes vêm de ti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E desço à verdura das tuas mãos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Deixo crescer o cabelo sobre os pés divinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . Enquanto tenho o lume corro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . F.stou a um palmo daparede. Pergunto - se queres saber o que oiço Transforma o coração na coisa desamada . . . . . . . . . . . . . . . . . . As chagas são vivas como as guelras dos peixes . . . . . . . . . . . . . . Consomes-te, não podes apagar-te . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Escolhi a morte para ficar contigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Procuro o trânsito de um homem que repousa em ti . . . . . . . . . . Procuro o lento cimo da transformação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pastagem onde o pastor descansa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As nossas cabeças são como as ameias que vigiam . . . . . . . . . . . . Vimos a pedra vazia no interior da terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ele é o cavador e o trabalho e a vinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ·

Do sangue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Também poderia ter escrito de terprovado no deserto . . . . . . . . Começa no verbo o que escrevo. A palavra . . . . . . . . . . . . . . . Trabalho a partir da existência da luz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ainda não sei ouvir a lâmina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Vejo o pedreiro à chuva a abrir aquedutos para o coração . . . . . . Voz pisada como o vinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sangue não carboniza os sons para que os aguarde - . . . . . . . Há um comboio iluminado no meu cérebro cheio de túneis e noites Escrevo do lado mais invisível das imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . Estás na terra plana e o teu cabelo não ondula . . . . . . . . . . . . . . Ponho sete vezes a terra sobre esta terra, sobre esta raiz afogada . . A nuvem é noite sobre o viajante às escuras. . . . . . . . . . . . . . . . . A lâmpada está no espelho e não é um rosto . . . . . . . . . . . . . . . . É sob a silenciosa sombra dos sobreiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tapas as palavras sem socorro no escuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A flor está poisada no lugar deflorir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quero afome de calar-me. O silêncio. Único . . . . . . . . . . . . . . Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Das inúmeras águas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Com a vara calculei a distância entre os dias . . . . . . . . . . . . . . . A criança fecha os olhos no muro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um pássaro em queda mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apareço nafenda do muro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sei o mês exacto por medo de perder-te . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como nos degraus a sombra nos olhos de Ezequias . . . . . . . . . . . Dos campos que cultivei duas sementes restaram . . . . . . . . . . . . Chamavas os bois com a mão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Costumo poisar os dedos, tactear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Construo o meu casulo até as cisternas transbordarem . . . . . . . . Ponho-me na toca dos bichos, nos teus olhosfechados . . . . . . . . . Calculo uma doença diflcil e definitiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . Queria ter a posição dos claustros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Atiro uma pedra à água. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A pedra na terra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Sento-me entre os que cantam em círculos. . . . . . Sem o agasalho das asas . . . . . . . . . . . . . . . . . . E multipliquem os pdssaros que cantam . . . . . . . Dou-te a minha ausência e a noite da escada . . . A noite veloz bate a lâmpada azul contra as casas

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Do que sangro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O que desconheço: a casa. O modo como a encontrei de noite . . Entro. Conheço a minha casa. É mansa . . . . . . . . . . . . . . . . . Corro tal como os bichos quando as ervas nascem. . . . . . . . . . . A casa abrefendas dos pés à cabeça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quem me dera adormecer em frente do teu sono quem me dera . A mulher muitas vezes avança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Hd uma mulher a morrer sentada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A sombra da figueira não me lembra a sombra. . . . . . . . . . . . . Dai-me da dgua ou da resina de um ramo . . . . . . . . . . . . . . . Dizei-me em que caminho o nómada se me iguala . . . . . . . . . Tenho os olhosfechados para que não os enxugue ninguém . . . . Ninguém mo ensinou mas descobri por mim . . . . . . . . . . . . . . Amarro dois degraus para não subir. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A drvore, uma nora de sombra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ]d me ensinaram que o sol. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As dguas mudam por dentro de outras dguas . . . . . . . . . . . . . . As areias, as sementes delas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Do ciclo das intempéries . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma pdgina . . . . . . . . Quero dizer-te que esta magnólia não é a magnólia . . . . . . . . Nem ela sabe por onde te conduzo agora. . . . . . . . . . . . . . . . Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma drvore defruto Começo, pois, no alto a saciar-te. Explico-te o ciclo. . . . . . . . . O tesouro é então a magnólia segredada entre nós dois . . . . . .

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Magoa ver a magnólia cair. Acredita. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Prometo-te a palma da minha mão para a escrita. . . . . . . . . . . .

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IV - DAS MADRUGADAS (Livros da idade juvenil) UMA CIDADE COM MURALHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Antecomeço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Hoje) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Ontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Dizem que ontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Mais que ontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Nos dias de mais que ontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Idem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Idem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Onde o ontem podia ser hoje) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Anteontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Idem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Idem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Idem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Voltando ao ontem) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Ontem). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Hoje. Quase amanhã) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ÜXÁLIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Antemanhã . . . . . . . . . . . . . Anteaurora . . . . . . . . . . . . . . Asas denominadas . . . . . . . . Aurora . . . . . . . . . . . . . . . . . Cigarra. . . . . . . . . . . . . . . . . Histórias do país de Helena . fraca . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Naíade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Monólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As praças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Part)ida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Oxálida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A casa de Cecília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Biografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As manhãs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fragmentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Espuma calcária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sono díglifo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ausência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Recado a Náuvio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Arte poética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A C ASA DOS CEIFEIROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pórtico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ofício . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Braços abertos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mendigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mulher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Manhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Lugar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Como os que chegam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Confidência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ramo de amendoeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ascese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ". . . . . . . . . . . . . . . Rendição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Aqui peço . . . . . . . . . . . . . . Sobre a areia. . . . . . . . . . . . . Percurso . . . . . . . . . . . . . . . . Mãos de pedra . . . . . . . . . . . Os pescadores. . . . . . . . . . . . Os laços . . . . . . . . . . . . . . . . Alucinação . . . . . . . . . . . . . . Mar fundo . . . . . . . . . . . . . . Barco solto . . . . . . . . . . . . . . Canção para um fim de Verão Mãos incendiadas . . . . . . . . . E agora escondo . . . . . . . . . . Estuário . . . . . . . . . . . . . . . . Imigração . . . . . . . . . . . . . . . Quase nada . . . . . . . . . . . . . Combate . . . . . . . . . . . . . . . O menino . . . . . . . . . . . . . . Dálias . . . . . . . . . . . . . . . . . O corpo, a coluna. . . . . . . . . Espera . . . . . . . . . . . . . . . . . Siracusa . . . . . . . . . . . . . . . . Fosses tu . . . . . . . . . . . . . . . A casa dos ceifeiros . . . . . . . .

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V - ANTEAURORA (Inéditos) Foram pétalas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A espessura do sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pai / Tenho medo de morrer depois da morte . Mãe / Manda a águ.ia . . . . . . . . . . . . . . . . Ouve a luz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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d o c u m e n ta p o e t i c a

P RO C E D ÊN C IA D O S I N É D I TO S I N C L U Í D O S N E S T E VO L U M E (Designados pelo primeiro verso)

Edoi Lelia Doura - Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa organização M Herberto Helder Ouolof poemas mudadospara português por Herberto Helder Poemas Ameríndios poemas mudados para português por Herberto Helder Doze N6s Numa Corda

Nas pálpebras («Confidência»), Pedaços de Mar, Dactiloscrito RMV, Maço 7. O tamanho do teu nome («Definição»), Dactiloscrito RMY, Maço 9 . Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe, Dactiloscrito de EAOA, Poema não incluído na revisão final. Precisava defalar-te ao ouvido, Ibidem. Sou gémeo de mim e tudo, Ibidem. Deixo o corpo à sombra da flor mais alta, Ibidem. A manhã move a pedra sem raiz, Ibidem. Foram pétalas (