Pensar a Imagem
 9788582176184

Table of contents :
7. Introdução

Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a pensar
Emmanuel Alloa


I. O lugar das imagens

23. Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica
Gottfried Boehm
39. A imagem entre proveniência e destinação
Marie-José Mondzain
55. Imagem, mímesis & méthexis
Jean-Luc Nancy


II. Perspectivas históricas

77. Física do sensível – pensar a imagem na Idade Média
Emanuele Coccia
93. Da idolologia. Heidegger e a arqueologia de uma ciência esquecida
Emmanuel Alloa
115. A janela e o muxarabi: uma história do olhar entre
Oriente e Ocidente
Hans Belting


III. A vida das imagens

141. Mãos pensantes – considerações sobre a arte da imagem nas ciências naturais
Horst Bredekamp
165. O que as imagens realmente querem?
W. J. T. Mitchell
191. As imagens querem realmente viver?
Jacques Rancière


IV. Restituições

205. Devolver uma imagem
Georges Didi-Huberman

Citation preview

EMMANUEL ALLOA (1980) é pesquisador

OS TRADUTORES

“O que é uma imagem? A múltipla proliferação de imagens no mundo contemporâneo parece – e esse é seu paradoxo – inversamente proporcional à nossa faculdade de dizer com exatidão ao que elas correspondem. [...] Por um lado, interrogar-se sobre o que é uma imagem seria ainda ignorar que a imagem tende a se disseminar, declinar-se dela mesma em formas plurais, se desmultiplicar em um devir-fluxo que se sustentaria instantaneamente no Um. Por outro lado, perguntar o que é uma imagem retorna inevitavelmente a uma ontologia, a uma interrogação sobre seu ser. Ora, nada parece menos seguro do que o ser da imagem. [...] A polarização da imagem que se opera através do duplo paradigma da transparência e da opacidade permite um exorcismo quase perfeito da inquietude suscitada pelas imagens. Assim, dissociada em dois terrenos separados, a imagem não coloca tanto um problema teórico, mas formará um objeto a mais para um pensamento já constituído.”

FILOESTÉTICA

Emmanuel Alloa (Org.) PENSAR A IMAGEM

na Universidade de Basileia e no Polo Nacional de pesquisa eikónes. Professor de Filosofia em Basileia e de Estética no Departamento de Artes Plásticas de Paris 8, em 2009 defendeu, em cotutela entre as universidades de Paris 1 e a Universidade Livre de Berlim, uma tese sobre a noção do “diáfano”. Em 2010, foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. É autor de La résistance du sensible: Merleau-Ponty critique de la transparence (Paris, 2008); Nitcht(s) sagen: Strategien des Ent-Sagens im Gegenwartsdenken (Bielefeld, 2008); e de Das durchscheinende Bild: Konturen einer medialen Phänomenologie (Berlim, 2010), bem como de uma antologia do pensamento francês sobre a imagem no século XX (Munique, 2010).

Emmanuel Alloa (Org.)

PENSAR A IMAGEM Georges Didi-Huberman Jacques Rancière W. J. T. Mitchell Horst Bredekamp Hans Belting Emanuele Coccia Jean-Luc Nancy Marie-José Mondzain Gottfried Boehm Emmanuel Alloa

Carla Rodrigues é doutora e professora de Filosofia (UFRJ), Fernando Fragozo é doutor e professor de Filosofia (UFRJ), Alice Serra é doutora e professora de Filosofia (UFMG), Marianna Poyares é mestre em Filosofia (USP).

ISBN 978-85-8217-618-4

Imagem de capa: Gruta Chauvet, Vallon Pont-d’Arc (Ardèche, Região Ródano-Alpes), França. Mão negativa vermelha e contorno preto parcial de um mamute. Painel das Mãos Negativas, Galeria dos Painéis Vermelhos, ©J. Monney-MCC.

9 788582 176184

www.autenticaeditora.com.br

Tradução Carla Rodrigues (coordenação) Fernando Fragozo Alice Serra Marianna Poyares

Pensar a imagem é ao mesmo tempo um título e uma necessidade. Organizado por Emmanuel Alloa, o livro reúne diferentes autores em torno de um objeto durante muito tempo excluído do logos filosófico e que hoje, mais do que nunca, determina nossa relação com o real: a imagem. Em 1994, dois autores presentes neste volume – Gottfried Boehm, na Alemanha, e W. J. T. Mitchell, nos Estados Unidos – abriram o debate ao nos convidarem a substituirmos a “virada linguística”, que marcou o pensamento da primeira metade do século XX, por uma “virada icônica”. Na Alemanha, historiadores da arte como Hans Belting e Horst Bredekamp retomaram esse convite, abrindo caminho para a criação de uma “ciência da imagem”, que faria eco à “ciência da linguagem”. O volume documenta um certo número de debates dos últimos anos, como aquele entre Georges Didi-Huberman e Jean-Luc Godard ou entre W. J. T. Mitchell e Jacques Rancière. Além disso, conta ainda com contribuições de autores como Marie-José Mondzain, Emanuele Coccia e Jean-Luc Nancy. Algumas perguntas centrais desenham o quadro de reflexões a que este livro se dedica: o pensamento ocidental é iconofóbico? É a imagem estruturada como uma linguagem? Há uma lógica das imagens diferente da lógica do texto? Qual a relação entre imagem e poder? Precisamos de uma ética da imagem? As imagens podem funcionar como reparação ou como restituição?

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FILO

A sabedoria trágica Sobre o bom uso de Nietzsche Michel Onfray A teoria dos incorporais no estoicismo antigo Émile Bréhier FILOAGAMBEN

A comunidade que vem Giorgio Agamben

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Pensar a imagem

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Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar Espinosa A unidade do corpo e da mente Afetos, ações e paixões em Espinosa Chantal Jaquet

Bartleby, ou da contigência Giorgio Agamben seguido de Bartleby, o escrevente Herman Melville

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O homem sem conteúdo Giorgio Agamben

O descredenciamento filosófico da arte Arthur C. Danto

Ideia da prosa Giorgio Agamben Introdução a Giorgio Agamben Uma arqueologia da potência Edgardo Castro Meios sem fim Notas sobre a política Giorgio Agamben Nudez Giorgio Agamben A potência do pensamento Ensaios e conferências Giorgio Agamben FILOBATAILLE

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O anjo da história Walter Benjamin Baudelaire e a modernidade Walter Benjamin Imagens de pensamento Sobre o haxixe e outras drogas Walter Benjamin Origem do drama trágico alemão Walter Benjamin

O belo autônomo Textos clássicos de estética Rodrigo Duarte (org.)

Do sublime ao trágico Friedrich Schiller Íon Platão FILOMARGENS

O amor impiedoso (ou: Sobre a crença) Slavoj Žižek Estilo e verdade em Jacques Lacan Gilson Iannini Introdução a Foucault Edgardo Castro Kafka Por uma literatura menor Gilles Deleuze Félix Guattari Lacan, o escrito, a imagem Jacques Aubert, François Cheng, Jean-Claude Milner, François Regnault, Gérard Wajcman O sofrimento de Deus Inversões do Apocalipse Slavoj Žižek Boris Gunjevic ´ ANTIFILO

A Razão Pascal Quignard

FILOESTÉTICA

autêntica

Copyright © Les presses du réel, Dijon Tradução publicada mediante acordo com Les presses du réel, Dijon, www.lespressesdureel.com Copyright © 2015 Autêntica Editora Título original: Penser l’image Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. Todos os esforços foram feitos no sentido de encontrar os detentores dos direitos autorais das obras que constam deste livro. Pedimos desculpas por eventuais omissões involuntárias e nos comprometemos a inserir os devidos créditos e corrigir possíveis falhas em edições subsequentes.

Emmanuel Alloa (Org.)

Pensar a imagem

coordenador da coleção filô

editora assistente

Gilson Iannini

Cecília Martins

 conselho editorial Gilson Iannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUCRio); Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco (UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Žižek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)

projeto gráfico

Diogo Droschi revisão

Lira Córdova Renata Silveira capa

Alberto Bittencourt diagramação

Jairo Alvarenga Fonseca

editora responsável

Rejane Dias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pensar a imagem / Emmanuel Alloa, (org.). – 1. ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. (Coleção Filô/Estética) Título original: Penser l’image. Vários autores. Vários tradutores. ISBN 978-85-8217-618-4 1. Arte - Filosofia 2. Estética 3. Imagem 4. Percepção visual I. Alloa, Emmanuel.

Tr a d u ç ã o

Carla Rodrigues (coordenação), Fernando Fragozo, Alice Serra e Marianna Poyares

15-03707

CDD-700.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Percepção visual : Arte : Ensaios 700.1

iil GRUPO

AUTÊNTICA

Belo Horizonte Rua Aimorés, 981, 8º andar . Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3214 5700 Televendas: 0800 283 13 22 www.grupoautentica.com.br

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Sumário

IV. Restituições 205. Devolver uma imagem Georges Didi-Huberman

227. Ilustrações 7. Introdução Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a pensar Emmanuel Alloa

I. O lugar das imagens 23.

Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica Gottfried Boehm

39.

A imagem entre proveniência e destinação Marie-José Mondzain

55.

Imagem, mímesis & méthexis Jean-Luc Nancy

II. Perspectivas históricas 77.

Física do sensível – pensar a imagem na Idade Média Emanuele Coccia

93.

Da idolologia. Heidegger e a arqueologia de

115.

uma ciência esquecida Emmanuel Alloa A janela e o muxarabi: uma história do olhar entre Oriente e Ocidente Hans Belting

III. A vida das imagens 141.

Mãos pensantes – considerações sobre a arte da imagem nas ciências naturais Horst Bredekamp

165.

O que as imagens realmente querem? W. J. T. Mitchell

191.

As imagens querem realmente viver? Jacques Rancière

231. Sobre os autores 2 35. Sobre os tradutores

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Introdução

Entre a transparência e a opacidade o que a imagem dá a pensar Emmanuel Alloa

repousam sobre os corpos cujo crescimento ainda não está completo, ou melhor, como um crescimento que foi interrompido. Na sua perfeição congelada, o tríptico evoca o retrato de um Dorian Gray sobre o qual o tempo não irá mais passar. Assim como o número de imagens da série, a unidade do sujeito representado se difrata em um polimorfismo inquie­ tante: ligados entre si por uma perturbadora gemeidade, os adolescentes quase idênticos se distinguem, entretanto, insensivelmente, embora sem nunca alcançar suas individualidades distintas. Inegavelmente, os Retratos Fíct{cíos de Cottingham provocam. Ao desligar o mecanismo identificador e confundir o automatismo da atribuição, suas imagens exigem que a elas se dedique tempo.

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Não se olha a imagem como se olha um objeto. Olha-se segundo a imagem.

Maurice Merleau-Ponty

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O que é urna irnagen1? A múltipla proliferação de in1agens no mundo contemporâneo parece - e esse é seu paradoxo - inversa1nente proporcional à nossa faculdade de dizer com exatidão ao que elas corresponde JParece ocorrer com as imagens quase o mesmo que ::: tempo em Santo Agostinho: somos perpetuamente acontece co às superexpostos imagens, interagimos com elas, mas se alguém nos pedisse para explicar o que é urna imagem, teríamos dificuldades de fornecer urna resposta. Poder-se-ia retrucar que existem duas razões para essa dificuldade � que a questão está mal colocacÍi. Por um lado, interrogar-se sobre o que é uma imagem seria ainda ignorar que � imagem tende a se di�serninar, declinar-se dela mesma em formas plurais, se desmultiplicar em um devir-fluxo que se sustentaria instan­ taneamente no Um. Por outro lado, perguntar o que é uma imagem retorna inevitavelmente a urna ontologia, a uma interrogação sobre seu ser. Ora, nada parece menos seguro do que o ser da imagem. O tríptico fotográfico de Retratos Fictícios, de Keith Cottingham (1992), nos dá a ver sucessivamente um, dois, depois três adolescentes, instalados sobre um fundo negro diante da câmera fotográfica (Fig. 1). Expostos à meio-corpo a uma luz fria, os bustos imóveis remetem à plás­ tica idealizante, uma vez que os olhares expressam uma aristocracia im­ passível. Esses rostos de cabelos lisos e traços regulares, quase andróginos, 7

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Figura 1 - Keith Cottingham, Sem titulo (triplo), 1992 Fotografia modificada. Série Retratos Fíctfcíos

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FILÕESTÉTICA

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Atraente ao olhar, as fotos de Cottingham só p0Je1n, no seu des­ locamento ínfimo, deixar sonhar aquele ou aquela que as contemplam. Superfícies impenetráveis, elas aspiram, entretanto, o n1ovin1ento do olho, forçando-o a procurar a origen1 da sua intranquilidade. Através da superexposição do grão, a materialidade da in1agem introduz areia nas engren�s do visual e cria un1 ten1po, o do olhar. Segundo > Roland �rthes (2003, p. 1134), esse é o instante preciso ein que a fotografi�fãzsubversiva, "não quando se assusta, repele, ou mesn10 estigmatiza, mas quando é pensativa". Na sua análise nas linhas finais da Sarrasine balzaquiana ("E a marquesa permanece pensativa"), Barthes (2003, p. 700-701) entrevê o esboço de uma indecisão suspensiva que, por sua vez,Jacques Ran--' ciêrex2009, p. 115-140) encontra na atitude pensativa dos adolescentes sonhadores fotografados por Rineke Dijkstra. Esta "pensatividade" ainda permanecerá relativa, por muito tempo só nomeará o estado de alma de um sujeito representado, em resumo, a pensatividade da imagem será, portanto, confundida com a pensatividade do sujeito da imagem. Ora, a "pensatividade" só desenvolve realmente sua força de subversão quando não realça mais o sujeito representado, mas quando se difunde e afeta tudo que a cerca. No espaço entre a imagem e o olhar que ela provoca, uma atmosfera pensativa se forma, um meio pensativo. Tal meio e tal espaço potencial, indeterminado ainda nas suas atualizações singulares, um meio de pensatividape precedendo todo pensamento e que, assim, "encerra o pensamento não pensado" (RANCIERE, 2009, p. 115 [2012, p. 103]). 1 Com força, as fotos de Cottingha1n lembram que, longe de ter anecido exterior ao pensamento ocidental, a imagem sempre perm esteve no coração do pensamento, suscitando nela uma exterioriza­ ção, uma saída de si. Operacionalizado em um projeto de apreensão compreensiva como representação, de esquema ou de clichê, a ima­ gem inevitavelmente arruína todo recentramento, no que ela expõe o pensamento como seu fora, no que ela carrega, para fora de si, a

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força de se expor ao que ela não pode ainda pensar e ao que há talvez de mais difícil a pensar, quer dizer, que o pensamento emerge ele mesmo de uma pensatividade sensível, de um sensível impensado porque inesgotável em sua exterioridade. A ambivalência fundamental ao olhar as imagens talvez se lance inteiran1ente nesta oscilação entre a denúncia dos limites da imagem e a operacionalização de seu ser-limitado, na ambiguidade entre o que se dá por finito (podendo, portanto, servir de suporte representativo ao que, de outra forma, se subtrai ao olhar) e isso que, entretanto, na sua finitude, se excede em permanência, não reconhecendo nunca os limites da sua própria razão. Daí este estranho paradoxo na atitude ao olhar a imagen1: reconhecendo que ela tem o poder de tocar o que está ausente>tornando presente aqu�i� que está dist-;nte·=-··o que levará Albertr(1992:·p. 131), em Da pictura, a compará-la à força da amizade-, trata-se precisamente de controlar e de inspecionar esse autoexcedente. Na Antiguidade, o que os detratores da imagem denunciavam a título de excesso, de sua hybrís, retorna aqui: essa pretensão de ser presente, de se apresentar no lugar daquilo que é representado, faz da imagem literalmente ffm "pretendente" do ser.

A imag em pensativa

Entre colchetes, referência à tradução brasileira, que reproduzo. RANCIERE, Jac­ ques. O espectador emancipado. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2012. (N.T.) 9

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A imagem pretendente

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O pretendente aqui não é nada além de um simulador. No lugar de se contentar de permanecer em seu lugar e de não ser aquilo que ele é, ele se faz simulacro, ele faz "como se" (ele é o simul dos latinos). À diferença do substituto que suplementa a ausência do original, o pretendente visa não somente a função do representante, mas pretende substituir o original, simulando o ser (DELEUZE, 1969, p. 292-307). Quando tentamos compreender as novas realidades visuais que nos cercam, é inútil apelar a uma tradição que, na sua ambivalência ao olhar as imagens, nem por isso deixou de produzir uma reflexão frequentemente significativa sobre elas. É por isso que descrever as revoluções tecnológicas - como a passagem do analógico ao digital - não necessariamente ajuda-nos a compreender isso que modifica a eficácia das imagens e não apenas mascara o que muito frequentemente ainda faz falta em um pensamento da imagem. Ora, as palavras que utilizamos, sem tomar muito cuidado, para nos referir a essas novas 10

EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARÊNCIA E A OPACIDADE

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FILÕESTÉTICA

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visuali dades, são resultado de un1a tradição que fez de tudo para man­ ter as i n1agens à distância. Essas novas visualidades são chan1adas de virtuais, de un1 lado porque sua realidade não repousa sobre nenhuma substância psíquica, n1as ainda porque elas participan1 de un1 virtus, de uma potência ou de uma eficácia que age sobre o espectador, que, depois de Platão, o pensamento tenta circunscrever. Diz-se ainda que as novas visualidades consisten1. em in1agens de síntese. Mas o que isso quer dizer? Un1a vez 111.ais, a distinção platônica se in1põe entre as imagens-cópias (eikónes) que a tudo representam, mas permanecem ainda separadas do representado, e as imagens-simulacro (eídola), qué se curvam, se apiedam e se confunden1 con1 o que elas presu111.em representar. No primeiro caso, os eikónes obtêm sua representatividade da autoridade que guardan1 com o representado em sua ausência, em seu lugar, sem colocar en1 questão o espaço; no segundo caso, os eídola, não contentes em sin1ular sua dependência com o representado, a ele substituem e tornam impossível toda distinção. Quando tal síntese ilícita acontece, impedindo de distinguir de direito os elementos que a cornpõe, se reúne uma contranatureza quimérica. Sobre esse pano de fundo, os Retratos Fictícios de Cottingha?Jodem convocar esses simulacros evocados por Platão: nenh�m ó p s escente real serviu aqui de modelo para o fotógrafo, os corpos adol imaculados são, na realidade, quimeras eletrônicas, mosaicos híbridos c ujas peças foram fabricadas a partir de esboços· vir�uais, a partir de máscaras de argila e de farrapos de pele ou de cabelos digitalizados, re­ sultado de centenas de horas de trabalho. Cottingham realiza, portanto, imagens "híbridas" que não enviam mais a nenhuma realidade iden­ tificável e consistem em pura aparência. Resultado de uma facultas fingendí que não revela mais a alma, mas os aparelhos em si mesmos, essas imagens são simulacros no sentido em que se apresentam como se fossem retratos, que pretendem, portanto, ser aquilo que nunca foram . . O caráter híbrido ou quimérico aqui faz par com uma hybris fundamen,, _ de ocup:::.r a imagem, um "excesso ", ou melhor, uma "pretensao t a1 d. um lugar para o qual não há retorno. Os debates sobre a imagem, novos ou antigos, são frequentemente debates em torno dos lugares e dos espaços aos quais atribuir às imagens. Por essa razão, os pensamentos da imagem raramente foram pensamentos a partir da imagem (ou segundo

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a imagem, para falar como Merleau-Ponty), mas consistiam antes em un1a inserção desse objeto incômodo e perturbador em uma ordem de saberes já estabelecido. Com frequência, o caráter proteiforn1e das imagens e sua força de deslocamento suscitou estratégias eficazes de reterritorialização, permitindo desarmar os conflitos em torno do "lugar" e corrigir essa pretensão. Paradoxalmente, a distância interna de toda imagem entre seu aparecer e aquilo que ela faz aparecer - dis­ tância que se poderia qualificar, com Gottfried Boehm, de "diferença icônica" - pode servir de pretexto aos mais ferozes iconoclastas, mas tambén1 a uma verdadeira iconofilia incondicional. Insistir sobre o fato de que a imagem que aparece é sempre '' menos que aquilo que ela torna visível, é insistir sobre sua autonomia irredutível e sua materialidade insuperável; insistir sobre o 1 ; fato de que aquilo que vemos em uma imagem é sempre mais que seu objeto físico, é concordar com uma legitimidade que vem de fora ao objeto ao qual fornecemos o sentido. Trata-se, portanto, de negar a eficácia das imagens ou, ao contrário, de defender sua função significante, se está diante de uma busca pela unívocidade das imagens, permitindo arranjá-las ou bem na ordem das coisas ou bem na orde1n dos significantes.

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O paradigma duplo da transparência e da opacidade

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Retomando a categorização que Arthur Danto (1981, p. 159) propõe para a arte, se poderia então distinguir entre as teorias da trans­ parência, de um lado, e as teorias da opacidade da imagem, de outro. Dizer que as imagens são "janelas abertas" sobre uma significação é tratá-las como simples "lembrancinhas", 2 transitividades cuja função de referência funciona melhor quanto mais sejam esquecidas na sua materialidade. Os críticos de uma tal semiologização da imagem insistiram sobre a irredutibilidade e a inesgotável materialidade das imagens, não a remetendo mais a nenhum referente e só expondo seu ser bruto, como nos objetos espec{jicos de Donald Judd. Se q�isermos reformular essas duas estratégias que reintegram as imagens em termos

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12 EM MANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARÊNCIA E A OPACIDADE

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O termo francês éfaire-part e designa pequenos brindes distribuídos ao final de uma festa de casamento, aniversário, etc. (N.T.) FILÕESTÉTICA

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linguísticos, respectivamente, na orden1 dos signos e na orden1 das coisas, se poderia dizer que as teorias da transparência consideram que a proposição/irnagem/ é un1a proposição em dois tern1os, enquanto que as teorias da opacidade assumem que a proposição/imagem/ é un1a proposição em un1 único termo. Para n1antê-las en1 transparência, é preciso que toda inugem seja sen1pre i1nagen1 de alguma coisa, é por­ tanto se1npre um x in1agem. de un1 y (e1n termos formais, a proposição/ im.age1n/ deveria ser escrita "in1agem (x,y)"). Para ton1á-las como o contrário da opacidade, o ser-irr1agem coincide com seu ser-aí e não há necessidade de um termo exterior instituinte da "imagicidade"3 (aqui, a proposição/i1nagen1/ se escreve "imagem (x)"). Essas duas posições são, no entanto, menos antinômicas do que parecem e só se pode observar que, na tradição, uma co1nbinação tão in1provável quanto eficaz se estabeleceu entre elas. Contra a afinnação de que as imagens têm um poder, se insistirá sobre o seu caráter material, o qual em seguida se poderá denunciar rapidamente a impotência ("tên1 uma boca, mas não falan1, são dotadas de olhos, mas não veem"-[Salmo 115]). Sobre a outra vertente, se insistirá sobre o fato de que não há lugar para travestir a imagem com propriedades mágicas, visto que se trata de um certo tipo de simbolização da qual se poderá em seguida descrever a estrutura referencial. A imagem - a "verdadeira", o eíkón, e não o ídolo que se toma por uma "presença real" - remete à coisa representada, desviando a atenção de sua pró­ pria materialidade. Daí toda uma semiologia da ima�m, de Tomás de Aquino a Umberto Eco, que visa demonstrar que as idolatrias, antigas e modernas, apenas compreenderam mal que a imagem revela simplesmente un1 sistema de simbolização, entre outros. O quadro do castelo de Marlborough pintado por John Constable fixa menos os traços comuns com o castelo real de Marlborough - com o qual, entretanto, se diz semelhante - que com outro quadro representando qualquer outro sujeito. A identificação não procederia, portanto, das qualidades intrínsecas da imagem, mas de sua inscrição em uma rede de significantes (RÉCANATI, 1979, p. 84-87). 3

No original, imagéité, neologismo usado por Jacques Ranciêre em Le destin des images, aqui publicado como O destino das imagens (Contraponto, 2012, p. 20). A tradutora Mônica Costa Netto optou por manter o termo no original. (N.T.)

Tal subordinação da imagem ao discurso não se manteve incontestada. De Félibien à minimal art, sublinhou-se a dimensão física irredutível das obras, essa profundidade da cor, todas essas manchas, esses toques e traços propriamente "insignificantes" e que formam, no entanto, a condição sine qua non de toda obra (JuNOD, 1976). As "opacidades da pintura", para falar como Louis Marin (2005, p. 202), resistem a toda verbalização sem resto. Acidentes da matéria, vestígios do gesto que o abrirá, essas concretudes físicas reconduzem o olhar inelutavelmente em direção ao tecido de que m - anência está resumida são feitas as imagens. Uma tal e�s� � "what you see is what na fórmula programática de :Fr;�k Stella: you see" - inútil procurar u�sent-i-d-0- fl-S ondido, de fato, se a obra coincide com a sua identidade material. Pode-se, todavia, perguntar se uma tal estética está realmente alforriada da posição que ela pretende combater e se ela não vem con­ firmar, de forma ainda mais dissimulada, a dicotomia entre matéria e forma. Pode-se realmente alcançar o nível de uma matéria nua e indecifrável? Existe um punctun puro, afastado de todo studium? Nessa contra-história do discurso da imagem na época clássica, Louis Marin não parou de insistir sobre o fato de que opacidade e transparência são, en1 sua oposição, religadas por uma combinação irredutível. Janela aberta, a pintura da representação permite a visibilidade, corpo opaco, ela garante a lisibilidade. O retrato do rei constituirá, então, essa figura na qual o envio convencionado e a presença real se reen­ contram em um ato eucarístico, em que a matéria autentica o signo, e o signo inversamente garante o milagre, "opacidade e transparência reconciliadas - ao menos idealmente - em uma teologia do ato real" (MARIN, 2005, p. 202). A aliança subterrânea entre uma ontologia do objeto e uma semiologia da referência permite operacionalizar a imagem e neutralizar o escândalo inicial. Esse fenômeno que não se deixa pensar nem como um com aquilo que dá a ver nem como fundamentalmente outro pode ser assim reabsorvido no duplo registro unificante da ontologia e diferenciador da semiologia. A imagem será pensada sucessivan1ente na transitividade transparente e na sua intransitividade opaca, sucessivamente como janela e como superficie impenetrável, con10 simples alegoria ("állos agoreúein", diz o Outro) e como pura tautologia ("tautó légein", diz o Mesmo). 14

EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARÊNCIA E A OPACIDADE

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FILÕESTÉTICA

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um sobressalto, um pôr em movimento do olhar: uma cinestesia que precisa ser tomada ao pé da letra. Operadora de eclosão ou ainda de abertura, a imagem introduz um excedente não reintegrável na ordem do saber e provoca, a partir de dentro, uma exposição ao fora. Sua força de abertura provém talvez do fato de que ela não pode, em si mesma, se retirar em direção a nenhum regime de interioridade: na exposição de sua nudez, ela dá a ver que só existe dentro e por esse espaço onde ela se precede perpetuamente e onde igualmente ela precede todo olhar antecipador. Isso que a imagem dá a pensar se situa talvez lá, nesta iminência que não pertence a ninguém, alguma coisa que se tem diante (em todos os sentidos da palavra): ne1n aqui nem em outro lugar, nem presente nem ausente, n1as iminente. Quando se diz que as imagens são suspensas, é preciso entender essa constatação literalmente: o que elas dão a ver está suspenso, sem que essa suspensão possa ser objeto de uma substi­ tuição sintética, o que aparece em imagem resiste à generalização, mas excede sempre, no seu aparecer a um espectador, sua simples redução ao artefato individual. Seria preciso, sem dúvida, falar das imagens em termos de "suspen�e" (DÉOTTE, 1993): paradoxo de um objeto que se dá a ver em uma única e rápida olhada, nos limites fisicos do objeto pendurado na parede, sem, no entanto, jamais ser exaustivo no instante. Ao demandar serem percorridas, elas geram uma espera - um suspense cujo desenrolar é, no entanto, infinitamente referido, adiado, suspenso, o fim da imagem não podendo ser reduzido a suas bordas materiais. Entrelaçamentos temporais, quiasmas de olhares, as imagens não saberiam propriamente ser localizadas nem aqui nem lá, mas constituem precisamente esse entre que mantém a relação. Como tais, as imagens requerem uma outra forma de pensar que suspenderia suas certezas e aceitaria se expor às dimensões de não saber que implica toda experiência imaginal.

O pensamento exposto A polarização da imagen1 que se opera através do duplo para­ 1a dign da transparência e da opacidade permite un1 exorcismo quase perfeito da inquietude suscitada pelas imagens. Assim, dissociada eJ11 dois terrenos separados, a imagen1 não coloca tanto un1 proble­ teórico, n1as formará un1 objeto a mais para um pensan1ento já nstituído. Con1 Georges Didi-Hubern1an (1990, p. 9-17), pode-se o c statar que un1 "ton1 de certeza" reina, recentemente corno hoje, on c ropósito das ini.agens, não apenas entre seus usuários profanos, a p mas ainda de maneira n1ais forte entre os que se dizem especialistas. Tratando a iinagen1 con10 uma individualidade que se poderá ins­ c rever em u1na genealogia geral e reduzindo todo conhecimento a urn reconhecimento, é a superveniência singular de uma imagem que se vê recoberta e1n sua força irruptiva que se encontra anestesiada. Ao reconduzir assim as imagens visíveis às imagens lisíveis e, portanto, inteligíveis, só se pode "encerrar muito rápido sua capacidade de provocar, de abrir un1 pensamento" (D101-HuBERMAN, 1998, p. 10) Ora, esse saber das in1agens apenas mascara imperfeitamente sua experiência, na experiência de uma imagem que nos interpela, estamos antes de tudo desamparados e despossuídos de nossa segurança (ao complementar Cézanne, Merleau-Ponty [1964, p. 156] expressava alguma coisa dessa ordem quando sugeria que, com a pintura, não podemos jamais nos sentir em casa como podemos coµi� uagem). O adolescente colocado à esquerda na fotografia de(cottingham e cujo olhar aponta, flecha em direção ao espectador e nâo arga mais os olhos se inscreve na tradição dessas figurae cunclae videntiu evocadas a partir de Nicolau de Cusa (1986 [1453]), esse olhar proveniente do quadro e no qual o espectador não pode se subtrair, mesmo se des­ locando. Quando Paul Valéry, Walter Benjamin ou Lacan retomam essa evocação sobre nosso ser-olhado pelas imagens, eles ressaltam, em sintonia, que antes de toda demanda de interpretação, esse olhar marca um pedido de atenção, uma demanda que é a do direito de um olhar de volta (D101-HUBERMAN, 1992; ELKINS, 1997). É porque ela se dá na simultaneidade de um golpe de vista, a imagem não saberia se reduzir - apesar do que diz Lessing - a uma visão sinóptica. A imagem exige, ao contrário, sempre um lapso de tempo e um lapso no tempo, l

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EMMANUEL ALLOA ENTRE A TRANSPARÊNCIA E A OPACIDADE

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Esta coletânea é resultado de um seminário realizado no Col­ lege Internacional de Philosophie em 2007 e 2008, enriquecido em seguida por alguns textos que testemu nham ao mesmo tempo a incidência da questão da imagem nos saberes contemporâneos e a variedade de abordagens. A heterogeneidade dos objetos e dos olhares 16

FILÕESTÉTICA

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pron:der:1111 princ1p.tl1m:11te dl· e~buçm, croquis e outros esquema,

r:l\cunhado :i 111argl·111 dm tl:Xto,. Em seu Cll!laio programático ,obre·" v1d.1~ l. m de.\ejos di11111 . A experiência não se fàz a to do mo mento. É suficiente olhar o reflexo do sol no vidro ou ainda pensar na experiência que fazemos cada vez que passa mos diante de um espelho. Se o espelho forneceu du ra nte séculos a experiência fu ndamental de toda teoria do conhecimento, não é certamente porque ele reproduz o desdobramento narcísico da consciência entre o eu-sttjeito e eu-objeto. Ante:., i:.so Le111 J ver com o fato de que, no espelho, o sujeito não se to rna objeto de si mesmo, mas ele se transforma em alguma coisa de puramente sensível, alg uma coisa cuja única propriedade será a de ser sensível, uma pura imagem sem corpo e sem consciência. N o espelho, nos to rnamos alguma coisa que não conhece e não vê, mas é perfeitamente sensível, ou ainda, o sensível por excelência. Lo nge de encontrar o cerne da percepção, gozamos de um estado em que devimos do sensível sem carne e sem pensamento, ser puro do percepto sem órgãos e sem consciência. N esse estado, no fu ndo, cedemm a vez de ser os sujeitos pensantes, assim como de ser os o bjetos que ocupam e vivem na matéria. Perdemos nossos corpos que 80

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permanecem diante e.lo espelho, mas os distanciamos tam bém de nossa .1lma e de nossa consciência, mcapaz de não mais existir através do espelho. A experiência do espelho é, po rtanto, a experiência de um desdobramento de duas esferas: de um lad o, a esfera do sujeito e do objeto - em per feita coincidência , de outro lado, a esfera das un age ns, separada, exilad a das duas outras ao mesmo tempo e com a mesma intensidadt:. D e um lado, há o sujeito q ue vê e é visco (que é corpo e alma) e de outra, há nós, tanto simples visibilidade em ato qua nto puro ser do sensível. N o espelho, assim, a imagem , o sensível, se dá a conhecer como isso que se o põe fro ntalmente aos corpos e aos sujeitos, isso que é ao mesmo tempo exterio r ao corpo do qual ela é image m e ao sujeito ao qual ela permite pensa r. O espelho demo nst ra, po rta nto, que a visibilidade de uma coisa é rca/111c11te separável da coisa mesma e do sujeito do conhecimento . EsLá-se diante de sua própria visibilidade, de sua pró pria im agem , de si mesmo como ser pura mente sensível, mas essa imagem ex iste e111 olltro /11,{?ar que não é aquele onde se encontra o sujeito que conhece e o o bjeto do qual ele é a visibilidade. 3. A ex periência do espelho nos permite também definir com mais precisão o que é uma image m e, po rtanto, o que é o sensível. O q ue se passa quando nos o lhamos no espelho? Esse ato muito simples nos ensina também alg uma coisa de muito profundo. N ão é po r acaso, aliás, que se vem evocar o exílio. Se é verdade que nos encontramos no espelho como imagem pura, como puro ser sensível, nossa forma existe, no enta nto, fora de nós, fora de nosso corpo e de nossa alma. Podemos, po rtanto , concluir que a image m (o sensível) não é nada além da existência de uma coisa fora do seu lugar pró prio. Toda forma e toda coisa vindo a existir fora de seu pró prio lugar e torn,rndo-se imagem . N ossa forma to rn,1-se imagem quando ela to rna-se capaz de viver para além de nós, pa ra além de nossa alma e para além de nosso corpo, m as sem se to rnar um o ut ro corpo , quando ela se torna capaz de viver sobre ,1 ~uperfície da, o utras coisas. A imagem é a astúcia que to m,1 as fo rmas para fugir da dialética entre almas e corpos, entre espírito e m atéria: como s.iir das almas e dos corpos sem Dev ir um o utro corpo, e antes de entrar em uma consciência EMANUELE COCCIA FISICA DO SENSivEL

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ou nas almas (e de se transformar em percepções atuais). É como se houvesse para toda forma uma vida depois do corpo, uma vida que não é ainda uma vida espiritual porque ela acontecerá antes de entrar no reino dos espíritos. A imagem vive sempre depois dos corpos de que da foi forma, mas antes do momento de ser percebida. É nesse ponto preciso do lugar e ,us.,_~rru ,lrn,p,irrrid,u. 1980 2002 Casa próx11na JO T,gre

Até a época contemporâ nea, a ideia do muxarabi marcou também o estilo das casas da po pulação árabe rural. Em uma expressiva série de fotografias feita po r Ursula Schulz-D o rnburg, em 1980, que rematiza uma paisagem cultural atualmente exti nta da região dos Dois

• O Tigre e o Eufratc~. (N.T.)

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HANS BELTING AJANELA E O MUXARABI

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Numa exposição realizada em Lo ndres, cm 2fl03, dedicada ,10 tema do véu, a artista H enna Nadeem, residente na Ing laterra, apresentou fotos de expressão singular. fasas imagens capturam a vista sobre o bairro londrino llrick Lane, domicílio da artista, sempre através do filtro de uma espécie de mu xarab1 (Fig. 8). Com asso, as ruas e o mundo representado esquivam-,e por completo a um olhar direto. Nossos olhos pe rmanecem prisioneiros da tela sobreposta , cujas figuras geom étricas nos impactam mais intensam ente que tudo o que aparece atrás, de modo indistinto e turvo. A artista instaura assim um véu sobre as ruas de Londres, que, de alguma mane ira, ela obser va com os o lhos de sua cultura de origem. Véu e tela reme te m-se aqui reciprocamente. Ao mesmo tempo, nessa 1.'stratégia artística contemporânea amda subja z a memória de uma cultura vi m a ) cm que a gcome cna, em diá logo com a luz, assumia uma presença mais potente do que as apa rições contingentes das coisas (BA11 LY; TAwAnnos, 2003, p. 25).

P,1r.1 rachy, o modern1sc,1 d,1 arquitetura egípcta, cada naltur,1 é "uma reação específica do homem ,1 seu meio ,rn1b1cnte. Ela testemunha 0 esforço constantemente renov,1do para cnconcr,1r novas respostas J

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neccss1d,1dcs foicas e a nmsos desejos cspi rituais" (S 11111 , 1997, p. 84ss.). Nos,a mudança de pcrspcl. tlVa encn: o muxarab1 e ,1 Jancla ot itkntal pode assim somente ter por sentido compreender melhor ,unbas as culturas e suas espcc1fic1d.1des, cm vez de subl111har uma v,:z m,m O que a, separa. l)iforenc1ar é também uma ocasião de interpretar. Contudo, essa pomb1lidade pressupõe que não se considere a cultura ocidental como u111versal e que não ,e reduza outra, culcur,1s a um sunple, e,tatuto local. Vendo dessa perspecnva, ,1 janela ocid:ntal Í: igualmente um fenômeno local. O quadro moderno presta-se a interpretação dess,1 janel,1, uma vez que ela enconcrou nele o seu t·mble1~1a. De fato, 0 quadro fez do olhar através da Janela o seu ti:ma-chave: e o olhar cuno,o que explora o mundo em bmca de 1m,1gem. O muxarab,, ,10 concr.1n o, doma o olhar e o punfica de toda imagem wmívd do mundo exterior, por meio de sua geometria rigorosa da luz interior. Em ,imbas as culturas, exterior e interior estabelecem relações tão divcrs,1s quanto .iqucb, entre o olhar e a luz. É ,:vidente que, por trás dl'>sO, existem duas diferentes VI\Ões de mundo, que também atribuem um p,lpel diference ao sujeito. Num dos usos, o sujeito torna-se at1vo.pel_o olhar, enquanto no outro, ele vivencia a luz - t.:, porlanto, uma potenna suprapessoal como um espec.kulo lÓ,1111co. Nes~e -;cm~do, não ,omt·ntc a perspl'CllVJ,JUntamente com a mec.1fora d,1Janela. e uma forma \lmbólica da cultura oc,dencal, mas t,unbém o muxarabt, CUJO tema central í: 0 fenômeno da luz, í: uma form,1 s1111bólica da cu ltura árabe.

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134 FILÕESTETICA

HANS BELTING 4 14NELA E O MUXARABI

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HANS BELTING A JANEL-' E O MUXARABI

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Mãos pensantes - considerações sobre a arte da imagem nas ciências naturais Horst Bredekamp Traduzido do alemão por Fernando Fragozo

O problema da ilustração A revista at11re c.ie 1953 Lc m ao todo muito po ucas ilustrações, dentre as quais se encontra o enig m ático diagrama da dupla hélice (W ATSON; C HICK, 1953) (Fig. 1). A ascese vi uai da revista é também notável pelo fa to de que se evito u minucio amente, po r meio de uma hábil d isposição, não colocar o artigo de W atson e C rick em apenas uma página. em auto rização, as contribuições transbo rdam , mesmo e , como é o caso aqui , elas apenas transbo rdam três linhas. N os últimos 20 anos, essa situação mudou comideravelmente, de ta l modo que a a111re solicitou ao hi to riado r da arte M artin Kemp que analisas e os meios v isuais das ciências naturais cm uma série de artigos. Como resultado, ficou confirmado que as publ icações das ciências naturais, o utro ra marcadas pela ética pro testante, alcançaram um esplendo r de cores e uma elegância dig nos de uma revista de arte ( K EM I', 2003).

Esse processo levou, no ano passado, a uma mudança na chamada pública da revista, no sentido de proceder com cuid ado no uso d as imagens, atentando para o efeito de rea l e evitando toda dimensão supérflua (Ü TTINO, 2003). A respeito das imagens fa ntasiosas cal qual a premiada imagem da nanoscopia de um assim denom inado , enquanto que os três traços contínuos indicam as evoluções reconstituíveis das espécie, a1nd,1 vivas dos três domínios da vida, a saber, a água, a terra e o ar. As falhas logo abaixo já exibem uma ramificação indica ndo, no pontilhado direcionado para a esquerda, uma lmhagem hipotética (DARW IN, 1987, Fig. 27, p. 177).' 2 Os pontos assinabm também domínios das espécies desaparecidas registradas pelos fósseis. Ambo, os esboços são lastimáveis, mas abrigam um significado 111estimávd para a história da ciência e da cultura. Pela primeira vez, eles formu lam a concepção de uma árvore da natureza e da vida, não como um plano pn:v1amence dado, mas como um processo evolutivo se de-.dobrando ao longo do tempo. No entanto, se os esboços fazem pensar nas estruturas de uma árvore, ele, não correspondem, contudo, a nenhum modelo arbóreo, mas ,tos contornos de um coral: "The tree of hfc should perhaps be calkd thc coral oflife" (DARWIN, 1987, Fig. 25, p. 177). Com o coral,

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• O Jc,cnho bu,,.1 formulJr .1 a~ceml~nua Jo, p.í~,aro, que, l"Ontran.1mcntc .1 Jm pl'l'l''· é rnmplc,J Vn Gruha ( ls, o que ajuda a valorizá-los, por exemplo, no mercado c.le arte. Enquanto sua pesquisa ou seus "ensaios" nunca forem concluídos, mesmo se, ao seu redor, 110 entusiasmo endógeno da galena de arte, todo mundo quer te convencer de que você fez uma "obra de arte", ou seja, um objeto acabado, portanto suscetível de encrar nos c1rcu1tos de troca. Daí o mal-entend,do que, no mundo da arte,

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GEORGES 0101-HUBERMAN DEVOLVER UMA1"4AGEM

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ameaça H arun Farocki como um modesto pesqui ~ad o r de imagens, e não um virtuoso com seus achados. Em A pnrte 111alditn, Georges Bataille (1976, p. 439) julgava assim os limites fundamentais que o mundo capitalista. diferentemente do mundo comunista, atribuía à "soberania do artista": " N a sociedade soviética, o escritor ou o artista estão a serviço dos dirigentes [...]. O mundo burg uês que, de uma maneira fundamental, é, ainda m ais que o comunismo, fechad o à soberan ia decisória, acolhe, é verdade, o escrito r o u o artista soberano, mas sob a condição de ignorá-lo". Forma de dizer que é possível, no contexto do museu, "amar", "gostar" como obra, de uma mo ntagem de Farocki, sem tirar dela as consequências demo nstrad a~ po r seu trnbn/Jio. Este é, sem dúvida, um po nto sobre o qual Farocki - depo is de ter retido a inestimável lição de A dinlhica do esclareci111e11to - bifurcará sensivelmente a via traçada po r Ado rno em sua Teoria Estética. O filósofo, sabe-se, defendia a "g rande arte autôno ma" naquilo que "ela critica a sociedade pelo simples fato de ela existir" (ADORNO, 1974, p. 287). Ele via com m aus olhos esse "entrelaçamento das artes" cujo "fenô meno originário" ele reconhecia no " princípio de montagem" e a consequência, sem dúvida nefasta, um recobrimento recíproco da realidade estética e de inúmeras realidades extraestéticas que o cercam. Quanto mais um gênero deixa entrar em si isso que seu co11ti111111111 imanente não se contém nele mesmo, mas ele participa do que lhe é estranho, d isso que é a ordem da coisa, do luga r de imitação. Ele se torna virtualmente uma coisa entre as coisas ele se torna po rtanto isso que não sabemos o que é (ADORNO, 2002, p. 70).

Confro ntado po r essa situação, entre a desert ificação dos c111emas de "ensaio" e a insolente acolhida das galerias "de arte", H arun Farocki tenta, da maneira que vej o, manter sua ética de pesqu'.sador. Ele calvez g uarde na memó ria o que, em 1929, W ~lter..BenJamtn,: refletindo j ustamente sobre o lugar do artista - e o arm ta sonhador 11 por excelência, o surrealista - na crítica d a, socie~ade, no mc::ava u~ a orga 11 iznção do pessimismo pelas i111age11s. Ate considerar q ue o a~m~a não exclui, sem interromper seu trabalho, 111terro mper sua propna carreira artística (com o uma boa montagem interrompe o curso normal das coisas): O rganizar O pessimismo sig nifica simplcsmen~e extrair a metáfora moral da esfera da política, e:: descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem . Mas e~se espaço da imagem não pode de modo algum ser medido de forma contemplati va. {...l Na verdade, trata-se muito menos de:: ~a~e.~ do artista de origem burguesa um mestre em ··arte proletarta que de fazê-lo funcionar, mesmo ao preço de sua efi_các1a artística, em lugares importantes como desse espaço de imagem. Não seria a interrupção de sua "carreira artísuca" uma parte1 essencial dessa função? (BENJAMIN, 1929, p. 133 [1993, P· 341). Nesses anos - 1929, 1930, os mesmos da grande cr ise social e econô mica no mundo -, Georgc::s Bataille descrevia na sua revista Docr1melllS a maneira, aí incluída a artística, de conjurar tal pessimismo:

o jogo do ho mem

e de sua própna podridão continua nas condições mais mornas sem que um jamais tenha a coragem de confrontar O outro. Parece que nunca poderemos nos encontrar d iante da imagem grand iosa de uma decomposição cujo risco intervém a cada sopro e, no entanto, o sentido mesmo de un~a vida que prc::fcrimos, não sabemos por que, a ~ma outra_ cuJ~ respiração poderia nos fazer sobreviver. Dessa imagem nao "º conhecemos a forma negativa, os sabonetes, as escovas Jc:: dente e todos os produtos farmacêuucos cuja acumulação nos pc::rmite

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Ado rno não estava propriamente "errado" ao dizê-lo, certamente. O que ele diz de B eckett, po r exemplo, g uarda aos nossos olhos toda sua força e pertinência. M as as condições histó ricas mudaram , no tadamente no plano das relações institucio nais ent re a arte e asociedade. N ão há mais lugar. no nosso mudo contempo râneo, de o por, tão simplesmente quamo fez Ado rno, a "grande arte autô no ma e as "indú~trias cultu rais". A g rande arte torno u-se ela mesma uma grande indústna cultural, até o " desgosto" que isso pode, de um mo do o u de o utro, terminar por inspirar (BROSSAT, 2008).

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