Pelos Meandros da Etnia ; Etnias, Tribalismos e Estado em África

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Pelos Meandros da Etnia ; Etnias, Tribalismos e Estado em África

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ELOS MEANDROS ETNIAS, T R I B A L I S M O E ESTADO EM ÁFRICA

JEAN-LOUP AMSELLE e ELIKIA M ' 9 0 K 0 L 0 (COORD.)

edições pedago

Copyright © 2005, La Découvert, segunda edição Título Original: Au couer de l'ethnie. Ethnies, tribalisme et État en Afrique © desta edição Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto Título: Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África Coordenadores: Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo Colecção: Reler África Coordenador da Colecção: Victor Kajibanga Tradução: Narrativa Traçada Revisão do Texto: Sílvia Neto Design e Paginação: Márcia Pires Impressão e Acabamento: Cafilesa, Soluções Gráficas ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 3 2 - 5 Depósito Legal: 3 7 3 1 0 5 / 1 4

Abril de 2 0 1 4 A presente publicação é uma coedição das Edições Pedago e das Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola. Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição reservados por EDIÇÕES MULEMBA

ELOS MEANDROS

ETNIA

Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto Rua Ho Chi Minh, 56 Caixa Postal 1649 LUANDA-ANGOLA

ETNIAS. T R I B A L I S M O E ESTADO EM ÁFRICA

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índice Prefácio à segunda edição Pelos Meandros da Etnia

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revisitado

Introdução 19. 22 Etnias 6 espaços: para uma antropologia topológica 23. 54 Jean-Loup Amselle Os bété: uma criação colonial 55.86 Jean-Pierre Dozen Cada qual com o seu bambara 87.123 Jean Bazin Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi 125.157 Jean-Pierre Chrétien Conjunturas étnicas no Ruanda 159.174 Claudine Vidal O «separatismo catanguês» 175. 209 Elikia M'Bokolo

Prefácio à segunda edição Pelos Meandros da Etnia revisitado No preciso momento em que abraçámos um projecto orientado para a desconstrução da etnia, contávamos com as obras de dois precursores, P. Mercier e F. Barth, cujas análises eram consentâneas com um conjunto de ideias provenientes da antropologia. No seu estudo dedicado aos somba do Norte do Benim, P. Mercier ( 1 9 6 8 ) constatara que a definição clássica de «etnia» não era aplicável ao grupo em questão. Na esteira da tradição anglo-saxónica e, em particular, dos trabalhos de M. Gluckman e S. F. Nadei, P Mercier colocava a tónica na historicidade da etnia identificando uma diferença fundamental entre a etnicidade do período pré-colonial e aquela da época colonial. Num estudo tornado clássico, F Barth (1969), por seu turno, privilegiou uma abordagem centrada na travessia de uma pluralidade de grupos por uma «fronteira», considerando-a, por conseguinte, o verdadeiro objecto da antropologia. Munidos desse arsenal teórico, mergulhámos num labor de desmontagem da noção de etnia. No início da década de 1980, muitos de nós estavam saturados da vulgata jornalística que consistia, e consiste sempre, em dar conta de um determinado acontecimento decorrido no continente africano como sendo da ordem de um «conflito tribal» ou de uma «luta étnica», remetendo para uma espécie de selvajaria medular, apenas suspensa durante o breve período da colonização europeia. Com efeito, se, no imaginário jornalístico, o mundo árabe corresponde à esfera do integralismo e a índia à do sistema de castas, o continente africano é, por excelência, a terra de eleição dos antagonismos étnicos. Atente-se, por exemplo, no tratamento mediático e na capitalização política dos conflitos que se verificaram, ou que se verificam hoje em dia, na Libéria, na Serra Leoa, no Ruanda, no Burundi e no Congo. No nosso entender, não se tratava de demonstrar a inexistência das etnias em África - o que nos foi censurado - mas antes o facto de as etnias actuais, as categorias que balizam a reflexão sobre os actores sociais, constituírem categorias históricas. Com o intuito de provar a pertinência da presente abordagem, basta pensar no que sucedeu na Libéria há

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alguns anos. À semelhança de vários outros países africanos afectados pelas lutas tribais, a situação liberiana vinha, aparentemente, confirmar as nossas proposições. De facto, nesse país, o conflito entre o governo de Samuel Doe, por um lado, e as forças de Charles Taylor e Prince Johnson, por outro, parecia cingir-se a um confronto entre as etnias krahn e mandingo, por um lado, e as restantes etnias da Libéria, por outro. Ora, o termo «mandingo» não remete para uma etnia específica, designando, pelo contrário, o conjunto dos comerciantes muçulmanos, tal como certos jornalistas se viram forçados a reconhecer antes de ficarem submersos na vaga etnicista. Tendo em conta o campo semântico dos termos «mandingo», «mandingue» ou «malinké», afigura-se evidente que a acepção do termo «mandingo» na Libéria corresponde apenas a um dos sentidos possíveis dessa categoria, o qual é efectivamente dotado de um valor performativo. Por conseguinte, na nossa perspectiva, tratava-se de colocar o construtivismo em primeiro plano, em detrimento do primordialismo. Ao demonstrar a impossibilidade de atribuir um único sentido a um dado etnónimo, sublinhávamos a relatividade das pertenças étnicas mas sem recusar aos indivíduos o direito de reivindicar a identidade da sua preferência. Eis o resultado desse longo trabalho colectivo encetado no início dos anos 80 e dado à estampa em 1985, o qual é agora reeditado. Pelos Meandros da Etnia causou, desde logo, algum brado, servindo de tema para debates tanto mais apaixonantes quanto a obra era compreendida erroneamente. Publicada logo após o arquejo dos movimentos regionalistas da década de 1970, assumia-se como um ataque frontal a determinadas evidências do pronto-a-pensar da época, manifestadas, em particular, no movimento ecológico-esquerdista. Todavia, também minava os fundamentos de uma antropologia em risco de perder o seu quadro analítico privilegiado: a etnia. Se a etnia não existe, afirmavam implicitamente os antropólogos, o que nos resta para estudar? Se não dispomos de «sujeitos históricos», consideravam, por outro lado, os historiadores, como veicular as grandes narrativas do continente africano? Ora, o nosso propósito prendia-se com a modificação do modo de olhar para o objecto antropológico ou histórico, e não propriamente com a sua supressão. Aos olhos dos colaboradores do presente livro, afigurava-se notório que a antropologia francesa do pós-guerra, por conta do ascendente do estruturalismo, atribuíra ao nome do grupo estudado - ao etnónimo - o estatuto de referente estável ao passo que a socio-linguística e a pragmática, cujo desenvolvimento se processava à custa da linguística estrutural, davam primazia à instabilidade socio-histórica desse mesmo referente. A focalização sobre as «cadeias de sociedades», a «economia-mundo» africana pré-colonial e os «espaços coloniais», a importância conferida

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à distinção entre «sociedades englobantes» e «sociedades englobadas», assim como a ênfase concedida ao carácter performativo dos etnónimos delineavam os contornos de uma antropologia diferente daquela que encabeçava o panorama francês. Mais do que encarar as etnias como universos fechados e paralelos, os sistemas políticos pré-coloniais como entidades claramente separadas, as concepções religiosas como mundos devidamente circunscritos, os tipos de economia como regimes distintos, decidimos estudar as inter-relações, as imbricações e os entrelaçamentos, indo assim ao encontro das concepções de I. Kopytoff (1987) que, por seu turno, desenvolveu uma análise destacando as relações «centro-periferia» e a «fronteira» enquanto matriz das formações políticas africanas.

A etnia: uma invenção colonial? A problemática construtivista da etnia é indissociável da questão da «reapropriação», susceptível de ser definida como o fenómeno de retroacção {feed back) dos enunciados «hécticos» sobre os próprios actores sociais. Nesse sentido, refere-se à produção das identidades locais a partir daquilo que V. Y. Mudimbe (1988) apelidou de «acervo colonial» e aplica-se, em particular, ao carácter colonial das categorias étnicas que, como é sabido, constitui uma das ideias basilares de Pelos Meandros da Etnia. De acordo com essa perspectiva, o modo como os nativos se vêem a si próprios relacionar-se-ia com os ecos dos relatos da exploração e da conquista, bem como dos textos etnológicos coloniais e pós-coloniais que versam sobre a sua consciência de si próprios. De um modo geral, essa reapropriação insere-se no quadro mais vasto das ligações entre a escrita e a oralidade. Com efeito, nas «culturas orais», a propagação da escrita autentica as pretensões dos actores e, em certa medida, santifica as relações sociais. Nesse aspecto, ter-se-á reconhecido os estudos de J. Goody (1979) e, em concomitância, as respectivas limitações. Nas sociedades africanas que, desde há vários séculos, estão em contacto com a escrita e, em particular, com uma literatura árabe transmissora das representações oriundas do Antigo Testamento, como garantir que os materiais de campo recolhidos pelo etnólogo ou pelo historiador não comportam o rasto de concepções importadas antes da conquista colonial? A título exemplificativo, os antropólogos apresentam como marca cultural própria de várias sociedades africanas o modelo que opõe a gente do poder à gente da terra. Talvez seja possível conceber esse modelo como o produto da integração do conjunto dessas formações políticas numa koiné que inclui o Norte de África. O recurso contumaz à geomancia obedece, sem dúvida, ao mesmo princípio.

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Uma reflexão dessa natureza acarreta duas consequências. Em primeiro lugar, a importância atribuída à especificidade étnica e ao comparativismo que a mesma suscita conduz à obliteração desse fenómeno de englobamento. Em segundo lugar, é possível que a reapropriação e a reaplicação - sobre as quais os historiadores chamam a atenção dos restantes especialistas em ciências sociais e as quais começam a abalar a confiança dos antropólogos - sejam identificáveis com um cruzamento entre um «já existente» incluído num conjunto que transcende largamente a sociedade local estudada, e uma literatura importada. Por exemplo, no domínio da antropologia política de África, as teorias «locais» do poder não se limitariam a uma mera criação colonial resultando, ao invés, de uma harmonia entre o binómio gente do poder/gente da terra - um binómio introduzido, ou não, pelo islamismo e pela teoria colonial da conquista. Por conseguinte, a questão sobre se a importação do lugar-comum omnipresente da historiografia francesa - que estabelece uma dicotomia entre os francos (gente do poder] e os gauleses [gente da terra) -, pela acção dos missionários belgas no Ruanda, contribuiu para um reforço das categorias locais tutsi e hútu atribuindo-lhes uma significação étnica exclusiva, reveste-se de interesse (Pranche, 1995]. Assim, a reapropriação não pode operar-se sobre uma tabula rasa: de facto, é necessário pressupor a existência de uma base que encerre, em linhas gerais, as mesmas características que os elementos recém-acrescentados à estrutura para que o arraigamento seja frutífero. Do mesmo modo, a resposta favorável de populações outrora desprovidas de Estado à imagem que lhes é atribuída pelos próprios colonizadores, deve-se inequivocamente ao facto de que essas já estavam inseridas, ou se inseriam a si próprias, numa rede de relações constituída, entre outros elementos, pelo Estado, próximo ou distante. Com efeito, em África, e muito antes da colonização, o Estado e as redes comerciais que lhe são intrínsecas, na qualidade de fontes importantes de registo étnico, imprimem as suas marcas no espaço que controlam directamente, assim como nas suas margens e inclusivamente para além delas. Mais do que ao «todo colonial», Pelos Meandros da Etnia procurava responder a uma preocupação de re-historicização, repolitização e reislamização das sociedades africanas. Como tal, visava sobretudo a antropologia universitária do período colonial francês e inglês, em detrimento da etnologia dos administradores coloniais, não obstante o seu contributo para a transformação das categorias sociais africanas em categorias étnicas. De facto, os representantes da escola funcionalista inglesa e da escola de Griuale foram os responsáveis por condensar as sociedades africanas numa pertença étnica singular, isolando-as das redes englobantes em que as mesmas se integravam durante o período colonial e em que se reintegram actualmente.

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A esse respeito, não deixa de ser surpreendente a constatação de que África - sobretudo a África Central - está, actualmente, a libertar-se definitivamente do ascendente das dinâmicas geradas pela colonização e das manobras das forças externas, em particular dos antigos colonizadores, com o intuito de se reintegrar num jogo intrincado de relações e poderes locais. Por um lado, África reata a problemática da fronteira e as relações entre os centros e as periferias que a caracterizava antes da conquista colonial. Num continente onde as fronteiras, ainda que reais, se mantêm nimiamente permeáveis e onde os aparelhos de Estado estão longe de controlar, como outrora, a totalidade do espaço constante nos mapas, a repetição de cenários antigos afigura-se possível. Ainda que de forma redutora, os últimos são evidenciados em conceitos novos, como é o caso dos confrontos entre os invasores ruandeses «hamitas» ou «etíopes» e os autóctones «bantus», na República Democrática do Congo, cujo desfecho, como se sabe, tem uma história relativamente onusta (Chrétien, 1997]. Todavia, por outro lado, não se deve reduzir essas evoluções contemporâneas a um mero «reacender» de um passado colocado entre «parênteses» pela colonização, a qual assumiu o papel de «congelador social» asfixiando, cristalizando e, ao mesmo tempo, preservando esse passado. Paralelamente à reafirmação e ao regresso em voga das identidades africanas - desde logo a de «africanos» e de «negros» -, a constituição de novas identidades relacionadas com territórios dotados de fronteiras móveis prossegue, de facto, diante dos nossos olhos: identidades «étnicas», como os banyamulenge do ex-Zaire; identidades regionais, como os «nortistas» e os «sulistas» em vários Estados; identidades nacionais, explicadas em debates [re] activados pelas consultas eleitorais democráticas e pela aquisição da nacionalidade dos cidadãos, os «alóctones» e os «autóctones» (Dozon, 1997].

A reconstrução do africanismo A fase profícua de desconstrução ou desmontagem da noção de etnia deve, portanto, seguir-se uma fase de reconstrução de uma ciência social africanista empenhada em conduzir uma análise circunstanciada da questão da etnicidade nas sociedades africanas e, de um modo geral, no conjunto das sociedades que são da competência da antropologia. Doravante, já não se trata de empregar um etnónimo qualquer sem uma definição prévia do seu contexto de uso, de modo a verificar-se a substituição de uma pragmática das sociedades por um essencialismo etnológico. Assim, as sociedades africanas podem juntar-se ao coro das restantes sociedades e, muito em particular, daquelas que redefinem constantemente as condições do debate encetado com elas próprias e

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com o exterior, Nesse sentido, a etnologia africanista estriba-se numa antropologia do debate social que incide sobre o conjunto da humanidade. Desde a publicação de Pelos Meandros da Etnia, e independentemente dos nossos projectos individuais (Amselle, 1987; 1990; 1993; 1996 e M'Bokolo, 1993, 1995], foram vários os estudos que contribuíram deste modo para o aprofundamento da problemática das construções identitárias em África, entre os quais se destaca a recolha de textos publicada por M. De Bruijn e H. van Dijk (1997), a qual não se debruça sobre uma etnia específica mas antes sobre as relações entre duas etnias, o que representa um avanço considerável face à abordagem clássica centrada numa só etnia. O estudo das relações entre povos limítrofes cujos laços políticos, económicos e culturais permanentes remontam há séculos constitui o modelo daquilo que deve ser a investigação em ciências sociais, ou seja, uma investigação que pratica um comparativismo moderado, circunscrito à observação das variações das formas sociais no seio de um quadro geográfico relativamente bem delimitado. Todavia, importa superar esse tipo de abordagem pluriétnica orientada para a intelecção de um conjunto de grupos em justaposição. Apesar de generosa, essa posição multiculturalista não fornece soluções a nível dos princípios metodológicos porquanto reproduz o nivelamento que está na origem do estabelecimento dos mapas étnicos de África e de outras regiões do mundo, frisando assim a debilidade do modelo de F. Barth (1969) que, ao atribuir à fronteira um lugar central na sua abordagem, deixa intactos os grupos que a atravessam. O respeito pelas diferenças culturais e, em simultâneo, a sua fusão numa humanidade comum assenta na postulação de uma verdadeira «crioulidade» de cada grupo étnico ou linguístico (Amselle, 1990; Nicolai, 1998), ou seja, na determinação de que a identidade social e individual é definida tanto pelo fechamento sobre si própria quanto pela abertura ao outro, numa palavra, que a identidade é, ao mesmo tempo, singular e plural. Com efeito, os etnónimos constituem rótulos, estandartes, emblemas onomásticos «já existentes» de que os actores sociais se apropriam em função das conjunturas políticas que se lhes apresentam. Decerto que a vertente «camaleónica» da identidade não é passível de ser dilatada ad infinitum, tal como a flexibilidade dos estatutos sociais não é absoluta. Por outro lado - conforme demonstrado por estudos relativos à etnia e, sobretudo, aos grupos estatuários (castas) - as possibilidades de acção da estrutura são muito superiores ao que seria de prever Os actores sociais africanos não permanecem imutáveis no seu estatuto e, tal como se conseguiu demonstrar a maleabilidade das identidades étnicas, também é possível ilustrar o facto de que a tripartição homens livres/escravos/pessoas de casta é uma construção colonial (Conrad e Frank, 1995).

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For conseguinte, desafiamos esse novo tipo de estudos a proceder a uma redefinição total dos instrumentos de investigação das sociedades africanas, tendo presente que essa mudança epistemológica repercutir-se-á necessariamente no modo como abordamos a nossa própria sociedade.

A ilusão da miscigenação Formulada a propósito do continente africano, a problemática construtivista da etnia assim como os conceitos que lhe estão associados - miscigenação, crioulidade - é aplicada na Europa e nos Estados Unidos no quadro do combate ao racismo e na apresentação de políticas alicerçadas no multiculturalismo. A gestão da diferença cultural efectivamente praticada, numa primeira fase, nas colônias volta a verificar-se actualmente em França, onde contribui para a gestão dos sectores delicados da sociedade francesa e a luta contra a ideologia da raça pura desenvolvida pela Frente nacional. Durante as décadas de 1980 e 1990, toda uma temática da miscigenação viu assim a luz do dia tanto no domínio da comemoração quanto no da publicidade, da moda e da música (Amselle, 1996). Inspirados por motivos gerais ou simplesmente mercantis, os paladinos desse conceito, porém, caíram no erro de negligenciar a relação estreita entre a idéia de miscigenação - seja ela desejada ou, pelo contrário, repelida - e uma problemática poligenista emanante da raciologia do século XIX. Assim, visando demonstrar que a integração continua a operar-se no seio da sociedade francesa, os investigadores bem-intencionados que recorrem aos conceitos «franceses de cepa» e «estrangeiros» ou às categorias coloniais como, por exemplo, os mandé, em certa medida, apenas justificam e reforçam esses conceitos, acentuando o problema que pretendem resolver por meio da sua investigação. Contudo, os críticos dessa abordagem alimentada pela idéia segundo a qual os franceses são, sem excepção, miscigenados e, por conseguinte, o conceito «francês de cepa» é desprovido de sentido, também exacerbam, paradoxalmente, o prisma poligenista e racista dessa noção. A semelhança do conceito propínquo de crioulidade, a miscigenação baseia-se, de facto, na idéia errônea - e cara à zootecnia - da mistura dos sangues ou do cruzamento; concepções, aliás, infirmadas pelas descobertas da genética mendeliana. Em bom rigor, a possibilidade de conservação desse termo depende da interpretação da miscigenação enquanto uma metáfora isenta de qualquer problemática da pureza original e da mistura dos sangues e, logo, um axioma que repete ad infinitum a idéia de uma indistinção primordial.

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Segundo os seus defensores, a possível introdução de critérios étnicos nos recenseamentos em França - à imagem daquilo que já constitui uma prática nos Estados Unidos - deveria adensar as malhas da rede destinada a circunscrever e a tratar as bolsas da pobreza e da inferioridade. Independentemente do que se possa pensar acerca da sua eficácia, esse novo dispositivo inscreve-se no quadro do alargamento do domínio dos «biopoderes» implementado no século XIX no campo da demografia e da epidemiologia [Foucault, 1997). Em caso de aplicação, França tornar-se-ia, à semelhança dos Estados Unidos, uma nação, em certa medida, bastante mais «étnica» do que os países africanos que supostamente servem para realçar a sã consciência ocidental. Através de uma reviravolta curiosa, a expansão colonial, que foi empreendida em nome da «missão civilizadora» de França, mas que se baseou largamente na gestão da diferença cultural, retornará agora à sua terra de origem para instituir um modo de administração das «populações» muito afastado do modelo teórico que coloca o cidadão perante o Estado.

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Paris:

Paris:

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Introdução A presente obra reúne reflexões teóricas e estudos de caso sobre o conceito de etnia e outras noções [tribo, raça, nação, povo, etc.) que lhe são frequentemente associadas, assim como fenómenos habitualmente designados através das expressões «tribalismo», «etnicidade», «regionalismo», «nacionalismo tribal», entre outras, no contexto africano. Decerto que esses fenómenos não são específicos de África. As ideologias de autoctonia, os movimentos separatistas, a investigação e a afirmação de identidades colectivas além das relacionadas com o Estado-nação, em suma, os particularismos de inspiração cultural ou política encontram-se, com uma intensidade variável, em diversas regiões e diversos Estados, desde a América anglo-saxónica à China e Indochina, passando pela Rússia soviética, a América Latina, o Oriente Próximo e a Europa. Não é incomum que, por vezes, desencadeiem revoltas violentas. No entanto, em nenhum outro lugar invadem, ou parecem invadir, o domínio político e a esfera intelectual tão intensamente como em Africa. Trata-se de uma especificidade susceptível de ser explicada por diversos factos. Em primeiro lugar, no próprio seio do africanismo, uma longa tradição científica, centrada na etnologia e na antropologia, identificou-se com o estudo das etnias, mesmo quando se opunha a qualquer análise séria do conceito de etnia num silêncio eloquente e comprometedor Ademais, a maioria das interpretações relativas aos fenómenos políticos característicos da África contemporânea integraram a etnia, a par de todos os elementos que dela decorrem, num modelo caracterizado por um simplismo cómodo e tranquilizador: classificados de «modernistas», os movimentos conducentes às independências e as hegemonias daí resultantes são apresentados como um desejo de edificação das nações e um esforço orientado para a sua consolidação; por conseguinte, as várias oposições aos pretensos «Estados nacionais em construção» são reduzidas a lutas «tribais», sendo que esse tribalismo é concebido ele próprio como a expressão política da etnia e, geralmente,

Introdução

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desacreditado na medida em que testemunha a sobrevivência e o recrudescimento de arcaísmos pré-coloniais. Um testemunho recente, e retirado de fonte segura e séria, acerca da extraordinária resistência desses lugares-comuns encontra-se patente na revista Afrique contemporaineK A 1 de Agosto de 1982 houve uma tentativa de golpe de Estado no Quénia. No artigo que a relata, deparamo-nos com a questão essencial: «Resta procurar compreender por que motivo isso aconteceu». A resposta imediata é clara: «Escusado será dizer que, tanto aqui quanto no Uganda e no Zimbabwe, as premissas étnicas sustentam os combates políticos, os quais apenas "modernizam" os comportamentos antigos que o período colonial, sobretudo na África inglesa, não conseguiu erradicar. Desse modo, descobre-se que os kikuyu, tribo ilustre e maioritária no Quénia, se perfilam por detrás dos golpistas...^». Poder-se-ia apresentar facilmente outros exemplos de variações ocasionadas pela vulgata etnicista acerca do modo de discurso científico ou da evidência comum. A fim de assinalar o fosso que separa esses pareceres e os estudos aqui reunidos, importa esclarecer que os primeiros conduzem a constatações análogas cujo teor fora já assimilado por Paul Mercier, há mais de 20 anos, numa observação que decorre da reflexão sobre o «significado» do tribalismo: «As oposições étnicas actuais expressam e espelham muitos outros aspectos além das diferenças culturais e hostilidades tradicionais, que prosseguirão sob outras formas^». Outros aspectos? Urge frisar que o debate acerca da etnia e do tribalismo não é puramente teórico. Desde Lord Frederick Lugard, alegadamente do colonialismo britânico, ao regime do apartheid na África do Sul, passando pelos poderes de Estado contemporâneos, todos os sistemas de dominação em África recorreram alegremente às teorias relativas à etnia, manipulando com astúcia os sentimentos étnicos. Em 1923, Lord Lugard, influenciado pela abordagem naturalista dos etnólogos da época, propunha «classificar a população da África tropical em três tipos, de acordo com as estruturas sociais: as tribos primitivas, as comunidades evoluídas e os africanos europeizados». Como se sabe, em países como o Gana, o Quénia, a Nigéria ou o Uganda, essas proposições converteram-se em política: humilhações e controlo minucioso do local dos «africanos europeizados» e das «comunidades evoluídas» considerados demasiado turbulentos; privilégios de vária ordem para as chefarias das tribos primitivas, tidas como símbolo da 1.«La tentative de coup d'État au Kenya», Afrique contemporaine, n.^ 123, Setembro-Outubro 1982, pp. 14-15. 2. Ibid. 3. P. Mercier, «Remarques sur la signification du "tribalisme" actuel en Afrique noire». Cahiers internationaux de sociologie, vol. XXXI, Julho-Dezembro 1961, p. 70.

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África tradicional e fossilizadas nas suas estruturas e na sua propensão para serem colonizadas. Epígono do pensamento e da política coloniais britânicos de finais do século passado, o regime do apartheid aperfeiçoou essa manipulação: a equiparação das sociedades africanas às tribos não significa apenas a proclamação da sua «diferença» irredutível em relação à sociedade branca - sociedade de classe e Estado nacional - mas também a sua despromoção para o nível mais baixo da hierarquia das sociedades humanas; porém, constituí-las em sociedades tribais implica também a asseveração de que se encontram em conflito permanente e a legitimação de uma política sistemática de divisão. A essência da política dos bantustões reside precisamente em humilhar, excluir e dividir. Os poderes de Estado da África independente, por seu turno, não se limitaram a acolher e a interiorizar a visão, os lugares-comuns e os estereótipos da etnologia colonial: a «diversidade tribal» dos Estados africanos serve-lhes de argumento para rejeitar o pluralismo político sob o pretexto de que esse seria apenas a expressão daquela e, logo, um obstáculo à construção nacional; e o culto do Estado-nação permite naturalmente uma legitimação dos poderes pessoais e das ditaduras oligárquicas; pois os discursos ruidosos sobre a unidade nacional são acompanhados, por toda a parte, de uma política transformada habilmente em espectáculo, de «doseamentos étnicos e regionalistas» que permitem ao poder paliar a sua natureza e perpetuar os estereótipos etnicistas. Na presente obra, tentámos tratar esses aspectos. Em primeiro lugar, urgiu proceder às reclassificações conceptuais julgadas necessárias questionando sistematicamente a noção de etnia. Jean Fazin, a propósito dos bambara, e Jean-Pierre Dozon, a propósito dos bété, demonstram que, em matéria de etnias, estamos perante realidades mutáveis: aqui como em qualquer parte, ninguém pertence exclusivamente a uma etnia e tanto os indivíduos quanto os grupos sociais são, ou deixam de ser, membros de uma dada etnia consoante o lugar e o momento; em última análise, a etnologia e o colonialismo, ansiosos por classificar e nomear, foram os responsáveis pela fixação das etiquetas étnicas, desconhecendo e negando a história. Conforme demonstrado por Jean-Loup Amselle, existem assim razões para «desconstruir o objecto étnico»: com a restauração da história e de uma antropologia dinâmica, parece que os grupos étnicos foram inseridos em unidades mais alargadas - «espaços» - e estruturadas à luz de factores económicos, políticos e / o u culturais que definiam os «grupos étnicos» conferindo-lhes uma substância particular. Nesse sentido, os «tribalismos» contemporâneos manifestam necessariamente a etnia. A análise desses fenómenos empreendida por

Conjunturas étnicas no Ruanda 173

Elikia M'Bokolo no Shaba e por Jean-Pierre Chrétien e Claudine Vidal no Ruanda e no Burundi demonstram a sua ligação a determinadas fases históricas durante as quais os actores políticos, as categorias e as classes sociais se vêem obrigados a veicular as suas ambições, a sua cólera ou a sua angústia através de uma linguagem tribal, étnica ou regionalista. Como tal, na maioria dos casos, a luta pelo poder de Estado reflecte-se nas práticas. Todas essas questões representam os principais marcos de um longo percurso individual e colectivo, as quais serão, certamente, retomadas por outros, permitindo descortinar as verdadeiras motrizes das sociedades africanas.

Etnias e espaços: para uma antropologia topológica Jean-Loup Amselle* A afirmação de que a «etnia» está no cerne da antropologia e representa um elemento constitutivo da sua abordagem é um truísmo. No entanto, constata-se com facilidade que, até recentemente, esse tema de investigação não suscitou um entusiasmo desmesurado junto da maioria dos antropólogos. Com efeito, ao percorrer a literatura, fica-se com a impressão de que os investigadores de campo consideram o tratamento do problema da etnia uma tarefa a despachar rapidamente para que se possam dedicar aos «verdadeiros» domínios, tais como os da parentela, da economia ou do simbolismo. Embora a definição da etnia estudada devesse constituir a interrogação epistemológica fundamental de qualquer estudo monográfico e, em certo sentido, todos os restantes aspectos devessem emanar dela, verifica-se amiúde um hiato entre um capítulo liminar que, mesmo não sendo abordado com a maior profundidade, ilustra a relativa imprecisão do objecto, e o remanescente da obra, no qual as considerações acerca da organização parental e a estrutura religiosa demonstram uma enorme convicção. Esse relativo «esquecimento» ou «desinteresse» da parte dos antropólogos prende-se, sem dúvida, com a própria história da disciplina e das diferentes tendências que lhe serviram de motor. Afigura-se cada vez mais notório o facto de que a constituição da antropologia se baseou na rejeição da história e acabou por preservar essa mesma rejeição. Sem a pretensão de nos lançarmos num inventário clássico destinado a passar em revista cada escola antropológica e analisar a sua abordagem ao problema da «etnia», basta assinalar que as correntes que exerceram um impacto mais significativo no pensamento antropológico - o evolucionismo, o funcionalismo, o culturalismo e o estruturalismo constituem doutrinas essencialmente anistóricas. Ao examinar o espaço de desenvolvimento do pensamento antropológico segundo os moldes de M. Augé [1979]**, entende-se claramente a *. Ecole des hautes études en sciences sociales. Centre d'études africaines. **. As referências entre parênteses rectos remetem para a bibliografia no final do artigo.

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Etnias e espaços: para uma antropologia topológica

razão pela qual a questão da etnia não pode ocupar um lugar central na reflexão dos etnólogos. De acordo com M. Augé, duas correntes principais partilham esse espaço antropológico: uma que se debruça sobre o significado e o símbolo, e outra dedicada essencialmente à questão da função. A primeira corrente engloba a escola de M. Griaule e os estruturalistas, ao passo que a segunda inclui os funcionalistas e os marxistas, inseridos na mesma categoria por M. Augé, e com toda a pertinência. No atinente à primeira tendência, é óbvio que tanto os discípulos de Griaule, que privilegiam as afirmações que as sociedades tecem sobre si próprias, quanto os estruturalistas, que necessitam de várias sociedades ou, pelo menos, de vários sistemas de parentela ou de mitos para procederem a uma reflexão sobre as possibilidades diferenciais do espírito humano e estabelecer a transformação, no sentido matemático do termo, não podem atribuir ao tema da etnia um lugar central na sua abordagem. No respeitante à segunda corrente, a qual engloba os funcionalistas e os marxistas, a questão reveste-se de uma maior complexidade. Como se sabe, o fundador da escola funcionahsta, B. Malinowski, rejeita a história identificando-a com o evolucionismo. Dada a inexistência da sequência-tipo «selvagem, bárbaro, civilizado», trata-se de compreender cada sociedade dentro da sua própria especificidade, mas sem considerar simultaneamente a possibilidade de definir a sua micro-história. Na esteira de L. Mair, B. Malinowski [1961, p. 2 7 ] postula assim a existência de um nível zero da mudança correspondente ao meio rural, e concebe o estudo do «contacto cultural» a partir do estado primordial das sociedades rurais africanas. Inversamente, é igualmente possível observar que S.F. Nadei, discípulo de B. Malinowski, é responsável por uma das definições mais bem-conseguidas do conceito de «etnia», conforme veremos mais adiante. Quanto ao marxismo, a situação torna-se mais ambígua. Em virtude da sua referência constante à história, seria seguramente expectável que os antropólogos que evocam Marx tivessem focado a sua abordagem, em particular, na etnia. Porém, não é esse o caso: à excepção do estudo de M. Godelier [1973, pp. 9 3 - 1 3 1 ] relativo à noção contígua mas, na realidade, distinta - pelo menos à primeira vista - de «tribo», os marxistas não se destacaram especialmente pela sua reflexão teórica acerca desse tema. E a razão é simples: ao estabelecerem, por vezes, uma associação entre a história e a evolução das forças produtivas, e ao se preocuparem em identificar um ou vários modos de produção que se conjugam dentro de uma formação social, acabaram por descurar a análise da «produção das formas^» contentando-se com a percepção 1. Sobre essa matéria, consultar o nosso artigo de natureza geral [Amselle, 1979 a].

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empirista da etnia, tal como foi transmitida pelos seus antecessores muitas vezes administradores coloniais ou missionários^ - , e que lhes fornecia um quadro conveniente no seio do qual podiam albergar os seus conceitos [J. Copans, 1981], Importa frisar, a esse respeito, a existência de um desfasamento considerável entre a ausência de uma reflexão marxista de âmbito geral acerca da etnia, e a qualidade da reflexão sobre a realidade dos grupos étnicos tal como é apresentada nas monografias desses autores [C. Meillassoux, 1 9 6 4 ; E. Terray, 1969]. Relativamente a esse aspecto, coloca-se a questão de s a b e r se esses antropólogos estiveram agrilhoados a uma problemática demasiadamente influenciada por uma leitura neopositivista do marxismo [Althusser) e pela inerente condenação de qualquer historicismo, e se, além disso, sentiram o peso da instituição antropológica no âmbito da qual cada investigador é levado a associar o seu próprio nome a uma etnia particular [C. Meillassoux, 1 9 7 9 ] . Contudo, essa corrente marxista evidencia uma clara evolução desde há algum tempo, sendo possível verificar que alguns dos seus defensores estão a questionar a abordagem mono-étnica que haviam adoptado [C. Meillassoux, 1 9 7 8 ] e a aproximar-se de uma terceira tendência designada de «dinamista» por P, Mercier [1966], a qual será agora objecto de análise. M. Gluckman, G. Balandier, R Mercier, J. Lombard, G. Nicolas e J. Copans são alguns dos nomes que integram esse movimento. Trata-se de autores que revelam uma forte afinidade com o marxismo na medida em que insistem na necessidade de adoptar uma abordagem histórica em relação a cada sociedade ou, mais precisamente, ao quadro escolhido como local de pesquisa: aldeia, chefaria, reino, etc. Essa primazia atribuída à história processa-se da seguinte forma: importa identificar o conjunto de determinações a que um dado espaço social está sujeito e colocar a tónica na rede de forças simultaneamente «externas» e «internas» que o estruturam, ou seja, trata-se de analisar «a eficácia de um sistema sobre um lugar» [J.-L. Amselle, 1 9 7 4 , p. 103]. O que permite destacar o quadro «político» - no sentido mais lato desse espaço, introduzindo-o num conjunto que o transcende. Essa reflexão deveria confluir, se não para uma definição operacional da etnia Cserá necessário uma?), pelo menos, para uma desconstrução do objecto étnico que constitui sempre um entrave ao avanço da disciplina. Porém, antes de atentar naquilo que poderia contribuir para a superação da problemática étnica, afigura-se oportuno analisar as diferentes definições da etnia aventadas pelos antropólogos.

2. Sobre essa matéria, consultar J.-P. Chrétien (1981).

Etnias e espaços: para uma antropologia topológica

Etnia e tribo

Definições

Somos desde logo confrontados com a existência de dois termos cujo significado, em francês, é propínquo. No entanto, o segundo adquiriu um sentido próprio na literatura antropológica anglo-saxónica. Se, em francês, os termos «tribo» e «etnia» são utilizados de um modo praticamente indistinto, para os antropólogos anglo-saxónicos, o primeiro designa um tipo particular de organização social: o das sociedades segmentárias. São definidas em moldes clássicos através da presença de elementos sociais de natureza idêntica (linhagem, etc.) e decorrentes de cisões sucessivas de uma mesma célula inicial, traço que as distingue das sociedades estatais dotadas de um poder centralizado. M. Godelier [1973] submete a um exercício epistemológico essa acepção da palavra «tribo», que designa simultaneamente um tipo de sociedade e um estádio da evolução humana. Ao contrário desse autor, não proponho - pelo menos numa primeira fase - lançar-me numa reflexão sobre as organizações de tipo segmentário mas antes apresentar as várias definições da etnia ou do grupo étnico entendido como sociedade global. Aliás, na óptica de autores como E. Gellner [1965], trata-se de uma abordagem irrelevante para as regiões sobre as quais se debruçam. Nesse sentido, recusam empregar os termos «etnia» e «tribo», além de considerar que as zonas rurais do Norte de África exibem exclusivamente organizações de tipo segmentário. Teremos de apurar se estamos efectivamente perante uma oposição de tipo geográfico ou cultural ou se as sociedades segmentárias africanas nem sempre são passíveis de serem definidas de uma determinada forma, como no caso norte-africano, em relação às cidades e aos Estados pré-coloniais.

o surgimento do termo «etnia» (do grego ethnos que significa povo, nação) na língua francesa é recente (1896); conforme assinalado por P. Mercier [1961, p. 62], nos séculos XVI e XVII, o termo «nação» era equivalente ao de «tribo». O aparecimento e a especificação tardios dos termos «tribo» e «etnia» suscitam doravante um problema relacionado com a congruência entre um período histórico (colonialismo e neocolonialismo) e o recurso a uma noção específica, problema esse que será retomado mais à frente. Em detrimento de outros vocábulos como «nação», ambos os termos começaram a ser usados em massa, tratando-se nitidamente de classificar à parte determinadas sociedades através da privação de uma qualidade específica. Era conveniente definir as sociedades ameríndias, africanas e asiáticas como outras e diferentes das nossas, retirando-lhes aquilo que lhes permitia participar de uma humanidade comum. Essa qualidade que as torna dissemelhantes ou inferiores em relação às nossas próprias sociedades corresponde evidentemente à historicidade e, nesse sentido, as noções de «etnia» e «tribo» estão ligadas a outras distinções através das quais se opera a grande divisão entre antropologia e sociologia: sociedade sem história/sociedade com história, sociedade pré-industrial/sociedade industrial, comunidade/sociedade^ Por conseguinte, os antropólogos vêem-se prisioneiros de determinadas categorias no seio das quais tiveram de se situar de molde a proceder ao estudo das sociedades da sua competência, no preciso momento em que as últimas se tornaram estáticas por força da colonização [M. Piault, 1970, p. 23]. Talvez seja essa a explicação para a escatima das análises sobre a categoria de «etnia», em comparação com os estudos brilhantes que versam sobre a parentela e a religião.

As definições do termo «etnia» são pouco numerosas e giram em torno de um naipe de características principais. Na óptica de M. Fortes [1945, p. 16], a etnia representa apenas o horizonte mais longínquo conhecido pelos grupos, para lá do qual as relações de cooperação e oposição já não são importantes ou são-no somente a título excepcional. M. Fortes insiste igualmente no carácter relativo da realidade étnica, que varia consoante a posição geográfica e social assumida pelo observador. Na sua obra dedicada aos nuba da Nigéria, S.F Nadei [1947, p. 13] descreve a tribo nos seguintes termos: «A existência da tribo não resulta de uma dada unidade ou identidade, mas antes de uma unidade ideológica e uma identidade aceite como um dogma». Alguns anos antes, S.F Nadei [1971, p. 45] alvitrava uma definição um tanto similar na obra Byzance Noire: «Designa-se de tribo ou povo qualquer

3. Salienta-se que o uso antigo do termo «etnia» não está dissociado do nosso. Os gregos estabeleciam, de facto, uma oposição entre ethnos (pl. ethnè] e polis («cidade»}. As sociedades de cultura grega que «careciam» de uma organização em cidades-estado eram designadas de ethné. O termo é traduzido freqüentemente por «tribo» (alemão: stamm] ou por «Estado tribal». De acordo com V. Ehrenberg [1976, p. 54], é «plausível» que o ethnos «esteja muito mais próximo da sociedade primitiva». Tomada à letra, a etnologia corresponde assim à ciência das sociedades «apolíticas» e portanto desprovidas da possibilidade de serem «sujeitos» da sua própria história. Na tradição eclesiástica, subsiste uma definição negativa que designa de ethné «as nações, os gentios, os pagãos por oposição aos cristãos» (Littré, entrada ethnique).

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I

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agrupamento unitário cujos membros reivindicam a sua pertença a um dado agrupamento», acrescentando, no entanto, um dado importante acerca dos nupe: esses últimos, segundo o autor, confundem reino e tribo. J. Richard Molard [1952, p. 14] considera que entre «os negros primitivos da floresta [...] a unidade étnica constitui uma zona de paz entre colectividades dotadas de parentelas reais ou fictícias, e as relações que estabelecem entre si são menos crispadas do que as estabelecidas com as colectividades de etnias vizinhas». No entender de R Mercier [1951, p. 65], a etnia constitui um «grupo fechado que descende de um antepassado comum ou, de um modo mais geral, apresenta uma mesma origem, goza de uma cultura homogénea e fala uma língua comum, constituindo também uma unidade política». Na sua monografia sobre os somba do Benim, aventa uma definição semelhante à de Nadei: «O conceito de pertença étnica, afirma o autor, traduz em grande parte uma teoria formulada por uma dada população» [1968, p. 76], ou ainda a respeito da etnia somba, trata-se «da convergência de um grupo, independentemente da sua heterogeneidade, que, no entanto, consubstanciou, pelo menos, a unidade hnguística com um espaço» [1968, p. 421]. Todavia, introduz igualmente duas diferenças que atenuam o carácter um tanto rígido de ambas as definições. Com efeito, para Mercier: «à semelhança dos seus constituintes, sejam eles quais forem, a etnia é apenas um segmento sociogeográfico de uma unidade mais vasta, e não deve ser concebida de forma isolada» mas antes «reinserida no conjunto de uma paisagem étnica regional encarada à luz de uma perspectiva histórica» [1968, pp. 73-76], Segundo G. Nicolas [1973, p. 103]: «Originariamente, uma etnia é antes de mais uma unidade social relativamente fechada e duradoura, radicada num passado de natureza mais ou menos mítica. Esse grupo tem um nome, costumes, valores e, regra geral, uma língua próprios. Afirma a sua diferença face aos seus vizinhos. O universo étnico é composto por um mosaico [...] de linhagens. Existe um parentesco profundo entre etnia e linhagem ou clã, geralmente escorado num vocabulário familiar, e inclusivamente num mito de origem que estabelece a descendência comum dos membros do grupo a partir de um casal primevo ou de um herói mítico». G. Nicolas [1973, p. 104] adita que a realidade étnica exibe uma nebulosidade característica e que, apenas raramente, o quadro étnico coincide com a formação política de base: «Uma etnia pode assim corresponder a uma ou várias tribos ou nações, à imagem de uma cultura ou uma civilização». Por fim, na sua óptica, «uma etnia não constitui uma cultura nem uma sociedade.

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trata-se de uma combinação específica entre o cultural e o social, dotada de um equilíbrio relativamente instável» [1973, p. 107]. J. Honigmann'', por seu turno, considera que «no cômputo geral, impera um consenso entre os antropólogos a respeito dos critérios que permitem descrever uma tribo (na qualidade de sistema de organização social): um território comum, uma tradição de descendência comum, uma língua comum, uma cultura comum e um nome comum; no seu todo, esses critérios formam a base da união dos grupos mais reduzidos, designadamente as aldeias, os bandos, os distritos, as linhagens». Por fim, segundo F. Barth [1969, pp. 10-11]: «Em termos globais, o termo "grupo étnico" é utilizado na literatura antropológica para designar uma população que: 1) beneficia de uma autonomia considerável em termos de reprodução biológica; 2) partilha valores culturais fundamentais que se actualizam em formas culturais dotadas de uma unidade visível; 3) constitui um campo de comunicação e interacção; 4) dispõe de um modo de pertença ele próprio distintivo e reconhecido pelos outros na medida em que constitui uma categoria diferente de outras categorias do mesmo tipo». No entender de F. Barth, o quarto aspecto relativo à atribuição {ascription) reveste-se de maior importância: «Uma atribuição categorial assume-se como uma atribuição étnica sempre que classifica uma pessoa nos termos da sua identidade mais fundamental e mais geral, partindo-se do princípio de que essa identidade é determinada pela sua origem e pelo seu meio. Uma vez que os actores recorrem às identidades étnicas para efeitos de categorização de si próprios e dos outros tendo em vista a interacção, formam grupos étnicos na acepção organizacional do termo» [1969, pp. 13-14], Ademais, F. Barth introduz a noção de «limites étnicos», isto é, limites ao mesmo tempo conservados e transpostos pelas populações. A breve enumeração das diferentes definições de etnia, conforme constam na literatura geográfica e antropológica, afigurava-se indispensável para ilustrar a convergência significativa das perspectivas sobre essa matéria. A sua latitude acabou por conduzir a resultados profundamente díspares pois apesar de, em geral, haver um entendimento entre os antropólogos acerca da definição de etnia, os mesmos tiveram dificuldades em indicar com exactidão os significados que atribuem a esse vocábulo. De entre as diferentes acepções passadas em revista, é possível apontar determinados critérios transversais, designadamente a língua, o espaço, os costumes, os valores, um nome, uma mesma descendência 4. ]. Honigmann, art. «tribe» in A Dictionary Godelier [1973, p. 102].

of the Social Sciences,

1964, p. 729, citado por M.

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e a consciência de pertença a um mesmo grupo manifestada pelos actores sociais. Logo, o modo de existência do objecto étnico emanaria da concomitância desses diferentes critérios. Além da sua proximidade com a noção de «raça», é possível verificar o quanto a definição do termo «etnia» está manchada de etnocentrismo e é dependente da concepção de Estado-nação, tal como foi engendrada na Europa. Poder-se-ia afirmar, com facilidade, que o denominador comum de todas essas definições da etnia corresponde, em última instância, a um Estado-nação de carácter territorial subvalorizado. A distinção com base na depreciação era, de facto, uma preocupação do pensamento colonial e assim como urgia «encontrar o chefe», era igualmente necessário identificar entidades específicas no seio do magma de populações que habitavam os países conquistados^ Todavia, certos etnólogos - amarrados às categorias coloniais de investigação - procederam simultaneamente a uma adulteração da noção, o que lhes permitiu ir além do estereótipo com que estavam confrontados. Juntamente com J.-P. Dozon [1981, p. 63], seria oportuno levantar uma questão a esse respeito: não terão sido os melhores entre os antropólogos que, partindo do quadro étnico, procuraram demonstrar em que medida o mesmo era inadequado ao seu objecto? Nesse sentido, os empreendimentos teóricos de Nadei, Mercier, Barth, assim como monografias verdadeiramente inovadoras, designadamente a da autoria de W. Watson [1958], ou ainda as precauções metodológicas de C. Meillassoux [ 1 9 6 4 ] e de E. Terray [1969], me parecem bastante mais audaciosos no seu princípio - dado subverterem as categorias coloniais - do que as tentativas de inserir, a muito custo, as realidades estudadas nos conceitos de «modo de produção» e de «formação social». Não consistirá essa abordagem, muitas vezes, num pespegar imprudente de noções-fétiches sobre uma história desconhecida ou conhecida incorrectamente [J.-L. Amselle, 1 9 7 4 ] ? Talvez seja possível estabelecer uma analogia com a abordagem dos etnólogos coloniais que atribuíam arbitrariamente etnónimos a populações sobre 5. Acerca da ligação entre as atitudes racistas e o recurso às noções de «etnia» e de «etnicidade», talvez seja profícuo citar in extenso o seguinte excerto do «professor» Montandon que, aquando da ocupação alemã, foi nomeado para o cargo de «etnólogo» do comissariado das questões judaicas por X. Vallat: «Quando um homem de patronímico Siberstein recebe o baptismo cristão, descende, de acordo com a sua documentação, de cristãos desde a terceira geração, casa-se com uma mulher ariana e baptiza os seus filhos, mas é detido ao atravessar a fronteira suíça pela presciência de ser tomado por um ariano sujeito ao serviço de rendição como muitos outros não-enfeudados às forças judaicas, considera-se que esse homem tem uma mentalidade judaica e que a lei deveria autorizar o seu registo como judeu: assim sucederia caso a lei, ao invés de aludir à raça judaica e explicar a raça através da religião, se limitasse a aludir muito simplesmente à etnicidade judaica [ênfase nossa J.-L. A.), passível de ser determinada pelo conjunto de critérios fornecidos pela biologia, a língua, a religião, a sociologia e a psicologia». Citado por B. Blumenkraz [ed.), Histoires desJuifs en France, Privat, Toulouse, 1972, pp. 406-407.

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as quais a sua ignorância era quase absoluta. Em boa verdade, falar de «a formação social X» em vez de «a etnia X» não altera grande coisa. A corrente dinamista, tal como foi possível identificá-la no seio da antropologia, propiciou um processo de desconstrução do objecto étnico que deve agora ser ultimado. Evidentemente que a presente reflexão não deve ser conduzida com um intuito estritamente crítico, devendo igualmente contribuir para a exposição das características particulares das realidades etnológicas, o que, até à data, os conceitos marxistas nem mesmo os conceitos mais clássicos da antropologia («etnia», «clã», «linhagem», etc.) lograram fazer. Nessa perspectiva, a interrogação sobre esses conceitos envolve a disciplina antropológica na sua totalidade. O referido movimento de desconstrução foi encetado em 1 9 4 2 , por Nadei [1971, p. 4 6 ] que, na sua obra Byzance noire, demonstrava como a realidade étnica dos nupe na Nigéria se encaixava em conjuntos cada vez mais alargados: «A unidade cultural é também mais vasta do que a unidade tribal. A organização política e social dos nupe é comum a várias tribos da África Ocidental: partilham a sua religião tradicional com grupos limítrofes a Norte, a Este e a Sul, bem como a sua religião moderna, o islamismo, com todo o Sudão. Assim, é efectivamente possível e apropriado falar de uma cultura da África Ocidental, ou de uma cultura dos grupos que habitam no interior da região ocidental de África (por oposição à dos grupos que habitam a floresta subtropical ou a zona costeira). No final de contas, a cultura parece estar, de certo modo, cristalizada sob a forma de uma cultura tribal e, em certos aspectos, a extensão da área dessa unidade cultural parece ser análoga à da tribo». No entanto, no que se refere aos nuba do Sudão, Nadei não envidará esse esforço de relativização do grupo étnico e de abandono do termo «tribo» em prol do de «reino». Com efeito, a definição aventada pelo autor acerca dessas populações («a identidade e a unidade ideológicas aceites como um dogma») não é totalmente satisfatória. E não é um desprimor para o grande antropólogo Nadei pensar que o próprio não estava em condições de compreender as verdadeiras determinações da unidade nuba, ou seja, a integração de populações serranas muito variegadas numa unidade política dominada pelos árabes do Sudão. Identificamos a mesma dificuldade em M. Fortes [ 1 9 4 5 ] que se dedicou à questão do relativismo étnico, mas sem extrair todas as consequências a respeito dos tallensi do Gana. Conforme observado por E. Skinner [ 1 9 7 2 , pp. 3 3 - 3 5 ] , M. Fortes oculta efectivamente a inclusão dessa sociedade no reino Mamprusi durante a época colonial para elaborar o modelo das sociedades segmentárias acéfalas. Somente

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com P. Mercier, J. Lombard e F. Barth registar-se-á um aprofundamento da descoberta teórica de Nadei. Não restam dúvidas de que P Mercier foi mais longe na sua tentativa de desconstrução do objecto étnico. Na sua obra acerca dos somba, frisa a necessidade de voltar a situar esse grupo na geografia e na história, procedendo à sua integração em quadros mais amplos. Além disso, elabora um inventário do campo semântico do termo «somba», um procedimento indispensável para qualquer tentativa de definição de uma unidade social, seja ela qual for. Essa preocupação encontra-se igualmente patente em J. Lombard [1964, pp. 42-43] e M. Izard [1977] no que se refere às «sociedades englobantes»"^ bariba do Benim, e mosi do Burquina Faso. No entanto, P. Mercier está vinculado a uma certa especificidade do seu objecto - e eis o peso da instituição antropológica - pelo que acaba por reintroduzir, através do decalque da noção de «limiar» de C. Lévi-Strauss, uma ideia próxima da de M. Fortes: a etnia deixa de funcionar quando se verifica um alquebramento da comunicação entre os seus membros. Como tal, P Mercier regressa a uma concepção das sociedades africanas pré-coloniais entendidas como unidades intermitentes [J.L. Amselle, 1974, pp. 107-108]. Conforme referido anteriormente, F Barth [1969], por seu turno, coloca a noção de «limite» no centro da sua abordagem, demonstrando que as divisões entre etnias permitem estipular modelos de identificação socialmente importantes produzindo-se paralelamente um fluxo contínuo de populações através desses «limites». Abre então caminho para uma análise das relações entre etnias enquanto relações de forças. Certas monografias levam ao extremo esse processo de dissolução de etnias específicas. C. Meillassoux [1964, p. 16] chega inclusivamente a questionar-se sobre se os gouro da Costa do Marfim existem efectivamente enquanto etnia. No seu entender, as únicas unidades sociais relevantes parecem ser as áreas matrimoniais ao passo que a consciência de pertença a um mesmo grupo afigura-se como o resultado da acção do Reagrupamento Democrático Africano. Quanto aos dida da Costa do Marfim, E. Terray [1969, p. 36] é ainda mais categórico. Na sua óptica, «não existe nenhum ponto de vista a partir do qual se possa observar essa sociedade como um todo» e, numa abordagem evocativa de Meillassoux, sublinha que, em função dos traços considerados, obtém-se áreas culturais ora maiores ora mais reduzidas do que o país dida [p. 31]. Porém, sem facultar muitos esclarecimentos, o autor alega a existência efectiva de uma unidade dida que «decorre de uma classificação elaborada a partir do exterior e aceite pelos interessados nas raras ocasiões em que tal se justifica». 6. Para uma explicação dessa noção, consultar infra.

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Em última análise, dá provas de cepticismo ao defender que, na região florestal ocidental da Costa do Marfim, «é a própria noção de etnia que merece, de facto, ser contestada» [p. 35], Pese embora o facto de Meillassoux e Terray fornecerem indicações valiosas para a nossa «reconstrução» do objecto antropológico, pode considerar-se que a verdadeira ruptura com a etnologia colonial se operou com W. Watson, discípulo de M. Gluckman. Em Tribal Cohesion in a Money Economy uma obra fundamental mas relativamente desconhecida, sobretudo em França - Watson demonstrava, já em 1958, que a «coesão tribal» dos mambwe da Zâmbia, ou seja, a própria constituição da tribo, era um corolário da colonização britânica'. Essa região organizada em comunidades aldeãs independentes, nas quais os homens se dedicavam especialmente à guerra, sofreu transformações profundas por ocasião da conquista inglesa. Dispensados das tarefas de defesa graças à pax anglica e substituídos pelas mulheres na agricultura, os homens tiveram oportunidade de migrar para as minas do Copperbelt. Em virtude da implementação da administração indirecta e do apoio concedido aos chefes por parte dos britânicos, os últimos lograram aumentar o seu poder sobre o território e controlar a circulação dos migrantes entre as zonas rurais e mineiras de tal modo que essa região, outrora segmentada, metamorfoseou-se numa unidade politicamente centralizada e dotada de uma consciência colectiva. J.-P Dozon [1981] filia-se nesse quadro analítico na medida em que nega qualquer espécie de realidade a uma entidade bété pré-colonial encarando o surgimento da «etnia» bété como uma «produção» e uma «criação» coloniais". A causa parece então estar explicada: durante o período pré-colonial, não havia nada que se assemelhasse a uma etnia. A origem das etnias reside na acção do colonizador que, ao almejar a territorialização do continente africano, dividiu as entidades étnicas, posteriormente reapropriadas pelas populações. Além disso, segundo esse ponto de vista, a «etnia» não seria mais do que um falso arcaísmo, à imagem de várias instituições alegadamente primitivas. Ora, se as etnias não existiam antes da colonização, o que havia? Em que moldes se organizavam os actores sociais?

Os espaços pré-coloniais Actualmente, um número crescente de investigadores estão de acordo quanto à principal característica de um «espaço internacional» 7. Consultar também E. Colson [ 1 9 5 1 , 1 9 5 3 ] e M. Fried [1958], 8. Consultar também o texto da sua autoria incluído na presente obra.

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[Copans, 1 9 7 8 , p. 97], de «relações simplécticas» [Meillassoux, 1 9 7 8 , p. 132] ou de «cadeias de sociedades» [Amselle, 1 9 7 7 , p. 275], isto é, quanto à primazia das relações intersociais na época pré-colonial. A par do seu modo de produção, redistribuição, etc., as sociedades locais, longe de serem mónades fechadas sobre si próprias, estavam inscritas em formas gerais e englobantes que as definiam e lhes conferiam um conteúdo específico. Por essa razão, cada sociedade local deve ser entendida como o resultado de uma rede de relações e, se a mesma não for explorada na íntegra, o funcionamento de cada elemento permanecerá insondável. Uma posição desse cariz implica a identificação das diferentes redes que dão forma às sociedades locais, o reconhecimento da existência de um desenvolvimento desigual no período pré-colonial e, eventualmente, uma alteração de perspectiva no âmbito da antropologia que consista em explicar o menos elaborado através do mais elaborado, no seio de filogenias específicas e limitadas". Logo, qualquer tradição antropológica que associe as sociedades mais «simples» ou mais «primitivas» aos antepassados contemporâneos das sociedades mais desenvolvidas ou ainda dos modos de resistência ao Estado e ao capitalismo deve ser descartada. Não há dúvida de que são abrangidas todas as formas de evolucionismo marxista ou não-marxista (selvagens, bárbaros, civilizados], as abordagens tipológicas (sociedade de Estado/sociedade sem Estado), bem como a «nova antropologia» [Amselle, ed. 1 9 7 9 b] que, na sua volição de apresentar «sociedades contra o Estado», revela apenas subprodutos do Estado. Essa posição poderá ser objecto de contradita pois aquilo que é válido para o continente africano pode não sê-lo para as sociedades ameríndias ou asiáticas onde a «vida de relações», segundo a expressão dos geógrafos, é menos desenvolvida e onde as sociedades estão mais protegidas dos contactos com o exterior. Conforme demonstrado pela antropologia, os continentes americano e asiático manifestam, porém, uma mesma continuidade no tecido que une as diferentes sociedades, as quais devem ser consideradas como o ponto culminante de uma rede de relações de forças^". Nessa óptica, urge definir um leque de espaços sociais que estruturavam o continente africano durante a época pré-colonial, nomeadamente: 1) 9. H.S. Lewis citado por M. Godelier [op. cit., 124]. 10. No atinente ao Sudeste asiático, consultar, por exemplo, B. HOURS [1973, pp. 2-28] que demonstra, a propósito dos lavè do Laos, como essas populações foram expulsas para as montanhas pelos invasores budistas lao e consideradas os «escravos» do reino. Quanto à América Latina, consultar a obra de André Marcel d'ANS, segundo o qual a presença do Inca, ou seja, do Estado, atravessa os mitos dos cashinaua, população de «caçadores-colectores» [í-e Dit des vrais hommes. Mythes, contes, légendes et traditions des Indiens Cashinaua, 10/18, UGE, 1978}.

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espaços de troca; 2) espaços estatais, políticos e de guerra; 3) espaços linguísticos; 4 ) espaços culturais e religiosos.

Os espaços de troca Recuando na história do continente africano - tanto quanto permitido pelas diferentes fontes disponíveis - é possível detectar redes de troca entre unidades sociais de dimensão e estrutura variegadas. Quer se trate da circulação das mulheres, do comércio transariano fomentado pelo Magrebe e pelo mundo árabe, do comércio no Golfo da Guiné empreendido pelos africanos muito antes da chegada dos portugueses no século XV ou da presença secular dos comerciantes árabes nas regiões costeiras da África Oriental, e sem mencionar o tráfico interno e externo de prisioneiros entre os séculos XVI e XIX, nenhum ponto do continente parece ter sido imune a essa vida de relações nimiamente dinâmica. Independentemente de decorrerem da acção de comerciantes sedentários ou itinerantes, de grupos dedicados ao intercâmbio e à corretagem, essas trocas reflectem a característica principal do espaço internacional ou da «economia-mundo» [F. Braudel, 1979, pp. 11-34] que era África antes da colonização. A existência dessas trocas (de natureza mercantil ou outra) é também sintomática do desenvolvimento díspar que afectava a globalidade do continente africano desde essa época. Torna-se assim possível assinalar uma diferença de potencial entre o Sudão medieval e o mundo árabe, a qual se opera através do tráfico árabe. A zona leste do continente é marcada por esse ascendente árabe e por esse processo de subdesenvolvimento que se inicia muito antes da chegada dos primeiros europeus [Alpers, 1973]. Essas relações de troca desigual provocam também uma hierarquização e um desnivelamento que se traduzem numa multiplicidade de migrações. Em primeiro lugar, as migrações de povos que partem em busca de determinados bens económicos, tais como ouro e cola [Deluz, 1970, p. 121; Lovejoy, 1 9 8 0 a], bem como as migrações de comerciantes, ocorridas provavelmente na sequência da queda dos grandes impérios medievais, que representam esse fenómeno de redes mercantes internacionais, conforme observado por vários autores [Cohen, 1 9 6 9 ; Amselle, 1 9 7 7 ; Lovejoy 1980 b]. A importância dessas trocas constitui, portanto, um factor fundamental de estruturação dos espaços pré-coloniais. Essa estruturação manifesta-se de várias formas, nomeadamente pela existência de espaços de produção". Nesse sentido, é possível constatar - e ao

11. Pode afigurar-se curioso, contrariamente à tradição, introduzir a produção após

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contrário dos lugares-comuns particularmente difundidos acerca da natureza auto-suficiente das sociedades africanas pré-coloniais - uma especialização, uma divisão social do trabalho e um comércio de longa distância que incide sobre determinados bens preciosos como a cola, o sal, o ouro, os têxteis, os prisioneiros, mas também sobre géneros alimentícios como o arroz, o inhame e o sorgo destinados certamente ao abastecimento dos centros urbanos mas que, além disso, se inseriam num tráfico entre zonas agrícolas diferentes [Chaveau et al., 1 9 8 1 ] . Esses espaços de produção delineiam assim regiões económicas especializadas num dado produto. A realização do valor dessa produção operava-se no seio dos espaços de troca que podiam coincidir com as zonas de comércio, frequentadas pelos próprios produtores, correctores ou comerciantes profissionais. Esses espaços de troca transcendiam largamente o local de produção de cada bem uma vez que o seu consumidor final poderia estar a várias centenas ou milhares de quilómetros de distância. No fundo, esse processo de realização do valor era executado através de três formas: pela transferência (doação e contra-doação], pela troca e pelo intercâmbio monetário. É sobejamente conhecida a circulação de autênticas moedas - caurim, sompe, gwinzin, manilhas, pérolas de aigris - no continente africano antes da colonização. O espaço de circulação dessas moedas e os diferentes lugares onde eram correntes delimitavam, por seu turno, verdadeiras zonas monetárias que representavam uma outra forma de estruturação do espaço africano pré-colonial. Do mesmo modo, o intercâmbio restrito e generalizado de mulheres ou a aquisição de prisioneiros dava origem à instituição de áreas matrimoniais que constituíam amiúde - em particular no caso dos gouro da Costa do Marfim - as únicas unidades sociais pertinentes na África pré-colonial articulando-se com as restantes áreas de trocas analisadas [Coutyefa/., 1 9 8 1 ] . O conjunto dos processos socioeconómicos ilustrava a extraversão das sociedades africanas pré-coloniais, assim como a existência de uma pequena produção comercial e de um sector capitalístico sustentado por uma rede de cidades relativamente densa - Tombuctu, Djenné, Kong, Kano, etc. - onde residiam os diferentes grupos mercantis da época (jula, haúça, soninquês, etc.). [Amselle, 1 9 8 0 e Amselle e Le Bris, 1 9 8 1 ] . Os espaços de produção, os espaços de circulação e os espaços de consumo representavam assim uma primeira matriz do continente intercâmbios, mas, conforme demonstrado por H. Denis, «a determinação em última instância pela produção» constitui uma demonstração de força teórica de Marx {«L'Economie» de Marx, histoire d'un échec, Paris, PUF, 1980, pp. 46-111).

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africano, assinalando a predominância de uma estrutura geral e englobante sobre as diferentes sociedades locais consideradas como sequelas.

Os espaços estatais, políticos e de guerra Ao recuar na história de África, identificamos Estados, reinos e impérios que podiam reunir vários milhares ou várias dezenas de milhares de aldeias, estendendo-se por vezes sobre áreas de dimensões consideráveis. Para comprová-lo, basta mencionar os impérios medievais do Gana, do Mali e do Songhay, os reinos Mossi e Ashanti, bem como os do Daomé e do Kongo, etc. Para os antropólogos e os historiadores africanistas, torna-se cada vez mais evidente a interligação entre o surgimento dos grandes impérios, a existência de um comércio internacional de proporções significativas e o florescimento da escravatura - uma instituição que forma o substrato económico dessas organizações estatais. Além disso, em muitos casos, as camadas dirigentes desses Estados, em particular dos impérios medievais, eram compostas por representantes locais de outras classes dominantes situadas nos confins das redes mercantes internacionais, no Magrebe ou no mundo árabe, por exemplo. Não restam dúvidas acerca da necessidade de reintegrar diversos deslocamentos populacionais ocorridos em África durante a época colonial nesse quadro estatal. A relação entre essas redes estatais e as migrações pré-coloniais é intricada pelo que não deve ser considerada em termos unívocos. Em primeiro lugar, importa frisar que a constituição de um Estado numa dada região resulta amiúde da chegada de um grupo de guerreiros que impõe o seu domínio sobre uma população composta pelos primeiros ocupantes. Por vezes, a chegada desse grupo de conquistadores vem na sequência do que se poderia designar de «dissidência estatal» e, nesse sentido, a aldeia ou chefaria que fundam são a vergôntea da sua aldeia ou chefaria natal^^. Todavia, é possível constatar, por outro lado, que uma «dissidência estatal» - situação emanante de um conflito no seio do reino que dita a partida de certos grupos - pode não conduzir à reconstituição de uma organização política de natureza análoga. O caso de uma fracção dos baoulé constitui um bom exemplo dessa conjuntura. Originária do reino Ashanti, a sua reconstituição operou-se na Costa do Marfim, estribando-se em pequenas chefarias ou sistemas

12. Em relação aos mossi, cf. Izard (1975, p. 2 1 9 } e Skinner, op. cit., p. 35 sq.

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regidos por relações de parentela^^ Aliás, uma parte considerável das populações segmentárias da Costa do Marfim provém de áreas culturais mandé e akan, também elas forjadoras de estruturas estatais. Logo, e extrapolando um pouco, é possível colocar a seguinte questão: em muitos casos, não serão as chefarias, por um lado, e as sociedades linhageiras, por outro, «contracções» de formas estatais?" Um outro exemplo retirado do Mali permitirá explanar a demonstração. Na sequência da queda de Bíton Kulubali, fundador do reino de Segu no século XVIH, um desses grupos de subordinados abandonou a região vindo a implantar-se, a uma distância de 3 0 0 quilómetros, em Jitumu onde se tornou numa «linhagem» Kulubali, considerada parte integrante dos «primeiros ocupantes»". Tais exemplos de enxameamento, de edificação ou, pelo contrário, de contracção estatais abundam na África pré-colonial. Fomentam o abandono de uma visão evolucionista da história e a limitação da importância conferida às diferentes tipologias em voga na antropologia (sociedades segmentárias versus sociedades de Estado), as quais evidenciam uma propensão para considerar as formas mais reduzidas como antecessoras das formas mais desenvolvidas, ou seja, considerar as sociedades linhageiras como precedentes das sociedades estatais, introduzindo uma cisão radical entre a linhagem e o Estado. Ora, se existe um dado relativamente adquirido para alguns africanistas é o facto de as formas de organização social susceptíveis de serem localizadas na África pré-colonial serem o produto de fenómenos de diástole e sístole, de vai-e-vem constantes, numa palavra, de processos de composição, decomposição e recomposição que se operam no seio de um espaço continental. Não pretendemos explicar o conjunto dos movimentos de populações pré-coloniais através das crises ou do declínio dos diferentes Estados ou chefarias criados nessa região; não restam dúvidas de que as sociedades linhageiras e segmentárias engendram elas próprias 13. A literatura dedicada aos baoulé é profusa: P. e M.A. Desalverte Marmier, «Les étapes du peuplement», in Costa do Marfim, Ministério do planeamento. Étude régionale de Bouaké, 1962-1964. 1: Le peuplement, Abijão, 1965, pp. 11-58; P Etienne, Essais de sociologie baoulé, dissertação do 3.2 ciclo, Paris, Sorbonne, 1975, multigr.; T.C. Weiskel, French Colonial Rule and the Baule Peoples: Resistance and Collaboration, 1899-1911, tese de Ph. D., Balliol College, Oxford, 387, p. multigr, 1976; J.-P Chauveau, Notes d'histoire économique et sociale, Kokumbo et sa région, Baoule sud, Trabalhos e Documentos da Orstom, n.e 104, Paris, 1979. 14. Cf. Dozon, op. cit., Terray, op. cit., Deluz, op. cit A tese relativa à origem mande de algumas populações como os «dan» e os «gouro» afigura-se, todavia, questionável na medida em que foi engendrada por «griots» «malinké» que incorporavam com engenho todos os povos africanos da região oeste na «matriz» mande (Deluz, ibid., p. 140] ou por investigadores como Delafosse que compunham grupos linguísticos de um modo totalmente arbitrário (exemplo: mande tan/ mande fu].

algumas migrações [cf. os lobi do Alto-Volta e da Costa do Marfim) [M. Fiéloux, 1980], porém, é forçoso constatar que as sociedades não podem ser todas colocadas no mesmo plano, sendo que algumas têm mais peso do que outras. Nesse sentido, seria plausível efectuar uma primeira distinção bastante simplista assente na dicotomia entre as «sociedades englobantes» e as «sociedades englobadas». As primeiras, isto é, os Estados, os impérios, os reinos e as chefarias, inserem-se no âmbito da determinação: são elas que detêm a capacidade máxima de delimitação do espaço. Esses Estados exercem uma pressão significativa sobre as sociedades de agricultores, promovendo a divisão entre elas o que acentua o seu carácter «segmentário». Transformam-nas em meros apêndices e apresentá-las-ão, mais tarde, no período da colonização, como falsos arcaísmos (tallensi/mamprusi, somba/bariba, dogon/mossi, toucouleur; kirdi/fulbe). Eis o problema das sociedades situadas em enclaves ou interstícios: em muitos casos, trata-se de sociedades que se refugiam em maciços montanhosos (falésia de Bandiagara, montes do Norte dos Camarões, maciços do Norte do Togo e do Norte do Benim) e que, portanto, se dedicam a uma agricultura intensiva. Essas sociedades proliferam apenas no interior de um espaço que lhes foi libentemente concedido por Estados ou chefarias. A partir do momento em que a pressão desses Estados se dissipa em virtude da colonização, encontrar-se-ão numa situação mais flexível, expandindo-se pelas planícies envolventes (por exemplo, os dogon descem a planície do Seno). Na época contemporânea, algumas dessas sociedades tornam-se «minorias étnicas» quando o recrutamento do pessoal político actual é idêntico, a nível linguístico, ao dos Estados pré-coloniais. Similarmente, a aldeia africana descrita como uma organização social e espacial intemporal, muitas vezes, não é mais do que o resultado de uma criação susceptível de ser datada com rigor, em determinados casos. Assim, as aldeias bw^a do Alto-Volta surgiram somente no século XIX, na sequência da pressão que sofriam por parte dos peul do Macina. Anteriormente, essa zona incluía apenas localizações linhageiras dispersas [Capron, 1973, pp. 8 7 - 8 8 ; Savonnet, 1 9 7 9 , p. 41]. Trata-se de um fenómeno que também pode ser observado em outras regiões africanas. Vários tipos de relações entre «sociedades englobantes» e «sociedades englobadas» podem verificar-se na África pré-colonial. As sociedades englobadas podem ser sujeitas ao pagamento de um tributo em espécie ou dinheiro (por exemplo, ouro e cauri no reino de Segu) e, nesse caso, estamos perante relações de ordem tributária. Também podem ser vítimas de razias por parte desses reinos, o que se traduz em relações predatórias.

15. Observação pessoal junto dos kulibali de Sugula, Mali (18-2-1978].

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Por vezes, deparamo-nos com a existência de redes de relações mediatizadas, como no Gana pré-colonial onde o império Ashanti impunha um tributo em escravos ao reino Gonja, que, por seu turno, encetava razias de prisioneiros gurunsi, konkomba, lodaaga e tallensi, sociedades actualmente tidas como «segmentárias»'^ Essas relações de natureza tributária ou predatória suscitavam deslocações significativas de população servil rumo a Estados cuja base económica assentava na escravatura, e activos correntes de troca sempre que esses escravos eram vendidos a comerciantes que tencionavam revendê-los em outros pontos do continente, em particular nas regiões costeiras onde seriam então transportados para a América. A oposição «sociedades englobantes»/«sociedades englobadas» também regia as relações entre os agricultores sedentários banto e os caçadores nómadas pigmeus da floresta congolesa. Nesse último caso, trata-se de sociedades não muito distintas em termos culturais - e mesmo genéticos - das sociedades sedentárias; foram expulsas para a floresta pelos agricultores banto e confinadas à caça como único meio de subsistência [S. Bahuchet e H. Guillaume, 1 9 7 9 ] '

Os espaços linguísticos o critério da língua tem sido frequentemente apontado para justificar a existência da noção de «etnia». Uma língua comum parece ser o indicador principal, se não mesmo determinante, da condição de existência de um grupo étnico: a «etnia bambara» fala bambara, a «etnia baoulé» fala baoulé, etc. Ora, o domínio da linguística evidencia uma grande meada no atinente à investigação africanista. Enquanto na antropologia as últimas investigações permitem um avanço diário na desconstrução do objecto étnico, muito em particular graças ao estudo das migrações pré-coloniais, da história do povoamento, das redes de troca e das formas políticas, a centralização dos estudos linguísticos sobre a morfologia e a sintaxe representa um entrave para uma abordagem adequada aos problemas linguísticos considerados à luz de uma perspectiva geográfica ou histórica.

16. Cf. J. Goody, Technology, Tradition and the State in Africa, OUP, Londres, 1971. Importa salientar que o termo «gurunsi», de acordo com ROUGH [1956, pp. 63-64] seria um vocábulo dagomba que designava os «Homens do mato», entre os quais os dagomba caçavam os seus escravos, ou ainda o nome atribuído, pelos mossi, aos autóctones que expulsaram para lá do Volta encarnado. Está questão liga-se à etimologia do termo «somba», uma palavra bariba que remete para o campo de razia ocidental desse reino, MERCIER [1968, p. 8]. 17. No nosso entender, esse processo de expulsão ilustra as contradições do mito banto relativo aos pigmeus aka que os apresenta simultaneamente como civiKzadores e selvagens.

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Os antropólogos carecem sobretudo de uma definição de áreas linguísticas relativamente bem-delimitadas e situadas no tempo. Decerto que a determinação dessas áreas afigura-se mais complexa em países onde a escolarização é ainda medíocre em relação a regiões onde o ensino das línguas nas escolas é considerável, precisamente devido à maior dialectização dessas línguas. Não obstante, essa tarefa assume-se como primordial porquanto condiciona o progresso da história antropológica africana. Com efeito, vários antropologos frisaram a reduzida homogeneidade linguística das diferentes «etnias» sobre as quais se deveriam ter debruçado. Muitas vezes, a língua falada por um dos segmentos da «etnia» apresenta mais afinidades com a língua da sociedade vizinha do que com outro segmento do mesmo «grupo étnico». Os exemplos são profusos: «bété» mais próximo de certos «dida» do que de outros «bété»; «dida» com uma menor distância linguística face a certos «gouro» do que outros «dida»; «dogon» que não se compreendem entre si e são obrigados a falar peul, dado serem originários de aldeias situadas a dez quilómetros de distânciai". Além disso, a ideia segundo a qual a língua determina a pertença a uma «etnia» não resolve o problema dos grupos em que se verifica uma contradição entre o «etnónimo» e a língua efectivamente falada. Trata-se do caso da população do Wasolon no Mali que reivindica uma pertença peul - o que, tal como veremos, se reveste de um significado essencialmente político - e que falam uma forma de bambaramalinke [Amselle et ai, 1 9 7 9 c]. Por conseguinte, urge definir tipologicamente as divisões sincrónicas das áreas linguísticas. O que, provavelmente, conduziria à distinção entre diferentes tipos de áreas linguísticas em função do lugar ocupado por cada sociedade no conjunto africano pré-colonial: áreas linguísticas «segmentadas», ou seja, áreas onde a intercompreensão apresenta uma extensão geográfica limitada e correspondentes a sociedades «englobadas» ou «segmentárias», por oposição a áreas linguísticas de grande dimensão correspondentes a sociedades «englobantes», de natureza estatal ou imperial". Essa dicotomia abrange, em parte, outra distinção relacionada com o binómio línguas veiculares/línguas vernaculares. Em África, as línguas veiculares como o bambaramalinke-dioula e o haúça resultam amiúde de grandes formações estatais (império do Mali, reino de Segu, Samori ou Estados haúça). A propagação dessas línguas prende-se com as conquistas empreendidas por esses Estados, e ainda com as redes 18. Observação pessoal. 19. Sobre essa matéria, consultar P Alexandre, Langues et langage en Afrique noire. Paris, Payot, 1967, p. 22, e M. Houis, Anthropologie linguistique de l'Afrique noire, Paris, PUF, 1971, pp. 109-110.

Etnias e espaços: para u m a antropologia topológica

mercantes internacionais pré-coloniais que delas decorrem e cuja acção foi, por vezes, reforçada pelo colonizador^".

Ao realçar a oposição muçulmanos-pagãos, que desempenhava e desempenha ainda hoje um papel muito importante em África, seria finalmente possível eliminar uma série de supostas clivagens «étnicas» - peul/dogon, foulbé/guiziga, massa; maninka, jula/banmana, etc. - e conferir um conteúdo concreto, ou seja, de ordem sincrónica e espacial, ao paradigma «selvagens/civilizados», o qual foi totalmente obscurecido pelo evolucionismo antigo ou moderno".

Os espaços culturais e religiosos o processo de desconstrução do «objecto étnico» enquanto objecto ideológico requer a identificação de um conjunto de «traços» no seio da realidade africana pré-colonial, conjunto que - à falta de melhor - se pode classificar de «culturais» e cujo mapeamento se afigura essencial. No nosso entender, a expressão «traço cultural» designa igualmente a vida material e as estruturas de ordem social e religiosa. A par das acções em matéria de produção, distribuição e consumo evocadas anteriormente, seria necessário conhecer a repartição espacial de instituições tão diversas como as técnicas, os estilos arquitectónicos, as formas artísticas, a etiqueta à mesa, as regras de parentela e aliança, os cultos religiosos, as sociedades secretas, entre outras^'. Graças a esses mapas, poder-se-ia delimitar as «áreas culturais» e as «áreas de poder"» que não coincidiriam com as áreas operadas pelos sempiternos «mapas étnicos» de África e seriam bastante reveladoras dos contactos e dos laços entre as diferentes «sociedades», em suma, da influência e do labor da história sobre os diferentes elementos do conjunto africano pré-colonial. De igual modo, seria vantajoso tomar conhecimento da propagação das grandes religiões universalistas e, sobretudo, do islamismo, em função de cada período histórico. Um estudo desse cariz permitiria, em particular, identificar as vagas sucessivas e os recuos da islamização na África Ocidental e Oriental e apurar se determinadas regiões, actualmente consideradas «pagãs», não constituem na realidade resquícios da fase de islamização que precedeu. Assim, no alto vale do Níger, no Mali, cultos actualmente considerados animistas são consagrados a relíquias dos marabutos que terão vivido há séculos. Do mesmo modo, a geomancia que, segundo os muçulmanos de Bamaco, corresponde a uma instituição tipicamente politeísta, resulta indubitavelmente de um processo de islamização muito antigo.

Paradigmas e mutações étnicas A preconização da primazia do conjunto sobre as partes, e da precedência lógica de um espaço internacional africano pré-colonial sobre os seus diferentes constituintes, implica o reconhecimento da existência de «cadeias de sociedades» no seio das quais os actores sociais se movimentam. Em função do lugar que ocupam nos diferentes sistemas sociais, os últimos podem circunscrever na língua um conjunto de elementos de significação ou semas susceptíveis de dar origem a um «paradigma étnico» através de um somatório de transformações sucessivas. Surgem assim os problemas relativos à «atribuição» e à «identificação étnica» devidamente analisados por F. Barth [1969]: em função do contexto em que se encontra e no seio do corpus categorial que lhe é disponibilizado pela língua, o actor social levará a cabo uma escolha de identificação. Essa poderá sofrer uma mudança determinando quadros de transformação e conjugação semelhantes aos facultados por G. Dieterlen [1955, p. 42] na sua lista de correspondências entre os patronímicos «malinke» e um vasto conjunto de «etnias» da África Ocidental. Logo, a existência desses grupos categoriais, e as «mutações étnicas» que propiciam [J. Galais, 1962], constitui um indício fortemente concludente da presença dessas «cadeias de sociedades» e o sinal de que as estratégias sociais pré-coloniais se operam amiúde à escala continental. Ao invés de meros limites geográficos, urge considerar as fronteiras como barreiras semânticas ou sistemas de classificação, isto e, em última análise, como categorias socais.

A etnia, uma criação pré-colonial?

20.Trata-se, em particular, do caso da Costa do Marfim onde os «dioula» prosperaram ao abrigo da colonização francesa. 21. Um bom exemplo desse tipo de síntese encontra-se na obra de Y. Person, Samori, une révolution dyula, tomo 2, IFAN, Dakar, 1968, pp. 47-88. Além disso, consultar o quadro que inclui as categorias principais do país «gouro» a nível regional, Deluz, op. cit., pp. 18-19. 22. Tenho em mente, em específico, os agrupamentos territoriais de exéquias e de «poro» senufo (C. Fai, comunicação pessoal).

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A tomada em consideração desses sistemas de classificação contribui assim para uma certa matização da nossa afirmação preliminar 23. Neste ponto, faço alusão tanto ao evolucionismo de Morgan quanto ao evolucionismo inai> recente de G. Deleuze e F. Guattari {VAnti-Œdipe, Paris, Minuit, 1972).

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segundo a qual a «etnia» seria uma pura criação colonial. Decerto que não se trata de negar que, em determinados casos, o termo que foi isolado pelo colonizador e, em seguida, forneceu o etnónimo, não designava efectivamente nenhuma unidade social pertinente na época colonial. Assim, J.-P. Dozon ( 1 9 8 1 , p. 4 7 4 ) logrou demonstrar acerca dos bété da Costa do Marfim o facto de que o termo «bété», cujo significado é «perdão», remetendo para a submissão das populações dessa região aos franceses, foi aplicado pela administração colonial num território que ela mesma dividiu arbitrariamente ao longo de um contínuo cultural. Todavia, seria igualmente errôneo considerar que a noção ideológica de «tribo», «raça» ou «etnia» seria totalmente desprovida de qualquer tipo de correspondência nas línguas africanas. A título de exemplo, em bambara-malinke, a noção de shiya corresponde efectivamente à de raça, etnia e mesmo de clã ou linhagem. Tal como a nossa, essa língua e essa sociedade exibem, de facto, noções ideológicas que permitem o reagrupamento de um certo número de actores sob a ficção de uma pertença ou descendência comum^^ Segundo esse ponto de vista, o caso dos peul manincófonos do Wasolon no Mali afigura-se bastante revelador pois essas populações, cuja análise mais sucinta revela origens muito diversas, afirmam, em certas ocasiões, descender dos quatros filhos de uma mesma mulher [Amselle etal, 1 9 7 9 c, 426, n.^ 96]. Nessa perspectiva, a reflexão epistemolôgica sobre a noção de «etnia» instiga à análise crítica de vertentes globais da antropologia e, em especial, das noções de «clã» e «linhagem» que, conforme constatado por P. Mercier [ 1 9 6 1 ] e G. Nicolas [1973], estão em continuidade directa com as de «etnia» e «raça»". De facto, todas essas noções utilizadas amiúde de forma acrítica pela antropologia, ou seja, procedendo à renovação da ideologia da sociedade de onde são retiradas, constituem «formas simbólicas» que permitem reunir alguns recursos humanos sob o estandarte de uma comunidade imaginária de sangue ou raça, muito em particular no âmbito dos Estados^^ Atente-se no paradigma «banmanan fin» (bambara negro) - «fula» (peul) - «maninka» (malinke) tal como existe nos materiais relativos à 24. Consultar também as noções de «kaliba» e «bonson». 25. «Contudo, o caso das "linhagens" e dos "clãs" assemelha-se ao da "etnia". Porém, verificou-se uma tendência para identificar manifestações de realidades sociais invariáveis nessas noções. Todavia, esses conceitos e sobretudo as construções alicerçadas nesses conceitos são ideologias. À semelhança de qualquer ideologia, aquela que se funda na linhagem segmentária ou no clã não corresponde à organização social vivida, embora a tenha influenciado. Expressa sobretudo o que deveria ser e não aquilo que é». (J. Vansina, 1980, p. 135). 26. M. Izard [1977, pp. 3 1 0 - 3 1 1 ] demonstra assim que somente as pessoas da comunidade (ta/se) do reino do Yatenga reivindicam o termo mooga. Sobre essa matéria consultar também C.-H. Perrot [1981].

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história de várias chefarias do Sul do Mali". Através da análise desses termos, é possível constatar desde logo que os diferentes elementos do paradigma são utilizados pela «linhagem máxima» Jakite Sabashi em função dos diferentes contextos sociais no seio dos quais se encontra. Logo, o antepassado dos Jakite Sabashi, originariamente «soninke» ou «banmanan fin» e com o nome Jara ou Konate, tornou-se «fula», recebendo o patronímico Jakite a fim de se assimilar ao grupo política e culturalmente dominante no Wasolon. Similarmente, um dos seus filhos abandonará essa região fundando uma chefaria descendente num local relativamente distante, cujo nome é igual ao da criada pelo seu pai e que retomará o patronímico Konate com o intuito de se juntar aos «maninka» que predominam na região^^ Por conseguinte, os nomes de «clã» ou de «linhagem» e os etnónimos podem ser encarados como uma série de elementos utihzados pelos actores sociais de molde a fazer face às situações políticas com que se lhes apresentam, o que reflecte a preocupação de S.F. Nadei [ 1 9 7 1 ] para quem a noção de «tribo» se reveste de uma natureza essencialmente política. Na África pré-colonial, apenas as unidades locais de carácter político são relevantes, o que explica o facto de os patronímicos, os etnónimos e os diferentes sistemas de classificação serem estandartes ou símbolos que constituem marcas de reconhecimento ou ainda «emblemas onomásticos» [J. Berque, 1 9 7 4 , p. 26], ou seja, em última instância, modos de dominação. Nessa perspectiva, a «etnia» já não existe na época pré-colonial nem na época actual, na medida em que se estaria perante entidades homogéneas a nível racial, cultural ou linguístico; pelo contrário, o que prevaleceu sempre foram as unidades sociais desiguais e heterogéneas a nível da sua constituição. Seguramente que é possível salientar uma continuidade na utilização de certas categorias na época pré-colonial e actual e constatar a adopção, por parte do colonizador, de termos já empregados antes da sua chegada («peul», «bambara», «dioula^'», etc.). Contudo, isso indica

27. Cf Amselle et al. 1979 c, e Yaya Konate, Kuruba Mali, 8-1-1981. 28. Poder-se-á objectar que reintroduzimos nomes de etnias, clãs e Unhagens sub-repticiamente. Perante a pergunta sobre se o antepassado dessa «linhagem máxima» não era de facto «senufo», um dos nossos informadores respondeu-nos que os «senufo» eram realmente «banmanan fin», ou seja, que o seu antepassado era um pagão «fin», sendo que a cor negra traduz o carácter fortemente pagão dessa personagem. O termo «fula» designa a zona anteriormente controlada pelo povo do Wasolon [Amselle et al., 1979 c, nota 61, p. 416]. No que se refere ao termo «malinka», trata-se de uma deformação do termo «mandenka» que significa «povo do Mande» e remete para um espaço político que se estende desde o Kurusa até ao Wayewayanko (perto de Bamaco) e desde Kita até Kama no Sankarani (Mamadi Keita, Narena, Mali 2 9 - 1 2 - 1 9 8 0 ) . Importa salientar que a utilização de patronímicos [jamu) como Jakite ou Konate era reduzida antes da colonização. São nomes de honra ou divisas utilizadas sobretudo pe\os griots [jelí]. 29. Quanto às diferentes utiUzações do termo «dioula», consultar Amselle (1977, pp. 227-228].

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simplesmente que o «etnónimo» é um «significante flutuante^"» e que a sua utilização apresenta um valor «performativo^^» pelo que estabelecer uma oposição entre um dado significado de um etnónimo e outro não tem grande sentido pois a lista completa dos usos sociais de um mesmo termo ainda não foi elaborada". Por conseguinte, é perfeitamente legítimo declarar-se peul ou bambara. Em contrapartida, considerar esse modo de identificação como tendo existido desde sempre e transformá-lo numa essência afigura-se questionável. Um etnónimo pode acolher uma multiplicidade de sentidos em função das épocas, dos lugares ou das situações sociais: não é repreensível conferir uma maior importância a um desses sentidos, mas sim afirmar a singularidade desse sentido ou a completação da série de sentidos inerentes a essa categoria - o que acaba por ser a mesma coisa".

Os espaços coloniais Conforme constatado, em certos casos, a «etnia» constitui uma criação pré-colonial no sentido em que corresponde a um modo de reagrupamento ideológico de um determinando conjunto de actores, numa consonância perfeita com as unidades sociais mais reduzidas, ou seja, os «clãs» e as «linhagens»^'*. A partir do momento em que as potências europeias se apoderam de África, verifica-se, por vezes, uma mera recuperação de determinados «etnónimos» utilizados ora no mesmo contexto, ora em contextos distintos. Contudo, em outras situações, um novo lexema é atribuído a um espaço circunscrito pela administração colonial, sem referência a uma unidade social pré-colonial. O emprego 30. Utilizamos essa noção num sentido muito diferente do de C. Lévi-Strauss («Introduction à l'œuvre de M. Mauss», in M. Mauss, Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1960, p. XLIX. Na nossa acepção, um significante inconstante corresponde a um significante que remete para uma multiplicidade de significados. 31. Sobre a noção de «performative», consultar J.-L. Austin [Quand dire, c'est faire. Le Seuil, 1970, pp. 3 9 - 4 2 ] e E. Benveniste («La philosophie analytique et le langage», in Problèmes de linguistique générale, Paris, Gallimard, 1966, p. 269, sq.]. A afirmação de que a utilização do «etnónimo» é «performativa» significa apenas que a aplicação de um significante a um grupo social cria ela própria esse grupo social. 32. «Não queria deixar de salientar o erro infausto que se comete quando se procede à explicação da utilização de uma palavra tendo apenas seriamente em linha de conta uma parte ínfima dos contextos em que a mesma é efectivamente utilizada.» Citado por G. Lane in [.-L. Austin, op.cit, p.l5. 33. Consultar o texto de J. Bazin na presente obra. 34. Não queremos com isso dizer que os grupos de filiação não existem. Porém, é preferível postular uma heterogeneidade inicial a fim de definir com maior eficácia os limites da heterogeneidade desses grupos.

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recorrente de taxinomias étnicas ilustra a consonância existente entre a política do Estado pré-colonial e a do Estado colonial. Em ambos os casos, o processo de territorialização é presidido pelo mesmo projecto: reagrupar as populações e designá-las por meio de categorias comuns a fim de exercer um controlo mais eficaz. O principal fenómeno da colonização é a instauração de novas divisões territoriais [«círculos», «distritos», «territórios»), por outras palavras, trata-se da fragmentação^® da «economia-mundo» que era a África pré-colonial numa miríade de pequenos espaços sociais logo constituídos em várias «raças», «tribos» e «etnias»^®. Antes da colonização, esses diferentes espaços encontravam-se imbricados no seio de «cadeias de sociedades» mas com a conquista registar-se-á um movimento de desarticulação das relações entre as sociedades locais. O referido fenómeno assumirá essencialmente três formas: a criação ex nihilo de «etnias», como no caso dos «bété» da Costa do Marfim, a transposição semântica de etnónimos utilizados antes da colonização para contextos novos [«bambara», «dioula»), ou a transformação de unidades políticas ou de topónimos pré-coloniais em «etnias» [«mandenka» - «malinké»; «gurma» - «gourmantche»). Num primeiro momento, essas novas divisões territoriais serão adoptadas pelos etnólogos que tratarão os «dogon» e os «senoufo» como «sujeitos» étnicos [Dozon, 1 9 8 1 , pp. 2-5] pese embora o facto de essas populações estarem divididas em unidades mais reduzidas [áreas matrimoniais, circunscrições linhageiras, tribos, federações de aldeia, agrupamentos territoriais de sociedades secretas, etc.), englobadas em entidades mais vastas por conta da sua dependência para com Estados ou redes mercantes internacionais, ou de ainda serem uma combinação dessas duas características, o que corresponde à situação mais frequente. Num primeiro momento, esses «etnónimos» e essas «etnias» forjadas pelo colonizador serão reclamados pelos actores que os transformarão num instrumento ideológico de determinação social. Chamadas a situar-se em relação a esses espaços novos, ou seja, essencialmente a um espaço estatal colonial e pós-colonial, as diferentes regiões reivindicarão como marcas distintivas os «etnónimos» inventados ou transpostos pela administração colonial. A vontade de afirmação étnica apresentar-se-á assim como um meio de resistência à pressão das regiões rivais e a luta no seio do aparelho do Estado tomará a forma do tribalismo. A visibilidade desse fenómeno será proporcional ao aumento das migrações para as cidades por força da colonização e ao reagrupamento de naturais 35. Cf. Amselle [1981]. 36. Cf. Amselle [1974].

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de uma mesma região no meio urbano fora do contexto das liniiagens e das aldeias^^

O tribalismo moderno o suposto «tribalismo» contemporâneo em África corresponde ao pomo da concórdia entre a maioria dos antropólogos. P. Mercier [1961], M. Gluckman [1960], I. Wallerstein [1960], J. Lombard [ 1 9 6 9 ] e R. Sklar [ 1 9 8 1 ] apresentam argumentos convincentes sobre o facto de o «tribalismo» - referido até à exaustão nos meios de comunicação a propósito de África (Zaire, Chade, Etiópia, Nigéria, etc.) - constituir sempre a marca de outra coisa, a máscara de conflitos de ordem social, política e económica. Essa análise, a par de outras, deve enquadrar-se no âmbito da antropologia e seria desejável que fosse retomada e difundida no ensino e nos meios de comunicação de massa. Nenhum antropólogo digno desse título ousaria analisar hoje em dia qualquer revolta, greve ou movimento social em África ou em outro lugar apenas em termos «tribalistas». Por conseguinte, importa frisar o mérito dos etnólogos nessa matéria pois ter-lhes-ia sido fácil incidir, pelo contrário, sobre o estranhamento e o exotismo de determinados costumes bárbaros, numa perfeita consonância com as tendências de fundo da ideologia dominante. Existe uma segunda razão pela qual essa análise desses antropólogos se reveste de importância, nomeadamente a «tentação tribalista» permanente dos Estados africanos contemporâneos. Conforme foi possível constatar através de vários investigadores, o discurso do poder manifesta-se sempre num linguagem «tribalista» ou «regionalista» quando se trata, por exemplo, de enfrentar uma revolta rural [Amselle, 1 9 7 8 ] . Essa projecção do Estado neocolonial sobre os movimentos que lhe fazem frente é sintomática de uma fraqueza e de uma ausência de controlo de fracções significativas da população. A caracterização de um movimento social, seja ele qual for, como «tribalista» ou «regionalista» constitui uma tentativa de desqualificação desse mesmo movimento ao desprovê-lo de toda a sua legitimidade, a qual, na perspectiva dos aparelhos de Estado africanos actuais, só poderia manifestar-se recorrendo a um vocabulário modernista. Todavia, afigura-se evidente que, muitas vezes, o próprio Estado é responsável pela forma que assumem as revoltas rurais e as greves. Assim, o poder socialista no Mali, após eliminar, pouco depois da independência, um sindicato que reunia um número considerável de 37. Esse processo encontra-se devidamente exemplificado em Dozon, op. cit.

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camponeses^®, praticamente obrigou todas as revindicações populares a adoptarem como quadro ideológico as antigas «chefarias» livres do seu conteúdo hierárquico. Logo, a possibilidade de assinalar uma «longa duração» das representações do poder em África prende-se com o facto de ela se inserir num quadro delimitado pelos aparelhos de Estado actuais. Por conseguinte, o «tribalismo moderno» apresenta-se como um sistema de elementos significantes que é objecto de manipulação tanto por parte dos dominantes quanto dos dominados no seio de um espaço nacional ou internacional; constitui também um meio de definição social e um sistema de classificação que atribui a cada um o seu lugar no interior de uma estrutura política definida. Como tal, e contrariamente às várias asseverações que enfatizam a periodização da história de África, parece não existir uma cisão radical entre o «tribalismo moderno» e o seu homólogo antigo. O movimento de transposição das barreiras «étnicas» [Barth, 1969; Lovejoy e Baier, 1975], de migrações rumos às cidades (a «destribalização»^'') e de utilização de redes de nativos como modo de organização económica e social («retribalização»''° ou «supertribalização»''!) iniciou-se muito antes da colonização conforme comprovado pela existência de cidades pré-coloniais e redes mercantes internacionais, muito em particular jula e haúça. Trata-se do mesmo movimento que prossegue actualmente em direcção às cidades e às plantações, conduzindo ao reagrupamento de um conjunto de naturais fora dos colectivos rurais e aldeãos. Nesse sentido, mais do que um sinal de modernidade, a «etnicidade» poderia apresentar-se antes de mais como um produto da urbanização, da edificação estatal e do comércio na acepção mais lata do termo, independentemente do período considerado. Ao aceitarmos esse ponto de vista, torna-se manifesto o facto de não existir nenhum aspecto de diferenciação entre o «tribalismo» e a «etnicidade» africanos e o renascimento do «regionalismo» que se opera na Europa. Em ambos os casos, esses movimentos de regresso às origens e de «autenticidade» arraigam-se na realidade urbana, constituindo uma projecção citadina sobre uma realidade rural e passada de natureza 38. Cf. D. Narbeburu, Syndicalisme agricole et coopératisme horticole au Mali, diploma da École des hautes études en sciences sociales, Paris, 1980. 39. Cf. A. Richards [1939], G. Wilson [1942] e a crítica de M. Gluckman a essa abordagem, in W. Watson, op.cit., X-XVI, assim como a nossa análise [Amselle (ed.], 1979, pp. 30-32]. Essa angústia da «destribalização» está igualmente patente no contexto do «etnocídio» [R. Jaulin, La Paix blanche, Paris, Le Seuil, 1970}. 40. Sobre a utilização dessa noção, consultar A. Cohen, op.cit.,2, e a crítica de P. Lovejoy [1980 b, P-45]. 41. Cf J. Rouch, op cit.

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puramente imaginária. Com efeito, o afastamento social e geográfico permite conferir pureza e homogeneidade a um meio heterogéneo e hierarquizado, tanto na Europa quanto em África.

Conclusão: o Estado, a cidade e os intercâmbios Ao longo do presente texto, não foi possível contornar uma certa ambiguidade inerente à utilização de noções como «clãs», «linhagens», «tribos», «etnia», «etnónimos», «tribalismo», «etnicidade», etc., que, mesmo sendo utilizados com cautela e entre aspas, atraiçoam quem os emprega. Decerto que, em qualquer estudo de ordem epistemológica, é necessário partir de noções empíricas tendo em vista a sua desconstrução e a reconstrução de um outro espaço conceptual mais apropriado para dar conta de uma dada «realidade». Porém, comparativamente a outras esferas do conhecimento, a antropologia evidencia porventura uma maior vulnerabilidade na medida em que o desfasamento entre as realidades observadas e os conceitos utilizados é menor do que noutros domínios. No âmbito dessa disciplina, tivemos assim a oportunidade de constatar que determinadas noções ou concepções eram meramente transpostas das próprias sociedades estudadas ou em função do modo como tinham sido apreendidas pelos colonizadores e os missionários. A existência desse imaginário antropológico, desse mundo fantasmático de «sujeitos», «substâncias» e «fétiches», afigura-se um entrave considerável para o avanço do saber Em caso extremo, haveria a tentação de rejeitar todas essas noções, incluindo a de «sociedade» devido à sua grande carga ideológica e peio facto de impregnarem de forma tão acentuada os mais diversos estudos, desde os mais científicos até aos mais positivistas. Longe de nós querer lançar acusações aos antropólogos quando recorrem acriticamente a determinadas categorias: o acto de designação é imprescindível quanto mais não seja para conferir um maior dinamismo a obras que, devido à sua formulação, destinam-se muitas vezes apenas a um público iniciado na matéria. Feita essa ressalva, existe, no entanto, um fosso considerável entre a sofisticação extrema que estimula certos domínios antropológicos - a parentela por exemplo - e a ausência quase absoluta de uma reflexão acerca do próprio objecto dessa disciplina. Ora, no decurso da nossa tentativa de reconstrução das realidades africanas pré-coloniais, foi possível verificar que, à luz da perspectiva adoptada, a própria natureza dessas realidades sofriam uma mutação. Assim, a tónica colocada nas «cadeias

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(je sociedades», na «economia-mundo», nos «espaços pré-coloniais», no «desenvolvimento desigual», nas «sociedades englobantes» e nas «sociedades englobadas» transforma por completo a percepção que se pode ter das sociedades africanas pré-coloniais. Enquanto a análise antropológica e monográfica aponta apenas para entidades fechadas, a abordagem histórica e o estudo da «morfogénese dos símbolos''^» permitem-nos descortinar certos «operadores», nomeadamente os Estados, as cidades e os intercâmbios. Sob esse aspecto, as categorias étnicas constituíam apenas um tipo específico de categorias utilizado pelas organizações que procuram reagrupar sob o seu estandarte alguns recursos humanos. Uma vez que as organizações registarão um desenvolvimento crescente, os recursos a incorporar serão mais vastos e a utilização dessas categorias tornar-se-á ainda mais essencial, as sociedades africanas, na sua essência, não são diferentes das restantes: produzem categorias sociais, ou seja, categorias destinadas a classificar socialmente os actores. Somente com a colonização, essas categorias sociais, essas «classes» sociais serão transformadas em «fetichismos étnicos» pois o colonizador, à semelhança dos Estados pós-coloniais, viu-se obrigado a apagar as hierarquias pré-coloniais a fim de introduzir novas hierarquias com maior eficácia''^ Como tal, a categoria de «etnia», e assim uma boa parte da antropologia, associar-se-ia ao colonialismo e ao neocolonialismo não tanto pelo facto de que essa disciplina estaria ao «serviço» do imperialismo, mas sobretudo porque ela teria florescido no seu seio e ter-se-ia desenvolvido encontrando refúgio nas formas coloniais de classificação. Futuramente, uma das tarefas da antropologia com o apoio da linguística e da história poderia ser justamente a delimitação do universo semântico das categorias recolhidas no terreno em função da época, do lugar e da situação social identificados. Ao invés de ter como ponto de partida determinados etnónimos, noções vazias que devem ser posteriormente preenchidas com estruturas económicas, políticas e religiosas, seria preferível demonstrar de que modo um termo situado no tempo e no espaço adquire progressivamente uma multiplicidade de significados, em suma, estabelecer a génese ideal dos símbolos.

42. Não estabelecemos diferença entre uma organização e a sua representação, na esteira de M. Augé, Pouvoirs de vie, pouvoirs de mort, Paris, Flammarion, 1977, p. 83. 43. Para uma análise bem-conseguida desse problema, consultar C. Deverre [1980] que demonstra que, no México, a categoria do «índio» significa exclusivamente «camponês», e Albergoni e Pouillon [1976] que realçam que, no extremo Sul da Tunísia, o termo «berbere» é, na realidade, sinônimo de dependente.

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Jean-Pierre Dozon* A interpretação dos tribalismos ou etnismos na África negra caracteriza-se pela acentuada prevalência de um raciocínio^ Independentemente da sua especificidade ou das suas significações locais, é consensual reconhecer nesses movimentos sociais a perenidade dos quadros de referência tradicionais, o predomínio das formas de identificação tribal e étnica sobre aquelas de natureza ainda embrionária que acompanham os processos de desenvolvimento nacional [identificação com um dado grupo socioprofissional, a uma dada classe, à nação). Sintomas da própria fragilidade ou fraca maturidade dos Estados africanos, os tribalistas frisariam que os últimos têm, no máximo, 20 anos de existência e sobretudo que, na qualidade de configurações geopolíticas, são fruto da colonização europeia [ou seja, de uma partição aleatória das fronteiras nacionais que dividiu em dois, ou mais, as unidades dotadas de uma coesão étnica, criando assim as condições para a reivindicação tribalista). Nesse sentido, ilustrariam o facto de que, não obstante as transformações ocorridas de há um século a esta parte [colonização, independências), a África Negra mantém-se bastante fiel a essa imagem de mosaico étnico difundida por etnólogos [e anteriormente pelos administradores coloniais), representando apenas um prolongamento lógico de um passado imemorial cujos processos ditos modernos [desenvolvimento económico, urbanização, construção de Estados-nação) dificilmente conseguem dissipar a inércia.

*. ORSTOM. 1. Trata-se, em concreto, de um raciocínio preponderante nos comentários jornalísticos, mas que se encontra igualmente patente na literatura antropológica ou sociológica. Uma vez que a etnia corresponde, amiúde, ao quadro imediato dos estudos africanos, essa literatura identifica África com uma soma de etnias, num movimento quase natural.

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inter-regionais e dos desafios políticos inerentes a cada um. Com base nessa referência, a interpretação prevalecente acredita fornecer explicações mas contenta-se com um pseudo-saber sobre a África Negra pré-colonial: um universo longínquo reduzido à noção simples, mas impregnada de significado e ambiguidade, de «sociedade tradicional», um termo, regra geral, equivalente a «etnia» ou «tribo». Aventa que a Africa pré-colonial evidencia uma natureza repetitiva, sendo praticamente imune às mudanças introduzidas pela história ou pelo tempo. Ao descurar os conhecimentos históricos de que se dispõe actualmente [(em particular a diversidade das situações e dos períodos em que as unidades socioculturais, na sua constituição e nas suas transformações, surgem ligadas a processos e acontecimentos de vária ordem: económicos, políticos, etc.), condensa o universo pré-colonial num rótulo único, atribuindo-lhe todas as características de uma substância.

Mapa - O país b é t é na Costa do Marfim

Pese embora o seu interesse (no que se refere aos seus aspectos mais pertinentes, sublinhe-se os desfasamentos entre os níveis de consciência colectiva, as mentalidades cada vez mais refractárias à mudança, e as esferas da economia e da política susceptíveis de promover transformações expeditas), o raciocínio em questão apresenta como principal lacuna o facto de ser demasiado geral e, ao mesmo tempo, de funcionar com base em estereótipos, aderindo quer aos discursos sobre a África Negra, quer às representações simplistas da sua história. Em primeiro lugar, a explicação dos tribalismos através da permanência das entidades étnicas pré-coloniais impede a análise daquilo que constitui precisamente a singularidade de cada um deles. O propósito é de tal modo geral que torna impossível uma descrição do seu conteúdo específico - uma consciência étnica muito acentuada, uma oposição ao Estado ou a outro grupo étnico, uma reivindicação de autoctonia - assim como de várias outras expressões e práticas colectivas que importa contemplar à luz dos seus aspectos mais particulares e interpretar em função do seu contexto nacional. Por outras palavras, a alusão espontânea a uma figura arcaica da qual os tribalismos emanariam quase naturalmente, constitui um entrave à compreensão das contradições socioeconómicas, dos conflitos

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Desde logo, compreende-se que, apresentada como t da argumentação, essa «substância», essa «sociedade tradicional» continua a ressaltar as suas prerrogativas e especialmente a reger os processos de identificação colectiva em detrimento dos esforços de construção nacional, apesar das transformações produzidas desde as conquistas coloniais. Neste contexto, afigura-se sintomático que esse raciocínio, que preside à interpretação dos «tribalismos» ou dos «etnismos», seja utilizado para outros fins. A ideologia do desenvolvimento que impregnou significativamente o discurso sobre a África Negra por volta dos anos 60 constitui o exemplo de maior pertinência. Visando simultaneamente a sua própria promoção e a legitimação de práticas económicas destinadas a integrar os novos estados africanos no seio do mercado mundial, a formulação dessa ideologia pautou-se por um modelo binário que estabelece uma oposição directa entre os atributos da tradição e os da modernidade. Através dessa teoria dualista, o subdesenvolvimento é identificado com um certo tipo de sociedade no qual o cumprimento das leis e dos costumes ancestrais obsta a qualquer possibilidade de inovação. Simultaneamente, as dificuldades em matéria de desenvolvimento, os travões que impossibilitam o «arranque», só podem ser imputadas a permanência dessas «mentalidades» arcaicas. O avanço no sentido do progresso económico (à imagem do advento dos Estados soberanos no domínio político) é condicionado pela supressão de obstáculos socioculturais, ou seja, pelo abandono dos modelos tradicionais e pela adopção de comportamentos modernos. Outros exemplos ilustram uma abordagem análoga. Atente-se simplesmente nas ideologias decorrentes de diversos poderes dos Estados africanos, tais como a negritude de L. Sédar Senghor (Senegal),

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Antes de proceder à referenciação das manifestações mais evidentes, parece-nos conveniente fornecer algumas indicações relativas ao contexto nacional. Examinando vários países africanos, designadamente a Nigéria, o Zaire ou o Burundi onde as questões étnicas deram origem a autênticas guerras civis, a Costa do Marfim constitui uma nação pacífica. Sob a férula do presidente Félix Houphouèt-Boigny, o poder de Estado costa-marfinense parece ter logrado a integração nacional e, consequentemente, superado as pertenças aos grupos étnicos. A explicação mais comum para esse triunfo destaca o efeito que resulta da combinação de duas vantagens principais. For um lado, a relativa expansão da economia costa-marfinense desde a independência parece ter favorecido a estabilidade política do regime (nessa matéria, a causa e o efeito podem perfeitamente inverter-se pois, reconhecendo a capacidade e o pragmatismo do chefe do Estado costa-marfinense, há quem partilhe da opinião de que foi precisamente essa estabilidade que propiciou o investimento de vários capitais estrangeiros no país, em especial o francês). Por outro lado, a Costa do Marfim teria beneficiado de uma situação étnica absolutamente excepcional. De facto, ao contrário dos países supramencionados onde a existência de alguns grupos de dimensão considerável (haúça-ioruba-ibo, bacongo, hútu-tutsi, etc.) afigura-se um obstáculo à implantação de um poder legítimo, a vantagem da Costa do Marfim reside na sua diversidade étnica ( 6 0 grupos), ou seja, numa divisão de facto, o que permite ao Estado impor a sua autoridade.

o comunalismo de Julius Nyerere (Tanzânia) ou o projecto de grande vulto de Mobutu (Zaire) relativo à autenticidade. Decerto que, nesses diferentes casos, o recurso aos valores antigos é apresentado de uma forma totalmente positiva; esses valores deixam de se assumir como um impedimento à estabilidade dos Estados ou ao desenvolvimento económico; inversamente, os seus autores transformam-nos num elemento decisivo da construção nacional e da mobilização do campesinato (como o movimento «Ujamaa» na Tanzânia). Contudo, apesar dessa inversão de sentido, o procedimento é, uma vez mais, o mesmo; a referência à tradição mantém-se muito distante daquilo que pretende explicar - ou seja, uma sociedade pré-colonial em específico - e apresenta-se simplesmente como um empreendimento relativamente bem-sucedido de legitimação de determinados regimes africanos. Em última análise, a interpretação predominante dos tribalismos representa apenas um dos elementos de um discurso mais geral sobre a África Negra contemporânea. Á semelhança das ideologias do desenvolvimento e das ideologias de Estado, a sua formulação parte de uma referência primordial, a sociedade tradicional; seja ela valorizada ou aviltada, um obstáculo ou um impulso, trata-se de uma sociedade concebida como uma abstracção, uma figura ideal e fechada; a sua função não consiste em esclarecer o universo de que é supostamente representante (as sociedades pré-coloniais) mas antes em promover a ideia de que o cerne dos problemas africanos radica-se numa especificidade cultural que seria, de certa forma, testemunhada pela maior parte do continente africano.

Não prosseguiremos com esse tipo de explicação pois apesar de a Costa do Marfim constituir um exemplo raríssimo de estabilidade política (a par da Costa do Marfim, apenas o Senegal, os Camarões e o Quénia não registaram golpes de Estado), não se pode inferir automaticamente que os problemas étnicos são inexistentes. Ou melhor, a incerteza que reina actualmente sobre a sucessão do chefe do Estado costa-marfinense suscita dúvidas sobre os resultados (integração nacional) da política adoptada há mais de 20 anos, como se houvesse o receio de que, na eventualidade de um vazio de poder, esses fenómenos recalcados pelo discurso oficial durante tanto tempo se pudessem manifestar aqui e acolá. Um indicador preliminar insta a uma reavaliação da imagem da diversidade étnica. Com efeito, essa deixa-se substituir facilmente por uma partição mais grosseira correspondente a tipos de entidades regionais. A Norte, dois grandes grupos, os malinké (ou dioula) e os senoufo; a Sul, as unidades krou e akan. Apesar de se tratar de um esquema simplista, importa reconhecer que essa nova divisão constitui

O estudo de caso apresentado põe em causa essa interpretação, ou melhor, os procedimentos que lhe são subjacentes, tendo em vista um duplo objectivo. Através de uma breve análise do mundo pré-colonial, avançar-se-á com uma leitura crítica dos pressupostos substantivistas que lhe servem de base evitando também a sua substituição por uma nova abordagem que obedeceria à mesma generalização excessiva. Com efeito, apesar de poder ser considerado paradigmático, o «etnismo» em causa, numa primeira fase, deve manter-se no nível em que se encontra, ou seja, o nível de um particularismo cujo significado está circunscrito à colónia e depois ao país onde se deu o seu aparecimento histórico. No nosso entender, a apresentação de uma interpretação mais global dos movimentos tribalistas na África Negra só será possível através de um modo: a multiplicação e comparação dos estudos de caso. Esse «etnismo» introduz o grupo bété que ocupa uma parte significativa da região centro-oeste da Costa do Marfim, ao longo de 15 0 0 0 km2.

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Os bété: uma criação colonial

uma matriz satisfatória das representações populares^ organizando o espaço nacional em grandes unidades coerentes, em «civilizações», cuja ocupação territorial realça dois grandes tipos de fronteira natural. Por um lado, a savana a Norte, ocupada mormente pelos malinké e os sénoufo, e a floresta que corresponde à área principal de habitat dos krou e akan. Por outro, o rio Bandama que atravessa o país de Norte a Sul redistribuindo as populações das florestas em «povos do Oeste» e «povos do Leste» (a saber, respectivamente, os krou - aos quais se juntam os grupos mandé - e os akan). Sem subscrever essa representação simplificada da paisagem costa-marfinense simultaneamente geográfica, económica e sociocultural, é possível, todavia, envidar esforços no sentido de compreender a sua aplicação e função. Encarando a região silvestre como exemplo (o problema étnico dos bété situa-se precisamente nesse contexto), verifica-se o estabelecimento de uma distinção nítida, e inclusivamente uma oposição, entre os povos do Oeste e os povos do Leste, cuja validade parece estribar-se em referências tradicionais. Assim, a Oeste, no âmbito da agricultura, as populações dedicar-se-iam sobretudo ao cultivo do arroz, a sua organização social pautar-se-ia pela linhagem e a segmentação, o que, recorrendo a uma expressão cara aos administradores coloniais, se traduziria por um estado de espírito «anárquico», «libertário», etc. [traços de uma mentalidade própria das sociedades desprovidas de um aparelho de poder separado ou centralizado) e, além disso, seriam regidas por um tipo de filiação patrilinear. A Leste, pelo contrário, predomina a cultura do inhame, a estrutura linhageira é conjugada com uma organização política baseada em chefarias e o modo de filiação é mais orientado para o matrilinearidade^ A essa diversidade de elementos de diferenciação acresce a questão da origem. Considera-se que as populações krou (reunindo os bété, assim como os dida, guéré, wobé, neyo, etc.) provêm da Libéria ao passo que as do grupo akan (reunindo em particular os baoulé e os agni) seriam originárias do Gana, mais especificamente do antigo reino Ashanti do qual se teriam separado no início do século XVIII. O interesse dessas referências culturais não reside tanto nas suas menções explícitas (no caso vertente, um certo saber sobre as sociedades ditas tradicionais) mas antes na sua forma de apresentar a trama 2. Por vezes, é reduzida a uma simples tripartição: os povos do Norte incluindo tanto os malinké quanto os sénoufo (país de savana dominado pelo islamismo), os povos do Leste (grupo akan) e os povos do Oeste. Trata-se de uma representação veiculada precisamente pelas populações do Leste e do Oeste. 3. Acerca dos problemas relativos à oposição entre o Leste e o Oeste em termos agrícolas e socioculturais, consultar o artigo redigido por nós em conjunto com J.-P Chauveau e J. Richard, «Histoires de riz, histoires d'igname: le cas de la moyenne Côte-d'lvoiro^^/ncQ LI (2), 1981.

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ideológica que permite justificar (quer em termos de celebração quer em termos de desqualificação) as posições de cada uma dessas sociedades no seio do espaço sociopolítico costa-marfinense. Mais concretamente, essas referências apenas adquirem o seu verdadeiro significado relativamente a questões nacionais que gravitam em torno do regime e da sua legitimidade. Afigura-se oportuno especificar alguns aspectos antes de compreender o teor e a aplicação dessas referências. Uma primeira abordagem indica que os grupos do Oeste e do Leste não têm o mesmo peso, desde logo, no plano demográfico: os akan ascendem aos 2 milhões ao passo que os krou a apenas 600 mil indivíduos. Ambos os grupos caracterizam-se pelo predomínio de uma etnia: no caso dos akan, prevalece o grupo dos baoulé (cerca de um milhão de pessoas) sendo que, no caso dos krou, os bété são o grupo preponderante (cerca de 300 000 pessoas). Esses dados, por si só, têm pouco interesse uma vez que a disparidade geográfica não determina nem justifica a priori uma desigualdade de ordem mais geral (em especial, no plano sociopolítico); porém, assumirão uma importância concreta aquando da análise de determinadas características da economia de plantação no país bété, em particular os movimentos migratórios das populações baoulé para o Centro-Oeste costa-marfinense tornando essa região uma zona de colonização agrícola. Um segundo elemento desprovido de qualquer ligação pertinente com o anterior reforça claramente o fosso diferencial entre os dois grupos. Os akan e, em especial, os baoulé gozam de uma melhor representação a nível do aparelho e sobretudo a nível do poder de Estado. Trata-se de uma proposição merecedora de algumas explicações e cambiantes. Seria seguramente excessivo e mesmo erróneo reduzir a ordem política costa-marfinense a uma única etnia, como se os naturais akan ou baoulé (com excepção dos naturais das restantes etnias) se identificassem inteiramente com o regime implementado pelo presidente Houphouèt-Boigny, A realidade é infinitamente mais complexa ou subtil. A fim de evocar apenas alguns aspectos, atente-se nas rivalidades ou nos antagonismos internos no mundo akan (a par do mundo baoulé), a presença de novas formas de identificação que tendem a suprimir as referências culturais em prol das pertenças a um dado estrato socioeconómico, a existência de clivagens no seio da classe política costa-marfinense entre a geração mais nova e a mais velha (por outras palavras, entre aqueles que fizeram a história política da Costa do Marfim desde o surgimento do sindicato dos plantadores e do PDCI-RDA até ao final da Segunda Guerra Mundial, e aqueles cuja carreira progrediu a partir da independência, com o regime de Houphouèt-Boigny). Todavia, é sobretudo a alta administração e

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o aparelho de Estado que integram inúmeros naturais de outras etnias"*, sobretudo dos malinké (ou dioula) e também dos bété. Longe de matizarem o nosso desígnio inicial, esses dados, à primeira vista, parecem desmenti-lo na totalidade e, pondo de parte a origem baoulé do presidente e eventualmente a importância demográfica dos akan, tudo parece apontar, pelo contrário, para a ausência de uma dominação étnica no seio do Estado costa-marfinense. Na verdade, essa diversificação concreta ou esse equilíbrio étnico existente no aparelho de Estado propriamente dito [governo, exército, gendarmaria, polícia, administração prefeitoral, etc.) e, mais globalmente, na função pública, não é observável a nível do poder de Estado. Essa distinção é largamente consentânea com a estrutura dual do regime costa-marfinense, marcada pela coexistência da rede do partido único [PDCI-RDA) e a rede da administração [ambas as redes estão notoriamente presentes na figura de Houphouèt-Boigny, simultaneamente líder do partido e presidente da República). Com efeito, esse poder designa essencialmente o gabinete político e sobretudo a comissão executiva do partido; seguramente que a maioria dos ministros e alguns altos-funcionários fazem parte dessas instâncias dirigentes, porém, assiste-se a uma filtragem, a uma selecção que realça a prevalência de naturais akan [e sobretudo baoulé) e a sub-representação manifesta dos povos do Oeste. Nesse sentido, tudo se processa como se, para lá do quadro especificamente institucional ou republicano, o domínio político, ou seja, o domínio da soberania, devesse ser tratado dentro da esfera akan, espelhando uma certa desconfiança face aos naturais da zona ocidental da Costa do Marfim, nomeadamente os bété. Segundo essa perspectiva, afigura-se significativo o facto de que as rivalidades que surgiram há alguns anos - motivadas pela premência crescente do problema da sucessão de Houphouèt-Boigny - se desencadearam num círculo restrito de representantes do mundo akan, e em especial do universo baoulé.® Por conseguinte, revela-se oportuno identificar a origem dessa desconfiança, explicar a gênese da relação política díspar estabelecida entre os costa-marfinenses do Leste e do Oeste, em suma, compreender as causas do etnismo bété. Numa primeira análise, as referências socioculturais supramencionadas parecem desempenhar uma função de

4 . 0 que corresponde ao discurso oficial: os cargos no seio do aparelho de Estado devem reflectir um equilíbrio étnico. 5. É caso para perguntar acerca dos restantes grandes grupos étnicos, malinké e sénoufo. 0 problema da sua representação a nível do poder de Estado não se coloca em termos equivalentes aos dos bété. A legitimidade akan parece implicar uma receptividade, até mesmo uma aliança, perante os povos do Norte, uma aliança, aliás, de natureza histórica, pois os últimos militaram desde cedo nas fileiras do RDA.

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suma importância. De facto, tudo se processa como se essas referências permitissem confirmar as diferenças identificáveis no seio da sociedade global costa-marfinense, como se a política reformulasse as suas próprias práticas a fim de velar a máscara de uma Costa do Marfim arcaica, dividida em formações étnicas específicas. Assim, a zona oeste da Costa do Marfim encabeçada pelo grupo bété seria de algum modo vítima dessas tradições, justificando assim a desconfiança do poder. Outrora caçadores e guerreiros, pouco propensos a actividades agrícolas, os bété teriam desenvolvido apenas uma economia de pequena plantação mantendo uma relação bastante lassa com o trabalho e a terra; a ausência clara de estruturas de autoridade dignas desse nome explicaria o comportamento veleidoso e até subversivo dos povos do Oeste face ao poder político costa-marfinense. No cômputo geral, o retorno ao universo pré-colonial, a uma «personalidade de base» constitui simultaneamente um mecanismo de legitimação e desqualificação; ou melhor, justifica uma situação política através do estabelecimento de uma relação hierárquica no plano cultural; numa primeira fase, esse movimento obscurece a sua origem [a da dominação) e perde-se em meros rumores costa-marfinenses; os enunciados de cariz étnico ou cultural deixam de remeter para um sujeito da enunciação [o poder político) e podem ser formulados por todos. Porém, num segundo momento, ao situarem-se no mesmo registo, os seus destinatários [os povos do Oeste e em particular os bété) tornam-se, por seu turno, sujeito da enunciação: simplesmente por meio da apropriação desses enunciados, invertem o conteúdo, e o procedimento de desqualificação suscita tentativas de valorização. O desafio reside precisamente em fazer surgir elementos positivos do universo pré-colonial; para remontar ao político sem nomeá-lo, basta posicionar-se no terreno que esse escolheu - eis um dos momentos-chave da constituição étnica. Através de um movimento reflexivo, o jogo da identidade amplia-se e chega a conferir um valor substancial à etnia, ou seja, a estabelecer um laço orgânico entre uma situação actual ou recente [relação do Oeste costa-marfinense com a sociedade global e o poder político) e as tradições. A esse respeito, constataremos que os primeiros participantes desse movimento de etnicidade são precisamente aqueles que evidenciam uma consciência ou um ressentimento político mais acentuado, ou seja, os intelectuais. Na sua óptica, a questão cultural não representa simplesmente uma resposta indirecta às práticas discriminatórias do poder, trata-se igualmente de uma forma privilegiada de aprofundar a consciência colectiva. Além disso, a análise não se deve cingir a uma comprovação dessa dialéctica na qual a cultura, na sua acepção mais lata e por vezes mais

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comum, assume-se como desafio de uma relação que não ousa proferir o seu nome. Embora as referências tradicionais estejam nitidamente patentes no facto étnico bété, a sua utilização oculta uma das suas dimensões fulcrais, nomeadamente a dimensão histórica. Mais especificamente, essa utilização oculta um não-dito, até mesmo um interdito, isto é, a génese da relação díspar anteriormente referida e o processo relativamente recente da etnicidade bété. O nosso objectivo consiste em descrever esse processo: o modo como se propiciou a formação de um conjunto coerente - o país bété - desde a colonização francesa, e a sua cristalização através de uma oposição latente e, por vezes, evidente ao poder de Estado costa-marfinense, no período subsequente à independência. Por conseguinte, o facto étnico bété resulta sobretudo mais de um naipe de determinações associadas à história costa-marfinense contemporânea, do que propriamente de um prolongamento tardio das referências tradicionais. Essa proposição estriba-se num primeiro argumento que questiona precisamente a existência de uma etnia bété pré-colonial. Apesar de a existência da etnia bété ser inegável actualmente, e de a sua designação e o seu território estarem isentos de qualquer ambiguidade, não se pode, obviamente, adoptar uma posição de tal assertividade acerca do universo anterior à colonização francesa. Desde logo, o etnónimo é discutível; as nossas investigações, que incidem mormente sobre um dos grandes grupos que formam a etnia bété^ designados comummente de «bété de Gagnoa», confirmam que os visados descuravam esse denominativo antes do período colonial. No seu entender, o termo bete provém de uma expressão corrente betso betso cujo significado literal corresponde a «paz» ou «perdão»; ora, conforme indicado explicitamente pelos arquivos disponibilizados pela administração colonial, trata-se de uma expressão utilizada recorrentemente pelas populações locais durante a fase de pacificação intensiva, designando, sob a forma de identidade, um gesto de conciliação ou submissão.

OS grupos que compõem o actual país bété não se revêem numa identidade comum. De facto, a noção de «país bété», que pressupõe a existencia de um território claramente delimitado, não encontra um correspondente real na esfera pré-colonial: conforme constataremos, esse território foi forjado no âmbito da conquista e desenvolvimento coloniais. Para compreender uma unidade sociológica minimamente pertinente, é necessário abordar o nível inferior ao da «etnia», ou seja, o nível comummente designado de «tribo». Nessa escala, detecta-se um espaço coerente [nomeadamente, um território e uma rede de relações sociais intensas) a par de um etnónimo; os militares franceses não se enganaram a esse respeito: aquando do confronto com as populações ditas bété, apelidaram-nas através dos denominativos que elas se atribuíam a si próprias (as tribos apresentam dimensões variáveis desde algumas unidades residenciais a múltiplas dezenas). A sua coerência interna não significa que essas tribos formavam conjuntos autónomos, alheios uns aos outros; em termos de organização social, partilhavam os mesmos traços fundamentais, nomeadamente uma estrutura patrilinear de tipo linhageiro e segmentário. Contudo, trata-se de uma característica demasiado abrangente para conferir uma identidade ao conjunto dessas tribos e definir a etnia bété, sendo igualmente aplicável à maioria das populações do Oeste costa-marfinense (gouro, dan, wobe, guéré, dida, gagou, populações cuja identidade étnica foi contestada por alguns etnólogos antes da colonização"). Ademais, um tecido de laços matrimoniais, económicos e comerciais' organizavam outros espaços que, transcendendo o contexto tribal, também não correspondiam a uma entidade étnica. Muito pelo contrário, distinguiam os grupos bété entre si e propiciavam o seu contacto com as populações limítrofes. A existência de práticas sociais, de instituições e de traços linguísticos concorriam para a singularização desses espaços, formando faixas socioculturais pouco consentâneas com as divisões étnicas, tal como vigoram actualmente. Por exemplo, entre os «bété de Gagnoa», três tribos conciliam a sua organização patrilinear com um sistema matriclânico. Ora, os grupos vizinhos, gban e dida, também evidenciam esse mesmo sistema; além do mais, tanto uns quanto outros conferem um papel importante à caça colectiva com rede e adoptam um mesmo mecanismo de identificação com

Não obstante a divergência de pareceres, opiniões ou interpretações acerca da origem do etnónimo', um aspecto afigura-se incontornável: 6. Efectivamente, é possível identificar os bété de Daloa, os bété de Soubré e os bété de Galoa. Note-se que essa tripartição não data do período pré-colonial pois o critério de diferenciação define três cidades criadas de raiz pela administração colonial (postos militares]. 7. Provavelmente, será necessário remeter para as obras - ou melhor para as respectivas fontes de M. Delafosse e G. Thomann (ambos administradores coloniais; no início do século, G. Thomann ocupara o cargo de administrador do Círculo do Sassandra que compreendia o país bété], uma vez que incluem o termo «bété» (mais precisamente, betE],que designa sensivelmente o país bété actual. Todavia, importa sublinhar um aspecto crucial: o vocábulo é utilizado por esses autores pese embora a ignorância generalizada em relação ao alegado país bété (a penetração colonial inicia-se em 1 9 0 8 e os seus testemunhos datam de 1901 e 1 9 0 4 ] e denominar aparentemente uma entidade linguística.

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Nessa matéria, desconhece-se o modo como procederam à construção dessa entidade. 8- Quanto aos gouro, consultar C. Meillassoux (1964]. Quanto aos dida, consultar E. Terray (1969). '' As relações comerciais organizavam-se em função de dois eixos principais: um em direcção ao Sul, fomentado pelos negociantes europeus desde o século XVI e dedicado a transacções de cativos por objectos apelidados de manilhas. Outro em direcção ao Norte, organizado pelas redes de corretores Walinké e especializado na troca de cola florestal por ferro, espingarda, sal, etc.

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Os bété; uma criação colonial

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esse instrumento cinegético (a rede é equiparada a um ser vivo que encarna o colectivo linhageiro e é partilhada entre fracções aquando do processo de segmentação]. A contrario, outros bété, em especial os bété de Daloa estudados por Denise Paulme em 1 9 5 8 e mais recentemente por Zunon Gnobo", ignoram a instituição matriclânica mas desenvolveram, em contrapartida, uma organização tribal-linhageira mais estruturada (conforme testemunha a noção de digpe que designa ora o patriclã ora a tribo] e menos ligada às actividades cinegéticas. Numa outra linha de raciocínio, a questão da origem (à qual se alude frequentemente a fim de explicar a identidade étnica] não fornece mais argumentos a favor de uma identidade bété pré-colonial, reforçando antes o ponto de vista contrário. Os inquéritos que realizámos sobretudo na região de Gagnoa e o estudo dos arquivos coloniais sugerem uma história do povoamento especialmente diversificada. Alguns grupos afirmam ser originários do Norte, das zonas de savana, outros do Sudoeste, e os restantes do Leste ou do Sudeste. Curiosamente, essa dispersão contrasta com a versão oficial segundo a qual todos os bété seriam originários da Libéria. Trata-se de uma tese que remonta às primeiras classificações levadas a cabo por M. Delafosse e G. Thomann" numa base estritamente linguística. Os bété constituiriam um dos ramos do grupo ebúrneo-liberiano (comummente designados de krou]; inicialmente, o seu país natal teria sido a Libéria e, na sequência das migrações, ter-se-iam estabelecido no Centro-Oeste costa-marfinense. Trata-se de um exemplo paradigmático de uma construção simultaneamente intelectual e administrativa (pois para o poder colonial era uma questão de nomear e classificar as populações antes de governá-las e «desenvolvê-las»] omissa em relação às suas fontes de informações. M. Delafosse e G. Thomann tecem considerações sobre o país bété, mas, na realidade (no que se refere às suas delimitações actuais] desconhecem-no quase em absoluto; estamos precisamente no início do século ( 1 9 0 1 - 1 9 0 4 ] e a região do Centro-Oeste só será verdadeiramente colonizada (ou pacificada, para recorrer à expressão colonial] entre 1907 e 1912. G. Thomann subiu efectivamente o rio Sassandra (desde a cidade de Sassandra até a Seguela] estabelecendo os postos militares de Soubré, Issia e Daloa, mas esses três postos não são mais do que o perímetro ocidental do actual país bété.

Posteriormente, aquando da conquista militar propriamente dita, a construção de M. Delafosse e G. Thomann colocará sérios problemas ^nc seus sucessores; descobrindo e pacificando esse país bété (com ^íguns reveses pelo caminho'^], reiterarão continuadamente nos seus \]atórios o seu total desconhecimento face às populações que o habitam e, beneficiando dessa sanção do real, apresentarão as diferenças internas, de natureza psicológica, linguística ou etnológica, a ponto de r e c o n s t i t u i r a unidade inicial em vários grupos diferentes (por exemnlo. os «bété propriamente ditos» localizados no eixo definido por G. Thomann: Soubré-lssia-Daloa, os tshien do Norte, os yocolo, os tishien do Sul]. Na elaboração das primeiras monografias etnográficas, alguns frisarão, por vezes, o carácter heteróclito das origens. Por exemplo, os yocolo (que constituem actualmente uma das múltiplas tribos do país bété, mas que, nesse período de conquista militar, designavam um subgrupo importante] seriam de origem malinké. Além disso, os bété de Gagnoa, apelidados de «tshien do Sul» nos primeiros tempos da colonização, serão diferenciados dos bété do Oeste, em particular quanto aos traços físicos e à existência material. Alguns anos mais tarde (1935], um administrador colonial esclarecido, L. Tauxier, tecerá o seguinte comentário avisado acerca dos bété: «Do ponto de vista antropológico, as raças linguísticas já não são miscigenadas. Na verdade, existe um grupo de homens cujas origens antropológicas são variegadas mas que se mostraram favoráveis ao mesmo sistema linguístico"».

10. Consultar D. Paulme ( 1 9 6 3 ] e Z. Gnobo (1980). 11. Consultar em particular os dois artigos (1901), ( 1 9 0 3 ) de G. Thomann, «A Ia Côte-d'Ivoire: le Sassandra» e de M. Delafosse, Vocabulaire comparatif de soixante langues et dialectes parlés à la Côted'Ivoire, 1904.

14. «Contribution à l'histoire du peuplement de la Côte-d'Ivoire», Annales de l'Université d'Abidjan..., série F, 1969. 15. Segundo L. Téty Gauze, outras etnias descendem dos magwe, especificamente os dida, os gagou, "S godié e os neyo.

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Não obstante essas ressalvas, a tese de uma origem comum será preservada. Porém, verifica-se um fenómeno interessante: uma segunda versão - que, em certa medida, refuta a primeira - situa o local primitivo na Costa do Marfim, mais especificamente na zona florestal do Sudoeste, ao invés da Libéria. Trata-se de uma versão proposta recentemente ( 1 9 6 9 ] por Louhoy Téty Gauze", segundo a qual os bété são os descendentes de um grupo original chamado magwe". Seria importante discutir o fundamento dessa tese e investigar as suas fontes, mas, no nosso entender, importa sobretudo assinalar o movimento da etnicidade, para o qual a própria contribui. Sem antecipar explicações que surgirão mais tarde, é possível aventar desde já que, ao transferir 12. Em particular o cerco do posto de Daloa em 1908, e a revolta contra o posto de Gagnoa em 1913. 13. A esse respeito, afigurar-se-ia oportuno definir com maior rigor esse sistema linguístico (apesar de não sermos linguistas); pois, por um lado, a intercompreensão entre os principais grupos bété não é a norma; por outro lado, ao designar as estruturas sintácticas, esse sistema não se aplica somente à etnia bété mas ao conjunto mais alargado que inclui uma parte significativa das populações do Oeste costa-marfmense.

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o local primordial dos bété - a Libéria - para o Sudoeste costa-marfinense, mantendo o princípio de uma identidade original, essa nova versão executa uma dupla operação; por um lado, remete a primeira tese para o período colonial e para as construções fracamente sustentadas dos administradores; por outro lado e, mais importante ainda, constitui enquanto tal uma afirmação de autoctonia (local costa-marfinense e não liberiano] cuja compreensão é, paradoxalmente, alheia às referências pré-coloniais; com efeito, essa apenas adquire sentido no contexto geográfico costa-marfinense, nos processos de desqualificação, e inclusivamente de exclusão, decorrentes de um domínio que não ousa proferir o seu nome (o poder político); assim, apresenta-se ao mesmo tempo como uma iniciativa de valorização e uma tentativa de inversão da ordem de precedência: «Os povos do Leste, os aka, provêm do Gana, ao passo que nós, os bété, somos originários da Costa do Marfim». Por conseguinte, a questão da origem, por mais irresolúvel que seja, constitui a pedra angular da consciência colectiva. A esse respeito, observaremos a função específica desempenhada pelos intelectuais nesse processo de cristalização étnica. Efectivamente, apesar de não restarem dúvidas quanto ao facto de a sociedade pré-colonial representar um dos momentos-chave da etnicidade, uma questão fundada num passado imemorial da identidade étnica, só é possível alinhar uma tentativa de reconstrução dessa sociedade com esse movimento reflexivo; por outras palavras, não é possível transpor a etnia e sobretudo o sentimento de pertença a uma mesma comunidade para o sistema de referências coloniais. A consideração desse sistema de referências requer uma ruptura metodológica, um abandono do sujeito tal como é entendido actualmente; atendendo às limitações do presente ensaio, não é possível avançar com uma definição mais clara e pormenorizada das incumbências de um programa dessa natureza. Nesse sentido, avançar-se-á simplesmente que a ruptura proposta exige uma verdadeira «expatriação», ou seja, uma desconstrução do objecto pré-dado (nomeadamente, os bété) através de uma abertura às populações limítrofes. Procedendo deste modo, o qual se traduz pela definição de novos espaços sociais (através do apuramento de traços socioculturais comuns a grupos actualmente considerados distintos em termos étnicos, ou ainda através da identificação de interesses económicos complementares), poder-se-á apresentar uma imagem da sociedade pré-colonial mais consentânea com aquilo que ela foi outrora, recuperando em particular a sua dimensão histórica (história do povoamento, formação de grupos tribais, papel e evolução dos intercâmbios na constituição desses espaços sociais).

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Por conseguinte, importa explicar o modo como se propiciou efectivamente a formação da etnia bété e identificar o conjunto de determinações que contribuíram para que a mesma ocupasse uma posição de relevo no panorama sociopolítico costa-marfinense. O etnónimo «bété» emana das classificações linguísticas de G. Thomann e M. Delafosse. Porém, referiu-se igualmente que, ao longo da fase de conquista e pacificação (que durou cinco anos: 1 9 0 7 - 1 9 1 2 ) , os responsáveis militares - quase inadvertidamente - colocaram em causa o valor genérico do denominativo ao afirmarem que a descoberta do país bété não assenta em nenhum conhecimento prévio e que, além disso, esse país é povoado por grupos distintos aos quais se atribui individualmente um vocabulário específico. Porém, após esse período de hesitação, por volta dos anos 20, o etnónimo designa o país bété de forma inequívoca. O que aconteceu no entrementes? Múltiplos factores contribuíram para a formação e a integração do país bété. Em primeiro lugar, desde o início da implantação francesa, e antes mesmo da implantação da política de pacificação, a unidade bété, sob a alçada de G. Thomann (comandante de círculo), integrava o círculo do Sassandra (cujos limites se mantiveram inalterados entre 1 8 9 6 e 1908); a concepção e execução da primeira grande estrada do país bété, a saber, o eixo Soubré-Issia-Daloa, inseriram-se precisamente nesse quadro administrativo. Seguiu-se a criação de um quarto posto, o posto de Gagnoa ( 1 9 0 8 - 1 9 1 2 ) por ocasião da prossecução de importantes operações militares. Findas essas operações (que se saldaram no desarmamento geral das populações, numa quantidade significativa de mortes e feridos, e num habitat em grande parte destruído), o país bété encontra-se totalmente pacificado e constitui sobretudo uma unidade coerente, a qual, em termos gerais, apresenta uma forma triangular cujas extremidades representam os três postos de Soubré-Daloa-Gagnoa, ligados entre si através de três estradas: Gagnoa-Soubré, Soubré-Daloa, Daloa-Gagnoa. Importa sublinhar que, na sequência de uma reforma ocorrida em 1908, esse espaço não registou um desenvolvimento homogéneo no plano administrativo: Soubré e as respectivas cercanias foram integradas no círculo do Baixo-Sassandra e o remanescente do país bété no círculo do Alto-Sassandra. No entanto - e, quanto a nós, é esse o ponto essencial - o dispositivo rodoviário criou as condições para o surgimento daquilo que, nos anos 20, as autoridades coloniais designaram de «grande espaço económico natural», isto é, a bacia do Sassandra. Como tal, no nosso entender, a compreensão do processo étnico enquanto tal implica uma intelecção prévia da noção de «país». Trata-se de uma noção inteiramente presente nas práticas militares e administrativas dos

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colonizadores franceses cujo objectivo consistia em forjar um novo espaço facilmente controlável e propício ao crescimento económico ao longo do tempo. Motivo pelo qual a sua construção se realiza em grande medida numa tabula rasa, assistindo-se ao desaparecimento ou à diluição progressiva de sectores inteiros do universo pré-colonial: as actividades cinegéticas e guerreiras, a organização dos intercâmbios e das comunicações intertribais, e ainda as formas de mobilidade residencial. A esse respeito, afigura-se imprescindível abandonar a representação que cristaliza a sociedade colonial nas suas tradições: a multiplicidade de conflitos entre aldeias e a propensão segmentária da estrutura social conferem-lhe uma natureza instável. Consequentemente, o dispositivo colonial põe termo a esse tipo de práticas e integra as populações locais num espaço doravante fixo; procede-se a uma reorganização autoritária do habitat, em grande parte destruído (pelos militares ou pelas próprias populações), ao longo dos eixos rodoviários ou nas suas imediações. Nesse sentido, a noção geográfica do país designa esse novo rumo imposto manu militari aos povos colonizados, anunciando futuras transformações socioeconómicas; a obrigação do pagamento do imposto, de cultivar e vender determinados produtos (cola, borracha) para a sua restituição, o trabalho forçado para obras de infra-estrutura são alguns dos elementos que exigem e justificam o domínio do espaço e do habitat. Assim, a formação do bété dá-se praticamente nessa primeira fase de colonização (1913-1925, correspondente à implementação do dispositivo colonial), ã qual acresce, no entanto, um dado suplementar que enceta o processo étnico propriamente dito. Com efeito, esse dispositivo colonial debate-se com uma série de formas de resistência: a recusa do pagamento do imposto, a fraca participação das populações nos primeiros projectos de desenvolvimento (operação cauchu); mas sobretudo o trabalho forçado e o alistamento militar para a grande guerra europeia suscitam inúmeras fugas, sobretudo de jovens que rumam para a Baixa-Costa". Essa região da Costa do Marfim, que na segunda metade do século XIX (isto é, antes da criação da colónia) fora a base de apoio da penetração francesa (mas onde os ingleses dispunham de feitorias de comércio), constitui um foco de atracção pelo facto de reunir os principais centros urbanos da colónia: Grand-Lahou, Bassam e Bingerville (as duas últimas correspondem às capitais consecutivas da colónia, antes de Abijão). Essa primeira vaga do êxodo rural revela-se fulcral para o entendimento do processo étnico. Por um lado, proporciona um contacto entre o país bété e os pólos dominantes da colónia costa-marfinense e inaugura um movimento

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de migração para a cidade, bem como de salariado, que florescerá durante as décadas seguintes. Por outro lado, essa relação com a sociedade global estabelece-se sob o signo da desigualdade. De facto, a integração do país bété no sistema colonial é tardia, constituindo um dos últimos territórios a serem pacificados aquando do desfecho das operações militares em 1912-1913; no entanto, os jovens migrantes que se estabelecem na Baixa-Costa deparam-se com uma região onde a colonização já havia concretizado uma parte considerável da sua «obra», onde já existia uma vida administrativa e económica, e onde as relações entre colonizadores e colonizados já não assentavam na submissão revestindo-se de uma maior complexidade; no Sudeste (ou seja, nas imediações da Baixa-Costa), assiste-se ao desenvolvimento de uma economia de plantação essencialmente «nativa» baseada no café e no cacau, o comércio africano revela um certo dinamismo e os costa-marfinenses, ao invés dos franceses, ocupam um número considerável de postos de comando e de controlo (tanto na administração quanto nos estaleiros). Em suma, são confrontados com uma realidade que os coloca de imediato na base da escala social confinando-os à condição de trabalhador não-especializado ou subalterno durante um largo período de tempo. É nesse contexto que se delineiam os contornos de um estereótipo e de uma consciência de cariz étnico. Os relatórios coloniais da época são, a esse propósito, expressivos porquanto se referem explicitamente a «esses jovens bété de temperamento turbulento e instável» que não conseguem manter um emprego. Logo, a Baixa-Costa e, em termos mais gerais, o Sudeste apresentam-se simultaneamente como um pólo dotado de um mercado de trabalho e uma região que encerra a história recente da colónia. As relações sociais cristalizam as referências étnicas uma vez que a colonização engendrou determinadas desigualdades entre regiões; enquanto algumas populações participam activamente no empreendimento colonial, outras são «pacificadas» a custo. Além disso, ser servo também significa ser bété pois a situação objectiva (proletariado flutuante) desses jovens migrantes confunde-se com a posição diferencial erttre o seu país natal e as áreas de atracção da colónia costa-marfinense. Importa especificar que, nos relatórios administrativos, a expressão «jovens bété» adquire uma acepção mais lata designando indiferenciadamente os naturais de uma vasta região compreendida entre Sassandra e Daloa (que corresponde sensivelmente ao antigo círculo de Sassandra). Não restam dúvidas de que o vocábulo ganhou um uso corrente na Baixa-Costa, ou seja, deixa de estar circunscrito ao meio rural (o país recém-pacificado) para ser empregado tanto pelos visados quanto

16. Designação da região situada entre Grand-Lahou e Grand-Bassam.

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pelas restantes populações costa-marfinenses. Além dessas premissas de uma consciência colectiva fora do país bété, o movimento étnico desenrola-se igualmente no meio rural. Com efeito, o «grande agrupamento econômico natural» anunciado pelos administradores concretiza-se paulatinamente a partir dos anos 1 9 2 5 - 1 9 3 0 , coincidindo com a introdução de uma economia de plantação alicerçada em duas culturas arbustivas - o café e o cacau - cuja dinâmica singular dará azo, algumas décadas mais tarde, ao que se designa habitualmente de «ideologia da autoctonia». Contudo, antes de proceder à análise desse aspecto fundamental da etnicidade bété, importa reflectir pormenorizadamente sobre a gênese e as principais características estruturais dessa economia. O desenvolvimento da economia de plantação no país bété e, em termos mais gerais, na região centro-oeste da Costa do Marfim é fortemente marcado por um facto essencial. Ao contrário de outras regiões da colônia, designadamente o Sudeste onde a exploração das culturas perenes é realizada sobretudo pelas populações autóctones desde o início do século'^ a valorização dessa zona é deliberadamente concebida como um projecto de colonização agrícola. De facto, a partir dos anos 20, assiste-se ao estabelecimento de vários colonos que adquirem plantações de envergadura considerável (amiúde com muitas centenas de hectares cada]. Porém, essa região torna-se um dos destinos mais importantes da imigração africana sobretudo graças aos incentivos da administração. Num primeiro momento, trata-se da imigração de antigos atiradores das tropas coloniais e comerciantes malinké que povoam os postos (tornando-se assim os principais agentes de urbanização no país bété: Gagnoa, Daloa, etc.]; e, em seguida, de populações atraídas pelas possibilidades de rendimento oferecidas pela produção de cacaueiros (até à década de 1 9 3 5 , verifica-se apenas o cultivo do cacau, ao qual se juntará posteriormente o cultivo do café que relega o primeiro para segundo plano]. Essas populações exibem origens variadas. Muitas provêm da savana costa-marfinense (malinké-sénoufo] e das colônias sudanesas limítrofes (malianas e voltaicas]; outras do Centro-Este da Costa do Marfim, do imponente país baoulé, que, ao longo dos anos, aumentará continuamente o seu contingente de migrantes em direcção ao país bété. Apesar de o estabelecimento de estrangeiros colonos na região ter determinado o arranque da economia de plantação, as populações autóctones não foram alheias à sua expansão. Na realidade, o processo contemplou duas fases. Numa primeira fase.

17. Essa economia de plantação característica da região sudeste da Costa do Marfim originará uma classe de plantadores abastados, cujo papel será determinante na formação de uma oposição sindical e política contra o regime colonial.

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verifica-se uma resistência dessas populações à administração que rocura impor a cultivo do cacau e m campos colectivos. Na segunda fese, que coincide com os anos 3 0 , as mesmas dedicam-se progressiv a m e n t e à exploração do café em pequenas plantações individuais (div e r s i f i c a d a s posteriormente com a introdução dos cacaueiros]. A exnlicação desse comportamento (interpretado pelos administradores da época como «entusiasmo»] prende-se com a implementação de um sistema socioeconómico original e amplamente autónomo por volta das décadas de 1 9 3 0 - 1 9 4 0 ; original pelo facto de se desenvolver no país bété e em toda a «bacia do Sassandra» e de assentar em relações complementares entre autóctones e alógenos; autónomo pois o teor dessas relações e, em termos mais globais, a dinâmica da economia de plantação escapam ao controlo da administração colonial (mesmo no caso ter sido ela a impulsionadora]i8. A complementaridade entre autóctones e alóctones emana de dois tipos de relações. Por um lado, uma relação laboral: os migrantes, sobretudo os malinké e os voltaicos, exibem um comportamento activo no país bété pelo que contribuem para o desenvolvimento de uma economia de plantação autóctone. Por outro, uma relação fundiária que se afigura fundamental porquanto constitui uma condicionante da primeira. A fim de fixar esse fluxo de mão-de-obra, ou seja, de responder favoravelmente às aspirações dos migrantes (cujo intuito não consiste em fornecer, a título duradouro, a sua força de trabalho mas de ter acesso às terras], os autóctones cedem parcelas de floresta aos estrangeiros: num primeiro momento como meio de garantir a sua subsistência e num segundo momento para ter acesso à arboricultura mercante. Esse último aspecto merece alguns esclarecimentos pois está no centro da dinâmica singular do sistema socioeconómico local, da transformação progressiva das relações entre autóctones e alóctones em posições concorrenciais, e até antagonistas. Além disso, não há dúvida de que a oportunidade facultada aos estrangeiros de se dedicarem às culturas perenes constitui efectivamente a contrapartida obrigatória das relações de trabalho celebradas, mas também um meio privilegiado de obtenção de um segundo rendimento para os autóctones, paralelo à comercialização do café e do cacau. Sem entrar em pormenores acerca das causas subjacentes ao movimento em massa de alienação fundiária, sublinhar-se-á apenas que o processo de transformação da terra em artigo para venda é análogo ao das mudanças sociais ocorridas no contexto da economia de mercado. Tal como a individualização é inerente 18. Acerca de todos estes aspectos, remetemos para a nossa tese editada pela Karthala, La Société béte: ethnicité et histoire.

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à difusão dessa economia na medida em que implica uma transição de uma estrutura social estribada na unidade linhageira para uma família nuclear, também as vendas de terra operam-se num contexto de relações exclusivamente interindividuais e consoante as necessidades monetárias de uns (os autóctones] e a procura fundiária de outros (os alóctones). Por outras palavras, a venda representa uma das manifestações do processo de individualização, ou melhor, assume-se efectivamente como a concretização do movimento de apropriação privada. Uma vez que o regime fundiário anterior baseava-se num simples direito de uso, a venda atesta, aos olhos de todos e no preciso momento da sua celebração, o acesso de cada um à propriedade. Decerto que um conjunto significativo de alienações se concentra nas mãos dos morgados que, servindo-se do seu poder tradicional de distribuição", transforma-o em capacidade de venda; todavia, pelo menos virtualmente, cada plantador pode vender uma parcela da terra que supostamente lhe é devolvida. Antes de analisar os efeitos dessa lógica particular associada às cessões de terra sobre a evolução das relações entre autóctones e alóctones, importa aclarar as principais características do sistema socioeconómico local. Encetado nos primórdios da colonização, esse movimento de imigrantes regista uma expansão crescente ao longo das décadas subsequentes, em especial no período entre 1 9 5 0 e 1 9 6 0 (fase em que os preços do café e do cacau são particularmente elevados e caracterizada, por outro lado, pela chegada de uma mão-de-obra abundante - na sequência da abolição do trabalho forçado^" - ao mercado de trabalho agrícola) que se distingue pela proliferação dos ajuntamentos de dioula, voltaicos e sobretudo de baoulé. Por conseguinte, a paisagem étnica do Centro-Oeste sofre uma reestruturação completa. As terras aldeãs constituem doravante unidades mistas marcadas pela coexistência de plantações bété e alóctones; o próprio habitat regista uma metamorfose: aos topónimos autóctones acrescem os das residências dioula e baoulé. Em certos locais, muito em particular nas aldeias situadas nas cercanias das cidades, as populações bété tornaram-se minoritárias ao longo do tempo.

19. Antes da colonização, os morgados controlavam a distribuição ftindiária embora não usufruíssem de nenhum direito de propriedade. De facto, esse controlo constituía uma das suas várias competências não sendo dissociável de um poder mais geral sobre o funcionamento do sistema linhageiro. 20. As solicitações de mão-de-obra, para as obras de infra-estrutura e os colonos europeus, foram abolidas em 1947 confirmando a vitória do sindicato agrícola africano e do seu líder Houphouèt-Boigny sobre a administração colonial.

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Baseado no acesso fácil à terra, o sistema socioeconómico local origina explorações de dimensões reduzidas, em média, entre três a quatro l^ectares, o que pode ser explicado por diversos factores. No que se refere aos autóctones, a expansão da economia de plantação está relac i o n a d a com a ruptura das patrilinhagens e o movimento de individualização, o que conduz, em particular, à não-reprodução das relações de dependência entre morgados e cadetes. Cada plantador bété torna-se assim responsável pela sua unidade de produção, contando, porém, com um número de activos muito limitado^' para levar a cabo a sua exploração (salvo os notáveis nomeados pela administração colonial que beneficiam das solicitações de mão-de-obra). Daí recorrer à mão-de-obra «estrangeira» para a realização de determinadas tarefas de cultivo [sobretudo a manutenção das plantações). Contudo, uma vez que a fixação de mão-de-obra depende das possibilidades de acesso à terra, o plantador vê-se forçado a reduzir as suas próprias plantações para conceder algumas parcelas de floresta. As cessões e alienações fundiárias realizam-se por mútuo acordo e a economia de plantação alóctone, escorada em pequenas superfícies, constitui, em linhas gerais, a réplica do seu homólogo autóctone. No entanto, a dimensão média das explorações cultivadas pelos migrantes é sensivelmente superior à das plantações bété; enquanto as últimas têm cerca de três hectares, as primeiras ultrapassam ligeiramente os quatro hectares. Não obstante a sua irrelevância, essa discrepância denota uma relação desigual entre autóctones e alóctones. De facto, os últimos estão numa situação de vantagem no atinente a duas questões estratégicas. Por um lado, podem diversificar as suas aquisições fundiárias através da compra de uma parcela a um dado autóctone, e de uma segunda a outro autóctone, etc. (no cômputo geral, a ocupação alóctone processa-se a partir de dois ou mais terrenos bété). Por outro, beneficiam de uma mão-de-obra - em especial, de natureza familiar - mais numerosa. Muito provavelmente, esse desfasamento não acarretaria consequências nefastas num sistema estabilizado, ou seja, se a imigração estrangeira e a oferta de terra autóctone tivesse diminuído progressivamente. Não foi isso que aconteceu, muito pelo contrário. A sucessão de vagas migratórias prossegue na década subsequente à independência, período marcado pela implantação de um número cada vez mais elevado de naturais do país baoulé. Ora, a imigração dos povos do Leste apresenta características muito particulares. Ao contrário dos dioula e dos voltaicos, os migrantes baoulé não celebram relações de trabalho com os autóctones; a sua única estratégia consiste na aquisição de terra 2 1 . 0 próprio, a(s] sua(s] esposa[s] e eventualmente alguns dos seus filhos.

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(seja por compra, seja por ofertas variegadas) e no estabelecimento do seu próprio habitat, do seu próprio espaço de cultivo dentro das terras autóctones. Na verdade, trata-se de uma estratégia fomentada pelos bété que lhes cederam terrenos com bastante facilidade, e que beneficiou sobretudo do apoio das autoridades, tanto coloniais quanto costa-marfinenses; os vários conflitos suscitados por cessões de terra impróprias ou duvidosas foram dirimidos, na maioria das vezes, a favor dos migrantes; após a independência, a palavra de ordem do governo - «a terra é de quem a cultiva» - aprova a dinâmica migratória, destruindo qualquer recurso aos direitos fundiários tradicionais. Ademais, na sua unidade, os plantadores baoulé estão no topo da estratificação socioeconómica local; a dimensão média das suas explorações ascende aos seis hectares, o que se explica pelo facto de formarem amiúde grupos de entreajuda e de controlarem uma rede de mão-de-obra autónoma de origem baoulé (os jovens baoulé, em especial, trabalham durante seis meses ou um ano na manutenção das plantações). Em última análise, o que se afigurou uma «complementaridade funcional"» entre autóctones e alóctones na fase ascendente da economia de plantação, foi-se transformando numa relação de concorrência. Mais concretamente, a imigração estrangeira operou-se através de um movimento de colonização agrícola que as populações bété não conseguiram comedir A multiplicação desenfreada das vendas de terra engendrou duas dificuldades significativas acabando por pôr em causa a reprodução da economia de plantação autóctone. Por um lado, as alienações fundiárias contribuíram para uma pressão considerável sobre a terra resultando, em alguns casos, numa verdadeira saturação dos terrenos (que, por seu turno, provoca um envelhecimento das plantações e uma degradação dos solos). Por outro lado, a maioria dos migrantes, já na condição de plantadores, deixam de trabalhar nas explorações autóctones e passam a canalizar uma parte considerável da mão-de-obra disponível para seu próprio benefício; o que conduz a uma escassez da força de trabalho e, por conseguinte, a uma situação de concorrência, e mesmo de conflito, entre os diversos grupos. Nessa conjuntura, os alóctones conquistaram uma posição privilegiada na medida em que controlam, amiúde por mera afinidade de origem, as redes de mão-de-obra dioula, voltaica e baoulé. Assim, o fosso entre os autóctones e os alóctones tende a agravar-se sobretudo em relação aos rendimentos obtidos - ou seja, da quantidade de produtos arrecadados

22. Para recorrer a uma expressão de J.-P. Chauveau e J. Richard. Cf. «Une périphérie recentrée: à propos d'un système local d'économie de plantation en Côte-D'ivoire», Cahiers d'études africaines XVll, 68,1977.

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S alóctones efectuam as melhores colheitas graças à sua mão-de-obra), não propriamente em função de uma diferença de superfícies. ^ É nesse contexto de escassez dos factores de produção que se desenolveu a referida «ideologia da autoctonia» entre os bété. A partir do ^"^omento em que contribuem para uma pressão fundiária e já não permitem uma fixação da mão-de-obra, as vendas de terra são, de alguma forma, removidas da consciência colectiva; a presença de estrangeiros na região é vivenciada como uma verdadeira colonização e a referência aos direitos fundiários tradicionais e à precedência autóctone torna-se o ponto central da reivindicação étnica; em bom rigor, essa ideologia assume-se como um dos elementos constitutivos da etnicidade bété. A presente análise sobre a formação e a evolução do sistema socio-económico local não esgotou o naipe de determinações que concorreram para a construção da dita etnicidade. Na realidade, outros elementos são passíveis de serem acrescentados nesse quadro da economia de plantação. Por um lado, podem ser considerados como o resultado dos conflitos de interesses que prejudicaram progressivamente essa economia mas, por outro, dimanam de processos independentes. O primeiro elemento refere-se às relações entre o mundo rural e [O, mundo urbano. Conforme indicado anteriormente, desde o fim da conquista militar e durante a implementação do dispositivo colonial, vários naturais bété, muito em particular os jovens, estabelecem-se na Baixa-Costa e constituem um dos núcleos importantes da mão-de-obra dos estaleiros urbanos. Não obstante o florescimento de uma economia de plantação autóctone, esse êxodo rural prosseguirá e expandir-se-á; em termos mais concretos, regista um crescimento até ao final dos anos 4 0 e, ao longo da década de 1 9 5 0 - 1 9 6 0 (período subsequente à abolição do trabalho forçado e que abrange um ciclo receptivo aos preços elevados do café e do cacau), evidencia uma fase de estagnação e retrocesso ganhando, por fim, um novo fulgor com a independência: a degradação das condições de exploração das terras aldeãs, e sobretudo uma estratégia de escolarização em massa conferem um carácter aparentemente definitivo a essa emigração. De um certo modo, esse êxodo rural, que se movimentou incessantemente na mesma direcção, nomeadamente o eixo país bété-Baixa-Costa (e mais especificamente o eixo país bété-Abijão), contribuiu para um retardamento de uma crise mais acentuada da economia de plantação autóctone. Actualmente, estima-se que 4 5 % da população bété vive na cidade e beneficia de empregos remunerados. Essa percentagem de citadinos, que realça uma separação nítida entre o país e a etnia bété, deveria, em princípio, atenuar as referências étnicas; a cidade (e sobretudo a

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capital costa-marfinense) afigura-se o local ideal das amálgamas socioculturais onde brotam as novas relações sociais (por exemplo, no bairro ou em contexto laboral). Esse tipo de raciocínio não é aplicável ao caso em apreço. A existência de um pólo urbano importante constitui pelo contrário, um factor essencial para a construção de uma consciência colectiva bété. É necessário contemplar uma série de aspectos a esse respeito. Em primeiro lugar, até a uma data ainda recente (por volta dos anos 60, antes de a economia de plantação ser afectada por graves dificuldades e de os plantadores bété encetarem uma estratégia de escolarização), o êxodo rural nem sempre confluiu para um estabelecimento urbano definitivo, muito pelo contrário. Após trabalharem durante vários anos na Baixa-Costa, muitos migrantes regressaram ao país, sujeitando-se posteriormente a uma nova tentativa de reinserção na cidade. Por conseguinte, ao longo do período colonial, assiste-se a um movimento de vaivém entre a cidade e o campo, entre os pólos de atracção da sociedade costa-marfinense e o meio de origem; no nosso entender, esse balanceamento constitui um momento importante da formação étnica pois define os contornos de uma «sociedade civil» no seio da sociedade global costa-marfinense através do alargamento do horizonte do país bété, nomeadamente pela introdução dessa ponte entre a situação de plantador e de assalariado. Em segundo lugar, apesar de ter adquirido um carácter mais absoluto por volta dos anos 60, a emigração não gerou uma ruptura entre o meio rural e o universo citadino. Cada cidade bété é apoiada por aquilo que se pode apelidar de duplo urbano; esse manifesta-se concretamente pela existência, na cidade (sobretudo em Abijão), de associações de naturais, associações seguramente destinadas aos habitantes da cidade que encontram nos laços aldeãos um meio imediato para a resolução de alguns dos seus problemas (de ordem financeira - com efeito, constituem amiúde agrupamentos mutualistas - acesso ao mercado de trabalho, etc.), mas cuja função ultrapassa esse quadro estritamente urbano a fim de abranger, em troca, o pólo rural; com efeito, esses agrupamentos de naturais assumem frequentemente um papel activo na vida aldeã, redistribuindo uma parte significativa dos seus rendimentos salariais e participando muito directamente nas iniciativas de modernização (habitat, estradas, etc.). Actualmente, não se pode compreender o meio aldeão" sem integrar esses «ausentes». Por outras palavras, atendendo à crise actual da economia de plantação autóctone, trata-se de um meio que se define cada vez menos pelas suas actividades arborícolas e tende a identificar-se com o universo urbano e salarial. 23. Sobre essa matéria, consultar o nosso artigo «Les métamorphoses urbaines d'un double villageois», Cahiers d'études africaines, XXI, pp. 81-83,1981.

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Nessa perspectiva, verifica-se, à escala regional, uma diferenciação Ifre aldeias (que se traduz em rivalidades e emulações em fases oi-tantes da vida social, tais como as exéquias) devido ao peso 'rfigual dos duplos citadinos: uns contam apenas c o m operários e ggados, ao passo que outros reivindicam igualmente quadros e r^resentantes de profissões liberais. Não obstante o seu interesse, esses mdicadores revelam-se insuficites para a nossa argumentação: são, simultaneamente, demasiado ^specíficos (cada aldeia é remetida para o seu duplo urbano) e demasiado gerais (a maioria das cidades costa-marfinenses podem ser e n t e n d i d a s com base nessa teia). No entanto, adquirem um valor real se lhes aditarmos um dado de relevo. Muitas vezes, essas associações, ou alguns dos seus membros (quadros, intelectuais), não se limitam a orientar os destinos assaz específicos da sua aldeia de origem; perante a degradação da economia de plantação, fazem-se passar por detentores de uma consciência mais global dos problemas regionais; mais especificamente, as dificuldades inerentes à sua aldeia de origem são um reflexo local de uma crise que afecta a totalidade do país bété, e mesmo do conjunto do Oeste costa-marfinense. Ademais, deparam-se, por vezes, com um meio aldeão que continua a alienar as suas t e r r a s a p e s a r dessas (ou devido a e s s a s ) dificuldades. Também a desigualdade tendencial entre plantadores bété e plantadores alóctones é denunciada, e inclusivamente acentuada, por quem está precisamente fora do sistema socioeconómico local. Nessa óptica, a ideologia autóctone anteriormente referida é uma fabricação tanto, ou mais, dos citadinos (e especialmente dos intelectuais) quanto dos rurais. Por seu intermédio, a mesma submete-se à consciência étnica; não se trata exclusivamente de reavivar os direitos fundiários ancestrais, mas também de valorizar o conjunto da sociedade autóctone (ou seja, as suas normas, os seus valores, etc.) nesse contexto de colonização agrícola. A ideologia da autoctonia vem acompanhada de uma ideologia tradicionalista. Contudo, não se pode considerar verdadeiramente o problema bété sem analisar uma última dimensão uma vez que os citadinos, em especial os intelectuais, actuam tanto na cena rural quanto na cena política propriamente dita, onde o conjunto dos factores propícios à manifestação étnica (desenvolvimento colonial - relações autóctones/alóctones) se cristalizam numa espécie de oposição ao poder de Estado costa-marfinense. A fim de contextualizar essa conjuntura, importa recuar no tempo até finais dos anos 40. Nessa época, assiste-se à liberalização do poder

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colonial com a autorização das actividades sindicais e políticas, e o aparecimento quase em simultâneo do sindicato dos plantadores ( 1 9 4 4 ) e do RDA (secção costa-marfinense criada em 1946). Ambos os aparelhos eram encabeçados por um único líder, o actual presidente Félix Houphouèt-Boigny, Na qualidade de deputado da Assembleia nacional, obtém rapidamente satisfação de uma das principais reivindicações do sindicato dos plantadores, nomeadamente a abolição do trabalho forçado (1947). Apesar de nos anos seguintes o RDA se afirmar incontestavelmente como o partido dominante - representando, apesar de alguns reajustes^", um certo radicalismo (reivindicação independentista) - a década que precede a independência é marcada pelo surgimento de vários outros partidos; em especial, um movimento político importante, o MSA (Movimento Socialista Africano) filiado à SFIO. Ainda que evidencie um pendor mais reformista do que o RDA (a sua posição era assimilacionista ao invés de independentista), o referido partido atrai inúmeros simpatizantes, em especial no Oeste costa-marfinense e sobretudo numa das três grandes regiões do país bété, a região de Gagnoa. À primeira vista, a rivalidade e o subsequente antagonismo entre os dois movimentos devem-se a um modelo conhecido: os aparelhos políticos liderados pelas primeiras elites africanas encontram automaticamente a sua base social e, por conseguinte, a sua legitimidade, junto das populações de onde provêm os seus líderes (o que se designa comummente de «clientelismo»); assim, Houphouèt-Boigny angariaria apoiantes entre a etnia baoulé, e o líder do MAS da altura, Dignan Bailly (natural de Gagnoa), entre os bété. Na realidade, a situação reveste-se de uma maior complexidade. Ao invés de explicar as questões políticas em função das pertenças étnicas, julgamos ser mais acertado proceder a uma análise dessas pertenças, ou melhor, desses reagrupamentos, enquanto manifestação política de relações sociais forjadas tanto no plano local quanto nacional. Antes de justificar essa afirmação, seguem-se algumas indicações de natureza histórica. Em 1956, o resultado das eleições municipais comprova a forte implantação do MSA no Centro-Oeste dado que a lista de Dignan Bailly derrota a do RDA. O ano seguinte é marcado pelas eleições à assembleia territorial; ao longo da campanha, a rivalidade entre o MSA e o

24. A partir de 1950, o RDA ratifica a «paz colonial» e inaugura um período de colaboração com a administração francesa, apoia nomeadamente a lei-quadro de 1956 e apela ao voto favorável no atinente ao referendo de 1958 que institui a comunidade franco-africana. Sobre essa matéria, consultar J. Suret-Canale, La Colonisation aux indépendances -1945-1960, Paris, Editions Sociales, 1972.

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pp^ provoca inúmeros incidentes, sendo que o mais relevante decorre a região de Gagnoa: enquanto uma caravana conduzida pelo deputado cessante de Daloa (M. Diarrassouba) se prepara para realizar uma digressão eleitoral, os aldeãos, não muito longe da cidade, armam uma v e r d a d e i r a emboscada. Após o ataque, resgatam-se dois mortos (entre os quais, Diarrassouba) e vários feridos. O escrutínio (Maio de 1 9 5 7 ) concede a vitória ao RDA. No entanto, a validade da eleição é alvo de contestação; no que se refere ao MSA, considera-se que os resultados foram manipulados e que a vitória deveria ser restituída aos socialistas de Dignan Bailly Pelo facto de ilustrar a latitude das hostilidades entre os dois movimentos, esse acontecimento merece uma análise sucinta. Em primeiro lugar, no atinente à oposição étnica, a análise deve ser realizada com alguma precaução; pois, embora as fileiras do RDA sejam maioritariamente alóctones, também englobam autóctones, em particular os notáveis (chefes administrativos). Similarmente, o MSA é composto por vários bété mas também por naturais dioula. Conforme muitíssimo bem demonstrado por H. Raulin^s, que na época se dedicava aos estudos dos problemas fundiários na região, a oposição dos dois movimentos estriba-se, no fundo, numa clivagem entre um estrato ou classe de pequenos plantadores e uma espécie de burguesia local, composta pelos grandes plantadores (na sua maioria estrangeiros: dioula, baoulé, daomeanos^'^), por notáveis, comerciantes e transportadores, em suma, todos aqueles que gravitam em torno das actividades lucrativas da região, formando assim autênticos lobbies. Além disso, o programa de Dignan Bailly revela a realidade socio-económica local, contemplando efectivamente a exigência de regulamentar as vagas migratórias e as cessões de terra. A presença alóctone enquanto tal não é rejeitada (sendo a necessidade de mão-de-obra, pelo contrário, reiterada): em contrapartida, é denunciado o processo através do qual essa presença instaura progressivamente uma relação desigual entre autóctones e alóctones levando uns à pauperização e permitindo a outros um eventual enriquecimento. Nesse contexto, a rejeição do RDA visa no fundo a sua base social (e não exactamente a sua escolha independentista), ou seja, o estrato economicamente dominante que constitui o seu alicerce. Ademais, compreender essa percepção local do RDA implica apreender a dimensão mais global pois, ao angariar simpatizantes sobretudo entre figuras influentes e nos lobbies da região, o PDCI-RDA confirma 25. Missão de estudo dos agrupamentos imigrados na Costa do Marfim, fascículo 3, Problèmes dans les régions de Daloa et Gagnoa, ORSTOM, 1957. 26. Alguns dos quais tornaram a comprar plantações europeias, na altura.

fonciers

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a imagem mais geral que lhe atribuída. Conforme aventado anteriormente, trata-se de um movimento político (não obstante o seu desígnio pan-africano) que evidencia uma ligação orgânica com o sindicato dos plantadores na Costa do Marfim. Ora, esse sindicato só consegue recrutar um número bastante reduzido de pequenos exploradores da região de Gagnoa, e em termos mais gerais, na região ocidental costa-marfinense, sendo que a maioria dos seus elementos são originários do Leste da Baixa-Costa. Importa acrescentar que aquilo que se apresenta, desde logo, como uma oposição étnica (por exemplo, bété/baoulé) merece uma análise prévia sob um prisma simultaneamente socioeconómico e histórico. A base activa ou militante do sindicato é composta principalmente por grandes plantadores" e comerciantes; por conta da sua oposição ã administração colonial e da sua lista de reivindicações (que versam mormente sobre uma harmonização do preço das culturas arbustivas entre plantadores costa-marfinenses e colonos europeus, e a abolição do trabalho forçado), assume-se indubitavelmente como um reflexo do interesse geral, isto é, do interesse de todos os plantadores de géneros alimentícios destinados à exportação, defendendo acima de tudo a sua esfera particular; por outras palavras, essa «vanguarda» revela-se uma classe dominante dentro da sociedade colonizada. Em última análise, a base social do sindicato e, por fim, a oposição MSA/RDA salienta o desenvolvimento diferencial das economias de plantação costa-marfinenses. A Leste, formou-se, desde muito cedo (em inícios do século), uma espécie de burguesia rural (que, todavia, coexiste com um sector de pequena produção mercantil) ao passo que a Oeste do Bandama, assiste-se posteriormente à criação de um sistema assente na pequena plantação e nas relações entre autóctones e alóctones. Apesar do carisma de E Houphouèt-Boigny, o PDCI-RDA, que se tornará no partido único da nação costa-marfinense, continua de alguma forma marcado pelas suas origens, veiculando a história recente da colónia e as relações desiguais que foram criadas entre as regiões da zona florestal costa-marfinense. A independência atesta e reforça essa clivagem. Dignan Bailly é, de facto, deputado na Assembleia nacional mas não lhe é atribuída nenhuma pasta ministerial, pelo que acaba por desaparecer rapidamente da cena política costa-marfinense e falecer alguns anos depois. Além disso, muito poucos representantes do mundo bété participam nos diversos governos que se sucederam até aos dias de hoje. 27. De entre os quais, se destaca Houphouèt-Boigny.

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No meio rural, as vagas migratórias rumo ao país bété registam um novo florescimento com a implantação em massa de naturais baoulé que, através da sua estratégia específica, reactivam o movimento de cessão de terras. Eiel ao seu passado recente, a região de Gagnoa é palco de inúmeros incidentes entre autóctones e alóctones durante os primeiros anos da independência. Além disso, aquando do golpe de Estado de 1 9 6 3 (ilustrativo da divergência face às decisões do chefe de Estado costa-marfinense), vários naturais do país bété (e, muito em particular, da região de Gagnoa) são detidos. O acontecimento de maior gravidade data de 1970, ano das eleições para a renovação dos cargos de secretários do PDCI. Em Gagnoa, são efectuadas todas as diligências para que o candidato oficial do partido seja eleito. Porém, após algum tempo, realizam-se reuniões relativamente secretas em aldeias do Sul da região, particularmente no cantão Guébié. O seu organizador é um estudante de nome Nragbé Kragbé (natural do Guébié) e o seu intuito era o de recusar a validade do próximo escrutínio gerando um movimento de contestação. No dia 26 de Outubro, um grupo composto por algumas centenas de plantadores bété originários dos cantões Paccolo, Zabia e Guébié^®, liderados por Nragbé Kragbé, alcança Gagnoa. Trata-se de um grupo curioso e visivelmente preparado para a luta pois vários camponeses estão armados com machetes e espingardas de caça (alguns envergam adornos de guerra tradicionais). Chegados ao centro da cidade, tomam as diferentes sedes administrativas de Gagnoa; segundo os relatos, as primeiras horas da rebelião não foram exactamente um confronto: apenas alguns representantes do Estado foram importunados. Bastou o seu vestuário e sobretudo a sua reputação de guerreiros temíveis para que os plantadores autóctones assumissem o controlo dos locais; durante esses instantes de uma tomada de poder simbólica, realiza-se uma espécie de «desmarfinização» dos edifícios públicos; na praça da câmara municipal, proclama-se a «República de Eburnie» e ergue-se uma nova bandeira. Contudo, os acontecimentos assumirão muito rapidamente contornos mais dramáticos; a gendarmaria de Gagnoa é a primeira a intervir, dão-se os primeiros disparos e surgem as primeiras baixas. Em seguida, o exército cerca e rastreia a cidade de forma sistemática. Porém, as medidas de repressão não são implementadas em Gagnoa mas antes nas aldeias e nos cantões em que se promoveu a rebelião, ou seja, no Paccolo, Zabia e Guébié. Actualmente, afigura-se difícil fazer um balanço pois nenhuma estimativa oficial foi realizada acerca desse episódio: 28. Esses três cantões comuns, situados a Sul e a Leste de Gagnoa, correspondem a três tribos.

L Os bété: uma criação colonial

uns afirmam tratar-se de algumas dezenas, outros de várias centenas, e até mesmo de vários milhares de vítimas. A única informação rigorosa passível de ser facultada corresponde ao número de detidos que ascendeu sensivelmente às duas centenas (o seu julgamento decorreu em 1 9 7 6 , e a maioria foi libertada com a preocupação de preservar a paz). Quanto a Nragbé Kragbé, durante muito tempo circulou o boato de que teria conseguido fugir, mas recentemente foi apurado que, alguns dias depois da rebelião, o jovem fora gravemente agredido pelos militares acabando por morrer ao ser transportado para o hospital. Não pretendemos emitir um julgamento acerca do acontecimento em si: afirmamos simplesmente que aquilo que se afigurou um exercício bastante excessivo da «violência legítima» traduz, aparentemente, um medo mal refreado no seio das instâncias dirigentes, que essa rebelião, muito localizada e no mínimo ingénua em matéria da sua execução, não se alastra nem arrasta consigo outros grupos bété ou outras populações do Ocidente marfinense. A menos que o poder (que poderia ter evitado efectivamente essa situação desde as primeiras reuniões) considerasse conveniente a eclosão da rebelião a fim de denunciar com maior eficácia o carácter étnico e ocultar assim o seu conteúdo político propriamente dito. Apesar das aspirações regionalistas (a «República de Eburnie» designava de grosso modo o Oeste marfinense), a revolta mantém-se circunscrita aos três cantões acima referidos; apenas alguns indivíduos originários de cantões vizinhos se juntaram ao movimento. Além disso, nem todas as aldeias e naturais dessa fracção dos bété de Gagnoa fizeram parte do empreendimento; alguns recusaram participar numa iniciativa tida como arriscada. Porém, o carácter acentuadamente circunscrito da revolta sublinha determinados fenómenos analisados anteriormente. A personagem de Nragbé Kragné, que está no cerne do acontecimento, condensa a questão dos duplos aldeãos numa figura-limite; mostra concretamente como a consciência étnica, cristalizada em torno de uma oposição e de um objectivo políticos, é alvo de uma mediatização pelas pertenças étnicas tribais e aldeãs, pelos laços ou pelas redes de parentela, numa palavra, pela esfera do particular. Ao interpelar um amplo conjunto - o país bété, e mesmo o Ocidente marfinense - Nragbé Kragbé apoia-se na sua base rural imediata. Com efeito, trata-se de um natural do Guébié e, desde a época colonial, os três cantões implicados estabeleceram relações sociais intensas. Graças a essa plataforma, pôde almejar a uma globalização dos problemas e recusar a legitimidade do poder do Estado marfinense. Aquando da proclamação fugaz da «República de Eburnie», os rebeldes distribuíram um panfleto do qual constava a promessa de um aumento

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vnonencial dos preços das culturas de exploração pagos ao produtor rde 180 CFA passariam para 5 0 0 CFA), assim como a imposição da e t i r a d a dos estrangeiros instalados no país bété. A ideologia da au[ i t o n i a encontra neste caso (pelo menos «no papel») a sua expressão mais nítida. . _ Ademais, o referido panfleto mencionava igualmente a composição (jo governo dessa «nova República» (cujo «presidente» deveria ser, como é evidente, o próprio Nragbé Kragbé, e a maioria dos ministros originários do país bété). Para além desse estranho fascínio pelo poder político, ilustrando que mal começara a rebelião e essa já se metamorfoseava' em aparelho de Estado, presume-se que essa «República» reúne a maioria das populações do Ocidente marfinense. A consciência étnica torna-se assim um movimento regionalista; ou melhor, nessa aspiração claramente separatista, os bété, sob a orientação da sua «vanguarda» (região de Gagnoa), são nomeados líderes de uma vasta região cujas diversas populações partilham com os últimos toda uma série de características: referências pré-coloniais (uma organização social análoga, processos de povoamento por vezes coincidentes, re[des de intercâmbio, etc.), mas sobretudo uma colonização tardia comparativamente ao remanescente do país, uma economia de plantação assente na pequena exploração, um território que se tornou num pólo de atracção para dezenas de milhares de imigrantes; enfim, marcadas pelas oposições locais ao RDA, e apesar da presença de vários quadros e intelectuais, as populações do Oeste marfinense praticamente não dispõem de representantes dignos desse nome a nível do poder de Estado. Em suma, a «República de Eburnie» designa o conjunto das determinações acima mencionadas numa síntese quimérica; ou melhor, apaga-se simbolicamente, esforçando-se por cumprir as veleidades da ideologia da autoctonia até ao final, até ao acto subversivo. Apesar desse apelo à expansão do movimento, a rebelião ficou isolada tendo sido duramente combatida precisamente no local de onde brotou. Contudo, a repressão resultará em incidentes pontuais entre autóctones e alóctones (em especial, entre bété e baoulé) na região de Gagnoa, e uma manifestação no campus de Abijão serviu de testemunho da solidariedade de certos meios estudantis. Os acontecimentos de 1 9 7 0 levam-nos a tecer algumas conclusões acerca da etnicidade bété. Enquanto tais, são a expressão manifesta de um etnismo, e inclusivamente de um tribalismo (dada a participação de apenas algumas tribos); posto isto, procedemos à sua apresentação e dissecação não como o surgimento de um arcaísmo no âmago da modernidade marfinense, mas antes como o produto de uma história

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recente ao longo da qual inúmeros factores de ordem administrativa, económica e política se conjugaram, construindo a etnicidade bété; o recurso aos valores tradicionais e às referências pré-coloniais através da congregação da sociedade bété na sua diferença cultural, constitui um modo privilegiado de recordar os contornos dessa história; e o sentido da identidade bété, longe de se perder ou estar confinado ao quadro étnico, assume finalmente uma dimensão especificamente marfinense. De resto, não basta condensar esses acontecimentos numa perspectiva estreitamente causal. Eles próprios forjam a história. A rebelião de Gagnoa reforçou a etnia bété em termos do seu papel de grupo virtualmente antagónico, e os rumores que circulam aqui e acolá a seu respeito dilatam o movimento da etnicidade. Por outro lado, a tímida tentativa de golpe de Estado de 1 9 7 3 (promovida pelos militares) não é alheia a essa rebelião.

f I

Cada qual com o seu bambara Jean Bazin* «A abordagem mais fácil, ou mesmo superficial, de abordar a estrutura social de uma sociedade assenta na nomenclatura da identificação social, nas técnicas através das quais os indivíduos organizam as relações que mantêm com os outros a fim de saberem como se comportar. Porém, à semelhança do comportamento que tende a precipitar, a nomenclatura constitui sempre uma função de uma dada situação, ao invés de uma nomenclatura absoluta.»

Não podemos imaginar um cenário do futuro marfinense; trata-se de um exercício demasiado perigoso e a questão étnica bété está longe de esgotar o conjunto da situação sociopolítica marfinense. Todavia, é possível aventar que, devido à sua natureza paradigmática, a mesma reforça a interrogação que se coloca cada vez mais acerca do futuro do regime, ou seja, sobre o «pós-Houphoüet-Boigny».

Meyer Fortes, The Dynamics of Clanship among the Tallensi. «No que se refere ao portador de um nome, é possível afirmar que ele não existe; e, com efeito, não se trata de uma actividade embora se possa compará-lo a uma actividade e afirmar: mesmo que não exista, ele tem de lá estar.»

Referências Bibliográficas

Ludwig Wittgenstein, Grammaire philosophique.

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Sobre uma dupla entrada em cena

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Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

banhará)

de Djenné: «De Leste a Oeste, e de Norte a Sul, destruíram aldeias,

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en Côte-d'Ivoire,

al-Súdân^

que, logo após a conquista marroquina ( 1 5 9 1 ) , os então designados

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalisrro e Estado err Africa

L

r

quais tiveram filhos criados no paganismo^ Deus nos proteja de tai. calamidades!''». Um século depois, em 1950, Mareei Griaule, no seu prefácio a La Re. ligion bambara de Germaine Dieterlen, congratula-se com o facto de ter finalmente acesso a um «quadro coerente» da «metafísica bambara», concluindo que, graças a essas páginas, os bambaras «entram nã história^». Assim, os bambaras teriam desempenhado dois papéis nesse teatroinicialmente, o de bárbaros ferozes, hordas vociferantes às portas da cidade; e a seguir, o de metafísicos, pelo que deixam de ser declaradamente violentos para se tornarem secretamente eruditos. O que nos leva a uma questão incontornável: no final de contas, são eles saqueadores ou pensadores? Em 1785, Golberry considera-os sobretudo «ineptos, supersticiosos» e «mais fatalistas do que se possa imaginar"^»; em 1903, Charles Monteil frisa também a sua obtusidade e a escassez das suas idéias, correlacionada com a sua «teimosia intransponível'». Embora partilhe da mesma opinião, o padre Henry assinala que «o sonho e a felicidade dos bambaras residem em acocorar-se debaixo de uma árvore frondosa e aí passar o dia numa tagarelice infindável ou num meio-sono"»: porventura indício de um certo deleite pela contemplação ou uma simples sesta rústica? Uma vez que os bambaras também são conhecidos pela sua natureza extremamente pacífica - segundo Golberry, «são preguiçosos mas alegres e muito afectuosos"» - aparentemente era raro prendê-los com ferros nos navios negreiros^". O seu único pecado manifesto é a gula, pelo que, nas Ilhas, recebem o apodo de «ladrões de perus» e «ladrões de carneiros"». Em Março de 1846, pouco depois da sua chegada ao reino de Kaarta, Anne Raffenel escreve no seu diário: «Até ao momento, não constatei nos bambaras nenhum dos vícios que 3. Literalmente: no «magismo» ímajúsiyya), termo inicialmente aplicado ao zoroastrismo e geralmente utilizado para designar as religiões desprovidas de escrituras fcf. Cuoq 1975 n 13 nota 13. 4. Al-Sa'Di, trad. Houdas, 1964, p. 223. 5. Dieterlen 1951, pp. IX e X. Seria aconselhável, e mesmo necessário, beneficiar de uma metafísica coerente para entrar na história? 6. Golberry, 1802, vol. 1, p. 101. 7. Monteil (1932), 1971, pp. 124-125 (texto retirado da sua Monographie de Dienné 19031 8. Henry, 1910, p. 9 9. Golberry, ibid. Alguns dos contemporâneos de Golberry consideram-nos, pelo contrário, tristes e trabalhadores. Cf. Moreau de Saint-Mery, Description topographique, physique, civile, politique et historique de la partie française de Hle de Saint-Domingue (1797), 1958, vol. 1, p. 49, e Pruneau de Pommegorge, Description de la Nigritie, Paris e Amesterdão, 1789, vol. 1, p. 185. 10. Gabriel Debien, Les Esclaves aux Antilles françaises (XVIIe-XVl'lIe siècles), Basse-Terre e Fortde-France, 1974, p. 43. 11. Moreau de Saint-Mery, ibid Essas referências antilhanas foram-me facultadas por Christiane Bougerol a quem agradeço com amizade.

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Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e m África

foram apontados. Em vez de um povo cruel, maldoso e ladrão, en'^^^trei um povo afável, discreto, hospitaleiro, atencioso, benévolo^^». S'"mesma linha, Paul Soleillet observa que os bambaras inserem-se c o n j u n t o das «populações de costumes brandos», «trabalhadoras enhosas», «com especial apetência para as tarefas agrícolas», ao ^ ^ trário dos toucouleurs e de outros saqueadores de profissão: a esse '^""neito o autor acrescenta que o «General Faidherbe compara-os "^^ertadamente aos nossos auvernheses"». Contudo, no rescaldo da e m b o s c a d a armada pelo povo de Dio contra a missão francesa (Maio de 1880), o parecer inverte-se: Conforme salientado por Gallieni: «...para o homem de boa-fe, a smceridade das minhas intenções não podia ser posta em causa; mas era evidente que estava a lidar com um povo cuja avidez fora despertada pelo aparecimento da minha caravana [...]. Na perspectiva dos bambaras, acostumados com a guerra e cuja sobrevivência dependia da pilhagem, a minha chegada era uma dádiva que tinha de ser aproveitada 6, ao invés de olharem para mim como um amigo que lhes vem propor uma aliança sólida, só pensavam em apoderar-se dos meus bens. Bastam esses sentimentos para atestar o nível de selvajaria da população bambara, que perde certamente em ser examinada de perto e que, enquanto não for subjugada por um senhor poderoso, só se preocupa em dar rédea livre aos seus maus instintos^''». Por outras palavras, esses camponeses-saqueadores, ora pacíficos ora violentos, uma vez bem chefiados, tornam-se soldados muito eficazes (como os auvernheses?). Louis Tauxier constatou que «os bambaras apresentam duas características principais, absolutamente incontestadas e incontestáveis», são, ao mesmo tempo, «excelentes agricultores» e «atiradores vigorosos e disciplinados^^» - portanto, independentemente de serem metafísicos ou não, representam «uma nação interessante'*^». Poderia prolongar essa prática inepta ao despique. Uma vez que o sentido da questão não é determinável, as respostas são, inevitavelmente, de uma diversidade ilimitada. Será realmente imprescindível que «os bambaras» sejam alguma coisa, estúpidos ou perniciosos, grosseiros ou filósofos, pacíficos ou sanguinários, etc.? Ilusão dupla: em primeiro lugar, parte-se do princípio de que a atribuição de um mesmo nome constitui um indicador seguro de alguma consubstancialidade fundamental quando basta, por exemplo, ocupar uma mesma 12. Raffenel, 1856, vol. 1, p. 199. 13. Soleillet, 1887, p. VI e p. VIII. (A sua viagem a Segou data de 1 8 7 8 - 1 8 9 7 } . 14. Relatório de Gallieni, de 12 de Junho de 1880, citado por BAYOl, 1888, p. 57. 15. Tauxier, 1927, p. XIV. 16 Tauxier, 1942, p. 6.

Conjunturas étnicas no Ruanda 173

posição a respeito de um terceiro. Em seguida, supõe-se que um bambara só pode saquear ou pensar em virtude dessa necessidade imanente, dessa «alguma coisa» - natureza, destino ou propensão - que define a sua especificidade. A «bambaridade» move o bambara e, inversamente, cada um dos seus actos são a sua manifestação: trata-se de uma terrível lógica da imputação que opera em qualquer leitura meta-social [racista ou outra) da realidade social.

r

A substância e a ficha Poder-me-ão objectar que a etnologia já não está presente. Teríamos descoberto a pólvora? Por ocasião de uma defesa de tese^^ recordo-me de ter ouvido Georges Balandier declarar que a etnia já não era encarada como substância há muito tempo. Sem dúvida, e é sabido que o seu contributo foi mais importante que outros. Porém, não se trata apenas de uma questão de opinião ou de convicção, mas antes da estrutura do discurso científico. Por exemplo, ao afirmar que: «os bambaras são uma unidade heteróclita de pessoas que nada têm em comum», estou apenas a atribuir ao substrato «bambara» mais uma qualidade: a heterogeneidade. Mesmo se disser: «Os bambaras não existem», esse enunciado, em termos lógicos, continua a ser análogo a: «Os bambaras são patrilineares». Como tal, não se trata de saber em que consiste a etnia mas se ela constitui um referente de que podemos prescindir ou não. Posso já não considerar que o significante «bambara» remete para uma dada entidade efectivamente determinável e, no entanto, seguir em frente como se assim o fosse. Quanto mais a realidade material da etnia é questionada, tanto mais o etnógrafo se vê forçado a colocar-se no doloroso desconforto do «como se». Há que reconhecer que existem há tempo suficiente para demonstrar que não é esse o caso... Contudo, as aspas nada resolvem: pois se é um outro falar, quem é ele? Em suma, destruímos porventura os museus mas guardamos as etiquetas; à falta de melhor, por contra vontade, por conveniência prática. Porque os diálogos mundanos ou os relatórios do CNRS, as fichas bibliográficas ou os índices das revistas vos obrigam a enunciar o «vosso» etnónimo. Jivaros, bambaras ou papuas? Trata-se de uma marca de identificação a que ninguém escapa na tribo [ah! é «bambarólogo»...). Poder-se-á alegar que qualquer ciência em curso necessita dessas balizas grosseiras e que, de certa forma, seria imprudente provocar uma tempestade entre as nossas fichas correndo o risco de dispersar 17. A de Jean-Pierre Dozon (cf. o seu contributo na presente obra) em Março de 1981.

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OS conhecimentos tão bem organizados pelos nossos antecessores, [sjão será possível que tudo aquilo que se sedimentou paulatinamente sob a célebre categoria, «bambara», acabe por se tornar inapreensível? Como aqueles sótãos antigos onde, ao longo do tempo, se vão a m o n t a n d o pilhas de velharias veneráveis cujo equilíbrio é tão frágil que é mais sisudo nem sequer tocá-las. Não têm os bambaras, desde há muito, uma alma'", uma língua", uma, ou melhor, duas religiões^», uma historiais etc.? Contudo, depreendo que se trata de um argumento de autoridade: se o nome é proferido por todos e figura em todos os livros, deve designar alguém; e é possível que debaixo dessa máscara paire alguma prova ontológica: um ser tão rico em atributos não pode carecer de existência. Na realidade, a etnia nunca constitui um mero quadro formal cuja conveniência operacional compensaria a arbitrariedade. Ocupa o lugar de um sujeito ao qual se reconhece, pelo menos, uma existência suficiente para poder atribuir-lhe - como predicados - enunciados, acontecimentos e relações sociais que poderiam ser descritos de outro modo caso não estivéssemos agrilhoados a essa referência obrigatória. Na qualidade de substrato passivo do discurso etnográfico, a etnia substitui os actores efectivos [por exemplo, as unidades políticas), colocando-os fora de âmbito, retirando-os do cenário. Eis a razão pela qual o grau de adaptação da perspectiva étnica é mais elevado em sociedade ditas «acéfalas» ou «segmentárias» onde não é possível identificar com facilidade cada actor colectivo permanente e distinto. Ao contrário do povo ou da nação - produtos de uma história - a etnia constitui efectivamente o resultado de uma operação de classificação prévia. A esse respeito, qualquer etnologia começa como uma zoologia, embora só aparentemente se assemelhe a uma taxinomia racional e científica. Decerto que se poderá imaginar uma espécie de etnólogo perfeito, estritamente alheio a qualquer denominação prévia e unicamente preocupado em classificar, na melhor das hipóteses, os hábitos e os costumes observados, à imagem de um entomologista ou mineralogista, com o objectivo de definir uma nomenclatura rigorosa que permita elaborar um quadro dos géneros e das espécies: trata-se de um desafio impossível de aceitar uma vez que, ao contrário das borboletas e das pedras, os humanos classificam-se a si próprios^^ ainda 18. UÂme d'un peuple africain: les bambara (Henry, 1910]. ^'^•Dictionnaire bambara-français (Monsenhor Bazin, 1906). 20. Louis Tauxier ( 1 9 2 7 ) e Germaine Dieterlen ( 1 9 5 1 ) têm muito claramente a sua própria Religion bambara. ^ 1 Histoire des Bambara (Tauxier, 1942). 22. «[...] várias palavras utilizadas pela ciência para designar as classes por ela forjadas são decalques do uso corrente no qual servem para expressar a visão, amiúde polêmica, que os grupos

que os nomes pelos quais os observadores conhecem os seus grupos tenham sempre uma relação com os nomes que esses se atribuem uns aos outros. É o caso dos etnónimos, cada um dos quais efectivamente proferidos por alguns dos actores - os vizinhos hostis ou conquistadores ignorantes fá-lo-iam apenas a título de injúria ou zombaria - antes de se tornar num rótulo científico. O etnólogo não inventa ex nihilo entidades fictícias nem nomes arbitrários para justificar o seu ponto de vista; seria melhor fazê-lo"? Regra geral, não se esperou pela sua chegada para colocar os povos-sujeitos ou periféricos no mesmo saco ou sob uma mesma categoria abrangente e sobranceira^'' nem para lhes atribuir um comportamento típico, estigma da sua alteridade; os escoceses já são avaros, os auvernheses também, ao passo que os cretenses são mentirosos; o etnólogo surge mais tarde e por esse motivo sucumbe muitas vezes à tentação de aceitar essas categorias herdadas ou esses estereótipos familiares em vez de procurar compreendê-los - conferindo assim uma garantia científica a um uso prático, uma realidade «em-si» a um conjunto indeterminado e relativo. Por conseguinte, a etnologia procede com base no modelo mas no sentido contrário daquilo que seria uma «história natural» da espécie humana: em geral, a etnologia procura saber a posteriori, a partir de um conjunto já designado, qual a sua cultura comum correspondente. A etnia é assim um quadro oco e pré-determinado pelos usos locais; presume-se que deve delimitar convenientemente alguma coisa e, nesse sentido, pode servir, com legitimidade, de preliminar ao inquérito. Quanto à «religião bambara», por exemplo, não se julgue que foi efectuada uma selecção e classificação cuidadosas dos rituais, das crenças, etc, numa dada área, de modo a afirmar: isso pertence ao religioso bambara, aquilo não. Procede-se mais ao arrepio: existem bambaras, cada qual sabe muito bem quem são e que são necessariamente munidos guardam uns em relação aos outros. Movidos pelo seu impulso para uma maior objectividade, os sociológicos esquecem-se quase sempre de que os "objectos" que classificam são produtores de práticas objectivamente classificáveis mas também de operações de classificação não menos objectivas, de resto, elas próprias classificáveis». [P. Bourdieu, La Distinction, éd. Minuit, Paris, 1979, p. 189]. 23. Um exemplo extremo seria, talvez, o de Jack Goody [cf Death, Property and the Ancestors, Londres e Stanford, 1962}; em virtude da carência de termos colectivos apropriados e efectivamente utilizados pelos actores, o autor designa as unidades julgadas relevantes através de expressões vernáculas de orientação espacial [«os do Oeste», «os do Leste»]. 24. Atente-se obviamente nos «bárbaros» e em outros «bérberes», ou seja, os «língua-de-trapos», aqueles cujo jargão é precisamente inumano. Barbara [pl. al-Barâbir) é frequentemente utilizado pelos autores árabes para designar várias populações misteriosas da África sudanesa [cf. índice de Cucq, 1975], Afigura-se plausível que banbara deva a sua propagação a essa quase homofonia. Muitas dessas designações desdenhosas - nyam-nyam, kado, cafres, etc. - adquiriram um estatuto de etnónimo durante a colonização.

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Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

He uma religião; logo, considera-se «crença bambara» tudo aquilo em ue um bambara acredita. Louis Tauxier conseguiu reunir, precisamente nesses moldes, os materiais para a sua obra Religion bambara graças ao seu intérprete e ao seu guarda-círculo, durante a sua estadia no posto de Niafounké". Ao ser questionado sobre religião, como e n u n c i a r i a um bambara outra coisa diferente da religião bambara? Tal como basta um único coelho para o estudo da anatomia do coelho: admirável princípio da economia!

A história de um nome Independentemente de se reconhecer ou não a sua realidade substancial, a etnia constitui um sujeito fictício para cuja construção a etnologia dá o seu contributo, perpetuando-o na qualidade de entidade de referência no seu espaço científico, graças aos seus procedimentos indutivos e atributivos através dos quais um conteúdo do saber, por mais dissonante que seja, se encontra reunido e subsumido num único nome, na mesma secção de uma ficha. A par desse bambara do etnólogo, considerado único mas que ninguém nunca encontrou, existem todos os outros, todos aqueles que, por um motivo qualquer, recebem ou receberam esse nome em função de taxinomias práticas efectivamente empregadas pelos actores de um dado campo social: cada um deles tem certamente a sua opinião própria para o bem e para o mal - acerca daquilo que constitui a bambaridade dos bambara, mas não designam necessariamente o mesmo conjunto, atendendo à posição ocupada e à perspectiva que lhe está associada. Consistirá a nossa tarefa em instituir uma regra - por convenção, por selecção ou simplesmente por ignorância - ou, pelo contrário, em descrever o sistema dessas variações? De molde a dissolver a substância ou a caçar o seu fantasma, afigura-se imprescindível atentar no nome, na sua «gramática», no inventário inclusivo dos seus usos. Não se «é» um bambara sem ter sido designado enquanto tal: designado por quem, em que contexto, quando? Ao invés de procurar em vão uma natureza sui generis correspondente, será preferível restituir ao termo a sua função de identificação relativa. 25.Tauxier, 1927, p. Vll-Vlll. Niafounké [Nyafunké] situa-se no Sudoeste de Tombuctu, numa região onde os fulbe [«peul»] constituem «a população dominante», conforme observado por Tauxier. Existem algumas aldeias ditas bambara no Sul do círculo; aparentemente, Tauxier não as visitou. 0 intérprete em questão é um fuutaka [«toucouleur»), ou seja, um descendente de guerreiros vindos desde o Fuuta senegalês para conquistar Segou em 1861 sob a liderança de al"Hajj 'Umar. Porém, Tauxier frisa que: «ele viveu em Segou em pleno ambiente bambara durante quinze anos», sendo, por isso, classificado de «mestiço poulio-bambara» [Tauxier, 1942, p. 5].

Conjunturas étnicas no Ruanda 173

a sua origem era soninké»^®. Mais a Leste, em Lambalaké, os habitantes de Tiéfougoula, «apesar de serem sarracolé de raça pura e falarem soninké», «adoptaram em parte o hábito de desferirem três cortes na cara, desde a têmpora até ao queixo, o que, como se sabe, constitui o brasão dos bambaras^''». Essa meada a nível dos nomes, das línguas, dos costumes e das marcas é suficiente para gastar o nosso latim esse latim idealmente objectivo dos botânicos. Naturalmente, essa desordem de Mage aplicava-se ao objecto: miscigenação de «raças», mestiçagem generalizada - abrindo assim caminho para uma etnologia simultaneamente naturalista, dado visar a reconstituição das espécies «puras» com base na exposição heteróclita dos híbridos, e colonial, ao postular que os sujeitos desconhecem quem são e que devem assimilá-lo através da ciência dos mestres. Mage não considera que o emprego do nome possa variar consoante a posição do seu interlocutor e da perspectiva que o mesmo adopta num contexto determinado. Uma vez que os seus contactos com os aldeãos - que distingue ao longo das etapas e cujas línguas não domina - são praticamente inexistentes, é provável que o seu guia oficial, Fahmahra, tenha desempenhado o papel de informador principal nessa matéria: Fahmahra é natural de uma aldeia do Lanballakhé e a sua língua materna é o soninké^": porém, enquanto talibe de al-Hajj 'Umar, também adopta certamente as representações e a terminologia que se generalizaram durante a guerra santa empreendida contra o paganismo^'. Importa ainda acrescentar que, tendo sido alfaiate em Saint-Louis, Fahmahra calcula a ignorância dos europeus e sabe que o vocábulo «bambara», que lhe é familiar há muito, pode servir de resposta para tudo. Indubitavelmente, essas lógicas imbricadas e dissonantes determinam o seu uso do termo.

de localização aproximada no espaço social, e de compreendê-lo tal como ele é: um significante constantemente permutado entre sujeitos falantes - a etnia enquanto conjunto morto de sujeitos «falados»? que nomeiam os outros em relação a si próprios e que se nomeiam a si próprios em relação aos outros - a etnia enquanto conjunto plano desprovido de perspectiva? Quando se verifica uma amálgama entre a descrição dos factos relativos aos seres humanos e a dos factos relativos à natureza - por exemplo, durante a leitura de um relato de viagem - há sempre uma tendência para esquecer que as populações encontradas não têm o seu nome escrito na testa, sendo naturalmente necessário enunciá-lo. Uma miragem ainda mais incontornável para o turista de hoje que pode ler os etnónimos no seu mapa Michelin - como se os cartógrafos não tivessem o velho hábito de povoar os desertos do seu saber com figuras imaginárias. Para quando as placas educativas, à semelhança das que existem nas nossas auto-estradas: ... BAOBABS... BAMBARAS? Em Fevereiro de 1894, Eugène Mage, a caminho de Segou, atravessa Fadougou: um país «magnífico» cujas «florestas de palmitos com os seus troncos seculares» mereciam a sua admiração e o qual, segundo o autor, era habitado pelos «soninké e bambara»^''. Será que a bambaridade dos bambaras lhe foi sugerida pela paisagem e pelas palmeiraspalmito (Borassus Aethiopum)? Ou, na sua óptica e no seu texto, não se tornam efectivamente bambaras aqueles que foram assim designados na sua presença: nesse relato, «é uma aldeia bambara» (a contrário de «é um palmito») pressupõe um enunciador prévio e desconhecido cujas palavras são repetidas implicitamente por Mage e serão repetidas, de forma inconsciente, por todos aqueles que repetirão Mage. Certamente, Mage gostaria de aprender a reconhecer um bambara por sua iniciativa. Porém, a sua dificuldade manifesta «no terreno» seria antes um indicador de que a sua demanda por um critério sólido e de fácil aplicação fica em aberto.

Assim, em termos estritos, tal como qualquer outro, Mage não se depara com bambaras, testemunhando simplesmente determinados usos do nome. Não existem bambaras à beira do caminho sobre os

Quando penetra no Kaarta, é-lhe dito que o país é povoado por kagoros ou kagarotas". Porém, esse povo, apesar de falar soninké, é apelidado aparentemente de bambara. Numa das suas aldeias, em Bambara-Moutan, Mage observa que alguns jovens do sexo masculino usam o cabelo em pequenas tranças, e inquire de imediato acerca da sua identidade: «Dizem-me que eram bambaras, acrescentando todavia que

28. Ibid., p. 124. Consultar nos mapas: Kagoro-Mountan. Situa-se no Kaarta «negro» (6/né). Usar o cabelo entrançado é tido como um costume especificamente bambara. Com efeito, a área de expansão desse tipo de penteado está por estudar A utilização desse penteado, sob o domínio dos fuutaka, é, pelo menos no adulto, um sinal de resistência ou de provocação (ou, consoante o ponto de vista, de fetichismo inveterado). 29. Ibid., p. 148. A capital do Lambalaké (Lanmballakhé em soninké, Kòdala em mandingue) é Toumboula (Tunbula), no Sudoeste de Mourdiab (Murujan). Esse tipo de escarificação constituía a marca específica dos «povos de Segu»; o que poderá ter conduzido a um efeito de moda mais alargado (cf. Monteil [1924], 1977, p. 313; Person [1968], 1.1, p. 78, nota 1).

26. Mage, 1868, p. 161. O Fadougou (Faadugu) situa-se a Norte de Banamba e pertencia outrora aos chefes de Danfa, vassalos dos reis de Segu. De acordo com Mage, «o idioma bambara» predomina nessa região, ao invés do soninké. 27. Ibid., p. 116. Kagòlò ou kagòrò é um termo de significado obscuro, porventura associado ao nome do país [Kagòròta, Kaarta). Os kagoro serão considerados pela etnologia colonial como «mestiços» de bambara e soninké.

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30. Ibid., p. 147. 3 1 . 0 episódio de «palabre» observado por Mage em Diangbirté [ibid., pp. 1 3 6 - 1 3 7 ) demonstra que os kagòrò, habitantes antigos da aldeia, foram ainda destituídos da sua identidade: com a sua ignorância soberana de conquistadores, os fuutaka designam-nos de bambara, tal como os outros!

Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África Conjunturas

étnicas no Ruanda 173

quais se possa dizer: «Ali está um!», do mesmo modo que se poderia afirmar: «É uma termiteira». Cada identificação que ouço ser pronunciada afigura-se relativa; para compreender o seu significado, importa restituir o seu espaço de enunciação, as posições ocupadas respectivamente pelo denominador e pelo denominado - e eventualmente situar-me a mim próprio enquanto estrangeiro que interroga: «Quem são esses povos?» Que não restem dúvidas sobre o seguinte: não estou a negar a existência dos bambaras. Considero precisamente o contrário. Devido à ilusão do rigor tranquilizador das taxinomias coloniais e a sua interiorização sob a forma de um saber comummente partilhado nos meios urbanos e cultos do Mali actual, não se imagina a extensíssima variedade daqueles que, de uma forma ou outra, em função do contexto ou da conjuntura, do ponto de vista ou do interlocutor, foram designados, repertoriados, homenageados, temidos, injuriados, maltratados e exterminados com esse nome, outrora ou recentemente. Desde as minhas primeiras estadias em Segou e nas aldeias limítrofes, aprendi rapidamente, quanto mais não seja pelo embaraço cortês suscitado pelas minhas perguntas, que o vocábulo bamana^^ - trata-se da forma utilizada com maior espontaneidade na língua mandingue - era utilizado com diversos significados, que ninguém podia ser considerado legitimamente como «o bom» e que era mais profícuo reconhecer a ambiguidade do uso actual tentando desvendar o rasto sedimentado de uma história social complexa. Todavia, dado que praticamente todas as populações da África Ocidental utilizaram ou utilizam a palavra, pelo menos na sua forma mais difundida, banbara^^, resulta claro que um inventário completo encontra-se fora do meu alcance. A título hipotético, avançarei apenas com alguns marcos de referência. Povos conhecidos pelo nome juula («dioula»] ou «mercadores mandingues» - e num tempo ainda mais remoto, pelo nome wangara, conforme atestado pelos textos árabes ou portugueses - circulam desde séculos ao longo das rotas comerciais que interligam o vale do Níger e Djenné às regiões meridionais produtoras de ouro e cola (a Norte da Costa do Marfim e do Gana actuais). Esses povos designam de bamana ou banbara as populações assaz diversas com que se cruzam nesses

32. Consoante as regiões, o termo é pronunciado como banmana, bamanan ou bamana: adoptei a pronúncia empregada em Segou. 33. Muito provavelmente bamana e banbara são [conforme considerado por Delafosse, 1912, t. 1, p. 2 1 6 ] variantes de um mesmo nome. Ainda se carece de um estudo linguístico sobre essa matéria, o qual ultrapassa as minhas competências: frisarei apenas que esse tipo de alternância [bana/banba, sama/sanba...') ocorre com recorrência nas línguas da região: poder-se-ia igualmente aventar a hipótese de uma parentela com os nomes colectivos das línguas senoufo [o singular cebaon forma o plural cebalele e o indefinido cebara ou cenbara, ou seja, os tyembara').

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circuitos e entre as quais se propagaram paulatinamente, instalando-se, de um modo faseado, à margem das suas comunidades. Em 1828, René Caillié, seguindo uma caravana de Timé a Djenné e confiando nas declarações dos juula que acompanhava, concluiu muito logicamente que os bambaras são «o único povo existente nessa rota^''». No entanto, o uso do nome é bastante mais antigo, assim como o próprio eixo comercial certamente. Em finais do século XV, os portugueses constatam que os «mercadores mandingues» se abastecem de ouro proveniente dos países akan nos mercados-intermediários, entre os quais figura um local apelidado de «banbarranaa^^», além do célebre Begho [«Beetu»). Região, cidade ou bairro, ninguém sabe ao certo. Trata-se de um topónimo [Banbara-na, «entre os banbaras») provavelmente tão oscilante quanto o nome do qual deriva. Tanto quanto é do meu conhecimento, estamos perante a primeira menção escrita do termo, mas nada impede de conjecturar que o seu uso corrente remonta a séculos. As populações assim denominadas não evidenciavam praticamente nenhum traço em comum - mas afiguravam-se globalmente semelhantes na perspectiva dos juula^«. A distribuição desses bamanas por uma cinquentena de grupos dotados de um nome próprio e de uma especificidade própria, bem como o facto de serem falantes de línguas distintas (amalgamadas na categoria Bamana kan, «a língua dos bamana^^>) e de exibirem «costumes» variáveis (em termos concretos, ora são matrilineares ora são patrilineares), etc, constituem dados irrelevantes. Para a cultura comum dos juula, tal como se constitui e propaga ao longo das suas redes estritas de múltiplas relações entrecruzadas (de parentela e aliança, de hospitalidade, de negócios, de ensino religioso), os bamanas são unos: fornecedores (de víveres, de mão-de-obra servil ou outra), compradores (de sal, tecidos, etc.), eventuais guerreiros com cujos serviços se pode contar, autóctones ou vistos enquanto tal, e nessa qualidade, detentores ritualistas do solo onde os juula fundam as suas colônias. É possível observar o modo como uma identidade colectiva, certamente alienante e arbitrária, se estabelece assim através do efeito de supressão das diferenças 34. Caillié C1830), 1979, t. 2, p. 50. 35. D. Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis (c. 1 5 0 6 - 1 5 0 8 ) , editado e traduzido por R. Mauny, Bissau, 1956, p. 67. 36. Porventura, esse motivo também contribuiu para o facto de terem formado uma única classe na nomenclatura colonial: os miniankas eram incluídos arbitrariamente em outros grupos para constituir a unidade senoufo. 37. Cf. Delafosse 1912, t. 1, p. 126. Segundo Delafosse, os juula diriam apenas banbara kan e não bamana kan-, trata-se de uma imprecisão. Utilizam ambas as formas indiferenciadamente [cf, por exemplo, Table ronde sur les origines de Kong, Université nationale de Côte-d'Ivoire, 1977). Em 1977, tive oportunidade de constatar que os miniankófonos falantes da língua mandingue [são frequentemente bilingues) designam a sua própria língua de bamana kan e a língua mandingue de Juula kan.

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No entanto, para efeitos de uma apreciação dessa caricatura, seria igualmente necessário contemplar - além desses estereótipos transculturais - o modelo geral de classificação hierárquica das «tribos do Sudão», adoptada pela cultura árabe de hegemonia secular: por um lado, os indivíduos mais a Norte são caracterizados como sendo «os melhores» e «os mais belos», o seu «cabelo não é crespado», evidenciam «bom senso e inteligência» e «deslocam-se em peregrinação a Meca». Por outro lado, os indivíduos que se encontram mais a Sul são «os mais maliciosos», de «pescoço curto, nariz achatado e olhos encarnados» e cujo «cabelo se assemelha a grãos de pimenta»: são povos «desprovidos de religião e inteligência», susceptíveis de serem aproveitados como «domésticos e trabalhadores», e ainda conhecidos pela sua «coragem» e a sua apetência para serem arqueiros exímios".

inerente ao interesse social hegemónico de um dos actores. Todavia, não se obtém uma etnia: seria importante que essa perspectiva prática fosse sujeita a uma neutralização científica que propiciasse a obliteração da génese. Os juula não fazem etnologia; o significado que atribuem a bamana ou banhara varia consoante o contexto. Para todos aqueles que se julgam sobretudo comerciantes e muçulmanos, sejam eles juula ou maraka e se encontrem nas margens do Níger ou nos confins da floresta, os bamanas são, em primeiro lugar, camponeses idólatras. Tal como em outras latitudes, o camponês corresponde também ao pagão. Com efeito, no entender de vários juula ou maraka, o comércio é meramente uma vocação, o islamismo traduz-se em rudimentos vagos e a vida rural constitui a realidade quotidiana. No entanto, todos reivindicam a sua pertença a uma civilização urbana, mercantil e muçulmana cujo símbolo perfeito reside em Djenné e Tombuctu - justamente para preservar essa diferença sobre a qual assenta a sua identidade. O retrato do «bambara-tipo» esboçado pelos habitantes da cidade de Djenné encontra-se patente no seguinte texto de Charles Monteil, administrador da referida cidade entre 1 9 0 0 e 1 9 0 3 :

Nesse sentido, bamana constitui, por um lado, o significante comum da figura do «outro» nesse universo, engendrando um mesmo conjunto de relações sociais; no entanto, por outro lado, corresponde também ao nome de uma unidade determinada, apesar de heterogênea e incerta. Constatar-se-á que a designação de bamana não é atribuída a todas as populações de agricultores localizadas a Sul do rio. Através de «um mercador mandingue oriundo de Kong», Caillié toma conhecimento, por exemplo, de que, no Sul dessa cidade, em direcção às zonas auríferas, os habitantes já não são bambaras, independentemente de terem eles próprios o cabelo crespado, de serem pagãos e de não viajarem: falam «outra língua'"'». Similarmente, os pagãos também não são considerados bamanas: conforme atestado pelo emprego do termo por parte dos letrados de Djenné em meados do século XVII. Se, na sua concepção, o universo humano é passível de ser dividido entre «fiéis» {mu'min) e «infiéis» {kâfir, pl. kuffâr), existem, no entanto, diversos tipos de infiéis: os chamados bambara {kuffâr banbara^^) distinguem-se das tribos idolatras que povoam as montanhas de Tonbola (jabal tunbula] e de Dom (jabâl dum'^^) nos confins do território controlado por Djenné - por outras palavras os famosos dogon - assim como dos bobo {kuffâr bubu'^^], isto sem mencionar os pagãos do Gurma {kuffâr gurma'^] situados mais a Leste.

«Crânio oval, prognatismo acentuado, cabelos negros e crespados, repletos de tufos, muitas vezes apanhados em tranças [...]. Testa inclinada para trás, arcadas superciliares salientes [...], nariz achatado; raiz do nariz aplainada, narinas muito abertas. Os lábios são protuberantes [...], a boca muito rasgada, os dentes grandes e ligeiramente separados caem ou estragam-se rapidamente devido ao consumo excessivo do tabaco nativo [...]. Queixo muitas vezes inclinado para trás. Pescoço grosso. Os ombros são largos e direitos; o peito forte e amplo; os membros robustos, as articulações grossas [...]. O aspecto global ilustra uma constituição rústica e atlética. «O bambara é um rústico com dificuldades a nível do raciocínio e da compreensão, embora defenda as suas ideias, sem dúvida raras, e uma teimosia insuperável [...]. Não sabe apresentar-se, explica-se com muito custo, "remonta sempre ao dilúvio" e, ao falar pausadamente, com o olhar ora ausente ora fixado no chão, apenas articula metade das palavras, o que dificulta a sua inteligibilidade. Regra geral, é preguiçoso, borrachão, pouco hospitaleiro e extremamente trapaceiro. Dedica-se sobretudo à agricultura^®.»

39. Com base num texto escrito em 1 1 6 2 por Abu Hâmid al-Gharnâti (cf. Cucq, 1975, pp. 169- 1 7 0 ] e bastante ilustrativo das idéias geralmente preconcebidas nessa matéria. 40. Ibid., p. 105. 4 1 . 0 plural de banbara é banâbir que, segundo Barth, é pronunciado em Tombuctu como benaber (/ò/d., p. 246).

Com apenas alguns pormenores, trata-se efectivamente da figura universal do «campónio» ou do «rústico», na qual o bambara se junta uma vez mais ao seu primo, o auvernhês! 38. Monteil (1932), 1971, pp. 124-125.

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42. Al-Sa'Di, Tä'rtkh al-Südân, trad. Houdas, pp. 2 5 , 1 0 4 , 181-182. 'i'i.lbid., p. 304. 44. Ibid., passim.

L

Os bété: uma

criação colonial

Além disso, é possível que bamana esteja na origem do nome de uma população situada nas cercanias de Djenné, na margem direita do Bani, no início das rotas mercantes rumo ao Sul; posteriormente, os juula teriam alargado arbitrariamente a utilização do termo a todos os grupos mais meridionais. Trata-se da hipótese formulada por Maurice Delafosse em 1904, muito antes de Haut-Sénégal-Niger. Efectivamente, parece que os povos actualmente designados de «minianka»'^^ (ninguém sabe mais porquê) se atribuem o nome de bamana. Tal explicação não é passível de demonstração embora se afigure mais verosímil do que todas as etimologias «populares», ou seja, pseudocientíficas, para cuja invenção em língua mandingue se envidaram todos os esforços''^ provando assim a inexistência de qualquer significado evidente.

f

Por conseguinte, na língua juula, bamana ou banbara teria adquirido um duplo significado ao mesmo tempo regional - ou pelo menos direccional - e social, denotando concomitante e indissoluvelmente os povos do Sul, situados de grosso modo entre o Níger e o Kong (facto que explicaria a razão pela qual os viajantes árabes desconhecem o termo), e os camponeses pagãos. Em ambos os casos, ao invés de um conceito, trata-se de uma categoria relativa que permite uma orientação prática no espaço. Da mesma forma que não se sabe muito bem onde começam e onde acabam os bamanas, também no plano local, no domínio mais limitado da chefaria ou do grupo das aldeias, por vezes, um observador externo enfrenta dificuldades para decidir quem é e quem não é bamana. Atendendo à pluralidade dos critérios utilizados, os pareceres intermédios são variegados; é uma questão de avaliação entre vizinhos. Um indivíduo pode tornar-se bamana apenas porque bebe cerveja, e juula porque exerce actividades comerciais. Certos bamanas encetam um processo de «dioulização» mudando progressivamente de religião, língua, patronímico, ocupação; outros, pelo contrário, mantêm-se fiéis aos «seus antepassados» e à margem dos circuitos mercantis, chegando inclusivamente a conservar uma disposição de eventual hostilidade. Em contrapartida, à imagem dos seus vizinhos

45. Delafosse constata que esse nome é atribuído a um povo situado na região de Nénésso, Koutiala e Kuoro (1904, p. 193), ou seja, ao longo do eixo Norte-Este/Sul-Oeste, o qual é decalcado por Caillié enquanto se dirigia para Djenné. A distinção que Delafosse tenta introduzir entre esses «bamana» e os «banmana» de língua mandingue não é sustentável dada a existência de um único termo, com diversas nasalizações, e efectivamente pronunciado com um tom baixo na segunda sílaba. Cf igualmente G. Chéron. «Essai sur la langue Minianka», Bcehsaof, 1921, p. 560, que frisa o desconhecimento dos visados face à palavra «minianka». Consideram-se ainda hoje bamana [conforme me foi confirmado oralmente por Jean-Paul Colleyn) apesar de, no uso corrente, esse termo estar reservado aos mandingófonos. 4 6 . 0 termo mais em voga é: minwye ban ma na, «aqueles que recusam o senhor», ou seja, naturalmente, os revoltados ou os não-crentes. Porém, houve um período totémico {bama, «crocodilo»...).

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«senoufo», existem bairros juula munidos da sua própria sociedade iniciática (Poro). Alguns juula pertencem a uma tradição de cariz mais guerreiro do que mercantil: devido aos seus costumes de guerreiros brutais e aos seus «feitiços», as famílias letradas (mon) confundem-nos facilmente com os bamanas'''. Os aparelhos militares controlados pelos juula, como Kong, recrutam os guerreiros localmente: bêbedos inveterados mas progressivamente assimilados ao mundo juula, a sua identidade torna-se rapidamente uma questão conjuntural ou de opinião. Noutros locais, à semelhança do que sucede na região de Odienné por exemplo, o poder pertence a uma aristocracia militar oriunda do antigo império do Mali: apesar de existir um termo mandingue específico para designar o seu estatuto, tont/g/''®, também podem ser denominados de bamana por serem claramente diferentes dos juula comerciantes em termos de estilo de vida e do seu zelo reduzido face ao islão; porém, são falantes da língua mandingue e designam de bamana o campesinato sob o seu jugo. Assim, é possível entender de que modo um mandingófono pode ser induzido a apelidar de bamana os povos com os quais partilha uma mesma língua, os «bárbaros» ininteligíveis, os vizinhos ou primos e ainda os selvagens estrangeiros, consoante a conjuntura ou o critério adoptado - esse significante de alteridade é, na sua essência, relativo. A partir do século XV e durante o século XVIII, bandos guerreiros infiltram-se no vale intermédio do Niger ostentando essa identidade ambígua: mercenários relativamente nômadas que, nesse período de desintegração dos grandes aparelhos de Estado (do Mali e posteriormente do Songhay), prestam os seus serviços às cidades mercantes ou aos aristocratas rivais: ora responsáveis pela aplicação da lei ora bandos de saqueadores, sempre dispostos a mudar de senhor ou a servir dois ao mesmo tempo, tanto temidos quanto indispensáveis; nesse contexto, logram instalar-se inicialmente à margem e depois às expensas das populações locais, formando uma rede lassa ou estreita de colônias agrícolas. Desde 1559, as autoridades songhay na região de Djenné consideravam perigosa a presença de infiéis chamados banbaras (ou do Banbara)'''. Conforme observado anteriormente, sob as ordens de chefes de origens diversas ou por sua própria conta, saqueadores do mesmo nome participam nos vários flagelos que ditam a eclosão da intervenção

47. Sobre as diversas formas de ser dos juula, consultar Launay, 1982. 48. Ou tuntigi, aqueles que possuem uma aljava [sob reserva de estudos posteriores sobre o termo tun). Significativamente, tontigi pode também substituir o vocábulo banbara para designar os pagãos. Acerca de Nafana (a região de Odienné), c f Person, 1 9 6 8 , 1 . 1 , p. 168. 49. AI-Sa'Di, Tä'rtkh al-Súdân, trad. Houdas, p. 172.

marroquina de 1591=°, segundo al-Sa'dí. Os chefes jallube, por seu turno, recorrem a auxiliares designados de banhara para integrarem a infantaria contra o exército marroquino em 1 5 9 3 e 1599^'; porém, cinqüenta anos mais tarde, beneficiando de uma vitória marroquina, esses «banbaras» aparentemente revoltam-se contra os seus senhores:

r

«Os infiéis banbaras apoderaram-se de tudo o que atravessou o seu território, pessoas e bens. Deus permitiu assim que se vingassem da opressão dos povos de Mâsina, da sua arrogância e da sua tirania, que haviam suscitado tumultos em todos os pontos do país e em todas as direcções".» O que prova que esses temíveis pagãos - que Deus vos proteja de tal calamidade - podem usufruir do apoio de Deus; aliás, quando destroem a cidade de Shibla nessa mesma época, mostram respeito pela mesquita''^: a pilhagem não exclui as preocupações «metafísicas»... É difícil determinar quem são esses povos. O facto de al-Sa'dí lhes atribuir a mesma designação não significa obviamente que sejam os mesmos. Provavelmente, pelo menos consoante a perspectiva dos habitantes da cidade de Djenné ou dos maraka das margens do rio, esse fluxo incontrolável de guerreiros-camponeses provém do Sul, desse mundo obscuro de tribos idólatras designadas há muito de banbara. As actividades multiformes desses bandos propiciam o surgimento de uma nebulosa de pequenas chefarias rivais das quais emergem, por fim, os dois Estados poderosos de Segu e Kaarta; ora, conforme é sabido, algumas dessas filiações dominantes - que recebiam, regra geral, o «nome de honra» Kulubali - seriam oriundas da região de Kong=^• os kulubali masasi do Kaarta conservam a memória de Begho e do reino de Gonja^^ nas suas tradições. Outros kulubali reconhecem os miniankófonos como seus antepassados, embora com reservas pois no seu entender trata-se de um facto pouco honroso. Com base num inquérito efectuado entre Niger e Bani, a Oeste de Djenné, fico com a mesma impressão de unidade: na sua maioria, os bairros ou aldeias ditas bamanas são povoadas por migrantes provenientes do Sul.

50. Ibid., p. 223. 51./è/d.,pp.274,280, 52./è/d., p . 4 1 1 . 53. Ibid., p. 420. Também preservam a residência de al-Sa'di. Shibla ou Sibila, perto da actual Sansanding, era a capital [maadugu] do Sana. 54. Seria em particular o caso dos antepassados do primeiro rei de Segu, Maamari Kulubali. As fontes são diversas, mas de interpretação melindrosa: não se afigura oportuno proceder aqui à sua análise. 55. Cf. o relato de Raffenel, 1856,1.1, p. 365. Porventura, o «Kéniédougou» de Raffenel (ou Gwènyèkòrò em certas tradições] seja o Gonja.

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Na minha óptica, uma reflexão acerca da «pertença étnica» desses novos actores do cenário político revelar-se-ia demasiado prescindível. O significado do seu nome reside na percepção do mundo social que é específica dos grupos muçulmanos e comerciais que os designam desse modo, sem pressupor a constituição de um referente único [etnia, povo ou cultura]. Seguramente heterogêneos desde a sua formação, esses bandos guerreiros registam um crescimento ao longo do seu percurso enquanto seguidores de todo o gênero: prisioneiros em fuga, guerreiros desempregados ou caçadores sem presa, filhos-família de pouca sorte, etc. Fatalmente, através da participação nos conflitos em curso ou do apoio a um dado líder, mais do que serem banbaras, os indivíduos tornam-se banbaras. Independentemente de onde vêm e de quem são, esse nome é atribuído à sua aparência [patibular] e aos seus actos [violentos]^''. Sinal de afinidade para uns, sinal de pânico para outros. Além disso, esse movimento de colonização militaro-agrária abrange uma zona extremamente vasta: a Leste, até ao Bara - e, a partir de 1 7 1 6 , grupos designados de banbara instalam-se em pleno Tombuctu, com arcos, tambores e trombetas ao serviço de uma das facções armadas que combatiam na cidade"; a Norte, até ao corredor do Sahel, nos países de língua soninké; a Oeste, bandos ditos banbara surgem no intrincado cenário político do Alto-Senegal em 1752^®, antes da formação do Estado Masasi do Kaarta. Será realmente necessário presumir que um mesmo povo se expande e distribui de uma ponta à outra da África Ocidental? Ou melhor, que o processo, uma vez em marcha, transporta consigo o referido nome um pouco por toda a parte e independentemente dos actores? Não restam dúvidas de que muitos são recrutados no local, perdendo a sua identidade pretérita, o que pode suscitar a ilusão retrospectiva de que os bambaras já existiam, aqui e acolá^'. Os nomes são dotados de uma história; um nome é adoptado por uns e rejeitado por outros em função de conjunturas e situações locais. A leitura da realidade social em termos étnicos constitui uma espécie de revisão completa, de mapeamento cujo princípio se traduz no esquecimento obstinado dessa história. 56. A título de exemplo, os bandos de «banbaras» que, segundo al-Sa'dí, destroem Shibla em 1645 [ibid., pp. 4 1 8 e 4 2 0 ] e, a Sul do rio, Faraku, teriam sido liderados por chefes kèyta, ou seja, «povos do mandé» ou maninka - com base naquilo que apurei. Porém, nesse contexto e de acordo com o ponto de vista dos citadinos muçulmanos, trata-se de uma identidade irrelevante. 57. Cf. Tadhkirat al-Nisyân, trad. Houdas, p. 71. 0 Bara corresponde à província situada a Nordeste do lago Debo. 58. Cf. a carta do director de Fort de Saint-Joseph, do dia 2 4 de Fevereiro de 1752 (Arquivos nacionais de França, C 6 13]. 59. Algumas tradições mencionam a presença de «bambaras» a Norte do Niger muito antes do século XVII (cf. por exemplo Ba e Daget, 1962, p. 20]. Mas não existem provas de que essas populações ostentavam esse nome já nesse tempo. É plausível que essa identidade lhes tenha sido atribuída ou reconhecida posteriormente, por assimilação (cf. Gallais 1967, t. 1, p. 90].

Nos anos entre 1680 e 1730, assiste-se por fim à emergência de poderes influentes, a partir desse movimento vagaroso de infiltração e parasitagem, e não propriamente de conquista, cujo nome é rapidamente veiculado ao longo das redes de tráfico, até às feitoras da Senegâmbia: após dois séculos de eclipse, o topónimo «bambarana» regressa assim ao saber europeu; porém, designa doravante o país vastíssimo e assaz desconhecido que se estende desde a região a Leste do Khaso até ao anel do Níger*^" e cujos traficantes se tornam sobretudo símbolo de um reservatório inexaurível de escravos. Com efeito, para dilatar o campo semântico do termo ou, se se preferir, adensar a confusão, todos os prisioneiros oriundos do interior são doravante designados, no Senegal, de «bambaras» - uma nova vaga que, em finais do século XVII e após o esgotamento das zonas mais próximas, se torna largamente dominante". Afigura-se evidente que aqueles que recebem esse rótulo nas feitorias formam uma espécie, no mínimo, heterogénea. No entanto, são identificados traços comuns. Golberry considera que «a sua cor negra não é bela"», «as suas cabeças são redondas, os seus cabelos, lanosos e crespados, as suas feições, cerradas e rudes, a maçã do rosto, extremamente saliente, o nariz, muito achatado, os lábios, bastante grossos e as pernas, tortas». O que, aliado à sua inépcia, preguiça e «língua rude e selvagem», talvez constitua uma definição indevida da sua etnicidade embora os condene nitidamente à servidão. Todavia, Lamiral constata que, entre cinquenta escravos dotados desse «nome genérico de bambara», «haverá vinte nações diferentes de costumes e línguas, que não se entendem entre si»; é possível discerni-los com base «nos diferentes cortes que apresentam no rosto e no corpo». Esse inventário das escarificações - que fará as delícias do saber colonial - está na base do surgimento de uma etnografia perfeitamente objectiva nos cativeiros, a qual deve efectivamente ser julgada suficiente pois, segundo as afirmações de Lamiral: «interroguei vários elementos no seu país, mas são de tal modo ineptos que é praticamente impossível extrair uma noção clara. Poder-se-ia cair na tentação de pensar que os apanhamos em grupos e os trazemos sem que saibam de onde vêm nem para onde vão*"^». Por conseguinte, banbara enceta o seu percurso científico como «significante O», a máscara de uma ignorância absoluta.

60. Cf. por exemplo o mapa de G. Delisle em 1726 e a comunicação de Charpentier, 1 de Abril de 1 7 2 5 (Arquivos nacionais de França, C 6 9). ei.Curtin, 1975, p. 179. 62. Golberry, 1802,1.1, p. 101. Tauxier afirma «Ela tem uma cor de chocolate escura ao passo que a cor negra dos ouolofs é mais bela»: as diversas qualidades da madeira de ébano... 63. M. Lamiral, UAffrique et le peuple africain, Paris, 1789, p. 184.

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Por um lado, essa multidão de escravos oriundos do interior é seguramente engendrada por operações militares de vária ordem (guerras interinas, ataques, etc.), graças às quais se constituem e se reproduzem os Estados apeUdados de bambara. De modo que, estranhamente, essa palavra designa assim o caçador e a presa, o produtor e o produto; é verdade que a forma mais eficaz de não ser vendido consiste em capturar e que, entre o guerreiro e a sua vítima, tudo depende da sorte no combate, mesmo se entre os exércitos reais e os aldeãos atrás das suas muralhas, as probabilidades nunca sejam iguais". Por outro lado, os guerreiros dos Masasi e sobretudo os de Segu pertencem frequentemente a um estatuto servil ou semi-servil, uma vez que uma parte dos prisioneiros era assimilada pelo aparelho militar. Os europeus não descuram esse facto: no reino bambara, escreve Labat a partir de 1728, «qualquer povo é escravo do Rei ou dos Grandes«^» - figura clássica do despotismo. Porém, no outro extremo da cadeia, no Senegal, verifica-se a reincidência da mesma ambiguidade: apesar da sua suposta «inépcia» (que se resume talvez a um argumento de venda junto dos compradores no outro lado do Atlântico), os bambaras também se revelam recrutas valiosos: dada a necessidade de defender os fortes contra os soldados estrangeiros nos conflitos locais, os escravos do interior - conhecidos pela sua extrema lealdade - são normalmente afectados a essa tarefa, de modo que, na primeira metade do século XVIII, «bambara» também adquire o significado de «qualquer prisioneiro guerreiro em serviço no SenegaP®"»: eis os antepassados dos futuros «atiradores». Em suma, selvagem saqueador, soldado fiel ou rebanho servil: já nesse tempo era assim: cada qual com o seu bambara. Acompanhando o itinerário de exploradores consecutivos, ao deixar as margens da Senegâmbia para penetrar no «Bambarana», a gramática do vocábulo altera-se. Na sua chegada ao Kaarta, Anne Raffenel utiliza de início o termo «bambara» uniformemente para designar os habitantes do reino. Porém, rapidamente se apercebe muito claramente de que, segundo o uso local, apenas os kulubali, os seus clientes e fiéis, os seus prisioneiros e soldados, são apelidados de bamana^'. 64. Bazin, 1982, p. 3 4 4 sq. 65. Labat, 1728, t. 2, p. 357. Sobre os prisioneiros guerreiros de Segu, cf. Bazin, 1975. 66.Curtin, 1975, p. 115. A sua lealdade não constitui um entrave a uma eventual revolta. Em 1737, em Farabana, os prisioneiros do forte apossam-se de canhões e atraem vários dos seus irmãos, pelo que os franceses, temendo que não formassem um Estado, convocam o exército de Fuuta-Toro (Carta do comandante de Saint-Joseph, 22 de Julho de 1737, Arquivos nacionais de França, C 6 113. 67. Cf por exemplo 1856, t. 1, p. 270, na qual estabelece uma oposição entre os «bambaras tomados em massa» (sobre os quais apresenta um parecer favorável} e os kulubali com os seus prisioneiros e os seus griots (sobre os quais apresenta um parecer desfavorável}. Com base no seu relato histórico, depreende-se claramente que os bamana («bamanaos»} correspondem aos

Por conseguinte, os kagoros - com os quais Mage se cruza mais tarde - podem efectivamente ser considerados bambaras dada a sua condição de súbditos dos masasi; porém, tanto eles quanto os seus vizinhos (jawara, soninké) utilizam o termo exclusivamente para designar o aparelho militar e a aristocracia à qual estavam subordinados desde 1 7 5 5 . O mesmo sucede com o Estado de Segu, remotamente conhecido e temido pelo nome «bambara»: no seio do reino, bamana remete, de facto, para o sistema complexo de identificações relativas segundo as quais as várias comunidades coexistentes nesse espaço político se designam entre si. Os bamana, maraka, somònò (os pescadores e os barqueiros) ou fula (os criadores de animais) falam a língua mandingue^", com apenas algumas variantes, mas são (ou eram) endógamos, ocupando, em teoria, habitats distintos: ora aldeias específicas (os Marakadugu ou «aldeias de Maraka», por exemplo), ora bairros espacialmente diferentes (so/ca/a) pertencentes a uma mesma aldeia e que, regra geral, recebem os nomes de bamana (ou bamanan), marakala («entre os maraka»), somònòso («bairro dos somònò») e fulala («entre os fula»). A aplicação recíproca dessas designações está relacionada com vários estereótipos sobre os quais não posso aqui avançar uma exposição completa. Tomando como exemplo a relação bamana/maraka, é possível afirmar que, no entender dos primeiros, os maraka são comerciantes, muçulmanos e pacíficos, senão mesmo cobardes; os bamana, pelo contrário, são conhecidos como agricultores, feiticistas incorrigíveis e guerreiros, ou ainda como saqueadores. Ora, se os bamana, de uma maneira geral, desdenhavam as actividades comerciais, apenas algumas filiações de maraka praticavam o comércio, sendo que a maioria era sobretudo camponesa. No atinente ao islão, a sua adopção (ou readopção) por parte de uma quantidade significativa de maraka é recente (trata-se de um movimento que se repercute igualmente nos bamanas da região). Ambos os grupos, igualmente heterogéneos, devem, por um lado, a sua identidade à diferença com a qual se identificam mutuamente - ainda que, em termos objectivos, corresponda a

masasi e aos seus aliados, por oposição às populações locais dominadas: «kaartas» [por outras palavras, os kagòrò), povos do jafunu, jawara, etc. (p. 367}. 68. Até dispor de informações mais circunstanciadas, não creio que haja uma língua especificamente bambara. O facto principal (cf Person, 1968, p. 47} reside na existência de uma língua que permite uma intercompreensão numa parte considerável da África Ocidental, a qual é logicamente designada de «mandingue» uma vez que a sua extensão deve-se, pelo menos, parcialmente ao império dos mandenka ou maninka, os «povos de Mandé». Os dialectos locais são diversos e ainda carecem de um levantamento. 0 mandingue não é falado da mesma forma em Segou, no Sul do Bani, no Bèlèdugu, ainda que esses países sejam todos eles designados de bambara. Note-se que a língua vernacular predominante no Mali actual é denominada de «bambara». Corresponde ao que se designa na Costa do Marfim de «dioula».

Jean-Loup Amselle e Elík a M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em

frica

uma das mais tênues: por exemplo, uma mera questão de indumentária. Em Kin, no Sul do Bani, um conflito antigo opõe os dois bairros de Bamana e Marakata; o chefe de Bamana, um ancião com bastante humor, descendente de antigos prisoneiros-guerreiros [tònjòri) dos reis de Segu, escarnece dos seus vizinhos a respeito desse tema imorredouro: o hábito não faz o monge: «Não é pelo facto de rezarem que são maraka. Se rezam, só começaram a fazê-lo desde ontem! Éramos todos iguais, ninguém rezava. Partilhamos as mesmas raízes. Tornaram-se maraka porque quiseram envergar as vestes dos maraka [Maraka fini], ou seja, tecidos negros tingidos com índigo {gala finí). Antigamente, os nossos anciãos impediam-nos de usar tais coisas. Devíamos envergar vestes tingidas com argila [bògòla finí], Se são maraka, é apenas pelo hábito!^'». No entanto, pelo menos nos dias de hoje e apesar de, na época dos reis de Segu, vários maraka terem praticado um sincretismo extremamente suspeito, parece que o critério prevalecente é justamente o religioso. Todavia, nunca chega efectivamente a suprimir os restantes critérios. A aplicação do termo kafiri é bastante rara, ao contrário de bamana, utilizado de forma mais recorrente, incluindo nos meios letrados de Segou. Poder-se-á afirmar que uma dada linhagem de maraka («ou de origem maraka») era, nesse tempo, bamana, ou seja, pagã: «Os jlrè de Togu, uma aldeia de Maraka ligeiramente a Leste de Segou, contam que, na seqüência de uma guerra que culminara na destruição completa do local, partiram em busca de um célebre mori («marabuto»), Maamari Kamitè, pedindo-lhe que lhes apontasse um sítio mais seguro e se estabelecesse com eles nessa região. «- Mas são bamanas, respondeu-lhes o marabuto, usam tranças! Cortem primeiro o cabelo.» «E os jirè obedeceram, regressando posteriormente à sua procura e confiando-lhe os seus filhos para a aprendizagem do Corão^° ». Reciprocamente, um recém-convertido será imediatamente considerado alguém «que se tornou um maraka», apesar de a expressão poder suscitar risos ou correcções em determinados meios:

69. Notas no terreno, 15 de Dezembro de 1977. 0 barrete dito «boca de crocodilo» {bama da) também faz parte do vestuário habitual do bamana e, quando necessário, serviu de símbolo de reconhecimento. Aparentemente, durante alguns rituais, era proibido o uso de «vestes de maraka». 70. Notas no terreno, 9 de Agosto de 1970.

«Os povos de Busèn, uma aldeia de Maraka perto de Togu, tecem as seguintes afirmações acerca dos seus vizinhos, os antigos "reis" [masa] Tarawélé de Faraku (uma cidade que, segundo al-Sa'di, fora destruída por infiéis banbara em 1645]: "Não eram maraka mas sim bamana pois realizavam sacrifícios. A partir do momento em que começaram a orar, tornaram-se maraka. Porém, os maraka genuínos são aqueles que rezam desde os seus primórdios; trata-se de uma raiz {^shiya] diferente."'^»

quais se consideraram, nessa qualidade, os «anfitriões» de todos os restantes grupos - os bamana apresentam-se como os povos da terra por excelência: tanto os artesãos quanto possivelmente os «povos do rio» ou os criadores de animais devem passar necessariamente pela sua mediação para efeitos de garantia da cooperação da terra e da generosidade das suas dádivas, como se todos padecessem de uma incapacidade ritualista considerável nessa matéria (independentemente da capacidade técnica que possam exibir para serem agricultores).

Eis um imbróglio ilustrativo do modo como os próprios interlocutores, perante um estrangeiro que, no seu entender, anseia por um esclarecimento, podem tornar-se conscientes da polissemia das categorias utilizadas diariamente e cuja ambigüidade não é obstrutora em termos práticos, assumindo, pelo contrário, os contornos de uma incoerência impermista quando merece uma explicação. Se, através do afunilamento do ponto de vista, se chega às comunidades denominadas, em termos globais, de bamana pelos seus vizinhos, constatar-se-á que o termo exibe ainda outro uso: designa o estatuto das famílias camponesas livres, por oposição aos «povos de casta», os grupos artesãos especializados. Ser um numu (membro do grupo estatutário endógamo ao qual é reconhecido o monopólio dos trabalhos da forja) ou um jeli (os sapateiros, igualmente conhecidos pela sua função degriots], não é o mesmo que ser um bamana. A título de exemplo, um ancião numu, ao contar uma história trivial da aldeia, relatará como o seu antepassado se veio estabelecer na região na companhia de um certo bamana". Porque um membro de uma dessas «castas» só pode definir a sua pertença a uma comunidade aldeã {^idugu] - entendida como o conjunto de seres humanos que habitam um mesmo território - através da referência a uma linhagem de bamana que actua como «anfitrião» {jatigi). Paradoxalmente - à luz do reconhecimento consensual de que o país de Segu pertencia outrora aos maraka, os

Por exemplo, em Kalabugu, na margem esquerda defronte de Segou, os bari do bairro fulala («entre os fula»), actualmente agricultores, são considerados os fundadores da aldeia. Porém, o senhor do solo, incumbido dos habituais sacrifícios realizados anualmente, e os sacerdotes do «Grande Mogno Africano» {Jaia ba) - um conceituado local de culto na região - encontram-se no bairro bamana, apesar de se afirmar que os seus habitantes vieram instalar-se «junto dos fula» ( / i í / o w / è ) " . Em várias aldeias da zona central do antigo reino, bamana corresponde ao nome do bairro dos «senhores do solo» [dugukolotigí), ou seja, os indivíduos que detinham ou ainda detêm (no caso de a sua descendência não estar extinta, o que sucede com freqüência) o controlo ritualista da prosperidade das culturas, ainda que os prisioneiros-guerreiros dos reis tivessem muitas vezes beneficiado do seu número e do seu poder para se apropriarem do melhor quinhão de terras. Por exemplo, em Sando, no Sudoeste de Segou, os habitantes actuais são, em parte, descendentes de guerreiros de elite designados de sofa-, embora actualmente inexistente, ainda se guarda a recordação do bairro Bamana. Foi-me explicado o seguinte: «O arroteamento [minw ye tu tigè: «aqueles que desbravaram o mato») foi efectuado, numa dada aldeia, pelos povos de Bamana'".» Os soldados do rei - apesar de serem lavradores a tempo parcial - também constituem eles próprios peritos e, além disso, amiúde estrangeiros. Dado serem povos de guerra, produzidos e reproduzidos pela guerra, a terra não é da sua competência. Curiosamente, aqueles que, com o nome de bamana ou banbara, adquiriram essa famosa reputação, tão terrível quanto vaga, depararam-se, aquando do seu regresso ao seu local de origem, com uma natureza bamana mais acentuada do que a sua na figura desses camponeses de velha cepa ou tidos enquanto tal, os quais, nessa medida, eram

71. Notas no terreno, 8 de Agosto de 1970 (cfi Ta'rikh al-Sûdân, p. 420). 72. Relato de Kòncèni Kònè sobre a fundação de Kònòdimini (31 de Dezembro de 1968). Segundo esse prisma, existe uma oposição entre os bamana e os nyamakala (a unidade dos grupos artesãos de casta). Outra hierarquia estipula uma distinção entre os camponeses livres ou «francos» [hàràn) e os prisioneiros ou descendentes de prisioneiros (Jàn, woloso). 0 termo bamana pode funcionar igualmente nesse registo. Entre os maniankófonos, verifica-se o mesmo uso: ser bamana não é o mesmo que ser tuntun («ferreiro»), por exemplo, e vice-versa: posto isto, mesmo nesse caso, o termo não remete propriamente para um etnónimo, mas antes para uma identidade relativa. 0 mesmo sucede entre os diferentes grupos designados de senoufos. Tiona Ouattara (Les Tiembara de Korhogo, tese da Université Paris 1,1977, p. 6 9 ) considera que o vocábulo «senoufo» derivaria de senaon (pl. senambele), «lavrador»; como prova da sua teoria, frisa que os membros dos grupos artesãos «de casta» (os fononbele ou «ferreiros», por exemplo) designam os agricultores de senanbele, ou seja, «os outros senoufos». Colocando a questão da melhor forma: apenas o termo senoufo, engendrado pelas classificações coloniais (cf. Launay, 1982, p. 17), apresenta o valor de designação étnica global.

Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e m África

73. Essas funções foram mantidas inclusivamente após a chegada de uma filha do rei e dos seus prisioneiros e ferreiros, cujos descendentes formam actualmente grande parte da população. Notas no terreno, 28 de junho de 1969. 74. Esse uso do termo constituiria porventura uma explicação para o facto de ser constantemente indicado que os primeiros habitantes do Mandé teriam sido «os bamana»: nesse contexto, é possível presumir que se trata de uma forma de designar os autóctones, quem quer que sejam (no entanto, sem descartar que o país fora inicialmente povoado por não-mandingófonos).

L Os bété: uma criação colonial

considerados responsáveis pela manutenção do vínculo entre os seres humanos e a terra.

A invenção da etnia É meu desejo que a presente análise, marcada por uma extrema concisão, provoque, pelo menos, algum embaraço. Quanto mais se multiplicam os significados do nome e mais se entrecruzam as lógicas que regem o seu uso, mais se desconhece o paradeiro da etnia. Os bamana existem efectivamente, em carne e osso, mas a «sua» etnia evaporou-se. À semelhança do que sucede com os fantasmas, não se trata de saber se ela existe ou não, mas quais as condições da sua aparição: não é uma questão de crença, mas de descrição clínica. Gostaria de voltar a trilhar esse percurso mas em sentido contrário: efectivamente, a invenção da etnia procede ao arrepio desse inventário semântico. Para que o nome alcance o seu estatuto etnológico, a sua função de designação de uma entidade única - os bambaras -, é necessário retirar-lhe o sentido, anemiar a sua ambiguidade por meio de operações de extracção, selecção e censura, as quais lhe conferem univocidade. A etnia apresenta-se assim negativamente, enquanto resíduo científico de uma polissemia prática contrária à racionalidade etnológica e à razão de Estado. Decerto que bamana (excepto no caso de se levar a sério as etimologias fantasistas facultadas] é desprovido de um sentido linguístico, pelo menos em qualquer uma das línguas faladas pelos que recorrem ao referido termo; nessa qualidade, trata-se de um nome próprio que deve ser maiusculizado e não deve ser traduzido". Logo, em termos teóricos, bastaria a indicação do seu referente para apurar aquilo que o termo «quer dizer»: quem é bamana (ou banbara]? Porém, essa pergunta pode ser respondida de tantas formas que a demanda por uma identidade absoluta, primordial (da qual emanariam as restantes] permanece inútil; de tal modo que, em boa verdade, essa ausência assume-se como o sentido derradeiro da palavra; a sua indeterminação torna-a apta para a denominação de conjuntos múltiplos e, inclusivamente, para a sua função de etnónimo, caso se justifique. Pelo facto de não designar ninguém «estritamente», cada um dos seus usos adquire o valor de afectação relativa a uma classe: «camponês», «guerreiro», «escravo», «pagão», «pagão do Sul», «escravo do interior».

7 5 . 0 mesmo se aplica aos nomes dos grupos «de casta» (numu, jeli, kule, etc.) que, em bom rigor, não devem ser traduzidos por termos profissionais. 0 nome não designa a profissão, mas o grupo que detém o seu monopólio; por esse motivo, um indivíduo pode ser numu sem nunca ter praticado a forja.

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«saqueador» ou metafísico. Tudo se dissolve em conotações dotadas de uma denotação efémera ou eternamente esquecida que só pode ser reinstituída por decreto; simulacro de nome próprio - cuja etnia seria o referente impossível de encontrar - e que convém transformar em nome próprio «autêntico» através de um conjunto de operações adequadas'"^. Essa «aparição» dos bambaras não resulta de uma mutação brusca; seria necessário acompanhar os primeiros passos hesitantes nos arquivos da exploração e da conquista coloniais. Os princípios taxinómicos encontram-se implementados desde a expedição de Binger^', publicada em 1892; porém, saltarei as fases confusas da embriogénese para me centrar desde logo no devido acto de nascimento, patente na obra Haut-Sénégal-Niger, da autoria de Maurice Delafosse, em 1912. Importa ter presente que se trata de um trabalho de compilação crítica realizado com base em monografias solicitadas aos comandantes dos círculos pelo governador Clozel na sua carta de 15 de Janeiro de 1909. Tais monografias devem facultar informações relativas aos «agrupamentos étnicos» representados na circunscrição, entre outros aspectos. De entre os documentos que devem ser anexados pelo comandante, figura «um mapa de 1:200 0 0 0 com indicação das divisões do círculo por províncias ou cantões, e por raças (referenciar cada raça através de uma combinação de tracejados separados por intervalos consideráveis a fim de preservar a clareza do mapa'®]». Através de um «trabalho de reestruturação e coordenação», Delafosse teria reconstituído o quebra-cabeças, extraído a realidade dos «povos» a partir desses dados repartidos por círculos, e apresentado uma classificação metódica e exaustiva: por um lado, procede-se à distribuição dos indivíduos e das suas comunidades em unidades administrativas; por outro, à sua reconstituição em etnias; através de um único e mesmo gesto, é efectuada a organização de ambos os modos de identificação complementares do Estado colonial. Corresponde a um empreendimento - em boa verdade, de natureza ideológica - de sistematização e consagração erudita do semi-saber no estado prático de que dispõe, melhor ou pior, a administração local da época, estando assim a sua restituição enfarpelada por uma sanção científica respeitável - uma 7 6 . 0 facto de um nome próprio classificar aquilo que se nomeia ou aquilo que nomeia ( c f Lévi-Strauss, La Pensée sauvage, capítulo VI) não o impede de denominar efectivamente um indivíduo qualquer. Não é irrelevante chamar o meu cão de Peléas em vez de Médor; mas trata-se realmente desse cão em específico, o meu e não outro. 0 facto de qualquer denominação ter um «significado» inerente não implica que «nunca se nomeie». Nesse caso, pelo contrário, o nome esgota-se de tal modo na classificação que a sua função de nome próprio se dilui. 77. Neste texto em particular, os «bammana» são definidos como um «ramo» da «família (ou da "raça") mandé»; c f 1892, t. 2, p. 372, 375, 386. 78. Delafosse, 1912, documentos anexados, 1.1, p. 27.

síntese que Delafosse desejaria provisória mas que servirá de base para a formação de gerações consecutivas de administradores, fornecendo o quadro do saber escolar imposto aos administrados. Segundo Delafosse: «Os banmana são geralmente apelidados de bambara tanto pelos europeus quanto pela maioria dos povos do Sudão que os rodeiam [...]. Não subsistem quaisquer dúvidas de que, para os muçulmanos do Sudão em geral e da região do Niger em específico, a palavra bambara designa o conjunto de todos os sudaneses que vivem entre os muçulmanos ou perto deles e permanecem fiéis à religião nativa, ao invés de um povo determinado ou uma tribo particular: nesse sentido, os dioula de Sikasso e da região de Kong designam os senoufo de bambara [...] em Sikasso, a expressão bambara-kan significa efectivamente a língua senoufo e não a língua mandé nem o dialecto mandé dos banmana. Consequentemente, a utilização indiscriminada do termo bambara acarretou resultados desagradáveis. [...]. Além disso, prefiro abster-me completamente dessa expressão de valor anfibológico pelo que denominarei sempre o povo de Segou, de Béléfougou, etc. do mesmo modo que ele se designa a si próprio, ou seja, pelo termo banmana''h>. Trata-se de um texto fundador para qualquer bambarologia futura; não existem constatações, mas sim decisões; ao invés de estudar os factos linguísticos, o objectivo consiste em reformar a norma do bem falar. Por esse motivo, estamos perante um tom de compromisso solene, a configuração de um acto, ou seja, de «uma operação dotada de efeito de direito» - um acto de baptismo, nesse caso. À semelhança de um indivíduo cuja existência se pressupõe graças ao nome que lhe é atribuído, os bambaras já existiam mas foram registados com um nome que não lhes pertencia. Uma rectificação afigura-se imprescindível, uma primeira emenda restabelecedora da identidade verdadeira. A primeira operação consiste em determinar de forma rigorosa o procedimento de identificação, conforme exigido por uma prática administrativa sã. Considera-se francês qualquer indivíduo que seja titular de documentos autênticos que o comprovem: como se é bambara? Face a esse tipo de sub-nação problemática, a um nome próprio atribuído a um portador inconstante, é necessário tomar uma decisão. Infelizmente, não se estabelece uma associação entre uma etnia e uma cara, como sucede com um homem. Atendendo à antiguidade e complexidade das miscigenações (migrações individuais, escravatura, uniões interétnicas), os critérios somáticos não são credíveis. Em primeiro lugar, os colonizadores utilizam apenas a palavra «raça»®" 79. Ibid., pp. 125-126. 80. Delafosse propõe «reservar o nome de raça aos grandes grupos da raça humana» e considera

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pelo facto de a ideia estar em voga e de a subalternização mais radical se alicerçar precisamente nos traços físicos; no entanto, rapidamente acabam por definir [pelo menos, nessa região] a raça através da língua. O facto de ser considerada materna é suficientemente ilustrativo da sua pertença mormente ao quase-físico, ao substrato genérico, e não tanto às relações sociais. No seu preâmbulo, Delafosse observa que: «O método linguístico de classificação que contempla apenas o grau ou a ausência de parentela das línguas faladas pelos diversos agrupamentos beneficia de uma vantagem incontestável: assenta em dados efectivamente exactos, fáceis de controlar e que, uma vez estabelecidos, não suscitam qualquer discussão [...]. A classificação dos povos da referida colónia [o Alto-Senegal-Níger] com base nos seus idiomas é, sem dúvida alguma, aquela que oferece maiores garantias e se afigura mais exequível em termos práticos®'.» Como é evidente, nesse contexto, a confusão inerente à designação das populações falantes de línguas pertencentes a famílias diferentes [«mandé» e «senoufo»] através de um único termo - bambara [ou ainda bamana, independentemente das afirmações de Delafosse] revela-se altamente «desagradável». Desagradável para quem? Doravante, graças à classificação engendrada por Delafosse, os «bamana» representam um dos cinco «povos» do «grupo do centro» da «família mandé®^». O que significa especificamente que qualquer bambara que fale senoufo é um bambara falso. Logo, os comandantes podem preencher com toda a tranquilidade a secção RAÇA na documentação entregue aos nativos - os quais podem finalmente saber com certeza se são ou não bambaras. Uma vez depurada a nomenclatura dessa confusão «desagradável», outro interesse consiste em tornar os bambaras simultaneamente contabilizáveis e cartografáveis. A rectidão do nome torna manifesta a realidade objectiva do povo. Ao contrário dos bambaras, sobre os quais ninguém sabe exactamente quem são ou onde estão, os «banmana» - sujeitos a essa redefinição ascendem a um número de 5 3 8 450®^ indivíduos; representam sempre

«totalmente inapropriado» falar de «raça peul» ou de «raça mandé» (p. 112). Todavia, ainda nos dias de hoje, o termo continua a ser utilizado nesse sentido (etnia ou grupo étnico que releva de uma língua mais científica). Sl.Ibid,p. 111. 82. Cf. [ibid., pp. 111-112) a tabela na qual estão categorizados os trinta e seis povos de raça negra representados no território. Nesse caso, Delafosse é obrigado a desrespeitar os seus próprios princípios taxinómicos: a cada «povo» (ou «agrupamento étnico») corresponde uma língua; ora, os «banmana» falam apenas um «dialecto» diferente e, nessa qualidade, deveriam ser considerados uma «tribo». 83. Ibid., p. 142 sq. A nomenclatura (de família, grupos e povos) segue-se a «distribuição numérica» por círculos (para os bambaras, p. 150).

5 3 8 4 5 0 em 1924"^ 1927"=, 1942"^ o seu habitat estende-se desde o 11^ até ao 142 gj-au de latitude norte e desde o 1° até ao 11^ grau de longitude oeste; porém, no caso de se englobar os grupos mais periféricos, é necessário aumentar esses limites para o 9 - e o 1 6 ° grau de latitude norte e o 5 - e o 12^ grau de longitude oeste''^ Em 1 9 5 1 , Germaine Dieterlen recupera esse registo cartográfico da etnia. Da substância, os bambaras têm, pelo menos, a perenidade. Parte-se do princípio de que, se um determinado povo existe, é dotado de uma língua própria que constitui a manifestação imediata e irrefutável da sua identidade. Sabe-se qual o aparelho complexo que implica a imposição laboriosa de uma língua nacional única, quais as possibilidades de resistência ou compromisso oferecidas pela prática do multilinguismo; porém, a etnia deve falar a «sua» língua naturalmente, tal como a pega paira e o elefante barre. Ao acaso dos recenseamentos e dos intérpretes, as fronteiras encontram-se assim estipuladas, no papel, nos arquivos e nas fichas, entre comunidades análogas que praticam o bilinguismo desde gerações. Entre a língua mandingue e as línguas senoufo, por exemplo, o limiar foi sem dúvida oscilante ao longo de séculos, em função das conjunturas políticas, dos fluxos e refluxos do islão, das estratégias de expansão ou de recuo de diferentes grupos pertencentes a um mesmo espaço político, etc. Se o respeito pela língua for superior ao respeito pelo discurso, seria caso para perguntar por que motivo o critério linguístico pode ser irrelevante na óptica dos próprios actores. Tanto o indivíduo que praticamente não fala senoufo quanto o indivíduo que ainda não fala verdadeiramente dioula pode ser considerado bamana. Do mesmo modo que são tidos por maraka os soninkófonos e os restantes indivíduos que falam mandingue desde há séculos e que, muitas vezes, não têm qualquer memória de terem falado soninké. Povos que já não sabem uma única palavra de peul ou quiçá nunca tenham sido falantes dessa língua podem ser designados de fula. Não se trata de um desconhecimento relativamente à diferença das línguas, mas do facto de essa ocupar um lugar secundário nesse contexto, apesar de poder ser eventualmente explicitada noutro; por exemplo, apelidar-se-á de maraka fin [«negros»] e maraka jè [«claros»] os indivíduos que falam mandingue ou soninké respectivamente; similarmente, b a m a n a / / n pode designar os senoufonos.

84. Monteil (1924), 1977, p. 3. 85. Tauxier, 1927, p. XII. Tauxier acrescenta apenas 2 0 0 0 na Costa do Marfim (para ter um número redondo: 5 4 0 0 0 0 ) . 86. Tauxier, 1942, p. 7. 87. Tauxier, 1927, p. XI. Os «locais de ocupação excêntrica da raça» são o Kaarta a Oeste, e o círculo de Niafounké a Leste.

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A segunda operação seja efectivamente um e qualquer conotação, termo desdenhoso ser

traduz-se na neutralização. Para que bambara nome próprio é necessário expurgá-lo de toda sobretudo as desagradáveis. Como poderia um a designação objectiva de uma etnia!

«A denominação bambara [...] adquire acepções variegadas na linguagem corrente. Para o muçulmano, o bambara representa o infiel, o pagão, o consumidor de álcool; para os pastores (mouros, peul], bambara é sinônimo de agricultor e também de negro [...]; para os actuais e anteriores detentores do poder, o bambara corresponde ao escravo; para a generalidade das pessoas, é o primitivo, o indivíduo socialmente inferior.» De tanto ser utilizado «como um simples epíteto», «o vocábulo adquiriu um valor pejorativo chegando, por vezes, a constituir uma ofensa grave». Daí a necessidade de retornar ao «sentido estrito» da palavra, à «sua acepção restrita®®». Todavia, no plano do «sentido estrito», o «simples epíteto» apresenta a vantagem de ser realmente utilizado. Com efeito, em que enunciado poder-se-á considerar o sentido como estando isento de qualquer conotação, seja ela negativa ou positiva? Mesmo quando os próprios actores se identificam com esse nome, ao invés de serem simplesmente apelidados por terceiros, trata-se ainda de uma questão de oposição face a um dado grupo [os «povos de casta», os «povos do rio»] sobre o qual se afirma assim, de forma implícita, que não são dignos nem têm direito a esse nome. Para efeitos do seu desígnio e por abstracção, a etnologia procede, nesse caso, à construção de um espaço meta-social no qual os sujeitos, providos de uma identidade absoluta, coexistem sem qualquer ligação, tal como os gêneros e as espécies coexistem num tratado de zoologia. Partindo do princípio de que, no âmbito dos nomes colectivos concedidos aos actores para efeitos de designação mútua, alguns são neutros [talvez os que remetem para topónimos®''], afigura-se ainda premente a sua identificação e inventariação, em vez de engendrar um puro artefacto através de um naipe de supressões nítidas. Em virtude desse princípio, se bambara significa «pagão», não se trata de um etnónimo e vice-versa'"; ora, dada a postulação de que o 88. Monteil (1924), 1977, p. 9. 89. No entanto, é possível salientar que maraka refere-se efectivamente a um topónimo («os povos de Mara»); mas como já ninguém sabe onde fica Mara, o termo adquire um valor relativo idêntico ao de bamana. Similarmente, mandenka, os «povos de Mandé», remetia inicialmente para o aparelho político do antigo império do Mali (antes de se tornar um etnónimo: os malinké); por esse motivo, o termo significa «os guerreiros» na h'ngua dos povos de Djenné, por oposição a wangara, «os comerciantes» {Ta'ríkh al-Fattâsh, trad. Houdas, p. 65). 9 0 . 0 debate acerca dessa matéria é antigo. Em Année sociologique de 1 9 0 9 - 1 9 1 2 , Mareei Mauss sublinha, a propósito da obra do padre Henry (1910), que o vocábulo «bambara» constitui um

embora tenham começado a orar no entrementes»). Não ser muçulmano constitui assim um dos critérios de identificação prática da unidade bamana, apesar de não ser o único. Por esse motivo, de nada serviu a ordem do governador Clozel relativamente à discriminação das etnias, por um lado, e das religiões, por outro: todos os bambaras recenseados são não-muçulmanos".

referido termo deve ser um etnónimo, aqueles que lhe conferem um sentido «religioso» cometem claramente um abuso de linguagem. Além disso, para exibir uma impassibilidade em relação a uma diferença tão manifestamente patente como a das línguas (mandingue e senoufo), não será necessário ter o espírito toldado por um qualquer poder de contra-senso, tal como o «fanatismo» muçulmano, em nome do qual todos os «infiéis» - ou melhor, segundo a expressão eminentemente laica de Delafosse, todos aqueles que «permaneceram fiéis à religião nativa» - são inseridos dentro da mesma categoria? Conforme observado por Tauxier, Caillié e os seus companheiros de estrada apelidaram «erroneamente» de bambaras as populações com as quais se cruzaram entre Timé e Djenné; «apesar de designá-los desse modo, ele não viu os bambaras'^»; deparou-se com pagãos genuínos, os quais são falsos bambaras e, na realidade, senoufos. Como podem os juula cometer semelhante erro no uso que fazem da sua própria língua? Não sabem eles o que dizem? E como podem Delafosse e Tauxier sabê-lo melhor? De onde emana essa sua soberania e certeza ditadora acerca do uso verdadeiro dos nomes?

Terceira operação: para a consecução de um etnónimo puro, é igualmente necessário dissociar o significante bamana/banbara de todos os seus usos sociais e classificatórios. Delafosse é um profundo conhecedor do fenómeno de evolução semântica através do qual um termo geralmente utilizado para designar uma comunidade vizinha pode adquirir o significado de uma especialidade profissional. Do mesmo modo que «entre nós, o nome dos auvernheses foi, durante um largo período de tempo, sinónimo de "carregador de água" e o dos saboianos de "limpachaminés"», também, e «sem pormenores adicionais», juula ou maraka constitui uma forma de dizer comerciante", não obstante a existência de uma palavra na língua que designa a referida profissão {jagòkèla em mandingue). Aparentemente, um etnónimo substitui assim o termo adequado, mas, na realidade, a questão reveste-se de uma maior complexidade. Ao invés de prosseguir com o infindável debate - juula, nome de povo ou nome de profissão? - seria mais profícuo perguntar se juula designa sempre e em toda a parte um comerciante. Por exemplo, em Segu, um juula é um comerciante «do Sul» (os mercadores de colas, por exemplo); um maraka constitui um comerciante «do Norte», sobretudo associado aos mouros (escravos, tecidos, cereais, etc.). Por outras palavras, os significados juula/comerciante não se sobrepõem totalmente. No entanto, para um bamana, ambos os termos evocam necessariamente essa actividade - o comércio - que o próprio não exerce, ou até menospreza, e cuja distribuição social concorre assim para a definição da sua identidade.

De facto, conforme verificado anteriormente, o termo banbara não designa um «infiel» de modo aleatório. Decerto que se afigura verosímil o facto de banbara se ter tornado um dichote sobranceiro de uso generalizado no falar quotidiano dos militantes da jihâd liderada por al-hajj 'Umar; no entanto, entre aqueles que empreendem uma resistência contra o domínio dos fuutaka, figuram alguns maraka cujo islamismo é muitas vezes considerado suspeito, mas que não são de todo confundidos com os banbara pelos informadores de Mage em Segu. Sem incluir os fulbe do Maasina que ninguém ousaria apelidar de banbara, mesmo se 'Umar tivesse encontrado uma forma de acusá-los de «infidelidade» por meio de manobras jurídicas sub-reptícias. Inversamente, revela-se improvável que um indivíduo ou grupo designado de banbara ou bamana seja muçulmano; qualquer uso do termo implica necessariamente uma apreciação de ordem religiosa, salvo no caso de a mesma ser expressamente negada («são bamana, termo geral que designa os pagãos, ao invés de um povo específico (p. 154], acrescentando o seguinte: «Aliás, não existe tarefa mais árdua do que a de delimitar esses agrupamentos sudaneses. A palavra bambara [...] é uma designação administrativa desprovida de valor lingüístico. Afigura-se bastante plausível que os bambara tivessem sido outrora muçulmanos, deixando posteriormente de o ser.» Em 1927 (p. XVll), Tauxier retruca: «Existe efectivamente uma raça bambara pertencente à grande família mandé e claramente distinta das restantes raças negras feiticistas. A questão fulcral reside em separar os autênticos bambaras de raça daqueles que foram designados de «bambara» - na acepção de pagão, feiticista - e que não são verdadeiramente bambaras, como os senoufo [...]. Atendendo aos nossos conhecimentos actuais sobre a África Ocidental, trata-se de uma distinção fácil de efectuar.» 9 1 . 1 9 4 2 , p.32.

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Na óptica de Delafosse, essa aplicação socioeconómica de um etnónimo representa uma extensão ilegítima, uma imprecisão a ser corrigida. Porém, trata-se sobretudo de saber - e não julgar - se existem efectivamente usos do termo em apreço isentos de qualquer conotação desse teor. Obviamente que se pode proferir (especialmente nos dias de hoje) o termo «auvernhês» sem sequer pensar num carregador de agua. Todavia, na Europa, durante muito tempo, não foi possível dizer «judeu» sem aludir simultaneamente à profissão de penhorista ou ao papel do agiota. Além disso, mesmo num contexto em que o significado do termo seria exclusivamente «um habitante da Judeia», não

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92. Cf. Delafosse, 1 9 1 2 , 1 . 1 , p. 151. 93./Wd., p . l 2 5 .

resulta certo que, actualmente, fosse interpretado por todos com essa acepção. Em Segu, ser um bamana (excepto, talvez, na linguagem que adquiriu contornos «puramente étnicos» entre os habitantes urbanos de hoje) significa necessariamente a ocupação de um determinado estatuto, a par de uma posição no sistema da repartição das tarefas ou das «doações». Delafosse está bem ciente da existência de «subdivisões sociais tais como castas, classes e clãs» «sob» ou «no seio» das «tribos» (que, somadas, dão origem a um agrupamento étnico); porém, segundo o autor, «não se justifica contemplá-las numa classificação estritamente étnica''"». Certamente por razões de clareza, Delafosse decreta então o seguinte: «Inscrevo os banmana na casta dos somono (pescadores e barqueiros)".» É evidente que essa afectação autoritária não apresenta qualquer significação local (tanto mais que, em 1912, os somònò formam ainda um cantão separado): uma vez que são «povos da água» (jilamaa) em vez de «povos da terra firme» (gèlèkamaa), pescadores em vez de agricultores, dotados de um estatuto hierarquicamente inferior e habitantes de bairros distintos, os somònò não podem ser bamana em nenhum contexto, salvo em Haut-Sénégal-Niger, inversamente, no falar mais corrente, ser bamana significa também não ser somònò, jeli, numu, etc.

de ter meramente a acepção negativa de «infiel» e adquirindo a acepção positiva de perito. Pondo de parte o período da jihâd, na época dos reis de Segu e também, em certa medida, nos dias de hoje, a esfera «mágico-religiosa» assemelha-se sobretudo a um mercado competitivo e tolerante. Quem almeja poder, riqueza ou saúde, pode optar por uma das seguintes vias: silamèya, o islão, e bamanaya. Por um lado, a procura pela protecção divina através da oração {ka seli) e o sacrifício-esmola {saraka) graças à cessão dos «marabutos» (mon), frequentemente no Segu dos maraka; por outro, a manipulação através da intervenção de objectos poderosos (òo//, «feitiços») que controlam ora os indivíduos e ora as sociedades cultuais (komo, nama, etc.), bem como do sacrifício de sangue {ka sòn), das forças ocultas do cosmos. Ao ser encarado, antes de mais, como a expressão de uma cultura étnica particular (a «religião bambara»), esse conjunto heteróclito de representações e serviços ritualistas, referenciado localmente pelo termo bamanaya e cuja aparente coerência se deve exclusivamente à sua situação de rivalidade com as práticas islâmicas (ou consideradas enquanto tais), foi seguramente descrito com imprecisão; em boa verdade, qualquer um pode ser considerado um perito do universo bamana, independentemente da sua identidade de origem ou da sua «raça» - para tal, basta uma aprendizagem suficiente junto dos melhores mestres''.

Em boa verdade, Delafosse está ciente desse facto pelo que tece a seguinte afirmação: «Essas diferentes castas não são específicas do povo banmana, existindo com os mesmos nomes entre os restantes povos mandé, e com outros nomes entre a maioria dos povos do Sudão. Em cada povo determinado, os nativos designam os membros dessas castas através do nome das suas castas respectivas, ao invés do nome do povo; no entanto, sob o ponto de vista étnico, a sua incorporação na unidade do povo revela-se conveniente'®.» Colocando a questão nos termos devidos: «o ponto de vista étnico» decorre mais de uma demonstração de força do que do saber; as categorias dos actores devem adaptar-se à maravilhosa harmonia do quadro classificatório, definido sem o seu conhecimento ou às suas expensas, custe o que custar; a descrição seria mais rigorosa e simples sem o pressuposto de que bamana deve ser um «nome de povo» impreterivelmente.

Em suma - eis o argumento final e supostamente terminante - os verdadeiros bamana são aqueles que se apelidam a si próprios desse modo (ao contrário daqueles que são apelidados de bamana por terceiros); com efeito, os bamana autênticos não devem equivocar-se a respeito do seu próprio nome pelo que são obrigatoriamente aquilo que afirmam ser A etnologia e a administração pretendem assim reconhecer a esse povo a sua verdadeira identidade, a qual lhe é negada pelos seus vizinhos, ignorantes, mal-intencionados ou «fanáticos». Conforme observado anteriormente, Maurice Delafosse assume o compromisso pessoal de empregar doravante apenas o termo com que os visados se identificam: «banmana». De facto, não é dado seguimento ao apelo lançado à comunidade científica pelo autor. Em 1927, Tauxier sublinha que, apesar de o seu «nome verdadeiro» ser sobretudo bamana, «a palavra "bambara", com essa ortografia tornada clássica, entrou agora na língua etnográfica europeia»: por isso, mais vale

Por exemplo, seria possível considerar com seriedade o facto manifesto de que, em várias conjunturas, incluindo contemporâneas, um bamana é implicitamente um conhecedor de «coisas bamana», deixando 94. Ibid., p. 113. 95. Ibid., p. 139. 96. Ibid

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97. Segundo esse ponto de vista, o facto de o informador principal ser um «toucouleur» (fuutaka] de origem torna-se acessório. Trata-se do caso do intérprete de Tauxier (referido anteriormente) e de Dyodo Diallo, o entrevistador principal de Germaine Dieterlen que, apesar de não ser «bambara», era efectivamente um profundo conhecedor de bamanaya. Basta reconhecer que não se descreve a religião de uma etnia, mas antes os elementos fragmentários de um conjunto de representações e práticas partilhado por toda a região e disponível para quem quiser usufruir, sob reserva de interditos, segredos e monopólios variegados, como é evidente.

respeitá-lo''®. Pela minha parte, foi assim que procedi ao escrever o etnónimo à francesa, mas recorrendo à transcrição [bamana, banbara) do termo tal como ainda é utilizado ou era utilizado pelos actores [à margem da cultura dominante). Em 1912, a decisão terminológica de Delafosse pode ser declarada com uma autoridade mais serena pelo facto de essa distinção entre «bambara» e «bamana» ser conhecida e repetida há mais de meio-século. De facto, tanto Barth quanto Raffenel'" facultam informações de ordem estritamente lingüística: em vez de utilizarem o termo banbara, como sucede em Tombuctu ou no Senegal, os mandingófonos empregam preferencialmente a palavra bamana; trata-se de uma notação exacta mas relativa pois, em mandingue, os juula ou os maraka podem denominar de bamana os indivíduos que os outros designam de banbara na sua própria língua [soninké, songhay, árabe, etc.).

T

De resto, o que significa nomear-se a si próprio? A etnologia ainda acarreta ingenuidades a esse respeito. O nome que atribuo a mim próprio corresponde precisamente a um pseudônimo, e o nome que geralmente reconheço como sendo «o meu» foi-me atribuído ou transmitido por terceiros. Inversamente, imaginando que me chamam normalmente por um nome que não é «o meu», esse nome não deixaria de definir a minha identidade. A nomeação não representa um enunciado do foro da verdade, não se trata da constatação de uma realidade. Se o indivíduo interpelado por mim se vira, significa que «responde» efectivamente a esse nome. Enquanto actor histórico colectivo, o povo atribui-se necessariamente um nome, seja ele qual for - entre outros, símbolo da sua unidade. A obrigação de decidir por decreto qual o etnónimo adequado revela-se suficiente para ilustrar que a etnia não eqüivale a nenhuma das unidades políticas concretas, seja pela inexistência de elementos imediatamente identificáveis [sociedades «segmentárias»), seja pelo seu descuramento. De facto, importa envidar esforços no sentido de apurar qual o nome através do qual o «povo de Segou» «se designa»; ele é o povo de Segu, Segukaw, as «pessoas de Segu»; não existe outro nome; o mesmo sucede amiúde com o nome da capital, que serve de referência à identidade política. Quando um indivíduo se diz ser bamana, fá-lo para se diferenciar dos restantes, através do estatuto, da função, da vocação

9 8 . 1 9 2 7 , XVII-XVIII. Note-se que, no entender de Tauxier, existeapenas uma diferença de pronúncia entre as duas formas; não são nomes distintos. A pronúncia dos visados é mais autêntica; porém, o aspecto importante reside na identificação do «sentido estrito» da palavra (conforme verificado em Monteil), independentemente da forma adoptada e da sua ortografia. 99. Barth ( 1 8 5 7 ) 1965, t. 3, p. 2 4 6 («bamanon»), e Raffenel, 1856, t. 1, p. 363 («bamana», no plural «bamanaos», ou seja, bamanaw).

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ou das «doações» específicas, mas com base numa existência comum de súbditos dos reis de Segu. A etnia, o «povo» enquanto categoria de uma classificação, divide-se em «tribos» e «subtribos», tal como a família se divide em géneros e o género em espécies. Por conseguinte, os «banmana» de Delafosse distribuíam-se entre «múltiplas fracções políticas e geográficas: Kaartanka, Bélédougouka, Ségouka, Baninkoka, etc.'»»». Dir-se-ia que uma substância subjacente, sub-histórica, penetrou nesses diferentes moldes, que a bambaridade se dividiu em conjuntos regionais, sendo que alguns constituem Estados e outros são unidades desprovidas de existência política antes da colonização: por exemplo, «baninkòkaw» designa somente o conjunto heteróclito de povos que, do ponto de vista dos seus vizinhos do Norte, vivem «para lá do Bani». Em seguida, procede-se à atribuição de instituições políticas a esse substrato fictício; a sua capacidade ou incapacidade de engendrar estruturas estatais é objecto de avaliação"". Em alternativa, estabelece-se uma distinção entre bambaras «dotados de Estado» e bambaras «desprovidos de Estado»: os de Segou e do Kaarta, afirma Charles Monteil, «comparativamente aos seus congéneres, apresentam essa particularidade extraordinária de terem constituído impérios de renome"'». Seria efectivamente mais profícuo perguntar quando, por quem, segundo qual ponto de vista, se atribuiu o nome de banbara a este ou àquele Estado; pois designá-lo desse modo não significa apenas descrever a sua identidade [à semelhança da expressão «Estado francês») - a referência toponímica [Segu, Kaarta) é suficiente a esse respeito - mas antes dizer qualquer coisa, atribuir-lhe um «epíteto», lisonjeador para uns, desdenhoso para outros. Nenhum nome é, nessa qualidade, nome de povo; mas qualquer nome pode adquirir essa acepção. Basta que um povo se apodere dele; a essência não é preexistente à sua formação: extrai o seu nome daquilo que encontra, mediante o efeito das circunstâncias ou, se for o caso, uma arbitrariedade constitutiva. Ao descartar «o ponto de vista étnico», o nome bambara recupera o seu devir O facto de não designar «por natureza» nenhum conjunto objectivamente determinável em nada altera a sua existência histórica, pelo contrário. A sua indeterminação fundamental condená-lo-ia a incarnar os destinos, a dissimular as divergências. Nos tempos da jihâd de al-Hajj 'Umar e do domínio dos fuutaka sobre uma parte considerável da África Ocidental, afigura-se 100. Delafosse, 1 9 1 2 , 1 . 1 , p. 139. 101. De acordo com Tauxier (1942, p. 8), «os bambaras nunca foram capazes de fundar remos por si próprios» e as dinastias de Segu e do Kaarta seriam de origem peul. De facto, os bambaras, sendo indefiníveis, são claramente capazes de tudo! 1 0 2 . ( 1 9 2 4 ) , 1977, p. 1.

plausível que os banbara tivessem começado a ganhar forma no momento em que se forja uma união - ainda que de uma forma bastante lassa - contra o inimigo, entre os príncipes Masasi e Ngolosi, cuja rivalidade inveterada datava de um século, e inclusivamente os aldeãos de Bèlèdugu ou do Sul do Bani, violentamente ciosos da sua autonomia. Estranhamente, esse termo alienante, utilizado por conquistadores tão seguros da sua fé a ponto de confundirem todos os seus inimigos pagãos, saqueadores e metafísicos ao abrigo de um mesmo opróbrio, acabou por se tornar - apenas por um determinado período de tempo - o significante de uma nação em vias de nascer. O estudo ainda está por realizar Porém, no âmbito do Estado colonial e dos seus prolongamentos até aos dias de hoje, as nações, ainda que impregnadas pelo passado, tornam-se etnias, da mesma forma que as sociedades fragmentadas se transformam em micro-unidades independentes. A classificação e identificação dos grupos por meio de procedimentos simultaneamente administrativos e científicos constituem o reverso de uma liberdade perdida: a de nomear-se a si próprio. É certo que esse rótulo, à partida arbitrário, ou, por vezes, até absurdo, pode originar uma nova identidade política, à prova das rivalidades ou resistências num mesrno espaço soberano. A minha intervenção termina nesse ponto. A eventual transformação das etnias em sujeitos, das divisões coloniais em referências culturais imprescindíveis e «manifestas» para os actores contemporâneos não deve implicar a projecção da sua imagem num passado em que eram desprovidas de significado, a concessão do benefício da eternidade, sob pretexto de legitimação. A nossa missão consiste em apresentar o conhecimento da história desses desvios coloniais ou pós-coloniais; o que pressupõe que a antropologia muda os seus objectos, dolorosa ou perigosamente.

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Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi Jean-Pierre Chrétien * A existência das etnias hútu e tutsi no Ruanda e no Burundi insere-se num conjunto inusitado de evidências. Trata-se de «etnias» que não se diferenciam pela língua, pela cultura, pela história, nem pelo espaço geográfico ocupado. Seguramente, a evolução social e política contemporânea dos povos ruandês e burundiano conferiu a essa clivagem uma realidade amiúde trágica. Porém, antes dos acontecimentos de 1959-1963 no Ruanda e os de 1 9 7 2 - 1 9 7 3 no Burundi, a evidência da dita oposição étnica impôs-se aos observadores num duplo registo: por um lado, o das fórmulas estereotipadas, retomadas de um modo contumaz em reportagens ou prospectos turísticos, e ainda em relatórios de especialistas e recensões acadêmicas; por outro, o de uma imagética falsamente ingênua, de que é exemplo um «ensaio fotográfico» de 1957 no qual todos os bahutu do Ruanda eram apresentados num ângulo a plongée, sobre um fundo de vegetação ou de terra batida e vestidos em farrapos, enquanto os batutsi se destacavam num ângulo a contre-plongée, sobre um fundo de céu, com os seus perfis «etiópicos» definidos, quais silhuetas de vacas com cornos compridos. Os «senhores tutsi» e os «servos hútu» são colocados em cena com as posturas e o guarda-roupa apropriados a uns e outros, à semelhança de determinados filmes etnográficos de época nos quais o mundo «consuetudinário» era apresentado consoante as seqüências de um verdadeiro romance fotográfico^ í45 Minas do Rei Salomão filme rodado no Ruanda e estreado em 1950, contribuiu para a reactualização do fantástico egípcio - engendrado desde há um século - junto de um público europeu alargado. No concernente a um filme do mesmo estilo, Roland Barthes escreveu o seguinte^: «Perante o estrangeiro, a Ordem conhece apenas duas condutas, ambas de mutilação: reconhecê-lo como guinhol ou desarmá -Io como puro reflexo do Ocidente.» í.' CNRS. Centre de recherches africaines. •)•-)• Maquet, Ruanda. Essai photographique

1957, p. 194.

2 R. Barthes, Mythologies,

sur une société

africaine

en transition,

Bruxelas,

Paris, 1957, p. 184.

Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi

No Ruanda, nas vésperas da independência, inclusivamente os administradores mais rudes, os colonos mais tacanhos ou os missionários menos perspicazes cediam à ilusão de compreender esse exotismo temperado, e de poder agir sobre uma «sociedade feudal» de manual escolar. De qualquer modo, a abordagem adoptada relativamente a esse país retirava-o do tempo, negando-lhe a sua história específica mas também as repercussões do imperialismo colonial. Nessa atmosfera ideológica, as etnias são factos de «natureza» e a acção moderna do Estado é descartada pelo discurso teórico da «civilização». Somente uma análise histórica rigorosa permite revelar o processo conducente à cristalização das consciências étnicas em países sem etnias dignas desse nome.

Uma herança da raciologia do século XIX: hamitas e bantos Os europeus atravessaram ambos os países pela primeira vez em 1 8 9 2 (Oscar Baumann no Burundi) e em 1 8 9 4 (Conde von Götzen no Ruanda). Antes de pisarem aquelas terras, a teoria - descrevendo os retratos antitéticos do negro da «África das trevas» e do misterioso oriental que se veio aventurar entre eles - já havia sido forjada com base nos contactos com outras regiões de África e nas reflexões antropológicas da época.

A partir de meados do século XIX, os linguistas encontraram a solução para essas incoerências através de um verdadeiro jogo de palavras: a inversão do sentido da palavra camita - cada vez mais utilizada devido à influência dos filólogos alemães - sob a forma do vocábulo hamita, a fim de designar africanos superiores, negros de alguma forma branqueados - aquilo que noutro contexto apelidámos de «negros falsos"». A mania das classificações e dos rótulos, herdada das ciências naturais do século XVIII, foi saciada. Porém, o grande debate acerca da unidade da espécie humana, das raças e do destino a dar aos Filhos de Noé do Génesis revelou-se determinante para o êxito dessa nova terminologia. O etnólogo africanista de finais do século XIX e da primeira metade do século XX teve como inspiração a tese das grandes migrações Norte-Sul, segundo a qual as mais recentes deviam ser as mais evoluídas, e o modelo sociológico das miscigenações, apresentadas como fontes de culturas intermediárias situadas entre a barbárie e a civilização. A. Lefèvre, mestre na escola de antropologia de Paris, apresenta a receita em 1892=: «Pretende-se seguir, remontar ao percurso dos invasores; e a distribuição geográfica dos vencedores e dos vencidos, e sobretudo o grau de miscigenação, que permite apurar a duração das relações forçadas entre os autóctones e os últimos, acabam por suprir a ausência de dados históricos.»

O debate estabeleceu -se em torno da Bíblia e do Oriente Próximo desde a primeira metade do século XIX: a linguística, a arqueologia e a exegese racionalista conduziram ao questionamento da negritude até aí atribuída a Cam transferindo a sua linhagem para a raça «caucasiana» branca. Em virtude do poligenismo circundante, os eruditos passaram a encarar «os negros enquanto tais» como os representantes de uma outra «espécie» humana. Os viajantes que se aventuravam rumo ao Níger, à Zambézia ou ao Alto-Nilo constatavam, por seu turno, que os africanos não correspondiam todos ao modelo do negro caricatural presente nas tabuletas das tabacarias da época, o qual se desemaranhava naturalmente enquanto antítese da estátua grega antiga, ideal-tipo do homem branco. As impressões estéticas desempenharam desde o início um papel fundamental nas construções antropológicas. As etnias foram rapidamente classificadas - com incoerências entre os seus observadores - em função do seu nível de «beleza», «inteligência», «orgulho» ou organização política, sendo que os traços culturais, morais e físicos deviam contribuir de forma coerente para a hierarquização das populações^

O que se designou amiúde de «história» nas monografias ou nos manuais da época colonial é efectivamente reduzido a essas hipóteses da etnologia «difusionista». A teoria das «áreas culturais» - desenvolvida em inícios do século XX por autores alemães, tais como B. Ankermman® e quase oficializada pelas reedições constantes do manual de Baumann e Westermann intitulado Les Peuples et les civilisations de l'Afrique - constitui uma teoria dos «estratos culturais». As variações são interpretadas em termos biológicos de miscigenações diferenciadas: as expressões «hamito-nilótico», «negróide», «banto hamitizado» servirão frequentemente de explicação na África Oriental. A maioria dos factos de civilização são assim atribuídos a uma influência estrangeira, em especial asiática, em consonância com a miragem oriental igualmente patente na construção do mito ariano nessa época. O naturalista Franz Stuhlmann, um dos especialistas mais

3. J.-P. Chretien, «Les deux visages de Cham», in P. Cuirai, E. Temime, L'Idée de race dans la

pp. 54-84.

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pensée

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politique française contemporaine, Paris, 1977, pp. 1 7 1 - 1 9 9 . 4. «Negros "verdadeiros" e "falsos"». Le Monde-Dimanche, 2 8 de Junho de 1981. 5. A. Lefevre, «Races, peuples, langues de l'Afrique», Revue de l'école d'anthropologie de Paris, 1892, pp. 65-66. 6. B. Ankermann, «Kulturkreise und Kulturschichten in Afrika», Zeitschrift für Ethnologie, 1905,

ouvidos da administração alemã antes de 1914, teceu a seguinte observação, em 1910, numa monografia acerca do artesanato na África OrientaF: «Perante cada traço civilizacional em África, é necessário perguntar sempre se o mesmo não provém do exterior, ou seja, da Ásia.» Em virtude dessa visão, considerada então como científica, os autores propuseram ver nos galla os descendentes de uma incursão gaulesa, nos fang uma vaga germânica, nos peul os judeus-sírios da Antiguidade, nas ruínas de Zimbabwe uma construção fenícia ou nos zoulou as vergônteas da Suméria. Quem seria capaz de garantir que essas elucubrações não existem nos dias de hoje? Em Maio de 1970, o autor de um «relato etnológico» sobre o Ruanda «tradicional» (Les Derniers Rois Mages] afirmava que a sua estadia nesse país permitira-Ihe «tornar-se contemporâneo dos grandes intelectuais da Suméria» e descobrir uma realeza extraordinária cujas capitais «são reminiscentes dos campos mongóis da Idade Média®»! As implicações racistas do imaginário literário e científico cultivado em torno dos povos da África Negra são demasiado evidentes. A oposição entre o «negro enquanto tal» e o «hamita» tornou-se um leitmotiv nos manuais especializados dos anos 1 9 3 0 - 1 9 5 0 . A obra de 1 9 3 0 de Charles Seligman, reeditada por diversas vezes nos anos 60 (e traduzida para francês a partir de 1 9 3 5 ] , constitui o exemplo mais célebre': «As civilizações de África são as civilizações dos hamitas [...]. Os invasores hamitas eram caucasianos que se dedicavam à pastorícia e que chegaram vaga após vaga, estando mais bem armados e exibindo um espírito mais dinâmico dos que os agricultores negros de pele escura.» Em 1948, um médico belga publica uma pequena obra redigida após uma visita ao «Ruanda-Urundi» sob tutela belga^", na qual inclui um retrato dos batutsi (o dos bahutu será citado mais adiante]: «Chamam-se batutsi. Na realidade, são hamitas, provavelmente de origem semítica ou, de acordo com algumas hipóteses, camita, e mesmo adamita. Representam cerca de um décimo da população e formam, na realidade, uma raça de senhores. Os hamitas têm 1,90 m de altura. São delgados. O seu nariz é direito, a sua testa, alta e os seus lábios, finos. Os hamitas parecem ser distantes, 7. F. Stuhlmann, Handwerk und Industrie in Ostafrika, Hamburgo, 1910, p. 77. 8. P. Dei Perugia, Les Derniers rois mages, Paris, 1970. 0 artigo citado consta das Nouvelles raires, 28 de Maio de 1970. 9. C.G. Seligman, Races of Africa, Londres, 1930, p. 96. 10. J. Sasserath, Le Ruanda-Urundi, étrange royaume féodal, Bruxelas, 1948, pp. 27-28.

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reservados, corteses, argutos. Sob a aparência de uma certa sofisticação, adivinha-se uma índole velhaca. As mulheres, enquanto são jovens, são realmente belas; aliás, a sua tez é ligeiramente mais clara do que a dos homens.» De acordo com o autor, seriam descendentes de uma misteriosa «raça vermelha», a do próprio Adão e das primeiras civilizações (!], com base numa obra esotérica de 1 9 0 6 sobre «os adamitas»: a formação médica nem sempre constitui um antídoto contra a fantasia no terreno das ciências humanas... A literatura religiosa cristã, por seu lado, continuou a desempenhar um papel fulcral no debate antropológico, não só em virtude da presença dos missionários no local, mas também pelo facto de os paladinos da narrativa bíblica sobre a dispersão dos povos se sentirem na obrigação de responder aos desafios «da ciência». Os diferentes manuais publicados desde a década de 1 8 8 0 pelo sulpiciano, F. Vigouroux, até ao seu Dictionnaire de Ia Bible de 1 9 2 6 são ilustrativos dessa diligência. O episódio da torre de Babel relegou o da maldição de Cam como episódio de viragem. Como castigo por esse acto de orgulho, os camitas teriam sido então expulsos para as terras mais longínquas e mais queimadas pelo sol. Nesse quadro, a explicação da dicotomia «hamitas» e «negros» apresenta duas versões: os primeiros proviriam da vaga mais recente desses exilados; ou, por outro lado, seriam as vergônteas de miscigenações entre os filhos de Cam e Sem, ou seja, «hamitas semitizados». Trata-se da teoria defendida por dois padres brancos influentes - o holandês Van der Burgt em 1903, e o francês Gorju em 1 9 2 0 " - em relação aos bahima e aos batutsi da região dos Grandes Lagos. Desse modo, verificou-se uma preservação do monogenismo bíblico e um reconhecimento da diversidade das «raças». Além disso, as sociedades industriais e urbanas contemporâneas recuperaram a lição moral da «maldição de Cam» num sentido edificante: criadores dos primeiros impérios das primeiras cidades e das primeiras civilizações, os «camitas» foram corrompidos por esse excesso de progresso. Esses negros, que exibem os traços da sua origem oriental, constituíam símbolos de degradação, e não tanto de primitividade. O padre Vigouroux observava no seu Dictionnaire de 1 9 2 6 que: «Era sobretudo a força ao serviço de uma civilização material, no seio da qual reinava a mais profunda desordem moral». Uma visão penitencial da história - própria do catolicismo do século XIX - juntava-se assim ao pessimismo gobinista nessa teoria das raças.

litté-

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11. J. Gorju, Entre le Victoria, lAlbert et l'Edouard, Rennes, 1920, pp. 26-27. J.M. Van der Burgt, Dictionnaire français-kirundi, Bois-le-Duc, 1903 (introd. de 107 p.).

Dir-se-á que remontamos ao Dilúvio. Porém, a aplicação dessa grelha de leitura à África Oriental é passível de ser identificada em diversos autores desde 1863 até aos nossos dias: as suas bibliografias contribuíram para a adopção desse método regressivo. Afigura-se impossível proceder a uma síntese da articulação das filiações intelectuais que conduziram ao modelo étnico mencionado no início. Todavia, importa sublinhar os eixos essenciais da construção ideológica aplicada à situação específica do Ruanda e do Burundi. Nessa região, a ideologia hamítica encontra-se patente na hipótese de uma migração galla do século XVII. Trata-se de uma ideia aventada pelo «explorador» J.H. Speke em 1863, a qual será retomada incessantemente até aos anos 50. Vindo da índia, o referido inglês rumou a África com o objectivo de descobrir «as nascentes do Nilo». Apreciou a hospitalidade dos soberanos que o acolheram na região dos lagos [Karagwe e Buganda), a organização dos seus reinos, a beleza das pessoas do seu séquito, reminiscentes dos somali que tivera oportunidade de observar numa expedição anterior. Espantado com esse refinamento que existia no coração do «continente obscuro», formulou uma «teoria pessoal», segundo a qual os pastores bahima dessas cortes reais seriam de ascendência etíope (galla). Essa hipótese que transformava as «aristocracias pastorais» desses países (inclusivamente no Buganda onde eram inexistentes enquanto tais) num povo à parte, quase asiático, viu o seu sucesso ser ampliado graças à imagética evocada pelas nascentes do Nilo e pelos «montes da lua» a partir de Ptolomeu de Alexandria.^^ Os viajantes europeus que se seguiram a Speke, os quais leram o seu relato e se mostraram fascinados pelas mesmas fantasias românticas, adoptaram o seu modelo com o intuito de explicar as realidades socioculturais que lhes causavam estupefacção nessas regiões. Os comentários anexados por Oscar Baumann e pelo Conde von Götzen às suas primeiras descrições do Burundi ou do Ruanda são esclarecedores. O primeiro caracteriza os batutsi como «cavaleiros salteadores» de um império desaparecido, os quais se distinguiam por «feições abissínias» e «uma pele mais clara do que a dos restantes habitantes"». Na corte do rei guerreiro Kigeri Rwabugiri, o segundo identifica «a natureza nómada» dos batutsi e alude à teoria de Speke como se da tradição específica do Ruanda se tratasse: «pastores hamitas» provenientes do «país galla» dominam uma «tribo de negros banto», os «agricultores sedentários wahutu^S). No entanto, essa clivagem etno-racial ainda não

12. J.H. Speke, Les Sources du Nil, trad., Paris, 1865, pp. 214-215. 13. Correspondência constante em Norddeutsche allgemeine Zeitung, 11 de Maio de 1893. 14. G. A. Von Götzen, Durch Afrika von Ost nach West, Beriim, 1895, pp. 186-187

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tinha sido erigida em dogma a ponto de toldar por completo a observação: von Götzen nota que «no Ruanda propriamente dito, senhores e súbditos encontram-se quase totalmente assimilados nos seus usos e costumes. A impossibilidade de distinguir o Mhuma^' dos agricultores em termos de armamento ou vestuário é bastante recorrente». Porém, no meio século seguinte, a própria abordagem registou uma sistematização e a hipótese de Speke consolidou-se numa verdadeira vulgata «interlacustre» que transformou essa região africana numa segunda Etiópia e no paraíso do mito hamítico. Estribou-se na dinâmica de uma convicção dotada de quatro vertentes, de ordem simultaneamente histórica, biológica, cultural e religiosa. - O modelo das invasões provenientes do Nordeste proporcionava uma ilusão gratificante de uma reconstituição histórica. As lendas de origem (relativas aos heróis fundadores: Bacwezi no Uganda, Kigwa no Ruanda, Ntare Rushatsi no Burundi) foram recuperadas nesse sentido - uma recolha de etimologias fantasistas (segundo Van der Burgt, gukara, «ser feroz» em kirundi, remeteria para os galla!). Impregnados dessa literatura, os responsáveis sucessivos da administração ou das missões no Ruanda e no Burundi só podiam estar convictos do carácter oriental, egípcio ou etíope - e portanto estrangeiro - dos batutsi. Nos anos 20-30, o governador Pierre Ryckmans compara os batutsi a Ramsés II ou a Sesóstris'^... A maior façanha dessa ideologia residiu na obliteração do sentido inicial da sua definição: o termo «hamita» foi retirado da sua referência bíblica para ser traduzido (com base no árabe, segundo o que se dizia) como «castanho avermelhado». Esta questão é explicada pelo cónego De Lacger, um francês que se tornou no historiador oficial do Ruanda e mestre dos seminaristas de Kabgayi, numa obra publicada em 1939 e reeditada em 1959'^ - A classificação biológica confluiu em projectos sofisticados de mensuração. Em 1950-1951, um inquérito antropológico do IRSAC de Astrida, conduzido por Jean Hiernaux^®, analisa 879 indivíduos numa população estimada, na altura, em quatro milhões de habitantes para o conjunto «Ruanda-Urundi». Assumindo como ponto de partida o axioma das invasões sucessivas, consideradas elementos

15. Neste caso, «Mhuma» refere-se ao mututsi, segundo o termo (muhima ou muhuma) utilizado no Norte e no Leste da região dos lagos para designar os grupos que se dedicavam predominantemente à pastorícia. 16. P. Ryckmans, «Des gens de toute taille». Grands Lacs, 1936, 5/6, p. 279. Rapport sur l'administration belge du Ruanda-Urundi pendant l'année 1925, p. 34. 17. L. de Lagger, Ruanda, Kabgayi, 1959, p. 56. 18. J. Hiernaux, Les Caractères physiques des populations du Ruanda e de l'Urundi, Bruxelas, 1954, 114 p.

1Hútue Tutsi no Ruanda e no Burundi

constitutivos das categorias hútu e tutsi, procedeu-se à selecr^ de amostras adequadas desses tipos humanos, distribuídos d pequenos lotes em todo o território, com o auxílio dos administr dores belgas, dos chefes locais e das missões, «conhecedores d^ questões nativas». Escusado será apontar que, no final, os result dos corresponderam às pretensões iniciais, ou seja, a adequação d categorização social com uma classificação somática. Por conta d^ rigor almejado pelo investigador, as conclusões evidenciavam con" tudo, certas cambiantes, recebidas com surpresa pelas autoridades que haviam facilitado o empreendimento. Especificamente, o estudo abstem-se do recurso ao vocabulário estético, comummente utiliza do de molde a pintar os retratos com cores mais contrastantes A tí tulo exemplificativo, em 1902, Léon Classe [futuro bispo do Ruandal destacava que «os batutsi [...] são homens soberbos, de traços finos e harmoniosos, com qualquer coisa do tipo ariano e do tipo semítico» A Ideologia subjacente afigura-se nítida: recorrendo às palavras do padre François Ménard, em 1 9 1 7 , o mututsi «é um europeu sob uma pele negra"». Sem negar a recorrência relativamente significativa de certas características consoante os grupos humanos considerados, importa de facto, reconhecer que se assiste à constituição de um verdadeiro'estereotipo racial, cuja subjectividade se reflecte no número limitado das amostras consideradas como «ideal-tipo». Os aristocratas da corte ruandesa (a começar pelos reis Musinga e Mutara), em particular, sao muitas vezes descritos como os modelos «do tutsi» em geral A orientação racial da ideologia colonial a respeito das «etnias» hutu e tutsi também se manifesta claramente no plano cultural. De facto, estabelece-se uma relação íntima entre as características físicas e as características culturais e morais. Os antropólogos são convocados em auxílio dos linguistas, embaraçados com a homogeneidade linguística da unidade dos barundi ou dos banyarwanda'«. Até a uma época recente, recorreu-se inclusivamente à caracterologia fisiognómica, herdada do século XIX: os batutsi «leptossómicos» por oposição aos bahutu «pícnicos», segundo a terminologia de E. Kretschmer^i.

19. L. Classe, in Missions d'Afrique des Pères blancs. Set. 1902, p. 385. F. Ménard, «Les Barundi» [Arquivos dos padres brancos, Roma), citado por ). Gahama, Le Burundi sous administration belge. rans, iyb3, p. 275. 20.^Consultar o anexo de F. Von LuschaN em C. Meinhof, Die Sprachen

der Hamiten.

21. F M. Rodegem, «Les donateurs de vie et de bonheur dans la société rundi». Cultures et ment. 1975, pp. 3-4, p. 598.

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AC realidades políticas constituíram o principal desafio dessas alegai s provas de desigualdades naturais. Os povos pastores das terras oltas sempre manifestaram a propensão para dominar os agricultores das planícies, explicava Friedrich Ratzel no século XIX. O bispo Léon Classe e o governador Pierre Ryckmans - inspiradores de vulto da política colonial no Ruanda e no Burundi - aderiram a essa visão da «raça conquistadora». «O desígnio dos batutsi era o de reinar oelo que só o seu porte já lhes conferia - sobre as regiões inferiores que os rodeavam, um prestígio considerável... Em nada surpreende o facto de os bravos bahutu, menos perniciosos, mais simples, mais espontâneos e mais crédulos, se deixarem subjugar, sem nunca esboçar um gesto de revolta^'» Na Alemanha nazi, essa teoria do Herrenvolk chegou a fazer sonhar os antropólogos nostálgicos da colonização, como von Eickstedt ou Spannaus". Descritos como «hamitas», os batutsi eram considerados de bom grado como «arianos». - Os argumentos religiosos merecem um lugar particular num espaço marcado, nessa altura, pelas missões cristãs. Desde a sua chegada na região em finais do século XIX, os católicos e protestantes estavam convictos da filiação «cuchita» das dinastias, bem como dos contactos remotos encetados com as cristandades antigas da região nordeste de África. Ainda em 1 9 3 3 , o padre Pagès, cuja obra sobre o Ruanda foi influente durante muito tempo, aflrma que os batutsi provem de abissínios monofísitas que teriam esquecido a sua língua'^ Essas ilusões avalizavam a política de evangelização «por cima», uma vez que os chefes de origem «etíope» eram associados à elevação meridional de um povo de Deus! Ao contrário desses grandes frescos, o retrato dos bahutu pintado pela literatura colonial afigurava-se o reverso da medalha. Aparentemente, o Ruanda e o Burundi apenas existiam oficialmente na qualidade de entidades tutsi. Aliás, o raciocínio dos negociadores dos regulamentos fronteiriços pautava-se, muitas vezes, por esses termos, tanto em 1 9 1 0 quanto depois da Primeira Guerra Mundial. A categoria hútu devia ser apenas a sombra informe desses senhores batutsi. Um jogo de palavras de mau gosto - tomado por linguística séria (por vezes até nos nossos dias!) - confundia bahutu e hanto. O último vocábulo adquirira um valor pejorativo manifesto. Forjado em meados do século XIX por um filólogo alemão, Wilhelm Bleek, para efeitos

Hamburgo, développe-

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22. R Ryckmans, Dominer pour servir, Bruxelas, 1931, p. 26. 23. Consultar, por exemplo, a revista Afrika Nachrichten. Jan. 1934, pp. 6-8. 24. A. Pages, Un royaume hamite au centre de VAfrique, Bruxelas, 1933, p. 8. 1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi

de caracterização de uma grande família linguística, o referido termo evoluíra rapidamente para um sentido de significação racial, uma das variantes do vocabulário aplicado aos «negros» nas classificações antropológicas. Em 1948, o Doctor Sasserath, já citado, frisa: «O resto (5zc) da população é banto. Os bahutu são negros que detêm todas as características: nariz achatado, lábios carnudos, testa baixa, crânio braquicéfalo. Correspondem à classe dos servos. A raça dos chefes impõe-lhes inúmeras corveias.» Em 1959, o manual de De Lacger contempla uma descrição análoga: «O tipo físico do muhutu representa o tipo mais comum e geral do negro... braquicefalia e prognatismo... propensão e aptidão para o domínio agronómico... sociabilidade e jovialidade...confiança ilimitada na sabedoria e na técnica sobrenaturais dos griots (sic)... língua aglutinante... '» O desenvolvimento de uma crítica científica profunda em relação aos conceitos de «banto» e «hamita» ocorrerá apenas nas décadas de 1970 e 1980, sendo que esse questionamento, ao perturbar em demasia a praxe, esteve praticamente limitado ao nível da vulgarização. Pelo facto de não poderem ser caracterizadas enquanto tais, as «etnias» do Ruanda e do Burundi foram concebidas como «raças», mesmo no caso de serem qualificadas, por vezes, de «castas».

Um «feudalismo» pseudo-tradicional: senhores tutsi e servos hútu É necessário questionar quais terão sido exactamente os aspectos subjacentes a essa ideologia das raças na praxe das sociedades em causa desde há um século, na transição das suas antigas estruturas monárquicas para os seus Estados actuais, tendo ainda presente o episódio determinante do poder colonial. Por vezes, surge a resposta precipitada de que se trata apenas de uma «superestrutura», da caraça intelectual de uma relação de classes secular que opõe agricultores e criadores de animais. Bastaria então traduzir mututsi por senhor ou rico, e muhutu por servo ou pobre, a fim de obter uma análise clara e satisfatória para efeitos de intelecção. Uma forma hábil de restituir uma virgindade ideológica [social) a um modelo fundamentalmente racial assente no encobrimento da história que conduziu aos conflitos do século XX! Em boa verdade, essa abordagem ao presente etnográfico, ou sociológico, consistiria na pretensão de mover, no tempo, peões sobre um tabuleiro de xadrez sociocultural julgado imutável, como se 25. J. Sasserath, op. cit., p. 27. L. de Lacger, op. cit., p. 49.

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os conceitos e as ilusões mantidos e propagados ao abrigo do colonialismo junto das primeiras gerações instruídas não tivessem exercido nenhum efeito de alienação, como se a ideologia imperial não respondesse aos interesses dos conquistadores europeus, nem tivesse sido implementada na sua administração. Porventura, essa cegueira histórica é fomentada por estratégias contemporâneas tanto internas quanto estrangeiras, mas a consciencialização política na África actual em nada beneficiará com a preservação de amálgamas e meadas. A história social da época colonial caracteriza-se por uma racialização, perceptível na ideologia colonial dos anos 30-40 e nas subsequentes práticas segregadoras. A dinâmica colonial no Congo Belga é sobejamente conhecida^*^: a cristalização das oposições entre agrupamentos «tribais» mais ou menos artificiais. No «Ruanda-Urundi», essa «política nativa» traduziu-se numa política «racial», arquitectada com base num modelo hierárquico de natureza feudal. A imagética medieval, já presente antes de 1914 por conta da ocupação alemã, foi implementada sobretudo nos anos 20-30 sob a instigação de responsáveis imbuídos de um ideal católico tradicionalista, designadamente o Monsenhor Classe no Ruanda ou o «residente do Urundi», Pierre Ryckmans. Incentivados a descobrir uma espécie de Idade Média africana, envidaram esforços no sentido de conservá-la e burilá-la através da acção combinada das missões cristãs e da administração. Tanto no Ruanda quanto no Burundi, o estudo étnico está, portanto, nitidamente relacionado com uma interpretação do poder dito «tradicional», segundo a qual o poder constitui um desafio entre raças inferiores e superiores. A alusão constante a «chefes tutsi» e «massas hútu» afigura-se significativa: uma simplificação conveniente e uma confusão definida entre «raças» e «castas», apesar de todas as cambiantes e contradições reveladas por investigações minimamente sérias. Esse a priori manifesta-se inclusivamente nos números aventados relativamente à distribuição de duas categorias principais da população: «Não acredito muito que haja mais de 20 mil batutsi no Ruanda», escreve Léon Classe em Agosto de 1916; numa obra acerca das crianças de ambos os países", o Doutor Vincent observa ainda, em 1954, que os batutsi - segundo o autor, senhores hamitas chegados ao país no XV para fins de avassalamento - representavam apenas 7 % da população. Em 1956, Victor Neesen, após um inquérito demográfico que apresentou

26. Para exemplos, consultar J.-P. Chretien, «L'alibi ethnique dans les politiques africaines», Esprit, 1981, Julho-Agosto, pp. 109-115. 27. Nota de L. Classe ao governo belga, 2 8 - 8 - 1 9 1 6 (papiers Derscheid, Bruxelas). M. Vincent, L'Enfant au Ruanda-Urundi, Bruxelas, 1954, p. 6.

1 Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi

as primeiras estimativas rigorosas (13 a 18 % de batutsi consoante as regiões), não esconde a sua admiração face ao carácter elevado dessas taxas, sem alterar, contudo, a visão estereotipada de uma minoria étnica a viver como uma classe ociosa^". Essa ofuscação quanto à existência de uma massa de criadores de animais-agricultores batutsi desprovidos de funções de liderança não era generalizada. O residente Albert Gille (no Burundi) e, posteriormente, o economista Philippe Leurquin, por exemplo, chamaram a atenção para esse facto. Porém, o estereótipo era suficientemente forte para marcar de forma elucidativa, e até a uma data recente, as explicações apresentadas no atinente ao êxodo dos trabalhadores migrantes para o Uganda, que decorrerá entre 1930 e 1960. Dizia-se^' que se tratava de uma fuga às «exacções dos chefes tutsi», deixando para trás as corveias, os impostos, os castigos físicos, e as novas necessidades monetárias associadas à empresa colonial. Esse fenómeno também se repercutiu proporcionalmente nos bahutu e nos batutsi.

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Nesse sentido, a integração do Burundi e do Ruanda num mesmo «território sob mandato» revelou-se determinante para o encobrimento das lacunas e das contradições do modelo racial. Com efeito, não obstante a sua parentela cultural, os dois povos tinham a sua própria história e, em específico, a evolução interna das relações entre bahutu e batutsi revelava-se diferente^». No Ruanda, uma dinastia tutsi, constantemente alicerçada numa série de grandes linhagens pertencentes a essa mesma categoria, procedera, desde finais do século XVII, a uma verdadeira conquista militar no interior, a qual culminou no desaparecimento paulatino dos poderes hútu, os últimos dos quais foram destruídos sob a égide da colonização alemã no final do século XIX. Desde 1920, era então possível constatar a cristalização de uma aristocracia tutsi que beneficiava de um monopólio político, apesar das várias matizes existentes entre as duas regiões. No Burundi, pelo contrário, a dinastia dos baganwa, instaurada desde finais do século XVII e muito provavelmente de origem hútu, desempenhara um papel mediador entre as grandes linhagens tutsi e hútu, em proveito dos príncipes do sangue. Os últimos conservaram uma influência considerável dentro do próprio sistema político. Por outro lado, a unificação em torno do mwami continuou extremamente 28. V. Neesen, «Aspects de l'économie démographique du Ruanda-Urundi», Bulletin de l'Institut de recherches économiques et sociales. Louvain, 1956, XXII, 5, pp. 4 8 1 - 4 8 3 . 29. J.-P. Chretien, «Des sédentaires devenus migrants. Les motifs des départs des Burundais et des RM/andais vers l'Uganda (1920-1960)», Cultures et développement, 1 9 7 8 , 1 , pp. 71-101. 30. Para uma visão geral dos reinos dos Grandes Lagos antes da colonização, consultar E. MM/Oroha. Peuples et rois de l'Afrique des lacs, Dakar, 1977, 352 p.

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marcada pela dimensão religiosa da instituição monárquica, sendo que, no plano militar, traduziu-se pela expulsão de reinos limítrofes, ao invés da destruição dos principados pré-existentes. Assim, as clivagens regionais e «étnicas» eram menos perceptíveis no Burundi. As bases de um antagonismo entre os bahutu e os batutsi manifestaram-se somente em finais dos anos 50, precisamente a respeito do caso ruandês. As diligências da política colonial visavam uma fusão administrativa, social e cultural, sendo o Ruanda elevado a país-modelo. A idealização da ordem ruandesa - interpretada como um triunfo de uma hierarquia sã das raças - constituiu o princípio-chave da gestão belga até às vésperas da descolonização. Encarado como um Estado menos perfeito ou degradado, o Burundi foi instado a curvar-se perante o modelo, a bem ou a mal. E, actualmente, quando se afirma que o caso ruandês se revela mais «claro» ou mais «transparente», esquece-se de que uma sociedade não deve ser analisada à luz de definições alheias à sua própria evolução^^ Noutro contexto, propuseram-se análises mais rigorosas relativamente ao processo de manipulação social levado a cabo pelos colonizadores em ambos os países^^ importa recordar os três vectores essenciais: feudalização, política de raças e segregação cultural. A administração dita «indirecta» conduzida pelos colonizadores visa humanizar «o costume». Ora, a primazia da gestão «territorial» sobre «os laços pessoais» culmina efectivamente, nos anos 30, na construção de uma pirâmide de «chefarias» e de «subchefarias» cujos detentores dispõem de meios de acção e de exacção superiores aos da antiga rede, dado o desaparecimento de qualquer equilíbrio. «O resultado consistiu numa diminuição do controlo central na região e num aumento de poder para os chefes influentes localmente», constata Catharine Newbury a respeito do Sudoeste do Ruanda. O acrescentamento das prestações «consuetudinárias» uniformizadas e das prestações coloniais de «interesse público», a caução atribuída pelos europeus aos chefes mais «eficazes», a transição da grande família para o «homem adulto são» para efeitos de distribuição das prestações, por fim, as usurpações dos grandes criadores de animais em matéria fundiária e das corveias, permitem associar, no cômputo global, o Estado colonial do Ruanda a um Estado neofeudal. 31. Por exemplo, R. Botte, «La guerre interne au Burundi», in J. Bazin, E. Terray, Guerres de lignages et guerres d'États en Afrique, Paris, 1982, p. 288. 32. Sobre o Burundi: J.-P Chretien, «Une révolte au Burundi en 1934», Annales ESC, 1970, 6, pp. 1 6 7 8 - 1 7 1 7 ; J. Gahama, op. cit. Sobre o Ruanda: C. Nevi/bury, The Cohesion of Oppression: a Century ofClientship in Kinyaga, Rvi/anda, Ph. D., Madison, 1 9 7 5 , 4 8 0 p.; G. Mbonimana, L'Instauration d'un royaume chrétien au Rwanda (1900-1931), tese, Louvain, 1981, 4 0 6 p.; C. Vidal, «Colonisation et décolonisation au Rvi/anda: la question tutsi-hutu». Revue française d'études politiques africaines, n.s 31, Julho de 1973, pp. 32-47.

Ora, esse arcaísmo calculado devia estribar-se na realidade das «raças». Em nome do «costume restaurado», uma dicotomia rígida entre «senhores tutsi» e «servos hútu» tende, por conseguinte, a ganhar forma na vida social. Os reagrupamentos de chefarias e subchefarias realizados nos dois países pelo governador Voisin no início dos anos 30 proporcionaram uma eliminação em massa dos dirigentes bahutu que, na altura, ainda estavam no poder A adopção dessa política foi discutida, conforme testemunhado pelo importante inquérito administrativo de 1 9 2 9 " acerca da «influência dos chefes batutsi» e da possibilidade de substituí-los por chefes bahutu, entre outros assuntos: os administradores territoriais respondem de forma variegada, em especial no Burundi, evocando, por um lado, a existência de inúmeros batutsi entre «os pobres» e assinalando, por outro, que os chefes baganwa ou batutsi podem estar próximos do seu povo e que os chefes bahutu podem adquirir uma autoridade indiscutível. Comparativamente à literatura de propaganda, as contradições patentes nesses textos dissimulados exibem um menor embuço. Contudo, o princípio de um «poder tutsi» impôs-se como um dado adquirido, particularmente graças à acção de Monsenhor Classe no Ruanda. Em Dezembro de 1930, o último escreveu, na obra L'Essor colonial et maritime, frases cuja fama permaneceu intacta^"*: «O maior erro que o governo poderia cometer contra si próprio e contra o país seria a extinção da casta mututsi. Uma revolução desse cariz conduzirá o país directamente para a anarquia e para o comunismo odiosamente anti-europeu... Regra geral, não disporemos de chefes melhores, mais inteligentes, dinâmicos, capazes de compreender o progresso, e inclusivamente mais aceites pelo povo, do que os batutsi.» Segundo o autor, a prioridade das escolas devia assentar na formação dos quadros exclusivamente batutsi para os diferentes níveis da administração local, incluindo os mais baixos. Os jovens bahutu, por seu turno, poderiam desempenhar cargos «nas minas e nas explorações»". A partir de 1928, tanto nas escolas do governo quanto nas escolas missionárias, assiste-se a uma verdadeira segregação no Ruanda desde o ensino primário. As directrizes de Monsenhor Classe destinadas às diferentes missões são especialmente cristalinas:

33. Papiers Derscheid, já citados. 34. Citado em de Lacger, op. cit., p. 524. 35. Ibid., p. 523. Ver I. Linden, Church and Revolution in Rwanda, IVIanchester, 1977, p. 163 (carta de Classe datada de 15 de Maio de 1928}, e G. Mbonimana, op. cit, pp. 354-355. L. Classe, Instructions pastorales. Extraits des lettres circulaires ( 1 9 2 2 - 1 9 3 9 ) , Kabgayi, 1940.

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«A escola dos batutsi deve ter primazia sobre a dos bahutu... Prepara o futuro formando e tecendo os futuros chefes, os pais e o governo ' «Através da conversão dos batutsi, firmaremos a conversão do Ruanda: um país é convertido quando os seus chefes o são [...]. É necessário assegurar que a escola mututsi inclua apenas batutsi no seu perímetro^^» Os estudantes batutsi beneficiavam efectivamente de formações complementares, nomeadamente em francês, e dispunham dos melhores mestres. À semelhança das antigas cortes reais, a escola tornou-se a provação constitutiva de uma aristocracia escorada no duplo princípio da hereditariedade e da selecção. E mais importante ainda, a noção de «nobreza» foi alargada ao âmbito de uma «raça». Várias famílias tutsi, anteriormente afastadas pelas grandes linhagens próximas das dinastias reinantes, passaram, portanto, a ter acesso ao grupo dos privilegiados enquanto as famílias hútu que, até então faziam parte dessa categoria, começaram a ser excluídas. Após essa selecção dos anos 30, a constituição do pessoal executivo africano torna a opção colonial evidente e isenta de qualquer ambiguidade. Em 1 9 5 9 , no Ruanda, 4 3 em 4 5 chefes, e 5 4 9 em 5 5 9 subchefes eram batutsi. No Burundi, entre 1 9 2 9 e 1954, a taxa de chefes bahutu passou de 10 % para O, enquanto a taxa de chefes batutsi aumentou de 21 para 2 6 %, sendo que os príncipes do sangue (os baganwa] ficavam com a parte de leão. A «tutsização» evidencia proporções mais dramáticas a nível das subchefarias^". Um verdadeiro «povo de senhores» é assim forjado com a bênção da Igreja e da administração de um país teoricamente democrático. Basta folhear a edição especial publicada em 1 9 5 0 pela revista Grands Lacs destinada a comemorar o cinquentenário da evangelização do Ruanda para constatar essa atmosfera: nos discursos e nas fotografias, os padres brancos e os administradores belgas estão ao lado dos príncipes e das princesas batutsi, apresentados como «apóstolos», sob a orientação do novo Constantino, o rei Mutara Rudahigwa. Em ambos os países, a imagem do mututsi culto, francófono e bem-vestido, ao contrário do muhutu, rude, analfabeto e maltrapilho, instaurou-se há meio século. Os colonizadores, vítimas do seu próprio jogo, convenceram-se de que os desequilíbrios escolares e sociais se deviam à «passividade» dos bahutu e à «massa cinzenta tutsi"». Em virtude da razão de Estado, uma 36. Cfi Mbonimana, op. cit., p. 352 (directrizes para a missão de Kigali, 1924]). 37. Ibid., p. 3 5 4 (directrizes para Rulindo, 1925). 38. J.-P Chretien, «Féodalité ou féodalisation du Burundi sous le mandat belge», in Études africaines offertes à Henri Brunschwig, Paris, 1982, pp. 367-388. 39. Consultar X. de Wilde D'estmael, «Le Ruanda en état de révolution. La formation des élites».

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colonização que se pretendia modernizadora acabou por contribuir de forma decisiva para a etnização de uma sociedade. Porém, esses efeitos de maior pravidade reflectem-se a nível da sociedade do Burundi e do Ruanda enquanto tal. As novas gerações tanto hútu quanto tutsi - viram-se encurraladas numa análise étnica que lhes foi imputada pelos colonizadores aquando da independência, os quais, aliás, haviam contribuído para a sua construção. Em África, essa interiorização de um modelo etnológico é menos rara do que se pensa, mas no caso em apreciação revelou-se extraordinariamente profunda e perigosa, atendendo ao conjunto social e ideológico que se foi urdindo. Em boa verdade, os próprios visados enfrentam actualmente grandes dificuldades em discernir aquilo que proveio dos seus antepassados e aquilo que foi facultado pela colonização. A própria «tradição» emana simultaneamente de notáveis, de interesses calculados e de intelectuais inebriados pela autoridade da cultura escrita.

reconstruído, senão mesmo construído, nessa época. Assistiu-se ao triunfo das maneiras difundidas pelas missões e pelas escolas, segundo o modelo neotradicionalista de Monsenhor Classe: um extenso pano branco que confere às colinas do Ruanda a aparência de uma segunda Etiópia, sendo que os penteados em altura das jovens transformavam muitas «princesas» ruandesas em rainhas Nefertiti... A importância dos «amanuenses», na acepção medieval do termo [os primeiros intelectuais pertenciam muitas vezes à classe clerical), foi igualmente crucial nesse processo. Não é por acaso que Alexis Kagame, seminarista em Kabgayi entre 1929 e 1941, tenha encetado nessa altura investigações que o tornaram no primeiro historiador moderno do Ruanda. Por vezes apresentado como descendente de uma família de tradicionalistas biru, foi efectivamente encorajado a seguir esse caminho pelo cónego francês De Lacger e influenciado pela imagem medieval iluminada que o último fizera recair sobre o passado do seu país. Recebendo posteriormente o aval do rei Mutara para proceder à recolha das tradições dos ritualistas da dinastia, com a preocupação de conservar o património nacional acima referido, publica, em 1943 e 1947, os dois volumes da sua história dinástica Inganji Kalinga [«Kalinga» - tambor dinástico - triunfante). A obra de Kagame afigura-se indissociável desse contexto ideológico que marcou os primórdios da historiografia ruandesa. Autor, nos anos 40, de um poema que enaltecia conjuntamente a realeza ruandesa e a cristianização, defendeu até ao fim o papel eminente dos batutsi definidos como «hamitas''"».

A aristocracia tutsi ruandesa, na sua nova definição, foi particularmente sensível às cauções «científicas» atribuídas à sua condição de «nobre». Mesmo no contexto do exílio ruandês, o mito das origens egípcias e da superioridade «hamítica» sobrevive ainda hoje na mente das pessoas que foram suas vítimas, após terem acreditado ser suas beneficiárias. A cristalização de uma verdadeira «ideologia ruandesa» sob o reinado de Mutara Rudahigwa, entre 1931 e 1959, mereceria uma análise mais aprofundada. O referido soberano chegou ao poder graças à vontade conjunta de Monsenhor Classe e da administração belga, recebendo o baptismo em 1943 e devotando o seu país ao Cristo-Rei em 1946. Tinha a consciência de estar a presidir ao desfecho de uma época, pelo que desejou preservar a tradição ao abrigo da colonização. Porém, o seu nacionalismo ruandês coincide com a convicção de pertencer a uma linhagem tutsi que teria sido responsável pela construção do país. Nesse sentido, cultivou intensamente tudo aquilo que podia adular tanto o orgulho de uma aristocracia tutsi modernizada quanto os preconceitos dos seus protectores belgas. Impotente politicamente, consagrou-se inteiramente à dimensão cultural, fomentando as actividades desportivas e artísticas em que os batutsi deviam ser pródigos, tentando atrair novos intelectuais ruandeses e mesmo burundianos, chegando inclusivamente a alimentar a fantasia racial do «hamita» na escolha dos membros das delegações no estrangeiro sempre que fosse oportuno, jogando malignamente com a sua estatura face aos residentes belgas de envergadura inferior. No fundo, o «Ruanda tradicional», conforme é habitualmente descrito nos dias de hoje, foi Revue nouvelle, 1960, 5, p. 502. Outra fonte : uma correspondência privada endereçada ao centro de história de África da universidade Louvain-Ia-Neuve em Abril de 1979.

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Mesmo a investigação laica inaugurada em 1950 no IRSAC de Astrida não se mostra incongruente nesse quadro politico-cultural. A «premissa da desigualdade», posteriormente definida por J.-J. Maquet, insere-se na ideia - parcialmente concretizada - de um sempiterno Ruanda feudal. Na edição de 1950 da revista Grands Lacs mencionada anteriormente, esse autor, na altura responsável do novo centro de Astrida, explica o interesse da antropologia relativamente às questões suscitadas pela «heterogeneidade racial» no Ruanda e no Burundi, conjugada com o «dever» civilizacional dos ocidentais". O Ruanda poderia tornar-se numa abadia de Thélème africana, à sombra do Cristo-Rei e ao encontro dos dois reinos iluminados da Bélgica e do Ruanda. Os malevolentes poderiam considerar que a vida cultural nesse vasto internato, onde nenhum sino discordante podia retinir, deixava transparecer alguns sinais de totalitarismo.

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40. Consultar I. Linden, op. cit., p. 2 0 0 e o nosso CR na Revue belge de philologie et d'histoire, 1 9 8 0 , 1 , pp. 119-123. A referência à política cultural do mwami Mutara assenta também em testemunhos de contemporâneos recolhidos em Bujumbura em 1981. 41. J.-J. Maquet, «L'IRSAC au Ruanda», Grands Lacs, 1950, 1, pp. 77-79. IRSAC: Institut pour la recherche scientifique en Afrique centrale.

Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi

A propagação do modelo étnico da «ideologia ruandesa» no Burundi realizar-se-á igualmente através da mediação escolar. Os alunos burundianos de Astrida - muitos mo indicaram - aprendiam o direito e os costumes ruandeses considerados típicos do «Ruanda-Urundi», no seu todo. Um desses alunos mencionou inclusivamente a corveia do buletwa e dos «clientes» bagaragu a propósito do seu país, apesar de esses termos serem ignorados na região. De acordo com um jogo de palavras que faz as delícias dos ruandeses, «Urundi» devia ser apenas «um outro» [urundi) Ruanda! As perspectivas mais radicais da clivagem hútu-tutsi, baseada na experiência histórica ruandesa, circulavam ao mesmo tempo entre os jovens intelectuais burundianos. Todavia, o grau de assimilação do modelo etno-racial no Burundi nunca foi equivalente ao registado entre as elites ruandesas, o que se explica claramente pelo facto de se tratar de situações históricas bastantes distintas tanto antes quanto depois da colonização. Contudo, é possível constatar um desvio muito significativo no âmbito da historiografia: a divulgação de uma tese sobre a origem tutsi e ruandesa da dinastia do Burundi, a qual contraria as indicações fornecidas pelas fontes orais mais numerosas e mais fiáveis. O maior chefe do país, Pierre Baranyanka, desempenhou um papel fundamental, juntamente com o bispo Julien Gorju, nessa operação que se lhe afigurava lisonjeira para o seu país e para a sua família"".

Com efeito, os primeiros estabelecimentos de ensino pós-primário garantiram, de forma coerente, o contacto das novas elites cultas ruandesa e burundiana com o modelo étnico de forte conotação racial cuja cristalização foi testemunhada pelas análises dos europeus e pela prática colonial. Estão em causa dois tipos de instituições: o grupo escolar de Astrida e os seminários. O primeiro foi inaugurado em 1932 pelos irmãos da Caridade de Gand, com dotações do Estado. O irmão Secundien, director do estabelecimento até 1949, é claro quanto ao desígnio geral da escola: formar futuros auxiliares administrativos, chefes, assistentes médicos ou agrónomos, criar «uma nova classe social», constituir uma «aristocracia não-hereditária». Apesar desse panegírico à «meritocracia», os números reflectem a importância da hereditariedade nos recrutamentos"^: em 1932, 45 alunos batutsi ou baganwa, 9 bahutu e 14 congoleses; em 1946, 4 4 batutsi ou baganwa, 1 muhutu do Ruanda e 8 bahutu do Burundi; em 1954, 63 batutsi ou baganwa, 3 bahutu do Ruanda, 16 bahutu do Burundi e 3 congoleses. Os «astridianos» - os futuros recrutas da administração e, segundo Kagame, «os mais estimados dos auxiliares» - para os quais se construíram casas especiais de «evoluídos» e que dispunham de um banco reservado nas paróquias, receberam o epíteto de indatwa, ou seja, «as melhores cabeças» do rebanho, no vocabulário da poesia bucólica ruandesa! Esses jovens que, regressados, por vezes fingiam já não conseguir dormir numa cubata nem distinguir o capim-pé-de-galinha da erva, constituíram garantidamente os primeiros quadros competentes dos países, mas foram também portadores de um elitismo manifesto muitas vezes associado aos preconceitos étnicos, conforme atestam os artigos da sua revista. Servir, publicada entre 1940 e 1961 Os seminários criados nos dois países foram mais receptivos aos alunos bahutu. Porém, o conteúdo do ensino em nada contribuiu para a neutralização dessa clivagem de cariz étnico: recorde-se o papel desempenhado pelos historiadores-missionários, designadamente De Lacger ou Gorju, na asseveração das teses difusionistas e raciais. Nas vésperas das independências, as últimas constam das «aulas de missiologia» ou de pequenos manuais como o Essai d'histoire du Burundi publicado por volta de 1 9 5 9 e directamente inspirado numa aula ministrada no seminário de Burasira.

Em finais dos anos 50, assistia-se ao florescimento de uma consciência étnica nas elites dos dois países, especialmente no Ruanda, com base numa história particularmente intrincada. Com efeito, as «etnias» constituíam sobretudo fantasmas que alegadamente existiriam na mente das pessoas, nas suas genealogias, nos mitos de origem e acima de tudo no discurso antropológico sobre as raças denominadas bantas ou hamitas. A manutenção, o fomento ou a cristalização de uma clivagem antiga entre grupos predominantemente agrícolas e grupos que conciliavam o cultivo com uma criação de gado significativa, e sobretudo a evolução política verificada no século XIX que conferia uma primazia cada vez mais acentuada a determinadas linhagens tutsi, eram susceptíveis de implantar junto da massa da população a imagem de dois povos hútu e tutsi. Porém, as franjas de indeterminação (clãs constituídos por bahutu, batutsi e batwa no Ruanda; a categoria à parte dos príncipes baganwa no Burundi], as margens de manobra (alianças, vizinhanças, por vezes alterações de categoria], as situações

42. Irmão Secundien, «Groupe scolaire». Grands Lacs, Outubro de 1952, p. 39 [citado por G. Mbonimana}. R. Lemarchand, Rwanda and Burundi, Nova Iorque, 1970, p. 138. Constatar-se-á que as estatísticas belgas normalmente amalgamam os ruandeses e os burundianos, confundindo na mesma rubrica «étnica» os baganwa e os batutsi, no que se refere ao Burundi. 43. Por exemplo, M. Piron, «Les migrations hamitiques», Servir, 1948, 6, pp. 2 8 0 - 2 8 3 : acerca dos batutsi, «raça excepcional e inteligente», «aristocracia nata». A noção de indatwa deve-se a G. Mbonimana, op. cit., p. 363. Consultar igualmente |. Kagabo, «Les mythes fondateurs du personnage de l'évolué», Culture et société, Bujumbura, IV, 1981, pp. 122-134.

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44. Consultar J.-P Chretien, «DuHirsute au Hamite: les variations du cycle de Ntare Rushatsi, fondateur du royaume du Burundi», History in Africa, 8, 1981, pp. 3-41 (consultar também em La Civilisation ancienne des peuples des Grands Lacs, Paris-Bujumbura, 1981, pp. 254-270). Id., «Nouvelles hypothèses sur les origines du Burundi», in L. Ndoricimpa, C. Guillet, LArbre-mémoire. Traditions orales du Burundi, Paris, 1984, pp. 11-52.

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Hútu e Tutsi no Ruanda e no Burundi

contraditórias (chefes bahutu, pobres batutsi) e a homogeneidade linguística e cultural permitiam múltiplas evoluções. Ainda que os antigos colonos teimem em negá-lo, a intrusão europeia nessas sociedades revelou-se um contributo decisivo para o reforço do sistema político (para a sua «burocratização», segundo René Lemarchand, para a sua renovação assente num modelo neofeudal, de acordo com a nossa análise), e para a sua racialização na praxe e nas consciências, fixando assim as relações sociais numa clivagem incontornável descrita como étnica. A etnicidade, em sentido estrito, foi engendrada pelo Estado colonial. A descolonização ditou a irrupção das contradições e descortinou os impasses legados por essa evolução.

o aspecto social do problema racial nativo no Ruanda». A confusão entre uma problemática social e uma problemática étnica, ela própria qualificada de «racial» (sendo os batutsi frequentemente denominados de «hamitas») é sistemática: «Há quem pergunte se estamos perante um conflito social ou um conflito racial. No nosso entender, isso é literatura. À luz da realidade das coisas e da percepção dos povos, trata-se de ambos. No entanto, poder-se-ia especificá-lo: o problema consiste acima de tudo num problema de monopólio político que, atendendo ao conjunto das estruturas actuais, se transforma num monopólio económico e social que, devido às selecções de facto no ensino, se assume também como um monopólio cultural, para grande desespero dos bahutu que se vêem condenados à condição de mão-de-obra eternamente subalterna ...».

O álibi étnico de há vinte anos: fantasias raciais, razões de Estado e massacres legitimados

Logo, essa denunciação visa o sistema político que vigorou durante os anos 50, mas toda a fracção tutsi da população ruandesa está globalmente abarcada por essa mesma censura. Mais adiante, alude-se inclusivamente a uma intervenção de «médicos» com o intuito de solucionar a questão das eventuais «miscigenações». A par de reivindicações em matéria de direito fundiário, crédito rural, liberdade de expressão, funcionamento da justiça, abolição da discriminação no acesso a cargos públicos e bolsas de estudo, importa salientar a denunciação do «colonialismo do hamita sobre o muhutu» e a recusa em eliminar as referências étnicas nos documentos de identidade com vista a uma identificação mais eficaz dos indivíduos na distribuição dos benefícios. Não obstante uma cláusula de estilo sobre «o defeito inverso» que consistiria em «tornar banto (s/c) o que se hamitizou», verifica-se que os problemas do Ruanda associados à obtenção da sua independência e à democratização indispensável da sua sociedade são reduzidas a um confronto de ordem étnica. Ora, o referido documento constitui o texto fundador que preludia o nascimento do partido Parmehutu, em 1 9 5 8 , cujo líder, Grégoire Kayibanda, será o primeiro presidente da República Ruandesa entre 1 9 6 2 e 1 9 7 3 .

Ao invés de propiciar um desmoronamento dos preconceitos «raciais», a independência de ambos os países em 1962 conferiu às solidariedades étnicas direito de cidade e, por vezes, oficializou-as. Os novos Estados seguiram a tendência da ideologia global definida durante a colonização, seja por conveniência política, seja por ignorância ou alienação de alguns dos primeiros líderes (aquando da independência, cada um contava apenas com uma dezena de licenciados), seja pela influência dos medos e fanatismos relacionados com os massacres dos anos 60 e 70 que assolaram primeiro o Ruanda e depois o Burundi. A análise ideológica e política dessa etnicidade, ora erigida em doutrina, ora tanto mais obcecante quanto dissimulada, deve ser conduzida sem descurar a abordagem externa pós-colonial, sempre pregnante, acerca desses pequenos países dependentes das cooperações estrangeiras. A presente análise deve iniciar-se com a «revolução ruandesa» de 1 9 5 9 - 1 9 6 1 , o fulcro da maioria das reacções e das estratégias desde há vinte anos. Aventaram-se múltiplas interpretações: golpe de Estado manipulado por colonos belgas, revolução política, luta de classes, guerra étnica... De tudo um pouco. Porém, a alusão ao papel da dimensão «étnica» nas alterações políticas e sociais é mais frequente a respeito de factos que dispensam comentários, sendo que é precisamente essa confusão entre os dois níveis - um chamado tradicional e outro moderno - que merece uma reflexão que transcenda os sloganes.

A equação entre «nobreza», «casta tutsi» e «raça hamítica», por um lado, e «massa do povo», «etnia maioritária hútu» e «raça banta», por outro, irrompia dos livros e das práticas de uma administração colonial para se imiscuir oficialmente na vida política de um país africano e, entre 1 9 5 9 e 1 9 6 2 , o parecer belga e as instâncias responsáveis das Nações Unidas eram consultados constantemente mesmo em debates internacionais''^

O documento fundamental que antecede e inspira os acontecimentos ruandeses consiste num texto divulgado em Março de 1 9 5 7 e assinado por nove intelectuais bahutu, intitulado «Manifesto dos Bahutu». O subtítulo afigura-se particularmente elucidativo: «Apontamento sobre

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étrangère,

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Deparamo-nos com um vocabulário comum. Assiste-se, de alguma forma, a uma vontade de introduzir uma reviravolta na «premissa da desigualdade», descrita pelo antropólogo ].-]. Maquet três anos antes, mas segundo a mesma linha de clivagem tida como imutável. De resto, o próprio investigador assume essa viragem'"^. A actuação específica do Estado colonial era negada, salvo o seu contributo para o renascimento dos bahutu. Seria impossível escamotear o debate mais adequadamente numa linguagem aparentemente progressista. Parafraseando a análise sartriana da «questão judaica», poder-se-ia afirmar que, no caso vertente, a redução étnica permitia a conservação da consciência sã do colonialismo: a eternidade de uma guerra de raças ou de classes desobriga aqueles que forjaram essa sociedade durante meio século a reflectir sobre a sua responsabilidade histórica. As reacções das elites tutsi perante essa situação foram variegadas. Alguns notáveis tradicionalistas próximos do rei (assinavam como «ilustres bagaragu da corte») limitaram-se a reafirmar a preeminência tutsi num texto divulgado em 1 9 5 8 . Espantados com a dimensão que a mesma adquirira diante dos seus olhos, esses aristocratas descreviam-na como multissecular, facto que pôde ser citado e denunciado pelos seus adversários com total liberdade. Todavia, através de uma análise do conteúdo do seu texto, ressaltam sobreposições culturais interessantes''^: referindo-se explicitamente a Inganji Kalinga de Kagame, baseiam-se efectivamente numa leitura racial do mito de Kigwa, herói fundador da dinastia, o que não constitui de todo uma evidência. Esses notáveis, alguns dos quais mantinham um contacto constante com os investigadores de Astrida ou de Kabgayi, espelham devidamente a tradição oficializada durante as décadas de 1 9 3 0 , 1 9 4 0 e 1 9 5 0 nos moldes considerados anteriormente. Outros adoptaram uma atitude irónica« relativamente às questões suscitadas em Setembro de 1 9 5 8 pelo bispo Bigirumwami, mutusi mas oriundo de uma região (Gisaka) que fora t a m b é m vítima da expansão guerreira da dinastia tutsi nyiginya. Tratava-se de questões incongruentes''''? «Quais os critérios que devem servir de base para as definições (de muhutu e mutusi)? lulho-Nov. 1963, Bruxelas, pp. 439-718. 46. J.-J. Maquet, «La participation de Ia classe paysanne au mouvement d'indépendance du Rwanda», Cahiers d'études africaines, 1964, n.® 16, pp. 552-568. 47. Consultar o texto em: F. Nkundabagenzi, Rwanda politique, Bruxelas (Dossiers do CRISP), 1962, pp. 35-36. 48. Por exemplo: M. D'Hertefelt, «Mythes et idéologies dans le Rwanda ancien et contemporain», in J. Vansina, R. Mauny L.V. Thomas, The Historian in Tropical Africa, Londres, 1964, pp. 219-238. 49. Carta incluída em Témoignage chrétien, ed. belga, 5-9-1958 (F. Nkundabagenzi, op. cit., pp. 37-42).

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«São critérios físicos, raciais ou, pelo contrário, critérios sociais e económicos? [...] «Os bahutu dirigem-se aos batutsi, não é assim? Mas isso aplica-se a todos aqueles que ostentam o rótulo de batutsi? A um pequeno grupo? Especificamente aos chefes de província que, no Ruanda, representam apenas um punhado de 52 pessoas? Aos subchefes e aos seus ajudantes, cujo número praticamente não chega ao milhar?» O problema estava, de facto, a ser colocado nos seus verdadeiros termos através da primazia conferida ao seu aspecto social, ou seja, as elites e a sua promoção. A mobilização em torno de um programa étnico realizou-se inicialmente numa esfera muito particular - a da primeira geração de intelectuais bahutu (na acepção ocidental do termo), em especial, entre os antigos seminaristas que, após a conclusão dos seus estudos secundários, apercebiam-se de que estavam a ser excluídos das funções administrativas (julgadas as mais importantes), em prol dos antigos astridianos, ou seja, em prol dos seus colegas batutsi que eram predominantes nessa formação. René Lemarchand alude ao caso pertinente de Anastase Makuza, um dos futuros líderes do Parmehutu, que, terminado o seminário de Nyakibanda, cursou no colégio universitário de Kisantu (Congo Belga) mas, aquando do seu regresso, conseguiu apenas uma posição de dactilógrafo «candidato-adjunto» em Kibuye (um pequeno centro na região ocidental do país). Essa discriminação deu azo à cristalização de uma contra-elite hútu durante os anos 50. O seu descontentamento terá uma ressonância favorável junto de uma nova geração de missionários, inspirados pela Acção católica e o movimento social-cristão belga, mas cuja informação sobre o Ruanda assentava nas publicações coloniais. A contra-elite hútu organizou-se em torno das instâncias eclesiásticas: imprensa católica, como o jornal Kinyamateka, publicado pelo bispo de Kabgayi desde 1 9 3 3 ; mutualidades que, em 1 9 5 6 , confluíram para a criação de uma rede de cooperativas de consumo chamada Trafipro («Trabalho, fidelidade, progresso»); associação de monitores escolares; Légion de Marie cuja rede aparentemente anódina dividia o país em zonas. No final dos anos 50, os novos favores de que beneficiavam os chamados «evoluídos bahutu» respondiam igualmente a uma preocupação de refrear a ascensão dos nacionalismos, que atingiam o Ruanda, o Burundi e o Congo, e de travar o comunismo, um perigo que assombrava os meios religiosos. Nos sermões, qualquer tipo de anti-colonialismo era rapidamente descrito como um sinal de «bolchevismo».

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A doutrina social da Igreja afigurava-se coadunável com a exaltação da Virgem de Fátima e da sua «mensagem», que poderemos classificar de salazarista. Nessa conjuntura, a divisão das novas elites africanas não podia desagradar às autoridades políticas e morais de um colonialismo em dificuldade. Essa alternativa parece estar particularmente ilustrada num acontecimento. Em 1951, um movimento de contestação decorreu no grande seminário de Nyakibanda: nessa ocasião, bahutu e batutsi uniram-se contra os missionários europeus, e entre os «instigadores» subsequentemente expulsos da instituição contava-se Anastase Makuza, um dos futuros redactores do «Manifesto dos Bahutu». Após essa crise, assiste-se a uma africanização acelerada dos quadros (o primeiro bispo em 1 9 5 2 ) e sobretudo a uma cristalização de uma nova política que visava conquistar uma elite dócil, mais disposta a solicitar reformas do que a sonhar com a independência. A biografia de Kayibanda assume contornos quase simbólicos: seminarista tornado professor num «instituto» de formação artesanal, é responsável pela secretaria de uma secção de «amizades belgo-congolesas» criada por um colono de Kigali e, posteriormente, ocupa o cargo de redactor-chefe do Kinyamateka (em 1 9 5 4 ) ; preside ao conselho de gestão do Trafipro e torna-se secretário de Monsenhor Perraudin, novo arcebispo (suíço) do Ruanda a partir de 1 9 5 5 . Toda a sua carreira é seguida por sacerdotes sociais-cristãos, designadamente os padres Déjemeppe e Ernotte que o enviam para a Bélgica em 1 9 5 0 e 1 9 5 7 , e que participam, em Kabgayi, na redacção do «Manifesto» em colaboração com Kayibanda, e ainda Calliope Mulindahabi (novo secretário de Monsenhor Perraudin) e Aloys Munyangaju, todos antigos seminaristas, no mês de Março de 1957=°. Por conseguinte, o desafio social do conflito «étnico» em gestação em finais dos anos 50 apresenta uma dimensão concreta, apesar de enredado num confusionismo sócio-racial herdado da ideologia colonial. Com uma aplicação entretanto assente num modo «democrático» (a defesa das «massas» e da «classe humilde» contra os «feudais»), o discurso sobre «os bantos e os hamitas» passa a justificar as aspirações de uma nova classe instruída, ao invés de uma forma de imperialismo indirecto. O populismo abafa a preservação de um racismo interno cuja função reside também no encobrimento dos interesses específicos de uma classe média em construção. Os professores primários e os trabalhadores (os «amanuenses»), a cuja manifestação se aludiu, representam também, nessa época, o conjunto de uma classe média baixa de intermediários (plantões, donos de cabaré, camionistas...) que tentam a sua sorte fora do mundo rural e procuram superar as suas dificuldades 50.1. Linden, op. cit.. pp. 2 2 9 - 2 3 1 e 249.

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de forma individualista mas sem, no entanto, serem afastados desse mundo. Afigurar-se-ia estranho aplicar o termo «burguesia» a esses povos humildes, principalmente no caso de se estabelecer uma comparação com a abastança ocidentalizada em que se encontraram os chefes ditos «consuetudinários» associados ao sistema colonial. Contudo, o «Manifesto dos Bahutu» deixa efectivamente transparecer um ideal de «classe média», tal como as tomadas de posição que o acompanham, muito em particular dos missionários. Não subsistem dúvidas de que esses elementos explicam a facilidade com que os ocidentais acreditaram tratar-se de uma reivindicação de «terceiro estado». A Revolução Francesa - até então evocada nos seminários como uma obra do ateísmo e do Terror - foi amiúde valorizada pelos fundadores do Parmehutu. Com efeito, os modelos de 1 7 8 9 e de 1 8 3 0 cultivavam de forma profícua o quiproquó relativo ao conceito de «classe média», o qual podia remeter para a totalidade do «povo hútu», situado entre a aristocracia tutsi e a minoria pária dos batwa". Porém, a sua manifestação afigurava-se mais concreta entre o grupo dos «evoluídos rurais» (termo utilizado em 1 9 5 4 na revista LAmi), ou seja, dos intelectuais bahutu tidos como representantes do campesinato. O etnismo assumia os contornos de um discurso mediador entre os interesses dessa nova elite - a futura «burguesia executiva» do Estado ruandês - e a massa popular: representava um alargamento da prática do clientelismo político à nação, no seu todo. Bastava afirmar a pertença a uma ascendência hútu para ser «do povo». O desafio residia nitidamente no controlo do futuro Estado independente, mas mobilizando os fervores étnicos decorrentes de um passado recente. Apesar da maturação dessa conjuntura ao abrigo da colonização europeia, o «feudo-colonialismo» dos batutsi tornou-se o alvo de eleição." «O Ruanda é o país dos bahutu (banto) e de todos aqueles - brancos ou negros, tutsi, europeus ou de outras proveniências - que se libertarão da mira feudo-imperialista.» Segundo esse ponto de vista, constata-se que os ruandeses de ascendência tutsi eram tratados como imigrantes. Essa escolha - largamente explicável à luz do contexto político e ideológico do Ruanda nos anos 50 - deu azo a todo o tipo de demagogias. 51. Ver A. Coupez, «La linguistique et le statut des langues africaines», Zaïre, IX, 1955, pp. 707708: muhutu significa «membro da classe social média», escreve o autor criticando, e com razão, um clérigo que havia assimilado esse termo ao mtu kiswahili (equivalente de muntu, «ser humano» em kinyarwanda). E ainda: G. Cyimana na Revue nouvelle, citado por F. Nkundabagenzi, op. cit., pp. 54-68. 52. Texto de um «apelo» da Comissão nacional do Parmehutu de 8 de Maio de 1 9 6 0 (F. Nkundabagenzi, op. cit., p. 252).

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Por conseguinte, a lealdade aos princípios democráticos da «revolução de 1959» foi muitas vezes mais aferida com base na intransigência anti-tutsi, do que propriamente em função do conteúdo social concreto da política implementada. As delegações internacionais que visitaram o Ruanda nessa altura depararam-se com bandeirolas em riste exigindo «o regresso dos colonialistas tutsi para a Etiópia». Certamente não teriam encontrado os seus antepassados mais facilmente do que os bahutu caso tivessem sido recambiados para o hipotético local de origem protobanto no Sul dos Camarões! Porém, essa posição acarretará necessariamente conflitos nefastos. Não se pretende delinear novamente a crónica sinistra dos massacres que assolaram sucessivamente o Ruanda e o Burundi durante uma quinzena de anos". Regra geral, o parecer internacional considerou tratar-se do ressurgimento de antigas rivalidades «tribais» e os principais meios de comunicação mostraram-se hesitantes entre uma indignação demasiado tardia e o olhar desiludido do zoólogo que observa espécies em luta por um nicho ecológico. Eis o motivo pelo qual propomos uma reflexão acerca de alguns momentos cruciais marcados pelo incitamento e pela invocação dos sentimentos étnicos por parte de interesses políticos bastante específicos. Nesses dois países, os conflitos tribais constituem sempre assuntos de Estado na medida em que estão no centro do poder político, e não em esferas incontroladas. No atinente ao Ruanda, a insurreição popular de Novembro de 1959 (que ainda carece de um estudo aprofundado) operou-se efectivamente a nível popular entre os bahutu revoltados com as tentativas de intimidação do partido monárquico UNAR, permitindo ainda ao partido Parmehutu afirmar a sua preeminência face aos restantes partidos reformistas - em particular no Norte e no Centro do país - liderados por batutsi (o Rader) ou por bahutu (o Aprosoma). Em virtude da emigração de vários batutsi (em finais de 1963, o número de exilados ascendia aos 130 000), do medo e da pressão administrativa e militar das autoridades belgas sempre presentes, os quadros administrativos locais sofrem uma transformação profunda e as eleições municipais de Junho de 1960 tiveram como resultado 160 burgomestres do Parmehutu para 229 cargos. Assistia-se à concretização de uma revolução política: faltava apenas a proclamação da 53. Sobre os referidos acontecimentos: R. Lemarchand, Rwanda and Burundi, Nova Iorque, 1970, 5 6 1 p.; J.-R Chrétien, «Burundi et Rwanda, 1972-1974», Encyclopaedia universalis. Universalia 1975, Paris, pp. 182-184; id., «Une histoire complexe, parfois obscure, souvent tragique». Le Monde, 29 de Junho de 1977; id., «Les fratricides légitimés», Esprit, Dezembro de 1976, pp. 822-834; id., «Le Rwanda à la croisée des chemins», Croissance des jeunes nations. Outubro de 1974, pp. 11-13.

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República no dia 28 de Janeiro de 1961 aquando de uma reunião geral dos representantes municipais em Gitarama, e a vitória nas eleições legislativas de Setembro de 1961. O grupo mais determinado serviu-se da violência para usar o trunfo da etnia, com a cumplicidade pouco dissimulada do colonizador, sempre presente. Três anos depois, o Ruanda (que se tornou independente em Julho de 1962, tal como o Burundi) é afectado por uma nova crise. Algumas centenas de refugiados batutsi oriundos do Burundi (onde ascendiam a cerca de 50 0 0 0 ) organizaram um ataque em direcção a Kigali em Dezembro de 1963. O pânico suscitado na capital pela actuação desses rebeldes (apelidados de «baratas», inyenzí) saldou-se numa repressão que vitimou 15 000 batutsi. As suas terras foram redistribuídas por governadores ou burgomestres a favor dos aliados do partido. Em Fevereiro de 1964, France-Soir fazia estremecer os seus leitores ao evocar os cadáveres dos batutsi, de pernas cortadas, arrastados pelas águas do rio Rusizi. Segundo um processo que se repetiu mais tarde a propósito do Burundi, a indignação internacional dissipou-se sem que os responsáveis directos dos massacres tivessem sido perseguidos, tendo o governo de Kigali justificado a repressão com o «terrorismo inyenzi». De facto, o Parmehutu aproveitou o ensejo para instituir um poder centralizado: os principais líderes do Rader foram executados em 1964; os do Aprosoma, apesar de serem bahutu, foram banidos de cargos dirigentes. A nova vaga de conflitos étnicos contribuiu para a consolidação da «solidariedade racial», em benefício das facções dominantes do Parmehutu, provenientes das regiões de Ruhengeri e de Gitarama. Mais do nunca, Kayibanda tornou-se a incarnação da soberania hútu, a fonte de legitimidade nacional e o mediador na distribuição das funções. Em cada crise política, a minoria tutsi restante (de acordo com os dados oficiais, representava 9 % da população) constituiu o bode expiatório ideal para mobilizar a classe dirigente. Entre Outubro de 1972 e Fevereiro de 1973, grupos do Parmehutu procederam à verificação do cumprimento da taxa de 9 % nas escolas, expulsando os estudantes que estavam a mais, como se o numerus clausus se aplicasse automaticamente entre o sexto ano e a licenciatura. Em Fevereiro-Março de 1973, vários trabalhadores foram despedidos pelo mesmo motivo. Os actos de violência que acompanharam esse movimento desencadearam uma nova vaga de emigração tutsi. A depuração étnica culminou na perseguição aos «híbridos» [ibyimanyí), nascidos de casamentos mistos, e aos «trapaceiros» [abaguze ubwoko) que haviam mudado de categoria racial! Na época, os acontecimentos do Burundi (analisados em seguida) fomentaram essa febre etnicista. Porém, o governo

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de Kayibanda - debilitado por conta das querelas entre facções e constatando a aproximação dos prazos para uma quarta eleição presidencial - permitiu a recriação do ambiente de «luta» que levara o fundador do Parmehutu ao poder em 1960. O que não impediu a consecução do golpe de Estado militar de Julho de 1973, graças ao qual o Presidente Habyarimana subiu ao poder. Não obstante o seu desejo de pacificação, as lógicas do etnicismo mantiveram-se acesas. Em 1980, por exemplo, uma tentativa de conspiração foi neutralizada: os seus autores exigiam a observância integral do numerus clausus e acusavam o governo de não publicar os resultados do recenseamento de 1979, uma vez que esses indicavam uma percentagem de batutsi superior a 9 %! Essa reactivação do racismo inseria-se num contexto político complicado: descontentamento face à ascensão da negociata associada ao Estado, críticas dos estudantes ruandeses na Europa contra as restrições da «ideologia hutista''''». A evolução do Burundi durante o mesmo período não é isenta de paradoxos. A herança histórica não inscrevera a oposição tutsi-hútu na ordem do dia. Durante as eleições de 1961, a administração belga apoiou um partido designado de «democrata-cristão», liderado por chefes fortemente ligados à colonização (a família de Baranyanka, citado anteriormente), com um espírito particularmente aristocrata e grandes admiradores do antigo regime ruandês. O que é verdadeiro deste lado do Kanyaru (o rio fronteiriço), é errado do outro lado... Tanto assim é que, nesse caso, os belgas saíram derrotados das suas eleições. Com efeito, defrontaram um partido nacionalista, o UPRONA, que encontrava simpatizantes tanto junto dos chefes de famílias principescas quanto dos bahutu e dos batutsi, tanto junto dos sacerdotes católicos quanto dos muçulmanos das margens do Tanganica, e que era liderado por um filho do rei Mwambutsa, o príncipe Louis Rwagasore. O último casara com uma muhutu e o seu tenente principal. Paul Mirerekano, também era muhutu. Tendo em conta as analogias culturais - à falta de semelhanças - os acontecimentos do Ruanda desencadearam justamente um processo de etnização na sociedade burundiana. René Lemarchand aplicou o conceito de «profecia auto-cumprida» {^self-fulfilling prophecy^^) a esse fenómeno: «Ao apresentar, de início, uma definição falsa da situação do Burundi, esses políticos hútu provocaram novos comportamentos tanto entre eles quanto entre os tutsi que tornaram verdadeiras as imputações falsas que lhe foram atribuídas inicialmente.» 54. Associação geral dos estudantes ruandeses, «Pour un dépassement réel de l'ethnisme et du régionalisme au Rwanda», Rwanda de demain, n.s 8, Outubro de 1980, pp. 4-58 (nomeadamente uma análise pormenorizada da crise de 1973). 55. R. Lemarchand, op. cit., p. 344.

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Mais concretamente, o refluxo de dezenas de milhares de ruandeses batutsi - exilados do seu país - para o Burundi ocasionou uma torrente de inquietação entre os seus homónimos burundianos, propícia a todos os extremismos, à qual acresceu, por influência dos distúrbios associados à descolonização congolesa, a dinâmica das tensões internacionais: as manobras dos chineses e da CIA americana". O ano de 1965 representa um ponto de viragem decisivo na vida política burundiana: em Maio, as eleições legislativas resultaram em dois terços de deputados bahutu, de listas diferentes, que formaram imediatamente um gabinete «etnicamente» homogéneo. Em Outubro do mesmo ano, no momento em que dois terços dos ministros do governo eram bahutu, teve lugar um golpe de Estado da gendarmaria, seguida de ataques contra as famílias tutsi em vários municípios da montanha, o que suscitou uma repressão bastante severa (uma centena de execuções). O UPRONA (que perdera o seu carismático líder em Outubro de 1961, com o assassinato de Rwagasore) não resistiu ao avanço de um verdadeiro entumecimento tribalista. O regime republicano instituído pelo exército em 1966 caracterizou-se rapidamente pelo primado de uma política de auto-defesa tutsi, ao passo que os opositores bahutu aderiam cada vez mais ao modelo ruandês. Essa crispação culminou em duas crises: a de 1969 (uma conspiração abortada, seguida de um julgamento e de várias execuções) e sobretudo a de 1972, designada de «mangual» (/Wzo) pelos próprios burundianos. Um movimento hútu eclodiu em finais de Abril no Sul do país, levando ao assassinato de alguns milhares de batutsi, o que conduziu, em Maio-Junho, a um bombardeamento de represálias contra os responsáveis bahutu a todos os níveis. Pânico, ajustes de contas ocultados pelas autoridades, fornadas de detenções organizadas por agentes da polícia, militares e responsáveis judiciais: regra geral, o valor aproximado das vítimas desses massacres ascende aos 100 000. A gravidade do acontecimento não se prende com o número exacto, mas sim com a natureza genocida do procedimento, à semelhança do ocorrido no Ruanda, oito anos antes, mas no sentido inverso. Porém, tanto no Burundi quanto no Ruanda, os observadores descuraram em demasia os responsáveis políticos. Quer em 1969, quer em 1972, o contexto político revela uma especificidade considerável: face ao governo do Coronel Micombero, que se servia inteiramente do clientelismo e das rivalidades de cariz regional ou clânico, e também étnico, assiste-se ao florescimento de correntes de oposição que juntavam bahutu e batutsi num desejo comum relativamente a um regime social e 56. R. Lemarchand, «La CIA en Afrique», Revue française Abril de 1977, p. 87.studantes

d'études politiques

africaines,

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político mais progressista e desalienado da obsessão étnica. No final de 1 9 6 8 , uma tomada de posição pública do Ministro da Informação, um oficial muhutu, o comandante Martin Ndayahoze, é reflexo disso mesmo": «Desde logo, podemos afirmar com segurança que é a classe alta que encerra o vírus do tribalismo. [...] A fim de se manter em, ou aceder a, determinados cargos cobiçados, são os quadros pouco meritórios que necessitam de recorrer a recomendações, truques e artifícios; com o intuito de concretizarem as suas vergonhosas ambições, também alguns responsáveis insaciáveis fazem da divisão étnica uma estratégia política. Ora, se são tutsi, denunciam um "perigo hútu" que deve ser enfrentado, e sempre que tal se justifique, com a ajuda de conspirações tácticas; se são hútu, declaram um "apartheid tutsi" que deve ser combatido. Toda essa situação é orquestrada num cenário diabólico para que o sentimento prevaleça sobre a razão.» Em 1971, no momento que o ascendente de um grupo extremista tutsi denominado «grupo de Bururi» (na realidade, tratava-se mais de uma rede de personalidades do que de uma equipa «regionalista») se adensou, valendo-se até à exaustão da ameaça hútu, observa-se novamente a manifestação dessas críticas, principalmente entre os estudantes durante o seu congresso de Julho de 1 9 7 1 . A oposição tutsi liberal foi desmantelada em Outubro, na seqüência de um julgamento fabricado. Mas os intelectuais bahutu que criticavam o regime, sem no entanto aderir ao modelo étnico do Ruanda, foram extremamente malvistos pelos políticos bahutu no exílio desde 1 9 6 5 , para quem a mudança só se operaria através de uma guerra civil. Em Maio-Junho de 1972, vários intelectuais desaparecidos aquando dos ataques de uma repressão racista foram, de facto, vítimas desse duplo extremismo. Acerca dessa matéria, procedi à recolha de diversos testemunhos, verbais ou escritos, de correspondentes burundianos da altura. Tudo se passou como se determinados grupos políticos tivessem tido a necessidade de precipitar os confrontos étnicos de molde a conservarem-se ou a subir ao poder Conforme é sabido, três anos depois do Ruanda, o Burundi sofreu um golpe de Estado militar em 1 9 7 6 , o qual instaurou um regime igualmente preocupado em suprimir um obstáculo étnico cuja gravidade se revelava suicidária. Porém, relativamente a cada período de adversidade em ambos os países, e também nos países vizinhos^®, a 57. M. Ndayahoze, «Le Tribalisme au Burundi», editorial para radiodifusão, 25 de Nov. de 1968, 3 folhetos, f. 1. 58. Os grupos de língua ruandesa emigrados há relativamente bastante tempo foram afectados por crises recentes no Sudoeste do Uganda e no Leste do Zaire [Kivu]: os interesses políticos levaram à triagem dos povos em «etnias» hútu e tutsi.

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tentação de mobilizar essa clivagem era perceptível entre os responsáveis políticos ou os intelectuais. Desde há trinta anos sensivelmente, os debates infindáveis sobre a questão étnica conduzidos no Ruanda e no Burundi inserem-se em lutas de poder e nas grandes linhas de orientação dos Estados: o etnismo, infelizmente, constitui uma das formas da modernidade em África. Em suma, constatar-se-á que a análise histórica permite questionar as belas certezas que são geralmente repetidas. A diversidade dos argumentos colocados ao serviço da etnicidade que marcou ambos os países é notória: teorias raciais, políticas ora assentes no elitismo ora na democracia; legitimação dos fratricidas através de uma luta de classes. Noutra sede, fizemos referência aos «safaris ideológicos» a propósito dessa questão. O elemento constante reside na estrutura da abordagem à sociedade, numa cristalização do rosto do «outro» em termos de marginalidade, inferioridade ou exclusão. Os confrontos recentes foram ocasionados sobretudo pelo primado de uma acção política em busca de bodes expiatórios ou do ideal-tipo, desde a colonização até às independências, e não tanto por uma coexistência difícil entre dois povos. A armadilha de um racismo interno voltou assim a encelar populações inteiras. No caso em apreciação, em que os grupos tutsi e hútu não constituem etnias propriamente ditas, caracterizadas geográfica, linguística e historicamente, o desenvolvimento de consciências étnicas significa obrigatoriamente um questionamento radical do outro: políticas de desprezo e políticas de exclusão, lógicas de apartheid estribadas em estereótipos raciais. O «tribalismo» no Ruanda e no Burundi inspirou, em geral e de forma elucidativa, descrições evocativas de uma banda desenhada: os «pequenos» contra os «grandes», os quais ocupam alternadamente o lugar do bom ou do vilão de cada lado. Nessa imagética da Epinal, o bom mututsi era preferencialmente um exilado, dotado de tradições fascinantes mas condenado pela história, e o bom muhutu será encarado como um trabalhador dócil (apresentámos, em 1 9 7 6 , um caso de expulsão num colégio protestante do Burundi, devido ao facto de um aluno muhutu não ter desempenhado o papel que lhe tinha sido atribuído^'). O reflexo apresentado pelos meios de comunicação dos países industriais a esses países não é imparcial. Outro avatar ideológico mencionado frequentemente consiste em reduzir os actos de violência dos anos 6 0 e 70 do Ruanda e do Burundi à expressão de um conflito de classes, com o risco de aludir a um «racismo de classe». Infelizmente, a história do século XX é ilustrativa do facto de que a deriva racista não é acessória nem circunstancial. 59. «Les fratricides légitimés», já citado.

o nazismo revela contradições e ilusões mais profundas no seio da sociedade alemã do que uma crise conjuntural do capitalismo® Quando, na esteira de Fourier, Alphonse Toussenel escrevia no século XIX que «o feudalismo industrial encontrava a sua personificação no judeu cosmopolita^X a sua teoria social diluía-se no anti-semitismo. A confusão entre críticas de ordem socioeconómica e a denunciação de categorias socioculturais hereditárias insere-se mais na linha da teoria das «raças históricas» elaborada por Augustin Thierry no século passado, do que propriamente na linha de Marx. A etnografia interlacustre, por seu turno, adoptou antes o pensamento de Augustin Thierry.

a cada cabeça corresponde um espírito diferente: à lisa, uma lisa honradez e fidelidade, à bicuda uma maneira de ser ardilosa, e também astúcia e calculismo, tendência para a intrujice. A um povo, o de cabeça redonda, Iberin designa de Tchouche, afirmando que a sua origem reside no solo de Yahoo e é de bom sangue. O outro, reconhecível pela cabeça bicuda, é um elemento estranho, infiltrou-se no país, não tem pátria própria. São os Tchiches.»

Logo, a cristalização de duas etnias antagonistas com base em categorias antigas de outra natureza não corresponde a uma simples superestrutura cultural de conflitos sociais modernos nem a uma ressurgência de obscurantismos exóticos. Os milhares de vítimas dos confrontos ocorridos no Ruanda e no Burundi desde há um quarto de século não podem ser consideradas sequelas de uma barbárie passada nem transformadas em mártires de um futuro melhor. Tal significaria fechar os olhos ao facto de que, tanto em África quanto na Europa, os valores do sangue, da terra e da raça podem ganhar forma - sob um aspecto muito moderno - no cerne das políticas. No caso vertente, a etnicidade prende-se sobretudo com as ilusões abandonadas pela etnografia ocidental sobre o mundo designado de consuetudinário. A anomia das primeiras gerações escolarizadas, afastadas dos valores do seu passado sem serem verdadeiramente integradas nos valores das culturas ocidentais (atendendo às constrições do ensino primário ou a dispensa do ensino pós-primário] suscitou comportamentos de fuga para trás, simultaneamente interesseiras (com a ajuda das ambições) e adulteradas, lançando mão de todos os recursos e de todas as justificações. No nosso entender, afigura-se oportuno aludir à situação retratada por Bertolt Brecht em Os cabeças redondas e os cabeças bicudas pelo que nos despedimos do leitor com a seguinte citação": «Este Iberin sabe bem: o povo, que não é muito dado a abstracções, e que as dificuldades tornam também impaciente, procura o culpado desta ruína num ser familiar, com boca e orelhas e duas pernas, com que qualquer um se possa cruzar na rua. [...] Descobriu que este país de Yahoo é povoado por dois grupos raciais e que são muito distintos também no aspecto exterior, na forma dos seus crânios: redonda é a cabeça de um, bicudaa de outro, e

60. Consultar P. Aycoberry, La Question nazie, Paris, 1979, 317 p. 61. A. Toussenel, Les juifs rois de l'époque. Histoire de la féodalité industrielle, Paris, ed. de 1886, p. 134. 62. B. Brecht, Théâtre complet, vol. VIII, trad. Paris, 1960, p. 2 1 (a obra é de 1932).

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Hútu eTutsi no Ruanda e no Burundi

Conjunturas étnicas no Ruanda Claudine Vidal* Solicitar-se-á ao leitor o consentimento para um roteiro inusitado em antropologia. A contar da data do golpe de Estado militar - 5 de Julho de 1973 - recuar-se-á no tempo até aos últimos anos do século XIX através de uma espécie de regressão histórica desde os acontecimentos que se sucederam à independência até aos episódios imediatamente anteriores às primeiras incursões europeias no Ruanda. Não obstante a sua brevidade, esse percurso proporcionará algumas informações acerca das modalidades concretas segundo as quais os indivíduos se reconhecem e se identificam como tutsi, hútu e twa. Considerados os primeiros habitantes da região, os pigmeus twa foram outrora expulsos por agricultores bantos - os hútu - aos quais se seguiram os pastores oriundos do Norte - os tutsi -vários séculos depois. De momento, importa apenas ter presente que, na época pré-colonial, reinava uma dinastia de origem tutsi que seria preservada pela colonização alemã e a tutela belga, e que, em 1960, após uma guerra civil, instaurar-se-á um regime republicano e independente controlado pelos hútu.

As causas étnicas de um golpe de Estado Na madrugada de 5 de Julho de 1973, o major-general Habyalimana, comandante-chefe da Guarda nacional, tomou o poder: bastaram duas autometralhadoras - uma das quais posicionada defronte da Assembleia - para se «apoderar» da capital. Com transmissão radiofónica, uma declaração do general informava que os postos de comando estavam sob o controlo do exército, decretava o recolher obrigatório e pedia à população que mantivesse a calma. Também esse discurso foi suficiente. Não foi necessário o recurso à força para garantir o golpe de Estado; procedeu-se simplesmente à disposição de algumas barragens nos principais eixos rodoviários. Era o fim da Primeira República *. CNRA: Unidade associada 94.

Conjunturas étnicas no Ruanda

que, ao longo de 12 anos, tivera como presidente Grégoire Kayibanda, símbolo da luta revolucionária hútu contra a opressão tutsi. Em Kigali o ambiente geral era de alívio, o que, na realidade, era expectável pois, nos últimos meses, todos os centros urbanos foram alvo de tumultos que em nada se assemelhavam a manifestações populares. Como se desconhecesse a procedência da iniciativa ou estivesse desprovido dos meios para refreá-la, o governo exibiu reacções incoerentes. As residências de políticos reconhecidos e respectivos aliados haviam sido sujeitas a ataques misteriosos e mortíferos. Quer tenham sido ajustes de contas ou não, representavam o prenúncio de uma campanha extremamente feroz contra os tutsi. Listas dos trabalhadores tutsi da administração e do sector privado eram afixadas nos locais de trabalho exigindo o seu despedimento imediato. Ameaçados e molestados por alguns dos seus camaradas hútu nas universidades e nos colégios, os estudantes tutsi abandonavam os estabelecimentos de ensino. Também os professores tutsi eram surriados, boicotados ou insultados. Em Butare - a micrópole universitária - foi proibida a entrada dos tutsi em três ou quatro bares frequentados pelos notáveis e pela clientela estudantil. Nada disso era oficial: as expulsões do trabalho e as humilhações decorriam «espontaneamente», ou seja, depois de ser dado o devido exemplo em alguns locais estratégicos.

Europa. Contudo, tinham-se registado alguns anos de paz que nem mesmo as tragédias que se sucediam no Burundi - onde, ao contrário do Ruanda, os tutsi haviam conservado o controlo do Estado - conseguiram perturbar. Fizeram dezenas de milhares de mortos: após a derrota de uma insurreição hútu bastante violenta e perigosa, seguiu-se, em Maio e Junho de 1 9 7 2 , uma repressão que redundou em genocídio: funcionários, estudantes, comerciantes, padres e camponeses - os últimos por terem a casa coberta de chapa ou venderem alguns produtos no mercado - foram massacrados caso fossem hútu e não tivessem fugido. As mulheres e as crianças não foram poupadas. No Ruanda, recolhemos os testemunhos de sobreviventes, um sacerdote europeu fez o mesmo em Bukavu; missionários e colaboradores também relataram o acontecimento: todos consideram ter-se tratado de uma vontade sistemática de aniquilação. Ruanda tomou conhecimento do drama e os tutsi - apesar de nada terem que ver com essa carnificina - temiam ser alvo da vingança dos hútu enfurecidos pela morte dos irmãos burundienses. Ora, os tutsi não foram importunados.

Afigurava-se complicado apurar se os hútu eram instigados a perseguir os seus colegas tutsi por seguidismo, racismo étnico ou mero oportunismo. De qualquer das formas, não restam dúvidas de que o movimento contava apenas com a participação de pequenos burgueses diplomados ou em vias de sê-lo, não tendo qualquer ressonância junto dos meios populares, ou seja, da população rural. O que manipulava então o ódio étnico: os líderes no poder com o objectivo de atear um contrafogo às maquinações dos seus rivais, ou sobretudo os últimos no sentido de demonstrar a incapacidade do governo em manter a ordem? Não sei. Seja qual for a resposta, a estratégia - entretanto vulgarizada desde a independência com o intuito de restaurar periodicamente a unidade nacional através da exacerbação dos sentimentos anti-tutsi - suscitava apenas a adesão de uma minoria composta por amanuenses ou assimilados. Sabia-se, de facto, que a luta pelo poder era disputada entre os líderes de duas regiões, o Centro e o Norte, que, de resto, eram todos hútu. O exército tomou uma decisão: o recrutamento passou a ser efectuado quase exclusivamente nas comunidades do Norte.

Em N o v e m b r o de 1 9 5 9 , as f a c ç õ e s hútu e as f a c ç õ e s tutsi d e s e n c a d e a r a m uma guerra civil sangrenta. O golpe de Estado e a proclamação da República, a 2 8 de Janeiro de 1 9 6 1 , aboliram o regime monárquico colocando termo à supremacia política tutsi. Em 1 9 6 3 , milhares de tutsi foram massacrados em várias regiões do Ruanda, ao passo que outros, severamente maltratados, viram os seus bens serem pilhados e as suas habitações incendiadas, e um número considerável teve como destino a prisão. Os ataques de refugiados sediados no Burundi - exacerbados pelos rumores - intensificavam o sentimento de insegurança suscitando novas perseguições contra os tutsi, julgados cúmplices internamente. Findo o ano de 1 9 6 7 , enquanto me dedicava, no terreno, à reconstituição do passado imediatamente pré-colonial e do período colonial até aos anos 30, constatei que os fanáticos do ressentimento étnico se encontravam sobretudo entre aqueles que haviam beneficiado de uma educação ocidental. Os camponeses hútu, por seu turno, já não tinham de se queixar dos chefes ou subchefes e a vingança não obstaria ao inexorável: os filhos já não tinham terras para herdar dos seus pais; era essa a sua certeza.

Tais acontecimentos ditaram uma nova evasão de exilados tutsi: os mais jovens e os menos jovens esperançosos de viver no Ruanda partiram para o Burundi, o Zaire e a Tanzânia, ou procuraram refúgio na

Tal como qualquer outro estrangeiro, quer quisesse quer não, via-me obrigada, na qualidade de possível empregadora, a agir atendendo à dimensão étnica, como se o antagonismo hútu-tutsi tivesse acabado

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Racismos

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por assumir um carácter existencial na sociedade ocidental. Por exemplo, era passada a informação, sob diversas formas, de que o recrutamento de indivíduos tutsi era desaconselhável. Ao recaírem sobre jovens cujo único pecado fora nascer tutsi - graças à sua idade, foram ilibados da opressão sofrida pelos hútu antes de 1 9 6 0 -, as medidas e práticas discriminatórias adquiriam um cariz racista. Os tutsi viravam-se sistematicamente para os europeus que lhes podiam oferecer algumas oportunidades, sendo exímios em abordá-los sem quaisquer laivos de timidez nem um descaramento excessivo. Eram bem-sucedidos. Nessa altura, todos almejavam uma desenvoltura em relação às maneiras ocidentais e os hútu, cujos estudos e cujas funções deveriam ter proporcionado uma aptidão idêntica para o estilo «sofisticado», sentiam inveja. A focalização das frustrações e dos complexos em torno das jovens tutsi revestia-se de uma maior intensidade; eram consideradas as mais belas, as mais desejadas como se ostentassem ainda um vestígio do «Antigo Regime» que as tornava únicas, e como se a vingança derradeira contra os hútu residisse na sua posse. Ora, segundo consta, elas manifestavam uma atitude de orgulho e desdém para com os seus pretendentes hútu. Eram tema de discursos particularmente violentos, alimentavam fantasias de vingança e, os mais radicais, criticavam asperamente os deputados e as autoridades que haviam casado com mulheres tutsi. O florescimento das formas racistas do ódio nos meios - teoricamente - mais capazes de objectivar a herança do passado e analisar as componentes sociológicas e históricas das desigualdades anteriores revela-se significativo. Na realidade, era precisamente esse meio que procedia à naturalização das desigualdades como se a europeização, ao invés de uniformizar, tivesse acentuado as diferenças a ponto de serem estigmatizadas. Na sua interrogação acerca da antropologia e da história, os intelectuais tutsi ou hútu descobriam nelas o retrato do Outro, execrável e perceptível, a par de uma aversão recíproca de auto-legitimação por meio de uma história fantasiada, manipulada de molde a alimentar esse imaginário que invadia o presente: um racismo étnico forjava as figuras dos opressores e oprimidos (os do passado e os do presente] conferindo-lhes uma dimensão quase eterna e indubitável, um ser tutsi, um ser hútu, pelo que é irrelevante o significado total de um dado gesto ou de um dado pensamento. Em contrapartida, essa transformação dos traços sociais característicos dos antigos titulares das posições dominantes numa natureza física e psíquica não parecia ser realizada pelos povos das colinas - e, ao afirmarem que nem todos os tutsi dominavam, muito pelo contrário, não amalgamavam um chefe e um simples tutsi.

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O país transformava-se numa ilha. Os dirigentes manifestavam receio face à conjuntura que os rodeava: aterrorizados pelas rebeliões zairenses, preocupados com a Tanzânia, inimigos do regime tutsi burundiense, dependentes das vias de comunicação ugandesas para o abastecimento geral. Os seus habitantes, isolados, assistiam, impotentes, à ruína do país. E, ademais, abria-se espaço para todas as espécies de censuras: as que praticavam um catolicismo vitorioso, as que impunham um poder que, por medo de uma revolta popular de tendência comunista, recorria ao policiamento e que, por fobia da marca deixada pelos tutsi, proibia as manifestações culturais consuetudinárias. Desconfiança generalizada, rumores, ensimesmamento, asfixia: às privações materiais sofridas - esse país que constava entre os mais pobres do mundo e carecia de quase tudo - acrescia uma paralisia do pensamento.

A descoberta do reino Também os descobridores europeus foram sensíveis a essa insularidade, aprimorando as descrições de um mundo fechado, fortemente protegido contra o exterior Em finais do século XIX, aquando da sua chegada ao solo ruandês, após uma jornada vagarosa e difícil desde o mar até aos «montes da lua» e às tão almejadas nascentes do Nilo, encontraram uma paisagem estranha repleta de montes e colinas que, graças à quantidade de homens e rebanhos que exibia, era sugestiva de uma densidade nunca dantes vista em África. A existência de um substrato cultural foi igualmente surpreendente: uma língua comum a todos; a identificação do território com uma área mística protegida pela figura real e o tambor sagrado - copiosamente envoltos em ritos - contra os influxos de magias adversas; a convicção - patente em narrativas populares e saberes esotéricos - de que a confluência dos conjuntos ancestrais se devia a uma história multissecular Todavia, nenhum viajante - exploradores, missionários, militares - descreveu o reino enquanto consecução de uma unidade. Proceder-se-á a uma retrospectiva faseada e, no final, as crónicas desses tempos tradicionais serão confrontadas com os modelos elaborados pelos antropólogos, algumas décadas mais tarde.

Primeira metafísica das etnias: um explorador alemão na Corte A 14 de Junho de 1898, o Dr Kandt - geógrafo, etnólogo e poeta

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alemão - Instala-se em Mklngo, no Nduga. Era o coração do reino. Postado em frente à colina onde se encontrava a residência real, à espera de uma audiência, rememora as páginas que o Conde Götzen havia dedicado a esse país cuja penetração, algumas décadas antes, fora célere: uma população considerável - centenas de milhares de negros bantos, os bahutu, numa «dependência servil» face aos watussi, «casta estrangeira», sendo o país governado e «explorado até ã última gota pelos watussi», e por fim uma «tribo de anões», os batwa. Todas as suas constatações, naquele momento, são a confirmação das indicações do Conde. Recebe a visita de dois tutsi de porte colossal e um peso político não menos significativo - um era um chefe muito importante e o outro, tio do jovem rei. Em seguida, Kandt oferece tecidos e vestuário: os tutsi preferem os sóbrios tecidos de algodão aos bordados e às bijuterias. Perseguem e agridem sem cessar os hútu que oferecem víveres ao estrangeiro em troca de algumas relíquias. Kandt diverte-se em dar-lhes estofo e em observar a artimanha dos tutsi que tentam arrancar-lhos. Os rebanhos de vacas, cujo leite alimenta os «parasitas» que vivem na corte, amontoam-se sobre as colinas em torno da residência. Para o explorador, a obtenção das provisões necessárias para prosseguir o seu curso será à custa de manifestações dramáticas (tiros de foguete durante a noite] destinadas a intimidar o rei e os seus chefes cuja hostilidade face ao seu hóspede parece adquirir proporções perigosas. Kandt receia um desfecho desastroso tanto mais que pensa ter agido imprudentemente. Com efeito, relativamente aos hútu que se queixavam da sua sorte: «Disse-lhes para se ajudarem a si próprios e, em jeito de ligeira troça, perguntei-lhes como puderam deixar-se subjugar pelos watussi aos quais eram cem vezes superiores em número e por que se lamentam como mulheres». Como é evidente, tais palavras, reproduzidas, não seriam muito apreciadas nas altas esferas...' Esse pequeno quadro conhecerá um destino póstumo insuspeito devido ao facto de reforçar a visão imaginária do Ruanda que será, posteriormente, construída pela antropologia. Por ora, importa mencionar brevemente esse imaginário. A antropologia procederá a uma irrealização do mundo ruandês através de duas operações distintas mas efectuadas em simultâneo. A primeira assenta na conversão dos existentes, por mais diferentes que sejam na prática, em entidades os tutsi e os hútu - que, personificadas, tornam-se actores pseudo-históricos cujos projectos transcendem e suprimem a diversidade das situações concretas; a segunda consiste no alargamento de uma forma política regional - a da zona central onde o nível de implementação 1. Kandt Richard, Caput Nili, Berlim, 1921, pp. 188-195.

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efectiva do poder dinástico era superior - a todo o país, o que promove a representação de um Estado centralizador e unificador

Desobediência nas províncias Mas deixemos a corte, ainda na companhia de Kandt. A expedição dirige-se para Norte. No espaço de alguns dias de viagem e uns sessenta quilómetros depois, a situação altera-se por completo: já não há guerreiros gigantes, coortes trazendo oferendas, e chefes para enfrentar Com 160 homens, o pequeno grupo defende-se de bandos de saqueadores que atacam à mínima desatenção: nada de palavreado, é necessário contra-atacar, abrir fogo. A ordem praticamente não impera nessa região tão próxima da residência real. A paisagem transformou-se. Ao contrário do território que acabara de deixar, no qual o domínio tutsi instituíra a primazia da ervagem, o geógrafo observa que as zonas de cultivo e de pastagem se sucedem mas sem se fundirem. Ao invés das marés de bovinos que cercam a capital, constata apenas pequenos rebanhos na proximidade dos rios, assim como chefes tutsi «isolados» que, nas suas regiões, demonstram uma cordialidade infinitamente superior à dos seus homólogos do Nduga, enviando oferendas e advertindo que esta ou aquela colina constitui um refúgio para ladrõesl Mais acima, no sentido Norte, em Kingogo, a agitação das populações aumenta e os tutsi permanecem invisíveis. Apenas a título esporádico, detecta-se um rebanho com o respectivo pastor As escaramuças continuam com maior intensidade: esses hútu são destemidos pelo que o viajante já não se vê tentado a compará-los a mulheres que choram pela sua sorte. Um dia, recebe a visita de um «velho mutussi bastante sensato» que o alerta contra os autóctones: «Apesar de serem, teoricamente, súbditos do rei do Ruanda, exibem uma rebeldia e recalcitrância eternas, sobretudo ao longo dos últimos anos em que, devido à morte de Rwabuguri [o rei anterior], as províncias de origem dos batussi se dilaceram mutuamente por conta de conflitos internos^». Von Götzen atribuíra ao mwamio o título de «um dos últimos potentados africanos». Seguindo as pisadas de Kandt, o autocratismo real deixa de ser notório, dando lugar a uma figura bastante enfraquecida: a sua austeridade abarca apenas uma porção de território, e mesmo aí pois o «velho mutussi» não fornecia um relato falso - as lutas de morte entre as altas linhagens dominavam as políticas da corte. Noutros locais do país, cada qual age à sua maneira. Von Götzen referia-se, de 2. Kandt, op. cit., p. 2 6 4 3. Ibid., p. 229.

facto, a Rwabugiri e, em boa verdade, esse mwami reinou a seu belo prazer durante uma vintena de anos. Reduzira sem restrições todas as casas de origem dinástica com tendência para se estabeleceram nos pequenos territórios controlados pelos seus exércitos - o seu método era expedito, mandava matar os seus chefes - e, de tanto devastar as províncias de tempos a tempos, obtivera a rendição do Norte e do Oeste. Trata-se de uma submissão provisória, à semelhança da das grandes linhagens: apenas três anos após a morte de Rwabugiri, os apontamentos de Kandt testemunham a fragilidade dessa obra.

Um ambiente «merovíngio» A fim de aprofundar a questão da realeza, centrar-nos-emos nos missionários, os Padres Brancos, que, em 1900, se estabeleceram em Save, não muito longe de Nyanza, a nova residência do rei Musinga. O seu diário, constantemente actualizado, está repleto de indicações. Os redactores mantêm os olhos fixados na corte, um elemento crucial para o sucesso do seu empreendimento pois os alemães concederam uma autonomia absoluta às autoridades nativas devido ao facto de os seus mensageiros poderem circular livremente e de as suas guarnições estarem em segurança. Ora, o medo impera na corte e todas as observações dos Padres sugerem uma tensão extrema. Teme-se uma revolta geral do Ruanda instigada por um filho de Rwabugiri, o anterior mwami, cujas aspirações consistiam em apoderar-se do trono e atacar a residência real depois de recrutar bandos no Norte e fomentar uma sublevação hútu. Kandt já relatara essa ameaça, e os Padres confirmam-na. De resto, não se tratava de um mero produto da imaginação inquieta da facção no poder: uma dezena de anos mais tarde, os alemães prestarão auxíHo aos exércitos reais no sentido de travar o avanço de um dado pretendente e derrotá-lo. Afinal de contas, Musinga reinava apenas devido a um golpe de Estado: outro filho de Rwabugiri lhe sucedera mas, uma vez que a sua própria mãe já falecera, uma outra mulher do rei defunto fora designada rainha-mãe. A última mandou atacar a residência do herdeiro legítimo que, cercado, se suicidou, conseguindo assim entronar o seu próprio filho. O acontecimento decorreu em 1896, um ano após a morte do temível Rwabugiri. A partir desse momento, os parentes e os aliados da rainha-mãe envidaram esforços no sentido de destruir os poderosos que defendiam os cargos obtidos durante o reinado anterior Lutas mortais: a vitória de um significava a morte do seu inimigo e o quase extermínio dos seus cúmplices. Os diários relatam esses episódios

que, segundo os Padres, espelham uma crueldade e uma selvajaria completamente pagãs^. No nosso entender, assumem-se como a negação dessa imagem majestosa da realeza sagrada que a antropologia descreverá com deleite: sublimação do triunfo da civilização pastoral, construção paulatina do génio político tutsi, tornar-se-á a fonte mística do poder, sendo que toda a autoridade residirá no sujeito real. Em vez disso, uma discussão interminável e inclemente: as tradições orais praticamente não descrevem um Rwabugiri devotado ao seu reinado, mas antes um colérico que dependia tanto do terror físico quanto do pavor sagrado. A sua viúva, a rainha-mãe - os testemunhos europeus dedicam-se bastante à sua figura - não será menos sanguinária. Longe de ser eufemístico, o exercício da autoridade suprema consiste numa relação de forças constante: a continuidade dinástica mantém-se com o apoio dos aliados, protegidos pela sua parentela. Decerto que apenas os tutsi se envolvem nessas intrigas e batalhas, porém afigura-se conveniente precisar que esses jogos perigosos contam somente com a participação de indivíduos de linhagens de monta, descendentes de uma linhagem dinástica ou da linhagem da rainha-mãe, filhos ou netos de homens ilustres, e que o destino dos últimos revelou-se ora trágico ora vitorioso.

Segunda metafísica das etnias: a caracterologia missionária O universo tutsi - mesmo nas regiões do Centro e do Sul onde, desde há muito tempo, prevalecem os imperativos pastorais - não exibe a homogeneidade que lhe será atribuirá pela literatura especializada. Excepto as grandes figuras cujos destinos se urdem nas mais altas esferas, os Padres identificavam os «pequenos chefes» - conheciam-nos bem pois privavam com eles diariamente - que «controlam», em nome do rei ou de um ilustre, os homens que vivem num espaço devidamente circunscrito, «gente de peso» ou «ricos», meros pastores bem providos de vacas, e, por fim, os «pequenos tutsi» ou os «tutsi pobres». No entanto, - e com excelentes razões para tal - os Padres debruçam-se constantemente sobre os tutsi do séquito real sobre os quais elaboram um retrato personalístico: intriguistas, cruéis, ambiciosos, falsos, rapioqueiros. São perversos e seguramente um inimigo permanente - os Padres consideram que todos os indivíduos da corte se reconciliariam 4. No que se refere a essa região, baseio-me sobretudo no diário de Save (microfilmes, arquivos da autora).

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de imediato para os maltratar se tivessem condições de se bater contra os europeus. E os hútu? «Nossos pobres negros...»: a seu respeito, não é efectuada uma análise psicológica procedendo-se, ao invés, à aplicação de estereótipos próprios ao racismo corrente da época: supersticiosos, não muito maliciosos, dispostos a empolar todos os rumores, a fugir desesperadamente ao menor ruído de um ataque de guerreiros tutsi. Os Padres também admoestam duramente os primeiros cristãos e os seus catequistas: são deferentes, não provocam os chefes seja por que motivo for pois a rebelião seria «um acontecimento nefasto, para quem conhece a alma negra, tão ávida de independência, que é tanto mais ávida pelo facto de o muhutu ser deveras dependente do chefe=»!

e, quando uma facção procede, por vezes, à pilhagem de algumas das suas cabeças de gado, não os perseguem. Esses episódios são obviamente inimagináveis nas regiões onde nos encontrávamos anteriormente^ À volta de Nyundo, os «bagoyi [hútu do Bugoyi] são peritos no manejamento da lança»; as suas rixas com os tutsi, cujo estabelecimento na região remonta a gerações, não são raros. A última, relatada no diário, traduziu-se em mortos de ambos de lados. Com efeito, a comunicação entre as comunidades é praticamente inexistente, estando cada uma mergulhada no seu próprio modo de produção. Musinga reinicia a mesma operação política e as circunstâncias ser-lhe-ão mais favoráveis. O seu emissário, um certo Rwakadigi, está bem ciente do facto de os representantes da corte nunca terem logrado instituir uma administração que, à semelhança do que sucedia no Centro, fosse vantajosa para os pastores. Jogará todos os seus trunfos. Na condição de enviado da corte, faz-se passar habilmente por protegido dos Padres e dos alemães, aproveitando para saquear Com altos e baixos, consegue, no entanto, manter-se, obrigando, através da suas intrigas, os europeus a acalmar o furor dos bagoyi. O seu triunfo chegará, por fim, graças às agitações suscitadas pela Primeira Guerra Mundial, participando num jogo renhido entre os Padres - são franceses - , os alemães e os belgas. 1 9 1 7 - 1 9 1 8 : os bagoyi vêem-se horrivelmente atingidos pela fome; baixam a guarda. Por conseguinte, os pastores de implantação antiga, recentemente brutalizados, vingam-se, queimam cubatas e colheitas, matam. Em Fevereiro de 1 9 1 8 , após consulta com o comandante belga, o Superior de Nyundo, defende fervorosamente a autonomia do Norte: «[...] esforço-me por lhe mostrar que, relativamente à pretensão de aplicar o sistema do Nduga [o Centro] neste país, se o mututsi desta região for senhor absoluto de todo o país, de todos os gados, acabará com o país. No Nduga, um país de formação mututsi, isso é apropriado, aqui há famílias, clãs com as suas próprias terras; se o mututsi puder removê-los como quiser, isso significará o desapossamento de todos os proprietários, a negação da história do Ruanda [s/c]."»

Em suma, os Padres radicalizam a divisão tutsi-hutu e, quando o rei, por pura maldade, propõe a implantação de protestantes junto deles: «Afirmam o mesmo que vós, diz o rei, sois parecidos. Sim, responde o padre superior, tal como o mututsi e o muhutu são iguais! O que não é do agrado de Musinga''.»

1914-1918: Guerra mundial, guerras ruandesas Corre o ano de 1 9 0 3 e prosseguiremos agora para Norte com vista a acompanhar o padre Dufays que fundaria Rwaza, a missão do Mulera, mas sem nos afastarmos dos Padres que eram responsáveis por Myundo, a missão do Bugoyi. A exaltação é constante entre os balera. Agrupam-se em clãs cuja territorialização é de tal modo vigorosa que nenhum estrangeiro se pode aventurar na região sem incorrer num risco mortal. Sob a autoridade do chefe clânico, verifica-se uma perpetuação da guerra contra os vizinhos, sendo que cada beligerante usufrui do apoio dos seus aliados. Essas descrições ilustram a turbulência do mundo segmentário. Nenhum chefe, delegado pela corte, conseguiu resistir e várias expedições conduzidas por Rwabugiri fracassaram. Musinga espera tirar proveito da implantação da missão para introduzir um dos seus emissários. O seu intuito era o de parlamentar e, quando o emissário juntamente com o seu séquito abandonam o campo dos Padres, os autóctones atiram-lhes com pedras e zombam deles. Mais adiante, um chefe clânico pura e simplesmente não o deixa dar de beber ao seu bando e fá-lo com armas em riste. Eis a situação nas montanhas. Os tutsi habitam na planície dedicando-se exclusivamente aos seus rebanhos, não mantêm qualquer tipo de relação com os balera 5. Diário de Save, 1907, p. 165. 6. Ibid., p. 167.

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Seria injusto descurar os batwa sobre os quais ainda nada se disse, tanto mais pelo facto de se fazerem notar no Norte do Ruanda. À imagem dos grandes dignitários tutsi, um twa, Basebya, organizou um pequeno exército, devidamente treinado e bastante eficaz. Refugia-se num imenso pântano situado no Buberuka cujos habitantes, terrificados, acabaram por fugir. Derrotou os dois exércitos enviados por Musinga e, ao longo de uma dezena de anos, continuou a ditar a lei nessa zona

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7. Dufays Félix [P.),yours troublés, Ixelles, 1928. 8. Diário de Nyundo, p. 224.

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impunemente: os próprios Padres parlamentavam com ele. Em 1912 cometeu o erro de se imiscuir na política e juntou-se à facção do pretendente ao trono. Perdeu a vida apanhado numa emboscada.

Terceira metafísica das etnias: a dos etnólogos À escala africana, o Ruanda era efectivamente um pequeno reino: não mais vasto do que a Bretanha ou a Bélgica. No entanto, séculos de confronto entre pastores e agricultores não conduziram nem à sua fusão nem ao entrelaçamento das suas relações num modo de produção unificador. Nada se sabe acerca dos seus contactos primitivos, mas, aquando da chegada dos europeus, tutsi, hútu e twa mantêm a sua identidade rigorosamente distinta. O desejo de poder dinástico tampouco nivelou os particularismos e o domínio político, cristalizado sob diversas formas, não se articulou num contínuo de variantes locais. Ora, a antropologia do mundo ruandês tradicional, contornando esses tumultos e essas disparidades, descrevê-lo-á unanimemente como um Estado primitivo que alcançara um nível de desenvolvimento bastante elevado, como uma máquina de poder de eficácia superior Um feudalismo, quando o analista privilegia os laços entre homens e associa o rei aos seus súbditos e os pastores aos agricultores, através da multiplicação dessas dependências. Ou ainda, um mundo estruturado em função de lógicas de casta cujo papel positivo - a sublimação dos valores pastorais - encontra o seu negativo nos twa, impregnados de toda a impureza desejável. Um modo de produção assente em protoclasses quando se descobre que um rebanho, no final de contas, pode ser considerado um capital primitivo. Ou, por fim, trata-se de um avatar recente, a preservação meticulosa por parte dos tutsi dos seus cromossomas teria concretizado um protótipo pré-colonial da sociedade multirracial de tendência racista'. 9. A bibliografia dessa antropologia do Ruanda é muito abundante, pelo que não é possível reproduzi-la no presente artigo. Todavia, remeto o leitor para a obra de M. D'Hertefelt, Les Clans du Rwanda ancien fTervuren, Bélgica, 1971) que apresenta uma bibliografia bastante satisfatória. No concernente à última representação esquemática da sociedade tradicional como multirracial, trata-se de: J.C. Desmarais, «Le Rwanda des Anthropologues, l'archéologie de l'idée raciale». Anthropologie et Sociétés, vol. 2, n.^ 1, 1978, pp. 71-93. Após dedicar algumas paginas sobre a transição da sociedade clânica para a sociedade de castas no Ruanda (com algumas cambiantes de natureza feudal} e demonstrar, recorrendo a citações, que havia lido quatro obras densas de Lévi-Strauss, o autor descobre que os tutsi - bons geneticistas no que diz respeito às suas vacas e precursores, sem sabê-lo, dos futuros «arianos» - aplicariam a si próprios os seus métodos de cruzamento até alcançarem um selecção artificial suficientemente satisfatória: eis o motivo pelo qual os tutsi são tão altos! Afigura-se surpreendente o facto de os textos de Lévi-Strauss não serem citados por J.C. Desmarais acerca da noção de raça. Se não os conhecer, recomendamos vivamente a sua leitura.

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Castas, classes, aristocracia, raças... os antropólogos empenharam-se em conferir uma vocação às etnias que, em todo o caso, exige uma homogeneidade que não existia no reino. Ao contrário desse postulado, tanto as minhas investigações no terreno quanto a de outros autores atestavam efectivamente as impressões - em matéria de diversidade e ebulição - patentes nos testemunhos antigos sobre o país. Como tal, perguntei-me como poderia essa antropologia evidenciar um tamanho desconhecimento acerca da realidade que correspondia ao seu objecto de estudo". Porém, com o tempo, acabei por compreender que as descobertas da antropologia prendiam-se com as instituições desenvolvidas após os anos 30. Esse reino firmemente assegurado, essas dependências pessoais generalizadas e presentes em todas as regiões, essas relações tutsi-hútu governadas por um modelo padronizado, nada disso era pura imaginação, tratava-se muito simplesmente de um anacronismo: a Pax belgica foi indevidamente considerada um facto tradicional. Em 1931, os belgas exilaram Musinga e a rainha-mãe que demonstravam ser pouco solícitos na colaboração. Dividido em chefarias e subchefarias, o Ruanda gozou então de uma administração unificada ao passo que, por toda a parte, entrava em vigor o mesmo regime fundiário e pastoral. O discurso da Tutela procurava frisar que essa ordem era análoga à situação antiga, apenas mais modernizada e flexível com intuito de favorecer o progresso, uma tese que não era desmentida pelos tutsi para os quais a reforma se afigurava extremamente vantajosa. Desde 1927, o vicário apostólico aconselhara a Residência nesse sentido. «Se quisermos adoptar um ponto de vista prático e tivermos o verdadeiro interesse do país em vista, a juventude mutusi representa um elemento ímpar de progresso [...]. Se perguntarmos aos bahutu se preferem ser liderados por plebeus ou nobres, a resposta não deixa margem para dúvidas; preferem os batutsi e por razões óbvias. São chefes natos, munidos de um sentido de liderança".» Na esteira dessa instrução que foi ouvida, segue-se um excerto do «Manifesto dos Bahutu», texto canónico da futura república, publicado cinqüenta anos mais tarde, no dia 24 de Março de 1957: «Em que consiste o problema racial nativo? Há quem pergunte se estamos perante um conflito social ou um conflito racial. No nosso entender, isso é literatura... Trata-se acima de tudo de um problema de monopólio político pertencente a uma raça, os mututsi; um monopólio político que, à luz das selecções de facto no ensino, se assume também como um 10. Cahiers d'études africaines, «Le problème de la domination étatique au Rwanda», vol. XIV, n.s 5 3 , 1 9 7 4 . Essa edição especial inclui alguns exemplos das investigações em curso nessa época. 11. De Lacger, Ruanda, Kabgayi, 1959, p. 524.

monopólio cultural, para grande desespero dos bahutu que se vêem condenados à condição de mão-de-obra eternamente subalterna, e mais grave ainda, após uma eventual independência que os próprios ajudarão a conquistar, sem saberem o que estão a fazer^^»

«Etnodiceia» Através da leitura das obras dos etnólogos, é possível constatar que todas elas emanam de uma mesma matriz lógica: a relação ubuhake. Ou seja: um tutsi concedia a um hútu uma cabeça de gado cuja propriedade o próprio mantinha; em compensação, o donatário realizava actividades de cultivo a favor do seu benfeitor de quem esperava igualmente protecção. Além disso, o ubuhake seria praticado em todos os níveis da hierarquia pois vinculava o rei aos mais ilustres, os mais ilustres aos tutsi comuns, e os tutsi aos hútu - apenas nesse último caso, teria implicado extorsão de trabalho. Por fim, esse laço de subordinação explicaria só por si a servitude hútu e os privilégios tutsi. De qualquer modo, estava bastante convicta desse facto quando abordei a investigação de terreno. Convicta a ponto de terem passado meses antes de aceitar pôr ã prova as declarações dos informadores: antes da colonização e durante o primeiro quartel do século XX, se havia doação de gado, essa era efectuada entre tutsi e quando este recompensava um hútu - o que era uma situação excepcional -, o último nunca realizava actividades de cultivo como forma de compensação. Essa doação era sinónimo de amor e honra, negava o interesse em si. Apenas mais tarde, o ubuhake transformou-se efectivamente nesse contrato que, segundo a antropologia, constitui a pedra basilar da sociedade tradicional. Por outro lado, existem documentos escritos suficientes que permitem analisar como essa forma de subordinação se desenvolveu durante a colonização. No caso em apreciação, é possível observar de que modo o imaginário antropológico labora no sentido de destemporalizar uma formação social, fabricando, com base nas suas determinações presentes, um passado mitificado em figuras modelares, as quais se conjugarão facilmente no presente etnográfico. Através desses jogos no tempo, ambas as etnias são doravante descritas como estando vinculadas por esse pacto de ubuhake, uma solução, no final de contas, elegante para um problema social. Elegante na medida em que é económica e a economia da demonstração é importante a partir do momento em que, para os praticantes desses exercícios antropológicos, a sociedade tradicional 12. Os dossiers do CRISP, Rwanda politique,

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1 9 5 8 - 1 9 6 0 , Bruxelas, 1961, p. 23.

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se apresenta como um sistema a inferir. Os tutsi e hútu são assim transformados em substâncias, a sua realidade fica reduzida ã manifestação de uma estrutura de casta, ou a um modelo feudal, consoante os autores. Seja como for, esse modelo do Ruanda pré-colonial será encarado como uma descrição da sociedade concreta. A sua longevidade é surpreendente: não obstante as contestações de uma crítica estribada em tradições nativas e ainda em documentos escritos por europeus, esse nem sempre é descartado. Todavia, não restam dúvidas de que essas belas construções se desmoronam como um castelo de cartas uma vez definida a inexistência do elemento que lhes serve de base - a servidão pastoral - na época às quais dizem respeito. (Muitas outras afirmações revelaram-se igualmente anacrónicas, mas podem ainda ser tidas como questões de pormenor que não infirmam a validade do modelo). Afigura-se difícil reconhecer que um dado mito possa ter sido forjado por investigadores profissionais, tanto mais que as suas bibliografias de referência citam obras como a viagem de Kandt, à qual recorremos anteriormente com o intuito de dar uma ideia da diversidade dos relatos étnicos. Também eles agiram no terreno, ouviram os informadores. Uma atitude epistemológica antiga - conducente à convicção de que uma combinatória de elementos simples produz a própria lógica do real - parece insuficiente para inspirar erros tão absolutos". E, no entanto, permite uma dada distância relativamente ao objecto e engendra necessariamente - aquém das sofisticações próprias do ofício uma capacidade de convicção comparável à boa-fé dos inocentes. Por conseguinte, todos os debates tornam-se possíveis e conjecturáveis, tanto mais pelo facto de detectarem, de forma involuntária ou consciente, cumplicidades autóctones. No caso do ubuhake, o encontro entre um etnólogo pouco propenso à crítica histórica e os interlocutores ruandeses revelou-se especialmente propício para a criação do mito. Por volta dos anos 50, o mundo político mostrava-se obcecado com a servidão pastoral, a qual seria abolida em 1954. Os tutsi - que, em graus diferentes, beneficiaram dela - tendiam a idealizá-la como uma instituição original. É verdade que um código colonial estipulava as modalidades desse contrato, verbalizando-o, à semelhança dos costumes ancestrais. A análise dos registos dos processos defendidos perante diversas jurisdições, assim como das intervenções dos juízes - eram tutsi - ilustra o aperfeiçoamento, de jurisprudência em jurisprudência, das modalidades do ubuhake 13. Finalmente, essa imagem do Ruanda tradicional deveria ser resolutamente colocada no museu dos mitos científicos, onde a sua utilidade residiria, pelo menos, no facto de poder ser estudada para si própria, visando a compreensão do seu próprio desenvolvimento.

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criado entre um hútu e um tutsi, aperfeiçoamento esse iniciado por volta de 1930. Por fim, os líderes hútu denunciavam o ubuhüke como uma instituição multissecular reveladora do maquiavelismo tutsi. Logo, o modelo concebido pela antropologia era consentâneo com a teoria oficial pelo que era repetido, qual dogma, em certas instâncias nomeadamente na Universidade.

Uma questão eternamente armadilhada Em jeito de conclusão, segue-se uma breve história. Um dia, um tutsi conta-me que, após uma leitura cuidada dos antropólogos, constatava que, se não tivesse havido a colonização, o Ruanda teria prosseguido com as suas conquistas até ao mar: «Agora, disporíamos de um porto!». Transmiti essas palavras a um historiador da África Central que lhes achou graça: «Bom, com os seus famosos exércitos, nunca conseguiram acabar com o Bunyabungo!». Com efeito, esse território minúsculo, situado a Oeste do Ruanda, resistiu triunfantemente a todas as iniciativas de anexação. Em suma, o meu interlocutor tutsi sonhava... invocando um imaginário etnológico - também ele um jogo no tempo - que transformou o presente colonizado num passado tradicional. Dado ter sido objecto de políticas com desenlaces violentos, a questão étnica do Ruanda encontra-se necessariamente armadilhada. E até o analista estrangeiro - conforme tive oportunidade de constatar por diversas ocasiões - que preze a objectividade, não se deve imaginar sem partido, caso contrário, adoptará um de forma totalmente inconsciente. Através de uma auto-observação, verifica-se que se tem aludido e reflectido sobre «os tutsi, os hútu...» como se essa designação bastasse por si só - e termina aqui o trabalho de objectivação.

O «separatismo catanguês » Elikia M'Bokolo' A recorrência do que se convencionou chamar de «separatismo catanguês» representa indiscutivelmente uma das constantes primaciais da vida política zairense desde meados da década de 1950, isto é, desde a introdução da concorrência política moderna no então Congo Belga. As suas manifestações mais dramáticas são ilustrativas desse facto: entre 1960 e 1963, uma secessão territorial, pura e simples, resultou na constituição de um Estado independente liderado por Moïse Tshombe, na guerra civil e em sucessivas complicações de foro internacional, na sequência da intervenção das forças militares das Nações Unidas; os anos de 1966 e 1967 foram marcados pela sublevação do antigo exército do Estado separatista (os «gendarmes catangueses»], seguida da revolta dos «Affreux» (os «terríveis» correspondiam aos mercenários europeus incumbidos do enquadramento desses gendarmes] e pelo «caso Tshombe» (um tribunal militar de Kinshasa procede à condenação de Moïse Tshombe, que logo depois devia ser capturado em Espanha e transportado para a Argélia onde seria preso). Esses tumultos contribuíram para a instabilidade do Estado congolês e a descredibilização do novo regime militar instituído em Kinshasa após o golpe de Estado perpetrado pelo Tenente-General Mobutu a 24 de Novembro de 1965; por fim, em 1977 e 1978, autênticos exércitos de «rebeldes» - anteriormente referidos como os antigos «gendarmes catangueses» - realizaram incursões militares vitoriosas no Shaba, os quais, segundo o parecer unânime dos observadores, tiravam partido da conivência activa da massa da população no terreno: sabe-se que o regime mobutista foi salvaguardado pela intervenção de forças militares estrangeiras, mormente francesas. Trata-se efectivamente de uma meada difícil de desenredar, e a evocação desses acontecimentos sublinha-o. Apenas a primeira secessão entre 1960 e 1963 mereceu relatos circunstanciados [J. Gérard-Libois,

*. Uma vez que o Estado zairense impôs a alteração generalizada dos nomes em 1973, optou-se por conservar a designação que, na época em estudo, se atribuía aos indivíduos, aos lugares e às coisas, de molde a evitar equívocos e anacronismos. *. École des hautes études en sciences sociales. Centre d'études africaines.

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1964 e J. Chomé, 1966^], pese embora o facto de se limitarem a destacar a acção dos partidos políticos e dos grupos organizados, descurando assim o papel desempenhado pelo conjunto das forças sociais capazes de uma intervenção pertinente na esfera política. Quanto aos restantes acontecimentos, os relatos são parcos e quando existem são demasiado parciais [CRISP, 1966 e 1967]: dispõe-se apenas de uma infinidade de testemunhos embaraçosos que não merecem o menor crédito. Ora, se os relatos são esparsos, as interpretações abundam. Para alguns, esses acontecimentos atestariam a permanência ou a reaparição das «tribos» do Katanga, elevadas ã categoria de realidades sociológicas e políticas mais significativas do que os bordões sonantes «povo congolês» e «nação zairense» [Tshombe, 1945, p. 40]. Outros aludem ao «separatismo», ao «regionalismo» e até ao «nacionalismo» catanguês sem definir os contornos ideológicos, sem precisar as bases sociais e a substância política. As interpretações mais usuais entremeiam os elementos especificamente catangueses e as interferências exteriores, privilegiando sempre as últimas. Com efeito, de acordo com a segunda perspectiva, pretende-se efectivamente reconhecer a existência de um certo «separatismo», de natureza «tribal», «étnica» ou «regional», para decretar em seguida que os chefes, os cabecilhas e os quadros dos movimentos mencionados anteriormente foram apenas objectos, instrumentos manipulados pelas potências, as forças e os interesses estrangeiros. Curiosamente, essa tese beneficia do apoio de ideólogos e especialistas tanto de esquerda quanto de direita. Segundo essa teoria, os contínuos distúrbios não seriam mais do que as manifestações locais de um vasto conluio internacional urdido, na óptica dos «progressistas», pelo capitalismo mundial (alusão aos acontecimentos dos anos 60] e, na óptica dos conservadores de todos os quadrantes, pelo comunismo internacional (alusão às crises de 1977 e 1978]. Naturalmente, é necessário furoar interpretações menos simplistas. E, neste caso, afigura-se imprescindível recorrer à história: não para encontrar respostas feitas para os problemas do presente ou explicações definitivas para uma série de acontecimentos que apenas partilham o território em que se desenrolam, mas antes para realçar o modo como se proporcionou a formação dos Estados na época pré-colonial e, sobretudo, de uma região durante a colonização, região essa que facultaria, de forma concomitante ou complementar, o quadro territorial de referência aos movimentos e às perturbações que eclodiram nas três décadas seguintes; e ainda para assinalar a emergência e a constituição de forças sociais antagonistas que se assumem como os verdadeiros actores

da cena política catanguesa. Urge atentar nas noções de Estado, região, forças e classes sociais em detrimento de outros conceitos demasiado vagos e fugidios, como os de tribo e inclusivamente de etnia. Trata-se de apurar de que forma a consciência étnica e o sentimento regionalista podem servir de base para ideologias e interesses sucessivos e profundamente diferentes num contexto de crise prolongada - a crise do regime colonial e, em seguida, a crise do Estado congolês e zairense independente - por outras palavras, de que forma podem ambos ser mobilizados pelas forças sociais antagonistas para um combate de natureza política cujo desafio reside na tomada ou na manutenção do poder de Estado.

Etnias, Estados, região: a longa duração Em primeiro lugar, importa dilapidar um determinado conjunto de mitos extremamente arraigados, desde logo o «mito lunda» que assimila o «catanguês» ao lunda com uma facilidade espantosa; porém, o «mito lunda» não é senão uma variante - indubitavelmente a mais disseminada pois inúmeras personalidades catanguesas afirmaram ser da «etnia lunda» - do parecer segundo o qual a efervescência dessa região emana da permanência, da reaparição, da irredutibilidade das etnias catanguesas. Quais etnias? A etnografia colonial belga, extremamente preocupada em classificar os «nativos» atribuindo designações e rótulos, manifestou um extremo interesse pelo Katanga, conhecido como a província mais rica da colónia, e com justiça. O texto mais importante dessa abordagem corresponde à célebre Carte ethnique du Congo, Quart sud-est, dada à estampa apenas em 1961 mas alicerçada em informações que remontam ao interregno entre as duas guerras, e em inquéritos directos sobre o período imediatamente posterior à guerra [O. Boone, 1961]. A autora identifica 55 grupos que apresenta como realidades duradouras ou mesmo permanentes: com efeito, essa distinção baseia-se em dados históricos que se estendem alegadamente até à quarta ou quinta geração. Esse projecto caracteriza-se, em primeiro lugar, pela sua perfeita consonância com as preocupações e as práticas administrativas do Estado colonial. Recorde-se que, em 1933, um decreto importante (alterado apenas em 1957] ditara uma reorganização profunda das estruturas políticas africanas através da criação de «sectores» na sua maioria decorrentes do reagrupamento autoritário de circunscrições nativas enfraquecidas, além das «chefarias» e «sub-chefarias» consideradas tradicionais e específicas. O referido decreto serviu de incentivo

1. As referências entre parênteses rectos remetem para a bibliografia no final do artigo.

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aos estudos etnográficos: por exemplo, a mais importante revista de reflexão e doutrina etno-colonial, a Bulletin des juridictions indigènes etdu droit coutumier congolais, inaugurou uma nova rubrica em 1935, intitulada «Instituições políticas nativas» cujo objectivo consistia em descrever a organização política nos vários agrupamentos nativos da colónia. Ora, é surpreendente verificar que, pura e simplesmente, Olga Boone recupera - como quadro de referência dos grupos identificados - as unidades administrativas coloniais, as chefarias e os sectores, tal como existiam em 1948-1949, período em que termina a sua investigação: sabe-se que, nessa altura, as divisões sucessivas efectuadas pelas autoridades coloniais, visando a agregação ou a fragmentação das circunscrições africanas, haviam contribuído para um enrijamento das fronteiras e um empolamento das diferenças [Bustin, 1975, pp. 65-158]. O que explica as incertezas conceptuais sobre as quais assenta essa classificação: a autora utiliza simultaneamente quatro a seis noções distintas: «povo», que origina, por vezes, um «grande povo»; «tribo», que se decompõe amiúde em «pequena tribo» e em «subtribo»; e, por fim, «etnia». Nesse sentido, parece que, do próprio ponto de vista dos critérios da autora, os 55 grupos identificados correspondem a realidades objectivas (dimensão, organização) e subjectivas (coesão, consciência histórica) bastante heterogéneas. Ora, essas distinções, por menos significativas que se afigurem, conhecem uma posteridade incrivelmente dinâmica no Zaire actual e são retomadas tal qual - de algum modo, firmadas e estampilhadas com o selo da autenticidade

Cada um dos nove grupos principais é então dividido num número variável de subgrupos. A nível dos subgrupos, é, por fim, possível detectar um número de unidades próximo daquele que fora avançado na Carte ethnique. A originalidade de Introduction reside noutro aspecto, mais precisamente na sua dimensão dupla. Em primeiro lugar, representa um esforço de datação: os nove grupos recenseados no espaço catanguês pertencem aos «250 povos - talvez mais - que habitavam no Congo por volta de 1900» (Vansina 1966, p. 5]. De facto, a história é invocada para ser abandonada logo em seguida: o período histórico de referência seleccionado constitui o terminas ad quem - término estipulado arbitrariamente - de um longo processo de mutações lentas ou aceleradas cuja dinâmica e cujas características se encontram escamoteadas; tudo se processa ainda como se esses grupos referenciados por volta de 1900 fossem estáticos e imóveis, tendo preservado a sua constituição apesar das violências e das acções do Estado colonial. Além disso, Introduction evidencia uma tentativa interessante de conceptualização que, infelizmente, sai gorada. A obra estriba-se em três conceitos novos: cultura, povo e região. Os grupos repertoriados são designados, consoante o caso, de «grupos culturais» ou «povos»: ou seja, referem-se a realidades muito heterogéneas. A «cultura» é aqui entendida como «o modo de viver de um povo», sendo as diferenças entre as culturas produto do ambiente geográfico e da história: constitui um objecto forjado pelo etnólogo. O povo, pelo contrário, define-se de várias formas: ora corresponde a um Estado, ora a uma comunidade histórica que partilha uma mesma origem, ou ainda a um grupo que se define enquanto tal mas é visto de outra forma pelos seus vizinhos; esse conceito seria então propínquo ao de «nação», tal como é entendido na Europa. No atinente à região, Introduction avança com uma definição implícita quer segundo critérios estritamente relacionados com a geografia física (as regiões de Kasai-Katanga e TanganicaAlto-Katanga), quer segundo critérios puramente culturais: por conseguinte, verifica-se um descuramento em relação ao conjunto dos factos económicos e políticos, porventura, mais determinantes na organização, estruturação ou polarização de uma região^

- por inúmeros intelectuais da região, sejam eles meros ideólogos, historiadores amadores ou etnólogos de ocasião - trata-se de um aspecto que será retomado mais á frente. Jan Vansina procurou introduzir alguma clareza nesse imbróglio, mas sem ser totalmente convincente. A sua obra intitulada Introduction á I'ethnographie du Congo identifica, no quadro do Katanga, nove «grupos» principais distribuídos por três «regiões»: a região de KasaiKatanga, com os grupos luba-kasai, songye e luba-katanga; a região lunda, com os «lunda setentrionais», os «lunda meridionais» e um grupo compósito; e, por fim, a região de Tanganica-Alto-Katanga que inclui o «grupo do Alto-Katanga» (sanga, yeke, lemba, etc.), o grupo hemba e o grupo bemba [Vansina, 1966, pp. 161-199]. Trata-se igualmente de um clássico da etnologia da África Central. Sublinhar-se-á, em primeiro lugar, que a obra se situa claramente na continuidade directa dos trabalhos de Olga Boone [Vansina 1966, p. 9]. Nas três regiões repertoriadas, as distinções entre os grupos remetem para os critérios mais heterógenos que privilegiam, consoante os casos, as estruturas politicas, os sistemas de parentela ou os etnónimos atribuídos pelos grupos.

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2. As presentes observações visam obviamente a obra Introduction e não o seu autor cujos juízos sobre essa matéria foram muíJando constantemente. Num texto recente, Jan Vasina observou com pertinência: «Muitas tribos eram inexistentes antes da colonização, sendo forjadas por ela, muito em particular através da atribuição de um rótulo. Antes dessa época, a maioria dos conceitos étnicos eram bastante imprecisos, a menos que correspondessem a comunidades políticas ou mercantis devidamente circunscritas - o que constituía mais a excepção do que a regra. Portanto, o historiador não se podia fiar na «tribo» enquanto unidade histórica. Quase todas as histórias de tribos implicam um anacronismo monumental. Em contrapartida, as histórias de regiões são extremamente escassas.» [Vansina, 1982, p. 6]. Contudo, as análises que figuram em Introduction, retomadas na obra igualmente clássica. Kingdoms of the Savana [Vansina, 1966 b, 20, pp. 70-97,

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A história pré-colonial do Katanga continua por escrever, o que representa uma tarefa penosa pois, de momento, os historiadores estão fortemente dependentes da etnografia colonial a nível dos seus materiais bem como dos conceitos, das hipóteses e das teorias que lhes são subjacentes. Por exemplo, afigura-se óbvio que a prevalência quase exclusiva das unidades «tribais» como objecto de estudo nesse ramo da etnografia constitui um entrave a qualquer síntese cujo quadro corresponde a uma região. Essa história balbuciante aponta, desde logo, para, pelo menos, duas características notáveis em virtude da sua duração. Em primeiro lugar, a permanência espantosa do Katanga enquanto região, não obstante a variação considerável dos princípios organizacionais, dos centros de gravidade e das formas de articulação dessa região, consoante os períodos. Em segundo lugar, a multiplicidade de miscigenações e a constância dos decalques em todos os sentidos, sobre as quais assentam as tentativas - geralmente bem-sucedidas - de «história estrutural», orientadas para a reconstituição de uma civilização comum, um «espaço cultural homogéneo» próprio das populações luba, lunda, bemba e kuba, através de mitos e ritos bastante variegados [L. de Heusch, 1972]. No caso vertente, as ambições serão mais modestas. Tratar-se-á particularmente de identificar e acompanhar os grupos étnicos lançados para o centro das atenções pela actualidade política das três últimas décadas (luba, lunda, yeke, cokwe) e efectuar as rectificações julpdas indispensáveis. Uma das idiossincrasias do separatismo catanguês, sobretudo na sua primeira fase, residiu efectivamente numa exploração sistemática da história - muitas vezes desvirtuada com astúcia - para fins partidários. Não é por acaso que os principais dirigentes políticos desses períodos foram também historiadores amadores'. De acordo com uma dessas surpreendentes alegações, os luba teriam chegado ao Katanga como «invasores»: devido a uma habilidosa meada, a incerteza paira sobre o momento dessa «invasão», segundo alguns, contemporânea da colonização, segundo outros, sua predecessora. Nada está mais longe da verdade, seja qual for a hipótese apregoada. Enquanto a etimologia e o significado da palavra «luba» sempre foram 155-179, 227-235], tornaram-se uma referência obrigatória para um quadrante da intelligentsia zairense e continuam a servir de inspiração a inúmeros investigadores. 3. Jason Sendwe, assassinado em 1964, escreveu sobre a história dos luba; Godefroid Munongo, ainda no activo, recolheu e publicou as tradições e as narrativas históricas yeke (sobre essas personalidades, cf. infra.) Do lado belga, a Revue congolaise illustrée - uma revista violentamente colonialista - publicou entre 1959 e 1960 inúmeros textos de vulgarização histórica, assinados por representantes eminentes da etnografia colonial, que procuravam explorar politicamente as diferenças étnicas. Por exemplo, na rubrica «Não confundir...» do n.« 10, Outubro de 1960: «Os baluba de Albert Kalondji e os baluba da Balubakat. Os últimos entregam-se frequentemente ao cânhamo» (pp. 7-11].

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objecto de especulações irresolúveis entre os especialistas [Colle, 1913, 1, pp. 45-67, e E. van Avermaet, 1954], o etnónimo, por seu turno, foi confirmado no século XVIII graças aos relatos de viajantes europeus: o seu surgimento e a sua propagação são provavelmente anteriores [Reefe, 1981, p. 8], estando directamente relacionadas com o florescimento do império luba. Todas as tradições orais, validadas por uma série de descobertas arqueológicas, consideram o Katanga o país de origem dos luba, na medida em que situam o ponto de partida da sua expansão e o centro do seu império nas cercanias do lago Boya, não muito distante da actual base militar de Kamina. Os principais heróis fundadores do Estado em questão, formado por volta de 1600, foram Nkongolo, Mbidi Kiluwe e Kalala Ilunga, sendo o último conhecido como fundador do «segundo império luba». A obra-mestra de Verhulpen, missionário, etnógrafo e teórico da política nativa, intitulada Baluba et Balubaisés du Katanga (1936), foi muitas vezes criticada por alongar em demasia as fronteiras desse império [Young, 1977, p. 5]. Ora, trabalhos recentes confirmam que, em finais do século XVIII e inícios do século XIX, o império, na sua dimensão máxima, abarcava a maior parte do Katanga actual [Reefe, 1981, p. 116]". A sua estrutura caracterizava-se por uma maleabilidade considerável porquanto tolerava a coexistência de territórios de dimensões e estatutos muito diferentes (aldeias sagradas no centro do reino, aldeias individuais dotadas de uma administração directa, Estados-clientes) dentro do espaço imperial. Os historiadores dessa zona da África Central, cujo interesse residia sobretudo na história política e actual, negligenciaram o facto de que a concessão do nome e da condição «luba» aos indivíduos e aos agrupamentos - ou a sua adopção pelos mesmos - estavam relacionadas com posições sociais, o exercício de certas funções e o usufruto de determinados privilégios. A estrutura social do império compreendia a aristocracia dos chefes [mulopwe, pl. balopwe], os homens livres, os clientes e os escravos. Os luba foram os primeiros chefes: as tradições históricas oficiais e os mitos de origem engendraram laços de parentela e de solidariedade entre os descendentes reais ou hipotéticos dos heróis fundadores, os chefes locais mais importantes e os sacerdotes, adivinhos e outros detentores de poderes mágicos. O nome «luba» foi igualmente atribuído aos homens livres, em especial pelo intermediário da sociedade secreta dos bambudye incumbido de zelar pela segurança do Estado, de instituir e transmitir as tradições, além de difundir outros valores e formas de ser [Reefe, 1981, pp. 79-103]. Decerto que a cultura contava com a participação dos clientes e dos escravos,

4. De Oeste a Este, desde o rio Lubilash até ao lago Tanganica; de Norte a Sul, desde Maniema até ao actual

Copperbelt. L Os bété: uma criação colonial

OS quais, todavia, continuavam a ser os outros, os estrangeiros do interior, de algum modo, adornados com inúmeras alcunhas e providos de nomes próprios que se tornariam etnónimos longevos após a desintegração do império. O que suscitou uma panóplia de contradições cuja articulação - a partir do momento em foram detectadas - provou ser verdadeiramente problemática para a etnografia colonial: uma ampla área cultural luba e múltiplas etnias rivais cuja hostilidade se dirigia sobretudo aos luba; um longo passado em comum e a preocupação de afirmar as suas idiossincrasias, etc. Os lunda, por seu turno, devem grande parte da sua cultura ao império luba. Ainda que a sua estrutura e organização políticas tivessem sido muito diferentes das do seu homólogo luba, o império lunda herdou inúmeros elementos do último, em particular a instituição da realeza sagrada, um vocabulário político-administrativo extremamente relevante que inclui os principais títulos [mulopwe, kilolo, mwadi, mfumu, termos que designam os diferentes tipos de «chefes»] e as qualidades conferidas ao chefe, e, por fim, as técnicas da caça e da guerra: o mito de origem do império lunda atribui a sua fundação a uma mulher estéril de nome Rweej, esposa de Kibinda Ilunga, filho de Kabala Ilunga, fundador do «segundo império luba». Conforme observado por J.-L Vellut, os princípios que regiam a organização do espaço imperial eram tanto de ordem política quanto de ordem económica: o tributo - instituição fundamental do império permitia reunir, na capital, produtos (sal, cobre e sobretudo escravos e marfim] destinados ao comércio atlântico; em compensação, o Mwaant Yaav - imperador - distribuía pelos seus tributários doações compostas essencialmente por bens importados (tecidos, pérolas, produtos de luxo, armas de fogo e pólvora]. A oligarquia política e económica designava-se de Ruund. Ora, o termo «lunda», utilizado exclusivamente no vocabulário político actual, remetia apenas para o império - enquanto elemento separado do seu núcleo - e os indivíduos - enquanto elementos separados da aristocracia que exercia o domínio sobre o Estado [Vellut, 1972, pp. 62-93; Bustin, 1975, VIII-XI e pp. 1-19]. O Katanga assumiu um papel fulcral no império por dois motivos. Em primeiro lugar, albergava o centro sagrado do império e acima de tudo fornecia directa e indirectamente riquezas bastante apreciáveis: moluscos do Oceano Índico, pulseiras e cruzinhas de cobre do Katanga, bem como sal do Tanganica e do Katanga. Assim, o império procurou, e conseguiu, expandir-se nessa direcção, controlando o Sul da província colonial do Katanga e uma parte da Zâmbia. Essa região oriental recém-adquirida foi erigida na qualidade de província autónoma, sujeita à obrigação do tributo e colocada sob

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Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

a autoridade de um Mwata Kazembe. Estendia-se pelo Sul do império luba. No início do século XIX, registou-se uma intensificação do antagonismo entre o Estado luba, então em crise, e o Estado lunda, cuja província de Kazembe atravessara o seu período de maior prosperidade entre 1760 e 1850. A memória desses conflitos - habilmente alimentada - seria uma das componentes do problema catanguês aquando da descolonização. A entrada em cena dos tshokwe e dos yeke bem como a sua chegada ao espaço catanguês foi posterior, remontando à segunda metade do século XIX. O facto de as «tradições históricas» recolhidas actualmente evidenciarem uma propensão para encobrir o carácter tardio dessa intervenção afigura-se sintomático: assim, em Bunkeya, capital dos yéké, circula a informação de que esses teriam alcançado o Katanga em finais do século XVIIP. Os indivíduos pertencentes à categoria tshokwe caracterizam-se pelo seu número relativamente reduzido, que não é proporcional ao seu papel político: 1951, McCulloch estimava que o total da população tshokwe ascendia aos 6 0 0 000 indivíduos, de entre os quais 330 000 viviam em Angola, 35 000 na Rodésia (Zâmbia] e 170 000 no Congo Belga, dos quais 50 000 residiam no Katanga [O. Boone, 1961, p. 240]. A relação entre o número e o peso político era ainda mais dramática no caso dos yeke: por volta de 1950, segundo os autores, o seu número variava entre algumas unidades e cerca de 500. Quer sejam tshokwe ou yeke, trata-se de uma situação comum na África Central e Austral: são grupos em processo de formação, o qual será interrompido pela colonização. À semelhança dos dois casos anteriores, essa constituição está relacionada não só com o desenvolvimento dos Estados mas também com as mutações dos intercâmbios. No atinente aos tshokwe, estes constituíam, por volta de 1830, uma sociedade igualitária composta por caçadores reputados e ferreiros hábeis que habitavam no centro de Angola, perto dos cruzamentos e das rotas do comércio negreiro, ao qual, todavia, não estavam associados. Com o declínio do tráfico, terão oportunidade de assumir uma participação activa enquanto fornecedores de marfim, cera e cauchu em troca de armas de fogo. O esgotamento dos recursos locais a nível da caça e da colheita, a par da manifestação de um potencial destrutivo considerável, contribuiu para movimentos migratórios inevitáveis, em

5. A influência da conjuntura é manifesta, tal como a vontade de manipular as tradições uma vez que os textos de Antoine Munongo, neto e sucessor de Msiri, publicados antes da crise dos anos 50, afirmam claramente uma coisa diferente, situando temporalmente a imigração na segunda metade do século XIX. Consultar, por exemplo, a sua série publicada na revista Lovania: «Quelques souvenirs historiques de Kalasa Mazwiri, père de Msiri e de son Mugulwe Magulu Kunkweshi Hamana» [n.s 2 1 , 1 9 5 1 , pp. 6 4 - 7 1 ; n.» 2 4 , 1 9 5 2 , pp. 22-23 ; n.» 3 5 , 1 9 5 5 , pp. 45-52); «Msiri» (n.s 3 6 , 1 9 5 5 , pp. 65-73).

o «separatismo catanguês»

187

especial rumo ao Norte e ao Leste, e para ingerências directas nos assuntos políticos dos Estados lunda e luba a partir de 1874. O reforço do grupo inicial dos tshokwe assentou na captura, aquisição e assimilação de escravos [Miller, 1970]. Por volta de 1885, os tshokwe tinham conseguido derrubar os antigos Estados sem, no entanto, se munirem de estruturas políticas próprias aquando da partilha do seu novo território entre as potências coloniais. A sua resistência às forças britânicas, belgas e portuguesas terá sido longa enquanto as aristocracias lunda e luba, já em decadência, procuraram tirar partido da nova conjuntura. Os yeke, por seu turno, eram inicialmente traficantes nyamwezi, oriundos da actual Tanzânia, que alcançaram o Katanga - inserido nos domínios do Mwata Kazembe - em condições idênticas às dos tshokwe, isto é, em busca de mercadorias para o comércio do Oceano Índico. Essas preocupações primordiais foram eternizadas pelo seu etnónimo bayeke que significa, nas línguas do país de acolhimento, «os caçadores». O chefe dessas caravanas, conhecido pelo nome de Msiri, logra formar um Estado por volta de 1880, procedendo a diversos decalques em matéria de vocabulário e instituições políticas locais: nesse contexto, os yeke corresponderam tanto aos caçadores imigrados no Katanga quanto aos indivíduos que se juntaram a Msiri com o intuito de formar a aristocracia do novo Estado. Além de atrair a hostilidade das antigas democracias lunda e luba anatematizadas pelo seu próprio surgimento, o Estado yeke foi igualmente palco de sublevações locais suscitadas pela exploração desenfreada das populações e o autoritarismo de Msiri. O seu assassinato e a derrota das suas tropas pelos exércitos coloniais - chegados pouco depois do desmoronamento dos impérios luba e lunda - deixaram no terreno um número considerável de pequenas unidades políticas efectivamente autónomas [M'Bokolo, 1975]. O que justifica a afirmação de Verhulpen: «Aquando da chegada dos europeus ao Katanga, o país atravessava uma situação que, em muito aspectos, era evocativa da conjuntura existente na Europa Ocidental, após a desintegração do império de Carlos Magno e o desaparecimento total de uma autoridade central concreta» [Verhulpen, 1936, p. 403]. Nela reside na íntegra o pensamento colonial que servirá de base para a acção dos belgas no Katanga: em primeiro lugar, a certeza serena de que a ausência de Estados e a desordem pública não tinham que ver com a intrusão colonial; em segundo lugar, o recurso às noções de «povo», «tribo», etc. dada a necessidade de atribuir um nome a esse vazio político: e, por fim, a convicção tranquilizadora de que «civilizar» - uma ambição constante do colonialismo belga - implicaria a tarefa de reconstruir unidades políticas conformes com as novas exigências.

Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

De facto, independentemente daquilo que aconteceu e da política que professou, a colonização belga, sem se dar conta, concretizou uma obra original no Katanga ao construir uma «região». Segundo o testemunho unânime de observadores e especialistas, essa originalidade, numa perspectiva que privilegia as práticas administrativas e os discursos ideológicos às expensas das transformações das estruturas econômicas e sociais, prende-se com o facto de a colonização belga ter antes criado ou suscitado tribos e etnias, o tribalismo e a etnicidade [Young, 1965, pp. 232-272; Coquery-Vidrovitch 1983; Mabika-Kalanda 1959]^ Se a colonização belga foi definitivamente responsável pela constituição do Katanga enquanto região, tal não se deve tanto às fronteiras que definiu, e que se revelariam duradouras, mas sobretudo ao facto de ter procedido à sua transformação profunda num espaço de tempo relativamente curto. Com efeito, a colonização assumiu características próprias: a ocupação tardia do território resultou da acção de empresas capitalistas privadas, ao invés do Estado colonial; o capitalismo colonial floresceu precisamente no Katanga, o que conduziu a uma restruturação completa das forças e dos grupos sociais. Tal como é sabido, a constituição oficial do Estado Independente do Congo (EIC) data do ano de 1885, na seqüência da conferência de Berlim, muito graças à persistência e ao gênio de Leopoldo H, rei dos Belgas. A economia de pilhagem, que se abateu imediatamente sobre o Congo e contribuiu para uma rentabilização da colonização através da exportação em massa de marfim e cauchu, centralizou-se nas regiões ocidentais e florestais da colônia, poupando o Katanga [Gann e Duignan, 1979, pp. 116-140]. Por volta de 1890, o Katanga não dispunha de nenhum agente do EIC: a situação política e econômica ainda correspondia à descrita anteriormente. Nesse sentido, houve todos os motivos para temer as iniciativas de Cecil Rhodes e da British South Africa Company cujo objectivo era o de se apoderar da «terra de ninguém» catanguesa [Slade, 1962, pp. 128-140; Katzenellenbogen, 1973, pp. 8-20; Roberts, 1976, pp. 155-170; Vellut, 1981, pp. 3-8]. O apetite lendário de Leopoldo II foi ainda mais aguçado por boatos insistentes relativos à existência de enormes jazidas de ouro no Katanga [Stengers, 1982]. As tropas do EIC penetraram na região em 1891. Contudo, até 1910, a ocupação efectiva ficará a cargo das grandes empresas: a Companhia do Katanga, criada em 1891, depois o Comitê Especial do Katanga (CSK), fundado em 1900 na seqüência de um acordo celebrado entre o EIC e a Companhia do Katanga. Nos termos desse acordo, o CSK «recebeu delegação [...] para fins do exercício [...] da autoridade 6. Uma excepção tanto mais notável pelo facto de ter sido escrita «a quente» e de adoptar todas as distâncias necessárias em relação aos acontecimentos. Nicolai (1959).

L Os bété: um

do Estado nos territórios do Katanga» [Bulletin officiel de I'EIC, 1900, pp. 167-193). O CSK muniu-se imediatamente de uma força policial, organizada em função do modelo e dos princípios da força pública que operava nas outras regiões do Congo, mas independente da última. Apesar de o Estado deter dois terços das participações do CSK, a direcção efectiva competia aos homens de negócios. A função essencial do CSK consistirá na concessão de direitos às grandes empresas, assegurando a salvaguarda dos interesses belgas. No dia 8 de Dezembro de 1990, uma primeira concessão foi outorgada à Tanganika Concession Ltd [TCL), fundada por financeiros britânicos, com a participação dos interesses belgas [Katzellenbogen, 1973, pp. 21-33]: cabia à TCL proceder às prospecções mineiras, em relação às quais os capitalistas belgas se mostravam relutantes. Essa renúncia, da parte do Estado, à totalidade dos seus direitos soberanos, deixando-os nas mãos de empresas capitalistas, constituía uma situação única no Congo. Além disso, aquando da recuperação do Congo pela Bélgica em 1908, a Carta colonial sublinhou que «o poder executivo só pode delegar o exercício dos seus direitos a pessoas e órgãos constitutivos que lhe estão subordinados hierarquicamente. Todavia, a delegação concedida pelo EIC manter-se-á em vigor até ao dia 1 de janeiro de 1912, salvo se for suspensa por um decreto antes dessa data» [artigo 22.2). Aparentemente, a anomalia desapareceu em 1910, ano em que o Katanga se tornou na primeira província do Congo Belga, dotada de uma ampla autonomia pois o seu vice-governador geral negociava directamente com o governo central sediado em Bruxelas [Bulletin officiel du Congo belge, 1910, pp. 382-389). No entanto, essa alteração jurídica não colocou termo ao domínio do capitalismo sobre o Katanga: por um lado, porque o primeiro vice-governador geral, Emile A.M. Wangermée, ocupara a posição-chave de representante do CSK em África durante quatro anos [Cornet, 1950, pp. 123-126]; por outro lado, porque foi precisamente a partir de 1910, sensivelmente, que as relações capitalistas de produção começaram a abalar a província. Com efeito, os anos entre 1899 e 1904 haviam sido marcados pela sucessão de descobertas relevantes no domínio mineiro, designadamente várias jazidas de cobre, entre as quais se destaca a de Kambove, considerada uma das maiores do mundo, assim como diversas jazidas de estanho e misturas de metais [ouro, platina...). Mesmo no caso de surgirem posteriormente novas descobertas, tornara-se óbvio, desde o início do século, que a província era lucrativa. Em 1906, foram criadas três grandes empresas, duas das quais tinham como objectivo a exploração desses recursos: a Companhia do Caminho-de-ferro do Baixo-Congo a Katanga [BCK) e sobretudo a União Mineira do Alto-Katanga [UMHK)

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Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

controlada pela Companhia do Katanga, a Sociedade Geral da Bélgica e a Tanganika Concessions. Por conta da sua dinâmica particular, a indústria mineira suscitava um processo de reprodução alargada do capitalismo no Katanga. A exploração do cobre teve início no Sudeste [Lubumbashi), transitando para a região central [Likasi e Kolwezi) ao longo dos anos 20'. Paralelamente, o esgotamento dos minérios de alto teor obrigou ao desenvolvimento de técnicas adequadas à exploração de filões de baixo teor [Vellut, 1981, pp. 27-31]. Ademais, os anos 20 foram igualmente marcados pela proliferação de usinas de transformação do minério e de centrais eléctricas. A grande crise económica quebra essa vitalidade, a qual regista uma retoma depois de 1945, graças às condições favoráveis do mercado [uma grande procura verificada nos Estado Unidos por conta da Guerra Fria), à possibilidade de encontrar energia a preços comportáveis no local e a uma mão-de-obra cada vez mais habilitada. Assistiu-se à exploração intensiva do manganês, do zinco e do cobalto, sendo que as empresas constituídas para o efeito estavam sob a alçada directa ou indirecta da UMHK e da Sociedade Geral [Ydewalle, 1960; Mutamba Makombo, 1977, pp. 139158 e tabelas 12-13]. O mesmo sucedia em relação às sociedades que, sem estarem directamente ligadas à economia mineira, beneficiavam desses múltiplos efeitos de contágio [indústria da cerveja, indústria cimenteira, indústrias alimentares). Ora, se o enunciado segundo o qual o Congo Belga era propriedade da Sociedade Geral, que, em 1932, controlava 64,4 % do capital investido na colónia, percentagem essa que, em 1970, alcançou os 75 % [Merlier, 1962, pp. 121-122; Peemans, 1975, p. 183], se afigura pertinente, no caso do Katanga, torna-se ainda mais fundamentado sobretudo depois de a Sociedade Geral ter absorvido, em 1928, os grupos aos quais tinha cedido uma parte do capital da UMHK para a sua fundação. Graças ao florescimento da economia mineira e industrial, o Katanga terá um peso muito significativo apesar de difícil de apurar - no equilíbrio global do Congo". Ora, em termos económicos, o Katanga evidenciava uma maior integração no estrato branco da África Austral do que o Congo. Em primeiro lugar, porque os interesses rodesianos estarão sempre presentes na economia mineira [Chomé, 1966, p. 29], por intermédio da TCL. Em segundo lugar, porque o BCK, não obstante os esforços das autoridades coloniais, desempenhará apenas um papel complementar no escoamento

7. Nomes zairenses: Lubumbashi = Elisabethville, Likasi= Jaciotville. 8. A prociução mineira e transformaciora suplantou rapidamente a produção agrícola, representando 50 % do valor total da produção em 1920 e 62 % em 1939 [Beezy, Peemans, Wautelet, 1981, p. 21]. Em 1947, os cinco principais produtos de exportação, com o cobre e o estanho do Katanga em primeiro lugar, representavam 55 % do total das exportações [Mutamba-Makombo, 1947, p. 140].

o «separatismo catanguês»

187

dos minérios catangueses, os quais passavam por Angola e, sobretudo através das duas Rodésias [Zâmbia e Zimbabwe), pela África do Sul e Moçambique [Katzenellenbogen, 1973], Por fim, porque, entre 1906 e o início dos anos 50, as actividades de concentração e refinação do cobre em condições rentáveis dependiam do carvão rodesiano cuja sociedade de exploração, a Wankie Colliery CO., era, aliás, parcialmente controlada pela UMHK [Vellut, 1981, p. 27], Esse desequilíbrio regional era mais complexo do que poderia parecer ã primeira vista: a nível do Congo, o centro de gravidade económica havia transitado para o Katanga, a partir de 1910; mas a nível do Katanga, esse fixou-se na extremidade sul, sobre uma faixa estreita que representava apenas um terço da província. No plano social, uma das consequências principais dessa nova economia correspondeu ao estabelecimento de um povoamento europeu importante no Katanga. Esses europeus foram apelidados de «colonos» erroneamente. Na verdade, a presença e o êxito do grande capitalismo financeiro e industrial constituíram um entrave significativo ao afluxo de «colonos», em particular de empreendedores agrícolas: a rentabilidade das minas revelou-se claramente superior à das plantações; por outro lado, devido à escassez inicial de mão-de-obra, as empresas mineiras eliminaram qualquer concorrência efectiva no âmbito da procura de força de trabalho. De resto, o ritmo de crescimento desse povoamento europeu acompanha estreitamente o ciclo da economia mineira: uma quase inexistência de europeus antes de 1910, um aumento significativo durante os anos 20, uma contracção acentuada ao longo da década da grande crise, um aumento exponencial após a Segunda Guerra Mundial [ver tabela I). Por conseguinte, constata-se que, em termos socioprofissionais, o grupo dominante corresponde claramente ao dos funcionários das grandes sociedades, sendo que a percentagem de «colonos» estagna em cerca de 8 %. Todavia, sem proceder a uma descrição do perfil profissional, esses europeus manifestavam os reflexos, os comportamentos, as ambições e as atitudes políticas de uma classe homogénea de colonos: uma vontade feroz e um sentimento crescente de enraizamento no país de acolhimento «que não era nada e onde se construiu tudo de raiz»; um autonomismo alérgico e uma suspeita visceral em relação aos «políticos», sobretudo os da metrópole, acusados de serem totalmente alheios aos assuntos da colónia; uma combinação de paternalismo e racismo face aos africanos. Trata-se de um paradoxo passível de ser explicado. Os europeus do Katanga, por si só, representaram até 5 5 % da população branca do Congo [ 1 9 2 6 ) : nas vésperas da independência, perfaziam ainda um terço. A quantidade de europeus era sensivelmente menos significativa

Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

em cada uma das restantes províncias: menos de 30 0 0 0 em Léopoldville, a província com a densidade populacional mais elevada; e quase 7 0 0 0 em Équateur, a província com a densidade populacional mais reduzida [Mutamba-Makombo, 1977, p. 235]. No Katanga, constituíam 2,1 % da população total ao passo que, no Congo, os europeus representavam menos de 1 % da população total. Logo, o Katanga exibe uma percentagem de brancos equivalente à do Quénia ou à da Rodésia do Sul. As fortes relações económicas, a par da intensidade da circulação com a África Austral, contribuíram indubitavelmente para o contágio ideológico a partir do Sul. Por fim, a reivindicação do enraizamento é potenciada pela chegada da maioria desses europeus [mais de dois terços) ao Katanga, após a Segunda Guerra Mundial, numa conjuntura política e social já inflamada. Esse grupo serviria de laboratório para a ideologia regionalista. No que se refere ã parte africana, ter-se-á uma ideia inicial quanto ao tipo e à celeridade das mutações em curso através da leitura da tabela II. Em primeiro lugar, esses números traduzem o crescimento exponencial dos efectivos urbanos [«extra-consuetudinários»): esse crescimento foi bastante mais acentuado do que no resto do Congo. A nível do Congo, a percentagem de citadinos registou um aumento considerável, mas tímido em comparação com o Katanga: 8,8 % em 1938; 14,8 % em 1945; 23,7 % em 1 9 5 5 e 22,7 % em 1 9 5 8 [Merlier, 1962, p. 147]. Tabela I. Os europeus no Katanga

Anos

Total

1919 1926

3 000

1800

7 200

4 900

1929 1931

10 5 0 0 8 500

6 500

1935 1941

5 840 10 1 5 0

1944 1946

12 2 0 0 11 3 5 0

7 860 7 600

1947

14 0 0 0

10 0 0 0

1950 1951

18 350

13 8 0 0

21400

1953 1957

27 5 0 0 34 000

1959

31000

Belgas

Agentes de sociedades

Colonos

Funcionários

Missionários

3 340

1220

460

730

1670 1740 2 043

Fontes: Cornet (1950) para 1919; L. Franck, Le Congo belge, Bruxelas, La Renaissance du Livre, para 1926 e 1929; Deliberações do Conselho de província para os anos subsequentes; Gérard Libois ( 1 9 6 4 ) para 1959.

L Os bété: uma criação colonial

Contudo, importa ter presente que as noções de «consuetudinários» e «extra-consuetudinários» se resumem a categorias intelectuais que correspondem, de resto, a estatutos individuais e colectivos, forjados pelas autoridades coloniais. Foram certamente úteis para as necessidades da administração embora sociologicamente pobres. A título exemplificativo, o número de trabalhadores em ambos os meios registou uma evolução ainda mais interessante; em 1949, havia 184 0 0 0 trabalhadores rurais e 140 0 0 0 trabalhadores urbanos; em 1957, ascendiam, respectivamente, a 195 0 0 0 e 190 000. A composição da população «extra-consuetudinária» revelava uma heterogeneidade significativa. Um inquérito bastante pormenorizado de inícios dos anos 50 permitiu apurar que Elisabethville contava com, pelo menos, seis grupos socioprofissionais importantes: os «trabalhadores administrativos» (18,5 % dos activos), «operários qualificados» (31,2 %), «trabalhadores não especializados» (35,6 %), «empregados» (8,2 %), «comerciantes nativos» (5 %), «artesãos independentes» (1,5 %) [Grévisse, 1951, p. 99]. O grupo mais antigo e, em geral, mais importante corresponde ao dos operários e trabalhadores não especializados em relação aos quais importa frisar as suas características principais.

Até meados dos anos 20, a UMHK recorreu exclusivamente a uma mão-de-obra desqualificada (cabouqueiros, carregadores, etc.), recrutada no local ou em regiões imediatamente vizinhas, e contratada por períodos bastante curtos [Mottoulle, 1950; Perrings, 1979; Vellut, 1981, pp. 30-31]. O desenvolvimento mineiro dos anos 20, a diversificação das indústrias e as restrições tecnológicas impuseram uma política de «estabilização», caracterizada por contratos relativamente extensos (três anos); os trabalhadores eram incentivados a estabelecer-se, juntamente com a sua família, nos campos especialmente adaptados pelas grandes sociedades (UMHK, BCK). O serviço de emprego do Katanga, criado em 1 9 1 0 e transformado no Serviço Central do Trabalho do Katanga em 1927, encarregar-se-á, a par de vários pequenos contratantes, de canalizar a mão-de-obra requerida. A dificuldade residia na fraca densidade populacional do Katanga (2 habitantes por km2) que se mostrava incapaz de satisfazer a procura, pelo que se procedeu á solicitação de mão-de-obra em territórios mais distantes, em particular o Norte do Katanga e Kasai (populações luba e songye). Contudo, parece que a maioria dos trabalhadores continuava a ser oriunda da região mineira e da Rodésia, tanto mais que a UMHK

T a b e l a II. Os a f r i c a n o s n o K a t a n g a Anos

Total

Número

Taxa de crescimento

recorrerá continuadamente á mão-de-obra temporária, sobretudo

Consuetudinários

Extra-consuetudinários

Percentagem Número da população

Taxa de crescimento

Percentagem da população 85,73

durante a recessão dos anos 30. A verdadeira mudança foi colocada em marcha a partir da Segunda Guerra Mundial. Já não bastava es-

14,27

898 949

4-13,58

15,76

908 550

+1,07

84,26

1 108 9 7 5 2 0 8 0 1 2

4-22,39

18,76

900 963

-0,84

81,24

1943

1 117178 223661

-f7,52

20,02

893 517

-0,83

1944

1 1 2 1 1 4 1 239 535

-f7,10

21,37

881 606

-1,35

78,63

engenheiro e apostaram numa política «liberal» em relação aos tra-

1945

1 142 0 1 9 2 4 2 5 3 7

4-1,25

21,24

899 482

+2,03

78,76

balhadores africanos: formação profissional, promoção, aumentos

1946

1 166 678 245 218

+1,11

21,02

921 460

+2,45

78,98

1 2 0 0 280 274 394

+11,90

22,86

925 886

+0,48

77,14

salariais. Esses trabalhadores provinham sobretudo do Norte do Ka-

1947 1948

1 242 234 325 546

+18,64

26,21

916 688

-1

73,79

1949

1 280 779 3 5 1 9 3 2

+8,11

27,48

928 847

+1,33

72,52

observador teceu a seguinte afirmação em 1950: «Paulatinamente, os

1950

1 296 000 368 500

+4,71

28,43

927 500

-0,15

71,57

recrutamentos transformaram-se em verdadeiras migrações que re-

1951

1 3 2 6 000 390 000

+5,83

29,41

936 000

+0,92

70,59

sultaram na implantação progressiva de uma população negra não-

1952

1 3 7 4 000 441 229

+13,14

32,11

932 456

-0,38

67,89

1953

1 4 2 4 000 480 082

+8,81

33,71

943 953

+1,23

66,29

-autóctone no Alto-Katanga, claramente decidida a florescer e fixar-se

1954

1 4 5 6 300 509 327

+6,09

34,97

947 056

+0,33

65,03

1955

1 496 728 536 336

+5,30

35,83

960 392

+1,41

64,17

1956

1 5 6 1 3 4 4 569 312

+6,15

36,46

992 032

+3,29

63,54

de prosperidade e paz na nossa província colonial, é essencial que

1957

1 6 0 9 635 589 722

+3,59

36,64

1 0 1 9 9 1 3 +2,81

63,36

ambos os colonatos, caracterizados pela sua complementaridade, aí

1940

1 048 584 149 635

1941

1 078 506 169 956

1942

Fonte:Conselho de província, Katanga, Relatórios anuais ( 1 9 5 1 - 1 9 5 8 ) .

Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

tabilizar À semelhança da UMHK, todas as empresas manifestavam uma preocupação em reduzir os seus encargos salariais; deixaram progressivamente de contratar europeus de estatuto inferior ao de

tanga e do Kasai [Denis, 1 9 5 6 b; Bustin, 1975, p. 112; Fetter, 1968], Um

definitivamente nessa região. De facto, a par da colonização europeia, assiste-se a uma colonização banta do Alto-Katanga (s/c). Para efeitos

prossigam o seu desenvolvimento de forma harmoniosa» [Toussaint,

L Os bété: uma criação colonial

1 9 5 0 , p. 31]. Além disso, o proletariado operário catanguês compor-

directa» e os da «administração indirecta». Recorde-se simplesmente

tava duas fracções distintas no período da independência. A primeira

que, em termos estritamente políticos, a manipulação dos meios con-

era composta pelos trabalhadores mais antigos, recrutados no Sul

suetudinários se afigura manifesta ao analisar a evolução do número

mineiro, contratados para as tarefas menos exigentes em termos de

de circunscrições nativas [tabela III]: porém, esses números nada di-

qualificação e mal remunerados, os quais viviam na sua maioria nos

zem acerca do trabalho constante de restruturação dessas unidades

campos das empresas, estando sujeitos ao mais retrógrado dos pater-

políticas [divisão, agregação, alteração das fronteiras] nem de inter-

nalismos [Fetter, 1973], à vigilância minuciosa das milícias patronais

venções quotidianas [justiça, fiscalidade, nomeação de chefes]. Além

e ao controlo discreto dos emissários dos «chefes consuetudinários»

disso, chegou-se à conclusão de que esses meios consuetudinários,

nas proximidades. A segunda fracção era uma espécie de «aristocra-

que existiam à sombra e na esfera do capitalismo mineiro e industrial,

cia operária» e incluía essencialmente os trabalhadores oriundos do

foram afectados pelo último de diversas formas [Jewsiewicki, 1 9 7 7 ;

Kasai que viviam livremente na cidade graças aos seus salários mais

Vellut, 1 9 7 7 ] : prestação de força de trabalho, fornecimento - através

avultados. Esse segundo grupo tornar-se-ia rapidamente maioritário.

de culturas obrigatórias - de excedentes agrícolas destinados a garan-

Assim, enquanto, em Elisabethville, o número de africanos nos campos

tir a multiplicação da força de trabalho mineira com menores custos; a

era análogo ao número de africanos na «cidade nativa» entre as duas

partir de 1 9 2 8 , instituição de «zonas económicas» e posteriormente de

guerras [cerca de 11 0 0 0 em 1 9 2 9 e 6 5 0 0 em 1 9 3 4 ] , esse equilíbrio

«zonas agrícolas» - acima das unidades políticas - incumbidas de re-

não se manteve em meados dos anos 50: 92 0 0 0 na «cidade» contra

alizar esses objectivos da melhor forma possível. Além do seu carácter

2 5 0 0 0 no conjunto dos cinco campos [Fetter, 1 9 7 6 , p. 124; Denis, 1 9 5 6

eminentemente artificial, esse universo consuetudinário distingue-se

a, p. 163; Minon, 1 9 5 7 , p. 29]. Essa contradição interna do proletari-

definitivamente pelos seguintes aspectos: em primeiro lugar, uma ar-

ado e, em princípio insusceptível de criar hostilidade, foi explorada de

ticulação estreita com o mundo das minas e das cidades; em segundo

forma inteligente acabando por desencadear um conflito aberto.

lugar, uma crise estrutural, de autoridade e moral prolongada que se

A imagem de permanência e estabilidade que a noção de «consue-

verifica entre os chefes «consuetudinários», uma crise económica que

tudinários» pretendia veicular suscita reservas. Com efeito, desde o

se traduz numa pobreza acentuada devido à estagnação da produtivi-

início [as «Instruções em matéria de "palabres" datam de 1 de Março

dade e, à excepção de um breve período nos anos 20, a uma evolução

de 1 8 8 8 ] , a administração colonial imiscuiu-se em assuntos de ordem

continuamente desfavorável dos termos de troca. A tabela II ilustra

consuetudinária [Demunter, 1 9 7 5 , pp. 53-59, 77-83]. No Katanga, a

não só o dinamismo característico da economia mineira e industrial,

iniciativa de desmantelamento dos Estados em «chefarias» é tomada

mas também a crise das zonas rurais e o êxodo dos elementos mais

espontaneamente [Bustin, 1975, pp. 2 0 - 6 3 ] . Desde 1 9 1 0 , altura em

activos, isto é, dos jovens. Desde finais dos anos 20, um observador

que o Katanga é constituído província, e sobretudo a partir de 1920,

avisado de nome Monsenhor de Clerq identifica nessas zonas, e com

graças à prosperidade económica, a administração colonial, definitiva-

razão, «um mal-estar que não foi directamente provocado pela pre-

mente organizada, compromete-se a expandir o seu império além da

sença do Branco mas é seguramente agravado por ela: esse mal-estar

fronteira e, nessa mesma linha de acção, a definir os meios «consuetu-

instiga os africanos a romper com as tradições e os costumes da sua

dinários» e «tradicionais» através da sua fixação e em função de crité-

responsabilidade» [Clerq, 1 9 3 1 , p. 560]. Nas diferentes conjunturas da

rios de âmbito especificamente colonial. Porém, o Estado colonial não

história catanguesa, os chefes «consuetudinários» não serão manipu-

actuava de forma isolada, tendo igualmente de contemplar a «trindade

lados pelas autoridades coloniais ou das novas «elites africanas»: na

colonial»: o capitalismo financeiro e industrial, a par do influente cor-

condição de grupo e força autónoma, envidarão esforços no sentido de

po missionário liderado pelo omnipresente e incansável M. de Hemp-

inverter a tendência a seu favon

tine; daí as contradições infindáveis que se traduziram num debate de doutrina, bastante simplista, entre os defensores da «administração

Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em Africa

Etnicidade e regionalismo: as conjunturas catanguesas e congolesas

Tabela III. Evolução do n ú m e r o de circunscrições nativas, Katanga e Congo Belga Anos

Províncias Chefarias

do

Conjunto

Catanga

Chefarias

Sectores

do Congo

Belga Sectores

172

2 546

173 173

2 542

1935 1936

193

1

2 067

142

1937

192

2

1629

253

1938

183

1939 1943

182 156

4 5

1 212 1 070

1944 1945

153 146 140

13 14

678 629 594 559

490

506 515 512

476 467

517 516

460

519 509

1933 1934

2 496

1946 1947 1948

139 139

15 16 17 17

1949 1950

138 139

17 17

1951 1952

136 135

18

1953 1954

127 127 127

21 21

116 106

23 27

433 414 402

64

35

343

1955 1956 1957 1958

552 506

18 21

445 440

Mapa 1 - As divisões administrativas do Katanga segundo Bustin ( 1 9 7 5 , p. 9 9 )

57

340 383 496 495 498 505

510 513 518 521 523

Fonte: D e m u n t e r 1 9 7 5 , p. 8 4 , com b a s e nos Relatórios anuais relativos à administração da Colônia do Congo Belga ( 1 9 3 3 - 1 9 5 8 ) .

Legenda: Fronteiras de Estado/Fronteiras de província/Fronteiras de distrito

L Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

Os bété: uma criação colonial

No presente artigo, o conceito de «conjuntura» é entendido segundo a acepção que lhe é conferida pelos politólogos. N. Poulantzas demonstrou de forma notável que a revalorização do conceito de conjuntura enquanto «objecto específico da prática política» e «espaço privilegiado de reflexão sobre a individualidade histórica, sempre singular, de uma dada formação social» pode revelar-se vantajosa para os estudos de história política ou de politologia. [Poulantzas, 1968, pp. 97 e 99]. Mapa 2 - A implantação geográfica das f o r m a ç õ e s políticas, eleições de Maio de 1 9 6 0 , segundo Gérard Libois ( 1 9 6 4 , p. 3 2 8 ]

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Conakal Cailel Balubakat

Conakal

Sdkani

Bslubakal + carteis M.N.C

Lumumba

Conakal + Individueis Individuels, intérêts locaux B

M.N C.

Kalondji

Limite de la province du Nord Katanga (Loi du 11 |uille1 1962)-Smirc»-Ci/.S/?

Legenda: Conakat/ Cartel Balubakat + Conakat/ Balubakat + cartéis/ M.N.C. - Lumumba/ Conakat + Individuais/ Individuais, interesses locais/ M.N.C. - Kalondji Fronteira da província do Norte do Katanga (Lei de 11 de Julho de 1962] - Fonte: C.R.l.S.P.

De acordo com essa acepção, a conjuntura corresponde a um domínio homogêneo, delimitado e articulado pelas práticas - e, em específico, pelas práticas políticas - das classes e das forças sociais, comportando assim múltiplos elementos: em primeiro lugar, «classes diferentes e fracções autônomas que se reflectem no plano político através de efeitos pertinentes, [o que] as caracteriza justamente como forças sociais»; em segundo lugar, «podem constituir forças sociais, as categorias específicas que produzem, num momento concreto, efeitos pertinentes... a nível da prática política, sem, no entanto, serem classes ou fracções de uma classe» [Poulantzas, 1968, p. 99]. Quanto ã questão de apurar se, para o conjunto do Congo, é necessário determinar uma única série de conjunturas válidas ou se, pelo contrário, é possível estabelecer, em paralelo, outras séries de conjunturas válidas para regiões específicas, avançar-se-á com uma resposta sumária e provisória frisando que a manifestação política do modo particular adoptado pelo capitalismo colonial para fins de fabricação do Katanga, assentou, em certos períodos, na existência de conjunturas especificamente catanguesas relativamente autônomas face às conjunturas congolesas. Trata-se precisamente do caso da primeira conjuntura objecto de consideração no presente artigo, e amiúde descurada pelos especialistas cuja preocupação incide em demasia na «crise» congolesa que se tornou notória a partir de 1956. Corresponde sensivelmente ao período entre 1920 e 1955, conhecido como a época áurea da colonização belga cujo traço principal seria uma polarização elementar: de um lado, os europeus que beneficiavam de todos os privilégios materiais e de um poder político pouco contestado; de outro, os africanos, entre os quais somente a pequena burguesia dos «evoluídos» teria alguma actividade política [Young, 1977, p. 3]. Ora, durante esse período, o Katanga exibe um quadro muito mais complexo. O cenário político é ocupado constantemente por duas forças: o proletariado operário e o semi-proletariado das cidades, a par da chefaria rural; os «evoluídos», em contrapartida, assumem uma posição extraordinariamente discreta; por fim, a etnicidade, embora se apresente como princípio de identificação social, nunca constitui a motriz da acção política. Comecemos pelos meios operários que, desde muito cedo - a partir de 1910 -, se organizaram em associações [Fetter, 1974]. Numa época em que as empresas europeias apenas recrutavam trabalhadores migrantes, os quais eram sujeitos a uma exploração desenfreada e viviam em condições de vida precárias, os operários procuravam acima de tudo sobreviver em termos materiais e morais: as associações de então dotadas das suas funções antigas (solidariedade entre os membros, organização de cultos religiosos, coesão e controlo políticos) e de novas o «separatismo catanguês» 187

i86

Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África

funções adaptadas às circunstâncias (preparação de gêneros alimentícios, diversões, oposição absoluta ao cristianismo) - foram pura e simplesmente transferidas das aldeias. O carácter étnico dessas associações era tímido: por exemplo, a mais importante, Butwa, recebia nomes diferentes na maioria das regiões do Katanga. A partir de 1920 em virtude da estabilização da mão-de-obra e do aumento célere do número de operários, assistiu-se a uma multiplicação das associações as quais obedeciam a preocupações de complexidade crescente: a par de associações de base estritamente étnica e com funções bastante limitadas (solidariedade, entretenimento), procedeu-se à formação de associações regionais que recebiam o nome dos bairros onde tinham a sua sede; outras foram aparentemente constituídas pelos antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial na África Oriental, sendo a sua designação, os títulos dos seus responsáveis e os seus ritos um decalque do exército e da administração coloniais. A proliferação desses grupos era motivo de inquietação para a administração colonial que via neles um meio de infiltração das idéias comunistas! A sua primeira reacção traduziu-se num refreamento (despacho de 11 de Fevereiro de 1 9 2 6 relativo às associações nativas) ao qual se seguiu um convite aos missionários para criarem associações rivais. Essa iniciativa, juntamente com a brutalidade da força pública, estão na origem dos graves confrontos entre associações que decorreram entre 1 9 2 7 e 1931. A crise econômica que atingiu violentamente o Katanga entre 1 9 3 0 e 1 9 3 5 ditou o regresso de inúmeros trabalhadores paras as zonas rurais, privando as associações da sua base. Após os «incidentes» de 1 9 3 1 ocorridos nos campos mineiros de Kipushi, a UMHK, com o apoio do governo provincial, quis ir mais longe pelo que procurou sistematicamente «dividir para reinar» (resolução de 20 de Outubro de 1931, citada por J.-L. Vellut 1981, p. 61). Nessa estratégia, todas as armas eram apropriadas: oposição em função das qualificações, do estatuto («estáveis» e «temporários») e, evidentemente, das «raças africanas». A probabilidade de êxito dessa estratégia era reduzida. Durante esse período, o principal acontecimento social e político das regiões mineiras correspondeu à greve de Dezembro de 1 9 4 1 [Perrings, 1979, pp. 2 2 4 - 2 2 9 ; Vellut, 1981, p. 61], a qual, graças a uma solidariedade extraordinária e independentemente das referências étnicas, conseguiu mobilizar os operários qualificados - mais numerosos e mais integrados na UMHK - dos centros mineiros mais relevantes. A greve, que adquiriu proporções bastante violentas (48 mortos, 7 4 feridos a tiro), teve como resultado imediato o recuo da UMHK que concordou precipitadamente em aumentar os salários.

i86 Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismo e Estado e mÁfricao«separatismocatanguês»187

Na zona rural, o colonialismo, uma vez instituído, parece não ter sido alvo de uma resistência activa e directa por parte da massa dos camponeses. Essa atitude é explicável pelo facto de que o êxodo rural, inicialmente obrigatório e depois voluntário, rumo aos centros mineiros sugou os elementos mais jovens e lutadores. De qualquer modo, as principais iniciativas emanaram da chefaria, a qual, até aos anos 30, fora inicialmente objecto de uma reorganização de fundo por parte da colonização que estava convicta de que ainda a manipulava, numa altura em que os chefes procuravam participar num jogo político autónomo. Nesse sentido, perante o crescimento exponencial da população urbana (cf. tabela II), a administração colonial envidou esforços no sentido de modelar directamente o mundo rural através da introdução do sistema de campesinatos nativos durante os anos 40. Trata-se de um sistema escorado no desenvolvimento de culturas comerciais, em especial o algodão, o qual foi estabelecido, aparentemente, sem grande dificuldade no Katanga [Bustin, 1975, p. 161]. Para alcançar esse resultado, a administração recorreu frequentemente, no país lunda, ao Mwaant Yaav cujo prestígio procurou reforçar através de privilégios materiais e políticos (viagens inteligentemente exploradas na Bélgica, concessão de uma sede no conselho de governo e no conselho de província, etc.). O Mwaant Yaav Ditende - o beneficiário dessas vantagens - fora eleito em 1 9 5 1 com o apoio dos belgas. Serviu-se constantemente desse sustentáculo com o intuito de se desembaraçar de linhagens concorrentes e de afirmar a sua autoridade pessoal tanto na corte imperial de Musuumb - onde havia uma propensão para a intriga - quanto junto dos pequenos chefes locais, dos chefes lunda da Rodésia do Norte (Zâmbia) e de Angola, os quais conseguiu trazer até Musuumb para lhe prestarem homenagem. Até meados dos anos 50, essa política em nada traduzia uma vontade, ainda que nebulosa, de restaurar a unidade dos lunda, reconstituir o seu império e eventualmente edificar um «Estado nacional» autónomo'. A estratégia bipolar de Mwaant Yaav era simples: apoiar-se nos belgas para recuperar de um prestígio denegrido e de uma autoridade precária junto dos lunda;

9 Trata-se de uma diferença clara em relação aos congo: na mesma época, a Abako (Associação dos bacongo, criada em 1 9 5 0 ] alicerçava-se numa unidade cultural e lingüística, assim como numa história comum (o reino do Congo], ambas fortemente valorizadas, para primeiro sugerir a possibilidade e depois reivindicar a constituição de um «Estado nacional» Congo. Essa diferença advém, pelo menos, de dois factores; 1) o antigo reino do Congo alcançara uma unidade cultural desenvolvida de forma inigualável no império lunda que privilegiou a mtegraçao política e econômica de um espaço pluriétnico; 2) liderado pela pequena burguesia, o movimento congo conseguiu mobilizar sem dificuldade todas as classes e categorias da sociedade congo, sendo o seu dinamismo potenciado pelo facto de se apresentar como o expoente máximo da reacçao contra a colonização; a política dos chefes lunda, pelo contrário, inscrevia-se na lógica da colonização.

valer-se desse poder para obter um acréscimo de vantagens junto dos belgas. Graças a essa estratégia habilidosa, o Mw^aant Yaav tornar-se-á, no espaço de alguns anos, o «chefe consuetudinário» mais poderoso em termos políticos no Congo. Porventura consequência da sua imbricação inextricável com os lunda, os tshokw^e também deram mostras de uma agitação política constante. Desde o início da década de 1920, os chefes tshokw^e exigiram um tratamento independente e em pé de igualdade face aos chefes lunda. Em 1923, o acordo de Kapanga colocou sob a alçada de quatro chefes tshokw^e territórios conquistados aos lunda. Porém, esses territórios eram demasiado reduzidos para alojar os tshokw^e no seu todo, sendo que a maioria continuava a residir nas circunscrições administradas pelos chefes lunda. A população das quatro chefarias evidenciava um dinamismo demográfico que proporcionou um novo problema, o problema fundiário, e agravou as relações entre os tshokw^e, os lunda e a administração colonial. Até 1960, a última revelou incapacidade e, sem dúvida, pouco interesse para encontrar as respectivas soluções. A acção dos restantes grupos sociais é mais difícil de definir. Apesar de se conhecer bem as figuras mais importantes do grupo dos «evoluídos», não se dispõe de nenhum dado relativamente ao seu número no Katanga. Durante os anos 30, muitos se encontravam nas duas associações independentes dos europeus, o Tonga Special Committee e a Association franco-belge (s7c], cuja vida não foi de todo facilitada pelas autoridades coloniais. Com base na experiência adquirida com os operários, os missionários criaram uma associação rival, a Cercle Saint-Benoît que, ao contrário da evolução que se operava nas outras cidades do Congo, confinou a pequena burguesia negra do Katanga num paternalismo cerrado e num apolitismo retrógrado até meados da década de 1950'°. Proveniente da África Central britânica, o movimento sincrético Kitaw^ala surgiu em Elisabethville no ano de 1931, após a sua passagem pela região dos camponeses congoleses do vale do Luapula [Fetter, 1974, p. 218]: parece ter tido ressonância, antes de mais, junto dos trabalhadores originários das colónias britânicas. Com efeito, por iniciativa dessas categorias intermediárias, o movimento mais importante ocorreu no mês de Fevereiro de 1 9 4 4 em Elisabethville, Jadotville e Kamina (Elisabethville, Conselho de província, 1944, pp. 7 1 - 8 8 ] . Pese embora o facto de esses incidentes terem coincidido com o motim da guarnição militar de Luluabourg, 10. Consultar a edição especial do Bulletin du CEPSl, «Alguns dos nossos problemas familiares e sociais», elaborado pelos «Membros do Cercle Saint-Benoît de Elisabethville» (n.s 17, 1951): todos os lugares-comuns do colonialismo encontram-se assimilados por esses intelectuais. Ao mesmo tempo, a mais moderada Voix du Congolais, publicada em Léopoldville, já testemunhava a dissidência ideológica dos «evoluídos» do Congo em relação ao colonialismo.

Jean-Loup Amselle e Ellkla M'Bokolo (Coord.)

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não é certo que os dois movimentos estejam directamente relacionados. Elisabethville foi o foco dos tumultos catangueses, os quais foram instigados por trabalhadores «envenenados pela leitura de uma determinada imprensa local e espicaçados pelo exemplo dos brancos» e por sargentos da força pública: segundo as informações da polícia colonial, «o movimento visava os europeus..., os sargentos gabavam-se de possuir armas [...], os subalternos nativos da força pública haviam agendado um dia para derrubar os oficiais». A administração tomou medidas no sentido de neutralizar os cabecilhas, requisitando os europeus e munindo-os de armas, enquanto o Mw^aant Yaav reunia os seus guerreiros com vista a bloquear a estrada aos rebeldes de Luluabourg que fugiam para o Katanga. Na sequência desse «grande temor», a administração colonial assumiu como sua a estratégia adoptada pela UMHK desde 1 9 3 1 : manipular os africanos («é necessário autorizar a formação de determinadas associações quando são solicitadas, mas sob condição expressa de serem lideradas por nós e vigiadas de perto»], dividi-los em função das profissões ou, preferencialmente, «da raça (s;c], fórmula que anteriormente foi bem-sucedida». Ausente do panorama político durante essa primeira fase, o factor étnico e regionalista tornar-se-ia preponderante na conjuntura de 1 9 5 6 a 1963. Essa segunda conjuntura - amiúde anaUsada num quadro de crise [Ilunga, 1965] - corresponde igualmente à entrada em cena da pequena burguesia congolesa, e em especial da catanguesa, na qualidade de força social que aspira a uma hegemonia política. De entre as circunstâncias que presidiram ao surgimento dessas duas novidades - o factor étnico e a pequena burguesa - três revestiram-se de uma importância acentuada, designadamente a crise económica que assolou o Congo a partir de 1957, as reformas políticas impostas pelo colonialismo e o desfasamento ideológico e político entre a capital do Congo e o Katanga. A crise económica, provocada essencialmente pela derrocada das cotações mundiais dos metais não-ferrosos, fez-se sentir violentamente no Katanga onde as indústrias transformadoras ainda não estavam suficientemente desenvolvidas. Do ponto de vista político, a sua principal consequência consistiu num aumento dramático do desemprego em Kolw^ezi, Jadotville, Elisabethville e nos centros mineiros secundários. Em Elisabethville, o número de africanos empregados diminuiu de cerca 4 5 9 0 0 em 1956, para 37 650 em 1 9 5 9 [Bustin, 1975, p. 182]: a percentagem de desempregados, que, antes da crise, se mantinha nos 4,8 %, aumentou para 13,6 % dos activos, segundo os dados oficiais, e para 20 %, segundo outros cálculos [Benoît, 1961, p. 54]. A partir

L Os bété: uma criação colonial

de 1957, o conselho provincial estimou o número de «bocas tornadas inúteis» em 30 000, o qual aumentaria mais tarde. No desfecho da colonização, o desemprego, no Katanga, correspondeu ao «problema fulcral do momento» [Conselho de província, 1958, p. 22]. A solução tradicional do governo colonial, assente na «repatriação para as suas cidades natais» dos trabalhadores que se tornaram inúteis, revelou-se perigosa: os interessados não eram os únicos rebeldes, pois também aqueles que regressavam, de forma voluntária ou forçada, eram susceptíveis de contaminar as massas rurais, consideradas puras, caladas e inertes, com as ideias de contestação e liberdade cuja difusão entre os operários era ilustrada pela agitação constante das cidades mineiras. Assim, a sua manutenção quer nos centros mineiros através da sua reconversão profissional (boys, artesãos, operários de grandes obras públicas), quer nas periferias imediatas das cidades como agricultores temporários constituiu uma medida de resignação. Esses desempregados representariam uma força disponível para todos os novos partidos políticos da província cuja disponibilidade para a acção seria potenciada pelo facto de ser vítima da conjuntura económica. Ora, as empresas desenvencilham-se dos operários recrutados mais recentemente e, por isso, ainda pouco adaptados ao trabalho industrial - «trabalhadores medíocres, sequiosos de fins-de-semana prolongados... os menos disciplinados dos homens» [Conselho de província, 1958, p. 23]. Tratava-se sobretudo de indivíduos recrutados nas zonas rurais do Katanga: por exemplo, em Elisabethville, 62 % dos postos de trabalhos perdidos pertenciam a naturais das zonas rurais do Katanga, sendo que os mesmos representavam apenas 40 % dos activos [Bustin, 1975, p. 272, n. 67]. Mostraram-se naturalmente mais sensíveis aos sloganes que exaltavam os «catangueses autênticos». No plano político propriamente dito, após longas décadas de imobilismo, o governo belga decidiu, em plena crise económica, iniciar os congoleses na democracia com prudência, organizando, com esse intuito, eleições municipais em 1957. Além da capital, as duas outras cidades seleccionadas eram catanguesas: Elisabethville e Jadotville. As consequências dessas eleições tiveram um carácter longevo devido à importância conferida aos factores étnicos. Com efeito, o governo colonial, mostrando alguma astúcia, evitou a organização de eleições a nível das cidades e impôs os municípios africanos como quadro da disputa. Logo, os africanos estariam a concorrer entre si e não a travar uma batalha contra a colonização. Os partidos políticos continuavam a ser proibidos, o que se afigura um facto significativo. Como tal, as diversas associações étnicas foram investidas de um novo papel directamente inserido na esfera política. Em Elisabethville, as referidas

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eleições deram a vitória aos candidatos mais bem organizados: os quatro autarcas eleitos eram originários da província do Kasai. O debate político acerca do futuro do Congo, embargado até meados da década de 1950 pelo colonialismo belga, é subitamente aberto em 1956 quando um programa de emancipação, de resto muito moderado (30 anos para levar a cabo a emancipação do Congo!), pubhcado por um universitário belga, suscita uma reacção violenta por parte da opinião culta congolesa que exigia, de forma dispersa, que a emancipação se processasse em prazos mais curtos e num espírito isento de paternalismos [Mutamba-Makombo, 1977, pp. 393-394]. Foi com assombro que se constatou então, em Elisabethville, o desfasamento colossal entre a capital política da colónia e o Katanga. Até cerca de 1963-1964, Lépodolville será considerada em Katanga como o bastião de um radicalismo político perigoso; o activismo autonomista e separatista da ABAKO (Associação dos bacongo), o anticolonialismo reputado como comunista e o nacionalismo centralizador do MNC (Movimento Nacional Congolês de Patrice Lumumba) eram inseridos a esmo nessa aglomeração de ideologias subversivas, assim como as tendências espontaneamente revolucionárias dos trabalhadores de Kinshasa, após a revolta popular de Janeiro de 1959. Nas suas Mémoires, Moïse Tshombe evoca esse período ao mencionar «o abismo psicológico entre a capital e as províncias», prosseguindo: «Dois mil quilómetros separavam Léopoldville do Katanga, o que corresponde sensivelmente à distância entre Paris e Moscovo (s/c)! Foi então que me apercebi de que se tratava claramente de países diferentes» [Tshombe, 1975, p. 35]. O testemunho foi forjado mais tarde. De facto, antes de ser identificado pelos africanos do Katanga para os quais esse desfasamento deveria ser motivo de preocupação, o mesmo constituiu durante largos anos a obsessão dos europeus da província: tradicionalmente contra a centralização almejada pela capital, lançaram doravante as culpas para «o bando de tolos [que] começaram a instigar as pessoas» perturbando através de «inépcias» uma colónia «dotada de uma existência feliz e próspera sem política» (Chômé, 1966, pp. 50-51). Todavia, tiveram de participar adequadamente no jogo político. Numa primeira abordagem, os reagrupamentos políticos constituídos na altura dão a impressão de terem sido formados sobre uma base étnica ou pluriétnica. Aquando da independência, duas coligações repartiam quase por igual os votos populares após as eleições de Maio de 1 9 6 0 (ver mapa 2) [Verhaegen e Béthune, 1965, pp. 2 6 6 - 2 6 8 ; e Gérard-Libois, 1964, 60, pp. 80-95]. O Cartel catanguês conquistara 7 dos 16 assentos da Câmara disponíveis no Katanga e 23 dos 60 na Assembleia provincial, reunindo a Balubakat (Associação dos baluba do Norte do Katanga), a ATCAR

(Associação dos tshokwe do Congo, de Angola e da Rodésia] e a Fedeka (Federação das Associações Tribais do Kasai]; criada em 1956, a Balubakat fora a primeira associação de monta constituída no Katanga após a Segunda Guerra Mundial; à semelhança da Fedeka, apelava sobretudo ao meio urbano; a ATCAR, igualmente fundada em meio urbano no final de 1956, procurou, pelo contrário, mobilizar as populações rurais desde o início do ano seguinte: o problema fundiário e as relações de conflito instauradas com as chefarias lunda mencionadas anteriormente contribuíram para a implantação precoce da ATCAR na esfera rural. Quanto à terceira coligação, a Conakat (Confederação das associações tribais do Katanga], detinha 8 dos 16 assentos da Câmara e 25 dos 60 assentos da Assembleia territorial. Constituída tardiamente (Outubro de 1 9 5 8 ] e juntando-se ao comboio do jogo político em marcha, reunia diversas associações tribais do Sul do Katanga: os seus principais apoiantes eram a chefaria e o campesinato lunda e yeke; contou igualmente com a adesão do Union catanguês: partido dos colonos europeus, com entre 500 a 6 0 0 membros activos, o UK era a emanação política do Union dos colonos do Katanga [Gérard-Libois, 1964, pp. 96-101]. Naturalmente, essas siglas e filiações não são suficientes para descrever a natureza dessas forças políticas. Por detrás da sua aparência étnica, ambas as coligações políticas do Katanga veiculavam uma ideologia muito mais intricada. O Cartel catanguês era liderado pela pequena burguesia intelectual e assalariada das cidades; recrutava os seus simpatizantes entre os meios de operários naturais do Kasai, os jovens proletarizados e semi-proletarizados dos meios urbanos, apoiando-se secundariamente nos camponeses do Norte do Katanga e nas chefarias tshokwe. O seu principal elemento constitutivo, a Balubakat, aproximava-se inicialmente da Conakat, da qual se separou violentamente em seguida para formar uma coligação rival, devido à sua discordância com os seus laços demasiados estreitos com os europeus e com a sua propaganda contra os congoleses estrangeiros na província. Alguns dos seus membros quase se deixaram aliciar pela ideologia particularista e híper-étnica de Albert Kalondji que desenvolvia então uma mística pan-luba do Kasai. À semelhança dos restantes grupos do Cartel, a maioria partilhava a ideologia nacionalista, anticolonialista e unitária incarnada por Lumumba. No contexto catanguês, não se limitavam apenas a rejeitar o separatismo e o federalismo, tendo sido igualmente os primeiros a manifestar preocupação face às tendências racistas dos europeus do Katanga; desde 1958, frisavam numa declaração solene: «Segundo a opinião negra, em nome da qual [nós] falamos, a fórmula do Congo autónomo e federalizado (preconizada pelos

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europeus] representa uma plataforma para a política do apartheid em vigor na África do Sul» [Chômé, 1966, p. 95]. Afigurava-se natural que, no contexto congolês, essa visão global dos desafios políticos se radicalizasse rapidamente; após a eliminação física de Lumumba, a ala esquerda do Cartel começou a adoptar posições revolucionárias, liderando a rebelião de 1 9 6 4 que inflamará o Norte do Katanga. A base social da Conakrat revela-se bastante distinta da do Cartel. Embora os seus líderes também pertencessem à pequena burguesia, o peso dos assalariados era fortemente contrabalançado pelo dos representantes das «classes médias» independentes, compostas sobretudo por comerciantes. Por outro lado, essa pequena burguesia teve um cuidado especial em definir-se através das suas raízes na chefaria consuetudinária ainda influente no Sul do Katanga: Godefroid Munongo, funcionário do Estado colonial, proclamava-se neto do célebre Msiri e irmão do rei dos yeke: Moïse Tshombe reunia na sua pessoa as novas aptidões intelectuais valorizadas pela situação colonial, a rica herança de uma linhagem de comerciantes e plantadores, e as suas relações familiares com o grande chefe dos lunda de quem era simultaneamente genro e primo [Tshombe, 1975, pp. 11-38]; Mutamba-Makombo, 1977, pp. 1 9 5 - 1 9 9 8 ] . A chefaria consuetudinária não se contentou simplesmente em apoiar a Conakat, alterando de forma substancial as suas directrizes. O facto de a fundação da Conakat (4 de Outubro de 1 9 5 8 ] ter sido ligeiramente anterior à dissolução da Fegebaceka - Federação geral dos luba do Kasai, acusada de estar conluiada com os nacionalistas das Rodésias (10 de Novembro de 1958] - por ordem da administração, manchará de uma forma duradoura a imagem da confederação, identificada por cada um como um instrumento das autoridades coloniais e dos europeus em geral. Com efeito, a Conakat contou com a adesão comprometedora do Union catanguês, o partido ultra dos colonos, adoptando, além disso, o seu vocabulário, os seus sloganes e a sua visão política. Devido à acção dos europeus mais activos - tradicionalmente defensores da descentralização - o termo «catanguês» popularizou-se em meados dos anos 50, sempre anexado a um nome ou a um adjectivo sonante («consciência catanguesa», «pátria catanguesa», «verdadeiros catangueses», etc.]: como tal, remetia exclusivamente para «todos os europeus que haviam decidido escolher esse país como a sua nova pátria» [Chômé, 1966, p. 71]. Essas posições reuniam não as grandes empresas, mas antes as classes médias (advogados, médicos, plantadores e criadores de animais, pequenos industriais]. A aceleração significativa da política congolesa a partir de 1 9 5 6 suscitou simultaneamente um endurecimento e uma flexibilização dessa

conduta": endurecimento pois transitou-se de uma reivindicação da descentralização administrativa para a reivindicação de uma autonomia política inspirada no modelo rodesiano ou no modelo mais antigo dos domínios britânicos; flexibilização na estratégia em relação aos negros. Até cerca de 1955, cingiram-se a uma visão racista das relações entre brancos e negros que remetia explicitamente para a África do Sul: os negros do Katanga apresentavam-se-lhes como uma massa indiferenciada de selvagens e reiteravam que «apenas os europeus tinham conseguido, e conseguiriam, descobrir as riquezas materiais [da província] e colocá-las à disposição da humanidade». Após 1955, uma visão classista começou a impor-se: por «catanguês», entendiam «todos os europeus estabelecidos permanentemente... todos os congoleses naturais do Katanga e todos os africanos de outras províncias que tenham feito definitivamente parte da população catanguesa» [Chomé, 1966, p. 910]. A estratégia dessa nova visão consistia na organização de uma burguesia negra que seria naturalmente solidária com os europeus: «Deixarão de existir diferenças entre raças, havendo apenas, à semelhança dos restantes países do mundo, diferenças entre classes, que permanecem abertas a todos» (Nota do colonato ao ministério das Colónias, 3 de Março de 1955, citada por Gérard-Libois, 1964, p. 21). A Conakat apresentará a sua orientação política somente a partir de Fevereiro de 1959. O termo «catanguês» adquiriu uma acepção restritiva na medida em que a Conakat apenas reconhecia os «catangueses autênticos», ou seja, «catangueses de origem», com exclusão dos «estrangeiros», recrutados pela administração e pelas empresas coloniais. A Conakat declarava-se um «movimento de reacção» contra esses estrangeiros, mostrava-se preocupada com «o seu número crescente», acusava-os de querer «esmagar os cidadãos do país» e opunha-se à sua «estadia definitiva»; essas palavras dirigiam-se em particular aos naturais do Kassai. A influência dos chefes consuetudinários acabou por conferir à Conakrat o seu carácter de movimento conservador e reaccionário, renitente face à reivindicação da independência que era apoiada em todo o Congo, e hostil às regras do jogo político democrático: «A pressa em conquistar a independência é, para nós, incompreensível» (declaração do filho do Mwaant Yaav em Junho de 1959), «se o sufrágio universal é concebível em certas regiões do Congo, o mesmo não se aplica aos lunda que gozavam, desde há vários séculos, de um regime monárquico devidamente constituído em termos hierárquicos» (memorando do Mwaant Yaav, Janeiro de 1959), «com a introdução do sufrágio universal nos meios rurais, a autoridade tradicional fica

11. Os múltiplos textos reproduzidos por J. Chomé são notavelmente esclarecedores acerca dessa evolução [Chomé, 1966, pp. 53-68, 8 7 - 1 1 5 , 1 5 7 - 1 7 5 ] .

Jean-LoupAmselleeElikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos M e a n d r o s d a Etnia. Etnias, tribalismoe E s t a d o e m A f r i c a

totalmente destruída, sendo votada ao desaparecimento» (memorando do rei dos yeke. Fevereiro de 1959). Foi nessa base - convergindo interesses bastante dissonantes - que a Conakrat logrou implantar-se sobretudo nas zonas rurais do Sul do Katanga. Sabe-se que, após uma situação tensa e confusa durante o primeiro semestre de 1 9 6 0 (conflitos interétnicos nos centros urbanos, greves contínuas, tentativas falhadas de secessão nos dias 16 e 28 de Junho), o governo provincial do Katanga - no qual o executivo da Conakrat (oito ministros em onze) ocupavam todos os cargos mais importantes - acabou por declarar a secessão a 11 de Julho de 1960, onze dias após a independência do Congo. O estado separatista manteve-se até 14 de Janeiro de 1963. Conclui-se agora que esse separatismo se radica na própria história da província. Triunfo de um regionalismo suscitado pelo conjunto das práticas coloniais, o Katanga independente representou a vendeta - há muito tempo sonhada - dos «produtores» europeus contra a «oligarquia burocrática» de Léopoldville, das chefarias rurais contra os centros urbanos, dos desempregados contra as classes protegidas, da fracção da pequena burguesia africana que registou uma politização mais tardia contra os veteranos da reflexão e do activismo político-ideológico. Afigura-se inútil imputar a constituição à maquinação diabólica do colonialismo («dividir para reinar»). Tratou-se de uma maquinação, de resto, simplista e, no final de contas, contrária aos interesses estratégicos do colonialismo. As empresas que dominavam o Katanga, dominavam também o resto do Congo; se o Katanga foi capaz de desenvolver uma economia mineira fértil foi à custa de uma divisão das tarefas com as províncias limítrofes. Aparentemente, a UMHK, a Bélgica e as potências ocidentais sustentaram o Estado catanguês: não tanto com o objectivo de contribuir para a sua manutenção, mas sobretudo para se munirem de um instrumento de pressão e chantagem contra Léopoldville. Conforme observado por J. Chomé, «contra Lumumba, era importante jogar a carta da secessão» [Chomé, 1966, p. 409]. Com a eliminação de Lumumba, assassinado no Katanga, e o acesso de uma equipa moderada e pró-ocidental ao governo central do Congo, a reintegração começou a ser alvo de negociação. Obtida em 1963, a mesma foi concluída um ano mais tarde aquando da nomeação do antigo chefe do Estado separatista como Primeiro-ministro do Congo reunificado. A questão das interferências rodesianas é mais difícil de resolver, A partir de Março de 1960, Sir Roy Welensky, Primeiro-ministro da Federação das Rodésias, aludia a contactos com os grupos catangueses «no sentido de uma associação mais estreita». Em Junho do mesmo ano, um porta-voz da Conakat evocou a possibilidade de conversações com a Federação [Gérard-Libois, 1964,

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o a an u

pp. 53-56, 71]. Mais nada se sabe, praticamente. Bastará salientar que essa aproximação foi mais vantajosa, em termos económicos e políticos, para uma federação contestada pelos africanos e descredibilizada no exterior e para os europeus do Katanga, do que para os africanos de todas as categorias, entre os quais os mais avisados - sindicalistas operários e quadros do Cartel - sempre denunciaram o racismo sub-reptício dos «colonos» e as suas referências ao apartheid. Desde 1965, uma nova relação de forças sociais e políticas instalou-se progressivamente no Zaire. Contudo, o particularismo catanguês manteve-se, explodindo ocasionalmente em revoltas violentas ( 1 9 7 7 e 1978). As mais recentes foram interpretadas como sendo o ponto de partida para uma revolução popular De entre as várias questões colocadas por esses acontecimentos, tanto dramáticos quanto desconhecidos, duas merecem um comentário. Como justificar essa permanência? Haverá agora um conteúdo diferente para o regionalismo? O regime zairense actual, depois de ter dissipado todas as tendências centrífugas que ameaçaram a ruptura do Congo, estabeleceu, entre outras tarefas, a de forjar uma «nação zairense». Pelo menos, segundo o discurso oficial. Já se demonstrou noutros contextos que as realidades políticas se revestiam de uma maior complexidade [M'Bokolo, 1978, 1981, 1983]: por um lado, porque a classe no poder manipula intencionalmente a etnicidade, suscitando assim uma dinâmica cujo controlo lhe escapa; por outro, porque o discurso e as práticas adoptadas relativamente ao «Estado nacional» provocam automaticamente, e a todos os níveis, uma reacção contra essa forma específica de Estado. A proliferação dos particularismos étnicos tornou-se uma das principais características do cenário sociopolítico zairense'^ para os quais o Katanga constituía naturalmente um terreno privilegiado devido à sua história singular A forte concentração de operários, o número significativo de jovens escolarizados e semiproletarizados, o reagrupamento em massa dos estudantes, a dimensão da pequena burguesia assalariada, a miséria crescente do campesinato e o descrédito de uma chefaria comprometida pelo fracasso da secessão e pela sua ligação demasiado estreita ao regime actual levaram alguns a acreditar que essas tendências antigas para a dissidência poderiam ser alimentadas através do contributo de uma ideologia socialista. Aparentemente, foi essa a táctica utilizada pela FNLC (Frente nacional para a libertação do Congo), responsável pelos tumultos de 1977 e 1978: uma vez que a tomada revolucionária do poder se afigura impossível a partir da capital, aproveitar-se-á o particularismo catanguês no sentido de constituir 12. Consultar nomeadamente o ensaio de Lumuna Sando, La Question tribale au Zaïre, Bruxelas, África, 1978.

Jean Loup Amselle e Elikia M'Bokolo (Coord.)

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em

frica

nessa região uma «base vermelha» a partir da qual os grupos instruídos encetariam a «libertação» de todo o Zaire. Retomar-se-ia, de facto, a estratégia - pintando-a de encarnado - que permitiria a vitória, à escala nacional, das forças mais conservadoras do Congo entre 1960 e 1963. O debate suscitado pela FNLC mantém-se em aberto não obstante o fracasso do seu empreendimento. No entanto, à luz das considerações expostas, é possível concluir que, enquanto os partidários de alterações radicais não integrarem as forças sociais como motores de uma estratégia revolucionária, os discursos e os cálculos relativos à etnicidade e ao regionalismo não serão mais do que puras especulações e práticas políticas vãs.

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