Pelo cu: políticas anais

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PELO CU

PELO CU P OLÍTICAS ANAIS

J AVIER S ÁEZ S EJO C ARRASCOSA

Copyright © 2016 by Letramento Editor: Gustavo Abreu Tradução: Rafael Leopoldo Revisão da tradução: Leo Gonçalves Revisão do português: Tadeu Sarmento Diagramação LiteraturaBr Editorial Capa: Luis Otávio | Dus Designer

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Sumário

Por uma ética da passividade

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Introdução19 A Injúria do Cu O Caso de Luis Aragonés Extermínio Gay no Iraque Os direitos civis e o cu: O caso da cadeia interesodomia tv

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OS ANAIS DA HISTÓRIA. HISTÓRIA DOS ANAIS De Tebas à Índia: esfinge e tantras Gregos e romanos Sodomia: dos judeus à inquisição

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Cu, sexo e gênero: políticas anais.

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Ativo, passivo, hetero, homo, versátil... 

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A conversão em bicha pelo cu. Um experimento sociológico: A estatística do BEARWWW Somos um Donut: topologia, corpo e analidade Anus is an open scar: a performance de Warbear

89 97 101 103

Prazeres anais: fist, dildos, pênis, cárceres. Genealogia do Dildo Leathers, urso e masculinidade De cárceres e cus

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Psicanálise : o urso freud muda de ambiente. O cu e a aids Homofobia, o corpo da bicha e “seu” cu Para uma prevenção no sentido anal O caso de Esta cartilha vai de bunda O fenômeno do bareback

135 145 145 154 162 166

Conclusão179 Epílogo183 Por Favor, Meu Amo 183 Bibliografia187

Dedicamos este livro à memória de Paco Vidarte

Por uma ética da passividade

A tradução e publicação do livro Pelo cu: políticas anais no Brasil é, antes de mais nada, uma ação política. Em primeiro lugar, coloca-se à disposição um livro vinculado ao que hoje se acostumou denominar de estudos ou Teoria Queer, cujas obras principais ainda carecem de traduções para a língua portuguesa. Apesar disso, a produção brasileira de livros e artigos nos estudos queer é significativa e em franca ascensão. Em segundo lugar, este livro faz uma crítica feroz – profunda e sem perder o humor – a um sistema heterocentrado levando em conta a questão da passividade. O terceiro aspecto consiste no momento desta tradução e publicação. O Brasil é o país latino-americano que mais assassina pessoas LGBT, em especial travestis. Além disso e também por isso, a política brasileira parece, a cada momento, se esquecer das potencialidades de Junho de 2013 e se apresenta com o pior da direita, desde a pompa de uns pondés, aos ruídos de reinaldos azeve-

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dos, a política do ódio dos bolsonaros, até as imposturas dos olavos de carvalho. Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um insulto, o famoso “vai tomar no cu”, além de política, colabora com uma significativa produção de conhecimento que impacta e enfrenta determinados saberes e se filia a outros. Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o ânus como um órgão sexual? Quem tem o poder de determinar quais partes de nossos corpos devem ser considerados como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de excrementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo cu? Perguntas como essas perpassam a leitura do livro e nos levam para produção de uma ética da passividade. Para fazer isso, o livro retira a analidade do campo privado e a coloca no campo social e político e assim gera não somente uma analética, mas toda uma gama de possíveis políticas anais que são extremamente necessárias. Se há tanto preconceito, se há um dispositivo que decide sobre a vida e a morte de determinadas pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possibilidade existencial que fuja do ideal estanque de uma feminilidade e de uma masculinidade de mármore, são necessárias políticas anais que possam esquizofrenizar o que alguns têm o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade, seja apontando-a como sem nenhum fundamento biológico, ou ainda, mostrando-a como uma ficção social, poderia nos tornar menos segregativos, menos fincados a uma ilusão de um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares. Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez com coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diver-

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sos livros, autor de Teoria queer e psicanálise e um dos organizadores de Teoria queer: políticas lesbianas, bichas, trans, mestiças. Já Carrascosa se identifica como um autodidata. Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetória do ativismo queer espanhol. É no trânsito dos saberes da Sociologia, da Filosofia, da Teoria Queer e da Psicanálise que surgem algumas indagações de uma ética da passividade, ou ainda, como preferem os autores, uma analética. Na busca de uma origem a respeito da temática da analidade é sempre possível tentar buscar um ponto primário mais distante. No nosso caso, talvez fosse possível encontrá-lo na poesia, no romance, na pintura, de forma mais contemporânea na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras páginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o livro é dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um belo e radical livro de filosofia e a grande influência dos autores. Encontramo-nos, então, essencialmente, diante de uma abordagem filosófica da analidade e se expormos algumas referências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espantaremos com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou político. Iremos citar aqui apenas três dessas referências: a obra de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado. A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espantoso, pois poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófica, já que se costuma ponderar filosoficamente de forma mais contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o espírito1 etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade 1

Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma irônica e contra-intuitiva, escrevem que somente o espírito é capaz de cagar. Claro que os autores neste momento fazem uma referência a sublimação da analidade, os prazeres anais deveriam

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e seus elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e desconforto com ele. Além disso, em regra, quando pensamos o corpo damos privilégio epistemológico para algumas partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabeça e uma desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, compreendemos que há toda uma arquitetura política do corpo, as partes dignas e as partes indignas, as partes desejáveis e as indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção teórica tendo como temática exclusiva o ânus. Daí podemos apontar a primeira referência filosófica, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da sua obra O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um comentário que gera ecos importantes no tema da analidade e que vai afetar uma gama de autores como, por exemplo, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do campo social, foi o ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capítulo d’O anti-Édipo, intitulado “Selvagens, bárbaros, civilizados”2, parte da obra deleuzo-guattariana que faz uma conexão com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de que o problema do socius não é a troca – como proposto pela ser sublimados em uma sociedade heterocentrada e, por isso, o espírito é anal, o espírito é aquele que defeca. A respeito de grande parte da antropologia deleuzo-guattariana ver, ademais, LEOPOLDO, Rafael. Deleuze & Guattari: critica a psicanálise freudiana. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2015.

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antropologia de Marcel Mauss –, mas marcar os corpos, codificar os fluxos – como proposto pela filosofia de Friedrich Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a Antropologia pela Filosofia3 para afirmar que a máquina territorial primitiva funciona por meio de codificação de fluxos que investe nos órgãos e na marcação dos corpos. Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desinvestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas, centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente, mas desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus objetos parciais para o extensivo com a formação de um eu. Sobre essa criação político-arquitetônica do corpo podemos citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi necessário fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual transformando-o em vínculo social, como foi necessário fechar as terras comuns para assinalar a propriedade privada”4. Hocquenghem, de outra forma, diz que ao descobrir o trabalho como fundamento de valor, a economia política burguesa o fecha imediatamente na forma de propriedade privada dos meios de produção. Freud descobre a libido

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Claro que Deleuze e Guattari também fazem alianças com a Antropologia, mas chamam para o seu ambiente teórico o mais filosófico dos antropólogos: Pierre Clastres.

Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.

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como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na forma de privatização edipiana familiar5.

Guy Hocquenghem lê O anti-Édipo e, por meio dessa leitura, produz a sua obra O desejo homossexual, escrito nos anos 70 e no seio da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR), um espaço que se distanciava do discurso ameno dos gays de uma classe média branca e das feministas liberais. Juntamente com o FHAR estão as bichas, as travestis e uma gama de outros que não se identificavam com o bom feminismo da época. É necessário lembrar que essas fissuras nos movimentos é que vai gerar, nos anos 80/90, a Teoria queer. Hocquenghem, n’O desejo homossexual, está em diálogo com a efervescência política da época, com a psicanálise freudiana e lacaniana, mas, também, como já salientado, recebe uma forte influência deleuzo-guattariana. Hocquenghem faz uma análise acurada da homossexualidade e de como ela foi relacionada a categorias religiosas – crime contra natura –, categorias jurídicas – relação da criminalidade e da homossexualidade –, categorias médicas – a homossexualidade como enfermidade, perversão etc. Mas, além disso, como ela está conexa com o capitalismo e o surgimento da família burguesa. N’O anti-Édipo já havia toda uma crítica ao familismo. Não obstante, o que nos parece interessante em Hocquenghem é que o desejo homossexual (não necessariamente o desejo do homossexual) poderia desestruturar uma sociedade falocrata. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual, 5

Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual. Tradução de Geoffroy Huard de la Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50

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do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se em agressão, em terrorismo machista – a atmosfera sombria do medo – e, de forma mais obscena, no assassinato, na eliminação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam o ânus, ademais, como um dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas. Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização do ânus são capazes de produzir uma reapropriação de determinadas tecnologias de repressão que são reelaboradas de uma forma não heteronormativa. Na filosofia de Preciado, o ânus tem um lugar especial e à maneira militante – e produtora de utopias – de um manifesto encontramos a seguinte afirmação: “os trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma possível revolução contrassexual”6. Para Preciado, o ânus teria três características que o empodera contrassexualmente: Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser me-

Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.

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didos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.7

Esses três elementos podem ser questionados e o são por Javier Sáez e Sejo Carrascosa. No entanto, a potencialidade da analidade foi apontada de forma incisiva para gerar uma compreensão da necessidade de uma epistemologia que perpasse a superfície da pele mas, também, por toda as entranhas e que tenha como mote o final do reto, pois é desse lugar ainda obscuro que surgem as políticas anais e, para os autores de Pelo cu uma analética. Uma ética anal ou uma ética da passividade consiste na própria valorização da posição passiva. E ao lermos Pelo cu sabemos que isso não é pouco. A temática central do livro de Sáez e Carrascosa parece ser o ânus, mas talvez seja a passividade e o ânus se configure apenas como uma forma de passividade, mesmo que ele possa ser, às vezes, muito ativo. Os autores afirmam que em mais de oito países do mundo o sexo anal pode acarretar a morte e em mais de oitenta a prisão perpetua. Ou seja, estamos diante de um dispositivo que decide sobre a vida e a morte das pessoas, diante de um pânico à passividade e a tudo que ela foi vinculada historicamente. Daí que é necessário o orgulho passivo de que nos falam Sáez e Carrascosa, essa analética já apontada por Paco Vidarte em sua Ética bicha, uma ética não mais cerebral (sabemos as mazelas da razão), mas uma ética anal que vai negar o poder, uma política do buraco que cansou da troca desigual dos discursos marcados. 7

Idem, ibidem.

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Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo e não dar nada em troca. A passividade é acompanhada de uma grande recusa a determinadas negociações. Daí o giro histórico da analidade passiva para a analidade ativa e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma real valorização da passividade; um orgulho passivo surgido desse lugar inesperado que agora está novamente no campo social e político. Rafael Leopoldo8 Leandro Colling9

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Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-graduado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É autor do livro Temporadas de abandono e Introdução ao O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea de textos sobre cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil. Correio eletrônico: [email protected].

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Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC), Milton Santos, e professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia. Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus, primeira e única inteiramente dedicada aos estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador dos livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos publicados pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico: [email protected]

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Introdução Esfíncter Eu acho que se meu bom e velho cu durar ainda uns 60 anos já está bom Embora numa operação de fissura na Bolívia tenha sobrevivido ao hospital altiplano – algum sangue, nenhum pólipo, uma hemorroidazinha às vezes ativo, ávido, receptivo a falos, garrafa de coca, vela, cenoura, banana e dedos – Hoje em dia a AIDS o deixa um pouco tímido, mas continua ávido para servir – afora com a merda, dentro o orgásmico amigo encapado – ainda com a musculatura elástica largo e aberto ao gozo sem a menor vergonha Pelo menos mais uns 20 anos quem sabe, gente velha tem problemas em toda parte – pescoços, próstata, estômagos, juntas – espero que o velho buraco continue jovem até morrer, relaxado

15 de março de 1986, 01h00min pm Allen Ginsberg1 1

O poema em português foi traduzido por Leo Gonçalves e publicado originalmente na Revista de Autofagia, número 3 – março – 2009.

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Este é um livro sobre o cu, um livro ao redor do cu, um livro escrito de dentro do cu. Mas não é um livro que procura nenhuma verdade sobre o prazer anal, nem é um manual de autoajuda anal, nem uma aproximação antropológica ou científica sobre sexo anal que ofereça um saber para o consumo de olhares curiosos sobre o “outro”. Não vamos descobrir uma nova tribo para os antropólogos de hoje em dia, nem vamos criar novas taxonomias a serviço de uma sexologia moderna, progressista e até queer. Não é um livro que tem esperança em uma suposta “liberação” sexual pelo cu, ou que exalte o sexo anal como o natural ou o sadio, ou como a panaceia de prazer e da felicidade entre os seres. Não vamos pedir a ninguém que comprometa conosco votos de amor em uma espécie de chakra Muladhara anal que nos levará à iluminação e à paz. Tampouco é um livro de confissões ou narrativas pessoais sobre os nossos cus ou sobre quem esteve ou desejou estar lá.

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Pelo contrário, trata-se de ver o que o cu coloca em jogo. Ver por que o sexo anal provoca tanto desprezo, tanto medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio. E especialmente revelar que esta vigilância de nossos traseiros não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou negro, se é o de uma mulher ou de um homem ou é um/uma trans; se neste ato se é ativo ou passivo; se é um cu penetrado por um dildo, um pênis ou um punho; se o sujeito penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado; se é penetrado com uma camisinha ou sem ela; se é um cu rico ou pobre; católico ou mulçumano. São nestas variáveis que vamos ver desdobrar a polícia do cu; é nessa rede onde o poder se exerce, e onde se constrói o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo. O cu parece muito democrático, todo o mundo tem um. Mas veremos que nem todo mundo pode fazer o que quer com o seu cu. Queremos explorar um órgão ou um lugar que desafia a definição atual do que é o sexo e o genital. Não partimos de uma hipótese repressiva. Seguindo a análise de Foucault na História da Sexualidade, não acreditamos que exista um poder que reprima o prazer ou o sexo, nem sequer, neste caso, no prazer do sexo anal. A penetração anal faz parte do dispositivo da sexualidade há muito tempo; hoje em dia se mostra frequentemente o sexo anal, está em quase todos os filmes pornôs (hetero e gays), nos romances eróticos, nas lojas de jogos sexuais, no pós-pornô, nas consultas sexológicas da televisão e na imprensa; está na arte, na fotografia, na pintura... existem numerosos guias didáticos e vídeos sobre o sexo anal2.

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Para consultar diversos guias e manuais sobre o sexo anal, ver bibliografia.

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Não, o sexo não se reprime ou ao menos não de maneira uniforme. Não existe unidade no dispositivo repressivo. Precisamente, o que veremos aqui são as incoerências que existem em torno do cu, em que medida essas contradições questionam o regime heterocentrado e machista em que vivemos, e até que ponto subverte o dispositivo atual da sexualidade. Para começar, colocamos um simples exercício a quem lê este livro: abra o seu cu e abrirá sua mente.

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A Injúria do Cu “Vão me dar um buquê de flores, mas no meu cu não passa nem um bigode de camarão”. (Frase pronunciada pelo ex-técnico de futebol Luis Aragonés, dia 8 de junho de 2006, enquanto rechaçava umas flores que lhe ofereciam na Alemanha, para deixar claro que ele não era bicha).

Que te den por el culo. Tomar por detrás. Apretar las cacas. Meterle los pelos del culo para dentro. A tomar pol culo. Le han dao por detrás. Que te follen. Vete a tomar por el culo. Le han dao por el culo. Cagar para adentro. Que te den por el saco. Vete a tomar viento. Cinco, por el culo te la hinco. Se la han metido doblada. Me han jodido. Mírale el jodíopolculo. Le pusieron mirando a la Meca. Que te den por el orto. Que te den por ahí. Que te den. Le pusieron a cuatro patas y le dejaron el sieso como un bebedero de patos. Se lo han follado. Le pusieron el culo en pompa. Pega el culo contra la pared que ese es maricón. Ojete (no México, uma má pessoa). Pinche culero. Pinche ojete. Lameculos. Esto me da por el culo. Cuidado con tu culo en las duchas, no te agaches por el jabón (estereótipo nas prisões). Le rompieron el culo. Sodomita. Bujarrón. Pecado nefando. Acto contra natura. Bujarra. Bufarrón. Lameculos. Bésame el culo. Daopolculo. Enculado. Le hice un calvo. Ese pierde aceite por el culo. Eso te lo puedes meter por el culo. Quebrar el culo. Que te den por el serete. Eres un sieso. Ya estás otra vez dando pol culo. Eso está a tomar pol culo. 25 | Pelo CU

Vés a prendre pel cul. Que et donguin pel cul. Fota-t’ho al cul. Enculat. Kiss my ass. Asshole. Arsehole. Bugger. Buggery. Fuck you. Fuck your ass. Take it in the ass. Fucking asshole. Butthole. Take it up the ass. Go shove up it your ass. Pog mo thoin. Enculé. Va te faire enculer. Enculé de merde. Sale enculé. Enculé de ta mère. Enculé de ta race. Bougre. Va te faire foutre. Sodomiser. Anglaiser. Avoir une histoire de cul. Un film de cul. Faux cul. Avoir le feu au cul. J’ai le cigare au bout des lèvres. Trou du cul. Trou d’uc. Va te faire enculer chez les grecs. Espèce d’enculé. Trou à bites. Vide couilles. Va te faire ramoner la boite à merde. C’est pas un cul que t’as, c’est une pompe à foutre. Atzelaria. Popatik hartzera. Atzetik eman. Ipurditik hartu. Va fan culo. Busone. Faccia da culo. Bel culo. Andate a fare in culo da un’altra parte. Ricchione. Recchione. Bucaiolo. Fare il culo a qualcuno. Rompere il culo. Rotto nel culo / rottinculo. Vai a dar via il culo. Ma va’ a vendere il culo. Ma fatti dare nel culo. Vattelo a pigliare nel culo. Che ti possano inculare. Inculato. Røvhul, røvkedeligt, røvsygt, røvpule, røvpuller, røvpullet, være på røven, rend mig i røven. Diatithemenos. Impudicus. Abi pedicatu!

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O cu é o grande lugar da injúria, do insulto. Como vemos em todas essas expressões cotidianas, a penetração anal como sujeito passivo está no centro da linguagem, do discurso social, como o abjeto, o horrível, o mal, o pior. Todas essas expressões traduzem um valor primordial, unânime, generalizador: ser penetrado é algo indesejável, um castigo, uma tortura, um ato odioso, uma humilhação, algo doloroso; é a perda da honra, algo onde jamais se poderia encontrar prazer. É algo que transforma sua identidade, que te transforma de maneira essencial. A partir desse ato, você “é” um fodido pelo cu, um enrabado, uma bicha. Uma das primeiras coisas que aprende um menino ou uma menina3 é que “tomar no cu” é algo terrível. Ainda que o pequeno sujeito não saiba o que é exatamente esse “tomar”, o tom insultante cria uma aprendizagem, uma prevenção. O interessante do insulto é que cria uma realidade sem referência, somente um valor flutuante, sem conteúdo. Bicha! Sapatão! Vai tomar no cu! Quando um menino ou uma menina escuta isso, nas primeiras vezes não significa nada de concreto – é o valor do negativo que se transmite e percebe-se, não um saber sobre o que é ser gay, lésbica, ou o que é, concretamente, a penetração anal. Não se trata de um doutrinamento preciso e deliberado contra os/as menores. 3

Neste livro, frequentemente usamos expressões como homem e mulher ou ambos os sexos, ou o sexo oposto, o que pode parecer que se assume a crença social de que só há dois sexos e de que, além disso, são “opostos”. Na realidade, não compartilhamos dessa crença no binarismo sexual. Para mais informações sobre as pessoas trans e intersexuadas, a diversidade dos sexos, um questionamento da existência de somente dois sexos e as implicações sociais e políticas da noção de “sexo”, ver o rigoroso e fascinante livro de Anne Fausto-Sterling Cuerpos Sexuados, e os trabalhos pioneiros de Donna Haraway Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza, Suzanne Kessler Lessons from the intersexed e Leslei Feinberg Transgender warriors, Trans liberation: beyong pink or blue. Ver Bibliografia.

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Quando falamos de um regime de poder ou de um regime cultural heterocentrado (por exemplo, o machismo), não se trata de um poder vertical e hierárquico que planeja o ódio às mulheres, ou o ódio aos gays, ou o ódio ao fato de ser penetrado. É um regime de discurso e práticas que simplesmente funciona, exerce-se, repete-se continuamente em expressões cotidianas de múltiplos lugares e momentos, criando realidade (e ferindo) a partir dessa mera repetição. Aprende-se esse valor negativo que cria o objeto – e não o contrário. O sexo anal aparece inicialmente no imaginário coletivo como o pior, o abjeto, o que não deve passar. Esse é o seu significado original, seu sentido. Nesse estado inicial de enunciação, não aparece o ato de penetração, não existe o cu nem o pênis, nem o ânus, nem o dildo; o que se produz aqui é a proibição, a ameaça, a negatividade, uma advertência fantasmal, perigosa, sem referente. Como diria Judith Butler, quando fala do insulto homofóbico (Bicha! Sapatão!), esse enunciado, essa frase, “vai dar o cu”, cria realidade, produz realidade4. Quando dizemos habitualmente essas expressões (que se foda, vai dar o cu, fodido...), não temos consciência da realidade que estamos criando ou dos valores que estamos transmitindo. Mas estão aqui e, para quem o recebe, o insulto é o medo de ganhar uma marca, uma marca que cria uma identidade: ser assinalado como “o que faz isso” – agrada-te que te metam, o foderam – e seu corolário habitual: é uma bicha. Vamos ver mais à frente essa cadeia imaginária que leva a identificar a penetração anal com a homossexualidade, um gesto que, de passagem, faz desaparecer a penetração anal do mundo da heterossexualidade, limpa o espaço hetero dessa enfermidade. Mas toda limpeza deixa sempre espaços sujos; é 4

Butler, J., Lenguaje, Poder e Identidad.

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impossível apagar por completo o que fazem os hetero com o anal; ficam restos dessas práticas, ainda que incessantemente queiram apagá-las. É como o cu: você limpa-o, mas, sempre volta a se sujar. Veremos mais adiante que o ato do sexo anal é desigual; valora-se de forma completamente diferente quem adota o papel ativo (a pessoa que penetra) e quem assume o papel do chamado passivo (a pessoa penetrada). Todas essas expressões que citamos insultam a pessoa que recebe a penetração: trata-se de um ódio ao lugar passivo e, sobretudo ao homem penetrado. Não se insultam dizendo vai meter num cu, meteu pelo cu, fodedor de cu, vai meter num cu, enrabador, metedor de cu. A masculinidade dos homens se constrói de uma forma estranha: por um lado, evitando a todo custo a penetração, mas, por outro lado, com uma curiosa permissão para penetrar o que quer que seja, incluindo o cu de outros homens. Com uma dupla moral bem chamativa, esse “ato tão asqueroso que fazem as bichas” (dar pelo cu), em muitas culturas, não ameaça a masculinidade; ao contrário, é permitido – desde que feito com o papel ativo. Muitos homens hetero penetram analmente suas mulheres (de repente este ato já não é tão asqueroso, mas preferem não falar dele); muitas mulheres penetram em seus maridos (disso se fala ainda menos); muitos homens penetram outros homens em praias, parques, banheiros, saunas, e pelo fato de serem ativos, não se consideram gays, nem bichas, nem sodomitas, nem homossexuais: bichas são os penetrados. Muitas mulheres penetram em outras mulheres analmente, mas isso não existe para o imaginário machista e lesbofóbico, seu curto repertório bissexual não dá para conceber isso. Muitas mulheres trans com pênis penetram analmente em homens, mulheres e outras 29 | Pelo CU

trans, mas isso é castigado pelo regime médico que vigia as pessoas trans, isso não é ser “uma mulher de verdade” (“tome hormônios, deixe-se penetrar, ou melhor, opere-se”). Nessas expressões vemos o enorme desequilíbrio que existe na percepção da sexualidade anal: dar e tomar (no cu). Ser ativo ou passivo se associa historicamente a uma relação de poder binário: dominador-dominado, amo-escravo, ganhador-perdedor, forte-fraco, poderoso-submisso, proprietário-propriedade, sujeito-objeto, penetrador-penetrado, isso tudo dentro de outro esquema subjacente de gênero: masculino-feminino, homem-mulher. O macho se constrói assumindo esses valores, o primeiro termo do par. “A mulher” no sentido de Wittig, de uma categoria criada pelo regime heterossexual, constrói-se associada ao segundo termo deste par binário5. Esse modelo explica muito bem por que se percebe também de forma diferente que um homem seja penetrado analmente e que uma mulher seja penetrada. Por essa leitura do regime heterocentrado, a “mulher” é construída socialmente como um ser penetrável: deve procriar, satisfazer o homem, ser passiva, humilde, dócil, boa mãe, reduzir a sexualidade à sua vagina. A vagina, nesse regime, supõe-se que é um lugar que espera ser penetrado. O macho “a possui”. Existe um passo muito pequeno dessa possessão corporal/sexual à possessão total da mulher que aparece no discurso do machista assassino: “matei-a porque era minha”. A associação dos valores referentes ao amor e às relações sexuais (por meio da educação, da cultura, do cinema, da imprensa, da religião, dos jogos, da família, do matrimônio, do amor, da literatura, etc.) promove essa visão possuidor-possuído a respeito das mu5

Wittig, M., El pensamiento heterosexual.

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lheres. Amar é possuir sexualmente (penetrando) e possuir como um objeto através da vida como casal. Quando se analisa a violência machista, que assassina mais de 80 mulheres na Espanha a cada ano, nunca se coloca em vista esse conjunto de valores prévios que conforma o que é ser um homem. Então, o regime machista olha para o outro lado ou, o que é pior, olha para as mulheres: é que se libertaram, é que essa ideologia doentia do feminismo mudou as coisas, é que as mulheres não se comportam como antes. A vítima novamente como responsável em vez do carrasco. Dentro dessa mesma lógica, o homem penetrado é equiparado a esse estatuto inferior “de mulher”. Como o único corpo penetrável nesse imaginário coletivo é o da mulher, um homem ser penetrado é a maior agressão possível à sua virilidade, ficando rebaixado ao feminino, perdendo sua honra, seu status superior. O passo seguinte do desprezo tem relação com o prazer: se o homem penetrado não desfruta dele (foi violado, por exemplo), o desprezo e o escárnio social são menores, mas, ainda assim terá entrado no território da vergonha irreversível, será sempre algo traumático e terrível. Porém, se o homem penetrado desfruta com isso, é alguém que o busca, deseja, valoriza... então o castigo e a desonra social são totais. Da Grécia clássica à atualidade, em numerosas culturas e épocas, o diatihemenos, o homem que desfruta em uma posição passiva (já veremos o discutível dessa palavra, passivo) foi desprezado e castigado. Para todas essas culturas é incompreensível esse desafio ao que se supõe que deve ser um homem. Ser um homem é ser impenetrável. Esta impenetrabilidade pode conduzir à própria morte. A prevenção de câncer de próstata, ou seu diagnóstico precoce, em homens de mais de 45 anos, é fácil de realizar mediante um 31 | Pelo CU

sensível toque retal que indica o tamanho da glândula prostática. Um diagnóstico precoce pode servir para evitar o desenvolvimento cancerígeno desta glândula que pode chegar a afetar 10, 15% da população masculina. Mas, a negação de se submeter a esse exame leva muitos homens a serem diagnosticados quando a cirurgia ou a morte já são irreversíveis. Mais uma vez o cu é o escudo supremo da masculinidade, masculinidade que há de levar íntegra até a tumba. Muitos testes médicos podem ser desagradáveis, desconfortáveis e inclusive dolorosos, mas não cremos que a sensação de um dedo indicador no reto massageando a glândula prostática (uma sensação prazerosa altamente recomendável) se encontre entre essas sensações. Devemos situar essa negação em outra ordem: a ordem patriarcal, que constrói a virilidade e a impenetrabilidade do corpo, e está mais próxima de conceitos como a honra – em cujo nome se tem cometido e se cometem os crimes mais injustos e selvagens que conhecemos. E é nesse paralelismo virilidade = impenetrabilidade = honra que essa ordem se sustenta na violência, na morte, ainda que seja a própria6. Pouco parece servir as advertências que a saúde pública faz para que esse teste se generalize entre a população de risco (homens de mais de 45 anos); até mesmo se realizam estudos que indicam o grande rechaço que existe diante desse diagnóstico. Frente à resistência de uma parte da população a esse tipo de análise, certo setor da ciência médica se dedica à investiga6

Carmen A. Peña Melo, Evelyn P. Ulloa O., Grisel García Felipe, Yudania Vásquez, Luis Quezada (Urólogo), Actitudes respecto al tacto rectal en pacientes masculinos que acuden a la consulta externa del Hospital Juan Pablo Pina, en el período Abril-Junio 200. Revista Dominicana, Vol. 64 (3) e Vol.65 (1), setembro/dezembro 2003, janeiro/abril 2004.

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ção de outro tipo de testes diagnósticos7 que não “humilhem” a virilidade impenetrável dos seus pacientes. Novamente a ciência se alia à ideologia para salvaguardar o sagrado status do homem-cu-fechado: antes morto do que penetrado!8

O Caso de Luis Aragonés Luis Aragonés ficou famoso a nível mundial em outubro de 2004, quando foi gravado indiscretamente em um treinamento propondo que – como astuta e sutil tática de jogo – o jogador José Antônio Reyes, durante a partida, chamasse de negro de merda o jogador de raça negra Thierry Henry. Apesar do escândalo que essas declarações produziram em diversos países, o senhor Aragonés manteve seu posto como técnico e hoje em dia continua desfrutando do respeito social. Assim é nossa Espanha e olé. Mas é menos conhecido seu comentário na Alemanha em 2006, quando o comitê de boas-vindas ficou de quatro ao oferecer-lhe algumas flores e ver que seu convidado as recusava declarando que “vão me dar um buquê de flores, mas no meu cu não passa nem um bigode de camarão”. Esta frase condensa toda a ideologia que subjaz o desprezo ao sexo anal e seus mitos: Aragonés passa de um inocente buquê de flores a uma estranha declaração pública de impenetrabilidade e camarões, por meio de uma enorme elipse que temos que desentranhar. Os pobres alemães pensaram que se tratava de algum problema estomacal ou alimentício de Aragonés: “Que dis7

http://www.compumedicina.com/cirugia/cir_010405_htm

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No primeiro episódio da quinta temporada de Family Guy, Stewie loves Lois, o Dr. Hartman realiza em Peter um toque retal para examinar sua próstata. Traumatizado por esse exame, Peter o processa por estupro e o médico é condenado.

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se? Que é vegetariano? Que pensava em consumir as flores e logo não poderia defecá-las? Que falou de uns camarões com bigodes? Que gostaria de enfiar as flores no cu, mas que não pode porque o dele é muito fechado e não cabem nem as coisas mais finas? Que tem alergia a flores e lhe dão sapinhos no traseiro? O que ele falou da flora intestinal”? Somente com uma bagagem cultural homofóbica como a da Espanha é que podemos chegar a interpretar corretamente a cadeia de associações que passaram pela mente do nosso ex-técnico: Neurônio 1: olha, que bonito, me presentearam com flores!; Neurônio 2: Alarme, alarme, as flores são para as mulheres ou para as bichinhas. Neurônio 3: As bichas dão a bunda. Neurônio 4: Os homens de verdade não dão a bunda. Neurônio 5: Eu sou muito homem, eu não sou uma bicha, que pensaram esses alemães? Neurônio 6: Se sou um homem, então meu cu é impenetrável (Ou é ao contrário, como era isso?). Neurônio 7: Não posso aceitar flores, não, não, minha bunda, são bichas, vão me foder, serei uma mulherzinha... tenho que explicar isso! Neurônio 8: Preciso explicar que meu cu é impenetrável, ah, já sei, lhes direi que não cabe nada em absoluto, nem algo tão fino como o bigode de um camarão. Neurônio 9: ufa, que alívio, já deixei claro para eles por que não posso aceitar as flores e que não sou bicha. A aventura floral-anal de Aragonés é um exemplo muito ilustrativo dos pressupostos que subjazem a prática do sexo anal:

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1. É algo próprio dos homossexuais masculinos e exclusivo deles (contradição: “bom, eu sou um homem hetero e comi cus de outros homens, mas sou ativo, isso não faz de mim uma bicha”). 2. É algo antinatural, repugnante, o ânus não se usa para isso, somente para cagar (contradição: esses machos rapidamente esquecem de que penetram as suas mulheres, ou outros homens, se disponíveis). 3. Ser penetrado te assimila a uma mulher, te faz inferior, você perde sua hombridade, é um vexame, uma desonra (contradição: se eu penetro a minha mulher sempre que posso, por que ela não poderia penetrar-me? Ou, por que lhe peço para que me penetre?). 4. O cu de um homem deve ser impenetrável salvo em situações extremas de ausência de mulheres: prisões, barcos, seminários de cura, naufrágio de homens em uma ilha deserta... (contradição: mas não era asqueroso e doloroso e o pior? Se todos são ativos nestas situações onde somente existem homens hetero... em quem penetram?). 5. O cu de uma mulher é penetrável, as mulheres são penetráveis por natureza; e mais, os homens hetero adoram penetrar analmente as suas mulheres (contradição: mas não havíamos dito que o ânus era somente para cagar e que o sexo anal era uma porcaria?). 6. Não é aceitável que um homem hetero goste de ser penetrado ou de entrar com objetos no seu cu, ou que peça a sua mulher que lhe dê prazer pelo ânus (contradição: então, por que eu, um homem casado e hetero, contrato mulheres transexuais com um grande pinto para que me comam?). 35 | Pelo CU

7. O teste definitivo da virilidade, o masculino e o heterossexual, é que seu cu não seja penetrado jamais; o contrário supõe um deslizamento de gênero (homem para mulher) e de identidade em sua orientação sexual (hetero para homo) (contradição: mas se o ânus não tem gênero nem um dildo tampouco, por que está todo este assunto tão carregado de sexo e gênero?).

Extermínio Gay no Iraque Mas há quem tenha levado ainda mais longe a fantasia hermética de nosso ex-técnico. Em agosto de 2009, a associação Humans Right Watch publicou um assustador informe sobre o brutal extermínio de gays que está acontecendo no Iraque desde 2009. O informe se intitula: “Querem nos exterminar: morte, tortura, orientação sexual e gênero no Iraque”9. Segundo esse informe, diante da passividade das autoridades iraquianas que não fazem nada para deter a matança, milícias iraquianas estão levando a cabo uma ampla campanha de tortura e assassinato contra homens suspeitos de conduta homossexual, ou de não serem suficientemente “homens”. Humans Right Watch documenta uma campanha de grande alcance de execuções extrajudiciais, sequestros e torturas de homens gays, que começou no início de 2009. Os assassinatos começaram no grande bairro de Bagdadí da cidade de Sadr, um baluarte do exército de Moqtada al-Sadr Mahdi, e logo se estenderam a muitas cidades de todo o Iraque. Os porta-vozes do exército Mahdian promoveram temores acerca do 9

http://www.hrw.org/en/reports/2009/08/17/they-want-us-exterminated-0

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“terceiro sexo” e da “feminilização” dos homens iraquianos e sugeriram que a ação da milícia é o remédio. Algumas pessoas disseram à Human Right Watch que as forças de segurança iraquianas se uniram aos assassinos: Parece que essa limpeza sexual (ao menos 500 gays foram assassinados em 2009, em uma das maiores e mais recentes campanhas de extermínio gay) não alarmou especialmente o governo dos Estados Unidos, nem os governantes ocidentais. A guerra preventiva contra a homofobia não está na agenda do Ocidente.

O periódico EL MUNDO (18 de agosto de 2009) publicava esta notícia com o título especialmente chamativo: “Cola contra o ânus dos homossexuais no Iraque”. Um proeminente ativista iraquiano dos direitos humanos disse que a milícia iraquiana utilizou uma forma de tortura contra homossexuais selando seu ânus, pregando-o com “cola iraniana”... Yani Mohammad, ativista dos direitos humanos, contou a Alarabiya.net que as “milícias iraquianas empregaram um modelo de tortura sem precedentes contra os homossexuais, usando uma cola muito forte para fechar seu ânus”. De acordo com suas declarações, a nova substância, fabricada no Iran, é uma cola que, se aplicada na pele, gruda-a e somente pode ser descolada com cirurgia. Depois de prender o ânus dos homossexuais, lhes dão uma bebida que produz diarreia. Posto que o ânus está selado, a diarreia lhes causa a morte. Distribuem-se vídeos dessa forma de tortura por alguns celulares iraquianos”.

O mais chamativo dessa notícia é que a tortura se centraliza especificamente no ânus, na necessidade de fechar o 37 | Pelo CU

ânus dos homossexuais, como se com esta clausura corporal se acabasse com o desejo homossexual. Aqui a identificação entre “gay” e “sexo anal” é completa, mas, também, a tortura centra-se exclusivamente sobre o gay passivo (não ocorreu à milícia iraquiana castrar os gays ativos), ou simplesmente se identifica a todos os gays com o papel passivo na penetração. Deixando de lado o curioso detalhe de que a cola venha do Irã (inimigo histórico do Iraque – a substância que entra em contato com o ânus gay vem também do “outro”, o iraniano), nesta forma de tortura se leva às vias de fato a fantasia de Luis Aragonés e de tantos machinhos homofóbicos: que não passe nem o bigode de um camarão. No caso brutal do Iraque, o que era uma mera expressão se materializou no corpo real, em centenas de ânus selados realmente com cola, no assassinato de centenas de gays pela clausura definitiva de seus corpos, convertidos em impenetráveis por essa ideologia homofóbica que delira com o gozo anal que tem que reprimir a todo o custo. Só existe uma expressão pejorativa onde aparece o papel ativo: já está outra vez enfiando no cu, estão sempre enfiando no cu. Aqui o que está “enfiando”, o ativo, é alguém que incomoda, que está causando problema, fazendo mal, irritando (o outro, que é penetrado por ele e que por isso supostamente sofre). Mas não é uma expressão muito insultante, o ato de estar enfiando no cu não te transforma em outra pessoa, em uma entidade, em uma essência ou uma identidade; é um ato passageiro (só pode ser usada no gerúndio, estar enfiando), algo que você faz aos demais pontualmente10. 10

Outras expressões negativas, mas não com um conteúdo sexual ou de penetração são: Piensas con el culo. Tontolculo. Vamos de culo. Salva tu culo. Estoy hasta el culo.

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Os direitos civis e o cu: O caso da cadeia interesodomia tv Nos meses de maio e junho de 2010, um grande escândalo social surgiu por causa dos insultos machistas que o senhor Eduardo García Serrano (colaborador da emissora de ultradireita Intereconomía TV) dirigiu à conselheira de saúde catalã Mariana Geli por ter promovido junto ao seu departamento a campanha “Sexe Joves”, uma campanha de educação afetivo-sexual. O senhor García Serrano disse dela: “é uma porca, uma suja e uma puta repugnante”. Em outros comentários posteriores nessa mesma emissora, García Serrano acrescentou ao seu histórico de injúrias de ódio, comentários homofóbicos contra o escritor Antônio Gala e o ativista LGTB e conselheiro da prefeitura de Madri Pedro Zerolo. Sua orgia de declarações homofóbicas terminava com uma interessante reflexão: Eu sempre me perguntei.... Não sei por que é que por alguém gostar de sodomizar ou de ser sodomizado, isso tem que gerar direitos civis, não entendo o porquê.

A pergunta feita por García Serrano abre um interessante debate sobre a origem dos direitos civis. Desde a FundamenCulo de mal asiento. Ser un culo inquieto. Caraculo. Culo veo culo quiero. Perder el culo por algo/alguien. Quedar como el culo. Ir con el culo a rastras. Mover el culo. Dejarse el culo. Los has hecho como el culo. Quedarse con el culo al aire. Expressões positivas: me viene como polla al culo; me parto el culo de risa; porque me sale del culo; ponerse hasta el culo; ser polla y culo (n sentido una e carne). Para um glossário exaustivo de termos sobre o cu em espanhol, ver o livro de Padilha Monge, José Manuel El culo. Glosario y compendio de los assuntos propios del trasero. Será que não existe alguma referência interessante sobre isso em português? Outra pergunta: não valeria a pena traduzir algumas dessas expressões?

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tação da metafísica dos costumes de Kant, não tínhamos escutado uma reflexão tão profunda e inovadora sobre a origem do direito. A ideia é original: o direito civil pode proceder do cu, dos usos do cu, da penetração anal consentida e prazerosa, tanto ativa como passiva. Ademais, a entrada dessa conversa é igualitária: valoriza igualmente sodomizar (ser ativo) e ser sodomizado (ser passivo). Claro que isso coloca uma mudança histórica: podemos inferir que, para García Serrano, alguém que goste de penetrar vaginalmente ou ser penetrado vaginalmente, este sim, é fonte natural dos direitos civis. Ele não se pergunta o porquê disso, para ele é algo natural. Ou seja, a heterossexualidade tem carta branca da natureza para o acesso aos direitos. Outro aspecto interessante dessas declarações e da redução da pessoa a seu cu: a identificação entre direito e sexo. Nesse caso, o ataque se centrava na pessoa de Pedro Zerolo. Primeiro reduz a pessoa a corpo, e depois de corpo a cu. Para García Serrano, ser gay é somente uma prática sexual, é somente um cu que é penetrado ou um pênis que penetra um cu. Isto nos remete ao velho debate sobre os direitos humanos. Quem é humano? Quem decide o acesso a “ser” humano, e quem fica excluído do “humano”? Como esse dispositivo de humanização/desumanização não é neutro, mas depende de relações de poder, então desconfiamos do discurso humanista. Este é um bom exemplo do perigo desse dispositivo: “Não, os gays não são humanos, são somente um cu ou um pênis, um pedaço de corpo, assim sendo... como vão ter direitos? Um cu não tem direitos, é somente uma coisa. Zerolo – e por extensão todos os gays – é apenas um objeto, somente um ato sexual equivocado, portanto não é humano”. O acesso ao humano vem por meio 40 | Pelo CU

da penetração vaginal. Usando a lógica de García Serrano, ele sim acessa os direitos civis porque ele pratica (suponhamos) a penetração vaginal. Isto é o “não dito” do seu discurso, mas é importante. Curiosamente, essa lógica não é reversível. Este tertuliano não aceitaria ser reduzido a um objeto penetrável ou penetrante. Os heterossexuais são pessoas, com alma, com valores, são humanos. E por isso devem ter direitos civis. Seu acesso ao direito civil não vem do cu. Não sabemos de onde vem, mas desde logo não vem de lá. Ele não se pergunta. É uma velha história: os que ocupam uma posição de poder, de privilégio, de maioria, não se perguntam sobre a origem de seus direitos ou de sua posição. Os homens não se perguntam por que têm mais riquezas, acesso a postos de poder e responsabilidade, e melhores salários e trabalhos que as mulheres. As políticas de igualdade são coisas de “mulheres”. Eles não têm que repropor nada. Os heterossexuais não são conscientes dos seus privilégios, nem questionam sua própria identidade. Nem a origem de “seus” direitos civis porque são deles. Só deles. Nós gays queremos ter acesso aos direitos civis por meio do cu, e isso não são modos. Um pouco de seriedade, por favor, pare de sodomizar. Também isso é algo muito antigo: identificar sodomia com a homossexualidade. Já veremos em outros capítulos a debilidade desse argumento. Basta perguntar aos heterossexuais e ao pornô hetero. Por direitos civis suponhamos que García Serrano se refira ao direito ao matrimônio. Ou seja, para ele, o matrimônio gay emana da sodomia. Este é o seu fundamento e sua essência. Resulta que tomar no cu ou que te metam pelo cu nos permitiu ter acesso ao direito ao matrimônio. De algum modo isso legitima e naturaliza a sodomia. Segundo García Serrano, a lógica gay é a seguinte: “nós damos o cu, logo temos direito 41 | Pelo CU

a nos casarmos como vocês, heterossexuais”. E isso ele não gosta. O matrimônio é uma coisa séria, é um direito que vem de outra parte. Mas, de onde? Gostaríamos de levar a sério a reflexão de García Serrano. Pois sim, vamos colocar que nossos direitos emanam do fato de que gostamos de sodomizar e ser sodomizado. Queremos que o acesso às políticas sociais, de moradia, de emprego, de saúde, de cultura e educação provenham e se baseiem em gostarmos de dar o cu. Isso é que é um orgulho passivo como deus manda. Nada de direitos humanos, pessoas, almas, ética, cidadania, amor ou democracia. O anal como fonte do direito e do político. Crise da esquerda? Crise da política? Não queriam reinventar o social? Pois, aqui os tem. Tomar no cu.

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OS ANAIS DA HISTÓRIA. HISTÓRIA DOS ANAIS O obturador e meu ânus se abrem com uma sincronia quase perfeita. Penetram profundo até fazer-me explodir. Pierre Molinier

Neste capítulo, vamos expor algumas referências históricas da analidade, da sodomia e de seus diferentes tratamentos em função das épocas, culturas, religiões e contextos. Não se trata aqui de trazer um estudo exaustivo antropológico sobre esta questão, mas somente de acrescentar certas reflexões que nos permitam conhecer alguns antecedentes dos anais da história. No princípio era o ânus. Ânus significa anel, do latim, anus, e este do protoindo-europeu (ânus: anel). É engraçado que se use o anel como símbolo do casal casado. Na realidade, ânus significa anel, de modo que, sem sabê-lo, o casal consagra seu amor com o gesto de meter um dedo no cu, um anel no dedo anular (o anal). Ou o gesto de meter um ânus no dedo. Já sabemos que o matrimônio, e inclusive o amor, são rituais de possessão. Assim, esse primeiro gesto nos recorda o vínculo entre o cu e o poder. Vamos ver neste capítulo como os esfíncteres foram controlados no decorrer da história. Veremos esfinges posicionadas na entrada 43 | Pelo CU

das cidades, no alto das camas, nas praias e nos portos, vigiando a abertura e o fechamento dos esfíncteres de distintos povos e épocas, propondo enigmas que só poderão ser resolvidos com uma maior abertura mental ou anal. Dizem que os turcos quando brigam tendem a dar facadas no cu. É para não matar? É uma forma deslocada de penetração? É porque quem recebe tem que explicar por que deu as costas? Nas guerras, após as batalhas, os mortos que tinham feridas nas costas não eram enterrados com honras, já que as feridas nesta parte queriam dizer que haviam fugido e que tinham sido mortos por trás. Existem numerosas tradições que condenam a possibilidade do acesso ao corpo “por trás”, inclusive para morrer. Metaforicamente, as costas é o cu, ainda que exista quem chame o cu de ali onde as costas perdem seu nome. Seguindo tangencialmente com os turcos, Vlad o Empalador, personagem em que se baseou Stoker para escrever Drácula, à parte outros passatempos sanguinários, costumava empalar seus “inimigos”. O empalamento, o bom, o fantástico, consistia em meter uma estaca no cu e/ou na vagina, e retirá-la pelo pescoço, sem tocar os órgãos vitais para aumentar a agonia… Também havia um instrumento de tortura da inquisição que era uma espécie de pirâmide que enfiavam no cu do suposto infiel ou herege. O interessante do cu é que sempre é o “do outro”, do estrangeiro. Na tradição europeia, sobretudo na espanhola, isso do cu é coisa de mouros. Para os árabes, são os europeus que vão lá pedir para serem enrabados. Para muitos povos europeus “um grego” é uma penetração anal. Para os invasores espanhóis da América, os índios americanos eram um bando de pecadores porque praticavam sexo anal de forma cotidiana. Sempre é o povo ao lado que pratica a sodomia, nunca é 44 | Pelo CU

algo próprio da sua “nação” ou da sua cultura. Na Idade Média, castigava-se a sodomia por ser algo próprio dos infiéis, dos povos mulçumanos.

De Tebas à Índia: esfinge e tantras A única tradição que conhecemos onde se valoriza a possibilidade do coito anal como algo positivo é a tradição tântrica da Índia. O Adhorata é um tipo de coito que equivale às práticas de yoga como Mulabandha (travamento do esfíncter anal) e Asvini Mudra (contração e relaxamento do ânus). Para compreender este tipo de relação, temos que recordar primeiro que, ainda para os ocidentais, o ânus não é precisamente um lugar limpo. Para os hindus, isto não representa um problema, pois sua higiene é sumamente rigorosa e sempre está relacionada com as práticas sexuais. Os hindus são especialmente cuidadosos em lavar com água em abundância mais de uma vez ao dia suas zonas erógenas, e a cada vez antes e depois do coito, assim como depois de qualquer atividade intestinal. O ânus é – segundo a tradição tântrica – uma das zonas mais sensíveis do corpo humano, sendo claramente uma zona erógena e de concentração de energia psíquica. Essa zona se encontra em contato com o chakra basal ou Muladhara, que é onde fica enrolado o poder primário do sistema nervoso, simbolizado pela Deusa serpente ou Kundalini. Desta forma, o Tantra propõe que mediante a abertura dos esfíncteres anais de Shakti (a parte feminina do deus), quer dizer, da mulher, Shiva (a parte masculina do deus), resolve-se o enigma da Esfinge. Também para esta tradição, vemos que o anal é “o feminino”, que se abre para que o macho atue.

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A busca específica deste tipo de relação sexual é o despertar direto da Kundalini. O tantra considera que, aparentemente, entre a parede do reto e a ponta da última vértebra se encontra uma glândula a que chamam Glândula Kundalini. O yoga criou várias técnicas para estimular essa glândula, entre as quais mencionam a Mula Bandha. A dilatação dos esfíncteres anais é uma das formas mais rápidas e diretas para estimular e ativar essa glândula, o que tem um efeito reflexo sobre os dois ramos do sistema nervoso que terminam no reto e no ânus. Segundo a crença tântrica, o coito anal provoca no reto a ejaculação, o que alimenta a glândula Kundalini, pelo que Shiva (o homem) sustenta sua Shakti com esse tipo de relação, ao mesmo tempo em que facilita o despertar de seu fogo interno. Em um tratado de sexo tântrico encontramos esta explicação, interessante, mas muito heterocentrada: É importante recordar que este tipo de relação, como qualquer outra, deve incluir uma grande higiene, consentimento mútuo e grande sutileza, pois se se é violento ou rude pode-se machucar tanto a Shakti, a mulher, como o órgão sexual do homem ou lingam. Além disso, deverá ter uma forte estimulação manual antes de proceder para que a mulher se encontre lubrificada, se necessário pode-se usar lubrificantes extra. Se ambos quiserem, esse tipo de relação pode ser extremamente prazeroso, podendo também guiar até o despertar do Kundalini e da separação da consciência, do ego para entrar na harmonia com todo o universo.

A tradição tântrica assume com bastante naturalidade algo que, em realidade, todo mundo sabe: que a zona anal é uma zona erógena. Mas, mesmo que esta tradição soe bastante boa em teoria, não parece ter tido muita influência na vida real co46 | Pelo CU

tidiana dos habitantes da Índia, onde hoje em dia o sexo anal continua sendo um tabu e onde a homossexualidade é muito mal vista. O ânus está rodeado de alguns músculos denominados esfíncteres; suas raízes etimológicas provêm da palavra grega sphinx, que compartilha sua origem com esfinge, criatura de origem mitológica que guarda mistérios e enigmas. Como nos explicava o genial poeta gay José Lezama Lima: Esfinge e esfíncter têm a mesma raiz: contrair11.

Então vemos que se trata de apertar: a esfinge te coloca nos apertos, a esfinge como estrangulador que patrulha o desejo, que fechava o caminho na entrada de Tebas. Esfíncter deriva de sphíngo: apertar, fechar, estrangular, contrair, enodar. Galeno foi o primeiro a utilizar essa palavra em seu sentido anatômico, mas vemos que já nesse primeiro momento o ânus é percebido mais como espaço para fechar que para abrir. Galeno podia ter descrito esse mesmo músculo com uma palavra de abertura, de relaxar, de afrouxar, de abrir, de desatar nós, como um espaço de passagem e de recepção. Esquecemos que a utilidade do ânus está em abrir-se, não em fechar-se. O semiólogo Charles Pierce dedicou um estudo à esfinge e a seu significado (A Guess at the Riddle12) em textos de Emerson, Poe e Melville, que tratam dessa figura mitológica. Os fundamentos etimológicos e mitológicos do termo esfinge se encontram em plena sintonia com as investigações peirceanas. Com efeito, como já colocamos, Esfinge deriva, em 11 12

Lezama Lima, José, Diarios, Era, México, 1994, p.84. Peirce Ch. S., The essential Peirce, Volume 1: Selected Philosophical Writings, (1867-1893), Indiana University Press, 1992.

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grego, de estreitar, de ligar, enodar (daí o músculo anular, “esfíncter”), e encarna metaforicamente no monstro imaginário que enoda a mulher e o leão. O tom enigmático da Esfinge se origina, por sua vez, na magnificência estranha das representações egípcias, que na cultura grega dão lugar ao ente sobrenatural que guarda a entrada de um lugar secreto perto da antiga Tebas. As respostas apropriadas às adivinhas da Esfinge (“Riddles of the Sphinx”) abririam portas de segredos bem guardados. Dentro deste quadro, a proximidade de Peirce com a Esfinge é imediata, uma vez que compreender e desembaraçar os nós do saber constituem, sem dúvida, duas das maiores tarefas do filósofo norte-americano. Todo o seu sistema teórico tende, na realidade, a armar uma taxonomia sofisticada de distinções correlativas entre conceitos “enodados”. Não obstante, as sisudas reflexões de Peirce não o levaram a uma descrição das implicações anais da esfinge, outro exemplo de repressão curiosa que deixa de lado essa parte infame do nosso corpo, da qual ninguém quer saber nada. O enigma da Esfinge é a pergunta sobre qual o ser que caminha de quatro patas no início da vida; com duas, no meio; e com três, ao final. Édipo decifra o enigma: esse ser é o ser humano, na infância, na vida adulta e na velhice. Resolvido o enigma, a Esfinge se joga no fundo do abismo13.

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Existe uma outra versão sobre a resposta que Édipo deu. Segundo esta versão, Édipo disse à esfinge: “o ser que caminha de quatro patas no início; com duas, no meio; e com três ao final é a bicha. Qualquer um que tenha ido a uma sauna ou a um quarto escuro em Tebas sabe que as primeiras experiências são com as quatro patas no chão para ser penetrado; depois te colocam de pé para que te chupem; e ao final finca no chão os dois joelhos, e apoia uma das mãos no chão, para mamar os outros mais comodamente.

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Gregos e romanos Retornando ao mencionado “grego”, quando se fala da Antiga Grécia, logo imaginamos que ali todo mundo andava dando o cu alegremente em uma espécie de paraíso anal. Mas as coisas não eram tão simples. Embora seja verdade que o amor verdadeiro era o que se dava entre um adulto e um adolescente, a prática sexual do coito anal estava pautada em uma série de convenções e limitações bastante contraditórias. Para começar, a passividade no adulto era muito mal vista. Como nos explica Foucault na sua obra História da Sexualidade: A relação entre dois homens feitos será mais facilmente objeto de crítica ou de ironia: é porque a suspeita de uma passividade, sempre mal vista, é particularmente mais grave quando se trata de adulto 14.

Mas, também, o jovem adolescente de que se espera uma posição passiva, tampouco deve mostrar prazer sem ser objeto de desejo, nem no ato sexual. Existe uma vigilância de gênero muito articulada ao redor do sexo, cheia de paradoxos, controles e valores. Por exemplo, essa relação adulto-adolescente é marcada por muitos rituais de cortejo, onde o adolescente não deve “se dar facilmente”, nem o adulto abusar de sua posição de poder ou de superioridade. Além disso, o esquema da polaridade ativo/passivo está muito arraigado na estrutura do erotismo grego. Mas, ao contrário de certa crença comum que relaciona o adolescente 14

Foucault Historia de la sexualidad, volumen II, El uso de los placeres, p. 179 [ed. bras.: Foucault. História da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 173].

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com o feminino, na antiga Grécia despreza-se enormemente a possibilidade da moleza e da afeminação do efebo. Espera-se dele sinais de virilidade, não físicos, mas de atitude: vigor, resistência, ímpeto, uma promessa de virilidade por vir. Por isso se considera muito negativamente que o adolescente desfrute abertamente do papel passivo: Por outro lado, o rapaz, posto que sua juventude deve levá-lo a ser homem, não pode aceitar assumir-se como objeto nessa relação, que é sempre pensada sob a forma da dominação: ele não pode nem deve se identificar com esse papel. Ele não poderia ser de bom grado, a seus próprios olhos e para si próprio, esse objeto de prazer15.

Tampouco para o adulto as coisas são fáceis; em primeiro lugar, nessa passagem da etapa adolescente para a etapa adulta, ele tem que sofrer uma espécie de “amnésia”, pela qual abandona o papel passivo e passa a adotar um papel ativo. Mas é tão fácil esquecer o que se viveu na adolescência? Os argumentos dessa ética estão cheios de armadilhas: “não há nada para esquecer, porque não experimentavam prazer nessa época, como passivos”. Se previamente se proibiu sentir prazer, parece mais fácil dar este passo rumo ao papel ativo. Parece que aqui ninguém tem que sentir prazer. O que se espera do adulto é uma espécie de sublimação que transforma sua atração pelo efebo em uma relação de filia, de amizade profunda, que supera a mera relação carnal16.

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Idem, p. 203. [Ed. Bras.: idem, p. 195].

16

Para uma análise detalhada das críticas que existiam na Antiga Grécia à posição passiva na penetração anal e na felação, ver o rigoroso estudo de Dover, K.J. Homosexualidad griega.

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É claro que esse jogo de regras e de valores não tem que refletir a realidade social, o sexo real que praticavam os gregos, do mesmo modo que os atuais códigos da “boa sexualidade” que nos propõe COPE, o Vaticano ou o Partido Popular, não refletem em absoluto a realidade de suas práticas sociais. Sobretudo as do Vaticano. Parece que ocorria exatamente o contrário; parece que na Grécia existia uma grande preocupação em manter este sistema binário ativo/passivo, adulto/jovem, subestimando o tempo todo o prazer sexual em si mesmo. Mas é bastante difícil crer que depois de ter passado vários anos de enrabamento na adolescência (por mais enfeitados de culturas e rituais que sejam), alguém esqueça alegremente essa atividade e se converta rapidamente em um super-ativo para o resto da vida. Também é difícil crer que, em todos esses atos de sexo anal, o jovem não experimentava algum prazer ou que, na realidade, o jovem não transava com o adulto quando dava vontade a ambos. Certa tradição homófila de escritores e artistas do final do século XIX e do princípio do XX retomou a figura do efebo da cultura grega e a transformou em uma espécie de ideal absoluto, elogiando, também, a beleza do efebo em relação à sua ambiguidade sexual e seu atraente afeminamento. Como assinalamos, este modelo idealizado está muito distante dos próprios critérios dos Gregos, bastante plumofóbicos em geral (ao menos segundo o que refletem todos os textos). Mas existe outro aspecto que também se ocultou nessa tradição de valorização dos efebos: é que na antiga Grécia também havia uma importante valorização dos corpos adultos, inclusive dos anciãos. Basta ver as esculturas gregas para compreender seu enorme interesse e admiração pelo corpo do adulto; e, como nos diz Foucault: 51 | Pelo CU

E no banquete de Xenofonte, evoca-se o fato de que havia o cuidado de escolher como talóforos de Atenas os mais belos anciãos17.

Pois bem, um aspecto esquecido da antiga Grécia era que foram criados então os primeiros clubes de daddies. Continuando com os códigos gregos, e sua herança na civilização romana, o historiador Paul Veyne nos explica que nessas épocas não se classificavam as condutas em função do sexo do amado (pouco importava se eram mulheres ou jovens), mas em função da atividade e da passividade: Ser ativo é ser um macho, seja qual for o sexo da pessoa chamada passiva. Obter prazer de forma viril, ou dar prazer de forma servil, tudo se baseia nisto [...]. Por isso, o adulto homem e livre que era homófilo passivo (chamado impudicus, ou diatihemenos) sofria um desprezo enorme18.

Parece que o ódio à bicha desmunhecada era já muito espalhado na Grécia e em Roma, onde também se mantinha o mal-entendido comum de que a pessoa passiva é afeminada, ou de que a pessoa afeminada é necessariamente passiva. Nesse assunto, há exemplos bem divertidos: na época romana circulavam muitos rumores sobre os estoicos, de quem se dizia que escondiam abaixo da sua exagerada virilidade uma feminilidade secreta (os ursos e os leather não são tão 17

Foucault, op. Cit., p. 184. Os talóforos eram os velhos que carregavam os ramos de oliva nas festas de Ateneia, as grandes Panateneias [Ed. bras.: Foucault. História da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 177].

18

Paul Veyne, L’homossexualité à Rome, p. 45, no livro Sexualités occidentales, vários autores.

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originais). Inclusive, o próprio Sêneca foi objeto desse tipo de chacota. Também em Roma inventaram o Don’t ask, don’t tell contra os passivos, pois existem testemunhos de que, em Roma, se expulsava do exército os homossexuais passivos. Mas é importante assinalar que o rechaço do passivo não se devia à sua homofilia, mas à passividade em si mesma, que era considerada como equivalente a um defeito moral muito grave: a delicadeza, o afeminamento19. O indivíduo passivo não era afeminado por causa do seu desvio sexual, mas ao contrário: sua passividade era um dos efeitos da sua falta de virilidade e essa carência permanecia como um vício capital, inclusive se não se dava a homofilia [...] O estado romano proibiu muitas vezes os espetáculos de ópera porque eles afeminavam e eram pouco viris, diferente dos espetáculos dos gladiadores.20

Parece que a divisão comum “ópera para veadinhos, futebol para os machos” já estava presente na civilização romana! Em todo caso, em todas essas práticas de condenação contra o passivo se faz sempre essa falsa identificação passivo = afeminado. Ou seja, sem dúvida, muitos homens “viris” da época grega e romana, adultos e de pelo no peito, desfrutavam sendo penetrados, mas toda a trama social e cultural ocultava esse fato: aparece como cabeça de turco “o afeminado”, como o único ser passivo de toda sua civilização, ou deixando este papel para o adolescente, como única possibili19

Esta tradição perdura com surpreendente tenacidade: na edição atual do dicionário da Real Academia Espanhola lemos a seguinte definição da palavra marica[bicha]: homem afeminado e de pouco ânimo e esforço. (Mas que demônio será isso de “pouco ânimo e esforço”!).

20

Veyne, p. 45.

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dade não ignominiosa. De algum modo esse personagem abjeto, o afeminado-passivo, e essa identificação tão rígida tinha muitas vantagens: deixava livres do “pecado” todos aqueles que tiveram um aspecto “masculino”, e afastava a suspeita do seu possível prazer anal. É interessante a lógica que se seguia na cultura romana: a passividade era uma consequência da falta de virilidade, não a causa. Esse detalhe é importante, dado que na nossa cultura atual a lógica é inversa: é o ato passivo, o fato de ser penetrado, que acarreta como consequência uma perda da virilidade. De fato, parece que o mero ato da penetração (como passivo) “amaricona” automaticamente a pessoa que o experimenta21. Como comentamos, em Roma ou na Grécia o critério que organizava as sexualidades não era se alguém gostava de mulheres ou de homens, mas o valor da masculinidade, a posição de poder, o ser ativo ou passivo, a classe social superior associada ao papel ativo. O tabu moral acerca do sexo anal “passivo” na antiga Atenas é formulado principalmente como higiene do poder social. Ser penetrado é abdicar do poder22.

Neste sentido, existe outro exemplo ainda mais curioso na cultura romana, uma obsessão por um ato execrável de que hoje se fala pouco, mas que está muito bem documentado: a 21

É interessante constatar que em muitos fóruns sexuais da Internet a consulta mais habitual que fazem os homens hetero que desfrutam do prazer anal (por exemplo, que pedem a suas mulheres que lhes penetrem com objetos ou com os dedos) é saber se por isso viraram homossexuais. A resposta dos sexólogos em geral é sempre a mesma: “não, tranquilo, pode ser penetrado analmente e não por isso é um homossexual”.

22

Bersani, L. “Es el recto una tumba?”, em Llamas, R., Construyendo identidades, p. 101.

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felação (irrumatio). Nessa cultura, a mamada era um ato ainda mais baixo que a penetração anal passiva. Para os romanos, chupar (ou seja, despreza-se aquele que chupa o pênis, que lhe chamavam passivo, ainda que a nós nos pareça algo super-ativo) era o pior do pior, o ato mais baixo de submissão: obter prazer passivamente dando prazer ao outro e, por sua vez, oferecer uma parte do seu corpo, a boca, para a inteira disposição do outro. A coisa era tão mal vista que, segundo Marcial23, alguns homens que haviam sido surpreendidos fazendo boquete... tentaram passar por homófilos passivos! Dado que a injúria, neste caso, era menor, era preferível confessar um ato de penetração passiva a confessar que gostavam de dar uma boa mamada. Como vimos, esses critérios de sexo condenável também estão muito ligados à classe social. O grave não é o ato em si da penetração, mas se quem a recebe é uma pessoa de classe alta, um homem livre e, sobretudo, que desfrute com isso. O que escandaliza não é o sexo em si, mas o deslizamento de classe social que supõe, o adotar uma posição que só deve ter o escravo. É importante colocar este ponto para entender a cultura romana: o critério que está funcionando é mais uma vigilância de classe do que de sexualidade.

Sodomia: dos judeus à inquisição O termo sodomia vem do nome da antiga cidade Sodoma (SeDoM em hebraico, derivado da raiz SOD = secreto), a qual, segundo a Bíblia, foi destruída por Deus por seus muitos pecados. Na fala atual se identifica com a prática do sexo 23

Richlin, A. (1981). “The meaning of irrumare in Catullus and Martial.” Classical Philology 76: 40-46.

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anal apesar de que Sodoma, na Bíblia, não foi castigada por esses atos. Tradicionalmente, os pecados cometidos pela cidade de Sodoma ficaram conhecidos como a prática do sexo anal entre homossexuais masculinos; de fato, no imaginário popular e clerical, a razão do castigo era a prática da homossexualidade (pelo menos masculina) por parte dos sodomitas, a qual passou a se chamar sodomia. O trabalho erudito de John Boswell Cristianismo, Tolerância Social e Homossexualidade. Os Gays na Europa Ocidental desde o começo da Era Cristã até o Século XIV explica com muito rigor os mal-entendidos que existem na origem dessa interpretação do termo sodomia. A ideia de que a conduta homossexual é condenada no Antigo Testamento provém de várias passagens. Provavelmente a mais conhecida, e sem dúvida a que mais influência exerceu, é o relato de Sodoma, no Gênesis, 19. Na verdade, Sodoma deu seu nome às relações homossexuais na língua latina: no decorrer da Idade Média, tanto no latim quanto em qualquer uma das línguas vernáculas, a palavra mais próxima a homossexual foi sodomita. Contudo, a interpretação puramente homossexual daquele relato é relativamente recente. Nenhuma das muitas passagens do Antigo Testamento que se refere à depravação de Sodoma sugere delito do tipo homossexual, de modo que as associações homossexuais têm que ter sua origem em tendências sexuais numa literatura muito posterior. Não é provado que tais associações desempenharam um papel importante na determinação das atividades dos primeiros cristãos. Sobre a única base do texto, parece possível extrair quatro conclusões sobre a destruição de Sodoma: 1) que os sodomitas foram destruídos pela depravação geral que, em primeiro lugar, incitou ao Senhor enviar anjos à cidade para que investigassem; 2) que a cidade foi 56 | Pelo CU

destruída porque o povo de Sodoma tentou violar os anjos; 3) que a cidade foi destruída porque os homens de Sodoma tentaram induzir os anjos a se envolverem em relações homossexuais com eles (observe-se que não é o mesmo que 2); na lei judia a violação e a relação sexual são delitos que se castigam independentemente); 4) a cidade foi destruída por não tratar com hospitalidade aos visitantes que o Senhor enviara. Embora seja a mais evidente das quatro, a segunda possibilidade foi largamente ignorada pelos estudiosos antigos e modernos da Bíblia, provavelmente devido às ambiguidades que rodeavam o estupro homossexual. Desde 1955, os estudiosos modernos se inclinam cada vez mais pela interpretação 4), enfatizando que as matizes sexuais do relato mesmo estando presentes, eram de caráter secundário, e que o impacto moral da passagem se relacionava com a hospitalidade. Para dizê-lo brevemente, a tese desta linha de investigação sustenta que Lot violava o costume de Sodoma (onde não foi cidadão, sim meramente “residente”), ao receber à noite hóspedes desconhecidos no recinto fortificado da cidade sem a permissão dos anciãos. Quando os homens de Sodoma se reuniram para pedir que se levasse os estrangeiros à sua presença, pois “eles queriam conhecê-los”, não queriam dizer outra coisa que “saber” quem eram e, em consequência, a cidade não foi destruída por imoralidade sexual, mas pelo pecado de falta de hospitalidade com os forasteiros.24

A sodomia na Idade Média e na Idade Moderna incluía diversos “atos contra a natureza”, mas era empregada principalmente no caso do sexo anal. Como vimos, a origem do termo está na Bíblia, na história de Sodoma e Gomorra. A identificação do “pecado de Sodoma” com o sexo anal e não com a falta de hospitalidade ou a luxúria em geral, documenta-se pela primeira vez com Santo Agostinho. A palavra 24

Boswell, p. 96.

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“sodomia” aparece pela primeira vez no século XI, no Liber Gommorrhianus do Monge Benedito Petrus Damianus, para o que aquela palavra incluía todas as atividades sexuais que não serviam para a reprodução. As lésbicas eram ignoradas em grande parte, embora as mulheres que praticavam o sexo anal também caíssem sob o epíteto sodomita. Como veremos mais à frente, no parágrafo sobre Foucault e a aparição do “homossexual”, a sodomia não descrevia um “tipo de personalidade”, mas somente o ato sexual em si. As primeiras perseguições aos homossexuais por causa do sexo anal são da metade do século VI, quando o imperador bizantino Justiniano e sua esposa Teodora proíbem, por motivos políticos, os “atos contra a natureza”, amparando-se em razões religiosas. A lei previa como castigo a castração e o passeio público pelas ruas. Não existem provas de que a Igreja Ortodoxa tenha apoiado o édito em nenhum momento. Até o século XII, na maioria dos países europeus, a sodomia não era castigada, não sendo mais que um entre tantos pecados que apareciam nos textos eclesiásticos. A atitude mudou no percorrer das cruzadas, nas quais a propaganda anti-islâmica identificava os mulçumanos como sodomitas que violavam os bispos e as crianças cristãs (já vimos que o sodomita é sempre “o outro”). Pouco depois, identificava-se a sodomia com a heresia; entre 1250 e 1300, introduziam-se leis que castigavam o pecado com a morte. Essas leis foram usadas sobretudo como ferramentas políticas, como foi o caso dos templários ou do assassinato de Eduardo II da Inglaterra, ou em situações onde a paz social estava em perigo, como nos casos de violações ou pederastia. Em geral, a homossexualidade estava bastante estendida, sendo a discrição o elemento chave. De fato, por exemplo, é conhecido o caso 58 | Pelo CU

de Leonardo da Vinci, que foi acusado anonimamente várias vezes de sodomia. Na Florença da época, bastava depositar uma denúncia anônima em uma caixa (o “tamburo”) para delatar um sodomita. Notifico-lhes, Signori Officiali, de um certo fato, a saber, que Jacopo Saltarelli, irmão de Giovanni Saltarelli, vive com este último na ourivesaria de Vacchereccia em frente ao tamburo: se veste de negro e tem uns dezessete anos. Este Jacopo tem sido cúmplice em muitos lances vis e consente em comprazer aquelas pessoas que lhe pedem tal perversidade. E deste modo teve muitos tratos, quer dizer, serviu a várias dezenas de pessoas acerca das quais sei muitas coisas e aqui nomearei a uns poucos: Bartolomeo di Pasquino, ourives, que vive em Vácchereccia; Leonardo di Ser Piero da Vinci, que vive com Verrocchio; Baccino o alfaiate, que vive por Or San Michele, nessa rua onde há duas grandes lojas de tosquiadores e que conduz a loggia dei Cierchi; recentemente abriu uma alfaiataria; Lionardo Tornabuoni, chamado il teri, veste negro. Estes cometeram sodomia com o dito Jacopo, e isto testemunho ante vós25.

Leonardo da Vinci foi solto na condição de não reincidir em suas aventuras sodomitas. Depois de dois meses, a denúncia foi retirada cum condizione ut retamburentur, ou seja, com a condição que não houvesse novas denúncias no tamburo, e, embora em 7 de junho tenha se repetido a denúncia, a resposta foi a mesma, provavelmente pela ausência de testemunhas. A sodomia era teoricamente um delito extremamente grave, castigado com pena de morte, mas difícil de provar. Também era um delito que raramente ditava castigo na Florença da época, onde a homossexualidade era comum e tolerada o su25

Wittkower, Rudolf e Margot, Nacidos bajo el signo de Saturno, p. 165.

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ficiente para criar a palavra Florenzer (Florentino) como gíria para homossexual na Alemanha (uma vez mais, o sodomita é o vizinho). As falsas denúncias eram muito comuns nesse tempo, especialmente aquelas feitas de forma anônima pelos inimigos. Esse pode ter sido o caso de Leonardo. Em sua larga carreira, depois de sair de Florença, não teve cargos adicionais, inclusive alguns historiadores defendem que, por causa do susto, o pobre Leonardo não voltou a “veadar” mais em toda sua vida, mas não há provas. Voltando aos maus vizinhos: é interessante a origem medieval da nossa palavra bujarrón [homossexual]. Essa palavra nos chegou pelo idioma francês, com a palavra bougre26 que significa búlgaro, por uma referência a uma seita medieval herética da Bulgária, os Bogomiles (bugger em inglês). Como essa seita enfrentava a Igreja Católica, em seguida foram acusados de dedicar-se à prática da sodomia, embora não existam dados históricos concretos de que tivessem especial interesse pelo sexo anal (ou ao menos não mais que um interesse que sempre foi mostrado pelos dirigentes da própria Igreja Católica).27 É interessante a observação que faz Boswell sobre a indiferença contra o gênero dos sodomitas na hora do castigo: Uns pouquíssimos livros penitenciais primitivos gozavam de uma ampla autoridade e exerceram uma duradoura influência. 26

No Brasil, os franceses que ocupavam a região do Maranhão, passaram a chamar os índios Timbiras de “bugres”. Mais tarde, o termo passou a designar todos as pessoas de origem indígena. O termo, de caráter pejorativo, também era usado quando alguma das ancestrais era de origem indígena. “Minha avó era bugra”, diziam. Para mais informações, consultar os dicionários da língua portuguesa. [N.T].

27

Em alguns lugares, como Londres e Amsterdam (em 1730 e 1733) ocorreram ondas de perseguição contra os sodomitas.

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Um deles foi a coleção de Reginon de Prüm (m. 915). Seu enfoque da sexualidade e dos pecados sexuais – como da maioria de seus contemporâneos – era indiferente ao gênero de que se tratasse. Para Reginon, o que constituía o pecado era o ato, não as partes envolvidas: a penitência pelo coito anal (três anos) era exatamente a mesma para dois homens ou para pessoas casadas, e não era mais severa que a que correspondia à simples fornicação heterossexual 28.

Na Espanha se encarregam dos castigos tribunais civis das cidades que, até a época dos reis católicos, castigavam com a castração ou o apedrejamento, um castigo que mais tarde se modificaria para queima na fogueira nos casos mais graves29. A inquisição espanhola só se encarregava de julgar a sodomia na Coroa de Aragão. Em geral, o comentado para a Europa é válido para a Espanha, com a diferença de que não foram as cruzadas, mas a percepção dos reinos peninsulares mulçumanos, que levou a identificar a sodomia com o islamismo e a heresia. Em seu conhecido texto Graças e desgraças do olho do cu, Quevedo faz uma descrição bastante surpreendente dos usos do cu, omitindo completamente toda a repressão que já há muitos séculos viviam os sodomitas: Mas, quando pelo pacífico e virtuoso olho do cu houve escândalo no mundo, inquietude ou guerra? Quando, por ele, um cris28 29

Boswell, p. 174. Daqui vem provavelmente à raiz do insulto homofóbico em italiano, finoccio – bicha, e também hinojo. Naquela época se colocava os sodomitas na fogueira com folhas de hinojo para deixar o fogo mais lento e deixar o sofrimento mais longo e penoso. Talvez o insulto inglês faggot (bicha, e também haz de leña) provenha da mesma triste etimologia. Porém, estamos esperando uma desculpa da igreja católica por haver torturado e assassinado milhares de homossexuais.

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tão deixou de aprender orações, andar com sinfonias, se erguer em cajado ou seguir alguém, como se vê a cada dia por falta dos da cara que expostos à ventania e à inclemência, de ler, de fornicar, de uma purgação, de uma sangria, deixam um cristão no escuro? Provem ao olho do cu que matou jovens, cavalos, cachorros, etc.; que murchou ervas e flores, como fazem os da cara, olhando o quão peçonhentos são: pelo que dizem que têm mal de olho. Quando se verá que por ser testemunha ocular a ninguém tenham enforcado por ele, como pelos da cara, que ao dizer que o viram formam suas calúnias os escrivães? Fora que o olho do cu é um e tão absoluto seu poder, que pode mais que os da cara juntos. Quando se verá que nas irregularidades se metam com o olho do cu?

Apesar de nos dar esta visão idílica do cu como um espaço pacífico, onde nunca teve preocupação, inquietude nem perseguição, quando escreve a última desgraça do olho do cu, nos mostra uma verdadeira crueldade: Finalmente, tão desgraçado é o cu que, sendo assim que todos os membros do corpo folgaram e folgam muitas vezes, os olhos da cara gozando do formoso, os narizes dos bons odores, a boca do bem temperado e beijando o que ama, a língua brincando entre os dentes deleitando-se com a risada, com a conversa e com ser pródiga e uma vez que quis folgar o pobre cu, queimaram-no.

Suponhamos que a “queima” de que fala Quevedo é precisamente a dos sodomitas da época, o que contradiz a visão idílica do cu que está no começo do seu texto. O próprio Quevedo menciona os bugres e o cu em um insultante poema contra Góngora:

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CONTRA DON LUIS DE GÓNGORA E SUA POESIA Este ciclope, não siciliano, do microcosmo sim, orbe derradeiro; esta antípoda face, cujo hemisfério zona divide em vocábulo italiano; este círculo vivo em todo plano; este que, sendo somente zero, lhe multiplica e parte por inteiro todo bom abaquista veneziano; o minocu sim, mas cego vulto; o resquício barbado de melenas; este cume do vício e do insulto; este, em quem hoje os peidos são sereias, este é o cu, em Góngora e em culto, que um bugre o conhecesse apenas.

As leis contra a sodomia se mantiveram nos países europeus e, em geral, nas nações ocidentais até os séculos XIX e XX. Na França, as leis contra a sodomia foram anuladas durante a Revolução Francesa. Na Inglaterra, Henrique VIII introduziu o Buggery Act em 1533, que castigava a sodomia (chamada buggery; já vimos sobre sua origem no “outro”, neste caso, o búlgaro) com a força. A lei não foi eliminada até 1861. Na Alemanha, o parágrafo 175 não foi completamente abolido até 199430.

30

Para se aprofundar na história da repressão da sodomia na Espanha entre os séculos XIV e XVII, ver os livros de Garza, Federico Quemando mariposas: sodomía e imperio em Andalucía y México, Siglos XVI-XVII, Laertes, 2002, e Car-

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Cu, sexo e gênero: políticas anais. Apróstata: diz-se do homem que, tendo sido batizado em sua dimensão anal, decide renunciar a ela para sempre.

O cu, o ânus, o reto é um órgão sexual? A medicina nos dirá que não, que é uma parte do aparelho digestivo que não tem nenhuma função reprodutora, logo, não é um órgão sexual. E, como dizem a Igreja Católica e os grupos homofóbicos, seu uso erótico é uma perversão, já que não tem uma função reprodutora. Bem, por essa mesma lógica, como assinala Freud, a boca, como é outra parte do aparelho digestivo (precisamente o extremo em relação ao ânus) tampouco deveria ser usada no jogo erótico: seu uso sexual, o beijo, é então também uma perversão. Na realidade, como sabemos, o cu sempre foi usado como órgão sexual para o sexo e é aí que o sistema dominante de sexo e gênero começa a estremecer. A lógica tradicional heterocentrada, com seu binarismo pênis (homem) – vagina (mulher), como modelo do “natural”, o normal, o harmonioso, o que deve ser, vem abaixo quando entra em jogo um órgão que é comum a todos os sexos, e rasco, Raúl Inquisición y represión sexual em Valencia. Historia de los sodomitas (1565-1785), Laertes, 1985.

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que não está, portanto, marcado pelo gênero masculino ou feminino31. É um lugar estranhamente vazio das marcas de gênero. O binarismo sexual e o mito da cópula heterossexual-reprodutiva não podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua lógica e os coloca em dúvida. Inclusive questiona outro binarismo, o que divide os seres humanos em heterossexuais e homossexuais. E ainda que, como vimos, uma tradição milenar identifique continuamente a sodomia com a penetração entre homens, a realidade é que também homens e mulheres se penetram analmente em todas as combinações possíveis, com o que, na prática, se desmorona essa divisão. E se o que define um homossexual já não é mais a penetração anal, o que o define? Deixamos essa pergunta absurda à curiosidade médica-sexológica. Para nós, o que importa é precisamente a incoerência dessas definições. O que a história do sexo nos ensinou é que ele é algo muito maleável, dúctil, variável; discursos médicos recortam partes do corpo de diferentes maneiras sexuais de acordo com a época, contextos, discursos, lugares. A mão pode ser um órgão sexual em um século e não ser em outro. O clitóris faz sua aparição em dado momento da história da medicina, no século XVI, mas sua percepção como órgão sexual e sua função muda no século XIX. Até o século XVIII existia a teoria do sexo único, ou seja, somente existia um sexo, o masculino, e tudo que tinha a mulher era igual do homem, que era o protótipo, mas invaginado. O trabalho de Thomas Laqueur sobre

31

Para um desenvolvimento mais aprofundado desta questão, ver Preciado, B. Terror anal, em Hocquenghem.

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a construção social do sexo é fundamental para entender as condições culturais e sociais disso que chamamos sexo32. Mas o que queremos assinalar aqui é que, nas genealogias sobre o sexo e o gênero, não há nenhuma referência à importância do anal, à sua função reguladora sobre o normal e o patológico, nem sobre sua relação chave com a masculinidade e a feminilidade. Os discursos em torno do sexo anal configuram importantes valores e determinam práticas muito concretas: desde queimar seus praticantes na fogueira (como vimos no capítulo anterior), até enforcá-los ou fuzilá-los (na atualidade, em oito países, a prática do sexo anal entre homens é condenada à pena de morte: Afeganistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã, Mauritânia, Nigéria, Sudão e Iêmen; em alguns estados dos EUA, o sexo anal consentido de mútuo acordo entre adultos é um delito). Oitenta e cinco países perseguem a homossexualidade. A condenam com prisão, flagelação, internamento psiquiátrico ou campos de trabalho. E, em todos esses casos, o detonante, o indicador, a prova física do delito, é a prática do sexo anal. Não estamos falando somente de agressões verbais ou discriminatórias, estamos falando do assassinato de milhões de pessoas no decorrer da história, e no momento atual. Muitos povos não sabiam que havia uma relação direta entre o coito e a reprodução. Do mesmo modo, o cu, o ânus, foi algo sexual em muitos momentos, mas a priori é uma sexualidade que não é de “homens” nem de “mulheres”, não é masculina nem feminina, não é reprodutiva, não é genital. De fato, nem sequer necessita de um pênis; as pessoas se penetram com dildos, mãos, dedos, pés, objetos, línguas. Se o 32

Thomas Laqueur, La Construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta Freud.

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cu provoca emoções eróticas, sexuais e de prazer sem ser reconhecido como órgão sexual, então, o que é a sexualidade? Até onde chega, como defini-la, como capturá-la, como recortá-la, conceituá-la? O que é exatamente o genital? O sexo anal desmantela essas perguntas. Inclusive, se chamamos sexo anal... onde está aqui o sexo? Em que parte exatamente? Em Marquês de Sade encontramos um dos poucos elogios que existem na história do pensamento e da literatura sobre o sexo anal. Seu livro A Filosofia na alcova é um curioso texto onde se misturam numerosas cenas de sexo anal com reflexões sobre o desejo, a sexualidade, as relações humanas e a política. Nesta obra, Sade chega inclusive a questionar o modelo clássico da copulação pênis-vagina, e vai dizer que o lugar natural do pênis para a penetração é o ânus. Um dos protagonistas, Dolmancé, afirma o seguinte: A natureza, meu caro cavaleiro, se perscrutares com cuidado suas leis, jamais indicou outro à nossa homenagem que não fosse o olho do traseiro; ela permite o resto, mas ordena este. Ah, por Deus! Se não tivesse a intenção de que fodêssemos cus, teria ajustado tão proporcionalmente seu orifício aos nossos membros? Seu orifício não é redondo como eles? (SADE, 2003, p. 93)33.

Sade, também, vai insistir que, dentro do ato de sodomia, o passivo é quem desfruta de um maior prazer sexual. Talvez, pela primeira vez na história da literatura, encontramos uma valorização positiva do lugar receptor na penetração anal. Sade vai desenvolver no seu livro diversos argumentos onde faz uma leitura política do sexo anal: considera que é uma 33

Marques de Sade, La filosofia en el tocador, p. 99. [ed. bras.: Marques de Sade. A filosofia na Alcova. Trad. Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 2003.]

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prática que libera a mulher da pesada carga da procriação, dado que essa prática não é reprodutiva. Outro caso bem diferente de referência ao sexo anal encontramos em seu uso como forma de chegar virgem ao matrimônio. Em alguns países, o sexo anal entre homem e mulher é denominado sexo à irlandesa porque, ao que parece, era uma prática habitual para evitar a perda da virgindade. O mesmo se diz dos ciganos embora, na realidade, pode ser que se trate mais de um rumor racista do que de algo comprovado. Em todo caso, o que nos interessa dessas expressões é o reconhecimento do sexo anal como uma forma de deslocamento do sexo vaginal a partir da supervalorização da virgindade que realizou historicamente a Igreja Católica. De fato, parece que a Igreja sempre quis tapar todos os buracos porque foi a maior repressora da sodomia durante séculos. Inclusive hoje em dia seu ensinamento cotidiano contra os gays, lésbicas e transexuais, nos recorda esse triste passado. Em 30 de junho de 2005, o grupo ultradireitista Foro de la Familia, com o apoio do PP e da Igreja Católica, convocou uma manifestação em Madri contra o direito ao matrimônio para homossexuais. A manifestação não passou para a história por causa da presença de numerosos bispos (que jamais haviam participado de nenhum de tipo de manifestação), mas por uma declaração de uma senhora que assistia à manifestação e que foi entrevistada pela COPE. Suas palavras foram transmitidas ao vivo pela COPE, e depois, visto seu hilariante conteúdo, difundiram-se em numerosas rádios e em fóruns da internet até se converter em uma joia da história da reflexão sobre o sexo anal. Este é o conteúdo da famosa entrevista:

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REPÓRTER: Uma mãe de família se aproximou com alguns de seus filhos. Aqui temos suas duas crianças ao lado. Margarita, boa tarde. MARGARITA: Boa tarde. REPÓRTER: Feliz de estar aqui apoiando a manifestação... MARGARITA: Igualmente; olha, sim, estou feliz porque sou mãe e esposa, e tenho oito filhos. E penso que essa lei me agride pessoalmente como mãe, porque se uma mulher não se sente protegida pelas leis civis e pelo seu marido, dificilmente vai querer ter filhos. E quero falar outra coisa. Estudei neurociência quando fazia psicologia, então ali nos falavam de que quando os animais têm lesionada uma glândula que se chama amídalas, começam a apresentar comportamentos tais como os dos homossexuais: copular pelo ânus, onde o ânus ao receber esses.... esses espermas não podem nunca gerar, porque estão com cocô. Então eu não creio que isso seja interessante para sociedade em nenhum aspecto...34

Contra a crença comum de que o ânus ou o reto ou o intestino não pode ser fecundado, nos inteiramos, graças a Margarita, de que na realidade são as “fezes” que impedem que um jovem fique grávido. Por causa de Margarita e da COPE, podemos recordar uma das associações que mais se utiliza para desprestigiar o sexo anal: sua possível proximidade com as fezes. À parte impedir a fecundação masculina (Margarita dixit), as fezes são utilizadas frequentemente como argumento contra o uso prazeroso do cu. Na realidade, do mesmo modo que alguém pode lavar a vagina ou o pênis antes de transar, o cu também se limpa. O fato de que homens e mulheres mijem

34

Para escutar digite no youtube as palavras “cope manifestación homosexuales”; https://www.youtube.com/watch?v=cBqQUCae2cE; a entrevista é impagável.

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pela mesma zona dos órgãos genitais não faz com que rechacemos o sexo como algo asqueroso ou anti-higiênico. Mas a direita de sempre não é o único que tem problemas com o anal. As diferentes esquerdas tampouco escapam ao pânico anal, e em muitas de suas manifestações é habitual escutar todo tipo de mensagens e iconografias onde a penetração passiva é sinônimo do pior, da humilhação, do abjeto. É típica a imagem do trabalhador de quatro com as calças abaixadas sendo penetrado pelo patrão, e outras muitas piadas e cartazes onde o “mau” mete no cu do “bom”. Temos uma interessante reflexão sobre isso na introdução do livro O eixo do mal é heterossexual: Com orações como “com este governo só tomamos no cu” estaríamos situando-nos dentro de um grande paradoxo político: segundo os manifestantes, o governo de Aznar não só institucionalizava o prazer anal como semelhante prazer era central para a execução de sua política neoliberal. Enquanto que nós erguíamos nossos cus contra o militarismo e o capitalismo (“Prazer anal contra o capital”). Foram frases como “Aznar, filho da puta” que fizeram com que uma associação de trabalhadoras do sexo reagisse e comparecesse às concentrações segurando um cartaz no qual declaravam que Aznar não era filho delas. Dentre os slogans de manifestações contra a guerra, víamos duas pessoas fantasiadas de Bush e Aznar, ou de Bin Laden e Sadam Hussein, Blair – a leitora pode compor a representação seguindo qualquer tipo de combinação pueril com esses cinco elementos – simulando que estavam trepando, que um comia o cu do outro, etc. Longe de proclamar uma mariconização do mundo como ato perfeito para acabar com a guerra (“Vadias sim, Guerras não!”), não somente reiteravam a apelação a um slogan homoerotizado (neste caso, a guerra), se-

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guindo os preceitos da heterossexualidade obrigatória, mas que também qualificavam as práticas homoeróticas como abjetas35.

A tradicional homofobia dos comunistas e dos socialistas geralmente é corroborada com uma nula abertura ao mundo anal, quando não com uma verdadeira obsessão pelo escárnio contra este. Tampouco a retórica da macheza dos movimentos independentes costuma considerar a grande contradição que existe entre querer um Estado independente e leva consigo, por sua vez, o pior de suas instituições e de sua repressão sexual (por fim terei “minha” polícia, meus tribunais, meu exército, minha homofobia e meu machismo; mas os cus bascos, catalães, corsos, continuarão tão fechados quanto os cus espanhóis). Não existe um debate sobre o papel que teria o feminismo e as políticas contra a homofobia, a lesbofobia e a transfobia nessa nova sociedade (socialista, comunista, independente); isso fica sempre para o final da agenda, é “superestrutura”; algo “meramente cultural”, não tão importante quanto o novo Estado, ou como as questões econômicas. Como explica Judith Butler: Por que um movimento interessado em criticar e transformar os modos nos quais a sexualidade é regulada socialmente não pode ser entendido como central para o funcionamento da economia política? Na realidade, sustentar que essa crítica e transformação são uma questão central para o projeto do materialismo passou a ser a questão decisiva colocada por feministas socialistas e pessoas interessadas na confluência do marxismo com a psicanálise nas décadas de 1970 e 1980, e foi claramente iniciada por Engels e Marx, quando insistiam que o ‘modo de produção’ tinha que incluir formas de associação social (...) De fato, mui35

Grupo de trabalho Queer, El eje del mal es heterosexual, p.18.

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tos dos debates feministas daquele período trataram não só de caracterizar a família como uma parte do modo de produção, mas também de demonstrar como a produção mesma do gênero deveria ser entendida como parte da “produção dos próprios seres humanos conforme as regras que produzia a família heterossexual normativa”36.

O que estamos afirmando neste livro é precisamente isso, que o gênero também se produz por meio da regulação do cu e que, de fato, o acesso ao “humano” também tem relação com essa questão, na medida em que o sexo anal pode acarretar nada mais nada menos que a morte em oito países do mundo, e a prisão em mais de oitenta. Se isso não é um dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas, que nos deem outro exemplo melhor. Quando decidimos que neste livro queremos mostrar o que se produz ao redor da questão do cu, estamos dizendo que essas linhas que o controlam, o vigiam, o estigmatizam ou o promovem, conformam uma política. O cu é um espaço político. É um lugar onde se articula discursos, práticas, vigilâncias, olhares, explorações, proibições, escárnios, ódios, assassinatos, enfermidades. Chamamos de política precisamente essa rede de intervenções e relações. Porque para entender as causas e as condições da homofobia, do machismo e da discriminação em geral temos que entender como se relaciona o anal com o sexo, com o gênero, com a masculinidade, com as relações sociais. Coloquemos um exemplo muito chamativo: em fevereiro de 2009, um tribunal popular de Vigo absolveu Jacobo Piñeiro de dois delitos de assassinato. O autor, que reconheceu 36

Judith Butler, “El marxismo y lo meramente cultural”, em New Left Review, maio-junho, 2000.

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ter dado 57 punhaladas em dois jovens em uma casa da Rua Oporto, foi absolvido dos dois delitos de assassinato que requeriam as respectivas acusações; o júri considerou que o assassino acabou com a vida das vítimas em “legítima defesa” e por “medo insuperável” de ser estuprado. Aqui entra em jogo o fantasma do sexo anal, e a justificativa social deste estranho “pânico”, um pânico que não se compreende facilmente já que o mesmo acusado havia aceitado de bom grado ir até a casa dos jovens depois de conhecê-los em um bar gay. Nem as provas do julgamento, nem os depoimentos dos peritos da polícia científica, nem a confissão do próprio acusado, que admitiu ter dado 57 punhaladas em dois jovens com quem saiu uma noite, foram suficientes para que um jurado popular condenasse por assassinato Jacobo Piñeiro pelo crime da rua Oporto. Sua recente absolvição causou assombro em Vigo, onde o tribunal do júri da sessão 5ª, da audiência provincial deu a conhecer, na sexta-feira passada, o veredito da defesa dos delitos do assassinato e roubo, condenando o acusado por incêndio. Um golpe para os familiares das vítimas 37.

Quando falamos do político e do regime heterocentrado, parece que falamos de algo que já está dado, constituído desde sempre de forma estável por um “outro” que é responsável por nossos males. Acreditamos que seria conveniente inver37

El Pais, 29 de fevereiro de 2009. Em setembro de 2010, repetiu-se o julgamento e Jacobo Piñeiro foi declarado culpado dos dois assassinatos e condenado a 58 anos de prisão. “O júri também considerou por unanimidade que Piñeiro não agiu nem em legitima defesa, nem afetado por drogas ou pelo álcool, nem sob um medo insuperável – os meios de defesa que pedia para que o acusado fosse absolvido. A este respeito, foi lembrado que, segundo o informe forense ─ peça chave para o veredito de culpabilidade ─, as vítimas não puderam atacá-lo e estavam indefesas pelas graves feridas que tinham” El Foro de Vigo, 24 de setembro 2010.

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ter essa lógica, e mostrar que se trata de um regime muito complexo, que se constrói dia a dia; um regime cuja elaboração participamos todos em maior ou menor medida. Queremos recordar que todas essas risadinhas contra o passivo, inclusive dentro do ambiente gay, todas essas piadas de bichas que dão o cu, todas essas expressões negativas contra o sexo anal, toda essa perseguição às crianças bichas com a ameaça da penetração, tudo isso faz parte desse regime de terror que chamamos regime heterocentrado, um regime que impõe sua lei e sua violência, que vai do machismo à misoginia, do pressuposto de que somos todos heterossexuais, e de que só existem dois sexos; de que ninguém deve sair dos seus papéis de gênero; do ódio e da perseguição às sapatões, aos trans e às bichas; um regime que respira e cresce dia a dia, partindo dos púlpitos das igrejas e das mesquitas, das escolas, dos tribunais, das famílias, das rádios, das televisões e da imprensa. Como vimos, a repressão do anal tem um papel chave na construção da masculinidade contemporânea, e acreditamos que falta um debate sério e amplo sobre isso. É preciso deixar bem claro que essa questão faz parte de um entrelaçamento de ódio e de violência. Quando Jacobo Piñeiro dá essas 57 punhaladas em dois jovens gays, temos que desentranhar o que existe por trás deste medo “insuperável” e sua relação com o sexo anal. Quando o júri popular lhe absolve, temos que reconhecer que aqui, no “popular”, no povo, temos muito bem silenciada esta mensagem milenar contra o sexo anal, “é compreensível que tivesse medo, imagine, iam penetrá-lo”. Medo insuperável, homofobia insuperável. Nosso querido amigo Paco Vidarte publicou um magnífico livro poucos meses antes de morrer. O livro se chama Ética bicha, e é um texto fundamental para compreender como se 75 | Pelo CU

articulam hoje em dia as diversas lutas sociais e políticas em relação às minorias sexuais. Uma ética bicha deveria ser decididamente anal: uma Analética [...]. Não é o mesmo o que o poder entende pelo cu de uma bicha, e o que uma bicha entende o que é o seu cu. Para o poder, somos cus fodidos, cus sem eu, sem possibilidade, sem necessidade nem aptidão para levar iniciativas políticas alguma. Cu, para eles, para lhes dar. Cus que reclamam serviços públicos para não cagarem nas calçadas: está bem, vamos lhe dar, não é legal que nos encham tudo de merda. Cus despolitizados. Pois bem, o meu cu é coletivizado, o que não é o mesmo que ser meu cu. Tenho um cu solidário, o que não é igual a ter um cu que busca prazer egoistamente. Tenho um cu entregue, que não é o mesmo que um cu vampiro. Tenho um cu comprometido, incapaz de trepar com rabos anônimos, direitistas, debilitados, imigrantes: tanto faz. Ou, ao menos, essa é a ética a que aspira, sua analética. Já sabemos ao que nos conduziu a ética racional, a ética com o cérebro; uma puta ética feita com o cu nos resulta menos prejudicial, mais imediata, mais franca, mais carnal, mais vira-lata, mais animal, mais apegada às necessidades básicas das pessoas que andam com o cu ao ar. [...]. Me fascina pensar em um movimento LGTBQ que colocasse em prática uma política do buraco negro: absorver tudo, apoderar-se de tudo, chupar tudo sem dar nada em troca. Sobretudo, não dar nada de nós mesmas, não deixar que escape nada para fora, nem sequer uma parte mínima dos nossos eflúvios essenciais. Não dar nada ao sistema e lhes roubar tudo o que cair nas proximidades do nosso orifício negro 38.

Como se pode ver, esse texto de Paco foi o principal inspirador do nosso livro, e por isso dedicamos o livro a ele. En38

Paco Vidarte, Ética marica, pp. 88-89.

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tre outras tantas questões, Paco desenvolve uma inovadora proposta política e ética do anal. Mas não de uma analidade passiva nem envergonhada, mas uma ativa, vinculada a uma relação de negação frente ao poder. Não lhe dar nada, e absorver tudo. Paco abre a possibilidade de uma nova política bicha, sapata ou trans onde não existe intercâmbio, nem diálogo, nem negociação. Na verdade, o que está propondo é um giro histórico, a possibilidade de uma analidade ativa, de um cu ativo, de um cu que seleciona, escolhe, decide, capaz de criar sua própria ética, não uma ética universal e que, além disso, não facilita ao poder nenhum saber. A ciência, a antropologia, a medicina, a psicanálise, a sociologia, a imprensa, todos querem saber dxs bichas, dxs sapatões, dxs trans, das minorias sexuais. Pedem-nos que falemos; que confessemos; que negociemos; que nos expliquemos; que digamos como somos e o que queremos. A ética anal de Paco vai negar tudo isso. Acabou-se o diálogo e o informe. Porque as condições deste saber vêm manipuladas de antemão, porque as condições do diálogo são manipuláveis, partem de um desequilíbrio de poder, de quem tem o poder para escrever sobre as nossas vidas, coisificar-nos, classificar-nos, documentar-nos, converter-nos em objeto. Esse contexto homofóbico e machista já está prescrito de antemão, por isso não temos que cair no jogo: não responder, não pedir nada, não dizer nada. Somente ser um buraco negro: Logo, dando voltas ao buraco negro, me veio à mente a necessidade de personalizar essa política, fazê-la nossa, dar-lhe umas características indiscutíveis de identidade. E do buraco negro passei ao olho do cu. Novamente o cu me oferecia à reflexão como portador de valores insondáveis, inexplorados, a maioria ainda por descobrir, estando como estão, ali na frente, ou atrás, 77 | Pelo CU

absolutamente expostos e acessíveis. O eterno erro de pensar com o cérebro e não pensar com o cu. De fazer políticas cerebrais e não políticas anais. Outra vez a analética cruzava o meu caminho. Fazer do cu o nosso instrumento político, a consigna fundamental de outra militância LGTBQ, desenhar uma política anal muito básica: tudo para dentro, receber tudo, deixar que tudo penetre e para fora somente soltar merda e peidos, esta é nossa contribuição escatológica ao sistema. Haverá quem veja nisso uma típica política de uma passividade fundamentalista. Não me parece mal. Mas, opor esta política à política falocrata de sempre não creio que seja uma coisa ruim. O esfíncter é perfeitamente capaz de se converter em sujeito político, se fechar e abrir-se, se dilatar ou contrair-se; como dizem os heteros inconscientes necessitados de uma penetração: que não passe nem o bigode de um camarão. O cu sempre foi objeto de violação, de vexação, de estigmatização. De desejo. Uma passividade mais passiva que toda passividade. Mero receptor. Órgão penetrável, traseiro, vulnerável, pouco vigiado, cuja única atividade política, sua única iniciativa própria reconhecida era colocar-se ante a parede como estratégia defensiva. Sempre houve uma política anal. Não estou a inventá-la agora. O que estou inventando é uma política anal diferente. Que não vai na defensiva, que não seja meramente receptiva, que não seja vergonhosa: meta-me tudo o que eu quero que entre pelo meu cu e depois fique com meus dejetos e cheire meus peidos. Sinceramente, eu não vejo outra maneira de me relacionar com o sistema. E me dei conta de que há muito tempo faço isso sem estar consciente disso. E que há muita gente que anda nas proximidades39.

No final dos anos 80, o poeta e ensaísta bicha argentino Néstor Perlongher também havia assinalado esta relação en-

39

Paco Vidarte, Ética marica, pp. 88-89.

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tre o poder e a analidade. No seu assustador artigo: Matam uma bicha, lemos o seguinte: Para dizer de forma rápida, estas forças convergem no ânus; todo um problema de analidade. A privatização do ânus se diria seguindo O anti-Édipo, é um passo essencial para instaurar o poder da cabeça (logo-ego-cêntrico) sobre o corpo: “só o espírito é capaz de cagar”. Com o bloqueio e a permanente obsessão da limpeza (toque de algodão) do esfíncter, a flatulência orgânica, já etérea, sublima-se. Se uma sociedade masculina é – como queria o Freud de Psicologia das Massas – libidinalmente homossexual, a contenção do fluxo (barro azul) que ameaça romper as máscaras sociais dependerá, em boa parte, do vigor dos pedaços. Ir à merda ou esvair-se em merda parece o máximo perigo, o escândalo sem volta (não chegar a tempo até a privada desencadeia, no El Fiord de Osvaldo Lamborghini, a violência do Louco Autoritário; Bataille, por sua vez, via na incontinência das tripas o retorno orgânico da animalidade). Controlar o esfíncter marca, então, algo como um “ponto de subjetivação”: centralidade do ânus na construção do sujeitado continente40.

O ânus é uma grande metáfora de controle dos sistemas sociais. Podemos definir um sistema como uma estrutura topológica (o espacial) com um dispositivo termodinâmico (a energia que circula nesse espaço). O político é uma regulação desses espaços e dos fluxos de energia. Todo sistema social é um sistema aberto, necessita de intercâmbios de energia, informação, população, força, matéria. Tente fechar uma cidade e ela morrerá. Tente fechar o cu de uma pessoa e ela morrerá. Esse controle chega até nossos corpos, obriga-nos a ajustarmos alguns papéis de gêneros e sexuais, como atuar, trepar, 40

Texto complete em http://www.literatura.org/Perlongher/npmatan.html

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trabalhar, vestir, viver. Inclusive chega a regular nossos esfíncteres: só deve ser um espaço de saída, nunca de entrada. Ao menos como valor público. Como já colocamos, na realidade, existe uma variedade enorme de penetrações anais. O pornô, por exemplo, é uma máquina de produção de imagens e uma tecnologia de gênero; no cinema pornô, tanto hetero como gay, aparecem penetrações anais continuamente, é quase um requisito indispensável. Existe nisso uma esquizofrenia que explica o mal-estar do anal: todo mundo fantasia com ele, deseja-o, excita-lhe, olha-o, pratica-o em segredo; o pornô o promove, valoriza, explora, coloca-o no centro do seu discurso. Mas diante do público, e dos valores sociais, tomar no cu é o pior. Como se explica essa dupla moral? Trata-se de um enorme armário do qual ninguém fala, o armário do sexo anal. Um exemplo curioso da relação entre o sexual e o anal se dá no idioma francês. Em francês, a palavra cul, cu, é sinônimo de sexo. Um film de cul é um filme pornô (não pornô gay, mas de qualquer tipo). Une histoire de cul (uma história de cu) é ter transado, é ter feito sexo com alguém, só que não analmente, mas em geral. Neste caso, a identificação de cu com o sexual, inclusive com o coito anal, é total, faz parte da linguagem cotidiana. Isso não significa que a penetração anal seja mais considerada na França que em outros países, a atitude é a mesma41. O escritor bicha chileno Pedro Lemebel também colocou em alguns de seus textos essa relação entre a masculinidade e a negação do cu: 41

Bob O’Neill no seu livro Variations scatologiques. Pour une poétique des entrailles, dedica uma parte ao sexo anal onde cita mais de cem expressões que existem no francês em torno da analidade e da sodomia (pp. 93-98). Ver também Villon, F., Ballades em argot homosexuel, e Nelson, I. La Sottie sans souci, essai d’interprétation homosexuelle.

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O futebol é outra homossexualidade velada Como o boxe, a política e o vinho Minha hombridade foi morder minhas chacotas Comer raiva para não matar todo mundo Minha hombridade é aceitar-me diferente Não ofereço a outra face Ofereço o cu companheiro E esta é minha vingança Minha hombridade espera paciente Que os machos se façam velhos Porque a esta altura do jogo A esquerda rasga seu cu frouxo No parlamento

Uma das melhores leituras das políticas ao redor do ânus está no livro de Beatriz Preciado, Testo Yonqui [Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica]. Preciado denomina como sexopolítica esse conjunto de práticas sobre o sexo, a sexualidade e a raça, que vão regular a construção do corpo desde o século XIX até a atualidade. Esse sistema de construção biopolítica vai localizar o “sexo” como centro da subjetividade, mas para isso terá que diferenciar órgãos e designar-lhes funções, funções produtoras da masculinidade e da feminilidade, do normal e do patológico. Preciado expõe as ideias de Deleuze e Guattari n’O anti-Édipo, e de Guy Hocquenghem n’O desejo homossexual, que vai localizar o ânus como o primeiro órgão que é excluído do campo social, explicando como essa operação de exclusão vai servir para construir o corpo heterossexual masculino:

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Uma sexualidade implica uma territorialização precisa da boca, da vagina, da mão, do pênis, do ânus, da pele. Deste modo, o pensamento straight [...] garante a relação estrutural entre a produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos (em detrimento de outros) como órgãos sexuais e reprodutivos. Boa parte desse trabalho disciplinador consiste em retirar o ânus dos circuitos de produção de prazer. Deleuze e Guattari: o ânus é o primeiro órgão privatizado, colocado fora do campo social; aquele que serviu como modelo de toda privatização posterior, ao mesmo tempo que o dinheiro expressava o novo estado de abstração de fluxos. O ânus, como centro de produção de prazer (...) não tem gênero, não é nem masculino nem feminino, produz um curto-circuito na divisão sexual, é um centro de passividade primordial, lugar abjeto por excelência, próximo do detrito e da merda, buraco negro universal por onde se colam os gêneros, os sexos, as identidades, o capital. Ocidente desenha um tubo com dois orifícios, uma boca emissora de signos públicos e um ânus impenetrável, e enrola em torno disso uma subjetividade masculina e heterossexual que adquire status de corpo social privilegiado”42.

Para Preciado, a subjetividade masculina hetero se baseia nesse corpo onde a boca pode se abrir continuamente no espaço público e onde o ânus é fechado completamente e privatizado ao máximo. Os homens podem falar em público, mas não devem dar o cu. Pelo contrário, o processo de produção da subjetividade feminina heterossexual exigirá uma privatização da boca (privatização dos signos emitidos) e uma abertura pública do ânus e da vagina, tecnicamente regulada. As mulheres têm que se calar e são penetráveis.

42

Preciado, B., Testo Yonqui, pp. 59-60.

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Regressando a essa relação entre a masculinidade e a impenetrabilidade, é interessante assinalar que a masculinidade não é algo privativo dos homens, ou próprio dos homens. As mulheres também têm contribuído para construir isso que chamamos masculinidade, como demonstrou Judith Halberstam em seu magnífico ensaio Masculinidade feminina. O livro é uma viagem fascinante pelas diferentes formas de masculinidade que as mulheres têm exercido ao longo da história, desde as mulheres que passavam por homens nos séculos XVIII e XIX, passando pelas maria-homem, as mulheres soldado, as lésbicas butch, ou os drag kings. Queremos nos deter em uma das figuras que aparece no livro de Halberstam, porque tem uma relação especial com a penetração: a stone butch. No capítulo: Masculinidade lésbica: as Stone butch também se deprimem, Halberstam nos coloca o seguinte: Temos também as butches “de granito”, stone butches que não se enternecem nunca e que são impenetráveis. A stone butch é um lugar muito apropriado para se começar a fazer uma genealogia da diversidade butch, porque é uma categoria muito enigmática: como veremos, a parte “stone” de stone butch se refere a uma espécie de impenetrabilidade, e isto coloca alguns aspectos curiosos de “não ação” sobre a identidade sexual butch. A stone butch tem a duvidosa diferença de ser provavelmente a única identidade sexual que se define quase por completo em função de práticas que não faz. Poderíamos perguntar se existe alguma outra identidade que se define pelo que a pessoa não faz. O que significa definir uma identidade sexual e um conjunto de práticas sexuais que configuram esta identidade dentro de um registro negativo? Quais são as implicações de uma ação negativa para teorizar as subjetividades sexuais? Além disso, poderíamos talvez imaginar que se defina uma identidade sexual

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masculina em termos de “não ação”? Muitos homens não praticam a penetração sexual como parte de seus hábitos sexuais e, não obstante, esta omissão não provoca comentários e é claro que nunca se diagnosticou esta conduta como um complexo de disfunção sexual. Quem sabe tenhamos que recorrer ao termo “homem stone” quando o medo da penetração vem combinado com a ilusória sensação de superioridade inata e de violência de diversas formas, incluindo a sexual. “O homem stone” poderia se tornar uma ferramenta de diagnóstico para identificar as patologias sexuais dos homens adultos43”.

A irônica reflexão de Halberstam sobre o homem stone explica muito bem a dupla moral que se aplica sobre a penetração que se dá no homem ou na mulher. Enquanto no homem, “ser intocável” é poderoso e positivo, nas mulheres isso foi sempre relacionado com a disfunção, a melancolia e a desgraça44. Esta “não ação”, não ser penetrado, não é considerada uma patologia nos homens como no caso das mulheres; pelo contrário, no caso dos homens, a patologia consiste em ser penetrado. Por outro lado, o interessante da análise de Halberstam sobre a stone butch é que ela vai exercer a masculinidade por meio de uma renúncia à penetração; é por esse gesto que ela vai ser considerada masculina, mas, como coloca Halberstam, ela vai ser considerada uma doente, alguém que está condenada ao fracasso e à tristeza. Mais uma vez, o critério de gênero vai filtrar a visão social da masculinidade e do penetrável: no caso da mulher, uma masculinidade “fracassada” ou, em todo o caso, incompreendida, já que se supõe que seu destino, como mulher, é a penetração. O rígido 43

Halberstam, J., Masculinidad femenina, pp. 148-149.

44

Halberstam, J., p. 149.

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sistema se aplica de novo: o impenetrável é somente coisa de bio-homens. Esta posição da stone butch nos coloca um interessante problema lógico, o mesmo que já teve a conexão neuronal de Luis Aragonés, especificamente, o problema que se deu em seu neurônio 6: se sou um homem, então meu cu é impenetrável (Ou é ao contrário, como era isso?). Existe uma lógica circular entre a masculinidade e a impenetrabilidade. Se é masculino e por isso se é impenetrável, ou se é impenetrável e por isso se é masculino? Como já assinalamos, na realidade não existe uma essência natural da masculinidade; nem sequer o discurso médico sobre os hormônios “masculinos”, a testosterona, é algo bem fundamentado. Como explica Anne Fausto-Sterling, os hormônios que agora chamamos com demasiada rapidez de “femininos” e “masculinos”, são necessários para o desenvolvimento de muitos órgãos vitais e, além disso, tanto os homens quanto as mulheres necessitam de ambos os tipos de hormônios para o desenvolvimento corporal. Foi um preconceito dos pesquisadores que fez com que se definissem certos hormônios (progesterona, estrogênio, testosterona, na realidade regulares ontogênicos de amplo espectro) como “sexuais”. Fausto-Sterling explica, em seu livro, de que modo a pesquisa científica sobre a biologia hormonal esteve sempre estreitamente ligada à política de gênero. O cérebro, os pulmões, os ossos, os vasos sanguíneos, o intestino, o fígado, todos requerem estrogênios para seu normal desenvolvimento. As funções e os efeitos do estrogênio e da testosterona são conhecidos há décadas45.

45

Fausto-Sterling, A., Cuerpos sexuados, p. 180.

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Então, se a masculinidade não está nos genitais (existem biomulheres masculinas, e existem trans F2M que são homens sem genitais masculinos), nem nos hormônios... onde está? Ora, no cu, ou, mais precisamente, em sua impenetrabilidade. Claro que isso é assim dentro do regime heterocentrado e machista. Como veremos no capítulo sobre o fist, certas comunidades de couro e sadomasoquistas gays e lésbicas têm subvertido esse regime, e têm desenvolvido uma apropriação da masculinidade precisamente pelo lugar mais inesperado, por uma valorização do papel passivo na penetração. Santiago Sierra apresentou, no começo de 2009, a obra Os Penetrados. É um vídeo de 45 minutos em 8 atos, onde pode-se ver todas as formas possíveis de sexo anal entre homens e mulheres, de raça branca e negra. A obra pretende ser uma reflexão sobre o pânico associado à imigração, comparando-o com o pânico ao sexo anal, o pânico de dar o cu. A exposição abriu uma polêmica sobre a possível provocação que supunha semelhante vídeo, mas o mais interessante para nós está em um detalhe de que se falou pouco: o casting que Sierra preparou levantou muito mais gente do que era necessário, um indicador de que um mero ato de penetração anal não assusta tanto, não produz tanto rechaço, pelo contrário. As faces foram pixeladas para evitar a identificação das pessoas que atuavam, ou seja, nos encontramos com um novo armário anal, e uma nova mostra de que talvez a base do pornô esteja no rosto, não nos genitais. Tampouco se pode considerar esse vídeo como uma provocação, dado que, há muito tempo, o sistema assimila quase todas as variantes da sexualidade

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(talvez o canibalismo e a pederastia sejam os únicos atos que ainda escandalizam o sistema)46.

46

Ver imagens do vídeo em: http://www.santiago-sierra.com/200807_1024.php. Outros artistas que exploraram o tema do sexo anal a partir da pintura, da performance ou da fotografia são Juan Hidalgo, Ron Athey, Pierre Molinier ou Robert Mapplethorpe. http://www.ronathey.com/

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Ativo, passivo, hetero, homo, versátil... A conversão em bicha pelo cu. Eu não ofereço a outra face Ofereço o cu companheiro. Pedro Lemebel

Já mencionamos que um dos maiores temores de muitos heterossexuais masculinos é que possam “virar” bicha pelo fato de serem penetrados, mesmo por suas mulheres47. Existe, de um lado, um pânico em ser homossexual e, ao mesmo tempo, uma repressão do desejo homossexual que estrutura toda nossa sociedade ocidental. O escritor e militante gay Guy Hocquenghem, em seu livro pioneiro de 1972, O desejo homossexual, foi um dos primeiros autores gays a colocar so47

Neste capitulo e em todo o livro há ausências significativas: fala-se pouco do sexo anal entre lésbicas e entre pessoas transexuais. Os motivos dessa omissão são dois: primeiro, os autores, dois bio-homens bichas, e consideramos que corresponde a esta comunidade fazer sua própria genealogia e interpretação do que significa o sexo anal e das suas práticas; não queremos nos apropriar nem sermos porta-vozes ou intérpretes do que não nos corresponde; segundo, acreditamos que a obsessão e a perseguição do sexo anal aconteceu, sobretudo, com relação ao sexo anal entre homens, e, sobretudo, na posição do homem penetrado; dispomos de muito mais informações sobre os atos de sodomia entre homens e, por isso, podemos fazer uma análise mais fundamentada do que significa historicamente o anal para o regime heterocentrado e para a construção social da masculinidade. (Sobre o sexo anal para mulheres, ver os livros e os filmes de Tristán Toarmino: http://www.puckerup.com?/ e ver na bibliografia.)

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bre a mesa o desejo homossexual como algo cuja repressão cria, precisamente, a paranoia anti-homossexual. O medo da própria homossexualidade leva o homem a um temor paranoico de vê-la aparecer ao seu redor. Hocquenghem se vale dos textos de Deleuze e Guattari n’O Anti-Édipo para fazer uma dura crítica da psicanálise e da sociedade da sua época com uma leitura subversiva da oposição falo-ânus. Para ele, a sociedade atual é fálica, o falo é o mais valorizado; é o que organiza o poder e os espaços sociais. Em oposição ao falo, o ânus se privatiza, é algo que deve permanecer oculto, no terreno “do privado”: Para que haja transcendência do falo (organização da sociedade em torno do grande significante), é necessário que o ânus seja privatizado em pessoas individuais e edipianizadas 48.

Para a psicanálise, as pulsões anais do menino e da menina devem ser sublimadas para chegar à genitalidade. Por isso, o anal fica renegado ao silêncio, à solidão. Para Hocquenghem, o desejo homossexual questiona essa necessidade de sublimação do anal, dado que manifesta um uso desejoso do ânus. Isso desafia a primazia social do falo, para a qual o desejo e o prazer anal são condenados. Em seu epílogo do livro de Hocquenghem, Terror Anal49, Beatriz Preciado menciona uma reflexão importante do próprio Hocquenghem, que denunciará em 1984: Como os movimentos revolucionários, em busca de visibilidade, se viram absorvidos por seu próprio processo de espetacu48

Guy Hocquenghem, El deseo homosexual, p. 72.

49

Preciado, B., Terror anal, epílogo a Guy Hocquenghem, O desejo homossexual, p. 163.

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larização. Porque não basta ter tido o ânus aberto. É necessário seguir fazendo dele um campo relacional. Como fazer política sem renunciar ao ânus? (...). A antiga pergunta: como a revolução anal? Se metamorfoseia em outra neste momento: como evitar o marketing anal?

Essa reflexão é importante para ficarmos alertas contra o possível uso dessas políticas para promoções pessoais baseadas em espetáculos midiáticos interesseiros. Por exemplo, na última década, a eclosão do movimento queer na Espanha derivou em ocasiões voltadas precisamente a isso que menciona Preciado: uma reapropriação do ativismo para um uso midiático e personalista, para a venda de projetos culturais “queer” para as instituições, museus, universidades e meios de comunicação; quer dizer, converteu-se em uma espetacularização banalizada para o consumo de heteros curiosos ou entediados, para épater le bourgeois, e para alimentar a máquina estatal da cultura, que precisa de novos brinquedos com os quais se divertir e com o quais ganham um ar de progressismo e abertura. Queer is business!50 Na contracapa do livro de Hocquenghem lemos um parágrafo que, no nosso entendimento, deixa-se levar exatamente por esse excesso de promessas revolucionárias que tão bem funcionam com o mundo do marketing. O ânus, esse obscuro objeto do desejo, esse injuriado vórtice secreto que reside em todos nós, o inominável, ameaça engolir os fundamentos da sociedade, regurgitá-los e conduzir a cidadania a uma ruína moral absoluta da qual ninguém poderá escapar.

50

Ibid, p. 163.

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Esse é o desafio anal: um golpe de Estado desenvolvido, encubado, nas mesmíssimas entranhas da hetero normatividade. 51

Bom, nós somos um pouco mais modestos. Não acreditamos que dar o cu vá subverter a ordem social, nem que vai corromper a moral de toda a humanidade. Como assinalamos, ainda que a prática anal seja algo independente do gênero e das pessoas, sua associação com a homossexualidade é muito arraigada na atualidade. Essa associação tão forte fez parte da origem da construção do corpo homossexual. Desde meados do século XIX, vimos que o olhar médico se dedica a observar minuciosamente os pênis e os ânus dos sodomitas. Supõe-se que há uma série de características físicas próprias dos sodomitas. Como expõe Ricardo Llamas em seu artigo A reconstrução do corpo homossexual em tempos de AIDS (no livro Construyendo sidentidades [Construindo identidaids]): O descobrimento do novo “corpo homossexual” parecia, em princípio, uma simples questão de observação sagaz. O mero reconhecimento de uma anatomia permitiria “descobrir (desvelar) o “homossexual”. Assim, o já mencionado médico francês Ambroise Tardieu escrevia em 1857 (vinte anos antes que Lombroso “reconhecesse” o delinquente) que os sodomitas podiam ser identificados, já que apresentavam uma dilatação do esfíncter, um ânus em forma de funil, um pênis pontiagudo e de reduzida dimensão, os lábios grossos e deformados, a boca torcida e

51

Sobre esta questão de viver o queer e sua transformação atual em objeto de consumo, ver o texto de Paco Vidarte, el banquete uniqueersitario: disquisiones sobre el s(ab)er queer, em Cordoba D., Vidarte P., Sáez J. Teoria queer, pp. 77-110.

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os dentes bem curtos. Tais eram os signos que demonstravam a prática de penetração anal e da felação 52.

Mas a exploração do corpo não vai se deter aqui, ela vai chegar a determinar características do “ativo”, diferenciadas das que são próprias do “passivo”. Prosseguindo com outra passagem do texto de Llamas: Outro especialista em medicina legal, o alemão Friedrich, caracterizava o sujeito perverso, também em meados do século XIX, em função de um duplo critério referente à prática sexual. Assim, o “ativo” tem o pênis “delgado e pequeno” e “persegue garotos jovens com um olhar lascivo”, “o passivo” apresenta uma coluna vertebral para cima, mais ou menos torcida, enquanto que “a cabeça pende para frente”. Os traços faciais afundados, o olhar apagado e sem vida, os ossos da face ressaltados e os lábios que parecem apenas poder cobrir os dentes53.

Mas, esse tipo de análise, que hoje pode parecer louca e ridícula, quando não abertamente sinistra, não são coisas de um passado distante. Em 1981, o médico penitenciário espanhol Alberto García Valdés publica um livro na Espanha, História e presente da homossexualidade, onde faz um estudo geral da homossexualidade a partir de uma amostra de 205 presos. O autor explica com detalhes sua metodologia: Uma vez obtida uma boa relação com o sujeito explorado, passava-se ao estudo da morfologia somática, anotava-se o tipo constitucional, passava-se e media, observando o desenvolvimento dos caracteres sexuais primários e secundários. Em alguns ca52

Llamas, R., Construyendo sidentidades, pp. 162-163.

53

Ibid, p. 163.

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sos se realizavam fotografias quando o sujeito era transexual, ou apresentava alguma característica de interesse54.

E, falando de prisioneiros, é interessante recordar que na Espanha franquista havia uma prisão para onde levavam as bichas “passivas” e outra para as “ativas”. Ainda nos perguntamos como detectavam essas identidades tão definidas nas vítimas dessa brutal repressão homofóbica. Segundo os cálculos da associação de ex-presos sociais, cerca de 4.000 pessoas foram presas por homossexualidade durante o franquismo. A cifra é somente uma aproximação, porque os dados estão divididos por instituições penitenciárias e policiais e, em muitos casos, o condenado alegava delito de prostituição no lugar de homossexualidade. Antônio Ruiz foi denunciado por uma vizinha monja em 1976. Franco já estava morto e ele tinha 17 anos. Às seis da manhã quatro secretos foram buscá-lo em sua casa. Passou três meses na penitenciária de Badajoz, uma das prisões que o regime havia preparado para “curar” os gays. À Badajoz iam os chamados “passivos” e, à prisão de Huelva, os “ativos”. As lésbicas eram enviadas ao manicômio. Era a época do eletrochoque e das terapias aversivas, que consistiam em colocar, em sequência, imagens de homens e mulheres, dando descargas elétricas no homossexual quando apareciam homens, relata Ruiz55.

54

Alberto García Valdés, Historia y presente de la homosexualidad, p. 131. Citado no livro de Llamas, R. p. 162, nota 10. Uma vez mais, prisão e homossexualidade unidas graças às “ciências sociais”. Supomos que a esse brilhante cientista não ocorria estudar “a heterossexualidade” e menos ainda com uma amostra de 205 presos hetero...

55

El PAIS, 27/12/2006.

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Esses olhares, explorações e buscas anatômicas consolidam, uma vez mais, a associação penetração anal = homossexualidade. Nada se diz nesses textos sobre as penetrações anais entre homens e mulheres, e é precisamente esse silêncio, essa enorme omissão, o que vai consolidar a sodomia como o referente único e exclusivo do sexo anal. Uma vez mais, o regime heteronormativo limpa seu próprio território e apaga suas trilhas referentes ao desejo anal. É interessante lembrar-se da análise de Foucault sobre a sodomia, que era simplesmente um ato, com o passo que foi dado com a medicina e a psiquiatria do século XIX rumo a uma nova forma de categorizar, que vai criar um tipo de pessoa, “o homossexual”. Até o final do século XIX, realizar o ato do sexo anal, a sodomia, era uma categoria do antigo direito civil e canônico, e descrevia um tipo de ato proibido; o autor era somente seu sujeito jurídico. Em contraponto, o “homossexual”, categoria que aparece na segunda metade do século XIX, é algo muito diferente: O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo delas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém, como natureza singular. É necessário não esquecer que as categorias psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade, constituíram-se no dia em que esta foi caracterizada ─ o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as “sensações sexuais contrárias”

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pode servir de data natalícia – menos como um tipo de relações sexuais do que como certa qualidade da sensibilidade sexual, certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.

Como são espécies todos esses pequenos perversos que os psiquiatras do século XIX entomologizam, atribuindo-lhes estranhos nomes de batismo: há os exibicionistas de Lasegue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de Krafft-Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres dispaurêunicas. Esses belos nomes de heresias fazem pensar em uma natureza relapsa o suficiente para escapar à lei, mas autoconsciente o bastante para ainda continuar a produzir espécies, mesmo lá onde não existe mais ordem. A mecânica do poder que ardorosamente persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente: encrava-o nos corpos, introdu-lo nas condutas, torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão desses milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas 56.

56

Foucault, M., Historia de la sexualidad, Vol. 1, pp. 56-57 [ed. bras.: Foucault, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999].

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Essa lúcida análise de Foucault é útil para compreender até que ponto o que supõe o anal tem uma historicidade e valores concretos. A homossexualidade nasce vinculada ao sexo anal, mas vai muito mais além, dentro de um discurso médico, psiquiátrico, como uma patologia e, o que é mais importante, como uma forma de identidade global que se impõe ao sujeito. Outra convenção muito comum entre a cultura heterossexual é conceber o par gay com os seus mesmos padrões; essa estupidez que nos perguntam com tanta frequência quando veem um par de bichas: “Então, entre vocês, quem é o homem e quem é a mulher? ”. Essa pergunta, obviamente, contém várias pressuposições absurdas: primeira, que os gays têm que reproduzir a rígida e limitada cultura sexual hetero onde cada um sempre tem que fazer um papel (o homem: penetrar / a mulher: ser penetrada). Segunda: que ser penetrado equivale a “ser mulher”, e que penetrar equivale a “ser homem”. Terceira: que os heteros não se penetram entre si. Na realidade, a prática sexual entre gays não mantém este modelo hetero. Vamos fazer um pouco de sociologia caseira para ilustrar isso, mesmo que tampouco seja necessário explicar isso a ninguém.

Um experimento sociológico: A estatística do BEARWWW Sem nenhuma vontade de cientificidade nem de seriedade, vamos aproveitar uma das “pesquisas” mais amplas que existem no mundo sobre tendências sexuais gays. Se lhes disséssemos que fizemos uma pesquisa junto a 170.000 bichas de cinco continentes sobre suas práticas ou preferências sexuais, acreditariam? Pois assim é. Bem, não exatamente. Essa pesquisa já existe, nós não a fizemos, basta aproveitar um pouco da internet. Vamos utilizar um dos sites mais conhecidos de 97 | Pelo CU

namoro gay para fazer um pequeno estudo sobre os passivos e os ativos. Trata-se da página www.bearwww.com. Este site conta com mais de 170.000 perfis, e tem a vantagem de que cada um deles nos dá uma descrição de suas preferências sexuais. Realmente é um site que reúne gays de todas as tendências, faz tanto sucesso que é uma referência para gays de qualquer subcultura; na verdade, somente 45.000 perfis desse site consideram a si mesmos ursos, ou seja, somente 25%, a quarta parte. De qualquer modo, não importa que a pesquisa seja enviesada, porque essa brincadeirinha que vamos fazer não tem nenhuma intenção de rigor científico, mas, ainda assim, 171.842 perfis é uma amostra impressionante de bichas, que talvez possa nos dar informações interessantes. Os homens desse site têm entre 18 e 80 anos, e pertencem aos 5 continentes (mais de 80 países). O motor de busca dos perfis do bearwww se organiza segundo as seguintes seções, referentes à prática sexual:

• • • • • • • •

Ativo; Passivo; Versátil; Somente oral; Somente masturbação; Ativo/versátil; Passivo/versátil; Não disse.

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A primeira busca que nos interessa aqui é ver, desses 171.842 homens, quantos se consideram exclusivamente ativos e quantos exclusivamente passivos: • 26.018 homens, exclusivamente ativos. Quer dizer, 15,2%. • 24.816 homens, exclusivamente passivos. Quase a mesma porcentagem, 15%. O restante, 120.000 homens, 70%, se posicionam nas demais categorias; isso significa que podem ser flexíveis quanto a utilização do cu como receptor e, ao mesmo tempo, em ser penetradores de outros cus. Nesse sentido, um dado muito revelador é a porcentagem de pessoas que se consideram versáteis, a maioria: • Versátil: 70.000. 41%; • Ativo-versátil: 11.278. 6,6%; • Passivo-versátil: 11.311. 6,6%. Somadas essas três categorias versáteis temos 54% (não temos ideia nem de por que há um equilíbrio tão grande entre ativos e passivos, e entre os ativo-versáteis e passivo-versáteis). • Somente oral: 1.674. Não chega a 1%; • Somente masturbação: 367. 0,2%; • Não disse: 26.806. 15%. Este dado também é interessante porque denota um desacordo com essas categorias que estão utilizando nos sites. Também pode ser por um desejo de privacidade, de não declarar em público a sua preferência sexual.

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O que se deduz dessa “pesquisa” é que, dentro da comunidade gay, não há uma divisão significativa “ativo” versus “passivo”, no que é referente ao anal. Isto é, somente uma porcentagem muito pequena pratica unicamente a penetração como ativo ou como receptor, o que vai contra a crença comum hetero. O mais interessante é que a maioria dos perfis mostra uma grande flexibilidade, ou seja, a possibilidade de estar abertos a ser penetrado ou a penetrar. Isso significa que o estereótipo segundo o qual os gays “se dividem” em pessoas passivas e ativas é uma falácia criada a partir de uma visão heterocentrada, binária e simplista, que não corresponde com as práticas da própria comunidade gay, mas aplica (injustificadamente) o modelo do casal hetero “homem/mulher” às pessoas gays por meio de uma separação artificial entre “ativos” e “passivos”, como essências separadas que dariam lugar a identidades separadas e diferenciadas. O mais interessante dessa reflexão é que essa separação não é real. Isto é, que na prática, penetrar e ser penetrado são duas opções disponíveis ao mesmo tempo, opções do jogo sexual de uma mesma pessoa. Um dado curioso é a divisão tão equilibrada entre ativos e passivos. Tanto entre os homens que se definem como exclusivamente ativos, como os exclusivamente passivos, e entre os que se definem como ativo/versáteis ou passivo/versáteis, o equilíbrio é total (15% ativos e 15% passivos; 6,6% ativo/ versáteis, 6,6% passivo-versáteis). Ou seja, dentro dos que assumem mais ou menos um desses dois papéis, em conjunto, não há diferença significativa quanto a passivo e ativo. Isso quebra também outro estereótipo sobre os gays, o de que todos “gostam que lhes fodam”, e a ideia de que ser passivo é próprio da bicha. Contra esse preconceito tão amplo, esses 100 | Pelo CU

dados sugerem que há tantas possibilidades de encontrar um gay com tendência ativa quanto passiva. E que, além disso, o mais comum é que pratique ambas as coisas. Gostaria de contar com uma pesquisa parecida com homens hetero. Não a temos, mas tememos que os dados seriam muito diferentes. Não porque o desejo de ser penetrado ou de penetrar cus não exista entre os homens hetero, mas porque a cultura em que vivemos impõe um duro silêncio aos heteros sobre essa questão e sobre a possibilidade de expressar em público qualquer tipo de desejo anal que não seja por uma mulher e como penetrador.

Somos um Donut: topologia, corpo e analidade Parte do mito contemporâneo sobre o “individuo” se constrói ao redor da ideia de ser completo, fechado em si mesmo, uma unidade separada e autônoma. De fato, a etimologia de indivíduo significa precisamente isso, algo que não se pode dividir. Não vamos entrar aqui na visão da psicanálise que contradiz diretamente essa ideia (o sujeito seria precisamente algo dividido desde sua fundação, uma entidade separada do real pela linguagem, cuja identidade se funda no outro). Aqui vamos estudar a criatura humana como mera corporeidade (já sabemos o que esse “mera” nos traz, mas temos um pouco de pressa). Essas duas aberturas que estamos analisando neste livro, o ânus e sua supervalorizada companheira, a boca, nos mostram que o corpo humano (e o de todos os animais) não é uma entidade fechada e completa, muito pelo contrário, é algo aberto, mais que isso, aberto de uma forma muito especial. A topologia descreveu esse tipo de superfície como um toro. Mas, não se emocionem os machinhos, não nos referi101 | Pelo CU

mos a este animal que representa a Espanha racial e masculina, mas a uma figura que podemos descrever rapidamente como um donut. Ou, caso queira, pode-se imaginar uma garrafa onde a boca e o cu se comunicam. Na verdade, o toro é uma superfície “fechada”, no sentido de que todos seus pontos comunicam de forma continua. Ou seja, o orifício central do donut está lá, mas não interfere na continuidade da superfície do toro. Seguindo com a nossa analogia, o corpo humano pode ser descrito como uma superfície fechada, mas com um orifício estrutural que é o aparato digestivo. Isso contradiz a imagem que temos do nosso próprio corpo, de maneira intuitiva: quando ingerimos algo, dizemos que colocamos “dentro” do corpo, mas na realidade estamos colocando “fora”. Não “colocamos” nada, estamos passando por um buraco. Quando colocamos um dildo pelo cu acontece o mesmo. Na verdade, essa superfície que é o corpo tampouco é fechada no sentido estrito. É porosa, aberta. A pele tem poros e por ela se intercambia a água com o exterior. As paredes do estômago e do intestino são porosas e, graças a essas paredes permeáveis, os nutrientes da comida são assimilados pelo organismo. Assim sendo, a sobrevivência dos organismos vivos depende do fato de que são sistemas abertos. Em termos mecânicos ou de produção, nosso corpo transforma alimentos em energia e os restos inúteis dessa transformação se convertem em fezes, em dejetos. Mas é interessante salientar que tanto a fase inicial do processo, o ato de comer ou beber, como a fase final, a defecação, se produzem “fora” do nosso organismo, no orifício que nos atravessa de ponta a ponta. Quem sabe essa visão não nos ajudasse a entender com menos drama tudo o que se cria ao redor da penetração anal, como uma violação de nosso espaço interior, a facilitar uma 102 | Pelo CU

fronteira entre o mundo e nossa intimidade, etc. O que sabemos é que essas zonas de intercâmbio, essas bordas, são prazerosas, estão erotizadas – como assinalou Freud ao falar das mucosas da boca e do ânus como zonas erógenas (ver no capítulo dedicado a Freud, mais adiante). O anal, de algum modo, é uma lembrança permanente dessa fragilidade do nosso corpo, dessa estrutura “de orifício” que nos atravessa, e da qual não queremos saber nada. Talvez tenhamos que reescrever nossas metáforas corporais (“te sinto em minhas entranhas”, “mete mais fundo”, “te sinto dentro de mim”) e nos abrirmos a esse espaço que já não é próprio, um espaço que qualquer donut pode nos lembrar, toda manhã.

Anus is an open scar: a performance de Warbear No ano de 2009, o escritor e ativista queer Warbear (Francesco Macarone Palmieri), junto com os artistas Mariae Nascenti & Boxikus, representou uma performance em diversas cidades europeias intitulada Anus is an open scar (o ânus é uma cicatriz aberta), onde refletia com imagens e textos sobre o potencial subversivo de uma nova ressignificação do ânus. Apresentamos os textos utilizados na performance: ANUS IS AN OPEN SCAR Warbear, Mariae Nascenti & Boxikus My profession is to cross borders57 No men’s lands between two points of control. 57

Apresentamos os textos em inglês por expressa petição dos autores da performance.

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A zone full of promises, Possibilities of new lives, New perfumes, New emotions. J.G Ballard – COCAINE NIGHTS Wrapped around the digestive tube The skin opens up to its extremes By revealing the two muscular holes, Mouth And anus. B. Preciado – Terror Anal. Beyond the end, you see the beginning. An almost breathable future. In this binary logic, transformation is the space in between. In this perceptive fragment Truth falls, Doubt burns And holes open up Revealing emotional landscapes. Warbear – SOGGETTIVITÁ ANULARI Anus is a Bioport. Not just symbol or metaphor But a space of injection Through which to open and expose the body to others B. Preciado – TERROR ANAL. Let the man go where he has never gone, Feel what he never felt, Think what he never thought, Be what he has never been, We must provoke this movement and this crisis, We must produce astonishing objects P. Nougé

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How do you deal with a broken soul? Small fractures Splinter Less than before Once cracked – twice hidden No healing Forgiveness In this place you TOUCH GENESIS P. ORRIDGE – ROMAN SPOKEN WORD “close your anus and you’ll become a master, a landlord an owner you’ll have women, children, richness” Privatizing the anus is gender order The territorial control of body geographies by the heteronormative power GUY HOCQUENGHEM/WARBEAR – LE DÉSIR HOMOSEXUEL The strategy is not DIALECTICAL: Liberations vs. control, Unconscious vs. conscious, Deviant vs. normal, Sexual vs. Chastity. The strategy is CATASTROPHIC: Pushing the situation to the limit. The strategy is SYMBOLIC: Using the system’s own intolerable signs against. The strategy is ANONYMOUS: 105 | Pelo CU

The refusal to be categorizable as another deviant star. We are the norm. We are the twilight. S.P.K – EXPOSING THE CATHEDRAL OF DEATH The world is not divided in two Anus has neither sex nor gender. Anus escapes the rhetoric of sexual difference, Anus challenges male and female logics. Anus is a post identitarian organ. B. PRECIADO – TERROR ANAL Inject me with your fear, my lover my dear Teach me and erase me And erase all that is comfortable in me And that makes my life so easy now Erase me and teach me my dear My dear my dear My new lover my dear MY TEAR GENESIS P. ORRIDGE – ROMAN SPOKEN WORD Anus is made of shit. The scar of a body castration. The price that a man pays to buy the privilege of masculinity In the heterosexual society. Warbear/B. Preciado I’ll burn the world By destroying everything that does not stand alone I’ll subvert ideologies By pushing hope up your ass I’ll destroy everything that does not stand alone And then I’ll burn what remains And then I’ll blow on the ashes 106 | Pelo CU

And then maybe somebody will see How things really are Mel Lyman – APOCALYPSE CULTURE Facing the heterosexual machine, the anal machine rises. The non hierarchical connection of organs The public distribution of joy. The collectivization of anus announces A sexual communism. B. Preciado – TERROR ANAL love opened my ass and then I saw the end of the world Charles Manson/Warbear58

Este cup-up de textos era recitado como a arquitetura teórica e rítmica da performance, segundo contextos e relações anais produzidas ao vivo. Aqui podemos ler um texto escrito por Warbear, onde expõe uma reflexão sobre o potencial transformador das políticas anais: Cicatrizes Potência: Prazer = dever: dor. O mundo dividido em dois é vertical e bipolar. Sua verticalidade se dá por meio da alienação de sexo, gênero e sexualidade. Esse axioma adquire significado em uma gama de 58

Texto de apresentação da performance ANUS IS AN OPEN SCAR Warbear, Mariae Nascenti & Boxikus. – BEWARE OF A HOLY WHORE # 5 Festsaal Kreutzberg – 2009 Berlin (Germany). – SLUM Fiken 3000 – 2009 Berlin (Germany) – MOVIN’ ALONG WITH VERSES Sin Club – 2010 Berlin (Germany).VISION’R #5. Center Mercoeur – 2010 (France). Vídeo: http://www.vimeo. com/6118497 Shooting: Stephan Shvanke. Montaggio: Boxikus.

variações algébricas onde o polo positivo é representado pelo homem e o negativo pela mulher. O homem é parte do mundo do que está acima, onde o poder é passado de pais a filhos. Nesse mundo, o homem assume as normas de gênero masculino via experimentação do prazer. Esse poder adquire seu status numa função diretamente proporcional à dor produzida. O homem se identifica com a alteridade, só e exclusivamente, se esta ficar subordinada. A expressão masculina se localiza no espaço de intersecção entre apropriação e eliminação. O homem faz-se macho quando penetra, perpetrando um assassinato vestido de criação. O ato de morte passa pela escravidão da vida. Assim, esse processo fica assegurado por uma lógica naturalista, segundo a qual, o esperma produzido pelo prazer de poder é o único meio de perpetuar a espécie humana. O homem é macho quando penetra, porque somente assim pode expressar a naturalidade e, portanto, a universalidade do seu poder. A mulher é a parte do mundo debaixo, onde o dever a converte em esposa, mãe e filha. Nesse mundo, as mulheres têm o dever de estar subordinadas, portanto, de serem penetradas e fecundadas para voltar a reproduzir ao homem e, por último, para morrer sofrendo. A vagina é o espaço para a transferência de poder de uma geração a outra. O sangue da mulher é a garantia do poder masculino. Isto representa o direito natural do homem para fazê-la mulher, o lacre de cera em que está gravada a norma do gênero. A naturalização do poder de matar fecundando e do dever de morrer parindo, se estruturam num processo de institucionalização chamado família. Esta produz o núcleo original do laço social ocidental. Esse modelo é a coluna vertebral da estrutura econômica capitalista que naturaliza as desigualdades de poder de uns poucos sobre o dever de muitas, fazendo do uso do outro a unidade de medida da esfera humana. Nela, o sentido do poder como 108 | Pelo CU

processo sexual de morte encontra seu lugar natural. Matar é privatizar o prazer sexual numa economia de apropriação e de exclusão. A subversão desse vínculo entre poder e dever, onde uma linha naturalizada e universalizante vincula o mundo de cima ao mundo de baixo, passa através de outro canal. Esse canal é uma passagem secreta que cria estranhas convergências entre os mundos, relações que são perigosas para a permanência da homeostase vertical. Por isso, esse canal deve permanecer oculto e saturado. Essa passagem tem a capacidade cultural de produzir prazer somente no ato de expulsão, dado que a penetração no mundo bipolar só pode ser identitária. A supressão da função transitiva e ativa dessa passagem é inaceitável, na medida em que põe em crise o sistema de fronteiras entre o mundo de cima e o de baixo. Essa passagem deve ficar cicatrizada, porque sua saturação garantiria o poder da diferenciação verticalizante. Mas, detrás desta cicatrização, habitam mundos estranhos com criaturas estranhas que palpitam com emoções estranhas; histórias intestinais onde o macho e a fêmea se perdem num pastiche de pasta fecal. Odores profundos e músculos retais sujam os lençóis, ali onde o sangue perde a primazia da primeira noite que define o poder do macho e o dever da mulher. A escória conta a história e a história é outra. É uma história visceral de outras noites, outros amores, outras paixões. É uma história de resíduos e repressões, onde essa descarga cria um Aqueronte enlouquecido que come o próprio Caronte, mesclando o bem e o mal entre suas ondas. Um país de silêncio onde os sons são subliminares e onde frequências imperceptíveis transformam os medos em desejos. É uma história para lá do mundo, onde flutuam a tempestade de poeira, auto-organizações, economia do ócio, sociologias do indivíduo. Subverter é cortar a cicatriz para abrir a panaceia dos ventos numa espiral injetora. 109 | Pelo CU

Uma explosão ressoa. É a fratura dos axiomas gritando. A insuportável leveza de se converter em flocos como uma neve viral, onde a prática do prazer se converte no rechaço categórico do dever, onde o esperma se perde em sinos tubulares, onde a repetição é mudança, onde a entrada e a saída formam um processo infinito, invertido, louco. Passem senhores, passem porque para lá do mundo há um metaverso em processo, se se sabe viver na escuridão, se descobrem cores ofuscantes. WB Francesco Macarone Palmieri59

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Os autores agradecem a Francesco Macarone por ter escrito este texto para o nosso livro.

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Prazeres anais: fist, dildos, pênis, cárceres. Ser um armário é, no melhor dos casos, uma triste ironia, um paradoxo divertido, a contradição de estar sempre de quatro e ser impenetrável. Urri Oriols. “Mobiliário” De un Plumazo, n4

O Fist-fucking ou penetração anal com o punho (fist) é uma prática que surge no seio das comunidades S/M gays. Não é evidente que se trate de uma prática S/M, no sentido de que não é uma prática que experimentamos com dor e, de fato, nem todos que praticam S/M praticam fist, bem como nem todos o que praticam fist são S/M. Mas temos que reconhecer um vínculo cultural nos espaços em que eles aparecem, espaços criados pelas comunidades S/M. Gayle Rubin faz uma descrição fascinante dos espaços em seu artigo “The catacombs”, dedicado a um club S/M de San Francisco onde, nos anos 70, floresciam práticas de fist. O fist faz referência a dois espaços perseguidos, reprimidos, condenados como abjetos: o ânus e a mão. O sexo genital não é reprimido, é fomentado em imagens, discursos, programas. Até os sexólogos recomendam hoje em dia a masturbação como algo saudável. Porque o sexo genital reforça a diferença sexual e a fixação dos papéis de gênero: homem penetrador, mulher penetrada, coerência ou destino da cópula buceta111 | Pelo CU

-pinto, etc. O fist vai recuperar estes dois espaços proscritos, o trabalho do cu e da mão-braço como objetos e sujeitos de prazer. Beatriz Preciado em seu ensaio Manifesto contrassexual, realizou uma rigorosa genealogia do dildo para mostrar que este não procede de uma imitação ou referência ao pênis, mas à mão. O dildo procede das técnicas e máquinas desenhadas para reprimir a mão que masturba. Por isso podemos dizer que o fist é uma espécie de reconquista de um terreno proibido: somente um médico podia usar a mão “aqui”, no ânus e no reto, para as explorações. No caso dos homens, era uma exploração vergonhosa e privada, justificada para detectar enfermidade de próstata. Os fist se apropriam desse espaço privado e “do especialista”, e lhe dão um sentido diferente: de comunidade de aprendizagem, de prazer, de autonomia. Abandona-se a centralidade dos genitais e a dinâmica obrigatória ereção-ejaculação. É curioso observar que esse abandono do pênis aparece em um ambiente gay quando precisamente os gays são identificados como adoradores do falo (também existem práticas S/M de fist entre lésbicas e entre heterossexuais, mas não entraremos aqui na genealogia dessas práticas, que são diferentes). Como já assinalamos em outras partes deste livro, o uso de um espaço abjeto como o anal é permitido no cinema pornô, mas somente se é penetrado por um pênis. O fist faz outra coisa, ele é um pornô sem genitais. Como assinalado, o código do pornô tradicional está saturado pelo circuito ereção-penetração-ejaculação, onde o eixo narrativo é o pênis. Em contraponto, nos filmes pornôs de fist, em muitos casos, não aparece nenhuma ereção, e mais, não aparecem órgãos genitais. O interesse se desloca para outras partes do corpo:

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• Em muitas festas de fist, a mão e o braço são enluvados cerimoniosamente com uma luva de látex (isto nos recorda a luva de Rita Hayworth, mas, à diferença de Rita em Gilda, aqui o erótico vem do processo de colocar-se a luva, não em retirá-la). Vemos aqui outro exemplo de apropriação e ressignificação: do uso inicial da luva no fist pela necessidade de se proteger da transmissão da AIDS, passa-se a uma estilização erótica da própria luva, o braço penetra o reto, dá prazer, mas por sua vez ele também recebe prazer. E a luva do século XVII, desenhada para evitar a masturbação, transformou-se em uma luva que produz prazer. O processo de lubrificar a mão e o braço se transforma em um ato erótico; • O ânus como lugar de exploração, de prazer e de trabalho; o ânus e o reto, lugares tradicionalmente excluídos do prazer, são reivindicados de uma forma diferente, não como lugar de recepção do pênis (órgão que dá valor de uso dentro do pornô), mas com lugar ativo, de produção de prazer e de abertura do corpo. Como diz o estudioso da cultura S/M José Manuel Martínez-Pulet: “meter o punho em um cu faminto pode ser outra forma de ternura e de afeto (...). No caso do fist-fucking (ou do foot-fucking, variante do fist com o pé), fica bem claro que sua finalidade é a produção do prazer. Os praticantes podem brincar horas e horas sem a necessidade de gozar, ou mesmo de ter uma ereção. Para um, o prazer vem da entrega do cu ao outro, o que exige muita confiança. Para o outro, o prazer consiste em colonizar com a mão o interior do outro homem e sentir dentro as batidas do seu coração, para o qual se requer muita responsabilidade e perícia. Como disse G. Rubin ‘fistear 113 | Pelo CU

é uma arte que consiste em seduzir um dos músculos mais impressionantes e tensos do corpo’. O punho cerrado, que normalmente define um gesto de agressividade e ameaça, é redefinido aqui como um instrumento de afeto e ternura. A câmera se fixará nele, no pote de manteiga que lhe umedece, no orifício anal que o espera; captará os movimentos da mão e as progressivas modificações da bunda; captará a complexidade dos participantes manifesta nos olhares, nos gemidos, nos gritos etc. O eixo da narração já não é, pois, o pênis ereto que penetra (ao contrário, o pênis, flácido, retrocede a um segundo plano), mas se traslada para a periferia, a bunda e o punho, em uma ação que não tem nenhuma finalidade concreta além da produção do prazer corporal e mental60”.

Genealogia do Dildo Essa reflexão sobre o fist nos leva novamente a duas análises de Beatriz Preciado61. Para entender como se constitui a relação entre o espaço do corpo e a noção do sujeito na cultura ocidental, Beatriz Preciado propõe uma genealogia do dildo, analisando tanto sua evolução formal como sua presença em diferentes práticas (médicas e sexuais) e períodos 60

Martínez-Pulet, J. M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer, poder y masculinidad en la pornografía S/M gay, publicado em http://www.hartza.com/infiernos.htm

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No seu livro Manifesto contrassexual, Preciado propõe uma prática contrassexual “ressexualizar o ânus (uma zona do corpo excluída das práticas heterocentradas, considerada como a mais suja e a mais abjeta) como centro contrassexual universal” (p. 30). Para isso, propõe uma prática de autopenetração anal com dildos a partir da performance de Ron Athey El ano solar [O ânus solar]. Ver fotos de El ano solar em www.ronathey.com

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históricos. Neste sentido, a autora do Manifesto contrassexual considera que existem três tipos de tecnologias (com os seus instrumentos correspondentes) que deram forma e função ao dildo contemporâneo e que, por sua vez, são chaves para entender a definição de gênero e do corpo como “incorporação protésica”: Tecnologias de repressão da sexualidade. O primeiro antecedente do dildo estaria, segundo Preciado, nos métodos e nos aparelhos de repressão da masturbação, inspirados nas teorias de um médico suíço do século XVII chamado Tissot. Tissot, que fez uma análise da sexualidade a partir de uma ótica capitalista, concebia o corpo como um circuito fechado de energia que não devia ser desperdiçada em tarefas distantes do trabalho produtivo e reprodutivo. Por meio dessa noção de corpo como capital, Tissot identifica um órgão sexual que podia irromper no circuito fechado de energia corporal e provocar um gasto supérfluo: a mão. Para evitar estes curtos-circuitos, desenhou uma série de objetos (luvas, fivelas, mitenes...) que limitavam o movimento das mãos. As teorias de Tissot refletem e potencializam a mudança na maneira de pensar e de viver a sexualidade que se produziu na Europa durante o século XVII. Até então, a sexualidade era um ato social, com seus tempos e rituais específicos, mas desde a consolidação da concepção do sexo como capital começou a influenciar em todos os aspectos e momentos da vida

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dos indivíduos, a ser arte consubstancial do sujeito da modernidade 62 .

Os objetos concebidos por Tissot tratavam de regular (dirigir e reprimir) a utilização dos órgãos sexuais, mas também demarcavam (e, por isso, destacavam) o espaço do corpo onde se gera o prazer. Portanto, não é estranho que essa técnica de repressão tenha acabado por se transformar em tecnologias que produzem identidade sexual e geram prazer. Desta forma, práticas contemporâneas de formação e manipulação do corpo como o piercing se assemelham a algumas das técnicas que se utilizavam no século XVII e no XVIII para impedir a masturbação. O mesmo ocorre, como assinalamos, com o fist-fucking, que intervém sobre a repressão do ânus (espaço autorizado ao médico) e recupera a própria luva de látex que o médico utilizava: ambos, ânus e luva, são transformados em objetos de prazer. E, ao mesmo tempo, deixa-se de conceber o corpo como espaço fechado, para mostrá-lo como um espaço totalmente aberto: a exibição do ânus e do reto que realizam a prática e o cinema fist supõem inverter totalmente essa visão do corpo enclausurado. Por último, a mão, que já era concebida por Tissot como fonte de prazer, é potencializada radicalmente pelo fist até o ponto de abandonar o interesse dos órgãos genitais. Como vimos, o fist junta precisamente dois lugares tradicionalmente reprimidos: abre o ânus, portanto, o corpo, e recupera a 62

Preciado, B., Manifiesto contrassexual, p. 82. [ed. bras.: Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014].

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mão, que intervém para se introduzir e manipular esse circuito aberto que é agora o corpo. 2. Tecnologia de produção das crises histéricas. Do ponto de vista da psicologia do século XIX, o orgasmo feminino era considerado uma crise histérica que devia ser analisada, vigiada e controlada por especialistas médicos (masculinos). Assim, primeiro foram criados uns “vibradores” hospitalares que permitiam produzir (sob supervisão médica) essas crises e depois foram desenvolvidos outros aparatos com a mesma função, mas que já eram concebidos para o seu uso no âmbito doméstico (a que Beatriz Preciado denomina máquinas butler). Por sua vez, para lutar contra a impotência dos homens, a medicina da época utilizava aparelhos similares que se “administravam” através do ânus. Vemos aqui o monopólio que tem o médico do espaço anal, monopólio que será destruído pelo fist. 3. Tecnologias das mãos protéticas. Desde a I Guerra Mundial, as técnicas de construção de próteses, que cumpriram e aperfeiçoaram a função das mãos (e de outras partes do corpo, como as pernas), têm desempenhado um papel fundamental na constituição da identidade feminina. Segundo Beatriz Preciado, existe uma relação direta entre masculinidade e guerra que está muito vinculada a essa noção de construção protética. Neste sentido, explica-se o fato de que os soldados, meras ferramentas de uma arrojada máquina de guerra, são “suplementados” por uma série de acessórios (próteses), como mostram de forma muito ilustrativa as imagens 117 | Pelo CU

do exército estadunidense e britânico em seu recente ataque ao Iraque:



É preciso ter em conta que, após a I Guerra Mundial, numerosos soldados regressaram a suas casas com algum membro amputado, em muitos casos, as mãos (que é de um ponto de vista antropológico, o órgão masculino por excelência, já que permite modificar a natureza por meio de instrumentos). Desde o convencimento de que existia uma correspondência entre os homens que haviam perdido uma mão (inúteis para a economia produtiva) e os que haviam ficado sem órgãos genitais (inúteis para a economia reprodutiva), um médico militar francês chamado Jules Amar desenhou um conjunto de mãos protéticas que permitiam reincorporar esses soldados ao sistema laboral. Quer dizer, Jules Amar associa a perda de uma mão à perda da masculinidade, estabelecendo uma correspondência entre a mão e o pênis63.

Esta reflexão sobre Jules Amar é muito esclarecedora para entender a nova ressignificação da sexualidade e da mão que realiza o fist. Seria equivocado interpretar o fist como uma prática onde a mão substitui o pênis, como se este fosse o original, o legítimo depositário da sexualidade, e a mão um mero substituto. Precisamente, o que o fist faz é curto-circuitar toda a economia produtiva e reprodutiva: abandono do uso dos genitais e potencialização da mão em um “lugar inútil” (a mão, um órgão não reprodutivo, no cu, outro órgão 63

Preciado, B., Manifiesto contra-sexual, p. 130. [ed. bras.: Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014].

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não reprodutivo), a mão em um lugar abjeto por excelência, o cu. Uma mão e um braço que trabalham no lugar equivocado para abrir um corpo precisamente no lugar da perda (o cu somente produz merda, que não é útil para o capital). Com o fist, o braço, produtivo em termos de “mão” de obra é colocado em um lugar mais improdutivo.

Leathers, urso e masculinidade O pornô gay fist mostra o masculino como vulnerabilidade: frequentemente nos apresenta um homem atado, frágil, a mercê, que oferece seu cu… Isso supõe uma subversão do código masculino-heterocentrado. Por um lado, apresenta-se uma imagem hipermasculina para depois mostrá-la em sua fragilidade, mostrá-la como uma imagem de passividade, como um espaço manipulável. Qualquer tentativa de construir uma identidade estável e poderosa da masculinidade fica em evidência por meio deste discurso. Nos códigos tradicionais de masculinidade, o punho fechado é um gesto de ameaça, de violência. No fist, o punho é ressignificado como um objeto de prazer, agradável, como um elemento amoroso. O fato de que os filmes de fist não tenham ereção, nem penetração com o pênis, nem ejaculação, supõe um desafio radical de “gênero” (no duplo sentido, de gênero cinematográfico e de sistema gênero/sexo). De fato, quando aparecem os genitais masculinos nos filmes de fist, o pênis está flácido (outro tabu do pornô) e não merece nenhum interesse por parte dos atores, nem da câmera de montagem. O fist é uma aberração, é o abjeto do pornô. Além disso, nem o ânus nem o punho estão marcados pelo gênero ou pelo sexo, todo mundo tem ânus e todo mun119 | Pelo CU

do tem braço, independente se é mulher, homem ou intersexual. E esse “independente” é importante porque, para os sistemas dominantes, a diferença sexual e a fixação de naturezas masculinas e femininas são cruciais. Aqui, mostra-se que essa diferença não é tão evidente e que talvez nem sequer seja relevante. Trata-se de uma forma muito soFISTicada de sexualidade. O fist desafia o sistema de produção de gênero e desterritorializa o corpo sexuado (desloca o interesse dos genitais para qualquer parte do corpo). Ademais, o fist é reversível, aquele que coloca o punho logo pode receber e vice-versa (o código ativo/passivo também se dissolve). Os clubes de fist também questionam a separação entre o espaço público e o privado; são clubes onde o fist é feito diante do olhar de outras pessoas. Em geral, o único lugar onde se pode brincar com o cu é o banheiro. Com a segurança de um trinco bem fechado, todos já brincamos alguma vez no banho de colocar os dedos no cu. Na melhor das hipóteses, no espaço também privado do leito conjugal, alguns casais ousam explorar esse lugar desconhecido. Contudo, a prática do fist dentro da comunidade S/M sempre foi uma prática pública, se faz à vista das demais pessoas que estão no clube: ademais, várias pessoas podem participar do fist, é uma espécie de ato social que rompe a barreira de “casais fechados no quarto”. Isso também é uma novidade a respeito do uso vergonhoso do cu: o fist supõe uma espécie de “saída do armário anal”, uma exibição orgulhosa do prazer que se pode obter com o fist, e uma forma de criar vínculos de solidariedade. Em determinado momento, o S/M foi criticado como uma reprodução dos papéis de poder do mesmo modo que se considera frequentemente que o passivo na penetração anal é o 120 | Pelo CU

submisso e que o ativo é o dominante. Martínez-Pulet criticou essa visão simplista a partir das análises de Towsend e Foucault: Como disse o ativista Larry Towsend, “tudo o que ocorre em uma relação sexual S/M se faz com a intenção de produzir prazer físico ou emocional”. Mas haveria que salientar o aspecto transgressor e subversivo desta forma de prazer, e é Foucault quem aponta diretamente este núcleo subversivo: “Penso que o S/M... é a criação real de novas possibilidades de prazer que não haviam sido imaginadas anteriormente. A ideia de que o S/M está ligado a uma violência profunda e que sua pratica é um meio de liberar essa violência, de dar curso livre à agressão, é uma ideia estúpida. Bem sabemos que o que essa gente faz não é agressivo e que inventam novas possibilidades de prazer utilizando certas partes não usuais do seu corpo – erotizando seu corpo. Penso que aqui encontramos uma espécie de criação, de empresa criadora, uma de cujas principais características são o que chamo de dessexualização do prazer. A ideia de que o prazer físico sempre vem do prazer sexual e que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis considero que é absolutamente falsa. O que as práticas S/M nos mostram é que podemos produzir prazeres de objetos muito estranhos, utilizando certas partes inusitadas do nosso corpo em situações não habituais”. Este texto é muito importante porque, ao conceber práticas S/M não como impressão de uma identidade subjacente, pela qual aquele que faz o papel de Amo deveria ter uma personalidade fortemente agressiva e violenta e o submisso estaria marcado por uma falta de autoestima e de amor próprio, mas como técnica de produção de prazer, Foucault desnaturaliza a sexualidade. O fim destas práticas não é nem o orgasmo, nem muito menos a reprodução (para Pat Califia, o S/M é a quintessência do sexo não reprodutivo). Foucault está se referindo, em geral, às prá-

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ticas como o bondage, o spanking, a cera, a humilhação, o jogo com os mamilos, a tortura do pênis e dos testículos, o uso dos dildos, o controle da respiração, mas, sobretudo, ao fist-fucking que, segundo a antropóloga Gayle Rubin, seria a única prática sexual que o século XX oferece à história das práticas sexuais. Para Foucault, em virtude dessa técnica, o S/M opera uma ruptura com o monopólio que tradicionalmente sustentou os genitais em relação ao prazer físico, o descentraliza e ao mesmo tempo redistribui as zonas erógenas. 64

Essa citação de Martínez-Pulet é muito esclarecedora a respeito de algo que assinalamos anteriormente neste livro, a inovação que introduz o anal no circuito do genital-sexual e o questionamento da identificação tradicional entre o ativo-penetrador como detentor do poder, e o passivo-penetrado como submisso e carente de poder. Para entender melhor esse questionamento, é necessário explicar que, nas comunidades sadomasoquistas, as relações são negociáveis e voluntárias, e o que tem o papel de “escravo” na realidade controla em grande medida a situação. A dinâmica senhor-escravo é muito mais complexa do que imaginamos. No caso da penetração anal encontramos a mesma complexidade, isto é, quem deseja ser penetrado não admite qualquer pênis, mas busca, seleciona, escolhe. Neste sentido, é alguém “ativo”, mobiliza-se e atua para encontrar a pessoa adequada, e é quem decide quem vai penetrá-lo. Na realidade, trata-se de uma posição de poder, de controle e de decisão. Era como se o homossexual chegasse tarde para investigar a imagem heterossexual do macho, pois, como assinala E. Badin64

Martínez-Pulet, J.M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer, poder y masculinidas en la pornografía S/M gay.

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ter, esta reinvidicação gay do masculino acontece no tempo em que retrocede no coletivo heterossexual, e isso devido aos avanços promovidos pelo movimento feminista. À primeira vista, parece ter razão quando afirma que o “hipermacho e a bicha são vítimas de uma imitação alienante do estereótipo masculino e feminino homossexual”. Mas, somente à primeira vista, porque o que Badinter passa por alto é, a meu parecer, que a apropriação homossexual do modelo convencional do “homem”, não somente indica que o macho heterossexual não é o guardião da masculinidade (colocando, dessa forma, algum alívio na dimensão cultural e sócio-política dos gêneros), mas que, além disso, leva a cabo uma reconstrução dessa masculinidade desde dentro dela mesma (e, portanto, prescindindo da “pluma”). Com efeito, a simulação teatral da masculinidade vai acompanhada de uma construção desvirilizada daquela, já que as práticas sexuais desta comunidade, primeiro, prestam particular interesse pelo ânus (o órgão erógeno mais negligenciado pela sexualidade normativa), erotizando consequentemente a receptividade ou passividade sexual do homem (e não só mediante a penetração, que é uma prática gay generalizada, mas sim, fundamentalmente, por meio do fist-fucking, ou do uso de dildos e de plugs), e, segundo, ressaltam uma série de disciplinas que, mais que celebrar o poder do pinto e das bolas, os mortificam, colocando-o em cena e retirando prazer de sua vulnerabilidade e fragilidade (açoite, pinças, agulhas, tortura etc.). De qualquer forma, essa reapropriação da masculinidade convencional pelos leathermen dos anos 40 e 50, e que durante essas primeiras décadas estavam recriando uma subcultura, foi objeto, já nos anos 80, de algumas aproximações teóricas de contorno marcadamente essencialista, como as de Geoff Mains ou Richard Hopcke, com as que tratavam de fazer frente, por um lado, à imagem deformada que os gays dominantes tinham do S/M (convertendo essa sexualidade em alteridade absoluta) e, 123 | Pelo CU

por outro, as consequências políticas que essa construção traz consigo65.

Esta reflexão de Martínez-Pulet é muito relevante para entender a mudança que certas comunidades gays S/M, leather e de ursos operaram, e certas comunidades lésbicas e trans, no uso e na reinvindicação do sexo anal. No caso das subculturas leather, S/M e de ursos, essas práticas supõem questionamentos de arraigados estereótipos sobre a homossexualidade. Segundo o protótipo homofóbico habitual, o gay é um afeminado que gosta de ser penetrado. Como ainda figura no dicionário da RAE: “Homem afeminado e de pouco ânimo e esforço”. A virilidade ou a masculinidade é um valor próprio dos homens hetero, algo impossível entre os gays. A novidade dessas comunidades é que, por um lado, se reapropriam das características da masculinidade e, por outro, integram em sua cultura o sexo anal de forma visível e orgulhosa, o qual supõe um paradoxo para o estereótipo homofóbico: um homem viril que gosta de ser penetrado? Isso é em princípio uma contradição. Penetração passiva equivale ao feminino. Virilidade equivale a um cu impenetrável (exemplo: Luis Aragonés e seus camarões bigodudos) e à atividade penetradora. No lugar disso, em muitos perfis de páginas de flerte gay na Internet, encontramos estas descrições: “José, homem, viril passivo”, “Manolo, grande urso peludo passivo”, “Pedro, 1,90, 120 kilos, musculoso, bigode, barba, viril, para que me coma”, “Alberto, homem masculino, couro, forte, busca ser fisteado”, etc. Nesses perfis, assim como no pornô que descrevemos, unem-se esses dois valores, em princípio, 65

Martínez-Pulet, J. M., La construcción de una subjetividad perversa: el S/M como metáfora política y sexual, no livro Teoría queer: políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J. editores, Egales, Madrid, 2006.

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incompatíveis: uma masculinidade clara, até exagerada às vezes, com um desejo manifesto de ser analmente penetrado. Isso nos parece uma mudança histórica importante que merece ser destacada, algo que desestabiliza as equações tradicionais sobre o passivo e o masculino. Por outro lado, temos que reconhecer que essas culturas hipermasculinas souberam se apropriar do prazer anal, mas não da feminilidade. Geralmente, nos ambientes leathers, S/M e de ursos, a pluma e a feminização são muito mal vistas. Você vai a uma festa leather falando de forma afeminada e nem os camelos chegam perto. Nas convocatórias de muitas festas leather, bakala, ursos, etc., lemos coisas como “somente homens machos”, “evitar loucas e pintosas”, “para homens de verdade”, “papel muito masculino”, etc. Sempre se pode dizer que para esse tipo de ambiente de bicha pintosa já existem vários bares e festas gays, ou que é muito difícil ser masculino ou feminino ao mesmo tempo. Talvez. Mas, essa não é a questão. A questão é que o feminino ainda é associado a algo inferior, ridículo ou incompatível com o masculino. A questão é que essa plumofobia traduz uma misoginia evidente, um desprezo e um ódio contra as mulheres. Muitos se defendem dessas acusações dizendo que: “mas não me dá curiosidade um parceiro afeminado, não quero ir a um bar com gente assim porque não me excitam”. Bem, ninguém te pede que vá para a cama com uma bicha pintosa, mas é comum passar-se daí ao desprezo e ao insulto. Para completar, muitos desses supermachos plumofóbicos têm mais plumas que um edredom norueguês, com o que a gente se pergunta se não teria

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também uma pitada de autodesprezo inconsciente neste rechaço visceral à pluma no outro66.

De cárceres e cus Até aqui defendemos a hipótese de que o rechaço do sexo anal passivo entre os homens hetero têm relação com certo exercício de poder, como ocupar um lugar de superioridade, de dominação. Também vimos que a repulsa a ser penetrado é um elemento fundamental da identidade masculina do homem heterossexual. Mas, outro elemento chave dessa dinâmica complexa é o desejo. Um desejo de desfrutar do anal que ficou reprimido conscientemente ou inconscientemente, e que, ademais, é castigado socialmente. Nesse sentido, poderíamos dizer que um dos motivos principais desse rechaço ao anal é o medo. O medo em duas direções: a perda da identidade de gênero, de homem, com a ameaça de ser assimilado a uma mulher, e o medo de perder a identidade da orientação sexual (de heterossexual, passar a ser como o homossexual). Quer dizer, a relação dos homens hetero com o anal explica muitas coisas sobre as causas do machismo e da homofobia. É interessante assinalar que essa dinâmica do medo nos mostra que “ser um homem” é um lugar vazio. Pois é impossível escrever ou definir em que consiste ser homem. Nem sequer isso que chamamos de masculinidade é algo privativo ou próprio dos homens, como mostrou Judith Halberstam 66

Para mais informações sobre as culturas leathers e de ursos e plumobofia, ver Javier Sáez, Miss Bear em http://www.hartza.com/missbear.htm, e os artigos “Excesos de la masculnidad: a cultura leather e a cultura dos ursos” no livro El eje del mal es heterosexual, Grupo de Trabalho Queer, e “El mescle vulnerable: pornografía, S/M, cultura leather i cultura dos ursos” no libro Masculinitats per al segle XXI (vários autores).

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no trabalho pioneiro sobre a participação das mulheres na criação da masculinidade (masculinidade feminina). Vemos nesses processos que “ser um homem” tem como base “não ser” outras coisas: não ser mulher, não ser homossexual. É uma identidade gerada por oposição, por negação, ou por repetição de gestos estéticos ou de conduta que carecem de original. É uma noção sem um conteúdo preciso. O poder dos homens, o poder patriarcal e machista, se constrói, por um lado, por meio deste desprezo contra as mulheres e, por outro, pelo ódio contra os homens considerados como menos masculinos, os gays. O problema do cu é que todo mundo tem um. Isso coloca os homens heteros em um limite demasiado perigoso a respeito dos gays no sentido em que eles (os heteros) também são penetrados por lá, pelo mesmo lugar que as bichas. No machismo, percebe-se a mulher como “o outro absoluto”, exalta-se uma pequena diferença genital (elas têm buceta, “nós” não) como uma alteridade total e com o cu isso não é possível. Não existem operações de extirpação de cu. O máximo que se pode fazer com ele é fechá-lo até que não caiba “nem um bigode de camarão”, mas isso, por mais que diga nosso ex-técnico, não pode se manter constantemente. Luis Aragonés também caga. E o problema não é somente que o ânus hetero seja penetrável, mas que deseje ser penetrado. Como veremos no capítulo sobre a psicanálise, Freud vai colocar o prazer anal como elemento fundamental em todos os seres humanos. Vemos que o regime heterocentrado se exerce sobre os homens heteros de uma forma duplamente paradoxal: desejam as mulheres, mas ao mesmo tempo as desprezam; desejam ser penetrados, mas ao mesmo tempo desprezam esta pos127 | Pelo CU

sibilidade ou aos homens que desfrutam desta maneira. Sua identidade se funda em manter de forma obsessiva essa dupla negação (não mulher + não bicha): mate mulheres e bichas e será um homem. O fato de que “ser um homem” é um lugar impossível explica os ritos da masculinidade compulsiva que vemos em muitos machos heteros, isto que em outra ocasião chamamos de pluma hetero: a repetição obsessiva e ostentosa de gritos, falatórios, violência, cusparadas, futebol, coçação de saco, motores, Playboy, testosterona, cabelo no peito, Revista Placar, perigo, touros, alcoolismos, vagabundos, quadrilhas, cantadas, sinuca, empurrões... ou seja, essa condenação à repetição em que consiste a vida cotidiana de muitos homens hetero67. Outro exemplo dessa relação entre penetração anal, do poder e do masculino, é o caso das prisões. É conhecido que nas prisões masculinas a penetração anal é uma prática muito ampla mesmo dentro de certos códigos bastante fechados ou restritos; diferentemente da fantasia dos filmes pornô, onde carcereiros e presos podem transar entre si a todo momento em paz e harmonia, o sexo ente homens na prisão se produz sob condições de controle muito restritas, e em ocasiões muito perigosas. Basicamente, existem quatro situações de sexo anal entre os presos: • O estupro de um preso e sua transformação em uma pessoa marcada que fará as tarefas femininas na prisão (cozinhar, limpar, etc.); essa pessoa ficará vinculada de forma estável a um preso-amo para ser penetrado por ele frequentemente. Este personagem no Chile se cha67

Ver Javier Sáez, La pluma heterosexual: http://www.hartza.com/pluma.htm

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ma cavalo (caballo), e, contra o que geralmente se pensa, não é uma pessoa homossexual. De fato, não deve ser uma pessoa homossexual já que, neste caso, supõe-se que poderia desfrutar da relação quando se trata, com este tipo de relação com o “cavalo” de marcar a autoridade e a masculinidade do preso-amo (por cima de outro “homem de verdade”, não de uma bicha); • As travestis e os transexuais: frequentemente são objeto de violação, mas de forma anônima e vergonhosa, já que a percepção geral é que o contato com eles te afeminará; • A violação carcereiro-preso: acontece quando vários carcereiros decidem castigar ou torturar um preso e para isso penetram-no analmente em grupo; • O sexo consentido: em algumas ocasiões, dois homens que não necessariamente se identificam como gays, mantêm relações sexuais (e até afetivas) de forma mais ou menos estável, habitualmente em segredo. Alguns desses homens praticam o sexo anal durante a prisão e afirmam abandonar esta prática ao sair da cadeia (“era para desafogar, não havia outro jeito”, etc.). Dessas quatro situações, vamos nos fixar especialmente na primeira. Em um interessante artigo68, o psicólogo mexicano Rodrigo Parrini explica que a figura do “cavalo”, esse preso que é utilizado sexualmente por outros internos, cumpre uma função de sacrifício; essa vítima, o cavalo, permite canalizar as tensões da cadeia e, ao mesmo tempo, manter a identidade 68

Parrini, R., Sexualidad entre hombres encarcelados: los orígenes sacrificiales de la identidad masculina. Rodrigo Parrini. No livro Masculino plural: construcciones de la masculinidad. Carolina Sánchez-Palencia e Juan Carlos Hidalgo eds., Edições da universidade Lleida, 2001.

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masculina dos reclusos que lhe penetram; o cavalo guarda em si a identidade feminina, de uma forma que a masculinidade fica do lado dos penetrados. Para Parrini: O estupro é um fato fundante. Fundante de quê? Das relações que os presos mantêm entre si e de uma comunidade particular que possui uma ética específica. Mas, para que ela é necessária? Diremos que o que se sacrifica no cavalo não é sua vida – em termos biológicos – mas sua masculinidade: o estupro é um ato que obtura – assim como penetra – a identidade e a colapsa69.

Uma vez mais, constatamos esse estranho paradoxo que se dá com o sexo anal entre os homens: o que toma o papel ativo na penetração não é somente considerado bicha ou sodomita, mas reafirma a sua masculinidade e sua honra por meio desse ato sexual. Em um livro que Parrini publica anos depois (Panópticos y laberintos: subjetivación y corporalidad en una carcel de hombres [Panopticos e labirintos. Subjetivação e corporeidade em uma prisão de homens]), vai fazer uma leitura mais complexa da sexualidade anal nas prisões. Desta vez, analisa a figura da travesti e vai descobrir um corpo muito mais fluido e dinâmico, que desafia as posições fechadas de veado/homem (veado significa bicha no espanhol mexicano). Em uma entrevista sobre o seu livro, Parrini explica o seguinte: Creio que um ponto importante que trabalhei na investigação são os deslocamentos entre uma enunciação de masculinidade – o plano das identidades – e o das práticas vinculadas com sua enunciação. Foi uma referência que me permitiu entrar com maior profundidade no jogo entre parcialidade e reversibilida69

Ibid., p. 96.

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de; nela, um interno me falou de um travesti preso que dizia que “o veado o tinha no cu”, mas que podia bater em quem se aparecesse na frente. Esse travesti dizia que era um veado e homem alternadamente e que em seu próprio corpo encontrava o lugar – o cu – que lhe permitia transitar entre identidades e posições subjetivas. Por outro lado, tinha encontrado uma dinâmica entre intimidade e estranhamento que apontava um paradoxo: os conteúdos e as definições identitárias mais apreciadas e importantes eram um produto social, o estranhamento que se instalava no coração mesmo da intimidade70.

No livro, ele vai desenvolver a ideia de que é a repulsa ao sexo anal que mobiliza a repulsa, não é a orientação sexual tal e qual entendemos hoje em dia: Veado e bicha são expressões de linguagem cotidianas no México, utilizadas também na prisão. São termos que tentam identificar alguém, ao mesmo tempo que os desqualificam, e que sem dúvida tem uma carga homofóbica. Não obstante, respondem a um imaginário sexual que não se organiza em torno das preferências sexuais tal como as delimita a sexologia e o sentido comum sexual moderno – heterossexual, homossexual, bissexual –, mas por meio de uma polaridade de identidades e posições subjetivas: homem-veado. Neste ponto, devemos indicar que a homofobia da prisão não corresponde ao rechaço de uma identidade – o gay, o homossexual – mas de um desejo, uma prática corporal, uma posição nas relações de poder que se conjugam no “veado”. Aqui, a homofobia deve ser lida como um rechaço contundente ao abjeto que se condensa no veado (rechaço que constitui o abjeto em seu gesto). O abjeto, a parte decaída de um sistema, o lixo, os rechaçados, as sobras: isso é um veado. Por isso mesmo, funciona como o elemento caído, expulso, em 70

http://jbcs.blogspot.com/2008/04/entrevista-rodrigo-parrini-corporalidad.

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polaridade com o homem: completo, integrado, prestigioso, estimável71”.

Segundo Parrini, na ordem carcerária, ao menos no âmbito do gênero e da sexualidade, não há hierarquias estritas nem posições fixas e estáveis. As identidades se transplantam e fluem. O que assinala esse travesti é que o veado o tem no cu, e uma ordem performativa das identidades e da subjetividade. Ela mesma passa por seu corpo desde a bicha até o machão. Veado, bicha, pelo cu. Mas machão, agressivo de frente. Portanto essa pessoa está em uma zona intermediária, em um “entre” permanente. Não é nem somente o veado nem somente o machão. É ambos ao mesmo tempo, e consecutivamente. Parrini coloca como conclusão que, para entender o que acontece nas prisões, não se pode manter a polaridade feminino/masculino, homem/mulher, crendo que o gênero corresponde à diferenciação de unidades discretas. Ele formula uma posição de “estar entre”, e “entender o gênero como uma linha, cujos lados são traçados de dentro: se está no campo indeterminado, está entre, e logo desfaz, por assim dizer, homem e mulher, masculino e feminino”72. Nos interessa assinalar desta análise que essa passagem do homem à bicha se faz pela penetração anal. Esse ato, no papel do receptor, é o que desloca a pessoa de ser um homem a ser uma bicha (um veado). Por sua vez, quando essas pessoas abandonam a prisão, ou quando tomam um papel agressivo e violento, podem retornar a ser “homens”. É o lugar do cu que

71

Parrini, R., Panópticos y labirintos. Subjetivación y corporalidad en una cárcel de hombres, El Colegio de México, 2007, p. 86.

72

Ibid., p. 88.

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permite esses câmbios, estas transições na subjetividade que, como vemos, são bastantes fluidas. OZ, uma das melhores séries de televisão das últimas décadas, criada por Tom Fontana para a produtora HBO, narra a vida dentro de uma prisão de segurança máxima. A riqueza da série está na complexidade das identidades de grupo e raciais dos presos: afro-americanos, latinos, ítalo-americanos, travestis, nazistas, muçulmanos, motociclistas... a série é muito violenta e, além disso, tem muito conteúdo de sexo explícito, e mostra sem rodeios as relações sexuais entre os presos. Ao longo da série, vamos conhecendo as diferentes percepções sobre o sexo anal, o estupro e a sexualidade, e como estas variam em função das distintas comunidades que assinalamos. Entre os nazistas, é habitual a figura do “cavalo”: um jovem branco é violentado por um chefe nazi e, a partir daquele momento, lhe servirá como escravo sexual e como criado; entre os ítalo-americanos, ser penetrado é o pior que pode acontecer a um homem. Por exemplo, um chefe mafioso fica traumatizado por ser estuprado por membros da comunidade negra. Um advogado branco e hetero primeiro é escravizado por nazis e, mais adiante, se apaixona por um psicopata que lhe arruína a vida; as travestis são agredidas pelos nazistas, pelos negros e pelos latinos... Nessa brilhante série, fica patente que a percepção do sexo anal varia em função de critérios como a raça, a posição de poder ou a ideologia. Nos interessa refletir sobre o anal porque tem um papel central nesses processos de violência. Enquanto não formos capazes de questionar e subverter os valores associados ao anal, ao ato de penetração de um cu, não poderemos desmantelar este regime de terror sobre os gêneros e os corpos. 133 | Pelo CU

Psicanálise : o urso freud muda de ambiente. Édipo é anal, a analidade é fundadora de Édipo. Gilles Deleuze, Félix Guattari

Neste capítulo, vamos falar de uma das propostas mais originais da história do pensamento: a teoria psicanalítica – e de como um urso burguês vienense do final do século XIX vai se atrever a colocar no centro do pensamento o sexo, o prazer, o desejo, o amor e... o cu. Até Freud, a filosofia e a psicologia eram espaços ascéticos, onde se falava do divino e do humano, da alma e do transcendente, do sujeito e do ser, da razão e do destino... mas sem corpos, sem desejos, sem falar jamais de uma das pulsões mais poderosas dos seres humanos, a pulsão sexual. Contra o que se pode crer, Freud se interessava bem pouco pelo sexo no início da sua carreira profissional (nos referimos teoricamente, não na sua cama). Mas, a partir do trato com seus pacientes, vai ser capaz de fazer algo não muito usual na história do pensamento: escutar. Uma de suas pacientes, Ana O., vai interromper Freud durante sua verborragia médico-psiquiátrica e dizer:

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Cale-se! Deixe-me falar! O senhor me escute.

Freud vai decidir fazer caso dessa mulher e vai se dar conta de que as pessoas são capazes de se curar se são escutadas de outra maneira. Nessa escuta analítica que Freud desenvolve, mais centrada nos lapsos, nos balbucios ao falar, nas repetições e nos atos falhos da linguagem, nas associações de palavras... vai encontrar-se com o que seus pacientes se chocam, às vezes, com algo que ninguém falava abertamente na Viena do final do século XIX: de sexo. O que Freud percebe não é exatamente um problema sexual, mas um mal-estar, barreiras, medos ou complexos que pouco a pouco vão revelando-se como conflitos entre as exigências da vida social, familiar, moral, religiosa e o desejo. Não vamos entrar aqui em desenvolvimento profundo da teoria freudiana; vamos simplesmente nos deter em um dos aspectos menos conhecidos da sua obra, mas que tem grande relevância para este livro: o prazer anal. Entre 1905 e 1920, Freud vai desenvolver sua teoria sexual, que publica inicialmente em 1905 com o nome de Três ensaios sobre a sexualidade. Curiosamente, grande parte dessa obra, desde a primeira linha, vai ser dedicada ao estudo das “perversões sexuais”; porém, não vai considerar a homossexualidade como ponto negativo, senão como outra escolha de um comportamento sexual humano73. No primeiro capítulo encontramos a primeira afirmação que irá contradizer o estereótipo sobre o sexo anal:

73

Para um desenvolvimento mais exaustivo da relação entre Freud e a homossexualidade ver Javier Sáez, Teoria queer y psicoanálisis.

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Entre os homens, a inversão não supõe necessariamente o coito per anum (...) o papel sexual da mucosa anal não se encontra em nenhum caso limitado ao sexo entre indivíduos masculinos. Sua preferência não constitui uma característica da inversão74.

Contudo, o mais notável de Freud neste campo vai ser o reconhecimento de uma fase anal no desenvolvimento libidinal de todos os seres humanos, uma fase que ele situa na infância, entre a fase oral, a primeira fase, a fase genital, que é a última fase, temporalmente falando. Também a zona anal é como a zona bucal-labial, muito apropriada por sua situação para permitir o apoio da sexualidade nas outras funções fisiológicas. A importância erógena originária dessa zona deve ser muito considerável. Por meio da psicanálise, chegamos a conhecer, não sem assombro, que transformações experimentam as excitações sexuais emanadas da zona anal e com que frequência conserva esta última, por toda a vida, certo grau de excitabilidade genital75.

Freud vai desenvolver toda uma teoria, absolutamente escandalosa para sua época, provavelmente também para a nossa, sobre o uso que fazem os meninos e as meninas da zona anal como lugar de negociação de prazer, de poder, com o uso da retenção ou expulsão das fezes, e com prazer erógeno associado a ele. De fato, para Freud, o conteúdo intestinal é um corpo excitante da mucosa sexualmente sensível. Para Freud, os excrementos, sua retenção ou expulsão, cumprem 74

Freud, S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II. Biblioteca Nueva, Madrid, 1981, p.1182.

75

Freud,S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II, Biblioteca Nueva, Madrid, 1981, p. 1182.

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uma clara função masturbatória para o menino ou a menina. Além disso, Os excrementos para a criança “são como um presente” com o qual pode mostrar sua docilidade às pessoas que lhes rodea ou sua negativa a gratificá-las76.

O revolucionário de Freud é que pela primeira vez na história existe um reconhecimento claro do prazer anal nos seres humanos, com intenção de explicá-lo, e, além disso, sem colocar um juízo moral sobre esse prazer. Neste mesmo ensaio, Freud cita com admiração a psicanalista Lou Andreas-Salomé que, em 1916, publicou um influente artigo intitulado “Anal und sexual”. Essa analista vai abordar um aspecto fundamental do que rodeia a sexualidade anal e o fato de ser proibida, reprimida, social e familiarmente. Andreas-Salomé tem a perspicácia de compreender que a primeira proibição que se coloca diante do menino e da menina é a de procurar um prazer por meio da atividade anal. Essa proibição terá uma influência determinante sobre todo o seu desenvolvimento posterior. Freud expõe as análises de Andreas-Salomé da seguinte maneira: A criaturinha deve começar a se dar conta da existência de um mundo exterior hostil a seus impulsos instintivos, e aprender a separar seu próprio ser desse desconhecido, efetuando então o primeiro “recalcamento” de suas possibilidades de prazer. Neste momento, o “anal” permaneceria como símbolo de tudo o que deve ser repudiado, afastado da vida. A absoluta separação posteriormente exigida entre os processos anais e genitais contradiz-se pelas estreitas analogias e ligações anatômicas e funcionais 76

Ibid, p. 1203.

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entre os dois. O aparato genital permanece próximo à cloaca e inclusive não é, na mulher, senão uma “dependência” daquela77.

Não podemos encontrar uma explicação mais clara do que ocorre em torno do erotismo anal, bem como a chave de sua repressão. O problema da repressão é que se reprime o que se deseja, e isto sempre deixa marcas no sujeito. Nosso sistema de valores condena todo mundo a reprimir e suprimir uma parte importante de si mesmo, um desejo e um prazer que existem desde a infância; é como uma mutilação genital simbólica. Afortunadamente, não se pode mutilar um buraco e menos ainda fechá-lo, de modo que a tentação sempre está lá, e o ato de defecar nos lembra cotidianamente deste prazer. O retorno do recalcado aparece no caso do anal de forma real, física, com prazer inegável que sentimos ao cagar. Para entender a violência e o ódio irracional que existem em torno da penetração anal é importante recordar esse fato; estamos partindo de uma situação de autorrepressão, de uma atividade que é desejada por cada sujeito, de um processo doloroso e violento de renúncia de uma parte de nosso prazer e de nosso corpo. Todo esse ódio contra o anal não faz outra coisa senão mostrar o próprio desejo. A investigação do anal por Freud não vai terminar aqui. Anos depois de seu ensaio sobre a teoria sexual, Freud publica três artigos sobre este tema: O caráter e o erotismo anal (1908), A disposição à neurose obsessiva (1913) e Sobre a transmutação dos instintos e especialmente do erotismo anal (1915) onde vai desenvolver duas novas ideias, não menos originais e atuais. Não sabemos se na Viena de 1910 havia muitos bares, mas, a julgar por esses textos, se diria que o 77

Citado por Freud Tres ensayos… na nota 679, de 1920, p.1203.

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nosso querido urso vienense passou alguns meses por bares de ambientes S/M porque, de repente, se coloca a falar tão tranquilamente de ativos e passivos, de “beijar a bunda” e de sadomasoquistas. Dito isto, em seus três artigos, Freud desenvolve, a partir de suas experiências com as crianças (supomos que na consulta e não no sling) uma teoria onde põe em relação o erotismo anal com a polaridade atividade-passividade: Freud faz coincidir a atividade e a passividade com o masoquismo e com o erotismo anal, e atribui a cada uma das pulsões parciais correspondentes uma fonte distinta: musculatura para a pulsão de dormir ou apoderamento (Bemächtigungstrieb) e um órgão cujo fim sexual é passivo, representado pela mucosa anal. Mas é importante assinalar que Freud não quer dizer que essas duas posições (ativo-passivo) correspondem a duas pessoas diferentes, uma que seria somente ativa e outra que seria somente passiva, mas que ambas as pulsões são componentes intrínsecos da vida psíquica do sujeito, ou seja, que esse par de opostos está presente simultaneamente em cada um. Isso é fundamental para entender que cada sujeito pode adotar papéis ou posições ativas ou passivas, sádicas ou masoquistas, penetrantes ou penetradas. Também nos serve para entender o que temos visto nas culturas S/M, onde os papéis de amo-escravo ou ativo-passivo são reversíveis. A segunda ideia de Freud tem relação com o que se passa com aqueles que efetivamente reprimem essa pulsão anal. Para Freud, há certos traços de caráter que persistem em algumas pessoas adultas, como uma consequência de ter sublimado as pulsões anais. Trata-se de pessoas ordenadas (pulcras, escrupulosas, complacentes), econômicas (centradas no dinheiro, inclusive avarentas) e tenazes; essas características 140 | Pelo CU

definem o que ele chama de caráter anal. Tem-se uma perda do interesse erótico do anal, um interesse que essas pessoas haviam tido de forma acentuada na infância, e se produz um deslocamento de posição: da sujeira das fezes, rumo à ordem, à limpeza. Das fezes que não valem nada, à sua antítese, o dinheiro. Do relaxamento que supõe o defecar, à tenacidade, ao controle obstinado e, às vezes, colérico. Tratando de explicar a tenacidade e sua relação com o anal, Freud faz duas referências geniais: a expressão beija minha bunda e o mostrar a bunda a seu inimigo como formas de desafio. Graças a Freud, sabemos que na Viena de 1908 dizia-se e fazia-se essas coisas. Para Freud, a frase beija minha bunda não é nem mais nem menos que “um convite à carícia que sucumbiu à repressão78”. Também ocorre a Freud que as palmadas na bunda, que nossos pais nos davam para castigar ou para nos fazer obedecer, como esse estímulo reprimido do anal. Resumindo: é melhor ser uma bicha liberal que desfruta da sua bunda que um mesquinho tacanho obcecado com a ordem (bem, Freud não disse isso exatamente, mas é a nossa leitura). Outra coisa surpreendente em Freud, em comparação com a opinião dominante, é que ele não faz juízo de valor especial em relação ao erotismo anal como algo negativo ou doentio. Nos quatro textos que assinalamos, existem referências a pessoas que mantêm, como adultos, um interesse pela sexualidade anal, mas sem nenhum juízo a respeito, simplesmente como uma possível conduta sexual, sem mais. E, como já mostramos, tampouco considera que o sexo anal seja uma pratica exclusiva dos homossexuais, bem como lhe contam os seus pacientes.

78

Freud, S., El carácter y el erotismo anal, p. 1356.

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A análise de Freud nos serve também para entender algo que talvez todos nos perguntemos alguma vez. Como certas zonas de nosso corpo viram zonas erógenas? Não faz falta alguma a justificação dos nossos prazeres, nem alguma explicação de por que podemos sentir prazer na zona anal, ou na boca, ou em outros órgãos ou outras partes do corpo. Mas não deixa de ser interessante conhecer a explicação freudiana. Para Freud, qualquer parte do corpo humano é suscetível de ser carregada com valor sexual segundo as experiências e vivências de cada um/uma. Contudo, o corpo é especialmente sensível naquelas partes onde existem aberturas, onde existe intercâmbio, ou seja, nos orifícios, no lugar onde sai, entra ou se perde algo. É o caso da boca, do ânus ou dos olhos. Existe uma relação especial entre o corpo e a separação de certos objetos; é nessas bordas de separação entre o interior e o exterior que se instala um interesse especial, onde aparece uma excitação particular. Por isso, Freud vai elaborar também a teoria de que nos vinculamos especialmente com aqueles objetos que perdemos: o seio, objeto de sucção, as fezes, objeto da excreção, a voz e o olhar. Esses objetos nos trazem fascinação, prazer – ao sugar um seio ou um pênis, reincorporamos oralmente esse objeto perdido; o evacuar, o escorregar das fezes no ânus produz prazer (e ao introduzir pênis, dildos, mãos e objetos na bunda, também se produz excitação sexual, embora Freud não mencione estes tipos de atos); existe um prazer em falar, em emitir a própria voz, e na escuta de certas vozes que nos rodeiam; o olhar é algo que parece surgir dos olhos, é uma abertura ao mundo e, ao mesmo tempo, necessitamos que nos olhem, que haja outro que nos devolva o olhar.

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Desde Freud, há ao menos um reconhecimento da zona anal como um lugar habitual e generalizado de prazer sexual. Um século depois de seus Três ensaios sobre a sexualidade (onde Freud defende a existência de uma dimensão anal em todos os sujeitos, e a existência da sexualidade infantil), permanecem não reconhecidas socialmente essas dimensões da sexualidade humana. Não obstante, queremos terminar este capítulo assinalando algo que nos chamou a atenção. Em todos os artigos que Freud dedicou ao erotismo anal, e nas referências que outros psicanalistas como Ferenczi ou Lacan fazem, trata-se sempre de uma visão do anal como espaço de saída, de expulsão das fezes, como um espaço de passagem sempre de dentro para fora. Em nenhum momento se estuda o que se passa com o desejo de introduzir objetos ou pênis, o que ocorre com o sexo anal receptor, nem se menciona experiências ou casos de pessoas que desfrutam dessa dimensão do anal “passiva”. É surpreendente que em cem anos de psicanálise, todos caiam no lapso gigantesco de não abordar o prazer anal “para dentro” do cu como espaço receptor.

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O cu e a aids A AIDS... Vai tomar no cu! AIDS: tire-a já de trás. Pichação no banheiro do cinema Carretas de Madri.

Homofobia, o corpo da bicha e “seu” cu A AIDS serviu para deixar claro, entre outras coisas, que a abjeção do cu podia se sofisticar até parâmetros insuspeitáveis. Não em vão, o que devia e o que deve ser tratado como uma crise de saúde pública se transformou em uma ameaça sexual sem precedentes na história, o cu convertendo-se no paradigma do corpo pecador, do corpo sem cabeça que podia desembocar na morte sem qualquer reflexão. A redução do corpo das pessoas que tinham AIDS, o aidético, a aidética, serviu para que a homofobia adormecida nos países ocidentais (devido às consequências da liberação sexual nos anos 60 e 70) se recolocasse com uma crueldade somente comparável com a Inquisição, o genocídio hispânico na América ou a Shoah. Por fim, o apocalipse chegava de mãos dadas com o corpo obsceno. Por fim, a sábia natureza colocava em seu devido lugar aqueles que faziam uso de seus

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órgãos para o prazer, para o vício. O deus do livro, da Torá, da Bíblia e do Alcorão, demostrava aos seus seguidores que sua capacidade de vingança e crueldade não havia apaziguado. O sodomita voltava a surgir. O sodomita, que era o catalizador de todos os males do mundo, retornava a trazer a destruição e o caos, devido ao uso desordenado do seu corpo. Não era preciso fazer referência a nenhum Deus, desta vez era a “sábia natureza” que se encarregava de passar a conta, demostrando que o direito natural emanava da divindade, que a natureza não permitia que se variasse o uso biológico de nenhum órgão humano. As formas de transmissão do HIV, por penetrações sexuais sem proteção e por compartilhar material para injetar drogas, deixavam claro como e a quem a enfermidade tinha que infectar. No início, inclusive, chegou-se a definir a AIDS como a enfermidade dos “quatro agás”: homossexuais, haitianos, hemofílicos e usuários de heroína e, com exceção das pessoas hemofílicas, os outros três grupos já tinham características de marginalidade social. Se bem que no caso dos haitianos se pôde estabelecer que, ao contrário do que estava amplamente difundido (os culpavam de introduzir a epidemia da AIDS nos Estados Unidos), foi o turismo sexual dos estadunidenses o responsável de que, nas condições de pobreza dos haitianos, a AIDS virasse endemia nessa nação. As pessoas com hemofilia eram pobres vítimas “inocentes” que, por necessitar de transfusões, infectaram-se, deixando assim a culpa e a intenção a outros grupos que eram identificados como buscadores da enfermidade e da morte pelo uso descontrolado de seus corpos. As pessoas que injetaram heroína passaram a ser casos incuráveis, já que o vício tornava impossível qualquer terapia ou prevenção; é que o 146 | Pelo CU

corpo viciado sempre foi visto, também, como abjeto e exterminável ou, pelo menos, como um corpo que deve restituir-se, deixando a droga para ter acesso às mínimas condições de existência. Na atualidade, ainda segue-se funcionando sob os mesmos parâmetros; a expansão da pandemia nos antigos países do bloqueio soviético se dá, sobretudo, pela ausência política de redução de riscos em usuários de drogas injetadas, e a eclosão que se dará ante a falta de campanhas de prevenção sexual se converterá em uma nova crise de saúde para muitos desses países. Mas ninguém se interessa por um junky: se já é um junky, se já está situado à margem da sociedade... para que intervir? A história social da AIDS foi, em boa parte, a história da culpabilização das suas vítimas. O medo, que sempre se encarregou de impedir a evolução das mentes, transforma a AIDS, de fenômeno social, em uma enfermidade social e não física. De um ponto de vista ideológico, culpabilizar as vítimas têm a função de ocultar o papel fundamental das diferentes condições, sociais, econômicas, raciais, de gênero e sexuais, na criação e expansão das enfermidades, e coloca a responsabilidade da prevenção e do tratamento exclusivamente nos indivíduos, transferindo para o cidadão a obrigação do Estado sobre a saúde da população. Quando a pobreza e a exclusão vão de mãos dadas, e é a maioria das vezes, as condições de saúde podem ser mínimas ou inexistentes e, nessa medida, torna-se impossível separar os problemas de saúde e das desigualdades sociais; e é aqui que surge a grande questão ideológica que fundamenta a pandemia da AIDS: os doentes são os culpados de sua enfermidade ou são produtos da desigualdade social?

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Quanto à letra H que nos diz respeito, homossexuais, o rearmamento das políticas, práticas e opiniões mais conservadoras não se fez esperar: o “câncer rosa” era visto como uma nova praga divina, dessa vez não indiscriminada, que limparia dando exemplo ao nosso mundo. Para isso, era necessário fazer uma leitura da AIDS em um texto difuso, obscuro e quase inexistente: o corpo da bicha e seu ânus. E é neles que surgirão e convergirão diferentes significados e discursos que autorizem e hierarquizem os corpos, práticas e órgãos. A bicha e seu ânus, ímã da desgraça divina, não somente era merecedor do castigo, do pior dos castigos: uma deterioração visível, uma encarnação da enfermidade que augurava, na dolorosa agonia, até a morte. A bicha era quem transmitia essa enfermidade pelo cu e, assim, situava-se em um plano de objeto eliminável, controlável. A ausência de conhecimento sobre a transmissão do HIV, que se apresentou quando surgiu a epidemia, servia para tratar a bicha como o corpo infeccioso, o vetor da transmissão, não do vício ou do pecado, mas da morte. O rechaço ao corpo enfermo não se baseava somente em categorias morais ou ideológicas, agora a relação com a bicha constituía uma aproximação cruel com a morte. Mil histórias pessoais servem para ilustrar o genocídio que se produziu no início da pandemia, viúvos reduzidos à miséria pela sua família homofóbica, bastardos torturados por seus progenitores com a vingança do “você buscou isso”, corpos abandonados a sua própria sorte nos piores lugares das instituições de caridade. Mas, embora todos esses mecanismos pudessem ser amenizados pela correção política que a sociedade teve que arrancar mediante ações espetaculares, manifestos, die in’s, zappings das pessoas afetadas, nada serviu para evitar os dis148 | Pelo CU

positivos de exclusão e morte, não obstante, ativos em países fora do Ocidente. A resposta dos afetados, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, serviu para mudar as políticas farmacêuticas, impulsionar a investigação, acelerar os tratamentos e, em alguma medida, para mudar a atitude da administração diante da enfermidade. Assim, surgem grupos como GMHC, Gay Men’s Health Crisis (crise de saúde dos homens gays), que da própria comunidade gay tentava dar apoio às pessoas infectadas. Em um primeiro momento, o grupo serviu para conseguir um mínimo de resistência e questionamento da homofobia triunfante que representava o chamado Câncer Rosa, assim como para iniciar a esboçar o que devia ser uma prevenção sem preconceitos. Com o tempo, o grupo se caracterizou por um viés assistencial. Isto provocou uma volta inesperada ao ativismo e deu andamento à criação, em que participaram alguns dos fundadores de GMHC como Larry Kramer, de Act Up AIDS Coalition to Unleash Power (Coalisão da AIDS para desencadear o poder); embora o mesmo termo de Act Up signifique também, em inglês, portar-se mal, guerrear, molestar. Esse grupo nasce em Nova York e outros aparecem nas principais cidades dos EUA e Europa. Act Up surge com um conteúdo claramente político e reivindicativo: ações na bolsa de Nova York para exigir investimento na investigação da doença, manifestações para conseguir a gratuidade ou o barateamento dos medicamentos, denúncia de homofobia, do machismo e do racismo, convertendo-se em uma referência do ativismo que posteriormente conhecemos como queer79. Um dos grupos mais ativos do Act Up é o de Paris, que rea79

Ver o artigo de Javier Sáez, El contexto sociopolítico de surgimento de la teoria queer. De la crisis del sida a Foucault. Em Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J., Teoria queer. Políticas bolleras, maricas, trans mestizas.

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liza ações de grande repercussão midiática, questionando as políticas sanitárias e os discursos homofóbicos que se dão na França atualmente. Dentro do campo do ativismo artístico-cultural, surgiu nos EUA o grupo Grand Fury, que, a partir da criação artística, conseguiu mudar alguns paradigmas com os quais o poder manejava a crise, ao mesmo tempo em que ressaltou os diferentes conteúdos clássicos da exclusão, que se encontravam dentro desses paradigmas. Embora tenham conseguido que o trabalho homossexual fosse reconhecido em alguma medida, não conseguiram estabelecer políticas anti-homofóbicas (e por que não políticas sodomitas ou políticas anais), o que por um lado freava o número de infecções e, por outro, iniciaram políticas de tolerância que acabaram com os preconceitos. O HIV iria crescer nos setores mais débeis da sociedade e do planeta. Esta profecia, altamente realizada, nos deixou um panorama no qual a classe, a raça, o gênero e as sexualidades minoritárias foram fatores determinantes para o desenvolvimento da pandemia. Também é certo que a enorme mobilização que conseguiu mudar o discurso, baixar o preço dos remédios e incluir políticas preventivas não estigmatizantes, não conseguiu suficientes alianças com outros setores progressistas ou de esquerda, demonstrando que o gênero e a homofobia são critérios transversais, alheios aos movimentos sociais. O machismo e o racismo parecem ganhando espaço nos movimentos antimilitaristas, ecologistas, solidários... e parece que ainda estamos longe de ver estas manchas lavadas. Apesar de suas conquistas, esses grupos de luta contra a AIDS não conseguiram eliminar a crosta de homofobia que há nas políticas preventivas da atualidade, com preconceitos que as tornam falhas em efetividade. Para não falar das escas150 | Pelo CU

sas (e homofóbicas) políticas de prevenção que se apresentam em países empobrecidos, onde não há nenhuma vontade política de mudar a pandemia80. Caiu-se em certo otimismo, ao conseguir que as campanhas de prevenção ao HIV deixassem clara a via de transmissão do HIV; acreditou-se, também, que com o surgimento de remédios antirretrovirais e da terapia antirretroviral de alta eficácia, TARGA na sua sigla em inglês, seria possível parar a pandemia por um lado, ao mesmo tempo em que se implementava políticas sociais e sanitárias paliativas, em certa medida, contra a homofobia e as desigualdades de gênero e de etnia. Novamente, a modernidade ia para a lona vendo como as boas intenções se dissolvem com a mudança política, sobretudo conservadora e direitista. As políticas preventivas continuam sem utilizar, como critérios transversais, as lutas contra a homofobia ou as desigualdades de gênero e éticas. As administrações públicas se limitam a realizar campanhas moralistas e ambíguas. Todavia, está claro que a moralização e a tibieza dessas campanhas continuam situando-se em uma ordem onde o sistema heterocentrado é inquestionável; assim, a leitura que se pode fazer das mensagens que estas instituições lançam é que parecem ser dirigidas única e exclusivamente para pessoas que se encontram fora da norma sexual. A abstinência e a fidelidade se dão como chave mais segura para evitar a infecção; um reforço moral, diante do qual as diferentes religiões monoteístas não ficaram de fora, entre as quais se destacou a Igreja Católica. Se esse tipo de política demonstrou sua ineficácia nos países ricos, no caso dos países pobres supôs e supõem autênticos 80

Ver o texto de Paco Vidarte “DHIVorcio y matrimonio gay”, Periódico Diagonal, 16 de junho 2006, número 11. E também na página http://www.hartza.com/matrimoniogay.htm

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genocídios. As políticas de cooperação do presidente Bush na África condicionaram toda a ajuda a utilizar aquilo que se chamou na época de ABC abstinence, be faithful and condoms, abstinência, fidelidade e, se não pode remediar, camisinhas, frente às diretrizes da UNAIDS, organização da ONU para a AIDS, que recomendava as políticas CNN, condoms, needless and negociation, camisinhas, seringas (compreende-se o seu intercâmbio com usuários de drogas injetáveis) e negociação das práticas sexuais, com o empobrecimento que isso supõe para as pessoas em situação de clara desigualdade social: mulheres, trabalhadoras do sexo, homens que fazem sexo com homens, pessoas transexuais... Um exemplo dessa nefasta política é o caso de Uganda. Uganda é um dos países africanos que mais recebe ajuda internacional, mas sob a administração Bush as ajudas de material de saúde foram com a condição de colocar em prática as políticas baseadas no ABC. No ano de 2006, a administração ugandesa informava que os casos de infecção por HIV haviam diminuído, ao mesmo tempo em que haviam conseguido elevar a idade de iniciação nas práticas sexuais; heterossexuais, bem entendido. Esses dados, que foram publicados sem nenhuma verificação, foram em seguida propagados pela administração norte-americana e seus seguidores, como as seitas cristãs fundamentalistas, a igreja católica incluída, para demonstrar que a abstinência sexual era a arma mais eficaz para impedir o crescimento da pandemia, em detrimento da potencialização do uso de preservativos. Essas políticas nefastas foram monopolizadas pela seita vaticanista para incrementar suas mensagens contra o uso do preservativo, desta vez não sob o prisma moral, mas, e muito cinicamente, com o pretexto pseudocientífico de que 152 | Pelo CU

a abstinência é a melhor arma contra a transmissão do HIV. Assim, essa ideia foi amplamente difundida em todas as mensagens que os dirigentes emitiam nas chamadas viagens apostólicas para a população africana, dizimada pela pandemia e as políticas econômicas genocidas dos países ricos. A ausência de dados sobre o aumento das infecções e suas vias de transmissão foi uma constante na pandemia da AIDS. Se nos países ocidentais, que se supõem mais avançados com respeito à liberdade sexual, é difícil recolher dados por conta da homofobia imperante ou pelo moralismo com que se observam as práticas sexuais não normativas, em países como Uganda, onde não há meios para o recolhimento desses dados (e onde há uma grande tradição homofóbica, em grande medida devido às crenças cristãs, que são majoritárias no país), há ainda mais dúvidas sobre a confiabilidade desses resultados. Em Uganda, a homossexualidade é castigada com pena de até 14 anos e, na atualidade, seu parlamento está estudando aumentar o castigo para a pena de morte. Uma das formas mais transmissíveis do HIV é a penetração anal, prática, por outro lado, que goza de grande estima nas relações homossexuais entre homens, mas que está sujeita a duros castigos legais (para não falar no rechaço social); nessas circunstâncias, como se pode dar alguma confiabilidade aos dados publicados? O Vaticano e seus sicários fizeram do continente africano o campo de batalha para a sua última cruzada antissexual; suas mensagens não somente de pró-abstinência, mas também frases como “camisinhas não evitam a AIDS”, são, sem dúvida, um claro exemplo de políticas criminosas com pressupostos racistas e fomentadores do ódio; essas mensagens 153 | Pelo CU

não são condenadas pela administração pública, apesar de sua ausência de critérios científicos. Novamente, a ausência de políticas anti-homofobicas ou a existência de políticas antianais, continuam produzindo injustiça, sofrimento e morte.

Para uma prevenção no sentido anal Falar de bichas é falar do cu e como bem dizia Paco Vidarte em sua Ética bicha: “não é o mesmo que o poder entende do cu de uma bicha e o que uma bicha entende do seu cu”. O cu é a essência da bicha, é seu leitmotiv e órgão pelo qual perde a sua dignidade e se converte no abjeto, no indesejável e exterminável. Os aspectos biológicos que têm lugar na penetração anal nos dão a explicação fisiológica do porquê do HIV e de outras infecções se transmitirem com tanta eficácia nessas relações. O reto é significativamente diferente da vagina no que diz respeito à adequação para a penetração do pênis. A vagina tem lubrificantes e o apoio de uma rede de músculos. Ela é composta por uma membrana mucosa com um epitélio estratificado em várias camadas, que permite aguentar a fricção sem danos e resistir às infecções imunológicas causadas pelo sêmen e pelo esperma. Por seu lado, o ânus é um delicado mecanismo de músculos pequenos e seu potencial de dano é grande pelo fato de o intestino ter uma única camada de células que o separa do tecido altamente vascular, isto é, o sangue. Portanto, qualquer organismo que se introduza pelo reto tem uma maior facilidade na hora de estabelecer o ponto inicial de uma infecção do que uma vagina. Desta realidade se vê o grande consumo de cremes lubrificantes entre a população que goza com 154 | Pelo CU

o sexo anal, pois com eles se consegue uma penetração muito mais agradável e um menor risco na prazerosa fricção. O parceiro que insere (ativo) também corre risco, porque as membranas de dentro da uretra são uma via de entrada para a corrente sanguínea do HIV, que pode ser encontrado no sangue do ânus. Desgraçadamente, o acaso biológico se coloca novamente do lado do poder. A pessoa receptora, a que toma no cu, corre um maior risco no momento da infecção pelo HIV do que a que insere. A mucosa anal é muito absorvente (os supositórios que muitos homens se negam a usar, presumindo que seguem a linha de Luis Aragonés e seus camarões), é uma forma de fazer os medicamentos entrarem na corrente sanguínea muito rapidamente, fazendo com que seu efeito seja mais rápido. Além disso, essa mucosa é mais frágil devido à facilidade em rasgar e abrir (as famosas microferidas). Mais ainda, o sêmen, tem componentes que são imunossupressores. No curso da fisiologia reprodutiva normal, isso permite ao esperma evitar as imunodefesas da mulher. O resultado final é que a fragilidade do ânus e do reto, junto com o efeito imunossupressor da ejaculação, faz da relação ânus-genital uma maneira muito eficaz de transmitir o HIV e outras infecções. A lista de enfermidades encontradas com extraordinária frequência entre homens que praticam o coito anal é bastante abundante: câncer anal, Chlamydia trachomatis, cryptosporidium, giardia lamblia, herpes simples, o HIV, o vírus do papiloma humano, isospora belli, microsporídia, gonorreia, hepatite viral B e C, sífilis. Desta forma, pode-se estabelecer uma hierarquia nas práticas sexuais segundo o risco de transmissão do HIV, não tanto para outras DST, e esta hierarquia de risco deve ser a base para qualquer tipo de prevenção. Mas, infelizmente, os pou155 | Pelo CU

cos êxitos obtidos no começo da pandemia para implementar políticas preventivas que escapem a preconceitos morais (acompanhadas de outras que combateram tanto a homofobia legal quanto a social) não parecem ter colhido grandes frutos e foi perdendo força em detrimento de políticas mais formais, mais corretas, que demonstram a sua ineficácia. Como é possível estabelecer políticas de prevenção sem levar em conta as políticas anais? De uma concepção heterocentrada da sexualidade não se pode colocar práticas políticas preventivas anais. De fato, na maioria das campanhas da administração, a prevenção parte de pressupostos normalizadores, com poucas exceções, e em nenhum momento chegam a situar o cu como eixo central da mensagem. Conhecemos os valores que existem sobre a penetração, valores que dentro do sistema heteropatriarcal não são somente símbolos, mas que, como é o caso que nos chama atenção, estão totalmente encarnados em corpos e correspondem a um segundo nível, a algo inferior. O penetrador é “ativo”, aquele que insere sabe o valor social de se meter num cu ou numa boceta: é uma demonstração de superioridade, de poder e de status. Isso é publicizado, estimulado até o paroxismo: não basta ter um pinto, um privilégio, também há que penetrar outro corpo como forma de possessão e dominação, como conquista. Todavia, onde encontrar o valor de ser penetrado? Se aquele que penetra detém o poder, que não é o prazer, em que espaço se encontra quem expõe seu amigável traseiro ao penetrador? Como é possível viver o prazer, o orgulho e a dignidade de sentir a penetração, quando todos os discursos se baseiam na depreciação do penetrado?81 81

Ver Bersani, L., “Es el recto una tumba?”, em Llamas, R., Construyendo sidentidades.

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Dentro dos milhares de mecanismos que entram na construção do desejo, o penetrado se situa no espaço de submissão, o passivo recebe a ação sem mais atitude que o oferecimento, tão injuriado socialmente. Não nos encontramos com alguns penetrados que, em seu foro íntimo, buscam o castigo pela vergonha de seus atos? O passivo busca castigo quando lhe fodem? Se é assim, o desejo de trepar sem camisinha é parte da busca de um castigo? Ou nos encontramos diante de uma forma de depredação sexual que renuncia à sua saúde por conseguir um pau para botar dentro? A camisinha é a única forma de prevenção em uma penetração anal? Como fazer uma prevenção para o passivo-receptor? Pode-se fazer uma prevenção não vitimista? Não será o passivo uma vítima de um sistema de valores onde a passividade é o último grau? Pode-se gerir a prevenção numa abordagem mais ampla e explícita do papel do receptor? Como pedir ao passivo uma verbalização de sua analidade sem cair em uma confissão no sentido em que fala Foucault? Como dotar o cu de um grande orgulho pelo prazer que outorga? Todas essas questões são cruciais para iniciar novas políticas de prevenção baseadas no orgulho passivo. É necessário estabelecer discursos, práticas e atitudes que não só questionam os valores do penetrador, mas que destaquem os valores do penetrador. Durante muitos anos, reconheceu-se que é provável que os programas contra o HIV-AIDS dirigidos a homens “gays” alcancem só a uma proporção pequena do público ao qual foram direcionados, particularmente ao mundo em vias de desenvolvimento. Para muitos homens que têm sexo com outros homens, gay é um conceito estrangeiro; surge dos Estados Unidos, de uma clas-

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se média, associam-no ao afeminado, ao travestido, ao transgênero, ou é uma palavra que eles raramente escutam. Por esta razão surge o termo homens que fazem sexo com outros homens, HSH, para descrever todos os envolvidos no sexo entre homens, sem importar suas circunstâncias, preferências ou autoidentificação. Mas o sodomita se sente identificado nessa categoria? HSH é um termo que pode ser altamente questionado, já que ainda nasce da necessidade de uma prevenção mais eficaz, mas retorna a ocultar, sofisticamente, uma prática sexual, a penetração anal, que deve ser o centro de uma verdadeira prevenção. Para que manter uma categoria cuja leitura pode ser comportamental, epidemiológica ou ativista, se a população a quem é dirigida não se sente identificada? O que fazer quando tal falta de inclusão está totalmente relacionada com sua vulnerabilidade à infecção? Se, ao final, essa categoria é reduzida à de bicha, à de sodomita, à de tomar no cu, por que não criar campanhas que se dirijam a essas práticas, independentemente das identidades de seus praticantes? O mesmo léxico, passivo versus ativo, já supõe uma graduação em si. Mas outras definições, como a de insertivo e receptivo, médica e cientificamente, utilizada para descrever a prática do coito anal com certo grau de distanciamento, não têm melhor sorte, e tampouco as criadas dentro da própria comunidade, se bem que é certo que partem de pressupostos distintos. A passivofobia nos ambientes gays segue tendo sua cota, bastante animada por uma norma heterocentrada. Top e Bottom, acima e abaixo, não escapa a uma mínima valorização sobre o que se entende por poder, mas, ao menos, a definição passaria a uma ordem mais geométrica e menos biológica. A primeira premissa de uma política anal, visto que 158 | Pelo CU

a reapropriação dos termos é custosa, deve ser criar novos tropos, palavras e realidades que desvirtuem o sentido negativo do passivo, receptor, bottom. Morde fronhas e sopra-nucas, por exemplo, já se encontraria em outro registro. O passivo, o que recebe a ação, segundo a definição gramatical, constitui-se como mero receptor, não escolhe, é penetrado e parece não fazer diferença o material do recheio. Essa ideia machista é transferida desde a misoginia patriarcal. É o discurso de quem tem a posse, domina, goza, em detrimento do corpo penetrado. É curioso que as centenas de discursos que circulam sobre o valor que supõe penetrar (mais poder, mais prazer, mais virilidade e ainda um melhor status) não tenham sofrido uma contestação dos discursos que exaltam a receptividade. A crítica que desde os feminismos foi feita à colonização sexual do corpo da mulher não conseguiu fazer com que as mulheres desfrutassem da penetração, anal ou vaginal, podendo-se presumir disso a queda do status de prostituta ou de atriz pornô vocacional, para não falar da leitura perversa e misógina que poderia justificar uma permanente acessibilidade. Em um sistema de valores onde o poder, a dominação e a virilidade estão no penetrador, qual é a relação do passivo com o seu cu? Como vive o prazer da penetração em um entorno onde o penetrado é injuriado? A penetração anal foi historicamente um signo de castigo, de submissão: o prisioneiro, o escravo, o outro, o inferior, ao fim e ao cabo, tinha que notar o estigma no seu cu perfurado, um estigma invisível, que reconhece apenas aquele que padeceu, o paciente, o passivo, mas que, segundo seu status e situação, pode despertar suspeita, já que toda a tradição sodomita está flutuando no ambiente como um velho refrão. O penetrado então não vai desenvolver uma 159 | Pelo CU

essência, mas sim uma identidade interna que, com sorte, somente ele ou os sodomizadores podem revelar. Não parece difícil que a equação do penetrado como sujeito de castigo, de vergonha ou de ignomínia, estabeleça-se na identidade do sodomita, fazendo uma vez mais com que algumas práticas sejam vistas como identidade. Embora essa identidade de submissão, de recepção do castigo, tenha sigo gozosamente reapropriada pelos sodomitas receptores como um espaço de prazer, pode-se encontrar em outros aspectos da vida e das relações. Romper com esses sentimentos negativos, aqueles que não estão nos jogos sexuais, não supõe alcançar a felicidade absoluta, nem muito menos que isso, mas pode ajudar a manter a própria autoestima em um mundo hostil. E esta deve ser uma das bases das políticas anais82. Se entendermos a sodomia como uma forma de imposição e de ultraje que atravessa tempos e culturas, sem saber onde e como se originou, mas que é repetida sem questionar seus meios ou fins, poderíamos falar de um ato performativo. Todo ato performativo é baseado em uma repetição que não tem original, mas que produz um efeito de realidade a partir de sua própria repetição. Por isso mesmo, porque não se remete a nenhuma essência ou realidade natural, podemos nos apropriar desses atos repetidos e lhes dar um significado diferente. Ou seja, podemos promover um orgulho passivo, uma repetição de atos explícitos onde o positivo é o anal, a posição de receptor anal como algo prazeroso, produtivo e potente, 82

Tampouco estaria mal que o médico pessoal ou sexólogo informassem com naturalidade e visibilidade sobre as responsabilidades do sexo anal, e que especialidades como a proctologia incluíssem formação sobre os usos prazerosos do ânus, do reto e da próstata. E para quando uma campanha estatal de prevenção em HIV fundada no orgulho passivo, dirigida e explicitamente a pessoas receptiva no sexo anal?

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onde invertemos essa tradição milenar. Já o fizeram os grupos queer com a palavra bicha ou sapatão que era negativa, mas quando nos apropriamos delas com orgulho passou a ser algo positivo nos círculos da militância queer. Desta forma, se desativa o insulto, apropriando-se dele. A construção da sexualidade, do desejo, está atravessada por muitas variáveis transversais, mas, sobretudo, está dentro de um sistema, o heteropatriarcal, onde os valores do penetrador são os mais elevados. Parece que é difícil, quase impossível, questionar essa hierarquia, na qual não cabem dúvidas sobre quem possui quem; há exceções como as que aparecem nas comunidades leather e S/M, mas o estigma a que estão submetidas essas comunidades e práticas impede em grande medida que se generalize. A promoção de um orgulho passivo deveria também questionar algumas das conotações da palavra passivo. Já nos referimos a algumas, mas há outra conotação que é importante, que associa o passivo à ideia de “não fazer nada”, de “deixar-se fazer”, de nulidade ou de inatividade. Na realidade, o cu, o ânus, o reto, a próstata, são lugares de atividade; relaxam, se agitam, se excitam. É importante lembrar que o próprio ato sexual da penetração no cu tem um papel muito ativo. Uma prática muito comum no sexo anal é que o “passivo” aperte e relaxe os músculos anais e retais, no que proporciona muito prazer no pênis da pessoa “ativa”. O orgasmo que sentem muitos homens pelo contato prostático também é algo ativo; o lugar mal chamado passivo na penetração não supõe uma mera recepção de um objeto ou um pênis, é um ato complexo e cheio de atividade. Inclusive, em muitos casos, o “ativo” desmorona com a boca para cima,

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enquanto o “passivo” é que se coloca em cima e faz todo o trabalho com o seu cu83.

O caso de Esta cartilha vai de bunda No início de 2008, a associação StopSida, da coordenação Gay-Lesbiana da Catalunha, editou dentro das suas campanhas anuais de prevenção dois livrinhos com os nomes de Esta cartilha é o caralho e Esta cartilha vai de bunda. A associação StopSida é pioneira dentro das organizações de luta contra a AIDS no Estado espanhol e sempre se destacou pelo rigor de sua informação, na qualidade de suas apresentações e na grande difusão a nível estatal que tiveram suas campanhas. StopSida foi e é uma referência na prevenção da AIDS no Estado e para todos os grupos LGTB de luta contra a AIDS. Ademais, sempre foi caracterizada pela eficácia e abordagem das suas mensagens, contribuindo com a luta contra o estigma a que sofrem as pessoas que vivem com o HIV, sobretudo a população para a qual foi majoritariamente dirigida, o coletivo dos gays soropositivos; sem esquecer sua contribuição para a visibilidade da comunidade LGBT e para a luta contra a homofobia. As cartilhas foram distribuídas para todas as associações colaboradoras, tendo uma grande aceitação e difusão entre a comunidade gay. Era um material novo e com informação sumamente útil sobre o caralho e a bunda, com uma linguagem coloquial e próxima, e nem por isso menos assertiva. Tudo o 83



Uma crítica similar foi feita há muitos anos pelas mulheres feministas, questionando seu papel “passivo” pelo fato de que “são penetradas”. Hoje em dia ninguém aceitaria esta ideia de que uma mulher é “passiva” no sexo, mas, todavia, esta ideia segue sendo comum no caso do homem receptor do sexo anal.

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que era preciso saber sobre os órgãos em seus aspectos biológicos e funcionais era explicado de uma forma eficaz e sensível, fazendo uma expansão no aspecto sexual, incidindo nos riscos de transmissão das diferentes DST’s e do HIV. Nada ficava esquecido, nem era julgado moralmente nenhum tipo de prática; as cartilhas apenas informavam sobre os riscos e a forma de evitá-los ou reduzi-los. Pequenas obras, mas muito eficazes na divulgação, já que qualquer pessoa com pênis ou com bunda podia aprender tudo o que era necessário sobre sua saúde sexual. O fogo veio à tona no dia 24 de abril do mesmo ano. O diário de Madrid ABC (que por uma curiosa casualidade são as mesmas siglas que Abstinence, Be faithfull, Condoms, o nome das políticas ultraconservadoras do presidente Bush) editava em página dupla a notícia: Uma cartilha subsidiada por uma agência de saúde induz ao uso de drogas nas relações sexuais.

E não poupavam, nem tipograficamente nem semanticamente, o assombro e o desassossego que lhes produzia a cartilha publicada: O folheto se intitula Esta cartilha vai de bunda e promete, em sua capa: “Domine os cus, descubra seus segredos e aprenda a manejar a elasticidade”. Refere-se ao uso do “cu” como objeto de prazer no sexo entre gays. A cartilha é um compêndio de práticas supostamente seguras no uso do cu no sexo. Usado como se indica no folheto, o poppers “relaxe e ajude para que você e seu companheiro fiquem cheios de tesão”.

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Na notícia, a seleção dos parágrafos e o tratamento que se dava ao conteúdo não só eram utilizados para denunciar que “com o dinheiro público se incentivava o consumo de drogas”; parecia que era a desculpa para derrotar ideologicamente as tentativas de generalizar a educação sexual e, por conseguinte, a saúde pública. Para isso, que melhor estratégia que ressaltar doentiamente as práticas habituais entre os gays. Novamente a bicha, o sodomita e seu órgão protagonista: o cu. Já havíamos falado mais acima de que maneira a AIDS se encarnava nos corpos abjetos, a bichona, o drogado, e de novo surgem aqui as mesmas dúvidas sobre a viabilidade destes corpos. Falar dos perigos das drogas é publicizá-las, segundo suas consciências, mas falar do cu como órgão sexual e mostrar suas possibilidades de prazer é simplesmente impensável dentro de uma mente reacionária. Parece que se desperta novamente o medo do contágio, o lobby gay fazendo publicidade, o temor de que esse ser, a bichona, suje e contamine nossas vidas. De novo a direita afia suas armas, carregando contra a mínima visibilidade da bicha, e contra o órgão que lhe identifica: o cu. Os diferentes meios digitais de direita recorriam à notícia, enfatizando o caráter desembaraçado da cartilha que, para eles, era algo totalmente excessivo. Sua seleção de frases era típica da manipulação jornalística: desde colocar entre aspas a palavra cu, até se focar nas práticas scat, passando por colocar em dúvida o sexo como meio para prevenir o contágio do HIV: Liberdade digital: A cartilha Domine os cus ensina, em um capítulo intitulado Meter drogas no cu, que “há caras que enfiam drogas por seu 164 | Pelo CU

efeito anestésico. Isso pode ser feito com drogas em pó ou com pastilhas dissolvidas em água (speed, êxtase, cocaína ou heroína). Deste modo, as drogas são absorvidas mais rapidamente e podem ter um efeito mais potente”. É ensinado a manter certas práticas escatológicas sem risco, supostamente, de contrair Aids. O Imparcial: Sanidade subvenciona uma cartilha na qual gays e drogas dão-se as mãos. Entre essas práticas, encontra-se o scat, que consistem em “lambuzar alguém de merda ou brincar com ela”, algo que não traz risco de infecção pelo HIV, embora se possa contrair outras doenças sexualmente transmissíveis, segundo se adverte… Dois dias depois, Sanidad retirou Esta cartilha vai de bunda, da ONG “Stop Sida”, dirigida ao coletivo gay, que instiga ao uso de drogas e mostrava uma posição ambígua sobre o uso do preservativo”.

O cu, a merda e a droga são, para esses meios, o coquetel explosivo com o qual se pode converter a bicha, um ser ligado à morte por seus “jogos”. A merda e o cu são sinônimos da insalubridade que encarna a bicha ligada à sua morte. A cartilha foi retirada pelo Ministério da Saúde dois dias depois de aparecer a notícia, alegando defeitos de forma na execução do projeto: não haviam passado o texto para ser lido pelo Ministério. Vale ressaltar a rapidez com que a instituição atuou, rapidez esta que se converte em uma absoluta lentidão a respeito de qualquer outro tema. O Ministério e o governo do PSOE demostram uma vez mais que as políticas para com a comunidade LGT são pura formalidade, e uma ausência de bravura política que os situa no mesmo espectro que a direita troglodita.

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As respostas das diferentes ONGs não tardaram a aparecer, mas dentro da tepidez que caracteriza essas organizações dependentes dos subsídios do Estado. E também resulta curioso que, exceto na própria nota de imprensa da Stop Sida, não apareceu nenhuma menção ao cu. COMUNICADO PARA A IMPRENSA DO STOP SIDA Não se pode falar do cu? É sujo? De que a comunidade homossexual masculina vai falar?

O fenômeno do bareback O bareback, foder a pelo, é um fenômeno social que voltou a colocar fogo no tema do sexo anal e, concretamente, do cu da bicha. Para entender esta prática convém fazer um pequeno percurso histórico. Podemos assinalar três etapas da história da AIDS: • Nos anos 80 houve uma alta mortalidade das pessoas soropositivas; havia pouca informação para a prevenção, levando a acontecer o fenômeno que já comentamos: o de associar a AIDS aos gays84; • Nos anos 90, aparecem medicamentos melhores para o HIV; há uma menor mortalidade, uma maior conscientização social e um ativismo forte das comunidades gays na prevenção e na prática do sexo seguro; 84

Ver o artigo de Fefa Vila e Sejo Carrascosa, “Geografías víricas” no livro El eje del mal es heterosexual, pp 46-60. Download autorizado do livro na internet: http:// www.harttza.com/ejedelmal.pdf. Ver também o artigo de Javier Sáez, Nous plans, vells erros, Ingofai n. 157, novembro/dezembro 2007. Disponível online em: http:// www.hartza.com/infogai.pdf

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• Na década 2000-2010, aparece o fenômeno do bareback – sexo sem preservativo –que é o abandono do sexo seguro em uma parte importante da comunidade gay (e um abandono do teste do HIV), o que está produzindo atualmente uma notável volta das infecções por HIV entre os homens que fazem sexo com homens85. Para começar, convém diferenciar experiências distintas relacionadas com o bareback. Podemos distinguir, ao menos, três níveis ou três aproximações do que se chama bareback86. Em primeiro lugar, existem certas comunidades que praticam o bareback de forma ativa e clara, mas insistindo muito na prevenção de um possível contágio por HIV. Trata-se de pessoas que decidem negociar sua sexualidade sem utilizar o preservativo, não de forma inconsciente, mas tomando medidas de segurança. Para isso, insistem em conhecer o estado sorológico de cada pessoa (serosorting). Ou seja, propõem que se tenha encontros sexuais de forma segura de duas formas diferentes: por um lado entre pessoas que sabem que são soronegativas e, por outro, entre pessoas que sabem que são soropositivas. Esta é a atitude mais ampla na prática do bareback, sobretudo nas cidades onde há altas taxas de pes85

Deixamos para outro possível livro a falta de prevenção da comunidade hetero, sua própria consciência, a política genocida do Vaticano, etc. Parece que sempre se assinala aos gays quando há retomadas da infecção do HIV, mas não se assinala que também há uma grande expansão do sexo não seguro entre heterossexuais. Poucas vezes se denuncia o fato de que o maior promotor do bareback em escala mundial é a igreja católica.

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Recentemente foi publicado dois interessantes e valiosos ensaios sobre o bareback, um de Tim Dean, Unlimited intimacy: reflections on the subculture of barecking, e outro de David Halperin, What do gay men want?: na essay on sex, risk, and subkectivity. Ver também o ensaio de Kane Race, “Engaging in a culture of barebacking: gay men and the risk of HIV prevention” em Hannah-Moffat, K. & O’Malley, P. (eds) Gendered Risks. London: Glasshouse press.

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soas soropositivas (em San Francisco, por exemplo). Existe o debate sobre os riscos da relação entre pessoas soropositivas pela possibilidade de reinfecções com uma nova cepa do vírus que poderia piorar a saúde da pessoa, mas parece que até agora foram detectados poucos casos de reinfecção. Em todo caso, esse tipo de prática de bareback ao menos coloca uma tomada de consciência e dos riscos, e algumas medidas para minimizá-los87. Outra aproximação diferente do bareback é baseada simplesmente na ignorância. Isto é, aqui o não saber é o princípio básico. Existem pessoas que decidem não conhecer seu estado sorológico, nem saber o estado da outra pessoa, e não se preocupam com as consequências que podem ter para sua saúde (ou para a dos demais) a prática do sexo sem preservativo. Obviamente, essa atitude gera graves riscos, porque muitas delas são soropositivos sem o saber, e não recebem o tratamento médico que poderia impedir o avanço da infecção e o risco de padecer de enfermidades graves. Segundo os dados do Ministério da Saúde espanhol, em 2007, 57% dos gays que foram diagnosticados com AIDS não sabiam que eram soropositivos. Outro risco evidente é que, por sua vez, essas pessoas podiam transmitir o vírus para outras pessoas. Essa situação explica o notável aumento de infecções entre pessoas gays em muitos países ocidentais nos últimos anos. No jornal EL PAÍS, Emilio de Benito publicou em 2010 a seguinte notícia: “os últimos dados do Plano Nacional sobre AIDS (PNS) e sobre diagnósticos de HIV são conclusivos: 38,8% dos novos diagnósticos do HIV se dão entre homens que tiveram sexo com outros homens. Ou, mais cruamente 87

Obviamente, duas pessoas soronegativas não podem se infectar entre si, por isso se insiste em conhecer bem o estado sorológico de ambas no momento do ato sexual.

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ainda: se se tem em conta somente os infectados homens, os gays (e outros homens que têm sexo com homens mesmo que não se identifiquem como homossexuais) são 50%88”. Na França, a situação é ainda pior: de todos os novos casos de AIDS detectados em 2008, (6.940), 3.300, que equivalem a 48%, quase metade resultou de relações sexuais entre homens, quando na realidade os HSH representam uma pequena parte da população geral. Segundo o Institut de Veille Sanitaire [Instituto de Vigilância Sanitária], a situação de contágio entre a população gay francesa está fora do controle. Nos Estados Unidos as coisas não são melhores: segundo estudo publicado em setembro de 2010, elaborado pela Divisão de Prevenção de HIV/SIDA dos Centros para o Controle de Enfermidades e Prevenção (CDC) dos Estados Unidos, um em cada cinco homens que tem sexo com homens em cidades americanas é soropositivo (20%). Além disso, cerca da metade dos infectados não estaria ao nível deles, e a mais afetada seria a comunidade afro-americana89. O terceiro enfoque sobre o bareback é muito mais polêmico e talvez não tenha sido suficientemente testado. Trata-se de uma prática que foi difundida nas revistas, e que consiste na busca intencional do contágio, em inglês bug chaser, isto é, “aquele que busca o bicho”. Nesta prática, são celebradas festas onde algumas pessoas são soropositivas e outras pessoas que não são vão para jogar com a possibilidade de serem infectados, ou mesmo buscando deliberadamente a infecção. Essa prática, que se supõe muito minoritária ou que, inclusive, alguns consideram que não existe, veio ao espaço público (e ao espaço sensacionalista) a partir de uma matéria 88

EL PAÍS, 26 de março de 2010.

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http://www.cdc.gov.nchhstp/newsroom/docs/fastfacts-msm-final508comp.pdf

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publicada na revista Rolling Stone em janeiro de 2003, escrita pelo jornalista Gregory A. Freeman90 com o título “Buscando a morte”, onde se expunha, a partir do testemunho de uma pessoa gay, esta prática de achar excitante ser infectado pelo vírus HIV. Neste mesmo ano, a diretora Louise Hogarth gravou o filme The Gift sobre o mesmo fenômeno. A partir de então, circularam muitos rumores sobre esta prática; recentemente, em março de 2010, o jornal El Mundo fez eco (um eco muito distante) dessa matéria e desse filme, depois de sete anos. A matéria do El Mundo, intitulada “Eu joguei a roleta russa da AIDS”91, foi publicada com um afã sensacionalista, dado que não acrescentava nenhuma nova informação a respeito desde 2003, nem dados concretos sobre a possível prática na Espanha. O estilo de imprensa marrom da matéria pode ser apreciado em frases como esta: Enquanto os especialistas debatem o que move os caçadores de vírus, enquanto as autoridades recompilam os dados e pensam um modo de parar essa prática, os “bug chasers” que se escondem no anonimato da internet continuarão participando de chats para organizar sua próxima roleta russa.

Como indicado anteriormente, acreditamos que o fenômeno do bareback deve ser analisado a partir de um conjunto de fatores muito complexos. Alguns especialistas em prevenção do HIV assinalam que uma das razões do abandono do uso do preservativo na comunidade gay é o cansaço, depois de 30 anos de pandemia, de estar sempre alerta e utilizando 90

Sobre este tem aver http://en.wikipedia.org/wiki/bugchasing

91

http://www.elmundo.es/elmundosalud/2010/03/05/hepatitissida/1267808100.html

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constantemente o preservativo. Outra causa que podemos encontrar a partir de algumas declarações de pessoas que não utilizam preservativos é a morbidez, o saber que se está fazendo algo proibido, perigoso ou transgressor. Outro fator importante tem relação com a idade: os jovens gays não viveram os efeitos devastadores da pandemia dos anos 80, quando morriam muitas pessoas próximas por causa da AIDS. Graças aos novos tratamentos antirretrovirais, por sorte, hoje em dia morrem poucas pessoas nos países ocidentais por causa da AIDS, e isto levou muitos jovens a pensar que viver com HIV não é algo tão grave, e que com a medicação se pode viver sem problema. Também há outra leitura do bareback que tem relação com uma espécie de retorno ao sexo “natural”, ao sexo verdadeiro, como se o uso do preservativo reduzisse a intensidade ou o valor do ato sexual. Até mesmo, podemos escutar em certas ocasiões a ideia de que o sexo sem preservativo é um sexo de machos, um sexo duro, forte, e é justo esta ideia que neste livro pusemos em relação com a masculinidade tal como se constrói na atualidade. Nesta mesma linha, escuta-se, às vezes, a opinião de que o sexo sem preservativo é um sexo “real”, como se o fato de colocar o látex de uma micro-espessura nos separasse de uma espécie de “realidade absoluta” do sexo. Esta reflexão é bastante absurda se levarmos em conta que a própria pele humana é uma barreira, uma proteção, uma espécie de camisinha contra as infecções do exterior. Diríamos que para fazer um sexo “autêntico, real” deveríamos fazer como o cantor Robbie Williams em seu divertido videoclipe Rock DJ, onde começa tirando a roupa, para jogar nos seus fãs, e continua tirando a pele, os músculos...até terminar dançando como um simples esqueleto. 171 | Pelo CU

Há também pessoas que consideram o bareback como “uma prova de amor”, como se o preservativo introduzisse um elemento de desconfiança no casal. Segundo essa lógica, praticar sexo sem preservativo seria uma espécie de retorno a um amor verdadeiro, puro, sem amarras. Como dizia Chenoa, em uma das canções que mais causou danos à prevenção contra o HIV entre os jovens: “e não me fale de sexo seguro, nem plastifique o meu coração”. Segundo essa ideia absurda, a camisinha de repente é trasladada do sexo ao “coração”, ao amor, e vira algo que se torna obstáculo para o seu pleno desenvolvimento. Alguns defensores do bareback situam a discussão no terreno das opções individuais, da liberdade pessoal. Se duas pessoas adultas e de mútuo acordo decidem fazer sexo não seguro, entende-se que qualquer recriminação ou proibição seria uma injúria à sua liberdade individual. Essa posição parece bastante sólida, mas não se leva em conta as consequências para a comunidade, por exemplo, que se uma das pessoas, em seu exercício de liberdade, é infectada, o Estado terá que pagar seu caro tratamento antirretroviral por toda a sua vida. De qualquer modo, os críticos do bareback não querem a proibição, mas, simplesmente desenvolver uma cultura coletiva mais consciente dos riscos à saúde, e colocar em relevo as importantes consequências dessa prática dentro da comunidade gay, consequências que já são visíveis. Dentro de um regime heterocentrado e machista como o que vivemos, a masculinidade continua vinculada a valores como o risco, a força, a violência, a morte, o perigo. Todos os homens, incluindo os homens gays, são educados com estes valores: pelos pais, pelos meios de comunicação, por videogames, pelo cinema e por meio da televisão. Em alguns fóruns 172 | Pelo CU

de bareback na Internet encontramos esse tipo de mensagens, “venha ter sexo autêntico, sexo cru, ser um homem de verdade”, vinculadas ao sexo sem preservativo92. Também acontece um fenômeno muito particular em algumas comunidades de homens afro-americanos nos Estados Unidos, que praticam sexo entre eles, mas sem nenhum tipo de identidade gay e sem nenhuma referência à homossexualidade. Para eles, o “gay” é uma questão de brancos, e sua masculinidade está construída por um rechaço aos gays, apesar de terem relações com outros homens. Um interessante artigo93 publicado em 2009 assinalava que a alta porcentagem de homens negros infectados por HIV nos EUA, era muito acima da sua representação percentual a respeito da população soropositiva em geral. Entre outros fatores importantes, como a pobreza, a falta de informação, etc., o texto assinala que há uma forte homofobia em muitas comunidades afro-americanas, o que faz com que muitos dos homens que têm sexo com outros homens não se identifiquem nunca como gays e que, além disso, não adotem as medidas de prevenção necessárias na hora de praticar o sexo (precisamente porque isso é coisa de gays, não de homens de verdade). Evidentemente, este fenômeno não é só próprio da comunidade afro-americana. No nosso país encontramos também 92

Por exemplo, em um site de ursos que praticam o bareback lemos esta mensagem de boas-vindas: “Os impermeáveis (camisinhas) são para as mulheres e para as crianças em dia de chuva. Não são para a cama de um sujo como você. (...) Nesta página não são bem-vindas as bichas de lycra, nem as mulheres, nem os rapazes danone” (www.bearclub.com). Vemos aqui a conexão “masculinidade-sexo não protegido-ursos” expressada em um só parágrafo. As mulheres e as bichas ficam assimilados à camisinha; o sexo sem camisinha garante o acesso à masculinidade verdadeira, ao homem autêntico e ao sexo natural.

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AIDS among African Americans: http://www.avert.org/hiv-african-americans. htm

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homens que fazem sexo com outros homens que participam desse mesmo critério, segundo o qual sua masculinidade não se vê colocada em questão caso trepem em pelo, e sobretudo se são ativos na penetração. Parece que estamos diante de um mecanismo de defesa bastante homofóbico, onde são colocados no mesmo saco os gays, a AIDS e o preservativo, de forma que não se quer saber de nada disso, afim de deixar a salvo a masculinidade tresloucada, machista e, em última instância, quase suicida. É claro que isso também tem consequências para as mulheres. Foi constatado tanto no caso dos homens afro-americanos mencionados dos EUA, como em muitos casos na Espanha, que esses homens que praticam sexo com homens sem preservativo, por sua vez praticam sexo com suas mulheres, já que muitos deles são casados. A consequência dessa política do segredo, vergonha e machismo é a infecção por HIV de muitas mulheres por meio dos seus maridos. Há outro aspecto do bareback que é importante assinalar. É uma ideia que costuma circular quando se fala de prevenção, segundo a qual são as pessoas soropositivas que têm que oferecer os meios na hora de praticar o sexo, as que são responsáveis pela infecção dos demais, as que têm que avisar o seu estado, etc. Essa perspectiva é injusta e irresponsável. Em 1999, abriu-se um debate muito interessante e muito violento no seio do ACT UP Paris94, o conhecido grupo ativista antiaids francês; em alguns dos seus textos, os soropositivos eram acusados de ser uma espécie de bomba ambulante, dado que podiam infectar as outras pessoas, sobretudo no caso de

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A crítica de ACT UP ao bareback pode ser lida no artigo “Bareback, NoKopte No Way!” (http://www.actuppparis.org/spip.php?article1675). Para conhecer o ponto de vista de Eril Rémès ler seu romance Serial fucker. Journal d’un barebacker, Ed. Blanche, Paris, 2003.

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não informarem previamente seus parceiros sexuais sobre seu estado soropositivo. Dois escritores e ativistas gays, Erick Rémès e Guillaume Dustan, contestaram esses textos, explicando que a prevenção era uma responsabilidade de todos, algo compartilhado e que devia ser negociado a todo momento por todos, não só pelos soropositivos. Nesse sentido, Rémès assinalava que, às vezes, algumas pessoas lhes propunham a fazer sexo sem preservativo sem perguntar pelo seu estado sorológico. Isto é, queriam uma relação bareback baseada no silêncio e na falta de informação. Mesmo que Rémès fosse soropositivo, ele se fazia a seguinte pergunta: por que tenho que ser só eu a colocar a questão? Não é responsável por sua possível infecção alguém que não conhece seu próprio estado sorológico e que, além disso, não quer saber nada do estado sorológico da outra pessoa? A pergunta abriu um amplo debate que não se fechou, mas que coloca aspectos-chave da prevenção hoje em dia, fazendo-nos também pensar sobre essa masculinidade que se constrói no silêncio, na vergonha, na falta de diálogo e na negação. Esse aspecto da pandemia do HIV é muito importante para entender uma das posições assinaladas por nós: a de uma pessoa que prefere “não saber”, não conhecer seu estado sorológico. Conversando com algumas pessoas que adotam essa posição (e que têm relações protegidas), aparece uma lógica interna bastante complexa, que tem relação com a “responsabilidade” e que é a seguinte: se a pessoa conhece o seu estado sorológico, está sujeita a tomar decisões sobre suas práticas. No caso concreto de uma pessoa soropositiva, que sabe seu estado, esse saber vai condicionar muito suas práticas sexuais, no sentido de que deverá se questionar se deve informar aos seus contatos sexuais, tomar 175 | Pelo CU

medidas para o sexo seguro, ter dor na consciência caso pratique sexo sem proteção, etc. Em contrapartida, se alguém “não sabe” se é soropositivo ou não, supõe-se que não tem nenhuma responsabilidade nesse sentido, isto é, não tem que tomar nenhuma medida porque não sabe nada de si mesmo. O “não saber e não querer saber”, para algumas pessoas, é uma espécie de álibi moral que é “destruído” com a chegada do saber. Saber implica em responsabilidade. Obviamente, esse raciocínio não explica por completo as motivações das pessoas que não fazem o teste do HIV e têm relações de risco; há muitas outras razões, muitos posicionamentos pessoais, contradições, medos, ignorância e, em muitos casos, não se trata de uma prática que tenha um discurso elaborado por detrás. As práticas sexuais, em muitos casos, não partem de uma reflexão prévia ou de uma decisão consciente e coerente. Seria um reducionismo sociológico ou antropológico tentar “explicar” o bareback como um fenômeno coerente, homogêneo ou com uma lógica interna. Como vimos, trata-se de uma prática muito variada, complexa e inclusive difícil de definir. De fato, já desde o início da pandemia existiam pessoas e comunidades que se negavam a utilizar o preservativo por diversas razões. Naquele momento não existia o termo bareback, mas isto não deve nos fazer esquecer que o sexo sem preservativo é algo muito anterior a essa espécie de “moda” ou movimento que parece haver surgido no final dos anos 90 como algo mais ou menos articulado, ou ao menos com um nome particular. O que parece claro é que, por trás deste fenômeno, se encontram preconceitos e mecanismos de estigmatização sobre o setor sodomita da população. Outra forma de prevenção que poderia desfazer com as tentativas de criminalização e

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exclusão dos praticantes do coito anal seria a divulgação generalizada das novas descobertas sobre a transmissão do HIV. A chamada declaração suíça diz que uma pessoa com HIV que está fazendo o tratamento antirretroviral com uma viremia suprimida na sua totalidade não é sexualmente infecciosa, isto é, não pode transmitir o HIV por meio do contato sexual se a pessoa segue de forma rigorosa a terapia antirretroviral e comparece ao seu médico especialista em HIV em intervalos regulares; se a carga viral se mantiver indetectável (menos de 40 cópias) durante ao menos os últimos seis meses; e se não tiver outras enfermidades de transmissão sexual95. Contudo, em resposta a essa declaração, a UNAIDS (Programa conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/SIDA) e a OMS (Organização Mundial de Saúde) deram ênfase na importância do uso continuado da camisinha e do uso consistente e correto como método primordial de prevenção do HIV. A redução de riscos pode supor uma nova forma de prevenção fundada na própria consciência sobre a própria saúde e a dos demais, criando as habilidades e atitudes para promover um verdadeiro orgulho anal.

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Attie, S., Egger, M., Müller, M., et al., Sexual transmission of HIV according to viral load and antiretroviral therapy: systematic review and meta-analysis. Revista AIDS, 17 de Abril, 2009.

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Conclusão

Neste livro, queríamos suscitar um debate sobre o que ocorre ao redor do cu e da penetração anal. Para isso, mostramos que as diferentes interpretações do anal necessitam ser colocadas em seus diferentes contextos históricos e culturais. Para a antiga Grécia, o prazer na penetração anal passiva se julgava negativamente pela mudança do status social que isso supunha: era um critério de classe que estava em jogo, não de sexo ou de orientação sexual. Para os católicos da Idade Média, o pecado da sodomia se associava a uma prática dos infiéis, dos mulçumanos, por isso era considerado um pecado: é um critério religioso vinculado ao “outro” que opera nesta época. Para os judeus e para os primeiros colonos americanos, o sexo anal era condenado porque supunha a perda de uma valiosa semente, o esperma. Portanto, trata-se de uma economia da fecundidade. Para os médicos e psiquiatras do final do século XIX, o sexo anal entre homens vai servir para definir uma nova espécie humana, uma nova identidade subjetiva patológica que vão denominar “o homossexual”: tra179 | Pelo CU

ta-se aqui de um critério psicológico e essencialista. Na era da AIDS, o sexo anal serviu para construir um novo corpo do homossexual como portador de infecções, como vetor de morte e enfermidade: neste caso é a homofobia e o discurso paranoico da infecção que estão interpretando de uma nova forma a analidade. Por outro lado, também vimos que, apesar dessas tradições condenáveis, existem na atualidade comunidades e subculturas que souberam se apropriar do anal para lhe dar um sentido positivo e orgulhoso: as comunidades S/M, os praticantes do fist, o mercado do pornô, alguns filósofos e filósofas e ativistas radicais, os aficionados do bareback, e certos setores do feminismo radical pró-sexo e das comunidades lésbicas queer. Ao longo deste livro, comentamos em várias ocasiões que o cu não tem gênero, e que pode ser uma fonte de prazer sexual que não está marcada por ele. Mas, talvez isso não seja assim. Na realidade, tal como se exerce a política anal hoje em dia, dentro de um regime heterocentrado e machista, o cu tem gênero: se é penetrado, é feminino; se é impenetrável, é masculino. E mais, poderia se dizer que o cu cumpre um papel primordial na construção contemporânea da sexualidade, na medida que está carregado de fortes valorações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre o que é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo bicha e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e do feminino. Hoje em dia, conta mais o uso que se faz do cu (ou o não uso) na hora de definir a sexualidade que os próprios órgãos genitais. O interessante nessa definição é que, então, ser um homem (e ser um heterossexual) não parece depender tan180 | Pelo CU

to de ter genitais masculinos ou de manter práticas sexuais pênis-vagina, como de manter o cu sempre fechado à penetração. E ser mulher é ser penetrável, independente se é uma biomulher ou não. Por isso, a bicha passiva é assimilada à mulher, e desprezada por abandonar seu destino universal impenetrável. O cu é fundamental na constituição do atual sistema de sexo-gênero e é quem organiza e define as diferentes sexualidades. É o ser passivo ou ativo que determina a identidade sexual, não a genitalidade. Por debaixo do dispositivo que conhecemos, divide-se os sujeitos entre homens e mulheres, e as orientações sexuais em homossexuais, bissexuais e heterossexuais (ainda que penetrem outros homens). E um homem penetrado já não é um homem, é uma mulher. Uma mulher não penetrável é masculina, e o sistema machista a sanciona e persegue por não se submeter ao esquema que se aplica às biomulheres (penetráveis). Deste modo, vemos que tanto a identidade de homem e de mulher, como o que se considera masculino e feminino, estão articulados em volta do cu, não da genitalidade. De fato, deveríamos colocar em primeiro lugar o cu como critério de inteligibilidade. Não existe um “homem” que depois de utilizar seu cu passivamente devém “mulher”. O que existe primeiro são cus, penetráveis ou não penetráveis e, em função disso, o cu “produz” o sujeito mulher e o sujeito homem. Esses dois dispositivos (o baseado no sexo genital e o baseado no sexo anal) se entrecruzam e se solapam. A hegemonia midiática, explícita, pertence ao modelo genital (polaridade pênis-vagina como suposto organizador das identidades sexuais). O outro sistema, fundado no cu e em sua penetrabilidade, está muito mais oculto; é silencioso, vergonhoso, não se fala. É um silêncio que, por sua vez, está 181 | Pelo CU

rodeado pelo discurso, pela injúria, pelo insulto. É uma vigilância anal que começa na infância e que nos persegue até a morte, inclusive mais além, em uma memória infame que nos marca por termos sido passivos, por termos traído esse imperativo insensato que quer decidir sobre os corpos, suas aberturas e fechamentos, que quer dar direção ou limitar seus fluxos. Por isso, analisar nossas políticas anais e reivindicar o orgulho passivo é imprescindível para subverter o dispositivo da sexualidade em que vivemos.

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Epílogo

Por Favor, Meu Amo por favor meu amo deixa eu tocar teu rosto por favor meu amo deixa eu me ajoelhar a teus pés por favor meu amo deixa eu baixar tua calça azul por favor meu amo deixa eu contemplar o teu ventre de dourados pelos por favor meu amo deixa eu tirar tua cueca devagarinho por favor meu amo deixa eu desnudar tuas coxas para meus olhos por favor meu amo deixa eu tirar minha roupa sob a tua cadeira por favor meu amo deixa eu beijar teus tornozelos tua alma por favor meu amo deixa eu colar meus lábios na tua coxa dura lisa musculosa por favor meu amo deixa eu grudar o ouvido no teu estômago por favor meu amo deixa eu abraçar tua bunda branca 183 | Pelo CU

por favor meu amo deixa eu lamber tua virilha de pelos louros e macios por favor meu amo deixa eu tocar com a língua teu cu rosado por favor meu amo deixa eu esfregar o rosto no teu saco, por favor meu amo, por favor, olha nos meus olhos, por favor meu amo me manda deitar no chão, por favor meu amo manda eu lamber tua pica grossa por favor meu amo põe tuas mãos ásperas no meu crânio careca cabeludo por favor meu amo aperta a minha boca contra o coração do teu pau por favor meu amo aperta o meu rosto contra o teu ventre, me puxa lentamente com teus polegares fortes até tua dureza muda chegar à minha garganta até eu engolir & sentir o gosto do teu pau-tronco cheia de veias carne quente delicada por favor meu amo empurra meus ombros me olha bem nos olhos & me faz debruçar sobre a mesa por favor meu amo agarra minhas coxas e levanta minha bunda até a tua cintura por favor meu amo tua mão áspera no meu pescoço palma da outra mão na minha bunda por favor meu amo me levanta, meus pés apoiados em cadeiras, até meu cu sentir o hálito do teu cuspe e teu polegar girando por favor meu amo manda eu dizer Por Favor Meu Amo Me Fode agora Por Favor Meu amo lubrifica meu saco e boca peluda com doces vaselinas 184 | Pelo CU

por favor meu amo unta teu caralho com cremes brancos por favor meu amo encosta a ponta do teu pau nas pregas do buraco do meu eu por favor meu amo enfia devagar, teus cotovelos envolvendo o meu peito teus braços alisando o meu ventre, teus dedos tocam no meu pênis por favor meu amo mete em mim um pouco, mais um pouco, mais um pouco por favor meu amo enfia esse troço no meu cu bem fundo & por favor meu amo meu faz rebolar para entrar a pica-tronco até o fim até minhas nádegas aninharem tuas coxas, minhas costas arqueadas, até eu ficar só solto no ar, tua espada enfiada latejando dentro de mim por favor meu amo tira um pouco e lentamente esfrega em mim por favor meu amo enterra fundo outra vez, e tira fora até a cabeça por favor por favor meu amo me fode outra vez com o teu ser, me fode Por Favor Meu amo enfia até machucar o meu macio o Macio por favor meu amo faz amor com meu cu, dá corpo ao centro & me fode direitinho como uma garota me abraça com carinho por favor meu amo eu me entrego a vós & enterra no meu ventre o mesmo doce lenho quente que dedilhaste em tua solidão em Denver ou no Brooklin ou fodeste uma donzela num estacionamento em Paris

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por favor meu amo entra em mim com teu veículo, corpo de gotas de amor, suor de foda corpo de ternura, Me fode assim de quatro mais depressa por favor meu amo me faz gemer sobre essa mesa Gemer Ó meu amo por favor me fode assim nesse teu ritmo de roça-enfia & tira-e-roça & enterra até o fim até meu cu ficar mole cachorro sobre mesa ganindo de terror prazer de ser amado Por favor meu amo me chama de cachorro, arrombando, me esculhamba & fode mais violento, meus olhos escondidos por tuas mãos que agarram meu crânio & enterra fundo com força brutal arrebentando a macieza úmida de peixe & pulsa cinco segundos esguichando sêmen quente & mais & mais, enfiando fundo enquanto eu grito o teu nome ah eu te amo por favor meu Amo. Allen Ginsberg96

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A tradução brasileira aqui inserida é de Paulo Henriques Britto em: Ginsberg, Allen. A queda da América. Porto Alegre: LPM, 1987.

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