Para antes que a gente vire pó: breviário de errância
 9788564898073

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Ezio Flavio Bazzo

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[11] Raça de Abel dorme, bebe e come satisfeita porque Deus te ama. Raça de Caim, morre de fome, rasteja na miséria e na lama. Raça de Abel, o teu sacrifício sobe às narinas do Serafim! Raça de Caim, o teu suplício será que algum dia vai ter fim? Raça de Abel, como sempre ganhas, com teu gado e tua plantação. Raça de Caim, tuas entranhas ganem, uivam mais que um velho cão. Raça de Abel nina o corpanzil no aconchego de um lar ancestral. Raça de Caim, no teu covil, treme de frio, velho chacal! Raça de Abel procria e constrói! Teu ouro também se reproduz. Raça de Caim, coração dói; Tanta fome, onde te conduz? Raça de Abel cresce e devora, engorda, parasita daninho! Raça de Caim, estrada a fora, foge tua família sem ninho.

Charles Baudelaire (Em Flores do Mal)

Uma caminhada planejada frente à Câmara dos Lordes apenas para materializar a memória e a admiração pelo poeta Lord Byron, autor de Horas ociosas e do Mistério de Caim. Byron, um nómade inveterado, mulherengo e cachaceiro que praticou incesto com a irmã (como Caim) e morreu aos 36 anos lutando contra os turcos pela independência da Grécia. Num fragmento do Ato I de seu texto pode-se ouvir Caim esbravejando: /Y esto es vivir! jTrabajo! ^Por qué he de trabajar? Porque mi padre no supo guardar su sitio eu el Edén. ^Y yo qué hice eu eso? No había nacido: no elegi nacer: ni amo el esclavo que me encontré al nacer. {Por qué él a la serpiente y a la mujer cedió? ^Y así, por qué sufrir? tQué había en todo esto? Ahí estaba el árbol ty por qué no para él? Si no, ^Por quéponerlo junto a él donde estaba, en medio, el más hermoso? A todas las preguntas dan la misma respuesta: "Tal fue su voluntad, y EL es bueno." frY yo cómo Io sé? Poderoso, ^Ha de ser también bueno? Lo hizo por los frutos - y amargos- con que debo vivir, por una culpa no mia. Caim, o primeiro ser humano a nascer através de um corpo e portanto o primeiro a experimentar a clausura uterina e o canal vaginal. Líder mafioso dos arcanjos, dos querubins e 159

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dos Serafins, além de não doar seu coração a deus nenhum,62 povoou a terra de malandros, charlatães e de ateístas. E o dilúvio, planejado para varrer do mapa seus descendentes foi uma falácia. Como ainda não se sabia da existência dos genes, acreditava-se que os descendentes de Set eram filhos de Deus e os descendentes de Cain filhos do homem. Mas tudo já estava contaminado pelo fratricídio e pela insanidade... Como já disse, sinto-me até envergonhado por construir este texto sobre esse mito bíblico tão tolo e tão bizarro. De uma hora para outra Londres escureceu e esfriou. Dois mórmons atravessam a rua em frente a Estação de Paddington e quase são atropelados por um ciclista. Para eles a pele negra é a marca que Deus colocou em Caim. Para outros, a marca seria o gigantismo. Caim Golias! Caim incorporado tanto nos gigantes como nos minúsculos seres descritos por Gulliver. Difícil esquecer que estamos no século XXI. Acabo de receber um alerta contra um vírus que ronda os computadores. Seu nome? Caim. Ave agoureira! Arquétipo conhecido da criminologia. Caim ou Abel? Vive-se oitenta anos fragmentado, dividido, boiando numa alteridade semidemente, querendo ser Um e sendo Outro, querendo ser Outro e sendo Uni. Ora sendo Uni, ora sendo Outro, não chegando nunca a ser verdadeiramente algo completo. Uma personalidade volúvel, bipolar, escrava de um mito e de uma lenda que insiste em imputar-lhe a maior das culpabilidades. Isto, sem falar dos casos onde o cérebro se move a favor de Abel e os afetos na direção ie Caim ou vice-versa. E a mentira e a dissimulação sempre nstaladas entre um polo e outro desse pêndulo reloucado, dessa máquina de rosnar e de reclamar. Mau humor, distimia, descontentamento. Os momentos de êxtase são praticamente só a custa de cocaína e de santo daime. Claro que as prosas íntimas e as orações também induzem esses seres híbridos a um pseudo-enlevamento e a uma relação com o caciqueiro do além. Depois a madrugada paralisa tudo com sua peçonha e cada um 62 Caim, - escreveu Santo Agostinho depois de uma vida prenhe de putarias - deu a Deus boa parte de seus bens, mas não deu a ele seu coração. (De Civitate Dei, XV, vii)

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começa a padecer em seus respectivos pesadelos. Sobre o criado mudo A carne. Livro de Julio Ribeiro que foi quase a primeira leitura de minha adolescência. O estou relendo quarenta anos depois. Este que foi minha cabala juvenil. Prova incontestável de que os adolescentes se contentam com qualquer bosta! Gritos. Brigam em outro idioma no saguão do hotel. Estou em outro país, há vinte horas dos tiroteios de minha terra natal. Tenho a impressão de ouvir a palavra salafrário. Empurramse. Exumam antigos ressentimentos. Esmurram as paredes, dizem-se coisas terríveis, mas sublimam o ato primordial, a mão que procura ávida pela carótida do outro. Fratricídio! Toda guerra, seja pessoal ou nacional é fraticida.63 Toda briga e toda desavença envolve um ou mais dos pecados capitais. O ciúme mais do que a inveja. Irmanar o quê neste covil de crueldade?64 Santo Agostinho, esse perverso convertido, não se acanha de, em suas Confissões, assumir que teve ciúmes (desejo de estrangular?) seu irmão de leite. Será que viver é ir fazendo as pazes com o chacal que cada um leva dentro de si? Chegar a ser, em algum momento, o suficientemente descarado para assumir que se é o guardião da tumba e dos ossos de Caim? Será que algum dia a filosofia e a sabedoria poderão vir a ser calmantes para os chiliques para esta fera nefasta e traiçoeira que encarnamos? Dos cento e tantos cemitérios que há em Londres sete são considerados mais importantes, o Highgate, onde está Karl Marx, é um deles, o de Bunhil Fields, que guarda as ossadas de William Blake e de Daniel Defoe, o Kensal Green e o de Brompton, com seus corvos etc. Tenho em meu "Curriculuni" os registros dos cemitérios gregos, dos chineses, dos de Buenos Aires, México, Paris, o judeu de Praga, o Kerepeto Temeto de Budapeste, 63 Subjugado e acorrentado na prisão de Guantánamo, um suposto chefe da A1 Qaeda (Jalid Sheij Mohamed) acaba de declarar: ‘A guerra começou desde Adão, quando Caim matou Abel e continuou até a atualidade e nunca vai parar de matar pessoas" Ver EI País, Madrid. 16-03-2007. 64 “Cain ríest pás lê frére d’Abel - dizia Emmanuel Lévinas La vrai “fraternité" doit se funder après lê scandale de ce meurtre” In Qui êtes-vous?» p. 109. Citado por Gilles Hanus, em seu artigo Luniversel en question.

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os de Roma, os lusitanos, o de Veneza, na ilha onde jazem sem remédio e sem chances de ressurreição as cinzas de Ezra Pound. Conheço o de Goiás Velho onde foi depositado o féretro de Cora Coralina, os de São Paulo, os de animais de Brasília, os de Tanger, onde está o corpo maldito de Jean Genet, os de Barbacena, onde fotografei até caveiras fora das tumbas. Os do Nepal, os do sertão do Cariri, os crematórios de Benares, Macau, Hong Kong, os de Madri e Barcelona, o de Havana etc., etc. Sempre que me perguntam quê obsessão é essa, eu os engano mencionando um suposto interesse pela "arte mortuária" ou outras bobagens da dita pós modernidade. Claro que não tem nada a ver. Interesse pela arte porra nenhuma! Estou apenas tentando acalmar minha curiosidade e minha ansiedade com relação a esse trágico destino e, quem sabe, encontrar elementos para inventar a minha ars moriendi. Mas já sei que não há chances! Apesar de todos os truques físicos e metafísicos engendrados pela cultura para tentar negá-la e ocultá-la, a morte continua sendo a maior de todas as sacanagens que a existência armou em nossa estrada, tanto na dos homens como na dos ratos, dos cachorros, dos percevejos. Morrer e apodrecer é um horror, uma nojeira inqualificável. E não há mentira ou promessa que console os condenados à morte. A hipótese de um Deus ou de outra vida - por exemplo - além de cabotina e descarada agrava ainda mais essa desgraça. Se existisse um arquiteto ou um responsável por essa história toda, é bem provável que seria chicoteado, apedrejado e decapitado pelo populacho. Ou não? No Cemitério de Brompson, os corvos dão um aspecto ainda mais macabro ao ambiente. Voam famintos de tumba em tumba em busca de uma migalha qualquer de osso ou de pele. No Highgate, como já lhes disse, está a tumba de Marx. Paradoxalmente, só ali ele conseguiu livrar-se para sempre dos furúnculos que o atormentaram por toda a vida. A cripta de Alexandre Fleming (o da penicilina) está na Catedral de São Paulo; Tomas Morus (o da Utopia) está na Torre de Londres; na Abadia de Westminster estão Charles Dickens, Lewis Carrol, Rudyard Kipling etc; Peter Sellers (o cómico) está no Golders Green Crematorium. Ali também estão 162

as cinzas de Freud depositadas no interior de um vaso grego e também as da bailarina Anna Pavlova. Michael Faraday (o da eletricidade) está no The West Cemitery; William Hogarth (o pintor) repousa no Chiswick Old Cemetery e no Kensal Green existe um monumento para a Princesa Sophia. O grande Charles Chaplin Sénior (music-hall) está no Lambeth Cemetery & Crematorium. O linguista e errante Sir Richard Burton está no St Mary Magdalen's, Mortlnke; Jack Williams (o socialista) aguarda pela revolução no Walthmnstow Cemetery. O banqueiro Nathan Meyer Rothschild (esse sim pode considerar-se um vencedor) está no Brady Street Cemetery. Thomas Crapper (o inventor da toalete moderna) descansa no Becknham Crematotium & Cementery, e Anna Sabatini (a música) tem um monumento no Sutton Cemetery.

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[12] "Perguntem pois ao asno ou ao carneiro de Abraão ou aos viventes que Abel soube oferecer a Deus: eles sabem o que lhes ocorre quando os homens dizem 'eis-me aqui'a Deus, e depois aceitam sacrificar-se, sacrificar seu sacrifício ou perdoar-se" Jacques Derrida (Em O animal que logo sou)

Com o movimento hippie aniquilado e sepultado, a obra quase completa de Herman Hesse foi ficando no lugar menos acessível da prateleira. A poeira que vem em revoadas até o quinto andar vai aos poucos aterrissando e colorindo suas lombadas onde pequenas aranhas, em sua solidão aracnídea, também excretam de vez em quando sua gosma. É com uma autentica nostalgia que volto às páginas rabiscadas desse autor alemão que em uma de suas obras também ressuscitou a velha lenda cainesca. Sinclair e Demian reencenam a problemática afetiva vivida pelos filhos de Adão. Numa Alemanha ainda fedendo a pólvora e a cadáveres Hesse, para quem todo sentimento é bom, muito bom, até o ódio, até a inveja, até o ciúme, até a crueldade tenta romanticamente conciliar os opostos. O yin com o yang, o bandido com o santo, a puta com a freira... Ao invés de interessar-me pela obra sou tomado por uma curiosidade quase perversa pelas anotações e observações que fiz nas margens e nas entrelinhas deste texto trinta e tantos anos atrás. Londrina não tinha nada de Londres, mas fervilhava de aventuras e de promessas. Mesmo que se vivesse sempre com os bolsos vazios, de migalhas, de pensão em pensão, de biblioteca em biblioteca, nada e nenhum dos problemas cotidianos eram capazes de competir com as artimanhas e o exagero de nossa libido. Cafezais imensos e silenciosos onde à sombra sempre brotavam alucinantes cogumelos. A gritaria das meninas castas em seus uniformes curtos, seus olhares maliciosos no portão dos colégios reavivava em nós a hipótese do inferno eterno mas também a ideia fixa de que a castidade era uma das mais sofisticadas formas de luxúria. O lago 165

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imóvel nas noites enluaradas, o som vibrante de um violino vindo de uma pequena varanda e dos arredores o cheiro da selva em chamas, já quase completamente devastada para ser transformada em cafezais. Cada um daqueles fazendeiros ignorantes e barrigudos se achava no direito de derrubar pedaços imensos da floresta quando e como bem entendesse, ao mesmo tempo em que os exércitos e todos os tipos de policiais da região caçavam ecologistas, intelectuais, artistas, comunistas e confiscavam suas bibliotecas, suas agendas, suas vidas. Jamais se viu tanta burrice em tão curto espaço de tempo. Iguais aos antigos inquisidores os militares justificavam seus crimes como se fizessem parte de uma cruzada para eliminar a semente de um Caim sociopata, ateu e anticapitalista. Até donas de casa que não sabiam nem limpar-se o cu cochichavam entre elas sobre um tal Karl Marx que era a reencarnação do demónio. Lênin, então, era um Caim piorado mil vezes e Trotsky, um monstro russo que bebia até sangue menstrual das mulheres e filhas dos ruralistas. Uma mediocridade infame envenenava as ideias e os sentimentos daquela cidade. O medo estava na pauta de todos os dias enquanto bandeiras tremulavam diante das cadeias, das faculdades, dos quartéis e exibiam aquelas duas tolas palavras pirateadas de Augusto Comte: Ordem e Progresso. Só que o que se via por todos os lados era exatamente o oposto: uma zona generalizada, casuísmos sociológicos e celestes por todos os lados, um caipirismo escatológico associado à corrupção fardada que é sempre a mais suja, um provincianismo e um subdesenvolvimento de dar pena, do qual ainda não estamos curados. Para a população, dependendo da crença e da ideologia, Caim eram os generais, os torturadores, os agentes da CIA que se disfarçavam de professores, de hippies, de diretores de teatro, de maconheiros, e até de prostitutas. Sem falar dos empresários que financiaram a repressão e das alas da igreja que confessavam e comungavam os assassinos... Para o outro bando, Caim eram os guerrilheiros, os subversivos, os barbudos, os aliados de Moscou, de Cuba e da Albânia, Marighela, Carlos Prestes e qualquer um que vomitasse ao ver uma patrulha militar ou que manifestasse abertamente sua

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preferência pelo horno ludens em contraposição ao homofaber. Caim era uma metáfora que servia para denegrir quase tudo. Para uns havia sido ele quem arquitetou a farsa do Cavalo de Tróia, a construção das pirâmides e mesmo os hieróglifos. Para outros a teoria da relatividade e a consequente bomba atómica haviam sido artimanhas suas para, cedo ou tarde, detonar o planeta e outros anexos da obra divina. Até o heroico Simon Bolívar usou Caim como metáfora de mau caráter para atacara nação peruana. Em uma carta de 1928 dizia: "O Peru é o Caim da América Latina". Mesmo pessoas cultas que poderiam muito bem valer-se de outras referencias e de outros mitos envolvendo brigas entre irmãos - Etéocle e Polynice por exemplo - insistiam em Caim e Abel.65 Depois aquele circo sanguinário e hermético foi passando, as fantasias caudilhistas se sublimaram, os generais, os torturadores e os presos foram enlouquecendo e morrendo. Finalmente livres, com Deus proscrito e com Satanás aniquilado, os que sobreviveram trocaram de identidade, foram anistiados, receberam indenizações milionárias, se converteram, fizeram plásticas, chegaram ao poder, fundaram jornais e faculdades, descobriram as delícias do dinheiro, trocaram o guarda-roupa, esqueceram todas aquelas bobagens e mergulharam descaradamente no cinismo, na roubalheira, no luxo e na amnésia... Somos de uma espécie tão precária afetivamente que passamos a vida inteira sem ter muita clareza sobre o que queremos e o que sentimos, nos adaptando como camaleões a quase tudo. Mesmo num caso tão extremado como o de Hitler - lembrando de Sandro Toni, em seu ABC de la maldad, p. 224 - "si hubiese ganado hoy diríamos que era un santo hombre". Mas mesmo no meio daquela mixórdia social e política, quem é que com dezenove anos não arrumaria tempo para ir exibir-se na feira japonesa dos sábados com o Lobo da Estepe lido e relido em baixo do braço? Os cheiros semiorientais, uma trouxa de kobô, bardana, iriko, algas marinhas e humeboshi. No meio de abóboras uma réplica em bambu 65 Na mitologia grega eram filhos de Édipo e de Jocasta. Eles também disputaram “a bala” o trono e o poder de Tebas.

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do vapor Kasato Marti. Sayonará! Atrás daqueles sorrisos budistas as marcas do feudalismo oriental e quase sempre uma gastrite em evolução, sem falar da memória melancólica dos navios superlotados vindos de Tóquio, do preconceito, do desprezo e da humilhação sofrida no Brasil. Um enigma ainda não decifrado pelos sociólogos tem sido o fato de que quanto mais mestiço é um povo mais racismo carrega dentro de si. Quem nunca viajou não tem elementos para saber o genuíno sentimento de um forasteiro. Como fuga e como remédio cavar como tatus e como répteis a terra vermelha e fértil, de madrugada a madrugada, de sol a sol, de mágoa em mágoa. Ganhar muito dinheiro para levantar e modernizar o Japão, dar vida longa a Hiruíto, recuperar Hiroshima66... A primeira pedra de um museu histórico, um templo budista, um pequeno sino trazido de Hokkaido, um lago com carpas e o sonho de ter um filho doutorado em bioquímica. Sayonará! Música de Sakamoto, bolinhos no vapor, shoyu, G. Oshawa e o Cavalo Selvagem de Mishima. Sayonará! Neste mês de maio o sol começa a aparecer sobre Londres já lá pelas 5 da manhã. Alongo as canelas, massageio os pés e caio no mundo como numa homenagem a Caim, esse precursor das grandes caminhadas e das grandes viagens a pé e dos andarilhos. Antes, muito antes de Mao Tse-tung empreender sua Grande Marcha, antes de J. Lacarrière e antes de E. Fisset, Caim já era um trota mundos e já havia inaugurado o gozo dos intermináveis trottoirs a pé.67

66 Apesar de muita gente impulsiva acreditar que só os filhos de Caim poderiam ter lançado as bombas sobre o Japão, a história não deixa dúvidas de que foi o dedo de Abel que pressionou o disparador. A falsidade, a dissimulação, o transtorno imperialista e um narcisismo confundido com patriotismo tem sistematicamente confundido e enganado o populacho. Depois de meio século ainda não foi esclarecida a questão referente ao "dia da infâmia”. Teria sido o dia em que os japoneses atacaram Pearl Harbor - como querem os gringos - ou o dia em que estes lançaram as bombas sobre Nagazaki e Hiroshima? Talvez o mais melancólico dessa idiotice maniqueísta e dessa disputa idiota entre os filhos de Deus e os filhos de Caim, seja concluir que o que houve realmente foi um sutil cruzamento entre os dois bandos. 67 "Pas après pas le tour de la planete”. Uivresse de la marche, p.31. Émeric Fisset. Transboréal, Paris, 2010.

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Olha lá! Olha lá!, Caim trôpego cruzando neste instante por Piccadilly Circus.Morning, mister Caim! Morning mister Caim!!! Apenas olhou-me arrogante com olhar de cólera e seguiu de cabeça erguida pelos rumos do Covent Garden onde os abutres dividiam uma imensa paella, sem responder-me. E era ele com certeza! Era o próprio. Seu passo era típico do monarca máximo do niilismo, pai de todas as guerras e fundador da misantropia! Em sua expressão ficava claro que ele era quem deu um jeito de fazer Buda nascer por uma flor de lotus. Que foi ele quem cravou a lança no tórax de Cristo, quem arrancou os dentes de Bakunin, quem meteu duas balas nas costelas de Lênin, que cortou a cabeça de Lampião, quem levou o copo de cicuta a Sócrates e quem teve a idéia de implantar uma próstata lá no fundo do reto. Acreditem, era Caim, o vi com meus próprios olhos!!! O legítimo Caim, aquele que abriu as comportas do dilúvio sobre o mundo... E tudo numa boa. Sem estresse, sem culpas e sem fanfarronices. O mesmo que tramou as coordenadas do vazio ontológico, quem fez Einstein engendrar as fórmulas principais da bomba atómica e quem orientou Giordano Bruno a como tirar o sono da cúria romana. Foi ele que ensinou Paganini a tocar só com uma corda e mais, feita com as tripas de sua mulher! Caim Gandhi masoquista! Caim Brigite Bardot: a galinha loura que enganou um bando de trouxas. Caim sempre além do bem e do mal plagiado por Nietzsche. Foi Caim que meteu uma bala na testa dos Kennedy quando eu tinha apenas quinze anos e foi também posseiro e jagunço de meu pai. Ainda o vejo cavalgando uma mula cinza, dois revólveres na cintura, um chapelão de pano enfiado até os olhos e as botas arrastando na poeira. Caim, o inspirador de todos os justiceiros da estória e inclusive quem teve a ideia de aqui nesta cidade monarquista incitar os forasteiros a buscar a iluminação suprema discursando lá no Speakers comer do Hyde Park. Acreditem: Caim passou por Piccadilly Circus neste momento! Ia dentro de uma túnica preta como um demónio e em silêncio. Caim Zen, faquir e membro da máfia nepalesa! Caim Shiva, Vixem e Brahma, o Deus destruidor do 169

mundo, com seus múltiplos braços, uma grinalda de crânio e de serpentes. O conheci em Nova Deli, viajamos juntos para Benares para tocar fogo nos corpos que nos esperavam envoltos em lençóis laranja e amontoados às margens do Ganges e dois dias depois jogamos bacará na mesma mesa num cassino de Macau. Caim patrono de todos os leprosos indianos que com seus dedos mutilados nos acossavam pelos becos implorando por uma migalha ou pedalando seus riquixás no nosso encalço. Caim que matou Abel para apropriar-se de seu rebanho foi o mesmo que, na semana passada administrou a matança de búfalos numa comunidade delirante do Nepal e quem me conduziu pelo Deserto de Merzouga numa Mercedes preta dando voltas no meio das dunas propositadamente para que eu não soubesse mais onde estava minha sanidade. A marca das serpentes na areia fina e tórrida e a morte aparecendo junto com a noite, mas, por sorte, débil como uma rã mutilada. A voz saindo dura e ameaçadora das mesquitas, Caim no alto dos minaretes levando na mão esquerda o mesmo pedaço de osso com que assassinou seu irmão. Caim nos labirintos das medinas, engenheiro, arquiteto e torturador de Guantánamo. Caim vendedor de gafanhotos em Bangcoc e infiltrado no caixão de Mao Tsé Tunga na Praça Tianamen. Caim Judas Iscarioti acumulando moedas por aí; Caim ressentido com José Saramago e com outros padres da literatura, Caim cortador de cana em Cuba, amante de Madonna e o ideólogo do Alzheimer no speakers comer esgrimindo palavras com o Satã de Milton. E por falar em Speakers comer, eis aí um espetáculo imperdível e gratuito dessa espécie, garantido para todas as tardes de domingo lá no Hyde Park, próximo a estação Marble Arch, onde desvairados de todos os tipos ficam discutindo até a exaustão sobre assuntos "transcendentes". Com algumas exceções os papos e as discussões mais acaloradas são só sobre Deus, Jesus, Jeová, Maomé, Buda, etc., etc. Os árabes - que são a maioria - tendem a misturar politica e negócios com islamismo, mas no geral cada um (judeus, católicos, muçulmanos, budistas, milenaristas, o diabo-a-quatro) está com seu "livro sagrado" aberto, confrontando trechos "sagrados" 170

com os dos outros, interpretando virgulas, inventando bobagens históricas, mostrando contradições, ridicularizando o "adversário", garantindo que só ele tem a chave do Reino dos céus etc. Curiosamente, não ouvi ninguém mencionar a Caim. O que é mais impressionante nessa turma é a capacidade de suportar a critica. Em alguns momentos tem-se a impressão que irão partir irremediavelmente para pauladas ou facadas, que acontecerá irremediavelmente um crime religioso naquele final de dia, mas logo tudo se esvazia e voltam ao início da discussão dando um show de tolerância e de dialética, mas só até que outro tome a palavra e tudo recomece. Se colocam mutuamente o dedo na cara, fazem bocas, abrem os braços em desespero e em deboche, exibem um trecho sublinhado do Talmude, do Corão ou de outros livretos que nem identifico e todos se amontoam imediatamente para lê-lo. Silêncio por um segundo, logo dez falam ao mesmo tempo. Quem está sobre a escada, sobre um poste ou sobre um caixote ouve atentamente e depois fulmina uma por uma as contestações dos adversários... Quem está a favor do palestrante num momento, alguns minutos depois, por uma palavra a mais ou a menos, já não está mais. Pronunciam My God com uma certeza e com uma prepotência invejável. Cada elemento de nossa espécie desenvolve em si, como desenvolve um braço, um pulmão etc, um "caráter", uma "personalidade", um "carma", um "ego" ao redor do qual passará moendo e remoendo a vida inteira, tentando justificar-se, defender-se, provar-se, convencer-se de que seu mal tem algum sentido e alguma razão. Observem a expressão de um morto (antes das maquiagens funerárias), o rosto é como se fosse o hard disc onde estão contidas todas suas frustradas batalhas. Algumas discussões descambam para o idioma árabe, outras para um inglês africano, outras nem sei para qual dialeto. Mas isto não atrapalha em nada, não é necessário entender o que dizem, só a coreografia e a mise-enscene dos personagens já é uma prova de que alguma coisa não deu certo nesta espécie. A multidão se aglutina ora ao redor de um, depois passa para o outro, participa aqui, participa acolá, sempre com argumentos e com expressões corporais

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veementes. Curiosamente, não vi nenhum nativo (inglês) branco e luterano metido nessas intermináveis exegeses. Os próprios policiais, mesmo quando os gritos aumentam e as discussões descambam para o caso da Líbia, da Síria etc., ficam só olhando de longe, cheios de tecnologias repressivas e com aquele jeitão de patetas, como se soubessem que todo aquele blábláblá acabará em dois beijinhos nas faces, e que Deus, o Deus de todos os oradores está mesmo é lá nas caixas fortes do Thomas Cook... E depois, - agora me vem esse insigth - pode até ser que toda essa "liberdade" de expressão seja um truque monárquico para dar chances a essa turma de apátridas fazer semanalmente sua santa catarse. Ou não? Quando dá 18:00 horas em ponto os muçulmanos se jogam no chão para a tradicional oração, ficam ali uns segundos, logo se limpam os joelhos e voltam para a defesa do Corão e de Maomé. E lá estão os judeus prontos para contestá-los, os católicos para defender a santificação do prepúcio, uma velhinha demente distribuindo folhetos da virgem, os hare krishnas com seus sininhos infantis, os milenaristas jurando que o mundo irá acabar mesmo, agora dia 21 de maio, um vietnamita que não teve público, e uma senhora elegante e defensora dos animais ela, pelo menos, ao invés de God fala soberbamente em Dog. Vejam que descoberta, as letras são as mesmas!!! Um negro com um chifre no alto da cabeça, um velho anarquista, um grupo de misóginos, um representante dos homeless, dois padres com longos crucifixos sobre a barriga e outros loucos de Deus e Caim no meio de tudo. Se aqui em Londres é assim hoje, na Era do Macintosh, imaginem como deve ter sido essa discussão lá na época que compilaram o Velho e o Novo Testamento onde reinava a mais absoluta ignorância! Imaginem como deve ter sido lá na época em que Noé, descendente de Caim, enfiou um elefante e um búfalo numa gôndola, na época em que inventaram a balela do Messias, na época que Buda, com aquela barriga cheia de vermes, foi abortado das entranhas de um lótus, na época em que Caim (o primeiro macho da humanidade) eliminou um quinto da população com uma única bordoada e na época em que Satã saiu abrindo zonas, farmácias, cachaçarias, lojas de 172

suspensórios, hospícios, livrarias, sacristias, barbearias, e sex shops pelo mundo a fora... Por uma via ou outra sempre acabam me chegando notícias do Brasil e daquela mortandade interminável. Como é possível que um povo, uma nação, uma sociedade consiga viver com tantos assassinatos, roubos, acidentes de automóveis, ruína de prédios, medievalismo das prisões, massacres, religiões, roubalheira, pobreza, mentira, alcoolismo pra lá de patológico, cinismo descarado, falência total da dignidade, máfias de todos os calibres no clero, na política, no comércio, na polícia, no mundo acadêmico, nas transações amorosas? E não haverá remédio para os próximos séculos. Milhares e milhares de bebés, nascem todos os dias nos subúrbios edificados sobre lixões, de pais dementes, aloprados e loucos, crianças que não terão a mais mínima chance de trilhar um caminho diferente daquele da miséria, da degradação e do assassinato. As alas de indigentes nos cemitérios brasileiros já não têm mais espaço. Como cães vadios vão sendo assassinados e jogados até a contra gosto nesses buracos tenebrosos onde a terra que eles nem chegaram realmente a pisar os devorará como se até ela fosse cúmplice de todo esse sistema de ignorância e de ódio. Uma casta odiosa e vil se apoderou de todos os poderes e cega por vaidades e por ficções instituiu a paralisia geral, uma paralisia que só a beneficia, já que a eterniza nos lugares de mando, de prevaricação e de indiferença onde se encontra. Todos os partidos até hoje se revelaram miseráveis e abomináveis. Ninhos de víboras, larápios que como equilibristas se sustentam sobre a mentira e sobre a desfaçatez décadas atrás décadas. O discurso do homem público sempre mais falso e mais comercial até mesmo que o discurso da mulher pública, nele tudo é falsificado e só serve para entorpecer o populacho, também venenoso e abominável que, com seu voto vem engendrando durante séculos esses pântanos de podridão. Mergulhado na nojeira desses pensamentos nem percebo que já cheguei aqui nos arredores da St. Janies's Church. É em seu interior que está a pia batismal entalhada no século XVII por Grinling Gibbons, com Adão e Eva (os pais de Caim) em 173

pé ao lado da Árvore da Vida. Dizem que o grande William Blake foi batizado ali. Ele, o artista de todas as áreas que em seus Provérbios do Inferno escreveu: Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis, os tijolos da Religião...

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Caim em mármore Antonio Canova 1846

Cain and fais chilrem accursed of. God - lb32 Capela do hospital da Salpétrière - Paris

[13] "Tenho a mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, mas uma boa cama, boa comida, leite e manteiga frescos; em frente à janela, flores, em frente à porta, algumas belas árvores. E se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos pendurados nelas. De coração comovido eu haverei de perdoar todas as iniquidades que em vida me infligiram. Temos de perdoar nossos inimigos, porém jamais antes de eles estarem enforcados"

Henrique Heine

Quase sonâmbulo, na parte superior destes ônibus vermelhos vou e venho sem destino olhando aqui de cima a multidão que se engolfinha no meio de carros, pacotes, vitrines, sirenes, caminhões de bombeiros, enquanto o motorista faz suas manobras ali no MarbleArch e desce pela Edward road beirandc os cafés e restaurantes onde sempre há alguém fazendo fumaç num narguilé. Daqui de cima posso ver com facilidade a. manchetes nas bancas de jornais anunciando que explodem bombas e corpos no Afeganistão; que a Líbia de Kadafi está despedaçada; que o Japão ainda recolhe restos de pessoas e de coisas; que o Fidel já é múmia; que o Irã sacraliza seus átomos; que o Brasil engorda seus miseráveis com cestas básicas para dar impressão de desenvolvimento; que a Grécia de Sócrates e mãe de toda a ignomínia política se afunda no esgoto. Um jornal afirma que Portugal respira por tubos e que a Espanha, na essência ainda franquista, prepara-se para receber o Papa... Apesar da sobriedade da mídia cortesã, não me comovo porque sei que tudo é literatura e que o que movimenta o monjolo da vida é a mais pura e a mais insaciável das comilanças. Finge-se que se pretende chegar a algum lugar sabendo que não há esse lugar. Ou então confessa-se descaradamente e até sem horror, que o lugar e sonho idílico da humanidade é a aposentadorial O trem em que embarcamos ao nascer só têm três estações de peso: Station Velhice, Station doença e Station Morte. O que diferencia uns passageiros dos outros é apenas o humor e o entusiasmo durante o trajeto. Alguns saltam precocemente pela 177

janela do vagão (vão à Suíça pagar uma eutanásia), outros vão dopados, outros vão mostrando os dentes irresponsavelmente pela janela. E acumulam-se sintomas na espécie e no rebanho. Há passeatas e "marchas" de todas as ordens. Marcha contra o assassinato de baleias! Marcha das vadias! Marcha dos desempregados! Marcha gay! Marcha dos órfãos de Bin Laden! Marcha dos apaixonados por Cristo! Marcha dos meninos de rua! Marcha dos maconheiros! Marcha contra as usinas nucleares! Marcha dos obesos! Marcha dos diabéticos! Marcha dos epilépticos! Dos albinos e dos negros! Marcha dos crentes em discos voadores! Marcha dos abusados por pedófilos! Marcha das mães e até das amantes de loucos e de assassinos confessos, tudo insinuando que vida é apenas uma grande e confusa e embusteira marcha. Viver é marchar! Nosso gosto pelas aglomerações advém do tempo de ratonice quando andávamos ébrios, presumidos e em bandos pela penumbra dos matagais ou pelo desespero esotérico do deserto. Cobra-se mixarias de alguém sem nome, implora-se e grita-se por respeito e dignidade num mundo onde a surdez é finória epidêmica. Uma sopa de misso, um pão com sementes de girassol e uma torta de maçã para saciar a nossa maior detratora. Mas, aqui entre nós, até a fome é literária. Um pouco mais tarde, a sopa de misso dialogando com as sementes de girassol ao longo dos túneis sombrios de minhas entranhas. London, London... As águas turvas do Tamisa, os barcos, o sol de maio, as mulheres entrando e saindo dos cafés e das boutiques com seus decotes e com suas tetas apetitosas sob esse céu azul cortado sistematicamente por imensos aviões que chegam ou que vão para a Arábia Saudita, para Moscou, para São Francisco, para Beijing. Tudo o que se move sobre rodas, a turbinas ou a hélices me dá a ilusão de movimento, de novidade, de errância e de cidadania mundial. Estou aqui, mas amanhã posso estar lá. Num abrir e fechar de olhos me transporto aqui da Victoria Gale para as ruas enlameadas de Katmandu. Se viajo sem parar, não o faço para esgotar nenhum plano turístico, viajo para acalmar meus glóbulos e minhas veias que exigem de mim o prazer e a "felicidade" desse nomadismo e desse anonimato. 178

Aqui da parte superior deste ônibus que vai e que vem pelo coração da cidade, quase corno despedida vou criando um índice fictício e imaginário para este livro: Caim, meu irmão e meu herói; Caim na minha infância e na minha aldeia; Caim e Baudelaire; Caim e Herman Hess; Caim e Lilith; Caim de Lord Byron; Caim e o Leviatã de Hobbes; Caim Poncio Pilatos; Caim e as mulheres; Caim e Unamuno; Caim e os críticos literários; Caim de Steimback; Caim e a feitiçaria; Caim e a Teoria de Adler; Caim e os vampiros; Caim e as doenças mentais; Caim e São Cipriano; Caim e a psicanálise; Caim, os escritores nacionais e o blefe; Caim e a maçonaria (Tuban Caim); Caim e o nomadismo; Caim e David Cooper (família); Caim no imaginário dos pintores de todas as épocas; Caim e o vegetarianismo (os sem-terra); Caim e o raizeiro do Setor Comercial Sul de Brasília; Caim e os beberrões do Santo-Daime; Caim e Derrida; Caim e a macumba; Caim e Melanie Klein; A marca de Caim (OTH); Caim e os ciganos; Caim e os piratas; Caim e os sem-teto de Londres; Caim e Abel como metáfora da esquizofrenia; Caim sou eu tomando uma sopa de misso no Prêt-a-manger; é Darwin lá na entrada do Museu de História Natural; é quem coloca fogo nos vulcões do mundo inteiro. Caim aviador; Caim que pedala os riquixas da Avenida Regent. Caim Cioran. Caim que move os pincéis de Lucian Freud, o maior de todos os artistas londrinos da atualidade. Caim e Victor Hugo.68 Caim homo sacer! Caim cultivador de arruda, teórico da ars nioriendi, coruja, símbolo estelar ou Santo An tão discutindo com os demónios no deserto. A caneta parou bruscamente de funcionar como se estivesse me indagando: para que tantas palavras? Não dou resposta, mas tenho consciência de que escrever é um exercício narcisista e de fanfarronice. O escritor, por mais ético que seja, mente, manipula e arrasta seu leitor para cima e para baixo ao bei prazer de suas próprias perversidades. Parole! Parole! E não há distinção, sejam meus pobres rabiscos ou a chatice interminável 68 “De hoy más quicro habitar bajo la tierra, Como en su tumba el muerto - y presurosa Su familia cavóle ima ancha fosa, Y a ella descendió al fin. Mas jdebajo esa bóveda som­ bria, Debajo de esa tumba inhabitable, El ojb estaba fiero, inexorable, Y miraba a Caíti..." Último verso do texto Consciência, de Victor Hugo.

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de John Milton com seu Paraíso Perdido (Paradise lost!!!). Devia ser tão chato na cama como o era com a escrita, pois sua primeira mulher de dezessete anos o abandonou um mês depois de casados. Desse personagem admiro realmente apenas sua apologia do divórcio e sua luta precoce contra o Copyright. Os dias se esfumam. As escadarias para o quarto cada dia mais íngremes parecem a ladeira de Sísifo e a sacola do dinheiro está cada dia mais vazia. Viro e reviro arquivos em busca de noticias e imagens de Caim matando seu irmão. Não é difícil encontra-las já que de Tintoretto a Chagai todo mundo pintou a bordoada. Apesar da demagogia vigente, um lado secreto do mundo adora todo e qualquer ato de violência. A cena do assassinato mexe com nosso mundo primitivo recheado de cólera, melancolia, inveja, ciúmes e de competição. O gesto do braço destruidor que desce sobre as têmporas do outro e a morte que o segue não são em hipótese nenhuma signos banais ou efémeros. E não é apenas ansiedade ou medo o que se sente, há também nos subterrâneos do ser uma espécie de necrofilia, uma paixão pela doença, pelo martírio e pelo cadáver do outro. Eu mato, tu matas, ele mata. Somos eficientes, matamos aos outros e a nós próprios. Para adocicar a pílula e dar ares de civilidade, Mil e Uma interpretações dessa agressividade cainesca. As fontes são delirantes, um compilatório de bobagens e interpretações as mais esdrúxulas possíveis. Os lunáticos da teosofia que acreditam que na época de Adão e Eva todos eram hermafroditas dão à frase "a Raça de Adão Jah-Hovah, um dia derramou o sangue virgem", a seguinte e insólita interpretação: "o sangue virgem era uterino-vaginal e Caim é o símbolo daqueles Hermafroditas que, pela primeira vez tiveram a curiosa ideia de inserir o próprio pénis na vagina do irmão". Blábláblá... Ufa! Haja imaginação e delírios para tanto. Só mesmo ressuscitando a Sherlock Holmes! Cioran, com sua rabugice eterna cochicharia aos ouvidos de algum velho amigo romeno: "as únicas utopias legíveis são as falsas, as que escritas por jogo, diversão ou misantropia, prefiguram ou evocam as 'Viagens de Gulliver', bíblia do homem desenganado, quintessência de visões não quiméricas, utopia sem esperança." 180

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Em apoio á sustentabilidade à preservação ambiental, a LER Editora declara que este livro foi impresso com papel prpduzido de florestas cultivadas em áreas não degradadas e que é inteiramente recidável.

de outros também elegi a lenda de Caim, sua errância e seu exílio para nortear e turbinar estes textos. Portanto, pouco ou quase nada de originalidade, já que diversos filmes, livros, bandas de rock, revistas, ensaios, pinturas,

teses, duplas caipiras, peças teatrais, rapsódias, aforismos, tarôs, vedetes do vício, filosofias, metáforas e até a magia negra tratam exausti­ vamente dessa questão.... Enquanto Abe! foi consumido pela história e pelos ácaros, Caim não pára de inspirar e de dar título a novos projetos, uns moralizantes, outros verdadeiros motins insurgentes e contrários ao status quo da existência e do mundo. Faço propositalmente aqui uma salada, um saco de gatos e um mosáico de cidades, países, becos, continentes, viagens, oceanos, túneis, acontecimentos, registros, interpretações, confissões e memórias, muito mais para confun­ dir do que para orientar, cabe a você leitor, acostumar-se ou não a essa desordem e a essa errância. Tanto as viseiras como as poses d< sapiência são plenamente dispensáveis, já que o elogio ou a crítico são igualmente abomináveis. E bom frisar que longe da pretensão de equili­ brar ou de apaziguar as hordas, os sujeitos pecantes ou os espíritos demonizados, meus escritos costumam agravar o mal ou - como dizem1 os iniciados no zen — levá-lo ao ponto mais agudo -- -o e insuportável, lá onde o sujeito se eniiraivece, se encoleriza e toma consciência de quer" R^ârC^a irrernediavelmente para o mata­ douro. E isto, tica a is . ’nao Porque ache bonita ou românla caos, da melancolia, da feroddade impk ac^vel, do abismo e do naufrágio. mas porqu, e é ° Que tenho de mais autêntico. crónico e peSs°al a oferecer.

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Londres, 28 de maio de 201*