Pão e Rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo

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Pão e Rosas: identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo

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Andrea D’Atri

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Andrea D’Atri

Pão e Rosas

identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo

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Gênero

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Copyright desta edição © Edições Iskra, 2008 Título original:

Pan y Rosas. Pertenencia de género y antagonismo de clase en el capitalismo

Diretor editorial Coordenação editorial Equipe de tradução Revisão de tradução Diagramação Capa

Luis Siebel Simone Ishibashi Miriam Rouco, Marina Fuser, Fernanda Figueira Guillerme Salgado Rocha, Luciana Machado Liliana Ogando Calo Ana Tossato

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a expressa autorização da editora.

1a edição: março de 2008

EDIÇÕES ISKRA Praça Américo Jacomino, 49 05437-010 Vila Madalena, São Paulo-SP Tel.: (11) 3673-0531

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Sumário

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Prefácio à edição em português

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Agradecimentos

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1. Revoltas e direitos civis

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Introdução

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2. Burguesas e proletárias

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4. Imperialismo, guerra e gênero

57 87 103 117 137 155 163 193

3. Entre a filantropia e a revolução 5. As mulheres no primeiro Estado operário da História

6. Entre Vietnã e Paris, os corpetes à fogueira

7. Diferença de mulher, diferenças de mulheres 8. Pós-Modernidade, Pós-Marxismo, Pós-Modernismo e Pós-Feminismo A modo de conclusão

Documentos Anexos Bibliografia

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À Ana Maria Layño, minha mãe, por ter me dado a liberdade de ser uma mulher distinta dela e diferente, também, da mulher que ela queria que eu fosse

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Prefácio à edição em português

As mulheres chegaram ao poder? Pela primeira vez na história — quando publicamos a edição em português do Pão e Rosas — se conjectura que uma mulher possa ser a próxima presidente dos Estados Unidos da América. Recentemente, na Argentina, Cristina Fernández de Kirchner foi eleita presidente. O Chile é governado por uma mulher, bem como a Alemanha, e o mesmo acontece em países tão remotos como a Libéria. O destino de milhares de iraquianos é decidido por uma mulher tão poderosa como Condoleeza Rice, e outras mulheres não só ocupam os ministérios da Saúde e Ação Social, como também os de Economia ou de Segurança em distintos governos. Mas enquanto o mundo assiste a esse acontecimento e os meios de comunicação prognosticam que se inaugura o “século das mulheres”, a vida de milhões de seres humanos, majoritariamente mulheres e meninas, transcorre entre as piores humilhações que se pode imaginar. Aumenta o trabalho precário das mulheres, chegando em alguns casos à escravidão; o negócio da prostituição e o tratamento dado às mulheres e meninas não deixam de crescer, amparados por redes mafiosas que envolvem funcionários, forças repressivas e o Estado. A

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violência sexista encontrou, inclusive, novas denominações, como a do femicídio, com a qual se tenta descrever o horror dos crimes contra as mulheres, os quais são antecedidos por torturas e violações sexuais, seguidos por impunidade e silêncio. As mulheres terem chegado ao poder não possibilitou que isso deixasse de ocorrer, mostrando uma vez mais — como se fizesse falta — que o problema não é só uma questão de gênero. A barbárie que ameaça milhões de seres humanos, mas particularmente as mulheres e crianças, é também o resultado da combinação do patriarcado ancestral com a selvageria imposta pelo mais moderno sistema capitalista. Esse sistema econômico funciona, melhor ainda, sob a envoltura dos regimes democráticos, que apenas recentemente dão passos na participação das mulheres nos parlamentos, ministérios, tribunais, exércitos e, inclusive, nos mais altos cargos do poder executivo. Para milhões de mulheres, entretanto, a igualdade nos marcos deste sistema capitalista se apresenta como uma utopia inalcançável. Igualdade com quem? Não há igualdade sequer com o companheiro que, ao nosso lado, sofre também a exploração imposta pela minoria de proprietários dos meios de produção. Jamais se alcançará a igualdade com essa minoria que vive na abundância enquanto existir a propriedade privada, dividindo a sociedade em uns poucos que têm tudo e uma imensa maioria que só possui a força de seus braços para se manter na vida. Hoje, duas classes se enfrentam para definir o futuro da humanidade: a burguesia imperialista e o proletariado. Como afirmou a revolucionária Rosa Luxemburgo, diante dessa situação só se pode esperar “socialismo ou barbárie”. Mas para construir o socialismo a classe trabalhadora não só necessita de toda a sua força, toda a sua resolução, toda a sua audácia, como também se desfazer das ficções com que a classe dominante encadeia seu pensamento para mantê-la domesticada. Entre as ficções das quais é necessário que a classe operária se liberte, se encontram os preconceitos sexistas que mantêm a submissão,

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PREFÁCIO

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a humilhação e os maus-tratos às mulheres, embrutecendo também os homens explorados que legitimam, justificam e reproduzem tais costumes. Esperamos que agora, quando se acabam de cumprir os 90 anos da Revolução Russa, e este trabalho é publicado em sua versão em português, as reflexões aqui plasmadas sejam um pequeno incentivo que anime as novas gerações a se incorporar à luta consciente por um mundo liberado das cadeias que hoje pesam, duplamente, sobre as costas de milhões de mulheres. Andrea D’Atri

Buenos Aires, fevereiro de 2008

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Agradecimentos

Este pequeno ensaio é produto de um grande esforço pessoal, já que foi escrito em horas de descanso, após a minha jornada de trabalho e de minha atividade como militante revolucionária. Por isso, gostaria de ressaltar que não seria possível terminá-lo sem a colaboração, compreensão, companhia e o estímulo de outras mulheres às quais gostaria de agradecer em especial. A primeira que merece o meu reconhecimento é Celeste Murillo, que com os seus conhecimentos de História e do idioma inglês aportou com informações fundamentais para escrever algumas destas páginas. Os resultados de sua pesquisa bibliográfica, realizada com entusiasmo e espírito de colaboração, se refletem especialmente nas elaborações sobre a primeira onda do feminismo e as lutas operárias do início do século XX. No entanto, sua colaboração não foi somente técnica. No último ano, compartilhamos cotidianamente as reflexões, os contratempos e os êxitos de colocar em pé a agrupação de mulheres Pão e Rosas, na qual reunimos estudantes, trabalhadoras, profissionais, ativistas e militantes revolucionárias. Esta

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tarefa, que ambas impulsionamos com otimismo, gerou entre nós não somente um amável trato de camaradagem, mas também uma profunda amizade. Outras companheiras de militância, como Andrea Robles e Paula Bach, realizaram leituras críticas dos primeiros rascunhos que me ajudaram a repensar algumas questões particulares e aprofundar alguns aspectos. Inclusive, estas páginas devem um reconhecimento às conversas informais, às sérias elaborações programáticas e às muitas horas de discussões acaloradas que com um grupo de mulheres do Partido de Trabajadores por el Socialismo (PTS) empreendemos há vários anos. Além das companheiras já mencionadas, desse grupo de mulheres também participaram Gabriela Liszt, Ruth Werner, Susana Sacchi, Graciela López Eguía e outras companheiras. Mas, ainda que todas estas colaborações sejam indispensáveis, este trabalho não seria possível sem a presença e o estímulo constante de Laura Liffschitz, a quem agradeço por sua crítica construtiva e sua amizade e a quem devo muito mais que o fato de ter levado a frente o sonho deste pequeno livro. Não obstante, nenhuma destas mulheres tem relação com as debilidades e erros que possam haver neste trabalho. Disso, somente eu sou inteiramente responsável. Em homenagem a estas “mulheres terríveis” com as quais compartilho a luta cotidiana por um mundo sem exploração e opressão, e em homenagem, também, aos milhões de “mulheres terríveis” que lutam em seu dia a dia contra a exploração e a opressão em todas as suas manifestações; torno minhas estas palavras de Lênin que, recordando a Comuna de Paris1, escreveu:

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A História da Comuna de Paris e a participação das mulheres nessa luta heróica é relatada no capítulo “Burguesas e proletárias”.

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Mulheres e crianças de até treze anos lutaram na Comuna de Paris, ombro a ombro com os homens. E não poderá ser de outro modo nas batalhas futuras pela derrubada da burguesia. As mulheres proletárias não verão passivamente como a burguesia, bem armada, massacra os operários, mal armados ou desarmados. Tomarão as armas como fizeram em 1871 e das atuais ‘nações atemorizadas’, ou mais corretamente, do atual movimento operário desorganizado mais pelos oportunistas que pelos governos, surgirá sem dúvida alguma, mais cedo ou mais tarde, mas com a mais absoluta certeza, uma liga internacional das nações terríveis do proletariado revolucionário. 2

Como Lênin, minhas companheiras e eu também compartilhamos dessa certeza.

2

Vladimir Lênin, Las enseñanzas de la Comuna, Bs. As., Anteo, 1973.

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Introdução

CLASSE E GÊNERO Ainda hoje comemoramos todo 8 de março, o Dia Internacional da Mulher. Entretanto, no meio de tanta propaganda de flores e bombons, permanece oculta - para a grande maioria - a origem desta comemoração que se remete à ação organizada por mulheres operárias do século XIX, reivindicando seus direitos: em 8 de março de 1857, as operárias de uma fábrica têxtil de Nova Iorque declararam greve contra as extenuantes jornadas de doze horas e os salários miseráveis. As manifestantes foram atacadas pela polícia. Meio século mais tarde, no mês de março de 1909, 140 jovens morreram queimadas na fábrica têxtil onde trabalhavam em condições desumanas. Nesse mesmo ano outras 30 mil operárias têxteis nova-iorquinas se declararam em greve e foram reprimidas pela polícia. Apesar da repressão, as operárias ganharam o apoio dos estudantes, sufragistas, socialistas e outros setores da sociedade. Poucos anos mais tarde, no começo de 1912, na cidade de Lawrence, Massachusetts (EUA), eclodiu uma greve que ficou

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conhecida como Pan y Rosas (Pão e Rosas), protagonizada também por operárias têxteis que sintetizavam, nesta consigna, suas demandas por aumento de salário e por melhores condições de vida1. Nesta luta o comitê de greve instala creches e refeitórios comunitários para os filhos das operárias, com o objetivo de facilitar a participação das trabalhadoras no conflito. A organização Industrial Workers of the World inaugura reuniões de crianças no sindicato para discutir porque suas mães e pais estão em greve. Após vários dias de conflito, enviam-nos a outras cidades, onde são recebidos por famílias solidárias com a luta operária. Um primeiro trem transporta 120 crianças. No momento em que o segundo trem está prestes a sair, a polícia lança mão da repressão contra as crianças e as mulheres que as acompanham. Este episódio fez com que o conflito chegasse aos jornais de todo o país e ao parlamento, aumentando a solidariedade para com as grevistas. Já em 1910, durante um Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, a alemã Clara Zetkin2 havia proposto que se estabelecesse o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem àquelas que levaram adiante as primeiras ações organizadas de mulheres trabalhadoras contra a exploração capitalista. Sete anos depois da instauração do Dia da Mulher, em sua comemoração na Rússia — em fevereiro de 1917, para o calendário ortodoxo-, as operárias têxteis de Petrogrado tomaram as ruas exigindo “pão, paz e liberdade”, marcando assim o início 1

2

Pode-se ler o poema Pan y Rosas, canção popular do movimento operário norte-americano, entre os documentos anexos ao final deste trabalho. Clara Zetkin (1857 -1933), dirigente do Partido Social-democrata Alemão, organizadora de sua seção feminina. Fundou o jornal La Igualdad e lutou contra a direção de seu partido, quando esta se alinhou com a burguesia nacional, votando os créditos de guerra no Parlamento, na Primeira Guerra Mundial.

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da maior revolução do século XX que desemboca na tomada do poder pela classe operária, no mês de outubro do mesmo ano. Como vemos, o Dia Internacional da Mulher conjuga, então, as questões de classe e de gênero que mais de um século depois seguem em debate tanto entre marxistas como no movimento feminista.

OPRESSÃO E EXPLORAÇÃO Para as marxistas revolucionárias a questão da opressão das mulheres se insere na história da luta de classes e, por isso, nossa posição teórica é a mesma que a de nossa luta: junto aos/as explorados/as e oprimidos/as pelo sistema capitalista. Se o fazemos desde a perspectiva do materialismo dialético e histórico é porque, como disse John Holloway, estavamos buscando uma teoria de mundo que se encaixasse com nossa experiência, com nossa oposição à sociedade existente. Estávamos buscando não tanto uma teoria da sociedade, mas uma teoria contra a sociedade.3

Acreditamos que o marxismo nos dá as ferramentas para compreender este mundo, aspirando a sua transformação. Já algumas especialistas em Estudos da Mulher tem apontado que é absolutamente necessário encarar uma análise de classe no tratamento histórico do feminismo”, acrescentando que “o feminismo burguês seria a exposição da consciência de sua opressão por parte da mulher burguesa que se colocará em igualdade com o homem nos terrenos político, legal e econômico,

3

John Holloway, “La pertinencia del marximo hoy”, em El pensamiento sobre la crises de D. Kanoussi (organizador), México, U.A.P., 1994.

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no marco da sociedade burguesa. O feminismo operário, por sua vez, proporia a superação da subordinação social à qual está submetida, seja socialista, anarquista ou comunista.4

No mesmo sentido, marcando estas diferenças de classe na análise da opressão das mulheres, nos encontramos com outras autoras que apontam que

se todas as mulheres são oprimidas pelo sistema patriarcal em vigor na quase totalidade das sociedades contemporâneas, não o são pelas mesmas razões, além do que, há oprimidas que oprimem e é importante ressaltar isto.5

Desde uma perspectiva marxista, consideramos a exploração como a relação entre as classes que faz referência à apropriação do produto do trabalho excedente das massas trabalhadoras por parte da classe possuidora dos meios de produção. Trataria-se, nesse caso, de uma categoria que tem suas raízes nos aspectos estruturais econômicos. Enquanto poderíamos definir a opressão como uma relação de submissão de um grupo sobre outro por razões culturais, raciais ou sexuais. Ou seja, a categoria de opressão se refere ao uso das desigualdades para colocar em desvantagem um determinado grupo social. Daí sustentamos que se nós mulheres integramos diferentes classes sociais em luta, por isso, não constituímos uma classe diferente, mas sim um grupo policlassista. Mesmo assim, consideramos que a exploração e a opressão se combinam de diversas maneiras. O pertencimento de classe de um sujeito delimitará os contornos de sua opressão. Por exemplo, ainda que a impossibilidade legal de exercer o direito sobre o próprio corpo seja uniforme para muitas mulheres do 4

5

Mary Nash, “Nuevas dimensiones en la historia de la mujer” em Presencia e protagonismo: aspectos de la historia de la mujer de M. Nash (comp.) Barcelona, Ed. del Serbal, 1984. Andrée Michel, El feminismo, México, F.C.E., 1983.

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mundo no plano formal do corpus jurídico, não são equivalentes - no plano do real - as práticas ilegais possíveis e suas previsíveis conseqüências para quem tem acesso ao clandestino aborto asséptico por posição econômica, social e até nível educativo, e para quem deve morrer por hemorragias e infecções, vítimas de uma ordem patriarcal com descarado rosto capitalista. Ou seja, ainda que se possa afirmar que o conjunto das mulheres padece de discriminações legais, educacionais, culturais, políticas e econômicas, o certo é que existem evidentes diferenças de classe entre elas que moldaram em forma variável não só as vivências subjetivas da opressão, mas também e, fundamentalmente, as possibilidades objetivas de enfrentamento e superação parcial ou não destas condições sociais de discriminação. OPRIMIDAS EXPLORADAS E OPRIMIDAS QUE OPRIMEM No começo do século XXI lutar pelos direitos das mulheres parecia algo já socialmente admissível e “politicamente correto”, ao passo que a maioria dos governos do mundo, em diferentes níveis institucionais, tem incorporado a problemática de gênero nas secretarias de Estado, comissões de trabalho, agendas e organismos multilaterais. Existem fatos que são irrefutáveis. Não podemos negar, por exemplo, a realidade de um fenômeno conhecido como “teto de cristal”, expressão com a qual se aponta o fato de que nós mulheres, tanto em âmbitos acadêmicos como trabalhistas, não ascendemos a cargos mais altos na mesma proporção que os homens, ainda que cumprindo os mesmos requisitos de capacitação e desempenho. Também é sabido que na grande maioria dos países de todos os continentes, nós mulheres recebemos um salário equivalente a 60% ou 70% do total recebido pelos homens que realizam o mesmo trabalho. Esta diferença aumenta ainda mais na medida

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em que aumenta a escala salarial, ou seja, entre os cargos gerenciais e diretivos a discriminação contra as mulheres é maior. Como é possível notar, a opressão das mulheres se manifesta de diversos modos, em todas as classes sociais. Mas a metade da humanidade não é repartida igualmente entre as distintas classes: nós mulheres somos maioria entre os explorados e pobres deste mundo e uma ínfima minoria, quase inexistente, entre os poderosos donos das multinacionais que nos condenam a essa exploração e pobreza. É um fato categórico que ainda que nós mulheres sejamos mais de 50% da população mundial, constituímos os 1.3 bilhões de pobres do planeta e, por outro lado, somente 1% da propriedade privada mundial está nas mãos de mulheres. É certo que as duplas, triplas e múltiplas cadeias que pesam sobre as mulheres trabalhadoras - sejam operárias, assalariadas, trabalhadoras rurais ou desempregadas -, não pode ser um argumento utilizado com o propósito de mascarar a opressão que a metade da humanidade sofre, seja qual for a classe à qual se pertença. Porém, se colocamos a perspectiva de classe é porque consideramos que a opressão de todas as mulheres obtém a “legitimidade” que necessita em um sistema baseado na exploração da enorme maioria da humanidade por uma pequena minoria de parasitas capitalistas, um sistema no qual a perpetuação das hierarquias e as desigualdades são partes fundamentais de seu funcionamento. Atualmente, a desigualdade hierarquizada entre mulheres e homens, que até o começo do século XX era justificada sem pudor com apelações a uma suposta “ordem natural”, aparece distorcida após alguns supostos “triunfos do sexo frágil”. Mas este novo discurso acerca da conjeturada liberação feminina já alcançada, faz referência exclusivamente a algumas mulheres e a determinados aspectos parciais de suas vidas e direitos, ocultando que a questão da opressão de gênero está entrelaçada indissoluvelmente também à questão da exploração de classes.

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Mostrando também que, em última instância, o suposto respeito pelas diferenças e a igualdade não são mais que retórica em um sistema social no qual prevalece uma das mais abjetas hierarquizações dicotômicas: a que estabelece que milhões de pessoas são condenadas a vender suas forças de trabalho para que uns poucos saciem sua sede de lucros cada vez mais exorbitantes. Se não for pela questão de classe como se explica a opressão de gênero, enquanto Ivanna Trump se converte em uma empresária independente no mundo dos negócios, ou Hillary Clinton se senta no poderoso senado norte-americano, e por outro lado 60 milhões de meninas ainda não têm acesso à educação? O século XX viu mulheres presidentes, primeiras-ministras, membros de gabinetes de governo, soldadas e oficiais, cientistas, artistas e esportistas, empresárias e profissionais bem-sucedidas. É também o século da pílula anticoncepcional, da minissaia e da calça jeans, da moda unisex e dos eletrodomésticos. Mas não nos esqueçamos que o século XX também foi testemunha das 50 milhões de mulheres que morreram todos os anos por abortos clandestinos, das milhares de mulheres mutiladas e assassinadas por políticas de “limpeza étnica”, de milhões de mulheres desempregadas, vivendo em níveis que se encontram abaixo dos índices de pobreza. Calcula-se que no chamado “Terceiro Mundo”, morrem 600 mil mulheres jovens por ano durante a gravidez e o parto. Para cada uma delas, há outras 30 que sofrem infecções, lesões e incapacidades pelas mesmas causas. Quer dizer que pelo menos 18 milhões de jovens mulheres por ano sofrem danos durante a gravidez e o parto, que levam algumas à morte. Assim, quando uma mulher de trinta anos de idade em “igualdade” com os homens pode “exercer seu direito” a ser oficial da forças conjuntas da OTAN que bombardeiam os países semicoloniais, ou pode morrer, na mesma idade, em uma aldeia africana por causa da AIDS é um paradoxo, e é inclusive cínico

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falar do avanço e progresso da mulher. Não deveríamos falar de diferentes mulheres? São por acaso iguais as vidas das mulheres empresárias, operárias, dos países imperialistas e das semicolônias, das brancas e das negras, das imigrantes ou refugiadas? Supor que somente por serem mulheres há algo que vincula Margareth Thatcher com as desempregadas inglesas, as empregadas domésticas da Argentina, ou as operárias mexicanas é, em última instância, cair no reducionismo biológico da ideologia patriarcal dominante que as mesmas feministas criticam seriamente. Falar de gênero assim, portanto, é fazer uso de uma categoria abstrata, vazia de sentido e impotente para a transformação que queremos levar adiante. CAPITALISMO E PATRIARCADO: UM MATRIMÔNIO BEM SUCEDIDO Muitas feministas hoje se colocam estas questões. Há as que dizem inclusive que um feminismo de classe teria que hierarquizar e valorizar de diferentes maneiras os problemas com os quais as mulheres se enfrentam. Desse modo, dizem, por cima da condenação do sistema patriarcal, deveria estar a condenação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, responsáveis por uma crescente pobreza e pela redução dos serviços públicos. Acrescentando que a melhor ajuda que as feministas podem oferecer às mulheres do Terceiro Mundo é condenar, desde uma posição abertamente antiimperialista, todas as intervenções “humanitárias” que não servem mais que aos interesses das grandes potências.6 Entretanto, ainda que existam tentativas como esta, que buscam aproximar as questões de gênero e de classe e suas 6

Alizia Stürtze, “Feminismo de clase”,

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interseções para repensar o feminismo, são poucas as mulheres que tentam desenvolver este pensamento à luz do marxismo. Porque hoje, quando o termo pós-moderno já está fora de moda, continuar defendendo os princípios do marxismo parece algo mais do que arcaico. Entretanto, renegando as modas às quais estão sujeitas as intelectuais progressistas para condenar com diferentes palavras e categorias o mesmo que é condenado pelos reacionários - a revolução operária que pode acabar com o domínio capitalista — defendemos que apesar de não ter surgido com o capitalismo, a opressão das mulheres adquire sob este modo de produção traços particulares, convertendo o patriarcado em um aliado indispensável para a exploração e a manutenção do status quo. O capitalismo, baseado na exploração e na opressão de milhões de indivíduos em todo planeta, conquistando para a ampliação de seus mercados não apenas povos inteiros, mas também terras virgens e locais inóspitos introduziu as mulheres e as crianças em sua maquinaria de exploração. Ainda que tenha colocado milhões de mulheres no mercado trabalhista destruindo os mitos obscurantistas que as condenavam a permanecer exclusivamente no âmbito privado da casa, dá as condições para explorá-las duplamente, com salários menores que os dos homens para que, desse modo, possam diminuir também o salário dos outros trabalhadores. O capitalismo, com o desenvolvimento da tecnologia, tornou possível a industrialização e, portanto, a socialização das tarefas domésticas. Entretanto, se isso não ocorre é precisamente porque no trabalho doméstico não remunerado reside uma parte dos lucros do capitalista que assim é eximido de pagar aos trabalhadores e às trabalhadoras pelas tarefas que correspondem a sua própria reprodução como força de trabalho (alimentação, roupas, etc). Alentar e sustentar a cultura patriarcal segundo a qual os afazeres domésticos são tarefas “naturais” das mulheres, permite que esse “roubo” dos capita-

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listas seja mascarado e também o trabalho doméstico que recai fundamentalmente sobre as mulheres e suas filhas se torne invisível. Ainda que nunca antes como no capitalismo se criaram as condições científicas, médicas, sanitárias que nos permitiriam enquanto mulheres a dispor de nossos próprios corpos, este direito ainda não nos pertence. O desenvolvimento dos métodos anticoncepcionais, como as pílulas, os dispositivos intrauterinos, as ligações de trompa e inclusive a possibilidade do aborto asséptico e sem complicações para a saúde são fatos inquestionáveis. Se nós mulheres não podemos dispor de nosso próprio corpo, decidir por não ter filhos, ou quando e quantos filhos ter, é pelo fato de que a Igreja, em cumplicidade com o Estado capitalista, continua se impondo sobre as nossas vidas. Isso porque a possibilidade de separar o prazer da reprodução leva a uma liberdade que é perigosa para a classe dominante. Questionar a maternidade como único e privilegiado caminho para a auto-realização das mulheres, questionar que a sexualidade tenha como único fim a reprodução e questionar, assim mesmo, que a sexualidade seja entendida somente como ato heterossexual, põe em risco as normas com as quais o sistema regula nossos corpos. Os corpos que o sistema de exploração só concebe como força de trabalho, como corpos submetidos aos estereótipos de beleza, como corpos separados e alienados transformados em uma mercadoria a mais no mundo das mercadorias. LUTAS DE MULHERES E LUTA DE CLASSES Mas com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, não apenas aumenta a exploração e a opressão das mulheres, como também ocorrem mudanças profundas na resistência e na luta das mulheres contra essas amarras. No final do século XVIII, com as revoluções burguesas, surge o feminismo como

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movimento social e corrente teórica, ideológica e política. Este movimento percorre os séculos XIX e XX adquirindo distintas formas, chegando até nossos dias convertido em diferentes correntes teóricas, em práticas diversas e múltiplas experiências de organização. Quase desde o início, com o desenvolvimento do capitalismo e a aparição de uma poderosa classe operária antagônica à burguesia dominante, se instala o debate em torno desta contradição que marca o sistema capitalista para as mulheres, e que concentra nosso interesse - e que foi apontado pela marxista Evelyn Reed nos seguintes termos: “Sexo contra sexo ou classe contra classe? ” 7 Nós, marxistas revolucionárias, defendemos que a luta de classes é o motor da história, e a classe operária acaudilhando as massas pobres e ao conjunto dos setores oprimidos é o sujeito central da revolução social, que nos libertará da escravidão assalariada e todo tipo de opressão, atacando ao capitalismo em seu coração, paralisando seus mecanismos de exploração e destruindo sua maquinaria de guerra contra as classes subalternas.

7

Evelyn Reed (1905-1979), militante do Socialista Workers Party dos EUA por mais de 40 anos. Evelyn conheceu os militantes do SWP no final dos anos 1930 e se instalou, em 1939, no México, onde frequentou o entorno do revolucionário russo León Trotsky que estava exilado nesse país. Foi membro do Comitê Central do SWP desde 1959 até 1975 e participou ativamente na imprensa dessa organização trotskista norte-americana, o semanário The Militant e a revista teórica International Socialist Review. Mas a contribuição mais substancial de Evelyn Reed foi, sem dúvida, o conjunto de seus escritos sobre a libertação da mulher, nas quais aplica o método do materialismo histórico na análise da origem da opressão das mulheres na sociedade de classes, mostrando a indispensável articulação entre o combate pelos direitos das mulheres e por derrotar o capitalismo. Entre suas conferências, publicadas em espanhol encontramos “Sexo contra sexo ou classe contra classe?”, “Como a mulher perdeu sua autonomia e como poderá reconquistá-la”, “A mulher e a família: uma visão histórica”.

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Hoje, essa classe conta com milhões de mulheres em suas fileiras. O capital produz essa e outras tantas contradições. A burguesia cria e recria permanentemente o seu próprio sepultamento. É nossa convicção que as mulheres da classe operária serão parte fundamental nessas batalhas futuras, pela derrota total da classe exploradora. Há pouco tempo na Argentina nós mulheres fomos protagonistas dos bloqueios de rua com os movimentos de desempregados, das ocupações de fábricas que produzem sob controle operário, das assembléias nos bairros que questionaram o pode estabelecido, das inumeráveis lutas e mobilizações que cruzaram este território. Nós mulheres nos colocamos em luta por nossos direitos em todo o mundo. Há mulheres à frente de todo os movimentos sociais que eclodiram na América Latina na última década. São centenas de jovens mulheres que enfrentaram ao imperialismo nos encontros antiglobalização e nas marchas mundiais contra a guerra do Iraque. A poucos dias de imprimir esse estudo, mais de meio milhão de mulheres marcharam em Washington em defesa do direito ao aborto, atualmente em perigo pela política reacionária de Bush. Mesmo assim, há setores do movimento feminista que resistem em ser integrados ao sistema, institucionalizados ou a se tornar ONGs, negociando uma menor radicalização por pequenas cotas de poder.8 Destas histórias de inumeráveis lutas de mulheres feministas, operárias, camponesas e militantes revolucionárias, queremos apreender as mulheres de hoje para empreender as tarefas que temos que nos colocar. Tendo como eixo de nosso trabalho esta intersecção entre gênero e classe, apresentamos então o papel das mulheres e do feminismo nos distintos acontecimentos e períodos fundamentais em que pode dividirse a história dos séculos XIX e XX. 8

Fontenla e Bellotti: “Feminismo e neoliberalismo”, apresentação apresentada na 15º jornada sobre Feminismo e Neoliberalismo pelas integrantes da ATEM, Buenos Aires, 1997.

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Muitos temas importantes foram deixados de lado, outros mereciam extensão e aprofundamento maior. Não sou historiadora nem escritora profissional. Oriento-me pelo desejo de colaborar, com este pequeno grão de areia, à luta das mulheres por sua emancipação. Minhas expectativas estarão mais que satisfeitas se depois de ler este trabalho, as autoras verdadeiramente fundamentais do marxismo e do feminismo forem relidas e suas elaborações repensadas sob a luz de nosso tempo, com o objetivo de combater a opressão. Essencialmente meu desejo é prestar uma modesta colaboração a todas as mulheres que se colocam na perspectiva da enorme e gratificante tarefa revolucionária de “carregar sobre suas costas essas partículas do destino da humanidade”. Andrea D´Atri

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Revoltas e direitos civis “Mulher, desperta! As badaladas da razão se fazem ecoar por todo o universoReconhece teus direitos!” Olympe de Gouges

PÃO, CANHÕES E REVOLUÇÃO Na época das lutas contra o absolutismo feudal e pela consolidação da burguesia como classe dominante, uma onda de revoltas camponesas percorreu a Europa. Desde o século XVI, as revoltas eclodiram ininterruptamente e só terminaram com a constituição dos modernos Estados nacionais, já inaugurado o século XIX. As mulheres foram protagonistas dessas rebeliões que irrompiam, conduzindo as massas, freqüentemente, ao uso da violência. Muitas vezes, elas mesmas estavam à frente. Em 1709 e 1710, no despontar do século XVIII, as donas de casa de Essex, os mineiros de Kenigswood e pescadores de Tyneside, na Inglaterra, protagonizaram conflitos contra as suas condições de existência. Em 1727, o mesmo se deu com os mineiros de estanho de Cornwall e os de carbono de Gloucestershire. Em 1766, as revoltas se estenderam por toda a Grã-Bretanha. Na França, em 1725, houve revoltas em Caen, na Normandia e em Paris. Em 1739 e 1740 os motins se estenderam por Burdeos, Caen, Bayeaux, Angulema e Lille. Em 1747, as massas despertaram em Toulouse e em Guyenne. Em 1752, em

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Arlès, Burdeos e Metz; em 1768, em El Havre e Nantes. Finalmente, em 1774 e 1775, a chamada “guerra das farinhas” se estendeu por todo o norte da França. Esses motins impuseram os impostos populares e também levantaram reivindicações políticas. As taxas de rendas e impostos, a escassez de alimentos, a perda de direitos e o atropelo dos senhores constituíram os motivos centrais das rebeliões. Também foram muito comuns as revoltas protagonizadas pela elevação do preço do trigo e do pão, pela competição de operários estrangeiros que ameaçavam as possibilidades de trabalho dos nativos ou contra as especulações dos comerciantes que monopolizavam os produtos em escassez no mercado. Segundo o historiador E. P. Thompson, as mulheres eram, com freqüência, as principais causadoras dos motins. Assim o relata: Em dezenas de casos, ocorre o mesmo: as mulheres apedrejando um comerciante pouco popular com suas próprias batatas, ou combinando astutamente a fúria com o cálculo de que eram, de certo modo, mais imunes às represálias das autoridades que os homens.

Os mecanismos de ação se assemelhavam em todos os casos:

A ação espontânea em pequena escala podia ser derivada de uma espécie de vaia ou gritaria ritual em frente à loja do vendedor, da intersecção de carros de grão ou farinha ao passar por um centro populoso, ou da simples congregação de uma multidão ameaçante.1

No trabalho citado, Thompson relata numerosos casos como, por exemplo, quando, em 1693, as mulheres se dirigiram ao mercado de Northampton com facas escondidas em seus 1

Thompson, E. P., La formación histórica de la clase obrera, Barcelona, Laia, 1977.

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corpetes para forçar a venda de grão ao preço que elas mesmas estabeleceram. Segundo informes da época, o povo de Stockton se alçou, em 1740, incitado por uma senhora armada com um pedaço de pau e uma corneta. Entre as histórias, está também a de um juiz de paz que, em uma oportunidade, se queixou de que as mulheres incitaram os homens à luta e que, como “perfectas furias”, golpearam-no pelas costas. Na França, em 5 de outubro de 1789, as mulheres de Les Halles e Saint Antoine, dois bairros populosos de Paris, exigiram pão em frente à sede do Município e marcharam até Versalles, onde moravam os reis, convertendo a marcha em um dos motores das mobilizações revolucionárias que em breve desembocaram no que marcou a História com o nome de Revolução Francesa. Como ocorreu em outros processos históricos, a grande Revolução Francesa, que envolveu todas as classes, todos os setores sociais em sua luta contra o absolutismo, começou com uma revolta dirigida pelas mulheres dos bairros pobres de Paris. Nos permitimos aqui um excerto de um texto de Alexandra Kollontai, que coloca o papel das mulheres ao longo de todo o processo revolucionário:

As mulheres do povo nas províncias de Delfinado e da Bretanha foram as primeiras a atacar a monarquia.(...). Participaram nas eleições dos deputados para os Estados Gerais e seu voto foi reconhecido unanimemente. (...). As mulheres de Angers redigiram um manifesto revolucionário contra o domínio e a tirania da casa real, e as mulheres proletárias de Paris participaram na tomada da Bastilha, onde penetraram com as armas na mão. Rose Lacombe, Luison Chabry e Renée Ardou organizaram uma manifestação de mulheres que se dirigiu a Versalhes e levaram Luís XVI a Paris sob estrita vigilância. (...). As peixeiras do mercado mandaram especialmente uma delegação aos Estados Gerais para ‘animar os deputados e lembrar-lhes das reivindicações das mulheres’. ‘Não se esqueçam do povo!’, gritou a delegada aos 1200 membros dos Estados Gerais, ou seja, à

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Assembléia Nacional Francesa. (...). Porém, muito tempo após a consolidação da revolução, a memória das ‘cruéis e sanguinárias’ tecelãs assombrava as noites da burguesia. Quem eram, pois, essas tecelãs, essas fúrias, como faziam questão em chamá-las os aprazíveis e pacíficos contra-revolucionários? Eram artesãs, camponesas, operárias em domicílio ou de manufaturas, que sofriam cruelmente de fome e todo tipo de males, que odiavam a aristocracia e o Ancien Régime de todo coração e com todas suas forças. Frente ao luxo e ao esbanjamento da nobreza arrogante e ociosa, reagiram com um instinto de classe seguro e apoiaram a vanguarda militante por uma nova França, em que homens e mulheres tivessem direito ao trabalho e onde as crianças não morressem de fome. Para não perderem tempo inutilmente, essas honradas patriotas e essas zelosas operárias continuaram tricotando suas meias, não só em todas as festas em todas as manifestações, mas também durante as reuniões da Assembléia Nacional, bem como aos pés da guilhotina, ao assistir às execuções capitais. Por outro lado, não tricotavam essas meias para si mesmas, mas para os soldados da Guarda Nacional — convertidos em defensores da revolução.2

Os jornais da época descrevem as imagens de algumas mulheres heróicas das manifestações de 1789 que deram origem à Revolução, como

essa jovem de 18 anos, flagrada em combate vestida de homem ao lado de seu amante, e uma carvoeira que, após o assédio, está à procura do cadáver de seu filho, respondendo com altivez aos que estranham sua serenidade: ‘Em que lugar mais glorioso poderia buscá-lo? Ele deu a vida por sua pátria, não é por acaso bem-aventurado?’ 3

2 3

Kollontai, A., Mujer, historia y sociedad. Sobre la liberación de la mujer, México, Fontamara, 1989. Duhet, P. M., Las mujeres y la revolución (1789-1794), Barcelona, Península, 1974.

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Marie Louise Lenöal, que depois se tornou deputada da Assembléia Nacional, comenta os episódios:

A primeira concentração constituída unicamente por mulheres ocorreu às oito da manhã em frente à casa parlamentar, com o intuito de averiguar a razão pela qual era tão difícil conseguir pão e a tão alto preço; outras clamavam insistentemente para que o Rei e a Rainha viessem se instalar em Paris…4

Segundo outro testemunho da época, as mulheres

atam cordas às rodas dos canhões, mas ao se tratar de rodas de canhões de barco, dita artilharia é de difícil locomoção. Então as mulheres confiscam carruagens, carregam nestas seus canhões e amarram-nos por cabos, carregam pólvora e balas de canhão; umas dirigem os cavalos, outras, sentadas sobre os canhões, levam nas mãos o temeroso pavio e outros instrumentos letais. Ao iniciar sua marcha desde os Campos Elíseos, seu número já ultrapassara as 4.000, escoltadas por 400 ou 500 homens, armados com tudo o que podiam encontrar…5

As mulheres da região de Grenoble, por sua vez, enviaram uma carta ousada ao rei: Não podemos nos dispor a criar filhos destinados a viver em um país submetido ao despotismo.6

Também houve mulheres cujos nomes transcenderam a História, como Madame Roland ou a jornalista e escritora Louise Robert-Kévalio, que simpatizavam com a ala moderada 4

5 6

Lenöal, M. L., Evenement de Paris et de Versailles par une des dames qui a eu l’honneur d’etre de la Deputation a l’Assamblee Nationale, citado por P. M. Duhet em op. cit. Periódico Les revolutions de Paris Nº 13, citado por P. M. Duhet em op. cit. Citado por A. Lasserre en La participation collective des femmes a la Revolution Francaise, Paris, 1906.

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dos girondinos. Ou Théroigne de Mericourt, que chamou o povo a tomar as armas, participou na Tomada da Bastilha, e a Assembléia Nacional entregou-lhe uma espada em recompensa por seu valor. Segundo diz a lenda, no mesmo 5 de outubro de 1789 antecipou-se à manifestação que se dirigia a Versalhes e entrou na cidade a cavalo, vestida de vermelho, tentando ganhar as mulheres para a causa revolucionária. AS CIDADÃS REIVINDICAM IGUALDADE Em 1789, quando a Assembléia Nacional vota a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, dois documentos sobre as mulheres vêm à tona. Em 1º de janeiro de 1789 conhece-se o folheto anônimo “Petição das mulheres ao Terceiro Estado e ao Rei”. O outro, que leva o título de “Caderno das queixas e reivindicações das mulheres”, assinado por uma tal Madame B. B., aponta em um de seus parágrafos: Uni-vos, filhas de Caux, e suas cidadãs das províncias regidas por costumes tão injustos como ridículos; ide até o pé do trono, suplicai ajuda de todos ao seu redor; clamai, solicitai a abolição de uma lei que as condena à miséria desde que nasceis…7

Os manifestos mais conhecidos pelos direitos das mulheres da época são “Ensaio sobre a admissão das mulheres no direito cidadão”, de Marquês de Condorcet 8, e “Direitos da mulher e da cidadã”, da lendária Olympe de Gouges, de 1790 e 1791, 7 8

Mme. B. B., Cahiers des doleances et reclamation des femmes, citado por P. M. Duhet em op. cit. É interessante ressaltar que o Marquês de Condorcet, um dos homens que se coloca mais resolutamente a favor das mulheres em sua luta por conquistar a igualdade de direitos civis, conclui o seu famoso ensaio reivindicando o direito ao voto apenas para aquelas que possuem bens, ou seja, as proprietárias.

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respectivamente.9 Olympe se chamava, na realidade, Marie Gouze. Nasceu em 1748, e em 1765 casou-se com um oficial chamado Pierre Aubrycom com o qual, provavelmente, teve um filho. Mais tarde se lançou em uma carreira como escritora, principalmente de obras de teatro. Em 1791, quando o rei foi detido, declarou: Não basta fazer com que caia a cabeça de um rei para matá-lo. Após a sua morte, continua vivendo ainda por muito tempo; pelo contrário, só terá morrido de fato quando a sua queda sobreviver.

Propôs, em um folheto, realizar um referendo sobre as seguintes alternativas: governo republicano único e indivisível, governo federativo ou governo monárquico. Por este motivo, ela foi presa e guilhotinada em 3 de novembro de 1793. Não só na França surgiam as reivindicações pelos direitos das cidadãs. Na Inglaterra, no mesmo período, Mary Wollstonecraft publicava sua Reivindicação dos direitos da mulher, em 1792, se queixando de que “nós, mulheres, não somos consideradas mais que fêmeas e não parte da espécie humana” 10. Mary Wollstonecraft não se atém à reivindicação de direitos políticos; manifesta-se contra a hipocrisia da sociedade e contra a desigualdade. Nasceu na Inglaterra em 1759, educada por um pastor protestante. Seu primeiro trabalho foi como professora, experiência que a levou a escrever Pensamentos sobre a educação das jovens. Defensora da Revolução Francesa, em Paris, aderiu aos girondinos. Outras obras de sua autoria são Reflexões sobre a Revolução Francesa, Cartas da Noruega e uma novela

9

10

O manifesto “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” de Olympe de Gouges está entre os documentos anexos, no final deste trabalho. Wollstonecraft, M., Vindicación de los derechos de la mujer, Bs.As., Perfil Libros, 1998.

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póstuma intitulada Mary ou a desgraça de ser mulher. Faleceu muito jovem, durante o parto de sua filha Mary.11

No mesmo período, John Wilkes (1727-1797) também desenvolveu sua atividade. Político e escritor inglês, chegou a ser deputado e prefeito de Londres. Esse lutador pelas liberdades civis dirigiu um movimento de reforma democrática, sendo expulso do Parlamento justamente por publicar um folheto intitulado Ensaio sobre a mulher.

Na mesma França, houve outros homens que aderiram à causa feminista, como, por exemplo, Labenette, membro do Clube dos Cordeleiros, que em 1791 fundou o Jornal dos Direitos do Homem, cujo lema era: “Cada vez que as ataque, eu as defenderei”. No jornal publicou artigos como este: As mulheres que possuem mais inteligência e conhecimentos que seus maridos, em vez de permanecerem enclausuradas em suas casas, deverão se consagrar aos negócios da comunidade, e os maridos permanecerem nos lares atendendo às crianças.12

Não obstante, teve que publicar em alguma oportunidade:

Alguns de meus leitores masculinos ontem ameaçaram deixar de ler meu jornal se insistisse em meu propósito de continuar defendendo as mulheres…13

11

12 13

Sua filha, Mary Godwin, que após se casar com o poeta Shelley, ficou conhecida mundialmente por sua novela Frankenstein, certa vez disse: “Mary Wollstonecraft foi um desses seres que só aparecem uma vez por geração, para lançar sobre a humanidade um raio de luz sobrenatural. Primeiro brilha, depois parece escurecer e os humanos pensam que se apagou, mas repentinamente se reanima para brilhar eternamente.” Journal des Droits d l’Homme Nº 14, citado por P. M. Duhet em op. cit. Idem.

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LIBERDADE, FRATERNIDADE E DESIGUALDADE DE CLASSE E DE GÊNERO

As mulheres dos bairros operários de Paris tornam-se protagonistas das mobilizações populares em janeiro de 1792, rebelando-se pela escassez e carestia do açúcar. Um ano mais tarde, em 1793, uma revolta iniciada pelas lavadeiras retoma as taxas populares, exigindo medidas contra os monopolizadores e especuladores. Durante todos estes anos, apesar de estarem excluídas de qualquer tipo de participação na luta armada, as mulheres da burguesia e outras mulheres dos setores populares urbanos desenvolveram sua militância contra as forças contrarevolucionárias em clubes femininos que, bem como as sociedades fraternais constituídas pelos homens, atacavam duramente o clero e a nobreza, chegando inclusive a fazer com que algumas mulheres — como na associação das jovens de Nantes — jurassem jamais se casar com aristocratas. Nos clubes revolucionários de mulheres, se destacaram figuras como Rose Lacombe — junto à lavadeira Pauline Léonie, fundadora do Clube das Cidadãs Revolucionárias — que, em certa ocasião, ocupou a sede da Assembléia Nacional com uma multidão de desempregadas parisienses, perguntando o que o governo pensava em fazer para atenuar a miséria das trabalhadoras. Mas, finalmente, com o retorno da reação, perdem os direitos civis conquistados. Após as primeiras tentativas de organização das mulheres nos clubes patrióticos e revolucionários, o império de Napoleão freou o movimento, reprimindo toda manifestação pública e fechando os clubes. Em seu Código Civil de 1804, que inspirou toda a legislação européia da época, e que ainda se expressa nos códigos civis das nações semicoloniais como as nossas, trazia a idéia de que a mulher é propriedade do homem e sua principal tarefa é a produção de filhos.

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É notável que na Revolução Francesa a questão da mulher se converteu, pela primeira vez, em questão política. O feminismo surgiu, poderosamente, como movimento político que reivindicava a igualdade de direitos para as mulheres, projetando o eco do discurso burguês da igualdade abstrata de todos os cidadãos perante à lei. Direitos dos homens e também das mulheres, nos marcos do projeto político igualitário do Iluminismo. O feminismo supõe a radicalização desse projeto, mostrando a contradição existente entre a igualdade universal proclamada e a ausência real de direitos civis e políticos para a metade da sociedade civil. As mulheres, que nessa luta se autodenominaram “o terceiro estado do Terceiro Estado”, lutaram por sua inclusão na nascente cidadania. Pois como mostra a feminista Cristina Molina Petit: “A Ilustração não cumpre suas promessas: a razão não é a Razão Universal. A mulher fica de fora como aquele setor que as luzes não querem iluminar.” 14 Tendo à frente as mulheres da burguesia e das classes médias educadas, seguidas por amplos setores de mulheres do povo, que defendiam ardentemente a Revolução, o movimento era a expressão da contradição flagrante que estava conduzindo o desenvolvimento do capitalismo: a educação e o nível cultural das mulheres burguesas por um lado, e por outro a participação crescente das mulheres dos setores populares na produção, não correspondiam com a discriminação social e legal às quais ambas estavam sujeitas. Juntas, então, em clubes revolucionários, petições e mobilizações, lutaram pelo pão, pelo trabalho e por seus direitos civis. Da mesma maneira o fizeram as diferentes classes sociais “para acertar contas radicalmente com os senhores do passado” 15. 14 15

Cristina Molina Petit, Dialéctica feminista de la Ilustración, Madrid, Anthropos, 1994. León Trotsky, Resultados y perspectivas: las fuerzas motrices de la revolución, Bs. As., Ed. Cepe, 1972

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A gigantesca soma de esforços foi necessária para estabelecer a unidade da nação e subleva-la contra o despotismo feudal. Como diz León Trotsky em sua análise comparada das grandes revoluções,

a grande Revolução Francesa é, de fato, uma revolução nacional. Mais do que isso: aqui se manifesta em sua forma clássica a luta mundial da ordem social burguesa pelo domínio, pelo poder e pela vitória indivisa dentro do marco nacional.16

Arrastando consigo as massas populares, a burguesia se desfez da aristocracia em um gesto revolucionário sem precedentes. Mas a conquistada “igualdade” dos cidadãos frente ao Estado é expressão do domínio burguês que, no entanto, nega ou oculta que a sociedade está integrada por classes sociais estruturadas de maneira antagônica. Já nos tempos da Revolução Francesa, o jacobino Chaumette declarava: O indigente não obteve com a Revolução mais que o direito a reclamar de sua pobreza.17

Por isso a unidade entre as classes dirigida pela burguesia revolucionária, que na época permite constituir um movimento enormemente progressivo para o conjunto da sociedade, acabando com a nobreza e com a aristocracia, se tornará seu contrário, ao longo da história da luta de classes e, portanto, também ao longo do desenvolvimento do feminismo do século XIX até os nossos dias. O antagonismo de classes e o enfrentamento, inclusive entre distintas burguesias nacionais em 16 17

Idem.

Pierre Chaumette (1763-1794), revolucionário francês. Formou parte da comuna insurrecional que se constituiu em 9 de agosto de 1792 e foi um dos organizadores da insurreição contra os girondinos. Atacado por Robespierre por seu ateísmo e suas posições políticas radicalizadas, foi o inimigo mais encarniçado dos proprietários e dos ricos.

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ocasião das guerras mundiais, dividirão permanentemente os movimentos de libertação das mulheres e daí por diante, mostrando que a perspectiva de classe não pode estar ausente quando lutamos contra a opressão patriarcal. No final do século XVIII, quando as massas populares participaram do movimento revolucionário dirigido pela burguesia contra a nobreza, as mulheres dos bairros operários foram as que centralmente se mobilizaram pelo pão, enquanto as mulheres instruídas das classes médias e da burguesia legitimavam suas reivindicações de liberdade por meio de folhetos, proclamações, petições e organizações que defendiam sua posição acerca da necessidade da igualdade de direitos. Enquanto as mulheres pobres se mobilizavam contra a carestia, eis que surgia o feminismo como fenômeno político e ideológico, reivindicando os direitos civis e políticos para as mulheres em igualdade com os homens — independência da tutela do marido, acesso à educação, direito à participação política etc. Ainda que as idéias propostas pelos setores mais liberais não fossem sentidas pela maioria das mulheres do povo, não obstante a ideologia patriarcal da classe dominante havia instalado uma contradição que até hoje não tem resolução: considerando-as as principais responsáveis pela alimentação cotidiana da família, empurraram as mulheres dos setores populares — principalmente na França e na Inglaterra — a participar, e muitas vezes dirigir, as taxações populares e os motins pelo pão. Essas primeiras revoltas e a participação nas lutas revolucionárias possibilitaram às mulheres dos setores populares a experiência da ação social e política coletiva, rompendo o cerco do lar. Junto à crítica ilustrada de um setor de mulheres burguesas e instruídas, a uma política masculina e burguesa que excluía dos diretos civis até mesmo as mulheres da classe dominante, serão experiências que não transcorreram em vão, o que demonstrará o transcurso do século XIX.

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Burguesas e proletárias “Se a nação francesa não mais fosse composta por mulheres, que nação terrível seria.”

Correspondente da Times em Paris, 1871

MÁQUINAS A VAPOR, TEARES E MULHERES Desde meados do século XVIII até meados do século XIX, nos países europeus mais desenvolvidos persiste a produção artesanal, se expande a modalidade de trabalho por tarefa realizada pelos trabalhadores, fundamentalmente pelas mulheres operárias em seus próprios lares (manufatura doméstica), desenvolvendo rapidamente a indústria têxtil, sobretudo a do algodão. As mulheres casadas e as solteiras encontraram espaço na produção doméstica e nas primeiras fábricas de tecidos, bem como no serviço doméstico e na agricultura. Para além da poderosa tendência à proletarização das mulheres durante o período, algumas historiadoras, como Joan Scott, advertem que a mulher trabalhadora foi produto da revolução industrial, não tanto porque a mecanização lhes gera trabalhos onde antes não havia (ainda que, sem dúvida, esse foi o caso em certas regiões), mas porque em seu transcurso, converteu-se em uma figura problemática e visível.1

1

Joan Scott, “La mujer trabajadora en el siglo XIX” em Historia de las mujeres en Occidente, de G. Duby y M. Perrot; Barcelona, Taurus, 1994.

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Ou seja, ainda que anteriormente houvesse mulheres trabalhando no campo, em setores do artesanato e no serviço doméstico, com a revolução industrial a categoria de “mulher trabalhadora” instala-se como tema de discussão da ciência, política, religião, educação etc. Figura problemática também porque sua simples existência questionava a idéia de feminilidade da ideologia patriarcal dominante e projetava um dilema entre o “dever ser” de sua feminilidade e o trabalho assalariado, marcando a ferro e fogo oposição antagônica entre o lar e a fábrica, a maternidade e a produtividade, os valores tradicionais e a modernidade imposta pelo capital. A “mulher trabalhadora” dá início a profundos debates entre os que defendiam o seu direito à inserção na produção social e os que desestimavam a participação com argumentos baseados em posições libertárias e profundamente sexistas. Os socialistas revolucionários também fizeram eco das contradições que criava o capital sobre a mulher e a família. Marx, por exemplo, defendia em O Capital: A maquinaria, ao tornar inútil a força do músculo, permite o emprego de operários sem força muscular ou sem o condicionamento físico completo, que possuam, por sua vez, grande flexibilidade em seus membros. O trabalho da mulher e da criança foi, portanto, o primeiro grito da implementação capitalista da maquinaria. Deste modo, aquele instrumento gigantesco criado para eliminar trabalho e operários, se convertia imediatamente em meio de multiplicação do número de assalariados, colocando todos os indivíduos da família operária, sem distinção de idade ou de sexo, sob a dependência imediata do capital. Os trabalhos forçados a serviço do capitalista chegaram para invadir e usurpar, não apenas o lugar designado às brincadeiras infantis, como também ao posto do trabalho livre dentro da esfera doméstica, rompendo com as barreiras morais, invadindo a órbita que envolve o próprio lar. 2 2

Karl Marx, El Capital, México, F.C.E., 1992.

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B URGUESAS E PRO LETÁRIAS

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As cifras falam por si mesmas frente ao novo fenômeno da força de trabalho feminina. Por exemplo, entre 1851 e 1861 trabalhavam, aproximadamente, 25% das mulheres britânicas. Desse elevado número, a maioria pertencia à classe operária e ao campesinato. O censo de 1851 indica que, em Londres, havia mais de 140 mil mulheres maiores de 20 anos trabalhando como serventes, 125 mil na confecção de vestidos e sapatos, 11 mil professoras e 9 mil trabalhavam na indústria da seda. Em sua análise magnífica do sistema capitalista, Marx constata:

Por oposição ao período manufatureiro, o plano da divisão do trabalho agora baseia-se no emprego do trabalho da mulher, do trabalho de crianças de todas as idades, de operários não qualificados, sempre e quando factível; em uma palavra, de trabalho barato, ‘cheap labour’ como chamam os ingleses. Isto não só em toda a produção combinada em grande escala, empregando ou não maquinaria, mas também na dita indústria doméstica, ocorrendo o mesmo nas casas dos próprios operários que abrigam pequenas oficinas. Esta chamada indústria doméstica moderna não tem mais que o nome em comum com a antiga, que pressupunha a existência de um artesanato urbano independente, de uma economia rural também independente e, sobretudo, de um lar operário. A indústria doméstica se converte em uma prolongação da fábrica, da manufatura ou do bazar. Além dos operários fabris, dos operários das manufaturas e dos artesãos, concentrados no espaço e postos colocados sob sua tutela direta, o capital passa a se movimentar por meio de fios invisíveis, outro exército de operários, disperso nas grandes cidades e no campo.3

Desde 1802, com a Lei de Fábricas promulgada pelo Parlamento inglês, as relações de trabalho foram regulamentadas, especialmente das crianças e das mulheres. Segue-se 3

Idem.

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uma série de leis em todo o continente que, em meados do século, já estabeleciam limite de doze e, em alguns casos, de dez horas por jornada de trabalho; proibiam o trabalho noturno e aos sábados à tarde, bem como os realizados em lugares particularmente perigosos. Também foram estabelecidas normas sanitárias, higiênicas e de segurança. Mas logo, a partir da década de 1890, as mulheres ascenderam aos cargos de inspetoras de fábricas, podendo controlar por elas mesmas o cumprimento dessas normativas supostamente ao seu benefício. AS TRABALHADORAS SE ORGANIZAM PARA LUTAR Do ponto de vista da organização das trabalhadoras, é preciso ressaltar que, já em 1788, as tecelãs manuais de Leicester conformaram na Inglaterra uma irmandade clandestina que utilizava a destruição das máquinas de fiar como forma de protesto. Essas mulheres mais tarde se filiaram ao sindicato de tecelões de Manchester, constituído principalmente por homens, participando conjuntamente de uma greve em 1818. Depois foram expulsas do sindicato, pois segundo os documentos testemunhais do grêmio, algumas delas “se negavam a respeitar as normas”. Em 1874 surge a Women´s Trade Union League 4, que contribui com a fundação de mais de 30 sindicatos de mulheres. Se as mulheres se organizaram de maneira independente dos homens, isto ocorre não tanto por inspiração feminista, mas porque grande parte dos sindicatos tratava de proteger os empregos e os salários de seus afiliados, mantendo as mulheres por fora de suas organizações e, inclusive, lutando contra sua incorporação ao mercado de trabalho. Para explicar a atitude dos dirigentes sindicais quanto à inserção das mulheres 4

Liga dos Sindicatos de Mulheres (N. da A.)

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na produção, bastam as palavras do sindicalista Henry Broadhurstque. Ele disse, no Congresso de Sindicatos Britânicos de 1877, que os membros das respectivas organizações tinham o dever como homens e maridos, de dedicar todos os seus esforços para manter as condições para que suas esposas se mantivessem em sua esfera própria no lar, ao invés de serem impelidas a competir por sua subsistência com os homens grandes e fortes do mundo.5

As mulheres, pelos baixos salários que lhes eram impostos, constituíam mais uma ameaça do que um potencial aliado para os homens trabalhadores. Esse foi, historicamente, o papel que a classe patronal destinou às mulheres trabalhadoras: convertêlas em exército que pressione objetivamente contra os interesses dos homens trabalhadores, competindo com seus salários mais baixos pelas mesmas tarefas, tendendo ao rebaixamento dos salários do conjunto da classe, chegando a ameaçar diretamente a força de trabalho masculina com o desemprego. Não obstante, apesar de serem exploradas pela patronal, oprimidas socialmente e abandonadas pelas mais importantes organizações sindicais, as mulheres operárias protagonizaram verdadeiros acontecimentos da luta de classes do século. Dentre as principais lutas, podemos citar os motins de Nottingham de 1812, pelo afixamento do preço da farinha; a greve dos operários de Lyon, que tornam as sedas ovais, dirigida por Philomène Rosalie Rozan; a greve das operárias que fabricam fósforos de Londres de 1888, organizada por fora dos sindicatos masculinos, na qual conseguiram impor suas reivindicações; a greve das tipógrafas de Edimburgo, que em um panfleto intitulado “Nós, as mulheres”, clamaram por seu direito a imprimir em nome 5

Henry Broadhurst, “Discurso ante el Congreso de Sindicatos Británicos (1877)”, citado por J. Lewis em Women in England, 1870-1950: Sexual divisions and social change, London, Wheatsheaf Books, 1984.

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da igualdade entre os sexos e a famosa greve das operárias têxteis de Nova Iorque, de 8 de março de 1857, duramente atacada pela polícia e que deu origem, décadas mais tarde, à comemoração do Dia Internacional da Mulher, como abordamos na introdução. No início do século XX ainda não se vislumbravam grandes mudanças nas miseráveis condições de trabalho e de existência das operárias. As lutas proletárias de maior destaque no continente americano, protagonizadas por mulheres remetem aos primeiros anos deste século. Exemplo é a experiência de greve das operárias têxteis nova-iorquinas de 1909, que também citamos na introdução. Naquele ano, as condições desumanas de trabalho levaram 30 mil operárias têxteis de Nova Iorque à greve. Muitas delas eram apenas adolescentes, o que fez com que ficasse conhecida como “a greve das meninas”. Uma de suas dirigentes, Clara Lechmil, tinha apenas 23 anos quando lançou a consigna “Se não for agora, então quando?”, recebendo gritos e aplausos de aprovação na reunião do sindicato do qual fazia parte. Em 23 de novembro, Clara incitou suas companheiras com estas palavras: “Estou cansada de tanto falar. Já que sou uma das que sofrem com estas condições, voto pela greve geral”. Rapidamente a greve teve a adesão de 40 mil trabalhadoras, mesmo sendo somente mil afiliadas ao sindicato. Nos cinco dias que se seguiram, o sindicato incorporou 19 mil novas filiadas.6 A polícia reprimiu duramente as operárias desde o primeiro dia de greve, inclusive quando reivindicaram o pagamento dos dias parados. À medida que a greve avançava, a opinião pública fez com que a polícia se retirasse parcialmente dos piquetes. Um dos momentos mais importantes desta luta das trabalhadoras têxteis foi a mobilização de 3 de dezembro diante da prefeitura da cidade, pela retirada da polícia das ruas. Mas nessa mesma marcha a repressão torna a acontecer, ferindo as mulheres que 6

Artigo da época, publicado no jornal New York Times, que faz referência a esta greve, está entre os documentos anexos ao final deste trabalho.

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dirigiam a manifestação. Finalmente, após os acontecimentos, a polícia limita seu operativo. A greve despertou enorme solidariedade dos estudantes e de toda a comunidade; os jornais acompanharam o dia-a-dia dos acontecimentos. Segundo relatos dos jornais da época, nos piquetes dos grevistas a maior parte do tempo transcorria entre canções revolucionárias e de vitória, a maioria em russo, pois grande parte das operárias era imigrante desse país. Porém, não seria possível entender a magnitude da greve sem saber que, segundo censo de 1905, havia 70.242 trabalhadoras que fabricavam roupa de mulher, das quais 40.077 se concentravam na cidade de Nova Iorque. Destas, 31% cobravam menos de seis dólares por semana. A diferença de salários entre homens e mulheres trabalhadoras era um abismo: enquanto 45% das mulheres da indústria recebiam salário estimado em 6 ou 7 dólares por semana, entre os homens o montante era de 16 a 18 dólares. Estas e muitas outras lutas heróicas deixaram gravados na História nomes como Mama Jones, que organizou por quase 50 anos os mineiros dos EUA; Tia Molly Jackson, também destacada dirigente sindical norte-americana; Annie Bessant, dirigente da greve das operárias fabricantes de fósforos; Jean Deroin e Pauline Roland, que construíram uma Federação de Associações Operárias com adesão de 104 organizações7, 7

Jean Deroin (1805-1894) se ligou em um primeiro momento ao saintsimonismo, depois de Fourier e Cabet (socialistas utópicos). Colaborou com o jornal A voz das mulheres, criou o Clube de Emancipação das Mulheres e lutou pela igualdade de direitos. Em 1849 apresenta ilegalmente, sua candidatura à Assembléia Legislativa com a simpatia dos operários. Com Pauline Roland funda a Associação de Institutores e Institutrices Socialistas, na tentativa de federar as associações operárias na União de Associações para lutar contra o capitalismo e chegar a uma sociedade socialista pela via pacífica. Por essa tentativa, ambas as mulheres foram condenadas a seis meses de prisão. Finalmente, teve que exilar-se em Londres, onde faleceu. Pauline Roland (1805-1852) também foi discípula dos saintsimonianos. Era contra o matrimônio e

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escrava Isabel8, Elizabeth Gurley Flynn9, Clara Lechmill e Louise Michel, uma das mais inflamadas heroínas da Comuna de Paris, de quem falaremos mais à frente. INCENDIÁRIAS E SENHORAS DE SOMBRINHA Entre as mulheres da classe operária brilha o nome de Louise Michel. Sua biografia ilustra a vida das mulheres lutadoras da época. Nasceu em 1830, filha de uma servente. Recebeu educação e se tornou professora. Em 1869 foi secretária da Sociedade Democrática de Moralização, tendo por finalidade ajudar os trabalhadores. Durante a Comuna de Paris,

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considerava que a libertação da mulher não podia se desligar da luta do proletariado por sua emancipação. Sob o Império, foi acusada de participar na resistência ao golpe de Estado e foi condenada à deportação na Argélia. Por intermédio de George Sand e de Béranger, foi perdoada meses depois, mas faleceu em Lyon, em seu retorno à França, por motivo de doença e necessidades. Conhecida como Sojourner Truth (a Verdade Ambulante), em uma ocasião, respondendo a um orador que havia ridicularizado as mulheres — afirmando que por serem débeis e indefesas, não mereciam o direito ao voto —, ela, que havia sido escrava, subiu no estrado e proclamou: “Os homens afirmam que a mulher precisa de ajuda para subir em um veículo, que é necessário levá-la nos braços para atravessar a rua e que há que ceder-lhe o melhor lugar. Ninguém jamais me ajudou a subir em um veículo, nem a atravessar a rua, nem me ofereceram o melhor lugar e por acaso não sou uma mulher? Vejam os meus braços! Arei, plantei e recolhi a colheita e não há homem que possa fazê-lo melhor. Por acaso não sou uma mulher? Pude trabalhar como um homem, e comi como um homem quando tinha o que comer. Também pude suportar o chicote como eles! Por acaso não sou uma mulher?” Elizabeth Gurley Flynn tinha só 22 anos quando foi enviada pela Industrial Workers of the World para substituir os ativistas presos durante a greve de Pão e Rosas, protagonizada pelas operárias e operários têxteis de Massachusetts. Aos 16 anos, fez seu primeiro discurso, intitulado “O que o socialismo há de fazer pelas mulheres”. Era reconhecida por sua política de defesa operária, sua militância a favor dos presos políticos e sua luta pelos direitos das mulheres, como a igualdade salarial, o direito ao voto e as campanhas pelo controle da natalidade.

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impulsionou o Clube da Revolução e suas milícias armadas. Quando a Comuna foi derrotada, entre milhares de combatentes mortos, deportados e fuzilados, Louise Michel foi condenada a dez anos de exílio. No julgamento sumário que a condenou, declarou:

Pertenço por inteiro à Revolução Social. O que peço de vocês, que se dizem o Conselho de Guerra, que se dizem meus juízes, que não negam constituir a Comissão de Graça, é o campo Satory, onde pereceram nossos irmãos. Terão que me excluir da sociedade se lhes disserem que o façam. Pois bem, o Comissário da República tem razão. Posto que, ao que parece, todo coração que bate pela liberdade não tem mais direito que a um pouco de chumbo, clamei pela minha parte! Se vocês me deixarem viver, não deixarei de clamar por vingança e denunciarei, em justiça aos meus irmãos, os assassinos da Comissão de Graça.10

Deportada à colônia francesa de Nova Calcedônia, colaborou com os que lá lutavam pela independência política. Dois anos após o seu regresso à França, em 1881, foi processada por organizar uma manifestação de desempregados que culminou na expropriação de comércios. Diz-se que nessa ocasião Louise levava, pela primeira vez, um estandarte negro, cor depois apropriada como símbolo de luta pelos anarquistas. Por essa manifestação obteve nova pena de seis anos. Morreu em 1905, enquanto dava uma conferência para trabalhadores em Marselha. Sua vida é exemplo de heroísmo e devoção à luta contra a exploração. Mas Louise não foi a única mulher que participou valentemente nas memoráveis jornadas da Comuna de Paris de 1871. Quando as forças inimigas do exército prussiano cercaram Paris a fome obrigou a cidade a se render, após um longo sítio, em 28 de janeiro de 1871. Duas semanas mais tarde, a Assembléia Nacional Francesa votou a favor da paz. O povo 10

Louise Michel, Mis recuerdos de La Comuna, México, Século XXI, 1973.

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parisiense denunciou então a Assembléia reacionária que concertara uma paz humilhante para a nação francesa e a Guarda Nacional Parisiense se negou a entregar as armas. Então, a Assembléia, diante da rebeldia de seu próprio exército e do povo de Paris, se mudou para Versalhes com o intuito de submeter, desde aí, a capital rebelde. A rebelião do povo de Paris instalou, em 18 de março de 1871, um poder revolucionário comunal e exortou o resto dos municípios franceses a imitar seu exemplo e a unir-se em uma federação. Alçando uma bandeira de cor vermelha no mastro do ajuntamento, o primeiro governo operário e popular da História em pouco tempo decretou a separação da Igreja do Estado, a revogação de todos os cargos do governo, o comprometimento dos parlamentares a não receberem mais que o salário de um trabalhador e a igualdade de direitos para as mulheres. Enquanto isso, Adolphe Thièrs, eleito chefe do poder executivo, acelerou o ataque contra os rebeldes com o aval dos prussianos. A resistência da gloriosa Comuna de Paris só se quebrou após semanas de lutas sangrentas, que desencadearam atrozes represálias e custaram entre 10 e 20 mil vidas, convertendo-se em uma das repressões mais cruéis registradas pela História. Valiosas mulheres participaram ardentemente da Comuna, empunhando armas, resistindo contra as tropas de Thièrs e dos prussianos, até que a derrota lhes impôs a morte em combate ou as deportações e os fuzilamentos. Os jornais da época descrevem as communards com palavras como estas: Uma delas, de 19 anos, portando um fuzil, se bateu como um “demônio”, ou, por exemplo, “vi uma jovem filha vestida de guarda nacional marchar com a cabeça erguida entre os prisioneiros cabisbaixos. Esta mulher, grande, seus longos cabelos loiros pairando sobre suas costas, desafiou a todo o mundo com um olhar.”11

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Publicado na revista Time, durante os acontecimentos. Em Le Site de la Commune de Paris (1871),

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Eram trabalhadoras, mulheres dos bairros populares, pequenas comerciantes, professoras, prostitutas e “suburbanas”. As mulheres se organizaram em clubes revolucionários, como o Comitê de Vigilância das Cidadãs ou a União de Mulheres para a Defesa de Paris, da mesma maneira que outrora fizeram as mulheres na Revolução Francesa de 1789. Diferentemente das mulheres que participaram da Grande Revolução, desta vez, é que as que assim o quiseram, contaram com as armas que os proletários parisienses não lhes negaram, como haviam feito os revolucionários burgueses.12 Em um interessante trabalho de investigação sobre a Comuna de Paris, o brasileiro Sílvio Costa destaca os nomes de uma multiplicidade de mulheres que participaram em diferentes organizações e tarefas revolucionárias.

Dentre as mulheres deste período, a mais conhecida foi a ativista socialista Louise Michel, fundadora da União de Mulheres para a Defesa de Paris e de Apoio aos Feridos e membro da Primeira Internacional. Também se destacam Elizabeth Dimitrieff, militante socialista e feminista; André Leo, responsável pela publicação do jornal La Sociale; Beatriz Excoffon, Sophie Poirier e Anna Jaclard, militantes do Comitê de Mulheres para a Vigilância; Marie-Catherine Rigissart, que comandou um batalhão de mulheres; Adélaide Valentin, que chegou ao cargo de coronel e Louise Neckebecker, capitã da companhia; Nathalie Lemel, Aline Jacquier, Marcelle Tinayre, Otavine Tardif e Blanche Lefebvre, fundadoras da União de Mulheres, sendo a última executada multitudinariamente pelas tropas reacionárias e Joséphine Courbois, que lutou em 1848 nas barricadas de Lyon onde era conhecida como a “rainha das barricadas”. Deve-se citar ainda Jeanne Hachette, Victorine Louvert, Marguerite Lachaise, Josephine Marchais, Leontine Suétens e Natalie Lemel.13

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O texto original de uma proclamação do Comitê de Cidadãs está entre os documentos anexos no final deste trabalho. Silvio Costa, Comuna de Paris: o proletariado toma o céu de assalto, São Paulo, Ed. Anita Garibaldi, 1998.

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São apenas alguns nomes das centenas de mulheres que, anonimamente, engrossaram a lista de mártires da causa proletária mundial como vítimas da repressão burguesa. Muitas mulheres capturadas depois da derrota foram acusadas de “incendiárias”. Nas palavras de um historiador do período: Algumas fontes fazem alusões às incendiárias, les pétroleuses, que atearam fogo a edifícios públicos durante a Semana Sangrenta final da Comuna. Estas histórias parecem ser fruto do alarmismo antifeminista de inspiração governamental e a maioria dos correspondentes estrangeiros presentes não acreditava nelas. Não obstante, as tropas governamentais executaram centenas de mulheres de maneira sumária, e algumas, inclusive, foram torturadas até a morte, por serem suspeitas de ser pétroleuses. Contudo, apesar do fato de que, mais tarde, muitas outras mulheres foram acusadas de ser incendiárias, os conselhos de guerra não encontraram nenhuma culpada desse delito. Sem dúvida, há provas que indicam que, durante os últimos dias, as mulheres agüentaram mais tempo nas barricadas que os homens.14

Como não é difícil perceber, a unidade com as mulheres burguesas nas barricadas era impossível. Duas classes se enfrentavam abertamente e as mulheres se alinharam segundo seus interesses de classe em um ou outro lado da linha de fogo. Em Paris, operários e operárias resistiram ao selvagem e vergonhoso ataque do exército comandado pela burguesia francesa, com a qual colaborou o até então inimigo prussiano, libertando os prisioneiros de guerra para que se alistassem e combatessem contra o próprio proletariado francês em armas. As mulheres e os homens da burguesia que fugiram de Paris frente ao poder operário que se erguia, pondo em xeque os seus privilégios de classe, colaboraram como agentes e informantes do governo repressor. Quando sobreveio a derrota dos heróicos 14

Allan Todd, Las revoluciones. 1789-1917, Madrid, Alianza, 2000.

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communards, as mulheres da burguesia retornaram ao lar e passearam pelas ruas de Paris, com louvor pelo retorno da “ordem”, molhando — segundo algumas gravações da época — a ponta da sombrinha no sangue ainda fresco dos homens e mulheres que, tragicamente, se converteram em mártires. Eis que no século XIX as contradições que apareciam em gérmen durante o século anterior desabrocham em toda a sua dimensão. O proletariado demarca sua entrada na História como classe bem diferenciada, que se rebela contra a exploração selvagem do capital. Como demonstraram essas lutas, entre as centenas de greves, motins, sabotagens e revoltas do movimento operário do século XIX, a História deste século é a da desintegração da frente única entre burgueses e proletários, que juntos lutaram contra o clero e a aristocracia, constituindo os modernos Estados capitalistas. Em 1830, com a primeira crise econômica do século, propagaram-se a miséria e o descontentamento, o que constituiu um dos pilares da revolução social, que se estendeu por todo o continente europeu, dando origem a uma onda de revoluções que ficaram conhecidas como as revoluções de 1848. A contradição de interesses e o antagonismo entre as classes se impõem pela primeira vez na História com toda a magnitude. O proletariado, outrora aliado da burguesia contra o absolutismo feudal, se transformou abertamente em potencial inimigo. A burguesia, acovardada pelo temor que inspira o proletariado em armas, já se revela impotente para levar a cabo sua missão histórica: No ano de 1848, a burguesia já era incapaz de cumprir um papel comparável [ao de 1789]. Não era suficientemente disposta nem audaz para assumir a responsabilidade da eliminação revolucionária da ordem social que se contrapunha à sua dominação. Entretanto, pudemos constatar o porquê. Sua tarefa consistia — disso tinha a mais clara consciência — em incluir no velho sistema garantias necessárias, não para sua dominação política, mas

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simplesmente a uma repartição do poder com as forças do passado. A burguesia havia tirado algumas lições das experiências da burguesia francesa: estava corrompida pela sua traição e amedrontada por seus fracassos. Não apenas tratava muito bem de empurrar as massas ao assalto contra a velha ordem, mas buscava um apoio na velha ordem, com o intuito de rechaçar as massas que empurravam-na à frente.15

Esse rechaço contra as massas se transformou em rios de sangue na Comuna de Paris e já não havia como voltar atrás. No novo período histórico que se perfilava no horizonte, tal como descrevem diversas autoras, tanto nas lutas como nas novas formas de organização social, as mulheres trabalhadoras e dos setores populares constituíram uma vanguarda importante entre essas massas, que “empurravam à frente” uma luta na qual enfrentavam outras mulheres que haviam sido, outrora, suas aliadas.

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León Trotsky, Resultados y perspectivas: las fuerzas motrices de la revolución, Bs. As., Cepe, 1972.

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Entre a filantropia e a revolução “A lei que escraviza a mulher, privando-a de instrução, oprime também a vós, homens proletários. A vós, operários, que sois concretamente as vítimas da desigualdade e da injustiça, cabe a vós, pois, estabelecer enfim sobre a terra a primazia da justiça e da igualdade absoluta entre o homem e a mulher. Será obra dos proletários franceses proclamar os direitos da mulher, como fora tarefa dos homens de 1789 a proclamação dos direitos do homem.” Flora Tristán

DIREITO AO VOTO OU BENEFICÊNCIA? Pela agudização do antagonismo de classes, sobre o qual nos referimos no capítulo anterior, a frente de luta das mulheres por seus direitos se divide em duas grandes tendências. Enquanto as mulheres pertencentes às classes dominantes se rebelavam contra a desigualdade de direitos formais sobre os homens de sua mesma classe — mas apenas em poucas ocasiões se solidarizavam com as mulheres das classes subalternas —, as mulheres pertencentes à classe operária e setores populares impulsionavam, fundamentalmente, as lutas de sua classe pela obtenção de seus direitos e, nesse marco, reivindicavam seus direitos como mulheres.1 A primeira tendência se expressou 1

“Particularmente nos EUA, as demandas por igual direito ao sufrágio para as mulheres brancas foi defendido pela direção feminista sobre o

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organicamente em associações liberais, democráticas e sociedades filantrópicas. A segunda, em organizações socialistas utópicas e nos movimentos sociais do século XIX, fundamentalmente protagonizados pela crescente classe operária. Não obstante, apesar das diferenças entre os distintos grupos e setores sociais, dos diversos postulados e reivindicações, podemos enfatizar que a questão da mulher estava à luz do dia, convertendo-se em tema de grande repercussão na vida social da época. Tal como afirma uma especialista na história das mulheres: A repetida irrupção dos feminismos, da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial, sua imprensa e suas associações, suas táticas e suas alianças, suas reivindicações e as hostilidades que provocam na Europa e nos Estados Unidos, são testemunhos de que neste século “a questão da mulher” se converte em objeto de amplíssimas discussões públicas e no terreno de luta em muitos grupos sociais e políticos. 2

O movimento que tinha como protagonistas as mulheres das classes dominantes foi denominado por distintas especialistas como “feminismo burguês”. Essas mulheres, majoritariamente identificadas com a luta pelos direitos civis — particularmente o direito ao voto — ou com lutas reformistas pelo bem-estar das mães solteiras, a educação para as jovens etc, impulsionaram uma florescente imprensa feminista e inúmeras associações que denunciavam, centralmente, as desigualdades no âmbito familiar e conjugal, como o direito de decisão do marido em

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pretexto de que, assim como os homens negros não tinham direito ao voto, tampouco não o tinham as filhas brancas da burguesia (usado como um argumento humilhante). Seu racismo e o apoio que muitas de suas líderes deram à continuação da escravidão fizeram delas declaradas inimigas da classe operária.” (Guia Nº. 11, League for a Communist Revolutionary International, 1995). Ana María Kappeli, “Escenarios del feminismo” em Historia de las mujeres de Occidente, op. cit.

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todos os assuntos da vida familiar, a pátria potestad *, o direito de administração do marido sobre a propriedade de sua esposa etc. Outros motivos de repúdio eram as injustiças às quais se viam submetidas as mães solteiras e seus filhos, o negado acesso à educação superior, ao sufrágio e à elegibilidade política. Inclusive, ainda que não fossem demandas específicas do setor social ao qual pertenciam as mulheres integrantes do movimento, duas entre as reivindicações mais importantes foram o direito a salário igual pelo mesmo trabalho e a demanda pelas leis de regulamentação da prostituição. Os movimentos filantrópicos, como a Associação de Jovens Cristãs e a União de Temperança de Mulheres Cristãs, acentuaram, essencialmente, a luta pela educação das jovens, a qualificação profissional, alojamento para mulheres solteiras e outras obras de beneficência, muitas vezes acompanhando suas ações com uma forte mensagem evangelizadora. Suas reivindicações e pressões foram fatores que possibilitaram o estabelecimento da obrigatoriedade do ensino primário para ambos os sexos em toda a Europa. Como um dos ritos fundacionais do período e do amplo e extenso movimento feminista, podemos citar a Convenção de Seneca Falls (EUA), realizada em 1848, na qual se lançou a campanha pelo sufrágio feminino.3 Também em meados do século XIX, na Inglaterra, foram criadas associações femininas que apoiaram a candidatura de Stuart Mill, um defensor dos direitos civis das mulheres. Em 1884, a francesa Hubertine Auclert, fundadora do jornal A Cidadã, escreve às feministas norte-americanas, pedindo ajuda à luta que levavam adiante as feministas em seu país. O resultado da relação foi a criação do Conselho Internacional da Mulher (ICW), cujo primeiro encontro *

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Pátria potestad é um termo em latim, que no terreno jurídico se refere ao poder do pai sobre o filho. Na Argentina como fim da ditadura a pátria potestad passou a ser compartilhada entre o pai e a mãe. Antes disso toda a decisão relativa ao menor de idade era tomada legalmente pelo pai. Ler a Declaração da Convenção de S. Falls entre os documentos anexos.

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reuniu 66 norte-americanas e oito européias em Washington, em 1888.4 Em apenas um ano de seu primeiro encontro, o ICW convocou uma segunda reunião internacional em Londres, da qual participaram 5 mil mulheres, que representavam 600 mil feministas das diversas seções afiliadas. Já em 1882, Auclert utilizou o termo “feminista” em seu jornal para descrever a si mesma e suas partidárias, um nome que logo se estendeu a todo o movimento. As associações feministas, freqüentemente vincularam suas atividades à luta pela paz internacional e à defesa dos povos oprimidos. Em 1848, quando foi celebrado em Bruxelas o 1º Congresso Internacional pela Paz, participaram inúmeras associações pacifistas, compostas exclusivamente por mulheres, do mesmo modo que muitas organizações feministas também se sentiram convocadas por essa bandeira. Como podemos constatar, as feministas se diversificavam em diversas correntes, com diferentes objetivos. Enquanto algumas baseavam as reivindicações no conceito de igualdade, inspiradas nos ideais revolucionários da classe burguesa — levando, porém, ao extremo a extensão dos direitos civis, no que tange à questão de gênero — outras se assentavam nas especificidades genéricas, recuperando a idéia de feminilidade em suas dimensões físicas, psíquicas e culturais, em uma perspectiva de luta reivindicativa, clamando por reformas ao Estado para o bem-estar das mulheres. Em suas origens, a primeira concepção serviu como fundamento aos movimentos sufragistas. A segunda teve como base o aporte das mulheres à sociedade, especialmente por seu papel maternal, conseguindo importantes melhoras no plano da saúde, da educação e da previdência social. 4

Em uma carta dirigida à norte-americana Susan Anthony, datada de 27 de fevereiro de 1888, a francesa Hubertine Auclert utiliza a palavra “feminista”, respondendo ao convite para participar do congresso de mulheres que finalmente realizou-se em Washington, naquele mesmo ano.

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Segundo algumas autoras, as correntes divergentes desse feminismo burguês do fim do século XIX e início do século XX podem ser denominadas como “individualistas” e “relacionais”. O feminismo “individualista”, que se remete, predominantemente, à cultura anglo-americana, se baseia na luta das mulheres pela existência independente da família, aspirando à emulação de um modelo de indivíduo emancipado que — segundo as detratoras dessa corrente — era um modelo masculino. Esse tipo de feminismo outorgava prioridade política, em sua luta reivindicativa, à igualdade de direitos. Por outro lado, o feminismo “relacional” se baseia no dimorfismo sexual e na idéia de responsabilidades específicas e complementares relacionadas com o dimorfismo, para homens e mulheres. Tais fundamentos constituíram a base para amplas reivindicações no que tange à proteção da maternidade. A contradição paradoxal entre a igualdade como conceito universal (a igualdade de direitos entre os indivíduos de gêneros diferentes, baseada em sua igualdade como seres humanos, membros de uma mesma espécie) e a diferença de gênero no sentido particular da identidade, que pode ser identificado, ainda que de forma embrionária, no feminismo do século XIX, se lançou como uma contradição quase irrecuperável na segunda onda do feminismo da década de 1970, no século XX, como veremos mais a frente. Contudo, a contradição entre igualdade e diferença atravessa as elaborações teóricas e a prática política do movimento feminista dos nossos dias. REFORMA OU REVOLUÇÃO? Sobre o que veio a ser denominado “feminismo operário” ou “feminismo socialista”, podemos diferenciar, por um lado, os setores reformistas, que admitiam a cooperação entre o capital e o trabalho como condição que melhoraria a situação da classe operária e, portanto, do conjunto dos oprimidos — entre eles, as

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mulheres. Por outro, encontramos os socialistas revolucionários, que defendiam que só a supressão da exploração do capitalismo e a construção de outra sociedade podem libertar a classe operária da escravidão assalariada — e com isto, também os grupos que sofram algum tipo de opressão. Entre os primeiros, estamos com os socialistas utópicos, como Saint Simon, Fourier, Cabet, Owen, que reivindicavam a união livre entre os sexos, frente às idéias tradicionais sobre o amor e o matrimônio. Daí, a constituição de falanstérios ou comunidades nas quais se procurava colocar em prática os princípios igualitários. Fourier — considerado por Engels o primeiro a denunciar as condições de opressão vivenciadas pelas mulheres — dizia, aludindo com ironia à hipócrita ideologia burguesa:

O adultério, a sedução, honram os sedutores e são considerados de bom tom… mas, pobre menina! Que crime atroz é o infanticídio! Para preservar a honra, a sociedade obriga a mulher a destruir a evidência da sua desonra; não obstante, quando sacrifica o filho ante os preconceitos da sociedade, esta é considerada mais culpada, sacrificando-a aos perjúrios da lei… Neste círculo vicioso envolve todo o mecanismo da civilização… O que significa a mulher jovem senão uma mercadoria colocada à venda, à espera do primeiro partido que lhe faça uma oferta para se tornar o seu dono exclusivo? Assim como na gramática, duas negações constituem uma afirmação, pode-se dizer que no matrimônio, duas prostituições constituem uma virtude… Os progressos sociais e as mudanças de períodos operam-se na lógica direta do progresso das mulheres rumo à liberdade; e as decadências da ordem social se operam em razão da diminuição da liberdade das mulheres…5

Na segunda metade do século XIX, o socialismo revolucionário entra em cena. A opressão da mulher é contemplada 5

Citado por Marx y Engels em La Sagrada Familia, Barcelona, Akal.

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por essa tendência, como já mencionamos, como uma conseqüência da divisão da sociedade em classes, do surgimento da propriedade privada na História, situação agravada pelo modo de produção capitalista. Marx e Engels defendiam no Manifesto do Partido Comunista, frente as acusações da classe dominante contra os comunistas: Querer abolir a família? Até os mais radicais se indignam com este infame desígnio dos comunistas. Sobre que bases descansa a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. A família, plenamente desenvolvida, não existe para ninguém além da burguesia; mas encontra seu complemento na supressão forçosa de toda família para o proletariado e na prostituição pública.6

Permitimos-nos aqui tomar uma extensa citação do mesmo Manifesto, cujos autores definem claramente qual a posição dos comunistas sobre os filhos e a mulher:

Acusam-nos de querer abolir a exploração dos filhos pelos seus pais? Confessamos este crime. Dizem, porém, que destruímos os vínculos mais íntimos, substituindo a educação doméstica pela educação social. E vossa educação não é também determinada pela sociedade, pelas condições sociais com a qual educais vossos filhos, pela intervenção direta ou indireta da sociedade através da escola etc? Os comunistas não inventaram esta ingerência da sociedade na educação; não fazem mais que modificar o seu caráter e arrancar a educação da influência da classe dominante. As declamações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem os pais com seus filhos, tornam-se mais repugnantes à medida que a grande indústria destrói todo vínculo de família para o proletariado e transforma as crianças em meros artigos de comércio, em meros instrumentos de trabalho. Mas eis que vós, os comunistas, quereis estabelecer a comunidade das

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Marx e Engels, Manifiesto del Partido Comunista, Bs. As., Anteo, 1985.

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mulheres!, grita em coro a burguesia. Para o burguês, sua mulher não passa de um instrumento de produção. Diz-se que os instrumentos de produção devem ser de utilização comum e, naturalmente, não podem por menos pensar que as mulheres terão a mesma sorte. Não suspeitam que isso implica, precisamente, acabar com essa situação da mulher como mero instrumento de produção. Nada mais grotesco, por outro lado, que o horror ultramoral que inspira os nossos burgueses à suposta comunidade oficial das mulheres que atribuem aos comunistas. Os comunistas não têm necessidade de introduzir a comunidade das mulheres, o que quase sempre existiu. Nossos burgueses, não satisfeitos em ter à sua disposição as mulheres e as filhas de seus operários, para não mencionar a prostituição oficial, sentem um prazer singular em traírem-se mutuamente. O matrimônio burguês é, na realidade, a comunidade das esposas. Em suma, pode-se acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade hipocritamente dissimulada das mulheres, por uma comunidade franca e oficial. É evidente, por outro lado, que com a abolição das atuais relações de produção, desaparecerão a comunidade das esposas e o que desta derivase, ou seja, a prostituição oficial e privada.7

Conseqüentemente, com sua prédica, Marx e Engels defenderam, nos sindicatos e na Associação Internacional dos Trabalhadores — mais conhecida como 1ª Internacional —, os direitos políticos e econômicos das mulheres, ainda em enfrentamento aberto contra as posições reacionárias de outras correntes pequeno-burguesas e reformistas que influenciavam setores do proletariado. A corrente do anarco-socialista francês Proudhon, por exemplo, defendia que a mulher tinha apenas dois possíveis destinos: dona de casa ou prostituta e por isso opunha-se à incorporação das mulheres na produção. Marx e Engels também enfrentaram o programa político reformista de Ferdinand Lassalle para o Partido Operário Alemão, no qual, 7

Idem.

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entre outras questões, se rechaçava a inserção da mulher na produção, o que foi combatido por Marx em sua célebre Crítica ao Programa de Gotha.8 Marx e Engels impulsionaram a criação da União de Mulheres, seção feminina da 1ª Internacional, sob a direção de Elizabeth Dimitrieff, enviada como representante dessa organização à Comuna de Paris em 1871. Lá, como vimos, Elizabeth participou ativamente na organização das mulheres em defesa da cidade. Na 1ª Internacional também merece destaque a organizadora sindical inglesa Henriette Law, que foi membro do Conselho Geral. Apesar dos antecedentes, só em 1891, no fim do século, o Partido Social-democrata Alemão inclui em seu programa a igualdade de direitos entre o homem e a mulher. Clara Zetkin organiza a seção feminina do partido e publica o jornal A Igualdade, o mais importante canal de expressão das mulheres socialistas da época. Tornaremos a nos encontrar com essa mulher, quando, no início do século XX, enfrenta a direção e a maioria de seu partido por defender uma postura revolucionária diante da Primeira Guerra Mundial. A PROLETÁRIA DO PROLETÁRIO Com o século XIX e, como símbolo emblemático da luta das mulheres e da classe operária, nasce, em 1803, Flora Célestine Thérese Tristán, filha de um diplomata peruano-espanhol radicado em Paris. Flora foi filha ilegítima, o que a privou do direito à herança com a morte de seu pai, ocorrida quando ainda 8

No Congresso celebrado de 22 a 27 de maio de 1875 em Gotha, se unificaram as duas organizações operárias alemãs existentes no momento: o Partido Operário Social-democrata, dirigido por Liebknecht e Bebel, e a União Geral dos Operários Alemães, organização conduzida por Lassalle, para formar uma única organização, o Partido Socialista Operário da Alemanha.

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era adolescente. A partir desse momento, sua vida mudou drasticamente: de uma posição social elevada passa a viver na miséria, como as classes trabalhadoras. Trabalha como doméstica para uma família burguesa, pois rompe com seu precoce matrimônio. Também trabalhou como babá e dama de companhia. Ambas as experiências, o casamento e o mundo do trabalho, são elementos importantes de sua história que transparecem em sua obra. Com os filhos, foge do marido, farta da embriaguez e dos maus-tratos que ele lhe dispensa. Mais tarde, sua decisão se reafirma quando o marido tenta estuprar sua filha de apenas 12 anos. Em carta à sua filha, escreve: Te juro que lutarei por ti, que te farei um mundo melhor. Tu não serás nem escrava nem pária.9

Segundo sua biógrafa Yolanda Marco:

Ainda que não chegue a formulações semelhantes às do amor livre, Flora é plenamente consciente de que o matrimônio significa a apropriação da mulher pelo homem. Por isso, propunha a liberdade de divórcio e a livre escolha do marido por parte das mulheres, sem que os interesses econômicos dos pais das jovens intervenham no matrimônio. Sem dúvida, para ela, o matrimônio é antagônico ao amor, já que repudia que “as promessas do coração... sejam assimiladas aos contratos que têm por objeto a propriedade”.10

Para Flora Tristán,

o homem mais oprimido pode oprimir a outro ser, que é sua mulher. A mulher é a proletária do próprio proletário.11 9 10 11

Citado por Yolanda Marco na introdução à edição de Feminismo y Utopía, México, Fontamara, 1993. Idem. Flora, Tristán, “Unión Obrera”, en Feminismo y Utopía; México, Fontamara, 1993.

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Ela vê como indissoluvelmente ligadas as tarefas da emancipação da mulher e do proletariado. Por influência do pensamento dos socialistas utópicos, concebe a educação como a chave libertadora dos setores oprimidos. Para Flora, não será possível a emancipação dos operários enquanto as mulheres não tiverem acesso à educação, pois elas, em seu atraso cultural, são as primeiras a impedir que o marido se dedique à luta política ou social. Mas apesar de Flora ter alguns elementos em comum com o pensamento dos socialistas utópicos, suas elaborações estão na metade do caminho entre estes e os socialistas científicos. Para sua biógrafa, Flora Tristán tem em comum com os utópicos o pacifismo, a apelação às classes superiores como meio de mudar a situação da classe trabalhadora e a não incorporação à sua análise da economia política clássica.12

Sem dúvida, seu pensamento é contraditório, pois, ao mesmo tempo, afirma que a emancipação da classe operária será obra dos trabalhadores e só poderá contar com o respaldo de outros setores sociais que também são vítimas dos privilégios da propriedade, aproximando-se das idéias elaboradas pelo marxismo clássico. Outro aspecto em que ela supera o pensamento dos utópicos, se colocando à frente, inclusive de Marx, é no que tange à necessidade de uma organização internacional da classe operária. Sua obra União Operária, publicada em 1843, não só é anterior ao Manifesto Comunista, como também precede em mais de uma década a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, conhecida como a 1ª Internacional. No trabalho, escrito em linguagem que inaugura o estilo agitativo do publicismo operário, Flora defende: 12

Idem.

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Os operários, durante duzentos anos ou mais, junto aos burgueses, lutaram valente e descarnadamente contra os privilégios da nobreza e pelo triunfo de seus direitos. Porém, chegou o dia da vitória, ainda que ficasse reconhecida a igualdade de direitos para todos, de fato, clamaram apenas para eles próprios todos os benefícios e as vantagens desta conquista.13

Para que os direitos da classe operária sejam respeitados, propõe a criação de uma associação de trabalhadores de caráter mundial. Flora foi pioneira na análise da relação entre gênero e classe e na luta pelo internacionalismo proletário. Ela não dissocia a causa da mulher da causa de toda a classe operária. Dirige-se, portanto, ao proletariado, para que liberte as mulheres de sua escravidão milenar, ao mesmo tempo em que se liberta a si mesmo da opressão social da qual padece. Por suas posições políticas e sua luta em favor da emancipação do proletariado e das mulheres, foi reivindicada por Marx e Engels em sua obra A Sagrada Família. A oposição e a indiferença que encontrou em sua luta pelos direitos da mulher e dos trabalhadores levaramna a dizer: Tenho quase todo o mundo contra mim. Os homens, porque peço pela emancipação da mulher, os proprietários porque reivindico a emancipação dos trabalhadores.14

13

14

Idem.

Citada por E. Thomas em Les femmes en 1848, París, P.U.F., 1948.

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“Enquanto durar a guerra, as mulheres do inimigo também serão o inimigo” Jane Misme

MULHERES E NAÇÕES Já mencionamos que no Partido Social-Democrata Alemão — o mais importante da 2ª Internacional —, Clara Zetkin dirigiu a organização das mulheres e também um dos membros que enfrentaram a direção do partido no que tange à Primeira Guerra Mundial. Junto com Clara Zetkin, cabe destacar a presença de uma grande revolucionária chamada Rosa Luxemburgo. Ela considerava, também, que a situação de opressão vivida pelas mulheres poderia se transformar mediante a revolução proletária. Participa com Clara, sua camarada e amiga, da Internacional das Mulheres Socialistas e colabora com o jornal feminino A Igualdade, enquanto elabora também renomados artigos sobre economia.1 Com posição diante da guerra imperialista, oposta pelo vértice à de Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, nos deparamos 1

Rosa Luxemburgo (1870-1919) adere em 1887 ao Partido Socialista Revolucionário, em Varsóvia. Procurada pela polícia, se abriga em Zurique, onde cria laços indissolúveis com o movimento revolucionário. Presa em 1904. Foi presa em diversas ocasiões em Berlim, em Varsóvia

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com as feministas da família Pankhurst. Emmeline Pankhurst e suas filhas, Sylvia e Christabel, que nos primeiros anos do século XX foram as principais porta-bandeiras da luta pelo voto na Inglaterra, lutando também para elevar o nível da educação dos trabalhadores. Em 1904 obtiveram o apoio do Partido Trabalhista, que apresentou projeto de lei a favor do voto feminino no Parlamento, mas foi derrotado. Em 21 de junho de 1908 impulsionaram uma mobilização de 400 mil sufragistas pelas ruas de Londres, dando início a ações diretas. Destruíram caminhões dos correios, vitrines, incendiaram igrejas e comércios e foram presas. Uma de suas seguidoras morreu pisoteada por um cavalo, quando, nas célebres corridas de Derby, se colocou diante do Príncipe de Gales reivindicando o direito ao voto. Emmeline Pankhurst nasceu em Manchester em 1858, em uma família de industriais reformistas, sendo educada em Paris. Casada com um advogado membro de uma sociedade sufragista fundada por Stuart Mill, forjou-se como feminista sufragista. Em 1903, com as filhas Christabel e Sylvia, fundou a União Social e Política das Mulheres, e desde 1905 decidiu pelo emprego de métodos ilegais e violentos para atrair a atenção do público e do poder político. Presa em várias oportunidades, Emmeline impulsionou greves de fome, de sede e de sono em sinal de protesto, e defendeu-se sozinha nos tribunais. e em Breslau. Em 1914 se opõe à guerra e luta para que os socialistas alemães se sublevem diante da política traidora de seus dirigentes. Funda o grupo Spartacus, rompendo com o Partido Social-Democrata Alemão, organização na qual militara até então. Quando eclode a Revolução Russa de 1917, acompanha atentamente o processo, da cadeia, professando admiração e respeito por Lênin e Trotsky, apesar de manter algumas diferenças políticas, essencialmente acerca da idéia de partido. O grupo Spartacus se transforma no Partido Comunista Alemão, com a adesão de Rosa à nova Internacional Comunista. Após as sublevações do proletariado alemão em 1918 e 1919, sangrentamente esmagadas, Rosa se recusa a fugir e é assassinada junto com o revolucionário Karl Liebneckt. Ela tinha apenas 49 anos.

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O direito ao voto era luta abraçada, também, por alguns setores de trabalhadoras. Já em 1901, as operárias de uma fábrica de algodão em Lancashire levantaram a bandeira do direito ao voto, relacionando-a ao fim da discriminação e da exploração, apresentando ao Parlamento um petitório com 29 mil assinaturas. Os proprietários da fábrica de algodão alegavam não pagar salários adequados às mulheres porque não queriam incentivá-las “a sair do lugar que lhes pertencia, em casa, cuidando dos filhos”. A luta das Pankhurst estava, inicialmente, ligada de certo modo às reivindicações das trabalhadoras. Mas a guerra mundial desatada em 1914 transformou a luta de Emmeline Pankhurst, que se colocou a serviço do governo britânico. Diante desse giro político, sua filha Sylvia dela se distancia unindo-se ao socialismo operário. A jovem Sylvia, aos 24 anos, já havia renunciado aos estudos universitários no Royal College, e cumpria sua primeira pena. Em 1911, com apenas 29 anos, publica o primeiro livro, História do movimento das mulheres sufragistas. Já começava a divergir da União fundada por sua mãe, por considerar que estava se distanciando dos princípios socialistas. Com o início da Primeira Guerra Mundial, se aprofundaram as divergências: Sylvia era pacifista e não concordava com o forte apoio que a União deu ao governo britânico na guerra. Ela própria objeta: Quando li o jornal que a senhora Pankhurst e Christabel levavam à Inglaterra para uma campanha de recrutamento, me pus a chorar. Para mim, isso era uma traição trágica ao movimento. (...). Organizamos uma Liga pelos direitos das esposas dos soldados e marinheiros para obter melhores pensões. Também fizemos campanha pelo salário igual (...). Trabalhamos continuamente pela paz, enfrentamos uma dura oposição de velhos inimigos, e lamentavelmente, às vezes de velhos amigos.

O sentimento era justificado: a União Social e Política das Mulheres, que publicava o jornal La Sufragette, substitui o nome de seu veículo de imprensa por La Brittannia, cujo lema

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passou a ser “Pelo Rei, pelo País, pela Liberdade”. Sylvia, ao lado da amiga Charlotte Despard, logo fundou o Women’s Peace Army (Exército de Mulheres pela Paz), e se dedicou com devoção à militância nas fileiras do Partido Trabalhista, no qual publicou um jornal para as mulheres trabalhadoras. As atividades de Sylvia se centraram em percorrer os bairros operários, organizar as mulheres trabalhadoras e lutar por suas demandas. Tudo isso conduziu-a a questionar profundamente a linha que defendia na União Política e Social das Mulheres, dirigida por sua mãe e sua irmã Christabel. Sua irmã aspirava pela total independência dos partidos políticos integrados por homens, e foi uma das que mais exerceu pressão para que o setor dirigido por sua irmã Sylvia se distanciasse definitivamente da União. Evidentemente, a ruptura estava marcada pela polarização social recorrente no país. Entre 1911 e 1914, todos os setores chave do proletariado britânico estavam em greve, ao passo que a burguesia se dispunha a iniciar a guerra imperialista. Em meio à situação, o grupo de Sylvia continuou impulsionando a campanha pelo voto feminino, lutava pelo salário igualitário e mantinha posição pacifista. Posições em enfrentamento absoluto com as da União, que defendia ser preciso suspender as reivindicações setoriais das mulheres para apoiar o governo que embarcara na guerra. Sylvia também apoiou fervorosamente a Revolução Russa de 1917, chegando a visitar a União Soviética, onde conheceu Lênin. A viagem lhe custou uma prisão de cinco meses em seu retorno a Inglaterra, acusada de sedição por seus artigos “prócomunistas”. A influência da Revolução Russa se expressa até mesmo no nome do jornal que dirigia: a partir de julho de 1917 passou a se chamar O encouraçado das mulheres. Sylvia, inclusive, ganhou o apelido de “Pequena Senhorita Rússia”. Em 1918, quando o direito ao voto se ampliou, comportando algumas mulheres maiores de 30 anos, Sylvia denunciou que esse direito, não obstante, era restrito a mulheres proprietárias,

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universitárias etc. E ainda que tenha sido fundadora do Partido Comunista inglês, Sylvia abandonou a militância anos mais tarde, horrorizada com as purgas realizadas pelo regime stalinista contra toda oposição. Na década de 1930, apoiou a revolução espanhola, depois ajudou os judeus perseguidos pelo regime nazista na Alemanha. Faleceu em 1960, sem chegar a ver o ressurgimento do movimento feminista no mundo, no que ficou conhecido como a segunda onda. Recordamos de Sylvia as seguintes palavras:

Queria despertar essas mulheres submergidas entre as massas para que sejam não apenas pessoas mais afortunadas, mas combatentes por si próprias... que se rebelem contra suas terríveis condições, exigindo para si e para suas famílias sua parte dos benefícios da civilização e do progresso.

No início do século XX, estrepitosos estilhaços de vidro e bombas incendiárias mostram ao mundo as radicais mobilizações femininas que pugnavam pelo direito ao sufrágio. Em 5 de julho de 1914, uma grande mobilização sufragista eclodiu em Paris em honra do Marquês de Condorcet, que, como já mencionamos, defendeu a incorporação das mulheres ao direto cidadão em 1790. A mobilização se transformou em poderosa demonstração da demanda pelos direitos políticos das mulheres. Também no mesmo ano, em Londres, marcham 53 mil mulheres pelo direito ao voto. Este movimento, não obstante, é parcialmente derrotado com a declaração da Guerra Mundial. A guerra bloqueia o movimento democrático pela emancipação, que se perfilava em alguns países centrais da Europa, ameaçando se converter em grande movimento feminista igualitarista. Eis que, além dos limites impostos pela repressão e pela censura dos governos embarcados na guerra, a maioria das organizações feministas decidiu participar voluntariamente no serviço à sua pátria, suspendendo suas demandas para cumprir os deveres exigidos pelo patriotismo, dando provas de respeitabilidade a seus

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respectivos governos nacionais. Aquelas que persistiram em seu pacifismo não puderam dar uma saída organizada ao movimento pelo boicote dos nacionalistas belicistas de ambos os sexos. Em 1915 ocorreu o Congresso Internacional pela Futura Paz, em La Haya, do qual participaram feministas pacifistas de diversos países. Foi criado um Comitê Internacional de Mulheres pela Paz Permanente, que envia delegadas a todo o mundo. Na França, porém, a representante eleita é expulsa do Conselho Nacional de Mulheres Francesas sob a acusação de “feminista a serviço de Guilherme” (em alusão ao governo da Alemanha). Enquanto isso, a maioria do movimento feminista mundial se dedicava a contrair empréstimos nacionais, denunciar os desertores e ajudar na campanha por fundos para a guerra.2 Emmeline e sua filha, Christabel Pankhurst, por exemplo, dedicaram-se ao recrutamento de voluntárias. “A situação é grave. As mulheres devem ajudar a resolvê-la”, diziam as pancartistas da impressionante marcha de 17 de julho de 1915, convocada sob o lema “Direito a servir”. A antiga reivindicação do voto feminino transformou-se em arma a serviço da guerra: “Voto nas heroínas, assim como nos heróis”, foi a nova forma de reivindicar esse direito. A mobilização, organizada pelas Pankhurst, com a ajuda do recentemente criado Ministério de Armamento, é símbolo da mais aguda divisão que alcançou o movimento feminista: já não eram burguesas em enfrentamento com proletárias; mas mulheres burguesas de um país em enfrentamento com as mulheres burguesas de outro país, que desse modo rompiam com a curta, porém progressiva tradição internacional do movimento. Lembremos que, até 1914, o feminismo aparecia ainda como movimento internacional que lutava pela reivindicação comum 2

Um cartaz de propaganda britânico pregava: “Joana d´Arc salvou a França. Mulheres da Grã-Bretanha salvai vosso país ao empréstimo de guerra.”

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do sufrágio. O pacifismo, proclamado pelas diversas organizações da internacional feminista, desaparece justamente no momento em que estoura a guerra mundial, o que se transforma em uma prova de fogo para o movimento. Momento em que, além de suspender as reivindicações, as feministas dos países beligerantes rompem alianças internacionais a favor de um nacional-feminismo que exorta as mulheres a servir à pátria, se disciplinando, desse modo, de acordo com os interesses das burguesias nacionais. MULHERES INTERNACIONALISTAS3 Em 1891, quando as mulheres dos países mais avançados começavam a sair às ruas reivindicando o direito ao voto, o Partido Social-Democrata Alemão, um dos mais importantes da 2ª Internacional, pautava em seu programa a igualdade de direitos entre o homem e a mulher. Como observamos, Clara Zetkin foi a organizadora da seção feminina do partido, que reuniu mais de 175 mil mulheres em suas fileiras. Ela cumpriu grande papel no momento crucial da Primeira Guerra Mundial, quando a maioria do Partido Social-Democrata Alemão, indo contra todos os princípios proletários revolucionários, aprovou a participação na guerra na qual milhares de operários se enfrentaram nas trincheiras com outros milhares de operários, rompendo a unidade internacional da classe em uma guerra na qual as burguesias nacionais se enfrentavam umas às outras, por seus próprios interesses. 3

Trata-se de uma reelaboração da conferência realizada no Centro Cultural Rosa Luxemburgo, de Buenos Aires, no mês de outubro de 2003, em ocasião do aniversário da Revolução Russa. A transcrição da conferência foi publicada na íntegra no jornal eletrônico Rebelión , com o título “Uma análise do papel de destaque das mulheres socialistas na luta contra a opressão e das mulheres operárias no início da Revolução Russa”.

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Naquele período, as mulheres se incorporaram à produção em todos os países que participaram da guerra. Em toda a Europa, as mulheres entraram massivamente nas fábricas, nas empresas e nas oficinas do Estado. Não é um dado menor para poder entender, também, o papel das mulheres na Revolução Russa, como veremos mais à frente. Porém, ainda que ascenderam como nunca antes ao mundo da produção, a situação das mulheres durante a guerra foi verdadeiramente insuportável. As jornadas extenuantes de trabalho — inclusive na indústria pesada — que se estendiam aos lares, agravaram a saúde das mulheres e aumentaram os índices de mortalidade. As condições de vida pioraram pela inflação, a escassez e a miséria. A neurose e as doenças mentais se propagaram, em conseqüência das privações, esgotamento e angústia por esposos, filhos e irmãos, que estavam na frente de batalha. O resultado foi que, na maior parte dos países interventores, eclodiram violentos motins de mulheres contra a guerra e a inflação. Em 1915, as trabalhadoras de Berlim organizaram manifestação massiva rumo ao Parlamento contra a guerra. Em Paris, em 1916, as mulheres atacaram lojas e saquearam depósitos de carvão. Em junho de 1916, na Áustria, houve uma insurreição de três dias, na qual as mulheres também começaram a se manifestar contra a guerra e a inflação. Após a declaração de guerra, durante a mobilização das tropas as mulheres se estendiam nos trilhos de trem para atrasar a saída dos soldados. Na Rússia, em 1915, as mulheres instigaram distúrbios que se propagaram de São Petersburgo e Moscou a todo o país. Procurando explicar o levante das trabalhadoras contra a guerra nos principais países e procurando tirar conclusões das lutas para enfrentar a guerra mundial, Clara Zetkin lança um chamado às mulheres socialistas e convoca uma conferência internacional que, de 26 a 28 de março de 1915 4, se reúne em 4

Essa conferência de mulheres socialistas contra a guerra foi realizada seis meses antes da tão conhecida Conferência de Zimmerwald, na

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Berna. Participaram 70 delegadas alemãs, francesas, inglesas, holandesas, russas, italianas e suíças, que discutiram a traição de seu próprio partido que havia decidido participar da guerra. A resolução adotada pela conferência condenou a guerra capitalista sob a consigna de “guerra à guerra”. Depois, presa e doente do coração, Clara Zetkin já não pôde mais intervir ativamente na luta. Após a proibição do uso da palavra em público em 1916, é expulsa do Partido SocialDemocrata Alemão, e com outros 20 mil militantes formam um grupo que se opõe à linha majoritária da social-democracia alemã. A conferência de Berna é a terceira organizada por mulheres socialistas. As anteriores, de Stuttgart em 1907 e de Copenhague em 1910, se pronunciaram pelo sufrágio feminino, em defesa da qual a ala revolucionária da 2ª Internacional se pronunciou contra a guerra imperialista, frente à traição de seu partido mais importante, o Partido Social-Democrata Alemão. De 5 a 8 de setembro de 1915, ocorreu em Zimmerwald (Suíça) essa conferência socialista internacional, considerada por muitos a primeira reunião geral dos socialistas internacionalistas após o início da guerra. A posição dos bolcheviques (o partido russo da 2ª Internacional) consistiu na imediata criação de uma nova internacional. Lênin defendia que os socialistas deviam romper com a colaboração com os governos burgueses, que era necessária a mobilização das massas contra o social-chauvinismo e a transformação da guerra em guerra revolucionária. Mas sua posição foi rechaçada por 19 votos contra 12. Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin não puderam participar, pois estavam presas na Alemanha por sua oposição à guerra, sendo saudadas pela conferência. Mais tarde, de 24 a 29 de abril de 1916, em Kienthal, próximo a Berna, os internacionalistas tornaram a se reunir, como em Zimmerwald. Lênin proclamou novamente a decadência da 2ª Internacional e sua irremediável dissolução. Posteriormente, aqueles que mantiveram os princípios revolucionários do internacionalismo proletário fundaram os partidos comunistas e a 3ª Internacional. De ambas as reuniões participou Inês Armand (1875 -1920). Filha de pai inglês e mãe francesa, Inês casa-se com um russo, em 1893. Bolchevique desde 1904, migra em 1909, e torna-se amiga pessoal de Lênin no exílio. Representa os bolcheviques em Bruxelas em 1914, em Zimmerwald e em Kienthal. Em seu retorno a Rússia, em 1917, passa a trabalhar na Internacional Comunista e morre em 1920, vítima de cólera.

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luta pela manutenção da paz, contra a carestia de vida, o problema da Finlândia submetida à repressão do czarismo e os seguros sociais para a mulher e o filho. Uma das resoluções de Copenhague mostrava as causas da guerra “nas contradições sociais criadas pelo sistema de produção capitalista”, e que não se esperava a manutenção da paz mais que pela ação enérgica e consciente do proletariado e pelo triunfo do socialismo. O dever das mulheres socialistas é colaborar com a obra de manutenção da paz, de acordo com o espírito dos congressos internacionais socialistas.

Também no último congresso, de 1910, a proposta de Clara Zetkin tornou oficialmente o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Mas o terceiro congresso, o de Berna, se transformou na primeira conferência socialista internacional cujo eixo central era a oposição à guerra em curso. Como observamos, a tradição de amizade internacional que regia os diversos grupos do movimento de mulheres desintegrou-se frente à prova da guerra mundial. O internacionalismo e a luta contra a guerra ficaram, exclusivamente, nas mãos dos socialistas revolucionários, e aquelas que se colocaram à frente na luta contra a guerra foram as mulheres revolucionárias, como Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo, Inês Armand, Nadezna Krupskaia e outras. A causa das mulheres se expressa, novamente, durante a guerra, indissoluvelmente ligada à da classe operária. Rosa Luxemburgo, diante da guerra e da posição traidora da socialdemocracia, enfatizou: Esta guerra mundial significa um retrocesso à barbárie. O triunfo do imperialismo conduz à destruição da civilização, esporadicamente durante uma guerra moderna, e até o final, se o período de guerras mundiais que começou agora for levado até suas últimas conseqüências. Deparamo-nos hoje com as eleições, tal como havia previsto Engels 40 anos atrás: ou bem o triunfo do

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imperialismo e com ele a degeneração, a diminuição da população, um vasto cemitério; ou a vitória do socialismo, resultado da luta consciente da classe operária internacional trabalhando contra o imperialismo e seu método, a guerra.

A bancarrota da 2ª Internacional, na qual estavam afiliados os partidos social-democratas, era nítida. Sua colaboração com a burguesia nacional dos Estados beligerantes levou ao massacre de milhões de operários, que combatiam nas trincheiras pela defesa dos interesses de seus patrões e atraiu enormes misérias para as mulheres. Clara Zetkin disse, em 1919: “A velha Internacional morreu na vergonha: jamais poderá ser ressuscitada.” Ela foi, posteriormente, uma das delegadas da 3ª Internacional, fundada por Lênin com as diversas organizações internacionalistas existentes. LIBERDADE NA GUERRA, OPRESSÃO NA PAZ?

No curso da guerra e, ainda depois de finalizada, estendeuse a idéia de que as mulheres buscavam grandes conquistas em sua emancipação, pois o conflito transformara as relações entre os sexos. Eis que enquanto durou a guerra, mulheres camponesas e pequenas comerciantes assumiram as tarefas compulsivamente abandonadas pelos homens. Por outro lado, as novas indústrias de guerra, onde se fabricavam as munições e as armas modernas, multiplicavam a oferta de postos de trabalho por causa da enorme produção em marcha. Pela força da necessidade, a guerra eliminou momentaneamente as barreiras que separavam trabalhos masculinos e femininos. Não obstante, as “conquistas” do gênero feminino foram efêmeras. A ordem patriarcal do capitalismo só se viu alterada circunstancialmente pela necessidade de força de trabalho, utilizando as mulheres para mover as máquinas que sustentavam os lucros capitalistas em tempos de “escassez de homens”.

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Quando os soldados voltaram das frentes de batalha, tiveram prioridade nos postos de trabalho, e as proclamações libertárias no que tange à libertação feminina ressoaram em sons de clarinetas, que chamavam às mulheres de volta ao lar. Na Inglaterra, por exemplo, enquanto perdurou o enfrentamento bélico, foram habituais os acordos negociados entre os sindicatos e as empresas. Por meio do concerto e da reforma social foi aceito o trabalho das mulheres nas fábricas sob o regime conhecido como substituição, segundo o qual as mulheres podiam ocupar os postos “masculinos”, mediante o compromisso de se retirarem depois da guerra. Enquanto ocupavam os postos disponíveis nas fábricas e empresas, foram essas novas mulheres trabalhadoras as primeiras a criticar a guerra; as mulheres da burguesia entregavam o movimento feminista de mãos atadas à defesa da nação. As primeiras, por meio do furto de alimentos nas lojas ou no campo, o aprovisionamento ilegal no mercado negro e outras medidas de sabotagem, provocaram enormes distúrbios. Em alguns casos, foram instigadoras de motins por fome, transformando as cidades em cenários de verdadeira guerra civil. Na França, em 1917, costureiras e as mulheres que faziam a munição constituíram maioria entre os grevistas. Quando a guerra termina, a desmobilização das mulheres da frente de batalha e da fábrica é acompanhada de forte campanha de propaganda contra a mulher libertada e o feminismo, reforçando, os discursos oficiais, os elogios às mães e às donas de casa. Não por acaso, é o momento no qual se inaugura a celebração do Dia das Mães, ainda hoje comemorado em todo o mundo. Por outro lado, o sufrágio feminino surgiu na Europa naquele momento, no fim da guerra, como uma das concessões das quais os governos liberais e reformistas lançaram mão para tentar impedir a revolução proletária em potencial, estabelecendo firmes regimes de democracia burguesa após a disputa. Assim constata León Trotsky:

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A derrota da revolução de 1848 debilitou os operários ingleses; pelo contrário, a revolução russa de 1905 fortaleceu-os subitamente. Após as eleições gerais de 1906, o Labour Party conformou, pela primeira vez no Parlamento, uma importante fração de 42 membros. Desse modo, manifestava-se nitidamente a influência da revolução russa de 1905. Em 1918, mesmo antes de terminar a guerra, uma nova reforma eleitoral ampliava consideravelmente o quadro de eleitores operários e concedia pela primeira vez o direito ao voto às mulheres. O próprio Mr. Baldwin [Stanley, político inglês conservador, três vezes primeiro ministro, Nota da Autora] provavelmente não negaria que a revolução russa de 1917 tenha dado o principal impulso a esta reforma. A burguesia inglesa achava possível, por este meio, evitar uma revolução.5

Entre as duas guerras mundiais, a classe operária viveu inúmeras experiências históricas. Durante todo o período, ocorre o auge econômico dos dourados anos 20, com o desenvolvimento da produção em grande escala, a consolidação da União Soviética como estado operário, fruto da revolução proletária de 1917, o crack econômico de 1929, com a quebra da Bolsa de Nova Iorque e a grande depressão, o desemprego, o fascismo, as frentes populares, a heróica revolução espanhola, o surgimento do sindicalismo de massas nos EUA etc. A situação das mulheres não fica alheia a esses acontecimentos da luta de classes. A experiência revolucionária da Espanha, na década de 1930, demonstrou uma vez mais que as grandes conquistas de direitos democráticos em beneficio das mulheres só ocorreram por causa do levante revolucionário contra toda a ordem existente. Em 1931, com o início do processo revolucionário na Espanha, as mulheres conquistaram o direito ao sufrágio naquele país. Porém, logo em 1936, com a reanimação da agitação revolucionária entre as massas, a vitória eleitoral da Frente Popular e a extensão de uma amplíssima onda de greves 5

León, Trotsky, A dónde va Inglaterra, Bs. As., El Yunque, 1974.

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em toda a Espanha, acompanhada de ocupações de terras, legaliza-se o direito ao aborto, em meio a uma situação em que o poder ficara, de fato, nas mãos dos comitês e das milícias operárias. Quando, em 1934, ocorre a heróica insurreição dos operários das Astúrias, que se apossam do território, mas ficam isolados e são derrotados pelas tropas franquistas após vários combates, as esposas e filhas dos mineiros e operários participaram da luta, integrando-se aos comitês e empunhando armas. Nesse período florescem os jornais femininos comunistas e anarquistas. Com a criação das milícias populares, favorece-se a inserção das mulheres nas frentes de batalha, mas a partir de setembro de 1936, com a proibição das milícias e a perseguição dos revolucionários, o governo republicano da Frente Popular se empenha em organizar um exército regular com o intuito de frear o armamento e a organização autônoma de operários e camponeses. Isto trará como conseqüência o esmagamento de anarquistas e simpatizantes do trotskismo, além do envio de mulheres à retaguarda. Um retrato vivo dessas jornadas, da valorosa ação das mulheres operárias, das diferentes atitudes tomadas pelas organizações políticas em relação às mulheres, e do pérfido papel que cumpriu o stalinismo na heróica passagem da história operária mundial, faz parte das memórias da dirigente de coluna de um batalhão do Partido Operário de Unificação Marxista (POUM)6, Mika Etchebéhère. Em Minha guerra da Espanha, a argentina Mika relata em páginas cheias de heroísmo, emoção, reflexões e sentimentos profundos, como chega da França ao país, com seu esposo, para participar das jornadas revolucionárias espanholas, incorporando-se a uma coluna do POUM. Pouco tempo depois sua chegada, o marido 6

O POUM, Partido Operário de Unificação Marxista, era uma corrente próxima ao trotskismo, liderada por Andreu Nin, que surgiu da fusão da antiga oposição de esquerda espanhola ao Partido Comunista e o

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morre em batalha e ela coloca-se à frente da coluna, vencendo os preconceitos dos milicianos e ganhando seu respeito na luta. Outra das mulheres que merece destaque na revolução espanhola é Carlota Durany Vives, que foi secretária de Andreu Nin, dirigente do POUM. Carlota integrou a Comissão Diretiva do Sindicato Mercantil, despendendo intenso trabalho nas greves do grêmio. Aqueles que a conheceram contam que, por sua grande atividade revolucionária e personalidade, os anarquistas do sindicato fizeram o impossível para atraí-la às suas fileiras. Em sua casa foi celebrada a conferência clandestina de fundação do POUM, em 29 de setembro de 1935, o que a tornou o principal alvo da polícia secreta stalinista em Barcelona. Em plena guerra civil, Carlota começou a escrever breves artigos para o jornal Emancipação, órgão de imprensa do Secretariado Feminino do POUM, de onde extraímos estes parágrafos:

Em 19 de julho, as mulheres se lançaram às ruas com um entusiasmo insuperável para lutar junto aos seus companheiros, para atender os feridos, para doar seu sangue. Mas não se pode viver meses e meses com essa tensão. Pouco a pouco, nos acostumamos com o que antes exaltava nosso entusiasmo, e a vida cotidiana, com suas necessidades e preocupações, mina nosso ardor revolucionário... Esta é, precisamente, a tarefa da mulher! Criar constantemente o novo, o espírito revolucionário. A atmosfera espiritual é produzida pela mulher... E a mulher tem outra tarefa de suma importância: edificar a base revolucionária na futura geração... Desde muito pequena, a criança deve aprender que os outros não vivem exclusivamente para ela. Deste sentimento comunitário resultará mais tarde a consciência de classe.7

7

Bloco Operário e Camponês da Catalunha, dirigido por Maurín. O POUM rompe definitivamente sua relação com o trotskismo quando adere à Frente Popular durante a revolução espanhola. Carlota Durany Vives, “El doble papel de la mujer”, Emancipación, 29 de maio de 1937.

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A repressão desatada pelos stalinistas se empenhava, particularmente, na aniquilação dos militantes do POUM. Prenderam Carlota, que anteriormente tinha ficado presa por várias semanas, cinco dias antes das tropas fascistas, a mando do general Franco, entrarem em Barcelona. Quando a prenderam, deixaram seu filho de três anos abandonado na casa, o qual foi depois acolhido por vizinhos. Colocaram-na em um automóvel e a levaram a uma estrada, enquanto a interrogavam e a insultavam para que lhes dissesse onde estava seu companheiro. Limitou-se a responder, repetidas vezes, que só sabia que ele estava na frente de batalha, o que enfureceu ainda mais seus seqüestradores. Eles começaram uma simulação de fuzilamento. Carlota foi finalmente levada a uma dependência da polícia secreta stalinista, com outras mulheres do POUM, de onde pôde escapar antes desse lugar cair nas mãos dos fascistas. Foi o tempo preciso para reencontrar seu filho e tomar um caminhão preparado pelo Comitê de Evacuação do partido, que a transportou até a fronteira com a França. Só depois de 35 anos, suas cinzas regressaram a seu país e foram lançadas ao mar na Costa Brava. Mas o fascismo não foi só um fenômeno político espanhol. Era a expressão política do grande capital monopolista que substituiu o regime democrático burguês por formas ditatoriais. No que tange às mulheres, o fascismo considerava que sua emancipação era perversa ideologia anti-regime e apátrida. Para os nazistas na Alemanha, por exemplo, ser mãe era o objetivo central que deviam ter as mulheres, porém não era desejável para todas. Defendiam que 20% da população germânica eram indesejáveis para assumir a paternidade, já que não pertenciam à “raça pura”. Introduziu-se a esterilização forçada, aplicada em homens e mulheres, por causas como debilidade mental, epilepsia, esquizofrenia, síndrome maníacodepressiva, ser negro, judeu, cigano etc. Essa política demográfica resultou no que veio a ser chamado de “gravidez de protesto”, procurada pelas mulheres jovens antes de serem

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submetidas à operação de esterilização. Os índices de emprego feminino na Alemanha fascista demonstram outra faceta da crueldade do regime nazista:

Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 2,5 milhões de mulheres estrangeiras se incorporaram ao trabalho na indústria e na agricultura alemãs, junto a um número muito maior de homens; a maioria deles procedentes dos países do leste da Europa, sendo estes obrigados a trabalhar pela força. Quanto mais baixo era seu ‘valor racial’, maior era a proporção de mulheres trabalhadoras do grupo nacional correspondente e, particularmente na indústria pesada de munições.8

A resistência ao fascismo também foi testemunha do alistamento das mulheres. Na URSS, as mulheres participaram ativamente defendendo seu território contra a invasão do exército nazista. Pouco após o início da Segunda Guerra Mundial, foi criado o Comitê Antifascista de Mulheres Soviéticas, que recebeu a solidariedade das mulheres da Inglaterra, dos EUA, da Índia, da Áustria etc. Na Iugoslávia, mais de 100 mil mulheres se alistaram entre os partidários e o exército de Tito. Na França, as mulheres foram parte da resistência maqui, criando redes nas empresas nas quais trabalhavam, atuando como correios e agentes de informação, organizando a luta nos campos de concentração e em combate. Na Itália havia cerca de 35 mil mulheres na resistência armada e mais de 70 mil fizeram parte dos grupos de defesa femininos voluntários, sofrendo tortura, prisões, deportações, fuzilamentos ou morte em combate. Durante a Segunda Guerra Mundial, os estereótipos femininos que haviam surgido durante o período da guerra de 1914 se repetem: a mulher trabalha nas fábricas de armamento e munições a serviço da pátria ou é a mãe protetora que 8

Bock, G., “Políticas sexuales nacionalsocialistas e historia de las mujeres” em Historia de las mujeres de Occidente, op. cit.

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cuida do lar na ausência do soldado. Na Inglaterra, as empresas privadas foram proibidas de empregar mulheres entre 20 e 30 anos, encaminhando-as a empresas controladas pelo Estado para ingressar nas fábricas de armamento, caso necessário. Em 1944, na indústria e nos serviços auxiliares da defesa civil havia 2 milhões de trabalhadoras, contingente superior ao período prévio à guerra. Nos EUA, as mulheres, por meio de campanhas de imprensa e de rádio, e as 10 milhões de norte-americanas que trabalhavam em 1941 passaram a ser 18 milhões em 1944.9 Porém, terminada a guerra, as mulheres tiveram que novamente retornar ao lar. Na Inglaterra e nos EUA, por exemplo, desapareceram as creches criadas para facilitar o trabalho das mulheres. Dessa vez as mulheres repetiram a experiência do fim da Primeira Guerra Mundial, mas com maior resistência por parte das operárias e empregadas que se recusavam a deixar os postos de trabalho. Um “mal-estar” instalou-se nas mulheres que não queriam reduzir-se novamente ao papel de mães, esposas e consumidoras, o que encontrará ressonância nos movimentos feministas de massas que surgiriam anos mais tarde, especialmente nestes países.

9

Um cartaz norte-americano mostra uma mãe com um filho e um bebê em seus braços. A legenda reza: “É menino! Dêem 10% de seu salário para a guerra!” Outro diz: “Mulheres: há trabalho a fazer e uma guerra a ganhar”.

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As mulheres no primeiro Estado operário da História “No lugar do matrimônio indissolúvel baseado na servidão da mulher, eis que surge a união livre, fortalecida pelo amor e pelo respeito mútuo de dois membros do Estado operário, iguais por seus direitos e por seus deveres. No lugar da família egoísta e individualista, vemos advir a grande família universal dos trabalhadores, na qual todos os trabalhadores, homens e mulheres, serão, sobretudo, camaradas.” Alexandra Kollontai

PÃO, PAZ, LIBERDADE E DIREITOS PARA AS MULHERES A análise da situação da mulher na União Soviética merece um capítulo à parte. Com a revolução proletária de outubro de 1917, tendo à frente o Partido Bolchevique, as mulheres soviéticas conquistaram direitos indispensáveis, antes das mulheres dos países capitalistas mais avançados do mundo. No livro História da Revolução Russa, León Trotsky relata, com estas palavras, a participação das mulheres trabalhadoras nos acontecimentos de fevereiro de 1917, a partir dos quais teve início o processo revolucionário que culminou em outubro do mesmo ano: Em 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. Os socialdemocratas se propunham a festejá-lo de forma tradicional: com

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assembléias, discursos, manifestos etc. Não passava pela cabeça de ninguém que o Dia da Mulher pudesse converter-se no primeiro dia da revolução. Nenhuma organização fez um chamado à greve para esse dia. A organização bolchevique mais combativa de todas, o Comitê do bairro operário de Viborg, aconselhou que não se fizesse greve. As massas — como relata Kajurov, um dos militantes operários do bairro — estavam frenéticas: cada movimento de greve ameaçava converter-se em choque aberto. (...). No dia seguinte, ignorando as orientações dadas, as operárias de algumas fábricas têxteis se declararam em greve e enviaram delegadas ao setor metalúrgico, pedindo-lhes que aderissem ao movimento. (...). Já era de se esperar que, em caso de manifestações operárias, os soldados seriam tirados dos quartéis contra os trabalhadores. (...). É evidente, pois, que a Revolução de Fevereiro começou pela base, vencendo a resistência das próprias organizações revolucionárias; com a particularidade de que esta espontânea iniciativa partiu de um impulso do setor mais oprimido e coibido do proletariado: as operárias do ramo têxtil, dentre as quais pressupõe-se que muitas eram casadas com soldados. As filas cada vez maiores na porta das padarias encarregaram-se de dar o último empurrão. No dia 23, cerca de 90 mil operárias e operários se declararam em greve. Seu espírito combativo se exteriorizava em manifestações, comícios e confrontos com a polícia. O movimento teve início no bairro fabril de Viborg, propagando-se aos bairros de Petersburgo. (...). Manifestações de mulheres nas quais perfilavam somente operárias se dirigiam em massa à Câmara Municipal pedindo pão. Era como pretender o impossível. Saíram a reluzir em diversas partes da cidade bandeiras vermelhas, cujas consignas clamavam que os trabalhadores queriam pão, mas não queriam, em troca, a autocracia ou a guerra. O Dia da Mulher ocorreu com êxito, com entusiasmo e sem vítimas. (...).

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No dia seguinte, o movimento grevista, longe de decair, ganha mais força: em 24 de fevereiro a greve abrange cerca da metade dos operários industriais de Petrogrado. Os trabalhadores se apresentam pela manhã nas fábricas, mas se recusam a entrar no trabalho, organizam comícios e na saída dirigem-se em manifestação ao centro da cidade. Novos bairros e novos grupos da população aderiram ao movimento. O grito de “pão!” desaparece ou é substituído por “abaixo a autocracia!” e “abaixo a guerra!”. (...). No dia 25, a greve fortaleceu-se ainda mais. Segundo os dados do governo, neste dia cerca de 240 mil operários estiveram presentes. Os elementos mais atrasados se expressam por trás da vanguarda; já adere à greve um número considerável de pequenas empresas; paralisam-se as vias, fecham-se os estabelecimentos comerciais. No transcurso desse dia, a greve ganha a adesão dos estudantes universitários. Ao meio-dia, milhares de pessoas afluem rumo à catedral de Kazan e às ruas adjacentes. Procuram organizar comícios nas ruas, produzem choques armados com a polícia. A guarda montada abre o fogo. Um orador cai ferido. (...). O soldado da cavalaria se eleva por cima da multidão, e seu espírito se ergue separado do grevista pelas quatro patas da besta. Uma figura vista desde baixo aparece sempre mais ameaçadora e terrível. A infantaria está ali mesmo, ao lado, mas próxima e acessível. A massa tenta se aproximar, olhá-la nos olhos, envolvêla com seu alento inflamado. A mulher operária representa um grande papel na aproximação entre os operários e os soldados. Com maior audácia que o homem, penetra nas fileiras dos soldados, pega os fuzis com suas mãos, implora, quase ordena: ‘Desviem as baionetas e venham conosco’. Os soldados se comovem, se envergonham, parecem inquietos, vacilam; um deles se decide: as baionetas desaparecem, as fileiras se abrem, estremece no ar um urra entusiasta e agradecido; os soldados se

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vêem cercados de gente que discute, repreende e incita: a revolução dera outro passo à frente. (...). Os operários não se rendem, não retrocedem, querem conseguir o que lhes pertence, ainda que seja sob uma chuva de chumbo, e com eles estão as operárias, as esposas, as mães, as irmãs, as namoradas. (...). Assim amanheceu sobre a Rússia o dia da derrubada da monarquia dos Romanov. (...). A revolução soa como indefesa aos coronéis, verbalmente decididos, porque ainda é terrivelmente caótica: por todos os lados, movimentos sem objetivos, torrentes confluentes, turbilhões humanos, figuras assombradas, capotes desabrochados, estudantes que gesticulam, soldados sem fuzis, fuzis sem soldados, meninos que disparam ao vento, clamor de milhares de vozes, turbilhão de rumores desenfreados, alarmes falsos, alegrias infundadas; parece que bastaria entrar nesse caos de espada na mão para destruí-lo sem deixar rastros. Mas é um grosseiro erro de visão. O caos não é nada mais que aparência. Sob este caos, opera-se irresistível fortalecimento das massas em um novo sentido. As incalculáveis multidões ainda não definiram, com suficiente clareza, o que querem; mas estão impregnadas de um ódio ardente pelo que não querem. Em suas costas, já carregam uma derrota histórica irreparável. Não há como voltar atrás.1

Anteriormente dissemos que as mulheres, durante a Primeira Guerra Mundial, se incorporaram massivamente à produção, pela escassez de força de trabalho masculina. Na Rússia, durante a guerra, quando mobilizaram quase 10 milhões de homens — em sua maioria camponeses —, as mulheres se converteram em operárias agrícolas, chegando a representar 72% dos trabalhadores rurais. Nas fábricas, passaram de 33% da força de trabalho em 1914, a 50% em 1917. Essas mulheres 1

León Trotsky, Historia de la Revolución Rusa, Madrid, Sarpe, 1985.

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trabalhadoras, fundamentalmente as operárias têxteis, em 23 de fevereiro de 1917 tomaram as ruas, reivindicando pão, paz e liberdade. Sob o governo provisório de Kerensky 2, que se constituiu como resultado da revolução de fevereiro que derrotou o czar, as mulheres russas conquistaram o direito ao voto e à elegibilidade. Direito promulgado em 20 de julho de 1917. Nos países mais desenvolvidos do mundo, como Inglaterra e EUA, foi conquistado em 1918 e 1920, respectivamente. Porém, enquanto as mulheres operárias foram a vanguarda das mobilizações revolucionárias de fevereiro, as mulheres mais instruídas — liberais burguesas e nobres — na noite do assalto ao Palácio de Inverno conformaram um Batalhão Feminino que tentou defender a sede do governo czarista frente aos operários insurrectos. Com a revolução proletária de outubro de 1917, as mulheres soviéticas conquistaram, antes das mulheres dos países capitalistas o direito ao divórcio, ao aborto, à eliminação do poderio matrimonial, à igualdade entre o matrimônio legal e o concubinato etc. Na elaboração da nova legislação, a revolucionária Alexandra Kollontai cumpriu papel preponderante: primeira mulher eleita pelo Comitê Central do Partido Bolchevique em 1917 e a primeira a ocupar cargo de governo no novo Estado: Comissária do Povo para a Saúde. Em 1922, foi a primeira mulher embaixadora no mundo, carreira diplomática que a afastou de Moscou até 1945.3 2

3

Alexandre Kerensky (1881-1970), chefe do governo provisório, após a derrubada do czar, de fevereiro a outubro de 1917, segundo o calendário ortodoxo russo. Foi destituído pela revolução operária dirigida pelo partido bolchevique, que estabeleceu o poder dos conselhos operários (soviets). Alexandra Kollontai (1872-1952), intelectual, filha de um general. Membro do partido desde 1899, bolchevique em um primeiro momento e depois menchevique até 1915, quando volta às fileiras do bolchevismo. Emigra aos EUA durante a guerra, e retorna à Rússia

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Porém, a conquista mais importante da revolução não foram as leis, mas ter assentado as bases para pleno e verdadeiro acesso da mulher aos domínios culturais e econômicos.4 De pouco teria servido o direito ao voto se as mulheres — escravas domésticas, segundo a definição de Lênin — continuassem sendo únicas a arcar com as obrigações do ambiente familiar, as mais limitadas no acesso à educação, as que não tinham nenhum acesso à produção.5 As tarefas domésticas, realizadas pelas mulheres, no lar, de maneira individual e isolada, deviam ser substituídas, segundo os revolucionários, por um sistema de serviços sociais garantidos pelo Estado: creches, jardins de infância, lavanderias e refeitórios coletivos, hospitais, cinemas, teatros. A absorção completa das funções econômicas da família pela sociedade socialista, ao unir toda uma geração pela solidariedade e pela assistência mútua, devia proporcionar à mulher, e conseqüentemente, ao casal, uma verdadeira emancipação do jugo secular. Enquanto esta obra não for concretizada, 40 milhões de famílias soviéticas continuarão sendo, em sua grande maioria,

4

5

durante a revolução, ocupando altos cargos de governo. Alexandra Kollontai foi autora de As bases sociais da questão feminina, A família e o Estado comunista, A nova moral e a classe operária. Entre os documentos anexos está um discurso de Lênin, dirigente da Revolução Russa, de 1920, alentando a participação das operárias na condução e administração do Estado soviético. “O direito eleitoral não suprime a causa primordial da servidão da mulher na família e na sociedade e não soluciona o problema das relações entre ambos os sexos. A igualdade, não formal, mas real da mulher, só é possível sob um regime em que a mulher da classe operária seja a possuidora de seus instrumentos de produção e distribuição, participe em sua administração, tendo a obrigação de trabalhar nas mesmas condições que todos os membros da sociedade trabalhadora. Ou seja, esta igualdade só é possível de se realizar mediante a derrota do sistema capitalista e sua substituição pelas formas econômicas comunistas.” (Teses para a propaganda entre as mulheres, III Congresso da Internacional Comunista).

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vítimas dos costumes medievais, da servidão e da histeria da mulher, das humilhações cotidianas do filho, das superstições de um para com o outro.6

FILOSOFIA DE SACERDOTE, PUNHO DE GENDARME Não obstante, tal como aponta o dirigente da revolução russa León Trotsky, não foi possível tomar por assalto a antiga família. Por desgraça, a sociedade foi demasiadamente pobre e demasiadamente pouco civilizada. Os recursos reais do Estado não correspondiam aos planos e às intenções do partido comunista. A família não pode ser abolida: é preciso substituí-la. A verdadeira emancipação da mulher é impossível no terreno da miséria socializada. A experiência revelou nitidamente esta dura verdade, formulada há cerca de 80 anos por Marx.7

Além da imperiosa necessidade econômica, que restringiu o desenvolvimento da socialização dos serviços, tais como creches, lavanderias, refeitórios etc, a afirmação da burocracia stalinista no poder do Estado após a morte de Lênin desenterrou o velho culto à família, pois o novo regime tinha a necessidade de uma hierarquia estável das relações sociais, e de uma juventude disciplinada por 40 milhões de lares que servem de apoio à autoridade e ao poder.8

Como não podia ser diferente, a desigualdade crescente entre uma camada de administradores e membros do partido e o conjunto da classe operária soviética se expressava também entre as mulheres. 6

León Trotsky, La revolución traicionada, Bs. As., Claridad, 1938.

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Idem.

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Idem.

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A condição de mãe de família, comunista respeitada, que tem uma empregada doméstica, um telefone para fazer seus pedidos aos armazéns, um carro para o transporte etc, em nada se assemelha às condições da operária que vai ao mercado, cozinha, leva seus filhos ao jardim de infância. Nenhuma etiqueta socialista pode ocultar esse contraste social, que não é menor ao que diferencia em todo país do Ocidente a dama burguesa da mulher proletária.9

A partir de 1926, sob o regime de Stalin, se institui novamente o matrimônio civil como única união legal. Mais tarde é abolido o direito ao aborto, junto à supressão da seção feminina do Comitê Central e seus equivalentes nos diversos níveis de organização partidária. Em 1934, é proibida a homossexualidade e a prostituição se converte em delito. Não respeitar à família se converte em conduta “burguesa” ou “esquerdista” aos olhos da burocracia termidoriana.10 Stalin declara em 1936: O aborto que destrói a vida é inadmissível em nosso país. A mulher soviética tem os mesmos direitos que o homem, mas isso não a exime do grande e nobre dever que a natureza lhe designou: é mãe, concebe a vida.

Quão distantes estão essas palavras das pronunciadas por Trotsky, que dizia:

O poder revolucionário deu a toda mulher o direito ao aborto, um de seus direitos cívicos, políticos e culturais essenciais enquanto durar a miséria e a opressão familiar, digam o que disserem os eunucos e as solteironas de ambos os sexos.

9

10

Idem.

Entre os documentos anexos, está um texto sobre a defesa dos direitos da mãe e do filho na URSS, sob o regime stalinista, que revela a idolatria à família e ao papel materno das mulheres, contrariando por completo o espírito emancipatório e igualitário da Revolução Russa e dos dirigentes bolcheviques revolucionários.

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Ao criticar os argumentos reacionários que esgrime a burocracia para reinstalar a proibição do aborto acrescenta:

Filosofia de sacerdote que dispõe, inclusive, de punho de gendarme.11

O retrocesso nas conquistas revolucionárias é acompanhado pela implementação da pena de morte a partir dos 12 anos, a autorização da tortura e dos fuzilamentos massivos e arbitrários, que acabaram com a geração de velhos bolcheviques e com todos aqueles que se atreveram a expressar oposição ao regime stalinista. Anos mais tarde, em 1944, aumentam as consignações familiares, foi criada a ordem da “Glória Materna” para a mulher que tivesse entre sete e nove filhos, e o título de “Mãe Heróica” para quem tivesse mais de dez. Os filhos ilegítimos voltam a essa condição, abolida em 1917 e o divórcio se converte em um trâmite custoso e cheio de dificuldades. MULHERES OPOSICIONISTAS Em 1938, Leon Trotsky defendeu que era necessário retomar as bandeiras revolucionárias sob outra Internacional. A III Internacional, estrangulada pela política de Stalin, cumpria papel cinicamente contra-revolucionário, traindo abertamente a classe operária mundial. Da mesma maneira que Marx e Engels combateram no interior da I Internacional para manter o espírito revolucionário, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Lênin e Trotsky tentaram manter o fio de continuidade com essas experiências, abandonando a II Internacional quando a maioria aceitou participar da guerra imperialista, um dos máximos dirigentes 11

Idem.

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da revolução de outubro abandonava a III Internacional, que havia se degenerado irremediavelmente frente às provas da história. A IV Internacional surgiu, então, declarando em seu programa que

uma política correta é composta por dois elementos: uma atitude inflexível frente ao imperialismo e suas guerras, e a capacidade de desenvolver um programa à luz da experiência das massas.12

Por sua especial atenção aos setores mais explorados da classe operária, não por acaso a IV Internacional bordou em suas bandeiras a consigna de “A frente a mulher trabalhadora! A frente a juventude!”. Em seu programa lê-se:

As organizações oportunistas, por sua própria natureza, centram principalmente sua atenção nas camadas superiores da classe operária, e, por conseguinte, ignoram tanto a juventude como a mulher trabalhadora. Agora, o declínio do capitalismo desfere seus golpes mais fortes à mulher, enquanto trabalhadora e enquanto dona de casa.13

Antes da fundação da IV Internacional, os oposicionistas ao regime de Stalin eram perseguidos, presos e assassinados. Na época dos processos fraudulentos de Moscou, instigados pelo regime stalinista contra os principais dirigentes da revolução de 1917 e contra todos aqueles que se opunham à sua política, as mulheres foram entre 12% e 14% dos comunistas detidos em campos de concentração, sob acusações de sabotagem, espionagem e “trotskismo”. Entre os milhares de oposicionistas deportados, desterrados, presos e fuzilados, encontramos os 12

13

Extratos do documento A agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional, de 1938, mais conhecido como Programa de Transição. A parte sobre a juventude e a mulher trabalhadora está entre os documentos anexos no final deste trabalho. Idem.

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seguintes nomes em destaque: Eugenia Bosch, Nadejda Joffe, Tatiana Miagkova, dentre muitas outras mulheres que valentemente travaram sua luta contra o stalinismo sob as piores condições. Eugenia Bosch nasceu em 1879 e em 1900 se filiou ao partido social-democrata russo, alinhando-se com a ala esquerda dos bolcheviques desde 1903. Em 1913, é deportada por suas atividades revolucionárias e dois anos mais tarde consegue escapar e refugiar-se nos EUA. Em seu regresso à Rússia, após a revolução de fevereiro de 1917, desempenhou papel dirigente no levante de Kiev e na guerra civil. Logo estava entre os assinantes da “Declaração dos 46”, na qual 46 membros do partido bolchevique criticavam a posição da direção stalinista.14 Eugenia se suicidou em 1924, aos 45 anos de idade, como gesto de protesto contra a burocracia. Nadejda era filha de Adolfo Joffe, grande amigo de Trotsky até sua morte. Viveu sua primeira infância em Viena, onde seu pai preparava a difusão do jornal Pravda na Rússia, e convivia com o filho de Trotsky, León Sedov, que tinha a mesma idade. De volta à Rússia em 1917 — onde seu pai foi um dos diplomáticos mais iminentes da jovem república soviética15-, aderiu às juventudes comunistas. Em 1924, sempre junto a León Sedov, aderiu à oposição de esquerda dentro dessa organização. Após o suicídio de seu pai, como gesto de protesto contra o regime stalinista e a ilegalidade da oposição de esquerda em 1927, participou de atividades clandestinas, sendo presa e 14

15

Declaravam que o país estava ameaçado pela ruína econômica, porque a maioria da direção (Politbureau) não tinha nenhuma política nesse sentido e não via a necessidade da planificação da indústria. Protestavam também contra o burocratismo. Trotsky não assina essa declaração, ainda que os seus autores tomem algumas de suas posições. Entre os mais conhecidos, estão Preobajensky, Smirnov, Belovodorov e Serebriakov. Adolfo Joffe foi embaixador na Alemanha nas vésperas da revolução de novembro de 1918 e depois embaixador na China.

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deportada em 1928. Em 1934, convencida pelo exemplo e influência de Christian Rakovsky16 — que decidiu capitular ao regime stalinista, invocando a ameaça nazista contra a União Soviética —, Nadejda o imita. Logo lamenta ter tomado a iniciativa e se retrata. Presa novamente em 1936, não é libertada definitivamente até 20 anos depois. Seu companheiro, Pavel Kossakovsky, foi fuzilado em um campo de concentração em Kolyma17, em 1938. Quando liberada, em 1956, se consagra à luz da memória de seu pai e de seus camaradas e funda a associação Memorial.18 A história de Tatiana Miagkova (1897 - 1937) é outro exemplo do que ocorria com aqueles que aderiam às idéias de Trotsky opondo-se à burocracia stalinista. Tatiana é uma entre 6 mil trotskistas assassinados em 1937, somente no porto de Magadan.19 Ainda estudante, participou da ação revolucionária e foi presa. Libertada pela revolução de fevereiro de 1917, aderiu ao 16

17 18

19

Christian Rakovsky (1837-1941). Socialista romeno-búlgaro, membro do Comitê Central do partido bolchevique após a revolução de 1917 e presidente do Conselho de Comissários do Povo da Ucrânia. Foi embaixador da URSS na França de 1925 a 1927. Principal dirigente da oposição de esquerda na Rússia desde que Trotsky fora enviado ao exílio, capitula em 1934, depois de anos de perseguição e reclusão em condições subumanas nos campos de concentração do regime stalinista. Região no extremo oriental da Sibéria.

Em 1988, na Casa da Aviação, em Moscou, presidiu reunião de mais de mil pessoas consagrada a León Trotsky e aos seus. Lá conheceu Pierre Broué, diretor do Institute Leòn Trotsky com sede na França e um dos historiadores do partido bolchevique e do movimento trotskista internacional de maior peso. Nadejda possibilitou, nessa oportunidade, o encontro de dois netos de Trotsky, irmão e irmã, separados havia mais de meio século, Aleksandra e Sieva. Bastante ativa, participou de inúmeros congressos e conferências e realizou com Sieva Volkov e Pierre Broué um ciclo de conferências sobre Trotsky, nos EUA. Era grande oradora, cheia de fogosidade e de humor, formada — como se dizia — no vento da tundra. Cidade e porto da URSS na Sibéria Oriental, zona industrial e de jazidas auríferas.

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partido bolchevique em 1919. Durante a ocupação da cidade de Kiev pelas tropas do general czarista Denikin, passou à clandestinidade para assegurar o contato com os destacamentos do Exército Vermelho em retirada. Publicou suas memórias desse período na revista Letopis Revolioutsii, de fevereiro de 1926. Após o fim da guerra civil recomeçou estudos em Moscou e depois se estabeleceu na Ucrânia. Em 1926, aderiu à “Oposição Unificada”, constituída por Trotsky, Zinoviev e Kamenev20 e é excluída do Partido Comunista russo, em 1927, por ser “trotskista”. Em 1928, foi enviada ao exílio em Astrakán, sobre o mar Cáspio. Lá continuou sua atividade de oposicionista: com outros membros exilados da oposição, organizou um grupo que se reunia em seu departamento; recrutou jovens da região para a oposição, reproduziu e difundiu documentos da oposição entre os membros do Partido Comunista e jovens comunistas de Astrakán, propôs levantar um fundo de ajuda aos exilados. Tornou-se secretária de Christian Rakovsky, o principal dirigente da oposição na União Soviética após a expulsão de Trotsky, em fevereiro de 1929. Acusada de ter reeditado e difundido um folheto da oposição foi condenada ao exílio por três anos no Cazaquistão. Seu marido, Comissário do Povo para as Finanças da República da Ucrânia, foi visitá-la para tentar convencê-la a renunciar a suas opiniões e à atividade oposicionista. Tatiana Miagkova foi exilada com outras duas oposicionistas: Sônia Smirnova e Maria Varchavskaia. Esta, que até seu último dia manteve a integridade de suas posições políticas, conta que Tatiana Miagkova, ao longo de longas e difíceis discussões com 20

Zinoviev, Kamenev e Trotsky, em junho de 1926, conformam a oposição unificada, que se levanta contra a teoria do socialismo em um só país, de Stalin; contra a política de Bukhárin sobre os camponeses e o “avanço ao socialismo a passos de tartaruga”. Também se definem pelo retorno à democracia operária no interior do partido. Zinoviev e Kamenev capitulam no ano seguinte no XV Congresso do PC para poder continuar no partido.

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seu marido, acabou se rendendo aos seus argumentos renunciando publicamente às atividades políticas. Em 1931, se estabelece em Moscou com o marido, neste momento funcionário do aparato do comitê executivo central do PCUS. Porém, ainda que Tatiana Miagkova tenha interrompido a atividade política, continuou expressando opiniões que não haviam mudado. Em 12 de janeiro de 1933 é presa novamente e condenada a três anos de prisão e isolamento. Em 28 de maio de 1936, conferência especial da NKVD — nome da polícia secreta stalinista, depois denominada GPU e mais tarde, KGB — condenou Tatiana Miagkova a cinco anos em um campo de concentração na região de Magadan, lugar que os deportados chamavam de “crematório branco”. Nesse mesmo momento, chegavam também a Magadan as duas velhas amigas trotskistas de Tatiana, Smirnova e Varchavskaia. A filha de Tatiana escreve sobre estes acontecimentos: Reuniram-se em Magadan, todos os trotskistas, todos os opositores, todos os homens capazes de defender seu ponto de vista e de opor seu ponto de vista à direção suprema do país.

Depois, enviaram-na a outro campo mais ao norte. Em um dia do outono de 1937 um comboio é detido próximo ao acampamento onde ela vivia. Entre os prisioneiros transportados, reconhece um amigo trotskista. Quis dizer-lhe algo através das relhas de arado, mas um guarda empurrou-a e ela protestou. Segundo os relatos de uma de suas vizinhas, insultou os guardas aos gritos: Fascistas, mercenários fascistas, eu sei que seu poder não se regateia sequer às mulheres ou às crianças, mas logo chegará o fim de vossa arbitrariedade!

O veredicto lhe reprova ser “uma trotskista desarmada”, de “estabelecer sistematicamente laços com os trotskistas”, de ter feito greve de fome por seis meses e, finalmente, a conferência especial da NKVD. Foi condenada ao fuzilamento.

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A sentença é executada imediatamente. Alguns dias antes, a conferência especial havia condenado seu amigo a ser fuzilado. Ele era o número 49 de uma lista de trotskistas condenados à morte naquele dia por participar de manifestação em protesto contra o tratamento aos deportados, por fazer greve de fome e realizar atividades “trotskistas”. O veredicto estipula:

Poliakov Benjamim Moiseevitch é acusado de ser membro do comitê trotskista contra-revolucionário e de ter participado da manifestação contra-revolucionária de Vladivostok. É o organizador de uma revolta no transcurso de seu traslado a Nagaievo. Organizou o recrutamento de participantes da greve de fome participando da mesma. Redigiu e assinou petitórios e declarações contra-revolucionárias. Recusa-se a trabalhar.

O historiador Birioukov, que esteve em Magadan em 1990 investigando o caso de Tatiana Miagkova e seus camaradas, escreveu à sua filha:

A história da maneira como foram enviados 6 mil presos trotskistas a Kolyma (e não 200, como escrevi anteriormente) e de como estes últimos tentaram fazer justiça para si mesmos (reivindicando o status de prisioneiros políticos), como tentaram continuar seu combate ao stalinismo e como, porfim, foram aniquilados durante estes anos é uma história grandiosa que contrasta com o fundo de tragédia nacional da época. E o destino de sua mãe é um pequeno elo desta história horrorosa.

A “história horrorosa”, sem dúvida, não podia durar eternamente. A burocracia que usurpou a bandeira da revolução de outubro finalmente sucumbiu na podridão da história. Em um processo marcado por contradições, derrubouse frente à corrosão de uma profunda crise econômica e da mobilização das massas no fim da década de 1980. Não obstante, com o desvio político dos processos revolucionários e o avanço da restauração capitalista, novas misérias se somaram às já existentes, para os trabalhadores da

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ex-União Soviética, especialmente para as mulheres. O desemprego, a fome e a inflação provocaram o maior índice de alcoolismo, violência, máfias criminosas e outras misérias sem precedentes na Rússia. Além disso, milhões de mulheres nas ruas com os filhos, vivendo abaixo da linha de pobreza e considerável aumento da prostituição e tráfico de mulheres aos países ocidentais. O capitalismo revelou-se não como o paraíso que se vendia nas publicidades pró-ocidentais. As conquistas da revolução de 1917 foram marginalizadas pela burocracia stalinista; sem dúvida, sequer o terror termidoriano de Stalin pôde varrê-las definitivamente, o que só começou com a restauração capitalista. Porém, ainda que os efeitos imediatos sejam devastadores, a queda do maior aparato contra-revolucionário do século XX significou a liberação da energia de milhões de explorados e oprimidos na ex-URSS e em todo o mundo, aprisionada na camisa de força imposta por esta direção traidora. Nas experiências das mulheres soviéticas há fonte de tradições históricas na qual podemos beber os milhões de mulheres de todo o mundo que, nas garras do capitalismo, só conhecemos opressão e miséria. E, por isso, lhe declaramos guerra até a morte.

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Entre Vietnã e Paris, os corpetes à fogueira “O pessoal é político”

consigna do movimento feminista da segunda onda

BOOM ECONÔMICO E BABY-BOOM O resultado da Segunda Guerra Mundial reconfigurou a economia e a política internacional.1 Com o fim da guerra, a coexistência pacífica do imperialismo acordada com o stalinismo, significou um verdadeiro pacto para evitar que os processos revolucionários que emergiam nos países centrais que haviam participado da contenda questionassem a ordem vigente. A destruição massiva de forças produtivas que resultou da guerra imperialista e papel do stalinismo no desvio e na derrota da revolução nos países centrais da Europa durante o pós-guerra constituíram as condições que possibilitaram o que ficou conhecido como o “boom” do pós-guerra. Ainda que tenha resignado seu domínio em quase um terço do globo, dada a quantidade de países do Leste europeu que se integraram à área 1

“O ponto mais alto da hegemonia norte-americana se deu quando o mundo emergiu da Segunda Guerra Mundial e foi reconhecida a Ordem de Yalta e Potsdam. Este repousava na superioridade econômica e militar dos EUA, no marco da derrota militar dos imperialismos do eixo e da enorme decadência dos aliados: Inglaterra e França. Mas junto a esse aspecto contava com um instrumento fundamental que era a

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de influência da União Soviética, o imperialismo teve nesses anos um crescimento econômico sem precedentes.2 O crescimento econômico permitiu a cooptação do proletariado nos países centrais por meio da criação de grandes setores operários privilegiados pela manutenção e reprodução do consumo a partir dos benefícios sociais e do endividamento. Desse modo, sob o chamado “estado de bem-estar”, as mulheres, fundamentalmente dos países centrais, conquistaram enormes direitos quanto à maternidade, configurando importante legislação social neste terreno. Mães solteiras, mulheres da classe operária, viúvas e esposas abandonadas se converteram nos grupos privilegiados pela política maternalista regida por algumas reformas que modificaram o direito trabalhista, o seguro de saúde, a beneficência, o direito da família, a legislação fiscal etc. O direito ao voto foi incorporado

2

colaboração contra-revolucionária de Moscou e do aparato stalinista mundial, como contenção do proletariado e dos movimentos de libertação nacional. Este acordo permitiu o assentamento da hegemonia norteamericana no pós-guerra.” (J. Chingo y E. Molina: “La guerra de los Balcanes y la situación internacional” em Estrategia Internacional Nº 13, 1999). “Assim, não só as guerras atuaram reduzindo a composição orgânica do capital, mas o disciplinamento da classe operária, propiciado pelo stalinismo e pela colaboração posterior das próprias tropas de ocupação norte-americana, permitiram um aumento enorme das taxas de mais-valia. Estes dois fatores, queda da composição orgânica do capital e altas taxas de mais-valia, estiveram, a nosso ver, na base do enorme aumento da taxa de lucro que permitiu o boom. Do mesmo modo, o estabelecimento da hegemonia quase absoluta do imperialismo norteamericano no fim da segunda guerra foi fator que evidentemente não foi alcançado logo de primeira e se converteu em elemento fundamental de estabilização do conjunto da economia. Também não podemos descartar que o desenvolvimento posterior da Alemanha e do Japão (seus futuros competidores) e sua reconstrução foram impulsionadas pelo próprio imperialismo norte-americano, respondendo em grande medida à necessidade política de desterrar o perigo da revolução.” (Paula Bach: “Robert Brenner y la economía de la turbulencia global: algunos elementos para la crítica”, em Estrategia Internacional, Nº 13, 1999).

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na maioria das constituições dos países do mundo. Por outro lado, a expansão econômica própria do período permitiu a presença crescente das mulheres no mercado de trabalho e, como conseqüência, a maior inclusão nos âmbitos culturais e políticos. As mulheres se integraram massivamente à educação e à produção, o que implica a reconfiguração das relações familiares, relações entre os gêneros e papel estereotipado da dona de casa. Entretanto, ainda que a pressão das feministas tenha sido importante, é necessário reconhecer, fundamentalmente, que esse mesmo Estado impulsionou uma nova política sobre a família de tendência pró-natalista. Os custos da maternidade e todos os benefícios salariais com a família foram parte da importante redistribuição das crescentes rendas nacionais que viabilizaram a materialização dos benefícios. O fim da guerra deflagrou notável aumento da taxa de natalidade nos países centrais da Europa. Os avanços da medicina por um lado e, por outro, a melhoria significativa da alimentação e da higiene, possibilitaram a redução dos riscos de mortalidade para mães e recém-nascidos, engendrando o que nos EUA ficou conhecido como o baby—boom. Pouco depois, a partir dos últimos anos da década de 1950, a tendência se inverte: as novas possibilidades de alimentação do bebê encurtaram o período de amamentação, permitindo que a tarefa fosse realizada por outras pessoas, capazes de substituir a progenitora, liberando a mãe para atividades extradomésticas como o trabalho e o estudo. Por outro lado, o maior desenvolvimento científico, que permitiu o aperfeiçoamento dos anticonceptivos hormonais e dos dispositivos intra-uterinos (DIU), conferiu às mulheres maior decisão sobre a reprodução. O lar das classes médias e dos setores mais acomodados do proletariado sofreu durante o período importante transformação estrutural: as novas moradias contavam com cozinhas em ambientes separados, banheiros equipados e todas as redes de serviços (gás, água, eletricidade), eliminando algumas das

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tarefas mais pesadas dos afazeres domésticos. Também o uso de eletrodomésticos significou alívio a outras tantas. Tudo isso permitiu liberar as mulheres, material e ideologicamente, para a produção de bens e serviços. Isso foi necessário, por sua vez, para aumentar o salário familiar. O trabalho feminino, inclusive a inserção das mulheres das classes médias no mercado como força de trabalho, sobretudo nos setores de serviços e oficinas, converteu-se em um salário adicional à família, permitindo a ascensão social e maior obtenção de bens de consumo, aumentando o bem-estar e a qualidade de vida. Em última instância, o produto final da transformação do papel tradicional das mulheres em seu lar se materializa “na desvalorização funcional do casamento e da família como desígnio, a desinstitucionalização e a precarização do vínculo conjugal.” 3 Essa mudança profunda nas relações entre os gêneros incitou uma transformação na subjetividade feminina, que ficou conhecida como o “mal-estar das mulheres”. A mudança é interpretada por algumas autoras como o motivo “subjetivo” que origina o movimento feminista da segunda onda. Mas o boom econômico e a conseqüente estabilidade da luta de classes não duraram eternamente.

Até o final dos anos 1960, com o fim do boom capitalista e o ascenso dos anos 1968-76, retoma-se a perspectiva de que com a luta do proletariado no ocidente contra os governos imperialistas, contra a burocracia stalinista no leste e contra as burguesias próimperialistas nas semicolônias, fortalecem-se as tendências ao enfrentamento com os pilares da ordem de Yalta. Como conseqüência disto, ressurgem as tendências à independência de classe que se expressa nos cordões industriais chilenos, na assembléia popular boliviana, nos conselhos de inquilinos e

3

Lefaucher, N., “Maternidad, familia, Estado” em Historia de las mujeres de Occidente, op. cit.

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soldados na revolução portuguesa etc. Sem dúvida, pode-se dizer que a ordem de Yalta e suas direções apoiadoras se debilitaram, mas todavia não foram derrotadas. O processo revolucionário foi desviado no centro e esmagado de maneira contra-revolucionária na América Latina.4

Durante o período em que ressurgiu a luta de classes, em ambos os hemisférios, um novo movimento de libertação da mulheres resplandece, de forma massiva nos países centrais influenciando pequenos setores de mulheres das classes médias nos países periféricos.

LIBERDADE, IGUALDADE E SONORIDADE 5 Frente a um cenário marcado por greves econômicas e políticas, lutas contra a opressão nacional, manifestações estudantis, das minorias negras e homossexuais e o poderoso movimento contra a guerra imperialista no Vietnã, as mulheres entram em cena na política internacional. Um número cada vez maior de mulheres passa a participar de campanhas pelo direito ao aborto e aos anticoncepcionais, pelo estabelecimento suficiente de cheches, contra toda restrição legal à igualdade. Denunciam o sexismo na política, no trabalho, na educação, na mídia e na vida cotidiana.6 4

5

6

Albamonte, E. y Sanmartino, J., “La historia del marxismo y su continuidad leninista-trotskista es la del álgebra de la revolución proletaria” em Estrategia Internacional Nº 10, 1998. Grande parte do conteúdo deste capítulo e do próximo é uma reelaboração do meu artigo “El feminismo y la democracia radical... mente liberal”, publicado em Lucha de Clases Nº 1, novembro de 2002. Em 1968, algumas mulheres norte-americanas outorgaram a coroa de Miss América a uma ovelha e jogaram sutiãs, faixas e cílios postiços em uma dita “lixeira da liberdade”. Em 1970, um grupo de mulheres francesas colocou uma coroa de flores no Arco do Triunfo em honra à

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Ainda que o movimento feminista ressurgisse fundamentalmente entre estudantes e donas de casa de classe média, as suas reivindicações, combinadas com as crescentes contradições do sistema capitalista, permitiram mobilizar setores muito mais amplos. Uma das principais consignas do movimento massivo de mulheres foram as de “salário igual por trabalho igual” e contra a dupla jornada que sobrecarrega as mulheres com as tarefas domésticas após a jornada de trabalho fora de casa. Como vimos, desde 1945 ocorria em todos os países proliferação de leis, regulamentações, decretos nacionais e internacionais que proclamavam, entre outras coisas, o direito a salário igual por trabalho igual. Não obstante, a diferença entre os salários masculinos e os femininos prevalece até 1968, quando a diferença diminui, para em 1975 chegar a uma margem entre 25% e 35%, de acordo com o país. Neste ano, as mulheres que trabalham fora de casa realizam o triplo do trabalho doméstico levado a cabo pelos homens. Quanto aos postos ocupados no mercado de trabalho, as mulheres estão particularmente representadas no setor terciário (comércio, banco, serviços), prevalecendo como ínfima minoria nas indústrias manufatureiras, na construção, nas obras públicas e transportes. Em 1966, nos EUA, Betty Friedan funda a Organização Nacional de Mulheres (NOW), que reuniu centralmente mulheres de classe média, casadas e com filhos. Em 1971 a organização passa a ter mais de 10 mil membras apesar de no ano de sua fundação sofrer uma ruptura por mulheres jovens e solteiras que deram à luz a um movimento mais radicalizado, o Movimento de Libertação das Mulheres (WLM). Grande conquista do movimento norte-americano de mulheres, impulsionada de maneira conjunta pela NOW e WLM foi a esposa desconhecida do soldado desconhecido e, junto a ela, outra com a seguinte frase: “A cada dois homens, um é uma mulher”.

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jurisdição imposta às companhias de telégrafos e telefones para que pagassem as diferenças retroativas de salário — em relação ao salário masculino — correspondente às empregadas mulheres, cifra que chegou a vários milhões de dólares. Outro ponto importante do ataque das mulheres foram as políticas sobre direitos reprodutivos, aborto e violência sexual. Em 1971, 365 mulheres famosas alemãs publicaram em uma revista que haviam abortado. Isto deu vazão a uma declaração de apoio de 86.500 assinaturas de mulheres que confessavam ter feito o mesmo, apresentada ao Ministério Federal da Justiça. Finalmente, em 1974, é permitido o aborto livre durante os três primeiros meses de gravidez sob algumas restrições. Ao mesmo tempo, na França, 343 mulheres célebres afirmavam publicamente ter realizado abortos voluntários e, no ano seguinte, se somaram 345 médicos que declaravam tê-lo praticado. O Movimento pela Liberalização do Aborto e da Contracepção na França abriu numerosas clínicas ilegais de aborto até 1975, quando o direito foi legalizado.7 Para além das lutas pelos direitos democráticos o feminismo da segunda onda se interessou pela reconstrução da história das mulheres, as origens da opressão e as implicações das diferenças de gênero em todas as áreas. Isso abriu amplo campo nas universidades que, a partir dessa época, incorporaram os Estudos de Gênero, Estudos das Mulheres, ou também denominados Estudos Feministas no âmbito acadêmico.8 As feministas acadêmicas questionaram os postulados da antropologia, psicanálise, sociologia, economia e história. Essas ciências funcionavam como veículos dos preconceitos mais 7 8

A solicitação, chamada de “as 300 sem-vergonhas” está reproduzida com suas assinaturas entre os documentos anexos. As historiadoras, por exemplo, questionaram a História por esta ter sido descrita, essencialmente, pelos homens (History) e apelaram à construção de uma história das mulheres (Herstory). Em inglês, a palavra History soa da mesma maneira que His Story (história dele). Daí a contraposição com o nome de Herstory, de her story (história dela).

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tradicionais contra as mulheres. E novamente ressurgem os sentimentos internacionalistas: em 1976, feministas de diversos países se reúnem em Bruxelas para o Tribunal Internacional de Denúncias de Crimes Contra as Mulheres. Influenciadas pelas experiências e contato com a literatura proveniente dos países centrais, muitas latino-americanas — sobretudo de classe média — deram início à formação de grupos de reflexão (conscientização) e ativismo pelos direitos das mulheres.9 Mas o movimento de conjunto nunca chegou a ser massivo como nos países centrais. O surgimento desses grupos se deu no marco de uma aguda radicalização da luta de classes que na América Latina se manifestou no ascenso operário e popular, cujas principais expressões foram os cordões industriais chilenos, a semi-insurreição do Cordobaço, na Argentina, as mobilizações estudantis — principalmente em Tlatelolco (México), considerada a experiência mais aguda — e a entrada em cena de numerosos movimentos de guerrilha urbana e camponesa. Os grupos feministas latino-americanos, portanto, se viram envolvidos rapidamente pela aguda luta de classes que exigia definições e compromissos. Como afirma Leonor Calvera em sua história do feminismo argentino: No sentido dos enfrentamentos, a maré do partidarismo que nos cercava não deixou de nos golpear fortemente no interior do grupo: reproduzimos velhos antagonismos tradicionais e inventamos outros. As análises tomavam cada vez menos a mulher como eixo e centravam-se nos esquemas de classe.10

Mais tarde, em meados dos anos 1970, a derrota desse ascenso da luta de classes a partir da contra-revolução sangrenta nos países latino-americanos inaugurou o curso de 9 10

Entre os documentos anexos reproduzimos alguns panfletos de grupos feministas da Argentina das décadas de 1970 e 1980. Leonor Calvera, Mujeres y Feminismo en Argentina, Bs. As., Grupo Editor Latinoamericano, 1990.

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uma nova ofensiva imperialista na região, depois conhecida como “neoliberalismo”. Os regimes ditatoriais que se assentaram em grande parte de nosso continente impediram o desenvolvimento do movimento feminista, não só pela instauração de uma ideologia reacionária baseada na defesa da tradição e da família, mas também pela perseguição política e pelo terrorismo de Estado, com seqüelas de torturas, exílios forçados, prisão, desaparecimentos e assassinatos de ativistas sociais, estudantis e políticos. A polarização social vivida por nossos países também se traduzia nas visões lançadas sobre o feminismo: a direita considerava as feministas subversivas e contestatórias; a esquerda, pelo contrário, pintava-as de “pequeno-burguesas”. Apesar de alguns grupos realizarem ações durante os regimes totalitários e outras mulheres manterem reuniões de reflexão e estudo em meio a um clima de hostilidade, o certo é que o movimento feminista latino-americano recupera o protagonismo logo no início dos anos 1980, com a derrubada das ditaduras e a instauração dos novos regimes democráticos burgueses em toda a região. As ditaduras conseguiram cortar, em grande medida, os fios de continuidade com a etapa anterior. Os planos iniciais do feminismo dos anos 1970 tornam a ser eixo de discussão. Em certo sentido, instalados os regimes democráticos, os anos do terror obrigaram as feministas latinoamericanas a “voltar ao início”. RADICAIS E SOCIALISTAS CONTRA O PATRIARCADO A perspectiva mais geral do movimento feminista dos anos 1970 é antiinstitucional. Por isso, não pode ser interpretada senão no marco do movimento insurrecional vivido em todo o mundo com o Maio Francês, o Outono Quente italiano, as mobilizações estudantis e pacifistas nos EUA contra a Guerra do Vietnã, a Primavera de Praga, o Cordobaço na Argentina etc.

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Somente na década de 1980 o movimento feminista iniciará o processo de reconciliação com instituições, universidade, partidos políticos e Estado, deslocando-se das mobilizações de rua rumo a outros âmbitos. Mas, por enquanto, as diferentes tendências dentro do movimento feminista se definiam em torno das diversas interpretações de opressão, por conseguinte, pelos métodos empregados na luta contra essa opressão. As tendências mais radicalizadas foram impulsionadas por mulheres que provinham de outras organizações ou movimentos de emancipação, com experiências políticas e militantes de esquerda. Muitas eram marxistas, mas repudiavam a discriminação à qual se viam submetidas em suas organizações políticas. Constituíram movimentos autônomos e radicais, porque consideravam que sua luta era contra um sistema patriarcal, sendo necessário transformá-lo profundamente, e os partidos de esquerda não faziam mais que reproduzi-lo, como se deixava entrever da experiência do chamado “socialismo real” e da experiência pessoal que cada uma viveu nos exércitos guerrilheiros e em outras organizações partidárias de esquerda. As feministas radicais se diferenciavam do denominado “feminismo liberal” que apenas se restringia a reformas que incluíssem as mulheres no mesmo sistema, tendo em vista equiparar seus direitos aos direitos adquiridos pelos homens, permitindo o acesso das mulheres aos mesmos cargos de poder que, até o momento, haviam sido de exclusivo domínio masculino. Não obstante, algumas mulheres aderiram ao que ficou conhecido por “feminismo da igualdade”, segundo o qual o gênero é contextualizado como social, não determinado pela anatomia, rechaçando o determinismo biológico do “sexo” ou a “diferença sexual”, utilizados habitualmente para justificar a discriminação das mulheres. Em outras palavras, para as feministas da igualdade biologia não significa destino. Pelo contrário, trata-se de lutar para eliminar as diferenças de gênero socialmente construídas, pois tais diferenças reforçariam a exclusão e a opressão das mulheres quando o objetivo

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era — por meio de diversas vias — colocar-se em pé de igualdade com os homens. As raízes do feminismo da igualdade se remetem ao pensamento da Ilustração e ao conceito de universalidade. Essa corrente se demarca nas estruturas racionais comuns a todos os sujeitos, sob a exigência de que toda norma pode ser universalizada. O feminismo da igualdade é a crítica que procura externar os estandartes da burguesia revolucionária do final do século XVIII, que proclamava a liberdade, a igualdade e a fraternidade enquanto redigia a Declaração Universal dos Direitos Humanos e se perpetuava com o poder do Estado. As mulheres da Revolução Francesa, que se atreveram a questionar as bandeiras burguesas que não contemplavam seus direitos como cidadãs, são as avós diretas das feministas da igualdade da segunda onda. Feministas de diversas tendências no início da segunda onda do movimento encontraram fundamento para suas posições na concepção política da igualdade. Ainda que com diferentes ideologias, feministas liberais, socialistas e radicais lutavam pela igualdade a partir de suas próprias concepções. Por um lado, liberais e socialistas exaltavam um feminismo reivindicativo, ou seja, incorporavam as demandas específicas das mulheres em ideologias mais globais. As liberais defendendo a necessidade de reformas no capitalismo para melhorar a situação das mulheres e as socialistas propondo a revolução socialista como política global dentro da qual se incluiriam as demandas específicas das mulheres. As feministas radicais, pelo contrário, defendiam posição inversa: se norteavam pela necessidade da abolição do patriarcado, transformando o feminismo em teoria política para a compreensão global do sistema social.11 11

Segundo Amélia Valcárcel, as feministas se organizavam em torno de duas grandes tendências: “As que esperavam a libertação dentro de políticas globais, que ficaram conhecidas como feminismo reivindicativo, e as que globalizavam o próprio feminismo como teoria política,

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As feministas radicais adaptaram inclusive alguns elementos da teoria marxista a uma nova concepção da opressão das mulheres, baseada na idéia central de que elas próprias são uma classe social. Esta última tendência tem como máximas expoentes Kate Millet e Shulamith Firestone.12 Kate Millet elabora uma concepção em termos de política sexual em que aponta o caráter de construção política do patriarcado como legitimador da ordem social vigente. Defende que, apesar de diferentes transformações históricas, o patriarcado é a coluna vertebral de todas as formas políticas do Ocidente. Millet redefine política como o conjunto de relações e compromissos estruturados de acordo com o poder, em virtude da qual um conjunto de pessoas é controlado por outro grupo. Feminista radical, Millet distingue por sua vez sexo e gênero, afirmando que a sexualidade é uma função moldada pela cultura, se propondo a demonstrar que não há necessidade biológica ou “correspondência” inevitável entre o primeiro e o segundo termo, senão modos culturais de relacioná-los. A sociedade organiza as diferenças entre homens e mulheres não só por meios legais, mas também a partir de atividades socializadoras mais sutis e inclusivas. Define o patriarcado como política sexual exercida fundamentalmente pelo coletivo dos homens sobre o coletivo das mulheres, levando-a a afirmar que “a dependência econômica faz com que a afiliação [das mulheres, N. da A.] a qualquer classe seja tangencial, indireta e temporal.” 13 Shulamith Firestone, por sua vez, autora de A dialética do sexo, defende que o materialismo histórico é a concepção do curso histórico que busca a causa última e a grande força motriz dos acontecimentos

12 13

feminismo radical.” A. Valcárcel, Sexo y filosofía. Sobre “mujer” y “poder”, Bogotá, Anthropos, 1994. As obras paradigmáticas desse movimento são Política Sexual, de Kate Millet, e Dialética da Sexualidade, de Shulamith Firestone. Kate Millet, Política Sexual; s/r.

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na dialética do sexo: na divisão da sociedade em duas classes biológicas diferenciadas com fins reprodutivos e nos conflitos de determinadas classes entre si; nas variações existentes nos sistemas de matrimônio, reprodução e educação dos filhos, criadas por determinados conflitos; no desenvolvimento combinado de outras classes fisicamente diferenciadas (castas); e na divisão arcaica do trabalho baseado no sexo e que evolucionou a um sistema (econômico—cultural) de classes.14

O que vai levá-la a levantar a hipótese de que a tecnologia permitirá libertar a mulher da opressão imposta a partir de seu corpo, graças ao desenvolvimento dos métodos anticonceptivos e da reprodução extra-uterina. Mas ao defender que a divisão central da sociedade é a divisão entre dois sexos (classes), subentende-se que a opressão específica das mulheres está relacionada de maneira direta à sua biologia, em que a desigualdade aparece assimilada novamente em termos naturais. O patriarcado segundo essa versão é estabelecido como estrutura de poder generalizada e a-histórica. Outras autoras, dentro da vertente conhecida como feminismo materialista, partem da premissa de que as mulheres não são um grupo natural cuja opressão se deve à sua própria natureza biológica, mas que conformariam uma categoria social. Para essas autoras as mulheres também constituiriam uma classe social, mas com interesses comuns, baseados em sua condição específica de exploração e opressão de gênero, ou seja, como produto de relação econômica e de construção ideológica que reforça a submissão. O feminismo socialista, por sua vez, procura combinar a análise marxista das classes com a análise da opressão da mulher, acentuando o conceito de patriarcado e do desenvolvimento histórico dessa forma de organização das relações familiares nos distintos modos de produção. As feministas socialistas, diferentemente das 14

Shulamith Firestone, La dialéctica del sexo, Barcelona, Kairós, 1976.

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feministas radicais, continuaram a entender o problema da desigualdade como questão absolutamente social: priorizaram o conceito de divisão sexual do trabalho — divisão que originaria uma conotação de desigualdade social entre ambos os sexos — e definiram o patriarcado como o conjunto de relações sociais da reprodução humana que se estruturam de tal modo que as relações entre os sexos são relações de domínio e subordinação. Para essa corrente, a submissão das mulheres na esfera da reprodução é logo transferida ao mundo da produção, fazendo com que a participação das mulheres no processo produtivo se dê em condições de inferioridade. Muitas alegaram que a situação de opressão é originária e modelo para as demais situações de desigualdade e dominação, como as de classe. Outras, seguindo as elaborações de Engels, sustentaram a existência de um matriarcado anterior à existência das sociedades divididas em classes e conceberam a opressão como relação que só aparece com esse antagonismo fundamental produzido pela possibilidade do excedente. As diferentes concepções acerca da origem da desigualdade e da opressão implicam diferentes estratégias políticas na luta pela igualdade. Enquanto as feministas liberais optariam pela inserção no aparato de Estado, em cargos de poder e instituições de regimes e governos, com o propósito de instalar reformas tendentes à igualdade, as feministas socialistas defenderiam, estrategicamente e por diversos matizes, a necessidade de uma revolução anticapitalista. Um fio condutor certamente enlaça as distintas vertentes: por vias reformistas ou revolucionárias todas estão de acordo em querer desterrar as diferenças entre os sexos para chegar à igualdade. A ambição sem dúvida foi rebatida poucos anos mais tarde. Em meados dos anos 1970, a perspectiva de uma nova tendência, conhecida como feminismo da diferença, iniciava sua entrada no movimento.

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Diferença de mulher, diferenças de mulheres “Reunir as mulheres não era suficiente, éramos diferentes. Reunir as mulheres gays não era suficiente, éramos diferentes. Reunir as mulheres negras não era suficiente, éramos diferentes. Reunir as mulheres negras lésbicas não era suficiente, éramos diferentes. Cada uma de nós tinha suas próprias necessidades, objetivos e alianças muito diversas. A sobrevivência advertia a algumas de nós que não podíamos nos permitir definir a nós mesmas com facilidade, nem ao menos nos restringir em uma definição estreita... Foi preciso certo tempo para darmos conta de que nosso lugar era precisamente a casa da diferença, mais que a segurança de uma diferença em particular” Audré Lorde

A OFENSIVA IMPERIALISTA VARRE TUDO1 O processo revolucionário que sacudiu o Oriente e o Ocidente simultaneamente entre 1968 e o início dos anos 80 foi fechado mediante concessões às massas, reformas nos países centrais e por golpes contra-revolucionários e sangrentos nos países periféricos. Para tornar isso possível as classes dominantes contaram com a colaboração das direções do stalinismo, da social-democracia e do nacionalismo burguês, que impuseram desvios, derrotas e traições à mobilização revolucionária e que permitiu ao imperialismo se rearmar e, no 1

Este capítulo se baseia em uma reelaboração da proposta apresentada na II Conferência Internacional “La Obra de Carlos Marx y los desafíos

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início da década de 1980, lançar uma contra-ofensiva econômica, política e militar contra o seu próprio proletariado, as massas semicoloniais e os estados operários burocratizados. Foi o início do que veio a ser chamado de a “ofensiva neoliberal”. Por meio do “neoliberalismo”, também conhecido nesse período como reaganismo-thatcherismo2, a burguesia mundial tentou sair da crise estrutural que primava no sistema capitalista nos últimos anos. A derrota da Argentina na Guerra das Malvinas de 1982 foi um dos elementos que atuaram como disciplinador para o continente latino-americano e todo o mundo semicolonial, situação que teve continuidade com a derrota do Iraque na Guerra do Golfo de 1991. A lição que se tirou dessa experiência foi de que não se podia enfrentar o imperialismo, pois era “invencível”. Também, a guerra suja da “contra”, armada pelos EUA na Nicarágua e a capitulação e cooptação das direções dos exércitos guerrilheiros da região, mediante pactos e acordos que desarticularam a revolução na América Central, terminaram de fechar o quadro da ofensiva imperialista que fragmentou e colocou o movimento operário e popular na defensiva. Na América Latina, foi um período marcado pelas “transições à democracia”, tendo como pano de fundo o terror semeado pelas ditaduras militares e as derrotas impostas às massas pelo imperialismo. A “democracia” se converteu na política privilegiada do imperialismo norte-americano ao nosso continente, como resposta defensiva diante da emergência da mobilização independente das massas contra os próprios regimes ditatoriais, que já estavam profundamente desprestigiados. A década

2

del siglo XXI”. Esta proposta ampliada foi publicada no Panorama Internacional www.ft.org.ar e na revista Luta de Classes Nº 2/3, abril 2004, com o título “Feminismo Latinoamericano: entre la insolencia de las luchas populares y la mesura de la institucionalización”. Ronald Reagan, do Partido Republicano, foi o presidente norte-americano deste período, e Margareth Thatcher a primeira-ministra britânica do Partido Conservador.

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seguinte, a dos anos 90, foi o período em que a transferência de riquezas da América Latina aos EUA e à Europa atingiu cifras escandalosamente siderais: cerca de 1 bilhão de dólares em lucros, pagamentos de juros da dívida, excedentes comerciais e pagamentos de regalias, somados à venda de ações das empresas mais lucrativas e a transferência do controle de importantes fatias dos mercados internos. Para chegar à situação atual, em que as 200 maiores multinacionais concentram nada menos que um quarto da produção mundial. Apenas os 200 magnatas mais poderosos possuem fortuna pessoal que supera o lucro anual de 2, 5 milhões de pessoas. Enquanto isso, na Europa dos anos 80, os governos “social-democratas” recém-eleitos como o de François Mitterrand na França ou o de Felipe González na Espanha se convertiam em furibundos agentes do capital, dando início aos ataques às conquistas do movimento operário e das massas que perduraram e se acentuaram nos anos 1990. A burocracia da União Soviética e dos países do leste europeu, por sua vez, entregava-se de pés e mãos atados ao imperialismo, facilitando a abertura dos mercados e a restauração capitalista diante da debacle econômica pelo sufoco das dívidas externas. Neste marco sociopolítico em que também se configurou a ofensiva ideológica que se sintetiza na idéia do “fim da história e das ideologias”, o movimento feminista começou sua transformação de “insurrecional” a “institucional”, partindo para a conquista de novos espaços nos regimes políticos, instituições do Estado, universidade, partidos burgueses e até nos organismos multilaterais de financiamento. Em nosso continente, a partir de 1981 surgem os Encontros Feministas da América Latina e do Caribe, que a cada dois ou três anos reúnem as feministas na reflexão política sobre a situação do movimento e na elaboração de novas linhas de ação.3 Não obstante, a academização, a incorporação às instituições dos 3

No final de 2002, ocorreu o IX Encontro, na Costa Rica.

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regimes políticos e dos diferentes estamentos de governo e o processo de criação das ONGs são as operações mais importantes que começam a reconfigurar o movimento feminista no período produzindo também, junto a uma ampla gama de novas experiências, ações e saberes, sua incipiente fragmentação e crescente cooptação. As críticas e as diferenças no que tange às concepções teóricas, aos fundamentos e às práticas no interior do próprio movimento não tardarão a aparecer. A ruptura entre “autônomas” e “institucionalizadas” é uma das expressões mais agudas que adquire a crítica interna. A princípio, a questão da “dupla militância”, entendida como o compromisso com o feminismo por um lado e organizações ou movimentos políticos não especificamente feministas foi um dos debates fundamentais. Os encontros que se estenderam ao longo da década de 1980 pautavam-se por essas discussões: além da dupla militância, a participação em diferentes correntes dentro do feminismo que expressavam diferentes heranças ideológicas e políticas, a discussão acerca da prática dos grupos de autoconsciência ou de “levar” a consciência a outros grupos de mulheres de setores populares etc. Bedregal alega: Tudo isto eram manifestações e expressões de diferentes concepções políticas expressas desde o primeiro encontro, era luta política de projetos políticos e filosóficos, mas que se ocultavam em uma aparente homogeneidade e pelo desejo de uma espécie de irmandade romântica de mulheres que tem dificultado reconhecermos, para além do discurso declarativo, como distintas, pensantes e atuantes de diversos projetos e de uma identidade de gênero mais facilmente centrada tanto nas vítimas do sistema patriarcal quanto nas construtoras de novas culturas.4

A década de 1980, para as latino-americanas e caribenhas, culmina no IV Encontro, realizado em Taxco, México: um grupo 4

Ximena Bedregal, “Los encuentros feministas: Lilith y todo el poder UNO”, em

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de mulheres elabora um documento crítico no qual descrevem com agudeza os “mitos” do movimento feminista que segundo as signatárias impedem o desenvolvimento do movimento. O documento tem grande repercussão. Ali se expressava o manifesto de que

o feminismo tem um longo caminho a percorrer, já que o que aspira realmente é a uma transformação radical da sociedade, da política e da cultura. Hoje o desenvolvimento do movimento feminista leva-nos a repensar certas categorias de análises e as práticas políticas às quais temos nos pautado.

Mais adiante, no mesmo documento, anunciam os “mitos” que nos impedem de valorizar as diferenças no interior do movimento e dificultam a construção de um projeto político feminista. São os seguintes: 1. A nós, feministas, não interessa o poder; 2. Nós, feministas, fazemos política de outra maneira; 3. Todas as feministas somos iguais; 4. Existe uma unidade natural pelo simples fato de sermos mulheres; 5. O feminismo só existe como uma política de mulheres para mulheres; 6. O pequeno grupo é o movimento; 7. Os espaços de mulheres garantem por si só um processo positivo; 8. Porque eu mulher sinto, é válido; 9. O pessoal é automaticamente político; e 10. O consenso é democracia. Para concluir que estes dez mitos geraram uma situação de frustração, autocomplacência, desgaste, ineficiência e confusão, que muitas de nós feministas detectamos e reconhecemos que existe e que está presente na imensa maioria dos grupos que hoje fazem política feminista na América Latina.

Propõem às feministas latino-americanas:

Não neguemos os conflitos, as contradições e as diferenças. Sejamos capazes de estabelecer uma ética das regras do jogo do feminismo, firmando um pacto entre nós, que nos permita

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avançar em nossa utopia de desenvolver em profundidade e extensão o feminismo na América Latina.5

Os mitos denunciados no documento de Taxco impediam o desenvolvimento das discussões políticas mais profundas, enquanto o movimento ia se reconfigurando de uma maneira que não tratava de incluir todas e que, sem dúvida, não podia criticar-se. Mas, apesar da repercussão que teve o documento, os mitos continuaram vivos em grande parte do movimento, inclusive nos dias de hoje, enquanto o próprio movimento, os encontros, os fóruns e outras instâncias de reagrupamento internacionais foram se elitizando por causa da crescente pauperização das massas em nossos países. No final da década, já eram notáveis os problemas que impediam, segundo algumas mulheres, o avanço do movimento feminista no sentido de uma “transformação radical da sociedade, da política e da cultura.” As divergências que se esboçavam, apesar das tentativas de homogeneização, de obturação da crítica e de “irmandade romântica”, fizeram-se mais iniludíveis no calor da aparente inevitabilidade da onda de demissões, privatizações e o ataque ao nível de vida das massas em nosso continente, que foi maior durante a década de 1990. Para muitas feministas, o processo agudo de institucionalização que permeou o feminismo dos países centrais e mais tarde impactou também o nosso continente, implicou a cooptação do movimento por parte do patriarcado, o que demonstrava que a 5

O documento “Del Amor a la Necesidad” foi elaborado coletivamente durante a oficina sobre Política Feminista na América Latina Hoje, do IV Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, Taxco, México, 21 de outubro de 1987. Entre as participantes estavam Haydée Birgin (Argentina), Celeste Cambría (Peru), Fresia Carrasco (Peru), Viviana Erazo (Chile), Marta Lamas (México), Margarita Pisano (Chile), Adriana Santa Cruz (Chile), Estela Suárez (México), Virginia Vargas (Peru) e Victoria Villanueva (Peru). Assinaram: Elena Tapia (México), Virginia Haurie (Argentina), Verónica Matus (Chile), Ximena Bedregal (Bolívia), Cecilia Torres (Equador) e Dolores Padilla (Equador).

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luta pela igualdade não questionava as próprias bases do sistema que oprimia as mulheres. Essa crítica levou muitas mulheres a pensar o que depois ficou conhecido por feminismo da diferença. Se a busca da igualdade deu margem à cooptação do movimento feminista, agora as feministas da diferença se propunham a destacar e revalorizar os aspectos que diferenciavam profundamente as mulheres dos homens que construíram o mundo de opressão e injustiça.

Assim, com a bancarrota das esperanças ilustradas de paz e progresso moral, assistimos ao surgimento da mulher como um Outro, agora positivamente conotado. Esse conceito da mulher adquire distintos caracteres segundo os pressupostos essencialistas ou construtivistas do pensamento que lhe assume: a mulher como o biologicamente Outro, como mãe nutricia e natureza fértil frente ao homem geneticamente destinado à agressividade; o feminino como o pré-lógico e inexpressável na linguagem corrente versus a razão masculina; a mulher como construção cultural do patriarcado, com valores positivos apesar de derivados da marginalização etc.6

REVALORIZAÇÃO DO FEMININO Neste marco, o feminismo da diferença tentará demonstrar que a simbolização dos dados morfológicos da diferença dos sexos ocorreu sob um olhar hierárquico, que privilegia o corpo masculino em detrimento do corpo feminino. A partir dessa perspectiva, toda luta pela igualdade será catalogada de assimilacionista a uma ordem androcêntrica, que considera valioso e respeitável só o que concerne aos homens. Ou seja, o 6

Alicia Puleo, “En torno a la polémica igualdad / diferencia”, Cátedra de Estudos de Gênero, Universidade de Valladolid, mimeo.

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igualitarismo reproduziria a desvalorização da feminilidade em sua aspiração por conseguir a equiparação com os direitos que o patriarcado outorga exclusivamente aos homens. O feminismo da diferença acusará o feminismo da igualdade de se ater ao discurso do Um e do Outro do pensamento falocêntrico. Porque se no sistema patriarcal o homem se instala como modelo do universal (ser humano = homem), ser mulher então é ser o Outro, ou seja, algo diferente e inferior que o Um que funciona como norma. A crítica específica que se lança sobre o feminismo da igualdade é que aspira que a mulher se constitua no Mesmo (que o Um) e essa aspiração formaria parte da dominação, seria funcional a ela. Tratar-se-ia de uma permissão que o sistema patriarcal outorga às mulheres; uma cilada da mesma lógica falocêntrica, pois o próprio sistema patriarcal está constituído pelo Um, que exerce a supremacia e pelo Outro inferior que luta por ser o Mesmo que o Um eternamente, sem êxito. Assimilando a consigna Black is Beautiful (negro é bonito) dos movimentos anti-racistas norte-americanos ou a do orgulho gay, as feministas da diferença propunham uma nova interpretação positiva e revalorizadora da feminilidade. Partindo de uma crítica radical à psicanálise, especialmente em sua vertente lacaniana, o feminismo da diferença se propõe a pensar filosoficamente a diferença sexual, considerada como fundante, que é ocultada nos discursos da filosofia, da ciência, da psicanálise e da religião, todos estes discursos do pensamento falocêntrico. Esse ocultamento atuaria para encobrir que todos os seres humanos são nascidos mulher, que o feminino é o primordial negado; negação a partir da qual se constitui o sujeito oprimido pelas leis da linguagem. A conseqüência política que então se deriva disto é de que é necessário exaltar a diferença, não lutar por obter a “mesmidade”, que só levaria as mulheres a um “ficar pra trás”, “ser segundas” dos homens. Em suma, podemos dizer que — ainda com múltiplos matizes entre diversas autoras e tendências — o feminismo da diferença

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coloca essencialmente uma idealizada e louvável feminilidade intrínseca ao ser mulher. Destacando a maternidade como própria das mulheres — e, por conseguinte, supostas qualidades positivas associadas, como a não-violência-, ressaltando a relação da mulher com a natureza por oposição ao mundo da cultura masculina e chegando a defender a necessidade de um mundo de mulheres não contaminado pelo masculino — inclusive o separatismo como opção político-sexual —, as feministas da diferença levantam em conjunto que a libertação das mulheres depende da criação e do desenvolvimento de uma contracultura feminina. Célia Amorós, renomada filósofa defensora da igualdade, chama essa valoração voluntarista de “a valoração estóica”, considerando-a uma armadilha da ingenuidade do oprimido. Em uma de suas conferências realizadas em Buenos Aires, dizia com forte tom irônico: Se vai reconhecer como valioso aquilo que já foi reconhecido historicamente como valioso, ainda que as mulheres agora decidam que o valioso é lavar panelas ou pratos.

Depois, acrescenta:

Se queremos consolar a nós mesmas, assando frangos ao forno por todas as frustrações que temos na vida social, pensando que assar frangos é a própria essência da realização e da criatividade, como dizem certas revistas e assumem certas feministas, naturalmente está no seu direito; agora bem, terá que saber que assim não se transformam as coisas.7

Uma das críticas fundamentais ao feminismo da diferença é de que ao negar a existência de algo que possa se qualificar de “genericamente humano”, conclui-se em um dualismo ontológico irredutível. Se não existe humano sem sexualismo, 7

Celia Amorós, Mujer: participación, cultura política y Estado, Bs. As., Ediciones de la Flor, 1990.

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conclui-se na impossibilidade lógica e ontológica “do humano”, ou seja, na negação de um universal que possa transcender a diferença dos sexos. A conseqüência teórica mais importante da negação é o retorno ao essencialismo biologicista, tão combatido pelas feministas da igualdade nos princípios da segunda onda. O feminismo da diferença não faria outra coisa senão ontologizar as diferenças construídas socialmente e por meio das quais as mulheres são submetidas à discriminação de gênero. De outro ponto de vista, o feminismo da diferença é criticado por condenar as mulheres de maneira irremissível à marginalização. Se os sistemas de dominação propõem um dilema para os oprimidos, a integração ao sistema por meio da admissão de suas demandas de igualdade ou da marginalização de subculturas ou guetos em função das diferenças, o feminismo da igualdade teria como conseqüência inevitável o primeiro, e o feminismo da diferença condenaria inexoravelmente às mulheres ao segundo. É certo que mais tarde diversas autoras falaram de igualdade na diferença ou diferença na igualdade para tentar conciliar duas vertentes que se consideravam contraditórias e em enfrentamento. À disjuntiva igualdade/diferença dentro do feminismo pode-se dizer que fora refutada como falsa antítese, colocando que o contrário da igualdade é a desigualdade e não a diferença, enquanto o que se opõe à diferença é a identidade e não a igualdade. Desse novo ponto de vista entende-se que defender a igualdade sem levar em conta as diferenças pode implicar a aceitação das desigualdades sociais de certas pessoas ou grupos, tal como ocorre com o direito formal burguês. Pelo contrário, a igualdade desejada não estaria baseada em semelhanças ou identidades entre grupos ou pessoas, mas na valoração igualitária das diferentes experiências particulares. No entanto, a tentativa conciliadora nada mais é que uma tentativa, muitas vezes eclética, de reatar laços entre as duas tendências mais importantes do feminismo da segunda onda.

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A discussão entre a igualdade e a diferença no feminismo não parece ter saído nos termos em que se projeta. Quando o horizonte da discussão não transcende os marcos estreitos do sistema de dominação carece de sentido ou, em outras palavras, adquire o sentido de uma contradição irresolúvel. Para resolver a questão é necessário antes de qualquer coisa definir qual o horizonte histórico e social em que se insere atualmente a opressão das mulheres. Então, inevitavelmente, nos deparamos com o horizonte do Estado, que longe de ser neutro para o desenvolvimento da liberdade, da igualdade e da fraternidade, é um Estado capitalista, ou seja, baseado na exploração de uma classe por outra. O Estado moderno capitalista consegue se divorciar “mais e mais” da sociedade que lhe concebeu, como bem diz Engels, só à custa de eliminar de algum modo as distinções de nascimento, de classe, de educação e de profissão. O Estado burguês consegue esse divórcio separando as esferas da política e da economia de maneira fetichista; separando o ser humano em homem (burguês) por um lado e cidadão pelo outro. Sua proclamação de que todo cidadão é igual perante a lei é a máxima expressão da liberdade e da igualdade jamais alcançada nos marcos de um sistema baseado na exploração de uma classe por outra. Claro que, enquanto proclama a igualdade jurídica entre os cidadãos, o Estado permite que — na vida real dos homens e mulheres — as diferenças baseadas na propriedade, na educação etc, continuem existindo. Em última instância, a existência das diferenças reais constitui a base pela qual se faz necessária sua própria existência como Estado. Ou seja, se o Estado pode proclamar a universalidade é porque abstrai os elementos particulares da existência social. Visto isso, não haveria contradição entre a proclamada igualdade e a desigualdade real: ambos os aspectos são mutuamente dependentes. Enquanto as posturas liberais defendem a luta pela igualdade jurídica sem questionar os fundamentos desse marco legal, o marxismo apontará permanentemente a contradição

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entre o “como se” da igualdade para o direito e as condições reais profundamente desiguais da existência. O direito, para os marxistas, é concebido sempre como “o direito à desigualdade”; como diz Marx na Crítica do Programa de Gotha: O direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem se medir sempre pelo mesmo parâmetro, sempre e quando lhe enfoque desde um ponto de vista igual, sempre e quando lhe observem somente um aspecto determinado...8

Por isso, homens e mulheres são considerados pelo Estado como seres genéricos, ou seja, integrantes de uma universalidade obtida mediante a abstração de suas vidas reais e individuais. Não poderia ser diferente. Para medir as diferenças é necessário partir de um padrão de igualdade; para sanar as desigualdades, é necessário considerar o horizonte de um mesmo direito. A igualdade e a liberdade, em última instância, encontram seu fundamento último na existência da propriedade privada e das classes sociais antagônicas. Marx expressa a contradição entre os ideais da revolução burguesa e a própria existência da propriedade privada em sua crítica à Declaração Universal dos Direitos Humanos:

... a liberdade é o direito de fazer e tentar obter tudo o que não prejudica os outros. Os limites dentro dos quais um pode se mover sem prejudicar os outros estão definidos pela lei, como uma estaca demarca o limite entre dois campos. Trata-se, porém, da liberdade do homem como algo isolado, fechado em si mesmo. (...) Mas o direito de liberdade não reside na unificação dos homens, que precede a distância entre homem e homem. É o direito desta distância, o direito do indivíduo limitado que se limita a si mesmo. A aplicação prática do direito à liberdade é o direito à propriedade

8

Karl Marx, Crítica del Programa de Gotha; Bs. As., Compañero, 1971.

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privada. De que se trata o direito à propriedade privada? (...) Pois bem, o direito à propriedade é o direito de gozar e dispor da própria riqueza, arbitrariamente, sem levar em conta os outros homens, independentemente da sociedade: é o direito ao egoísmo. Essa liberdade individual e sua aplicação são o fundamento da sociedade civil. Através dela, cada homem percebe no outro não a realização, mas a limitação de sua liberdade.9

Entender a luta pela emancipação das mulheres unicamente como busca pela igualdade inclusiva no sistema tende ao reformismo: pressupõe a existência de um sistema perfectível com relação às mulheres, cujo coração — que continua a ser profundamente hierárquico — não é questionável. O capitalismo é o primeiro modo de produção na história que possibilita que os sujeitos sejam emancipados de todo vínculo comunitário e se transformem em cidadãos livres, capazes de vender a si mesmos (sua força de trabalho) no mercado. O contrato será a expressão das novas relações sociais: as que se estabelecem entre indivíduos “livres” na sociedade civil para a consecução de determinados fins. Liberdade que em seu exercício tanto oculta a profunda desigualdade que existe entre a mulher e o homem no contrato matrimonial, como também oculta a desigualdade entre a burguesia e a classe operária no contrato de trabalho. Mas as feministas da diferença não apresentaram nenhuma alternativa: dando as costas ao Estado e confortando-se nas relações entre mulheres e a criação de uma nova cultura feminina contra-hegemônica aos valores tradicionais do patriarcado, têm colaborado com a despolitização do movimento feminista e em seu distanciamento das lutas sociais, onde sempre inevitavelmente há mulheres. Dizer que não queremos nos integrar ao Estado capitalista e patriarcal não é o suficiente para acabar com ele. Para isto, é necessário enfrentá-lo e destruí-lo. Nesse caminho, a busca por melhores formas de 9

Karl Marx, La cuestión judía, Bs. As., Need, 1998.

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existência, mais igualitárias, nos marcos estreitos desta sociedade de exploração para os milhões de mulheres do mundo é importante. Mas não é o suficiente, enquanto nossos corpos, nossos desejos, nossas próprias vidas continuam submetidas à exploração, à discriminação e à submissão, surgidas das relações de propriedade e garantidas pelo Estado do qual não podemos escapar utopicamente. As feministas da igualdade foram acusadas pelas feministas da diferença serem cooptadas pelo patriarcado em troca de algumas migalhas, pequenos privilégios por pertencer a alguns lugares demarcados no poder para muito poucas. Mas as feministas da diferença também defendem — por omissão — o sistema capitalista que se recusam a enfrentar, elegendo uma vida autônoma, à “margem” do sistema, privilegiando as redes de solidariedade e as vivências pessoais particulares ao invés da política ativa contra o mesmo. Porque ainda que não queiramos enxergar, ainda que a solidariedade entre algumas mulheres funcione como uma bolha indestrutível, onde a vida pode ser quase como sonhamos, o sistema continua ali impedindo o direito ao aborto, garantindo menores salários para as mulheres por igual trabalho e fazendo com que as mulheres sejam as mais pobres entre os pobres do planeta. INTERSECÇÃO DE MÚLTIPLAS DIFERENÇAS Enquanto isso, no seio do movimento, as mulheres negras e as mulheres lésbicas acusavam o feminismo de ser um discurso imperialista que pretendia representar os interesses de todas as mulheres a partir da posição exclusiva e particular das mulheres brancas anglo-saxônicas de classe média e heterossexuais. Suas experiências não coincidiam com as de outras mulheres, suas situações de opressão não eram idênticas, seus vínculos com os homens também eram diferentes; inclusive, muitas vezes os vínculos eram privilegiados frente a relação com outras

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mulheres de etnias, classes ou nações diferentes. O discurso feminista era criticado por seu essencialismo: sob a definição unívoca de mulher, pretendia-se encontrar uma experiência unificadora para todas as mulheres. A discussão se desloca, então, da diferença de gênero às diferenças entre as próprias mulheres. Isto inaugurou um enorme questionamento sobre diversos tópicos no movimento feminista: o heterossexismo, o racismo, o colonialismo, as alianças políticas com outros movimentos sociais etc. No terreno teórico, com a explosão das múltiplas diferenças privilegiaram-se os estudos localizados em detrimento das teorias sociais inclusivas. O multiculturalismo derivou, então, nos estudos de gênero e no próprio movimento feminista com seu respeito à diversidade, porém, arrastando consigo a renúncia a todo “horizonte de universalidade”. Soltando as amarras das estruturas sociais, das determinações históricas e econômicas, as diferenças não foram compreendidas — segundo os novos estudos culturais — a partir de uma teoria capaz de desmascarar a opressão das portadoras e portadores de “identidades desrespeitadas”, como vítimas de uma ideologia à qual estavam sujeitos por seu poder repressivo. O multiculturalismo escapando ao reducionismo econômico também se distancia da política. Despojou as identidades de sua ancoragem em determinadas relações necessárias de colaboração social: transformou os “produtores” culturais em “consumidores” culturais, transtornou as identidades em meras diferenças textuais, discursivas; exaltou os valores, as experiências e mesmo as opiniões dos grupos subordinados, assumindo que eram em si mesmos progressistas, e que surgiam diretamente da experiência de subordinação. Os estudos sobre a vida cotidiana são a expressão acadêmica, por exemplo, da concepção de “dar voz” aos oprimidos, pois essa voz, ao ter sido silenciada mediante os mecanismos da opressão, da subordinação e da exclusão dos discursos dominantes é, em si mesma, autêntica por definição.

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No decorrer da segunda onda do movimento feminista observamos como a diferença, a princípio, era uma construção social contra a qual deveria rebelar-se a se converter em natureza biológica ponderável. Mais tarde, com a irrupção das diferenças no seio do movimento feminista a diferença foi recategorizada como absolutização da identidade. Da crítica aos modos de produção e ao sistema patriarcal passa-se à crítica da justiça. Como afirma Daniel Bensaïd, já não se trata de questionar a exploração, mas a alienação generalizada. Ou seja, a exploração aparecerá como mais um tipo de alienação no sistema capitalista do final do século e, por fim, a questão da reapropriação social não ocupará o centro dos programas políticos pela emancipação.10 Este lugar estará ocupado agora pela demanda de uma aceitação cada vez maior das diferenças alienadas na marginalização social, como se tratasse de um processo gradual de evolução sem sobressaltos e, portanto, pacífico, à libertação de cada indivíduo que integra a sociedade. Como diz Slavoj Zizek: Então, nossas batalhas eletrônicas pairam sobre os direitos das minorias étnicas, os gays e as lésbicas, os diferentes estilos de vida e outras questões desse tipo, enquanto o capitalismo continua sua marcha triunfal.11

O fenômeno da explosão das diferenças no interior do feminismo levou à inclusão de diversas vírgulas e etecéteras em definições sem hierarquia acerca das identidades. Assim ocorrem, então, os termos classe, etnia, orientação sexual, idade etc. Quanto mais etecéteras se acrescentam nas definições mais progressismo. O conceito de classe social ressurgiu no feminismo, mas dessa vez considerado mais uma variável entre tantas outras para definir a identidade dos grupos e dos sujeitos. 10 11

Daniel Bensaïd, Les irreductibles; mimeo, traducción de Rossana Cortez para el CEIP León Trotsky, 2001. Slavoj Zizek, Reflexiones sobre el multiculturalismo, Bs. As., Paidós, 1998.

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Ao colocar no mesmo nível as diferenças de gênero, de orientação sexual, de etnia etc, com as de classe, o multiculturalismo empreende a tarefa que — segundo o autor citado anteriormente — consiste em tornar invisível a presença inalterável do capitalismo. Que as determinações de classe se situem em um plano de igualdade com as demais significa ocultar o papel chave desempenhado pela economia na estruturação da sociedade; ou seja, encoberta em um plano de equivalências o uso primordial que o capitalismo faz das diferenças (e assim da opressão de gênero e da subordinação de diferentes grupos por razões culturais, étnicas, de orientação sexual etc) para resguardar o status quo de sua dominação sistêmica.

É a “repressão” do papel chave que desempenha a luta econômica, o que mantém o âmbito das múltiplas lutas particulares, com seus contínuos deslocamentos e condensações. A política de esquerda, que projeta “cadeias de equivalências” entre as diversas lutas tem absoluta correlação com o abandono silencioso da análise do capitalismo no sistema econômico global, com a aceitação das relações econômicas capitalistas como um marco inquestionável.12

Para o pensamento marxista, pertencer a uma classe não pode simplesmente se agregar a outras múltiplas e diversas identidades, pois é o eixo em torno do qual as outras identidades se articulam e adquirem sua definição concreta. As identidades que o sistema entende como subordinadas (mulher, negro, homossexual etc) só adquirem significação social concreta quando relacionam seu vínculo com uma classe social, sendo a classe o eixo que determina a vivência particular de cada sujeito de sua própria subordinação identitária. A articulação das diversas determinações de gênero, sexualidade, etnia etc, está fundada na estreita articulação que existe entre exploração e opressão sob o domínio do capital. É certo que cada sujeito 12

Idem.

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é uma combinação particular de múltiplas características, há diversos espaços de identidade, mas só uma leitura liberal pode levar à interpretação de que a sociedade existente é o resultado de uma somatória de indivíduos com múltiplas características identitárias. Negar-se a compreender a totalidade do sistema capitalista como estrutura leva, necessariamente, à impossibilidade de questioná-lo profundamente e por fim, de subvertê-lo. Se o matrimônio, por exemplo, é uma instituição que por meio do contrato sexual subordina as mulheres aos homens, também é certo que o casamento de uma mulher com um homem da classe possuidora dos meios de produção a exime da possibilidade de ser explorada. Pelo contrário, as mulheres que devem vender sua força de trabalho carregarão nas costas as duplas cadeias às quais este sistema capitalista as submete, como mulheres e como trabalhadoras. Neste caso, a opressão e a exploração se conjugam de forma dramática; já no caso das mulheres que se casam com homens da classe possuidora, muito pelo contrário, a relação de opressão as eximem da exploração. Como marxistas, não é a noção de diferença o que questionamos, mas sua naturalização biológica ou sua absolutização. Inclusive, o relativismo que enfocam as diversas identidades, igualmente respeitáveis. Como afirma o marxista inglês Terry Eagleton, ninguém tem uma determinada pigmentação da pele porque outros tenham outra, ninguém tem um sexo porque há outros que possuem um diferente, é certo que milhões de pessoas estão na “posição” de assalariados porque há poucas famílias no mundo que concentram em suas mãos os meios de produção. Ambas as categorias (burguês/ proletário, ou explorador/explorado) se relacionam mutuamente de maneira tal que só abolindo o vínculo específico (capital/trabalho) será possível abolir a “identidade” subordinada, de um modo que não é igual para as outras identidades.13 Em uma sociedade sem 13

“...ninguém tem uma espécie de pigmentação de pele porque outro tem outra, ou é homem porque alguém mais seja mulher, no sentido de que

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opressão de nenhum tipo, podemos imaginar as mulheres em uma posição igualmente hierarquizada que os homens, o mesmo para negros e brancos ou heterossexuais e homossexuais. Mas haverá mulheres e homens, peles de todas as cores e orientações sexuais das mais diversas, coexistindo em harmonia. Ou seja, não é necessária a eliminação de uns ou outros para a eliminação da situação de opressão (é precisamente disso que se trata!). Não há possibilidade, sem dúvida, de pensar analogamente a igualdade de “reconhecimento” para burgueses e proletários. São categorias identitárias mutuamente necessárias e excludentes. Libertar a humanidade da escravidão assalariada significa, irremediavelmente, combater o sistema em suas raízes revolucionando-o. A emancipação da classe operária tende à eliminação de todas as classes. Buscar o “reconhecimento” da classe explorada significa eliminar a propriedade privada, ou seja, a própria classe exploradora. Só com a revolução social que ponha em questionamento essa relação, é possível construir as condições de possibilidade para a eliminação de todas as hierarquias e valores com os quais sustentam-se as diferenças, elevando-as à busca por suas máximas potencialidades, que transcendam as prisões metafísicas do direito civil igualitário e as masmorras úmidas e obscuras das putrefatas relações de exploração, impostas à maioria da humanidade por uma minoria parasitária.

uma pessoa só é trabalhador sem terra porque outros são latifundiários.” Terry Eagleton, Las ilusiones del posmodernismo, Bs. As., Paidós, 1998.

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Pós-Modernidade, Pós-Marxismo, Pós-Modernismo e Pós-Feminismo “Existe outro ponto de partida normativo para a teoria feminista que não requeira a reconstrução ou a atualização de um sujeito feminino que não pode representar, e muito menos emancipar, o conjunto de seres corpóreos que se encontram na posição cultural de mulheres?”

Judith Butler

OS ANOS 90: ONGS E TECNOCRACIA DE ESQUERDA A década de 1990 começou com a derrota do Iraque na Guerra do Golfo, nas mãos de uma enorme coalizão militar de potências imperialistas, o que, por sua vez, permitiu redobrar o ataque sobre o resto do mundo semicolonial. Aprofundaram-se a “abertura” das economias aos monopólios internacionais e a transformação de países como os nossos em “mercados emergentes”, que só serviram para a rápida “emergência” de capitais especulativos. Diante da semelhante espoliação imperialista, os organismos financeiros internacionais constataram o inevitável: o ataque provavelmente despertaria a resposta daqueles que perderam tudo. A “governabilidade” foi o nome que os tecnocratas encontraram para o problema que se aproximava.

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Governabilidade, traduzida como o conjunto de condições necessárias para sustentar o processo de reformas, evitando a irrupção dos movimentos de massas e que incluía a necessidade de estabelecer relações “frutíferas” para o desenvolvimento sustentável com os movimentos sociais e suas organizações. Desse modo, acompanhando as privatizações dos serviços do Estado, o desemprego crescente e a precarização do trabalho, tanto o Banco Mundial como outros organismos financeiros internacionais começam a projetar reformas visando ao financiamento na relação com as organizações sociais. Quando a maior parte do programa “neoliberal” já fora implementada, o Banco Mundial priorizou o financiamento de programas sociais sob os lemas da participação e transparência, reapropriando-se sempre que necessário dos discursos críticos. As organizações não governamentais foram as executoras privilegiadas de seus projetos assistencialistas focalizados. O Banco Mundial, tal como o resto das agências de financiamento, cumpriu no período um papel político e ideológico muito importante em relação ao controle social. Os intelectuais outrora esquerdistas se transformaram em tecnocratas progressistas, que assumiram a responsabilidade de colaborar com os projetos de governabilidade, desenvolvimento sustentável etc. Esses “pós-marxistas” na administração das ONGs não colaboraram com a redução do impacto econômico de maneira substancial, mas por sua vez contribuíram enormemente em desviar a população da luta por seus direitos. A cooptação alcançou cifras indiscutíveis: segundo dados da OECD, em 1970 as ONGs dos países latino-americanos receberam 914 milhões de dólares; em 1980, a cifra subiu para 2, 368 bilhões de dólares e em 1992, se aproximou da casa dos 5, 200 bilhões. Isto significa que, em 20 anos, o dinheiro destinado às ONGs aumentou em mais de 500%. A esses números somam-se os subsídios outorgados pelos governos “do norte”, que de 270 milhões que dispuseram em meados dos anos 70, elevaram sua cifra a 2.5 bilhões no princípio dos anos 1990.

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Em termos gerais, as estatísticas da OECD nos falam de um aporte estatal e privado às ONGs de cerca de 10 bilhões de dólares, o que representa um quarto da ajuda bilateral global.1 Muitas feministas com certo prestígio no movimento, conhecimentos específicos e trajetória política na reivindicação dos direitos das mulheres, tomaram parte na tecnocracia que se somou aos organismos multilaterais, às agências de financiamento, ao Banco Mundial e às milhares de ONGs, que se transformaram também em plataformas para o lançamento de carreiras pessoais. Outras se mantiveram à beira dos financiamentos e criticaram duramente essas tendências, mas sua voz foi minoritária e sua luta — ainda que de caráter reivindicatório — só encontrou ressonância no vazio que as cercava. As feministas autônomas da ATEM2, na Argentina, denunciavam, com estas palavras, o processo de formação das ONGs que impregnou o movimento:

A maioria destas ONGs formadas por técnicas e profissionais trabalha com as mulheres de ‘setores populares’, de bairros pobres. Apresentam-se como mediadoras entre as agências de financiamento e os movimentos de mulheres e formulam programas, brindando serviços que vão desde oficinas e cursos de todo tipo à distribuição de alimentos, à organização de setores populares, planificação familiar (controle da natalidade) etc. Essa relação, que implica diferenças de classe, de poder e de acesso ao manejo de recursos, gera vínculos hierárquicos e tensões entre as mulheres das ONGs e dos movimentos em que trabalham, além das competências entre as profissionais pelos financiamentos.3

O neoliberalismo, por meio de mecanismos como estes despolitizou os movimentos sociais, inclusive o feminismo. 1

Cifras de 1992.

3

Fontenla, M. e Bellotti, M., “ONGs, financiamiento y feminismo”, em Hojas de Warmi Nº 10, Barcelona, 1999.

2

ATEM, Associação de Trabalho e Estudo da Mulher, Buenos Aires.

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Como apontam muitas feministas autônomas, as ONGs acabaram sendo confundidas com o próprio movimento, seus projetos financiados seus trabalhos pagos se confundiram com “ações”, como se fossem as próprias ações que os movimentos realizam como reivindicações, exigências e denúncias na luta por uma transformação radical. Em síntese, as políticas neoliberais que começaram na década de 1980 e atingiram seu ponto culminante durante a década de 1990 fizeram com que o movimento feminista se fragmentasse e se privatizasse. PERFORMATIVIDADE, PARÓDIA E DEMOCRACIA RADICAL Acompanhando este processo, em relação às elaborações teóricas, durante a década de 90 as tendências pósestruturalistas adquiriram maior influência. Além da amplíssima variedade de posições teóricas, ideológicas e inclusive dos compromissos militantes em relação aos movimentos sociais, quem teve maior difusão e preponderância no debate feminista do período foi Judith Butler. Judith Butler é professora de Filosofia no Departamento de Retórica e de Literatura Comparada da Universidade da Califórnia, Berkeley. Já adquiriu notoriedade em âmbitos acadêmicos e movimentos de ativistas e seus livros têm sido traduzidos para outros idiomas. O livro que mais gerou debate foi O gênero em disputa, publicado em inglês em 1990 e traduzido para o espanhol quase uma década mais tarde. No prefácio da edição de 1999 em espanhol Butler sustenta que seu propósito é criticar a suposta heterossexualidade do feminino e que o fará a partir da ótica do pós-estruturalismo, ou seja, mediante a desconstrução das categorias de sexo, gênero, desejo etc. Ela se pergunta de que maneira as práticas sexuais não normativas põem em dúvida a estabilidade do gênero como categoria de análise.

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Segundo Butler, as minorias seriam respeitadas caso sejam transformadas as estruturas culturais valorativas subjacentes à dicotomia normativa homossexual—heterossexual. A solução alternativa a este binarismo — em que a homossexualidade é o correlato desvalorizado da construção da heterossexualidade — radicaria então na prática negativa de desconstrução que implica desmascarar a repressão fundante e excludente que estaria na base de toda identidade. Por isso, apresenta como conclusão as linhas gerais de sua Teoria da Performatividade de Gênero, defendendo que só as práticas paródicas transformam as categorias do corpo, o sexo, o gênero e a sexualidade. Inscrita no irracionalismo filosófico contemporâneo (tal como se desenvolve a partir de Nietzsche e Heidegger como críticos da metafísica da substância e é seguido por Derrida, com o pósestruturalismo desconstrutivista), e incorporando diferentes aspectos do giro lingüístico propiciado por Wittgenstein e Austin, seu trabalho consistirá em trazer uma crítica genealógica de inspiração foucaultiana às categorias de identidades, investigando os interesses políticos que há em designar como origem e causa das mesmas aquilo que considera o efeito das instituições, das práticas e dos discursos. Seu objetivo é responder à questão: Me perguntei então: qual configuração de poder constrói o sujeito e o Outro, nessa relação binária entre homens e mulheres e a estabilidade interna desses termos? 4

Mas o que transcende o texto e outorga-lhe lugar significativo no debate acadêmico e político é que se emoldura na discussão sobre as alternativas à globalização e à luta pelo reconhecimento de novos movimentos sociais que estariam surgindo como resposta ao pensamento único, e sua materialização em políticas neoliberais. 4

Butler, J., El género en disputa. El feminismo y la subversíon de la identidad, Bs. As., Paidós, 2000.

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Sua busca de uma estratégia desconstrutiva do princípio binário de inteligibilidade sexual tenta responder ao contexto histórico no qual se reformula, segundo a autora, a necessidade de múltiplos eixos de luta contra a opressão. Segundo Chantal Mouffe, a pergunta que se faz Butler sobre a agência abre novas possibilidades políticas: Em Gender Trouble, Judith Butler se pergunta: ‘Que nova forma de política emerge quando a identidade como uma base comum já não constrange o discurso da política feminista?’ Minha resposta é que visualizar a política feminista dessa maneira abre uma oportunidade muito maior para uma política democrática que aspire à articulação das diferentes lutas contra a opressão. O que emerge é a possibilidade de um projeto de democracia radical e plural.5

As profundas controvérsias que suscitou no movimento feminista e em outros âmbitos devem-se às radicais conclusões e à sua estranha proposta de subversão política. O marco de discussão no qual se desenvolvem as novas teorias é o do debate centrado, fundamentalmente, no que foi denominado “pósmarxismo”, que sustenta a idéia de uma democracia radical e pluralista, algo que a feminista Nancy Fraser denominou “a condição pós-socialista”. Enquanto o multiculturalismo difundia-se uma concepção positiva das diferenças de identidades para promover sua inclusão, uma nova concepção emerge definindo as identidades como construções discursivas repressivas e excludentes. Judith Butler é um exemplo paradigmático do segundo enfoque. Para esta autora a categoria mulher como representação de valores e características determinadas é normativa e, portanto, excludente. Seu posicionamento político frente a esta disjuntiva — a diferença da resposta que tenta o multiculturalismo — não passa pela combinação “politicamente correta” das diversas intersecções 5

Mouffe, Ch., El retorno de lo político, Barcelona, Paidós, 1999.

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que constituem o sujeito em suas múltiplas identidades. Ela proclamará, ao contrário, dispensa absoluta de toda identidade. Em seu artigo Problemas de los géneros, teoria feminista y discurso psicoanalítico, sustenta: Existe outro ponto de partida normativo para a teoria feminista que não requeira a reconstrução ou a atualização de um sujeito feminino que não pode representar, e muito menos emancipar, o conjunto de seres corpóreos que se encontram na posição cultural de mulheres? 6

A pergunta é retórica porque Butler já tem uma posição a respeito. Sua resposta é que a crítica do sujeito — tal como formulada pelo pós-estruturalismo — não deve limitar-se à reabilitação de suas múltiplas determinações interrelacionadas, no sentido do sujeito de coalizão pluralista que defende o multiculturalismo: a identidade é fictícia. O corpo generizado não tem status ontológico por fora dos atos que o constituem. Os discursos sociais sobre a superfície de corpo criam a falsa convicção de uma identidade, de uma essência interior, a posteriori. O resultado dessa repetição atual é a aparição da substância, convertendo o gênero aparentemente em uma expressão natural dos corpos. A repetição institucionaliza o gênero, tornando-o rígido novamente. Para Butler:

...atos e gestos, desejos atuados e articulados criam a ilusão de um núcleo interior e organizativo do gênero, uma ilusão mantida discursivamente para regular a sexualidade dentro do marco obrigatório da heterossexualidade reprodutiva.7

A ordem simbólica é pressuposta como o âmbito da existência social que se reproduz nos gestos constantemente 6

7

Butler, J., “Problemas de los géneros, teoria feminista y discurso psicoanalítico” em Feminismo/ Pós-modernismo de Linda Nicholson (comp.), Bs. As., Feminaria, 1992. Idem.

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reiterados, ritualizados, a partir dos quais os sujeitos assumem seu lugar nessa ordem. Então, fica aberta a possibilidade de modificar os contornos simbólicos da existência por meio da performance de atuações deslocadas parodicamente. Fica claro que quando fala de “paródia”, Butler não supõe a existência de um original a ser imitado. Pelo contrário, a paródia é a expressão de que o original não existe, é a paródia da noção de uma identidade original. As figuras lésbicas butch/femme etc são as produções que se apresentam como imitação de uma identidade de gênero que nunca existiu. No deslocamento mesmo dessas significações, segundo Butler, sugere-se a abertura à resignação e contextualização das identidades de gênero. Em uma entrevista a Regina Michalik, da revista feminista Lola Press, a filósofa estadunidense disse:

Para mim, queer é uma expressão que deseja que alguém não tenha que apresentar uma carteira de identidade antes de entrar em uma reunião. Os heterossexuais podem unir-se ao movimento queer. Os bissexuais podem unir-se ao movimento queer. Ser queer não é ser lésbica. Ser queer não é ser gay. É um argumento contra a especificidade lésbica na qual, se sou lésbica, tenho que desejar de certa forma, ou se sou gay, tenho que desejar de certa forma. Queer é um argumento contra certa normativa, da qual se constituiu uma identidade lésbica e gay adequada.

Nas palavras da teórica feminista Rosi Braidotti:

Ao atacar a ficção normativa de coerência heterossexual Butler demanda que as feministas produzam todo um conjunto de novos gêneros da não coerência.8

O anti-essencialismo desconstrutivista de Butler em seu afã por eliminar as identidades pressupõe um sinal de igual entre as mesmas, sem perguntar-se quais são as que se arraigam na sustentação do status quo de uma ordem de dominação 8

Braidotti, R., Sujetos nómades, Bs. As., Paidós, 2000.

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determinada e quais são as que, ao reivindicar-se, se opõem às relações sociais de opressão existentes. Para Butler, isto é assim porque, seguindo Foucault, sustenta que os sujeitos se constituem por meio da exclusão; ou seja, as políticas de subjetivação encerram necessariamente as práticas da sujeição. Sempre que se constituir um sujeito, se constituirá o objeto como a exclusão normativa e necessária para a existência do primeiro. E toda resistência ao poder será sempre, inevitavelmente, um novo discurso de poder, no pleno sentido foucaultiano. A liberação das mulheres na nova teoria pós-moderna poderia ser interpretada melhor como a liberação da própria identidade que é o verdadeiro opressivo. Nem a sociedade, nem o patriarcado, nem o gênero... nem sequer os homens!, teriam responsabilidade alguma na definição da opressão da metade do planeta. Se devemos, nós mulheres, nos emancipar de algo, segundo Butler, é da pesada definição ontológica repressiva e excludente de nossa identidade “mulher”. Segundo as palavras da própria autora de Gender Trouble, a transformação, então, é subversiva pelo seguinte: ... a proliferação paródica impede à cultura hegemônica e à sua critica afirmar a existência de identidades de gênero essencialistas ou naturalizadas. Ainda que os significados de gênero adaptados nestes estilos paródicos, evidentemente formam parte da cultura hegemônica misógina, de todas as maneiras se desnaturalizam e mobilizam através de sua recontextualização paródica. Enquanto imitações que efetivamente alteram o significado do original, imitam o mito da originalidade em si.9

Para Judith Butler, há o que define como um “riso subversivo” como efeito das práticas paródicas. A autora subestima o potencial subversivo do desempenho com relação à constituição dos sujeitos generizados ou as identidades de gênero a ponto de 9

Butler, J., op.cit.

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não colocar a reestruturação total dessa ordem hegemônica simbólica, que tem seu fundamento em uma ordem social historicamente determinada de exclusões, apropriações e opressões materiais. Este é o nó do pensamento butleriano com o qual se enlaça a política de uma democracia pluralista, pois, segundo Chantal Mouffe: O objetivo de uma política democrática, portanto, não é erradicar o poder, senão multiplicar os espaços onde as relações de poder estarão abertas à contestação democrática. Na proliferação destes espaços no intuito de criar as condições de um autêntico pluralismo dos comportamentos de luta, tanto no domínio do estado como no da sociedade civil, insere-se a dinâmica inerente à democracia radical e pluralista.10

A tese butleriana, segundo a qual não há separação dicotômica entre a luta econômica e a luta “meramente cultural”, porque a forma social da reprodução sexual é inerente ao núcleo mesmo de relações sociais de produção — no sentido de que a família heterossexual é a base das relações capitalistas de propriedade, intercâmbio, exploração etc — a conduz a sustentar que, então, a luta específica contra a heterossexualidade normativa — de alcançar seus objetivos de emancipação — abalaria o modo de produção. No entanto, em suas elaborações ao colocar como horizonte teórico e prático a democracia radical e pluralista não deixam de transcender o político cultural. O político não consistiria a defesa dos direitos de determinadas identidades préconstituídas, senão a precariedade e a transformação permanente de ditas identidades. Essa prática política questionaria a democracia, convertendo-a em radical e pluralista. Mas para isso, é óbvio, teve que renunciar previamente a toda pretensão de eliminar o poder, tal como 10

Mouffe, Ch., op.cit.

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sustentam também os politólogos autodenominados pósmarxistas. A política, entendida nestes termos, converte-se em um jogo com o poder, ao modo dos jogos infantis de esconde-esconde: a indefinição, a não aceitação de determinadas identidades e o nomadismo, supostamente, obrigariam o poder a novas e móveis definições excludentes ou seja, desestabilizando-o. Esse modelo de democracia radical não consiste, então, na inclusão total das diferenças, o que seria impossível. Ainda que sempre haja identidades e grupos discriminados, o objetivo político é não permitir que a discriminação fique estruturalmente fixa nem seja a base discursiva da discriminação a priori. O ideal máximo a que pode aspirar a sociedade democrática é que nenhum agente social se dê o direito de representação da totalidade e, pelo contrário, cada um está disposto a aceitar as particularidades e limitações de suas próprias reivindicações. Segundo as palavras de Mouffe, os agentes sociais devem reconhecer que é impossível eliminar o poder existente em suas mútuas relações. Como assinalam algumas de suas críticas, Butler não concorda com nenhum projeto que busque estabelecer as normas ou requerimentos da vida política antecipadamente, antes que a ação política em si. Para Butler, o significante político é politicamente efetivo precisamente na razão de sua impossibilidade de descrever ou representar de modo completo aquele que nomeia. Seguindo as elaborações dos pós-marxistas Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, sustenta que, como tais significantes são sempre incompletos em si mesmos, podem e devem ser perpetuamente rearticulados entre si permitindo a produção de novas posições subjetivas e novos significantes. Aqui radica o potencial político e teórico democrático radical. Para a filósofa norte-americana, deixar a categoria “mulheres” aberta, sem referências fixas ou determinadas, possibilita o desafio de sua transformação e resignação permanente para o feminismo.

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CONSUMISMO, INDIVIDUALISMO E CETICISMO Pelo contrário, sustentamos que a lógica do capital integra, reabsorve, inclui e neutraliza as diferenças, mercantilizando-as como posições desejáveis de vários consumidores. O nomadismo, mais que constatar-se como a subversão das convenções estabelecidas, constitui-se no embasamento de uma insaciabilidade permanente que retroalimenta adequadamente o consumismo dos incluídos. Sendo assim, a performance e a mudança permanente das posições de identidades, mais do que converterem-se em ferramentas perturbadoras do discurso hegemônico se transformam em nichos clientelares de novos mercados; uma diversidade sem diferenças específicas, ou seja, uma constelação de singularidades fetichizadas. Butler situa-se na discussão igualdade—diferença, que atravessa a história teórica, prática e programática do movimento feminista, desconhecendo seus fins. Como ressalta a argentina Maria Luisa Femenías: Se não há gênero diferente de sexo, nem há diferença sexual binária como dado do corpo, nem há descontinuidade reificada, nem tampouco igualdade ou diferença homologáveis, e todas elas são somente construções lingüísticas prescritivas e práticas confirmatórias, não há dilema algum em definitivo. Tanto Beauvoir como Irigaray fracassaram ex initio e Butler ‘soluciona’ o dilema por simples desconhecimentos de seus fins.11

Como bem enfatiza Terry Eagleton, grande parte do pósmodernismo é “politicamente opositor, mas economicamente cúmplice”. Apontar a artilharia contra a concepção universalista do homem abstrato, contra os valores absolutos e a metafísica do cidadão é somente um aspecto da luta teórica e ideológica 11

Femenías, M. L., Sobre sujeito y género. Lecturas feministas desde Beauvoir a Butler, Bs. As., Catálogos, 2000.

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que está colocada. O sistema capitalista sustenta esse aspecto na pluralidade do desejo e da fragmentação da produção social. Toda singularidade do valor é de uso da economia é subsumida à abstração universalizável do valor de troca. Toda particularidade dos sujeitos individuais é subsumida no direito e na justiça sob a figura do cidadão. Questionar só essa arbitrariedade da universalização no plano jurídico e político acarreta a sustentação indiscutível de suas bases materiais enraizadas nas estruturas econômicas das relações sociais de produção. O feminismo e todo movimento emancipatório devem levar em conta essa perspectiva quando, mais do que nunca, o capitalismo se transformou em um sistema total(itário) em escala planetária. Disse Slavoj Zizek:

Hoje, a teoria crítica — sob a roupagem de ‘crítica cultural’ — está oferecendo o último serviço ao desenvolvimento irrestrito do capitalismo, ao participar ativamente no esforço ideológico de fazer invisível a presença deste: em uma típica ‘crítica cultural’ pós-moderna, a mínima menção de capitalismo enquanto sistema mundial tende a despertar a acusação de ‘essencialismo’, ‘fundamentalismo’ e outros delitos.12

O feminismo, se pretende retomar as bandeiras da emancipação das mulheres de toda a opressão, não deveria aceitar os fins impostos pela armadilha pós-moderna. O recurso à ameaça totalitária baseada nos universalismos com o qual os defensores da democracia plural fazem frente às posições da esquerda, não tem destino; pelo contrário, obriga a revisar a história do totalitarismo que sempre, indefectivelmente, se sustenta na suspensão da legalidade a partir de uma postura de identidade particular, ou seja, na eliminação de toda pretendida universalidade. Na perspectiva do materialismo dialético e histórico, tampouco a universalidade desse sistema é neutro: encerra a 12

Zizek, S., Reflexiones sobre el multiculturalismo, Bs. As., Paidós, 1998.

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contradição da exploração de uma classe por outra. Tomar partido na contradição pela classe explorada é a única via para alcançar a universalidade da emancipação de toda dominação. Não há solução à armadilha da universalidade moderna a partir das particularidades de identidades. Nem sequer com o nomadismo permanente das figuras paródicas de Butler, que escapariam a toda reivindicação de identidade. Sempre haverá cooptação dos elementos mais revulsivos dos movimentos sociais enquanto não questionarem as bases fundacionais do sistema capitalista. Reduzindo a luta a meras batalhas pelo reconhecimento não alcança. Se Butler teoriza sobre sexo/gênero é por seu interesse em pensar as condições de possibilidade de uma democracia radical. E, vice-versa: sua elaboração sobre a democracia embasa-se na tentativa de pensar o “espaço” político radical onde possam ser incluídos também os corpos que hoje “não” importam. Mas sua preocupação política opera nos marcos nunca explicitados do sistema capitalista, onde a exploração é indizível e a produção é meramente simbólica. Esse capitalismo impossível de pronunciar é o limite inquestionável da ima-ginação política, o “não dito” e, portanto, incapaz de ser desconstruído. Um sistema onde, ademais, qualquer tentativa de oposição se verá limitada a uma mera rearticulação do horizonte do incluído, mas no mesmo ato se verá constrangido a atuar como um novo discurso regulador. Butler sustenta-o explicitamente no livro escrito com Laclau e Zizek, no qual diz: ... isto sucede quando pensamos que encontramos um ponto de oposição à dominação e logo nos damos conta de que esse mesmo ponto de oposição é o instrumento através do qual opera a dominação, e que sem querer fortalecemos os poderes de dominação através de nossa participação na tarefa de opormonos. A dominação aparece com maior eficácia precisamente como seu ‘Outro’. O colapso da dialética nos dá uma nova

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perspectiva porque nos mostra que o mesmo esquema pelo qual distinguem-se dominação e oposição dissimula o uso instrumental que a primeira faz da última.13

Para Judith Butler, os limites democráticos do liberalismo são questão de ordem quantitativa. No mesmo livro sustenta: O que eu entendo como hegemonia é que seu momento normativo e otimista consiste, precisamente, nas possibilidades de expandir as possibilidades democráticas, para os fins chaves do liberalismo, tornando-os mais inclusivos, mais dinâmicos e mais concretos.14

A prática política dos movimentos sociais — na única concepção que entende a autora, ou seja, como movimentos sociais de identidades — deveria ter como objetivo a expansão dos fins do “cidadão” e do “humano” em um sistema que entende os direitos humanos e cidadãos como pilares fundamentais do funcionamento democrático, mas que ao definir seus conteúdos regula e portanto exclui, produzindo o abjeto. Essa expansão só poderia garantir-se esvaziando o conteúdo político de qualquer significado préfixado, porque toda significação que se pretende universal será fatalmente particular e assim repressiva no ato performativo de definir sua identidade. Para isso, é necessário aceitar a semiotização da política, uma operação que os autores de Contingencia, hegemonía e universalidad dão por certo. Mas seu ponto de partida, não por suas debilidades, é menos construído que outros, como, por exemplo, o de supor a política como a ação de cidadãos abstratamente iguais em um Estado também despojado de seu caráter de classe.

13 14

Butler, Laclau e Zizek, Contingencia, hegemonía y universalidad, FCE, Bs. As., 2003. Idem.

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A diferença cumpre o papel, nas elaborações butlerianas precisamente de um “fetiche teórico que repudia as condições de sua própria emergência”, para utilizar uma expressão da própria autora. Mas sempre que há uma norma, ou seja, um âmbito da ordem da validez onde esse factum é significado, compreendido. Não há possibilidade de nomear a diferença se não é por referência a um sistema de normas que operam sobre a mera artificialidade, outorgando-lhe significância. A “ideologização” da diferença como “diferença” é a conseqüência de um processo histórico—construtivo cuja estrutura alcançada atuará de maneira a regular a posteriori, apagando os rastros de sua origem. Como um “fetiche teórico que repudia as condições de sua própria emergência”, as formas não heterossexuais da sexualidade serão o abjeto, as marcas de identificação pertinentes dos corpos que não importam, enquanto a heterossexualidade obrigatória aparecerá em cena apresentando a si mesma como norma a-histórica, natural e imutável. Em sua indivisível e inquestionável presença apaga o processo histórico transcorrido por meio de aberrações cruéis e sanguinárias pelas quais o desejo foi regrado, reprimido e ordenado segundo uma racionalidade que entende a sexualidade como reprodução e a reprodução como mera reprodução de força de trabalho. Porque o possuidor da força de trabalho é um ser mortal. Portanto, para que sua presença no mercado seja contínua, como requer a transformação contínua de dinheiro em capital, é necessário que o vendedor da força de trabalho se perpetue “como se perpetua todo ser existente pela reprodução.”15

A semiosis infinita que Butler defende como ideal a alcançar com a democracia radical e plural já está presente. Não é outra que a imagem fetichista que oferece a sociedade civil, o 15

Karl Marx, El Capital, FCE, México, p. 125.

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mercado, aquela forma de manifestar-se que tem a prática eminentemente humana. Um mercado livre, onde homens livres intercambiam as mercadorias que circulam de maneira ininterrupta (infinita?). Aí é onde a imagem aparente obtura a inteligibilidade dos mecanismos da extração de mais-valia. A circulação livre e infinita de mercadorias é o outro lado da moeda da exploração. A democracia dos cidadãos livres, fraternos e iguais, tem necessariamente que incluir, como contrapartida para sua realização, a existência de uma classe que expropria historicamente a humanidade dos meios de produção. O contrato de trabalho entre homens livres e iguais oculta a exploração, ao mesmo tempo que é a forma necessária que adquire no modo de produção capitalista nos estados “modernos” burgueses. Mas o juiz e a polícia cancelam a semiosis infinita da igualdade cidadã, quando a propriedade privada e a liberdade do contrato de trabalho vêm-se ameaçadas pela ação das classes subalternas. A aparência voluntária do contrato encobre a violência da expropriação originária; a democracia, sob a aparentemente livre eleição dos representantes, disfarça a dominação de aceitação também voluntária. Judith Butler eleva a modelo ideal (universal) precisamente a “universalidade irrealizada”, condição estrutural do Estado baseado na exploração capitalista. Jamais poderia ser “mais inclusão” o objetivo pragmático de uma política emancipatória que reconhecera o jogo de espelhos do capital e do Estado, ou seja, que a expropriação e a exploração são o “lado oculto” intrinsecamente fundido com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Para Butler suas escassas aspirações libertárias a fazem defender que o compromisso com uma concepção de democracia que tenha futuro, que se mantenha não restringida pela teleologia e que não seja equivalente a nenhuma de suas realizações exige uma

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demanda diferente, uma demanda que postergue permanentemente a realização.16

Os abjetos, pelo contrário, não adaptados com a postergação infinita, sonhamos com as alas que sabemos enraizadas em nossos próprios ventres de casulos.

16

Butler, Laclau, Zizek, op.cit.

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A modo de conclusão

“Vejo que a mulher pode. Pode fazer mais que lavar, passar e cozinhar em casa para os filhos. Eu acho que é real. Estou sentindo isso agora e o estou vivendo. Descobri meu lado adormecido e agora que está despertado, não penso em parar.” 1 Célia Martinez

MILHÕES DE MULHERES CONDENADAS À BARBÁRIE Atualmente, ainda que as feministas tenham participado e conseguido introduzir modificações nas legislações de muitíssimos países pelo mundo quanto ao divórcio, a participação nos cargos públicos eletivos, etc., a realidade indica que ainda estamos muito longe de ter solucionado com as leis as situações concretas que vivemos nós mulheres, especialmente as mais pobres. Só no continente latino-americano o aborto clandestino continua sendo a primeira causa de morte materna; são 6.000 mulheres que morrem anualmente por complicações relacionadas a abortos inseguros. Em todo o mundo 500.000 mulheres morrem a cada ano por complicações na gravidez e no parto e 500 mulheres por dia morrem por abortos clandestinos. Ao contrário do que se imagina, no início do século XXI vivemos 1

Reportagem com Celia Martínez, operária da fábrica Brukman de Buenos Aires, ocupada e colocada para funcionar pelas trabalhadoras desde 18 de dezembro de 2001.

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uma atitude cada vez mais feroz do fundamentalismo católico em aliança com os Estados e o poder político contra os direitos sexuais, reprodutivos e o direito ao aborto, enquanto vêm à tona cada vez mais casos de abuso sexual contra meninos, meninas e jovens perpetrados pelos membros da Igreja. Outros fundamentalismos religiosos praticam a extirpação do clitóris e a costura dos lábios vaginais de meninas e adolescentes, que serão arrancados pelo noivo na “noite de núpcias”. Há mais de 110 milhões de mulheres e meninas com os órgãos genitais mutilados, e a cada ano são mais 2 milhões de mulheres que devem passar por este rito cruel. A América Latina e o Caribe, por sua vez, registram os índices mais altos de violência contra as mulheres: o homicídio representa em nosso continente a quinta causa de morte, sendo que 70% das mulheres padecem de violência doméstica, e 30% reportam que sua primeira relação sexual foi forçada. Calculase que 80% das agressões permanecem em silêncio, já que não são denunciadas por medo ou pela certeza de que a denúncia não será levada em conta. Uma em cada três mulheres no mundo sofre maus tratos. Segundo as estatísticas a cada oito segundos uma mulher é vítima de violência física. Bem mais que 400 mulheres foram assassinadas nos últimos dez anos em Ciudad Juárez (México), fazendo dessa cidade fronteiriça um lamentável exemplo de femicídio, impunidade, misoginia e barbárie. No outro extremo do continente, na província de Buenos Aires, calcula-se que em 120.000 lares as mulheres sofrem maus-tratos, sendo que no decorrer de um ano são cometidos mais de 50 homicídios de mulheres pelas mãos de seus parceiros. Em algumas culturas os crimes de honra são considerados legítimos, pelos quais as mulheres repudiadas por seus maridos são humilhadas e até assassinadas com amputações, queimaduras etc. Em alguns países como a China, a Indonésia, Bangladesh, Coréia do Sul etc., os infanticídios e abortos são seletivos e 99% das vítimas são meninas. Na Índia matam-se as

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mulheres que ficam viúvas e se transformam em una carga social. Na zona andina, é tradição dos povos originários que as mulheres não tenham direito a herdar a terra. Presenciamos recentemente, a raiz do levante operário e popular que derrubou o governo do presidente boliviano, Sánchez de Losada, no qual as mulheres não podem participar em igualdade de condições aos homens nas assembléias e reuniões. Em muitos casos, o costume que se reitera é que as mulheres permaneçam atrás dos homens, sentadas no chão e que, ao pedir a palavra para intervir, se lhes é negado este direito, para exercê-lo devam impor-se decididamente, levantando a voz de maneira audaz. Na Argentina, calcula-se que ocorrem entre 5.000 e 8.000 estupros por ano. Segundo as especialistas em violência, em todo o mundo um em cada cinco dias de ausência feminina no ambiente de trabalho é conseqüência de um estupro ou de violência doméstica. Enquanto isso, o “turismo sexual” nos países mais pobres do mundo se transformou em uma indústria bastante rentável para cafetões, traficantes de mulheres e meninas e exploradores sexuais. Não obstante, nos locais onde o mercado do sexo é um delito, antes dos clientes, a culpa é sempre das mulheres em situação de prostituição. Em 2003, 13 milhões de crianças morreram de fome no mundo: é um número seis vezes maior que o total de vítimas da Primeira Guerra Mundial entre 1914 e 1918. A maioria dessas crianças são meninas dos países do chamado Terceiro Mundo. Dos 960 milhões de analfabetos existentes no mundo 70% são mulheres. E por cada homem que emigra dos países pobres ou envolvidos em guerras e conflitos, há três mulheres. Elas são as principais vítimas dos conflitos ficando viúvas ou órfãs em frente às suas casas, perdendo tudo e tendo que escolher entre emigrar ou enfrentar a crueldade dos estupros, que muitas vezes fazem parte das operações de guerra, tendo seus corpos transformados em botim para o inimigo. Como já dissemos na introdução, as mulheres constituem 70% das 1,5 milhões de pessoas que vivem em condições

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absolutas de pobreza em todo o mundo. As camponesas são chefes de um quinto dos lares rurais e em algumas regiões até de mais de um terço, mas só são proprietárias de cerca de 1% das terras, enquanto 80% dos alimentos básicos para o consumo é produzido por mulheres. Só na América Latina 154 milhões de mulheres são as mais pobres entre os pobres. O valor e o volume do trabalho doméstico não remunerado variam de 35% a 55% do produto interno bruto dos países. A produção doméstica representa até 60% do consumo privado. E este trabalho não remunerado recai quase absolutamente sobre as mulheres e as meninas. Segundo relatos da OIT a taxa de desemprego urbano no continente latino-americano no final de 2002 chegou a 17 milhões de pessoas, afetando de maneira especial as mulheres. Por outro lado, as mulheres que trabalham o fazem em uma situação cada vez mais precária: não só ganham um salário entre 30 e 40% menor que os homens pelo mesmo trabalho, como também a grande maioria não têm seguro social nem direito à aposentadoria. ESTAMOS DE PÉ Mas assim como as exorbitantes cifras do horror e os relatos da barbárie que milhões de mulheres pelo mundo ainda continuam sofrendo em suas sinistras realidades, não é menos certo que nós mulheres estamos de pé e continuamos sendo, em muitos casos, protagonistas indiscutíveis da resistência e do enfrentamento contra esta mesma barbárie, como demonstraram recentemente, as mulheres camponesas, as mulheres aymaras e as trabalhadoras mineiras bolivianas, nas jornadas de outubro de 2003, que culminaram na queda do presidente Sánchez de Losada. A eclosão dos modelos econômicos “neoliberais”, no final do século XX, deu lugar ao ressurgimento da mobilização no mundo, seguido pela tentativa de diálogo do feminismo com

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outros movimentos sociais. A participação das feministas nas mobilizações mundiais contra a globalização em cada uma das cúpulas de governos imperialistas, organizações multilaterais e outras reuniões nas quais os poderosos tentam definir, em grande medida, os destinos da humanidade, são um fato inédito dos últimos anos. O mesmo ocorreu na Argentina, durante as jornadas de dezembro de 2001 — uma das expressões mais agudas da luta de classes do período —, em que as feministas tornaram a aparecer com suas bandeiras distintivas em meio às mobilizações populares que derrubaram o governo de De La Rúa, para depois, a partir de então, se aproximar das trabalhadoras que tomaram as fábricas — como as operárias de Brukman —, das mulheres dos movimentos de desempregados que fecharam as ruas e viadutos e as assembléias populares, organizadas nos bairros das cidades mais importantes do território nacional. Por outro lado, a “conversão” e a autocrítica de muitas feministas “institucionalizadas”, recolocando os fundamentos de sua prática,— para além da autenticidade ou do oportunismo de suas novas posições — foram parte das novidades do último período que não passaram em branco. Importantes setores do feminismo hoje rechaçam o caminho da auto-exclusão que, em diversas ocasiões, dividiu o movimento feminista das mulheres mobilizadas que lutam por seus direitos. QUEREMOS NOSSO DIREITO AO PÃO, MAS TAMBÉM ÀS ROSAS Mas se o feminismo não almeja transformar a realidade, padecida por milhões de mulheres que desconhecem suas premissas, mas enfrentam no cotidiano a fome, a exploração, a violência, o abuso e as humilhações, este será reduzido às elaborações acadêmicas, aos lobbies políticos, provendo

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“quadros” à tecnocracia de gênero que se incorporou aos estamentos governamentais e aos organismos multilaterais. Será que é possível seguirmos o caminho da unidade e da compreensão de que não haverá emancipação das mulheres desta barbárie em que vivemos se não acabamos com este sistema que explora e oprime milhões reproduzindo o patriarcado ao seu próprio proveito? Quantas serão as feministas pensam que “temos que embarcar no trem do futuro socialista” 2? Isso é o que aspiramos os que acreditamos que as mulheres e os homens que constroem tudo, as mulheres e os homens que produzem a riqueza do mundo que lhes é expropriada pelos capitalistas, são aqueles que podem acabar com este sistema de exploração. Ainda que o imperialismo tenha desenvolvido novas formas de opressão e aumentado o peso das amarras que pesam sobre a vida das mulheres, a experiência das mulheres que dirigiram as revoltas da farinha, das mulheres dos bairros pobres de Paris que dirigiram a Revolução Francesa, das commands de 1871, a experiência das operárias têxteis do início do século XX, das mulheres na Revolução Russa, as experiências de tantas mulheres que têm lutado ao longo da história estão vivas nas mulheres do mundo que ainda hoje continuam se levantando contra a ordem vigente. O patriarcado e o capitalismo constituíram uma união indissolúvel em que a fome e o abuso, o desemprego e a violência, a exploração e a opressão pairam sobre as mulheres do mundo de um modo sinistro. Por isso, pensamos que hoje permanece atual a frase dita pela socialista norte-americana Louise Kneeland em 1914: “O socialista que não é feminista carece de amplitude. Quem é feminista e não é socialista carece de estratégia.”

2

Alda Facio, “Globalización y Feminismo”, documento apresentado no IX Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, Costa Rica, 2002.

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Para finalizar, faço minhas as palavras do revolucionário russo Leon Trotsky que escreveu em seu testamento:

Posso ver a grama verde e brilhante pelo vidro, o céu azul e claro acima, e a luz do sol irradiando em todas as partes. A vida é bela. Que as futuras gerações livrem-na de todo o mal, opressão e violência e possam gozá-la plenamente.3

Nossa tarefa torna a vida mais bonita, porque sabemos que nosso combate diário tem esse objetivo: a emancipação das mulheres para lutar pela revolução social em igualdade de condições a todos os oprimidos e explorados; a revolução social para iniciar o caminho da libertação definitiva das mulheres e de toda a humanidade, hoje aprisionadas pelas cadeias do sanguinário capital.

3

Trotsky, L., Testamento, 1940, s/r.

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Declaração dos direitos da mulher e da cidadã Olympe de Gouges, 1789

Para ser decretado pela Assembléia Nacional em suas últimas sessões ou na próxima legislação. PRÊAMBULO As mães, filhas, irmãs, representantes da nação, pedem que constituam-nas em assembléia nacional. Por considerar que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos da mulher são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, estas resolveram expor em uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher a fim de que esta declaração, constantemente presente para todos os membros do corpo social lhes recorde sem cessar seus direitos e seus deveres, a fim de que os atos do poder das mulheres e os do poder dos homens possam ser, a todo instante, comparados com o objetivo de toda instituição política e sejam mais respeitados por ela, a fim de que as reivindicações das cidadãs, fundadas a partir de agora em princípios simples e indiscutíveis, se dirijam sempre à manutenção da constituição, dos bons costumes e da felicidade de todos. Em conseqüência, o sexo superior tanto na beleza como na coragem, quanto aos sofrimentos maternais se refere, reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes Direitos da Mulher e da Cidadã.

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I A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem estar fundadas em uma utilidade comum. II O objetivo de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da Mulher e do Homem; estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão. III O princípio da soberania que reside essencialmente na Nação não é mais do que a reunião da Mulher e do Homem: nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane destes. IV A liberdade e a justiça consistem em devolver tudo o que pertence aos outros; assim, o exercício dos direitos naturais da mulher só tem por limites a tirania perpétua que o homem lhe opõe; estes limites devem ser corrigidos pelas leis da natureza e da razão. V As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações prejudiciais para a Sociedade: tudo o que não está proibido por estas leis, prudentes e divinas, não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que elas não ordenam. VI A lei deve ser a expressão da vontade geral; todas as Cidadãs e Cidadãos devem participar de sua formação pessoalmente, ou por meio de seus representantes. Deve ser a mesma para todos;

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todas as cidadãs e todos os cidadãos por serem iguais a seus olhos, devem ser igualmente passíveis de serem admitidos em todos os postos e empregos públicos, conforme suas capacidades, e sem mais distinção que a de suas virtudes e seus talentos. VII Nenhuma mulher se encontra eximida de ser acusada, detida e encarcerada nos casos determinados pela Lei. As mulheres obedecem como os homens a esta Lei rigorosa. VIII As leis só devem estabelecer penas estritas e evidentemente necessárias e ninguém pode ser castigado mais que em virtude de uma Lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada às mulheres. IX Sobre toda a mulher que tenha sido declarada culpada cairá todo o rigor da Lei. X Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, assim tal como a mulher tem o direito de elevar-se à forca; deve ter também igualmente o de subir à tribuna, contanto que suas manifestações não alterem a ordem pública estabelecida pela Lei. XI A livre expressão dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos da mulher, posto que esta liberdade assegura a legitimidade dos pais com relação a seus filhos. Toda a cidadã pode, portanto, decidir livremente ser mãe de um filho sem que um preconceito bárbaro a force a dissimular a verdade; com a exceção de responder pelos abusos dessa liberdade nos casos determinados por lei.

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XII A garantia dos direitos da mulher e da cidadã implica uma utilidade maior; esta garantia deve ser instituída para a vantagem de todos e não para utilidade particular daquelas a quem é confiada. XIII Para a manutenção da força pública e para os gastos de administração, as contribuições da mulher e do homem são as mesmas; participam em todos os benefícios pessoais, em todas as tarefas penosas, portanto, devem participar na distribuição dos postos, empregos, cargos, dignidade e outras atividades. XIV As Cidadãs e Cidadãos têm o direito de comprovar por si mesmos ou por meio de seus representantes a necessidade da contribuição pública. As Cidadãs unicamente podem prová-la se admite uma divisão igual, não somente na fortuna, mas também na administração pública, e se determinem a quota, a base tributária, a arrecadação e a duração do imposto. XV A massa das mulheres, reunida com a dos homens para a contribuição, tem o direito de pedir contas de sua administração a todo agente público. XVI Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição; a constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a Nação não cooperou em sua redação. XVII As propriedades pertencem a todos os sexos reunidos ou separados; são, para cada um, um direito inviolável e sagrado;

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ninguém pode ser privado dela como verdadeiro patrimônio da natureza a não ser que a necessidade pública, legalmente constatada, o exija de maneira evidente e sob a condição de uma justa e prévia indenização. EPÍLOGO Mulher, desperta; as badaladas da razão se fazem ouvir em todo o universo, reconhece seus direitos. O poderoso império da natureza deixou de estar rodeado de preconceitos, fanatismo, superstição e mentiras. A chama da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem escravo redobrou suas forças e precisou apelar às tuas para romper suas correntes. Mas uma vez em liberdade, tem sido injusto com sua companheira. Oh, mulheres, mulheres! Quando deixarás de estar cega? Que vantagem obteve da revolução? Um desprezo mais marcado, um desdém mais visível. [...] Quaisquer que sejam as dificuldades que a oponham, podes superá-las; basta apenas desejá-lo.

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Proclamação do Comitê de Cidadas da Comuna de Paris1 Paris, 13 de abril de 1871

Considerando, Que é dever e direito de todos combater pela grande causa do povo, a Revolução. Que o perigo é imediato e o inimigo está às portas de Paris. Que a união faz a força, e na hora do perigo supremo todos os esforços individuais devem unir-se para formar uma resistência coletiva de toda a população à qual nada poderá resistir. Que a Comuna, em representação do grande princípio que proclama a dissolução do todo o privilégio, deve considerar como justas as reivindicações de todo o povo, sem diferença de sexo, diferença criada e mantida pela necessidade de antagonismos sobre os quais repousam os privilégios das classes dominantes. Que o triunfo da luta atual tem por objetivo a supressão dos abusos e em um porvir próximo a renovação social total, assegurando o reinado do trabalho e da justiça, e por conseqüência o mesmo interesse para os cidadãos e para as cidadãs. Que o massacre dos defensores de Paris pelos assassinos de Versalhes exaspera ao extremo à massa de cidadãs e as impulsiona à vingança.

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O original em Francês está publicado no Le Site de la Commune de Paris (1871),

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Que um grande número delas resolveu que no caso em que o inimigo venha a invadir as portas de Paris combater e vencer ou morrer pela defesa de nossos direitos comuns. Que uma importante organização do elemento revolucionário é uma força capaz de dar apoio efetivo e vigoroso à Comuna de Paris e que não pode conquistar mais que com a ajuda e a participação do governo da Comuna. Por conseguinte: As delegadas das cidadãs de Paris exigem da Comissão Executiva da Comuna: dar a ordem aos prefeitos de colocar à disposição dos comitês de bairro e do Comitê Central instituído pelas cidadãs para a organização da defesa de Paris, uma sala nas prefeituras de diversos bairros ou então, em caso de impossibilidade, um local separado, aonde os comitês possam permanecer. definir com o mesmo fim um grande local em que as cidadãs possam fazer reuniões públicas. imprimir às custas da Comuna as circulares, cartazes e avisos que os ditos comitês julgarem necessário propagar. Assinam, pelas cidadãs delegadas, membros do Comitê Central de Cidadãs: Adélaide Valentin, Noëmie Colleville, Marcand, Sophie Graix, Joséphine Pratt, Céline Delvainquier, Aimée Delvainquier, Elizabeth Dimitrief.

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Declaração de Seneca Falls EUA, 1848

Considerando, Que está convencionado que o grande preceito da natureza é que “o homem há de perseguir sua verdadeira e substancial felicidade; Blackstone em seus comentários assinala que posto que essa lei da natureza é contemporânea à humanidade e foi criada por Deus, tem primazia evidente sobre qualquer outra. É obrigatório que em toda a terra, em todos os países e em todos os tempos; nenhuma lei humana tem valor se a contradiz, e aquelas que são válidas derivam toda sua força, todo o seu valor e toda a sua autoridade direta e indiretamente dela, em conseqüência”. DECIDIMOS: Que todas as leis que sejam conflituosas de alguma maneira com a felicidade verdadeira e substancial da mulher, são contrárias ao grande preceito da natureza e não têm validade, pois este preceito tem primazia sobre qualquer outro.

DECIDIMOS: Que todas as leis que impeçam que a mulher ocupe na sociedade a posição que sua consciência lhe dite, ou que a coloquem em uma posição inferior a do homem, são contrárias ao grande preceito da natureza e, portanto, não tem força nem autoridade.

DECIDIMOS: Que a mulher é igual ao homem — assim o pretendeu o Criador — e que pelo bem da raça humana exige-se que seja reconhecida como tal.

DECIDIMOS: Que as mulheres deste país devem ser informadas quanto as leis sob as quais vivem, que não devem

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seguir proclamando sua degradação, declarando-se satisfeitas com sua atual condição nem sua ignorância, afirmando que tem todos os direitos que desejam. DECIDIMOS: Que posto que o homem pretende ser superior intelectualmente e admite que a mulher o é moralmente, é seu preeminente dever animá-la a que fale e pregue em todas as reuniões religiosas.

DECIDIMOS: Que a mesma proporção de virtude, delicadeza e refinamento no comportamento que se exige da mulher na sociedade, seja exigida ao homem e as mesmas infrações sejam julgadas com igual severidade, tanto para o homem como para a mulher.

DECIDIMOS: Que a acusação de falta de delicadeza e de decoro, que com tanta freqüência é culpada a mulher quando dirige a palavra em público, provém, e com muita má intenção, dos que com sua assistência fomentam sua aparição nos cenários, nos concertos e nos circos. DECIDIMOS: Que a mulher tem se mantido satisfeita durante tempo demasiado dentro de limites determinados que alguns costumes corrompidos e uma deturpada interpretação das Sagradas Escrituras determinaram para ela e que já é hora que se mova num meio mais amplo do que o Criador lhe designou. DECIDIMOS: Que é dever das mulheres deste país garantir o sagrado direito de voto.

DECIDIMOS: Que a igualdade dos direitos humanos é conseqüência do fato de que toda a raça humana é idêntica quanto à capacidade e responsabilidade.

DECIDIMOS, PORTANTO: Que sendo sido investida pelo Criador com os mesmos dons e com a mesma consciência de responsabilidade para exercê-los, está demonstrado que a mulher, igualmente ao homem, tem o dever e o direito de

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promover toda causa justa por todos os meios justos; e no que se refere aos grandes temas religiosos e morais resulta seu direito em compartilhar com seus irmãos seus ensinamentos, tanto em público como em privado, por escrito ou de palavra, ou através de qualquer meio adequado, em qualquer assembléia que valha a pena celebrar; e por isso uma verdade evidente que emana dos princípios de implantação divina da natureza humana, qualquer costume ou imposição que lhe seja adversa, tanto se é moderna como se leva à grisalha sanção da antiguidade, deve ser considerada como una evidente falsidade e contrária à humanidade. Na última sessão Lucretia Mott expôs e falou da seguinte decisão:

DECIDIMOS: Que a rapidez e o êxito de nossa causa dependem do zelo e dos esforços, tanto dos homens como das mulheres, para derrubar o monopólio dos púlpitos e para conseguir que a mulher participe eqüitativamente nos diferentes ofícios, profissões e negócios.

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As grevistas contam aos ricos seus sofrimentos1 New York Times, dezembro de 1909

EM UMA REUNIÃO AJUDAM ÀS GREVISTAS TÊXTEIS “Também, é verdade que eu ganho 15 dólares por semana”, disse a pequena Clara Lemlich ontem a tarde diante de cento e cinqüenta mulheres de buen pasar reunidas no Clube Colony, na Avenida Madison com a Rua 13º, convidadas pela Srta. Elizabeth Marbury e a Sra. Egerton L. Winthrop, para escutar as representantes das jovens grevistas, que lhes contam sua versão da luta que se encontra em sua quarta semana. “ Não comecei a greve porque eu não ganhava o suficiente”, seguiu contando a jovem da zona Leste para a audiência da Quinta Avenida, “fiz greve para que todas ganhem o suficiente. Não foi por mim, foi pelas outras”.

Falaram mais grevistas, enquanto várias mulheres e homens simpatizantes, e logo as senhoras Philip M. Luding e Elise De Wolf, passaram dois chapéus que juntaram mais de 1.300 dólares. Anunciou-se, também, que os Shubert doariam 50% da arrecadação de um de seus teatros de Nova York durante toda a semana seguinte às grevistas...”

1

Reprodução de alguns fragmentos de um artigo do jornal The New York Times, no qual se relatam aspectos da greve das operárias têxteis novaiorquinas de 1909, encabeçada por Clara Lechmil. O original em inglês foi traduzido especialmente para esta edição por Celeste Murillo.

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A Srta. Dreier que esteve na luta durante semanas, disse que contaria algo sobre o que aconteceu antes que da greve ser declarada oficialmente em 22 de novembro. Antes disso, algumas das 40.000 operárias mais valentes, a maioria meninas, haviam unido-se ao sindicato. Até 22 de novembro o sindicato dificilmente reunia mil membros.

“Essas meninas que foram tão valentes ao unirem-se ao sindicato, descobriram que as despediam somente por essa razão”, continuo. “Um montão de jovens foram despedidas por pedir que outras se unissem ao sindicato. Uma fabrica despediu, de uma só vez, cento e quarenta operárias somente porque haviam se filiado ao sindicato. Foram jogadas uma por uma e logo em grupos, e os membros do sindicato viram que teriam que arriscar tudo, que deviam lutar e ganhar, ou render-se”.

“Todavia, existem 7.000 meninas afora. Os empregadores estão determinados a não reconhecer o sindicato. A batalha entre estas jovens e os empregadores começou. A questão é quem ganhará: os empregadores que tem muito dinheiro ou as jovens que não têm nada...”

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Pão e Rosas1 James Oppenheim, 1911 Enquanto vamos marchando, marchando através do belo dia um milhão de cozinhas escuras e milhares de cinzas fábricas têxteis são tocados por um radiante sol que assoma repentinamente já que o povo nos ouve cantar: Pão e rosas! Pão e rosas! Enquanto vamos marchando, marchando, lutamos também pelos homens já que esses são filhos de mulheres, e os protegemos maternalmente Nossas vidas não serão exploradas desde o nascimento até a morte os corações padecem de fome, assim como os copos dê-nos pão, mas também dê-nos rosas! Enquanto vamos marchando, marchando, grande quantidade de mulheres mortas vão gritando a través do nosso canto seu antigo pedido de pão; Seus espíritos fatigados no conheceram a arte, o amor e a beleza Sim, é pelo pão que lutamos, mas também lutamos por rosas! A medida que vamos marchando, marchando, trazemos conosco dias melhores. O levantamento das mulheres significa o levantamento da humanidade. Já basta da agonia do trabalho e do edo folgado: dez que trabalham para que um repouse Queremos compartilhar as glórias da vida: pão e rosas, pão e rosas! Nossas vidas não serão exploradas desde o nascimento até a morte; os corações padecem fome, assim como os corpos pão e rosas, pão e rosas!

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Adaptação do Original em inglês (T. da A.).

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Este poema foi escrito em dezembro de 1911, por James Oppenheim, um poeta e ativista filiado ao sindicato combativo IWW (Industrial Workers of the World). Segundo a investigação de Jim Zwick, tanto na história dos EUA, como na consciência popular, o slogan “pão e rosas” está associado à famosa greve das operárias têxteis de Lawrence — Massachusetts, de 1912. Tanto é assim, que esta greve é conhecida como a greve de “pão e rosas”. Não existe documentação direta do uso do slogan por parte das operárias, mas se diz que o poema de James Oppenheim foi inspirado por um cartaz que levavam as manifestantes em greve que dizia “queremos o pão, mas queremos também as rosas”. Todavia, a realidade é que a primeira vez que o poema foi publicado foi em dezembro de 1911, um mês antes da greve. Em 13 de julho de 1912, foi reimpresso por The Survey e em 4 de outubro do mesmo ano foi publicado no The Public, um semanário progressista editado em Chicago, que tinha influência em setores do movimento operário. Em 1915 o poema foi publicado em “O grito pela justiça: Antologia de Literatura de Protesto Social”. Desde 1911 até 1915 existiram, então, três fontes de criação diferentes do poema: 1911, The Amerian Magazine: segundo James Oppenheim, “Pão para todas mas rosas também” era um slogan das mulheres do Oeste. Outubro de 1912, The Public: slogan atribuído às mulheres sindicalistas de Chicago. Esta não contradizia Oppenheim, já que Chicago era considerado parte do Oeste, e no centro-oeste como hoje em dia. 1915, Antologia de Literatura de Protesto Social: nesta versão, a frase é atribuída às operárias têxteis de Lawrence, e adquire e seguinte forma: “Queremos o pão, mas também as rosas”. Esta última versão foi a que permaneceu. Segundo Zwick, existem razões para pensar que a atribuição de The Public às trabalhadoras de Chicago era correta. Chicago era a sede da Liga Nacional Sindical de Mulheres e o slogan pode ter sido

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utilizado em sua campanha pelas 8 horas e durante a greve do vestido em Chicago, entre 1910 e 1911. The Public apoiou o movimento e a liga publicava avisos na revista. Outra referência indica que em 1907, Mary MacArthur, da Liga Inglesa Sindical de Mulheres visitou os EUA para apoiar o crescente movimento das operárias. Em Chicago, disse que as mulheres deviam trabalhar por algo mais que por aumentar seus salários. Sua mensagem foi resumida por uma citação que usou em seu discurso: “Se tem dois pedaços de pão, vende um e compra flores, o pão é o alimento do corpo, as flores são boas para a mente”. É muito provável que o slogan das mulheres de Chicago venha daí.

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Às operárias1 Vladmir Illich Lênin, 1920

Camaradas: as eleições para o Soviet de Moscou2 testemunham a consolidação do partido bolchevique no seio da classe operária. As operárias devem constituir a parte mais ativa nas eleições. O poder dos soviets é o único que aboliu pela primeira vez as velhas leis burguesas, as leis infames que consagravam a inferioridade legal da mulher e os privilégios do homem, em especial no matrimônio e em suas relações com os filhos. O poder dos soviets é o único no mundo que aboliu pela primeira vez, enquanto poder dos trabalhadores, todos os privilégios que ligados à propriedade mantinham-se em proveito do homem no direito familiar, mesmo nas repúblicas burguesas mais democráticas. Ali, onde há proprietários de terras, capitalistas e comerciantes, não pode haver igualdade entre o homem e a mulher, nem ainda perante a lei. Ali, onde não há proprietários de terras, nem capitalistas, nem comerciantes, ali o poder dos soviets constrói uma nova vida sem esses exploradores, ali há igualdade do homem e da mulher ante a lei. Mas isto, no entanto não é suficiente.

1

2

Compare este discurso de Lênin de 1920, com o documento de 1953 que anexamos a seguir, onde o estado operário há quase três décadas se encontrava sob o regime da burocracia do Kremlin. Soviet é a palavra em russo com a qual se designam os conselhos dos operários.

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A igualdade ante a lei, no entanto, não é a igualdade frente à vida. Nós esperamos que a operária conquiste não só a igualdade ante a lei, mas também frente à vida, frente ao operário. Para isso, é necessário que as operárias tomem maior participação na gestão das empresas públicas e na administração do Estado. Administrando, as mulheres farão rapidamente sua aprendizagem e alcançarão os homens. Elejam então mais mulheres comunistas ou sem partido para o Soviet! Pouco importa que uma operária honesta, sensata e consciente em seu trabalho, pertença ou não ao Partido: elejam-na para o Soviet de Moscou! Que haja mais operárias no Soviet de Moscou! Que o proletariado de Moscou demonstre que está pronto para fazer tudo e que faz tudo para lutar até triunfar sobre a velha desigualdade, até a vitória, contra a velha depreciação burguesa da mulher! O proletariado não poderá emancipar-se completamente sem ter conquistado a liberdade completa para as mulheres.

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A proteção dos direitos da mãe e do filho na URSS Krasnopolski e G. Sverdlov, 1953

A proteção dos interesses da mãe e do filho pelo Estado — um dos princípios constitucionais da União Soviética — se reflete também na regulamentação jurídica das relações entre os membros da família: entre os conjugues, os pais e os filhos, ou outros membros da família. Há que demonstrar em detalhe que os interesses da mulher como mãe — seja esta com os filhos ou futura mãe — estão tão melhor assegurados quanto mais sólidas e constantes sejam as relações entre os esposos. Garante, ante a tudo, tal solidez nas relações a existência da família. Precisamente a família assegura as condições normais para o nascimento e a educação dos filhos, cria as premissas mais favoráveis para que a mulher cumpra com seu nobre e alto dever social de mãe. A mulher soviética está vitalmente interessada em que as leis contribuam na solidez da família, na harmonia e na compreensão entre os conjugues. A este objetivo, perseguem justamente as leis soviéticas sobre o matrimônio e a família. A orientação de nossas leis no sentido de coadjuvar a criação de relações familiares sólidas, inabaláveis, se manifesta já em normas que regem o ato inicial do surgimento da família, o enlace matrimonial. A lei vigente dispõe, que só o matrimônio oficialmente registrado engendra os direitos e obrigações próprias dos conjugues. (...).

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Eu Abortei!1 Declaração das “300 sem-vergonhas” da França Le Nouvel Observateur, 5 de abril de 1971

“Um milhão de mulheres abortam a cada ano na França. O fazem em condições perigosas devido à clandestinidade e por essa razão são condenadas quando esta operação, praticada sob controle médico, é mais simples. Temos mantido silêncio sobre essas milhões de mulheres. Declaro que sou uma delas. Declaro que fiz um aborto. Assim como reivindicamos o livre acesso aos métodos contraceptivos, reivindicamos o aborto livre”. ASSINAM: J. Abba-Sidick, J. Abdalleh, Monique Anfredon, Catherine Arditi, Maryse Arditi, Hélène Argellies, Françoise Arnoul, Florence Asie, Isabelle Atlan, Brigitte Auber, Stéphane Audran, Colette Aubry, Tina Aumont, L. Azan, Jacqueline Azim, Micheline Baby, Geneviève Bachelier, Cécile Ballif, Néna Baratier, D. Bard, E. Bardis, Anne de Bascher, C. Batini, Chantal Baulier, Hélène de Beauvoir, Simone de Beauvoir, Colette Biec, M. Bediou, Michèle Bedos, Anne Bellec, Loleh Bellon, Edith Benoist, Anita Benoit, Aude Bergier, Dominique Bernabe, Jocelyne Bernard, Catherine Bernheim, Nicole Berheim, Tania Bescond, Jeannine Beylot, Monique Bigot, Fabienne Biguet, 1

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