Os Senhores do Litoral - Conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro (século 16)
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“foda história tem um começo. A

nossa história, a História do Brasil,

tem um começo nebuloso, aumentado pela distância do tempo, pelas dificuldades da investigação e pela sub-reptícia má vontade das elites e do poder.

Nenhum

mistério:

mergu-

lhar em nossas raizes mais profuns-das é buscar explicação para a trae gédia brasileira contemporânea. Má4 rio Maestri, doutor em História pela * Universidade Católica de Louvain, Maio

DE

e (oo e, longaBEI io Ecs ») mente, buscou notícias dos primei-

ros anos desta terra descoberta por Cabral. subterrânea de Os A emoção senhores do litoral está na revelação desse

começo,

e

na

compreensão

sem metáforas ou fantasias de um processo histórico. O paraiso tão sonhado estava ao alcance da mão. E esteve durante mais de trinta anos. As necessidades colonialistas romperam o equilíbrio de relações entre os recém-chegados e os nativos da terra brasileira. A guerra que se seguiu foi cruel e de extermínio, e, de alguma mancira, determinou a qualidade das relações entre os fracos e os fortes no nosso

para cá, essas bem pouco.

relações

País. De lá

mudaram

pe

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Reitor

Hélgio Trindade Vice-Reitor

Sergio Nicolaiewsky

Pró-Reitora de Extensão

|

Ana Maria de Mattos Guimaraes

EDITORA DA UNIVERSIDADE

Diretor

Sergius Gonzaga

CONSELHO EDITORIAL Dina Celeste Araújo Barberena Homero

Dewes

Irion Nolasco

Luiz Osvaldo Leite Maria da Glória Bordini Newton

Braga Rosa

Renato Paulo Saul

Ricardo Schneiders da Silva Rômulo Krafta Zita Catarina Prates de Oliveira

Sergius Gonzaga, presidente

Editora da Universidade / UFRGS « Av. João Pessoa, 415 * 90040-000 - Porto Alegre, RS Fone: (051) 224-8821 * Fax: (051) 227-2295

OS SENHORES DO LITORAI

Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambá no Litoral Brasileir

MÁRIO MAESTRI

SEGUNDA EDIÇÃO

e

Editora da Universidade

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Esta publicação contou com o patrocínio do Programa Nacional de Apoio às Editoras Universitárias - PROED/ SESwMEC

O de Mário Maestri

1º edição: 1994

Direitos reservados desta edição:

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e planejamento gráfico: Carla M. Luzzatto Editoração: Geraldo F. Huff

Revisão: Maria da Graça Storti Féres Maria da Glória dos Santos Editoração eletrônica: Fernando Piccinini Schmitt Administração: Julio Cesar de Souza Dias Mario Maestri doutorou-se pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Lecionou na Fundação

Universidade de Rio Grande e nos cursos de pós-graduação em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Dedica-se ao estudo da História do Brasil e da escravidão colonial. Publicou, entre outros: O escravo gaúcho: resistência e trabalho. (2.ed.

Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1993); Lo schiavo coloniale: lavoro e resistenza nel Brasile

schiavista (Palermo: Sellerio, 1989); L'Esclavage au Brésil (Paris:

Karthala, 1992); Storia del Brasile

(Milano: Xenia, 1991). O escravismo no Brasil. (São Paulo: Atual, 1994). E professor de História do Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Endereço para correspondência com o autor. C.P. 10220 -

CEP 90.001-970 - Porto Alegre, RS. Fax (051) 228-6117.

M186s

Maestri, Mário

Os senhores do litoral: conquista portuguesa c agonia tupinambá no litoral brasileiro. 2.ed. rev. e ampl. / Mário Maestri. — Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1995. 1. História do Brasil — Conquista portuguesa. 2. História do Brasil — Escravização — Tupinambás. 1. Título CDU 981.01

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto. CRB 10/1023 ISBN 85-7025-341-9

“Naqueles países tal multidão de gente encontramos que ninguém, enumerar poderia, como se lê no Apocalipse; gente, digo, mansa e tratável.” Américo Vespúcio - Mundus Novus. (1503)

“[...] e eram tantos os desta casta que parecia impossível poderem-se extinguir [...].” Padre Fernão Cardim S.J. - Tratados da terra e gente do Brasil. (1584)

“De tais povos na infância não há história: há só etnografia.” F. A. de Varnhagen (1816-1878). História geral do Brasil.

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Para os amigos

Wladimir Araújo, Nara Machado e Robert Ponge

Para os colegas

Rômulo Andrade, Ernesto Cassol e Théo Lobarinhos Pifeiro.

O presente trabalho contou com o apoio de uma bolsa, concedida pela CAPES, durante o ano de 1990. Uma bolsa de pós-doutoramento, do CNPq, permitiu-nos realizar pesquisas complementares, no primeiro semestre de 1991, nas bibliotecas belgas.

Traduzimos para o português as citações em espanhol, francês, inglês e italiano.

Modernizamos a ortografia das citações em português arcaio e, quando necessário, para um melhor entendimento, as pontuamos. Nas citações, são nossas as interpolações entre colchetes.

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Sumário Ea

INTRODUÇÃO Brasis - Um povo sem história .=..........» =. CAPÍTULO: 1 América ouos erros do navegador ....... =>, = 0-b ron CAPÍTULO 2 .AsmaravilhasdoNovoMundo -...... CAPÍTULO 3 Pobre América, rica'Buropa ...... cura

9 15 21 27

CAPÍTULO CAPÍTULO

35 41

CAPÍTULO

4

Conquista portuguesa da Africa...

7

Familia, residência, aldeia...

5 Umadescobertadepoucaimportância tn 6 Tupinambás -'Os senhores'do litoral... ......

CAPÍTULO

CAPÍTULO 8 CAPÍTULO 9: CAPÍTULO 10 CAPÍTULO 11

CAPÍTULO CAPÍTULO CAPÍTULO

CAPÍTULO

CAPÍTULO

CAPÍTULO CAPÍTULO

CAPITULO

CAPITULO CAPÍTULO

31

12' 13: 14:

15

16:

17

18

19

20 21

CAPITULO 22 CAPITULO 23

Sodomitase luxuriosos.... ane |O mais delicioso prato Tupinambá... Alimento proibido:........ cce ronco Nos tempos do pau-brasil.............ciiiiie eira.

Machado de:ferro, machado de pedra... Um Brasiljpara os colonos. ..... ==... Escravidão de índios... ...... sea

Cativos aldeões e escravos coloniais...

Pela vontade do deus lusitano ............ccii

Acruzea espada...

sussa

57 65 71 77

83 89 95

101

Bafa- Um genocídio anunciado...

Jesuítas - Pastores de canibais..........ccs

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Ultima cartada - Aldeias de índios .............e eee Controle total'do Tecôncavo ...........eee cer

Aum passodo fim... cor Descimento - A agonia final............... R PPRRR RAR

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CONCLUSÃO Odiscurso dos vencidos :........cs eee BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .......cmeceeererenreneaseeners rasca

127

133 1392

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Introdução EZE

Brasis Um povo sem história

Os marinheiros que o capitão-mor Pedro Álva-

res Cabral mandou

a terra, em 23 de abril de 1500,

encontraram facilmente um grupo de duas dezenas de espantados e curiosos nativos. Os primeiros contatos entre brasis € lusitanos foram trangúilos e cordiais. Tupinambás e portugueses trocaram gestos e presentes - um barrete, uma carapuça e um chapéu por um cocar de penas e uma fileira de contas brancas. Os europeus registraram a elegância e a beleza física dos americanos. Não temos informações seguras sobre a impressão causada pelos europeus aos autóctones. Não foi obra do acaso terem os portugueses encontrado tão prontamente comunidades americanas em um imenso litoral. A facilidade com que também os franceses contatavam as populações nativas não passa despercebida ao leitor do livro Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry, editado por primeira vez em 1578. Em diversos pontos da costa, os navegantes franceses disparavam os canhões dos navios e os tupinambás apareciam nas praias oferecendo toras de pau-brasil e outros produtos. Ao contrário do que ocorria na África, a costa brasílica oferecia melhores condições para a ocupação humana do que os sertões. A então exuberante Mata Atlântica cobria grande parte da faixa litorá-

nea, do cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte,

ao Rio Grande do Sul. Com pequenas interrupções, sua ubérrima vegetação dominava as planícies litorâneas e as encostas dos planaltos do interior. Esta faixa costeira, pluviosa, com clima ameno e abundantes matas e rios, era própria à agricultura e rica em caça e pesca. Ela estendia-se ao longo do litoral com uma largura média de duzentos quilômetros. No início do século 16, os povos tupinambás

(subcultura tupi-guarani) senhoreavam o privilegiado território litorâneo. Após aparecerem, há mil anos,

na desembocadura do rio Amazonas, provenientes do médio curso do grande rio, evoluíram rapidamente,

ao longo do litoral, em direção ao sul, combatendo e

expulsando com ferocidade povos caçadores-coletores menos aparelhados que ali se encontravam. Quando os lusitanos chegaram às costas brasílicas, os tupinambás haviam alcançado as imediações da ilha de Cananéia, no atual litoral paulista. Estas comunidades de língua tupi-guarani praticavam uma horticultura tropical e subtropical de

subsistência baseada no milho, na batata-doce, nas vagens e, principalmente, na mandioca - tubérculo,

talvez, originário do litoral tropical brasileiro. (SEB/ 1, 1987: 69.) Elas expandiam-se com rapidez ocupando sobretudo as várzeas e os vales arborizados

9 1

va

dos grandes rios. Tais ecossistemas permitiam uma horticultura que desconhecia a adubação sistemática € OS Instrumentos de ferro e favoreciam as ativida-

des coletoras e caçadoras. Estima-se que, no máxi-

mo, seiscentos mil brasis vivessem na relativamente fértil costa litorânea no alvorecer do século 16.

(FAUSTO, 1992: 383.) Em parte, a alta densidade demográfica relativa destas regiões explica a facilidade com que os europeus contataram as populações autóctones e estabeleceram-se nas novas colônias.

Os lusitanos desembarcaram em uma terra habitada e domesticada. Em forma geral, eles contaram com o apoio inicial da numerosa população nativa. Nos primeiros tempos, os tupinambás empregaram-se voluntariamente na produção de pau-brasil e de outros gêneros americanos. Ajudaram na construção das povoações, roças, plantações e engenhos europeus.

Cederam caça, pesca e alimentos. Tudo em troca dos

apreciados objetos e ferramentas dos recém-chegados. Em boa medida, os portugueses apenas potenciaram a colonização do litoral realizada, nos séculos anteriores, pela onda expansionista tupinambá. BONS PROFESSORES

Os brasis introduziram os colonos no conhecimento das coisas do Novo Mundo. Ensinaram-nos a Caçar e a pescar nestas regiões, a plantar o milho, o fumo, a batata-doce, a mandioca; a conhecer as plantas e os animais da terra. Revelaram-lhes o compleXo processo da transformação da mandioca-brava de planta venenosa em versátil fonte alimentar. Enfim, ensinaram-nos a viver em um meio geoecológico desconhecido. Fizeram mais. Defenderam-nos dos autóctones hostis e receberam-nos em suas moradias coletivas, entregando-lhes temporária ou permanen-

temente suas irmãs e filhas. Em verdade, conduziram pela mão os lusitanos no desbravamento do lito-

ral e dos sertões. O historiador português Jaime Cortesão lembra, com pertinência, que, dentre os traços culturais dos tupi-guaranis, destacavam-se “o 10

sentido excepcional de orientação, os conhecimentos topográficos, a capacidade para representar por forma gráfica o espaço percorrido [...]”. (CORTESÃO: 1975, I: 20.) Conhecimentos dos quais os lusitanos serviram-se abundantemente. A importância ce o sentido das relações estabelecidas entre europeus e nativos constituem nexos explicativos essenciais da história brasileira

dos séculos 16 e 17. Não acreditamos, como afirmou

o sociólogo Florestan Fernandes, que o “heroísmo” e a “coragem” tupinambás - ou seja, a resistência destas comunidades diante do movimento colonizador português -, por terem sido vencidos, “não movimentaram a história, perdendo-se irremediavelmente com a destruição do mundo em que viviam”.

(FERNANDES,

1963:

72.) Ao

contrário, concorda-

mos com o mesmo autor quando, no mesmo artigo, assinala que a resistência, a acomodação e a fuga dos tupis diante do colono invasor contribuíram “para modelar os contornos assumidos pela civilização luso-brasileira”. (FERNANDES, 1963: 85.) Pouco compreenderemos do que ocorreu nos primeiros anos do passado nacional se desconhecermos o real sentido dos contatos estabelecidos entre portugueses e brasis. Entretanto, esta não foi uma história edificante. Nesta espécie de Jogo de posições, os homens do Velho Mundo - em forma raramente explícita - sempre ditaram as regras e embaralharam as cartas. Da colaboração pacífica e voluntária inicial entre portugueses e brasis, os lusitanos evoluiram à luta pelo controle territorial da faixa costeira e da força de trabalho americana. Os nativos foram

combatidos, iludidos, escorraçados, aculturados, reduzidos à escravidão, dizimados. Em menos de um

século, desapareciam as numerosas comunidades tupinambás senhoras do litoral no momento do achamento cabralino. Até o início do século 17, as roças, plantações e engenhos luso-brasileiros funcionaram sobretudo a partir do esforço do braço americano feitorizado. A seguir, o brasil (“negro da terra”), apesar de superado numericamente pelo africano (“negro da Guiné”),

continuou desempenhando um papel acessório, como mão-de-obra servil, sobretudo nas zonas coloniais de economia mais frágil. Na plantação açucareira e na mineração,

o brasil escravizado

serviu

como

uma

espécie de capital originário que permitiu o início da produção c uma primeira acumulação de riquezas. A seguir, esta última financiou a importação de grande quantidade dos mais custosos cativos africanos. Com o passar dos anos, estes últimos substituíram maci-

çamente os brasis como mão-de-obra servil.

Às práticas escravistas e coloniais européias de-

ram origem a visões preconceituosas das sociedades

americanas. Mesmo quando dominou a colaboração,

não foi neutro o olhar português sobre o Novo Mundo. Os lusitanos estavam inseridos em uma tradição mercantilista e expansionista que fazia tabula rasa das culturas com que entravam em contato antagônico. Nos primeiros tempos da descoberta colombiana, a palavra “índio” designou o habitante de territórios considerados erroneamente como as costas extremo-orien-

tais das Índias. Nasceu, portanto como um substantivo pátrio gerado pelos enganos e ilusões geográficas de Cristóvão Colombo (1451-1506) e de seus companheiros. Rapidamente, a palavra tornou-se um estereótipo e passou a definir homens tidos como atrasados, ingênuos e preguiçosos. Homens inferiores, enfim. LUTA IDEOLÓGIA

Os brasis do litoral nomeavam e individualiza-

vam suas comunidades - tupinambás, tupiniquins, caetés, etc. O nomear e o individualizar eram tidos

pelos europeus como atributos do “homem civilizado”. (NEVES, 1978: 45.) Sobretudo com a designação genérica “índio”, os europeus homogenizaram e reduziram as incômodas diversidades e individualidades das comunidades americanas. Foi também ideológica a violenta luta entre europeus e tupinambás pelo controle do litoral. Tal visão do homem americano continua influindo as ciências sociais contemporâneas. Entre os principais sinônimos de “índio”

estão “selvagem” e “silvícola”. Ou seja, “habitantes das selvas”. À categoria “índio” é imprópria para designar-se comunidades domésticas aldeãs - como as tupinambás - nas quais a horticultura assumia já um caráter dominante. (MEILLASSOUX, 1977: 64.) A categoria “índio” ressalta as práticas caçadoras, guerreiras € nômades dessas comunidades em detrimento das ati-

vidades horticultoras. Ela termina estabelecendo uma analogia inconsciente entre aqueles atos humanos e as práticas caçadoras, a agressividade e o padrão de

deslocamento dos grandes animais predadores. Apresentando-se o tupinambá como “índio”, dilui-se o fato de que ele era, antes de tudo, um produtor aldeão. Que o trabalho era o principal media-

dor de suas relações com os outros homens e com a natureza. Até inícios de nossa era, comunidades germânicas assentaram essencialmente sua subsistência material em uma horticultura itinerante semelhante à conhecida pelos tupinambás. (CHILDE, 1964: 71.) A historiografia do Velho Mundo certamente se escandalizaria se tratássemos tais populações como “índios' europeus. Com a categoria “índio” tem-se designado acriticamente o homem americano. Ou seja, o caçadorcoletor, o horticultor de plantação-enxertia e, até mesmo, o agricultor cerealífero que construiu Tenoxtitlan. As ciências sociais - sobretudo a Antropologia - apropriaram-se de muitos destes estereótipos coloniais e, com eles, construíram boa parte do aparato categorial utilizado no estudo das sociedades pré-classistas nãoeuropéias. Categorias como “tribo” e “índio” - por exemplo - trazem incrustadas sugestões valorativas que comprometem os próprios conteúdos essenciais das narrativas contemporâneas sobre as comunidades domésticas aldeãs americanas. Em forma geral, os cientistas sociais que tratam os primeiros tempos da colonização dividem-se em duas grandes correntes. Para a primeira, as colônias teriam sido fundadas em territórios semidesabitados, ocupados por algumas poucas comunidades, selvagens, nômades e atrasadas. Transcorridas algu1

mas décadas, não se sabe muito bem como € por que, estes grupos humanos teriam desaparecido do cená-

no histórico, praticamente sem resistência. Antes da Chegada do civilizador português, o “Brasil” seria uma

espécie de mata virgem de povoação rarefeita. O historiador Manuel

Rodríguez Lapuente,

Teferindo-se à história íbero-americana, chegou a questionar a pertinância da categoria “conquista”. Segundo ele, “a imensa maioria das terras americanas foram ocupadas pacificamente, ou porque os na-

tivos não opuseram resistância, ou, simplesmente,

porque eram terras desabitadas”. (LAPUENTE, 1975: 16.) No relativo ao Brasil, tal visão tem como expoente máximo o patrono da historiografia nacional, Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878). Para ele, o “índio” seria um acidente de percurso da colonização, rapidamente superado pelo processo “civilizatório”. POVO SEM HISTÓRIA

vel” do “indígena” diante do Homo economicus europeu, ao qual o americano não se poderia adaptar ou compreender. Em verdade, a reação destes povos é vista como natural, desesperada, instintiva, repetitiva e refratária a qualquer modificação. O sistema organizativo das comunidades americanas possuiria a tal ponto “um padrão de equilíbrio interno relativamente indiferenciado e rígido” que lhes era impossível se “reajustar a situações novas, im-

postas pelo contato com o invasor branco”. (FER-

NANDES, 1963: 80.) Tratar-se-ia de um comportamento social quase protozoárico. A história do embate das comunidades tupinambás com o avanço colonizador se assemelharia à do choque dos bisões com os caçadores brancos, nas pradarias norteamericanas. Ambas leituras contribuem para que, cinco séculos após a viagem de Cabral, não exista uma história - digna do nome - da interação/ absorção/ destruição dos povos nativos pela sociedade “brasileira”. Alexander Marchant publicou, em inglês, um

breve e brilhante ensaio que foi traduzido e editado,

Formalmente opostos a esta escola, estudos antropológicos mais recentes, de vocação culturalista, funcionalista e estruturalista, descrevem o desaparecimento dos povos tupinambás como um drama histórico motivado pelo confronto - imediato e linear - de “dois povos cujos sistemas econômicos e visões de mundo não poderiam ser mais opostos”. (SCHWARTZ, 1988: 42.) Negando o caráter unitário e histórico do gênero humano e defendendo a incompatibilidade essencial da civilização européia (histórica e econômica) e da americana (natural e a-econômica), estas leituras sugerem como inevitável a destruição destes povos “naturais” pelo avanço civilizatório europeu.

em português, em 1943, com o título Do escambo à escravidão: as relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil. (1500-1580). A partir de uma atilada análise da documentação quinhen-

cável, pois inelutável. E um quase corolário de tal visão a impossibilidade de uma história destes contatos.

ceituosos, Do escambo à escravidão revela socieda-

Tratar-se-ia de uma tragédia, até certo ponto, justifi-

(LEVI-STRAUSS, 1970: 231- 52.)

Estes grupos humanos “sem história” poderiam ser descritos apenas a partir de uma ótica sincrônica. No máximo, teríamos para relatar a reação “imó12

tista então conhecida, o historiador norte-americano

estabeleceu uma convincente periodização dos contatos de europeus e brasis no século 16. Num primeiro momento - o do escambo -, trocas voluntárias e proveitosas entre europeus e tupinambás. Num segundo tempo, com a ocupação territorial e os primeiros engenhos e plantações, a importância decrescente da economia de trocas e o conflito interétnico pelo controle da terra e da força de trabalho americana. Apesar de alguns poucos deslizes precon-

des brasílicas que estabelecem relações sociais, culturais, econômicas e políticas com os recém-chegados. O contato entre as duas comunidades assume razões e conteúdos claramente históricos e portanto compreensíveis. O autóctone se humaniza e perde sua supos-

ta essência natural. Deixa de ser “índio” para reassumir a sua identidade tupinambá objetiva. O drama destes grupos humanos não é mais visto como patética e ine-

lutável dissolução de povos naturais diante do avanço da civilização econômica. Ele assume seu verdadeiro sentido no devenir da formação da sociedade de classes no Brasil. A agonia dos povos tupinambás ganha o status de importante página da história da exploração mercantil da força-de-trabalho no Brasil. Este brilhante ensaio não fez escola. A sociedade tupinambá tem permanecido uma espécie de “reserva de caça” da Etnologia e da Antropologia. Não são muitos os estudos que resgatam a dimensão histórica do drama vivido pelas comunidades

americanas, no século 16, no litoral brasileiro. A historiografia brasileira sofre muito devido a esta lacuna. A feitorização dos brasis é uma espécie de longa e dolorosa primeira página da história da escravidão negra. Cremos que esta última constitua,

até 1888, o nexo essencial da sociedade brasileira. Para a imensa maioria dos atuais brasileiros, o “índio” permanece um ser, talvez simpático, mas “es-

trangeiro” e, portanto, estranho à nossa “civilização”.

Com maior facilidade se mantêm encobertos os meca-

nismos que regem essencialmente a história passada e

presente da sociedade brasileira. Com Os senhores do

litoral procuramos contribuir à necessária releitura do

verdadeiro sentido do etnocídio tupinambá praticado pelos senhores luso-brasileiros, quando da luta pelo

domínio do Jitoral brasílico. Uma versão paradidática e abreviada deste trabalho foi publicada, sob o título Terra do Brasil, pela Editora Moderna, de São Paulo, no primeiro semestre de 1993.

A primeira edição de Os senhores do litoral esgotou-se, poucos meses após seu lançamento. Agradecemos à Editora da Universidade que nos permitiu corrigir e ampliar esta segunda edição.

13

a América Capítulo |

ou Os erros do navegador

Não foi uma casualidade ter sido a descoberta do genovês Cristóvão Colombo batizada com o nome do florentino Américo Vespúcio (1454-1512). A obstinação no erro de avaliamento que permitiu a Colombo devassar o mar Tenebroso e descobrir um mundo novo contribuiu para que ele, até o momento de sua morte, ainda acreditasse ter chegado às costas das Índias. (LAPUENTE, 1975: 111.) Patético paradoxo. Por ter errado os cálculos e descoberto um continente, e não um caminho atlântico até os mercados

das especiarias, Cristóvão Colombo morreu num semi-ostracismo e passou para a história como o maior dos navegadores. Em verdade, o essencial de sua aventura apolava-se em graves e vulgares erros de apreciação. Os espíritos mais lúcidos da Antiguidade -

Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, etc, - havi-

am desvelado o caráter esférico da Terra. Os próprios eclipses comprovavam o fato ao refletir o perfil da Terra sobre a Lua. O geógrafo alexandrino Cláudio Ptolomeu (cerca 90 - cerca 168), que introduzira “na cultura medieval o hábito de relacionar a Terra com a esfera terrestre e as preocupações sobre o problema das dimensões do globo e da posição geográ-

fica”, construíra globos terrestres. Desde os anos 800, os cartógrafos islâmicos construíam mapas e globos

bascados na consciência do carácter esférico do planeta. Mais tarde, obras como o Tratado da esfera, de Sacrobosco, de meados do século 13, e o Imago mundi, do cardeal d” Ailly (1350-1420), difundiram largamente estas ídéias na Europa cristã. (CORTESÃO, 1975/1: 246; 1990/3: 661; KUPCIK, 1989: 2) Em

1492,

no

mesmo

ano

da descoberta

da

América por Colombo, o geógrafo Martin Behaim (cerca 1459-1507), de Nuremberg, que servira por longos anos a dom João II, e que explorara, por ordem do soberano, a costa da Guiné (1485-86), construía, na Alemanha, o mais antigo globo terrestre que

chegou até nós. Martin Behaim era apaixonado pela idéia da possibilidade de se chegar à Índia viajando pelo Ocidente. No seu globo, ele reproduz os erros de Ptolomeu e Toscanelli sobre a proximidade da

China da Europa e, sintomaticamente, não indica, sobre o oceano Atlântico, a existência de nenhum continente desconhecido. (KUPCIK, 1989: 34.)

Nenhum cosmógrafo, cartógrafo, capitão ou marinheiro de longo curso - cristão ou muçulmano -, digno do nome, daria crédito aos mitos da planicidade da Terra, de despenhadeiros marítimos e outras crenças populares de então. Era de domínio comum a consciência da possibilidade teórica de se chegar às Indias, viajando para o Ocidente, pelo Atlântico. 15

A Antiguidade européia foi essencialmente

mediterrânica. A exploração das vastidões do ocea-

no Atlântico jamais se colocara como uma real precisão. Com a expansão econômica medieval, cresceu a necessidade de estabelecer contatos diretos com o Oriente. Desde 1245, missionários e comerciantes visitavam com frequência, por terra, a China, man-

tantes regiões da Europa Ocidental, de 10 a 50% da

população teria sucumbido devido à epidemia. Vinte

anos mais tarde, em 1368, a dinastia mongólica dos

Yuen seria substituída pelos senhores Ming. A tudo isto, se sobrepôs a expansão do poder muçulmano. Interrompia-se de vez os contatos diretos do mundo cristão com o Oriente e as expedições genovesas no

tendo contatos com a dinastia mongol. Por estas épo-

atlântico. (GODINHO, 1984: 16 et seq; CORTESÃO, 1975/1: 123; HOLMES, 1984: 94.)

ros* muçulmanos lisboetas teriam aportado nas Canárias e nas costas da Berbéria. (CORTESÃO, 1975/ 1: 63.) É crível que os próprios genoveses tenham

TENTANDO

cas, o oceano Atlântico passou a despertar o Interesse e a curiosidade européia. Um pouco antes da Teconquista cristã de Lisboa, em 1147, “aventurei-

tentado a aventura transatlântica. A partir dos anos 1270, anualmente, galeras genovesas partiam para a Inglaterra, para os Países Baixos e para as costas atlânticas do Marrocos. Em maio de 1291, os irmãos Ugolino e Vadino Vivaldi deixaram Gênova, a bordo de duas galeras, Allegranza

e Sant'Antonio, venceram o estreito de Gibraltar,

dirigiram-se para o sul, até as proximidades das ilhas Canárias - as ilhas Fortunadas da Antiguidade -, e perderam-se no mar Oceano. Não se sabe se pretendiam atravessar a África, navegando pelo rio Senegal, transpor o Atlântico ou circunavegar o Continente Negro. (CORTESÃO, 1975/1: 275.) Os anais genoveses de 1291 assinalam que a expedição portava dois frades franciscanos e se dirigia “às partes da índias” para de lá trazer “mercadorias úteis”. Anos depois, um filho de Ugolino perdeu-se no mar Oceano procurando o pai e o tio. (GIUCCI, 1992: 47) Após estas viagens, outras tentativas teriam sido feitas. As ilhas Canárias talvez tenham servido como escala destas tentativas. Elas teriam sido redescobertas, pelo genovês Lancellotto Malocello, acredita-se que em 1312. Em 1348, a grande Peste Negra, trazida possivelmente por ratos transportados, do Próximo Oriente, ao porto de Marselha, lançaria uma Europa sobrecarregada por um população que alimentava com dificuldade - em uma profunda depressão demográfica e econômica. Estima-se que, em impor16

NOVAMENTE

O projeto de travessia transoceânica em direção às Indias teria ressurgido, naturalmente, na mente de muitos humanistas e comerciantes, no momen-

to em que a economia européia retomou vigor e renasceu, ainda mais forte, a necessidade de furtar-se ao monopólio dos muçulmanos e venezianos do co-

mércio oriental. Necessidade que se tornou ainda mais imperiosa após os turcos otomanos apoderarem-se de Constantinopla e do Bósforo, em maio de 1453, astixiando as colônias genovesas do mar Negro. A pretensa idéia revolucionária do navegador genovês

- “O ovo de Colombo” - é mais uma das lendas

apologéticas que envolvem a sua vida e a sua obra. Tratando-se de uma viagem a ser realizada inteiramente no Hemisfério Norte, nem mesmo a orienta-

ção astral era uma grande dificuldade. Um grande e prosaico motivo impedia que se tentasse chegar às Indias atravessando o oceano Atlântico. Os melhores cosmógrafos dos fins do século 15 tinham consciência da inviabilidade de tal aventura. Na Antiguidade, geógrafos gregos haviam dividido o globo terrestre em 360 graus e calculado, com singular aproximação, a circunferência da Terra. Entre outros, Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) praticamente chegara ao resultado correto - quarenta mil quilômetros. Considerando-se os navios da época e os problemas de abastecimento, a viagem era materialmente impossível de ser realizada com sucesso. E

mesmo

se o fosse, seria um fracasso, do ponto de

vista econômico, devido à relação custo/benefício. Pouquíssima carga seria trazida de tais distâncias. A

primeira viagem até as ilhas Molucas, rico centro de

especiarias das Índias, realizada pelo Ocidente, iniciada por Fernão de Magalhães, em 1519, comprovou a inviabilidade econômica desta rota. Os apologetas de Cristóvão Colombo pouco destaque dão ao fato de que ele formou-se como navegador oceânico em Portugal. O genovês, que possivelmente se ocupara em viagens mediterrânicas e viajara à ilha da Madeira, teria chegado a Portugal,

em 1476-77, onde se encontrava estabelecido seu irmão Bartolomeo, segundo parece, proprietário de um

atelier de cartografia. Naquela época, Lisboa era o grande centro das navegações atlânticas. A cidade possuía uma importante colônia genovesa e eram antigos os contatos entre a Ligúria e os principais portos marítimos do Reino. Os primeiros navegadores genoveses estabeleceram-se em Lisboa, a partir de 1317, chamados pelo rei dom Dinis (1261-1325), para o servirem - na guerra e na paz - e para difundirem no reino as técnicas marítimas mediterrânicas. Acredita-se que tenham sido os genoveses a introduzir as cartas de marear em Portugal. (HEERS, 1981: 74; SÉRGIO, 1977:23; MARQUES, 1987: 41: COR-

TESÃO, 1975/1: 248.)

- Um ou dois anos após sua chegada a Portugal, Cristóvão Colombo casou-se com dona Felipa Moniz Perestrello, filha do navegador de origem italiana

Bartolomeu

Perestrello, já falecido, que servira à

coroa lusitana, na descoberta e ocupação do arquipé-

lago da Madeira, nos anos 1420. Por parte de mãe,

dona Felipa pertencia a uma família aristocrática portuguesa ligada às descobertas e ao comércio oceânico. Na ocasião, os Moniz Perestrello navegariam em uma situação econômica não muito brilhante. Recém-casado, o genovês foi viver na pequena ilha de Porto Santo, donataria da família e, a seguir, transferiu residência para Funchal, na próxima ilha da Madeira. Em 1481 ou 1482, Colombo voltaria para Lisboa, onde estabeleceu residência. (HEERS, 1981:

85; CORTESÃO, 1975/2: 365.)

Após

sua

chegada

a Portugal,

Cristóvão

Colombo participou de viagens mediterrânicas e atlânticas. No início dos anos 1480, a participação em uma expedição portuguesa até o longínquo castelo de São Jorge da Mina, no golfo da Guiné, de-

sempenharia um importante papel em sua educação

como navegador. Como veremos, nestes anos, a aber-

tura de uma rota marítima para as Indias preocupava

novamente importantes interesses europeus, entre eles Génova, que “sonhava elidir o poderio turco, e, por indústria ou força, atingir diretamente os centros produtores do Oriente”. (CORTESÃO, 1975/1: 97.) Foi

por estas épocas que Cristóvão Colombo madurou sua proposta de viajar, pelo Atlântico, para o Ocidente, para chegar aos mercados do Oriente. Este projeto refletia uma real mas difusa corrente de pensamento da época. (HEERS, 1981: 90-94.)

Desde a Antiguidade, a deduzida ou intuída vastidão do oceano Atlântico fora povoada, aleato-

riamente, pelos cartógrafos, com inúmeras ilhas e

continentes.

Quando

os europeus

começaram

a

aventurar-se nas águas atlânticas e, sobretudo, após o início da conquista do litoral africano, reais ou fictícias notícias de rápidas visitas ou fugazes apercebimentos de ilhas misteriosas e fantásticas corroboravam estes dados fantasiosos. Eram muito difundidos os mitos da ilha das Sete Cidades - povoações fundadas e perdidas por bispos ibéricos fugidos da invasão muçulmana -; da Antilha, ilha ou ilhas que, no Atlântico, “contrabalançavam” o Ve-

lho Mundo;

da ilha dos Satanazes, etc. A ilha de

São Antão era outro antigo e difundido mito medieval. O relato da viagem do abade irlandês - Navigatio Sancti Brendani Abbatis -, em um Atlântico povoado de ilhas imaginárias, entre os séculos 5 e 6, até entrever o paraíso e de lá voltar carregado de riquezas, incorporava à hagiografia cristã reminiscências de viagens celtas no Atlântico norte. A partir do século 13, ilhas de São Antão foram lançadas nos mapas-múndi, aleatoriamente ou fundindo a tradição com as descobertas geográficas. (GIUCCI,

1992: 35-41.)

17

ILHAS MISTERIOSAS

Eram também fortes os indícios de existência

de ilhas e de terra firme no Atlântico Ocidental. Os ventos e as correntes marítimas traziam- aos arqui-

pélagos dos Açores, das Canárias, e da Madeira - frutos, plantas e madeiras oTIgINÁTIOS provavelmente do

Novo Mundo e desconhecidos na Europa. Desde

1450, os portugueses avistaram, ou criam avistar, de

relance, ilhas no Atlântico Ocidental, tidas como a Antilha ou a ilha das Sete Cidades. Há igualmente sérios indícios de viagens de explorações e lugazes

descobertas portuguesas nestas regiões. (CORTESÃO, 1975/2: 622.) A existência de ilhas e de um ou mais conti-

nentes no Atlântico era aceita pelos melhores cosmógrafos de então. Entretanto, portugueses e eu-

ropeus não se interessavam sobremaneira por eventuais terras distantes, provavelmente inabitadas e dificilmente desfrutáveis. A curiosidade geográfica, as navegações e as descobertas eram orientadas pelos Interesses e pelas necessidades econômicas da época. Na relação de um contemporâneo a uma das primeiras expedições às Canárias, de meados do século 14, registrou-se a desilusão causada pela aventura: “Parece, todavia, que estas ilhas não são ricas, pois os navegantes mal puderam recuperar as despesas da

viagem.” (CORTESÃO, 1975/1: 280.)

Cristóvão Colombo leria estes indícios em um sentido radicalmente oposto. Eram as Índias que se encontrariam apenas a umas três ou quatro semanas de viagem atlântica de Portugal. Inflamado pela idéia, o genovês dedicou-se a comprovar sua exótica afirmação. Como vimos, desde a Antiguidade, se discutia e divergia sobre a extensão da circunferência do Globo Terrestre. Cristóvão Colombo reteve os cálculos do matemático árabe Al-Farghani, que definira, com boa precisão, 360 graus de 56 1/3 milhas para aquela medida. Entretanto, o genovês confundiria milhas árabes (122,6 quilômetros) com romanas (83 quilômetros). O que lhe deu apenas 30 mil quilômetros para o perímetro da Terra, Menos 10 mil quilô18

metros do cálculo certo! (HEERS, 1981: 158.)

Na época, estimava-se a distância que separava a China de Portugal, pelo Atlântico e pelo Ocidente, diminuindo, da circunferência do Globo, a mesma distância, por terra e pelo Oriente. Antes c depois da viagem de Marco Pólo, em 1271-95, diversos missionários e

comerciantes europeus viajaram, por terra, até a China, parte das Índias de então. Os franciscanos Giovanni da

Pian Carpino e Guilherme de Rubruck, enviados, respectivamente, à corte dos mongóis, pelo papa Inocente IV e por Luís IX, rei da França, em 1245-47 e 1253-56, deixaram relatos sobre as viagens. O franciscano italiano Carpino escreve sua História dos mongóis; o flamengo Rubruck, seu Itinerário. (CORTESÃO, 1975/ 1: 109; 116; 122; FAVIER, 1991: 183.) Um outro viajante, o mercador florentino Francesco Balducci Pegolotti escreveu, pelos anos 1540, a célebre Pratica della mercatura, com detalhadas descrições dos pesos, medidas, produtos, vias e meios de transportes, do Egito à China. Na capital chinesa dos mangóis existiam verdadeiras colônias de estrangeiros- alemães, húngaros, russos, armênios, etc. (CORTESÃO, 197541: 109: 116; 122; FAVIER, 1991: 174.) Abundavam estimativas - em verdade, bastante imprecisas- sobre a distância terrestre entre Portugal e a China. Em geral, tendia-se a superestimar esta distância, pois superavaliava-se a extensão da superfície da Ásia. Cristóvão Colombo optou pela estimativa mais extremada. Subestimando a extensão da circunferência da Terra e superestimando a superfície da Ásia, a distância entre Portugal e o Japão encolheu comodamente para apenas 4.440 quilômetros. Ou seja, quatro vezes menos que sua real extensão - 19.600! Em fins do século 15, a navegação atlântica de alto-mar fora já dominada pelos portugueses. Qualquer caravela venceria tal viagem - efetuada totalmente no Hemisfério Norte -, sem problemas, em umas quatro ou cinco semanas de travessia atlântica, se os ventos e as correntes marítimas não se opusessem. Cristóvão Colombo completava seus cálculos

estapafúrdios e a sua defesa da estreiteza do Atlânti-

co com provas ainda mais exóticas e medievais. En-

tre clas, o fato de que a Bíblia afirmara que o mundo fora criado com seis sétimos de Terra e apenas um

sétimo de oceanos. Afinal de contas, o Criador certa-

mente privilegiaria as terras, destinadas à vida humana ... Desculpam o genovês o fato de que tais imbrogli matemáticos, cartográficos € criacionistas tossem defendidos por importantes humanistas. Entre outros, o grande geógrafo Ptolomeu, que teve sua Geografia impressa em 1475, ensinara que a circunferência da terra media 32 mil quilômetros e que o

oceano Índico era um mar interior ... (HEERS, 1981:

160; KUPCIK, 1989: 25.)

NAVEGANDO

NA FANTASIA

Hoje é praticamente fora de dúvidas que Cristóvão Colombo teve conhecimento dos cálculos incorretos do humanista Paolo dal Pozzo Toscanelli (1397-1482), que defendia, no mínimo desde 1474, a grande proximidade entre as costas asiáticas e européias. É também provável que o genovês tenha mantido correspondência com o florentino, que lhe teria fornecido, em 1480/2, uma cópia do mapa enviado a dom Afonso V (1438-81), em 1474, no qual assina-

lara incorretamente as costas do Japão e da China, precisamente onde se encontrava o continente ame-

ricano desconhecido. (CIMO, 1992: 38-45.) Galvanizado pela idéia e contando com o apoio de indivíduos e de grupos conquistados e interessados no projeto, Colombo arranjou-se para ser recebido e apresentar, seus cálculos e planos, a dom João II (1481-95), na primavera ou no verão de 1484. O soberano indeferiu a proposta colombiana. Não teria sido difícil para os geógrafos e expertos náuticos a serviço de Portugal desvelarem os erros grosseiros do genovês. Eles lembrariam ao rei que o Japão se encontrava bem mais ao Oriente, que não seria possível levar víveres suficientes para uma tão demora-

da travessia e que as tripulações, no mínimo, deses-

perariam, navegando, por longos meses, num mar a

y

“1

E

oceano desconhecido. (COLOMBO, 1989, I: 9.) Não conseguindo conquistar o apoio português, Cristóvão Colombo transferiu-se, possivelmente em 1485, para a Espanha, onde, em abril do mesmo ano, apresentou sua proposta a Isabel (1474-1504), senhora de Castela e, portanto, das costas atlântica da Espanha, a principal região interessada no tráfico oceânico. Ainda envolvida na guerra contra Grana-

da, como o soberno português, Isabel entregou a de-

Jícada questão a um comitê de cosmógrafos, mate-

máticos e teólogos que, certamente pouco enfronhado

nas questões das descobertas marítimas, não se apressou a depositar um parecer sobre a consulta. (GODINHO, 1969: 46.) Por esses anos, dom João II fazia

avançar o assalto final das costas africanas. Em 1483,

o grande navegador português Diogo Cão ultrapassava a foz do rio Zaire, na Africa Central. Por algum tempo, os portugueses acreditaram encontrar no rio uma passagem em direção às Indias ... Diante da demora da resposta espanhola, e pressentindo que os lusitanos resolveriam, logo, à sua maneira, a charada, Colombo voltou-se, de novo, para o soberano português, que recebeu o genovês, mais

uma vez, € recusou, novamente, o apoio à aventura. Em dezembro de 14868, em Lisboa, Colombo assistiu

a volta triunfal de Bartolomeu Dias. O navegador português, após partir de Lisboa em agosto do ano anterior, no comando de duas caravelas e uma nave

de abastecimento, contornara no extremo da África

Meridional, o por ele denominado cabo Tormentoso (das Tormentas). O acidente geográfico seria rebatizado por dom João como cabo da Boa Esperança. Especialistas sugerem que, nestas épocas, os portugueses tivessem indícios seguros da existência de terras entre a Ásia e a África. De volta à Espanha, Cristóvão Colombo recebeu o veredito negativo do conselho reunido por Isabel. Honra a comissão espanhola ter desaconselhado a operação pelas mesmas sábias razões avançadas pelos conselheiros portugueses. Em 1488, talvez ciente do pouco interesse espanhol, Bartolomeu Colombo partiu para a Inglaterra, onde apresentou, em nome do 19

desconheceria a opinião de seus conselheiros e daria

"

que daria a Isabel e a Fernando o título de Reis Católcos, concedido por Alexandre VI (1492-1503) -, em janeiro de 1492, mudaria a conjuntura na península Ibérica. Em inícios do mesmo ano, Isabel de Castela

zões de tal decisão intempestiva. Talvez a confluência entre a vontade de recuperar o tempo perdido no Atlântico e os escassos conhecimentos náuticos da corte castelhana expliquem o apoio a uma iniciativa sobre a qual os especialistas conflufam na acertada opinião de apontar os grosseiros desacertos.

*

A definitiva vitória sobre o Reino de Granada -

1492. Não foram ainda desveladas a contento as ra-

broca

do descobrimento de Cristóvão Colombo.

a

cesso, na França, onde receberia, mais tarde, a notícia

Colombo as condições da aventura, que resultaram nas Capitulações de Santa Fé, assinadas em 17 de abril de

a

Jeto transatlântico. Faria o mesmo, a seguir, sem su-

instruções para que fossem discutidas com Cristóvão

o"

irmão, à Henrique VII, com o mesmo resultado, o pro-

Capítulo 2

As maravilhas do Novo Mundo

Problemas internos e externos - sobretudo a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) - haviam afastado a França e a Inglaterra das primeiras grandes conquistas marítimas. O mesmo ocorrera com a Espanha. Apenas em janeiro de 1492, os Reis Católicos unificavam o país, ao derrotar Granada, o último reino muçulmano da Península. Apesar de contar com um extenso litoral marítimo, a Espanha era uma nação sobretudo agrária. Ela dispunha ainda de um vasto interior para ser colonizado. Com importantes e di-

atlântico africano, com relativo sucesso. Entretanto,

com o Tratado de Alcáçovas, de setembro de 1479, que pusera fim na guerra dinástica, a Espanha fora

obrigada a retirar-se dessas águas e a reconhecer o monopólio lusitano sobre as navegações e terras ao

nâmicas portas para o Atlântico - Galiza, Astúrias,

sul das Canárias, que o diploma cedia à Espanha. (CORTESÃO, 1990/3: 495, 549, 559; 1975/2: 319.) No fim do século, a Espanha observava ciumenta os sucessos africanos de Portugal. Boa parte dos cativos aprisionados pelos portugueses na Africa era vendida, com ótimos lucros, nos mercados espanhóis.

da África, tudo indicava que as grandes forças eco-

Criavam-se as condições mínimas para um expansionismo extrafronteira. Mantinha-se entretanto o

País Basco, Andaluzia - a vocação marítima espanhola fora, até fins do Quatrocentos, principalmente mediterrânica. Literalmente debruçada sobre o norte nômicas e militares, postas em tensão pela Reconquista e liberadas pela derrota de Granada, seriam reorientadas para a conquista do norte da África. No século 13, a confederação aragoneza se transformara em uma das maiores potências navais

do Mediterrâneo. No século 14, os marinheiros da

Andaluzia, da Catalunha e de Majorca tinham frequentado assiduamente as costas do Marrocos. Nos anos 1475-80, durante a Guerra da Sucessão, quan-

do Afonso V pretendera a Coroa espanhola, em resposta, Castela promovera e apoiara operações no

Com a vitória sobre Granada, os Reis Católicos realizavam a unidade nacional e pacificavam o país.

atraso, em relação a Portugal, no que diz respeito às grandes navegações. (GODINHO, 1969: 45.) A férrea união entre catolicismo, nobreza feudal e Coroa permitira a unificação da quase totalida-

de da Península sob a égide do Estado espanhol. Sob a retórica despiedada da Inquisição, a mesma aliança implementaria uma ininterrupta luta contra as débeis classes burguesas e mercantis. O Estado espanhol poria igualmente, em uma verdadeira camisa-de-força escolástica, as ciências e os espíritos mais inquietos,

que haviam recebido o influxo do importante desen-

21

volvimento cultural e científico muçulmano. Vanguardas da ciência e do capitalismo nascente, os judeus € Os muçulmanos espanhóis foram reprimidos, expul-

Sos e massacrados. No mesmo ano em que Colombo

descobria a América, Abraão Zacut, O grande cosmógrafo judeu de Salamanca, partíria para Lis-

boa, fugindo das perseguição anti-hebraica decretadas pelo Edito de Expulsão. O atraso científico e cultural da Corte espanhola parece ter contribuído para

a descoberta da América, resultado inesperado da aventura colombiana. A busca de um caminho atlântico-ocidental para as Índias expressava os interesses de grupos comerciais prejudicados pelo monopólio muçulmano c veneziano das especiarias. Entre estes interesses se encontravam os genoveses. À cabeça de uma pequena frota de três caravelas - Nina, Pinta e Santa Maria

-» Cristóvão Colombo partiu, em agosto de 1492, do porto de Palos, para terminar descobrindo, após pou-

co mais de quatro semanas de viagem atlântica, um

continente total e completamente desconhecido, onde acreditava encontrariam-se as Índias.

SUCESSO DE DIVULGAÇÃO O continente com que Colombo deparou salvou-o de voltar sem ter chegado às Índias ou de, pior ainda, perder-se em uma inesperada imensidade oceânica. Em verdade, Colombo descobriu, para os europeus, por mero acaso, um continente exatamente onde acreditava que se encontrassem as Índias. Ou seja, para a geografia da época, nas vastas costas da Ásia que se estendem do Japão ao golfo Pérsico. Razão tinham os cosmógrafos e cartógrafos a serviço de Portugal ao desaconselharem dom João II, em 1484 e em 1488, a financiar a viagem transatlântica. Como acreditavam os portugueses, a verdadeira rota atlântica das especiarias contornava a África. Américo Vespúcio foi o primeiro navegador a revelar ao grande público culto europeu o verdadeiro sentido do achamento colombiano. Acreditam os 22

especialistas que o [lorentino tenha participado de quatro expedições transatlânticas - duas espanholas

c duas portuguesas. Ainda em julho de 1500, de volta de sua segunda viagem (1499-1500), como Colombo, Vespúcio acreditava serem as terras descobertas “confins da Ásia pela região do oriente, c o princípio, pela região do ocidente”. (VESPÚCIO, 1984: 57; CIMO, 1992: 144.) Uma apreciação que mudou radicalmente quando de sua terceira viagem -

a primeira, sob bandeira lusitana. Residindo em Espanha desde 1492, Vespúcio abandonou a teoria asiática” defendida por Colombo somente após participar de uma expedição portuguesa às terras recém-descobertas. (HCPB, II: 184.) Ao escrever a Pier de Medici, falou peremptório de um “Novo Mundo”, habitado por povos e animais diferentes aos da Europa, Ásia ou África. (VESPÚCIO, 1984: 89.) Apenas chegava das longas viagens oceânicas, como era hábito na época, Américo Vespúcio escrevia detalhadas cartas a eminentes personalidades européias. Algumas dessas missivas - Mundus Novus e La

Lettera - foram reeditadas, diversas vezes, ainda du-

rante a vida do autor. Essa literatura alcançou grande sucesso de público e registrou magistralmente o primeiro olhar maravilhado do europeu renascentista sobre o continente apenas achado. Lendo-as, compreendemos sem dificuldade o impacto causado pelo conhecimento do “Novo Mundo” entre as populações européias. Deve-se à ampla difusão dessas páginas ter sido a “quarta parte da terra” batizada com o nome do célebre florentino. Sem lugar a dúvidas, a continentalidade do Novo Mundo era do conhecimento dos navegadores lusitanos desde 1501, como o comprova o planisfério português dito de Cantino (1502). Expedições oceânicas não eram novidades para a época. Havia mais de meio século que os navegadores portugueses avançavam, passo a passo, no périplo africano. Apesar de os lusitanos guardarem, a sete chaves, os objetivos e os resultados das navegações atlânticas, espiões das cortes européias e sobretudo

das cidades

marítimas

italianas,

manti-

nham-nas informadas sobre as conquistas portuguesas

Ls

Li Las

na África. Através do século 15, 0 avanço lusitano dera-se ao longo de uma costa - cm boa parte - Inóspita, insalubre c pouco habitada. A partir de um certo momento, o destino final e os objetivos dos navegantes portugueses - se não cram propalados cram, ao menos, largamente intuídos: as costas das Indias e o comércio que ali se efetuava. Para realizar o périplo africano, os portugueses foram obrigados a dominar a navegação de alto mar. Em mais de um ponto do litoral do Continente Negro, baixios ou uma navegação difícil obrigavam os nautas a perderem de vista as costas c a aventurarem-se em mar largo. O aperfeiçoamento do astrolábio - instrumento de uso comum entre os árabes permitia medir a localização de um navio em alto mar. Ele fora alcançado pelos lusitanos devido, sobretudo, à contribuição de sábios judeus. Apesar desses progressos científicos, a navegação das descobertas era ainda uma aventura que se baseava, em boa parte, em conhecimentos náuticos e marítimos empíricos. (LIPINER, 1987: 48 et seg.) DESCOBERTA FANTÁSTICA

Cristóvão Colombo, que navegara sob a bandeira lusitana, propusera-se a atravessar o mar sem-fim da Antiguidade. Queria “buscar o Levante pelo Ponente?. Os princípios da navegação de alto mar tinham sido dominados pelos portugueses e a esferidade da terra não era posta em dúvida. Entretanto, a viagem transatlântica era uma experiência que jamais fora tentada voluntariamente, ao menos nessa época. E com razão. Já assinalamos que apenas o Novo Mundo salvou a expedição colombiana de perder-se numa vastidão oceânica que muitos cosmógrafos haviam intuído ou deduzido. Um quarto continente era uma descoberta revolucionária para o homem europeu. Baseada em observações empíricas, cálculos matemáticos, deduções, analogias, etc., a cosmografia antiga defendera que o mundo era redondo, dividido

="

à a

em cinco zonas climáticas - duas polares, duas tem-

peraturas e uma tórrida - e que possuía, necessaria-

mente, no hemisfério sul, um quarto continente, contrabalanceando os setentrionais. Marcos Túlio

Cícero (106-43 a.C.) expusera essa tradição em O

sonho de Cipião e assinalara a impossibilidade dos

antípodos de comunicarem-se,

devido ao calor

calcinante da zona tórrida. Seu trabalho foi discuti-

do e difundido,

no

século

5, por Ambrósio

T.

Macróbio, em seu Comentário ao sonho de Cipião.

Na mesma época, em Casamento de filologia e Mer-

cúrio, Marciano Capella reafirmou a divisão do mundo em cinco zonas, mas referia-se a navegações já

ocorridas entre o Atlântico, o Mediterrâneo e o Índico.

Terras habitáveis e habitadas na antípoda do

mundo conhecido eram inaceitáveis para o cristianismo medieval. A Bíblia defendia a monogênese adâmica

da espécie humana. E Mateus afirmara, explicitamen-

te. “E será pregado este Evangelho no reino por todo o mundo, em testemunho a todas as nações. E então virá o fim [dos tempos].” (24: 24.) Menos catastrófico, São Paulo propunha que a palavra divina já fora divulgada entre todos os povos: “Por toda a terra se fez ouvir a sua voz, € as suas palavras até os confins do mundo”. (Romanos, 10: 18.) Os grandes doutores da Igreja medieval se opunham à teoria dos antípodas. O evangelho já fora ou seria conhecido por todos os seres humanos, necessariamente. Santo Agostinho, na Cidade de Deus, suge-

riu a existência de um continente submerso, no hemis-

fério sul. E, se assim não fosse, teríamos apenas terras desabitadas e inacessíveis. Doutrina sustentada por Santo Isidoro de Sevilha, em Etimologias, em meados do século 7. Na época, quem defendesse o contrário pecava por heresia. (GIUCCI, 1992: 54-60.) A tradição bíblica garantira que a palavra divina seria difundida através de todo o mundo - Europa, Asia e Africa. Geógrafos da Antiguidade afirmavam ser impossível ao homem viver ao sul da Linha Equinocial.

(RAMUSIO, 1613: I, 129-30.) Como enquadrar as cer-

tezas bíblicas e a confiança nos antigos à descoberta de antípodas mantidos à margem da palavra divina e

23

vivendo em regiões tidas como inabitáveis? O continente “descoberto” colocava estes e outros dolorosos

paradoxos. Afinal, para que fora ele “encoberto”? Com

o Novo Mundo nascia igualmente um Homem Novo. Tradicionais certezas da Antiguidade começavam à

romper-se. A descoberta transatlântica contribuía para que a tradição desmaiasse como critério de verdade.

Entretanto, as justificativas européias da colonização americana seriam construídas sobretudo com as combalidas concepções escolásticas medievais. Espanhóis, lusitanos, franceses, etc., criam que a providência divina negara aos antigos o conhecimento da quarta porção do globo e reservara-lhes o destino de “descobri-la” e cristianizá-la. Os espanhóis

acreditavam que a América lhes fora revelada como prêmio divino pela expulsão dos “infiéis” da Península. Em 1612, o franciscano Claude d'Abbeville participou da tentativa de fundação de uma colônia francesa no Maranhão, sobre a qual redigiu uma interessante crônica. Ao desembarcar na região, escreveria: “Mas quantos louvores e ações de graças não lhe rendemos por ter a Sua Divina Majestade se dignado escolher-nos entre tantos povos para plantar suas armas nos arraiais dos que até então se julgavam rebeldes às suas santas leis e onde jamais pessoa alguma empreendera (ao pelo menos conseguira) erguer e chantar esse sinal triunfante [a cruz).” (ABBEVILLE, 1975: 73.) O submetimento e a colonização do Novo Mundo dar-se-iam sob a justificativa de uma cruzada pela difusão do cristianismo entre os “gentios”. Durante as semanas de viagem através do caos

atlântico, Cristóvão Colombo tentara esconder de sua

tripulação o quão distante avançavam para o Ocidente. Diariamente, subtraía algumas milhas ao registrar no livro de bordo as distâncias percorridas. (COLOMBO, 1990: 102.) Estratagema pucril. A tripulação agitava-se e apresentava fundadas preocupações. O

medo não provinha de lendas medievais de despenhadeiros infinitos nos fins dos oceanos, como ainda

acreditam alguns autores. (TODOROV, 1982: 14.) Não se temiam igualmente terríveis monstros marinhos. A causa da inquietação era mais prosaica. Os ventos ZA

alísios, que sopram todo o ano, do Oriente ao Ocidente, nas regiões tropicais, empurravam, com segurança e rapidez, as três pequenas caravelas, para o Ocidente desconhecido. Os marinheiros perguntavam-se se existiriam ventos e correntes que os levassem, de volta, à Espanha. A primeira travessia transoceânica dera-se em um contexto psicológico em que se embaralhavam ainda, parcialmente, o real, o maravilhoso, o místico e o religioso. Após algumas semanas de navegação, a expedição entrara em uma região de ar “dulcíssimo”, apesar dela viajar no hemisfério norte. Corria o outono europeu e o ar parecia o de “abril em Sevilha”.

(COLOMBO, 1984: 42.) Em 12 de outubro de 1492, avistou-se terra. E que terra! Praias de areias brancas; águas azuladas; vegetação exuberante. Colombo registrou sem detença o verdecer da vegetação, em pleno outubro. (COLOMBO,

1984: 44.) Mais tarde,

semi-extasiado, Américo Vespúcio referiu-se ao “cheiro suave” e “ao verdor” das árvores que “jamais” perderiam “as folhas”. (VESPÚCIO, 1984: 50.) Um verdadeiro sonho dourado para homens que sofriam anualmente as agruras dos longos e rigorosos invernos da Europa. OLHAR MARAVILHADO

O olhar dos europeus recaía ao mesmo tempo sobre a terra e seus habitantes. Segundo a primeira impressão de Colombo, os nativos eram “bem-feitos”, “de corpos muito bonitos” e nenhum teria barriga, “a não ser, muito bem-feita”. (COLOMBO, 1984: 45-6.) Vespúcio era da mesma opinião. Considerou-os “bem proporcionados” e fez questão de assinalar ser difícil ver “as tetas caídas numa mulher” (VESPÚCIO, 1984: 108; 110.) Pero Vaz de Caminha (cerca 1450-1500) integrou, como futuro escrivão da feitoria de Calecute, a expedição portuguesa de 1500 que, enviada ao Índico,

terminou descobrindo e visitando rapidamente as costas brasílicas. Ele relataria ao seu rei, em 1º de maio

daquele ano, sobre os nativos: “Andam nus, sem ne-

-

E

Lo

Epa

sh

nhuma cobertura [...). E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”,

Em sua carta, Pero Vaz de Caminha assumiria um tom bastante galante ao descrever as mulheres da

terra: “Ali andavam, entre eles, três ou quatro mo-

ças, bem moças e bem gentis, com cabelos mui pre-

tos, compridos, pelas espáduas; e suas vergonhas tão altas e tão çarradinhas e tão limpas das cabeleiras

que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. (CAMINHA, 1983: 247, 250.) Um

reconhecimento

inconsciente de que a libidinagem

encontrava-se no ser que olha e não no corpo olhado. Era compreensível o agradável espanto. Homens e mulheres de porte altivo e corpos bem-torneados em

vez dos

ciclopes,

sátiros,

trogloditas,

faunos,

liliputianos e animais antropomorfos e deformes que habitariam o além-mar, segundo a geografia mítica e fantástica medieval. A nudez inocente e elegante do habitante das descobertas não podia deixar de surpreender e arrebatar o europeu, imerso em uma tradição judaico-cristá que idealizava o espírito e abominava / demonizava

o corpo, tido como a grande causa da concupiscência. Ao referir-se à sua primeira viagem ao Novo Mundo, Américo Vespúcio escreveria sobre os nativos: “Em conclusão, não têm vergonha das suas vergonhas, não de outro modo que nós temos em mos-

trar O nariz e a boca [...)”. (VESPÚCIO, 1984: 110.)

Como vimos, à gente encontrada foi dado o substantivo pátrio “índio”. Eles seriam os habitantes menos civilizados das ricas regiões extremo-orientais das

Índias. Marco Polo não se referira a nativos de

Sumatra e de outras regiões extremamente atrasados

e “selvagens”? (PÓLO, II, 1989: 413 et passim.)

Praias idílicas, verão eterno, frutos e animais

exóticos, homens e mulheres pacíficos, de corpos harmoniosos e desconhecedores do pecado original

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Ed do den

Bs

4

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c, portanto, da vergonha. A descrição literal do Éden, para o europeu renascentista ainda embebido das concepções bíblicas e criacionistas. Em 19 de outubro, Colombo anotaria sobre Crooked Island: “E veio

um cheiro tão bom e suave das flores e árvores, que cra a coisa mais doce do mundo”. (COLOMBO, 1984:

52.)

A

analogia

era

quase

inevitável.

Américo

Vespúcio registraria sobre as terras descobertas: “As suas árvores são de tanta beleza e de tanta suavidade que pensávamos estar no Paraíso terrestre [...]”. (VESPÚCIO, 1984: 53.) Durante sua terceira viagem às “Indias”, maravi-

lhado com a clemência do clima e com o volume de

água doce que o rio Orenoco deitava ao mar, Cristó-

vão Colombo não se conteve. Escreveu aos soberanos espanhóis sugerindo que o caudaloso rio nasceria nada menos de que no ... Paraíso. Uma apreciação até certo ponto em conformidade com o espírito da época. Em verdade, o Paraíso Terrestre encontrava-se localizado sobre todos os chamados mapas circulares da Idade Média, desprovidos de preocupações geográficas e concebidos segundo a ideologia mística cristã da época. (KUPCIK, 1989: 32.) Isidoro de Sevilha (cerca 560-636) - arcebispo, filósofo e santo católico - escrevera que o Jardim do Éden se encontrava no Oriente e possuía uma exuberante vegetação. Ali, não faria “frio nem calor” mas sim uma “eterna primavera”. (DUVIOLS, 1985: 20). Era tido igualmente como certo que o rio que regava o Paraíso Terreal dívidia-se em quatro troncos fluviais. Para Colombo,

o rio Orenoco seria um deles.

(HOLANDA, 1969: 8.) Referindo-se à costa da Venezuela, o genovês escreveu na ocasião: “[...] estou convicto de que lá em baixo se encontra o Paraíso terrestre, e logo que possível, enviarei o meu irmão [...] para desvendar mais estas regiões”. (MAHN-LOT, 1985: 148.)

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Capítulo 3 E=

Pobre América, rica Europa

As descrições paradisíacas do Novo Mundo refletiam apenas uma vertente do imaginário quinhentista europeu. Havia outra, muito mais forte. Fora precisamente ela que fizera os aventureiros europeus desbravarem mares até então desconhecidos. Ou seja, a inabalável certeza de que as terras exóticas e distantes escondiam, sempre, tesouros inimagináveis e minas inesgotáveis. O grego Cláudio Ptolomeu escreveu uma célebre Geografia, em oito livros, que manteve sua autoridade até as grandes descobertas oceânicas. Ela teria sido redigida, pelos anos 160d.C., e redescoberta, pelos europeus, através de uma tradução latina do original grego, feita nos anos 1406-10, por Manuel Chrysoloras e Jacobus Angelus. (ARNOLD,

1983:

13; PERES,

1982:

32;

KUPCIK,

1989: 91.) Nela, Ptolomeu lembrava que o ouro nascia e crescia em terras “tórridas, distantes e perigosas”. (GRANZOTTO, 1985: 13.) Uma convicção confirmada pelo fluxo do metal precioso que, por séculos, chegava, à Europa, dos sertões quentes da África semidesconhecida, através do Saara. Em 1612, o franciscano Claude d”Abbeville

referia-se às riqueza do Maranhão: “E como as pe-

dras mais preciosas se encontram na zona tórrida, e O Brasil se situa quase no meio dela e próximo à Linha

Equinocial, é de crer-se que receba influência dos

astros pelo menos igual à que recebem outros países,

e em especial a influência do sol, gerador do ouro, que aí passa duas vezes pelo zênite. O que me leva a dar crédito ao que dizem os franceses e índios [...], de por aí existirem muitas minas de ouro e pedras preciosas e muitos viveiros de pérolas”. (ABBEVILLE, 1975: 163.) Numa terra ensolarada, era só chegar, achar as minas, extrair as riquezas ... No início dos tempos modernos, a busca febril

de ouro e outras riquezas exóticas refletia processos econômicos e sociais muito mais profundos. Por primeira vez na história da humanidade, o desenvolvi-

mento dos meios de transporte, a acumulação de capitais mercantis e a gênese de um amplo mercado internacional de mercadorias viabilizavam a exploração sistemática e intensiva de vastas e distantes regiões do Globo. Na Europa, para o plebeu pobre e para o nobre sem fortuna, a acumulação ilimitada de riquezas não-patrimoniais apresentava-se como a chave de uma ascensão social quase ilimitada. A grande maioria dos aventureiros que arriscaram a sorte nas novas possessões americanas não concretizou seus sonhos. Entretanto, sobretudo os casos singulares de sucesso fulgurante alimentaram as esperanças € as ilusões daqueles que se preparavam para partir e colocavam suas esperanças nas descobertas. 217

Como não extasiar-se com o sucesso de um Hernán

Cortés. Membro da pequena nobreza espa nhola, após

conquistar e saquear o México, ele foi elevado ao rango de marquês e se casou com dona Juana de Zuni ga filha de um conde e neta de um duque -, associando-se, assim, a uma das mais importantes famílias da época.

(CORTES, 1990/3: 11.) A posse do ouro enriquecia € enobrecia. Não havendo limites para a acumulação de

niquezas, abria-se uma fase da história em que não

haveria limites para a rapacidade e cupidez humanas, fenômeno que tanto impressionou as comunidades

americanas, conhecedoras de economias e sociedades essencialmente naturais.

TIGRES FAMINTOS

Nenhum problema ético ou de consciência levantava-se entre os europeus e as riquezas americanas. Portugal monopolizara e arrendara o comércio com a África Negra e estabelecera-se nas costas daquele continente sem preocupar-se com a vontade e com os direitos dos povos nativos. A Espanha, a França, a Inglaterra, os Países Baixos seguiriam o mesmo caminho. A expansão da “verdadeira fé” e da “civilização cristã” serviu de pretexto universalista para a expoliação das comunidades extra-curopéias, quando da expansão marítima e territorial do Velho Mundo. A “lei do mais forte” foi o verdadeiro argumento das casas reais, das classes mercantis, dos

colonos e dos aventureiros de todo tipo, quando da conquista da quarta parte do mundo. Apenas desembarcado, na presença de autóctones completamente ignorantes do sentido da cerimônia, em nome dos reis de Espanha, Colombo tomou posse das terras “descobertas”. (COLOMBO, 1990: 115.) Como lobos magros e famintos das pradarias geladas, almi-

rantes, pilotos, nobres, marinheiros, soldados, peões, frades e grumetes atravessavam os oceanos, desembarcavam nas praias, embrenhavam-se nas flores-

tas, superavam montanhas, venciam desertos e rios à procura das minas que os cobririam, na Europa, 28

de indescritíveis riquezas e distinções.

Os atrativos e virtudes das terras e dos homens americanos dilufam-se diante dos míticos tesouros

prometidos pelas descobertas. Passados os primei-

ros momentos, as exuberantes florestas e os serros e

montanhas verdejantes empalideciam e perdiam interesse. Metamorfoseavam-se

nos múltiplos obstá-

culos que separavam os recém-chegados das hipotéticas minas de ouro, prata e pedras preciosas. O importante não era descobrir e conhecer um mundo até então de todo desconhecido. A grande preocupação era dominar as novas terras para desventrá-las de suas riquezas, rapidamente. Em relação aos nativos, foi também radical à metamorfose do comportamento europeu. Toda e qualquer simpatia do colonizador para com o americano desapareceu como num passe de mágica. Ali onde ouro e prata foram encontrados, estes tesouros pertenciam às populações americanas ou deviam ser arrancadas do solo, duramente.

Nos dois casos, os

nativos sofreram as consegiiências. Foram combatidos, subjugados, escravizados. Tiveram que ceder os metais preciosos e labutaram, como animais de carga, em velhas e novas minas. Pesadas naus e lentos galeões partiam para a Espanha com os porões pejados de minerais preciosos. As novas terras encobriam os ossos brancos de milhões de americanos estraçalhados pelo esforço minerador sobre-humano. PRIMEIRO GENOCÍDIO No Caribe, nos territórios dos impérios asteca e inca e em outras regiões da América densamente povoadas, a exploração e o massacre do homem autóctone foram imediatos à chegada dos europeus. Obrigada a trabalhar infernalmente, mal-alimentada, violenta-

da, golpeada por enfermidades até então desconhecidas, em poucos decênios a população americana

encontrar-se-ia radicalmente dizimada. Colonização e o maior genocídio até hoje conhecido tornavam-se

assim dois componentes de um mesmo movimento.

NR do

Quase como se (al síntese resultasse da natureza das coisas e não da ação e da vontade dos homens. Em 1552, na Brevíssima relação da destruição das Índias, o frei Bartolomé de Las Casas (1475- 1566) explicava as causas do acelerado despovoamento de grande parte das Antilhas: “[...) a maior parte foi morta ou tirada dali para trabalhar nas minas da ilha Espanhola onde não havia ficado nenhum dos naturais”, Era pouco lisonjeiro o perfil que o bom sacerdote traçava dos seus patrícios: “[...] os espanhóis se arremessaram [...] [sobre os nativos]; e como lobos, como leões e tigres cruéis, há muito tempo esfaimados, de quarenta anos para cá, c ainda hoje em dia, outra cousa não fazem ali senão despedaçar, matar, afligir, ator-

mentar e destruir esse povo [...]”. Naquele então, não havia dúvidas sobre os objetivos primeiros e últimos da colonização. Sem tergiversações, Las Casas anotava as razões de tamanha sanha ibérica: “A causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro”. (LAS CASAS, 1984: 29-30.) Marco Pólo descrevera, no Livro da Índia, os tetos e as paredes, “cobertos de ouro fino”, do palácio real de Cipango, o nosso Ja-

pão. (PÓLO, II, 1989: 397.) O cosmógrafo Paolo dal

Pozzo Toscanelli prometera a Colombo que, ao chegar às “Índias”, ele encontraria “reinos potentes” e terras “riquíssimas”, sobretudo em “especiarias” e “gemas”. (COLOMBO, 1990: 69; COMO, 1991: 38-45.) No dia seguinte da descoberta do Novo Mundo, Colombo anotaria a sua esperança de encontrar ouro, rapidamente. O seu diário registra o patético ziguezague por ele cumprido, durante o resto da viagem, entre ilhas que julgava encontrar ao longo das costas da Ásia. O essencial era alcançar as riquezas prometidas por Marco Pólo. Eram profundos e são universalmente conhecidos o misticismo escolástico e a retórica cristianizadora e messiânica de Colombo. Eles se fortaleceriam ainda mais à medida que se evidenciava seu erro de avaliação geográfica e que a imensidade da descoberta determinava inexoravelmente sua marginalização da empresa colonial espa-

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nhola. (GIUCCI, 1992: 54-60.) Estes substratos cul-

turais c psicológicos não nos devem enganar.

O grande objetivo das viagens ao Novo Mundo de Colombo e de seus acompanhantes era buscar e

encontrar ouro e outras mercadorias exóticas. Para tal os reis espanhóis haviam apoiado a sua aventura. É sintomático que a expedição de 1492 não possuísse nem mesmo um capelão. Em 1533, após saquear o Peru, Francisco Pizarro (cerca 1475-1541), oriundo de uma família camponesa pobre, fora claro ao declarar, sem rodeios: “Vim aqui para arranjar ouro, € não para trabalhar a terra como um camponês”, (ARNOLD, 1983: 38.) TEMPOS

DE TROCA

Em regiões desprovidas de metais preciosos, os curopeus arranjaram-se para rentabilizar a exploração destes territórios, onde aportavam episodicamente ou se estabeleciam sem delongas. No primeiro caso, encontraram-se as longas costas brasílicas. No inicio, elas foram apenas visitadas por navegantes e mercadores - sobretudo portugueses e franceses - que trocavam, nas praias e em rústicas e provisórias feitorias, manufaturados europeus por bens americanos - pau-brasil, peles, papagaios, etc. De um modo geral, esta foi uma época de contatos cordiais e profícuos entre europeus e americanos. Em diversas regiões da costa, tais práticas mantiveram-se além mesmo do início da colonização. Possuímos o registro da apreciação positiva, sobre este escambo, de uma comunidade brasílica que o vivera e o praticara. Em 1612, um velho tupinambá verbalizaria a opinião americana sobre as décadas dominadas pelo escambo: “Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizestes somente para traficar. Como os pero [portugueses], não recusáveis tomar nossas filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Nessa época, não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis com visitar-nos uma vez por ano, permanecendo en29

tre nós somente durante quatro ou cinco luas [meSes]. Regressáveis então a vosso país, levando Os Nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que caTeciamos”. (ABBEVILLE, 1975: 115.) À seguir, nestes territórios inicialmente apenas visitados pelos europeus, o escambo cedeu lugar à ocupação colonial e territorial. A economia das trocas

foi sobrepujada pela economia da plantação. Ou seja,

passou-se à luta pelo controle do litoral e da força de

trabalho dos povos americanos. Na costa brasílica, por muito tempo, a produção do açúcar faria com que Os minerais preciosos - que teimavam em não se revelar caíssem quase no esquecimento. Ali, o ouro era bran-

co. Para o homem americano, O canavial não se mos-

traria menos letal do que as minas argentíferas andinas, Deste processo resultou a rápida destruição/absorção das comunidades americanas do litoral.

Como veremos a seguir, a dissociação inicia]

destes dois primeiros momentos dos contatos entre

europeus e brasis - escambo e colonização - permite uma compreensão mais profunda da essência da colonização do Novo Mundo. Inicialmente, antes de

abordarmos este momento histórico, tentaremos re-

construir, em suas grandes linhas, o processo que levou à chamada descoberta do Brasil e aos primeiros contatos entre lusitanos e brasis.

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2 SS

Capítulo 4 EZs

Conquista portuguesa da África

A descoberta do Brasil foi um acontecimento menor na busca lusitana de um caminho marítimo

até às Índias, projeto concebido, em seus detalhes,

no reino de dom João II. Em verdade, este soberano

se encontrava envolvido nos negócios da Africa, por delegação de seu pai, no mínimo, desde 1471. (CORTESÃO, 1990/3: 469 et seq.) O ambicioso projeto de

circunavegação da África aproximava-se de um final

feliz, quando, no início de março de 1493, Cristóvão Colombo, navegando ao serviço de Castela, passou por Lisboa, de volta do Novo Mundo, afirmando, orgulhoso, ter aportado nas Indias. Como prova, trazia habitantes daquelas regiões para serem mostrados aos reis católicos. (COLOMBO, 1990: 154.) Se

fosse verdade, a expedição espanhola tornaria obsoleta a rota portuguesa das especiarias, no momento

mesmo que estava para ser aberta.

A viagem transatlântica de Colombo efetuara-se em algumas semanas. A circunavegação da África exigiria, no melhor dos casos, longos meses. Fora em vão o grande esforço lusitano? O fato de que,

anos antes, o genovês oferecera-se a dom João, em 1484 e 1488, para atravessar o Atlântico e assim chegar às Indias, angustiaria ainda mais a Corte portuguesa. Os cosmógrafos e cartógrafos a serviço de Portugal haviam desaconselhado a aventura. Certa-

mente teriam afirmado que Colombo se enganava ao crer que as costas orientais da Asia se encontrassem apenas a quatro ou cinco semanas de travessia tran-

satlântica. Agora, o Almirante chegava triunfante com provas que pareceriam irrefutáveis! A aventura marítima portuguesa começara muitos anos antes. No Trezentos, a Europa continuava sendo revolucionada pela ação das forças que deslocaram o eixo do desenvolvimento econômico-social

da bacia do Mediterrâneo para o noroeste do continente. Por esta época, a Europa Ocidental vivia momento de grande prosperidade, sobretudo ao “longo de uma faixa que se estendia através do continente, desde o Sudeste inglês até o Norte da Itália”. Cresci-

am as populações, aumentavam as terras cultivadas,

desenvolvia-se o comércio de longa distância. (HOLMES, 1984: 9.) No Mediterrâneo, imperavam soberanas as cidades mercantis italianas. No outro extrema desta faixa de prosperidade, a lã inglesa e os teares de

Flandres (Bruges, Bruxelas, Gante, Ypres) e da França

(Douai e Arras) fortaleciam um novo e dinâmico pólo produtivo. Então, um rico intercâmbio comercial, marítimo e terrestre uniu a Europa do Noroeste à bacia do Mediterrâneo. Apesar destas transformações radicais, o Mundo Antigo continuava pesando sobre o 31

que nascia. As principais rotas do comércio europeu

de longa distância eram controladas pelo consórcio italo-muçulmano. Ele tributava pesadamente as valiOsas mercadorias chegadas da Africa c do Oriente. Nos entrepostos muçulmanos do Mediterraneo, mercadores de Veneza, Gênova, Florença € Pisa importavam ouro, marfim, escravos - provenientes da África Negra -, especiarias, corantes, tecidos, vinhos finos, etc. - chegados dos mercados orien-

tais. Estes produtos eram pagos com minérios, lás, couros, vinhos, azeites, frutas, pratas e outros generos europeus. Como o transporte marítimo era significativamente mais barato do que o terrestre, pe-

sadas e lentas galeras mediterrânicas ultrapassavam

o estreito de Gibraltar e ingressavam no Atlântico. Navegando rente às costas, chegavam aos merca-

dos da Europa do Noroeste. Devido à localização geográfica, os principais portos lusitanos eram escalas quase obrigatórias desta nova e importante rota marítima. Em fins do século 13, os contatos marítimos entre o Mediterrâneo e o Atlântico Norte fortaleceram-se ainda mais devido a pertubações políticas e militares na Champgane e em parte da

Flandres. (DIAS, 1967: 132; TINHORÃO, 1988: 20;

PERES, 1982: 11; CORTESÃO, 1975/1: 197.) A dinastia lusitana de Avis (1385-1580) foi guindada ao poder quando do amplo movimento anticastelhano de 1383-85. A entronização de dom João I (1385-1433) e a vitória sobre o poderoso vizinho consolidaram a unidade nacional lusitana e aproximaram da Coroa as ricas burguesias marítima e comercial do litoral do país. Dom João contara com o apoio quase unânime do “terceiro estado” e boa parte da alta nobreza optara pelo partido castelhano. Em pleno século 15, a França e a Inglaterra encontravam-se ainda en-

volvidas na Guerra dos Cem Anos. Por sua vez, Castela e Aragão ocupavam-se na luta pela reconquista do sul

da península aos muçulmanos. O Algarve português

fora recuperado aos “inimigos da fé” nos primeiros anos do reinado de Afonso III (1248-79). No Quatrocentos, unificado nacionalmente, Portugal conheceria um longo período de paz, enquanto as outras nações atlânti32

cas viviam envolvidas em intermináveis guerras, internas e externas.

SOLUÇÃO MARÍTIMA A nova casa real portuguesa colocara-se à frente

de um país nacionalmente coeso, mas comprimido

entre o mar e a voraz Espanha. A nobreza que apoiara

a nova dinastia vivia de seus proventos feudais e encontrava dificuldade em aumentar a exação que exercia sobre o homem do campo. Com cerca de um milhão de habitantes, Portugal era montanhoso, sobretudo

em suas regiões setentrionais, e relativamente pobre em riquezas minerárias e em terras agricultáveis, principalmente em suas regiões meridionais. (MATTOSO, 1988: 31 et seq; GODINHO, 1984: 45.) À ameaça castelhana recomendava um mínimo de consenso social entre os grandes e a gente miúda. De 1369 a 1385, o reino fora invadido cinco vezes

por Castela. (MARQUES, 1987: 32.) Portugal encontrava-se debruçado sobre o oceano Atlântico e o continente africano. A expansão marítima foi o desenlace natural dos problemas nacionais portugueses. Com o comércio e a pirataria, enriqueciam-se a corte, os nobres, a burguesia marítima, sem que vergassem ainda mais as costas do trabalhador rural. Parte do excedente populacional podia ser reorientada para as atividades marinheiras, aliviando as fortes pressões sociais que transpassavam o feudalismo português. (DIAS, 1967: 1 - 33; ARNOLD,

GODINHO, 1969: 18.)

1983: 34;

Apesar de suas raízes sobretudo agrárias, Portugal possuía uma importante tradição marítima e hábeis marinheiros treinados na pesca da baleia, do atum, da sardinha, do bacalhau e na navegação de alto-mar. (ARNOLD, 1983: 35.) A ciência marítima muçulmana, normanda e genovesa muito contribuíra para o aprendizado lusitano das coisas do mar. Lis-

boa se transformara, durante o domínio islamita, em um importante centro do comércio europeu e africano. (CORTESAO, 1975/1: 212, 248: SERRÃO, 1987:

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408.) Nos séculos 14 e 15, nas principais cidades

portuárias - Lisboa, Setúbal, Porto, Viana do Castelo, Lagos, Tavira - acotovelavam-se marujos chega-

dos de diversos portos da Europa marítima genoveses, alemães, ingleses, catalães, flamengos, marselheses.. O primeiro grande passo lusitano em direção da África, em 1415, almcjava sobretudo a conquista de Ceuta. A rica cidade comercial da costa marroquina encontrava-se situada diante de Gibraltar, a menos de cingienta quilômetros de Tânger. Ceuta constituía-se uma presa supimpa. Construída em um estratégico promontório e rodeada de jardins e planlações, era conhecida pela sua magnificência, for-

mosura e cosmopolitismo. Negociantes venezianos,

genoveses, aragoneses, pisanos, flamengos, catalãos,

florentinos, permanentes ropeus por (GODINHO,

marselheses, etc., mantinham bazares na cidade onde trocavam produtos eumercadorias asiáticas e africanas. 1984: 141.)

Comerciantes árabes e arabizados atravessavam em caravanas de milhares de dromedários o Saara e traziam para a cidade, desde os mercados sudaneses e guincenses, ouro em pó, escravos, malagueta, marfim e outros produtos exóticos. (SANCEAU, s.d.: 9-18; GODINHO, 1984: 86; 141.) De Ceuta, partiam corsários muçulmanos para taxarem e assaltarem as naves que cruzavam o estreito, dificultando e encarecendo o comércio europeu com o Oriente. Ceuta apoiava e defendia o reino de Granada contra as pressões da Reconquista. Em meados do Quatrocentos, Eanes de Zurara, cronista da primeira conquista portuguesa da África, escreveria ser a cidadela “a chave de todo o mar Mediterrâneo”. (ZURARA, 1973: 27) PODEROSA

FROTA

Conquistando

Ceuta, a Coroa, os nobres e os

comerciantes lusitanos pretendiam saquear as suas riquezas e obter escravos para a exploração de açúcar do despovoado sul de Portugal. De Ceuta, con-

Cad

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trolariam o rendoso comércio do ouro sudanês. Com cle, esperava-se abocanhar a parte de leão dos lucros

das trocas do Oriente

com

a Europa

do Noroeste.

Ceuta facilitaria igualmente o controle lusitano do estreito de Gibraltar e das reservas tritícolas do Norte da África. O controle da cidadela assentaria um poderoso golpe no poderio muçulmano e avançaria

Portugal, em relação a Castela, no que se refere à

expansão

extrapeninsular.

(GODINHO,

1969:

41;

CORTESÃO, 1975/2: 400; 443.) Para a aventura africana, a Coroa organizou, no maior segredo, uma expedição de extraordinário poderio - em torno de 240 navios e 50 mil homens. A vitória foi total e a cidade foi rapidamente conquistada. (TINHORÃO, 1988: 31; ZURARA, 1942.) Entretanto, a operação revelou-se uma verdadeira vitória de Pirro, para Portugal. O poderio naval e comercial muculmano foi debilitado, mas Ceuta transformou-se em centro de incessantes e custosas operações militares. Os comerciantes muçulmanos simplesmente dirigiram

suas

caravanas

para

outros

terminais

mercantis

mediterrânicos da África do Norte. Apesar do fracasso, as aventuras militares portuguesas na costa da África continuariam ainda por mais de um século. Entretanto, as décadas seguintes veriam nascer uma outra forma de pensar e enfrentar o problema do ouro africano. Os cosmógrafos e cartógrafos a serviço de Portugal possuíam informações detalhadas sobre os centros mercantis do Sudão Ocidental e Central, habitualmente visitados por mercadores e sábios judeus e muçulmanos. No atlas do cartógrafo judeu maiorquino Abraão Cresques (? - 1387), de 1375-77, conhecido sob o nome de mapa-múndi catalão, encontram-se detalhadas informações sobre o comércio do Oriente e sobre as rotas do tráfico africano do ouro. Um dos mais brilhantes cartógrafos que serviram ao Príncipe Navegador, Jehuda Cresques, seria filho do autor desta súmula geográfica. (SANTOS, 1988: 13; CORTESÃO, 19775/2: 335; KUPCIK, 1989: 68.) Diante da impossibilidade de atrair para Ceuta o comércio do ouro, os portugueses compreenderam 33

que, para controlá-lo, deviam desbravar o atlântico

origem muçulmana. As barcas possuíam um ou dois

produtores. Desviando as caravanas e o comércio para O litoral atlântico, interromperiam as rotas te rrestres transaarianas. Golpeariam “pelas costas: o monopóho muçulmano das trocas com a Africa Negra. Neste

feriores presas aos dois bordos. A partir do fim da

africano e estabelecer contato direto com os centros

Sentido, é peremptório o historiador português Vitorino Magalhães Godinho: “[...] [o ouro do Sudão] será o alvo das viagens de descobrimento quatrocentistas. A luta das caravelas contra as cáfilas de camelos é que constituirá um dos fios condutores desta história”. (GODINHO, 1984: 67, 143.) Desde 1416, dom Henrique (1394-1460), filho

de Dom João I, encontrava-se à frente dos negócios

da África. Em 1419, quatro anos após a conquista de

Ceuta, o príncipe foi nomeado governador perpétuo

do Algarve, para onde transferiu sua residência per-

manente. Em Sagres, o príncipe navegador fundaria O mais importante centro de estudos náuticos, cartográficos e geográficos da época - a incorretamente chamada “escola” do castelo de Sagres. Tal seria a profusão de estrangeiros na sua corte que Zurara diria ter dom Henrique reunido, junto a si, “desvairadas nações de gente tão afastada de nosso uso”. (ZURARA, 1973: 22.) Por outro lado, os regimes dos ventos e das correntes marítimas facilitavam as aventuras lançadas de Portugal em direção do Atlântico Sul e Central. (ARNOLD, 1983: 25, 35; DIAS, 1967: 33 - 49; SANTOS, 1988: 24: CORTESÃO, 1975/1: 193.)

mastros de velas quadrangulares com as pontas interceira década do Quatrocentos, a grande arma da

expansão marítima portuguesa foi a caravela, embarcação igualmente tributária da arte náutica muculmana (CORTESÃO, 1975/1: 244.). À caravela era uma embarcação alongada, leve (cerca 50 toneladas), pequena (cerca 20 por 8 metros) e rápida. Possuía bordos altos, dois ou três mastros, velas redondas e triangulares e podia navegar contra o vento. Adaptada à navegação costeira e de mar grosso, devido ao seu reduzido calado, aproximava-se das costas e penetrava nos grandes rios, foz a dentro, sem dificuldades. A caravela portava uma tripulação de uns vinte homens e mostrou-se a embarcação ideal para a grande exploração oceânica. Foi com ela que Cristóvão Colombo arriscou-se no mar oceano. Durante o século 15, além de aperfeiçoar a caravela - conhecida desde a Idade Média -, os lusitanos reuniram em Portugal os maiores cartógrafos e cosmógrafos da época. Importantes sábios estrangeiros, como os judeus Jehuda Cresques e Abraão Zacut, ajudaram a resolver os grandes problemas prático-teóricos colocados pela navegação através de mares e debaixo de céus até então desconhecidos. (LIPINER, 1987: 7 et passim.) Em

1419, os lusitanos redescobriram a ilha da

Madeira, assinalada vagamente nos mapas do Trezentos. A partir de 1421, no mínimo uma embarcação foi enviada, cada ano, para as costas da África atlântica. Em fins dos anos 20, chegou-se ao distante arquipélago dos Açores. Em 1433, começaram “as viagens de descoberta e exploração” sistemáticas ao

PRIMEIRAS CARAVELAS

As primeiras expedições lusitanas que buscaram sistematicamente o Atlântico africano foram feitas em barcas. A barca era uma embarcação peque-

longo do litoral africano. Finalmente, em 1434, o cabo Bojador, limite das navegações da “cristandade”, seria ultrapassado. (ARNOLD, 1983: 49; GODINHO:

1969: 43; CORTESÃO, 1975/2: 368; 411.)

na, pesada, de bordas baixas e de pouco calado, de

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Capítulo 5 Es

Uma descoberta de pouca importância

Para alguns autores, as dificuldades de vencer as águas não tão perigosas do Bojador deviam-se a motivos psicológicos. Além do cabo, esperariam os

navegantes terras, mares e climas assustadores, pois

jamais conhecidos pelos cristãos. (BOORSTIN, 1988: 161.) As razões seriam outras. Por estes anos, dom Henrique não perseguiria certamente a abertura de uma rota marítima para as Índias. Na época, não existindo condições objetivas mínimas para tal, a iniciativa não se colocava como projeto concreto. Escrevendo sua Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, Eanes de Zurara apresentou as razões que teriam levado o Infante a explorar o Atlântico africano: saber o que existia além do Bojador; conhecer o real poder dos muçulmanos nestas regiões; descobrir aliados cristãos contra os inimigos da fé; cristianizar Os povos pagãos e procurar povos ou portos de onde fosse possível “para este reino trazer muitas mercadorias”. (ZURARA, 1937: CAP. III.) Almejava-se apenas realizar boas presas e bons

negócios nas costas da África e, se possível, encon-

trar povos em contato com os centros auríferos, a fim de desviar o comércio do metal para as costas atlânticas. Durante muito tempo, outros não foram

os objetivos portugueses. “O grande problema, cuja

solução o Infante dom Henrique e dom João II queri-

am resolver, consistia em fixar, na costa e em seu

proveito, o ouro que de vários pontos do interior con-

vergia sobre Timbuctu [...]” (CORTESÃO/1, 1975:

43.) As embarcações enviadas para a Africa pelo Príncipe Navegador ocupavam-se sobretudo em atividades comerciais e de pirataria. As descobertas eram atos importantes - mas complementares - sistematicamente apoiados por dom Henrique. Zurara relataria que os capitães que voltavam da África, sem ultrapassar o Bojador, “não se tornaram sem honra”. Para desculparem-se diante do príncipe, por não

terem cumprido “perfeitamente o mandado”, “uns iam sobre a costa de Granada, outros corriam por o mar de Levante, até que filhavam (capturavam) grossas presas de infiéis, com que se tornavam honradamente para o reino”. Vencido o cabo Bojador, passou-se a nave-

gar ao longo de um litoral inóspito e desconhecido

dos pilotos cristãos e muçulmanos. Nos anos seguintes, Os portugueses chegaram ao maldenominado “rio

do Ouro”, onde escambaram. em 1442, pela primeira

vez, “ainda que fosse pouco”, algum ouro em pó. Em 1443, o navegador português Nuno Tristão penetrou no golfo de Arguim e capturou trinta africanos. Neste ano, a Coroa concedeu a dom Henrique o monopólio das navegações além do Bojador e importantes direitos sobre os seus frutos. Em 1444, os portugueses ul-

35

trapassaram esta zona extrema do Sahel e ingressa-

CAMINHO PARA AS ÍNDIAS

1967: 49-55: ZURARA, GODINHO, 1984: 145.)

Por estes anos, navios de outras nacionalidades - sobretudo castelhanos, devido à guerra entre os dois

ram na África Negra. (ALMEIDA, 1978: 14-33; DIAS,

Em

1973:

CAP.

VII, XVI;

|

1460, com a morte de dom Henrique,

abrandaram-se as descobertas. Os portugu eses já ha-

viam explorado em torno de quatro mil quilômetros

de costa africana. Já nestes anos, ouro, cativos, drogas, etc., eram

escambados,

no litoral, com

carava-

nas, desviadas do interior, e chegavam, em boa quantidade, a Portugal. Na feitoria da ilha de Árguim, próxima ao cabo Branco, construída possivelmente em 1455, os portugueses trocavam, com Os comerCiantes nômades mouros, caval»s, trigo, tecidos e por

muitos cativos, peles, algum ouro e outros produtos.

No rio Senegal, já na Africa Negra, resgatavam-se igualmente homens e algum ouro. Mais ao sul, os portugueses subiam o rio Gâmbia, entravam em contato direto com o império negro-africano do Mah, e obtinham boa quantidade de ouro, escravos e outros produtos. Na Serra Leoa, escambava-se uma quantidade indeterminada de pó de ouro de quase 23 quilates. (GODINHO, 1984: 147; 151; 161.) De 1469 a 1474, a Coroa arrendou o monopólio de parte do tráfico africano ao comerciante lisboeta Fernão Gomes. Além do pagamento de uma indenização, ele obrigava-se a explorar, à sua custa e anualmente, cem léguas de litoral. Em 1471, os lusitanos chegaram às praias da atual Ghana, onde começaram a escambar quantidades não desprezíveis de ouro em pó. Nesta região, se localizaria a seguir o Castelo de São Jorge da Mina. O mineral precioso, possivelmente apenas suplantado em importância pelo comércio de homens, começava a ter significação considerável nos negócios africanos. Ao entrarem no golfo da Guiné, os lusitanos depararam-se com comunidades africanas que conheciam uma importante cultura marítima, o que facilitou enormemente a progressão portuguesa. O historiador Jaime Cortesão lembra que, devido à importância destes conhecimentos marítimos, neste caso, não se poderia falar de “descobrimento” lusita-

no. (CORTESÃO, 1975/1: 42,3.) 36

reinos - aventuravam-se nos mares onavam o exclusivismo português. tano destes mares fora sancionado, res, por diversas bulas papais. Em

africanos e questiO monopólio lusinos anos anterio1480, o rei Afonso

V ordenou que as tripulações de navios estrangeiros

aprisionados navegando naquelas paragens fossem simplesmente jogadas ao mar. Em fins do reinado de

dom Afonso, a circunavegação da Africa - caso houvesse uma passagem entre os oceanos Atlântico e Índico - c a consequente abertura de um caminho marítimo para as Indias tornaram-se uma aventura, ao menos do ponto de vista náutico, exeqiuível. (BOXER, 1977: 37-54; ALMEIDA, 1978: 34-57.) A Coroa portuguesa, enriquecida pelo comércio africano, começava a considerar, com seriedade, a necessidade de enfrentar tal iniciativa. Neste sentido, como vimos, consultaria, por carta, O cosmógrafo

Paolo dal Pozzo Toscanelli, sobre a possibidade de alcançar as Indias viajando-se, pelo Atlântico, para o Ocidente. Em junho de 1474, o florentino afirmaria, também por carta e erroneamente, ser o “percurso” atlântico “muito mais breve” que a circunavegação da Africa e desenharia o mapa fantástico do qual, mais tarde, teria cedido uma cópia para Colombo. Esta consulta nasceu talvez do desencanto dos portugueses ao descobrirem, navegando fortemente para o Oriente, o golfo da Guiné, e não o fim da África e

uma passagem para os mercados orientais. (COMO, 1991: 38 - 4; KUPCIK, 1989: 34.) Em agosto de 1481, dom João II subiu ao trono devido à morte de seu pai. O príncipe já se encontrava, havia diversos anos, na frente dos negócios africanos. Um dos seus primeiros atos foi ordenar à construção, nas costas da atual Ghana, da primeira grande fortaleza no coração da África Negra - o Castelo de São Jorge da Mina. O castelo destinava-se a organizar o escambo do ouro que ali se efetuara e a defender o golfo da Guiné da penetração de outras nações

RR

curopéias. (CORTESÃO, 1990/3: 570.)

Estima-se que, na Mina, os portugueses tenham

obtido, nos primeiros tempos, anualmente, em torno

de quatrocentos quilos de ouro. A partir dos anos 1520, este comércio começou a decair c a fortificação terminou transformando-se num importante centro de comércio de cativos. (GODINHO, 1984.) Em

1483, como vimos, o navegador Diogo Cão chegou à

toz do rio Congo e, em 1486, devido à importância

crescente do tráfico de africanos, a Coroa fundou a

Casa dos Escravos, encarregada do controle daquele comércio com a Africa. Na segunda metade do século 15, os portugueses teriam reduzido ao cativeiro em torno de 150 mil africanos. (SARAIVA,

1987:

140-1; ALMEIDA, 1978: 58-9; DIAS, 1967: 57-113.)

Bm 1487, dom João II iniciou os preparativos para o assalto dos mercados indianos. Para tal, mandou dois espiões - via Mediterrâneo c Egito - até os mercados

do oceano

Indico.

Um

deles, Pero de

Covilhã, chegou a Cananor, Calecute, Goa e Ormuz.

Do Cairo, em 1490, antes de partir para a Abissínia,

enviou ao rei entusiásticas notícias confirmando as riquezas dos mercados orientais e a existência de uma passagem marítima entre os oceanos Atlântico e Indico. Em agosto de 1487, o navegador português Bartolomeu Dias parte de Lisboa para contornar, finalmente, o ponto extremo da Africa Meridional. Pela primeira vez, os portugueses se encontravam a um passo das Índias.

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E, “depois de tê-lo ouvido com o rosto alegre os detalhes de sua vitória” ajuntou - dom João II - que,

segundo sua opinião e de acordo com o que fora acordado entre os dois reinos, “aquela conquista perten-

cia a ele”, rei de Portugal. Cristóvão Colombo teriase limitado a responder que não conhecia tal tratado c assegurado ao senhor lusitano que não navegara em mares africanos. (SARAIVA, 1987: 143; DIAS, 1967: 113 - 122; COLOMBO, 1990: 155.) A concessão, aos reis Católicos, em maio de

1493, pelo papa espanhol Alexandre VI, da posse das

“Índias” - ou seja, de todas as “ilhas e terras firmes” a

cem léguas, para o Ocidente, dos Açores - aprofundaria ainda mais a angústia portuguesa. (SILVA, 1919: 54; SUESS,

1992:

246-51.) Temendo

que o achamento

colombiano ameaçasse o futuro da rota africana das especiarias, a Coroa lusitana interrompeu as explora-

ções marítimas, preparou uma forte esquadra que impedisse o acesso dos espanhóis ao Atlântico e acedeu aos pedidos de negociações da Espanha. As discussões terminaram garantindo a Portugal, com o tratado assinado na vila espanhola de

Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, as terras que se

encontrassem a oriente de um meridiano traçado a 370 léguas a ocidente do arquipélago do Cabo Verde. Com o diploma - Capitulação da Partição do Mar Oceano - Portugal garantia-se o Atlântico Meridional e o caminho “africano” das Índias, visto que a Espanha concordava igualmente em não enviar “na-

vio algum? “a descobrir”, “contratar”, “resgatar” ou

ESTRAGANDO

A FESTA

Foi neste contexto histórico que Cristóvão

Colombo, voltando do Novo Mundo, passou por Lis-

boa, em março de 1493, dizendo ter chegado às costas orientais da Ásia. Dom João II recebeu o Almirante e, em sinal de grande deferência, ordenou-lhe que permanecesse coberto e sentado em sua real presença. Anos mais tarde, Fernando, o filho menor do navegador genovês, relataria o singular encontro em Histórias da vida e dos fatos de Cristóvão Colombo:

“conquistar” nas regiões cedidas pelo diploma a Portugal. (SILVA, 1919: 60, 10.) A morte de dom João II, em

1495, retardaria

um pouco o assalto final das Índias. Em 8 de junho de 1497, o navegador Vasco da Gama partiu de Lisboa no comando de uma frota de três naus e um navio de transporte. As naus eram embarcações maiores (cerca 30 metros), mais pesadas (cerca 400 toneladas) e mais resistentes do que as caravelas. Elas possuíam “cascos mais largos e três ou quatro cobertas”. (ARNOLD, 1983: 48.) Eram, portanto, capazes de navegar em mar grosso e de transportar pesadas

37

cargas e um poderoso armamento. Em agosto de 1499, Vasco da Gama voltou a Lisboa. Aportara c comerciara em Calecute, onde não fora bem-recebido, devido à oposição dos comerciantes árabes. À viagem

deu-se no reino de dom Manuel I (1495-1521), que

Sucedera ao primo dom João. Por ter sido o primeiro soberano a desfrutar as riquezas orientais, tão tenazmente perseguidas pelo predecessor, foi chamado de “Venturoso-. Para impor a hegemonia comercial lusitana no oceano Índico, em março de 1500, dom Manuel expediu para ali a mais poderosa frota jamais enviada

para mares distantes. Ela era composta de 1.200 ho-

mens e treze navios. Comandava-a o capitão-mor Pedro Álvares Cabral. Apesar do mar calmo, a expedição afastou-se da rota eventualmente prevista, navegou a oeste e, a 22 de abril, avistou uma terra desconhecida, batizada de ilha de Vera Cruz (verdadeira cruz). Pouco sabemos sobre as instruções dadas à

segunda expedição enviada a Calecute. Para chegar ao destino, ela deveria seguir a rota aberta por Vasco da Gama. Alguns historiadores defendem que a frota

cabralina teria-se desviado inadvertidamente para

oeste e descoberto por acaso o futuro Brasil. (DIAS, 1967: 123 - 183.)

TERRA FIRME

É mais provável que a Coroa portuguesa tenha enviado, após a passagem de Colombo por Lisboa, sob o mais reservado segredo, uma ou mais expedições ao Atlântico Sul, para que inquirissem sobre o real sentido da descoberta colombiana. Assim o sugerem os quatro anos transcorridos entre a passagem de Colombo por Lisboa e a expedição de Vasco da Gama à India. Se uma destas hipotéticas viagens realizou-se antes do Tratado de Tordesilhas, ela teria

influenciado o conteúdo das reivindicações lusitanas.

É também possível que navegadores lusitanos tenham encontrado fortes indícios ou até mesmo descoberto “ilhas” no Atlântico Ocidental. Em 1498, 38

quando de sua terceira viagem à América, Cristóvão

Colombo escreveria em seu diário que “tinha por certo, O [...] rei dom João, que, dentro” das regiões

tocadas a Portugal devido ao tratado de Tordesilhas, “haveria de achar [...| terras famosas”. (COLON, 1986: 252.) Cabral teria recebido ordens de velejar para o Ocidente, a fim de “descobrir” e tomar oficialmente posse das “ilhas” agora pertencentes, por tratado, a

Portugal. Sobre tudo isto faltam-nos informações positivas. Como já assinalamos, principalmente nos primeiros tempos, e sempre que possível, a Coroa

portuguesa guardava

absoluto silêncio sobre seus

caminhos marítimos e descobertas.

O certo é que, a 22 de abril de 1500, a esqua-

dra cabralina avistou terras do atual litoral baiano. As praias foram visitadas rapidamente e explorou-se uma pequena extensão do litoral. Estabeleceram-se na ocasião Os primeiros contatos entre europeus e brasis. Após abastecer os navios, com a ajuda dos nativos, em água e lenha, o capitão-mor Pedro ÁIvares Cabral partiu com suas naves, a 2 de maio, para o oceano Indico onde, apenas chegado ao destino, bombardeou sem delongas o importante centro comercial de Calecute. (RAMUSIO, 1613: I, 122.)

Iniciava-se o domínio europeu do comércio oriental. À segunda expedição lusitana foi um absoluto sucesso. Ela voltou a Portugal com os porões entulhados de pimenta e outras valiosas especiarias. (VARNHAGEN, 1978: I, 59-74.) Antes de partir das terras achadas para a Índia, Cabral ordenou que um navio levasse as boas novas ao rei. Em agosto de 1501, ao comunicar por carta a descoberta aos soberanos espanhóis, dom Manuel afirmou que a terra descoberta era “conveniente e necessária à navegação da Índia, porque ali (Cabral) corregiu suas naus e tomou água [...)”. (HCPB, II: 167.) Nos anos seguintes, a rebatizada terra de Santa Cruz despertou pouco interesse aos navegadores e comerciantes lusitanos. Devido aos problemas da navegação atlântica, era usada como eventual escala pelos navios que seguiam para a Africa ou para as Índias.

A terra de Santa Cruz não se revelara rica. Ela

oferecia apenas animais exóticos, peles, algumas drogas, cativos, madeiras

valiosas c, principalmente,

pau-brasil. A árvore, abundante nas matas atlânticas do litoral, servia como matéria-prima no fabrico de

um corante têxtil. Tanto foram portugueses e franceses às costas da Terra de Santa Cruz em busca da preciosa madeira que o nome desta terminou sobre-

pondo-se aos piedosos denominativos iniciais.

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Capítulo 6 E=3

Tupinambás

Os senhores do litoral

Para traçarmos o perfil das sociedades que habitavam a costa no início do Quinhentos, possuímos

a documentação escrita e os registros arqueológicos.

São abundantes e ricas as descrições de europeus que visitaram ou viveram no litoral naqueles recuados tempos. Entretanto, tais relatos colocam alguns problemas metodológicos. Muitas vezes, eles são im-

precisos e, jamais, “neutros”. Bom exemplo é a tendência à superestimação dos dados quantitativos quinhentistas - demográficos e outros. Se aceitássemos acriticamente estes números, teríamos até “doze mil? tupinambás, que poderiam viver até 180 anos, caminhariam, “em fila por um”, 3.300 quilômetros “para atacar seus inimigos”! O que sugeriria uma fila indiana de uns onze quilômetros! (FERNANDES, 1948: 89, 100.) Por outro lado, devido ao desenvolvimento urbano e industrial de boa parte da faixa litorânea e sobretudo aos poucos recursos alocados pelas autoridades culturais, são poucos os levantamentos arqueológicos sobre estas regiões. As primeiras descrições das comunidades da costa que chegaram até nós devem-se a Américo

Vespúcio,

que ali esteve em

1499-1500, e a mem-

bros da frota cabralina. Como vimos, em 1 de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha, escolhido como escrivão da feitoria de Calecute, relatava a dom Ma-

nuel I, em uma longa carta, entre outras novidades, que os brasis eram gordos, saudáveis, de fisionomia e corpos bem-feitos. De cor avermelhada, andavam inocentemente nus e enfeitavam-se com penas. Furavam o lábio inferior onde introduziam pedras. O escrivão - que não retornaria a Portugal - dedicou palavras elogiosas e algo sensuais às americanas, que retratou como belas e jovens mulheres de longas cabeleiras negras. (CAMINHA, 1983: 247, 250.) Com

o passar dos anos, esta visão inocente e

superficial foi substituída por análises e classificações sistemáticas e crescentemente preconceituosas das comunidades do litoral. Uma curiosidade “etnográfica” com claros objetivos pragmáticos. Em boa parte, a sobrevivência dos colonos dependia da capacidade de estabelecerem alianças com os povos da costa e inserirem-se nas disputas em curso entre eles. Como assinalamos, em relação à pobreza documental geral do Quinhentos, são abundantes os relatos sobre as populações litorâneas. Nesta literatura, à medida que cresciam os antagonismos entre colo-

nos e nativos, os “bem feitos” brasis e as “bem mo-

ças” americanas metamorfoseavam-se em seres “selvagens” e “antropófagos”. São dos séculos 16 e 17, entre outros escritos,

as cartas, de 1501 e 1504, de Américo Vespúcio re41

terentes ao Brasil: a carta de Pero Vaz de Caminha (cerca 1450 - 1500), de 1500; as breves anotações sobre o litoral da América do Sul, de 1519, de Antó-

nio de Pigafetta (1491-1534), sobrevivente da expo-

dição de Fernão de Magalhães; as obras do francis-

cano, viajante e geógrafo francês André (1502-1592), As singularidades da França ca, de 1558, e Cosmografia universal, de obras de Pero de Magalhães de Gândavo,

Thevel Antárti1575; as História

da Província de Santa Cruz, editada em 1576, e Tra| tados da terra do Brasil, editada em 1826.

Rica informação fornece o relato Duas viagens ao Brasil, do mercenário alemão Hans Staden (1526-?), editado em 1557; o belíssimo livro do calvinista francês, Jean de Léry (1534-1611), Viagem à terra do Brasil, publicado em 1578; os três trabalhos do jesuíta Fernão Cardim (cerca 1540-1625) Tratados da terra e gente do Brasil -, escritos, é crí-

vel, em 1584, e editados, parcialmente, por primeira vez, em inglês, em 1625. De grande importância são o trabalho de Gabriel Soares de Sousa (cerca 1540-1591), Notícia do Brasil, escrito talvez em 1587 e publicado, por primeira vez, no início do século

19; o livro Diálogos das grandezas do Brasil, presumivelmente de Ambrósio Fernandes Brandão, composto em 1618 e impresso em fins do século 19.

MIGRAÇÕES AMERICANAS Destacam-se também as obras dos capuchinhos franceses Claude d”Abbeville (? - 1616/32) e Yves d'Evreux (cerca 1577-cerca 1620), que estiveram no Brasil quando da fundação da colônia francesa do Maranhão, em 1612-15; a abundante e minuciosa

correspondência dos jesuítas, que começaram a che-

gar ao Brasil a partir de 1549; a História do Brasil, do Frei Vicente do Salvador (1564-1636/39), escrita em 1627 e publicada nos últimos anos do século 19, ea Crônica da Companhia de Jesus, do jesuíta Simão de Vasconcelos (1597-1671), publicada, por primeira vez, em 1658. De grande ajuda na compreen42

são e interpretação da documentação quinhentista são os estudos etnográficos e antropológicos sobre comunidades nativas contemporâneas, sobretudo quando se referem a comunidades tupi-guaranis. Comunidades de língua tupi-guarani, que se teriam separado do tronco linguístico Macrotupi, “tal-

vez em algum lugar entre o Madeira e o Xingu”, teriam conhecido uma verdadeira explosão expansionista, há dois ou três mil anos, na Amazônia Central. Esta forte tendência expansionista esteve possivelmente ligada ao domínio da agricultura. (URBAN, 17222:92.) A cultura tupi-guarani, como vimos, assentava-se em

um complexo econômico bascado na caça, na pesca, na coleta, na cerâmica e, sobretudo, numa horticultura de floresta tropical e subtropical que explorava a mandioca (Manihot utilissima), em primeiro lugar, o milho (Zea mays), os feijões (Phaseolus e Canavalia) e as batatas-doces (Ipomoea batatas) secundariamente.

(ABBEVILLE, 1975: 242; GALVÃO,

1963: 121;

THEVET, 1978: 89, 99; 1983; 1953: 76: 43, 51.) Os

tupinambás cultivavam, também, entre outros gêneros vegetais, os carás (Dioscoréa sp), os amendoins (Arachis hypogaea), as abóboras (Curcubita), as bananas, Os abacaxis, o tabaco, o algodão e as pimentas. (METRAUX, 1928: 67; GALVÃO, 1963: 121.) A antropofagia e a agressividade militar eram elementos constitutivos importantes desta tradição cultural. Organizados em coesas unidades produtivas e militares - as malokas e a taba -, os tupi-guaranis partiram do berço amazônico e evoluíram ao longo das várzeas dos grandes rios, ocupando os quentes e úmidos vales fluviais. Este ecossistema - as galerias florestais fluviais - permitia uma horticultura que desconhecia a adubação sistemática e os instrumentos de ferro. Uma comunidade tupi-guarani de três ou quatro centenas de membros necessitaria de um espaço econômico de subsistência de aproximadamen-

te 45 quilômetros quadrados. Em algumas regiões ricas em recursos naturais, apenas alguns quilômetros separavam uma aldeia de outra. (FERNANDES, 1970: 55.) Os jesuítas registraram que os tupinambás, que viviam de 120 a 240 km distantes, permaneciam “em

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guerra, uns com os outros”. (LEITE, 1956: 136, 227.)

SENHORES

do Amazonas em direção à cordilheira dos Andes. Seguindo os curso dos rios Madeira, Guaporé, Purus, Paraguai, Paraná c Uruguai, orientou-se para o sul, estabelecendo-se desde o sul do Mato Grosso e do trópico de Capricórnio até a foz do rio da Prata.

No início do Quinhentos, comunidades tupinambás ocupavam, com diversos nomes, a maior parte da faixa litorânea que ia da foz do rio Amazonas à ilha de Cananéia, no litoral paulista. Em gran-

O braço guarani desta cultura avançou pelo vale

(KERN, 1994: 104.) Ao encontrarem o Atlântico, os guaranis progrediram pelo litoral, até o sul do atual estado de São Paulo. O braço tupi/tupinambá chegou, mais tarde, na foz do rio Amazonas e progrediu rapidamente para o sul, através do litoral, expulsando dali as comunidades de caçadores e coletores menos aparelhadas que encontrou. Naquele então, a Mata Atlântica cobria, com pequenas interrupções, as planícies litorâneas e as encostas dos planaltos brasileiros. Esta faixa costeira - de clima ameno, própria à agricultura e à coleta (fungos, raízes, frutos,

selvas, pequenos animais, larvas, etc.), rica em caça

e pesca (peixes, mariscos, crustáceos, etc.) estende-se, ao longo do litoral, com uma largura média de duzentos quilômetros. Antes mesmo da chegada dos portugueses, o litoral brasílico era ferreamente disputado pelas comunidades nativas, de mesma ou de diferentes origens culturais. As comunidades tupinambás viviam um processo de crescimento demográfico e praticavam uma economia de “ocupação destrutiva”. (FERNANDES, 1970: 55.) As baixas temperaturas do Planalto Central e a impropriedade das terras do interior a uma horticultura que desconhecia a metalurgia do ferro determinavam que, muitas vezes, a sobrevivência dos próprios grupos humanos involucrados nos combates dependesse do resultado desta disputa territorial. Perdendo o domínio de uma parcela do privilegiado habitat, estas comunidades podiam entrar em acelerada decadência. Segundo o arqueólogo J.P.Brochado, cerca de quinhentos “anos antes da chegada dos europeus, as duas mandíbulas das frentes de expansão Guarani e Tupinambá se chocaram finalmente numa fronteira situada ao sul do curso do Tietê”. (BROCHADO, 1984.)

DA COSTA

des trechos do litoral dos atuais estados do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, habitavam os

potiguaras, tradicionais aliados dos franceses. Do rio Paraíba até o rio São Francisco, viviam os caetés, em

parte exterminados durante a fundação da capitania

de Pernambuco. No Pará, Maranhão, e do rio São Francisco às proximidades do rio das Contas, no atu-

al estado da Bahia, dominavam as comunidades que passaram à história com o nome da subcultura a que

pertenciam - os “tupinambás”.

Das regiões meridionais do rio das Contas ao

atual estado do Espírito Santo, viviam os tupiniquins,

que sofriam forte pressão de povos do interior. O Jitoral do Espírito Santo - até o rio Paraíba do Sul - era dominado pelos goitacases, povo não tupi que combateu duramente os colonos lusitanos. No atual estado do Rio de Janeiro, do cabo de São Tomé até Angra dos Reis, viviam os tamoios/“tupinambás”, que se aliaram aos franceses contra os lusitanos. De Angra dos Reis até a ilha de Cananéia, dominavam os goianases, que ofereceram pouca resistência aos europeus. A partir dos territórios meridionais dos goianases, até a ilha de Santa Catarina, e por amplas regiões do interior, viviam os carijós/guaranis que, como vimos, haviam

alcançado o litoral após uma longa e milenária peregrinação pelo interior do continente. Possuímos abundante informação sobre os tupinambás do litoral. Eles viviam em comunidades aldeãs não classistas que praticavam, como acabamos

de assinalar, a horticultura, a caça, a pesca ea coleta.

A produção dos bens materiais realizava-se no con-

texto de uma divisão sexual e etária do trabalho. Os homens responsabilizavam-se pela caça e pelo prepa-

ro dos campos para as plantações; as mulheres, pelas

restantes atividades horticultoras. Os tupinambás

produziam sobretudo tubérculos (mandioca-brava,

43

mandioca-doce, batata-doce), leguminosas (feijões,

amplas equipes de trabalhadores para a realização de

vagens) e cereais (milho). O produto de base da economia tupinambá era à

obras coletivas (irrigação, terraplanagem, adubação,

munidade nativa do rio Amazonas mostrou que à man-

(CHILDE, 1964: 66.) Ela não permite, também, como

mandioca. Levantamento contemporâneo em uma Co-

dioca ocupava 91% da a área cultivada e fornecia de 859% a 919% do consumo diário de calorias da comunidade. (SEB/1, 1987: 154.) O milho era utilizado mais na fabricação de bebidas fermentadas e como produto de consumação imediata do que como cereal. (TH EVET, 1953: 55.) A atividade horticultora de plantação-enxertia assumia um papel dominante na sociedade tupinambá, “não apenas porque” mobilizava grande parte das encrgias “dos produtores, mas sobretudo porque” determinava “a organização social geral à qual as outras atividades econômicas, sociais e políticas se” subordinavam. (MEILLASSOUX, 1977: 64; GALVÃO, 1963: 132.) Em Mulheres, celeiros & capitais, o antropólogo francês Claude Meillassoux destacou as importantes tendências organizacionais determinadas às comunidades domésticas pela “agricultura de plantação-enxertia”. (MEILLASSOUX, 1977: 51-71.) Este tipo de cultivo, realizando-se através da replantação de uma fração do tubérculo ou do rebento, não exige sementes e possui um rendimento relativamente elevado. Por outro lado, os pro-

dutos desta cultura são conservados, até o momento do

consumo, sobretudo nas plantações, pois eles se degradam com facilidade após serem colhidos. A mandioca que possui um imenso número de variedades - é um ótimo exemplo. Após um crescimento de seis meses, ela resiste, madura, sob a terra, por pouco mais de um ano. (MAESTRI, 1978: 87.) Para serem consumidos, tais produtos exigem complexas e trabalhosas manipulações. No caso da cultura tupinambá, o esforço beneficiador da

mandioca-brava, ou seja, a extração do ácido prússico

que a torna venenosa - era realizado pelas mulheres.

DESENVOLVIMENTO

LENTO

Ao contrário da agricultura cerealífera, a economia doméstica de plantação-enxertia não exige 44

etc.) ou de pesadas tarefas cíclicas (colheitas, beneficiamento,

transporte,

armazenamento,

ctc.).

a agricultura cerealífera, a formação de grandes es-

toques. Tais determinações da agricultura/horticultura

de plantação-enxertia não contribuem à coesão dos

grupos sociais aldeões que a praticam. As crises alimentares tupinambás, quando de prolongados períodos de estio, deviam-se à incapacidade material de formarem-se reservas alimentares reguladoras e não à imprevidência motivada por cren-

ças de que “a terra sempre fornece tudo para todos”. (FERNANDES, 1948: 84.) As práticas horticultoras brasílicas realizavam-se harmonicamente no contex-

to da divisão familiar, etária e sexual do trabalho e

da associação de algumas unidades produtivas - residências coletivas e aldeias. O acesso do grupo fami-

liar à terra, no contexto de uma aldeia, era livre e os

meios de produção, muito simples. | Os grupos sociais aldeões organizados a partir

desta estrutura produtiva - modo de produção doméstico - tendem à segmentação na medida em que se desenvolvem demograficamente. A inexistência de grandes reservas alimentares e a desnecessidade de sementes e de obras sociais de vulto para o início de uma nova comunidade viabilizaram e facilitavam iniciativas segmentárias. Segundo Hans Staden, o mercenário ale-

mão aprisionado pelos tupinambás em fins de 1553, inícios de 1554, um principal que quisesse fundar uma

residência coletiva - maloka -, deveria reunir “cerca de

40 homens e mulheres”. (STADEN, 1974: 155.) Em geral, as aldeias - taba - se formavam com

mais de uma residência. Como lembra Claude Meillassoux, a “segmentação, por ruptura com a comunidade mãe, é cada vez mais difícil à medida que

a agricultura se aperfeiçoa”. Ela se realiza com

maior dificuldade nas comunidades domésticas cerea-

líferas, tendencialmente mais estáveis do que nas que praticam a agricultura de plantação-enxertia.

(MEILLASSOUX, 1977: 72.)

Sobretudo nas comunidades domésticas assentadas sobre uma agricultura de plantação-enxertia, o

desenvolvimento das forças produtivas materiais era baixo e lento. Elas possuíam, igualmente, a tendência a um crescimento demográfico que se realizava sob forma de segmentação da unidade-mãe em co-

munidades estruturalmente similares. Tais realidades facilitaram as ilusões fenomenológicas que permitiram que o desenvolvimento técnico-produtivo € o devir histórico destes grupos passassem praticamente ignorados e que eles fossem percebidos - sobretudo pelas escolas antropológicas culturalistas, funcionalistas e estruturalistas - como imersos permanentemente em uma espécie de equilíbrio mecânico atemporal. Não temos dados precisos sobre o tamanho médio das plantações tupinambás. Estimativas contemporâneas sugerem que hortas “indígenas” de mandiocas de aproximadamente meio hectare sustentem

um grupo familiar de três a cinco pessoas. (GALVÃO,

1963: 126.) A técnica de base das práticas horticultoras - a colvara - originava-se da abundância de terras, da ausência de ferramentas desenvolvidas, do desconhecimento da adubação artificial utilizada em larga escala e da escassez relativa de braços humanos. As operações horticultoras não eram complexas. Antes das chuvas, abria-se uma clareira na mata

virgem com ferramentas individuais simples - machados de pedra polida, TRABALHO RÁPIDO

Calcula-se que, com um machado de pedra de 500 gramas, empregue-se em torno de quatro horas para derrubar uma árvore, de madeira resistente, de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro, na altura do corte. Com um machado de ferro, o mesmo

trabalho é feito - 33.) Segundo matas e preparo associada, pelos

em meia hora. (IHERING, 1908: 426 parece, a extenuante derrubada das dos terrenos eram feitos, de forma homens de uma residência coletiva

ou da aldeia. Após, deixava-se tudo secar de duas semanas a dois meses. A seguir, lançava-se fogo. Os troncos e os ramos queimados libertavam quantida-

des de nutrientes minerais que aumentavam a fertilidade dos terrenos. A madeira carbonizada abastecia em lenha a aldeia durante meses. (STADEN, 1974:

162; ABBEVILLE, 1975: 226; SEBM: 47.) O cosmógrafo André Thevet escreveu que era comum o fogo queimar a mata bem além do desejado pelos tupinambás. (THEVET, 1953: 211.) Tal método de limpeza dos terrenos causava danos ao ecossistema

da Mata Atlântica. Portanto, um cultivo que se as-

sentava sobre o uso da energia humana, sobretudo, e do fogo, secundariamente. A derrubada das matas e a limpeza dos terrenos

cram tarefas exclusivamente dos homens. O machado de pedra era, portanto, um instrumento essencialmente masculino. As mulheres ocupavam-se dos trabalhos

agrícolas restantes. Em 1627, frei Vicente Salvador referiu-se a esta divisão do trabalho: “Os maridos na roça derrubam o mato, queimam-no e dão a terra lim-

pa às mulheres, e elas plantam, mondam [arrancam] a erva, colhem o fruto e o carregam e levam para casa em uns cofos [cestos] mui grande de palma, lançados sobre as costas [...]”. (SALVADOR, 1982: 81.) Após um preparo superficial dos terrenos,

plantava-se. Os troços de mandioca eram enterrados na terra. Os grãos de milho eram plantados com a ajuda de um pau de cavar, ou seja, um bastão pontudo de madeira, ferramenta feminina por excelência. No século 20, na Amazônia, comunidades autóctones serviam-se ainda de “um bastão de um metro e

meio de comprimento, com a ponta em bizel ou

afilada, endurecida a fogo”. (ABBEVILLE, 1975: 242;

GALVÃO, 1963: 125.) O estudo de comunidades nativas contemporâneas comprova que muitas delas cultivavam plantas úteis ao longo das trilhas. (SEBU: 1/5 et passim.) Em 1587, o senhor-de-engenho Gabriel Soares de Sousa falou em termos muito elogiosos da agricultura dos potiguaras: “São grandes lavradores dos seus mantimentos, de que estão sempre mui providos [...].” (SOUSA, 1971: 55.)

as

Às ferramentas européias - principalmente os

machados e cunhas de ferro - facilitavam muitíssimo Os trabalhos agrícolas americanos, sobretudo a tra-

balhosa derrubada das árvores e limpeza dos terrenos. O que terminou determinando em forma pro-

funda, como veremos com vagar, no capítulo 12, à história dos povos da costa. As plantações localizavam-se nas imediações das aldeias e o preparo dos

terrenos era feito, de forma individual ou associada,

sobretudo pela manhã - “antes dos grandes calores €

do tempo da chuva”. No Maranhão, devido ao calor, trabalhava-se do “romper do dia” até as 10 horas e das 14 até o “anoitecer”. Os tupinambás não praticavam a criação de gado com objetivo alimentar nem possuíam animais de transporte ou de tração - de pequeno, médio ou grande porte. O que descartava qualquer possibilidade de adubação das terras com o excremento animal. (ABBEVILLE, 1975: 226, 241; FERNANDES, 1948: 83, 111; THEVET, 1953: 210;

FERNANDES, 1948: 83; EVREUX, 1929: 96.) Até a chegada dos europeus, o gado vacum e cavalar era desconhecido nas Américas. A bem da verdade, o homem foi, de certo modo, o único ser Vivo a ser criado e engordado para após ser consumido. Entretanto, os tupinambás criavam em suas residências e aldeias, livres, sem objetivos alimentares, diversas espécies de pássaros domesticados - papa-

galos, araras, tucanos, etc. (THEVET, 1953: 167.) As

dificuldades assinaladas da conservação da mandio-' ca € o regime alimentar pouco equilibrado por ela propiciado determinavam que a caça, a pesca € a coleta fossem indispensáveis a estas comunidades.

(MEILLASSOUX, 1977: 53.) DOMINANDO

O HORIZONTE

As aldeias localizavam-se em um sítio alto, are-

jado, perto de matas férteis, do mar, de um rio ou de uma fonte de água. No litoral, caminhos ligavam as aldeias ao mar. As aldeias permaneciam no mesmo local de três a seis anos e após se deslocavam para 46

outra paragem. Esta migração dava-se dentro de um

mesmo espaço geográfico e as roças abandonadas eram reaproveitadas durante longos anos, já que continuavam fornecendo produtos cultivados e atraindo a caça. As aldeias podiam fracionar-se durante as mudanças. Os tupinambás migravam mais devido ao esgotamento dos recursos alimentícios da região caça, pesca, coleta - do que devido à queda da fertilidade dos terrenos.

Em realidade, as hortas - localizadas próximas

às aldeias, para facilitar o transporte da colheita até

as residências - ocupavam apenas uma parcela das terras férteis. É crível que a migração fosse também determinada pela degradação crescente das condições sanitárias do meio ambiente em relação direta com as aldeias. Os atuais ianomis queimam suas aldeias-residências a cada um ou dois anos, pois as folhas das coberturas começam a romper-se e proliferam baratas, aracnídeos e outros insetos nas mora-

dias. Por sua vez, os jívaros mudam o local das aldeias a cada três ou quatro anos devido às baratas. (SOARES, sd: 1, 246; METRAUX, 1928: 4; LEITE, 1957: 292; EVREUX, 1929: 72; KERN, 1991: 297, 306; SEB/2,

1987:43; 67; SEB/1:254.) Hans Staden deixou-nos um depoimento sobre as aldeias tupinambás: “Edificam suas habitações de preferência em lugares em cuja proximidade têm água e lenha, assim como caça e peixe. Se uma região se exaure, transferem seu lugar de moradia para outro”. (STADEN, 1974: 155.) Segundo Jean de Léry e Claude d'Abbeville, a nova aldeia - com o mesmo

nome -

era erguida entre três e cinco quilômetros da anterior. (ABBEVILLE, 1975: 222; LERY, 1961: 208.) Consequentemente, a colonização/conquista de novos territórios podia dar-se de forma quase imperceptível aos agentes do próprio movimento expansionista. O sacerdote francês Claude d” Abbeville arrolou algumas das múltiplas e pesadas tarefas femininas. Além serem responsáveis por boa parte dos trabalhos agrícolas - plantar, limpar, colher -, as mulheres cuidavam da casa e das crianças, encarregavam-se do transporte de alimentos e de outros objetos do-

mésticos, buscavam água, preparavam os alimentos co canim, faziam o azeite de coco, colhia m e preparavam o algodão, fiavam e teciam redes c faixas, fabricavam recipientes de barro. (ABBEV ILLE, 1975: 242.) Elas participavam igualmente da coleta, apoiavam os homens nas pescarias e nas cons truções das residências, preparavam o sal, etc. (H OLANDA, 1963:

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15; THEVET, 1953: 216.) Os homens derrubavam a mata € prepar avam

Os terrenos agrícolas; caçavam, pescavam, cortavam lenha; fabricavam as canoas, as armas, as moradias. Eles eram responsáveis pela defesa e conquista dos territórios e pelas práticas guerreiras. Entretanto, as mulheres podiam acompanhar os maridos quando das

expedições militares. (LEITE, 1957: 109.) As crian-

ças colaboravam sistematicamente nas atividades

produtivas que requeriam pouco esforço físico - caça, pesca, coleta, horticultura. (LEITE, 1957: 381.)

47

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Capítulo 7 |

Família, residência, aldeia

A célula social, produtiva e de consumo de base da sociedade tupinambá era a família nuclear. No relativo à reprodução das condições materiais imedi-

atas e cotidianas de existência, cada comunidade fa-

miliar aldeã era tendencialmente auto-suficiente. O mesmo não ocorria quanto à reprodução das condições gerais e da própria comunidade (reprodução da espécie). Este último problema escapa aos objetivos do presente trabalho. A derrubada das matas, a defesa € a conquista dos territórios, a irregular produtividade da horticultura e das outras atividades econômicas ensejavam unidades produtivas que reuniam diversas famílias em uma residência - maloka - e diversas residências em uma aldeia - taba. Várias famílias solidárias viviam em uma grande residência coletiva. As malokas formavam-se com os parentes, com os aliados e com os agregados de um principal. Em espaços com aproximadamente dez metros quadrados viviam as famílias nucleares - o marido, a mulher, os filhos e eventuais agregados (re-

fugiados e cativos). (LERY, 1961: 208: STADEN, 1974:

155; THEVET, 1953: 116.) Os principais e alguns aldeões que se destacassem poderiam possuir mais de uma esposa. Cada esposa possuía a sua própria horta e a sua área habitacional. Nem todas as esposas de um principal viviam na sua residência ou aldeia. Esta for0

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ma de residência, a maloka, correspondia ao desenvolvimento econômico e social da sociedade tupinambá. Nela, imperavam, muito fortes, os vínculos consangúíneos e o poder gerontocrático masculino. (ABBEVILLE, 1975: 222; THEVET, 1953: 136.) As uniões monogâmicas eram mais comuns. Frei Vicente Salvador escreveu sobre os tupinambás: “[...]

dormem nus, marido e mulher, na mesma rede, cada

um com os pés para a cabeça do outro, exceto os principais que, como têm muitas mulheres, dormem sós

nas suas redes, e dali, quando querem, se vão deitar com a que lhes parece”. (SALVADOR, 1982: 79:

STADEN, 1974: 174.) Cada casal possuía sua grande rede de algodão, atada a troncos fincados no solo das residências. De dia e de noite, as mulheres mantinham

“acesas pequenas fogueiras de ambos os lados da rede do chefe da família”. (THEVET, 1953: 159; 1983: 100.)

As redes e o fogo serviam como proteção contra os insetos durante o sono. (SEB/1: 253-4.) O fogo era aceso com a fricção de dois paus. Segundo parece, à noite, além de esquentar o ambiente e afastar pequenos animais, ele servia igualmente para afugentar os “maus espíritos”. (COREAL, 1722: 239.) Quatro a sete malokas retangulares formavam uma aldeia. Cada comunidade aldeã era autônoma. Principalmente a luta pela manutenção/conquista dos 49

cobiçados territórios litorâneos criava as condições para a formação de alianças interaldeãs - “nação ou “confederação” - e ensejava um permanente estado de

beligerância. (ABBEVILLE, 1975: 151, 222.) Sete ou

oito aldeias podiam confederar-se para lançar uma campanha militar (THEVET, 1953: 178.) Devido às determinações estruturais das comunidades aldeás que analisamos, tais alianças formavam-se e romplam-se

com facilidade. A escassa referência dos europeus à existência de “tribos” brasílicas ressalta o carater 1ndependente das diversas aldeias. Este fenômeno facilitou sobremaneira a ocupação lusitana do litoral. As aldeias eram circulares e as grandes residências possuíam duas portas nas extremidades € uma no centro. Esta última dava para o terreiro. Além destas residências permanentes, os tupinambás construíam abrigos noturnos quando de viagens ou expedições guerreiras. (SEB/2, 1987: 31.) Nos aproxima-

damente trezentos metros quadrados de cada maloka, viviam de cinquenta a cem moradores. (PIGAFETTA, 1986: 58; STADEN, 1974: 155; FERNANDES, 1948: 59 - 65.) Exagerava o calvinista Jean de Léry ao afirmar que em uma residência coletiva habitariam “de

quinhentas a seiscentas pessoas e não raro mais”. (LERY, 1961: 205.) Aldeias com seis e oito mil membros, como sugerem Léry e o sociólogo Florestan Fernandes, não correspondem à capacidade material da economia tupinambá. (FERNANDES, 1948: 63.) Tais concentrações populacionais necessitariam, para o seu sustento, de “hortas” com aproximadamente setecentos hectares! Em geral, é crível que as aldeias mais populosas tivessem em torno de 350 habitantes, devido mais aos abundantes recursos do litoral. No Rio de Janeiro, elas chegavam a ter 500 metros

de diâmetro. (BELTRÃO, 1972: 129.)

cos sistemáticos poderão nos esclarecer sobre a real dimensão e o número de habitantes médios das residências coletivas tupinambás. Sobre tal problema, a

documentação coeva diverge significativamente. Sem divisões internas, as residências distribufam-se, em torno de um grande pátio central quadrado, onde se

realizavam as reuniões e festividades. A distribuição espacial simétrica expressava o status igualitário das diversas residências na aldeia. (KERN, 1991: 305.) Uma construção comunitária “casa grande” - era destinada às deliberações aldeãs. Era o principal local onde os “velhos” transmitiam aos “novos” as narrações míticas e a tradição oral profana. (EVREUX, 1929: 122.) Nas zonas conflagradas, fossos e duas paliçadas de troncos de palmeira, geralmente em forma pentagonal, cercavam e protegiam

as aldeias.

(SALVADOR,

1982:

19, 80;

ABBEVILLE, 1975: 79; STADEN, 1974: 156.) Em frente do portão principal, assim como diante e no Interior das residências, fincaram-se hastes com as caveiras dos inimigos mortos. (STADEN, 1974: 97, THEVET, 1953: 92.) As diversas malokas, cobertas de palha até o solo, comandadas por um ou

dois principais, constituíam as unidades produtivas e guerreiras aldeãs. A sociedade tupinamibá formava-se a partir da associação livre de núcleos de produtores familiares independentes. Era muito limitada a autoridade dos principais sobre os chefes de família de

suas malokas. Em geral, os senhores das diversas re-

DOR, 1982: 78; STADEN, 1974: 164.)

A primeira descrição detalhada de uma maloka é da pena de um piloto anônimo da esquadra cabralina: “As suas casas são de madeira, cobertas 50

VA, 1919: 119.) Futuros levantamentos arqueológi-

sidências possuíam a mesma autoridade. (SALVA-

NÚMEROS CONFUSOS

as Do

de folhas e ramos de árvores, com muitas colunas de pau pelo meio, e entre clas c as paredes, pregam redes de algodão, nas quais pode estar um homem, e debaixo de cada uma destas redes, fazem um fogo, de modo que numa só casa pode haver quarenta ou cinquenta leitos armados, a modo de teares”. (SIL.-

i

,

À inexistência de instituições sociais coativas suprafamiliares assentava a coesão aldeã no consen-

so dos chefes de família. O poder de convencimento era tão apreciado que aqueles que se distinguiam pela

capacidade de argumentação eram chamados de “senhor da fala”. (CARDIM, 1978: 186.) As mulheres, os jovens € as crianças não se pronunciavam durante as reuniões. Nelas, os “velhos” - principais e chefes

de família - eram escutados com atenção e, em geral, obedecidos. (ABBEVILLE, 1975: 234; FERNANDES, 1970: 149; STADEN, 1974: 164.)

As decisões comunitárias cram tomadas na

“casa grande” ou “casa dos homens”, no centro da aldeia, todas as noites. (ABBEVILLE, 1975; EVREUX,

1929: 87, 255; FERNANDES, 1970: 68-9.) O cosmógrafo francês André Thevet, que visitou o Brasil em 1555, descreveu uma destas assembléias, “conduzidas” pelos anciãos, nas quais não tomavam “parte as mulheres e crianças”. “Nelas, os índios procedem com urbanidade e discrição. Sucedem-se os oradores uns após os outros: todos são atentamente escutados. Terminada a arenga, cada orador passa a palavra ao seguinte, e assim por diante. Os ouvintes ficam todos sentados no chão, exceto alguns poucos [principais] [...] [que] se conservam sentados em suas redes.” (THEVET, 1978: 123; 1983: 79.) Cada aldeia possuía um ou mais grandes principais - morubi'xawa. Apenas durante as guerras eles comandavam discricionariamente os guerreiros. A ilha de São Luís, no Maranhão, possuía 27 aldeias. Quatorze delas tinham um morubixaba; dez, tinham dois; uma, tinha três e, as duas mais populosas, tinham

quatro e cinco. (ABBEVILLE, 1975: 139-145.) E crível que as aldeias com mais de um morubixaba se formassem pela reunião de dois ou mais grupos aldeões. GENTE TRANQUILA Os tupinambás comiam, pouco, diversas vezes ao dia. Em geral, os núcleos familiares realizavam es-

sas refeições frugais de forma isolada, sem pressa e em silêncio. Todos se serviam em um recipiente comum.

Quando

se comia, não se bebia, e vice-versa.

Apenas acabavam de alimentar-se, fumavam (COREAL, 1722: 194; THEVET, 1953: 121, 149; SALVA-

DOR, 1982: 80; EVREUX, 1929: 154.) Quando escasseavam ou abundavam os alimentos, os produtos da caça, da pesca, da coleta e da horticultura eram repartidos entre os membros de uma mesma mmaloka e taba. Na pesca e na caça, quem apanhasse mais animais dividia-os com os companheiros menos afortunados. (SALVADOR, 1982: 80; STADEN, 1974: 159.) O capuchinho Yves d'Evreux foi peremptório:

“É muito grande a liberalidade entre eles e, desco-

nhecida a avareza”. (EVREUX, 1929: 125.) Devido já vistas, no interior da aldeia reinava um às razões alto grau de “civilidade”, de “harmonia” e de respeito “individual”. O roubo era uma “instituição” desconhecida. O cumprimento da palavra dada; o pres-

tígio do poder de convencimento; o valor do exemplo e das relações interpessoais eram fenômenos sociais

de grande importância, pois deles dependia, em grande parte, a coesão aldeáã. O padre Cardim escreveu espantado sobre as residências tupinambás: “Parece a casa um inferno ou labirinto, uns cantam, outros choram, outros comem,

outros fazem farinha e vinhos, etc., e [em] toda a casa arde [...] fogos; porém é tanta a conformidade, entre eles, que, em todo o ano, não há uma peleja, e, com

não terem nada fechado, não há furtos [...)”. (CARDIM, 1978: 186.) Segundo Michel de Montaigne que, segundo veremos, entrevistou um francês que viveu longos anos nas costas brasílicas, na língua tupi não existiria palavras que traduzissem conceitos como dissimulação, avareza e inveja. (MONTAIGNE, 1965: 206.) Em 1549, na capitania da Baía, Manoel da Nóbrega elogiava, igualmente, as relações interpessoais aldeãs: “Os que são amigos vivem em grande concórdia entre si e amam-se muito, [...]. Se um deles

mata um peixe, todos comem dele [...]”. (NÓBREGA,

1955: 50.) Em 1612, o sacerdote francês d"Abbeville registrou considerações também elogiosas sobre a “tranquilidade”, “civilidade” e “educação” dos tupinambás do Maranhão: “São tão serenos e calmos que escutam atentamente tudo o que lhes dizem, sem jamais interromper os discursos. Nunca pertubam o 51

discursador, nem procuram falar quando alguém está com a palavra. Escutam-se uns aos outros € jamais discorrem confusamente ou ao mesmo tempo |...)

(ABBEVILLE,

seu senhor, e que hão-de matar muitos dos seus contrários e cativarão muitos para Os seus comeres”, (NÓBREGA, 1955: 63.)

1975: 244.) De tal discrição, como

veremos, abusaram sem remorsos os jesuítas. Eles obrigavam os brasis a escutarem longas€ complexas prédicas religiosas. Estas seriam, nos primeiros tempos, incompreensíveis, no relativo à forma € ao con-

MULHER

EXPLORADA

Evidentes contradições sociais transpassavam

teúdo, à disciplinada platéia americana. De madrugada, o principal, deitado em sua rede e, a seguir, passeando pela moradia e pela aldeia,

estas comunidades assentadas sobre a divisão sexual e etária do trabalho. A mulher dependia do pai, ou do

da residência de se aprontarem para as práticas produtivas diárias ou - se necessário - para a guerra, como

mais velhos. Dos 8 aos 25 anos, os filhos homens

muito de vagar, falando em voz alto e batendo no peito, “convencia”, por uma meia hora, OS membros

haviam feito “seus antepassados”. (CARDIM, 1976: 177; LEITE, 1956: 407.) A participação da comuni-

dade nas atividades bélicas era igualmente produto

da concordância geral dos aldeões. As crianças e as mulheres não presenciavam as assembléias que decidiam sobre as expedições guerreiras. (THEVET, 1953: 178.) Nada se fazia contra a vontade da coletividade. Tal urbanidade e ordem social impressionaram muito os europeus mais observadores, provenientes de sociedades divididas, em suas raízes, por

antagonismos classistas.

Não devemos idealizar a vida brasílica. A luta das comunidades pela existência era dura e a esperança de vida média dos brasis seria baixa. Cálculos contemporâneos sugerem que um produtor tupinambá dedicaria mais de sessenta dias, anualmente, apenas aos duros trabalhos horticultores. (GALVÃO, 1963: 127.) O principal mito tupi-guarani - a procura da terra sem mal - constituía a promessa de uma vida rica em prazeres materiais e desconhecedora do trabalho e da velhice. Em 1549, o jesuíta Manoel da Nóbrega relatava: “De certos em certos anos vêm uns feiticeiros [...] lhes dizem que não curem de traba-

lhar, não vão à roça, que o mantimento por si cresce-

rá, e que nunca lhes faltará que comer, e que por si

virá a casa; e que as aguilhadas [paus pontudos] irão a cavar, e as flechas irão ao mato, por caça, para O

52

irmão, ou do tio, ou do marido. Ela era submetida e explorada pelo homem. O controle familiar das mulheres assegurava a supremacia dos principais e dos

trabalhavam para o pai. Para casarem-se e constituir família, o que faziam relativamente tarde, comprometiam-se com a família da esposa. O genro devia obrigações produtivas e militares ao sogro e à famí-

lia da mulher. O filho, as devia ao pai. Se um genro

desconhecesse estes deveres, perdia a esposa, que era reclamada por sua família. Um tupinambá que controlasse muitas mulheres (sobrinhas, filhas, esposas) era um homem poderoso. (NAVARRO, 1988: 136; LEITE, 1956: 119, 153, 316, 379; STADEN, 1974: 171; THEVET, 1978: 137; 1983: 92; 1953: 132; FERNANDES, 1948: 113.) Um homem com muitos parentes e agregados

fundava sua maloka, tornava-se um “principal”, transferia para seus “subordinados” boa parte de suas tarefas produtivas e guerreiras. Não seria muito dura a vida de um principal. Segundo o depoimento de um jesuíta, ele passaria boa parte do tempo deitado na rede... (LEITE, 1957: 295.) O sacerdote francês Yves d'Evreux registrou que o “ancião ou velho” “trabalha quando quer, e bem à sua vontade, mais para exemplo da mocidade, respeitando as tradições da sua Nação,

do que por necessidade”. (EVREUX, 1929: 133.) O marido polígamo recebia mais do que entregava às suas esposas. Muitos jovens permaneciam, por muito tempo, solteiros ou contraíam matrimônio

com mulheres idosas. Alguns morreriam sem se ca-

sar. As esposas mais velhas de maridos polígamos

E SR

podiam perder o papel de “parce iras sexuais” mas manter as obrigações econômicas devidas aos csposos. (FERNANDES, 1948: 132.) Era ilusória a retóri-

ca racionalizadora da “democraci a lamiliar” aldea. Entretanto, tais padrões de Casament o conviviam com uma relativamente ampla liberdad e sexual] feminina,

antes do casamento, e com a pouc a preocupação dos

tupinambás com a virgindade das mulh eres. (LERY, 1961: 202-5; FERNANDES, 1948: 139.) São românticas e idealizadoras as Ici turas contemporâncas sobre a excelência e sabe doria “univer-

sal” das instituições

americanas.

As comunidades

brasílicas não podiam construir relações sociais por sobre os limites determinados pelo baixo desenvolvimento de suas culturas materiais. (LUKAC S, 1982: 1, 70.) Vistos de uma outra ótica, os tupinamb ás podiam ser terrivelmente “desumanos”. Eram extrema c inocentemente cruéis com os inimigos e não co-

nheceriam, nem mesmo, como lembrava Mich el de

Montaigne, o conceito “perdão”... Como veremos nos

Capítulos 9 e 10, as práticas antropolágicas ch egavam a tal extremo que as mães comiam os filhos ti-

dos com os prisioneiros. Era igualmente comum que cativos fossem abatidos e devorados após longos anos

de convivência com os senhores. Vivendo num est ágio civilizatório pré-ético, a concepção de “solidariedade humana” não ultrapassava os estreitos limites geográficos ditados pela economia doméstico-aldeã. Os tupinambás eram pescadores destros e hábeis nadadores e mergulhadores. (STADEN, 1974 : 159; THEVET, 1978: 95; 1983: 46; COREAL, 1722 : 181.) Nos mares e nos rios, usavam jangadas e canoas leves e pesadas. Estas últimas, eram cavadas em troncos duros de certas árvores. Durante as viagens, nestas embarcações, os homens remavam e as mu lheres serviam-se de cuias para lançar fora a água que nelas entrassem. Em torno de 25 remadores por canoa realizavam, ao longo do litoral, a uns trê s ou quatro quilômetros das praias, rápidas e long as expedições guerreiras. Os europeus presenciaram combates fluviais e marítimos envolvendo dezena s de

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canoas e centenas de combatentes. (THEVET, 1978: 128; 1982: 82; STADEN, 1974: 176; SOUSA, 1971:

313; LERY, 1961: 148, 149: FERNANDES,

1970: 99.)

Sicais eram

não-espe-

A cerâmica, a cestaria, o trabalho do algodão, a fabricação de armas e instrumentos domésticos e mupráticas

familiares

aldeãs

cializadas relativamente refinadas. Na caça c na guerra, os brasis manejavam suas armas com grande mestria. Possuíam pesados tacapes de madeira vermelha ou negra; grandes arcos com diversos tipos de flechas; uma espécie de clava com a extremidade cheia de pedras; escudos de “cortiça de árvores”, de couro de animais e de pele de peixes; machados de pedra polida. Tal era o poder das flechas que clas podiam varar um homem. Nas bata-

lhas, soavam tambores, flautas, cornetas e buzinas.

Os tupinambás desenvolveram refinadas táticas e estratégias guerreiras. Elas os tornaram a mais poderosa comunidade do litoral, até a chegada dos euro-

peus. (VARNHAGEN,

1978:

1: FERNANDES,

1970:

36-9; STADEN, 1974: 178; THEVET, 1978: 125; 1983: 79; COREAL, 1722: 214.) MANIA

DE LIMPEZA

Os tupinambás portavam os cabelos curtos, na testa, e deixavam-nos crescer, na nuca, nas orelha s e nas fontes. Pintavam o corpo com tinta negra de Jenipapo (Genipa americana) e vermelha de urucu (Bixa orellana) - ótimos repelentes de inseto s. Os tupinambás tatuavam as carnes; furavam o lábio Iinferior para colocar objetos de pedra, osso ou mad eira. Usavam colares de búzios, de ossos de animais e

de dentes de inimigos. Nas grandes cerimônia s, enfeitavam os braços, as pernas e os cab elos com penas

de variadas cores. A ornamentação e a tatuag em do corpo constituiriam recursos mágicos - felicidad e na

Caça, na guerra, etc. - e expressariam múltip las informações - idade, sexo, status, etc. Os vestim entos curopeus que portavam, sobretudo quando de festi-

vidades, teriam função exclusivamente ornamental.

53

Untavam a pele com óleos. Raspavam os pelos do corpo, inclusive a barba, os cílios e as sobrancelhas,

medidas profiláticas contra a proliferação de parasitas e a contra-atração de mosquitinhos € abelhas que

incomodam os olhos. (SEB/1, 1987: 253; SEB/3, 1987: 119-48.)

E

As mulheres dedicavam grande atenção à orna-

mentação corporal. Depilavam e pintavam as sobrancelhas e o corpo; usavam colares de contas nos pescoços e nos braços; ungiam os corpos. As tupinambás deixavam crescer os cabelos até a cintura e prendiam-nos quando trabalhavam. Elas não furavam o lábio inferior - símbolo de masculinidade -, mas apreciavam muito portar enfeites nas orelhas. Os brincos fornecidos pelos europeus eram singularmente apreciados pelas americanas. O mesmo ocorria com Os espelhos. Tanto homens como mulheres depilavam o pélo pubiano o que - como vimos - evita piolhos. (COREAL, 1722: 186; BRANDO, 1977: 268; SOUSA,

1971: 305; THEVET, 1978: 107; 1983: 58; 1953: 110, 126; LERY, 1961: 109, 213; SEB/1, 1987: 253.) Após parir e guardar repouso por um ou dois dias, a mulher ia para a roça trabalhar. O homem ficava na rede fazendo-se de parturiente e recebendo as visitas. O que atrairia sobre ele, e não sobre a mulher debilitada, os maus espíritos. (LERY, 1961:

203; BRANDO, 1977: 250; EVREUX, 1929: 138.). O

esposo suspendia o intercurso sexual com a mulher quando da gravidez, após o parto e durante o primeiro ano de vida do recém-nascido. (FERNANDES, 1948: 143.) A mãe aleitava o filho até uma nova gravidez. Havia crianças que mamavam até os oito anos de idade. (SALVADOR, 1982: 81.) Os recém-nascidos eram também alimentados com “grãos de milho assados”, “mastigados”, pelas mães, “até ficarem reduzidos à farinha”. (EVREUX, 1929: 128.) Na educação dos filhos, utilizava-se sobretudo o exemplo e raramente a correção física. Na colônia do Maranhão, o capuchinho Yves d'Evreux presenciou um exercício desta pedagogia do exemplo e da emulação. Homens e mulheres tupinambás trabalhavam duro na construção do forte francês e “davam pequenos

cestos para carregar terra” aos “filhinhos”, conforme

“suas forças”. (EVREUX,

1929: 75.) Os tupinambás escandalizavam-se ao verem os jesuítas, ainda que de forma moderada, castigar fisicamente os jovens estu-

dantes. Os pais dedicavam grande atenção aos filhos. O franciscano Claude d'Abbeville afirmava serem as crianças brasílicas muito obedientes e “dotadas de uma certa seriedade e de uma modéstia natural muito agra-

dáveis”. (ABBEVILLE, 1975: 224.)

Quando um tupinambá adoccia gravemente, era atendido, em sua rede, pelos seus próximos, que se-

guiam apreensivos o desenvolvimento da saúde do enfermo. Se falecia, familiares, parentes e ami gos externavam a tristeza chorando e lamentando-se, longamente, em voz alta. A seguir, o morubixaba ou o principal da maloka, batendo no peito e nas coxas,

proferia um elegante discurso fúnebre laudatório sobre o falecido. Ele terminaria com as seguintes frases: “- Há quem dele se queixe? - Não fez em sua vida o que faz um homem forte e valente?” O corpo era enterrado, em um “buraco fundo e redondo”, portando os melhores ornamentos do falecido e, se ele

possuísse, um capote, camisa, chapéu ou qualquer outra valorizada peça européia. Agua, farinha, carne, frutas e outros alimentos eram depositados na cova, próximos de sua mão direita. As armas, machados, foices, etc., ao contrário, eram

acomodadas à sua esquerda. Ao lado, fazia-se um outro buraco onde se acendia um “fogo com lenha bem seca”. A sepultura era coberta, pouco a pouco, após os familiares, parentes e amigos despedirem-se do falecido. Nesta ocasião, enviavam-se recados e presentes para outros trespassados e, entre outras recomendações, insistia-se para que o falecido não se perdesse nem se esquecesse de suas armas e ferramentas no caminho que levava às “montanhas, além dos Andes”,

onde julgavam que iam “todos os mortos”. Os parentes próximos costumavam ir chorar nas sepulturas dos falecidos e espalhar grãos de milho e outros alimentos sobre os túmulos. (EVREUX, 1927: 167.) Entre estes e outros hábitos americanos que

impressionaram profundamente os eu ropeus, encon-

ET

lrava-se o estranho costume dos br asis de banharemse todas as manhãs e, se possível » di versas vezes ao

dia. (COREAL, 1722: 190.) O que os lusitanos criticavam com severidade, pois acredita vam fazer mal à saúde. O padre Fernão Cardim, escrevia no último quartel do Quinhentos, espantado: “[. ..] os homens,

ge e

e

ii

mulheres e meninos, em se levantando, se vão lav ar

e nadar aos rios, por mais frio que faça: as mulher es

nadam e remam como homens, e quando parem, algumas se vão lavar aos rios”. (CARDIM, 1978: 188 .) Os recém-nascidos eram, também, imediatament e lavados no mar, rios ou lagos. (TH EVET, 1953: 49.)

55

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Capítulo 8 ==

Sodomitas e luxuriosos

A liberdade sexual relativa das comunidades tupinambás maravilhava europeus que podiam co-

nhecer o desterro, a prisão, a tortura e até mesmo a

fogueira se descobertos adúlteros, incestuosos ou adeptos de hábitos sexuais heterodoxos, tais como a sodomia, o onanismo, o bestialismo. Os relatos quinhentistas europeus são extremamente severos ao descreverem os costumes sexuais americanos. Como vimos, ainda que a grande maioria dos brasis fosse monógama, alguns possuíam duas ou mais mulhe-

res. (BRANDÃO, 1977: 252.) Se acreditarmos no ale-

mão Hans Staden, que viveu nove meses e meio entre Os tamoios, alguns principais simplesmente exageravam. Eles teriam entre “treze e quatorze” esposas. (STADEN, 1974: 171.) Da puberdade ao casamento, as jovens praticavam uma ampla liberdade sexual. Para o cosmógrafo André Thevet, raramente uma tupinambá chegava ao casamento sem ser “provada”. O calvinista Jean de Léry contava perplexo que “os intérpretes normandos abusavam das raparigas” mas que, “nem por isso, elas ficavam difamadas”. Também lembrava que, após casarem, elas “procuravam não mais claudicar”. E com razão. As esposas “infiéis” podiam ser repudiadas, açoitadas, escravizadas ou mortas pelos maridos. Uma mulher com muitos parentes eventualmen-

te escapava do casti so As tupinambás adúlteras eram chamadas de “patakeres” - prostitutas. Segundo o sacerdote d' Abbeville, o matrimônio dissolvia-se pela simples decisão de um dos cônjuges. (THEVET, 1953: 158; LERY, 1961: 202; ABBEVILLE, 1975: 223: EVREUX, 1929: 102.). Para o francês André Thevet, o homem repudi-

ava a mulher por adultério, esterilidade e outros motivos. A mulher também poderia fazê-lo, caso fosse “maltratada. Entretanto, após o divórcio, ela dificilmente conseguiria um outro marido. D”Abbeville contava que, “se a mulher se sente farta do marido e lhe diz não mais querê-lo ou desejar outro, responde-lhe o esposo sem se pertubar: ecoain, isto é, “vá para onde quiser”. (THEVET, 1978: 137-8; 1983: 92; 1953: 139; ABBEVILLE, 1975: 223.) Haveria esposos menos liberais. Em 1554, o irmão José de Anchieta (1534-1 597) relatava um divórcio frustrado: “Regressando da guerra, não encontran do [...] a mulher em casa e ouvindo dizer que ela o tinha deixado, aceso no maior furor veio à Igreja [... Je tratou-a indignamente, puxando-a para fora pelos cabelos [...] e dando-lhe grandes punhadas e bofetadas”. (ANCHIETA,

1984: 12.) Em

1557, em São Vicente,

uma americana, cedida pelo irmão a um aldeão Já casado, por negar-se a com ele conviver - devido às re57

criminações dos jesuítas - foi “tosqueada”, “queimada” e maltratada pelo irritado quase-esposo. (LEITE, 1957: 336.) Gabriel Soares de Sousa teceu horrorizadas considerações sobre a moralidade tupinambá em Notícia do Brasil: “São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam; os [...] [adolescentes] têm conta [fornicam] com mulheres, e bem mulheres, porque as velhas, já desestimadas dos que são homens, granjeiam estes meninos [E]: E

este gentio tão luxurioso que poucas vezes tem TeSpeito às irmãs e tias, e porque este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas [...]. E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades [ess

(SOUSA, 1971: 308.) Outros depoimentos confirmam

Igualmente o desrespeito, semiclandestino, sem maio-

res consequências

sociais, das interdições de

intercurso sexual entre parentes consangiiíneos ou classificatórios: pais, irmãos, sobrinhos, tios.

(FERNANDES, 1948: 142.)

CASTIDADE ETERNA

A sociedade medieval portuguesa era profun-

damente homofóbica. O Livro V, Título XVII, das Ordenações afonsinas, afirmava ser a “sodomia” o “mais torpe, sujo e desonesto” entre todos os pecados humanos. Ele ofenderia ao “Criador” e à própria “natureza”. Tal seria a sua gravidade que, apenas por se falar nele, o ar se corromperia e perderia a “sua natural virtude”. A primeira copilação ofici-

al de leis e fontes jurídicas portuguesas, efetuada durante o reino de dom Afonso V, ordenava que o sodomita fosse “queimado e feito, por fogo, em pó,

por tal que já nunca de seu corpo e sepultura possa

ser ouvida memória”. (ORDENAÇÕES AFONSINAS, 1984: 54; SERRÃO, 1987: 515.) Compreende-se por que a tranquilidade relativa com que os brasis aceitavam a homossexualidade masculina horrorizava os portugueses.

O senhor-de-engenho Gabriel Soares anotou indignado em sua Notícia do Brasil: “[...] são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta, e o que serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza [es E, horror dos horrores, para “seguirem seus apeti-

tes”, utilizavam os pêlos urticantes da lagarta- de-fogo para aumentarem o volume do pênis. (SOUSA, 1971: 308.) Segundo Américo Vespúcio, que também se entregou a reflexões moralistas ao comentar tal prá-

tica, a inchação do membro genital seria uma exigência de esposas tupinambás “libidinosas”.

(VESPÚCIO, 1984: 94.) O cosmógrafo e franciscano

francês André as tupinambás. “Juxuriosas”. misturadas à

Thevet tinha a mesma opinião sobre No mundo, não haveria mulheres mais Elas conheceriam certas ervas que, comida, obrigariam os maridos a

procurá-las, sob pena de sofrerem fortes “dores em suas partes vergonhosas”. (THEVET, 1953: 216.)

Para o sociólogo Florestan Fernandes, a homossexualidade masculina tupinambá “seria uma conse-

quência das dificuldades encontradas pelos jovens em obter parceiras sexuais antes do reconhecimento social da maturidade”. (FERNANDES, 1970: 228: 1948:

136.) Para Jean de Léry, a pederastia “passiva” seria desabonadora, pois afirmava que os tupinambás se tratavam de tivira, isto é, “sodomita”, quando se insultavam. Segundo André Thevet, o esposo Interrompia o relacionamento sexual com a mulher grávida, pois temia que, se fosse um filho homem, ele se transformasse em um tivir. No seu breve léxico tupi-guarani, o padre Yves d'Evreux traduzia tevire como nádegas. (LERY, 1961: 202; THEVET, 1953: 136.) Para os europeus, era motivo de espanto que os americanos assumissem tendencialmente papéis sociais segundo suas inclinações sexuais profundas. Em Tratado da Província do Brasil, de 1572, Magalhães de Gândavo noticiava: “Algumas índias [...] juram e prometem castidade e assim não casam nem conhecem homem algum [...]. Estas deixam todo exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios [...] e vão à guerra [...] andam sempre na compa-

58 s ã

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nhia dos homens c cada uma tem mulher que as serve, e que lhe faz de comer como se fossem casadas”. (GÂNDAVO, 1965: 215.) Em Diálogos das grandezas do Brasil, de 16] 8, Ambrósio Brandão também apresentou o lesbianismo como decorrência do amor feminino pela “castidade”: “[...] há muitas donzelas [...] que amam sumamente a castidade, [...] totalmente fogem de ter ajuntamento viril, pretendendo de se conservarem virgens, e para que o possam melhor fazer, se exercitam no arco e na flecha, [...]”. (BRANDÃO, 1977: 266.) Em 1551, jesuíta Pero Correa sugeria que tal fenômeno devia-se à difusão do “pecado contra natureza” entre os homens. É avisava que, àquelas guerreiras, a “maior injúria que lhes” podiam fazer ecra

“chamá-las de mulher”, correndo quem o fizesse o'

“risco de lhe tirarem [...] flechadas”. (NAVARRO, 19868: 123.) Estas narrativas ilustram o relativo desconhecimento medieval e renascentista masculino da homossexualidade feminina. (BROWN, 1987: 8.) As narrativas preconceituosas quinhentistas sobre a nudez e a sexualidade brasílicas não nos devem iludir. Sobretudo nas décadas seguintes ao achamento do Brasil, tais hábitos exerceram profunda atração sobre os europeus radicados no Novo Mundo. Portugueses e franceses estabeleceram-se entre as populações tupinambás e aderiram gostosamente aos costumes da terra. Moravam nas residências comunitárias, fumavam, andavam nus, bebiam cauim, furavam os lábios, copulavam sem travas, mantinham relações poligâmicas. (LERY, 1961: 121;

THEVET, 1953: 58; NÓBREGA, 1988: 79.) A pres-

são da liberdade sexual relativa americana sobre as concepções sexofóbicas européias teria contribuído à formação de arraigadas crenças tais como a que “não se pecaria (carnalmente) ao sul do Equador (Ultra equinoxialem non peccatur). Em 1549, apenas chegado à capitania da Baía, o padre Manoel da Nóbrega escreveu, horrorizado: “[...] e tem-se cá que o vício da carne [...] não é pecado, quando não é notavelmente grande [...)”.

(NÓBREGA, 1988: 83.) Tal seria a libertinagem dos

colonos que o sacerdote registraria, dez anos mais tarde: “[...] se contarem todas as casas d'esta terra, todas acharão cheias de pecados mortais, cheias de

adultérios, fornicações, incestos, e abominações, em tanto que me deito a cuidar se tem Cristo algum limpo nesta terra [...)”. (NÓBREGA, 1988: 194.) E não exageraria o jesuíta. Os colonos formavam nutridos haréns. O irmão Pero Corrca, que chegara ao Brasil, em 1534, descreveu o desbunde colonial, talvez exagerando nas cores: “Era costume antigo [...] os homens casados, que tinham 20 ou mais escravas, tê-las todas por mulheres [...). E tinham eles posto tal costume em suas casas, que as próprias mulheres [...] lhes levavam as concubinas à cama [...]”. (LEITE, 1956: 438.) Para o colono, como para um tupinambá, o exercício da poligamia permitia que controlasse, domesticamente, a força de trabalho de diversas mulheres. Em fins do século 16, quando da primeira visitação da Inquisição ao Brasil (1593-5), foram comuns as denúncias da “heresia” de que, “não era pecado mortal dormir carnalmente, um homem solteiro, com uma mulher solteira”, sobretudo quando a rapariga era paga por seus serviços! (MENDONÇA, 1929: 73, 107, et passim) VIVENDO COMO BRASIS

Seria forte a atração do paraíso tropical. Co-

nhecemos o regimento da nau Bretoa, de Fernão

de Loronha e associados, que aportou em Cabo Frio, em 16 de maio de 1511, em busca do pau tintorial. Devido a ele, sabemos que os trinta tripulantes não podiam abandonar a ilhota onde se encontrava a feitoria e irem a “terra firme”. Isto para que “nenhum deles” ficasse no Brasil, “como algumas vezes já” o haviam feito. (HCPB, II: 343.) Mesmo quando a colonização já era uma realidade, europeus abandonavam temporária ou permanentemente a “civilização” para irem viver, entre os brasis, como brasis. Tão difundidas eram estas práticas que a administração lu-

sitana punia-as com dureza. Na África, sobretudo nos

59

Par

primeiros tempos das descobertas, aventureiros por

tugueses fugiam para irem viver entre os nativos. Em Relações raciais no império colonial por-

tuguês, CR. Boxer fala de portugueses que se africanizaram ao longo das regiões que iam do rio Senegal

ao cabo das Palmas: “Os que se ternavam completamente nativos, despindo as suas roupas, tatuando os corpos, e falando as línguas locais, e até mesmo associando-se a ritos e cerimônias fetichistas, eram chamados de tangos-maos ou lançados . Através destes portugueses, segundo o historiador inglês, a

língua portuguesa tornou-se e permaneceu durante

séculos a língua franca da região costeira da Alta Guiné”. Alguns destes europeus casaram-se com membros das famílias reinantes africanas e atuaram estreitamente na intermediação do comércio da costa. (BOXER, 1977: 15.) Gabriel Soares de Sousa refere-se a um castelhano que habitava com os potiguaras e, como eles, havia furado os beiços. (SOUSA, s.d.: II, 192.) Conta o sacerdote francês Claude d' Abbeville que, quando a sua expedição chegou ao Maranhão, em 1612, aqueles que não quiseram “ficar residindo no Forte, conforme combinado no início, foi-lhes permitido retirar-se, como o fizeram, em grupos, de dez ou doze,

e residir nas aldeias, onde [...] [quisessem], hospedando-se com os índios que os haviam convidado”. O mesmo sacerdote fala de patrícios que ha-

viam convivido de dezoito a vinte anos com os brasis. (ABBEVILLE, 1975: 58, 228.) Em 1551, Manoel da Nóbrega lamentava: “Nesta Capitania de Pernambuco [...]. Andam muitos filhos dos cristãos pelo sertão

perdidos entre os gentios, e sendo cristãos, vivem em

seus bestiais costumes”. (NÓBREGA, 1988: 115.)

Os documentos da primeira visitação do Santo Ofício ao Brasil, de 1591, registram a confissão de

Simão Luiz, francês de 35 anos, “viúvo e morador no Perabussu”. Ele contou que, “quando tinha 10 anos, no ano de 1566, veio de grumete num navio à nossa costa para buscar pau-brasil, e no tempo da partida

da nau, preferiu esconder-se e ficar no rio São Francisco [Sergipe], ficando dois anos em terra com os 60

índios “usando todas as gentilidades com os ditos gentios”, de que modo até os 12 anos não teve a lei de Jesus Cristo”. (MOTT,

1989:

15.) O documento

não detalha o que teria feito o franco-tupinambá nos dois anos de perdição americana ... A historiografia tradicional brasileira registrou e folclorizou a vida de João Ramalho e Diogo Álvares, o “Caramuru”. Nos primeiros anos do Quinhentos, os dois portugueses estabeleceram-se na costa brasílica, entre os americanos, onde viveram longos anos. Casados com filhas dos principais da região,

tiveram grande descendência e facilitaram a fixação e conquista portuguesa, respectivamente, da capitania de São Vicente e da Baía. Eles foram apenas dois

entre um número indeterminado de europeus que viveu, no Brasil, entre os tupinambás como tupinambás.

De João Ramalho, o padre Manoel da Nóbrega dizia que ele e seus filhos viviam “andando nus como os

[...] índios”. (NÓBREGA, 1955: 175.)

Em junho de 1553, Tomé de Sousa, primeiro governador geral do Brasil, escrevia ao rei sobre o mesmo João Ramalho: “Tem tantos filhos e netos, bisnetos [...] que o não ouso dizer a Vossa Alteza [... JP (VARNHAGEN, 1978: VI, 100.) O padre Manoel da Nóbrega, em carta do mesmo mês e ano, relatava: “Nesta terra está um João Ramalho. É o mais antigo dela e toda a sua vida e a dos seus filhos é conforme à dos índios e é uma petra scandali para nós, porque a sua vida é principal estorvo para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito apatentado com os índios. Têm muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas, tanto

o pai como os filhos. Vão à guerra com os índios e as

suas festas são de índios [...]”. (NÓBREGA, 1955: 174.)

Enquanto dominou a troca de manufaturados por produtos americanos, a Coroa lusitana considerou com simpatia os escassos europeus radicados no litoral. Por necessidade e impotência, fazia vista grossa aos hábitos pouco cristãos dos súditos desgarrados. Desde que não compactuassem com os franceses, é claro. Semi-americanizados, falando fluentemente o tupi-guarani, aparentados por casamento aos principais da re-

gião, eles facilitavam as atividades comerc iais inter-

mitentes. Com o início da colonização, os lançad os” americanos começaram a ser vistos com des confian-

ça. De aliados, quando das trocas realizadas pelos guropeus com as comunidades da costa, po deriam tornar-se um sério empecilho aos planos col onizadores da Coroa.

QUATRO

ESPOSAS

Em fins do terceiro decênio do Quin hentos, dom João III (1521-57) recebia informações pouco clogiosas sobre os portugueses estabelecidos na “terra do brasil”: “[...] homens que estimam tão pouco o

serviço de vossa alteza e suas honras que se contentam com terem quatro índias por mancebas e comerem dos mantimentos da terra [...]”. (HCPB, III: 59.) À administração sentia-os demasiadamente conquistados pelo modo americano de vida. Temia-se talvez que optassem pelos nativos e os liderassem quando

dos choques decorrentes da ocupação territorial da costa e da escravização dos povos nativos. À conquista do Brasil pressupunha também o domínio ideológico dos povos das regiões coloniza-

das pela Coroa lusitana. Havia que provar - pelo convencimento e pela força - a superioridade do modo oficial português de ser. Era necessário convencer as populações nativas e os recém-chegados da inferioridade e do “bestialismo” dos hábitos americanos. A opção de europeus pela cultura material e social tupinambá causava tensões insustentáveis na férrea camisa-de-força vivencial em que as elites civis e religiosas ibéricas enquadravam as classes subalter-

nas - metropolitanas e coloniais.

Ao desembarcar na baía de Todos os Santos, o

governador-geral Tomé de Sousa contou com o apoio de Caramuru, que fora avisado da chegada. Conta a tradição que Diogo Álvares, por voltas de 1510, náufrago de um navio de brasileiros, fora aprisonado pelos tupinambás da margem ocidental e, ao contrário de seus companheiros, livrara-se de ser por eles

devorado. Aparentando-se por casamento com principais da região, teria trabalhado para os brasileiros franceses que visitavam a baía. Possivelmente em 1524-26, visitaria a França com uma esposa ameri-

cana. Diogo Álvares optou, sem vacilações, pelo partido europeu e português e, por tê-lo feito, foi agraciado c recompensado pela Coroa. (AZEVEDO, 1955: 80; SILVA, 1919: 178.) Outros europeus - como João Ramalho - resistiram em maior ou menor grau à forcada reintegração determinada pelas autoridades. Os Jesuítas foram um dos principais agentes do processo de desaculturação dos europeus americanizados e da luta pela imposição da hegemonia ideológica ocidental no litoral brasílico. Não deixa de comover a quase ingenuidade com que o jesuíta Manoel da Nóbrega se esforçava em provar a superioridade da cultura e dos costumes europeus. O valente jesuíta, de saúde frágil, fora conquistado pelo hábito masculino tupinambá de fumar. Gabriel Soares deixou um registro do exótico costume: “Esta cangoeira (flauta) de fumo é um canudo que se faz de uma folha de palma seca, e tem dentro três e quatro folhas secas da erva-santa, [...] [os brasis] atam pela banda mais apertada, com um fio, onde estão as folhas [...], e acendem [...] pela parte das folhas [...], e como tem brasa, a metem na boca, e sorvem para dentro o fumo, que logo lhe entra pelas cachages (ventas), muito grosso, e pelas goelas, e sai-lhe pelas ventas fora, com muita fúria [...)”. (SOUSA, s.d.: II, 269.) No ano seguinte à sua chegada ao Brasil, o Jesuíta Manoel da Nóbrega registrava, em Porto Seguro: “As comidas dum modo geral são difíceis de digerir, mas Deus remediou a isto com uma erva, cujo fumo ajuda muito à digestão e a outros males corporais e a purgar (limpar) a fleuma do estômago”. Segundo teorias médico-fisiológicas da época, a fleuma era um dos quatro humores corporais. O sacerdote acreditava ter necessidade da “erva”, por causa da

“umidade e do meu catarro”. Porém, afirmava, zeloSo, que ele e os outros membros da Companhia

“abstinham-se” de tal prática, para não se “confor-

61

marem [se identificarem] com os infiéis, que muito à | apreciam”. (NÓBREGA, 1955: 83.) Mais tarde, os jesuítas foram obrigados a abandonar estas suscetibilidades, conscientes da necessidade de acomodarem-se à cultura da terra para Jevarem os brasis ao cristianismo. Discursavam na língua tupi: pregavam, de madrugada, por entre às malokas,

batendo nos peitos e nas coxas; dançavam, saltavam, cantavam como verdadeiros tupinambás. O primeiro

bispo do Brasil, Pero Fernandes Sardinha (1552-56),

completamente despreocupado com a eva ngelização dos nativos, opôs-se com afinco à “americanização formal do cristianismo. Segundo ele, os tupinambás se vangloriavam de seus costumes “pois os padres

[...] tocavam seus instrumentos e cantavam à mancei-

ra” nativa. (LEITE, 1956: 359, 407.) BUSCANDO OS PECADORES

A correspondência jesuítica registra o esforço hercúleo dos sacerdotes em, apenas chegados, localizar, convencer e trazer de volta à “civilização” os europeus integrados às comunidades nativas. (NAVARRO, 1988: 87, 93, 120, 130; NÓBREGA, 1955: 87, 175.) Em agosto de 1550, de São Vicente, o padre Leonardo Nunes (? - 1554) escrevia: “[...] me disseram que no campo, 14 ou 15 léguas [cerca 90 km] daqui, entre os índios, estava alguma gente cristã derramada e passava-se o ano sem ouvirem missa e sem confessarem e andavam em uma vida de selvagens”. Apesar da distância, ele arranjou-se para visitá-los e convencê-los de, no mínimo, erguer “uma ermida” e buscar “algum padre que lhes dissesse missa e os confessasse”?. (NAVARRO, 1988: 87.) Os lusitanos americanizados eram praticamente arrastados de volta ao convívio colonial. Em junho de 1551, da mesma capitania, o mesmo Leonardo Nunes relatava que, no mês anterior, fora “entre os índios buscar um homem branco que andava entre eles, e duas filhas que tinham nascido lá [...]”. Tal seria a resistência do homem a retornar aos hábitos,

62

práticas e crenças cristãs, que o sacerdote acreditava que perdera o “juízo”. O enérgico jesuíta afirmava sobre o luso-tupinambá: “[...] não [...] consente que os irmãos lhe falem de Nosso Senhor, e não entra na igreja, senão pela força, nem [...] (conseguimos que)

ele se pusesse de joelhos, diante do Santíssimo Sacramento”. (NAVARRO, 1988: 93.) Em 1554, de São Vicente, o irmão José de

Anchieta, que chegara no Brasil no ano anterior, escrevia que João Ramalho e seus filhos nascidos de mães nativas disputavam franca e abertamente aos sacerdotes a liderança dos brasis: “[...] não cessam nunca de estforçar-se [...] por lançar à terra a obra que procuramos edificar [...], pois exortam repetida e cri-

minosamente os catecúmenos a apartarem-se de nós e a crerem neles, que usam arco e flecha como os indios [...]”. O resultado era que muitos nativos voltavam aos “antigos costumes”

e se apartavam

dos

jesuítas “para poderem viver mais livremente”. (ANCHIETA,

1984: 77.) O que, em verdade, consti-

tuía um delito contra a religião e o Estado. A fidelidade de um europeu ou a de seu descendente a hábitos e costumes tupinambás tornava-o sujeito às duras penalidades que golpeavam os heréticos. Naquele então, a Igreja enfrentava a aberta contestação da Reforma e do islamismo. Ao menos em teoria, o longo braço da Inquisição ameaçava estes homens enamorados do Novo Mundo e de sua civilização. [ão profundo seria o processo de aculturação, que muitos não compreenderiam mais o perigo em que incorriam. Referindo-se a um filho do insubordinado João Ramalho com uma americana, que sacrificara um cativo segundo o rito tupinambá, José de Anchieta relatava: “Outro irmão [...] advertindo-lhe de que tivesse cuidado com a Santa Inquisição, por seguir alguns costumes gentílicos, (ele) respondeu que vararia com flechas duas inquisições”. (ANCHIETA, 1984: 77.) Pouca idéia teria sobre o exótico e perigoso animal europeu ... Antes de uma real implantação territorial, diversos aventureiros voltaram à Europa ou morreram no Brasil, após ali viverem longos anos. Eles foram os prin-

cipais informantes de cronistas que - como Léry e Thevet - permaneceram apenas semanas ou meses entre os tupinambás ou, até mesmo, jamais estiveram no Brasil

-como Montaigne c Corcal. Para escrever seu ensaio Os canibais (Des cannibales, cerca 1579 , Montaigne apoiou-se na informação fornecida por um aventu reiro francês que vivera na baía de Guanabara, na colô nia de

Villegaignon (1555-60), de “dez a doze anos”.

(MONTAIGNE, 1965: 202.) O cosmógrafo André Thevet

informou-se com “um intérprete francês” que vivera “dez anos entre os selvagens”. (THEVET, 1978: 100: 1983: 51.) Com as primeiras levas colonizadoras, esta estranha, exótica e pouco estudada população foi reabsorvida pelos recém-vindos.

Falta muito para conhecermos o real papel dos americanizados” no primeiro século da história brasileira. O certo é que devemos a eles grande parte da rica informação histórica, antropológica e etnográfica de que dispomos sobre as comunidades quinhentistas do litoral. A influência destes escritos não foi apenas científica. No século 16, algumas obras desta literatura alcançaram um imenso sucesso de público. Não poucas descrições de escritores como Vespúcio, Léry, Staden e Thevet maravilharam o leitor europeu quinhentista c terminaram, para o bem e para o mal, por caminhos diretos e tortuosos, impregnando fortemente os imaginários europeus moderno e contemporânco sobre o Novo Mundo.

Capítulo 9 E==

O mais delicioso prato tupinambá

A nudez inocente era um importante tema bí-

blico. A liberdade sexual correspondia a anseios individuais profundos e a práticas populares européias recalcadas e reprimidas. Foi o difundido hábito antropofágico tupinambá que mais profundamente

impressionou os europeus. A literatura mítica e histórica da antiguidade referia-se amiúde à antropofagia. Na Odisséia, Ulisses defronta e vence Polifermo, o selvagem gigante canibal. Heródoto (cerca 490-430 a.C.), em Os nove livros da história, descreveu os

andófagos como um povo feroz, nômade, sem justiça e lei. (GIUCCI, 1992: 28.) Na Idade Média, cria-se

que as bruxas, “com arte diabólica” comessem a carne e bebessem o sangue das crianças, “fazendo com que” morressem “lentamente”. (GINZBURG, 1990: 97.) Para a Europa renascentista, o canibalismo era um fenômeno social conhecido apenas na literatura histórica e de viagens (sir John of Mondeville,

Odorico de Pordenone, frei Jordão, etc.) ou associa-

do a reais ou imaginários rituais de magia e satanismo. Durante a longa exploração da costa ocidental africana, os navegadores portugueses não haviam encontrado nada semelhante, Ao visitarem as primeiras aldeias tupinambás, eles defrontaram membros humanos sendo preparados nos fumeiros, pedaços de cadáveres

armazenados nas moradias, cativos vivos destinados a

serem consumidos em banquetes futuros...

Estarrecido e horrorizado, Américo Vespúcio escreveu sobre sua visita, em 1501-2, a uma aldeia

tupinambá: “[...] vi pelas casas a humana carne temperada c às traves suspensa, como entre nós é usança o toucinho atar e a carne de porco”. (VESPÚCIO, 1984: 94.) O francês Jean de Léry, que visitou a baía de Guanabara, em 1557, anotou, numa neutra linguagem descritiva: “[...] esses moquem [...] lhes servem de salgadeira, aparador e guarda-comida; e entrando em suas aldeias, vemo-los sempre carregados, não só de veações ou peixes mas ainda de coxas, braços, pernas e postas de carne humana [...)”. (LERY, 1961: 125.) Em 1549, ao chegarem ao Brasil, os jesuítas pre-

senciaram cenas que materializavam o imaginário medieval sobre tétricas festanças sabáticas e demoníacas. Em março de 1550, da capitania da Baía, o padre João de Azpilcueta Navarro (? - 1557) escrevia estarrecido: “[...] indo eu visitar uma aldeia, vi que [...] cozinhavam em um grande caldeirão, [...] tiravam fora uma porção de braços, pés e cabeças de gente, que era cousa medonha de ver-se, e seis ou sete mulheres [...], dançavam ao redor, espivitando o fogo, que pareciam demônio do Inferno.” (NAVARRO, 1988: 78.) Combater e expulsar o demônio do Novo Mundo perdia qualquer sentido metafórico. 65

No ano anterior, na mesma baía de Todos os

mos. (EVREUA,

1929:

138.) Pedaços do prisioneiro

Santos. o mesmo jesuíta encontrara pelas casas de

podiam ser defumados para serem consumidos mais

saber que haviam matado uma criança e que se préparavam para devorá-la, tentara interromper o fes-

bás do litoral: “[...] achamos nas suas casas carne humana, defumada, e muita [...]”. (SOUSA, s.d., II: cap.

uma aldeia “pés, mãos e cabeças de homens”. É, ao tim: “E entrando [...] (na residência), achei que à €stavam

cozendo

para

a comer

e à cabeça

estava

tarde. Américo Vespúcio escrevera sobre Os tupinamCLXXIV; VESPÚCIO, 1984: 72.)

Recém-nascidos, crianças, jovens, adultos e ve-

dependurada em um pau”. Imbuído de fervor civilizatório, o jesuíta começou a condenar o ato “tão abominável e contra a natureza”. Incontinenti, um brasil respondeu-lhe irritado que seria o próximo prato, se perseverasse nos comentários desabonadores sobre a apreciada carne humana. (NAVARRO, 1988: 98-9; LEITE, 1956: 282.) Era grande a homogeneidade cultural das comunidades tupi-guaranis da costa e elas viviam em um ininterrupto estado de beligerância interaldeã. Sacrificar e devorar Os inimigos aprisionados, no meio do terreiro, durante uma concorrida, complexa e demorada cerimônia, eram importantes instituições sociais tupinambás. Os cativos eram aprisionados;

lhos - de ambos os sexos - participavam ou cram de-

dos durante animada festa precedida por forte ingestão de bebidas fermentadas. Convidados de outras aldeias venciam grandes distâncias para partici-

mesmo a massa encefálica era recusada: “[...] lhe [dão]

vorados durante o festim. Quando os comensais eram muitos e as vitualhas poucas, preparava-se uma abundante sopa, nem que fosse com apenas alguns dedos, para que todos provassem o pitéu. (METRAUX, 1950: 226-8.) Em

1610, o francês François de Pyrard, de

Leval, esteve no Brasil, dois meses. Recebeu como resposta de alguns brasis recém-cristianizados que as “pessoas brancas” seriam as mais deliciosas e que, de forma geral, da carne dos prisioneiros, “o mais delicado eram os pés e as mãos”. (PYRARD, 1619: 338.)

guardados; engordados; vigiados; executados; despedaçados; defumados, assados ou cozidos; devora-

Nada se desperdiçava da vítima. Segundo Jean de Léry, os tupinambás devoravam “tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até o nariz e cabeça”, Do banquete só escapariam os miolos. (LERY, 1961: 180.) Para o lusitano Magalhães de Gândavo, nem

parem do festim. (METRAUX, THEVMET; 1953: 197.)

uma grande pancada na cabeça [...). [...] uma índia velha, com um cabaço na mão, [...] acode muito depressa a metê-lo na cabeça [...] para tomar os miolos e o sangue: tudo, enfim, cozem e assam, e não fica dele

1950:

226-80;

VELHAS GULOSAS

Segundo o senhor-de-engenho Gabriel Soares de Sousa, em Notícia do Brasil, de 1587, após executado o cativo, as velhas da aldeia “o despedaçam logo [...] e tiram-lhe as tripas e fressuras [pulmões, fígado, coração, etc.| que, mal lavadas, cozem e assam para comer; e reparte-se a carne [...)”. O capuchinho francês Yves dº Evreux relatou que elas faziam “mingau” com a “oordura” dos sacrificados e que preparavam, “em grandes panelas de barro”, com “farinha (de mandioca) e couves”, as “tripas” e os “intestinos” dos mes66

cousa que não comam?. (GÂNDAVO, 1965: 201.) O

irmão jesuíta José de Anchieta reafirmou este aproveitamento meticuloso. Segundo ele, comiam-se as carnes dos sacrificados de tal modo que não se perdia “sequer a menor unha”, (LEITE, 1957: 113.) O franciscano francês Claude d” Abbeville era peremptório: “Nada perdem, em suma, e têm o cuidado de virar constantemente os pedaços para bem assá-los; e aproveitam até a gordura que escorre pelas varas e lambem a que se coagula nas forquilhas”. (ABBEVILLE, 1975: 233.) Alguns pedaços do corpo humano eram sobremaneira apreciados, talvez devido a pretensas virtudes mágicas ou ao melhor gosto. O etnólogo Alfred Métraux informa-nos: “[...] os

homens coziam as entranhas, devorando-as; as mulheres lambiam o caldo. Lingua, miolos e certas par-

tes do corpo estavam reservadas aos jovens; para Os

adultos ficava a pele do crânio e para as mulheres os órgãos sexuais. Porções havia consideradas nobres;

eram dadas aos hóspedes de honra [...)”. (METRAUX, 1950: 263.)

CURIOSIDADE MÓRBIDA

Ao contrário do que afirma Jean-Paul Duviols, em seu interessante livro L'Amérique espagnole vue et revée, é abundante a documentação coeva de primeira mão sobre os banquetes canibalescos. (DUVIOLS, 1985: 105.) Praticamente nenhum escrito sobre o Brasil quinhentista dispensou descrições minuciosas e coincidentes sobre as práticas antropofágicas americanas que tão profundamente impressionaram os europeus. E compreensível a concordância destas narrativas. Centenas de europeus viveram entre OS americanos €e presenciaram inúmeras cerimônias canibalescas. Em 1553-54, Hans Staden, mercenário alemão ao

serviço dos portugueses, como vimos, viveu, cativo, nove meses e meio, entre os tamoios. Não foi devorado

pois conseguiu fazer-se passar por “pajé” (paygi). Seu livro, Duas viagens ao Brasil, publicado em 1557, e o de Jean de Léry, Viagem ao Brasil, de 1578 - ricos de sugestivas gravuras sobre os festins tupinambás - conheceram um grande sucesso de público durante a vida dos autores. Apenas o livro de Staden teve mais de cinquenta edições - alemão, holandês, latim, francês, inglês e português. (STADEN, 1974: IX.) Os livros de Staden, de Jean de Léry, do cosmógrafo André Thevet, etc., referem-se longamente aos banquetes americanos. Os bravos jesuítas, em mais de uma ocasião, expondo-se ao martírio, assistiram e tentaram impedir que se perpetrassem práticas antropofágicas. E, quando o não podiam fazer, esforçavam-se para batizar os prisioneiros, ao menos. Tal ação encontrava forte oposição da parte dos

aldeões. Para eles, o batismo “estragava” ou “tirava

o gosto” da carne. Também os jesuítas deixaram uma rica informação sobre este domínio. (LEITE, 1957: 67, 248; 1956: 518.) A antropofagia chocava-se e choca-se com a talvez mais ancestral, profunda e difundida interdição social. Foi e tem sido tortuosa e angustiada a apreciação “civilizada” das práticas canibalescas tupi-guaranis e outras. Não é aqui o local para a discussão das razões últimas do visceral rechaço da cha-

mada cultura ocidental e, sobretudo, da Antropologia, ao canibalismo. Entretanto, é límpido e claro o

esforço geral contemporâneo em minimizar a difusão € o sentido destes atos. Antropólogos, sociólogos e etnólogos lembram o caráter eminentemente cerimonial do costume. Para eles, os americanos não praticariam a antropofagia como recurso ou apoio alimentar - “canibalismo real ou de penúria” -, mas como ritual de fundo guerreiro e “mágico”. O sociólogo Florestan Fernandes, que mais detida e eruditamente estudou os tupinambás, em A função social da guerra na sociedade tupinambá, é cabal: “[...] a documentação disponível não deixa nenhuma dúvida a respeito do fim do aprisionamento de inimigos: ele não estava subordinado a motivos fisiológicos, à necessidade de aprovisionamento regular de carne

humana.

destinada

à alimentação”.

(FERNANDES, 1970: 47; 1948: 108.) A antropóloga

Isabelle Combês escreveu um livro para desenvolver a mesma tese - La Tragédie cannibale: chez les anciens Tupi-Guarani. (Paris: PUF, 1992.) Alguns estudiosos, levados talvez por uma simpatia piedosa com estas sociedades, chegam ao extremo de negar as abundantes evidencias documentais e a historicidade das práticas antropofágicas brasílicas. (BALDUS, 1954: 157.) CARNE INDIGESTA

Baseando-se em depoimentos circunstanciais de brasis que se defendiam das violentas críticas dos sacerdotes europeus às práticas canibalescas, e des67

prezando as abudantes e explícitas referências opos-

tas, Nicole Sindzingre, no verbete “canibalismo” da Encvclopaedia Universalis, afirma: “[...] os primer TOS cronistas das sociedades brasileiras contam que muitos (tupinambás) suportavam mal [a carne huma-

na] [...] e a vomitavam”. (EU, 1985: 152.) Efetiva-

mente, o capuchinho d' Abbeville afirmara não ser propriamente o prazer que levava os tupinambás a

comerem “tais petiscos, nem o apetite sensual, pois de muitos ouvi dizer que não raro a vomitam depois

de comer, por não ser o seu estômago capaz de dige-

rir a carne humana [...)”. (ABBEVILLE, 1975: 233.)

A visão do banquete ritual, guerreiro ou vindicador reproduz acriticamente as explicações/justifica-

tivas tupi-guaranis da instituição. Apoiando-se no depoimento americano, o francês Jean de Léry afirmava:

“[...] não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a

carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança [...|”. (LERY, 1961: 180.) Em 1551, o jesuíta Azpilcueta Navarro escrevia: “Eles não se comem uns aos outros senão por vingança”. (NAVARRO, 1988: 97.) Para o senhor-de-engenho Gabriel Soares, os tupinambás devoravam-se “por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódios”. (SOUSA, s.d., I: 146.) Em 1549, o padre Manoel da Nóbrega expressara a mesma opinião: “Não se guerreiam por avareza [...] mas somente por ódio e vingança, sendo tão sujeitos à ira que, se acaso se encontram no caminho, logo vão ao pau, à pedra ou à dentada, e assim comem diversos animais, como pulgas e outros como este, tudo para vingarem-se do mal que lhes causam [...)”.

(NÓBREGA, 1988: 91.) O alemão Hans Staden tam-

bém considerava que o canibalismo não tivesse base alimentar: “Fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio [...]”. (STADEN, 1974:

176.) O humanista francês Michel de Montaigne re-

gistrou, em seus Ensaios sobre o canibalismo brasílico: “Não é, como se pensa, para se alimentarem, como faziam antigamente os citas: é para exprimir uma vingança extrema”. (MONTAIGNE, 1956: 209.)

Em 1572, Pero de Magalhães de Gândavo nuancava esta visão. Propunha que praticassem a antropofagia “mais por vingança e por ódio [do] que por se fartarem”. (GANDAVO, 1965: 201.) Em 1618, o lusitano Ambrósio Brandão pensava como a maioria. Os tupinambás comeriam “carne humana?” “por

vingança”. (BRANDO, 1977: 249.) Como vimos, o jesuíta Azpilcueta Navarro era da mesma opinião. Na

capitania da Baía, ao admoestar os tupinambás pelas práticas antropoftágicas, registrou as seguintes explicações: “[...] replicam alguns que comem-na somen-

te as velhas; outros dizem que seus antepassados co-

meram e que eles devem comer carne humana. Dizem outros que é o modo usual de vingarem-se, e que os contrários praticam o mesmo a respeito deles [...)”.

(NAVARRO, 1988: 77.)

VINGANÇA MATERNA O italiano Antônio Pigafetta, companheiro de Fernão de Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo (1519-22), visitou a baía de Guanabara e registrou um mito brasílico sobre a origem da antropofagia: “Mas não é por gosto ou apetite que comem,

mas por um costume que, segundo nos disseram, começou da seguinte maneira: uma velha tinha apenas um filho, que foi morto pelos inimigos. Algum tempo depois, o matador de seu filho foi feito prisioneiro e conduzido à sua presença. Para vingar-se, a mãe arrojou-se como fera sobre ele e, a bocadas, lhe destroçou as costas. O prisioneiro teve a dupla sorte de escapar da velha e retornar para junto dos seus, aos quais mostrou as marcas das dentadas em suas costas, fazendo-os crer (talvez ele acreditasse também) que os inimigos queriam devorá-lo vivo. Para não serem menos ferozes que os outros, se determinaram a comer de verdade os inimigos que aprisionassem nos combates. Os outros fizeram a mesma coisa, € O costume vingou”. (PIGAFETTA, 1985: 58.) Aceitar as explicações tupinambás sobre as razões das práticas antropofágicas é presumir que estas

EE

comunidades tivessem consciência das causas últimas

de seus atos. Ou seja, defender que os tupinambás tivessem alcançado um nível civilizatório onde Imperasse a coincidência entre a essência e a consciência dos atos sociais. O que, como já foi assinalado, tornariam desnecessárias as próprias ciências sociais. Ou-

tras razões além das apresentadas contribuiriam à per-

petuação do hábito gastronômico. O cativo era cevado

até engordar e alcançar o “peso ideal”. (COREAL, 1722: 218.) Os prisioneiros velhos eram comidos imediatamente, para que não emagrecessem. Quando havia mais de um prisioneiro, a festa

começava pelo mais gordo e não pelo mais valente. (ABBEVILLE, 1975: 231.) E ai do infeliz que tentasse uma dieta alimentar precautória. O mercenário

Hans Staden escreveu que seu senhor lembrou-lhe que se “não comesse e não engordasse”, seria morto

“antes do tempo marcado”. (STADEN, 1974: 96.) Em 1613, no Maranhão, o principal Farinha-Grossa, ao explicar as razões guerreiras por que não eliminava imediatamente todos seus prisioneiros, ajuntou: “[...] de que serviria matá-los de uma só vez, quando não havia quem os comesse?? (EVREUX, 1929: 93.) Por-

tanto, os tupinambás se preocupavam com o aproveitamento, a qualidade e a quantidade das carnes dos prisioneiros. Era hábito dar como “esposa” ao cativo a jovem que ele escolhesse ou uma parente de seu captor. Ao prisioneiro podia igualmente ser destinada a viúva de um aldeão morto em combate. Assim se fazia “para

mo o =

efeito de que [o capturado] se desmelancolize e vá engordando [...]”. (BRANDÃO, 1977: 261; FERNANDES, 1970: 257; THEVET, 1978: 131; 1983: 86; 1953: 194.) A nova esposa servia, alimentava e coabitava

com o cativo. Após, comia-o. Um prisioneiro podia ser servido e vigiado por diversas mulheres. Uma “esposa” que, enamorada, ajudasse um cativo a fugir, se presa, podia ser devorada por seus parentes. (METRAUX ,1950: 239.) Toda a comunidade aldeã participava solidária da vigilância dos cativos. (STADEN, 1974: 81, 82, 84 et passim.) As prisioneiras não “recebiam

esposos.

(COREAL,

1722: 217.)

Entretanto, seus senhores podiam tomá-las como “esposas” temporária ou permanentemente. Se da união entre um cativo e sua guardiã nas-

cesse um rebento, o tenro recém-nascido era devorado no mesmo dia que o pai. (THEVET,1983:86; STADEN,1979:188.) O mesmo ocorria com o filho

de uma tupinambá que, aprisionada, fugisse prenhe e retornasse à sua aldeia. Os tupis consideravam que o filho descendesse do pai e nada devesse à genitora. (THEVET, 1953: 139.) Mães provavam as macias carnes dos rebentos tidos com pais cativos. Gabriel Soares de Sousa relatava: “E se esta moça emprenha do que está preso, [...] [quando] pare, cria a criança até a idade que se pode comer, [...] quando a oferece [...] ao parente mais chegado, que lho agradece muito [...]?. “Segundo parece, as filhas de tais casais eram comumente incorporadas à comunidade como esposa de um aldeão”?. (SOUSA, s.d., Il CLXXI.)

69

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Capítulo 1() EEsEs

Alimento proibido

Os tupinambás viviam em contínua expansão demográfica e territorial em um espaço geográfico muito disputado. Boa parte de seus recursos alimentares era fornecida por uma dieta que, baseada na mandioca, exigia importante complemento em proteína animal. O apoio protéico era suprido com a

caça, a pesca e a coleta. Como vimos, os animais

domésticos de corte eram desconhecidos. Em condições normais, grupos humanos horticultores, de algumas centenas de membros, que apoiam parte da subsistência na caça, na pesca e na coleta, esgotam rapidamente os recursos naturais de vastas regiões. Comunidades tupi-guaranis migravam porque se exauriam a caça e os recursos da coleta e não porque decaía a fertilidade da terra. A documentação histórica registra situações alternadas de abundância e de escassez alimentar entre as comunidades americanas. (FERNANDES, 1948: 85; KERN, 1991: 308.) Em 1552, os jesuítas visitaram a aldeia do

Grillo, próxima de Salvador. Ali, há vários dias, não

se caçava ou se pescava nada. (LEITE, 1956: 387.) No ano seguinte, o irmão Pero Correa escrevia que, nos primeiros tempos da colonização, sem as ferramentas européias, a falta de gêneros agrícolas podia ser “tanta entre” os brasis “que se morria de fome”.

(LEITE, 1956: 446.) Em certas ocasiões, o excedente alimentar brasílico era tão escasso que os jesuítas se distribuíam entre as aldeias para terem o que comer.

Mesmo assim, em São Vicente, em 1554, “na maior

das vezes”, os padres e os irmãos se sustentavam

“com folhas cozidas de mostarda”, “abóboras” e “fa-

rinha de pau”? [mandioca]. (LEITE, 1957: 125.) O ir-

mão José de Anchieta,

em

carta do mesmo

ano,

referiu-se explicitamente à carência de proteínas animais na dieta alimentar cotidiana dos tupinambás. “O principal alimento desta terra é farinha de pau [=| [...). Outra parte do mantimento fornecem-na carnes

do mato, como são macacos, gamos, certos animais

semelhantes a lagartos, pássaros e outros animais

selvagens, e ainda peixe de rio. Mas estas coisas, ra-

ras vezes. A parte principal da alimentação consiste portanto em legumes, como favas, abóboras e outros, que se podem colher da terra, folhas de mostarda e outras ervas cozidas [...].” (LEITE, 1957: 112;

ANCHIETA, 1984: 74.)

A opinião de que os povos caçadores capturem ininterrupta e abundantemente animais selvagens de porte, em todas e quaisquer situações, constitui uma visão romântica contemporânea e não científica das sociedades cinegéticas. Nesta ilusão incorre a antropóloga Isabelle Combês, ao tentar 71

impugnar a tese de uma base alimentar na antropotagia brasilica, em La Tragédie canibale:

chez les

anciens tupi-guarani: “Também seria necessario tever a validade de todas as fontes antigas, INeSSo-

táveis sobre as riquezas, a abundância de caça, de peixes,

nos territórios novamente

descobertos .

(COMBES, 1992: 212.) Boa parte dos recursos protéicos tupinambás provinha do consumo de formigas, larvas, etc. Na segunda década do Seiscentos, o capuchinho Yves d'Evreux referiu-se a situações que presenciou no Maranhão onde toda uma aldeia se alimentou com alguma farinha e uma perdiz ou “doze ou treze” pescadores tiveram que se contentar com punhados de farinha e ... um caranguejo! O mesmo sacerdote afirmava ser comum que

os tupinambás, devido à “fome”, chegassem a “comer terra”. A geofagia é motivada por casos extremos de fome específica, ou seja, pela ausência, na alimentação cotidiana, de elementos imprescindíveis ao metabolismo

humano

[sais minerais, por

exemplo]. (EVREUX, 1929: 124, 126.) A guerra não tinha certamente objetivos canibalescos. À prática antropofágica era uma importante arma psicológica. Os atos de abater e devorar os inimigos teriam significados cerimoniais e mágicos. Entretanto, as dificuldades alimentares periódicas sobretudo a carência de proteína animal - desaconselhariam o desperdício das carnes dos cativos abatidos. Em suas origens, a antropofagia tupinambá teria tido fortes fundamentos alimentares. E, em boa parte, ainda os teria, no Quinhentos. O sacrifício de ho-

mens, mulheres, jovens e crianças; a cevagem dos cativos; o aproveitamento minucioso dos corpos dos executados; a variedade de formas de preparação das

carnes; o armazenamento e o consumo fora de situações cerimoniais; etc., sugerem esta instância nutri-

tiva dos costumes antropofágicos americanos. Ainda que isto escandalize o homem contemporâneo, é bom lembrar que a carne humana é um alimento muito rico. (SALVADOR, 1982: 86-7; LERY, 1961: 125; STADEN, 1974: 113-70; GÂNDAVO, 1965: 201: LEITE, 1956: 137.)

GUARANIS CANIBAIS

Para o cientista social Miguel Chase Sardi, tam-

bém os guaranis substituíam parcialmente a carência de proteína animal que conheciam com o aproveitamento da carne humana. (DUVIOLS, 1985: HO arqueólogo Pedro 1. Schutz vai mais longe. Ele acredita ter sido a carência de proteínas a grande deficiência das comunidades guaranis sulinas. Tal seria q falta de proteínas que os guaranis do Sul caçariam “os seus vizinhos” guainás do Planalto, “todos os

meses”, “para fazerem presas que pudessem comer”. (KERN, 1991: 312.) Era, portanto, necessário aproveitar ao extremo os recursos alimentares disponíveis. Até quando se despiolhavam, os tupinambás comiam os parasitas capturados. Explicavam também que o faziam para se vingarem destes “inimigos”. (THEVET, 1953: 207.) Os jesuítas espanhóis não teriam tido grande trabalho em extirpar os hábitos antropofágicos dos guaranis missioneiros. Salvo engano, não há estudos sobre a contribuição da introdução da economia pastoril na América Meridional no processo de superação das práticas canibalescas guaranis. Nas Missões e nas Doutrinas espanholas, os guaranis contaram com uma agricultura mais variada e produtiva do que a que conheciam anteriormente. Contavam também com recursos protéicos animais - fornecidos pelas “vacarias” missioneiras muito superiores aos permitidos pela caça, pesca € coleta. O historiador Arno Kern, em Missões: uma utopia política, lembra que já “no início da instala-

ção das Missões, o padre Cristóvão Mendonza aconselhava aos demais membros da Companhia de Jesus: “Cuidai das minhas vaquinhas como das meninas de vossos olhos, pois índio sem carne volta para o mato”. (KERN, 1982: 132). Entre os especialistas, parece ser um consenso que a antropofagia seja muito rara, ou mesmo inexistente, entre os povos que pratiquem uma economia pastoril desenvolvida. (GER, 1971, II: 415.) Apesar da rica documentação que possuímos,

e

72 E

A

E

cscapam-nos as razões de importantes aspectos das

práticas antropofágicas. Por exemplo, não sabemos, com precisão, os motivos e critérios últimos que determinavam a época de sacrifício dos cativos. Tudo leva a crer que a data fatídica fosse discutida no con-

selho dos homens mas permanecesse uma decisão exclusiva do “senhor” do “escravo”, Segundo o cosmógrafo André Thevet, o pajé de uma aldeia podia ser consultado sobre a oportunidade de um sacrifício. (STADEN, 1974: 102, 175; THEVET, 1953: 82.)

Alguns poucos prisioneiros - sobretudo mulheres e crianças - escapavam ao abate e eram incorporados a um grupo familiar. Como vimos, parece ter sido di-

fundido o aproveitamento das cativas como esposas. O prisioneiro que fugia c terminava sendo preso era

imediatamente abatido. (EVREUX, 1929: 106.) A documentação se refere a cativos que viveram décadas em uma aldeia antes de serem abatidos e devorados. Após tomada a decisão, a “festa” devia ser preparada. O mercenário Hans Staden acreditava que seria executado quando estivessem terminados os arranjamentos para a cerimônia - convites, cordas, bebidas, etc. (BRANDÃO, 1977: 264; ABBEVILLE, 1975: 268; STADEN, 1974: 96.) Alguns pais e tios forneciam cativos para que jovens os abatessem cerimonialmente e adquirissem o status correspondente. (FERNANDES, 1970: 150.) Em alguns ca-

sos, os abates e a consumação das carnes se davam sem cerimônias. Em 1612, no Maranhão, ao saber que uma sua cativa, tomada como esposa, praticara o adultério, o principal Japi-açu mandou-a matar, incontinenti. Segundo o sacerdote francês Abbeville, após a execução, “muitas velhas, esquartejaram-lhe o corpo, sendo mesmo, ao que dizem, enviado um

pedaço, às escondidas” para uma outra aldeia.

(ABBEVILLE, 1975: 132.)

Não temos registros históricos de povos que praticassem sistemática e indiscriminadamente o canibalismo. Em parte, também entre os tupi-guaranis, a antropofagia era um “tabu”, De forma geral, estava vedado o consumo das carnes dos membros da comunidade endofagia. Neste sentido, os tupinambás praticariam

apenas a exofagia. Antônio Pigafetta registrou: “Comem algumas vezes carne humana, porém, somente a de seus inimigos”. (PIGAFETTA, 1985: 58.) Em História da Província de Santa Cruz, Magalhães de Gândavo afirmava que “uns certos índios, junto do rio do Maranhão”, “que se chamam tapuias”, “não comem carne humana de nenhum contrário”. Entretanto - afirmava horrorizado -, quando um parente próximo adoecia gravemente, ele era morto ou esperavam que morresse. Depois, assavam-no ou cozinhavam-no e

comiam

“toda a carne”.

(GÂNDAVO,

1980:

141.)

Muitos antropólogos defendem a incompatibilidade entre práticas endo e exofágicas: “Por outro lado, estas duas formas de canibalismo não coexistem no seio de uma mesma sociedade e parecem ser incompatí-

veis”. (EU, 1985: IV, 152.)

INIMIGOS FAMILIARES

Os povos canibais consumiriam as carnes dos

“estrangeiros” ou, em determinadas circunstâncias, as

de membros do próprio grupo - condenados à morte;

parentes mortos naturalmente; velhos improdutivos; recém-nascidos malformados;

etc. Por outro lado,

muitos povos praticavam uma forma “sublimada” de endofagia consumindo apenas as cinzas dos corpos e/ ou dos ossos calcinados dos parentes. (ZERRIES, 1960:

125-65.) As afirmações sobre a incompatibilidade de prática endo e exofágicas não têm resistido a análises mais detidas. Temos notícias positivas de povos tupi-guaranis que praticavam também a endofagia. Os kokamas, do Alto Amazonas, são bom exemplo. No mínimo até fins do século 17, devoravam os parentes falecidos. Comiam-no “assado, se era gordo, cozido, se era magro”. (ZERRIAS, 1960: 143.) No caso dos tupinambás, se uma guardiã traísse

suas responsabilidades e fosse presa, podia ser comida. Se engravidasse, o rebento podia ser devorado por ela e por outros parentes consangiiíneos próximos. Os tupinambás devorariam apenas os “inimigos”. Entretanto, aldeias próximas e ligadas por laços de pa73

tentesco inimizavam-se e guerreavam-se. No início da

colonização da baía de Todos os Santos, a aldeia do Tubarão e a de Mirangoaba romperam

as pazes. Tão

forte teria sido o conflito que se “encarniçavam tanto, em tão grande crueldade, que cada dia se matavam €

Se comiam”. Apenas uns três quilômetros separavam as duas aldeias. (LEITE, 1958: 89.)

a

As categorias “inimigo” e “estrangeiro eram definições classificatórias, até certo ponto arbitrárias, que também serviam para encobrir a consciência de práticas sociais “autofágicas”. Sacrificar e consumir apenas os “estrangeiros” seria a norma geral que

regulava uma essencial esfera dos atos sociais€ garantia a harmonia e a coesão mínimas necessárias ao desenvolvimento comunitário. O aldeão que interiorizava a proibição de comer seu vizinho assegurava-se

que também não seria por ele comido. E crível que desrespeitos episódicos e clandestinos, principalmente em situações sociais anômalas, tenham passado

despercebidos aos jesuítas e aos outros cronistas. Os tupinambás tinham plena consciência do valor nutritivo da carne humana e, segundo parece, apreciavam-na sobremaneira. Ao entrarem por primeira vez na aldeia dos captores, os prisioneiros eram obrigados a gritar para as mulheres que saudavam a expedição vitoriosa: “Eu, a vossa comida, cheguei”. (METRAUX, 1950: 230.) Em 1557, na capitania da Baía, o irmão Blasquez escrevia que os brasis comiam a carne humana “sem horror e sem nojo” e que, para eles, não havia “manjar a seu gosto que se chegasse a este”. (LEITE, 1957: 383.) Segundo outros depoimentos, os americanos consideravam-na “saborosíssima” e a comiam com “incrível apetite”. (ABBEVILLE, 1975: 233; LERY, 1961: 180.) Em Tra-

tado da terra do Brasil, Magalhães de Gândavo afirmava que os tupinambás tinham a “carne humana”

pela “melhor iguaria de quantas” pudesse haver.

(GÂNDAVO, 1980: 57.)

Segundo parece, sobretudo quando a carne era pouca, a divisão respeitava os princípios patriarcais da sociedade tupinambá. Os homens adultos comiam as partes mais nobres da vítima e as mulheres e 74

crianças deviam-se

contentar

com

a cabeça

e com

um “min gau” feito com as vísceras e outras sobras. (STADEN, 1974: 183; COMBÉS, 1992: 62.) O que garantia aos homens adultos e aos principais uma maior quantidade dos escassos recursos protéicos. Os brasis intuiriam parcialmente a violência social das práticas antropofágicas e dificilmente aceitariam que se consumisse a carne humana como alimento.

MULHERES

E COVARDES

É possivelmente de origem tupinambá a afir-

mação “caluniosa” de que os aimorés - também chamados de botocudos - comessem carne humana para alimentar-se. Os aimorés eram aguerridas comunidades não tupi-guarani, do tronco linguístico Macro-Jê, de caçadores e coletores que desconheci-

am a agricultura. As comunidades aimorés fraccionavam-se com facilidade e possuíam moradias rústicas e equipamentos reduzidos adaptados à vida seminô made que conheciam. (SOUSA, s.d.: 1, 146; PARAÍ-

SO, 1992: 423; COMBÉS, 1992: 46-7.)

Segundo os autores do Quinhentos, os mais vorazes antropófagos seriam os velhos e, sobret udo, as velhas. Os americanos idosos e os doentes acredi tavam nas virtudes mágicas e terapêuticas de tal alimento. O padre Azpilcueta Navarro anotou que, quando um brasil estava “para deixar este mundo”, pedia “logo carne humana”. Folga lembrar que esta não era uma idéia de todo sem fundamentos objetivos. A carne - animal é humana -, muito rica em proteína e gordura, proporcionaria vigor e resistência contra as enfermidades contribuindo para a recuperação dos doentes. (LEITE, 1956: 182.) Os tupinambás acreditariam que, devorando os inimigos, adquiriam suas qualidades. (METRAUX, 1950: 267.) O mesmo acreditavam sobre os animais

que caçavam e pescavam. O cosmógrafo francês André Thevet registrou que os tamoios não consumiam as carnes de animais lentos para não perderem a agilidade. (THEVET, 1953: 49.) Tal opinião

encontrava-se em absoluto acordo com as concep-

ções mágicas c animistas americanas. Entretanto, guerreiros banquetcavam-se com velhos, mulheres e

crianças c não rejeitavam prisioneiros pouco valentes. (THEVET, 1953: 54.) Estas falsas reflexões analógicas construíam-se sobretudo q partir da consciência do grande valor protéico-alimentar da carne. O discurso sobre as razões guerreiras da antropofagia serviria como recurso catártico comunitário. Esta

retórica minoraria as tensões ensejadas pelo ato de devorar os semelhantes.

Michel de Montaigne registrou o discurso final de um prisioneiro. Ele sugere que os tupinambás tinham consciência, ao menos parcial, do si gnificado autofági co

das práticas canibalescas: “Vinde bem ardidamente [ardorosamente), e juntai-vos todos para me devorar. E comereis pedaços da carne de vossos pais e avós, que

serviu de pasto ao meu corpo. Estes músculos, esta carne, e estas veias são as vossas, meus pobres tontos. Não

encontrareis outra sustância, senão de vossos progenitores. Saboreai bem; que saboreareis a vossa própria

carne”. (Apud

VARNHAGEN,

1978: I, 218; MON-

TAIGNE, 1965: 212.) Toda a documentação histórica sobre as cerimônias antropofágicas assinala que os membros mais diretamente envolvidos no sacrifício do cativo “tomavam nomes” - ou seja, mudavam de nome. Métraux lembra que a “mudança de nome era a mais importante das precauções por quem quer que se julgasse exposto à animadversão de um espírito”. (METRAUX, 1950: 274.) O matador do cativo era obrigado a Jejuar e a outros rituais expiatórios: Acreditava que morreria, se não o fizesse. (SALVADOR, 1982: 87.) De

certo modo, com estes ritos, em nome da comunida-

de, resolvia a tensão causada pelo ato antropofágico. É sintomático que o executor não participasse do

banquete. (GANDAVO, 1980: 139.)

A dificuldade de interpretações menos moralistas, ideológicas e peremptórias sobre as práticas antropofágicas parece nascer do fato de que os tupinambás e os europeus de então se negavam a aceitar - como negam-sc ainda muitos antropólogos - que

a carne humana pudesse ser um alimento como qual-

quer outro. Em verdade, por angustiante que possa parecer, a antropofagia foi, durante longos € recua-

dos tempos, importante recurso alimentar. Assim sendo, o homem teve que fazer ingentes esforços para

não devorar - literalmente

falando -,cotidiana ou

cpisodicamente, seus semelhantes. O nascimento da

interdição - total ou parcial - de consumir à car ne

humana foi, com certeza, uma muito antiga, difícil e importante conquista social. CARNE

PROIBIDA

Não existe diferença de qualidade entre a carne animal c a humana. O valor alimentar desta última é um fato natural. O desgosto que nos causa a idéia de consumi-la, ao contrário, é um fenômeno sócio-histórico. Acertava Sigmund Freud ao escrever, em uma carta a Maria Bonaparte: “[...] existem, naturalmente, boas razões, no mundo moderno, para que não se mate um homem para devorá-lo. Entretanto, não existe nenhuma razão para que não se coma carne huma-

na no lugar de carne animal. Entretanto, a maior par-

te de nós consideraria isto absolutamente impossíve]”. (apud EU, 1985: IV, 154.) A proibição de provar a came humana era uma interdição ancestral implantada, em profundidade, no espírito do jesuíta e do colono de então, como ainda o é, hoje, no de cada um de nós. Mesmo tendo sido temas relativamente descurados pela Etnologia e pela Antropologia contemporâneas, a endogafia e a exofagia foram hábitos largamente difundidos, em muitos casos, até o século 20, entre importantes comunidades da Ásia, África, América, Europa e Oceania. (BJERRE, 1959;

BARBASTE, 1856; CARNEIRO, 1946; DOLE, 1962: LEBLANC, 1928; SARDI, 1964; WARD, 1910: VILLAL-

BA, 1948; ZORRIES, 1960.)

Apesar do horror com que os europeus referam-se aos hábitos canibalescos americanos, indícios sugerem que alguns deles, não resistindo à tentação e rememorando hábitos perdidos em tempos 75

muito recuados, provaram o mais requintado prato da cozinha tupinambá, algumas vezes em contextos

absolutamente estranhos à penúltima alimentação.

Em

1559, o jesuíta Manoel da Nóbrega escrevia a

Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, que os colonos, para protegerem-se dos nativos, incentivavam o ódio intertribal e as práticas antropofágicas: “[...] e d'aqui vem que, nas guerras passadas que se tiveram com o gentio, sempre dão carne humana a comer não somente a outros índios,

mas a seus próprios escravos”. Horrorizado, o jesuita lembrava: “[...] e já se achou cristão a mastigar carne humana, para darem com isso bom exemplo ao

gentio. Outros matam em terreiro, à maneira dos iín-

dios, tomando nomes, e não somente o fazem homens baixos e mamelucos, mas o mesmo capitão, às ve-

zes!” (NÓBREGA, 1988: 196.)

Jean de Léry registrou uma macabra recordação levada à França por um companheiro de viagem: “[...] o barbeiro do navio em que regressamos trouxe [...] potes [...] de gordura humana que recolhera quando os selvagens cozinhavam e assavam seus priísioneiros de guerra [...)”. (LERY, 1961: 143.) Durante a atribulada travessia de regresso à França, os alimentos esgotaram-se e diversos passageiros morreram de fome ou foram obrigados a comer - para sobreviverem - bugios, papagaios, ratos, tiras de couro, etc.

Sobre o destino do conteúdo dos potes, o escritor mantém absoluto silêncio. A viagem prosseguia e as

costas da Europa demoravam a ser avistadas. A fome era terrível e os meses passados junto aos tupinambás haviam deixado marcas profundas. Macabras idéias de como resolver a falta de alimentos afloravam aos viajantes com insinuante facilidade nos momentos de total penúria. A confissão que segue do bom calvinista Jean de

Léry certamente realça sua honestidade intelectual. Muito envergonhado, reconheceu: “Posso garantir agora que na nossa viagem só nos reteve o temor a Deus,

pois mal podíamos falar uns com os outros [...] sem nos lançarmos olhares denunciadores de nossa disposição antropofágica”. (LERY, 1961: 241.) Mais explícito, Jean de Léry escrevera indignado que, sem a menor necessidade, “alguns intérpretes normandos, residentes há váTIOS anos no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens” que se vangloriavam “de haver morto e comido prisioneiros”. (LERY, 1961: 181.) Tais

Idéias não seriam apenas resultado de uma convivência muito estreita com os povos brasílicos. Em junho de 1496, durante o regresso da segunda expedição colombiana à América, exasperados pela falta de alimentos,

alguns marinheiros teriam sugerido insistentemente que fossem comidos os americanos que viajavam como cativos ... (HEERS, 1981: 329.)

Capítulo 11

Nos tempos do pau-brasil

A descoberta da Terra de Santa Cruz não causou grande sensação em Portugal. O capitão-mor Pedro Alvares Cabral voltou da Índia com as naves abarrotadas de preciosas mercadorias: rubis, péro-

las, diamantes, porcelanas, louças, sândalo, açafrão,

pimentas, etc. (SIMONSEN, 1977: 52.) Era o início do estanco das especiarias que, por alguns anos, faria a felicidade da Coroa e das classes mercantis lusitanas. Em 1500, Gaspar de Lemos tornara da “ilha

de Vera Cruz” a Lisboa, em uma caravela, levando

as novas do achamento. Ele falaria ao rei de homens nus, pássaros exóticos, terras exuberantes e praticamente nada para ser escambado, comprado ou saqueado, a não ser pau-brasil e outros produtos de menor

valor. (VARNHAGEN,

1978: I, 71; HCPB, II: 147.)

Nos porões dos navios de Cabral e de Gaspar de Lemos, foram, possivelmente para a Europa, toras de pau tintorial. (SIMONSEN, 1977: 52: HCPB, II:

324.) A frondosa árvore que fornecia o precioso lenho abundava nas ricas florestas atlânticas - do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Norte. (SOUSA, 1978: 42.) O desenvolvimento da produção têxtil européia valorizara os corantes naturais. Entre eles destacavam-se Os fabricados com o tronco da árvore Caesalpinia sappan, importado do Oriente, a alto preço, através do mar Vermelho. A partir do século 11, do-

cumentos registram a chegada de toras desta madei-

ra à Europa - verzino, brazil, brazilem, bersil, etc.

(HCPB, II: 321.) O pau-brasil era uma matéria prima de grande utilidade, nas palavras de um autor do início do Seis-

centos: “O pau do Brasil, de que toma nome toda

esta província, [...] larga de si uma tinta vermelha, excelente para tingir panos de lã e seda, e se fazer dela outras pinturas e curiosidades [...]”. (BRANDÃO, 1977: 137.) O brasil era uma riqueza não desprezível, apesar de mesquinha, se comparada aos tesouros cedidos pelas Índias e aos proventos do tráfico africano de cativos. Em sua História econômica do Brasil, R. C. Simonsen calculou que uma carga das Índias valeria, em média, sete vezes mais do que um carregamento do Brasil. (SIMONSEN, 1977: 55.)

A expedição enviada por dom Manuel I, em 1501, à Terra de Santa Cruz, confirmou as informações obtidas quando da descoberta e registrou a igno-

rada

imensidade

daquelas

costas.

Em

todo caso,

pau-brasil e outros produtos de somenos valor pareciam ser as únicas riquezas mercantilizáveis. Américo Vespúcio participou como cosmógrafo da expedição.

Em setembro de 1504, escrevia desconsolado sobre

a viagem a Piero Soderini, gonfaloneiro perpétuo de Florença: “[...] e nessa costa não vimos coisa de pro77

veito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil

e de cássia, e daquelas que geram a mirra, [..) e já tendo estado na viagem bem dez meses, e visto que nessa terra não encontrávamos coisa de minério alsum, acordamos nos despedirmos dela fiat

(VESPÚCIO, 1984: 129; RAMUSIO, 1613: 1, 129.) A Coroa reservou-se incontinenti o monopóho até do pau tintorial. Um exclusivismo que perdurou o século 19, quando os corantes artificiais desbancaram os naturais. Américo Vespúcio também integrou a expedição, de seis naus, enviada ao Brasil, em 1505, segundo parece, pelo consórcio encabeçado por

Fernão de Loronha. Além de explorarem as costas,

os lusitanos levantaram uma rústica fortificação, provavelmente em Cabo Frio. Por cinco meses, abarrotaram os navios de toras de pau-brasil e de outros produtos. Começava a exploração sistemática do

Novo Mundo lusitano. (VESPÚCIO, 1984: 132; HCPB, II: 285-314.) MADE IN BRAZIL

Diversos gêneros exóticos americanos tinham grande procura na Europa - sagúis, papagaios, peles e penas de animais, redes de algodão, colares de contas brancas, etc. Nada mais elegante do que uma dama florentina, de alva pele e traços clássicos, portando, ao braço, um negro e feio macaquinho, amarrado pelo pescoço por uma corrente de ouro. Deve-se ao elevado valor mercantil do pau-brasil ter a futura nação americana escapado da vexação de passar à história com o nome de lerra dos Papagaios, denominação

que lhe coube, por breve tempo, em mapas, cartas e

documentos imediatamente posteriores à descoberta. (HCPB, Il: 321; RODRIGUES, 1979: 7.) Os comerciantes que se dedicavam à obtenção do pau tintorial eram chamados de “brasileiros”. Aos naturais da terra coube a denominação inicial de “brasis”. (VARNHAGEN, 1978: 88.) Desde os primeiros tempos, pequenas quantidades de brasis cativos eram compradas pelos europeus às populações do litoral. 78

A economia extrativista da Caesalpinia echinata

e de outros gêneros americanos dominou os trinta pri-

meiros anos de contato entre a Europa c a Terra do Brasil. Por herética que a afirmação pareça, estas três primeiras décadas de trocas foram benéficas para os interesses mercantis europeus e para o desenvolvimento das comunidades americanas. Os navios lançavam ferro diante das praias habitadas e escambavam com as comunidades do litoral os produtos americanos por manufaturados europeus. Abarrotados os porões, voltavam para os portos de procedência. Apenas alguns aventureiros permaneciam no

litoral, geralmente vivendo, entre os nativos, como nativos. Os franceses que comerciaram no Maranhão costumavam ali permanecer por “cinco a seis luas” (cinco a seis meses), o tempo necessário para reunirem “os gêneros que necessitavam?. (ABBEVILLE, 1975: 117; STADEN, 1974: 93; MOTT, 1989: 15.) Em 1549, em pleno período colonial, quando o primeiro governador-geral do Brasil chegou à baía de Todos os Santos, na povoação de Francisco Pereira

Coutinho, fundada havia treze anos, viviam apenas uns 45 moradores. (NÓBREGA, 1988: 71.) Considerando-se o caráter destes primeiros contatos, não procede a afirmação do historiador José Honório Rodrigues: “São os degredados, os náufragos e os desertores que iniciam a obra (de catequese) pela exploração do trabalho indígena no comércio do pau-brasil”. (RODRIGUES, 1979: 3.) A bem da verdade, não havia “exploração do trabalho indígena”. E, como vimos e bem sugere o historiador Capistrano de Abreu, eram os europeus que se “convertiam” comumente aos hábitos da terra. (ABREU,

1976: 53.) Em 1612, falando destes recuados tempos, um velho tupinambá lembraria: “De início, os peró [portugueses] não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam

livremente com as raparigas [americanas], o que os nossos companheiros [...] reputavam grandemente honroso”. (ABBEVILLE, 1975: 115.)

De 1502 a possivelmente 1511, a Coroa arrendou a nova possessão ao cristão-novo (judeu conver-

so) Fernão de Loronha e, segundo parece, a outros

seus associados. Entre as exigências do acordo, os arrendatários deviam

enviar, por ano, seis navios q

descobrir o litoral e construir uma “fortaleza” na cos-

ta. (SIMONSEN, 1977: 52; HCPB, II: 203.) Em 1511,

em associação com o português Francisco Martins e os italianos Bartolomeo Marchione e Benedetto Morelli, Fernão de Loronha enviou a nau Bretoa ao Brasil. A tripulação compunha-se de um capitão, um escrivão, um contramestre, um despenseiro, um calafate, um ferrador, dois mestres, quatro pajens, dez

marinheiros, treze grumcetes. Três dos grumetes seriam negros: dois escravos e um criado. Permitia-se que a equipagem negociasse com os nativos, depois que os representantes dos armadores completassem prioritariamente suas transações. Os tripulantes da nau Bretoa trouxeram do Brasil escravos, sagiis e papagaios. Conhecemos o inventário da carga do barco: 35 cativos americanos (na maioria mulheres), cinco mil toras de pau-brasil, muitos papagaios e macacos e outras mercadorias de menor valor. O pau-brasil era transportado no porão; os escravos, sobre a coberta. Sob os olhos vigilantes do capitão e do escrivão, as toras haviam sido

embarcadas em pouco mais de duas semanas de tra-

balho. (HCPB, II: 343-7.)

JARDIM ZOOLÓGICO

A tora de pau-brasil pesava 25 quilos, em média. Uma nave francesa - “La Pélerine” -, de 120 tripulantes, apreendida pelos lusitanos, em agosto de 1532, na torna-viagem, portava trezentas toneladas de pau-brasil, trezentos macacos, seiscentos papagaios, três mil peles de onças, dezoito toneladas de algodão e outros produtos. (HCPB, 1: 343, 386: III: 151; MARCHANT, 1980: 59.) Os contatos iniciais

entre os brasis e europeus foram pacíficos e profícuos.

À todo custo, os europeus procuravam manter as melhores relações com as comunidades do litoral. Sem

clas, era praticamente impossível permanecer na cos-

ta, levar adiante as atividades extrativistas e obter

cativos. O francês André Thevet, registrou em Cosmografia universal, editada em 1575, que os por-

tugueses tiveram uma “pequena fortaleza” em Cabo

Frio. Os tamoios teriam destruído a feitoria devido ao mau comportamento lusitano. (THEVET, 1953:

37.) Em

1503-04, nestas regiões, segundo Américo

Vespúcio, os portugueses haveriam permanecido, por

cinco meses, escambando pau-brasil. Ali teriam fundado uma “fortaleza” (feitoria), guarnecida com “24 homens”. (RAMUSIO, 1613: 1, 129-130.) A extração do pau-brasil requeria conhecimento das matas e do território e grande esforço físico. A produção rentável do pau tintorial era impossível sem O apoio maciço e voluntário das populações nativas. Para viabilizar a economia extrativista, os europeus estabeleceram contatos fortuítos ou permanentes, relações de amizade e alianças políticas com as comunidades brasílicas. Nos anos seguintes à descoberta, portugueses € franceses - em menor número,

espanhóis, alemães,

ingleses, etc. - limitaram-se a

levantar rústicas feitorias à beira-mar (Cabo Frio, Rio de Janeiro, Baía de Todos os Santos, Porto-Seguro, Pernambuco) ou simplesmente fundeavam os navios próximo às praias. (HAKLUYT, 1904: 23-5.) O regimento da nau Bretoa ordenava expressamente ao capitão que proibisse “ao mestre e a toda a companha [tripulação] [...] [fazerem] mal nem dano à gente da terra”. Era também vedado trazer “pessoa dos naturais da terra do Brasil” que quisesse viver em Portugal. Isto porque, “se alguns cá falecem”, pensam “esses de lá”, que os matamos para comer, “segundo entre eles se costuma”. (HCPB, II: 343.) Nestes primeiros tempos, era comum que se levasse das Américas - sobretudo para a França - plantas, animais e homens “exóticos”. Ainda criança, Louis XIII (1601-43) brincara com tupinambás e desenhara os americanos portanto seus inusitados paramentos. (AVEZAC, 1869: 98; DENIS, 1850: 11-17; EVREUX, 1929: 35.).) Em troca de diversos produtos manufaturados, os tupinambás encontravam, cortavam, preparavam e transportavam as valiosas toras aos navios e às feitorias. 79

PRIMEIRA POVOAÇÃO

Cativos e outros produtos eram igualmente entregues em troca dos gêneros europeus.

Em 1527, o cosmógrafo Alonso de Santa Cruz descreveu o maior povoado lusitano no Brasil, na costa do atual estado de São Paulo: “Dentro do porto de São Vicente há duas ilhas grandes habitadas de índios; [...). Na ilha ocidental têm os portugueses um

Em 1557, Jean de Léry esteve na Guanabara, na

colônia de Villegaignon, onde viveu alguns meses €n-

tre Os tupinambás. Ele escreveu sobre o pau-brasil: “Quanto ao modo de carregar os navios com essa mercadoria, direi que tanto por causa da dureza,€ conse-

povoado chamado São sas, uma feita de pedra re, para a defesa contra sidade. Estão providos

quente dificuldade em derrubá-la, como por não existt-

rem [...] animais de tiro para transportá-la, é ela arrastada

por meio de muitos homens; e se os estrangeiros que por aí viajam não fossem ajudados pelos selvagens não

Vicente, com seus os índios de coisas

de dez ou doze catelhados, e uma torem tempo de necesda terra, de galinhas

c porcos de Espanha em muita abundância e hortali-

poderiam sequer em um ano carregar um navio de tamanho médio. Os selvagens em troca de algumas roupas, camisas de linho, chapéus, facas, machados, cunhas de ferro e demais ferramentas trazidas por franceses e outros europeus, cortam, serram, racham, atoram e desbastam o pau-brasil transportando-o nos ombros

ças. Têm estas duas ilhas um ilhéu entre ambas, de que se servem para criar porcos. Há grandes pescari-

as de bom pescado”. (PRADO, 1976: 67.)

Quase trinta anos após a chamada descoberta

do Brasil, se somássemos portugueses e curopeus radicados permanentemente nas costas, alcançaría-

nus às vezes de duas a três léguas de distância [13,2-19,8 km], por montes e sítios escabrosos, até à costa junto

mos a perfazer, no máximo,

algumas centenas de

homens. Poucos, muito poucos, para milhares de quilômetros de litoral e, talvez, em torno a um milhão de brasis. Estes pequenos grupos de “brasileiros permaneciam no Novo Mundo apenas devido ao apoio fornecido pelas populações brasílicas amigas. Na maior das vezes, os “brasileiros” estabeleciam alianças com os povos da terra contraindo núpcias com filhas dos principais da região. Através dos

aos navios ancorados, onde os marinheiros o recebem”.

(LERY, 1961: 152.) Na primeira metade do Quinhentos, quando os contatos entre europeus e brasis eram ainda geralmente harmoniosos, pequenos grupos de portugueses e europeus viviam, quase absorvidos pelas numerosas comunidades nativas, em diversos pontos da costa, dedicados ao escambo do pau-brasil, de cativos, de algodão, de pimenta, de penas e de outros produtos mercantilizáveis. (STADEN, 1974: 93.) Eram marinheiros desertores, degredados abandonados nas praias, náufragos seduzidos pela terra, “brasileiros” à espera dos navios de suas nações. Em 1500, quando a frota cabralina partiu da terra descoberta para seu destino, nas praias do atual estado da Bahia ficaram dois desterrados que foram obrigados a somar-se a dois grumetes que haviam desertado. Com duas ou três esposas americanas trabalhando na roça e os sogros organizando o preparo das toras de pau-Brasil, um europeu conheceria no Novo Mundo uma vida não de todo desprezível. Principalmente se comparada à que conheceria um ho-

genros europeus, os brasis garantiam-se uma privile-

giada posição para conseguir as apreciadas ferramentas e outros manufaturados do Velho Mundo. O desenvolvimento da produção têxtil francesa exigia quantidades crescentes de corantes. Com o fim da Guerra dos Cem Anos, o país pacificara-se e enriquecera. Os comerciantes e marinheiros normandos e bretões, sobretudo, começaram a arriscar-se no oceano Atlântico, tentando recuperar o tempo perdido. A

partir de 1503, navios daquela nacionalidade começaram a visitar amiúde as costas brasílicas. (PRADO, 1976: 39.) Estas furtivas incursões de entrelopos franceses motivaram retaliações pouco “civilizadas”. Os lusitanos pretendiam que estas terras lhes pertencessem, segundo as leis humanas e divinas. A luta pelo

mem pobre no continente europeu.

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controle das reservas de pau-brasil assumiria um caráter semi-oficial. Em 1526, os espiões da embaixada portuguesa na França descobriram que uma expedi-

ção de dez navios aprestava-se a partir para o Brasil. O português Cristóvão Jacques foi enviado,

com uma nau c cinco caravelas, à busca de pau tintorial e dos navios invasores. Ele alcançou três

naus bretãs na baia de Todos os Santos, deu-lhes combate por um dia inteiro, venceu-as e fez mais de 300 prisioneiros. Muitos teriam sido barbaramente trucidados. Em carta de setembro de 1528, Francisco 1 (1515-1547) protestava com veemência diante do rei de Portugal: “[...]) os portugueses enforcaram alguns dos nossos ditos súditos, os outros meteram e enterraram até os ombros e o rosto, c depois os martirizaram e mataram cruelmente a setadas e tiros de espingarda [...)”. (HCPB, II: 75.) As reclamações do poderoso soberano tinham que ser ouvidas. Para não perder as descobertas, a Coroa lusitana viu-se obrigada a ocupar as possessões do Novo Mundo. (LEITE, 1956: 91.) A solução foi a anteriormente utilizada com sucesso nas ilhas atlânticas - as capitanias hereditárias. A instituição

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do regime das donatarias assinalou o fim dos contatos intermitentes entre brasis e europeus e o início da ocupação colonial lusitana da faixa litorânea. Os antigos padrões de troca continuaram sendo praticados nos povoamentos do litoral e nas regiões sob o domí-

nio dos americanos. Entretanto, com a chegada dos colonos, instalara-se um modo de ocupação e de exploração colonial que levaria à inexorável destrui-

ção das sociedades nativas. O processo de liquidação das comunidades da

costa se acelerou ainda mais com a instituição, em

1549, dos governos gerais e com a subsegiiente maior pressão militar sobre as populações da terra. À medida que os colonos portugueses fincavam pé na costa e levantavam vilas, plantações e engenhos, aprofundava-se a agonia dos povos autóctones. Nas primeiras décadas do Seiscentos, as orgulhosas comunidades tupinambás que senhoreavam, no início do século 16, a faixa litorânea, da foz do rio Amazonas à ilha de Cananéia, haviam sido dizimadas, escravizadas ou agonizavam, reduzidas a pequenos grupos que tentavam adaptar-se à dura vida do sertão e fugir dos ataques escravizadores.

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Capítulo 12 E=s

Machado de ferro, machado de pedra

Os europeus que deixaram registros escritos sobre suas visitas às costas do Brasil sugeriam desdenhosamente que os produtos americanos eram troca-

dos por “bugigangas” e “quinquilharias” de “pequeno

valor”. (MARCHANT, 1980: 58: STADEN, 1975: 143; THEVET, 1976: 94; 1983: 45; AVEZAC, 1869: 96.) Tal

avaliação refletia o maior valor mercantil dos produtos obtidos no Novo Mundo em relação às mercadori-

as européias cedidas quando da troca. Do ponto de vista europeu, esta exploração comercial dos nativos reforçava o desapreço dominante sobre as comunidades americanas - apenas homens semi-infantilizados trabalhariam dias a fio por uma simples faca, espelho ou machadinha. Esta descrição eurocêntrica do escambo foi aceita acriticamente por inúmeros histo-

riadores. (SCHWARTZ, 1988: 44; RODRIGUES, 1979: 39; WETZEL, 1972: 203.) Para alguns deles, ela cor-

roboraria a tese da inferioridade “indígena”. Para outros, provaria a exploração dos autóctones pelos cúpidos europeus. Em seu excelente estudo - Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo -, Joh n Monteiro acompanha as interpretações funcionalistas ao abordar as relações entre brasis e europeus. Os motivos das ações dos nativos são vistos num sentido radicalmente estranho às razões dos atos dos co-

lonos: “A oferta de gêneros por parte dos índios não foi - como querem Alexander Marchant e outros autores subsequentes - uma simples “resposta” econômica a uma situação de mercado. Muito pelo contrário, tanto a aquisição quanto a oferta de “mercadorias” devem ser compreendidas mais em termos de sua carga simbólica do que por seu significado comercial”. (MONTEIRO, 1994: 22.) As relações produtivas e portanto econômicas

- entre os homens, e dos homens com a natureza -

determinam essencialmente todas as sociedades. Porém, as determinam de forma diversa. As práticas capitalistas são específicas em um nível de desenvolvimento histórico dado. São uma das formas sob as quais se apresentam as relações econômicas na história. Não podemos identificar toda e qualquer relação econômica a relações capitalistas. Foram as determinações econômicas das sociedades nativas que impediram que as suas trocas se realizassem sob a forma de intercâmbio mercantil ou de mercado. Para

os nativos, as ferramentas eram sobretudo valores de

uso. Para os europeus, valores de troca. Abunda nte informação histórica não deixa dúvidas sobr e as motivações econômicas do escambo dos brasis com os europeus, como sugeriu Alexandre Marcha nt. As populações pré-colombianas desconheciam

83

a metalurgia do ferro e ficaram estupefatas diante do desempenho das ferramentas européias. Como assinalamos, em 1500, quando da estada cabralina no litoral brasílico, Pero Vaz de Caminha registrou em sua Carta a admiração dos brasis pelo trabalho de

dois artesãos que talhavam “uma grande cruz -

Mul-

tos deles vinham ali estar com os carpinteiros [portugueses] e creio que o faziam mais por verem à fer-

ramenta de ferro, com que a faziam [...], porque eles não têm coisa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em

um pau, entre duas talas mui bem atadas [...J. (CA-

MINHA, 1983: 257.) As ferramentas e os instrumentos europeus eram de grande ajuda aos brasis na dura luta que travavam cotidianamente com a natureza. Em troca de pau-brasil, de cativos, de peles, de

animais, de algodão e de outros produtos, as comunidades da costa obtinham louças, espadas, adagas, fa-

cas, machados, enxadas, cunhas de ferro, formões, pregos metálicos, foices, anzóis, tesouras, panelas, panelões, pentes, pinças, fitas, alfinetes, espelhos, miçangas, arcabuzes, grilhões, podadeiras, tecidos, vestimentos, etc. (LERY,

1961: 72, 73 et passim;

STADEN, 1974: 93, 115, 140 et passim; CARDIM, 1978: 178: THEVET, 1978: 94; 1983: 45; 1953, 110;

GÂNDAVO, 1965: 211; PIGAFETTA, 1985: 57, 59;

BELTRO, 1978: 137.) Elevando a produtividade das

atividades econômicas, as ferramentas facilitavam a

produção de bens de subsistência e aumentavam a esperança de vida média e o crescimento demográfico destas comunidades.. As populações tupinambás reconheceram, com rapidez, a superioridade dos artefatos produtivos e bélicos europeus. Ao incorporá-los às práticas cotidianas, criaram necessidades que as punham em dependência não antagônica dos mercadores europeus.

Através do escambo, ainda que fragilmente, as co-

munidades da costa incorporavam-se à divisão inter-

nacional do trabalho de então, o que lhes propiciava

um real aumento da produtividade do trabalho. Até mesmo as populações nativas do interior, que não mantinham contatos diretos com os europeus, partiS4

ciparam marginalmente deste intercâmbio. Os grupos do litoral utilizavam os valiosos produtos nas tro-

cas que realizavam tradicionalmente com as comunidades - amigas ou inimigas - dos sertões. (THEVET, 1978: 153; 1983: 107.) Os uetacás - povo não tupi-guarani que vivia entre o baixo Paraíba do Sul e o rio Macaé - trocavam com os tamoios plumas e pedras verdes por foices, facas, pentes, espelhos, etc.

(LERY, 1961: 75.)

Os brasis convenciam-se

da superioridade da

cunha e do machado de metal sobre as ferramentas congêneres de pedra e madeira quando abriam clareiras na mata para as hortas, derrubavam árvores para construir as residências e construíam suas canoas. Substituíam, com vantagem, por ponteiras de ferro, OS Ossos, as pedras, os dentes de animais e as madeiras duras utilizados nas flechas. Com foices segavam com maior facilidade o milho. As tesouras, pinças e navalhas agilizavam as trabalhosas e dolorosas sessões de depilação feitas com as unhas, pedaços de cristais, madeiras cortantes e outros objetos rústicos. Com agulhas, espalitavam os dentes e arrancavam facilmente espinhos e bichos-de-pé que penetravam na carne. Os brasis compreendiam sem dificuldade que os cativos eram mais bem maneteados com grilhões de ferro do que com cordas de algodão. Ou que os animais e seres humanos eram esfolados e esquartejados, com maior rapidez e perfeição, com facas e navalhas do que com as tradicionais raspadeiras. (LERY, 1961: 149, 167, 179, 219; STADEN, 1974: 91, 161; CARDIM, 1978: 112; THEVET, 1953: 119, 124; COREAL, 1722: 221; PINTO, 1957: 348; TODOROV, 1982: 45; EVREUX, 1929: 80.) DE GRANDE AJUDA

Os brasis perceberam - e verbalizaram com clareza - O quanto os novos instrumentos facilitavam as tarefas produtivas cotidianas. O alto apreçamento que tinham pelas ferramentas mediava as relações que mantinham com os europeus. Haviam que suportar os

recém-chegados para obter os manufaturados. O francês Jcan de Léry afirmava que, “principalmente os velhos, a quem outrora faltavam machados, foices e facas, e que agora possuem esses instrumentos precio-

sos para as suas indústrias, tratam muito bem os fran-

ceses que os visitam e na previsão do futuro exortam os moços a que façam o mesmo”. (LERY, 1961: 219.)

Em 1612, em pleno período colonial, Japi-açu, chefe de uma comunidade tupinambá que fugira, possivelmente de Pernambuco, para o Maranhão, para livrar-se dos portugueses, declarava ao saudar os aliados franceses recém-chegados: “[...] já tínhamos resolvido deixar esta costa [...] com receio dos peros [portugueses], nossos inimigos mortais, c havíamos deliberado embrenhar-nos por esta terra a dentro até onde jamais cristão nos visse, e estávamos decididos

a passar o resto de nossos dias longe dos franceses, nossos bons amigos, sem mais pensarmos em foices, machados, facas e outras mercadorias, e conformados com voltar à antiga e miserável vida de nossos antepassados que cultivavam a terra e derrubavam as árvores com pedras duras”. (ABBEVILLE, 1975: 60.) O padre Cardim era peremptório: “Antes de terem conhecimento dos portugueses, usavam de ferramentas e instrumentos de pedra, osso, pau, canas, dentes de animais, etc., e com estes derrubavam grandes matos com cunhas de pedra, ajudando-se do fogo; assim mesmo cavavam a terra com uns paus agudos c faziam suas [...] contas de búzios, arcos e flechas tão bem feitos como agora fazem, tendo instrumentos de ferro, porém gastavam muito tempo [...], pelo que estimam muito o ferro pela facilidade que sentem em fazer suas cousas com ele, e esta é a razão

porque folgam com a comunicação dos brancos”. (CARDIM, 1978: 112.) O irmão Pero Correa, que chegara ao Brasil, em 1534, portanto nos primeiros momentos da colonização, como já vimos, registrou o imenso apresso

dos brasis pelas ferramentas agrícolas européias e os

períodos de carência aguda de alimentos a que as populações da costa estavam submetidos: “[...] porque eu vi, nestas partes do Brasil, nos tempos em que

os índios não tinham com o que fazer roças, ser a fome tanta, entre eles, que morriam de fome e ven-

diam um escravo por uma cunha [...] e também vendiam os filhos e as filhas e eles mesmos se entregavam como escravos”. (LEITE, 1956: 446.)

Os brasis tudo faziam para obter os apreciados produtos. Preparavam depósitos de toras de pau-brasil próximos dos ancoradouros utilizados habitualmente pelos portugueses e franceses; acendiam fogueiras nas praias para atrair a atenção dos marinheiros dos navios que passavam ao largo; nadavam até eles

para saberem se os europeus não queriam as madei-

ras. O cosmógrafo francês André Thevet registrou a alegria dos tupinambás ao verem aproximar-se das praias um navio europeu amigo. Eles cantariam e dançariam, gritanto em tupi-guarani: - Eis um navio carregado de mercadorias! - Nós teremos nossos cestos cheios de miçangas, de tesouras, de facas, de espelhos ... (THEVET, 1953: 225.) CEDENDO AS MULHERES

À árvore que fornecia o pau-brasil podia ser “tão grossa que três homens dificilmente a abraçariam”. O “miolo” aproveitável não era muito mais grosso do que “a coxa de um homem”. (THEVET, 1953: 217.) Na produção de toras de pau-brasil, os americanos utilizavam as ferramentas fornecidas pelos europeus. Não raro, serviam-se do fogo para facilitar a derru-

bada das frondosas

árvores.

(LERY,

1961:

72-5;

MARCHANT, 1980: 20.) O caráter natural da economia tupinambá não entrava em contradição com a importância destas trocas, como afirma Florestan Fernandes: “[...] a sua economia era uma economia de subsistência. A acumulação de utilidades e a troca desempenhavam, naquela economia tribal, um papel muito limitado, alcançando acanhadíssimo desenvolvimento”. (FERNANDES, 1970: 54.) Os brasis cediam trabalho e alimentos por manuiaturados europeus. O francês Jean de Léry assinalava: “As mulheres selvagens nos traziam grandes ces85

tOs [...] cheios de ananases, pacovas e outros frutos e OS trocavam por um simples alfinete ou espelho

(LERY, 1961: 160.) As filhas, irmãs e cativas dos tupinambás eram igualmente objetos de trocas. Segun-

do Pigafetta: “Algumas vezes, para conseguir uma faca de cozinha ou outro instrumento de corte, nos ofereci-

am como escravas [sic] uma ou duas de suas filhas. [...] nunca suas mulheres”. (PIGAFETTA, 1985: 59.) Às americanas ofereciam favores sexuais por mercadorias: “As jovens vinham com frequência a bordo do

navio para oferecerem-se aos marinheiros, para obter algum presente”. (PIGAFETTA, 1985: 60.) Os brasis dedicavam-se à obtenção de outros produtos procurados pelos europeus. Jean de Léry contava que os tupinambás do Rio de Janeiro capturavam “pequenos macacos pretos” “derrubando-os das

árvores a flechadas”. Os animais que caíam feridos ou

atordoados eram “curados e domesticados” para serem trocados com os estrangeiros. (LERY, 1961: 129.) O francês relatava que, “se o viajante” se sentisse “cansado”, bastava “acenar com uma faca para que os selvagens” se oferecessem “como carregadores”. (LERY, 1961: 215.) O historiador Alexander Marchant sugere que “o comércio entre portugueses e indígenas tenha contribuído para desenvolver a plantação destes, que começaram uma espécie de superprodução para exportar”. (MARCHANT, 1980: 55.) Parte dos cativos de guerra, destinados a serem devorados, era escambada

com os europeus. (LERY, 1961: 91.) Sem os apreciados manufaturados, as relações entre europeus e brasis comprometiam-se. Em março de 1554, em carta escrita da capitania do Espírito Santo, o padre Brás Lourenço contava, aos jesuítas de Coimbra, as peripécias que vivera, quando de seu naufrágio, nas imediações do rio Caravelas. Inicialmente, os lusitanos haviam sido socorridos pelos brasis da região. A seguir, sem bens para escambar, tudo piorara: “E ali estivemos, uns oito ou nove dias,

passando muita fome, porque não havia o que comer,

pois estes negros [brasis] só fazem algum bem a quem os paga”. (LEITE, 1957: 43.) As relações dos brasis com os “brasileiros” eram

:

determinadas pela necessidade americana de manter a

fonte de abastecimento de manufaturados europeus. Superestimando a capacidade militar de seu país no Brasil, Jean de Léry lembrava que bem “sabiam os tupinambás [tamoios], já inimigos dos portugueses, que se matassem um francês, guerra terrível lhes seria declarada e ficariam privados para sempre de merca-

dorias”. (LERY, 1961: 218.) Em pouco tempo, tornou-se muito forte a dependência dos povos da costa às ferramentas européias. Mesmo quando os portugueses começaram a ocupação colonial do litoral, comunidades americanas teimaram em manter contatos que punham em perigo sua própria sobrevivência. O primeiro donatário da capitania da Baía, Fran-

cisco Pereira Coutinho, desembarcou em sua possessão e viveu, alguns anos, em paz com os nativos. A

necessidade de braços escravos e de terras para os engenhos certamente o atritou com os numerosos tupinambás locais. Após defender-se por sete a oito anos da violenta resposta dos americanos e ver os dois engenhos da região serem incendiados, refugiou-se com sua gente na vizinha capitania de llhéus. Segundo Gabriel Soares, Coutinho retornou à capitania da Baía a pedido do gentio, “movido também de seu interesse, vendo que como se foram os portugueses lhe iam faltando os resgates [produtos europeus)”. (HCPB, III: 248.) Naufragando na viagem de volta, terminou caindo nas mãos e sendo executado por uma comunidade tupinambá da ilha de Itaparica, talvez mancomunada com os entrelopos franceses e oposta ao retorno dos lusitanos. CRISTÃOS POR UM ANZOL

Os jesuítas chegados ao Brasil com o primeiro governador-geral logo compreenderam a dependência dos brasis dos manufaturados europeus. Em 1553, o padre Manoel da Nóbrega pediu que lhe mandassem “ferro e aço” para que um irmão da Ordem produzisse “anzóis e facas para melhor” atrair os nati-

vos. Meses antes, escrevera a dom João III sugerindo

qi

que a Coroa condicionasse o comércio à conversão:

“[...] e tem [o gentio] tanta necessidade de resgate, sem o qual não terão vida, ainda que [...] nos pudessem botar da terra, não lhes convinha, e se os obrigarem a serem cristãos para poderem resgatar, facilmente o farão [...]”. (NOBREGA, 1988: 135.) Na carta de 1552, 0 próprio Manocl da Nóbrega assinalava as razões que inviabilizavam ta] medida,

Naquele então, a necessidade dos portugueses dos

produtos e do trabalho dos brasis era ainda maior do

que a dependência dos autóctones das ferramentas curopéias. É “porém a necessidade que temos deles e de seus serviços c mantimentos [que] o não permite [...]” [implementar a sugestão]. (NÓBREGA, 1988: 135.) Alguns anos mais tarde, desesperado com a “ins-

tabilidade” dos brasis, o sacerdote lamentava-se: “TE=]

quando vêm à minha tenda, com um anzol que lhes

dê, os converterei a todos, e com outros, os tornarei a

desconverter [...)”. (NÓBREGA, 1955: 221.)

Na disputa pelo controle das reservas de pau-brasil, circunstâncias ainda parcialmente desconhecidas levaram a que portugueses e franceses estabelecessem relações privilegiadas e verdadeiras alianças políticas com as duas grandes “nações”

tupinambás que se combatiam ao longo do litoral. Os franceses - mair, na língua da terra - aliaram-se aos “tupinambás”. Os portugueses ou pero -, aos

tupiniquins. (THEVET, 1978: 100; 1983: 51.) Nem mesmo a inimizade dos “tupinambás” com os portugueses e a dos tupiniquins com os franceses impedia que eles escambassem os desejados produtos com os fidagais inimigos europeus.

Apenas chegados às praias brasílicas, os companheiros de viagem de Jean de Léry trocaram com os margaiás - grupo tupiniquim do Espírito Santo inimigo dos franceses - facas, espelhos, pentes e outros produtos por farinha de mandioca, carne de capivara, frutas, etc. (LERY, 1961: 72.) Em meados de 1554, Hans Staden, prisioneiro dos tamoios do Rio de J aneiro, assistiu ao escambo praticado pelos nativos desta região

com os tripulantes de um navio português da vizinha

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donataria. A capitania de São Vicente fechara à pro-

gressaão daquela nação em direção ao sul. Segundo ele, cram comuns estas incursões portuguesas pacíficas nos territórios dos nativos inimigos.

“É uso dos portugueses - registrava Staden -

viajar pela terra de seus inimigos, bem municiados

todavia, c com eles comerciar. Dão-lhes facas e se-

gadeiras em troca de farinha de mandioca, que os índios têm em grande quantidade nalgumas regiões. impregam a farinha para alimentar os numerosos escravos que mantêm em suas plantações de cana de açúcar. Quando chegam os navios dos portugueses, dirigem-se para eles um ou dois índios numa canoa,

c alçam-lhes as mercadorias tão depressa quanto possível. Pedem então o quê querem em troca e os por-

tugueses lhos entregam.” (STADEN, 1974: 115.) Tal foi o impacto dos instrumentos europeus de ferro nas comunidades americanas que clas, quando começaram a sentir-se inevitavelmente vencidas pela

ocupação territorial lusitana, iniciada a partir da ter-

ceira década do Quinhentos, intuíram que a vitória dos invasores devera-se sobretudo a uma mais desenvolvida parafernália técnico-produtiva. O sacerdote francês Claude d" Abbeville, que viveu entre os tupinambás, registrou o patético mito da agonia tupinambá diante do invasor branco, contado por Japi-açu, principal de grande prestígio entre as 27

aldeias da atual ilha de São Luís, no Maranhão.

“Éramos uma só nação vós e nós - afirmava o chefe tupinambá -; mas Deus [...] enviou seus profetas [...] para instruir-nos [...]. Apresentaram esses profetas ao nosso pai [...] duas espadas, uma de madeira e outra de ferro e lhe permitiram escolher. Ele achou que a espada de ferro era pesada demais e preferiu a de pau. Diante disso, o pai de quem descen-

destes, mais arguto, tomou a de ferro. Desde então

fomos

miseráveis

[...].” (ABBEVILLE,

1975:

61.)

Após mais de um século de contato com os europeus, os brasis já tomavam como sua a explicação européia do atraso civilizatório dos americanos devido a uma pretensa preguiça ancestral brasílica.

O

Capítulo 13 Es

Um Brasil para os colonos

O ano de 1530 marcou uma importante mudança no comportamento da Coroa portuguesa em relação às possessões americanas. Até então, ela

limitara-se a explorar diretamente os recursos da des-

coberta e a arrendar os direitos de fruição do pau-brasil e das outras riquezas dos novos domínios. A proteção do litoral e a vigilância do respeito das prerrogativas monopólicas reais eram entregues aos arrendatários e, mais tarde, a expedições guarda-costas que se autofinanciavam, parcial ou totalmente, explorando os produtos da terra. No litoral brasílico permaneciam apenas alguns pequenos grupos de degredados e “brasileiros”. Em dezembro de 1530, uma poderosa esquadra foi enviada

à Terra do Brasil

- duas naus, duas

caravelas, um galeão. Ela transportava em torno de quatrocentos homens fortemente armados, entre eles italianos e alemães. Martim Afonso de Sousa, mem-

Desta viagem resultou a fundação, em 1532, da Vila de São Vicente, no litoral paulista e, a nove léguas de distância, no planalto, da Vila de Piratininga, que não prosperou. Iniciava-se a ocupação territorial do Brasil. (MARCHANT, 1980: 36-9.) São compreensíveis as ordens de explorar rios e sertões e de iniciar o povoamento da terra. Dom João III tentava desesperadamente encontrar um caminho - mais ou menos lusitano - até as proximidades das minas da América hispânica. No início da terceira década do Quinhentos, a

Europa extasiava-se com a saga do espanhol Hernán Cortés (1485-1547). De 1519 a 1521, com um punhado de espanhóis e aliado a milhares de nativos ex-tributários dos mexicanos, ele conquistara, rapinara

e destruíra o império asteca. (CORTES, 1991 -) Um ano

cebera ordens de combater os franceses que encontrasse no litoral; de enviar para Lisboa carregamentos de pau-brasil e, sobretudo, de explorar o litoral, o interior e os rios da Prata e Amazonas. Cumpridos os

antes da partida da armada portuguesa, outro súdito de Castela, Francisco Pizarro, iniciara a conquista do Peru (1529-35) que lhe permitiu apoderar-se das vertiginosas riquezas do império incaico. Desde 1504, através do rio da Prata, os portugueses tinham notícias - bastante imprecisas - sobre as Tiquezas e as civilizações do Peru. (ABREU, 1976: 50.)

povoar” fossem desembarcados no Novo Mundo.

peciarias reativou-se e Veneza voltou a ser um grande importador e distribuidor de especiarias”. (ARNOLD,

bro da nobreza e comandante da belicosa armada, re-

objetivos da expedição, as instruções reais determinavam que os tripulantes, “que lá” quisessem “ficar e

j

a

e

oh

Em torno de 1520, “o comércio terrestre das es-

89

1983:32.) As drogas trazidas pelos portugueses das Índias encareciam-se e deterioraravam-se devido às longas viagens marítimas. A crise do estanco português da pimenta e das outras especiarias coloca-

va em dificuldade a Coroa. Cresciam os gastos reais € decaiam as rendas das Índias. A elite portuguesa pen-

sava resolver os problemas financeiros “aproximando-se”da prata hispano-americana. PROTEGER PARA NÃO PERDER

A partida de Portugal de Martim Afonso preocupou sobremaneira a corte espanhola, Em contínuo contato com seus espiões, ela só teria suspirado com alívio quando o jovem nobre português voltou, em meados de 1533, confessando o seu fracasso. Fora

impossível encontrar uma passagem fluvial ou terrestre até as proximidades das minas espanholas. No século 16, e por muito tempo ainda, acreditava-se que as costas pacíficas da América do Sul se encontrassem bem mais próximas das atlânticas, do que realmente estão.

Os fabulosos tesouros que os espanhóis iam extraindo a ferro e fogo das sofridas populações americanas aconselhavam os lusitanos a melhor proteger o Brasil. Tinha-se certeza que as possessões portuguesas também revelariam, logo, ricas minas de pedras e metais preciosos. No Quinhentos, era reduzido o conhecimento mineralógico europeu, em geral, e português, em especial. Já assinalamos que, na Antiguidade, Ptolomeu ensinara - e o homem renascentista ainda cria - que o ouro e a prata nasci-

am e cresciam em terras exóticas, tórridas e distan-

tes. Uma descrição perfeita da colônia americana. Em 1572, Pero de Magalhães de Gândavo, registrou, em seu Tratado da Província do Brasil, as expectativas - e desilusões iniciais - sobre as riquezas minerárias da colônia: “E também se espera desta província que por tempo floresça tanto na riqueza como as Antilhas de Castela, porque é certo ser em si a terra mui rica e haver nela muitos metais, os quais 90

até agora se não descobrem [...]”. (GÂNDAVO, 1965:

61.) Até o achamento das Minas Gerais, em fins do século 17, abundaram reflexões como esta na litera-

tura lusitana da época.

As frequentes visitas dos súditos de Francisco] obrigavam os lusitanos a ocuparem territorialmente o Brasil. O desabusado rei francês afirmava desconhecer o testamento em que o avô Adão legara a he-

rança americana apenas aos primos ibéricos. “Je voudrais bien voir la clause du testament d' Adam qui m'exclut du partage du monde!” (HCPB, 1924; 64.) Ele desconhecia simplesmente direitos de terceiros sobre terras apenas avistadas ou rapidamente visitadas. Para ele, apenas a ocupação territorial efetiva criava direitos sobre as conquistas.

Em 1504, a nave L' Espoir, de Honfleur, de 120 toneladas e 60 tripulantes, de propriedade do capitão de Goneville e associados, perdendo-se na rota das Índias Orientais, terminou arribando nas costas

brasílicas, onde permaneceu por quase um ano. Talvez mesmo antes destes feitos, navegadores bretões,

normandos e outros visitavam estas regiões à procura de pau-brasil, de papagaios, de algodão, de sagúis, de peles e de penas de animais e de outros gêneros exóticos. (AVEZAC, 1869: 60-110.) Este comércio levou a que os franceses estabelecessem firmes alianças com diversas comunidades “tupinambás”. Era natural que procurassem usar seus aliados para fun-

dar - como tentaram, efetivamente, em 1555 e 1612 colônias permanentes no litoral. DOANDO TERRAS

Incapaz de financiar apenas com seus recursos a ocupação territorial do Brasil, a Coroa portuguesa lançou mão de uma medida que vingara na ilha da Madeira, nos Açores e em outras regiões das descobertas: as capitanias hereditárias ou donatarias. Como se cortasse um pão de sanduíche, dividiu o Brasil em quinze “fatias” de cinquenta léguas de beira-mar. Essas possessões destinavam-se a lusitanos de alto rango

com cabedais suficientes para financiarem a colonização dos “feudos”. Devido ao pouco interesse dos

“grandes” do Reino, as donatarias foram entregues a

membros da pequena nobreza. As donatarias eram uma criação de inspiração feudal. No Novo Mundo,

esta instituição terminou assumindo um caráter radi-

calmente diverso. O rei continuava senhor das capitanias e os donatários detinham direitos (eminentes, alodiais e hereditários) sobre as mesmas. As capitanias eram

inalienáveis. Mais tarde, outras donatarias foram acrescidas às iniciais. As capitanias podiam ser hereditárias ou reais. As últimas pertenciam à Coroa que as colonizou e explorou às suas custas. As cartas de doação e de foral investiam os donatários com

amplos

poderes civis, criminais, administrativos €

tributários. Eram juízes de apelação em casos menores e podiam aplicar a pena de morte, se o réu não fosse pessoa de alto rango. Tratando-se de crime de heresia, traição ou sodomia, nem mesmo os nobres se furtavam à pena máxima. Os donatários podiam fundar vilas, conceder direitos municipais, instituir certas taxas, etc. Eles recebiam dez léguas não contínuas de terra como propriedade pessoal. Sobretudo, deviam distribuir, livre e gratuitamente, os territórios restantes aos colonos - “sem foro, nem tributo algum?, a não ser o “dízimo de Deus? sobre a produção das terras recebidas, pago à Coroa. Os donatários recebiam alguns impostos e a décima parte do dízimo real - a redízima. (SALVADOR, 1982: 104.) A Coroa reservava-se a cunhagem de moedas e o monopólio das drogas, das especiarias e do pau-brasil. Além do dízimo de todos os bens produzidos na colônia, era devido à Coroa o quinto dos minerais (cobre, estanho, ouro, prata, etc.) e de outras riquezas (pé-

rolas, coral, diamantes, etc.) eventualmente existentes na capitania. Os capitães-mores possuíam outros privilégios, entre eles, o importante direito de conceder

licenças gravosas para a construção de engenhos açucareiros e receber os correspondentes foros. Os colonos gozavam de plenos direitos sobre as terras recebi-

das - sesmarias -, desde que as ocupassem, em quatro mescs, c as explorassem, por três anos. (LEITE, 1956; 198.) Como vimos, eram obrigados apenas ao pagamento de uma espécie de imposto territorial, o dízimo devido ao mestrado de Cristo.

O processo de fundação das capitanias foi em

geral o mesmo. Os donatários reuniam o maior nú-

mero possível de colonos e atraíam sócios endinheirados para a aventura. Em geral, uma ou duas naus partiam, de Portugal, abarrotadas com algumas dezenas de migrantes, armas, ferramentas, sementes,

animais, mercadorias para o escambo, etc. Ao che-

garem à donataria, procuravam um ancoradouro natural c bem protegido. A seguir, os migrantes erguiam um fortim provisório € iniciavam a construção de uma vila, em geral sobre posições elevadas e, por-

tanto, fáceis de serem defendidas.

PEQUENA COLÔNIA A câmara municipal, a igreja, a cadeia, o hos-

pital e a casa de arrecadação eram os primeiros edifícios públicos levantados. Tratavam-se de minúsculas colônias na vasta e povoada costa brasílica. Os donatários deviam encarregar-se de abastecer ininterruptamente a frágil colônia em homens e bens. O que eles faziam, com grandes gastos e, sobretudo, com as eventuais entradas oriundas das relações mercantis estabelecidas com a metrópole. Ao chegarem ao Brasil, conscientes do isolamento e da inferioridade numérica em que se encontravam, donatários e colonos procuravam manter relações de boa-vizinhança com os nativos. Portanto, a primeira grande preocupação era proteger a vila com uma muralha ou fosso e estabelecer laços de amizade com os habitantes da região. As terras circunvizinhas à vila eram entregues, como sesmarias, aos colonos para que iniciassem as roças e plantações. Se a região permitisse, plantavam-se canas e levantavam-se engenhos. (MARCHANT, 1980: 45-6.) As comunidades americanas forneciam geralmente alimentos para os

91

Tecém-chegados e ajudavam na construção das primeiTas edificações. (SALVADOR, 1982: 115.)

Os contatos iniciais entre os colonos e os ame-

Ticanos apenas aprofundavam e sistematizavam OS habituais padrões de troca estabelecidos durante os

trinta primeiros anos pós-descobrimento. Para obterem produtos europeus, os brasis caçavam para os colonos, forneciam-lhes materiais de construção, cediam-lhes o excedente da produção de suas roças ou, até mesmo, suas filhas e irmãs. Em troca de ferramentas, trabalhavam episodicamente como operários na construção das vilas e fortificações e na organização dos primeiros engenhos e sementeiras. (SALVADOR, 1982: 119.) | Por muitos anos, as hortas americanas contri-

buíram para a alimentação dos recém-chegados. Isto, mesmo após os colonos terem iniciado e desenvolvido suas plantações. Em troca das ferramentas européias, os nativos cediam igualmente aos portugueses alguns cativos que haviam sido aprisionados para serem abatidos e devorados nos festins canibalescos. Entretanto, o estabelecimento de colônias lusitanas

permanentes ensejava contradições econômicas que corroíam as relações pacíficas propiciadas pelo escambo. O alto valor de uso dos produtos europeus levava a que os americanos investissem - voluntária e periodicamente - longas e extenuantes jornadas de trabalho na produção dos serviços e bens exigidos pelos colonos. Obtidas sobretudo as ferramentas européias, os brasis voltavam às ocupações habituais. No início, apenas os “brasileiros” trocavam manufaturados europeus por pau-brasil, cativos e outras produtos. Com a chegada dos colonos, estes gêneros passaram também

a ser escambados pelos serviços, cativos, caça, bens agrícolas, etc., que os recém-chegados necessitavam.

PRIMEIRA INFLAÇÃO

Os brasis controlavam os meios de trabalho indispensáveis à produção dos bens necessários à sua

subsistência. Portanto, não eram obrigados a aceitar regimes draconianos de trabalho. Os limites das ne-

cessidades dos nativos com relação a ferramentas determinavam que eles tendessem a exigir uma quan-

tidade crescente de manufaturados em troca dos produtos e serviços que prestavam. Para um tupinambá, não teria grande sentido acumular mais de um machado ou podadeira. Um importante reflexo do cres-

cimento do volume do escambo entre europeus e americanos foi a valorização do trabalho do nativo.

Esta forma de “inflação” favorecia os brasis e prejudicava os lusitanos. O historiador Alexander Marchant escreveu, referindo-se ao escambo, realizado em Pernambuco, na quarta década do Quinhentos: “Realmente, a recusa dos índios em trabalhar

senão em troca de outros e mais valiosos objetos determinou uma alta no custo da vida para Os portugue-

ses”. (MARCHANT, 1980: 58.) O Regimento Real entregue ao primeiro governador-geral do Brasil,

lomé de Sousa (1549-53), ordenava que ele instituisse preços máximos a serem pagos, em mercadorias, pelo pau-brasil. Em palavras contemporãneas, o tabelamento do valor do “salário”.

Reza o documento dado a Tomé de Sousa, em

1549: “[...] limiteis os preços que por ele (o pau-brasil) houverem de dar nas mercadorias que correm na terra em lugar de dinheiro [...]”. (HCPB, II: 349) Com o tabelamento”, tentava-se pôr fim a esta crescente valorização da força de trabalho dos nativos. Em março de 1553, 0 irmão Pero Correa, que vivera os primeiros

anos da colonização, referiu-se, explicitamente, ao “encarecimento” do valor do trabalho americano: “Um dos motivos porque os índios [...] estão agora mais guerreiros e mais maus [...] é porque nenhuma necessidade têm das coisas dos cristãos. Têm as casas cheias de ferramentas, porque os cristãos andam, de lugar em lugar, e porto em porto, enchendo-os com tudo o que

querem”. (LEITE, 1956: 441.) A organização das primeiras plantações sacaríferas no Brasil exacerbou as contradições entre portugueses e nativos. Para ser rentável, a agromanufatura do açúcar exigia que operários permanentes labutas-

sem longas e duras jornadas de trabalho. Voluntariamente, os brasis não se empregariam nestas atividades, a não ser por períodos breves € convenientemen-

te retribuídos. Os peões lusitanos cram poucos € não aceitavam igualmente tais condições de trabalho. Alta

remuneração da mão-de-obra do engenho inviabilizaria a produção mercantil do açúcar.

Como veremos, com mais vagar, no próximo capítulo, os lusitanos lançaram mão da solução escravista praticada nas unidades açucareiras do Mediterrâneo e

das ilhas do Atlântico quando enfrentaram o problema da força de trabalho no Brasil. Não se tratava de colonizar, civilizar ou catequizar o Novo Mundo: pretendia-se apenas explorá-lo. Em toda economia mercantil, o deus

ex machina da vida social é o lucro. A escravidão do trabalhador dos engenhos permitiria a lucratividade da aventura colonial. Não foram entretanto africanos os primeiros homens reduzidos à escravidão a trabalharem nos engenhos brasileiros. ESCRAVIDÃO VERMELHA Até começos do Seiscentos, o americano escravizado foi o grande pilar da produção colonial luso-brasileira. Nos primeiros tempos, os colonos

compraram e feitorizaram brasis aprisionados pelas comunidades aldeás aliadas. O crescimento da produção açucareira e das outras atividades determinou uma crescente necessidade de mão-de-obra servil. Os colonos passaram a feitorizar as comunidades ami-

gas e inimigas. Os nativos responderam duramente aos ataques lusitanos e à perda das terras. Tentando pacificar o litoral, a Coroa proibiu a escravização indiscriminada dos americanos. Em geral, as ordens reais foram ignoradas e as autoridades fizeram vistas grossas à desobediência. Das quinze donatarias originalmente concedidas por dom João III, algumas jamais foram ocupadas, caducando consegiientemente os direitos dos capitães-gerais. Houve donatários que perderam os bens e a vida tentando ocupar as possessões ameri-

canas. Em boa parte, o sucesso ou o fracasso da fundação das capitanias foi determinado pelo comporta-

mento inicial das populações nativas. Em algumas

capitanias, os nativos atacaram violentamente os co-

lonos antes deles fincarem os pés nas praias € iniciarem as roças € lavouras. Frei Vicente do Salvador conta em sua História do Brasil, que Pedro Góis, ao chegar à capitania de São Tomé, fundou uma povoação no rio Paraíba e ali esteve “bem os primeiros dois anos, e depois se

lhe levantou o gentio e o teve em guerra cinco ou seis anos, [...) tanto que foi forçado a despejar a terra e passar-se com toda a gente para a capitania do Espírito Santo”. (SALVADOR, 1982: 107.) Em outras donatarias, comunidades americanas da costa facilitaram a fundação das primeiras vilas e ajudaram nos duros trabalhos iniciais. No sucesso da fundação das colônias, muito

contribuiu a existência de pequenos grupos de “bra-

sileiros” radicados na região, como ocorreu na capitania da Baía e em São Vicente. Em última instância,

a sorte das capitanias dependeu da capacidade dos colonos de articularem uma economia que produzisse bens capazes de serem exportados e vendidos no Velho Mundo. Sem esta produção, não chegariam,

em troca, bens e homens, da Europa. Foi sobretudo o

açúcar que viabilizou a fixação dos lusitanos na América. Ali onde as terras permitiram o cultivo rentável da cana-de-açúcar, eles tiveram boas possibilidades de vencer as dificuldades iniciais e fundar com

sucesso vilas, fazendas e engenhos. A capitania da Baía - após um primeiro fracasso - e sobretudo a donataria de Pernambuco deveram

o sucesso de sua ocupação às excepcionais condições que possuíam para a implantação da produção açucareira - clima, terras, proximidade da Europa, etc. As capitanias do Rio de Janeiro e de São Vicente foram exceções, pois se fortaleceram relativamente apesar de não possuírem ricos engenhos. Os

vicentinos, sem

os altos rendimentos

açucareiros,

especializaram-se na captura, exportação e venda de brasis para as colônias produtoras do açúcar. 93

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Capítulo 14 EEE

Escravidão de índios

Foram americanos escravizados que labutaram nas primeiras roças, fazendas e engenhos das costas brasílicas. Décadas após a fundação das donatarias,

o esforço produtivo colonial assentava-se sobre os ombros dos brasis. Desde o início da colonização, alguns africanos escravizados foram introduzidos nas

colônias. Apenas nos primeiros anos do século 17,0 negro suplantou numericamente o americano como força de trabalho nas mais ricas donatarias luso-brasileiras. Pernambuco, a primeira capitania açucareira, efetuou esta substituição alguns anos antes. Nas colônias mais pobres, o nativo feitorizado continuou desempenhando um importante papel produtivo. Ao longo do século 16, a escravidão foi essencialmente “vermelha”. Salvo engano, não há estimativas sobre o número de brasis submetidos ao trabalho compulsório no Quinhentos. Com certeza, algumas centenas de milhares. A grande maioria desta população era de cultura tupi-guarani. Com o decrés cimo das comunidades que senhoreavam as cost as, os colonos penetraram os sertões e “desceram” pov os de cultura tupi-guarani, jê e outras, que ali se hav iam refugiado ou viviam. A partir de 1630, qua ndo os holandeses invadiram Pernambuco e se apo deraram dos principais portos negreiros lusitanos na África, houve um forte renascimento da caça e do tráf ico de

brasis. Os vicentinos tomaram o rumo do sul e prearam milhares de guaranis aldeados nas dinâmicas missões jesuíticas espanholas. Segundo o historiador John M. Monteiro, a maior parte desses cativos foi levada para o planalto paulista e empregada em uma produção triticultora de exportação. (MONTEIRO, 1994: 99 et seq.) Nas últimas décadas do Quinhentos, cativos africanos começaram a ser desembarcados, nos grandes portos coloniais brasileiros, aos magotes. Logo, O escravismo assumiria um caráter crescentemen te

negro. A partir de meados do século 17, este proces-

so estava tendencialmente consolidado. A escrav idão vermelha se reduziria a um fenômeno margin al restrito sobretudo às regiões da colônia onde não vingara uma forte economia mercantil. Portanto, zonas coloniais pobres e incapazes de financiarem a importação dos mais caros escravos africanos. Dur ante todo este tempo, aprofundou-se o acelerado processo de decréscimo demográfico relativo e abs oluto das populações nativas, agredidas pela expansão da fronteira da produção escravista, agrícola e min eradora, em direção do oeste. Em meados do Oitocentos, os povos nativo s quinhentistas tornaram-se um dos temas centrais da nascente literatura brasileira. Serviram na constru95

ção ficcional dos mitos fundadores da nacionalidade, no momento em que a elite brasileira procurava diferenciar-se da lusitana. Foram figuras de proa deste movimento a poesia de Gonçalves Dias € à ficção de José de Alencar. Sobre tal processo, assinala N. W. Sodré em sua História da literatura brasileira: “Esmiuçando as raízes e os fundamentos do indianismo,

terrupção à escravidão. Morreriam como moscas, quando arrancados da vida “selvagem” e “livre” que teriam conhecido nas “florestas'. Ao contrário, os

de motivaorigem de preconceitos, de tendências,

o “negro” uma “essência escrava”. Ele deixava de ser um trabalhador livre reduzido ao cativeiro para

ficaremos por vezes surpreendidos ao encontrar à ções que nos pareciam inexplicáveis, simples eva-

africanos se teriam mostrado Ótimos escravos: dó-

ceis, resistentes, resignados, alegres, trabalhadores. A partir destas interpretações, criaram-se, sub-repticiamente, atributos próprios à natureza hu-

mana “negra” e “indígena”. Assim, construiu-se para

sões, destituídas aparentemente de sentido, despro-

tornar-se um escravo natural, ou seja, um ser “nasci-

reduzidas a meras construções, sem nenhum laço com

desprovido dos atributos superiores e essenciais do

vidas de suportes objetivos, nuas de carnaduras,

= a realidade”. (SODRÉ, 1969: 255.) Na ocasião em que se estrutura o “indianismo

literário”, os tupinambás já faziam parte de um distan-

te momento histórico. Neste então, as elites dominan-

tes haviam construído leituras hagiográficas - media-

das pela visão iluminista do “índio bom” - sobre os povos da costa, sobre a ocupação territorial e sobre os

primórdios coloniais. Enriquecidos, transformados, refinados, estes mitos alcançam nossos dias. Difundidos pela historiografia, literatura, manuais escolares, telenovelas, mídia, etc., eles penetram e fecundam a alienada e rarefeita “memória histórica” da população brasileira. O resultado é a romântica e preconceituosa visão brasileira atual do “índio”. POUCO ESTUDADO

A substituição, como escravos, dos brasis pelos africanos, é um dos fenômenos mais importante e menos estudados da história brasileira. O desconhecimento/encobrimento das razões desta transição ensejou algumas das mais difundidas explicações preconceituosas da historiografia nacional. E moeda

corrente a idéia de que os americanos teriam sofrido

apenas transitoriamente o cativeiro. Muito cedo, eles teriam sido substituídos pelos africanos. Tal “revezamento” se deveria à “inadaptabilidade” do “índio” ao cativeiro. Os brasis teriam resistido sem in-

do” escravo ou predisposto ao cativeiro. Naturalmente

homem europeu - amor à liberdade, agressividade,

inteligência, iniciativa, etc. -, o negro possuiria as

qualidades que o destinaram, ontem como hoje, ao duro trabalho braçal e à obediência - fortaleza física, docilidade, pouca inteligência, etc. Por sua vez, o “índio” era reduzido à situação

de indivíduo próprio às selvas e impróprio à civilização. F. V. de Varnhagen falava das comunidades brasílicas como populações “mais ou menos erran-

tes” que “desfrutavam, sem os benefícios da paz nem

da cultura do espírito, do fértil e formoso solo do Brasil - antes que outras [populações] mais civilizadas as viessem substituir, conquistando-as e cruzando-se com elas, e com outras trazidas d'além

dos mares [...]”. (VARNHAGEN, 1978: 1, 52.)

Indolentes, instáveis e rebeldes, os brasis revelar-se-1am aos colonos imprestáveis ao trabalho

produtivo sistemático. Seriam portanto verdadeiros

arcaísmos históricos destinados inevitavelmente a desaparecerem com o avanço da civilização. Fenô-

menos próprios à história da exploração da força de trabalho passavam a ser explicados como inelutáveis consequências de naturezas humanas diferenciadas. No Quinhentos, o cativeiro era uma instituição

com profundas e antigas raízes na história portuguesa. Em meados do segundo século de nossa era,

legiões romanas ingressaram na Lusitânia, para ali per-

manecerem por quinhentos anos. A ocupação itálica ensejou a difusão das culturas do trigo, do vinho e das

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oliveiras. O historiador lusitano Antônio José Saraiva

lembra que, após uma forte resistência militar, os nati-

vos desceram dos povoados localizados nas “ásperas

serranias |...) para as terras de planície, ligadas a centros urbanos onde se falava o latim e se aplicava o direito de Roma”. (SARAIVA, 1987: 24.) PRIMEIRA ESCRAVIDÃO

A instituição escravista assumiria, na Lusitânia,

uma certa importância, sob a influência romana, quando desta passagem forçada de uma organização nativa

essencialmente gentilícia a uma outra, conhecedora das

divisões classistas e do regime de propriedade privada da terra. Como na península Itálica, a unidade agrícola dominante local era a vila rústica. Como em outras regiões do Império, ela apoiava-se sobretudo na

mão-de-obra escrava e exportava boa parte de sua pro-

dução para o mercado italiano. Com a crise da produção escravista romana, a Lusitânia viveu as chamadas invasões bárbaras e o Início da alta Idade Média. O comércio de longa distância decaiure a economia assumiu um caráter tendencialmente natural. A escravidão deixou de

constituir a forma dominante de trabalho, mas não

desapareceu das vilas e dos campos. Mais tarde, os intermináveis combates travados, quando da ocupação muçulmana da península, propiciaram as melhores condições para que cristãos e maometanos se escravizassem, uns aos outros, em nome da “verdadeira fé” e das necessidades de braços servis. Em Portugal, a grande peste de 1348 e a subsequente hecatombe populacional aceleraram o processo de emancipação da servidão da gleba e um fortalecimento relativo das práticas escravistas. A caça ao escravo africano foi um dos principais incentivos da aventura marítima lusitana. Apenas a partir de então, a escravidão ibérica começou a ter um caráter etnicamente africano. “A expulsão dos mouros da Península Ibérica e os efeitos da pest e negra - lembra o historiador David Arnold - tin ham

deixado o sul de Portugal quase desabitado”

(ARNOLD, 1983: 26.) Cativos africanos supririam em parte esta carência de braços. Com o início da produção açucareira nas ilhas atlânticas, um outro pólo consumidor de trabalhadores feitorizados juntou-se ao mercado ibérico.

O comércio português de escravos desenvolveu-se com rapidez. Em 1482, na África Negra, começou-se a construir o futuro grande empório escravista do castelo de São Jorge da Mina. Em 1486, em Portugal, fundou-se a Casa dos Escravos, para melhor controlar o rendoso comércio africano de homens. Em meados do século 16, Lisboa possuiria em torno de cem mil habitantes. Estima-se que 10% desta população constituía-se de escravos e libertos

negros. Grande parte dos cativos trazidos da África ecra exportada para a Espanha. Quando da descoberta

do Novo Mundo, havia muito que o comércio de homens enriquecia a Coroa e as classesmercantis lusitanas. (ALMEIDA, 1978: 58, 63.) Apenas chegado ao Novo Mundo, Cristóvão Colombo registrou a reflexão que os pacíficos autóctones certamente resultariam em bons “servicais”. Na sua segunda viagem, o Almirante permitiu a escravização dos nativos e propôs aos soberanos espanhóis que enviassem navios carregados de “cabeças de gado”. Eles levariam, na torna-viagem, como pagamento, “escravos destes canibais”. (COLOMBO, 1984: 123.) Em fevereiro de 1495, quando do retorno das caravelas da segunda expedição colombiana, 550 americanos foram embarcados como cativos. Apenas uns duzentos desembarcaram vivos na Espanha. (TODOROF, 1982: 53.) Referindo-se à sua segunda viagem transatlântica, de 1499-1500, Américo Vespúcio relataria com grande naturalidade: “[...] e como já andava a gente cansada e fatigada, por ter já estado no mar cerca de um ano, |...) acordamos fazer uma presa de escraVos, € carregar os navios deles, [...] e fomos a certas ilhas, e tomamos à força 232 almas, e carregamo-la s, é tomamos a direção de Castela, [...]”. (VESPÚCIO, 1984: 61.) 97

ANTES DA COLONIZAÇÃO Nos primeiros tempos, os “brasileiros' serviramse do trabalho voluntário dos americanos para obtevalor tem pau-brasil e outros produtos. O: elevado

. Mercantil dos gêneros do Novo Mundo

permitia a

. Temuneração do esforço. e dos produtos dos brasis com objetos europeus. Já neste então, pequenas quantidades de nativos eram adquiridas e levadas como OS cativos para-o Velho Mundo, como comprovam - registros da carga da nau Bretoá que, em 1511, carregou para a Europa 36 cativos, em grande parte mulheres. Sabemos igualmente que uma outra caravela, aprisionada em Cadiz, em 1514, transpor-

tava 20 prisioneiros americanos. (ABREU, 1976: 52.)

Conta um relato de uma expedição de brasileiros, 4

nova gazeta da terra do Brasil, escrita em alemão,

em 1515: “O barco sob a coberta está carregado de pau-brasil, sobre a coberta está cheio de jovens, rapazes e meninas, que custaram pouco aos portugãeses, porque a maior parte fora entregue por livre vontade. Porque ali o povo pensa que seus filhos viajam para a terra prometida”. (GIUCCI, 1992: 208.) Seriam poucos os navios de “brasileiros” que não portaram'algumas dezenas de americanos para serem vendidas na Europa. Assim sendo, a escravização de americanos antecederia a própria colonização. En-

tretanto, há indícios que sugerem não terem os fran-

ceses praticado sistematicamente este tráfico. Em 1534, ao conceder as donatarias, dom João

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“WFlegalizara de fato a escravização dos brasis ao

permitir que.os.donatários capturassem, anual e gra-tuitamentescalgumas dezenas de cativos, para.o uso. - "pessoal e pãtaexportação. O Tustoriador Francisco”

“A. Varnhagen lembrava que aos capitães-perais era

lícito cativar “gentios. para seu serviço é de seus na-

vios” e maitdar “deles-a vender à Lisboa até trinta e

nove [...| cada ano, livres da sisa que pagavam todos os que entravam”. (VARNHAGEN, 1978: 1, 151.) Segundo parece, pagos os impostos reais, não haveria limite para a exportação. Este fluxo de cativos ameTicanos em direção da Europa teria sido numerica98

mente pouco significativo. Salvo engano, não existe informação documental sistemática sobre ele, Em 1537, o papa Paulo HI (1534-1549) coibiria, como

veremos, a feitorização indiscriminada de brasis.

Quando do estabelecimento das colônias, já era

antiga a tradição açucareira lusitana. No Trezentos, pequenas e médias umidades produtoras eram muito difundidas na bacia mediterrânica. Da Sicília, a pro-

dução do doce alimento foi transplantada para o sul de Portugal, para a ilha da Madeira, para a ilha de São Tomé e, finalmente, para o Brasil. Recém-chegados, ali onde

era possível, os colonos

ergueram

canaviais e engenhos. A rendosa atividade assentava-se sobre a exploração do trabalho escravo. A pro-

dução de açúcar exigia duras, longas e ininterruptas jornadas de trabalho. Como vimos, livremente, os brasis não se empregariam, em forma permanente, nestas atividades. Os colonos.pobres eram homens livres e partiam para o Novo Mundo para viverem ali uma existência melhor do que a conhecida na Europa. Eles não se submeteriam às duras condições de vida e trabalho dos engenhos e canaviais. Portugal não possuía um excedente populacional capaz de sustentar, ao mesmo tempo, a voracidade de homens da produção açucareira e a necessidade de braços da agricultura feudal metropolitana. A solução “natural” foi transplantar o mesmo regime de trabalho utilizado nas plantações do Mediterrâneo e das ilhas atlânticas. Em verdade, havia uma verdadeira simbiose entre a escravidão, a maquinaria, as técnicas e os méto-

dos produtivos açucareiros. - Historicamente,:a, escravidão dos americanos

“erga forma de trabalho que melhor garantia uma alta “rentabilidade à economia colonial. Os plántadores passaram a reduzir multitudinariamente os brasis à

escravidão. Em 1572, Gândavo comentava: “Os mo-

radores desta costa do Brasil todos têm terras de sesmaria dadas e repartidas pelos capitães da terra, e a primeira coisa que pretendem alcançar são escravos para lhes fazerem e grangearem suas roças, porque sem eles não se podem sustentar na terra [...)”.

so

(GÂNDAVO, 1965: 125.) O jesuíta Manoel da Nóbrega registrou também o recurso geral aos cativos americanos: “[...] os homens que cá vêm não têm

outra vida senão a dos escravos, que lhes pescam e buscam de comer, tanto domina aqui a preguiça [...)”.

(NÓBREGA, 1955: 80)

da defesa de Igaraçu, na capitania de Pernambuco,

assediada - se acreditamos no alemão - por oito mil

“Sselvícolas”. Da defesa da povoação, que se prolon-

gou por todo um mês, participaram noventa “cristãos” e “trinta negros e escravos brasileiros”.

NEGROS DA TERRA

(STADEN, 1974: 46.) Em 1557, o padre Manoel da

Durante a Idade Média, “sicilianos”, “corsos”,

“pregos”, turcos”, “berberes”, “negro-africanos”,

ou foi introduzido quando do início da agro manufatura do açúcar. Em 1548, durante sua primeira viagem ao Brasil, o mercenário Hans Staden par ticipou

“por-

tugueses”, “marroquinos”, “marselheses”, etc., eram

feitorizados ao sabor dos azares das razias escravizadoras e do fluxo do comércio mediterrânico de es-

cravos. Não havia associação de uma “raça” ou “etnia” específica à escravidão. A partir de 1441, populações negro-africanas começam a ser trazidas, como cativos, em grande número, pelos portugueses, para a Europa. Calcula-se que, no Quatrocentos, Portugal tenha embarcado em torno de cem mil escravos africanos. A Península Ibérica foi o grande mercado consumidor destes cativos. Em 1492, com a descoberta

da América, boa parte deste fluxo escravista foi reorientado para as colônias espanholas. O tráfico africano de escravos antecedeu a es-

cravidão de americanos. Na terceira década do Qui-

nhentos, quando os primeiros brasis começaram a ser feitorizados, havia quase cem anos que populações negro-africanas eram mercantilizadas pelos escravistas europeus. Naquele então, as categorias “negro” e “escravo” já se tinham tornado sinônimos. Compreende-se por que o americano feitorizado era comumente chamado de “negro da terra”. Desde os primeiros tempos da Colônia, alguns africanos escravizados integraram as tripulações dos navios lusitanos como marinheiros e grumetes. Um número indeterminado de africanos foi trazido para o Brasil com os primeiros colonizadores

Nóbrega, da capitania da Baía, pedia ao rei uma es-

mola de alguns escravos africanos para os Jesuítas, visto que, “negros da terra”, não lhe parecia “bem tê-los?. Na ocasião, o sacerdote registrava que, “des-

tes escravos de Guiné”, mandava o soberano “mui-

tos à terra [do Brasil)”. (LEITE, 1957: 411.) Nesse

contexto, “Guiné” era sinônimo de África Negra. Esta primeira população negra reduzida à escravidão era numericamente insignificante, se com-

parada à americana. Nestas épocas, os cativos africanos eram empregados sobretudo nas tarefas

domésticas e como capatazes. Eram os brasis que se ocupavam dos trabalhos mais duros. Na capitania da Baía, os próprios jesuítas haviam possuído “três ou quatro? africanos, favorecidos pelo rei. Eles

tinham morrido, como relata Nóbrega, ao fazer novo

pedido ao soberano. Na ocasião, sobrava apenas

“uma negra”.

Sobre a africana, o padre Manoel da gistrava - em forma bem pouco “feminista” ta: “[...] [ela] serve esta casa lavando roupa não o faça muito bem, excusa-nos muitos

Nóbrega ree algo ingrae, ainda que trabalhos”.

(LEITE, 1957: 411.) O inventário de Mem de Sá, tercei -

ro governador-geral e talvez o mais rico proprietário da capitania da Baía de sua época, lavrado em março de 1572, registrou 259 escravos como parte do espólio. Destes, apenas 18 homens e duas mulheres eram africa nos - “Guiné”. Pouco mais de 7% da escravaria. As mulheres, segundo o documento, ocupavam-se em tarefas domésticas. (WETZER, 1972: 236.)

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Capítulo 15 ==

Cativos aldeões e escravos coloniais

As reservas tupinambás de cativos eram redu-

zidas. Em 1612, no Maranhão, um principal voltava de uma “guerra sangrenta que durara seis meses” trazendo apenas onze escravos “de diversas nações”. (ABBEVILLE, 1975: 121.) Os brasis não conheciam a escravidão. O cativeiro é um fenômeno recente na história da Humanidade. Ele pressupõe um desenvolvimento mínimo das forças produtivas e das relações sociais de produção. O homem só escraviza seu semelhante quando pode apropriar-se de parte dos produtos de seu trabalho. Ou seja, quando o nível de desenvolvimento de uma sociedade permite que o cativo produza, em forma sistemática, o necessário para sustentar-se e um excedente para o senhor. Tal excedente justifica e financia os gastos e a preocupa-

ção com o controle e submetimento dos escravos. Os tupinambás capturavam durante as campanhas guerreiras alguns inimigos para serem abatidos e devorados. Estes cativos trabalhavam para seus senhores. O missionário Yves d”Evreux afirmava que: “Devem os escravos trazer fielmente o resultado da sua pescaria e caçada e depô-lo aos pés do seu senhor ou senhora, para eles escolherem e depois lhes darem o resto”, (EVREUX, 1929: 106.) Ele mesmo recebera de um americano um “escravo forte e robusto, bom pescador e caçador “[...)”. (EVREUX, 1929: 89.) Jean de

Léry anotou no mesmo sentido: “[...] se os reconhe-

cem como bons caçadores e pescadores e consideram as mulheres boas para tratar das roças ou apanhar ostras, conservam-nos durante certo tempo [...)”. (LERY, 1961: 175.) Esta forma de cativeiro teria uma instância semi-econômica transitória. As atividades produtivas masculinas tupi-guarani - a caça e a pesca -, de

resultados aleatórios, adaptavam-se mal à escravidão.

A produtivadade da horticultura era relativamente pouco desenvolvida. Nos momentos de abundância alimentar, os cativos entregariam algum excedente aos

amos. Nos de dificuldade, como toda a comunidade,

apenas conseguiriam sustentar-se. Os tupinambás cediam uma “esposa” ao cativo. Ela responsabilizava-se por sua vigilância. O cativo

tinha que se alimentar e contribuir para a alimentação

de sua esposa-guardiã. Como vimos, desconhecemos as razões cerimoniais e outras que determinavam o momento da execução. O cativo podia ser mantido vivo, durante anos, antes de ser sacrificado. Alguns, segundo Thevet, por duas décadas. Os velhos e os prisioneiros feridos eram executados após serem presos. (METRAUX, 1950: 226-48.) Os prisioneiros podiam ser abatidos quando de importantes cerimoniais. Por exemplo, para que um jovem alcançasse o status de adulto. (FERNANDES, 1970: 150.)

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Os cativos se alimentavam com o que produziam e, até mesmo, nos momentos de bonança, com 0

excedente alimentar da aldeia. É uma hipótese plausíve à de que os prisioneiros que não fossem sacrificados Por motivos essencialmente rituais, o fossem nos mo-

mentos de carestia. O certo é que as comunidades tupi-guaranis não haviam alcançado um estágio de desenvolvimento onde a produtividade do trabalho justificasse o não-sacrifício do prisioneiro e a sua uti-

lização como escravo produtivo. Devido a problemas

Por mais pobre que fosse, um europeu não viveria

sem o apoio de, no mínimo, um cativo. O mercenário

alemão Hans Staden contava: “Eu tinha um selvagem, da tribo dos carijós (guarani), que me pertencia. Apanhava-me caça, e eu ia de quando em quando com ele à floresta”. (STADEN, 1974: 78.) Ao chegar à baía de Guanabara, Villegaignon comprou aos tupinambás “trinta ou quarenta homens e mulheres margaiá” para trabalharem na construção das for-

tificações e em outras tarefas. (LERY, 1961: 91.) Dez destes brasis - “de nove a dez anos”- foram enviados

de segurança, as aldeias manteriam vivos apenas uma pequena quantidade de inimigos capturados. Os brasis destinados ao sacrifício eram conhe-

para a França e distribuídos entre o rei e altos digni-

em quase nada eles se diferiam, quanto ao físiCO € ornamentos, dos aldeões livres. A grande distinção seria um “colar conduzido ao pescoço”. Esta peça consistia “em grossa corda, dura como pau, da qual pendia, pela nuca, uma franja feita de cordeizinhos de extrema finura. Tão complicado era o nó que somente o dono podia desmanchar. Soares de Sousa assegura que esses cordéis eram enrolados em torno

do Brasil, de 1627, frei Vicente do Salvador relatava que os tupinambás vendiam aos portugueses alguns cativos presos na guerra, “por um machado ou foice, cada um”. Para os lusitanos, tal comércio livrava os brasis da morte e abria-lhes o caminho do cristianis-

cidos como “índios de corda”. Métraux explica que

do pescoço e também nos rins”. Segundo Thevet, o

colar teria outro significado, além de símbolo de escravatura. Seria um verdadeiro calendário. No colar de fio de algodão se colocariam contas de frutos ou Ossos que corresponderiam ao número de “luas” que O prisioneiro viveria antes do “banquete”. Diversos colares podiam também marcar a data fatídica. Conforme o tempo passava, tiravam-se as contas ou os

colares, um a um. (METRAUX, 1950: 233: THEVET,

1953: 196.)

POUCAS

VENDAS

No início do Quinhentos, os “brasileiros” com-

pravam pequenas quantidades de cativos aos americanos que habitavam próximos às feitorias ou percorriam as costas escambando mercadorias por prisioneiros. O mesmo fizeram os colonos ao iniciarem as roças e plantações. (SALVADOR, 1982: 119.) 102

tários da corte. (LERY, 1961: 87.) Parte dos “índios de corda” era trocada pelos apreciados manufaturados europeus. Em sua História

mo e da salvação eterna. (SALVADOR, 1982: 36.) Os tupinambás negavam-se a negociar todos os cativos.

Como veremos, em 1555, após o submetimento lusitano das comunidades americanas das cercanias de Salvador, os colonos exigiram que os brasis não devorassem, mas lhes vendessem os inimigos presos. (NAVARRO, 1988: 197.) Muito logo, os reduzidos estoques de cativos aldeões mostraram-se insuficientes para as crescentes necessidades coloniais.

Sobretudo as plantagens açucareiras consumiam grandes quantidades de braços. Em 1551, o padre Antonio Pires referia-se a fazendas pernambucanas com “duzentos escravos”. (NAVARRO, 1988: 108 ) Em 1627, o frei Vicente do Salvador afirmava que a capitania da Baía possuía cingiienta engenhos e, para cada, corresponderiam “dez lavradores de cana”. (SALVADOR, 1982: 112.) Portanto, 550 unidades açucareiras. Se tomarmos sessenta escravos por engenho e dez por lavrador, uma população servil de oito mil homens. (GORENDER, 1988: 84; SCHWARTZ, 1988: 256.) Se

trabalharmos com uma taxa anual de reposição de 69%, apenas a produção açucareira baiana consumiria, anu-

almente, 480 cativos. Ou seja, a população de uma

grande aldeia. Descontando-se apresamento, transporte, etc.

os mortos durante o

Como vimos, nos primeiros anos do século ] 7,0

ancião tupinambá Momboré-uaçu relatava que os lusitanos, após se estabelecerem em Pernambuco, teri-

am afirmado que não “podiam viver sem escravos para os servirem” e que, a seguir, os colonos não se contentaram apenas com os cativos “capturados na guerra”.

(ABBEVILLE,

1975: 115.) A contradição entre a ne-

cessidade de cativos da economia colonial e a capacidade das comunidades tupinambás de produzi-los foi o principal motivo de atrito entre lusitanos e brasis. O mesmo velho tupinambá sintetizava o desencontro

luso-tupinambá: “Mas não satisfeitos com os escra-

vos capturados na guerra, quiseram também os filhos

dos nossos e acabaram escravizando toda a nação Ele (ABBEVILLE, 1975: 115.) Muito cedo, a legislação colonial permitiu que

fossem feitorizados apenas os brasis preados durante as “guerras justas” ou legalmente comprados aos nativos. Os colonos pressionavam sem cessar os americanos para que “produzissem” um número crescente de cativos. Ao chegar ao Brasil, os jesuítas se pronunciaram com firmeza em favor dos americanos “resgatados ilegalmente” e negavam os sacramentos aqueles que não libertassem os “negros (da terra) salteados”. (NÓBREGA, 1955: 141.) Em 1549, Manoel da Nóbrega descreveu como podiam ser feitos os “saltos”: “[...] fazem pazes com os negros [brasis] para lhes trazerem a vender o que têm, e por engano enchem os navios deles e fogem com eles: e alguns dizem que o podem fazer por os negros terem

Já feito mal aos cristãos.” (NÓBREGA, 1955: 33.) PAIS E FILHOS

No ano seguinte, o mesmo Nóbrega escrevia de Porto Seguro: “Nesta terra todos os homens ou a maior parte têm a consciência sobrecarregada por causa dos escravos que possuem contra a razão, além

de que muitos que eram resgatados aos pais [...]”.

(NOBREGA, 1955: 80.) Em julho de 1559, em carta a Tomé de Sousa, ex-governador geral, o mesmo sacerdote referiu-se longamente à pressão exe rcida pelos colonos sobre os autóctones. Os portugueses

de São Vicente iam ao Rio de Janeiro onde “pediam,

por mulheres”, as filhas do “gentio do Gato”, “dan-

do aos pais algum resgate”. Elas, porém, “ficavam escravas para sempre”. Sobretudo na capitania do Espírito Santo, haviam ensinado “os cristãos ao gentio

a furtarem-se a si mesmo e a venderem-se por escra-

vos”. (LEITE, 1958: 80.) No mesmo ano, daquela capitania, o irmão

Antônio de Sá referia-se a casos de venda de famili-

ares por brasis. Um aldeão, por a filha “não querer estar com ele para fazer-lhe o que fosse necessário, vendeu-a aos cristãos”. Um outro, por “roupas” e “ferramentas”, cedera uma sobrinha. (LEIT E, 1958: 44.) Manoel da Nóbrega contava, na carta, ao ex-governador, que tais práticas eram comuns em Pernambuco e na Baía, principalmente depois da derrota e submetimento dos americanos. Na capitania da Baía, o hábito se difundira “em tempo de Dom Duarte (da Costa)”, “depois da guerra passada”. Segundo o jesuíta, “por medo e sujeição dos cristãos, e também por cobiça do resgate”, os brasis venderiam “os mais desamparados que há entre eles”, Em Porto Seguro e Ilhéus, tais hábitos não prosperavam. Po-

rém, os colonos haviam ensinado aos brasis à “salta -

rem e a venderem?” os nativos do “sertão que vinham a fazer sal ao mar”. (LEITE, 1958: 80.) Possivelmente antes de julho de 1566, dom Sebastião ditou instruções que procuravam coibir a escravização “ilegal"de nativos. Nelas, o sobera no reconhecia que brasis faziam-se passar por “pais” dos cativos que vendiam e que americanos eram ind uzidos pela “força, manhas, enganos” a venderem-s e a si mesmo. A legislação restringia a venda de “filhos” e a “autovenda” aos casos em que houvesse “extrema necessidade”. (ANCHIETA, 1946: 20.) Segu ndo parece, uma junta - sob a direção de Mem de Sá, ter-

ceiro governador-geral, facilitou tais transações que

103

seriam válidas quando determinadas por “grande necessidade”. O padre Manoel da Nóbrega opôs-se com denodo a tal interpretação e lembrou que, antes da

Chegada dos lusitanos, os brasis não vendiam, de ne-

nhum modo, seus filhos. (WETZEL, 1972: 210.) O padre Fernão Cardim lembrava que, em Pernambuco, durante a grande seca de 1583, “desceram do sertão apertados pela fome, socorrendo-se aos brancos, quatro ou cinco mil índios. Porém passado [o aperto] [...], os que puderam se tornaram ao sertão, exceto os que ficaram em casa dos brancos ou por sua, ou sem sua vontade.” (CARDIM, 1978: 199.) Nada impediria aos colonos de afirmar que os autóctones se haviam vendido, por um prato de farinha, ou seja, por um motivo de “extrema necessidade”. Os portugueses utilizavam métodos mais expeditos para suprirem suas necessidades. Era comum que incentivassem as atividades bélicas interaldeãs. O estado de guerra permanente resultava numa maior produção de cativos. Hans Staden refere-se a uma expedição tupiniquim lançada contra os “tupinambás”. Ela teria subjugado uma inteira aldeia. Conta o mercenário alemão que os velhos tinham sido devorados e “alguns jovens”, comerciados “com os portugueses”. (STADEN, 1974: 94.) Já vimos que era também comum que barcos corressem as costas segiestrando os americanos desavisados que subiam a bordo para escambar com os navegantes. As comunidades litorâneas eram assaltadas e carregadas por via marítima para serem vendidas nas

capitanias. (NÓBREGA, 1955: 32.) Em 1555, o irmão

João Gonçalves referia-se, em carta, à chegada à baía de Todos os Santos de um comerciante “com dois bergantins e um barco” com “grande quantidade de escravos salteados para vender”. (LEITE, 1957: 241.) PONDO LIMITES

Hans Staden registrou os motivos que teriam

levado os tamoios do Rio de Janeiro a se inimizarem com os lusitanos. Contavam aqueles americanos que

104

os portugueses os teriam procurado para comerciarem. E eles - registrou o europeu - “tinham ido, com muita confiança, aos navios e subido a bordo, como

fazem ainda nos dias presentes com os navios franceses; quando os portugueses conseguiram um número suficiente deles a bordo, os assaltaram, amar-

raram, conduziram e entregaram aos tupiniquins, pelos quais foram então mortos e devorados. Atiraram ditos portugueses alguns com sua artilharia e cometeram ainda outras violências e vieram com os tupiniquins para guerreá-los e fazer prisioneiros.”

(STADEN, 1974: 93)

Na capitania de São Vicente, os colonos capturaram grandes quantidades de nativos, primeiro no

planalto paulista, após nos sertões distantes. (MONTEIRO, 1994) Destacamentos de vicentinos, secundados por tropas americanas, varavam os sertões, algumas vezes durante meses e anos, e caíam como lobos esfaimados sobre as aldeias que encontravam. Os

financiadores, comandantes e participantes dessas ex-

pedições escravizadoras são apresentados pela historiografia tradicional brasileira como verdadeiros pais da pátria e construtores da nacionalidade, pois se afirma terem essas operações contribuído ao conhecimento e à ocupação dos sertões bravios. Expedições penetravam os sertãos à procura de brasis - eram as entradas, bandeiras ou descidas. Os brasis podiam ser trazidos para o litoral pela força ou

enganados. Em fins do Quinhentos, o padre Cardim contava que os tupi-guaranis tinham grande respeito aos jesuítas: “[...] e é tanto este crédito que alguns

portugueses, de ruim consciência, se fingem de padres |...] os trazem enganados, e em chegando ao mar, os repartem entre si, vendem e ferram, fazendo primeiro neles, lá no sertão, grande mortandade, roubos e saltos, tomando-lhes as filhas e mulheres, etc.[ ... 1978: 123.) Como veremos, as JP (CARDIM, “descidas” de povos do interior se generalizaram, quando as populações nativas do litoral começaram a escassear ou retiraram-se para o interior, a fim de fugir dos colonos.

O próprio Regimento do primeiro-governador

geral, Tomé de Sousa, de dezembro de 1548, punia com a “pena de morte natural e perdimento de toda a sua fazenda” aqueles que “saltassem” americanos que estivessem “em paz”. (HCPB, III: 348.) No documento, reconhecia-se que as violências lusitanas levavam os nativos a oporem-se violentamente aos colonos. Não conhecemos nenhum caso em que tal

penalidade tenha sido aplicada. A partir de março

de 1570, após ordens e contra-ordens, permitiu-se

apenas o aprisionamento quando das chamadas “guerras justas”, decretadas pelo rei ou pelo governador-geral. Em Portugal, a doutrina sobre as “guerras justas”? teria sido definida a partir do século 14. “As causas legítimas de guerra justa seriam a recusa à conversão ou O impedimento da propagação da Fé, a prática

de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses |...) e a quebra de pactos celebrados.” Na colô-

nia americana, em forma geral, teve-se como justas as campanhas contra comunidades nativas que se opuseram violentamente aos portugueses. Nestes casos, a antropofagia, a negativa a abraçar o cristianismo, etc. eram tidas como agravantes. (PERRONE-MOISÉS, 1992: 123.) Possivelmente em

1573, o rei dom Sebastião

(1554-1578) ditava que: “Nenhum índio ou índia poderão ser cativos e havidos por escravos, salvo aqueles que forem tomados em guerra Jícita [...] e assim serão escravos aqueles que os índios tomarem em guerra, e Os tiverem em seu poder por serem seus contrários, e assim serão escravos os que por sua pró-

pria vontade se venderem,

passando

de 21 anos,

declarando-lhes primeiro que coisa é ser escravo”. Entretanto, as preocupações reais devem ser relativizadas. No preâmbulo de sua carta, dom Sebastião determinava ao governador-geral que, por um lado, não fosse impedido, “de todo, o dito resgate”, devido à “necessidade que as fazendas dele” tinham. Por outro, que não fossem permitidos “resgates manifestamente injustos”, (ANCHIETA, 1946: 30-1.) As necessidades colonias de braços escravizados deviam ser respeitadas.

HECATOMBE

POPULACIONAL

Inexistem estudos monográficos precisos sobre o momento em que, nas diversas regiões, os africa-

nos superaram os brasis como força de tes estudos revelariam, em detalhes, as ciais c o ritmo desta transição. Diversas ensejado tal fenômeno. A fundamental

trabalho. Esrazões essencausas teriam foi certamen-

tc o rápido decréscimo populacional das comunida-

des do litoral, escravizadas e submetidas a toda sorte

de violências. Gabriel Soares de Sousa, em Notícia dBrasil, obra redigida possivelmente em 1587, refere-se à agonia das abundantes comunidades caetés que viviam em Pernambuco, quando do início da colonização. Elas teriam sido combatidas pelos “tupinambás” que vendiam aos “moradores de

Pernambuco e aos da Bahia, infinidade de escravos,

a troca de qualquer coisa, ao que iam ordinariamente caravelões de resgate, e todos vinham carregados desta gente, a qual Duarte Coelho de Albuquerque por sua vez acabou de desbaratar”. Segundo o senhor-de-engenho e historiador, preso entre os ataques dos lusitanos e dos “tupinambás”, “se consumiu este gentio [caeté], do qual não há agora senão o que se lançou muito pela terra dentro, ou se misturou com seus contrários”. (SOUSA, s.d: I, 116.) Observando e justificando o declínio demográfico dos nativos da costa, Gândavo afirma-

va ser impossível “numerar [...] a multidão do bárbaro gentio” que possuía o Brasil quando da descoberta e que, devido às “traições” dos brasis, os colonos “destruíram-nos, pouco a pouco”, resultando daí encontrar-se “a costa despovoada de gentio [...)”.

(GÂNDAVO, 1965: 181.)

Outras razões teriam contribuído e acelerado a transição americanos/africanos, quando os nativos começaram a escassear no litoral. A introdução de africanos permitia relações menos conflitivas com os autóctones restantes. Os brasis aculturados eram utilizados como tropas de choque no controle das escravarias negras e na defesa da colônia quando de ataques de outras potências. A heterogeneidade cul105

tural dos africanos - trazidos de diferentes pontos do continente negro - era muito superior à dos nativos, em

geral oriundos de um mesmo

tronco linguísti-

co-cultural - o tupi-guarani. qu: À pele negra identificava os cativos€ justificava”, com um critério físico exterior, a natureza servil dos africanos. Estes últimos desconheciam à terra onde eram escravizados. Dizia Gândavo que Os “escravos de Guiné” eram “mais seguros que os 11-

dios da terra porque nunca fogem nem têm para onde (fugir)”. (GÂNDAVO, 1965: 131.) O pleonasmo aparente “índio da terra” sugere que, para Gândavo, in.

dio” e negro seriam já sinônimos de escravo. Tería-

mos, portanto, o “índio da terra” e o “índio da Guiné”, como tínhamos o “negro da terra” e o “negro da

Guiné”. F. Pyrard, que esteve, em 1610, na capitania da Baía, registrou algumas das justificativas da preferência dos escravos chegados da Africa. Segundo

os portugueses, eles não ousavam “escapar ou se li-

bertar, visto que os naturais do país os capturam e os

comem”. Por outro lado, os brasis não seriam “tão trabalhadores e obedientes” como os africanos. (PYRARD, 1619: 339.) Preocupado com a expansão muçulmana € procurando conquistar aliados seguros para o combate aos “infiéis” - e, mais tarde, aos “hereges” da Reforma -, o papado entregara às coroas ibéricas a responsabilidade da evangelização americana. Elas foram investidas de amplos poderes no relativo à administração espiritual das colônias. A primeira grande concessão foi feita pelo papa Calixto III (1455-1458), na bula Inter caetera, de 13 de março de 1456, três anos após a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos. Ela concedia à Ordem de Cristo, que tinha como mestre o infante dom Henrique, a jurisdição espiritual das terras que os lusitanos haviam descoberto ou estavam por descobrir. (CORTESAO, 1975: 546.) Quando compreendeu a extensão dos territórios e das populações em questão, Roma tentou recuperar em algo o terreno perdido. Sem contrapor-se às casas reinantes, procurou reservar-se uma parcela de poder espiritual e temporal sobre as novas popula106

ções. Em junho de 1537, na bula Veritas Ipsa, o papa Paulo III determinou que os americanos fossem reconhecidos “como verdadeiros homens” e que não fossem privados “do domínio de seus bens” nem “reduzidos à servidão”, mesmo quando estivessem “fora da fé de Cristo”.

Neste breve e duro documento, o papa Paulo TI

reconhecia que os colonos, sob a desculpa de que os americanos eram “inábeis à Fé Católica”, escravizavam-nos “como animais brutos” e tratavam-nos pior que

“bestas”. Roma punha fim às dúvidas sobre a humani-

dade do “índio” e coibia, ao menos formalmente, a sua

escravização indiscriminada. O papa exigia que aquelas populações fossem “atraídas e convidadas” ao cristianismo “com a pregação da palavra divina e com o exemplo da boa vida”. (SILVA, 1919: 219; SUESS, 1992: 275.) Com tal decisão, o papado construía para a Igreja uma estratégia americana de longa duração. O objetivo

central era gerir espiritualmente os americanos, integrando-os como súditos cristãos aos novos impérios.

TODOS GANHAVAM

Muito cedo, os jesuítas compreenderam que os americanos feitorizados pelos colonos não sobreviviam e não eram cristianizados. Como solução, propuseram que os nativos fossem aldeados sob a autoridas de dos religiosos. A chegada de africanos diminuía a pressão dos colonos sobre os brasis e favorecia a proposta jesuítica. A substituição do nativo pelo africano era também do interesse da Coroa e das classes mercantis. Os brasis escravizados não rendiam lucros diretos à metrópole. Os colonos compravam-nos das comunidades aliadas ou aprisionavam-nos diretamente. No tráfico transatlântico, o africano era taxado ao embarcar na Africa e ao desembarcar no Brasil. O cle-

ro português recebia pelos batizados dos cativos, feitos em massa, nas praias africanas. A partir de 1600, os jesuítas envolveram-se a tal ponto no tráfico africano para o Brasil que chegaram a possuir navios negreiros. (ALMEIDA, 1978: 225.) 2:

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Como vimos, as primeiras leis coibindo seriamente a escravização indiscriminada de autóctones foram feitas, nos ânos 70, no reino de dom Sebas-

tião, em um momento em que a Coroa e as elites lusitanas viviam sérias dificuldades econômicas e fi-

nanceiras. Limitando-se a escravização dos nativos, tentava-se também

favorecer o tráfico negreiro, O

comércio tumbeiro propiciava o chamado “comércio triangular”. Os navios saíam da Europa abarrotados

de mercadorias. Nas costas africanas, elas eram trocadas.por homens, mulheres e crianças. Os negrei-

ros permutavam os cativos pelos produtos coloniais, que eram vendidos, a alto preço, na Europa. Navios trocavam, no Brasil, mercadorias européias por gêneros tais como fumo e aguardente e obtinham, com eles, cativos no Continente Negro. A venda da produção mercantil americana permitia que os colonos

comprassem africanos, mercadorias e gêneros euro-

peus de primeira necessidade - vinho, azeite, bacalhau, farinha de trigo, tecidos, móveis, etc. Além das “vantagens” assinaladas do “negro”

sobre o americano, um outro fenômeno, próprio ao

continente africano, parece ter desempenhado um papel essencial nesta transição. Antes mesmo da chegada dos europeus, a África conhecia um amplo movimento de circulação - local, regional e internacional - de cativos e de mulheres. (MEILLASSOUX, 1975: 509-28.) Quase “naturalmente”, este fluxo demográfico se adaptou ao tráfico transatlântico de cativos. Reinos negros escravizadores organizaram-se

em diversos pontos da costa para fornecer escravos aos europeus.A África mostraria-se um reservatório

inesgotável de ho mens: Eles eram oferecidos, abun-

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dantes, nos portos negreiros. A verd adeira especialização da produção de cativos - captura, armaze namento, embarque, transporte, venda permitiu um fornecimento ininterrupto e abundante de braços escravizados. O tráfico negreiro pacificava relativame nte o litoral. Os colonos, despreocupados com o apresa mento de brasis - muitas vezes, aleatório e perigo so - especializavam-se na produção de bens colo niais.

As necessidades de um abastecimento crescente, se-

guro e sistemático de braços escravos e a dizimaçã o dos brasis teriam portanto criado as bases para a perda de importância relativa do “negro da terra”di ante do “negro” da África. Como vimos, a partir dos anos

60 do Quinhentos, as regiões coloniais mais ric as começaram a ser abastecidas pelo tráfico negreiro. Nas primeiras décadas do século seguinte, o proces so de substituição já se realizara.

Nas regiões coloniais integradas perifericamente ao mercado internacional, a caça € a feitorização de

nativos continuou sendo a única forma de obter cativos. Nelas - São Paulo, Maranhão, Pará, etc. -, as ofen sivas dos jesuítas contra a feitorização dos brasis fracassaram e resultaram em graves crises políticas. Nessas regiões, sobretudo no século 17, os nativos foram submetidos a formas servis não-escravistas de submissã o ainda pouco estudadas. ( MONTEIRO:1994, 129-29) Em 1755, o Marquês de Pombal, procurando fortalecer os laços mercantis entre a colônia € a metrópole, ab oliu definitivamente a escravização de americanos . Ao arrepio desta e de outras leis, até a abolição da escrav atura, em 1888, a redução ao cativeiro de american os con-

tinuou sendo uma prática marginal, mas comum.

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Capítulo 16 Es

Baía

Um genocídio anunciado

A ocupação portuguesa de grande parte da costa brasílica e o extermínio das populações nativas deram-se sobretudo ao longo do século 16. De forma geral, o movimento colonizador obedeceu a um mesmo padrão. O estabelecimento e a expansão lusitana na baía de Todos os Santos foram um caso exemplar. Nesta região tropical de beleza paradisíaca, o mar aprofunda-se na terra por cerca de oitenta quilômetros, facilitando o transporte de homens e mercadorias e formando um imenso e seguro ancoradouro na-

tural. No Quinhentos, nas águas azuis do imenso recôncavo, afloravam em torno de cem ilhas, algumas de considerável porte. A ilha de Itaparica, a maior de todas, possui trinta quilômetros de extensão. As terras da orla da baía - baixas, úmidas, arborizadas eram propícias à agricultura da cana-de-açúcar, sobretudo as terras das margens norte e oeste. Grandes, pequenos e médios rios - acessíveis a

embarcações ligeiras - desagiiavam neste verdadeiro mar interior abrindo vias fluviais às terras vizinhas à

baía. (PYRARD, 1619: 329.) Pelas margens, abunda-

vam mangues ricos em caranguejos e outros crustáceos. Nestes dez mil quilômetros quadrados de superfície, viveriam dezenas de milhares de tupinambás. Em 1º de novembro de 1501, uma frota

lusitana, de três caravelas, aportou, por primeira vez

na baía, quando da expedição enviada às costas da descoberta por dom Manuel I. O florentino Américo

Vespúcio participava da viagem. A imensidão e se-

gurança do porto natural; a clemência do clima; a proximidade da Europa; a fertilidade relativa das terras; a importante e acolhedora população nativa fizeram com que a baía fosse visitada amiúde por aqueles que viajavam ao Novo Mundo à procura de pau-brasil, cativos e outros produtos. (RAMUSIO, 1613: I, 129; TAVARES,

1969: 21.)

Como vimos, durante as três décadas seguintes ao descobrimento cabralino, sobretudo portugueses e franceses fundearam navios ao largo das praias o tempo necessário para escambar suas mercadorias. Aqui e ali, precárias feitorias foram levantadas. Em Tegiões ricas em pau-brasil, viviam permanentemente alguns europeus - náufragos, degredados, desertores. Atraídos pela beleza da terra ou pelo modo de vida americano, eles aderiam com gosto aos costumes tupinambás: andavam nus, usavam as armas da terra, possuíam diversas esposas, pintavam os corpos, furavam os beiços. O historiador norte-americano Alexander

Marchant, forçando um pouco as cores, descreveu es-

tes europeus como “verdadeiros índios”. (MARCHANT, 1980: 37.) Melhor seria defini-los como europeus

“indianizados”. Conhecedores da terra e da língua 109

tupi-guarani, serviam como valiosos intermediários, quando das práticas comerciais. às baias de Guanabara e de Todos Os Santos, Pernambuco e Cabo Frio foram pontos privilegiados das trocas realizadas pelos europeus com os brasis. Em 1503, Américo Vespúcio voltou à baía de Todos os Santos, em uma outra expedição portuguesa. Em

1511, a nau Bretoa passou pela região em busca de

Cabo Frio. Outras embarcações, sobretudo portuguesas e francesas, lançaram ferros na baía por estes anos. (RODRIGUES, 1979: 9, 38; TAVARES, 1969: 23; HCPB, III: 64.) Em dezembro de 1530, uma frota de cinco navios, portanto mais de quatrocentos homens, partiu de Portugal para policiar a costa e fundar povoações. O comandante, Martim Afonso de Sousa, ao aportar na baía de Todos os Santos, foi recebido por Diogo Álvares Correa, que ali estava havia mais de vinte anos. O lusitano, náufrago de um navio francês e apelidado pelos nativos de “Caramuru”, possuía fortes raízes na região e apoiava os negócios dos “brasileiros”. (TAVARES, 1969: 44) A bela e imensa baía era um dos principais pon-

tos onde os franceses vinham comerciar com os brasis,

sobretudo, segundo parece, com os da ilha de Itaparica e do Paraguaçu. Para ocupá-la e pôr fim à intrusão de entrelopos, a Coroa entregou, em abril de 1543, a capitania da Baía a Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão, fidalgo de algumas posses, que fizera fortuna no serviço das Índias. Homem já entrado nos anos, ele teria vendido todas as suas propriedades portuguesas para financiar, com o obtido, a aventura. Pouco conhecemos sobre a expedição por ele organizada para ocupar a donataria. Sabemos que, em 1556, ao chegar à região, o Rusticão apressou-se em levantar, na margem setentrional, à entrada da baía, nas imediações do sítio onde vivia Caramuru, uma rudimentar colônia, de umas cem casas, e protegê-la com uma torre e uma “tranqueira” onde certamente postou a artilharia que trouxera. A povoação ganharia O seu nome - vila do Pereira. (MARCHANT, 1980:

42; VARNHAGEN,

1978, V. I: 143, XII: 208; HCPB,

NI: 248; AZEVEDO, 1955: 112.) 110

PUNHADO

DE EUROPEUS

O fato de Diogo Álvares e um punhado de euro-

peus encontrarem-se na baía facilitou o estabelecimento dos colonos. Reza um documento da época que, a

seis quilômetros da povoação, localizava-se uma aldeia tupinambá, com “120 ou 130 pessoas muito pacíficas”. Os habitantes das numerosas comunidades das

cercanias procuraram os europeus oferecendo frutos, ajudando nos trabalhos e afirmando quererem

converter-se ao cristianismo. (VARNHAGEN,

1978.

XII, 208.) Durante longos anos, os produtos das roças

tupinambás iriam alimentar os lusitanos. Para os brasis, a chegada de um grupo numeroso de pero significaria a intensificação das trocas tradicionais. Ou seja: uma grande abundância de preciosas mercadorias e, sobretudo, de ferramentas. Coutinho e acompanhantes não vinham ao Novo Mundo para se dedicarem, apenas, a um tráfico em

parte monopolizado pela Coroa. O objetivo era fincar raizes na nova terra. Lê-se no documento citado: “A terra dará tudo o que lhe deitarem, os algodões são os mais excelentes do mundo, o açúcar se dará quanto quiserem”. (VARNHAGEN, 1978: XII, 208.) O donatário distribuiu as terras próximas da povoação aos colonos e aos portugueses que ali viviam para que iniciassem roças e plantações. Alguns portugueses, mais afoitos, arriscaram-se a ocupar terras e ilhas mais distantes. O senhor-de-engenho Gabriel Soares de Sousa, em Notícia do Brasil, relataria, décadas mais tarde:

“Desta povoação para dentro fizeram uns homens poderosos [...] dois engenhos de açúcar, que depois foram queimados pelo gentio, que se levantou, e destruiu todas as roças e fazendas [...)”. Um destes engenhos encontrava-se nas proximidades da enseada de Pirajá. (SCHWARTZ, 1988: 34.) Segundo Soares de Sousa, Coutinho e os colonos “estiveram nestes

trabalhos, ora cercados, ora com trégiias, por sete ou oito anos”. (SOUSA, s.d.: 1, 136-7.) À oposição dos nativos e a defecção de parte dos colonos obri garam

o donatário a entrincheirar-se, em 1545, na barra de

Santo Antônio c, a seguir, a refugiar-se na capitania

de Porto Seguro. (AZEVEDO,

1955: | 15.)

Um ano após, no segundo semestre de 1546, Coutinho voltou à donataria em companhia de Diogo

Álvares, que fora buscá-lo, devido ao convite dos

tupinambás - sentiam a falta das ferramentas curopéias - e à visita de franceses à região. Os tripulantes

de uma nau daquela nacionalidade haviam fundeado

na baía, levado a artilharia da povoação abandonada,

resgatado com os tupinambás e prometido voltar para estabelecer uma povoação. Naufragando o barco em

que viajavam, o donatário e seus acompanhantes foram devorados pelos habitantes da ilha de Itaparica,

talvez macomunados com os franceses e opostos à

volta do capitão-mor. Do banquete teriam escapado o “Caramuru” e sua gente, que viajavam em outro

caravelão. (SOUSA, s.d.: 1, 136-7; HCPB, III: 249-51 )

O historiador Alexander Marchant sugere que a guerra teria nascido do fato de serem os “tupinambás” inimigos tradicionais dos portugueses. (MARCHANT, 1980: 54.) O que entra em contradição com a paz inicial. Tal hipótese também não explica a trangúila convivência entre os brasis, Caramuru e sua gente, antes e após o sacrifício do donatário. E crível que o estado de beligerância fosse motivado pelas crescentes necessidades, das roças, plantações e engenhos portugueses, de terras e de mão-de-obra servil. Não se tratava de uma simples oposição “étnica”. (THEVET, 1953: 37.) GOVERNO-GERAL

Apesar de Coutinho e seus acompanhantes terem sido executados e devorados por comunidades da ilha de Itaparica, Diogo Álvares e outros portugueses continuaram vivendo na margem setentrional. sem maiores problemas, dedicados à tradicional intermediação mercantil e gozando dos privilégios que as diversas esposas nativas lhes asseguravam. (LEITE, 1956: 119.) Os tupinambás - ao menos os da margem norte - não se teriam rebelado contra a presença lusitana mas sim contra um padrão de atividaAr

prestes

de econônica e ocupação territorial. Em

1548, a Coroa portuguesa decidiu instituir

um governo-geral para o Brasil. Era urgente apoiar com

mão-forte donatários e colonos. O confisco das terras dos brasis e a escravização das comunidades litorâne-

as motivavam violentos contra-ataques americanos apoiados pelos interessados entrelopos franceses. Ou-

tras colônias haviam sofrido ou aprestavam-se a so-

frer o mesmo destino da capitania da Baía. Em maio de 1548, um lusitano escrevia desesperado a dom João HI: “[...] se Vossa Majestade não assistir logo essas capitanias não só perderemos nossas vidas e mercadorias como também perderá Vossa Majestade a terra [-..)” (MARCHANT, 1980: 67.) Por estas épocas, de sete a oito naus francesas visitavam, anualmente, Cabo Frio e a bafa de Guanabara. (SILVA, 1919: 256.) O longo Regimento dado ao primeiro governa-

dor-geral do Brasil, Tomé de Sousa, em dezembro de

1548, sintetizava a experiência colonial americana,

até aquela data. (HCPB, III: 345-50.) Ele vigoraria, com alguns acréscimos, até 1677. (AVELLAR, 1976;

70.) Apesar de referir-se rapidamente à conversão do

“gentio”, o documento constituía um projeto - estra-

tégico, sistemático e explícito - de ocupação territorial e destruição físico-cultural das sociedades nativas. O grande desafio era suprimir a resistência das comunidades americanas. Os brasis tidos como inimigos - os 'tupinambás”, sobretudo - seriam submetidos: “[...] destruindo-lhes suas aldeias [...] e matando e cativando [...] [os necessários para] castigo e exemplo [...]”. Os considerados submissos - os tupiniquins, principalmente - serviriam como aliados contra os rebeldes e seriam aldeados “perto das povoações das ditas capitanias [...]”. O documento é um misto de Instruções imediatas e estratégicas. O governador-geral fundaria uma “fortaleza e povoação grande” e se fortaleceria na baía de Todos os Santos. O “termo” da cidade de Salvador era delimitado - “seis léguas (36 km) para cada parte”. Calculava-se que, nesta área, viveriam “cinco e até seis mil homens de peleja” da “linha-

gem dos tupinambás”. A Coroa acreditava que, “em

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Pouco tempo, com pouca gente, bem ordenada”, a tegião estaria sob controle europeu, por scr escampada [...] e ter poucas serras e matos [Ea Temiam-se com razão as guerrilhas facilitadas pelas

matas e serranias. As terras do termo de Salvador seriam imediatamente distribuídas, como sesmarias, “sem foro algum”, a não ser o “dízimo” de Cristo. Os antigos e novos detentores das doações deveriam

ocupá-las, imediatamente, e por três anos, sob pena de perdê-las. O Regimento generalizava e sistematizavaO padrão social e econômico tradicional da ocupação

das donatarias. As “terras” e “águas” próprias aos

engenhos de açúcar seriam dadas aos colonos endinheirados - “pessoas que tenham possibilidade para os poderem fazer”. Estes últimos se obrigavam a moer a cana dos plantadores menos abastados e sem engenhos - os “lavradores”. No Regimento, talvez por “pudor”, não existem referências ao tipo de trabalho a ser empregado nas duras tarefas produtivas dos engenhos e dos canaviais. Sobre este via dúvidas. Calava-se sobre o óbvio. americanas escravizadas - os “negros tinuariam produzindo riquezas para os colonos.

ponto, não haAs populações da terra” - cona Coroa e para

POVO EM ARMAS

O Regimento ordenava ao governador um grande cuidado com a defesa militar. O escasso desenvolvimento econômico das colônias impedia tropas permanentes. O esforço bélico recaía sobre os grandes proprietários. Os senhores-de-engenho eram obrigados a construírem “torres ou casas fortes” nas propriedades. Estas últimas deviam ser levantadas “o mais perto” possível das “vilas”. Tinha-se consciência de que se colonizava uma terra estrangeira e densamente habitada. O Regimento determinava o armamento mínimo de cada engenho e capitania. Era punido com a morte e com a perda dos bens “qualquer pessoa”, nobre ou peão, que vendesse “aos gen112

tios” artilharia, arcabuzes, espingardas, pólvora e outras armas ofensivas e defensivas. Era incentivada a construção de barcos, de mais de dezoito remos, próprios à navegação e ao patrulhamento da costa, O Regimento instruía como o governador Tomé de Sousa devia comportar-se com as populações nativas. Inicialmente, era necessário aliviar a pressão dos brasis sobre as donatarias. O governador reprimiria, sem contemplação, os colonos que possuíssem “navios e caravelas” e andassem “salteando” e

“roubando'os “gentios” que estavam “em paz”. A Coroa reconhecia que, devido à “escravização selva-

gem” os “ditos gentios se alevantam e fazem guerra

aos cristãos”. Como vimos, Manoel da Nóbrega informava

que portugueses navegavam, ao longo do litoral, em

caravelas e caravelões, aprisionando comunidades nativas desprevenidas e acostumadas ao comércio. Elas eram transportadas e vendidas, nas capitanias, aos colonos necessitados. (NÓBREGA, 1955: 32.) O governador deveria contemporizar e atrair as populações nativas que pudessem ser manejadas e usadas como tropas militares auxiliares. A seguir, quando se apresentasse a ocasião, Tomé de Sousa empregaria o máximo de rigor contra as comunidades tupinambás que, na baía de Todos os Santos e em outros pontos da costa, eventualmente tivessem resistido à colonização portuguesa, Referindo-se à capitania de Ilhéus, o Regimento dizia: “[...] os gentios que habitam ao longo da costa, da capitania de Jorge Figueiredo [...] até a dita Bahia [...], são da linhagem dos tupinambás e se levantaram já por vezes contra os cristãos [...] será muito serviço, de Deus e meu, serem lançados fora desta terra para se poder povoar assim dos cristãos

como |...) dos tupiniquins, que dizem ser gente pacífica [...]”. Tomé de Sousa e os subsegientes governadores interpretaram à risca a vontade real. Em pouco mais de meio século, o litoral estaria praticamente

despejado das abundantes populações que ali viviam quando a frota de Cabral fez, na rota das Índias, rápida estada nas terras americanas.

A capitania da Baía seria escolhida para ser a sede da nova administração colonial. Mais tarde, se-

ria indenizado o filho de Pereira Coutinho. Em 29 março de 1549, Tomé de Sousa, ali chegou, no comando de uma expedição de mais de mil homens, entre eles, quatrocentos degredados e SCIS aguerridos padres e irmãos jesuítas. Diogo Álvares, o Caramuru, e uns quarenta europeus, avisados com antecedência, esperavam os colonos com reservas de

alimentos. O governador teria desembarcado “em boa

ordem, postos os portugueses em forma de peleja, para prevenir qualquer assalto dos gentios e sobretudo para dar impressão de força”. Os jesuítas, queimando de impaciência missionária, começaram a vi-

sitar os brasis e tomaram a decisão de irem “viver nas aldeias” quando estivessem “mais assentados e

seguros”. (LEITE, 1956: 112; LEITE, 1938: I, 20: NÓBREGA,

1988: 71-3; CARNEIRO,

1954: 13.)

PRIMEIRA CIDADE

Para os padrões europeus, a cidade real de Salvador da capitania da baía de Todos os Santos nasceu como uma miísera povoação, de casas de tetos de palha, poucas “ruas” e um milhar de habitantes. Fun-

dada na margem setentrional, à entrada da baía, pró-

xima da vila do Pereira - que passou a ser conhecida como vila Velha -, foi protegida por uma muralha de pau-a-pique e, a seguir, de taipa grossa. Com rapidez, levantaram-se cinco baluartes artilhados. As principais construções eram as residências do governa-

dor; as casas da câmara, da cadeia, da alfândega, dos contos, da fazenda, dos armazéns e outras ofic inas.

(MARCHANT, 1980: 73-81; NÓBREGA, 1988: 71-78;

SILVA, 1919: 295.) A cidade ficou literalmente cercada por em torno de meia dúzia de aldeias brasílicas. Os europeus foram outra vez recebidos, de braços abertos, pelos otimistas tupinambás das cercan ias. Um chefe aldeão, querendo estreitar à alia nça, chegou a prometer que abraçariam, ele e sua gente, o cristianismo e os hábitos portugueses. Ao menos for-

malmente, a história parecia repeti r-se. O chefe americano jurava de mãos postas abandona r seus costu-

mes rústicos - renegaria a antropofagia e a poligamia. E, sobretudo, aprisionaria inimigos apenas para

matá-los, escravizá-los ou vendê-los, como faziam

os povos europeus civilizados. (NÓBREGA, 1955: 20

.) Seguindo as instruções do Regiment o, após a fundação de Salvador, Tomé de Sousa di stribuiu

sesmarias e os colonos iniciaram as roças, OS canavi ais e os engenhos, segundo parece, nos pr imeiros tem-

pos, nos limites do termo da cidade. Menos de cinco meses após o desembarque, o

padre Manoel

da Nóbrega anotava: “Logo se fize-

ram pazes com os gentios da terra e se tomou co nselho onde se faria a nova cidade [...); e os me smos índios [...] ajudaram a fazer as casas e os mais em

que os queiram ocupar; de maneira que vai tu do em

grande crescimento e haverá já cem casas feitas , e começam-se engenhos de açúcar, e plantam-se as canas e muitos algodões e muito mantimento [SJ

(NÓBREGA, 1955: 47.) Os brasis logo notariam que

mudavam radicalmente as intensões e o comporta mento dos estrangeiros. As roças e plantações exi pgiam que os colonos se esparramassem pelo termo de Salvador e pela orla da baía. Estas eram terras relativamente férteis ocupadas por uma densa po pulação tupinambá que havia lutado com denodo por ela s. O sociólogo Florestan Fernandes lembra com pert inência que, apesar do caráter não sedentário da soci edade tupinambá, “a terra constituía o seu maior bem”. (FERNANDES, 1963: 73.) Naquele então, a agromanufatura açucarei ra americana só era economicamente rentável se baseada no braço do homem feitorizado. Salvo enga no, não existem informações precisas sobre o modo de obten-

ção dos primeiros cativos. Segundo parece , no início, os cativos teriam sido escambados por manu faturados com as comunidades da vizinhança. A se guir, apesar das ordens reais em contrário, os lusi tanos teriam visitado as aldeias nativas da orla da baía para obterem escravos, alimentos e outros bens. Como vimos, as reservas aldeãs de prisioneiros eram limi tadas e os 113

É Ea

preços dos “índios de corda” tenderiam a subir. E crí-

vel que, sem delongas, os europeus começassem à ENE que os tupinambás capturassem mais cativos e OS cedessem por um menor preço. Muito logo, passanam a olhar as aldeias vizinhas como atrativas semen-

teiras de saudáveis e gratuitos trabalhadores. Apesar do poderio da expedição, os colonos viam-se cercados por dezenas de milhares de guerreiros tupinambás. O recente destino do malogrado donatário recomendava cuidado. Nos meses seguintes à chegada, como mandava o bom-senso, os lusitanos procuraram manter relações amistosas com os nati-

114

vos. Entretanto, cram aparentes o isolamento e a fragilidade dos colonos de Salvador. Não se tratava de

uma pequena comunidade perdida nas imensidões do litoral americanos. A colônia constituía verdadeira cabeça-de-praia americana do dinâmico mundo europeu em expansão. Após 1549, praticamente uma vez

por ano, armadas chegavam de Portugal trazendo re-

forços de homens, animais, armas e mantimentos. (SOUSA, s.d.: 1, 251.) Diante dos atônitos tupinambás, a “grande aldeia” lusitana crescia monstruosamente

sem fracionar-se, e as estranhas plantações, ávidas de

braços sofridos, esparramavam-se pelas cercanias.

Capítulo 17

Pela vontade do deus lusitano

À paz entre tupinambás e portugueses era impossível. Poucos meses após a chegada dos colonos, ocorriam OS primeiros atritos entre as duas comunidades. Em carta de agosto de 1549, o jesuíta Manoel da Nóbrega relatava que os lusitanos sobressaltaram-se e temeram um ataque dos nativos devido à

morte de um português, a uns 40 km de Salvador.

Mais do que o motivo - desconhecido - da desavença, parece ter pesado na solução do impasse o interesse dos brasis em manter as privilegiadas relações de troca. O tupinambá envolvido no fato foi entregue aos portugueses - possivelmente por sua família. Como castigo, foi posto “na boca de um tiro (de ca-

nhão) e feito em pedaços”. (NÓBREGA, 1955: 54:

FERNANDES, 1970: 237.) Do ponto de vista lusita-

no, as comunidades americanas encontravam-se sob

a jurisdição das leis portuguesas. Para os tupinambás, inimizarem-se com os lusitanos significava privarem-se de bens conhecidos, apreciados e usados havia meio século. A necessidade de ferramentas européias e, sobretudo, a independência socioeconômica e o permanente estado de beligerância interaldeã americana facilitaram o senhoreamento lusitano da terra. As comunidades do Recôncavo relacionavam-se isoladamente com os

colonos. Os problemas de uma delas com os lusita-

nos podiam ser aproveitados por outra para - apoiando os colonos - resolver velhas contendas nativas. À administração colonial e os portugueses apoiavam e promoviam sistematicamente o estado permanente de

beligerância interbrasílica, tido como a principal ga-

rantia da segurança das colônias. Em 1559, em carta a Tomé de Sousa, Manoel da Nóbrega escrevia: “Bem se lembrará Vossa Mercê como, em seu tempo [de governador], se dividiram estes índios, desta baía, [...], os [da aldeia] do Tubarão com os [da] de Mirangoaba, com o que Vossa Mercê folgou muito e os cristãos, todos”. Não mais de três quilômetros separavam as duas aldeias. (LEITE, 1958: 89.) Sobretudo com o governo-geral, as forças lusitanas podiam ser concentradas, com rapidez, em qualquer ponto da costa, ou receber reforços da própria Europa. O estabelecimento dos portugueses na baía

de Todos os Santos vedara-a aos franceses, trad ício-

nais aliados dos brasis hostis aos lusitanos. A organização estatal portuguesa mostrava sua superioridade sobre a estrutura doméstica e aldeã nativa. Os tupinambás tomavam consciência, ao menos parcial, do perigo. Em janeiro do 1550, Manoel da Nóbrega assinalava que algumas comunidades mais distantes se encontravam incompatibilizadas com os cristãos”. Um tupinambá - que fora escravi15

zado e escapara aos colonos - agitava as aldeias dizendo que os portugueses pretendiam “matar [...] ou

fazer escravos” todos os brasis. (NÓBREGA, 1955: 70)

O cativeiro dos nativos mostrava-se como es-

sencial ponto de atrito. O jesuíta ponderava que aquele seria o melhor momento para que fossem castigados duramente os nativos renitentes, pois disto

decorreria um bom “exemplo”. Ele acreditava que Os americanos “talvez por medo” se convertessem mais depressa “do que (...) por amor”, tanto andari-

am “corrompidos nos costumes e longe da verdade”.

(NÓBREGA, 1955: 70.) Mais tarde, como veremos, esta opinião se transformaria em certeza. O futuro provincial da Companhia de Jesus no Brasil não desconhecia a causa do mau humor tupinambá. Ele anotava, na mesma carta: “[...] os homens que aqui vêm [os colonos portugueses] não acham outro modo senão viver do trabalho dos escravos, que pescam e vão buscar-lhes o alimento [...]”.

(NÓBREGA, 1988: 110.) O sacerdote acusava os co-

lonos de pressionarem os brasis para que vendessem um número crescente de “cativos” e “membros livres” das comunidades para serem utilizados como escravos. O resultado era que a tranquilidade ressentia-se e os lusitanos não se arriscavam a afastar-se das cercanias da cidade. (NÓBREGA, 1955: 83.) Já vimos que, segundo as leis de então, só eram legalmente escravos os nativos reduzidos quando de “guerras justas” e os prisioneiros destinados a serem sacrificados. Os colonos cobiçavam e apoderavam-se das terras dos nativos. REVOLTA BRASÍLICA

Em maio de 1555, sob o governo-geral de Duarte da Costa (1553-57), segundo governador-geral do Brasil, ocorreu a primeira grande resposta tupinambá à expansão territorial portuguesa na baía de Todos os Santos. O fracasso da iniciativa terminou consolidando a hegemonia lusitana na região. Como reação ao colonos, que se haviam apoderado 116

de terras aldeãs para ampliarem as plantações, no dia 26 de maio, cinquenta tupinambás da aldeia da Porta

Grande - localizada à beira-mar, nas proximidades de Salvador - atacaram o engenho de Antônio Car-

doso. Em carta de 10 de junho, o governador informava ao rei que os americanos diziam que “a terra era sua e que lhes despejassem o engenho”. (HCPB, HI: 337-9) Após “pelejarem” por algum tempo, os brasis retiraram-se para a aldeia, que ficava entre a

cidade e o engenho em questão. Na ocasião, foram atacados, sem maiores consequências, um lusitano e três seus cativos que passavam pelas proximidades. A agitação parecia estender-se entre as comunidades nativas exasperadas. Os brasis levantados apoderaram-se de cabeças de gado em Itapoã, a uns dezoito quilômetros de Salvador, onde tentaram, sem sucesso, sublevar a comunidade

local. Foram deti-

dos uns seis portugueses que andavam pelas aldeias ou fora da cidade. Um “negro da Guiné” foi flechado mortalmente. “Negros da terra” aproveitaram os acon-

tecimentos para escafederem-se. O fato de que pre-

cisamente um escravo africano tenha morrido - e nenhum português -, sugere que, em verdade, não se tratasse de um levante antilusitano. As aldeias rebeladas pretenderiam apenas recuperar suas terras e pôr limites aos excessos dos colonos. Duarte da Costa não deixou escapar a oportunidade de pôr em prática as instruções recebidas pelo predecessor. No mesmo domingo, reuniu conselho e enviou, ao entardecer, seu truculento filho, Álvaro da Costa, à frente de uma expedição punitiva de setenta infantes e seis cavaleiros. E desnecessário chamar a atenção do leitor para a exigiiidade das tropas lusitanas. Neste momento, segundo parece, elas não foram secundadas por aliados tupinambás. Ao chegar à aldeia da Porta Grande, a expedição encontrou os guerreiros americanos entrincheirados por de trás de uma paliçada. Esta última se encontrava cercada por fossos, com estrepes, cobertos por folhas. Os antagonistas não seriam muito mais numerosos. Ao defenderem-se com uma cerca de troncos, fossos e estrepes, os guerreiros optavam por uma

tradicional tática militar estática tupinambá. Os por-

tugueses possuíam armas de aço, cscopetas e uma pequena cavalaria. Os oficiais - treinados nas guerras da Europa, Africa e Ásia - dominavam com mestria as mais sofisticadas técnicas de sítio e assalto q baluartes e fortalezas. Após um rápido e renhido combate, os atacantes penetraram no cercado e conseguiram “matar alguns gentios” c aprisionar o prin-

cipal. Não sabemos se, concomitantemente, a aldeia

era atacada por mar. Aproveitando o ensejo, os lu-

sitanos despejaram o termo da cidade de Salvador

“de outras duas aldeias, que aí estavam perto”. Elas também foram incendiadas. As armas européias obtinham uma arrasadora vitória sobre os combatentes americanos. Como escreveu Duarte da Costa em sua carta ao rel, as obras de proteção indicavam que a revolta fora planejada com antecedência. Entretanto, o caráter defensivo e a participação de apenas algumas al-

deias sugerem que a maioria das comunidades americanas próximas de Salvador permaneceu neutra, esperando, para definir-se, o desenvolvimento do conflito. Na quarta-feira seguinte, 29 de maio, Álvaro da Costa, agora à frente de 160 infantes, foi mandado a Itapoã para recuperar vaqueiros, cativos e al-

gum gado ali retidos. Os tupinambás da localidade Juraram inocência e, incontinenti, entregaram o exigido. O filho do governador deteve como refém o principal da Aldeia de Itapoã - que não se envolvera nos acontecimentos - até que fossem recuperados cativos escapados e retornassem a Salvador alguns

portugueses desgarrados.

PEDRA CONTRA AÇO O movimento - conhecido como a Guerra de Itapoã - ficara circunscrito ao nascedouro. No último dia de maio, o senhor-de-engenho Antônio Cardoso escrevia ao governador pedindo ajuda. Relatava que os tupinambás de seis aldeias haviam

erguido cercas defensivas, próximas à sua pro prie-

dade, onde ele se encontrava siti ado. Fora 0 ataque do engenho que iniciara as hostilid ades, À cabeça de uma forte tropa de mais de duze ntos infantes, al guns cavaleiros e brasis armados, o filho de Duarte

da Costa dirigiu-se para o engenho. Na Ocasião, aproveitou a marcha para incendiar, no caminho, cinco aldeias, praticamente sem resistência. Ao che-

gar ao destino, a tropa recebeu os tradic ionais desa-

fios e ameaças de aproximadamente mil tupinambás, entrincheirados “na cerca maior, que es tava pegada com o engenho”. - Eles já haviam comido os país dos portugue -

ses. Agora chegara a vez dos filhos.

- Que parassem de queimar aldeias e atacar mulheres c crianças! - Que viessem lutar com os guerreiros! Exigiam os desafiantes. Armas de fogo contra flechas. Tacapes de madeira contra cortantes espadas e lanças de aço. Corpos nus contra sólidas armaduras. Apesar da forte resistência, os aguerridos tupinambás foram vergados pelo poder do ataque lusitano. Era imenso o desequilíbrio entre o armamento e as técnicas militares européias e americanas. Sobretudo em uma batalha estática travada em um terreno “escampado”. Após um violento combate, a palicada foi violada e os guerreiros, dela, expulsos. Os tupinambás foram caçados e mortos, em campo aberto, pela cavalaria, arma desconhecida nas Américas. Da batalha passava-se rapidamente ao massacre. Durante a tarde e na manhã seguinte, sem encontrarem oposição ,

Os lusitanos queimaram três outras aldeias. Na carta

ao seu soberano, Duarte da Costa anotava que cinco portugueses de rango haviam sido feridos. Não sabemos se houve baixas entre os peões lusitano s, a escravaria armada e os aliados tupinambás.

A derrota de 31 de maio de 1555 pôs fim ao movimento. Quatro dias depois, Álvaro da Costa foi enviado para reprimir cinco aldeias, próximas de um outro engenho, “além do Rio Vermelho ”, que

levantavam “cercas”. Como podemos ver, aldeias brasílicas e engenhos portugueses “acotovelava m-se”

117

b

no agora estreito termo de Salvador. Com a chega-

da das tropas. os tupinambás desertaram e as aldeiàs foram incendiadas. Na carta ao monarca, o govermador sugeria ter sido a revolta inspiração divina. Ela teria sido desejada por “Nosso Senhor [...] para Os moradores desta cidade ficarem mais desabatados da sojeição”por “estarem estes gentios tão pegados conosco, e lhes ficarem mais terras para suas

roças [...]”. Em pouco mais de uma semana, os lusitanos destruíam treze aldeias no termo de Salvador, matando, escravizando ou expulsando uma população de aproximadamente três mil pessoas. A *Guerra de Itapoã” constituiu um divisor de águas na história da região. Quebrara-se a dualidade

entre o poder lusitano e o poder tupinambá. Os portugueses deixavam de ser os “recém-chegados” e os americanos eram desalojados da situação de “senhores da terra”. A América vergava-se diante da Europa. Vencera a ordem lusitana. A campanha ensejara uma “guerra justa”. Brasis envolvidos ou não nos combates foram escravizados para penarem nos duros trabalhos dos canaviais. Os engenhos e as roças expandiram-se. A agonia das sociedades americanas adubava a economia escravista colonial lusitana. A partir de então, os colonos passaram a comportar-se como os novos senhores da guerra e da terra. Como veremos a seguir, em 1558-59, a “Guerra do Paraguaçu” daria continuidade à campanha contra as aldeias vizinhas de Salvador. Ela impôs o domínio lusitano sobre a margem ocidental da baía. Nesta e noutras operações militares, os lusitanos pasSaram a contar com o apoio dos guerreiros aldeados sob a autoridade jesuítica. A mais séria resposta às violências dos europeus foi o justiçamento cerimonial, em junho de 1556, pelos caetés, do bispo dom Fernandes Sardinha e mais de cem acompanhantes, após o naufrágio do navio em que viajavam. Estas comunidades tupinambás viviam a algumas dezenas de léguas ao norte da capitania da Baía. Anos mais tarde, tais sucessos justificariam mais uma violenta “guerra justa” escravizadora. 118

GREVE DE BRAÇOS Derrotados e desmoralizados, os tupinambás

das cercanias de Salvador ensalaram um derradeiro movimento de resistência passiva aos colonos. Estes últimos, a partir da vitória militar, exigiam tributos

ou simplesmente se apoderavam da terra, do produto do trabalho e dos próprios americanos. Desesperados com as violências e requisições, os brasis reduziram os cultivos ou deixaram de plantar. Um jesuíta registrou a greve de braços: “[...] por terem para si que os haviam de deitar da terra [...] no que eles tinham muita razão de cuidarem: porque em prática

de muitos maus cristãos, por qualquer cousa que lhes

não queriam dar os índios, ou fazer-lhes, os ameaça-

vam com o governador (que ia chegar), dizendo que logo os haviam de matar e deitar fora da terra, pelo qual não ousavam a fazer nada de novo, mas somen-

te comiam o mantimento que tinham feito as:

(NÓBREGA, 1988: 161.) Talera a dependência portuguesa das roças americanas que, após os tupinambás, os próprios habitantes de Salvador sentiram a falta de alimentos. Em fe-

vereiro de 1557, a fome abatia-se sobre as comunidades

nativas. (NÓBREGA,

1988: 161.) A seguir, ela

alastrou-se à sede do governo-geral. Em meados de

agosto de 1557, uma “nau muito formosa da Índia”, a

Santa Maria da Barca, ao fazer escala na baía de To-

dos os Santos, com 100 tripulantes, “pôs a terra em aperto de mantimentos, porque não os havia nem para os da terra, porque os índios não os fizeram nem os tinham e havia fome geral entre eles”. (NAVARRO, 1988: 213-4; SALVADOR, 1982: 150.) Tratava-se porém do diálogo do lobo e do cordeiro. Em resposta ao movimento, os portugueses apoderavam-se das terras e das roças tupinambás para explorarem-nas com cativos. (MARCHANT, 1980: 92.) No momento em que a “nau da índia” aportava diante de Salvador, Nóbrega escrevia desanimado que a catequese não avançava. Os brasis desertavam para as terras do interior, “onde não podemos

ter conta

com eles”. O motivo era o conhecido. “A causa disto

foi tomarem-lhes os cristãos as terras em que têm

seus mantimentos [...]”. (NOBREGA, 1955: 254) Em abril de 1558, o irmão Blasquez registrava, referindo-se principalmente a fatos ocorridos antes da che-

gada de Mem de Sá, que os colonos, para apoderarem-se das terras aldeãs da periferia de Salvador,

perseguiam os brasis “dizendo-lhes que os haviam

de matar quando chegasse o novo governador [Mem

de Sá]

[...): outros, tomando-lhes

à força o seu €

dando-lhes muitas pauladas; [...] [os autóctones),

vendo-se sem

roças, nem

terra onde as fazer, eram

forçados a ir-se”. (NAVARRO, 1988: 206.)

A sociedade nativa da região entrava em acelerada desorganização. Uma etapa fora vencida. O ter-

mo da cidade e a margem norte da baía estavam conquistados. O domínio total do Recôncavo era uma questão de tempo. Os tupinambás haviam sido derrotados, vergados, humilhados. Após uma fulgurante expansão territorial e militar vitoriosa, realizada nos séculos anteriores, ao longo do litoral, mergulhavam - como seus coetâneos guaranis, da América

Meridional -, num verdadeiro “cataclisma Sociocu]lural”, ao serem repetida e in variavelmente derrotados

pelo antagonista europeu. (KERN, 1982: 109.) Era todo um mundo de certezas que ruía. Os bras

is das imediações de Salvador, que não haviam sido escravizados, escapavam para O inte rior ou, mais numerosos, prcparavam-se para joga r uma derradeira cartada. Abandonar seus cost umes ancestrais e aceitar a catequese e a ordem portug uesa vitoriosa, Pateticamente, esta derradeira tentat iva de furtarem- se à destruição física foi interpre tada pelos

Jesuítas como a tão esperada oportunidade de le var ainda que aos safanões - os “gentios” ao ca minho reto. Para os Soldados de Cristo, a derr ota e destrui-

ção das comunidades da terra constituíam verd adeiro sinal divino em favor do movimento evan gelizador. Entretanto, na baía de Todos os Santos, ao co ntrário do que ocorreria nas missões espanholas da Am érica Meridional, até mesmo esta desesperada saíd a seria negada aos brasis. Não haveria fim na agonia e nos males dos antigos senhores do litoral.

19

A

Capítulo 18 E=a

Jesuítas Pastores de canibais

À chegada dos colonos abrira um acirrado con-

fronto entre o mundo americano e o europeu. O esta-

belecimento das donatarias antagonizava objetivamente portugueses e tupinambás. Os lusitanos almejavam o domínio das terras e da força de trabalho nativas. A luta entre a organização aldeã doméstica americana e o escravismo mercantil lusitano impunha a destruição de uma das duas ordens. A tensão transitava aceleradamente das esferas ideológi-

ca, econômica, territorial e política para a militar. Não

havia acomodação possível. A disputa militar não foi ainda mais generalizada por intuírem os tupinambás, ao menos parcialmente, a superioridade da civilização material e espiritual lusitana. Esta consciência brasílica do atraso relativo diante dos recém-chegados estaria implantada quando do choque de 1555. A opção pelas ferramentas européias era Já uma forma de reconhecimento da superioridade da cultura material estrangeira. Como vimos no décimo ca-

pítulo, a documentação histórica registra frequente s

verbalizações americanas sobre a excelência dos instrumentos europeus. A qualidade das armas, das re-

sidências, das vestimentas

e das embarcações

dos

recém-chegados impactaria sobremaneira os bras is.

Já em 1500, quando da rápida estada da frota cabralina no Brasil, o escrivão Pero Vaz de Caminha

registrou a impressão que a tecnologia européia causou aos nativos. Eles admiravam estarrecidos e incrédulos a facilidade com que os carpinteiros lusitanos cortavam e trabalhavam a dura madeira com que

fabricavam uma grande cruz. (CAM INHA, 1983: 257.)

A competição entre as formações sociais européia e americana estendia-se a esferas menos concretas, porém igualmente perceptíveis da vida social. À organização aldeã e doméstica brasílica vergava diante dos aparatos estatais lusitanos. Com a implantação do governo-geral, os portugueses desorganizaram a resistência imposta pelas comunidades da costa aos colonos. A superioridade demográfica americana era também ilusória. A cidade de Salvador nasceu com mais de mil habitantes e cresceu com rapidez, sem fracionar-se. As aldeias tupinambás raramente supetâvam Os quatrocentos moradores. Eram pequenas aglomerações isoladas que se defrontavam com uma vanguarda do mundo europeu em expansão. A economia colonial portuguesa inseria-se privilegiadamente na complexa divisão internaci ona l do trabalho de então. Os americanos viviam uma economia essencialmente autárquica. A produtividad e do trabalho social lusitano era de longe superior à produtividade alcançada pela economia tupinambá . Tratava-se da luta SB,çaravela e da nau contra a ca-

TECA PÚBLICA Pe.

ARLINDO qua poVCIPAL | 4

comérnoa e à jangada. Do escambo local contra O cio internacional. Da economia escravista mercantil contra a produção aldeã doméstica. Da paliçada de

madeira contra a muralha de pedra. Da malha metá-

hica contra a carne nua. Da palavra contra a escrita. Da pedra contra o ferro. Do cristão contra O índio.

No mundo das representações espirituais, O

ra-se igualmente para pôr-se à frente da resistência

aos recém-chegados. Vangloriara-se de, através de

sua magia, ter causado a morte de um sacerdote. Pro-

metera expulsar os europeus fazendo com que adoe-

cessem e que malograssem suas plantações. Ao fracassar sua proposta, e temendo represálias, desmentira-se publicamente e afirmara jamais haver sido

desigual. O pajé antagonizaque logo se mostraria à mais e preparada ordem religiosa de Jesus propunha-se fazer

pajé. (EVREUX, 1929: 87.) Às práticas mágico-animistas americanas arran-

locar a razão ao serviço da fé. Nesta posição privilegiada, mantinha contatos estreitos e diretos com a Coroa lusitana e com Roma. Muitos dos jesuítas enviados ao Brasil haviam frequentado as melhores universidades européias. Os pajés não constituíam sequer um corpo sacerdotal institucionalizado. Tornava-se pajé quem quisesse e pudesse. (THEVET,

dos'que, através da magia, resolviam variados problemas relativos à vida cotidiana: faziam chover, garanti-

combate era igualmente va o jesuíta, soldado da disciplinada, aguerrida da época. A Companhia

a ponte entre o mundo feudal e o Renascimento.

Co-

1978: 117-9; 1983: 71 - 5.) LUTA DE FEITICEIROS

Na sociedade tupinambá, os poderes mágicos estavam disseminados entre uma grande parte da comunidade - principais, velhos, etc. Alfred Métraux lembra que, entre aqueles povos, “não era por meio de práticas iniciatórias ou de treinamento que alguém se tornava feiticeiro”. Bastava a “inspiração”. Interrogado por um jesuíta, um pajé informou que fora “seu pai” que “lhe ensinara a ciência”. Para assumir tal status, um aldeão necessitava apenas demonstrar habilidades mágicas e adivinhatórias. Entretanto, se falhasse no exercício das funções, desmoralizava-se e podia, até mes-

mo, pagar com a vida sua inabilidade.(MÉTRAUX, 1950:

153-80; MONTAIGNE, 1965: 208; LEITE, 1956: 138, 320; 1958: 66; THEVET, 1953: 81.)

Em 1613, na ilha de São Luís, um principal tentara levantar os americanos contra os franceses. Para

tal, por dois meses, visitara as aldeias afirmando ser “furioso”, “valente” e “grande feiticeiro”. Oferece122

cavam raízes de uma sociedade aldeã que apenas su-

perara o estado neolítico. (METRAUX, 1950: 153-80.) De certa forma, os pajés eram “técnicos especializa-

am a fertilidade da terra, curavam as doenças, previam o resultado da guerra, etc. Poucos meses após chegar ao Brasil, ao escrever a Portugal, o jesuíta Manoel da Nóbrega registraria o estágio pré-religioso e escassamente conceitual dos brasis: “Têm muitos poucos vo-

cábulos para poderem declarar bem nossa fé [...]”. E

agregaria: “Estão muito apegados às coisas sensuais, muitas vezes me perguntam se Deus tem cabeça, e corpo, e mulher e se come [...]”. (LEITE, 1956: 153.) O cosmógrafo francês André Thevet escandalizou-se ao constatar que os tupinambás não possuíam uma explicação religiosa antropomorfizadora da natureza: “[...] esta pobre gente vive realmente sem religião e sem lei. Na verdade, não existe criatura dotada de razão que seja tão cega a ponto de não enxergar, na ordem que rege o céu e a Terra, o Sol e a Lua, o mar e os acontecimentos de todo dia, algo além da capacidade humana, ou seja, a mão de um Artífice

Supremo. E, por isto que não existe nação tão bárbara que não possua, por instinto natural, uma crença religiosa e alguma idéia da existência de Deus”. (THEVET, 1978: 99; 1983: 50.) O cristianismo tratava-se de religião monoteísta que se internacionalizara ao transformar-se no credo oficial do Estado imperial romano. Nos séculos anteriores, a Igreja constituíra o mais importante centro da produção artística e cultural do mundo europeu e procurara

abarcar, através do tomismo,

a

totalidade dos avanços do pensamento científico da época. Que os tupinambás soubessem contar apenas até cinco cra um bom exemplo do atraso

material e

espiritual relativo da sociedade brasílica, (STADEN, 1974: 185.) Os sacerdotes curopeus e os pajés ame-

ricanos defrontaram-se em um combate deveras desigual. Muito logo, os brasis reconheceriam q superioridade dos estranhos pajés estrangeiros. Jesuítas e membros de outras ordens religiosas não se negavam a competir com os “feiticeiros” no

campo da magia. Em 1612, no Maranhão, o franciscano Claude d"Abbeville contava que, ao saberem que morrera uma criança entregue a um pajé para ser curada, os sacerdotes haviam aproveitado a oportunidade: “[...] demonstrando-lhes que os pajés, que tanto apreciam, não passam de embusteiros: que

não é verdade ter o seu sopro a virtude de curá-los,

[...] e que, em vez de curar o menino, o haviam morto, [...]. Que se no-lo tivessem mandado para ser batizado, [...] sua alma teria sido salva pelo batismo e talvez recuperasse a saúde, se assim o quisesse o grande Tupã”. (ABBEVILLE, 1975: 97.) DESPROVIDOS DE PODERES

As semelhanças eram apenas aparentes. Os sacerdotes não se apresentavam como detentores de poderes mágicos, como os pajés, mas apenas como intérpretes privilegiados de uma divindade superior e única. Os jesuítas substituíam as técnicas empírico-mágicas americanas pela visão idealística- antropomorfizadora de uma divindade suprema e onipotente, diante da qual o homem deveria submeter-se incondicional e plenamente. Tratava-se de um verdadeiro salto de qualidade. Milhares de anos de desenvolvimento histórico separavam as duas concepções. (LUKACS, 1982: I, 117.) Os jesuítas eram conscientes da luta ideológica que mantinham contra a cultura e as crenças da terra. Homens de vontade de aço, tinham em alta estima à pedagogia do exemplo e não mediam esforços para

trazer de volta, ao convívio e às práticas culturais

cristãs, portugueses conquistados pelo modo de vida americano. Já nos referimos à luta do s catequistas para arrebanhar as ovelhas desgarradas. Apenas che-

gados no Brasil, adentravam os sert ões próximos a

fim de resgatar - muitas vezes quase à força - os eu-

ropeus e seus filhos que viviam amer icanizados en-

tre os tupinambás. Era inadmissível e perigoso qu e um europeu valorizasse a cultura gentílica opta ndo livremente pelos costumes nativos. (NAVARRO , 1988: 37,93, et passim) Os sacerdotes não foram insensíveis às beleza s

da terra. Verdadeiros precursores do ufanis mo brasi-

leiro, ajudaram a difundir visões fantasiosas sobre terras de fertilidade, salubridade e clima únicos. Apenas desembarcado na capitania da Baía, escrever ia Manoel da Nóbrega: “E terra muito fresca, de inverno temperado, e o calor do verão não se sente muito.

Tem muitas frutas e de diversas maneiras, e muit o boas, e que têm pouca inveja às de Portugal. Morre

no mar muito pescado e bom. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e certamente nunca eu vi

tapeçarias de Flandres tão formosas [...]”. (NÓBRE-

GA, 1955: 47.) Entre os jesuítas, Fernão Cardim seria o mais extremado nos arroubos telúricos. Afir maria que o Brasil já era um “outro Portugal”. E

talvez, intimamente, considerasse, como su gere Es-

tevão Pinto, que a cópia saíra melhor que o modelo . (PINTO, 1958: 23.) Os elogios dos jesuítas à terra não seriam totalmente desinteressados, pois também visavam mi norar O isolamento em que viviam atraindo para o Brasil outros membros da Companhia de Je sus. Entretanto, não havia tolerância, quando se tr atava dos costumes americanos. Era permanente a vont ade de impor a excelência da vida européia e cristã . Basta lembrar com que determinação Manoel da Nó brega resistiu em entregar-se ao tabagismo, apenas para não se “conformar” com os tupinambás no estr anho uso nativo. (NÓBREGA, 1955: 83.) Ainda mais acreditando os tupinambás que o fumo tivesse prop riedades especiais e mágicas. (METRAUX , 1950: 164; 123

STADEN, 1974: 174.) Entretanto, os jesuítas não tiveram melindres em falar aos brasis, com os gestos € as palavras da terra, a fim de melhor conquistá-los. Foi ímpar a importância da Companhia de JeSus para a conquista da América portuguesa. E-nos difícil avaliar a profundidade do impacto das poucas dezenas de seguidores de Loyola em terras brasílicas. O patético resultado objetivo da ação missionária não deve impedir o reconhecimento do alto valor individual destes homens. Vencendo dificuldades materiais e psicológicas sobre-humanas, entregaram-se com total devoção aos objetivos que se haviam delimitados. Foram dantescas as tensões que suportaram os soldados da Ordem de Jesus no país dos tupinambás. Homens de Letras, isolados nas vastidões do litoral, resistiam agarrados - como náufragos a um salva-vidas - a uns poucos e usados livros e às raras cartas que recebiam da Europa e de outros pontos da colônia. No Brasil, faltava-lhes tudo - do vinho para a missa ao tratado para dirimir a dúvida doutrinal e preparar a prédica dominical.

tros por causa dos tempos e dos poucos navios que andam pela costa. E às vezes vêm mais cedo navios de Portugal que das capitanias [...]”. (LEITE, 1956:

392.) Escrevia-se com freqiiência, mas a Correspondência perdia-se ou tardava a chegar. O afinco e à

prolixidade com que os jesuítas mandavam e pediam

notícias não só minoraram o isolamento em que se achavam nos primeiros tempos como brindaram igualmente os historiadores com uma abundante documentação histórica de singular importância. Filhos das concepções sexofóbicas e demonta-

cas da Idade Média, os sacerdotes viveram cercados

de americanas nuas de corpos esculturais. Misturas

tropicais de Messalinas romanas e feiticeiras medie-

vais, elas se entregavam gostosamente aos prazeres da carne, tanto os sexuais como os gastronômicos.

Em julho de 1554, horrorizado, o irmão José de

Anchieta relatava: “[...] aqui, onde as mulheres an-

dam nuas e não se sabem negar a ninguém, antes elas mesmas acometem e importunam os homens, lançando-se com eles nas redes, por que têm por honra dormir com os cristãos”. (ANCHIETA, 1984: 56.) No Novo Mundo, os bons padres viam materializar-se as mais medonhas visões do reino do “Inimigo da Humana Geração” - nudeza, promiscuidade, incesto, antropofagia, bebedeiras, feitiçaria, anarquia social. Após uma visita aos tupinambás, não menos horrorizado escreveria um sacerdote: “[...] e indo eu visitar a aldeia, vi que daquela carne (humana) cozinhavam em um grande caldeirão, e ao mesmo tempo em que cheguei, |...] (retiravam) uma porção de braços, pés e cabeças de gente, que era coisa medonha de ver-se, e seis ou sete mulheres, [...] dançavam ao redor [...).” (NAVARRO, 1988: 78.) Um outro membro da Ordem descrevia, com as seguintes palavras, um cerimonial brasílico: “Vinham seis mulheres nuas pelo terreiro, cantando a seu modo, e fazendo tais gestos e meneios que pareciam os mesmos diabos”. (NAVARRO, 1988: 200.) Num momento em que o mercantilismo galvanizava o homem renascentista na procura, incessante e por todos os cantos do mundo, de infinitas rIque-

ESPERANDO CARTAS

As cartas jesuíticas sugerem a patética dependência anímica em que viviam de uma correspondência que transitava através do oceano Atlântico ao sabor da sorte e da lentidão dos meios de transportes da época. Os frequentes naufrágios dificultavam ainda mais os difíceis contatos. Em 1554, o padre Brás Lourenço enviava patética recriminação aos membros da Companhia em Portugal: “Depois que dessa santa casa parti [...], nunca mais ouvi novas suas, coisa que nestas terras tão remotas causa muita consolação”. (LEITE, 1956: 392.) Os contatos com Portugal eram difíceis e raros. Eles eram igualmente, entre as diversas capitanias, devido ao regime das correntes e dos ventos litorâneos. Em

1552, da capitania da Baía, o padre Fran-

cisco Pires (? - 1586) escrevia, pouco animado: Bi ==a) às vezes se passa um ano e não sabemos uns dos ou124 Md

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zas, os soldados da Companhia de Jesus atravessavam os oceanos para difundir o evangelho em regiões que a vontade divina certamente encobrira” para reservar aos ibéricos a missão de *descobri-las” para fé. Comerciantes e colonos unificavam o mundo, in-

ternacionalizando a economia. Os jesuítas soldavam

as fendas abertas nas certezas da Revelação pelas

grandes navegações e pela descoberta de um quarto

continente. A obra missionária era patéticamente difícil e complexa.

125

Capítulo 19 E=3

A cruz e a espada

Os jesuítas almejavam cristianizar, pelo convencimento e pelo exemplo, povos radicalmente estrangeiros que jamais haviam conhecido o evangelho. Tratava-se de transformar/elevar o “gentio” - home m seminatural - ao nível de “cristão” - homem civilizado. Procurava-se moldar o Mundo Jovem à imagem e semelhança do Mundo Adulto. Desconhecia-se abs olutamente o homem americano mas sabia-se no que deveria ser transformado. Neste projeto global pesava, sempre à espreita, a suspeição de que o “Indígena ” constituísse uma espécie de homem Infantil, inf erior, incapaz de elevar-se ao nível do paradigma - o cristão europeu. Reiteradas vezes exprimiu o primei ro bispo brasileiro a sua incredulidade na capacidade dos “bárbaros” de “se converterem”.(LEITE, 1953: 12. ) O choque era terrível. A correspondência missionária sugere o dilaceramento psíquico e moral à que eram submetidos os sacerdotes. Eles deparaYam-se com um mundo que se lhes mostra va crescentemente ininteligível. As certezas missio nárias eram inexoravelmente trincadas pela inviabili dade objetiva do projeto evangelizador. Treinados para o combate da intransigência de um calvin ista ou de um maometano monoteistas, tropeçavam no tupinambá mágico-animista que se batizava por simples sentimento de civilidade para com seu hóspede ou por um

pequeno presente. Oito anos após chegar , o padre

Manoel da Nóbrega desesperava-se: “U ma coisa tem estes pior de todas, [...] quando vêm à minha tenda, com um anzol que lhes dê, os converterei à todos, e, com outros, os tornarei a desconve rter EE

(NÓBREGA, 1955: 221.) Os jesuítas identificavam-se com uma ordem fe

udal, autoritária e hierarquizada, onde poder temporal e religioso, em estreita simbiose, enquadravam e disciplinavam a população. Conhecia m na América um mundo

“sem lei, sem rei, sem razão”, on de o

consenso - € não a coersão - tendia a ordenar à sociedade. (THEVET, 1978: 99; 19 83: 50; SALVADOR, 1982: 78.) Em 1554, maravilhad o, o irmão José Anchieta escrevia sobre os brasis: “Não estão sujeitos a nenhum rei ou chefe [.-.] [...] ca da um é rei em sua casa e vive como quer [...]” (A NCHIETA, 1984: 76.) Em 1551, o irmão Pero Correa revelava as causas do desespero jesuítico devido à ausência de autoridade institucional: “[...] se houves se rei, convertido ele, seriam todos [...]”. (LEITE , 1956: 231.) Em 1618, também espantado, Ambrósio Brandão registrava a autonomia do aldeão tupinambá: “Em cada aldeia há um principal, qu e não reconhece superioridade a outro, senão quan do sucede haver algum tão cavaleiro que, pelo medo que têm dele, 127

lhe guardam o respeito; mas, os ordinários são obe-

nós a sua, € [(também] [...] escravos dos brancos e os novamente convertidos, e a mulher e filhas de Diogo

decidos dos da sua aldeia quase por zombaria; por-

Álvares Caramuru, que não sabem

que, nas cousas ordinárias, cada um faz o que quer,

nossa fala [5].

respeito [...]”. (BRANDÃO, 1977: 255.) Consegien-

(NÓBREGA, 1955: 130.) Mesmo após dominarem a língua da terra, os jesuítas deparavam-se com barreiras

Os soldados de Loyola vinham de uma sociedade artesanal e agrária onde gerações de vilões viviam, literalmente presos a uma choupana, arrancan-

estágio civilizatório das comunidades brasílicas. Os jesuítas eram obrigados a traduzir em forma analógica, aproximada e empobrecedora, conceitos religiosos e filosóficos próprios a uma cultura historicamente mais desenvolvida. (NÓBREGA, sd: 61.)

|...], nas cousas tocantes à guerra, lhe guardam mais

intransponíveis. A língua tupi-guarani correspondia ao

temente, os evangelizadores deveriam conquistar, uma a uma, suas “ovelhas” americanas.

do a subsistência diária de uma mesma nesga de terra.

Onde o aldeão vegetava na região em que nascera - 0 seu país - sem jamais ultrapassar o mais próximo

À incompreensão se estendia dos mais eclemen-

tares aos mais profundos códigos culturais. O tupinambá chorava para expressar a alegria que sentia, quando recebia um hóspede - saudação lacrimosa. (THEVET, 1953: 114.) O jesuíta explodia de contentamento pondo em “confusão” e obrigando ao

horizonte. Que o homem nascesse ligado à terra e vivesse sob a permanente autoridade de superiores religiosos e civis, pareceria ao jesuíta tão necessário e natural como o fato de ser a Terra o centro do Universo. Na América, assistiam o trabalhoso esforço catequético individual diluir-se, quando aldeias inteiras se dividiam e adentravam os sertões ao iniciarem o periódico movimento de transmutação determinado pelo esgotamento da fertilidade da terra e dos recursos de caça, pesca e coleta.

“silêncio”, com uma longa prédica, o antagonist a, atento e paciente. “[...] desenganei e contradisse o

que [o pajé] [...] dizia, por muito espaço de tempo |...]” - informava, orgulho, o padre Nóbrega, em agosto de 1549, num momento em que desconhecia abso-

lutamente o tupi-guarani. (NÓBREGA, 1955: 56.)

Como vimos, para o tupinambá, era grande incivili-

dade interromper o interlocutor. Os nativos maravilhar-se-iam com a pouca educação daqueles pajés estrangeiros que teimavam em monopolizar a discussão. Os sacerdotes viviam imersos na crença e no desejo de “uma boa morte” e da “salvação eterna”. Os tupinambás não possuíam crenças tais como condenação e castigo eternos após a morte. Amavam muito a vida e execravam sobremaneira a morte. (THEVET, 1953: 85.) Os jesuítas desembarcaram queimando de impaciência e ardor missionário. Nos primeiros tempos, tudo parecera simples. Apenas chegado ao Novo Mundo, o padre Manoel da Nóbrega afirmaria confiante: “[...] deixando os maus costumes que eram de seus avós, em muitas coisas (os brasis) avantajam-se aos cristãos, porque melhor moralmente vivem e guardam melhor a lei da natureza”. (LEITE, 1956: 122.) Não parecia haver limites para o otimismo do sacer-

DIÁLOGO DE SURDOS

Apenas o espírito de cruzada e o sucesso da colonização - sinal do apoio divino à obra lusitana impediam os sacerdotes de compreenderem o diálogo de surdos que mantinham com os nativos. A língua já era uma barreira terrível. Muitos Jesuítas viveram € morreram no Brasil sem alcançarem, jamais, aprender a língua tupi-guarani. (LEITE, 1957: 51: 1958: 53.) Por anos a fio, mesmo os mais hábeis no difícil aprendizado foram obrigados a utilizar tradutores quando confessavam e pregavam. Os sacerdotes comunicavam-se com dificuldade com a própria sociedade colonial, profundamente tupinizada. Em 1552, Nóbrega escreveria: “Nesta casa estão meninos da terra [...]. Com os quais confessávamos alguma gente da terra que não entende a nossa fala, nem 128 k

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dote. Ele cria que “em todo o mundo”, não existisse “terra tão capaz de dar tanto fruto como esta ...] (LEITE, 1956: 140.) Dois anos mais tarde, anotaria, ainda transbordando otimismo: “Em estas partes de-

pois que cá estamos, Caríssimos padres c irmãos, se fez muito fruto. Os gentios, que parece que punham sua bem-aventurança em matar os contrários e comer carne humana e ter muitas mulheres, se vão muito emendando, e todo o nosso trabalho consiste em os

apartar disto; porque todo o demais é fácil, pois não

têm ídolos, [...)”. (NÓBREGA, 1988: 114.) Que viessem, abundantes, missionários de Portugal. A seara era muita e os operários poucos. O desânimo e a perplexidade filtrariam e cor-

roeriam a férrea vontade e o otimismo catequéticos

iniciais.

Muito

logo,

as primeiras

conversões

mostraram-se inconsistentes e superficiais. Os prestativos tupinambás batizavam-se mas não abandonavam hábitos sociais em profunda consonância com a cultura material nativa - a independência aldeã, a nudez, a liberdade sexual, a poligamia, a antropofagia, etc. A seguir, acossados pelos colonos, reagiam negativamente a um credo e a uma ordem que ameaçavam a própria independência e integridade física das comunidades da terra. Em 1556, um Jesuíta observava que os chefes tupinambás se afastavam dos sacerdotes com medo de perderem as “seis ou sete mulheres” que possuíam. (NAVARRO, 1988: 182.) Aumentando o nível de exigência, os missionários passaram a batizar apenas os recém-nascidos, os moribundos e alguns poucos adultos que acreditavam estarem em condições. Muito lavravam e pouco

colhiam. Em meados dos anos 50, o ardor dos sacer-

dotes “esfriara” perigosamente. A correspondência missionária registra a alegria dos sacerdotes quando batizavam in extremis um agonizante ou um condenado ao suplício. O brevíssimo espaço de tempo entre o batizado e a morte era uma garantia contra a “inconstância” dos americanos. Em 1552, o jesuíta Vicente Rodrigues (1511-1598)

escrevia exultante: “Uns dois gentios que mataram nes-

ta cidade (Salvador) por Justiça [lusitana], batizados

daquela hora, morreram muito bons cristãos, e em todos os tormentos [torturas] que lhes os deram sempre [tiveram] o nome de Jesus na boca”. (NAVARRO , 1988: 145.) A catequese das crianças era um outro “c onsolo”,

Os pais estariam perdidos, mas os filhos se riam con-

quistados para a nova vida. Também esta espera nça mostraria-se infundada. Os curumins cresciam e, adu ltos, abandonavam os preceitos cristãos pelos “antig os e

diabólicos costumes” brasílicos. (LEITE, 195 8: 371.)

DESESPERANÇA MISSIONÁRIA Em dezembro de 1554, completamente desesp e-

rançado, o padre Luís da Grã escreveria da capita nia da Baía: “E assim, de quantos se batizaram ao princí pio, nem mesmo um [persevera] [...] e o que par ecia que os ajudaria a ser cristãos, que é não terem ído los, parece que os desajuda, porque não tem sentido [capacidade) algum”. (LEITE, 1957: 147.) Para os Jes uítas, O fracasso catequético seria devido, sobret udo, ao fato de os brasis mudarem-se em continuaçã o e

não obedecerem a nenhuma autoridade. Con scientes dos nulos resultados obtidos a custo de dur íssimos sacrifícios, e impossibilitados de conhecerem os verdadeiros motivos do fracasso, os jesuítas aderiam crescentemente às preconceituosas idéias da inferioridade da cultura e do próprio americano. Os missionários eram homens de sua épo ca e membros do aparato estatal ibérico. Desembar cavam na América sinceramente imbuídos da exc elência da religião, da cultura e da organização social européia. Poucos meses após chegar à capitania da Baía, Manoel da Nóbrega escreveria: “Mas muito de espantar ter dado [o Criador] tão boa ter ra, tanto tempo, à gente tão inculta, e que tão pouco co nhece Ee

(NÓBREGA, 1955: 48.) Nos primeiros tem pos, estas visões preconceituosas eram nuançadas pela natural condescendência do pastor para com as fragilidades de seu

rebanho e pela esperança de que fosse possível compatibilizar o cristianismo e a sociedade brasílica. Vergados pelos grandes esf orços realiza-

129

dos e pelos poucos resultados alcançados, os sacerdotes convenciam-se da inferioridade dos brasis e da

impossibilidade de levá-los à salvação pelo entendi-

mento. Esmorecia e desaparecia a simpatia inicial

pelos brasis e pela cultura da terra. Em carta reservada, o padre Manoel da Nóbrega informava Portugal que, dos sacerdotes no Brasil, atora “o padre Luís da Grã”, o “padre Paiva (? - 1584),

um pouco” e o “Padre João Gonçalves” (? - 1558),

“que tem muita caridade”, “todos os mais têm muito pouco gosto pelo gentio”. (LEITE, 1957: 418.) À obe-

diência imposta pela força tornava-se a única alternativa. Em 1550, Nóbrega exprimira a dúvida de que “talvez por medo se” convertessem os brasis “mais rapidamente do que por amor” (LEITE, 1956: 158.) Em meados da década, a dúvida se transformaria em certeza. Apenas social e politicamente subjugados,

os brasis manter-se-iam no rigor da vida cristã. Em 1555, o primeiro provincial jesuíta do Brasil escreveria, para Roma: “Torno a dizer [...] que, se esta costa do Brasil não se povoe de melhor gente [...] que faça os índios viverem na razão e na justiça, não se pode fazer mais [...] do que se sustentar alguns irmãos da Companhia em colégios e ganhar-se alguns filhos de índios, alguns dos quais, depois de grandes, voltarão aos costumes dos pais”. (LEITE, 1957: 171.) No mesmo ano, anotava o padre Ambrósio Pires, da capitania da Baía: “Parece que não é chegada a hora em que estas gentes hão-de entrar no curral de Cristo”. E parecia duvidar que os carijós (guaranis) fossem, como acreditava-se, mais predispostos ao Evangelho.”Em algumas partes dizem que há mais disposição [...). O Senhor faça que não sejam as mostras que estes [Nóbrega e Os primeiros jesuítas] tiveram nos princípios”. (LEITE, 1957: 230.) Havia que destruir a ordem social tupinambá, subjugar os nativos, implantar a autoridade lusitana. Manoel

da Nóbrega abandonava definitivamente a

idéia de conquistar os tupinambás ao cristianismo pelo

convencimento e pela boa obra. A nova e férrea reso-

lução a que chegara assinalara uma triste derrota para 130

a ordem no Brasil. Unir razão, exemplo e fé fora uma

das principais bandeiras sob as quais arregimentaram-se os primeiros soldados da Companhia. O padre Nóbrega explicaria os motivos de tal opinião: “Des-

de que fui entendendo, por experiência, o pouco que

se podia fazer, nesta terra, na conversão do gentio, por falta de não serem sujeitos [dominados], [...] [e serem]

gente de condição mais de feras bravas que de gente racional [...]”. (NÓBREGA, 1988: 174) A pedagogia do exemplo cedia lugar à do bastão. ORDEM E

DISCIPLINA

Em 8 de maio de 1558, Manoel da Nóbrega re-

digiria uma longa missiva que tinha como verdadeiro destinatário o rei e os responsáveis pela administração colonial. Meses antes, teria escrito, nos mesmos termos, uma outra carta que não chegou aos nossos dias. (LEITE, 1957: 447.) Na correspondência de maio, propunha que a Coroa e a Igreja enfrentassem os brasis com uma nova estratégia. Este é talvez o mais importante documento missionário brasileiro do século 16. Ele orientaria e assentaria as bases da sólida aliança que se estabeleceu, no Brasil, entre a Companhia de Jesus e a Coroa, representada, esta última, por Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, desembarcado em Salvador em dezembro de 1557. Segundo Manoel da Nóbrega, devido à oposição dos nativos, os portugueses não ousavam se “estender e espalhar pela terra para fazerem fazendas” e aproveitavam apenas “as praias”. Havia, portanto, que sujeitar o “gentio”. Na carta, o jesuíta pedia ao rei que não enviasse ao Brasil “povoadores pobres”, mas sim colonos com cabedais suficientes para comprarem cativos. Optava-se radicalmente por uma organização senhorial hierárquica. Os caetés, que haviam matado “a gente da nau do Bispo” e outras comunidades que se opunham aos colonos, deveriam ser castigados e dominados. Os nativos seriam “senhoreados”e “repartidos”, como faziam os espanhóis, entre os colonos que ajudas-

sem a “conquistar € senhorcar” os mesmos ou seriam obrigados a viver “quictos sem se mudarem para outra parte”, sob as ordens dos jesuítas, (NÓBREGA, 1955: 278-83.) Como veremos, das duas sugestões, a última seria implementada.

Nóbrega propunha as obrigações a serem imjostas aos brasis subjugados: “A lei que lhes hão-de dar é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só

mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros,

mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos;

fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras re-

partidas que lhes bastem, e com estes padres da Companhia para os doutrinarem”. (NOBREGA, 195 5: 283.) A quase dez anos da chegada dos Jesuítas, os valorosos sacerdotes pouco podiam apre sentar de concreto, fora a proposta de desorganizar as co munidades nativas e sujeitar os americanos par a assim levá-los ao cristianismo. Um verdadeiro abis mo SEparava as propostas do jesuíta e o desejo e as ins truções de Paulo II, de 1537, de que os gentios fo ssem trazidos à “Fé de Cristo” apenas com “a pregação da palavra divina e com o exemplo de boa vida”. Numa dolorosa mas objetiva constatação do fracasso dos esforços jesuíticos, projeto catequético e conquist a colonial soldaram-se num só movimento.

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Capítulo 20 ==

Última cartada Aldeia de índios

A derrota tupinambá de 1555 modificara radi-

calmente a correlação de forças na capitania da Baía. No Recôncavo, não se deparavam mais, frente a frente, dois poderes - o lusitano e o tupinambá. Os brasis das cercanias de Salvador escapavam para o sertão

ou aceitavam a hegemonia lusitana. Milhares de americanos voltaram-se para os jesuítas como a única possibilidade de estabelecer um pacto de subordinação que os livrassem do cativeiro e lhes permitisse permanecer junto às férteis margens da baía. Em 1561, quando um jesuíta perguntou aos membros de uma comunidade aldeá se queriam tornar-se cristãos, responderam: “Agora estaremos seguros [...]”. (LEITE, 1958: 399.) Para a moral escolástica da época, pouco importava que a submissão fosse filha do oportunismo e do medo. No Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito por Manoel da Nóbrega em 1556/57, um personagem indaga se algum proveito haveria se os brasis “Íossem cristãos por força, e gentios na vida e nos costumes e na vontade”. A resposta fora pragmática e dura: “Aos pais, [...] pouco, mas os filhos, netos e daí por diante, o poderão vir a ser [cristãos] [...)”. (LEITE, 1957: 328.) Meses antes da chegada do governador Mem de Sá ao Brasil, os jesuítas começaram à escrever a seus superiores descrevendo os pria

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meiros sinais de regeneração da terra. Conscientes do impasse que viviam, os habitantes das aldeias próximas de Salvador aceitavam erguer igrejas e receber jesuítas que os cristianizassem. Muitas comunidades tupinambás chegavam a esta decisão a partir da pressão direta lusitana. Entretanto, foi mais comum que a iniciativa nascesse dos próprios americanos. Inexistência de organização estatal não significa inconsciência “política”. E criação ideológica a idéia de comunidades brasílicas apáticas ou apenas capazes de respostas semi-instintivas às conjunturas adversas. É rica a ocumentação histórica quinhentista sobre tratados explícitos entre populações brasílicas e autoridades coloniais. Era comum que os próprios principais pedissem aos europeus, em nome de suas comunidades, sacerdotes que levantassem igrejas nas aldeias. Nas Américas, tal movimento teve seu auge nos aldeamentos missioneiros guaranis. Na América Meridional, a “vassalagem direta” dos guaranis sob a égide jesuític a garantiu-lhes, por décadas, “a posse da terra e a liberação da escravidão”. (KERN, 1982: 71, 109.) Após a vitória de 1555, Duarte da Costa impôs drásticas condições aos tupinambás das proximidades de Salvador que não haviam sido expulsos de suas terras. “Determinou-se [..] que não matassem os con133

Nossos amigos, fizessem tão grande desacato a nosso Deus”. (NAVARRO, 1988: 197.) Exigia-se dos brasis que se submetessem e reorganizassem as atividades guerreiras segundo o interesse da produção escravista. O “tratado” foi lido, como pregão, ao som de tambor, pelas aldeias das proximidades. Diversos principais “assinaram-no”, em ato público, na casa do governador. (NAVARRO, 1988: 198.) =

Numa carta de junho de 1557, o jesuíta Antônio

Blasquez refere-se exultante aos momentos posterio-

res ao ultimato lusitano: “[...] foi assim que os maiores inimigos [...] vendo o-destroço que os cristãos fizeram nos seus, despovoaram a terra e se foram a morar ao sertão dentro, e os que se confederaram (sic) com Os nossos, vendo que não havia outro remédio, determinaram de se acomodar a nossos costumes, fazendo de necessidade virtude, [...], dali a poucos dias, começaram a fazer casas onde lhe fóssemos ensinar a doutrina cristã.?. (NAVARRO, 1988: 195.) Em carta do mesmo ano, Nóbrega informava de duas igrejas em aldeias tupinambás - Nossa Senhora do Rio Vermelho

e São Sebastião. (NÓBREGA, 1988: 171.) DESMANDOS SEM FIM

As primeiras igrejas levantadas nas aldeias tupinambás não prosperaram. Vitoriosos, os colonos se entregavam a toda sorte de violências em relação às comunidades próximas. O governador-geral Duarte da Costa, à espera de seu substituto, desinteressava-se completamente da proteção dos brasis. Angustiados, Os jesuítas pediam-lhe que “assinalasse sítio e terras” para as aldeias e hortas dos americanos. O governador tergiversava dizendo que o poderia fazer apenas sob 134

maio de 1557 e chegou a Salvador ... oito meses mais

tarde, em 28 de dezembro! Durante esta verdadeira odisséia, teriam morrido 42 dos 336 passageiros da

expedição. Na ocasião, Mem de Sá teria em tor no de

cingiienta anos. (WETZEL, 1972: 16, 35.) Os colonos aproveitavam o favorecimento go-

vernamental para, sob qualquer desculpa, escravizar e expulsar os nativos das aldeias circunvizinhas. Temendo o pior, os brasis refugiavam-se numerosos nos sertões. O padre Manoel da Nóbrega referiu-se a este s

abusos: “[...] com o gentio também se faz pouco, porque a maior parte deles, que eram fregueses destas duas igrejas (Rio Vermelho e São Sebastião) fugiram: a causa disto foi tomarem-lhe os cristãos as terras em que

têm seus mantimentos, e, por todas as maneir as que

podem, o lançam [fora] da terra [...]” (NÓBREGA,

1988: 172.) Não era chegada ainda a tão esperada hor a da redenção e da regeneração da terra.

Em abril de 1558, os sacerdotes enviavam ain-

da notícias desanimadoras: “[...] e foi de maneira que conveio em largar a igreja de S. Sebastião, por não haver na aldeia a quem doutrinar, porque todos se foram [...]”. E o informante relatava: “Estes, des ta aldeia, foram sempre os mais TECEOSOS, porque eram da casta daqueles com quem os cristãos tiveram gue rras passadas e nunca quiseram fazer roças nem man timentos, por mais que nós outros lhes assegurávamos que lhes não fariam mal”. Mas o medo era certamente geral: “Das outras duas povoações que doutrinamos, se foram quase todos[...]”.(NAVARRO, 1988: 211.) Em verdade, a debandada era completa. Imediatamente após ter desembarcado na capitania da Baía, Mem de Sá tomou em mãos, rápida e firmemente, as rédeas do poder. Este governador desempenharia um importante papel na história da ocupação lusitana da capitania da Baía e do litoral do Brasil. Durante o seu longo governo (1558-72), concluiria a obra de “pacificação” iniciada pelo antecessor, “limpando” o Recôncavo dos tradicionais habitantes. Em fins do século 16,0 maior cronista da FAa à Wa.

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Messem carne humana [...], e se isto cumprissem que Os cristãos seriam seus amigos e os favoreceriam nas Suerras; e quando não, que eles os haviam de destruir |...]. Porque não se havia de consentir que sendo eles

governador-geral do Brasil, partiu de Portugal, em

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Servissem deles como de escravos. [...] que não co-

ordem real. (LEITE, 1957: 428.) Mem de Sá, terceiro

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trários senão quando fossem à guerra, [...), e se por aCaso Os cativassem, ou que os vendessem, ou que se

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| época, O senhor-de-en genho Gabriel Soares de Sousa,

elogiaria a obra do terceiro governador-geral. [...] Mem de Sá destruiu e desbaratou o gentio que vivia

derredor da baía, [...] queimou e assolou mais de trinta aldeias, c os que escaparam de mortos ou cativos,

fugiram para O sertão € se afastaram do mar [...]>.

(SOUSA, s.d.: 1, 254.) Em

fim, cumpriam-se as ins-

truções dadas no Regimento entregue, em 1548, a

Tomé de Sousa. Neste processo, coube aos jesuítas

um destacado desempenho. Com o novo governador, as penas dos jesuítas

chegariam ao fim. Foi estreita e duradoura a aliança

estabelecida entre Mem de Sá e a Companhia de Je-

sus. O jesuíta José de Anchieta registrou a gratidão dos companheiros de Loyola ao governador num lon-

go poema laudatório - Feitos de Mem de Sá -. Escrito em latim, nele são descritas as batalhas do admi-

nistrador na defesa do cristianismo no Brasil. Os jesuítas jamais cessaram de elogiar a obra e a retidão

moral de Mem de Sá. O governador foi apresentado, pela Ordem, sempre, como um administrador paradigmático. Em 1560, o padre Rui Pereira diria ser ele: “[...] abaixo de Deus o homem da catequese”.

(NÓBREGA, sd: 51.) Logo após desembarcar, ele or-

denou às comunidades tupinambás do termo de Salvador que se “ajuntassem? em aldeias sob as ordens dos jesuítas - eram as “aldeias de índios”. ALDEIA DE ÍNDIOS

Em sua Crônica da Companhia de Jesus, publicada em 1658, o jesuíta Simão de Vasconcelos relataria as ordens impostas por Mem de Sá aos tupinambás derrotados: “Primeira, que nenhum de nossos confederados (sic) ousasse dali em diante comer carne humana. Segunda, que não fizesse guerra, senão com causa justa aprovada por ele e os de seu conselho. Terceira, que se ajuntassem em povoações grandes, em forma de repúblicas, levantassem nelas igrejas, a que acudissem os já cristãos a cumprir com as obrigações de seu estado, e os catecúmenos à dou-

trina da fé; fazendo casas aos padres da Companhia

[-..]”. (VASCONCELOS, 1977: II, 34.) Como podemos ver, era praticamente absoluta a concordância entre as sugestões jesuíticas e as medias governamen-

tais, no relativo ao trato dos brasis.

Dava-se um salto de qualidade no projeto de aculturação dos americanos. O Regimento de Tomé de Sousa, de dezembro de 1548, sugeria a reunião

dos brasis “cristãos” em aldeias próximas das povoações. (HCPB, III: 345.) Em 1549, ao desembarca-

rem

na

baía

de Todos

os Santos,

os jesuítas

limitaram-se a estabelecer “missões volantes”, ou

seja, visitar e pregar nas aldeias nativas. (NÓBREGA,

sd: 41.) O segundo governador, Duarte da Costa, or-

denara que os americanos levantassem igrejas em suas povoações. Agora, executava-se a reunião de diver-

sas aldeias em uma “redução”, com todas as conse-

quências advindas de tal medida. Em julho de 1558, o jesuíta Antônio Pires noticiaria: “O primeiro remédio, e que já sucede bem, foi (o governador Mem de Sá) fazer ajuntar os de quatro aldeias em uma só”. Para o jesuíta, tal decisão muito facilitaria o ensino e a doutrinação dos brasis. (NAVARRO, 1988: 225.) Folga dizer que estas aldeias estavam submetidas à Justiça lusitana e não possuíam - como as missões espanholas - o direito de elegerem seus vereadores. É crível que facções dos principais tenham facilitado o processo de aglutinação das aldeias tupinambás. Como analisamos no início deste livro, pouco poder tinham eles sobre as comunidades tradicionais. Quando da organização das “aldeias de índios”, alguns passavam ao status de “meirinhos”. Assim sendo, eram encarregados de distribuir justiça, sob às ordens dos jesuítas, em nome da administração civil e religiosa lusitana. O que significava um real acréscimo de poder. (WETZEL, 1972: 189.) No relativo à América Meridional e aos guaranis, este fenômeno teria desempenhado um importante papel no processo de aglutinação das aldeias nativas dis-

persas. (KERN, 1982: 31, 37, 40 et passim.)

Em março de 1560, o governador Mem de Sá escreveria, ao Rei: “[...] ordenei de fazer um meirinho, 135

dos do gentio, em cada vila, porque eles folgam muito

com estas honras”. Como paga, a administração deve-

na “vesti-los cada ano” e dar às suas mulheres “uma

camisa de algodão”. (LEITE, 1958: 172.) Não são pouSos Os registros históricos da diligência e rigor com que os novos “funcionários” da administração lusitana Se empenhavam nas suas tarefas. A introdução do “tronco (prisão), dos açoites, da mutilação e de outros castigos físicos nas “aldeias de índios” substituía o consenso pela coersão física como principal elemento de

sociabilização aldeá. (NÓBREGA, 1955: 297.) Em verdade, assentava-se um forte golpe nas próprias raízes consensuais da sociedade tupinambá. Neste relativo, as “aldeias de índios” luso-brasileiras diferiam qualitativamente das missões jesuíticas espanholas. Na mesma carta, Mem de Sá informaria também o rei sobre a “adaptação” das instituições portuguesas às “vilas de índios”: “[...] mandei fazer tron-

co em cada vila e pelourinho, por lhes mostrar que têm tudo o que os cristãos têm, e para o meirinho meter os moços no tronco quando fogem da escola, e para outros casos leves, com autoridade de quem os ensina e reside na vila (jesuítas). Disto são muito contentes, e recebem melhor o castigo que nós”. (WETZEL, 1972: 193; LEITE, 1958: 172.)

DUROS CASTIGOS

O governador apresentava uma visão diplomática e adocicada das novas instituições. Não Taro, OS “meirinhos” açoitavam até a morte os brasis que castigavam. (WETZEL, 1972: 199.) Em julho de 1559, o padre Manoel da Nóbrega relataria, com a naturalidade do europeu habituado aos violentos casti gos Judiciários do Velho Mundo, que um brasil, condenado pela morte de uma mulher, por ser aparentado ao meirinho da aldeia de São Pedro, apenas fora açoitado e amputado em “certos dedos das mãos, de maneira que pudesse ainda trabalhar”.(LEITE, 1958: 53.) Em 1559, o mesmo sacerdote referia-se exultante

à disciplina em que viviam os brasis da aldeia de São

Paulo, na capitania da Baía: “A obediência que têm é muita [...), porque não vão fora (da aldeia) sem pedir licença, porque lhos temos assim mandado

[Je

E;

ajuntava, se algum brasil desobedecesse, “é preso e castigado pelo seu meirinho”, Com tais medidas o bom padre pretendia que os aldeões não comessem carne humana, não se embebedassem com cauim, não fornicassem. Os feiticeiros eram igualmente denunciados e perseguidos (LEITE, 1958: 53.) O certo é que os americanos das cercanias de

Salvador aceitavam numerosos construir igrejas em

suas aldeias e, mais tarde, reagruparem-se nas “al-

deias de índios”. Um documento assinalava que, sabendo os brasis “como o Governador Mem de Sá favorecia muito a todos os índios que se convertiam, |...) vieram muitos principais a visitá-lo e ao Padre Luís da Grã, Provincial, pedindo-lhes padres, [...] dizendo que se queriam juntar e fazer igreja [...)”. (WETZEL, 1972: 182.) Do ponto de vista da administração lusitana, a concentração populacional e territorial dos brasis em algumas poucas aldeias era uma excelente solução. Ela liberava terras tupinambás para os colonos; protegia Salvador com um “cinturão” de “aldeias de índios”; fornecia periodicamente trabalhadores para os engenhos; garantia o abastecimento da capital com os alimentos das plantações brasílicas. Do ponto de vista dos americanos, ao menos em teoria, ela asse-

gurava um mínimo de proteção diante das violências dos colonos. Os jesuítas manteriam as autoridades informadas das arbitrariedades praticadas contra os brasis € os representariam diante das autoridades. Tal

sistema garantiria também o abastecimento destas comunidades em manufaturados e ferramentas do Velho Mundo. Na América Meridional, longe das aglomerações européias, a “redução” de aldeias guaranis sob a autoridade dos jesuítas espanhóis deu frutos Inegáveis. Durante décadas, assegurou a sobrevida e desenvolvimento das populações guaranis acossadas pelos escravistas lusitanos e pelos encomendeiros espanhóis. Nestas reduções, provou-se a capacidade

americana de transitar, com rapidez e criatividade, para formas superiores de organização social. Elas evidenciaram que nenhuma barreira cultural ou incapacidade natural impediam que as comunidades

americanas fossem incorporadas maciçamente às

novas formações coloniais. Na capitani a da Baía e em outras regiões da costa, apesar dos es forços e da

dedicação dos jesuítas, ao lado das povo ações lusita-

nas, as reduções organizaram, facilitaram e aceleraram a dizimação das populações brasílicas.

137

Capítulo 21

Controle total do recôncavo

Sem alternativas, os tupinambás aldeavam-se

numerosos sob as ordens dos jesuítas. Os habitantes

de “quatro ou ou cinco aldeias” próximas foram reu-

nidos “em uma povoação junto ao Rio Vermelho”, a

uns seis quilômetros da capital. O mesmo se fez em duas outras reduções, respectivamente a uns 24 e 42 quilômetros da sede do governo geral. (NÓBREGA, 1955: 334.) As três “aldeias de índios” - São Paulo, São João e Espírito Santo - localizavam-se à beira-

mar, O que garantia o acesso aos recursos protéicos fornecidos pelo mar. Em 1561, São Paulo teria dois

mil habitantes e Espírito Santo quatro mil (ANCHIETA, 1946: 9.) De 1557 a 1562, em torno de trinta mil autóctones - a população de umas cem comunidades

- foram reunidos em onze “aldeias de índios”, situ a-

das em terras impróprias ao plantio e à produção do açúcar, (MARCHANT, 1980: 95.)

Como vimos, a reunião de divers as comunidades em uma aldeia de índios podia ser um ato volun-

tário ou forçado. Sabemos por carta de setembro de 1559 que algumas aldeias, algo afastadas da red ução de São João, serviam como local de exercício de práticas culturais tupinambás. Os catecúmenos da aldeia de São João se dirigiam para lá, a fim de participarem de cerimônias “pagãs”. O governador Mem de Sá teria simplesmente mandado “um hom em de re-

solução para que de, sua parte, os fizesse a todos pasSar para a povoação onde os padres doutrinava m”. E, se Os brasis não quisessem obedecer, ordenara que “lhes queimasse as casas”. (NAVARRO, 1988: 255 .) Os jesuítas exultavam com a nova si tuação e não poupavam elogios a Mem de Sá. Os tupina mbás esforçavam-se para adequarem-se aos dictats cristã os. Descrentes da força de sua cultura e instituições, repetida e irremediavelmente derrotados, repudiav am os pajés e hábitos culturais milenares e entregava m-se, sem travas, ao processo de aculturação exi gid o pelos lusitanos. Esperariam que tais decisões lhes asseguTassem ao menos a sobrevivência física. Em setembro

de 1558, os jesuítas narravam que os brasis abandona-

vam a antropofagia e traziam, de longas distâncias, as carnes dos inimigos para que fossem ent erradas.

(NAVARRO, 1988: 230.) Os principais batizavam-se, abandonavam as diversas mulheres, to mavam nomes cristãos e ajudavam os sacerdotes no co nvencimento

dos aldeões renitentes. (NAVARRO, 198 8: 251.) A decisão de abandonar os costumes tra dicionais e cristianizar-se podia ser tomada sem uma pressão imediata. Os tupinambás que havi am fugido, possivelmente de Pernambuco, para a ilha de São Luís, no Maranhão, mantiveram, por déc adas, contatos comerciais sistemáticos com os france ses. No iní139

daram os franceses a se estabelecerem na região e aceitaram abandonar, coletivamente, os hábitos 'pa-

sãos”. Na reunião que formalizou o início do proces-

SO de submetimento à Coroa francesa, o ancião Japi-açu, é crível que em nome das 27 aldeias da ilha, num longo discurso, declarou a disposição de aderir à cultura européia.

rem em tudo mudar os seus costumes e começam, ago-

ra, OS que Já são cristãos, a fazer casas separadas e de taipas para sempre viverem nelas, porque o seu costume dantes era cada dois ou três anos renovarem as ca-

sas, mudando-se para outras partes. Venderam também

toda plumagem que tinham para se vestirem eles e suas

mulheres, e o terem feito isto é sinal muito cert o de haver o Espírito Santo tocado os seus corações.” (NAVARRO, 1988: 255.) Nas imediações de Salvador, impusera-se a “ paz

TUPINAMBÁS FRANCESES

portuguesa”. Em regiões mais distantes, os brasis

Japi-açu tudo prometia. Aceitariam o governo francês, abandonariam o canibalismo, adeririam ao cristianismo. Guerreariam os portugueses sob as or-

lado da baía, as terras banhadas pelo rio Paragu açu

Se OS europeus quisessem, não furariam os lábios, não dançariam, não portariam os cabelos cumpridos,

renegariam as bebedeiras cerimoniais, etc. Sem pôr limites ao abandono dos hábitos ancestrais, o principal declarou, diante do almirante F. de Rasilly: “[...] entregamo-nos a ti e faremos o que quiseres nos ordenar”. O circunspecto ancião também registrou a ingênua e patética esperança dos americanos: “Nossos filhos aprenderão a lei de Deus, vossas artes e ciências, e com o tempo se tornarão vossos iguais; haverá então alianças de parte a parte, de modo que Já ninguém pensará que não somos franceses”.

(ABBEVILLE , 1975: 60-1.)

Como em outras situações históricas congêneres, também os americanos estabeleciam nexos de causalidade entre a vitória e a cultura portuguesas e acreditavam poder apoderar-se dos segredos dos estrangeiros,

ou minorar seu ódio, imitando e aderindo aos seus cos-

tumes. (HAUSER, 1989, II: 44.) O processo de “destupinização” era acelerado e total. Abandonavam-se a antropofagia, a poligamia, a nudez, os nomes, os en-

feites, os pajés, a autonomia, as residências, as cerimô-

nias ancestrais. A crise de valores era abismal em um povo até poucas décadas acostumado a um contínuo e vitorioso processo de expansão territorial. “Os índios desta vila de S. Pedro - informa-nos um jesuíta - que140

possuíam um relevo relativamente agreste, grande fertilidade e densa população. Esta região era cobiçada pelos lusitanos. Em janeiro de 1557, o segund o governador-geral do Brasil concedera a seu filho,

Alvaro da Costa, uma grande extensão de terra que

ia da barra do rio Paraguaçu à barra do rio Jaguar ipe.

(SILVA, 1919: 348.) Em 1559, a “Guerra do Par agua-

çu” assumiria uma importância idêntica a dos combates de 1555, pois permitiria o domínio português da margem meridional da baía. Os habitantes do rio Para guaçu mantinham boas relações com os da vizinha ilha de Itaparica. Inicialmente, estas comunidades haviam comerciado, com frequência, com os franceses, com os quais mantinham relações de aliança. Com o fim destas visita s, ficaram relativamente à margem das atividades mer cantis. Com o estabelecimento do governo geral, apenas algumas embarcações lusitanas visitavam Itaparica/Paraguaçu para escambarem cativos e produtos da terra. Os colonos nem sempre se comportavam com lisura durante as negociações. O que causava frequentes atritos. Os americanos da margem seten-

trional hostilizavam as populações da outra margem, Seus inimigos tradicionais, e os lusitanos incentiva-

vam tais desavenças. (NÓBREGA, 1955: 304, 365:

SALVADOR, 1982: 103.) Em 1555, Diogo Álvaro, o belicoso filho do segundo governador-geral, comandara uma expedição contra aldeias da margem direita do rio Par agua-

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dens francesas e trabalhariam na fortificação da ilha.

mantinham a tradicional independência. No outro

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CIO do século 17, temerosos do jugo lusitano, convi

çu. (HCPB, IH: 377.) Como era tradicional, as comunidades não involucradas diretamente pelos ataques portugueses mantinham-se apáticas diante de tais

sucessos. Segundo parece, 0 casus belli entre Salvador e Paraguaçu / Itaparica seria a negativa daquelas comunidades de devolverem, aos colonos, brasis cativos por elas acoutados. Apenas os habitantes da grande ilha teriam respondido às exigências portuguesas. Em meados de 1558, o roubo de um barco de

um lusitano que andaria mercando no rio Paraguaçu

justificaria a decretação

(NÓBREGA, 1955: 343.)

de uma

“guerra justa”.

GUERRA DO PARAGUAÇU O governador Mem

de Sá mandou,

contra o

Paraguaçu, três expedições, sob o mando de Vasco

Rodrigues

Caldas, fortes de 80 lusitanos e muitos

brasis aldeados. (NÓBREGA, 1955: 303.) Do primeiro ataque, O lusitano e seus comparsas trouxeram

“cativos”. Durante o segundo, realizado antes de 17

de setembro de 1558, ao amanhecer, eles assaltaram uma aldeia adormecida, próxima da costa, matando os guerreiros, “alvo vinte ou trinta pessoas, menino s

e mulheres, que trouxeram por escravos”. Era hábito corrente nos assaltos lusitanos às aldeias nativas que fossem mortos os guerreiros e escravizados adoles centes, mulheres e crianças. Mais uma vez voltaria o caçador de homens ao Paraguaçu para queimar “al -

deias” e “matar” brasis. Em verdade, tratav am-se de

razias escravizadoras

contra aldeias isoladas.

(NAVARRO, 1988: 231; NÓBREGA, 1955: 343-4. )

Principais de aldeias do Paraguaçu, de Itaparica e do Tinharé viajaram a Salvador, juraram

submissão, Tenegaram suas crenças, entregaram re-

féns e aceitaram pagar tributos. (NÓBREGA, 1955: 345.)

Em meados do ano seguinte, membros de uma aldeia, talvez exasperados pelas arbitrari edades praticadas pelos colonos, j uUstiçaram quatro brasis aliados dos

lusitanos que por lá andavam. (NÓBREGA,

s.d.: 85.) Os habitantes de Salvador, temendo um

levante geral, aprestaram-se a chamar o governador

que se encontrava em Ilhéus. Ch egando a Salvador em fins de julho, Mem de Sá ex igiu incontinenti

que fossem entregues os “matadores” da ge nte “por-

tuguesa”. Possivelmente tirando lição da derrota dos “parentes?da outra margem, em 1555, os principais do Paraguaçu e cercanias reuniram -se, confederaram-se € negaram-se a cumprir as exig ências. (NÓ-

BREGA, 1955: 364.)

Não se tratava da revolta de umas poucas aldeias. Compreendendo a seriedade do de safio, o gover-

nador Mem de Sá organizou um exér cito de trezen-

tos portugueses e dois mi tupinambás aldeados e atravessou a baía. O destacamento re uniria praticamente todos os europeus, brasis e cavalo s capazes de serem mobilizados. Da expedição part icipava o irmão jesuíta Antônio Rodrigues, design ado pelo provincial Manoel da Nóbrega. O grande ob jetivo da

coluna seria a aldeia do Principal Ta rajá, que se en-

conirava em um terreno de difícil aces so. (NAVARRO, 1988: 270; WETZEL, 1972: 54-65.) Ap ós os portugueses e aliados abrirem, durante um di a e uma noite, um caminho de uns seis quilômetro s até o reduto, uma das duas colunas em que a expedi ção se dividira “topou com muitos contrários e co m uma cerca”, na manhã de 28 de setembro. (NAVARRO , 1988: 271 ) Os defensores encontravam-se no cume de uma cerrania protegidos por paliçadas e pr ofundos fossos. Batendo os arcos, gritando, assobi ando, soando Os instrumentos guerreiros, chamav am, orgulhosos, as trop as lusitanas à luta. (VASCONCEL OS, H, 1977:

38.) Após um violento combate, os am ericanos foram desalojados das defesas. Suplan tados em númeto € armamento, tentaram escapar à fúria assassina dos atacantes escondendo-se pelas ma tas. Tal seria a sanha dos brasis, sob as ordens lusi tanas, que eles teriam tingido “a verdura” dos camp os com o “sangue” dos inimigos. (VASCONCEL OS, II, 1977: 38.) No local

dos combates, foi fundada a Vi la Nossa Senhora da Vitória. No mesmo di a, outras duas cer-

cas teriam sido adentradas, possivel mente sem Tesistência. (NAVARRO, 1988: 271.)

141

SEM DAR QUARTEL

Segundo o padre Simão de Vasconcelos, que

escrevia sobre acontecimentos passados havia um

Século, no dia seguinte, prosseguindo a marcha, a tropa lusitana deparou com uma outra cerca, muito defendida, igualmente penetrada. Mais uma vez o Jesuita historiador se refere com palavras fortes ao patético final do combate. Derrotados, os tupinambás

tentavam escapar: “[...] porém debalde, porque foram seguidos, com tão grande terror, que se afirma, que matava o pai ao filho pequeno, para que não fosse descoberto, com seu choro, da vereda [...], onde

se escondia: [...] foi tão grande a mortandade, que não podiam contar-se os mortos”. (VASCONCELOS, 11,1977: 37, 39.) Na campanha do Paraguaçu, os portugueses utilizaram um pequeno destacamento de cavaleiros. Como vimos, homens montados eram uma

arma desconhecida no Novo Mundo. Em carta ao rei, o governador-geral Mem de Sá afirmaria ter destruído, sem maior oposição, “cento e trinta e tantas aldeias” (LEITE, 1958: 158.) Frei Vicente do Salvador reduz, em sua História do Bra-

sil, o número das povoações “queimadas” a “mais de sessenta”. (SALVADOR, 1982: 152.) Como faziam em Angola, os lusitanos arrasavam plantações e queimavam aldeias, a fim de que, como dizia o padre Francisco Pires, os nativos padecessem muito, emagrecessem e morressem, eles e seus filhos. (NAVARRO,

1988: 272.) A campanha teria durado aproximadamente quinze dias. Vitorioso, o governador retornou a Salvador onde receberia, alguns dias mais tarde, delegações das comunidades atacadas. Elas vinham

aceitar as condições da submissão. (NÓBREGA, 1955:

364; WETZEL, 1972: 66.)

142

nt

Nóbrega registraria exultante os resultados dos combates: “[...] [os lusitanos] mataram muitos e cativaram grande soma, queimando-lhes suas casas e tomando-lhes seus barcos, pelo qual pediram paz [ia]:

(NÓBREGA, 1955: 302.) A campanha do Paraguaçu,

realizada sobretudo com forças tupinambás aldeadas sob as ordens dos jesuítas, abriria o oeste do Recôncavo à hegemonia portuguesa. Segundo o historiador Francisco Adolfo Varnhagen, que sempre apresentou a destruição das comunidades americanas como um ato civilizatório, este seria o último ponto

“à roda da

Bahia” sob controle americano. Foram necessários apenas dez anos para que os portugueses “despejassem” e “submetessem?” a abundante população tupinambá que ocupava as férteis margens da baía de Todos os Santos. Nem mesmo os poucos brasis reunidos nas “aldeias de índios” conhe-

ceriam a paz. Segundo parece, com a chegada de Mem de Sá e com a política da sedentarização, ao menos parte das populações que tinham adentrado os sertões teria retornado às margens da baía para ali se estabelecer e viver nas aldeias jesuíticas que se organizavam. Apesar dos serviços militares prestados, quando da expulsão dos franceses da baía de Guanabara, na campanha do rio Paraguaçu e em outras ocasiões, os brasis aldeados não se livraram das violências lusitanas. Já em 1559, em pleno governo de Mem de Sá, o padre Manoel da Nóbrega lamentava-se que os habitantes da aldeia de São Pedro perdiam “suas terras e roças” para os colonos e eram submetidos a toda

sorte de violência. (NÓBREGA, 1955: 336.) A crise

de um mundo e de um povo era gerada por uma nova e implacável sociedade. O rápido desenvolvimento da produção canavieira baiana devorava, pantofagicamente, terras, águas, lenhas e trabalhadores cativos.

Capítulo 22 E==s

À um passo do fim

Em junho de 1556, ainda no contexto do movi-

mento tupinambá antilusitano da capitania da Baía, o primeiro bispo do Brasil, dom Pero Fernandes Sardinha, e uma centena de acompanhantes, foram devorados por caetés do litoral, após naufragarem, a uns 360 quilômetros de Salvador, a norte da desem-

sem escravos, onde quer que fossem achados, sem

fazer exceção nenhuma”. (ANCH IETA, 19 46: 12-3,) Desnecessário dizer que apenas alguma s aldeias caetés haviam participado dos sucessos de 1556, A “guerra justa” antícaeté era a oportuni dade esperada pelos plantadores. Eles aproveitar am a ocabocadura do rio São Francisco, quando retornavam a sião para atacar até mesmo os caetés que viviam rePortugal. (WETZEL, 1972: 25.) Desde a sua chegada duzidos sob a proteção jesuítica e, na falta destes, ao Brasil, em 1551, o bispo Pero Fernandes Sardinha brasis aldeados de outras famílias tupinambás. se destacara por hostilizar os jesuítas e apoiar os co(NAVARRO, 1988: 384.) Em 26 de junho de 1562, 0 lonos na escravização sem critérios dos brasis. O própadre Leonardo do Valle escrevia que ca etés “pagãos” prio Manuel da Nóbrega, ao relatar para Tomé de e “cristãos” eram caçados com tanta “d iligência”que Sousa a morte do bispo, lembrara que ele “não se melhor seria que se deixassem “morrer tinha por bispo” dos “gentis”. (NÓBREGA, s. d.: 63.) em casa, sem buscar de comer nem fazerem suas roças”, porque - Em meados do Quinhentos, importantes comumal saíam “das abas dos padres” nidades caetés (família tupinambá) viviam eram “ferrados” nas pelos cúpidos escravizadores. (NAV regiões que iam do norte da cidade de Sal ARRO, 1988: vador ao 38 4. ) A expansão da economia açucareira rio São Francisco. Na carta Já referida não perde 1558, dois mi ti a qu e os colonos perdessem tempo seleci anos após o naufrágio do bispo Sardinha, onando o padre os “b ru to s” qu e escravizariam. Manoel da Nóbrega pedira: “Os que matara m a genTratava-se da legalização da caça te da nau do Bispo se podem logo castigar indiscrimie sujeitar na da do americano: crianças, jovens |...JP. (NÓBREGA, 1955: 283.) Em 1562, , adultos, homens seis anos e mulheres eram assaltados pelos após o grande banquete antropofágico, caminhos, nas rosob a pressão ças, nas aldeias, nos povos Jesuític dos plantadores que ressentiam a falt os, onde fossem a de cativos, o encontrados. Completamente desm governador Mem de Sá decretou oralizados e Tenuma guerra justa di dos, os sobreviventes tentavam contra as comunidades caetés determ apenas fugir dos inando que “fosataques escravizadores. Segundo a Informação dos 143

Primeiros aldeamentos, possivelmente de José de Anchieta, antes dos acontecimentos, os aldeamentos de Santo Antônio, Bom Jesus, São Pedro e Santo André possuiriam uns doze mil habitantes. Após a Tetirada de cativos e as fugas dos brasis para os sertões, teriam ficado uns escassos mil, com os jesuítas. (MARCHANT, 1980: 101; ANCHIETA, 1946: 14.) A débâcle era total.

Os povos brasílicos encontravam-se f ragilizados diante de enfermidades - sobretudo virais - desconhecidas do Novo Mundo. Desde os primeiros tem-

pos, os contatos entre os povos do litoral e os europeus causaram problemas de saúde para os brasis. André Thevet conta, em Cosmografia universal, que,

em meados

do Quinhentos, os tamoios da ilha de

Villegaignon e das cercanias foram infectados pelos franceses e que teria morrido “uma grande parte do

povo”. Tamanha seria a mortandade que não se en-

RECOMEÇAR OUTRA VEZ Mais uma vez, reiniciava a fuga maciça de brasis para os sertões agrestes. Mais uma vez, grande parte

do esforço catequético jesuítico se perdia com o abandono e despovoamento das “aldeias de índios”. Tal foi a magnitude dos abusos perpetrados pelos colonos que o governador-geral, pressionado pelos Jesuítas, viu-se obrigado a abolir o estado de guerra com as comunidades tidas como responsáveis pela sacrílega comilança. Era a única forma de interromper a caça indiscriminada dos americanos da região. Quando a administração e os sacerdotes puseram fim

aos estragos causados pelos colonos durante a guerra “anticaeté”, as comunidades aldeadas haviam sido dura e irreparavelmente golpeadas. Muitos historiadores afirmam terem sido naturais e não sociais e históricas as causas da mortandade e do decréscimo populacional das comunidades brasílicas litorâneas. Uma série de epidemias e não a violência do colonizador europeu seria a grande responsável pelo acelerado desaparecimento das abundantes populações da costa. Para tal interpretação, a unificação bacteriológica mundial, consegiiência inevitável da expansão marítima européia, deve ser responsabilizada pela hecatombe populacional americana. E não o sistema colonial.

A desaparição destas populações deveria, portanto, ser analisada como uma triste mas inevitável sequela da necessária e progressista expansão dos contatos entre os homens dos cinco continentes. Um grande mal, devido a um maior progresso. 144 o



contrariam americanos “para cortar o [pau] brasil e o portar aos navios, que ficavam fundeados, porque não podiam ser carregados”. Irritados com a situação, os

nativos teriam explicado a mortandade como um cas-

tigo “por andarem com gente tão ruim”. (THEVET, 1953: 19, 88.) Temos informação de uma epidemia, possivelmente de gripe, nas cercanias de Salvador,

em 1552. Portanto, alguns anos antes da assinalada pelo viajante francês. Em uma carta de março de 1552, o jesuíta Vicente Rodrigues referia-se à epidemia e, perplexo, explicava o seu aparecimento a partir de critérios mágico-religiosos: “Os dias passados fizemos alguns cristãos, dos quais depois alguns se tornaram a seus costumes, e querendo-os o Senhor castigar, foi a mortandade neles tanta que foi cousa de pasmo, mormente nos filhos e filhas mais pequenos Ea

(NAVARRO, 1988: 134.) Entretanto, em uma outra carta, do mesmo ano, Vicente Rodrigues afirmava

aliviado que a “grande mortandade” ou “tosse geral” se fora “de todo”. (NAVARRO, 1988: 145 -) Como assinala a carta, as crianças eram as mais atingidas. ÁGUA DA MORTE

Os jesuítas espantavam-se com o fato de que muitos recém-nascidos adoeciam ou morriam após serem batizados. Os pajés respondiam às investidas ideológicas dos sacerdotes divulgando que o batismo causava a morte - no que, em alguns casos, não

estariam totalmente errados. Os próprios sacerdotes

infectariam os desprotegidos recém-nascidos. Segundo parece, não raro, cles usavam a própria saliva como água batismal! (STADEN, 1990: XXX.) Apenas chegado à capitania da Baía, o padre M anocel da Nóbrega

relatava: “Uma cousa nos acontecia que muito nos maravilhava a princípio e foi que quase todos os que

do a sociedade tupinambá entrava em um acelerado pr

ocesso de desagregação. Em fi ns de 1558 ou inícios 1559, uma epidemia - talvez de varíola - manifestou-se nas colonias meridionai s e se estendeu, com rapidez, para o norte. Em carta escrita no Espírito Santo, possivelmente no início de 1559, um jesuíta falava de uma grande “mortand ade” entre os brasis

batizávamos, caíam doentes, [...] do ventre, [...] dos olhos, [...] de apostema [abscesso]: e tiveram oca“escravos” e “forros” da capita nia. Em “breve temsião, OS seus feiticeiros, de dizer que lhes dávamos a po”, “600 escravos” teriam morr ido. A “mortandadoença com a água do batismo e, com a doutrina, a de” teria começado “no sertão e pe la costa, desde o morte [...)”. Tais casos, muitas vezes, não deixavam Rio de Janeiro”. (LEITE, 1958: 19.) sequelas irreparáveis. O mesmo Nóbrega informava, Em junho do ano seguinte, uma “peste” se aliviado: “[...] mas se viram em breve (os pajés) abadestia sobre os catecúmenos da “ald mascarados, porque logo todos os enfermos eia de índios” de se curaSão Paulo. Os jesuítas desdobrava ram”. (NÓBREGA, 1988: 95.) m-se em cuidados, Sangravam e alimentavam, in utilmente, OS enfermos Enquanto os nativos mantiveram a autonomia com “laranjas” e “açúcares”. Atin diante dos portugueses e não sofreram as violências gidos, mesmo os mais fortes, “em quatro ou oito dias iniciadas a partir da colonização, tais problemas ”, faleciam. Enfitretanto, assinalava o padre Rui Pereira: caram circunscritos a algumas aldeias e regiões, “E posto que, onde o mais do tempo, andávamos en tre eles, quis Nosso tendiam a ser superados. Em verdade, a “unificaçã o Senhor que nunca se nos pegasse a doença”. (LEITE, bacteriológica” iniciara meio século antes, com a vi19 58: 291.) No ano seguinte, o su sita das costas brasílicas pelos primeiros euro rto varíólico peus. esparramava-se pelo Recôncavo. Estes breves surtos epidêmicos, apesar dos grave s mas localizados - problemas que causavam, cria vam as condições gerais para uma lenta mas progress iva SEMPRE OS ESCRAVOS imunização relativa das populações americanas no referente às grandes enfermidades transmissíveis Em julho de 1561, o irmão José Anch desconhecidas no Novo Mundo. ieta notificava que, naquele ano, a Divina Ju stiça teria castigado, No relativo à capitania da Baía, tal situação geral sobretudo os escravos da capitania se modificou radicalmente com a desorganização de São Vicente, “com e muitas enfermidades”, “sobretudo submissão das comunidades da região, câmaras de sangue”. quando da “[...] dois, três, quanto muito quatro expansão militar e territorial portuguesa no dias duravam” os Recôncaen fermos. Desta vez, os Jesuítas ta vo. Já foram elucidadas à exaustão as causa mbém teriam adoecis sociais do , ai nd a que não mortalmente (LEITE, e históricas da eclosão das epidemias que 1958: 371.) A causaram na ve ga çã o costeira e o apresamento, arma grandes hecatombes populacionais zenamento e na Europa di st ri bu ição de cativos ao longo do lit medieval. Alimentação insuficiente, oral criavam as excesso de trame lh or es co ndições para que as enfermidades balho, práticas sociais anti ou pouco higiê se pronicas, propa ga ss em ra pi da mente pelas capitanias. Os mais miscuidade habitacional e vivencial duraforam fenômemente tocados por estes flagelos nos sociais que contribuíram ativamente eram os cativos dos para o início lu si ta no s e as comunidades nativas, go e o desenvolvimento das “pestes” medievais. lpeadas e expropr ia da s de suas melhores terras. Não é uma casualidade os grandes surtos epi-

dêmicos brasílicos terem eclodido prec isamente quan-

Em 1562, concomi tantemente com as violências ensejadas pela guerra Justa an

ticaeté, uma epidemia,

1A4S

Segundo parece, de varíola, golpeou, por três meses,

às Cercanias da cidade de Salvador, causando verdadeira hecatombe entre brasis aldeados e feitorizados. Desesperados, os sobreviventes “se vendiam e se 1am meter por casa dos portugueses a se fazer escravos, vendendo-se por um prato de farinha”. No início de

1563, após a chegada de um navio português, uma

Segunda epidemia de “bexigas” instalava-se em Ilhéus, espalhando-se pelo litoral e parte do interior. Ela atinSiria, a seguir, a capitania da Baía. As sequelas das epidemias entre os lusitanos foram quase nulas. Entre Os americanos, mal-alimentados e vergastados pelas arbitrariedades dos colonos, foram terríveis. Na capitania da Baía, o primeiro surto, teria causado a morte de uns trinta mil brasis; o segundo, teria ceifado a vida de “um quarto a três quintos dos sobreviventes da primeira epidemia. (MARCHANT, 1980: 103; ANCHIETA,

1946: 12-5.)

Aterrorizados, famintos, morrendo como mos-

cas, sem forças para enterrar os mortos, quanto mais para caçar e trabalhar nas roças, os sobreviventes ofereciam-se como escravos nas povoações e engenhos e deixavam-se cativar sem resistência, tudo em

troca de uma cuia de farinha de mandioca. Segundo a documentação da época, alguns brasis apresentavam-se aos colonos “com os ferros nos braços e nas pernas”. (MARCHANT, 1980: 104.) A epidemia de origem “européia” criava a “extrema necessidade” que Justificava, segundo a legislação lusitana, que um brasil se vendesse como escravo ... A mortalidade dos brasis feitorizados nos engenhos foi também muito alta. As comunidades americanas não viam o fim dos males de origens conhecidas e desconhecidas que se abatiam sobre elas. Segundo o historiador Alexander Marchant, quando tudo terminou, de uma população nativa ava-

liada em aproximadamente oitenta mil habitantes,

teriam sobrevivido, “nas proximidades da Bahia”, apenas uns dez mil. Das onze “aldeias de índios”,

sobravam apenas quatro. (MARCHANT, 1980: 1049)

Ainda que estas avalições sejam aproximativas e tal-

vez superestimadas, o certo é que fora vertiginosa q mortandade entre os brasis. A produção açucareira não podia porém parar. Os colonos certamente exi giram maior produção dos cativos sobreviventes e re-

puseram os estoques de trabalhadores feitorizados aumentando a pressão sobre as comunidades sobreviventes. À exação dos colonos sobre os brasis cativos e livres teria chegado a níveis insuportáveis. A partir de então, estes povos não responderiam mais aos lusitanos como

comunidades

livres, mas

sim

como populações cativas. Em 1568, o Recôncavo era sacudido por uma revolta geral, segundo parece de cunho messiânico, em que engenhos foram abandonados pelos “negros da terra” e senhores lusitanos, Justiçados. Segundo

José de Anchieta, “na Semana Santa, se levantou al-

guma da escravaria dos portugueses, a saber, de Japecé, Paraná-mirim e outras fazendas, fugindo para o sertão, na qual fugida mataram alguns portugueses, pondo fogo a algumas fazendas, roubando o que podiam”. Muitos destes brasis se teriam autovendi-

dos, sem saberem bem o que seria a escravidão, durante as grandes fomes e epidemias dos anos anteriores. (ANCHIETA, 1946: 41.) Mais uma vez, a revolta era dominada com a ajuda das tropas das aldeias Jesuíticas. Para o historiador norte-americano S.B. Schwartz, a revolta teria ocorrido no ano anterior.

(SCHWARTZ, 1988: 54.) Esta situação de crise contínua das comunidades da terra expressava o crescente desenvolvimento e enriquecimento da sociedade colonial baiana.

Capítulo 23 EE

Descimento

A agonia final

Nos anos 1570, a capitania da Baía contava com dezoito engenhos açucareiros fabricando e exportanto a valiosa mercadoria para a Europa. (GÂNDAVO, 1965: 77.) Na década de oitenta, já eram quarenta as unidades produtivas na capitania. (SCHWARTZ, 1988: 34.) Por esta época, em um engenho trabalhariam aproximadamente de sessenta a cem cativos. As atividades do porto e da cidade; as roças de manti-

mentos; os canaviais; as plantações de algodão; as

pescarias; as construções; as criações de gado etc., funcionavam sobretudo com o braço escravo do homem americano, agora apoiado pelo esforço de uma crescente população servil africana. A partir do fim da década de 60, escasseando na costa autóctones que suprissem as necessidades de cativos, cs colonos voltaram-se para as populações nativas do interior. Iniciava-se o ciclo das “entradas” e dos “descimentos”. Os “descimentos”, re-

gulados pela Coroa, eram concebidos como o deslocamento, voluntário, de comunidades dos sertões, para as proximidades das povoações portuguesas do litoral, onde lhes seriam concedidas terras, em aldeias supervisionadas pela Companhia de Jesus. Os “descimentos” deviam ser feitos pelos jesuítas ou sob

sua supervisão. Os “descidos” seriam remunerados se viessem eventualmenta a trabalhar para os colo-

nos. Ao menos em teoria, os nativos tinham o direito

a se negarem à migração. (PERRONE-MOISÉS, 1992: 118 et. seg.)

A realidade mostrou-se muito distinta das de-

terminações reais. Era bastante comum que as comunidades refugiadas nos sertões próximos - ou que ali vivessem - fossem trazidas, pelo convencimento ou pela força, para o litoral, onde eram distribuídas entre os engenhos, plantações e “aldeias de índios”. Nas

mãos dos colonos, não raro eram reduzidas à escra-

vidão de fato. A conquista das capitanias do Norte -

Sergipe, Paraíba, Rio Grande

do Norte - fornecera

abundantes levas de cativos para os engenhos açucareiros, plantações, roças e outras unidades produtivas. Nos anos 60, um amplo território costeiro ainda dominado pelos brasis separava as capitanias da Baía

e de Pernambuco. Não raro, lusitanos perdiam a vida aventurando-se pelos caminhos terrestres que uniam

aquelas donatarias.

Nestas costas - visitadas frequentemente pelos entrelopos franceses - naufragaram e foram devorados o primeiro bispo do Brasil e seus malogrados acompanhantes. Americanos escravizados fugidos das fazendas da capitania da Baía, quando da revolta

de 1568, ali teriam encontrado refúgio. Em 1574, sentindo a crescente pressão dos colonos e, é crível,

147

intuindo a impossibilidade de se oporem a eles com SUcesso, uma delegação de comunidades das regiões do rio Real (fronteira entre os estados da Bahia e Sergipe) chegou, à capitania da Baía, pedindo jesuí-

tas para suas aldeias. (LEITE, 1938: 1, 439.) E Em janeiro de 1575, um sacerdote e um irmão Jesuíta retornaram com os brasis àquela região. Por

exigência do quarto governador-geral do Brasil, Luiz

de Brito, uma “força militar de vinte soldados acompanhou-os até a barra do rio Real, onde estacionou. Deixando a incômoda companhia, os Jesuítas penetraram sem dificuldades nos atuais territórios de Sergipe. O êxito catequético foi fulgurante e total.

Os sacerdotes foram recebidos de braços abertos. Em Junho do mesmo ano, haviam fundado três igrejas, em aldeias americanas, e “pacificado” 28 outras. SUCESSO EFÊMERO O sucesso seria efêmero. A Coroa ordenara anteriormente a submissão daqueles territórios. O governador Luiz de Brito ali possuía “umas dez léguas” de terra à espera de serem rentabilizadas. Os plantadores da capitania da Baía exigiam de volta os cativos fugidos e necessitavam de novos braços es-

cravos. Em novembro de 1575, Luiz de Brito mobilizou as aldeias jesuíticas baianas, convocou os colo-

nos e seus “escravos”, decretou uma “guerra justa” contra um principal da região - Aperipê - e tomou o rumo do norte. A recém-fundada igreja de São Tomé serviu como base de apoio para os escravizadores. Em 21 de dezembro, o exército ouviu missa na “Loreja”? e participou de uma “procissão rogatória” pelo bom êxito da operação. Muitos brasis da região haviam conhecido o cativeiro na Baía e temiam a reescravização. O principal Surubi, que tivera desavenças anteriores com os colonos, confiando pouco na proteção garantida pela fundação, em sua aldeia, da “igreja” de Santo Inácio, abandonou-a e preparou-se para o combate. Os chefes Surubi e Aperipê foram combatidos e facilmente der-

rotados e o governador cativou grande quantidade de

brasis. A intervenção convulsionou a região, muito populosa, e ainda superficialmente “pacificada' pelos Jesuítas. Não contando os lusitanos com forças sufici-

entes para ocupá-la, tiveram que abandoná-la. Os sa-

cerdotes recuaram para a capitania da Baía, levando consigo 1.200 aldeões, que foram distribuídos nas “a]deias de índios” de Santiago e do Espírito Santo. Na penosa retirada em direção do Recôncavo, os sacerdotes deviam vigiar estreitamente os brasis. Conta o historiador e jesuíta Scrafim Leite, na sua História da Companhia de Jesus no Brasil, que, diante dos olhos dos padres, “os tomavam os brancos e amarravam e escondiam pelos matos, para servir-se deles como de escravos”. Não sabemos quantos americanos morreram ou foram escravizados antes de chegarem às povoações baianas. O desastre seria total e não pouparia nem mesmo os que alcançaram com vida as povoações jesuíticas. O mesmo historiador relata que “grande parte daqueles índios morreram em breve na Bahia, vítimados por doenças epidêmicas, sarampão e varíola”. (LEITE, 1938: 439-46.) Na carta ânua de 1581, 0 jesuíta José de Anchieta, já sacerdote, refere-se a um “descimento”, realizado sob as ordens do padre Diogo Nunes (1548-1619), destro conhecedor do tupi-guarani. Comunidades estabelecidas junto à serra de Araripe,

nos atuais limites dos estados do Ceará, Piauí e

Pernambuco, a mais de seiscentos quilômetros de

Salvador, teriam mandado “embaixadores a chamar

os padres, que os fossem buscar” por “não se atreverem a vir sós”. Temeriam os perigos da viagem e os portugueses, que andavam “salteando os pobres índios”. Em novembro de 1580, o padre Diogo Nunes partiu para a Serra, acompanhado por um outro religioso e, possivelmente, por alguns brasis conversos. POUCOS CHEGARAM

A viagem teria sido muito dura. Além da inclemência do sertão, a aventura exigia que o sacerdote a

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negociasse previamente a passagem dos retirantes com as comunidades nativas das cercanias. Ao alcançar o destino; 0 padre Nunes teria pregado e con-

vencido a “muitos mil? que o seguissem, O que su-

gere um certo exagero de Anchieta. A predisposição

de abandonar o território seria - no máximo - de ape-

nas uma parcela dos habitantes do Araripe. tes, “portugueses e mestiços”, chegados certamente à procura de cativos, teriam muitos de tal decisão. O sacerdote teria êxodo com 580 acompanhantes.

Entremenà região, demovido iniciado o

Em julho de 1581, após escapar de tentativas

de escravização, a triste coluna formada por homens,

mulheres e crianças alcançava o destino. Dos quase 600 retirantes que haviam partido do Araripe, apenas 250 chegaram às povoações jesuíticas da capitania da Baia. Na mesma carta, o padre José de Anchieta informa que, por aquelas épocas, destacamentos escravistas percorriam os sertões à caça de brasis e

que “cem homens portugueses” teriam morrido devido à resistência oposta pelos autóctones. (ANCHIE-

TA, 1984: 308-311, 323-24.) Apenas alguns punhados do mais de meio milhar de “descidos” alcançaram

possivelmente a reiniciar a vida no litoral.

Relata José de Anchieta que, em setembro de 1581, dois meses depois da chegada da coluna do padre Nunes, explodiram na região “as mais cruéis e gerais doenças, que nunca nesta terra se viram”. (ANCHIETA, 1984: 307.) Não sabemos quantos ex-moradores do Araripe, extenuados pela longa e difícil marcha, alcançaram a sobreviver à epidemia e à instalação nas aldeias

Jesuíticas. Um “inverno” duro e longo, com grandes “chuvas, invernadas, frios e tempestades”, castigara a população e comprometera as colheitas, sobretudo a de mandioca. (ANCHIETA, 1984: 307-8.) Na capitania da Baía, uma fortíssima epidemia de sarampo e disenteria causava mais uma hecatombe entre a sofrida população nativa. Debilitados pela miserável vida a que estavam reduzidos e mal-alimentados ao extremo, os brasis morriam aos magotes. A falta de braços para levar adiante as Toças aumentava

a escassez de alimentos e debilitava ainda mais a poO

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pulação enferma. Fechava-se assim o círculo inf ernal.

Alguns engenhos da região chegaram a perder cingúen-

ta cativos. Em uma aldeia jesuítica, seiscentos bra sis adoeciam em um só dia. Na cidade de Salvador e seu termo, teriam morrido nove mil americanos. A DOR DO AMO

O padre José de Anchieta anota candidamente

a tristeza que se abateu sobre os colonos da capita-

nia: “O que neste tempo mais quebrava o coração era o desamparo dos [brasis] que morriam, porque os mais era à míngua. E também dos portugueses que,

com ais e gemidos, choravam sem remédio o pouco

ou nenhum [cativo], lhes ficava de vida, porque na

verdade, morta a escravaria e índios, não há [como]

viver nesta terra”. (ANCHIETA, 1984: 308.) A rarefação das comunidades nativas colocava um grave pro-

blema aos lusitanos. A escassez de mão-de-obra podia sustar o acelerado desenvolvimento da produção açucareira que consumia pantofagicamente trabalhadores escravizados. O ciclo do “descimento” das comunidades brasílicas do interior exige estudos que explicitem todas as suas implicações. Parece terem sido várias as razões que facilitaram a transferência voluntária

ou semivoluntária, sem maior resistência, de nume-

rosas aldeias do interior em direção ao mar. A consciência da superioridade militar e civilizatória lusitana estaria profundamente implantada na alma dos povos tupinambás e outros. Algumas das comunidades “descidas” eram originárias do litoral e haviam penetrado nos sertões para furtarem-se aos ataques lusitanos. Viviam em um ambiente inóspito e sonhavam com os antigos tempos de abundância que tinham conhecido junto ao mar. Receberiam com alegria as promessas de poderem voltar para o litoral e ali se estabelecerem com segurança. Como

vimos, o talvez mais difundido mito

messiânico tupi-guarani era a procura da “terra sem males”, reino terreno de abundância e juventude eter-

149

na. O antropólogo A. Métraux lembra: “Reina a res-

tões à procura de cativos levavam muitas comu nid

d-

peito da situação da “terra sem mal” duas opiniões

des a aldearem-se, no litoral, sob a proteção Jesuítica,

fd

escravizadores. As “aldeias de índios” passaram à abrigar uma crescente e eclética população de brasis

divergentes: alguns a localizam no centro da terra,

na esperança de que tal medida as protegessem dos

Pessoas competentes, entretanto, estão de aCoT-

do em assegurar que a “terra sem mal” fica situada para o oeste, além do mar. A conjuntura dessas últi-

de várias procedências e culturas.

Mas pareceu ter prevalecido, pois foi sempre o occaRo que os tupis, migrando à procura do paraíso, procuraram atingir”. (METRAUX, 1950: 333.) Segundo parece, no mínimo a partir da terceira década do Quinhentos, pressionadas pela colonização lusitana, grandes migrações tupinambás partiram do atual litoral de Pernambuco e da Bahia em direção do norte e noroeste. A rica várzea do Amazonas e de seus tributários foi um dos palcos destes impressionantes deslocamentos populacionais. Em 1538, uma importante vaga migratória encontrava-se na região entre os rios Tefé e Coari, no alto Amazonas e, em 1549, chegava, dizimada, à Vila de Chachapoyas, no Peru. Os tupinambás ocuparam, igualmente, a ilha de Tupinambarana, no médio Amazonas, regiões do Maranhão, a partir de 1580. (PORRO, 1993: 16, 23 et passim.) As comunidades que se embrenhavam nos sertões sentiriam a falta da antiga abundância do litoral. Esta era em verdade a terra da promissão. Eram os pajés que galvanizavam e dirigiam as comunidades tupi-guaranis quando destes movimentos migratórios. Numa época de derrota diante dos colonos e profunda descresça em suas forças, sacerdotes e colonos certamente assumiriam com facilidade o papel de Moisés americano nesta migração das comunidades tupinambás do interior para o desastre à beira-mar. (FAUSTO, 1992: 385.) A dizimação das comunidades do litoral signi-

BASTAVA UM PARENTE

Frei Vicente do Salvador, em sua Histór ia do Brasil, referiu-se às “descidas” realizadas, na déca-

da de 70, durante a administração de Luiz de Brito de Almeida, quarto governador-geral e fe rrenho escravizador: “Mas ordinariamente bastava à língua do parente mameluco, que lhes representava a fartura do peixe e mariscos do mar de que lá care ciam, a liberdade de que haviam de gozar, a qual não teriam Se OS trouxessem por guerra. Com estes en ganos e com algumas dádivas de roupas e ferramen tas que davam aos principais e resgates que lhes da vam pelos que tinham presos em cordas para os comerem, abalavam aldeias inteiras, e em chegando à vista do mar, 'apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do marido [...]”. Ao menos em teoria, os brasis distribuídos entre os co-

lonos não eram escravos. (SALVADOR, 1982: 181.) As duríssimas condições de existência dos cativos nos engenhos e nas outras atividades coloni ais determinavam altíssimas taxas de mortalidade. Co mo os habitantes do litoral, as populações descid as acabavam-se com rapidez. Possivelmente em 1587, Anchieta escreveria sobre a hecatombe populaci onal brasílica: “A gente que de 20 anos a esta parte é gastada, nesta Baía, parece coisa que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou [acreditou] que tan ta gente se gastasse, nunca, quanto mais em tão pouco tempo [...]”. Segundo ele, tão despovoado estaria o litoral que os escravizadores eram obrigados a penetrar mais de 250 léguas os sertões para obterem cativos. Devido às distâncias, boa parte dos capt urados morria durante a viagem. (ANCHIETA, 1946 : 47-9.)

ficaria, para muitas outras, que viviam no Interior,

uma excepcional ocasião para ocuparem terras que cobiçavam ou de onde haviam sido expulsas em tem-

pos passados. À medida que desapareciam as comu-

nidades da costa, os portugueses internavam-se nos

sertões à procura de brasis. Milhares de americanos foram transferidos para o litoral. As expedições escravizadoras luso-brasileiras que trilhavam os serE - ad

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Quando os brasis do interior começaram a escasscar, os colonos voltaram-se decididamente para o tráfico negreiro. As multidões de brasis escravizados permitiram a acumulação de capitais que financiariam a importação de trabalhadores escravizados

da África. Com o tráfico negreiro, abria-se toda uma

nova página da história do Brasil colonial. Em uma

carta de 1581, referindo- se à capitania da Baía, o padre José de Anchieta escreveu: “Cresceu tanto o trato dos escravos, que de Guiné vêm para esta terra, ue este ano se tem por certo serem entrados, só nesta cidade, mais de dois mil?.E informava que fora delegado a um jesuíta instruir os africanos “nas coisas da fé” e que se fundara para eles a confraria de

“Nossa

Senhora

do Rosário”.

(ANCHIETA,

1984:

312.) José de Anchieta acreditava que tais medidas

ajudariam a manter os “negros da Guiné” “domésti-

cos”. O que - para Segundo o vam-se rebeldes dade” - e, mesmo tentado rebelar-se.

o jesuíta - era deveras necessário. sacerdote, os africanos mostra“pouco sofredores de superioriquando eram poucos, já haviam (ANCHIETA, 1984: 312.) O medo

dos colonos luso-brasileiros do “índio antropófago”

metamorfoseava-se no temor ao “negro insubmisso”. O historiador norte-americano S.B. Schwartz acre-

dita que, na capitania da Baía, a “transição para uma força de trabalho africana” tenha sido “efetuada nas primeiras duas décadas do século XVI”. (SCHWARTZ, 1988: 68.) Por estas épocas, já começavam a per-

tencer à história as comunidades tupinambás que senhorcavam indômitas o litoral brasileiro quando

da descoberta cabralina.

151

É e

Conclusão ES

O discurso dos vencidos

Em poucas centúrias, os agressivos guerreiros e hábeis horticultores tupinambás haviam conquistado, a povos americanos menos aparelhados, o domínio de grande parte da longa, fértil e disputada faixa litorânea. Eles senhoreavam incontestes o litoral quando a frota de Pedro Alvares Cabral ali aportou, em abril de 1500. Menos de cem anos após o início da colonização, as orgulhosas e indômitas comunidades encontravam-se quase extintas, reduzidas a pequenos grupos que se refugiavam em regiões inóspitas do interior ou em miseráveis aldeamentos Jesuíticos pluriculturais. Em 1584, impressionado com à proporção da hecatombe populacional determinada pela chegada dos lusitanos, o padre Fernão Cardim, que não primava pela simpatia para com os nativos, registrava maravilhado: “[...] e eram tantos

os desta casta que parecia impossível poderem-se

extinguir [...]”. (CARDIM, 1978: 121.)

Fora sobremaneira desigual a luta entre tupinambás e lusitanos. De um lado, comunidades domésticas desconhecedoras das diferenças de classe e de organizações estatais, assentadas econômic a e socialmente em uma realidade aldeã semi -autárquica. Do outro, o Estado feudal e escravista lusitano, uma das pontas-de-lança do mercantilismo euro-

peu, ferreamente inserido na já complexa divisão

internacional do trabalho de então. Sem extremarmos, podemos apresentar este embate como o confronto entre o mundo europeu e as aldeias tupinambás do litoral. A luta de sociedades de classe contra comunidades domésticas. Os tupinambás derrotavam e aprisionavam os inimigos para abatê-los em concorridos banquetes antropofágicos. O guerreiro/carrasco registrava orgulhoso, no novo nome que passava a portar e nas suas carnes lanhadas, a glória da execução. A valentia e a destreza do sacrificado eram permanenteme nte relembradas pelos executores. Tratava-se do con fronto de produtores livres, independentes e primitivos” que só sabiam viver do esforço dos próprios braços. Os senhores portugueses, não. Eles não empreendiam uma luta apenas pelas terras e pelas carnes dos adversários. Necessitavam domina r o corPo, à mente, a alma. Chegavam para con struir um

mundo de Prometeus e de Zumbis, de sen hores e de

cativos. Os tupinambás seriam apenas as primeiras gerações a conhecer as maldições de uma terra que não mostraria o fim de seus males. Para controlar e destruir os corpos, havia que dominar a alma. No mundo das idéias, o tupinambá metamorfoseou-se rapidamente em “índio ”. Em prol

dos interesses mercantis e escravistas, hábitos e cos-

153



tumes diversos, muitos deles praticados em eras não tão remotas por muitas comunidades européias, ser-

viram de justificativas para a servidão e a morte de centenas de milhares de nativos. Forjava-se no

cadinho do preconceito o discurso do colonizador

Sobre o homem americano. Este último foi apresentado como ser desprezível, preguiçoso, retardado, inconseqgiiente, degenerado. Um subomem, enfim. As décadas passaram-se e as tivas recuaram dizimadas para os foram buscadas, ao escassearem, escravizáveis. Quando a população

comunidades nasertões. Elas ali na costa, braços brasílica rarefei-

ta sustentava com dificuldade a produção colonial, o comércio negreiro passou a trazer africanos, aos magotes, para o Brasil. O que determinou mudanças substantivas no relacionamento entre os portugueses e populações de origem americana. As multidões de africanos que trabalhariam como escravos na colônia recomendavam que os lusitanos procurassem o

apoio das dizimadas comunidades nativas ou de seus descendentes. Negros africanos e não mais brasis passaram a ser a grande preocupação dos senhores das riquezas brasileiras.

PÁGINA ESQUECIDA

A memória do massacre multitudinário das comunidades tupinambás começou a ser substituída pela imagem difusa da absorção - quase sem violência -, pelo europeu civilizador, de uma população nativa, atrasada, ingênua e muito rarefeita. Neste então, os tupinambás,

sobretudo, faziam já parte da história. Em meados do século 19, os brasis não eram mais um problema para as elites e não sustentavam mais, com a força de seus braços, a vida produtiva nacional. Principalmente povos de língua jê ou de línguas isoladas sobreviviam dizimados em regiões agrestes de escassa importância econômica. Neste contexto geral, o “indianismo” pôde servir como a temática fundadora do discurso literário brasileiro - patriótico, senhorial, autoritário, centralizador e nacional. O grande romancista José de Alencar, frio e 154

ferrenho defensor do calvário do homem negro, desdobrava-se em grandiloquentes referências às qualidades do “índio” Per. A historiografia brasileira construiu o difuso mito da conquista da terra sem donos. De uma terra de ninguém ou, talvez, do ninguém. Tal visão foi profundamente fixada na rarefeita memória histórica

nacional. Para tal leitura contribuiu a própria pobre-

za relativa da cultura material dos povos brasílicos litorâneos. Os poucos vestígios físicos deixados pelas milhares de povoações brasílicas, construídas com

materiais perecíveis e deslocando-se

alguns

quilô-

metros cada quatro ou cinco anos, livraram as clas-

ses senhoriais contemporâneas do constrangimento causado, no México e na América Andina, pelos

imponentes complexos arqueológicos pré-colom-

bianos, testemunhos mudos da voracidade Insa na das

elites colonizadoras espanholas. À própria substituição do americano pelo afr icano como mão-de-obra escravizada foi explic ada com critérios ideológicos e mistificadores. O “Indígena' seria um mau escravo devido à sua indô mita rebeldia. Não se adaptaria ao trabalho agrícola, pois seria essencialmente ocioso, imprevidente e volúve l.

O negro, ao contrário, mostrar-se-ia

um

excelente

produtor feitorizado - forte e dócil -, ainda que des provido de inteligência e iniciativa. Escamoteavam-s e Os reais e pouco edificantes motivos desta tra nsição e criava-se, en passant, a visão racista ainda dominante do “indígena” indolente e do “negro” submisso. Economizava-se o constrangimento historiográfico de reconhecer que os engenhos arrasaram as comu-

nidades nativas e consumiram

brasis escravizados,

como destruíram grande parte da Mata Atlântica, queimando a lenha de suas florestas. Sobretudo a entrada das classes trabalhadoras e assalariadas na arena política brasileira tende a criar condições sociais mínimas para uma releitura das diversas etapas da história da exploração da força de trabalho no Brasil. Mostram-se portanto necessárias operações ideológicas mais refinadas para manter o manto mistificador que encobre a história da socie-

RR

dade brasileira. 7 Um mundo mais complexo exige apologias históricas mais refinadas. Neste processo

de despistagem historiográf ica, contribui fortemente

a violenta ofensiva vitoriosa das concepções econô-

micas € ideológicas liberais neste último decênio. Abandona-se a defesa da missão civilizadora do colonizador europeu e passa-se a apresentar à tragé-

dia dos povos americanos como parte de um destino inexorável, como o momento do choque único de duas

civilizações irremediavelmente estranhas. O genocídio dos tupinambás no litoral brasileiro, no século 16, passa a ser uma espécie de pecado original, do qual todos

nós, civilizados do século 20, seríamos culpados. Entre nós, e nossa cultura, e o “índio” e a sua, levantar-se-ia

uma espécie de cortina indevassável, impedindo, on-

tem e hoje, qualquer diálogo essencial. Para esta visão, O historiador contemporâneo não pode e não deve aventurar-se nestes tempos de incompreensão que, no

nosso o drama de um povo fo rmado por homens absolutamente iguais dos quais Jama is conheceremos a face. Podemos aceitá-los como homens, ma s - cons-

ciente ou inconscientemente - semp re os consideraremos como homens naturais, mais próximos do reino animal do que do reino humano. Ma is próximos da história natural do que da historiogr afia. Permanecerão eternamente personagens se m rosto, povos à margem da História. Para eles, como assinalava F.A. de Varnhagen, grande patrono da hist oriografia braSileira, apenas a Etnografia.

Mas talvez exageramos. Talvez q impossibilidade de construir uma história dos Povos amer ica-

nos, no momento da colonização, seja devida à inexistência de fontes que permitam elevar o “índio” a qualidade de tupinambá, dar um nome ao pr incipal

aldeão ou discutir as razões de suas de cisões. Os lu-

sitanos não teriam destruído os registro s e as fontes máximo, são parcialmente penetráveis ao antropólohistóricas que permitiriam reconstituir os patéticos go. O objetivo essencial da operação é dissolver a férsucessos do Quinhentos? Talvez tenha razão Luiz rea unidade entre os diversos momentos históricos da Felipe Baeta Neves, ao escrever, em seu br ilhante e exploração da força de trabalho no Brasil. instigador estudo antropológico sobre os je suítas no Brasil: “[...] a mais dolorosa lacuna da te se não se deve a fronteiras auto-impostas: deve-s e à eliminaTODOS IGUAIS ção (não gratuita) de quase todos os regist ros dos discursos dos indígenas e de suas formas de resistência Que se assemelha mais que um “índio” a um à chegada dos europeus”. (NEVES, 1978: 22.) outro? Ou de uma “aldeia indígena” a uma outra? A A retórica sobre a pretensa destruiç ão ordenaredução do tupinambá ao status genérico de indígeda pelo ministro republicano Rui Barb osa às fontes na economizou a necessidade de escrever sua históda escravidão negra brasileira serviu de Ju stificativa, ria. Narrando-se a história de um “índio” abstrato ou durante algum tempo, para o abandono da riquíssima de uma “aldeia” genérica se esgotaria a história de documentação primária sobre a inst ituição servil. toda a população “indígena”. Tornam-se desnecessáComo vimos, é abundante e facilm ente acessível a rias estimativas da realidade demográfica americadocumentação quinhentista conhecid na; tentativas de localização e individualização a sobre a histódas ria da luta pelo litoral brasílico. Es ta documentação comunidades que entraram em contato direto com os enuncia com relativa frequência, colonos; descrições históricas sobre os contat sob uma forma os endistorcida, a visãoe O discurso das comunidades natre português e americanos, etc. tivas. Na medida do possível, cabe Para a historiografia brasileira, o “índio” cont ao cientista sociial o trabalho de despir tal discurso das nua sendo uma abstração, uma realidade soci incrustações al geap ol og ét ic as devidas aqueles que registrara nérica, indivíduos conhecidos sempre m tais no coletivo. de po im en to s. Ex is te ainda uma riquíssima documenNão nos identificaremos e jamais sentiremos como tação primária não editada a ser estudada. o

pe

ip

terminamos registrando o discurso já referido

do velho americano do Maranhao, descrente dos reSultados da aliança antiportuguesa estabelecida com Os franceses, em 1612. Trata-se de uma peça da oratôna tupinambá de singular clarividência. Impres-

Siona profundamente o leitor contemporâneo O caráter diplomático, mas intransigente, das opiniões defendidas e, sobretudo, o grau de consciência que aquela comunidade americana pôde alcançar sobre 0 drama que vivia. No momento da agonia final de seu povo, um velho principal articulou um discurso que estabelecia, não só uma periodização histórica para as agruras vividas por sua gente, como isolava as raz0es essenciais de tal drama. O QUE VI COM OS MEUS OLHOS

O sacerdote Claude d” Abbeville relata que, em 1612, ao desenvolverem-se as conversações entre os principais da aldeia de Aussauap e os chefes franceses, o “Diabo” teria levado um “velho índio a esfriar

o ânimo dos principais e dos anciões” na aliança. Na “Casa grande?, Momboré-uaçu pedira a palavra e falara: “Vi a chegada dos pero em Pernambuco e Potí: é começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os pero não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam livremente com as raparigas, o que os nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificar cidades para morarem conosco. É assim parecia que desejavam que constituíssemos uma só nação”. “Depois - prosseguiu o ancião -., começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela. Que Deus somente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que eles não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários pai [sacerdotes]. Mandariam vir os pai; e estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os 156

nossos e a batizá-los. Mais tarde, afirmaram que nem eles nem os pai podiam viver sem escravos para os

servirem e por eles trabalharem. E, ASSIM, se Viram constrangidos os nossos a fornecer-lhos. Ma s não

satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabar am

escravizando toda a nação. E com tal tir ania e cruel-

dade a trataram, que os que ficaram livre S foram, como nós, forçados a deixar a região.” Para o tupinambá, nada mudara: “Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizestes somente para traficar. Como os pero, não recusáveis tomar nossas filhas e nós nos Julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Ness a época, não faláveis em aqui vos fixar. Apenas vos con tentáveis com visitar-nos uma vez por ano, pe rmanecendo, en-

tre nós, somente durante quatro ou cinco luas [meses]. Regressáveis então ao vosso país, le vando os nossos gêneros para trocá-los com aquilo que ca recíamos”.

“Agora - prosseguiu Momboré-uaçu - já nos

falais de vos estabelecer aqui, de cons truirdes forta-

lezas para defender-nos contra os nossos Inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba (com andante) e vários pai Em verdade, estamos satisfeit os, mas os pero fizeram o mesmo. Depois da chegada dos pai, plantastes cruzes como os pero Começais agora a instruir e a batizar tal qual eles fizeram. Diz eis que não podeis tomar nossas filhas senão por es posas e após terem sido batizadas. O mesmo diziam os per o. Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio . Agora os pedis e os quereis como eles, no fim.” Com a elegância de um velho senador romano, o tupinambá concluiu reafirmando diplomaticamente a boa-vontade dos franceses e deixando claro nela não acreditar. Registrou, também, com a referência à sua vida que se extinguía, a consciência da agonia inexorável e final da civilização americana: “Não creio, entretanto - completou Momboré-uaçu -, que tenhais o mesmo fito que os pero; aliás, isso não me atemoriza, pois velho como estou nada mais temo. Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos”. (ABBEVILLE, 1975: 115-6.)

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E essa história perdida no tempo e relegada ao esquecimento que Mário Maestri nos relata em Os senhores do litoral. É um relato grave, é uma peça dramática, é um épico e é uma meditação.

Mário Maestri viveu

pro-

fundamente

a história do seu

pró-

prio tempo. Não é apenas um académico aplicado em suas pesquisas.

É um homem com a grandeza da expcriência,

que sabe que a história é

feita de dor e de sofrimento, e de luta c de resistência. O dom do escritor, autor de dezenas de livros sobre História, dois romances ce centenas de artigos brilhantes e polêmicos, publicados em todo o mundo, garantc a qualidade de um texto necontido

cessariamente

sufocar

para

o grito destas revelações cspantoic SA Mário Maestri, com Os senhores do litoral,

escreveu

livro

funda-

mental

para a compreensão

de nos-

so

País,

de

um

nossos

sonhos,

c

de

nossas frustrações. TABAJARA

RUAS

?

A descoberta do Brasil foi um episódio da abertura

de uma via marítima para as Índias: Devido à pobreza da costa, nos primeiros anos, os portugueses apenas trocaram, com os povos do litoral, bens europeus por americanos.

Estes foram tempos de contatos episódicos e pacíficos.

Com a implantação da colonização e a agricultura de exportação, “nos anos. 1530, iniciou-se a luta aberta pelo controle das terras e da força de trabalho nativas.

As indômitas comunidades tupinambás, por séculos, haviam senhoreado o litoral. Elas foram tombatidas e derrotadas. Milhares de tupinambás trabalharam, até a morte,

como escravos, nos engenhos açucareiros do Brasil.

A história da escravização e genocídio das comunidades nativas da costa constitui a primeira página da história da exploração mercantil

ataca ii Rec SRT]

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Editora REU Ri

Redd tpee

O

DRA

da força de trabalho no Brasil.