Os mandarins da república: anatomia dos escândalos na administração pública, 1968-84

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Histórias exemplares

"Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil silo", costumava dizer o falecido poeta Mário de Andrade. Não se negará que, dos tempos do poctu para os nossos, muita coi�a tenha muda­ do. A suúde dos brasileiros continua precária, mus as grandes endemias do passado se acaba­ ram, ou quase. Quanto às saúvas, a verdade é que elas conti­ nuam mais vivas e vorazes do que nunca, em­ bora tenham mudado de roupa e de pasto. An­ dam hoje de paletó e gravata e comem as raí1cs, não dos pés de planta, mas do próprio pais, muito bem-instaladas nos mais altos ga­ binetes da administração pública. Suas armas silo a incompetência, a irresponsabilidade e a corrupção, e suas larvas nascem do acasala­ mento de dois tipos de formigas hoje com unís­ simos: os tecnocratas e os negocistas, os esper­ talhões. Dir-sc-á q.ue tudo isso é coisa antiga e que não há administração pública (especialmente brasi­ leira) que não sofra desses males, ao menos desde o tempo do Estado Novo getuliano. Pode ser. A novidade, entretanto, é que ao lon­ go dos últimos quinze anos essas saúvas mo­ dernas assumiram o controle do governo no pais. O que era antes apenas uma mazela da administração tornou-se hoje (desde quando?) a própria administração, naquilo que ela tem de mais "criativo" e de mais rico. São as saúvas que hoje administram de fato o puls. Saúvas híbridas, nascidas da simbiose da tecnocracia (civil e militar) com o inevitável espírito empreendedor dos negocistas e dos ca­ valheiros de indústria. Quem ignorar isso que leiu este novo livro de José Carlos de Assis, da Pu, e Terra.

Assis conta detalhadamente, oito ou dez histó­ rias exemplares que se confundem (em boa me­ dida) com a própria história do Brasil dos anos 70 e 80. A história da Cobec, filha estremecida do Banco do Brasil; a história da Interbrás; as histórias da Coscafé e da Pancafé; o extraordi­ nário caso Tama; os casos da Dow Química e da Vale e, afinal, o escândalo-rei da Capemi. São histórias para brasileiro nenhum botar de­ feito. Histórias edificantes. Histórias que reve­ lam o grau de paroxismo a que chegaram entre nós, sob o guarda-chuva militar do regime, a irresponsabilidade e a incompetência tecnocrá­ tica, irmanadas à corrupção e à roubalheira impunes e infrenes. Administradores como Paulo Bornhausen e Carlos Sant' Anna (da Co­ bec e da Petrobrás-Interbràs), de1,1iam ter sido interditados e internados num manicômio, ain­ da que não fosse o manicômio judiciário. Fo­ ram promovidos. Mas, em todos os casos e especialmente no caso Capemi, estão mais ou menos claramente envolvidos altos ·oficiais das agências centrais do Governo e do próprio Palácio. Leiam o livro de José Carlos de Assis. Leiam e pasmem. Ele precede as suas histórias de um prólogo teórico, cujas teses parecem a meu ver discutíveis. Mas os casos que conta são uma dura lição, que não pode ser ignorada nem pelo general Figueiredo nem por nenhum bra­ sileiro que ame e respeite este nosso sofrido e saqueado país. FERNANDO PEDREIRA

Coleção ESTUDOS BRASILEIROS vol. 75

Direção de: Aspásia de A !cântara Camargo Juarez Brandão Lopes Luciano Marlins

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

A866m

Assis, José Carlos de. Os Mandarins da República : anatomia dos escândalos na administração pública, 1968-84 / José Carlos de Assis. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1984. (Coleção Estudos brasileiros ; v. 75) 1. Brasil - Administração pública, 1964-84 2. Brasil Política e governo, 1964-84 3. Economia - História - Brasil 1. Título li. Série

84-0129

EDITORA PAZ E TERRA

Conselho Editorial: Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

CDD - 330,981 354.81 CDU - 338(81 )(09) 354(81 )(09).

J. CARLOS DE ASSIS

OS MANDARINS DA REPÚBLICA ( Anatomia dos escândalos na Administração pública: 1968-84) 2� edição

Paz e Terra

e '11pyright by José Carlos de Assis

Capa: Eduardo J. Rodrigues Lucio Gomes Machado Revisão: Henrique Tarnapolsky Pier Luigi Cabra Produção gráfica: Orlando Fernandes

Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S. A. Rua São José, 90 - 189 andar Centro - Rio de Janeiro - RJ Te!.: 221-3996 Rua Carijós, 128. Lapa - São Paulo - SP Te!.: 263-9539

1984 Impresso no Brasil

Printed in Brazil

Para IARA e para J. Maria de Assis em memória

Sumário

Nota do autor .............................................................................. 11 Prólogo· A feudalização do Estado................................................. 13 Capítulo 1 - O Estado comerciante........................ :....·................. 51 O "caso" Nigeriano ....................................................... 59 O ··caso" Ta,na .... .... ..................... ..· .............................. 69 O ··caso" Cobec............................................................. 79 Capítulo 2 - O Estado especulador ................... :.; ........................ 99 _O "caso" Coscafé ....... ... . . . . . . . . . ..................................... 103 O "caso " Vale ................... :......................................... · ·111 Capítulo 3 - O Estado normatizador............................. :............ 133 O "caso" Dow Química....................... : .................. :.... 133 Capítulo 4 - O Estado degenerado............................................. 167 O escândalo da Capemi . . . . ............ .. . .. .. . ... ....... .. ....... .... 167 Apêndice ...................................................................................... 227

tórica da "revolução" de 1964, e não do que ele foi antes ou do que te­ ria sido se não houvesse o golpe. Desconfio, a esse respeito, que o au·

toritarismo recente, escrachado, apenas levou a extremos aquelas ca­ racterísticas autoritárias básicas, às vezes camufladas, que Raymundo Faoro resgatou da História brasi"Jeira e analisou tão bem em seu Os Don·os do Poder. De qualquer forma, tenho esperança de que a parte factual dessa reportagem sobre os "escândalos" contribua para uma reflexão sobre o que ainda espera a sociedade brasileira, se houver u_ma insistência na exploração do esgotado veio autoritário em prejuí­ zo de um compromisso efetivo com a construção democrática - ainda que tardia. Sinto-me gratificado em poder registrar a ge11erosa acolhida dada pelo público e por vários de meus colegas jornalistas, em críticas e re­ ferências, a A Chave do Tesouro. É verdade que isso teve um efeito psi­ cológico inibidor sobre a gestação de seu prometido complemento, pelo receio de não corresponder à expectativa criada; mas o efeito oposto, que acabou prevalecendo, foi o do estímulo a concluir logo o · trabalho iniciado. Renovo meu agradecimento à professora Maria da Conceição Tavares, pela paciência de ter lido o Prólogo e sugerido al­ gumas alterações, que não estou seguro se atendem a seu acurado sen­ so crítico. E a Rafael de Almeida Magalhães e Carlos Lessa, com quem tenho debatido longamente as idéias aqui expostas. Os três, ob­ viamente, nada têm a ver com as insuficiências do texto ou por algum particular viés analítico de minha exclusiva responsabilidade. Aos que, por diversos meios, me conduziram às fontes de infor­ mação e de documentação primárias, e por motivos óbvio� preferem continuar no anonimato, devo um agradecimento especial. Ocorre-me que, numa sociedade em transição para a democracia, o instituto de preservação da fonte, no jornalismo, continua sendo o instrumento mais eficaz para romper a cidadela do "sigilo bancário" e do carimbo de "confidencial'', quando esses legítimos mecanismos de defesa de privacidade se tornam o apanágio da fraude e da impunidade no mun­ do dos negócios ou da Administração pública. Rio, fevereiro de 1984. J.C.A.

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Prólogo '"Serão os únicos aos quais não se permitirá manipular ou sequer tocar o ouro e a prata, nem entrar na casa onde se guardam. ou beber em recipientes desses metais. Só assim poderão salvar a si mesmos e salvar a cidade, porque se adquirissem terra própria, casa e dinheiro logo teriam que ser chamados de empresários e de traba­ lhadores. antes que de guardiães, e em lugar de defenso­ res dos demais cidadãos se lhes aplicaria o qualificativo de tiranos e inimigos." Platão. A Repúhlirn. ou /)a Justiça

A feudalização do Estado O regime de 1964 se arrogou completar de forma cabal, ·na esfera administrativa, o objetivo e.sboçado pela Revolução de 30 no plano político: avocou constitucionalmente para o Estado, sobre as funções clássicas de supridor de Segurança e de Justiça, as de orientador e de principal motor do desenvolvimento econômico e social. Para isso, promoveu reformas atualizadoras do sistema monetário e de interme­ diação financeira, no plano institucional da economia; em sua órbita direta, dotou a Administração pública de um poder sem precedentes de extração de recursos, com a Reforma Tributária de 1966, e rompeu a teia de entraves burocráticos que emperravam secularmente sua má­ quina operacional, através da descentralização executiva prescrita na Reforma Administativa do ano seguinte. Esses movimentos modernizantes não continham necessariamen­ te uma intenção autoritária, a despeito da inspiração positivista que estava na origem do suporte militar à "revolução". As reformas do sis­ tema monetário e financeiro tinham caráter inequivocamente liberal. O aparente desequilíbrio fiscal em favor d� U-nião, com a Reforma Tributária, não conduziria necessariamente ao desmantelamento da

Federação ou à centralização autoritária dos recursos públicos, desde que se preservasse, quanto à aplicação, o processo de transferências fiscais automáticas e a autonomia política e administrativa de Estados e municípios. Ao lado disso, havia outras instâncias, além das unida­ des federadas, nas quais as diferentes instituições da sociedade po­ diam, em' tese, fazer valer a vontade política da Nação, legítima e democraticamente, na disputa dos recursos arrecadados pela União. A principal delas, o Congresso Nacional, permanecia em 1967 ainda for­ ma.lmente independente do Executivo. Quanto à Reforma Administrativa, não obstante fundamentar-se em ato institucional, seu propósito básico de dar maior agilidade ope­ racional e economia de escala aos órgãos e funções do Estado dizia respeito mais à eficiência que ao caráter político da Administração pública. Ambas as reformas seriam propostas, aprovadas e iniciadas sob a égide de um regime aparentemente democrático - ou no mínimo dentro de um horizonte democrático, de vez que tanto o Legislativo como o Judiciário, em 1967, embora ressentindo-se dos traumas das cassações recentes, não estavam compelidos a projetar para a frente o padrão de violência política de execução que sucedeu imediatamente ao golpe. Além disso, elas ecoavam os sons ainda próximos do debate polí­ tico em torno de·"réformas de base" que precedeu a "revolução" e, ex­ ceto por distinções de grau, correspondiam às aspirações de amplas­ correntes da opinião pública de variado colorido ideológico. No plano da sociedade civil, tinham sido precedidas dos dois importantes instru-: mentos institucionais de modernização econômica, a Reforma Bancá­ ria (1964) e a Lei do Mercado de Capitais (1965), ambas longamente reclamadas pelos liberais. Coerente com isso, o mentor e executor ini­ cial da Reforma Administrativa, Hélio Beltrão, associou a "desburo­ cratização" com o avanço da democracia, pelo que deveria remover de entraves cartoriais ao movimento criativo ·da sociedade e ao de­ senvolvimento da empresa privada numa ec_onomia "livre". Contudo, essas reformas ainda não tinham produzido os primei­ ros frutos quando o AI-5 se abateu sobre a sociedade brasileira, em novembro de 1968. A partir daí a Federação seria mutilada politica­ mente, através da ingerência do Poder central na indicação de gover­ nadores - além cie prefeitos das capitais e das áreas de "segurança na­ cional" -, com o que se cancelou uma importante instância de decisão intermediária quanto aos destinos de recursos crescentemente concen­ trados na União, transformada agora em senhora quase absoluta tam­ bém da aplicação. Mas o ato ditatorial do regime militar cancelou, sobretudo, a possibilidade de controle político do destino dos fluxos de recursos manipulados pelo Executivo, de origem tributária ou não, pois o Congresso Nacional, posto inicialmente em recesso e submetido a novas cassações, viu-se reduzido a uma função meramente homolo-

.gatória dos orçamentos e perdeu até mesmo a capacidade de fiscalizar sua execução de forma independente.

***· O Estado reformado de 1967 pretendera, pois, conciliar na mes­ ma personalidade moderna o supridor de serviços públicos tradicio­ nais e o promotor do desenvolvimento. O primeiro deveria seguir cui­ dando das funções governamentais clássicas de garantidor de Justiça, Segurança, Educação, Saúde, etc., apoiado na estrutura tributária efi­ ciente, recém-montada. O segundo assumiria os encargos crescentes da. infra-estrutura econômica, do financiamento de setores prioritários e, enfim, de produtor direto (ou associado) de bens e serviços essenciais nos espaços estratégicos da ec�momia e nas áreas fora do alcance ou do interesse do capital privado, cujo estímulo era também compro­ misso constitucional. Para isso, se apoiaria na geração autônoma de1 recursos de suas empresas ("verdade tarifária"), na capacidade de le­ vantar empréstimos e na flexibilidade operacional recém-adquirida pela Administração indireta. Um tinha diante de si o contribuinte; o outro, o consumidor. Mas a unidade básica desse Estado de dupla face era garantida, nos termos de uma Constituição ainda liberal, pela possibilidade de legitimação política, através da manifestação da vontade do cidadão livre que a Carta também reconhecia por trás do contribuinte-consumidor. O trauma do Al-5 cindiu de vez a dupla personalidade do Estado brasi­ leiro: o contribuinte, despojado de cidadania, perdeu o controle políti­ co sobre o supridor de serviços públicos básicos, e a face correspon­ dente do Estado atrofiou-se. A outra face prevaleceu sobre a primeira, hipertrofiando-se, pois o cidadão degradado à condição de consumi­ dor estava confinado a "votar", por sua participação no mercado, no crescimento econômico acelerado, única forma de satisfazer-se. Então, o ciclo de prosperidade esgotou-se. Já sem as compensações do "pro­ gresso", o consumidor viu-se tão despojado de estímulos como o con­ tribuinte de serviços; e o Estado perdeu sua "legitimação" também no mercado. Restou apenas a face iluminada do autoritarismo, de um la­ do, e de outro uma cidadania a ser reconstituída sobre os destroços de um consumidor frustrado e de um contribuinte fraudado:

*** Contrariamente ao seu propósito liberal, as reformas de 66 e 67 acabaram por preparar instrumentos novos, eficientes e poderosos para o exercício cabal do autoritarismo, quando ocorreu o golpe do AI-5. Foram essenciais na deformação dos objetivos das duas outras 15

grandes reformas que a precederam, em 1964 e 1965."' Com os imensos íluxos de recursos de origem tributária, monetária e financeira concen­ trados em suas mãos, e sem contrapeso significativo na órbita política, o Executivo pôde dar substância material ao livre devaneio na perse­ guição do sonho desenvolvimentista logo degenerado no delírio da Grande Potência, à margem do interesse público concreto, lançando­ se à megalomania dos superproj_etos, da Transamazônica ao Programa Nuclear. Por seu turno, os braços operacionais da vontade do Estado, suas agências e empresas da Administração direta e indireta, desemba­ raçados dos entraves burocráticos, puderam desdobrar livremente, en­ quanto durou a pletora dos recursos de empréstimos, as iniciativas ar­ rojadas insinuadas em seus planos "estratégicos'' indenes ao controle social. Paralelamente, protegidos de cobrança política pelo autorita­ rismo, os serviços públicos tradicionais deterioraram-se. Procurou o Governo, com a Reforma Administrativa, liberar a si e à sociedade de entraves cartoriais seculares ao pleno desenvolvimen­ to de suas energias. Isso aconteceu de fato. Mas com o Al-5, o admi­ nistrador estatal e o agente oficial, recém-liberados da teia burocrática inibidora, viram-se liberados também do controle público· e político. Muitos deles se tornaram os novos sátrapas de uma administração re­ talhada, com o princípio da responsabilidade política perante a opi- · riiâo pública e o Congresso substituído pelo código maf�oso de fideli­ dade ao chefe, qnico a quem se prestam contas, se acaso ele pedir. A Presidência imperial, ela própria ilegítima, nomeia e demite a seu crité­ rio, mas não tem para isso outros canais de informação a não ser seus próprios agentes, membros de uma mesma patota, com o que a Admi­ nistração, em seu conjunto, constitui seu próprio padrão de referência, inteiramente alheia à Nação. A remoção do Al-5 não alterou esse estilo de comp:>rtamento da Administração públi.ca brasileira, mesmo porque os mecanismos institucionais para seu controle, sobretudo através do Congresso, não foram restabelecidos. O único condicionamento no qual esbarrou, por enquanto, foi a própria crise econômica, que levantou limitações de ordem material à descoordenação do Governo, como um todo, e lhe impôs a busca de algum ordenamento interno. Esse tipo de controle de gastos públicos, determinado por restrições físicas e compromissos ex­ ternos, nada tem a ver com os controles políticos dos órgãos estatais que constituem instrumentos básicos de funcionamento de uma demo­ cracia. O eixo central desses últimos está no orçamento público, julga­ do e-aprovado no Parlamento por critérios político-sociais, de acordo • O relato do processo de degeneração do Sistema Financeiro instituído com as refor­ mus de 1964/65 foi objeto de meu A Chave do Tesouro, Ed. Paz e Terra, lançado em ju­ lho de 1983.

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com prioridades estabelecidas também politicam_ente; e não se confun­ de com os "cortes" impostos globalmente, num momento de crise agu­ do, por um Governo acuado internacionalmente - meros ajustes inter­ burocráticos para um acerto "técnico" de contas.

*** O propósito - A Reforma Administrativa (Decreto-Lei 200) foi tlcfinida por seu implementador como uma "revolução silenciosa", quando já havia se passado quase um decênio desde sua edição. "Re­ volução - justificava Hélio Beltrão - porque alterou profundamente o modo de encarar e operar a administração pública; silenciosa, porque não foi suficientemente divulgada nem creditada por suas inegáveis conseqüências. Não foi por acaso que a partir de 1968 o Brasil teve condições de arrancar em direção ao desenvolvimento." 1 Como a afir­ mativa data de 1976, surpreende como muitas das "inegáveis conse­ qiiências" da reforma, devidas menos a ela própria que à exacerbação do autoritarismo, ainda não fossem percebidas. Viam-se apenas os bons frutos. Breve, porém, o debate um tanto equivocado sobre "esta­ tização" levantaria ao menos uma ponta de véu sobre a natureza irres­ ponsável da Administração pública do País. O próprio Beltrão fez a descrição condensada dos objetivos da re­ forma quanto à remoção de "preconceitos e vícios" que anteriormente emperravam a máquina do Estado: "O pior deles, característica mar­ cante erri nossa história administrativa, é a centralização excessiva de decisões. Daí havermos erigido em pedra de toque da �eforma a des­ centralização administrativa, essencial à dinamização da máquina e à sua adequação às necessidades do País. Esse princípio foi concebido e executado em três planos distintos: l) Dentro da própria administra­ ção, pela prática intensiva da delegação e descentralização do poder decisório; 2) do Governo em direção ao setor privado, pela consagra­ ção, em lei, do princípio da execução indireta, declarando-se expressa­ mente que 'não deve o Estado executar diretamente aquilo que pode ser eficientemente contratado com o setor privado'; 3) do Governo fe­ deral em relação aos governos estaduais e municipais, pela generaliza­ ção dos convênios mediante os quais 'a execução dos programas fede­ rais deverá ser delegada às administrações locais, sempre que existirem órgãos habilitados para realizar essas tarefas.." 2 Esse movimento de descentralização em três níveis, na órbita exe­ cutiva, teria como contrapartida, na esfera de definição do investimen­ to e sua coordenação, o planejamento econômico global. Sobre este, 1. Visão, 31-8-76, "Quem é quem na economia brasileira", pâg. 29. "Eles estiveram no poder (alguns ainda estão) e contam o que fizeram". Entrevista com Hélio Beltrão. 2. Visão, 31-8· 76. Entrevista citada.

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,. diria Hélio Beltrão, lançando uma visão crítica sobre o período ante­ rior ao seu: "O objetivo primordial do p\anejamento governamental deve ser o desenvc:>lvimento, não o combate à inflação, que deve, entretanto, ser mantida sob controle (a prioridade inversa, executada em 1965-66 de forma um tanto drástica, além de não ter alcançado os objetivos desejados no tocante à inflação, produziu conseqüências não desejáveis no plano econômico e social, como a recessão, a queda do nível de emprego, a subutilização da capacidade e a debilitação das empresas nacionais." A reforma estava impregnada da noção de planejamento como instrumento de coordenação da atividade governamental direta e indi­ reta.3 Por mais autônoma que fosse a atividade executiva, em busca de economia e eficiência o·peracional, a iniciativa do programa ou do in­ vestimento público estava condicionada sempre ao plano global e aos orçamentos, atribuições do Governo, partilhadas entre Executivo e Legislativo. Os órgãos da Administração direta e indireta eram livres para agir, não para decidir quanto ao destino dos recursos manipula­ dos, nem quanto ao montante. O planejamento era concebido simulta­ neamente como coordenação e controle, sob autoridade direta do Pre­ sidente da República, assessorado pela Seplan. A avocação de parte desse controle pelo Congresso Nacional, transformando-o de controle burocrático em controle político, foi uma conquista efêmera. No entanto, ilustra a tensão que já existia e.n­ tre as forças que se moviam no sentido do autoritarismo e a resistência democrática, inclusive por parte das correntes políticas de sustentação do Governo. O debate se deu em torno da regulamentação dos dispo­ sitivos da Constituição de 1967 que instituiu o PND - Plano Nacional· de Desenvolvimento, e o Orçamento Plurianual de Investimento. Hélio Beltrão, preocupado em desemperrar a máquina administrativa, apre­ sentou um projeto que dava limitada margem .,para interferência do Congtesso na elaboração orçamentária. As duas Casas do Legislativo reagiram. Primeiro, transformaram em Lei Complementar um substi­ tutivo ao projeto, preparado pela Comissão Mista que o examinou. Em seguida, derrubaram por esmagadora maioria de votos os vetos que o Presidente Costa e Silva tentou lhe opor. A originalidade do substitutivo, promulgado como a efêmera Lei Complementar n'? 3, logo engolfada pela vaga do AI-5, consistia na há3. O Título III do DL-200 determina, no Art. 15: "A ação administrativa do Poder Executivo obedecerá a programas gerais, setoriais e regionais de duração plurianual, elaborados através dos órgãos de planejamento, sob a orientação e a coordenação supe­ riores do Presidente da República". O Art. 16 especifica: "Em cada ano será elaborado 11111 orcnmcnto-programa, que pormenorizará a etapa do programa plurianual a ser rea111 11h1 1111 exercício seguinte e que servirá de roteiro à execução coordenada do programa 111111111" IH

bil reinterpretação pelo Congresso da vedação constitucional e inicia­ tivas parlamentares que resultassem em aumento de despesa e redução de receita no orçamento anual proposto pelo Executivo. Como a Constituição previa a transformação em lei também do Orçamento Plurianual de Investimentos, o Congresso entendeu coerentemente que o orçamento anual, na sua conta de capital, devia ser uma mera reprodução dele, adequada ao horizonte de um ano; e na conta de cus­ teio, refletiria sem maiores inovações _o padrão de orçamentação de despesas correntes do Estado. O Orçamento Plurianual, contudo, con­ siderado como de elaboração conjunta do Executivo e do Legislativo, era considerado o instrumento central da Administração. Nele, o Po­ der Legislativo se reservava o díreito de deliberar sobre: "I - o mérito dos objetivos selecionados, sua compatibilidade e adequação com os objetivos do Plano Nacional (PND); II - o mérito das prioridades fixadas; III - o mérito dos programas propostos, seus instrumentos de im­ plementação, desdobramento e conseqüências; IV - a previsão dos recursos indicados para atender às despesas de capitaJ." 4 Mantinha-se para o Orçamento Plurianual de Investimentos a ve­ dação constitucional, na fase de elaboração legislativa, a emendas que elevassem ou reduzissem a despesa ou receita global. Mas, como se viu, tornou-se explícita a prerrogativa do Parlamento de reorientar projetos e prioridades dentro do teto de despesas proposto. Mais im­ portante, porém, e sobretudo à vista do descalabro posterior nesse campo, era que todos os recursos manipulados pelo setor público, in­ cluindo-se a Administração indireta, deveriam passa{ previamente pelo crivo da apreciação legislativa. 5 Revisitados esses dispositivos à luz da experiência do Al-5, verifi­ ca-se como o autoritarismo exacerbado foi condição essencial também para o descontrole orçamentário e das contas públicas. Sob a vigilân­ cia do Congresso - e deve-se entender Congresso autônomo, como provara ser o de 1967 ao derrubar os vetos impertinentes de Costa e Silva, e ao resistir depois à cassação de Márcio Moreira Alves -, seria 4. Lei Complementar n9 3, Art. 12. 5. O Art. 79 da Lei Complementar n9 3 estabelecia: "O Orçamentõ Plurianual de Inves­ timento indicará os recursos orçamentários e extra-orçamentários necessários à realiza­ ção dos programas, subprogramas e projetos, inclusive os financiamentos contratados ou previstos, de origem interna ou externa". E o Art. 89 era ainda mais preciso: "O Or-' • çamento Plurianual de Investimento incluirá as despesas de capital de todos os poderes, órgãos e fundos da Administração, direta ou indireta, sob qualquer de suas modalida­ des. Parágrafo único: Os projetos de lei orçamentária anual reproduzirãó, quanto às despesas de capital, os correspondentes valores do Orçamento Plurianual de Investi­ mento anteriormente aprovado."

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difícil imaginar a proliferação dos projetos megalômanos dos anos do "milagre" e do 29 PND, entre outros motivos porque o endividamento interno e sobretudo externo, fonte de recursos para a sustentação de quase todos eles, estaria sujeito à prévia aprovação legislativa no Orçamento Plurianual de Capital. Portanto, ficariam sob controle legislativo os investimentos das­ estatais, quando dependessem de recursos orçamentários ou de em­ préstimos. E como a geração de recursos próprios dessas empresas, mesmo quando de economia mista, estava formalmente sujeita ao Pla­ no global via política de preços, entendia-se que todo o seu investi­ mento ficava transparente na programação submetida ao Legislativo. Também as contas ativas do Orçamento Monetário deviam ser explici­ tadas no Orçamento Plurianual e reaparecer anualmente, como despe­ sa de capital, no Orçamento da U n·ião, junto com os demais programas anualizados da Administração direta e indireta. Foi a eliminação des­ sa obrigatoriedade - e do controle legislativo que implicava na reda­ ção original da Lei Complementar n9 3 - que está na origem da prolife­ ração de contas em aberto no Orçamento Monetário, cujos "estouros" .viraram rotina a partir da segunda metade dos anos 70, apesar do em­ penho retórico em sentido contrário das correntes ideologicamente monetaristas que estavam no comando da política econômica. Na prática do regime autoritário, a expans-ão das contas em aber­ to e do investimento público suportados pelo crédito oficial ou. por empréstimos externos obedeceu, parl} cada agência ou empresa estatal em particular, à ótica da eficiência privada, do lucro, da economia de escala, do interesse estratégico inferido em escala microeconômica como legitimador da megalomania. Não havia nada a costurá-los num plano global. Perdeu-se a perspectiva até mesmo da coordenação bu­ rocrática do investimento governamental e a idéia do planejamento in­ tegrado, embora em seu início o Governo Geisel tentasse, com o 29 PND, recuperar no plano administrativo essa noção que a Carta de 67 tornara um princípio constitucional do Estado. Contudo, diante do progressivo distanciamento entre os objetivos audaciosos do Plano e a realidade material da economia, já na fase de descenso do ciclo econômico, tor.nou-se ainda mais patente o desca­ labro das contas do Governo, incapaz de recondicionar em metas mais modestas os ideais de grandeza de seus sátrapas. A agência formal­ mente encarregada da coordenação e controle, a Seplan, limitou-se a acompanhar de longe a evolução das contas e os "estouros", determi­ nando cortes em bloco, sem legitimidade e sem os instrumentos de coação para impor a outra instância do Governo, de igual nível de hie­ rarquia e com igual acesso ao Presidente da República, um reordena­ mento seletivo de despesas.

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Quando, mais recentemente, esse descontrole revelou-se respon­ sável pela disfuncionalidade básica da economia brasileira, assistimos ao espetáculo grotesco da denúncia, a partir de agências do próprio Governo como o Banco Central e a Seplan, dos gastos exagerados das estatais, das mordomias, dos subsídios oficiais ao consumo e ao crédi­ to. Perante a sociedade civil e sua representação pólítica no Congres­ so, ambas desarmadas desde ·O AI-5 de qualquer instrumento de con­ trole e inibição desse descalabro, a mão direita da Administração acu­ sa a esquerda, com um discurso patético. À sociedade brasileira, es­ pectadora perplexa, cabe a solução do enigma sobre a função que cou­ be durante tanto tempo de descontrole ao cérebro desse corpo que, no centro do Governo federal, supostamente comandava a ambas! A aguda crise da segunda metade dos anos 70 tornou transparen­ te o desarranjo das contas públicas pelo que representou como condi­ cionamento econômico da atividade governamental e privada. Não suscitou, contudo, entre os corifeus do regime, maiores reflexões quanto ao condicionamento político que o exercício autoritário de de­ cisões sobre o investimento público, depois do Al-5, representou para a sociedade brasileira, sonegada no direito de participar, através da re­ presentação legislativa, do processo de escolha do montante e do desti­ no das inversões oficiais. Mas a dimensão quantitativa do descontrole era de tal ordem, na virada da década de 80, que o então presidente do Banco Central, Carlos Langoni, tornou-se um vigoroso chefe de quin­ ta coluna dentro da Administração pública contra os exageros dos. subsídios, das contas em aberto, das aplicações a descoberto das em­ presas públicas. Assim, pontificava ele em palestra na Escola Superior de Guerra, em 4-8-81: "O crescimento desordenado do setor· público e, em espe­ cial, do conjunto de empresas estatais, lado a lado com a multiplicação de subsídios e incentivos, reflete de maneira insofismável a falta de uma base institucional que crie limitações naturais (grifo meu) à ex­ pansão do setor público e, muitas vezes, para a própria ação gov.erna­ mental, quando ela conflita com o limite representado pelos recursos disponíveis." O conferencista não explicou o que entendia por "limitações na­ turais", mas dava números impressionistas do descontrole: "Em 1981, o orçamento programado das empresas estatais é de Cr.S 6 100 bilhões, dos quais Cr$ 1 519 bilhões em investimentos, em contraste com o or. çamento da União que totaliza Cr$ 1 888 bilhões dos quais CrS 303 bi­ lhões em investimentos. Isto é, os investimentos das empresas estatais representam aproximadamente cinco vezes os investimentos efetuados com recursos do orçamento da União."

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Quanto aos subsídios, e a despeito da equívoca metodologia utili­ zada para estimar os chamados subsídios implícitos de crédito,6 os nú­ meros do Banco Central não eram menos impressionantes: "Em 1980, esses subsídios totalizaram Cr$ 745 bilhões, correspondendo aproxi­ madamente à receita conjunta do imposto de renda, IPI, IOF e a cerca de 78% do total da receita tributária." Considerando-se também a "multiplicidade de incentivos fiscais", o montante correspondente às duas rubricas, em 1980, atingiu "cerca de Cr$ 950 bilhões, quantia praticamente idêntica à totalidade da receita tributária (Cr$ 958 bi­ lhões). Em 1981 - estimava Langoni -, esses valores poderão alcançar Cr$ 1,3 trilhão, ou seja, 65% da estimativa da receita tributária." Na interpretação do ex-presidente do Banco Central, "a combi­ nação desses dois. fatores" - dispêndio global descontrolado das esta­ tais e expansão dos subsídios/incentivos - "vem retirando o significa­ do da lei orçamentária que exige equilíbrio entre receita e despesa, já que sua aplicação está restrita às contas da União, aliás, diga-se de passagem, as únicas apreciadas pelo Congresso". Exceto por essa refe­ rência, .feita de passagem, não existe outra menção na conferência de 18 páginas à forma de controle natural sobre os gastos globais do setor público. Na verdade, deposita:. se exclusivamente na Sest - Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais a esperança de recupera­ ção, pelo Governo, do comando sobre o movimento global de seus dispêndios. Implícita nesse diagnóstico, sobressai uma concepção intrinseca­ mente burocrática e politicamente autoritária do gasto público. O má­ ximo que se permitia o presidente do Banco Central, coerente com sua fu.nção num regime ainda autocrático em matéria econômica, era apontar como "essencial a integração e harmonização entre orçamen­ to monetário, orçamento fiscal e orçamento das empresas estatais, a fim de que o próprio Governo tenha uma idéia mais precisa de seu dé­ ficit global e possa decidir de maneira mais consciente acerca de suas grandes prioridades." Como Governo, no Brasil, em matéria de polltica econômica, se traduz por Executivô, o que Carlos Langoni pregava era a atribuição a uma agência estatal, de preferência o próprio Banco Central, de uma função rigidamente controladora de todas as demais, quanto aos dis­ pêndios globais de recursos oficiais. Já se viu como isso deveria ser a

6. Mede-se este "subsidio" como a diferença entre a taxa efetiva do crédito e uma su­ posta "taxa de mercado". O equivoco consiste em ignorar o crédito como um fator de custo, sobre o qual se formam os preços, e portanto a própria inflação. Generalizar ta­ xas reais de juros para toda a economia, numa situação inflacionária, não resulta elimi­ nar o "subsidio"; significa apenas deslocá-lo do consumidor do produto agrlcola trans­ formando-o em ganho do setor financeiro, tanto maior quanto maior for a taxa de juros rcul arbitrada.

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missão básica da própria Seplan de acordo com a concepção de plane­ jamento da reforma administrativa, incorporada ná Constituição de 1967. A criação da Sest, no Governo Figueiredo, veio apenas tornar patente a impossibilidade desse con.tr.ole pelos meios convencionais, e seus três anos de insucesso quase total ainda não bastaram para con­ vencer que a existência de uma instância formal de coordenação não resolve, por si, uma questão que é fundamentalmente política. Ou seja, controle requer, antes de mais nada, legitimidade.

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A crítica exercida pelo antigo presidente do Banco Central, oriundo da escola neoclássica da Fundação Getúlio Vargas, contra uma mol­ dura institucional a que ele próprio estava obrigado a prestar fidelida­ de como homem do Executivo, reflete o grau de disparidade objetiva entre a Administração pública do País, tal como ela é, e a Administra­ ção ideal imaginada pelos homens públicos que a dirigem. Retalhada em satrapias, a Administração real se organiza por blocos de ir:iteresse, articulando o privado e o público na sua atividade específica sem ou­ tros condicionamentos externos a não ser o mercado, e internos a não ser a autoridade do Presidente da República; a Administração imagi­ nada supõe a integração dos projetos particulares desses blocos de in­ teresse num programa global, não conflituoso, supostamente conduzi­ do coerentemente pelo Governo, personalizado no Presidente. É essa organização do Estado brasileiro, onde os diferentes feu­ dos administrativos se ligam verticalmente à Presidência mas não· es­ tão integrados horizontalmente num plano governamental, legitimado politicamente, que permite a muitos altos burocratas e administrado­ res púl;>licos não se reconhecerem no Governo, ou mesmo crjticarem o Governo sem deixar transparecer que criticam a si próprios. Obvia­ mente, seria necessário um Presidente onisciente - e em muitos casos isso parece ser o mínimo que se requer dele - para dar coordenação efetiva às iniciativas tomadas nos diferentes planos administrativos. Enquanto a economia estava em crescimento, esse descontrole estrutu­ ral passava despercebido pois a expansão global da renda cobria natu­ ralmente as ambições burocráticas mais desvairadas; na crise, sobretu­ do agora quando caminhamos para o terceiro e quarto anos consecuti­ vos de queda real da renda per capita, a descoordenação dos gastos públicos aparece em toda a sua nudez sob a forma dos "estouros" or­ çamentários e da escassez de recursos para fazer face até mesmo a compromissos assumidos. Dentro desse quadro, não surpreende que tenha vindo da parte de um presidente dô Banco Central o apelo paté­ tico pela imposição de freios "naturais" à expansão do gasto público global. De todas as agências públicas brasileiras, o Banco Central é a que se deixou levar ao estágio mais avançado da esquizofrenia provocada

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pela ambigüidade entre a Administração pública real e a Administra­ ção idealizada. Construído um pouco à imagem dos bancos centrais convencionais, mas com alguns trejeitos tropical'istas, não lhe falta uma gerência de mercado aberto para o controle "fino" da liquidez monetária, quando não dispõe dos instrumentos mais elementares para o controle "grosso"; na essência, contudo, ele "pensa" a econo­ mia de acordo com os cânones da teoria quantitativa da moeda, embo­ ra permitindo-se alguns pecados keynesianos nas suas funções de fo­ mento. Na atual Administração, seu presidente neoortodoxo, por ins-· piração acadêmica ou por dever de ofício, teve de reagir, exasperado, diante de uma situação de contas públicas tornada aberrante pela cri­ se. Ê que, tal como se concebe, faz parte da coerência funcional do Banco Central - da sua "personalidade" no' çonjunto da Administra­ ção pública - exigir que, de alguma forma, se ponha ordem nos orça­ mentos governamentais, pois do contrário ele perde sua própria razão de ser como "controlador da liquidez" - ou seja, da disponibilidade de moeda e de crédito na economia e, através desta, ·da própria inflação. Depois de três anos de "fracassos" da Sest em relação ao controle das estatais poder-se-ia supor que também �la estivesse sujeita a esse tipo de "crise existencial". De fato, mesmo após os dispositivos amea­ çadores de um decreto presidencial prevendo punição exemplar e até demissão de administradores públicos que não cumprissem a austeri­ dade orçamentária determinada no programa comum, negociado com a Sest, ouviu-se o surpreendente reconhecimento por parte de altas personalidades do Governo de que não conseguiram disciplinar as suas empresas. Contudo, no caso da Sest, existe um orçamento conso­ lidado, regis.tro contábil das intenções de 317 autarquias e empresas públicas e mistas, e isso dá uma ilusão de controJe,que o pobre Banco Central ainda não tem. Este, segundo seu desolado ex-presidente la­ mentou na ESG, em 1981, convive com "a esdrúxula situação atual em que o orçamento monetário é, por definição, imprevisível, na medida em que 70% de suas rubricas não têm na realidade limite efetivo, mas são tratadas como 'contas em aberto'. Isto faz com que a dosagem de liquidez na economia varie, não em função de uma programação mo­ netária voltada aos objetivos fundamentais de combate à inflação e equilíbrio do balanço de pagamentos, mas em resposta ao comporta­ mento, muitas vezes aleatório, da demanda por crédito."

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A forma eficaz numa economia de mercado - certamente imperfei­ ta, mas assim mesmo a única - de controlar dispêndioi).globais do ·se­ tor público é submetê-los à aprovação legislativa. Claro, sem Congres­ so independente do Executivo não há possibilidade de· controle orça­ mentário, razão pela qual uma efetiva "abertura" econômica exige a prévia devolução das prerrogativas de fiscalização e controle ao Parla-

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rnento. Aqui, política e economia se confundem, ficando clara a su­ bordinação da segunda à primeira: em 1968, comojá mencionado, tão logo a vontade de autonomia do Congresso Nacional foijugulada pelo guante do Al-5, o autoritarismo em escalada tratou de remover os me­ canismos legislativos - mesmo os formais, porque já não havia Parla­ mento livre - de controle do dispêndio público, votados pouco antes. Agora, passados cinco anos da -derrogação do Al-5, um Congres­ so renovado e gozando de relativa autonomia política ainda não en­ controu o caminho de recuperação daqueles controles, por maior que tenha sido seu esforço até o momento. Na realidade, mediante a estra­ tégia da "abertura" gradual, o autoritarismo mudou de cara, mas seu conteúdo substantivo, nas questões essenciais de controle político da sociedade e domínio institucional da economia, está preservado na presença dos "biônicos" no Senado, na rede intacta da subterrânea "comunidade" de informações e no aparato "legal" explícito que ga­ rante ao Executivo total autonomia na definição da política tributária e de gastos· públicos, pelo expediente do decreto-lei. Em novembro úl­ timo, o Presidente da República vetou a lei que devolvia ao Congresso a prerrogativa de fiscalizar a Administração indireta. Em dezembro, mediante um "truque" burocrático, o Ministro Delfim Netto neutrali­ zou a redistribuição, em favor dos Estados, do Imposto (Jnico sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, prevista na longa­ mente debatida Emenda Passos Porto (minireforma tributária), pela simples eliminação do tributo original e sua recuperação, exclusiva­ mente para a União, através da cobrança de IOF - Imposto sobre Operações Financeiras - na importação de petróleo. 7 O autoritarismo, na verdade, só dispensou os atos de exceção p'or ter descoberto que já estavam c�istalizados na legislação ordinária. A omissão desse aspecto essencial no prolixo discurso com que o antigo tecnocrata Roberto Campos inaugurou a etapa parlamentar de sua vida. pública, no Senado brasileiro, em junho de 1983, denota até que extremos chegou a capacidade de mistificação da elite dirigente brasileira - sobretudo dessa elite que se confunde com a gestão autori­ tária do País. Campos não poupou críticas contundentes à imprevi­ dência e à megalomania do Governo Geisel, à expansão descontrolada das empresas estatais, à hipertrofia do Estado empresarial. Não men­ cionou, porém, uma vez sequer, a situação caótica dos serviços estatais 7. O IULCLG era repartido entre a União e os Estados/municípios na proporção de 60% e 40%. Pela Emenda 23, de 1-12-83, foi invertida a divisão, num esquema progressi­ vo, a completar-se em 1988. "Contudo, hecha la ley, hecha la trampa. O CMN, órgão executivo, reduz a zero o imposto que, por lei, deveria ser repartido entre a União, os Estados (Distrito Federal e Territórios) e municípios, e em seu lugar passa a cobrar o IOF, pertencente à União e só a ela". Paulo Brossard, "Me.teu a mão no bolso alheio", Folha de S. Paulo, 11- 1-84.

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gestões para o Plano. Estava nessa fase quando sobreveio o golpe. O primeiro e único PND com chance de ser.elaborado com efetiva parti­ cipação do Parlamento ficou em rascunho; no seu lugar, Velloso edita­ ria, após o A to, a cartilha burocrática do l 9 PND, que, o pragmático Ministro da Fazenda do Governo Médici atirou. simbolicamente no lixo enquanto administrava o "milagre"; em 1974, Geisel mandou fa­ zer a segunda edição, revista e desmedidamente ampliada, e por tentar executá-!� de qualquer forma, sem êxito, contribuiu adicionalmente para a desmoralização da idéia do Plano; finalmente, quando coube ao próprio Delfim Netto editar uma terceira versão, em 1979, nem se deu ao trabalho de fazer contas: eliminou dele as metas quantitativas, re­ duzindo-o a sentenças declaratórias. Ou seja, manifestou no Plano a intenção de sua ineficácia. No Governo Geisel, um programa de desenvolvimento ambicioso orientou a gestão autocrática da Administração pública e do conjunto da economia. Aparentemente, não poderia haver melhores condições para a eficácia do planejamento, ali concebido como instrumento de coordenação da estratégia global de ação do Governo em matéria eco­ nômica e social. No entanto, o 29 PND revelou-se um ensaio desastra­ do de perseguição de metas fugidias, e deve-se debitar um tanto a isso a tentativa posterior de desmoralização da noção de planejamento e a reabilitação dos valores momentaneamente esquecidos do liberalismo entre as correntes conservadoras da opinião pública, empresários e acadêmicos. A inépcia do planejamento, mesmo quando aplicado com mão de ferro, parecia a alguns demonstração inequívoca de sua inutilidade ou ineficácia sob quaisquer condições. Não era o autoritarismo imanente ao 29 PND o fator responsabi­ lizado pelo fracasso deste, mas o planejamento em si. Num outro nível de critica, corno a q'ue transparece no discurso de Campos no Senado, chega-se à denúncia da "imprevidência" governamental ou de sua in­ sensibilidade aos avisos de crise, já evidentes na época, mas desconsi­ dera-se que estavam literalmente bloqueados os canais de influência e comunicação entre a sociedade e o Estado e, em conseqüência, a possibilidade de mudança de rumo na orientação do Plano que não a gesta­ da na intimidade do próprio Executivo. Quebra-se agora uma regra sagrada do regime, com a exposição pública de suas dissenções inter­ nas, para preservar da crítica exatamente o lado mais pervertido dele, sua ilegitimidade básica, para a qual também concorreram esses mo­ dernos fariseus: a prerrogativa no Executivo de agir segundo seus pró­ prios critérios, transcendentes à sociedade, na perseguição quimérica do projeto de Grande Potência.

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Numa análise exaustiva do esforço de execução do 29 PND, o economista Carlos Lessa mostrou como a concepção estratégica· mili1()

tar, aplicada à questão do desenvolvimento econômico-social, consti­ tuiu a ossatura básica sobre a qual se modelou o Plano e se tentou le­ vá-lo às últimas conseqüências. Era a inversão cabal da idéia de plane­ jamento democrático, substituída pela do positivismo salvacionista. Como escreveu Lessa: "Estratégia é atribuição de Alto Comando, do supremo exercício de autoridade. É uma decisão vital em qualquer campanha. O Estado faz as opções, elege prioridades e traça as diretrizes conseqüentes. Aos comandados é fixada a ordem de batalha e lhes compete executar as tarefas correspondentes. (... ) O comandante supremo dispõe que todos os dirigentes públicos e privados dévem perseguir os objetivos prefixa­ dos. Quanto aos subordinado·s delimita campos e atribuições específi­ cas. O pronunciamento da primeira reunião ministerial fixa o espaço e atuação para os sindicatos. Será perseguido 'o fortalecimento da estru­ tura sindical tanto na cidade como no campo, possibilitando-se a sele­ ção de uma liderança autêntica e mobilizando-se os sindicatos para sa­ Jia cooperação às atividades culturais e educativas, inclusive a educa­ ção sanitária e educação física'. "Outro parágrafo enquadra toda a chamada Sociedade Civil ao dizer: 'Aos organismos intermediários que, nos mais variados setores de âtividade, comp0em todo o rico complexo da sociedade brasileira, não só lhes reconheceremos e garantiremos o pleno exercício dentro das limitações estatuídas em lei, mas poderemos até aceitar-lhes a co­ laboração desinteressada, leal e nunca impositiva, ou mesmo incenti­ var e auxiliá-las em seus nobres propósitos, desde que julgados de be­ nemerência ou utilidade real para o País'. Em tom benévolo o Estado garante a existência da Sociedade Civil, porém adverte: 'O que lhes não poderemos nem devemos outorgar, no resguardo da própria dig­ nidade do Poder Federal, será a intromissão, sempre indevida, em áreas Je responsabilidade privativa do Governo, a crítica quando desabusa­ da ou mentirosa, as pressões insistentes e descabidas que partam de quem não tem o mínimo compromisso inerente ao múnus público'." 12 Essa concepção profundamente autoritária de Governo soaria ameaçadora se a sociedade brasileira já não tivesse experimentado o efeito concreto de sua prática na condução da política econômica des­ de 1968. O General Geisel jamais poderá ser acusado de ter mascarado snb uma retórica política liberal sua noção de exercício do Poder público, como bem demonstra a releitura dessas suas mensagens; tam­ bém não pode ser acusado de incoerência entre sua retórica autoritária e a prática do Poder. Assim, a lição política que se pode extrair de seu , período de Governo_ é que, ao contrário do que os epígonos do regime 12. Carlos Lessa, "A Estratégia de Desenvolvimento 1974-1976 - Sonho e Fracasso", tese de 1978, concurso de pr1Jfessor titular da UFRJ, mimeografado, p. 71.

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tentam fazer crer, o autoritarismo não constitui antídoto eficaz para crises econômicas. Ao contrário, costuma, por falta de flexibilidade ou de sensibilidade social para alterações de rumo, com o entupimento das vias de comunicação com a Nação, levá-las a limites extremos.

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. No plano estratégico do regime de 1964, e de forma acentuada a partir do AI-5, o desenvolvimento econômico passou a ser uma meta de campanha traçada por um limitado comitê administrativo que se arvorou em intérprete das aspirações sociais. Çoijl o paradigma da ob­ jetividade do desenvolvimento podia-se justificar tudo, e em especial a prática de decisões autoritárias também em matéria econômica, por­ que, como pontificou o Presidente Geisel em uma de suas mensagens ao Congresso, em 1976, "antes de tornar-se um ente político, o cida­ dão precisa ter sido um indivíduo de físico sadio e limpo, precisa ser também consciente, racional e sociabilizado." Ou de "escovar den­ tes", como sugeriria mais tarde seu sucessor. As divisões de elite lançadas à batalha do crescimento pelo esta- 1• do-maior da tecnocracia foram as empresas públicas. Ao lado das an-- ' tigas, como as da área siderúrgica, de mineração e de petróleo, surgi­ ram novas, algumas delas simples funções tradicionais de Governo que assumiram a roupagem de empresa por economia operacional e maior eficiência. Naturalmente, por responderem ao comando �ireto do Executivo, as empresas públicas eram os entes mais moldáveis ao seu plano de campanha, mas no seu movimento elas arrastavam atrás de si todo um bloco de interesses privados que se articulavam em tor­ no delas, como fornecedores de insumos ou como clientes. Assim, en­ quanto a economia esteve em expansão, a expansão do setor público empresarial não pareceu em conflito com o interesse privado, nem que lhe tivesse roubado espáço. Na realidade, vinha abrindo ·espaço pará si e para ele. Tanto as "estatais" como as empresas privadas, contudo, tinham de subordinar sua marcha ao ritmo imposto pelo acesso às linhas de fi. nanciamento, definidas pelo Governo em suas políticas financeira, de preços, de créditQ e tribtJ.tária. A partir de 1968, o Executivo concen­ trara em suas agências de Administração indireta um crescente volume de recursos, que redistribuía sob a forma de programas subsidiados, incentivados ou simplesmente indicados como prioritários aos agentes da economia. Por outro lado, através de seu poder de normatização do crédito interno e da entrada de recursos externos, pela manipulação cambial, comandou uma política de endividamento público e privado segundo uma concepção cuja pr.emissa básica consistiu em admitir como indispensável ao desenvolvimento acelerado a incorporação de poupança externa sob a forma também de empréstimos monetários, além dos investimentos diretos. 32

Nesse plano geral de batalha, a empresa pública ou de economia mista ajustou seus movimentos em dois níveis: primeiro, pautou suas intenções de crescimento de acordo com regras de eficiência econômi­ ca e de gestão tomadas de empréstimo à empresa privada, cuja roupa­ gem lhe fora imposta; segundo, definiu uma tática de financiamento de suas inversões perfeitamente adaptada à estratégia de extroversão financeira da política econômica do Goyerno, tomando empréstimos em dólar para gastar também e sobretudo em cruzeiros, internamente. Enquanto as condições de crédito no euro-mercado estiveram francamente favoráveis ao tomador, as estafais puderam participar, sem restrições, do carnaval do endividamento externo, sem prejudicar, e provavelmente favorecendo com encomendas, os interesses internos privados a· elas coligados. No entanto, quando o ciclo da atividade econômica global se reverteu, a partir de 1975, o que antes parecia um equilibrado exercício de cooperação entre o privado e o estatal em prol do crescimento, começou a ser visto como odioso privilégio, uma vez que a austeridade imposta pelo mercado ou pela política econômi­ ca atingia desproporcionalmente os dois setores. Datam de então os primeiros vagidos da mais recente campanha antiestatizante. Cada um dos vários "feudos" em que se retalhou a Administra­ ção pública brasileira articula um segmento definido de interesses pri­ vados, e representa a si e a estes últimos perante o Governo central. Essa foi a forma particular encontrada pelo Estado autoritário para "legitimar-se" perante a sociedade dos negócios sem necessidade de instituições democráticas formais: muitas das agências públicas fun­ cionam como foros de negociação e de intermediação de interesses pri­ vados, uma espécie de parlamento burocrático, corporativista, que prepara as decisões de última instância a serem encaminhadas à esfera superior do Governo, mediante o debate prévio das questões entre os "executivos" estatais e os representantes das associações de classe dos· empresários.n Isso dá à empresa estatal uma dupla identidade, uma associada à função específica que lhe atribui o estatuto legal e o progra­ ma de Governo, como produtora de bens ou serviços; outra, enquanto instância de mediação de interesses, que embora não entrando em coli­ são direta com suas funções legais explícitas, pode conflitar com os ob­ jetivos gerais de política econômica conjuntural. Não se trata, aqui, da identificação da burocracia com uma classe ou categoria social autônoma em relação à sociedade e ao Governo. Entendo que a burocracia estatal brasileira, enquanto categoria social, l .l Do lado dos empresários, houve adaptação ao esquema corporativo, só repudiado, cm favor da luta pela democratização, quando esse processo de negociação nos níveis intermediários do Estado deixou de ser eficaz. Como mostrou Renato Raul Boschi na sua excelente tese transformada em livro, Elites Industriais e Democracia, Edit. Graal, 1979.

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tem o mesmo grau de "neutralidade" frente às classes sociais como a de qualquer outro país capitalista. Também não acredito que esteja próxima de tornar-se uma "nomenklatura" do tipo da soviética, capaz de impor como gerais os seus próprios interesses de grupo. Temos vis­ to, sobretudo depois que explodiu a crise do balanço de pagamentos, como o ·Governo é capaz de reorientar rapidamente as ações de suas "poderosas" empresas quando existe de fato uma determinação nesse sentido. A Q.issonância política entre setor público e setor privado, tradu­ zida no acalorado debate ideológico que sempre renasce nas crises, ocorre geralmente porque segmentos isolados da comunidade empre­ sarial não reconhecem a articulação de interesses com o setor público, a não ser quando a articulação se dá com eles próprios. A Petrobrás tornou-se um símbolo hostilizado de estatização, mas não para os em­ presários de bens de capital, muitos dos quais surgiram, desenvolve­ ram-se ou tornaram-se grandes a partir de suas encomendas de equi­ pamentos. Fenômeno semelhante ocorreu com a Vale do Rio Doce, cm cuja órbita giram várias indústrias brasileiras de equipamentos de mineração. O oligopólio da construção pesada, por sua vez, seria o úl­ timo a reclamar dos gastos públicos exagerados, cobertos por crédito, enquanto os projetos correspondentes das grandes obras ci_v is de estra­ das, de usinas hidrelétricas e até nucleares estavam sendo carreados para suas carteiras. "O fato é que a opção hidrelétrica do nosso siste­ ma de energia elétrica muito contribuiu para a formação de um setor de construção pesada na economia brasileira, a ponto deste setor ter um peso decisivo na escolha das futuras usinas, onde muitas vezes o critério do custo não deve ter sido prioritário", escreveu uma especia­ lista.14 A! partir de 1976 começaram a rachar os blocos de interesse tam­ bém internamente, o que está na origem de um maior vigor retórico na campanha antiestatizante. Contudo, não por força da expansão autô­ noma das "estatais", de seu avanço sobre espaço privado, e sim por causa do seu ajustamento disciplinado à política econômica global. No Estado "feudalizado", o Governo central praticamente delegou a seus sátrapas a definição das políticas setoriais de investimento, limi­ tando-se a agregar num frouxo registro de intenções orçamentárias a consolidação das despesas pretendidas. A rigor, não existia orçamento de investimentos consolidado, porque não faz sentido atribuir esse nome a uma encadernação de contas onde a receita global se ajustava pela rubrica "recursos a definir", enquanto a despesa correspondia a um aditamento de estimativas de gastos estabelecidos à margem de de· cisões políticas pelo critério de prioridades econômicas globais. 14. Hildete Pereira Melo Hermes de Araújo, "O Setor de -Energia Elétrica e a Evolu­ çilo Recente do Capitalismo no Brasil", Tese de Mestrado na Coppe-UFRJ, 1979.

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No 2Y PND, a plasticidade orçamentária fundamentava-se numa: implícita expectativa de crescimento econômico nos mesmos padrões do lustro anterior. "Diversos programas e projetos haviam sido de­ marcados com esquemas de financiamento onde a rubrica 'fundos a definir' era fonte substantiva. Para não fazer referência ao fato de que no Programa Ferroviário 16" 0 dos seus 30,5 bilhões de cruzeiros te­ riam como origem a enigmática fonte de 'acréscimos esperados na re­ ceita operacional'. Em segundo lugar.já era transparente ao nível ma­ croeconômico a suspeita de que os programas e projetos enunciados pelo 29 PN D não somente supunham a manutenção da taxa de investi­ mentos flOS níveis alcançados no auge cíclico, mas de fato exigiriam a necessidade de sua elevação para um novo patamar em torno de 35�� do PIB. A materialização sincronizada das diretivas estratégicas públi­ cas e privadas seria possível no Japão, mas dificilmente poderia ocor­ rer no Brasil, à luz dos pactos e restrições estruturais já enunciadas."') As metas excessivamente ambiciosas do Plano eram razão sufi­ dente para seu fracasso. Porém, a economia brasileira defrontou-se, desde 1974, com condições externas extremamente adversas que tive­ ram profundo impacto interno. O recurso ao endividamento, que no período 1968-73 refletia uma deliberada política de extroversão finan­ ceira, sem relação direta com as necessidades de financiamento de im­ portações, tornou-se uma necessidade premente no triênio 1974-76, cm face do elevado déficit comercial e de serviços. Agora que era uma necessidade real, revelava-se extremamente oneroso, com a elevação dos juros e dos spreadr (margens de risco) cobrados a tomadores brasi­ leiros pelos banqueiros internacionais. Além disso o estoque da dívida previamente acumulada começou a pesar nos serviços financeiros cres­ centes. atados às taxas de juros ascendentes no euro-mercado. Enquanto no mercado financeiro doméstico adotavam-se, desde 1974. alguns remendos ortodoxos sobre um tecido institucional esgar­ çado - em especial a desvairada política de uso do mercado aberto com propósitos de controle de liquidez monetária, pelo enxugamento da entrada de recursos externos-, a política industrial, ou o que exis­ tiu dela nas formulações do 2 PND, manteve-se expansionista pelo menos até 1976. Jú em 1975, ressentido com a queda de seus investi­ mentos em relação aos do setor público e ao mesmo tempo assustado com os sinais de recrudescimento inffacionário, o setor privado au­ mentara suas críticas à "estatização", à ocupação dos espaços priva­ dos pelo Estado e ú concorrência desleal das empresas públicas na cap­ tação de recursos no mercado interno. J\ despeito da falácia desses argumentos, em 1976 o Governo as­ �umiu os pressupostos búsicos da crítica e começou a delinear um pro15. Carlos Lessa, lese cilada, p. 163.

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grama metódico de cortes de gastos públicos e de "desestatização". A implementação dessa política implicou a reorientação dos investimen­ tos estatais de acordo com o objetivo básico da política econômica global: a captação de recursos no exterior para equilibrar o balanço de pagamentos. Em alguns poucos setores, como nos de transportes e co­ municações, os cortes alterariam de fato os programas traçados pre­ viamente. No geral, as "estatais" readaptaram suas fontes de recursos ao objetivo de política econômica, extrovertendo-se mais ainda. Assim, a participação do setor público na captação de recursos externos evoluiu de 24% em 1972 para 51 % em 1976, em relação aos empréstimos ao amparo da Lei 4131 (tomados por empresas não fi­ nanceiras). A tendência seria reforçada nos anos seguintes, até atingir 77% em 1980. Para empurrar suas empresas para fora, o Governo não apenas criou empecilhos institucionais ao acesso delas ao mercado fi­ nanceiro doméstico como reduziu sua capacidade de geração de recur­ sos próprios, limitando a 20% os aumentos de tarifas e de preços de al­ guns insumos básicos produzidos pelas estatais nos anos de 1976 e 1977, quando a inflação foi de 46,3% e 38,8%. Manteve-se dessa forma o ritmo do programa de expansão siderúrgica (estágio 3), de insumos agrícolas, de não-ferrosos, de hidreletricidade e nucleo-eletricidade, apoiado basicamente em créditos do exterior.

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A divisão da Administração pública em satrapias, nas quais as empresas estatais figuram como instrumento de poder político dos mandarins da República, deixou na opinião pública e equívoca im­ pressão de que tínhamos um regime tecnocrático. Certamente o argu­ mento técnico tem lastreado muitas decisões políticas na órbita admi­ nistrativa, e contribuído dessa forma para mistificar o propósito últi­ mo dessas decisões. Contudo, não existiu em nenhum momento da história recente brasileira uma tecnocracia do tipo francês ou italiano. O Governo sempre conseguiu sobrepor-se aos quadros técnicos das empresas públicas quando, por motivos estratégicos ou por simples reajustes conjunturais de política econômica,. quis enquadrá-las numa nova orientação. Durante o "milagre", sobretudo depois que a Reforma Adminis­ trativa permitiu a generalização de critérios privados como parâmetro de avaliação das empresas estatais, cujo financiamento podia apoiar­ se na "verdade tarifária" e na capacidade de alavancagem de emprésti­ mos externos, a política econômica global e a política microeconômica das "estatais" convergiram na mesma direção da exploração cabal das possibilidades de crescimento. Avaliadas por critérios de eficiência pri­ vada, as administrações públicas indiretas tenderam a comportar-se como tal, e isso foi reconhecido como positivo enquanto perdurou a prosperidade. Era a evidência de que o Estado também podia ser efi-

ciente. Na reversão do ciclo econômico, a partir de 1974, desacelerou­ se o investimento privado em relação ao público, preparando o terre­ no para o conflito entre as duas órbitas. Nos dois primeiros anos de tentativa de implementação do 29 PND ainda conviviam, no interior do aparelho de Estado, os objetivos de política econômica global e os objetivos específicos das empresas públicas e mistas, até o momento cm que o Governo rendeu-se à idéia de que era necessário cortar os gastos de investimento do setor público para reduzir as pressões infla­ cionárias. Nesse momento, ficou claro que o poder decisório na Administra­ ção indireta era de fato uma extensão do Governo, e não que o Gover­ no fosse uma extensão do poder tecnocrático, encastelado nas "esta­ tais". A propalada resistência do segµndo escalão às decisões do Exe­ cutivo sucumbiu sempre, sem exceção, quando foi posta à prova. A burocracia da Eletrobrás, ou melhor, seus quadros técnicos especiali­ zados se opuseram tenazmente ao Acordo Nuclear com a Alemanha, e foram simplesmente derrotados. Tentaram de fato sabotá-lo parcial­ mente dentro da programação de longo prazo da expansão do setor elétrico, no chamado Plano 92, mas novamente tiveram de render-se à força política maior. 16 Poder-se-ia supor que o Acordo, subõrdinado a interesses estratégicos maiores, não seja um bom exemplo. Mas a bu­ rocracia especializada da Eletrobrás também se opôs à construção de Tucurui e, de novo, não teve êxito, embora neste caso nenhum interes­ se estratégico estivesse em jogo ou pudesse sobrepor-se aos argumen­ tos técnicos levantados. Na Petrobrás, sua burocracia francamente contrária aos contratos de risco teve de engoli-los silenciosamente, como mais tarde engoliria os contratos tecnicamente ainda mais injus­ tificáveis com a Paulipetro de Paulo Maluf. Mesmo naquelas agências públicas tradicionais, como o BNDES e o Banco do Brasil, cujo corpo especializado sobrevivia imune às flu­ tuações de política econômica e, portanto, parecia capaz de manter: uma política própria de longo prazo a despeito dos assaltos conjuntu­ rais a seu poder de decisão, não creio que tenha se caracterizado uma tecnocracia. No caso do antigo BNDE, logo após o golpe de 1964 hou­ ve uma tentativa de Roberto Campos de fazê-lo curvar-se à orientação ortodoxa da política econômica recessionista, e embora circule desde então uma fábula segundo a qual o presidente Garrido Torres, ali co­ locado para dobrar a vontade do monstro, tenha sido cooptado pela burocracia do banco e assumido seu ponto de vista, o fato realmente 16. O Plano 92, de 1977, que insistia em indicar a instalação de quatro usinas nucleares para funcionamento até 1992 como a opção mais econômica, dentro do programa ener­ gético, representou uma discreta discordância técnica em relação às projeções do Acor­ do Nuclear e por isso ficou confinado dentro da Eletrobrás, somente vindo a público como ,documento clandestino. No Plano 2000, oficializado, foram feitos os devidos ajus­ tes para compatibilização do programa com os compromissos com os alemães.

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relevante é que houve uma alteração fundamental que se traduziu, de saída, por uma perda de substância política e econômica da institui­ ção. A autonomização crescente das outras estatais, a passagem de parte do corpo técnico planejador para o IPEA e as restrições orça­ mentárias limitaram-no a simples repassador de recursos. Em 1974, o Governo Geisel conferiu ao banco uma fonte de revi­ talização financeira, o PIS-Pasep, e uma parcela de poder para a im­ plementação do programa de substituição de importações de insumos básicos e de bens de capital. Com isso, acentuou-se uma tendência já antes manifestada de evolução do banco público de investimento para agência negociadora e repassadora de recursos, por delegação do Te­ souro. Assim, de financiador por excelência da infra-estrutura econô­ mica, dos transportes à siderurgia, o BNDE tornou-se progressiva­ mente um suporte do setor privado produtor de bens de capital, arti­ culado ou não aos grandes blocos liberados pelo setor público. O S que lhe foi acrescentado recentemente apenas acrescenta mais um elo de ligação entre a caixa do Tesouro, os governos estaduais e os "forne­ cedores" selecionados mediante discreta, mas decisiva, interveniência da Seplan. 11

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Talvez o único corpo efetivamente tecnocrático embutido na Ad­ ministração seja o do Itamarati, assim mesmo limitado à diplomacia e excluído da política econômica internacional, também_avocada pela Seplan. Por isso mesmo a diplomacia externa é o único setor do regime onde se nota alguma coerência. É verdade que, no Governo Castello Branco, o Brasil enviou tropas para legitimar no âmbito do Continen­ te a decisão norte-americana de liquidar a revolução populista de São Domingos, mas naquele momento os militares estavam próximos de­ mais do golpe de 64 pàra não se sentirem tentados a impor à política externa suas concepções estratégicas de alinhamento incondicional a um dos blocos. Desde então, o ltamarati foi impondo ao conjunto do Governo sua visão do mundo e estruturando uma diplomacia indel 7. A criação do Funpar, com urna linha de CrS 100 bilhões para aplicação em 1983, ilustra até que extremos se levou esse processo de desvirtuamento operacional do BNDES. O enquadramento de projetos nesse programa passou a ser decidido direta­ mente em Brasflia, por urna comissão com representantes da Seplan e do Ministério da Fazenda, a fim de escapar à apreciação do corpo especializado do banco. Essa comissão reve!ou-se particularmente sensível à atuação de "consultores" privados, como o notó­ rio Alvaro Leal, antigo sócio do secretário-geral da Seplan, José Flávio Pécora, no escri­ tório Pécora & Leal, sucedido pela Expande. Assessor da Cornexport nos negócios espe­ ciais com a Polônia, intermediário de Assis Pairn Cunha nas especialfssimas relações en­ tre o Grupo Coroa-Brastel e·a área econômica do Governo, antes da intervenção, Álva­ ro Leal foi o mais ativo "liberador" de operações Funpar em 1983, na qualidade de con­ sultor remunerado dos grupos beneficiados.

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pendente cuja singularidade é a aberrante contr!1diçâo com a política interna e a própria extensão internacional da política econômica, esta excessivamente dependente dos vínculos econômicos e sobretudo fi­ nanceiros com o Primeiro Mundo. 18

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O efeito interno "modernizante" da Reforma Administrativa e de sua coirmã, a Reforma Tributária, limitou-se ao setor "empresarial" da burocracia do Estado. Sua estrutura de financiamento, autônoma cm relação à própria Administração central quando as fontes de recur­ sos não transitam pelo Orçamento Fiscal, reflete-se no que se conhece como orçamento consolidado das "estatais", só recentemente reunido num esquema contábil formal pela Seplan. Esse orçamento constitui a hase material da intervenção direta do Estado na economia; ao lado dele, as contas ativas do Orç?mento Monetário representam a base de financiamento da intervenção indireta, através de subsídios e incenti­ vos financeiros, aos quais vieram açrescentar-se os crescentes favores tlc ordem fiscal. Os dois orçamentos inflaram a partir de deformações institucio­ nais gestadas à sombra do AI-5, ainda no primeiro mandarinato do Ministro Delfim Netto. O "empresarial" cresceu sobretudo pelo re­ curso ilimitado ao financiamento externo; o rr:onetário, pela explosão da dívida interna e mais tarde do crédito subsidiado. Mais grave, po­ rém, a estrutura tributária, remontada em 1966 já com um viés centra­ lizador e concentrador do poder fiscal da União, tornou-se um instru­ mento de ação tópica nas mãos do gestor do "milagre", armadas do instituto do decreto-lei e inteiramente livres em face de um Congresso impotente. A combinação de subsídios creditícios e incentivos fi�cais deslocou do orçamento fiscal para os dois outros, ambos abertos, os encargos do financiamento estatal da expansão econômica, dando às contas públicas "visíveis" uma aparência de ordem na época do "mila­ gre". Com efeito, o Orçamento da Uniãó, que chegou a apresentar em 1962 e 1963 déficits superiores a 4,2% do PIB, equilibrara-se no fim da década e já era superavitário em 1973. Esses dois tipos básicos de orçamento delimitaram as fronteiras de evolução do funcionalismo público no Brasil, em todos os níveis, cm correspondência direta com a evolução de suas fontes de recursos. O orçamento "encoberto", financiado pelos resultados operacionais·

18. Exatamente por aparentar ser um reduto de autonomia num Governo já rendido 110 sistema financeiro internacional, o Itamarati tem sido indicado como uma alternati­ vu conveniente para a condução da renegociação, cm termos menos subservientes, da divida externa brasileira. Em setembro de 1983, o Senador Albano Franco, presidente da Confederação Nacional da Indústria, fez uma convocação pública nesse sentido.

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da própria atividade "empresarial" do Estado e por empréstimos, livre de controles centrais, ajusta-se à disputa de mão-de-obra qualificada no mercado de trabalho com a mesma flexibilidade do setor privado. O orçamento "visível", formalmente submetido ao Congresso e limi­ tado pela receita fiscal progressivamente aviltada, bloqueia a possibili­ dade de se garantir um mínimo de dignidade ao servidor público tradi­ cional, pelos baixos níveis de remuneração, pelas condições péssimas de trabalho, pelo recurso recorrente ao expediente mesquinho dos rea­ justes de vencimentos aquém da taxa inflacionária. Servidores por excelência da população pobre, porque os ricos obviamente recorrem a serviços particulares pagos, essa ampla faixa de funcionários concursados, que vai dos professores aos médicos, tem muito pouco a oferecer em qualidade de serviço e muito menos a espe­ rar da sociedade em respeito por sua função. Por aí, gera-se um terrí­ vel círculo vicioso de deterioração do serviço público. Escaparam ape­ nas os "DAS" - os admitidos sem concurso para funções de "Direção e Assessoramento Superior", eufemismo que encobre a distinção do funcionalismo direto entre a casta dos apaniguados � a dos deserda­ dos. Também escaparam os militares, "comprados" através de expe­ dientes como os adicionais cumulativos, reajustes mais generosos de proventos e a transformação da parte preponderante do soldo em "indenizações" isentas de Imposto de Renda. Em face desses servidores, os "celetistas" da Administração indi­ reta apresentam-se como ·privilegiados - como se o neologismo não significasse apenas que se dá a eles os direitos básicos assegurados pela CLT ao trabalhador comum no setor privado. Claro que também aqui houve deformações, mas em sentido contrário: são as mordomias, as participações no lucro, os salários adicionais, os planos de aposenta­ doria suplementados generosamente à custa do Estado, etc. Contudo, os reais privilégios e mordomias não costumam descer abaixo do nível dos mandarins � de seu séquito mais próximo. Quando descem, numa ou noutra empresa isolada, apenas refletem a deformação bási­ ca de não ter-se submetido a Administração indireta a um estatuto ou código de trabalho comum, da mesma forma como não foi submetida a contróle de espécie alguma em suas outras dimensões.

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A disfuncionalidade - A crise de 1975/76 suscitou o agravamento do conflito sempre latente entre setor público e privado, e num segun­ do nível expôs as contradições internas na própria Administração pública, sobretudo entre as empresas produtivas do Estado e o Gover­ no. Este último, que pela Reforma Administrativa havia soltado as ré­ deas da administração descentralizada, eximindo-se de seu controle polltico quando dispensou a apreciação legislativa de seu orçamento consolidado de investimentos, passou a desconhecer a si e a seus obje,1()

tivos nos programas das "estatais". Num primeiro momento, embora capitulando à idéia de comprimir tarifas e cortar gastos públicos glo­ bais, Reis Velloso ainda tentou estabelecer uma linha de defesa do se­ tor estatal, de inequívoca importância na sustentação do investimento global na economia, através de um documento onde procurou expor a posição do Governo em relação ao tema da estatização. 19 No entanto, na costura dos interesses concretos entre empresas estatais e o setor privado, este último, cegado pela ideologia da estati­ zação, não compreen,deu imediatamente que a origem do descompasso entre a retórica oficial privatizante e a prática do regime autoritário es­ tava menos na política empresarial do setor público que na condução da política econômica global. Na medida em que as estatais eram em­ purradas para o exterior, como_ instrumentos de captação de divisas, perdia-se o elo essencíaf na cadeia de repercussões do investimento público na economia, desde que ao crédito externo passou a vincular­ se crescentemente o suprimento de equipamentos do exterior. Ao contrário do que seria de esperar-se de uma tecnocracia, as "estatais" se curvaram disciplínadamente à reorientação da poHtica econômica, cujo resultado, hoje amplamente reconhecido, é o da esta­ tização da dívida externa, por um lado, e por outro a desestruturação l'inanceir.a das empresas públicas. Tudo isso se fez também à custa da desarticulação entre inversões públicas e o sistema produtivo interno, acentuada desde 1976, com a ruptura dos blocos de interesse que se su­ punham sólidas estruturas mistas criadas pelo neocapitalismo brasilei­ ro como força política autônoma. Na realidade, esses blocos resisti­ ram apenas enquanto o tênue esforço burocrático pôde exprimir-se em algumas agências oficiais melhor aparelhadas, como o antigo BNDE e sua Finame. Em outras, a aguda necessidade de recursos "livres" fez com que o princípio de fidelidade aos interesses coligados privados, in­ ternos, cedesse lugar à sujeição às imposições do sistema financeiro in­ ternacional e da indústria exportadora a ele vinculada. Assim, já "em dezembro de 1976 foi baixado um decreto-lei libe­ rando a RFFSA das exigências da Lei do Similar Nacional na impor­ tação de equipamentos para a Ferrovia do Aço. O. protocolo de finan­ ciamento com bancos ingleses estipulava a compra de 50% dos equipa19. "Ação para a Empresa Priva�a Nacional", documento de princlpios aprovado pelo Presidente da República, em 1976, quando se criou também um Grupo de Traba­ lb, para sugerir alternativas práticas de fortalecimento da empresa privada nacional. llm dos curiosos resultados foi a reafirmação do modelo "tripartite" como fórmula mais eficaz de conciliação de esforços de investimento em algumas áreas prioritárias, a1ravés da Resolução n9 9 do Conselho de Desenvolvimento Econômico, no exato mo­ mento em que o modelo estava sendo objeto de mais uma sabotagem da Dow Química .:0111 a cumplicidade de altos dignitários da República. Ver "caso" Dow Química, adian1 deixa de ser a rcr,rcscntação do interesse geral e se transforma, :'1�. dara:;, numa ,:o.w 110.1·tm. 1'· (� a cosa nostra que, pela força do hábito, �;ohrcvivc :to /\1-5 e púdc produzir, sem escrúpulos e sem temor de san­ çíio, u 111 cspctúculo repulsivo como o escândalo da Capemi, final épico na Jcgcncração das instituições da sociedade e do Estado no Brasil. Nu China autocrática, um sistema de concursos públicos adotado para 26. Tltulo de um editorial de O fatado de S. Paulo, em fevereiro de [983, sobre o en­ volvimento do S:'Jl nos cscflndalos Baumgarten e Capemí.

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no comportamento dos preços se atuasse também do lado da deman­ da. Por simulação, naturalmente, porque o Brasil de fato não iria im­ portar café: tratava-se de simples manipulação, com todas as letras. E, nessa condição, sujeita às sanções rigorosas das comissões reguladoras das bolsas de mercadoria, das quais nem mesmo o Estado brasileiro poderia escapar. Mesmo se não houvesse o risco da contravenção no mercado ex­ terno, a atuação cm bolsa de organizações estatais, com fins de mani­ pulação, está sujeita permanentemente a degenerar em corrupção in­ terna. Entre a decisão política de intervir e a execução da ordem, abre­ se um espaço para a informação privilegiada, o ·recado aos apanigua­ dos, o favorecimento de amigos. Conhecendo previamente a determi­ nação de um Governo, ou acordo de governos, em segurar o preço de· um produto primário, o corretor bem informado pode adiantar-se na compra com a segurança de que terá imediatamente alguém a quem repassar o lote a melhor preço. No caso do café, a cada movimento do antigo presidente do IBC, Camilo Calazans, no sentido de acionar a Pancafé como compradora internacional, um enxame de corretores privados se adiantava nas bolsas internacionais do café, abarcando milhões de dólares em contratos, à espera do momento exato de repas­ sá-los a bom preço aos agentes da multinacional dos produtores. Com ou sem corrupção evidente, as intervenções de caráter mani­ pulatório do Estado brasileiro, interna ou externamente, redundaram em retumbante fracasso. No mercado acionário interno, ao prejuízo econômico sobrepôs-se o· desgaste político da instituiçâo. Nas bolsas de primários no exterior, infensas ao ataque impertinente de um espe­ culador de limitada eficácia, restou também o vexame da exposição de funcionários estatais brasileiros à investigação da comissão de ·regula­ mentação da Bolsa de Nova Iorque, além de todos os ônus financei­ ros, um pesadíssimo custo de aprendizagem.

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taneamente segundo maior consumidor, como o Brasil. Sobretudo porque não hú barreira à entrada de novos concorrentes, em qualidade e quantidade, não existe uma fórmula definitiva ·de proteção do produ­ tor nacional de café. E não é outro o motivo por que, apesar de todo o seu decantado poderio político, ainda real, o setor cafeeiro não conse­ gue impor uma política estável de autoproteção, que concilie todos os interesses e a ação do Governo, desde o Acordo de Taubaté de 1906 ao recente Aviso de Garantia. As políticas mais agressivas costumam ser meros expedientes de defesa de renda do exportador a curto prazo, ge­ ralmente contraproducentes a prazo longo. Pois bem. Não obstante a complexidade da secular economia ca­ feeira, e da inexperiência da neófita Interbrás nestes e em outros mer­ cados de commodities, seu vice-presidente executivo Carlos Santana decidiu, em 1976, que era ch_,gado o momento de iniciar-se uma "nova filosofia" na comercialização externa do café brasileiro. Sob o argu­ mento de que "não existe, infelizmente, uma OPEP do café e por isso é importante que o Brasil atue ativamente no mercado", ele anunciou orgulhosamente, em fins de julho, e para surpresa geral do País, que a Interbrás comprara nada menos que 561.200 sacas de cafés suaves cen­ tro-americanos, por cerca de USS 100 milhões. As primeiras 57.500 sa­ cas, esclarecia, seriam embarcadas imediatamente para o Brasil vindas de El Salvador, e outras 158. 700 viriam dos estoques de Hamburgo. 42 No ano anterior, como os intermediários do café se recordam com indisfarçável satisfação, uma devastadora ,geàda reduzira drasti­ ,camente a expectativa de safra brasileira, liquiciando com vastas zonas cafeeiras do Paraná e do Sul de São Paulo. Essas perdas, que para o produtor direto costumam representar verdadeiras tragédias; consti­ tuem sempre uma excepcional oportunidade de lucro rápido para os especuladores estocados. Contudo, o mercado mundial ainda estava abarrotado de café, com a entrada recente de volumes recordes de ca­ fés colombianos e africanos, não se fazendo sentir imediatamente os efeitos da geada brasileira sobre os preços. Os estoques asseguravam oferta abundante a curto prazo, e a longo prazo era preciso esperar como se comportaria a produção futura dos principais concorrentes brasileiros. A Interbrás, contudo, tentara ser mais rápida. Agindo por ordem do presidente do IBC, Camilo Calazans, em coordenação com uma empresa de economia mista de El Salvador, a Coscafé-Companhia Salvadorenha de Café, retirou do mercado 46 mil sacas de café salva­ dorenho; e, sozinha, mais 76.707 sacas de café procedente da Repúbli42. O regi�lro sumúrio da opcraçiio apareceu no Jornal do Brasil, em 27-7-76. Os nú­ meros crum um blcf'e. como se ver:í. mas mio a intenção. Depois disso, um véu de discri­ çüo baixou sobre as operações, alé que estourou um inquérito contra a lnterbrás cm Nova Iorque.

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