Os Escritores e as Escrituras - Retratos Teológico-Literários
 3786715742, 8515019914

  • Commentary
  • Enjoy it!
Citation preview

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS RETRATOS

TEOLÓCICO-LITERÁRIOS

Karl-Josef Kuschel

OS ESCRITORES

E AS ESCRITURAS Retratos teológico-literários Tradução Paulo Astor Soethe Maurício Cardoso Elvira Horstmeyer Ana Lúcia Welters

Edições Loyola

Título original: “Vielleicht halt Gott sich einige Dichter" — Literarisch-theologische Portrats © 4991 Matthias-Grünewald-Verlag, Mainz ISBN: 3-7867-1574-2

Tradução Paulo Astor Soethe (cap. I, V e VI) Mauricio Cardoso (cap. Ill) Elvira Horstmeyer (cap. II) Ana Lúcia Welters (cap. IV) Revisão Maurício B. Leal Renato Rocha Carlos Milton Camargo Mota

Diagramação Telma dos Santos Custódio

Edições Loyola Rua 1822 n° 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04299-970 São Paulo, SP 11) ** (0 6914-1922 Fax: (0 11) ** 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br e-mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 85-15-01991-4

© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1999

Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição (vejam que digo poetas!), para que o falar sobre Ele preserve a sacra irredutibilidade que sacerdotes e teólogos deixaram escapar de suas mãos, Kurt Marti, Carinho e dor, 1979 5

Sumário

Apresentação..........................................................................................................

9

I. Sobre a tensa relação entre religião e literatura.......................................... 1. Deus — um péssimo “princípio estilístico”: Gottfried Benn.................... 2. Contra a mistura de literatura e profissão de fé: Bert Brecht.................... 3. Em nome de Deus, contra a arte: o caso Hermann Hesse......................... 4. Sobre a bipartição de toda arte: Reinhold Schneider................................

13 14 19 23 28

II. Franz Kafka e a inescrutabilidade do mundo.................................................. 35 1. Um escritor não-religioso..................... ,..................................................... 36 2. Seus personagens: habitantes de mundos intermediários......................... 38 3. Suas histórias: estratégias de enigmação da realidade............................... 42 4. Contra a resistência burguesa ao assombro............................................... 46 5. Indecisão: Kafka como artista.................................................................. ;. 48 6. Um ser dividido: Kafka como judeu.......................................................... 50 7. A questão radical da existência de Deus................................................... 53 8. Fragmentos de convicções religiosas......................................................... 57 III. Rainer Maria Rilke e as metamorfoses da essência religiosa........................ 63 1. O papel fatal da religião para uma criança................................. 64 2. A fé oposta: amor como religião................................................................. 67 3. “Tudo perdido” — até mesmo Cristo, até mesmo Deus............................ 70 4. A outra imagem de Cristo: as Visões de Cristo......................................... 76 5. “Anticristandade raivosa” e a descoberta do Islã...................................... 81 6. Arte e religião: a viagem para a Itália.................................................. 85 7. A viagem para a Rússia e o “Deus” do Livro de horas.............................. 90 8. Religião, sim — aula de religião, não......................................................... 97 9. “Aprender a ver”: Cézanne e as conseqüências........................................ 100

7

10. A metamorfose da essência religiosa nos Novos poemas.......................... 105 11. O discurso sobre Deus — em trajes budistas............................................ 112 12. A compreensão da realidade na obra tardia.............................................. 116 IV. -sHERMANN

HESSE E A INSONDABIL1DADE DA ALMA ...........................................................................

129

1. Primeiros olhares em direção ao abismo................................................... 2. Reconciliação com Deus e com a arte........................................................ 3. O mundo espiritual da primeira fase de Hesse......................................... 4. A nova crise: a face dupla do homem e deDeus....................................... 5. A nova imagem de Deus............................................................................. 6. A crença básica de Hesse na unidade........................................................ 7. Um último olhar para o caos...................................................................... S. Autodenúncia cínica........................ 9. A última conciliação: “Meditação”..... ....................................................... 10. A sabedoria da maturidade.............

131 136 141 144 147 151 153 155 159 161

V. Thomas Mann a redescoberta do cristinianismo e da ética no combate ao fascismo.............................................................................................................. 1. A necessidade de uma ética mundial......................................................... 2. Como consolidar uma ética?...................................................................... 3. Da propaganda política à “fantasia mosaica”............................................ 4. O surgimento da eticidade a partir da sensualidade................................ 5. A funcionalização de Deus em favor da ética.......................................... 6. A ética em meio à discrepância entre ironia e pathos............................. 7. O desafio imposto pelos crimes contra a humanidade............................. 8. O caráter fragmentário da consciência moderna..................................... 9. Sem ética mundial, nada de civilização mundial....................................... 10. A redescoberta da cristandade................................................................... 11. A idéia indestrutível do cristianismo.......................................................... 12. Humanidade e religiosidade...........................

167 167 169 172 175 181 183 186 192 197 200 202 204

VI. A caminho de uma teopoética...................................... 209 1. Sobre a “sacra irredutibilidade” do discurso sobre Deus........................... 209 2. O discurso sobre Deus como decorrência de experiências de crise.......... 211 3. Contra o Deus do além............................................................................... 212 4. Novos amálgamas espirituais..................................................................... 215 5. Como tratar de literatura? Os métodos confrontativo e correlativo......... 218 6. O método da analogia estrutural: busca de correspondências................... 222 7. Teopoética: quais os critérios estilísticos para um discurso sobre Deus nos dias de hoje?............................................. 223 8. A contradição da teologia.......... ................................. 225 9. “Como disseram alguns de vossos poetas”................................................ 229

8

Apresentação

A obra de Karl-Josef Kuschel é referência imprescindível para quem esteja atento ao diálogo entre religião e literatura, tanto do ponto de vista da Teologia como do das Letras. Seus escritos nessa área revelam um olhar perspicaz e franco: embora teólogo católico, não busca profissões de fé nas obras literárias; e, com a isenção e seriedade do profissional de Letras, não ignora nos grandes autores a presença da religião, a relação conflituosa e fértil dos textos literários com as tradições religiosas, com Deus e as Escrituras. Kuschel afasta-se assim da arrogância de quem manipula a poesia e a ficção com fins religiosos, e da obtusidade de quem elide, nos textos, os elementos ligados à religião e à fé. Seu princípio é deixar falar os autores — na dicção deles, literária —, para só então posicionar-se diante do que dizem, como teólogo. Kuschel sustenta a convicção de que as grandes obras de arte, por seu caráter livre e indeterminado e por sua capacidade de representar a multiplicidade da existência humana, podem colocar o homem em con­ tato intenso com o que está para além dele. Na verdade instável e irredu­ tível que essas obras representam (a verdade de vidas humanas em sua graça e mistério) a verdade divina pode se fazer presente, sob a forma parcial que cabe ao homem apreender. Ao ouvir os escritores, Kuschel entrega-se a um exercício anunciado e criterioso de teologia intercultural: não pretende incorrer em uma falsa estetização da religião, nem em uma sacralização da arte. As experiências religiosa e estética preservam cada qual sua especificidade e valor próprio, mas iluminam-se reciprocamente, em uma relação, nem sempre pacífica, de afirmação e crítica. 9

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS----- —--------- —----------------------------------------------

Nascido na Alemanha em 1948, vice-presidente da Fundação Ética Mundial (presidida por Hans Küng) e doutor “honoris causa” pela Univer­

sidade de Lund, na Suécia, Karl-Josef Kuschel atua hoje como professor titular de Teologia da Cultura e de Teologia do Diálogo Inter-Religioso na Universidade de Tübingen, Alemanha — instituição leiga e estatal, é preciso frisar. Está imerso em uma tradição em que a Teologia não ficou circunscrita a instituições confessionais, nem tampouco excluída do uni­ verso acadêmico “secular”, como ocorre no Brasil. Sua atividade repercute, portanto, em meios eclesiásticos, mas também no universo acadêmico e cultural não-religioso, interessado nos autores e textos que aborda. A publicação de seus “retratos teológico-literários” vem trazer ao Brasil uma perspectiva de análise literária e de reflexão teológica pouco considerada entre nós. Os estudos sobre Thomas Mann, Franz Kafka, Hermann Hesse e Rainer Maria Rilke proporcionam um olhar diverso sobre autores que há muito deixaram as fronteiras da língua alemã para habitar o universo de referências literárias em nosso país. Além disso, os capítulo I e VI apresentam questões e fundamentos teóricos abrangentes, igualmente relevantes para o cenário da literatura brasileira do século XX. Pois, além dos autores nacionais em que a temática e as referências religiosas são confessas e evidentes (como Jorge de Lima, Murilo Men­ des, Cecília Meireles, Cornélio Pena, Alceu Amoroso Lima, Otto Lara Resende, Adélia Prado), há vários outros que, sob o ponto de vista de Kuschel, têm muito a dizer a esse respeito. Qual o sentido teológico, por exemplo, de um romance como Quarup, de Antônio Callado, em que a secularização do fervor religioso do protagonista Nando leva-o à guerri­ lha e a experiências libertárias extremas? Qual o valor, para a Teologia do Diálogo Inter-Religioso, de um livro como Relato âe um certo Oriente, de Milton Hatoum, história de uma família de imigrantes libaneses em Manaus, em que a relação entre o pai muçulmano e a mãe católica cons­ titui um dos pilares do texto? E que dizer da remissão aos textos sagrados por parte de um romance denso e desestabilizador como Lavoura arcaica, de Raduan Nassar? Ciente do valor e força da literatura da América Latina para suas reflexões, a propósito, Karl-Josef Kuschel começa a dedicar atenção sempre maior a autores de nosso continente. Durante a preparação e lançamento da tradução brasileira de Os Escritores e as Escrituras, o teólogo — produ­ tivo como poucos — prepara na Alemanha um volume sobre Jesus e suas representações na literatura universal do século XX. Dentre os autores 10

---- —------------------------------------------------------------------------------------------ APRESENTAÇÃO

abordados, figuram Jorge Luís Borges, Augusto Roa Bastos, com Hijo de Hombre, e Mario Vargas Llosa, com o romance La guerra delfin dei mundo, este último sobre o trágico episódio da Guerra de Canudos — um dos emblemas da fé popular e da crise de modelos religiosos em nosso país. A publicação do presente trabalho de Karl-Josef Kuschel por Edi­ ções Loyola traz ao cenário brasileiro grande contribuição teórica para a reflexão interdisciplinar nos âmbitos da Teologia e das Letras. Chama a atenção, além disso, para a oportunidade de estudos semelhantes no Brasil, em face do valor e interesse da literatura e da experiência religiosa entre nós, ambas à espera de quem venha convidá-las ao diálogo recíproco.

Paulo Astor Soethe Universidade Federal do Paraná

I

Sobre

a tensa relaçao ENTRE REL1G1ÀO E LITERATURA *

Já é lugar-comum afirmar que religião e literatura encontram-se em uma relação de tensão constante e até mesmo hostil, ao menos desde o fim da identidade entre cultura burguesa e cristandade. Embora o processo de dissolução remonte à “autonomia” da obra de arte literária, associada a um avanço drástico da secularização, somente no século XX os efeitos duradou­ ras desse processo poderão ser definitivamente notados, a despeito de quais­ quer tentativas bem-intencionadas de restauração. E se o século XIX já tentara restabelecer a união entre teologia e literatura — o primeiro apelo por uma “literatura cristã”, do ponto de vista da história literária, ocorre no movimento romântico (inicialmente com Schlegel, em sua fase tardia, e depois com Eichendorff, Brentano e Annete von Droste-Hülshoff) —, isto já se revela como sintoma precoce do distanciamento entre cultura e religião. No esforço de fazer retroceder o processo de secularização (que marca época, segundo A. Schõne1), e de restabelecer a religião cristã como elo obrigatório e integrador para a unidade da cultura, fracassam não apenas os românticos, mas também a segunda onda programática de “literatura cristã” na primeira metade do século XX. “Literatura cristã”* 1 * Tradução de Paulo Astor Soethe 1. Quanto a isso, cf. o estudo de SCHÕNE, A., Sãkularisierung ais Sprachhildende Kraft. Studien zur Dichtung deutscher Pfarrersôhne, 2 a ed., Gottingen, 1968. Igualmente fundamental para a questão é a leitura de AUERBACH, E., Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendlãndischen Literatur, 4a ed., Bern-München, 1967. 13

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

continuou a ser a atividade de alguns autores individuais, embora não menos importantes: Bloy, Péguy, Bernanos e Claudel, na França; Greene e Waugh, na Inglaterra; Eliot e Faulkner, nos Estados Unidos; Silone e Papini, na Itália; Langgãsser, Le Fort e Reinhold Schneider, na Alema­ nha. As obras dos grandes representantes da “literatura cristã” trataram de refletir sobre a problematização da fé e expressar a experiência de fragmentação e insondabilidade da existência piedosa. E isso marca uma distinção profunda entre esses escritores e uma massa de leitores ligados à Igreja, que se limitou muitas vezes a apropriar-se de forma indevida dos autores, com o intuito de apenas confirmar as próprias convicções. A “literatura cristã” é melhor do que a fama que tem2. Em razão dessa recepção desastrosa, não é de admirar que os escri­ tores da geração seguinte tenham deixado de valorizar a classificação “literatura cristã”, mesmo que em princípio se considerassem cristãos. Nos anos 50, autores alemães como Heinrich Boll, Friedrich Dürrenmatt e Günter Grass já não se deixavam mais cooptar por qualquer grupo e tratavam de manter uma distância crítica em relação ao establishment cultural cristão. Não queriam ser reconhecidos em razão de sua fé, mas por causa da qualidade de suas obras literárias. No século XX, temos de nos defrontar, portanto, com as decorrências tardias e ainda pendentes da dicotomia cultural entre religião (cristianismo) e cultura (literatura). Houve reações adversas de ambas as partes, e é com isso que este livro pretende se ocupar já de início: com a crítica estético-literária à religião, mas também com a crítica religiosa à estética. Nesta parte inicial, preten­ demos testar e ilustrar o campo de tensão entre religião e literatura a partir dos casos de quatro autores: Gottfried Benn, Bert Brecht, Hermann Hesse e Reinhold Schneider.

1. Deus — um péssimo “princípio estilístico”: Gottfried Benn Em 15 de novembro de 1955, a emissora Westdeutscher Rundfunk promove em Colônia o encontro entre dois escritores convidados a discu­ tir a seguinte questão: é papel da literatura tornar a vida melhor? Eles 2. Quanto a isso, cf. KUSCHEL, K.-J., Jesus in der ãeutschsprachigen Gegenwartsliteratur. Zürích-Gütersloh, 1978. Do mesmo autor, “Christliche Literatur — geschrieben von Nichtchristen?”, in Stimmen der Zeit 200 (1982): 739-752.

14

SOBRE A TENSA RELAÇAO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

nunca haviam se encontrado antes: Gottfried Benn, com seus 69 anos, e Reinhold Schneider, aos 52. Ambos estão no auge da fama literária, na época do pós-guerra alemão. Entre eles dá-se um duelo verbal notável. Cada um à sua maneira, haviam sobrevivido intelectualmente à guerra, recolhendo-se em uma “emigração interior” durante a ditadura nazista na Alemanha. Ao longo de suas vidas, produziram obras cujos perfis intelectuais não poderiam ser mais diversos. E ali estão, diante dos mi­ crofones, para abordar a questão. Gottfried Benn toma a iniciativa e põe à prova a formulação da própria pergunta: o que quer dizer “literatura”? E “vida”? E o que significa “tomar melhor”?3 Para ele, discípulo de Nietzsche, essas palavras são muito problemáticas. A literatura deveria melhorar a vida do ponto de vista cultural, por exemplo? Mas arte e cultura têm a ver uma com a outra? — pergunta Benn, para então formu­ lar uma antítese radical: arte não é cultura! Por certo a arte teria uma tendência à formação, à educação e à cultura, mas pelo simples fato de não ser nada daquilo: “O mundo do agente cultural” — é o que diz Benn — “constitui-se de húmus, de terra para jardim; ele processa, cultiva, expande; aponta para a arte, trata de trazê-la para perto, fazê-la transitar, institui cursos e currículos para ela; ele crê na história, é positivista. Quem produz arte (ao contrário) é estatisticamente um associai, não sabe quase nada sobre o antes dele nem sobre o depois dele; vive apenas para seu material interior, e é para ele que coleciona momentos dentro de si, e os empurra para dentro, empurra-os tão fundo, até que isso toque seu material, torne-o inquieto e obrigue-o a despejar. Quem produz arte não está interessado em divulgação, em um campo de ação, no aumento da recepção; ele não tem interesse em cultura”. Ou deveria a literatura tomar a vida melhor do ponto de vista médico, deve consolá-la, curá-la? Muitos diriam sim a isso, acredita Benn: música para doentes com problemas psíquicos e recolhimento interior com Rilke durante tratamentos dietéticos. A isso, no entanto, opõem-se as palavras de Kierkegaard: “A verdade só vence por meio dó sofrimen­ to”; e a frase de Goethe: “Aprendi a suportar muitas coisas”. E opõemse Schopenhauer e Nietzsche, que viam na intensidade e na capacidade de sofrer o parâmetro para o valor individual do artista. Sim, pois a tarefa 3. BENN, G., “Soil die Dichtung das Leben bessern?”, in Gesammelte Werke, org. de D. Wellershoff, vol. IV, Wiesbaden, 1968, pp. 1147-1157; também em SCHNEIDER, R., Gesammelte Werkey org. de E. M. Landau, vol. IV, Frankfurt/M., 1980, pp. 267-276.

15

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS----------------------------------------------------------------------—

do artista não é justamente garantir essa verdade suprema da inconciliabilidade entre arte e cultura? Verdade suprema como programa, na boca de um Gottfried Benn? Estranho. Mas Benn não demora a acrescentar outra frase que deixa claro o que tem em mente: “Não posso imaginar alguém que crie artis­ ticamente e entenda como melhora o que poderiamos chamar de melhora no sentido de nossa discussão. Ele diria: ‘O que essas pessoas estão pen­ sando? Eu as conservo em meio à miséria e à morte, para que possam tornar-se ainda mais humanamente dignas, e elas já tratam de se esqui­ var com pílulas e chá de funcho, querem se dar por satisfeitas e partir em uma viagem de ônibus’”. Não, não: quem escreve está contra o mundo todo, é a opinião de Benn. Quem escreve vive em um vazio impiedoso, e para lá são atiradas todas as flechas, nesse vazio frio e de um azul profundo. Lá têm valor apenas os raios de luz, apenas as esferas mais altas, não o que é humano. Nessa esfera surge a literatura. E literatura, a seu ver, é arte monológica. O caminho percorrido por Gottfried Benn (1886-1956) para chegar a esse ponto faz dele o representante de um certo tipo de pessimismo diante da história e da criação inspirado em Nietzsche, Darwin e Spengler. Não há outro na lírica do século XX que haja transformado esse pessi­ mismo em linguagem com igual genialidade. E o filho de pastor, nascido em Mansfeld, às margens do rio Oder, já assume essa postura desde o início de sua atividade poética, quando encontra em hospitais, necroté­ rios e barracas de cancerosos o material de seus primeiros textos líricos — já que como médico especializado em dermatologia e doenças venéreas tinha contato permanente com essa realidade: O auge da natureza, o porco, o ser humano —: lida com outros animais também! Com 17 anos, piolhos genitais, lá e cá em meio a focinhos sujos, doenças intestinais e alimentos, fêmeas e infusórios, aos 40 a bexiga começa a ficar solta —: vocês acham mesmo que a terra cresceu ao redor desse bulbo, desde o sol até a lua —? O que é que vocês estão ganindo aí?4 4. BENN, G., "Der Arzt (II)”, in G. Benn, Gesammdte Werke, op. cit., p. 12. As próximas citações seguirão essa edição, com indicação dos respectivos números de volume e página.

16

—-----------------------------------------

SOBRE A TENSA RELAÇÀO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

Era essa a convicção de Benn: inexplicavelmente, um capricho da criação cuspiu o ser humano para fora, e ele não está destinado a nada senão à decadência, que logo começa. O ser humano não é o “matador” vitorioso na batalha da existência, e a natureza não procede de modo tão conseqüente e mecânico como Darwin procurou descrever. A natureza é arbitrária, espontânea, caótico-criadora. Opondo-se à ordem evolutiva racional e orientada para um fim, com essa notável inversão do mito da expulsão do paraíso por meio da expulsão do criador para longe da na­ tureza, Gottfried Benn pretende cavar “uma brecha no princípio cientí­ fico”, como ele mesmo enfatiza no artigo “O eu moderno”, já em 1920 (III, 575). Mais tarde, em “Romance do fenótipo” (1944), ele ainda es­ creve: “A ordem astral em que vivemos é uma exceção. O caráter geral do mundo, ao contrário, é o caos por toda a eternidade. Julgados do ponto de vista de nossa razão, lances infelizes compõe a regra. Ele, o universo, também não dispõe do instinto de autoconservação, nem de qualquer outro instinto, e não conhece quaisquer leis; aí não há ninguém que mande ou obedeça, ninguém que ultrapasse regras” (V, 1339). Ou seja, também Gottfried Benn tem como experiência fundamen­ tal a perda do que é metafísico. Que conseqüências isso teve para a arte? Em 1934, Benn escreve o seguinte em um de seus relatos autobiográ­ ficos (“Vida de um intelectual”), numa alusão à Primeira Guerra Mun­ dial: “O homem interior em frangalhos, ainda mais esfarrapado que o exterior, por vermes e granadas: apodrecido, azedo, gaseado, e no ema­ ranhado da bagagem algumas palavras oxidadas”. A seguir surge a frase de interesse decisivo para nós, pela primeira vez em Benn: “Os deuses, mortos, os deuses da cruz e do vinho, ainda mais que mortos: mau princípio estilístico, quando a gente se torna religioso, abranda a ex­ pressão” (VIII, 1908). Esse dito — de que “Deus”, ou melhor, a palavra Deus seja em princípio um “mau estilo” — logo se faz sentir em todos os que se apro­ ximam de textos literários munidos de uma perspectiva teológica. Estamos diante de uma notável variante da crítica moderna à religião: não se trata da crítica sociopolítica, racionalista ou psicológica, mas da crítica estética e literária. Sua agudeza e sua severidade, ela as conquista por ver clara­ mente que com “Deus”, isto é, com convicções religiosas e com piedade eclesiástica, não se pode fazer boa poesia. Mente piedosa, comprometi­ mento devoto? Eis aí o inimigo do bom estilo, a perda da boa literatura. Devoção? Ela “abranda” a expressão! Dá-se o “afrouxamento do estilo”, 17

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

o “conformismo”, como Benn formulará mais tarde, em um contexto semelhante (VIII, 2026). O artista, no entanto, e de acordo com Benn, opõe-se ao mundo todo. Vive em um vazio impiedoso, o que também ■'possibilita tirar a conclusão inversa: quem crê — no sentido religioso, eclesiástico — já terá encontrado consolo diante da impiedade do mun­ do, já terá conseguido um lugar quente e confortável para si, estará gozando de um estado de salvação cujo equivalente literário é a literatura edificante. Bem-intencionado, sim; mas ‘‘bem-intencionado” é o contrá­ rio de bom — novamente nas palavras de Gottfried Benn. Haveria uma alternativa? A resposta de Benn é a seguinte: a arte é hoje a única forma possível de transcendência. E isso ele expressou de maneira muito enfática no texto que escreveu em resposta a uma pesqui­ sa de opinião organizada por Harald Bauer sobre o tema “A fé dos lite­ ratos — depoimentos sobre a vivência religiosa” (de que participaram DÕblin, Barlach, Claudel, Hesse, Thomas Mann, R. Rolland, E. Toller, entre outros): Já que meus antepassados são pastores evangélicos há muitos anos, minha juventude foi inteiramente perpassada pelo religioso. Meu pai, hoje emérito, foi um homem incomum: ortodoxo, talvez não no sentido da Igreja, mas em sua personalidade; heróico na doutrina, heróico como um profeta do Antigo Testamento, dotado de um poder individual semelhante ao do pastor Sang do drama Sobre a força, de Bjõrnson, que encenavamos em minha juventude. Com a mesma certeza com que me afastei dos problemas referentes aos dogmas e à doutrina de uma comunidade de fé, já que era movido somente pelos problemas da forma, da palavra e da literatura, mantenho até hoje a atmosfera da casa paterna: no fanatismo quanto à transcendência, na firmeza de propó­ sitos quanto a recusar qualquer materialismo de natureza histórica ou psico­ lógica como insuficiente para a compreensão e representação da vida. Hoje, no entanto, vejo essa transcendência como voltada para o artístico, como filosofia, como metafísica da arte. Vejo a arte suplantar a religião em importância. Em meio ao niilismo geral europeu, em meio ao niilismo de todos os valores, não vejo outra transcendência senão a do prazer criador. Não me parece que a Igreja Evangélica vá recuperar o poder de tornar o ser do homem severo e impaciente, em vez de o restringir, ou que ela vá recuperar o poder de impulsioná-lo a um grande desenvolvimento espiritual. Parece-me muito mais, isso sim, que as religiões dos deuses estejam sucumbindo, ao passo que o socialismo não seca todas as lágrimas, e que apenas a arte permaneça 18

SOBRE A TENSA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

como a verdadeira tarefa da vida, como sua identidade, sua atividade metafísica, à qual ela mesma, a vida, nos obriga5.

Quatro aspectos merecem atenção nesse texto: 1. O ponto de partida individual-biográfico, com uma dupla nuança: de um lado, o respeito diante da “personalidade” do pai-pastor (heróico, profético e poderoso são palavras-chave); de outro, o esclarecimento psi­ cológico do próprio caso. Religião, para Benn, é algo do “passado”, da “juventude”. Para o adulto, a religião está liquidada de uma vez por todas. Por quê? Porque agora vivemos na era do niilismo europeu de todos os valores. 2. O que se salva do passado religioso (“atmosfera da casa paterna”) é a negação de toda forma de materialismo. Este último é inútil quando se trata de “compreensão e representação” da vida. 3. Permaneceu, da mesma forma, um fanatismo pela transcendência, só que entendido agora como realização da criatividade artística, como prazer criador. A arte é transcendente na medida em que logra atingir a conformação do inconformável, a atribuição de forma ao que é amorfo, de modo a contribuir para a “desbanalização” da vida. Todo poema é um ato de transcendência como este, um transcender sem transcendência! 4. Finalmente, Benn arrisca um prognóstico para o futuro: à medida que a religião e também o socialismo perderem sua força, esse tipo de arte substituirá a religião. Apenas a arte permanece e cria comprometimento.

2. Contra a mistura de literatura e profissão de fé: Bert Brecht No dia 14 de agosto de 1943, em um pequeno teatro de Santa Monica, perto de Los Angeles, reúne-se um grupo de artistas alemães proeminentes, em exílio naquela localidade. Heinrich e Thomas Mann estão presentes, Bert Brecht com Helene Weigel, Hanns Eisler, Arnold Schonberg, Fritz Kortner... A intenção é comemorar o 65° aniversário de Alfred Dõblin. Dõblin chegara três anos antes à América do Norte, após uma fuga desgastante pelo sul da França, e fora hospedado e aten­ dido tão bem quanto possível pelos companheiros de exílio. Entretanto, 5. BRAUN, H. (org.), “Dichterglaube. Stimmen religiõsen Erlebens”, Berlin, 1931, p. 35; também em BENN, G., Gesammelte Werke, op. cit., pp. 1961 s. (sob o título “Fanatismus zur Transzendenz”)’ 19

05 ESCRITORES E AS ESCRITURAS

até aquele momento o judeu Dõblin, autor do famoso romance Berlin Alexanderplatz (1929), deixara de contar uma coisa a seus amigos e companheiros: durante a fuga aos nazistas, em uma situação de ruína ^psíquica e física, deu-se na catedral de Mende um encontro profundo com o Crucificado. Isso ocorrera em 25 de junho de 1940, o próprio Dõblin relata os fatos em seu livro autobiográfico Viagem do destino8.

Depois de chegar à Califórnia, ele dá início a estudos teológicos sérios e toma informações sobre a Igreja católica junto a jesuítas que viviam nas proximidades. Em novembro de 1941, o judeu Alfred Dõblin submete-se ao batismo em uma igreja católica em Hollywood. Um ano e meio depois, nesse 14 de agosto de 1943, por ocasião de seu 65° aniversário, Dõblin vê chegada a ocasião para anunciar publica­ mente suas novas convicções religiosas. Após um discurso de Heinrich Mann, após a apresentação de textos de Dõblin por atores tão famosos quanto Fritz Kortner e Peter Lorre, e após a execução de canções berlinenses, o próprio Dõblin sobe ao palco. Não há registro literal do que disse; mas seu discurso deve ter causado tamanha perplexidade entre os ouvintes, que alguns deles se dedicaram a comentá-lo por escrito, imediatamente após a festividade. Um dos indignados era Bert Brecht, cuja esposa, Helene Weigel, organizara o evento. Ao chegar em casa naquela ocasião, Brecht anota em seu “diário de trabalho”: “E no final Dõblin fez aquele discurso contra o relativismo moral e a favor de parâ­ metros rígidos de natureza religiosa, com que feriu os sentimentos irreli­ giosos da maioria dos que estavam na comemoração”6 7. Pouco tempo depois Brecht escreve o poema “Incidente lamentável”: Quando um de meus deuses mais excelsos completou seu 10.000° aniversário Tratei de ir festejá-lo com meus amigos e alunos, E eles dançaram e cantaram diante dele e lhe declamaram coisas escritas. Havia um clima bom. A festa chegava a seu fim. Foi então que o deus festejado subiu à plataforma que pertence aos artistas E declarou em alto e bom som Diante de meus amigos e alunos embebidos em suor 6. DÕBLIN, A., “Schicksalsreise”, in A. Dõblin, Atitobiographische Schriften und letzte Aufzeichnungen, org. de E. Pàssler, 01 ten, 1980, pp. 103-435, princ. 284. Sobre a obra de Dõblin na fase tardia, cf. KIESEL, H., Literarische Trauerarheit. DasExil- und Spãtwerk Alfred Dõblins, Tübingen, 1986, princ. pp. 180-192. 7. BRECHT, B., Arbeltsjoumal. Bd. II (1942-1955), Frankfurt/M., 1973, p. 605.

20

------- ------ ------------------------------ SOBRE A TENSA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

Que ele havia padecido de uma iluminação e a partir de então Se tornara religioso e em um impulso incontrolado, Desafiador, colocou sobre a cabeça um chapéu de padre carcomido por traças, Caiu de joelhos sem pudor e entoou Desavergonhadamente uma canção religiosa atrevida, ferindo assim Os sentimentos irreligiosos de seus ouvintes, entre os quais Também havia jovens. Há três dias não ouso aparecer diante de meus amigos e alunos, Tamanha é minha vergonha (X, 861 s.)8

Essa reação de Brecht é sintomática para a situação de distanciamento entre religião e literatura. 1. A linguagem com que Brecht reveste seu desprezo pelo incidente vivido há pouco é característica para o processo de secularização da lin­ guagem religiosa, que aqui parece já ter chegado a termo. Paródia, sátira e inversão irônica das perspectivas são os recursos para a auto-encenação estilística. Pois os vestígios religiosos e bíblicos (“dançaram e cantaram”) servem apenas para a promoção irônica e exagerada do festejado, cujo desencanto se dará assim de maneira ainda mais eficiente, sob a forma de um desmascaramento. Portanto, a linguagem religiosa nesse texto aparece somente como recurso ãe ridicularização parodística (“caiu de joelhos sem pudor”) e de desmascaramento satírico (“um chapéu de padre carcomido por traças”): autodesmascaramento da religião por meio da linguagem religiosa. 2. De acordo com seus interesses, Brecht faz uso sutil de uma estra­ tégia de inversão. Em suas mãos, um vocabulário religioso é posto a ser­ viço de uma posição irreligiosa. Pois, ao passo que palavras de conteúdo religioso, como “iluminação”, ou a convicção religiosa de Dõblin assu­ mem um caráter frívolo e indecoroso aos olhos de Brecht, ele próprio reclama para sua irreligiosidade justamente o que era antes algo exclusi­ vo da religião: um sentimento profundo, o pudor. A profissão de fé pú­ blica fere os sentimentos da comunidade irreligiosa de ouvintes. Da mesma forma, a alusão aos “jovens” é uma paródia refinada das prescrições em 8. Cit. cf. BRECHT, B., Gesammelte Werke, vols. I-XX, Frankfurt/M., 1967 (“Werkausgabe”, Ed. Suhrkamp).

21

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

defesa da juventude, propugnadas com freqüência por moralistas devo­ tos. Eis a nova situação: enquanto o irreligioso cala constrangido, o re­ ligioso se manifesta sem vergonha ou pudor. Castidade irreligiosa oposta .a uma espécie de pornografia religiosa. 3. Diferentemente do que ocorre em Gottfried Benn, o texto não se enquadra de início na tradição da crítica estética à religião, mas na da crítica psicopatológica à ideologia. O texto apenas alude a isso, ao falar que o homenageado caiu de joelhos, sem qualquer pudor. Em seu “diário de trabalho” Brecht fala mais claramente. Longe de levar a sério a nova postura de Dõblin, longe de se questionar sobre pressupostos filosóficos ou discussões intelectuais pregressas, Brecht é capaz apenas de interpre­ tar tal procedimento como um caso patológico individual. Um “sentimen­ to drástico” teria se apossado dos “ouvintes mais racionais”, um certo espanto diante de um “companheiro de cela que tivesse sucumbido à tortura” e então “confessasse” — são suas palavras no diário. De fato, alguns “golpes muito duros teriam se abatido sobre Dõblin: a perda de dois filhos na França, a não-publicação de um texto épico de 2.400 pá­ ginas, angina pectoris (a grande conversora) e a vida com uma mulher extraordinariamente tola e futil”. Em outras palavras, Dõblin seria uma pessoa a mais a pedir rendição diante da cruz. Religião é vista como expressão de fraqueza, de uma fraqueza decorrente do medo. E religioso quem não deu conta de suas crises existenciais, quem acabou por ser derrotado pelas dificuldades da vida. 4. Finalmente, o texto reflete as consequências tardias de uma his­ toria drástica de distanciamento entre a literatura e a religião. A alusão à “plataforma”, o palco do teatro, deixa isso muito evidente: essa platafor­ ma pertence aos artistas e não aos padres ou aos seguidores dos padres. Ao fazer sua profissão de fé nesse lugar, Dõblin transgrediu as regras do jogo, confundiu o palco com um púlpito, deu ao teatro a função de uma igreja e portanto voltou a confundir de maneira ameaçadora o que já estava separado de forma sempre mais definitiva desde as Luzes. Vem daí a irritação de Brecht: por se tornar religioso, um grande artista como Dõblin traiu a arte e ludibriou seus ouvintes. Usurpou do espaço da arte para trazer propaganda religiosa à cena. Do “deus festejado” resta agora um subalterno dos padres, do qual se deve desconfiar. E nesse ponto Brecht também se insere na tradição da crítica estética à religião. Ele sentencia: quem se torna religioso deixa de ser levado a sério como artista.

22

—----- -- --------------------------------- SOBRE A TENSA RELAÇAO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

3. Em nome de Deus, contra a arte: o caso Hermann Hesse Ainda mais antiga que a tradição da crítica estética à religião é a crítica religiosa à arte, já cultivada de forma veemente pelos Padres da Igreja em seus primeiros séculos (Tertuliano, Agostinho, Jerônimo). No processo histórico, essa crítica cristalizou-se em uma série de topoi: a literatura, ao contrário da revelação cristã, não passa de uma duvidosa invenção humana; os poetas mentem. A representação de Deus e do homem na literatura é eticamente recriminável; por estar orientada pelos sentidos, ela corrompe a juventude, já que desperta e alimenta desejos baixos. E, de fato, até o século XX a literatura é vista freqüentemente como intromissão injuriosa na esfera religiosa, talvez até mesmo como blasfêmia contra a qual a religião institucionalizada precisa defender-se: não muito raramente, teólogos cristãos referiram-se a textos literários como “insolências piedosas” (Karl Barth, em crítica a Rilke9), como um “panorama do mal” (W. Grenzmann sobre a literatura do século XX10).

A crítica teológica à estética, no entanto, já alcançara um de seus pontos altos com o dinamarquês Sõren Kierkegaard. A arte não passaria, segundo ele, de um jogo descomprometido sem seriedade existencial, um exercício estético sem ethos, poesia sem anseio de veracidade. E isso tudo é estranho ao cristão que segue o Crucificado. Contudo, foi justamente o caso de Kierkegaard que revelou a dupla face dessa crítica teológica à estética. Pois a recriminação que o cristão Kierkegaard lança contra a arte é, ela própria, formulada com alto refinamento artístico e retórico. Com base nos casos de Hermann Hesse e Reinhold Schneider, queremos elucidar a continuidade que teria esse tipo de postura crítica no século XX., Hermann Hesse, de quem ainda falaremos mais pormenorizadamente ao longo deste livro, passa a viver em Tübingen em outubro de 1895. Trabalha como auxiliar de estoque na livraria Keckenhauer e mora em uma mansarda da rua Herrenberger 28. Como já acontece há vários anos, ele continua a manter correspondência com os pais, que vivem em Calw. Johannes e Marie Hesse têm uma profunda ligação com a tradição 9. BARTH, K., Kirchliche Dogmatik, vol. II/l, Zurich, 1940, p. 316. O contexto é o de uma crítica a Angelus Silesius: “O ‘caminheiro querubínico’, onde se podem ler essas vergonhas piedosas (Rainer Maria Rilhe deve ter algo semelhante em sua consciência!), saiu, na época, dotado do Imprimatur de um bispo católico-romano...” 10. GRENZMANN, W., Dichtung und Glaube. Probleme und Gestalten der ãeutschen Gegenwartsliteratur, 2a ed., Bonn, 1950, p. 14.

23

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

missionária pietista-protestante e esperam do filho, então com 18 anos, um relato detalhado sobre como está vivendo e sobre a observância de­ talhada de determinadas regras de comportamento. Até ali, eles já ■haviam tido preocupações suficientes com seu garoto, que não parecia ter sido forjado à boa maneira dos devotos missionários. Pelo contrário. O rapaz sente-se atraído pela literatura, chega mesmo a escrever alguns textos. Lessing, Goethe e Schiller, Heine e Platen são algumas de suas leituras. Um primeiro poema é publicado no periódico Deutsches Dichterheim (“Morada dos poetas”), justamente em Viena... Rapidamente passam-se dois anos da chegada de Hesse a Tübingen: surge o poema “A ‘grande valse’ de Chopin”, em estilo adolescente-empolado, que começa assim:

Um salão claro à luz de velas E o tilintar das esporas e o dourado dos galões! Em meus pulsos o sangue ecoa. Minha garota entrega-me a taça, —■ E vamos à dança. A valsa burburinha. Meu espírito efervescente, acalentado pelo vinho, deseja todo o prazer ainda intocado11. Ao mandar o poema para os pais, não admira que Hesse receba como resposta apenas alguns comentários reservados e, além disso, a indicação de uma coletânea de poemas intitulada De Deus para Deus — Canções de uma poetisa popular da Suíçay de autoria da senhora Regula Erb, do vilarejo de Mãnnedorf. Na resposta que envia a Calw, de setem­ bro de 1897, o jovem morador de Tubingen aproveita a ocasião para formular uma observação mordaz sobre a lírica religiosa: Deus esteja com a arte, mesmo que até os suíços comecem a descobrir poetisas populares! Essa atividade parece estar vivendo uma época de florescimento. E ainda mais a lírica religiosa! O campo mais movediço que conheço, um caso totalmente perdido. Quanto mais lírico, menos piedoso — e vice-versa! Os herrnhuteranos trataram de assassinar esse gênero. Peço desculpas! Mas a lírica religiosa, e em especial a lírica religiosa não-eclesiástica, protestante e pietista, já é desde o início algo tragicômico — embora isso não deva invalidar as pérolas de poetas como Gerhardt e Claudius... Entendo que meu poema11 11. HESSE, H., KindheitundJugend vorNeimzehnhimdert, vol. II (1895-1900), Frankfurt/M., 1985, p. 573.

24

SOBRE A TENSA RELAÇÀO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

sobre Chopin não os agrade. Ele não tem nada de famoso. Mas o que Wagner foi para Nietzsche, Chopin o é para mim — ou talvez ainda mais. Tudo de essencial em minha vida anímica está ligado a essas melodias quentes e viva­ zes, a essa harmonia picante, lasciva e nervosa, a toda essa música de Chopin, extraordinariamente íntima12. A mãe sente-se afrontada, mas não quer provocar o afastamento do filho: ele deve continuar mandando seus poemas, diz ela, pois uma mãe tem necessidade de ver o que se passa na mente e no universo intelectual de seus filhos. Mesmo assim, ela se permite acrescentar a seguinte advertência: Seu julgamento sobre a lírica piedosa é muito severo. Mas isso não me deixa aborrecida; também não tira de mim o que já pude usufruir, nem o que ainda usufruo com abundância — graças a Deus! Esses poemas não foram escritos para que o mundo os admirasse; neles os sentimentos vêm do coração à boca, e neles os sons consagrados a Deus estão à disposição dos que aqui esperam, como estrangeiros e peregrinos, sem poder contentar-se com o que o mundo tem a oferecer em termos de arte e sabedoria; eles são melodias da terra de origem. Pode até ser que os poemas de Gerhardt, Tersteegen, Arnold, Claudius, Hiller, Richter, Spitta, Woltersdorf e Zinzendorf tenham mesmo suas imperfei­ ções na expressão e na forma, mas são o maná diário de minha alma. E se um dia for entoada lá no alto a canção de Moisés ou do Cordeiro, então também eu espero poder cantar nesse coral com voz afinada. Isso será mara­ vilhoso! Por enquanto, posso alegrar-me com cançõezinhas mais modestas, balbuciadas pelos filhos de Deus. Creio com firmeza que as canções de Gerhardt e de Tersteegen fizeram um bem muito maior ao mundo que as obras de Goethe, Schiller ou Shakespeare, ainda que eu também as tenha em conta como boas dádivas de Deus13.

Texto digno de atenção, nascido no universo da piedade cristã. Se a anotação no diário de Brecht e seu poema sobre Dõblin são manifes­ tações das consequências tardias da dicotomia cultural entre literatura e religião, esse trecho da carta de Marie Hesse, em sua simplicidade, é um documento igualmente raro da dicotomia entre religião e literatura, um 12. Id., “Brief an Johannes e Marie Hesse”, de 25-27/9/1897, in Kindheit und Jugend..., op. cit., p. 205. 13. HESSE, M., “Brief an Hermann Hesse”, de 3/10/1897, m Kindheit undJugend..., op. cit,, p. 207.

25

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS-------------------------------------------------------------------------

testemunho da autoconsciência centenária de alguém que crê em Deus e se vê defrontado com os produtos da arte irreligiosa. Também aqui con­ vivem diferentes aspectos: s 1. A postura fundamental por trás desse texto só é compreensível quando se tem claro que ela parte da divisão deste mundo em dois: de um lado, um espaço dos filhos de Deus e dos peregrinos, um espaço da alma e dos sons desejados por Deus; de outro, um espaço da arte e da sabedo­ ria do mundo, no qual os produtos artísticos são criados para se “admi­ rar”. E esses produtos, como se diz expressamente, não são capazes de satisfazer! O mundo, portanto, está imanentemente dividido em dois campos, o da comunidade dos filhos de Deus e o da sabedoria do mundo. Além disso, também está dividido entre lá em cima e aqui embaixo, entre uma morada passageira no aqui e a verdadeira morada, no “além”. 2. Pode-se entender a autoconsciência subjacente a essa carta a partir de uma opção fundamental segundo a qual o que importa para o ser humano é esse segundo mundo, transcendente e para o qual todo ser humano estaria a caminho. Pois a verdadeira glória espera pelo homem “lá no alto”, as verdadeiras canções são a de “Moisés” e a do “Cordeiro”. Aqui, as pessoas não são literalmente nada além de “estrangeiros” e “peregrinos” a caminho do além. Caso se tenha presente essa opção fun­ damental, então é possível entender também: 3. o papel atribuído à arte nesse contexto. A arte não pode ter qual­ quer valor “em si”, porque nada tem um valor “em si” neste mundo. Ela tem, como todas as outras coisas, uma função instrumental. E dádiva de Deus, que não precisa ter qualquer outra função senão fortalecer, ilustrar e aguçar o verdadeiro sentimento de vínculo com o verdadeiro lugar de origem. A arte é meio para atingir determinado fim, e é sobretudo ali­ mento para a caminhada, durante a peregrinação do cristão devoto. Daí decorre a alusão bíblica ao maná, para os israelitas fonte de força para a caminhada no deserto. Portanto, a arte dispensa qualquer esplendor, não precisa de nada grandioso ou admirável. Ela pode ter até mesmo “imper­ feições na expressão e na forma”. Basta um coração piedoso, e as palavras já vêm à boca; bastam as “cançõezinhas mais modestas, balbuciadas pelos filhos de Deus”. Em outras palavras: diante de Deus — verdadeira deter­ minação do ser humano — a arte se vê radicalmente relativizada.. 4. Somente a partir dessa convicção piedosa, segundo a qual se deve relativizar tudo nesta Terra por causa de Deus, pode-se compreen­ der a soberania e a ousadia com que essa mulher simples, em uma frase 26

SOBRE A TENSA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

lapidar, contrapõe as canções cristãs edificantes e singelas de um Paul Gerhardt ou de um Gerhard Tersteegen às obras de Goethe, Schiller e Shakespeare. O que são Goethe, Schiller e Shakespeare diante da singe­ leza marcante e da verdade inamovível de poemas como “Ó, cabeça co­ berta de sangue e ferimentos” (P. Gerhardt, 1656) ou “Jubilai nos céus, entoai em coros vossa alegria, ó, anjos” (G. Tersteegen, 1731)? E para manifestar suas convicções de forma provocativa, indo ao âmago da questão, a filha de missionários de Calw ainda escreve que essas canções teriam feito “um bem muito maior” ao mundo do que as obras dos três grandes. Em suma, não poderia haver palavras mais contrárias do que essas à relação entre arte e religião. Se para poetas líricos como Benn e Brecht Deus era considerado “um péssimo princípio estilístico” e a fé religiosa de um artista revelava-se como grande inimigo da boa literatura, quem crê considera o bom estilo precipuamente irrelevante e a arte uma ameaça à fé mais profunda. Para Hermann Hesse, não adiantou defender-se na carta seguinte a Calw, pois aos olhos da mãe ele deixava tudo ainda mais difícil ao escre­ ver: “Há muito tempo tenho a firme convicção de que para os artistas a estética substitui a moral (...) e de que a arte, a literatura em primeiro lugar, não está aí para fazer coisas boas, em sentido moral”14. Hesse tratou de confirmar o argumento em sua primeira publicação em prosa (“Hora depois da meia-noite”, 1899), em que faz surgir uma “musa febril”, pela qual dá expressão a todas as fantasias eróticas que se podem esperar de alguém no auge de seus 21 anos. Os piores temores de Marie Hesse quan­ to à função moralmente questionável da arte irreligiosa acabaram se con­ firmando nesse texto. Imediatamente após a leitura, ela escreve ao filho:

Passei apressada pelo texto e então fiquei sem dormir à noite. A “musa febril” esquiva-se como uma serpente, é a mesma que rastejou até o Paraíso e que ainda hoje envenena por completo qualquer paraíso de amor e poesia. Quanto a ela, Deus disse a Caim: “Não deixe tua vontade sucumbir a ela”. Oh, meu filho, amaldiçoa-a, odeia-a, ela é impura e não tem qualquer direito a você, pois você é propriedade de Deus, foi conferido a ele pelo batismo e muito antes disso já havia sido posto em seu coração, por seus pais. Rogue por “pensamen­ tos elevados e um coração puro”. Muito embora a forma seja tão bela, o con­ teúdo nobre ainda falta. Mantenha-se casto! O que sai da boca do homem, e ainda mais da pena que ele manuseia, toma-o impuro —- já pensou nisso? (...) 14. Id., ibid., p. 209. 27

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

Meu coração se revolta contra tal veneno. Há um mundo da mentira onde o que é baixo, animalesco e impuro vale como sendo belo. Há um mundo da verdade, da justiça e da paz que nos mostra como pecado o que é pecado, e nos ensina a odiar o pecado, introduzindo-nos à liberdade divina. O homem é vocacionado a aproximar-se do elevado, do eterno e do glorioso — será que ele quer lamber o pó? Filho querido, Deus o ajude e o abençoe e o salve15.

A arte como ameaça à fé mais profunda, como espaço da inversão da ordem almejada por Deus, como mundo da mentira e do engano, onde se louva o que é baixo, cultua-se o que é animal, e onde se toma o que é impuro por belo. A crítica de Kierkegaard à estética revela aqui uma ação subterrânea. A antítese a Benn e Brecht pode ser assim formulada: a arte, para os cristãos que seguem o Crucificado, permanece como algo estranho.

4. Sobre a bipartição de toda arte: Reinhold Schneider Podemos aprofundar um pouco mais essa problemática a partir do caso de Reinhold Schneider. E para encerrar esse nosso percurso volta­ mos a retomar o início, aquele 15 de novembro de 1955, quando Gottfried Benn e Reinhold Schneider vieram a público para um duelo verbal, na emissora Westdeutsche Rundfunk em Colônia. “A literatura deve tornar a vida melhor?” Já conhecemos a posição de Gottfried Benn: arte não é cultura. Quem escreve está contra o mundo, vive em um vazio impiedoso. A literatura é uma arte monológica... E o que dirá Reinhold Schneider, o poeta cristão?16 Irá expor idéias religiosas, humanas e consoladores, tal como se espera de um poeta cris­ tão, em determinados círculos? Irá apresentar-se como defensor da cultu­ ra, e recolocar o escárnio de um Gottfried Benn em seu devido lugar? Embora possa parecer estranho, não é isso que ele faz: já no início de sua intervenção, Schneider insere-se de modo consequente na história solitá­ ria dos grandes poetas. Eduard Mõrike? Theodor Storm? Cada um deles não sofreu de sua “ferida incurável”? Será que alguém poderia pensar — pergunta Schneider — que Eduard Mõrike tivesse declamado os versos de seu pequeno poema primaveril com a intenção de tornar a vida melhor? 15. Id., ibid., pp. 357 s. 16. SCHNEIDER, R., “Soli die Dichtung das Leben bessern?”, in R. Schneider Gesammelte Werke, op. cit., vol. VI, pp. 277-289.

28

SOBRE A TENSA RELAÇAO ENTRE RELIGIÃO E LITERATURA

Isso seria um absurdo! E com certeza: para Schneider há uma grande diferença entre ele e Benn, que consiste no fato de o autor cristão enten­ der o poema como uma “resposta”, em certo sentido. A literatura seria “a enunciação ou presentificação verbal de uma realidade interior que se eleva à condição de uma forma e se volta à sensibilidade”. Se essa reali­ dade interior estivesse plena da convicção de que Cristo é rei e salvador — e rei em um sentido profundamente contraditório, isento de quaisquer noções políticas, ainda que do tipo clerical-teológico —, talvez aí então tivesse origem um poema cristão. Declarações inusitadas para um homem visto como poeta firmemen­ te ligado à Igreja. E tomam-se ainda mais inusitadas quando esse mesmo homem, no momento seguinte, fala de poetas cristãos que teriam produzi­ do seus textos literários mais completos e singulares justamente quando movidos pela intenção de falar de modo cristão por via indireta. Seria esse o caso de Annette von Droste-Hülshoff. Afinal, a poetisa alemã não teria escrito seus poemas mais bem acabados justamente ao fazê-los suigir de uma região muito pouco iluminada pela luz de Cristo, isto é, da morada penumbrosa de mortos irredentos perpassada pela melancolia, do descam­ pado, do pântano? E o poeta Lenau? Não lutou a vida inteira por enten­ der o sofrimento cotidiano presente na natureza como cruz, já que preten­ dia ser o porta-voz desse sofrimento, aproximando seu cantar ao do pás­ saro que canta sobre a cruz do cemitério? E Brentano? Sua melodia envolvente não começou a silenciar quando ocorreu uma guinada cristã em sua vida? De fato, não havia outra pessoa tão consciente da problemá­ tica de uma literatura cristã quanto Reinhold Schneider, e nenhum outro sofreu mais sob a vivência dessa “possibilidade impossível” que é viver ao mesmo tempo como poeta e como alguém que crê; “Não devemos escon­ der de nós mesmos que o cristianismo, a arte cristã e a vida cristã são, eles mesmos, uma esfera do fracasso!” Já em 1931 — em sua fase pré-cristã, pois ele regressou à Igreja expressamente apenas em 1938 — Schneider anotara o seguinte em seu diário: “No fundo, não é possível haver qualquer arte cristã. Uma cruz feita de duas ripas ou dois riscos de carvão na parede já deveriam ser suficientes”17. Aqui lampeja o mesmo pensamento básico presente na crítica à estética de origem pietista: a forma artística não pode ser nada “para si mesma”, deve sempre remeter para fora de si — para o que é 17. Id„ Tagebuch 1930-1935, Frankfurt/M., 1983, p. 342.

29

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

particular e decisivo. A escassez da forma é apenas uma prova de que está representando algo diferente. A obra de arte não passa de um signo que não significa o que pretende significar. x Mas a controvérsia entre arte e religião irrompeu em Schneider de forma radical a partir de 1938, quando ele voltou a estar vinculado à doutrina da Igreja. Segundo ele mesmo, a “dúvida kierkegaardiana” estava cravada nele até os ossos e era-lhe impossível livrar-se dela. Sempre mais contundente e radical, ele se perguntava: “De que é capaz o jogo, diante da seriedade última? Onde há no Evangelho, em toda a Sagrada Escritura, uma única frase razoavelmente suficiente em que a arte possa fundamen­ tar-se? Já sabemos sobre as dádivas do Espírito que devemos administrar, cada qual conforme seu talento e sua missão. Mas e a arte? A transforma­ ção em uma forma de representação? Em aparência? E o engano? E o anseio inegável por aplauso que está por trás disso, que de fato sempre tem algo demoníaco e demonizador em si...? Cabe a cada um responder a essas perguntas, como puder... Mas é preciso ter claro que a cultura não é um anseio do cristianismo. Seu anseio é a vida eterna de todos, a vida eterna que já começa aqui, agora, neste momento; a vida eterna que chega mesmo a curvar-se diante da morte, mas sem se romper”18. Uma vez mais, apresenta-se a antítese a Brecht e Benn. A tese de que o artista que se torna religioso trai a arte vem contrapor-se uma antítese radical: o ser humano que se torna artista corre o perigo de trair a Deus, de fazer da arte seu deus. Deus é um mau princípio estilístico? A essa máxima da crítica estética à religião, a crítica religiosa à estética contrapõe a seguinte: a arte parece ser um mau princípio para a fé.

Diante desse horizonte, pretendemos sair à procura de vestígios que nos possibilitem exemplificar, por meio de quatro casos concretos, a ten­ sa relação entre arte e religião, literatura e fé. Para tanto, é preciso em primeiro lugar que os escritores digam tudo que têm a dizer. Uma teolo­ gia que insiste em interrompê-los antes que tenham acabado de falar põe em risco a própria credibilidade. Por isso, trata-se aqui de ouvi-los, de estar aberto ao que têm a dizer e de delinear suas idéias com base no traçado que esboçaram em seus textos. Só então, ao fim deste livro, pretendo, como teólogo, aceitar o desafio proposto pela literatura e confrontá-lo com minhas próprias experiências de Deus. A palavra-cha18. Id., "Der Bildungsauftrag des christlichen Dichters”, in R. Schneider, Gesammelte Werke, op. cit, vol. IX, pp. 436 s.

30

.---- —------------------------------------- SOBRE A TENSA RÈLACAO ENTRE REUGIÀO E LITERATURA

ve, no final, será “teopoética”. E o interesse heurístico que orientará as reflexões pode traduzir-se pelas perguntas a seguir: A literatura do século XX oferece critérios estilísticos para um discurso teológico dotado de credibilidade? A teologia pode encontrar na literatura critérios que difi­ cultem ou facilitem seu próprio falar sobre Deus? A teologia cristã, que deve dar conta da revelação de Deus presente no acontecimento “Jesus Cristo”, tem possibilidade de desenvolver algo semelhante a uma estilística do discurso adequado sobre Deus, tomando por base os poetas? Eis, pois, o que se esconde por trás da palavra “teopoética”: não a procura por outra teologia, não a substituição do Deus de Jesus Cristo pelo dos dife­ rentes poetas, mas a questão da estilística de um discurso sobre Deus que seja atual e adequado. Somente ao final será possível julgar se essa ten­ tativa terá sido bem-sucedida.

Franz Kafka

II

Franz Kafka E A INESCRUTAB1LIDADE DO MUNDO *

Ele é um cidadão da terra, livre e bem seguro, pois está preso a uma corrente longa o bastante para dar-lhe acesso a todos os espaços terrestres, mas não longa demais, de modo que nada poderá arrastá-lo por cima das bordas da terra. Ao mesmo tempo ele é um cidadão do céu, livre e bem seguro, pois está preso a uma corrente celeste cujas medidas foram calculadas de maneira seme­ lhante. Quando deseja ir à terra, é refreado pela coleira do céu; quando deseja ir ao céu, é contido pela da terra. E apesar disso tem todas as possibilidades, e sente que as tem; ele até se recusa a atribuir tudo isso a um erro ocorrido no primeiro acorrentamento1.

Seriam essas as palavras de um homem cuja obra parece estar lite­ ralmente estendida entre o céu e a terra, impregnada de questões religio­ sas de profundidade dostoievskiana, cujo pensamento e esforço visaram unicamente a ilustrar mais uma vez, com o auxílio da literatura, as in­ dagações religiosas fundamentais da humanidade? Seria Franz Kafka um homem que reduziu seu fazer literário à fórmula: “Esforço-me por ser um verdadeiro aspirante à graça. Espero e contemplo”?* 12 Um poeta que * Tradução de Elvira Horstmeyer 1. KAFKA, F., “Betrachtungen”, in id., Hochzeitsvorberei.tu.ngen auf dem Lande and andere Prosa aus dem Nachlafí., Frankfurt/M., 1983. p. 35. As citações são extraídas da edição de M. Brod, Obras completas em 7 volumes. 2. JANOUCH, G., Gesprãche mit Kafka. Aufzeichnicngen and Erinnerungen. Frank­ furt/M., Fischer, 1961, p. 184. Atualmente é posta em dúvida a autenticidade desses diálogos.

35

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

se sentia predestinado a “fazer o que é isoladamente mortal transcender à vida infinita, e o contingente ao determinismo da lei”?3 Franz Kafka, um homem para quem o poeta ainda cumpria “uma missão profética”4 s neste mundo?

1. Um escritor não-religioso É curioso: quem, como teólogo, se aproximar do escritor Franz Kafka (1883-1924) e, a partir de um interesse religioso, examinar suas narrati­ vas e romances, suas novelas e seus pequenos textos em prosa à procura de temas, personagens e da problemática religiosa terá uma decepção!5 Gerações de teólogos debruçaram-se com entusiasmo sobre a obra do judeu Franz Kafka e não perceberam que a totalidade dos textos literá­ rios, publicados ou inéditos, não apresentam temas, personagens ou pro­ blemas especificamente religiosos. É muito raro Kafka descrever diretamente personagens religiosos, como faz, por exemplo, num de seus primeiros fragmentos em prosa, 3. Id., ibid., p. 191. 4. Id., ibid. 5. Biografias: WAGENBACH, K., Kafka, Hamburg: Rowohlt, 1964. BINDER, H., Franz Kafka. Leben und Persbnlichkeit, Stuttgart, 1979 (edição especial de: Kafka-Handbuch, vol. I, ed. por H. Binder). PAWEL, E., Das Leben Franz Kafkas. Bine Biographic (ed. americana, 1984; ed. alemã, München, Rowohlt, 1986. Recepção mais recente: SOKEL, W. H., Franz Kafka. Tragik u.nd Ironie. Zur Struktur einer Kunst, München-Wien, Fischer, 1964; POLITZER, H., Franz Kafka, der Kilnstler, Frankfurt/M., 1965; BEICKEN, P. U., Franz Kafka. Bine kritische Einführung in die Forschung, Frankfurt/M., 1974; BINDER, H., Kafka. Kommentarzu samtlichen Erzahlungen, München, 1975; id., Kafka. Kommentar zu den Romanen, Rezensionen, Aphorismen undzwm Brief an den Vater, München, 1976; id., Kafka in neuerSicht. Stuttgart, 1976; id. (edf, Kafka-Handbuch in2Banden, Stuttgart, 1979; DIETZ, L., Franz Kafka, Stuttgart: Metzler,1975; HELLER, E., Franz Kafka, München, 1976. A dimensão religiosa: RIES, W., Transzendenz als Terror. Bine Religionsphilosophische Studie liber Franz Kafka, Heidelberg, 1977; JENS, W., e KÜNG, H., Dichtung und Religion, München, 1985, pp. 286-324; ZIMMERMANN, H. D., Der babylonische Dolmetscher. Zu Franz Kafka und Robert Walser, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1985; SCHOEPS, J. H. (ed.), Im Streit um Kafka und dasJudentum. Max Brod-H.J. Schoeps Briefwechsel, Konigstein/Ts., 1985; GRÕZINGER, K. E., e ZIMMERMANN, H. D. (ed.), Kafka und das Judentum, Frankfurt/M., 1987. NOBLE, C. A. M., Dichter und Religion. Thomas Mann-Kafka-T. S. Eliot, Bern, 1987; JOFEN. J., The Jewish Mystik in Kafka, New York, 1987; ROBERTSON, R., Kafka, Juãentum-Gesellschaft-Literatur (ed. inglesa 1985, ed. alemã, Stuttgart, 1988).

36

FRANZ KAFKA E A INESCRUTAB1LIDADE DO MUNDO

“Conversa com aquele que ora”, publicado em março/abril de 1909, quando tinha 26 anos; há também no romance O processo o clérigo do presídio, que envolve o herói Joseph K. numa discussão sobre a culpa, ou ainda o pároco mencionado em Um médico rural que desfia uma a uma suas vestes litúrgicas. Fica bastante claro que esses personagens não têm função religiosa, mas apenas ilustrativa de determinado meio social. “Houve uma época em que dia após dia eu ia a uma igreja, pois uma moça, por quem eu me apaixonara, ali rezava ajoelhada durante meia hora; enquanto isso eu podia contemplá-la calmamente” — assim começa “Conversa com aquele que ora”6: o personagem desperta a atenção do narrador não por ser piedoso e sim por seu comportamento bizarro na igreja. E a presença do narrador na igreja nada tem a ver com a fé religiosa, apenas com a fascinação por uma moça. Não é diferente ó que acontece na prosa kafkiana com o vocabulário de caráter religioso. Deveriamos, quando o herói de “A metamorfose”, Gregor Samsa, perde “o trem das cinco horas”, tirar conclusões sobre a relação conflituosa de Kafka com o Pentateuco (os cinco livros de Moisés), ou quando esse personagem também perde o “trem das sete” pensar “nos sete sacramentos, nas sete dores da mãe de Deus, nas sete virtudes cris­ tãs”, como fez um intérprete de ousada habilidade combinatória?7 No final de “O veredicto”, quando Georg Bendemann sai correndo sob o impacto da condenação do pai, o fato de a criada que se dispunha a subir as escadas exclamar “Jesus” deveria levar-nos a erigir catedrais de reden­ ção cristã ao herói que se precipita para a morte? O fato de o agrimensor K. não conseguir acesso e nem mesmo aproximação ao mundo enigmá­ tico do castelo deveria levar-nos a concluir — como fez Max Brod — que ali esteja sendo narrado o que a teologia denomina “graça”, a condução divina dos destinos do homem?8 Deveriamos ainda, a partir das palavras-chave de Kafka, veredicto, metamorfose, lei, mensagem, fratricídio, pro­ vação, volta a casa, todas oriundas do âmbito religioso, concluir que nelas se manifesta um escritor religioso? 6. KAFKA, F., “Gesprách mit dem Beter”, in id., Erzãhlungen, Frankfurt/M., 1983,

p. 9. 7. WEINBERG, K., Kafkas Dichtungen. Die Travestien des Mythos. Bern/München, 1963, p. 235. 8. BROD. M., NachwortzuE Kafka “Das Schlofi”, Frankfurt/M., 1983, p. 349. Todos os trabalhos de Brod sobre Kafka estão reunidos agora num livro de bolso da editora Fischer, Über Franz Kafka, Frankfurt/M., 1974.

37

os

escritores e as escrituras

Nada disso. Trata-se, em todos os casos, das conseqüências tardias de um processo de secularização lingüístico, que encontrou na obra kafkiana um de seus primeiros pontos culminantes no século XX. Todas essas pa­ lavras-chave, oriundas da esfera religiosa, adquiriram autonomia num ambiente lingüístico totalmente secularizado; não podem ser consideradas religiosas mas devem ser interpretadas de forma precisa em sua função.

Eu era rígido e frio, eu era uma ponte, estava estendido sobre um abismo. Deste lado estavam encravadas as pontas dos pés, daquele, as mãos; com uma mordida firmei-me no barro quebradiço. As abas da minha casaca esvoaçavam ao meu lado. Lá embaixo rumorejava o arroio gelado das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intransitáveis, a ponte ainda não figurava nos mapas. Assim jazia eu e esperava; tinha de esperar. Nenhuma ponte, uma vez construída, pode deixar de ser ponte sem desmoronar. Esse é o início do texto “A ponte” (de meados de dezembro de 1916)9, em que o autor não descreve a transcendência, mas a situação funda­ mental do homem, estendido entre dois pólos, literalmente dependurado sobre um abismo. Não. Quem, na sucessão de Max Brod, se sinta inclinado a interpretar os textos kafkianos como codificações alegóricas de mensagens religiosas ou queira traduzir a linguagem imagética de Kafka para uma nomenclatura teológica fixa não entendeu nada de sua complexidade. Onde estaria, então, na obra de Kafka o significado religioso? Se olharmos para seus personagens e para o modo como suas histórias são contadas, compreenderemos gradualmente em que medida essa obra tem um significado também para o leitor religioso.

2. Seus personagens: habitantes de mundos intermediários São bastante singulares os personagens que encontramos nas nar­ rativas do jurista de Praga que aos 25 anos, a partir de 1908, começa a publicar seus trabalhos. Temos o diálogo com alguém que ora e também uma conversa com um bêbado; ora é uní jovem comerciante que certo dia se vê condenado à morte, ora é o caixeiro-viajante que acorda certa manhã 9. KAFKA, E, “Die Brücke”, in id., Beschreihung eines Kampfes. Novellen, Skizzen, Aphorismen aus dem Nachlafl, Frankfurt/M., 1983, p. 84.

38

FRANZ KAFKA E A INESCRUTAB1LIDADE DO MUNDO

metamorfoseado num inseto; há um médico rural que, chamado a aten­ der um doente grave, encontra, ele próprio, a morte, e também um sapa­ teiro, no fragmento “Uma folha antiga”, em cuja cidade os nômades acamparam e que não consegue evitar a ruína de sua pátria. São de fato estranhas as figuras que habitam a obra de Kafka: uma criatura híbrida entre homem e macaco, como em “Um relatório para uma Academia”, para quem o retorno à condição de símio é tão impossível quanto a aceitação total de ser humano; um oficial no limite entre nor­ malidade e loucura, que vive Na colônia penal e se mata no final com a máquina de tortura genialmente construída; um trapezista, no conto “Pri­ meira dor”, permanece dia e noite no trapézio, e sua ambição máxima é conseguir mais um trapézio para seus exercícios; um artista ãafome, que não pôde encontrar o alimento que lhe agrada; uma criatura no limite entre a morte e a vida, o caçador Graco, um morto obrigado a viver porque perdeu o último barco que deveria tê-lo levado para a eternidade. E repetidamente Kafka descreve celibatários: não só Georg Bendemann e Gregor Samsa, mas também Josef K. e o agrimensor, sem falar dos textos em prosa “A infelicidade do celibatário” ou “Blumfeld, um velho solteirão”... Em Kafka, todos os personagens são limítrofes, habitantes de dois mundos, caminhantes da fronteira entre o sonho e a realidade, a vida e a morte, o ser e o não-ser, ou solitários, viajantes, pessoas sem pátria, sem paz, sem identidade definida. São eles que tornam a obra do judeu de Praga tão inconfundível. Mas é curioso: todos esses personagens, ainda que pertençam a mundos intermediários, não têm um papel social que os predestine a quedas trágicas, não têm origens espetaculares nem se destacam por uma excepcional grandeza. Não é importante quem sejam mas o que acontece com eles, o que lhes sucede e o que se possa demonstrar por meio deles. Em outras palavras: quem vier a confrontar-se com esses personagens será compelido a rever seus valores, será, ele próprio, atraído a espaços intermediários onde a normalidade parecerá suprimida, ver-se-á defron­ tado com uma visão totalmente diversa da realidade. É precisamente isso, porém, que as histórias de Kafka querem mostrar: em vez de transforma­ ções com nexos causais elucidaveis, súbitas transmutações; ao contrário da desenvolvida capacidade de discriminação de indivíduos sensatos, a inesperada incriminação desses mesmos indivíduos; não a trajetória de uma vida com muitas etapas biográficas, mas a repentina suspensão do

39

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

curso vital. “Psicologia, pela última vez”, é também o que Kafka diz num de seus aforismos!1011 As primeiras histórias de Kafka começam assim ou de forma similar, x narrando o cotidiano e sugerindo normalidade:

Quando se vai passear à noite por uma rua e um homem já visível de longe — pois a rua sobe à nossa frente e faz lua cheia — corre em nossa direção, nós não vamos agarrá-lo mesmo que ele seja fraco e esfarrapado, mesmo que al­ guém corra atrás dele gritando, mas vamos deixar que ele continue correndo. Pois é noite e não podemos fazer nada se a rua se eleva à nossa frente na lua cheia, e além disso talvez esses dois tenham organizado a perseguição para se divertir, talvez ambos persigam um terceiro, talvez o primeiro seja perseguido inocentemente, talvez o segundo queira matar e nós nos tomássemos cúmpli­ ces do crime, talvez os dois não saibam nada um do outro e cada um só corra por conta própria para sua cama, talvez sejam sonâmbulos, talvez o primeiro esteja armado. E fmalmente — não temos o direito de estar cansados, não bebemos tanto vinho? Estamos contentes por não ver mais nem o segundo homem.

E o que o autor narra num de seus primeiros textos, “Os que pas­ sam por nós correndo”, impresso pela primeira vez no início de março de 1908 na revista Hyperion, quando Kafka publicou oito composições em prosa sob o título “Contemplação”11. Característico dessa cena — assim como da obra de Kafka em geral — é o início com um episódio rotineiro, um passeio no meio da noite nesse caso. Mas esse passeio noturno não é narrado com tranquilidade. Desde o começo joga-se com possibilidades (“se”), com hipóteses sobre como se reagiría se um homem viesse ao nosso encontro. É esse jogo com sucessivas possibilidades que interessa a Kafka. Pois são essas as possi­ bilidades que modificaram a realidade, então uma dramaturgia interna desenrola-se no transeunte da noite: talvez, talvez, talvez... O caminhan­ te cerca-se de um muro de hipóteses, cujo único objetivo é justificar seu distanciamento e evitar que lhe dirijam a palavra. Mas é evidente que, uma vez estabelecida a possibilidade do encontro, a realidade do cami10. Id.,“Das vierte Oktav-Heft”, in Hochzeitsvorhereitungen..., p. 79. 11. Id., Contemplação e O foguista, trad. Modesto Carone, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 35 [Sobre a vida e a obra do jovem Kafka: KURZ, G. (ed.), Der junge Kafka. Frankfurt/M., 1984.J

40

FRANZ KAFK/X E A INESCRUTABIL1DADE DO MUNDO

nhante, considerada segura, sofre um transtorno, e a inquietação invade seu mundo protegido. Semelhante é o que ocorre no fragmento “O passageiro”, também parte de “Contemplação”: Estou de pé na plataforma do bonde elétrico e totalmente inseguro em relação a minha posição neste mundo, nesta cidade, na minha família. Nem de passa­ gem eu seria capaz de apontar as reivindicações que poderia fazer, com direito, na direção que fosse. Não posso de modo algum sustentar que estou nesta plataforma, que me seguro nesta alça, que me deixo transportar por este bonde, que as pessoas se desviam dele ou andam calmamente ou param diante das vitrines. É claro que ninguém exige isso de mim, mas dá no mesmo. O bonde se aproxima de uma parada, uma jovem se coloca perto dos degraus pronta para descer. Aparece tão nítida para mim que é como se eu a tivesse apalpado. Está vestida de preto, as pregas da saia quase não se movem, a blusa é justa e tem uma gola de renda branca fina; ela mantém a mão esquerda espalmada na parede do bonde, e a sombrinha da mão direita se apóia no penúltimo degrau mais alto. Seu rosto é moreno, o nariz levemente amassado dos lados termina redondo e largo. Ela tem cabelos castanhos fartos e pelinhos esvoaçando na têmpora direita. Sua orelha pequena é bem ajustada, mas por estar próximo eu vejo toda a parte de trás da concha direita e a sombra da base. Naquela ocasião eu me perguntei: como é que ela não está espantada consigo mesma, conserva a boca fechada e não diz coisas desse tipo?12

O ponto de partida é novamente uma situação cotidiana banal. A narrativa trata de um homem num bonde elétrico. Ficamos sabendo que ele se sente inseguro sobre sua posição neste mundo, nesta cidade ,e na família, e essa palavra “posição” vai exigir um exame mais cuidadoso de nossa parte. A circunstância eventual de encontrar-se num bonde dá ensejo a uma reflexão do herói sobre sua verdadeira posição neste mun­ do. Predominam a insegurança e a falta de clareza sobre os porquês: por que estar aqui, por que estar se segurando nesta alça, por que deixar-se transportar por este bonde? De um lado, a própria indagação, o porquê, transformou-se num enigma; de outro, não há mais instâncias a quem dirigir a indagação; expressar o porquê tornou-se supérfluo e indiferente. Então acontece a confrontação com uma jovem que no momento se prepara para desembarcar do bonde. Como se operasse uma câmera, o 12. Id., ibid., pp. 37-38.

41

OS ESCRITORES E ÀS ESCRITURAS

narrador repentinamente focaliza a moça. Faz uma tomada em primeiro plano, registrando detalhes mínimos, que dessa forma adquirem uma aura de significação especial. E isto é decisivo: por meio do registro exato de todos os detalhes do corpo, a começar da saia, passando pela blusa até o rosto, o nariz, os cabelos e a orelha, essa jovem concreta assume uma significação particular, que não é explicada, apenas sugerida pelo registro minucioso de todos esses pormenores. O aparecimento da jovem no bonde transforma-se num episódio de sentido, sem que esse sentido seja elucidado. A jovem é um signo sem referências, um símbolo sem signi­ ficado específico. E a peça em prosa termina com uma pergunta enigmá­ tica, que é uma projeção do observador sobre a moça: o assombro pelo fato de ela não se assombrar com sua própria posição neste mundo...

3. Suas histórias: estratégias de enigmação da realidade Duas das primeiras composições de Kafka demonstram isto: quem se ocupa com textos kafkianos não é confrontado com a problemática religiosa direta, mas com a questão da própria realidade, que — como em “Os que passam por nós correndo” — é obstada por numerosas outras possibilidades ou cujo sentido — como em “O passageiro” — é posto radicalmente em dúvida. Em outras palavras: não é além dos textos, mas em sua própria estrutura que está a enigmação kafkiana da realidade. Os textos não remetem a um “além”, a um espaço metafísico qualquer ainda a ser decifrado mas, por meio da estratégia narrativa, rompem com a realidade unidimensional, até então considerada segura. Em sua primeira narrativa, “O veredicto” — que, segundo suas próprias declarações, teria sido escrita numa única noite, de 22 para 23 de setembro de 1912, e com a qual começa o ciclo de suas obras mais significativas —, Kafka, o funcionário de um Instituto de Seguros, elevou a um virtuosismo máximo sua estratégia de representar a insegurança13. Pois o sentido mais profundo desse conto é apreendido tão-somente quando nele se compreende o problema da refração do ponto de vista. E é nesse aspecto, nessa refração, que reside a própria leitura da realidade. 13. Para um entendimento da narrativa “O veredicto”, cf. NEUMANN, B., Franz Kafka. Das Urteil. Text, Materialien, Kommentar, Hanser Literatur-Kommentare, München-Wien, 1981.

42

FRANZ KAFKA E ?\ INESCRUTABlLiDADE DO MUNDO

Como de costume, também essa narrativa começa de maneira ino­ fensiva. Tudo está restrito inicialmente ao quarto do jovem comerciante Georg Bendemann, que, após a morte da mãe há dois anos, divide a casa e a direção de uma loja com seu velho pai. Somos informados de que Georg acabara de escrever uma carta a um amigo em São Petersburgo. Atualmente, esse amigo tinha uma casa comercial ali, mas seus negócios iam mal e ele vacilava entre o alheamento que sentia na nova pátria e o que sentiria caso retornasse à pátria anterior. Georg, após a morte da mãe e o afastamento parcial de seu pai da firma, tornara-se um comer­ ciante bem-sucedido e noivara com uma moça de família bem situada. Por consideração, nada contara ao amigo sobre seus êxitos comerciais. Não queria provocar a inveja dele nem aumentar-lhe a insatisfação. Mas agora, atendendo ao desejo expresso de sua noiva, Georg relatava ao amigo a feliz realização do noivado, convidando-o ao mesmo tempo para o casamento. Ficamos sabendo de todos esses fatos a partir do ponto de vista de Georg; essas características, relatadas no espaço desse personagem, suge­ rem o seguinte: Georg Bendemann é um jovem bem-sucedido nos negó­ cios e feliz na vida privada; ele não só toma conta de seu velho pai como demonstra comovente simpatia pela vida do amigo; prefere retrair-se discretamente e ocultar-se de maneira modesta a provocar-lhe sentimen­ tos de inveja. Munido dessas informações, o leitor segue Georg até outro espaço: é o espaço do pai, um quarto localizado além do corredor, ao qual Georg — como consta — “não ia já fazia meses”14, pois encontrava o pai quase sempre na loja, quando almoçavam juntos num restaurante ou na sala de estar comum. Pela primeira vez em muitos meses, portanto, Georg entra no mundo particular de seu pai. Paralelamente a essa mudança de espaço ocorre subitamente uma mudança de ponto de vista. A dramaturgia da realidade, em Kafka, é sempre uma dramaturgia do espaço; nela vai apoiar-se também a tensão do conto “A metamorfose”, no qual analogamente os espaços de uma casa constituem os espaços dramáticos da realidade. Mudança de espaço é mudança de foco narrativo. De fato, tudo é diferente a partir do ponto de vista do pai. Inicialmente o pai parece assentir à comunicação exteriormente inocente de Georg de que final­ 14. KAFKA, F., O veredicto e Na colônia penal, trad. Modesto Carone, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 15.

43

os ESCRITORES E AS ESCRITURAS

--------

--------------------------------------------------------------

mente anunciara o noivado ao amigo em São Petersburgo. As primeiras inseguranças surgem quando o pai subitamente adverte Georg a que diga “toda a verdade”. Desde a morte da mãe “certas coisas que não são nada bonitas” teriam acontecido. Sim, o pai pede a Georg que não o “engane”. Enganar? Enganar num certo fato, e de repente o pai quer saber se ele “realmente tem esse amigo em São Petersburgo”15. A reação de Georg inicialmente ainda é tranqüila: ele se preocupa com o estado de saúde do pai e interpreta suas afirmações como respostas de um homem idoso, enfraquecido psíquica e fisicamente. Censura-se por ter descuidado do pai, principalmente quando vê que a roupa de baixo dele não está muito limpa. Nesse momento decide levá-lo para sua futura residência. Então carrega-o para a cama, e novamente tudo parece estar bem; o ponto de vista do filho está desimpedido, claro, intacto. Mas é aí que o pai ataca pela segunda vez. Quando, bem-intenciona­ do, o filho o acalma: “Fique tranquilo, você está bem coberto”, o pai atira fora a coberta e põe-se em pé na cama, atacando frontalmente o filho. Inesperadamente, o pai declara que também conhecia o amigo em São Petersburgo; inesperadamente, revela que descobrira o filho escrevendo “cartinhas mentirosas para a Rússia”; inesperadamente, enfim, o pai qua­ lifica a decisão do filho de casar-se como iniciativa egoísta de um devasso: “O senhor meu filho decidiu se casar... só porque ela levantou a saia... só porque a nojenta idiota levantou a saia... só porque ela levantou a saia assim, assim e assim, você foi se achegando, e para que pudesse se satis­ fazer nela sem ser perturbado você profanou a memória da sua mãe, traiu o amigo e enfiou seu pai na cama para que ele não se movesse”16. E é assim que se dá o golpe decisivo: o filho, que parecia ser um homem feliz, bem-sucedido, preocupado com o bem-estar do pai e discre­ tamente reservado, a partir do ponto de vista do pai torna-se um egoísta desrespeitoso, insensível e embusteiro. E o pai? Ele, que do ponto de vista do filho parecia ser um homem envelhecido, negligenciado, psíquica e fisicamente enfraquecido, revela-se um ancião tirânico, conspirador e astucioso, que inveja o sucesso do filho, imputa-lhe culpa em relação à morte da mãe e lança contra ele o amigo em São Petersburgo. Um pai que fica à espreita do filho na moradia comum... E assim, depois de atirar para longe a coberta e nesse gesto também fazer aparecer todas as desilusões e deformações, ele condena o filho à 15. Id., ibid., p.18. 16. Id., ibid., pp. 21-23.

44

FRANZ KAFKA E A INESCRUTABiUDADE DO MUNDO

morte: “Agora portanto você sabe o que existia além de você, até aqui sabia apenas de si mesmo! Na verdade você era uma criança inocente, mas mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica! Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!”17

E isso, pois, que as narrativas de Kafka apresentam: o inopinado confronto do homem com um ponto de vista diferente do até então con­ siderado certo e tomado como garantia contra qualquer crise. A inespe­ rada revelação de que nos enganamos, de que os pressupostos tidos como seguros são mentiras e de que tudo que até este momento auto-sugestivamente tomamos por verdadeiro é totalmente diferente. “Agora portan­ to você sabe o que existia além de você, até aqui sabia apenas de si mesmo!” — aí está a chave da estratégia kafkiana de enigmação da rea­ lidade; é aí que, postas a descoberto as ilusões, retira-se do cidadão o chão seguro que tinha sob os pés. “Na verdade você era uma criança inocente, mas mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica!” — aí está a chave da antropologia de enigmação kafkiana, o desmascaramento da face ambígua da realidade, na qual a qualquer momento quem é bom pode transformar-se em demônio, o inocente tornar-se culpado, o crente revelar-se um iludido. E o reverso dessa problemática? Ela consiste no recalcamento dessa realidade enigmática, na cegueira diante das transformações, na tentati­ va de tornar inócuo o inescrutável — como acontece em “A metamorforse”, escrita poucas semanas após “O veredicto”, isto é, entre os dias 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912. Pois o acontecimento assustador desta narrativa não é Gregor Samsa certa manhã — ao acor­ dar de sonhos intranqüilos — “encontrar-se em sua cama metamorfose ado num inseto monstruoso”18. Verdadeiramente assustadora é a maneira como sua família lida com esse fato. É bem verdade que os pais, no

princípio, estão bastante inquietos, mas a medida dessa inquietação não é proporcional ao que sucedeu ao filho. Nem uma única vez o fato de ele estar rastejando pelo quarto como inseto foi discutido nas verdadei­ ras dimensões em que esse horror se apresentava. E verdade também que a mãe tinha “uma expressão alucinada nos olhos”19, mas tanto a 17. Id., ibid., p. 26. 18. Id., A Metamorfose, trad. Modesto Carone, 12 a edição, São Paulo, Brasiliense, 1992, p. 7. 19. Id., ibid., p. 77.

45

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

irmã como o pai, no final da história, estão interessados apenas em “se livrar disso”20, ou seja, de Gregor como inseto. Então, quando Gregor realmente “empacota”21 e seu cadáver ainda se encontra em seu quarto, até a mãe reage com alívio. E a história termina com o pai, a mãe e a irmã deixando juntos o apartamento. Foram “de bonde elétrico para o ar livre no subúrbio da cidade” O pai e a mãe observam agora que a filha “apesar da canseira dos últimos tempos, que empalidecera suas faces, havia florescido em uma jovem bonita e opulenta”. Concluíram que já era tempo “de procurar um bom marido para ela”. E quando, no final da viagem, “a irmã se levantou em primeiro lugar e espreguiçou o corpo jovem”, esse gesto pareceu aos pais “como que uma confirmação dos seus novos sonhos e boas inten­ ções”22. Sem dúvida nenhuma, estão presentes aqui os signos de um recalcamento que impede que os sujeitos encarem o insondável de suas pró­ prias vidas, tematizem o inescrutável como cesura vivencial, apercebamse do paradoxal e do monstruoso como pontos de ruptura na banalidade cotidiana. Mas como o leitor, no final da narrativa, sabe que o inescrutável pode irromper a qualquer momento como segunda camada da realidade em nosso próprio mundo, não é de todo inoportuno imaginar que o jovem corpo da filha possa algum dia metamorfosear-se num monstro horripilante...

4. Contra a resistência burguesa ao assombro A complicação da realidade por uma sucessão de outras possibilida­ des, a refração dos pontos de vista, a emergência do inescrutável — a obra de Franz Kafka é um ataque cerrado à presunção, à imperturbabílidade e ao desassombro da burguesia. Exatamente nesse ponto vamos encontrar a relevância religiosa da prosa kafkiana; essa obra não é religiosa, mas é excepcionalmente relevante do ponto de vista religioso. Isso significa concretamente que Kafka, ao abalar plausibilidades aparentes, desmasca­ rar seguranças ilusórias e transtornar pontos de vista habituais, demons­ tra ser o poeta sutil do insondável, despertando assim no leitor, com precisão cada vez maior, indagações relativas ao porquê e à finalidade, à 20. Id., ibid. 21. Id., ibid., p. 81. 22. Id., ibid., p. 87.

46

FRANZ KAFKA £ A INESCRLITABILIDADE DO MUNDO

segurança e ao sentido. As narrativas de Kafka não apresentam respos­ tas, mas perguntas cada vez mais precisas23. Tudo isso numa prosa mi­ nuciosa, realisticamente fiel, obsessivamente detalhista, em que o abalo da realidade não é encenado com um pathos expressionista, mas demons­ trado na vida concreta do dia-a-dia: “Uma vez atendido o alarme falso da sineta noturna, não há mais o que remediar, nunca mais” —- é o que lemos em “Um médico rural”. Uma batida no portão — como em “A pancada no portão” — é suficiente para que apareça o juiz, e a própria casa se nos assemelhe a uma prisão. Uma vez difamados, como Josef K. em O processo —, já nos tornamos prisioneiros, réus que nunca mais se livrarão do tribunal... Em Kafka, a mudança do ponto de vista não origina um ponto de vista final, a enigmação da realidade não implica uma idéia de realidade, a renúncia às plausibilidades costumeiras não apresenta um objetivo final — assim se apresentam as situações básicas de Kafka. Ele as ilustra com histórias que, num processo de esclarecimento, nos tornam clarividentes.

Mandei buscar meu cavalo no estábulo. 0 criado não me entendeu. Fui ao estábulo, encilhei o cavalo e montei. Ao longe ouvi o som de uma trombeta e perguntei-lhe o que significava. Ele não sabia, não tinha ouvido nada. No portão ele me fez parar e perguntou: — Aonde vai, senhor? — Não sei — respond!. — Só quero ir embora, ir embora daqui. Partir sem­ pre, ir embora, só assim posso chegar ao meu destino. — Conhece, então, seu destino? — perguntou ele. — Sim ~ respondi. — Já lhe disse. Ir embora daqui, esse é o meu destino.

Semelhantes a essa são as narrações parabólicas de Kafka24, que

remetem apenas ao enigma da própria vida e a nada mais, que não simulam nenhum sentido transcendental e nas quais “ir embora” já é o destino. “Ir embora” é deixar uma vida que, não importa a direção em que se esteja caminhando, parece ter-se tornado uma armadilha: — Ai de mim! — disse o camundongo —, o mundo está ficando mais estreito a cada dia. De início era tão grande que me apavorei, continuei correndo e fiquei feliz por finalmente ver aparecerem muros de ambos os lados do 23. Da mesma forma: JENS, W., “La&t den Menschen nicht verkommenl”, in JENS, W., e KÜNG, H., Dichtnng unà Religion, pp. 310 s. (cf. nota 5). 24. KAFKA, E, “Der Aufbruch”, in id., Beschreibung eines Kampfes, p. 86.

47

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

horizonte, mas esses longos muros correm tão rapidamente ao encontro um do outro, que já me encontro no último cubículo e vejo ao fundo a ratoeira onde irei cair. — Você só tem de mudar a direção — disse o gato, e o devorou25. Entretanto, como se explicam em Kafka tais situações se conside­ rarmos sua biografia? Em grande parte, explicam-se como produtos de sua autoconsciência como artista e de suas experiências pessoais como judeu.

5, Indecisão: Kafka como artista Nenhum dos grandes teólogos cristãos esteve tão próximo de Kafka quanto Sõren Kierkegaard. Não só por causa de idêntica, obstinada e infindável reflexão sobre a própria existência, mas também por uma condição biográfica semelhante, que se expressou na incapacidade de ligação com uma mulher. No dia 21 de agosto de 1913, Kafka escreve em seu diário: “Recebí hoje o Livro do juiz, de Kierkegaard. Como eu já suspeitava, seu caso, apesar de certas diferenças essenciais, é similar ao meu, pelo menos ele se encontra no mesmo lado do mundo. Ele me confirma como um amigo”26. Sem dúvida, a relação de Kierkegaard com Regine Olsen foi seme­ lhante à de Kafka com Felice Bauer. Da mesma forma radical com que o dinamarquês refletia sobre sua própria existência no limite da fé, da literatura e da vida burguesa, fazia-o o escritor de Praga, cujo processo de autopunição encontra seu ponto culminante na elaboração de um rol de argumentos segundo os quais deveria casar-se ou abandonar o projeto do casamento:

1) Incapacidade de suportar a vida sozinho, e não a incapacidade de viver; é até improvável que eu saiba viver com alguém, mas sou incapaz de suportar sozinho o ímpeto da minha própria vida, as demandas da minha própria pes­ soa, a ofensiva do tempo e da idade, o vago afluxo do desejo de escrever, a insônia, a proximidade da loucura — sou incapaz de suportar tudo isso sozi­ nho. Mas devo acrescentar: talvez. A união com F. dará mais força de resistên­ cia à minha vida. (...) 3) Preciso ficar sozinho. O que já realizei é apenas o 25. Id., “Kleine Fabel”, in id., ibid., p. 91. 26. Id., Tagebücher 1910-1923, Frankfurt/M., 1983, pp. 232 s.

48

_------—----------------------------------------

FRANZ KAFKA E A ÍNESCRUTAB1UDADE DO MUNDO

resultado do meu isolamento. 4) Odeio tudo que não se refira à literatura; as conversas (mesmo as que se referem à literatura) me entediam; é tedioso fazer

visitas, as dores e as alegrias dos meus parentes enchem-me a alma de tédio. As conversas tiram de tudo que penso sua importância, seriedade e verdade. 5) O medo da ligação, de atravessar para o outro lado. Então nunca mais estarei sozinho... 6) Diante das minhas irmãs, sobretudo antigamente, eu era bem diferente do que diante de outras pessoas. Destemido, despojado, podero­ so, surpreendente, comovido como, aliás, também me sentia ao escrever, Se, por intermédio da minha esposa, eu pudesse ser assim com todos! Mas e a literatura, não ficaria prejudicada? Tudo menos isso, tudo menos isso! 7) Sozinho talvez pudesse de fato renunciar ao meu emprego. Casado, jamais será possível27.

Kafka não conseguiu superar essas indecisões durante toda a sua vida. Vacilou sempre entre a ligação com o mundo da burguesia, o mundo do pai, o mundo do casamento, da família, da profissão e do decoro burguês, ou com o mundo da literatura, do desejo de escrever, o mundo da radical solidão e da dedicação incondicional à obra. Mas Kafka sabia que cada um desses dois mundos tinha seu direito. E nisso consistia sua dilaceração. O que ganhava num dos mundos perdia no outro. As duas coisas lhe eram igualmente insuportáveis, tanto a vida burguesa como a literatura. Numa carta fictícia ao pai de Felice Bauer, escreve: Meu emprego me é insuportável, pois contraria meu único desejo e minha única vocação, que é a literatura. Como nada sou senão literatura e nada mais posso e desejo ser, meu emprego jamais pode me monopolizar, mas pode, isso sim, arruinar-me. Não estou muito longe disso. Estados nervosos da pior gra­ vidade me afligem sem parar, e este ano de preocupações e angústias pelo meu futuro e o de sua filha comprovou que estou inteiramente sem resistência. (...) O senhor poderia perguntar por que não renuncio a esse cargo e tento — não tenho fortuna manter-me com meus trabalhos literários. A isso só consigo dar uma resposta deplorável: não tenho forças para tanto e, até onde posso compreender minha situação, é mais provável que sucumba nesse emprego; aliás, sucumbirei rapidamente28. 27, Id., ibid., pp. 227 s. 28. Id., ibid., p. 233.

49

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

--------- —-----------------------------------------------------------

Certamente a inclinação de Kafka não era a de alcançar a liberdade, decidir-se por uma alternativa, ser feliz em uma maneira de viver. Sua índole não era afeita ao inequívoco, ao ser-de-uma-maneira-e-não-de-outra, nem na arte nem na vida: “Mesmo no artista o ponto de vista da arte e da vida é diverso” — dizia ele no “Terceiro caderno de notas in-oitavo”, de 1917/191829. Tal como Hermann Hesse e Thomas Mann, também submetia-se à impiedosa auto-análise e ao intransigente desmascaramento de si mesmo. E como fosse capaz de ser intransigente consigo mesmo admitia também, em tais ocasiões, que escrever era a recompensa por “ser­ viços prestados ao demônio". Dois anos antes de sua morte, em 5 de julho de 1922, escreve a Max Brod: Escrever é uma recompensa doce e maravilhosa, mas pelo quê? No meio da noite compreendí, com a clareza de uma explicação ilustrativa dada a crianças, que se trata da recompensa por serviços prestados ao demônio. Essa incursão pelas regiões obscuras, a libertação de espíritos que, por natureza, vivem presos, esses abraços duvidosos e tudo o mais que se desenrola lá embaixo e de que nada sabemos aqui em cima, enquanto escrevemos histórias à luz do sol. Talvez exista outra maneira de escrever. Eu só conheço esta; à noite, quando o medo não me deixa dormir, conheço só esta maneira de escrever. E sua natureza demoníaca me parece evidente. É a vaidade e a sede de prazer que esvoaça em tomo da própria imagem ou mesmo de imagem alheia — o movimento então se multipli­ ca, amplia-se num sistema solar de vaidade — e a desfruta. O que o homem ingênuo às vezes deseja: “Eu queria morrer e ver como choram por mim”; é isso que o escritor realiza permanentemente, ele morre (ou melhor, não vive) e chora por si mesmo o tempo todo. Vem daí um terrível medo da morte, mas esse medo da morte não se manifesta necessariamente como tal e sim como medo da transformação, como medo de ir a Georgental. (...) Eis a definição de escritor, desse escritor, e a explicação de sua influência, se é que exerce alguma influên­ cia: ele é o bode expiatório da humanidade; ele permite que os homens desfru­ tem um pecado sem culpa, quase sem culpa30.

6. Um ser dividido: Kafka como judeu Assim como havia, na vida de Kafka, uma cisão entre arte e vida, entre literatura e vida burguesa, havia também uma cisão em sua relação 29. Id., “Das dritte Oktavheft”, in id., Hochzeitsvorbereitungen aufãem Lande, p. 76. 30. Id., “Brief an Max Brod vom 5.7.1922”, in id., Briefe 1902-1924, ed. por M. Brod, Frankfurt/M., 1975, pp. 384 s., 386.

50

FRANZ KAFKA E A INESCRUTABILIDADE DO MUNDO

com o judaísmo. Evidentemente Kafka conhecia essa ruptura, tanto em seu desespero existencial como em sua produtividade literária. Em junho de 1921, escreve a Max Brod sobre os escritores judeus-alemães: Afastar-se do judaísmo... é o que queriam quase todos os que começaram a escrever em alemão; queriam sim, mas com as perninhas traseiras ficaram presos ao judaísmo do pai e com as perninhas dianteiras não conseguiram encontrar solo novo. O desespero quanto a isso era sua inspiração. (...) Viviam entre três impossibilidades (...): a impossibilidade de não escrever, a de escrever em alemão, a de escrever de maneira diferente, e quase se poderia acrescentar uma quarta impossibilidade, que é a de escrever (pois o desespero não podia ser atenuado pela literatura, era inimigo da vida e da literatura, escrever era aí um ato interino, como para alguém que escreve seu testamen­ to pouco antes de se suicidar — um ato interino que podia muito bem durar a vida inteira). Logo essa literatura era sob todos os aspectos impossível, uma literatura cigana, que seqüestrara a criança alemã de seu berço e a preparara de qualquer jeito, apressadamente, pois é preciso que alguém dance na corda bamba31,

Pois é preciso que alguém dance na corda bamba... Essa é a situação do trapezista e a do artista da fome, a do artista que se infiltra no papel de homem admirado e, ao mesmo tempo, se despreza como tal. É o

artista que escreve por desespero, mas escrevendo não consegue vencêlo e sim aumentá-lo, porque o papel do desesperado mais uma vez está exposto ao aplauso dos outros, e esse aplauso o conscientiza ainda mais de sua ambiguidade. Teria havido uma saída para o dilema cidadãoartista? Para Kafka não havia saída, “Essa literatura é, para mim, da forma mais cruel para os que me rodeiam (inaudita crueldade, disso nem falo), a coisa mais importante sobre a terra, algo como a loucura para o desnorteado (se ele a perdesse, perdería seu ‘norte’) ou como para a mulher a sua gravidez... E por isso, trêmulo de medo, protejo essa escrita de toda perturbação, e não só a escrita, também b isolamen­ to que dela faz parte.”32 Não. Para Kafka, que fora educado no seio da cultura ocidental e assimilado pelo judaísmo ocidental, não havia retorno à firmeza da fé na ortodoxia judaica ou à segurança emocional do hassidismo, por mais 31. Id., ibid,, pp. 337 s. 32. Id., ibid,, p. 431 (Carta a R. Klops tock, de fins de março de 1923), 51

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

que o encontro com o grupo teatral iídiche de Jizhak Lõwy o tivesse fascinado, por mais que apreciasse as Histórias hassídicas, editadas por Martin Buber. Não. Embora Kafka, que com 13 anos ainda recebera o •s Bar-Mizwa, começasse a examinar a partir de 1911 a própria tradição judaica; embora se esforçasse por aprender hebraico, a partir de 1917; embora — já sob o impacto da tuberculose em estágio avançado — acalentasse o desejo de visitar a Palestina; e embora tivesse frequenta­ do, um ano antes de morrer (entre novembro e dezembro de 1923, em Berlim, juntamente com Dora Diamant), a Escola Superior de Ciência do Judaísmo, não encontrou saída nem em relação ao mundo do judaís­ mo, nem tampouco em relação à problemática da vocação artística. E a situação permaneceu inalterada: assim como para o homem-macaco não havia mais retorno à condição de símio, em “Um relatório para uma academia” (abril de 1917), assim também para o judeu Kafka não havia mais retorno à segurança da fé judaica. Ou seja, a única saída do ho­ mem-macaco — a imitação do mundo dos homens, a representação imitativa no teatro de variedades — era também a única possibilidade do Franz Kafka “tornado homem”. “Não me atraía imitar os homens; eu imitava porque procurava uma saída”33, diz o macaco, e é essa exa­ tamente a situação de Kafka a meio caminho entre ser-judeu e não-poder-mais-sê-lo: “Por um esforço que até agora não se repetiu sobre a terra, cheguei à formação média de um europeu. Em si mesmo talvez isso não fosse nada, mas é alguma coisa, uma vez que me ajudou a sair da jaula e me propiciou essa saída especial, essa saída humana”34. Não

é possível descrever com maior acuidade o desenraizamento e alheamento do judaísmo ocidental. Não, ser um judeu entre judeus, perder-se no povo, “na escalada da redenção”35, como ele narra no final do conto “Josefina, a cantora, ou O povo dos camundongos”, não era isso que Kafka queria ou podia fazer. Esse conto passou a ser a expressão de uma utopia no sentido mais estrito da palavra: expressão de uma situa­ ção de ausência de domicílio, de ausência de pátria para o judeu Franz Kafka... 33. Id.,“Um relatório para uma Academia”, in id., Um médico rural, trad. Modesto Carone, 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 65. 34. Id., ibid., p. 66. 35. Id., “Josefina, a Cantora ou O povo dos camundongos”, in id., Um artista da fomee A construção, trad. Modesto Carone, 5 a edição, São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 59.

52

FRANZ KAFKA E A INÊ5CRUTABIL1DADÊ DO MUNDO

7. A questão radical da existência de Deus A experiência de Kafka — como artista e como judeu — com a realidade, experiência em que a verdade e o engano, o sonho e a realida­ de, a filiação e a não-filiação, a ligação e o desapego, o desejo de comu­ nhão e a necessidade de isolamento simultaneamente se confundem, encontra paralelo em seu confronto com a questão da existência de Deus, também marcado pela ambigüidade. Existem três textos-chave em que essa ambiguidade se expressa de forma radical. 1. O primeiro é a inexcedível parábola do porteiro “Diante da lei”36. Dela partem duas informações que na aparência se excluem de forma lógica. No começo fica constatado que a lei existe em princípio para todos. Mas o indivíduo não tem acesso a ela, até o fim de sua vida, quaisquer que sejam as razões. Esse fato, porém, pelo visto não é motivo para os personagens dessa parábola deixarem de aspirar à lei ou concluí­ rem, a partir da busca vã, que a aspiração não tenha sentido ou a lei seja absurda. A parábola afirma a existência da lei e nos comunica com idên­ tica certeza: “Todos aspiram à lei!” Encontramos, entre as narrativas kafkianas, por outro lado, uma que delineia uma grotesca imagem oposta: a máquina de tortura “Na colônia penal” que, como se sabe, escreve a lei sob a forma da expressão “seja justo” na pele do condenado, de modo a matá-lo com ela... 2. Semelhante é a situação do homem no romance O castelo. Nesse castelo há muitas incertezas, mas há também uma certeza: ele não existe apenas na imaginação do herói, está lá diante do homem, por assim dizer, como uma grande entidade, dominando, sobrelevando-se a ele e transcen­ dendo-o. E certo também que existe uma comunicação, ainda que miste­ riosamente impenetrável, entre o mundo da aldeia e o do castelo; existe um caminho que conduz ao interior do castelo e, embora obstruído por sucessivas salas e barreiras, já foi percorrido por um mensageiro (Barnabas), que no mínimo já chegou até o pórtico ou as chancelarias37. Ao mesmo tempo fica bastante claro que o homem, representado no romance pelo agrimensor K., pode tentar apenas aproximar-se do castelo. 36. Id., “Diante da Lei”, in id., Um médico Rural op. cit, p. 23. 37. Isso já foi destacado com muita razão por KÜNG, H., “Religion im Zusammenbruch der Moderne”, in JENS, W., e KÜNG, H., Dichtung und Religion, op. cit., pp. 286-305, em especial pp. 296 s.

53

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

.........

................................................................................................

Por si só, jamais poderá alcançar esse mundo, a não ser que seja chama­ do. A impossibilidade de alcançá-lo, porém — e isso é espantoso —, não é para K. motivo de resignação ou cinismo, não é razão para ele declarar x inúteis seus esforços ou para negar a existência do castelo. O agrimensor não abandona a esperança de conquistar, por meio do castelo, o direito à cidadania na comunidade humana da aldeia, de conseguir entrar ou até ser aceito no castelo. Nesse sentido podemos interpretar O castelo de Kafka absolutamen­ te como um símbolo de transcendência, transcendência que é fugidia, per­ manece enigmática e está marcada negativamente. Resumindo, fazemos nossas as palavras do intérprete francês de Kafka, Claude David: “A única certeza é esta: o castelo existe e é dele que vem todo o sentido... A distância intransponível até o castelo é percebida por K. como um desafio. Repetidamente ele tenta forçar um contato pessoal; essa distân­ cia é um agravo, mas é também a força que o põe em movimento e lhe dá uma vida, enquanto ele coloca essa vida em dúvida; sem essa sede ele levaria uma vida tão monótona quanto a dos moradores da aldeia. A distância é propriamente o momento indutor, a mola propulsora, talvez a astúcia da existência”38. O que há de surpreendente nas parábolas kafkianas, de espantoso em sua visão da realidade, é a simultaneidade do paradoxo aparente: a experiência da frustração, de um lado, e a tentativa sempre renovada, de outro. A partir daí torna-se evidente que O castelo, justamente ele, não é razão para se qualificar Kafka de “atheos absconditus” (G. Lukács) ou de “ateu envergonhado” (G. Anders). Parece-nos mais correta a interpreta­ ção de Claude David: “Kafka não é ateu. O que se oculta por trás da triste vida cotidiana não é o nada; existe algo ali, sim, e esse algo é suficiente para comprometer todos os seres vivos (...). Mas nem todas as obras de Kafka têm esse fundo teológico. É em O castelo que a perspectiva teoló­ gica se torna mais evidente. Quando interpretamos esse romance como fábula teológica, pode parecer que recaímos nos equívocos dos primeiros críticos da obra de Kafka. Entretanto, a teologia que delineamos aqui é diretamente oposta à interpretação racionalista de Max Brod. Segundo Brod, é preciso premiar a boa vontade no final: A nós é dado salvar 38. DAVID, C., “Zwischen Dorf und Schlofi. Kafkas Schlo£-Roman ais theologische Fabel”, in Wissen aus Erfahrung. Festschrift H. Meyer, ed. por A. v. Bormann, Tubingen, 1976, pp. 694-711, cit. 699 s.

54

FRANZ KAFKA E A INESCRLITABILIDADE DO MUNDO

quern sempre a lutar se esforça’; no final da busca pelo santo Graal, o castelo é o burgo da graça. No livro de Kafka, porém, não há referências à graça; ou, quando se apresenta uma oportunidade para tal — caso do episódio com Bürgel —, K. a considera uma oferta humilhante e de pronto se recusa a aceitá-la. ‘Não quero graças do castelo’ — respondera anteriormente ao prefeito —, ‘só os meus direitos.’ Nem tampouco os méritos são considerados; a entrada no castelo não pode ser conquistada por ações; pelo contrário, o que parece prevalecer é a férrea predestinação. A boa vontade e a moral, tanto no Castelo como na obra de Kafka, de maneira geral ficam excluídas de antemão. Por outro lado, é preciso que paremos de interpretar o mundo representado nesse romance como ima­ gem do absurdo. Claro, o absurdo está presente por toda parte, domina todo o primeiro plano. A ignorância, a maldade, a arrogância das pessoas, a desumanidade da imensa ordem burocrática, a inutilidade de todos os esforços, tudo isso é absurdo. Mas é exatamente esse absurdo que nos obriga a ir em busca do sentido. Decisiva é a presença do abscôndito, como tentamos demonstrar. Quem se detiver apenas no primeiro plano não encontrará o sentido desse livro”39. 3. Há um terceiro texto-chave, ainda mais radical que os outros: a parábola “Uma mensagem imperial”. Narra-se aqui que um imperador, do leito de morte, segredou no ouvido do mensageiro “a mensagem”; consta que o imperador a enviou “exatamente a você”, e estava tão empenhado nela que mandou o mensageiro repeti-la em seu ouvido, para poder confirmar com um aceno de cabeça a exatidão do que dissera. O mensageiro, no entanto, é incapaz de ultrapassar o imenso palácio do imperador e entregar a mensagem ao destinatário. E o pequeno texto em prosa termina com a expressa afirmação: “‘Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto’. — Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega”40. Nesse conto fica claro tão-somente que existe uma mensagem do imperador dirigida a mim, e que um mensageiro, que entendeu correta­ mente a mensagem, está a caminho para me encontrar. Mas é totalmente duvidoso, primeiro: se o mensageiro poderá chegar até mim, consideran­ do-se os incontáveis obstáculos que encontra pelo caminho e o fato de que até hoje nenhum mensageiro conseguiu sair do palácio. Segundo: se 39 Id., ibid., pp. 710-711 40. KAFKA, F,, “Uma Mensagem Imperial”, in id., Um médico rural, op. cit, p. 42.

55

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

o imperador está morto ou vive ainda. (A notícia “aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto” é uma suposição!) Tercei­ ro, e agora Kafka vai além de seus outros textos em prosa, radicalizando s sua posição: não está claro se a “mensagem imperial” enviada a mim é realidade ou sonho. A última frase da parábola, “você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega”, deixa sus­ pensos o sonho e a realidade, a fé e a dúvida, a certeza e a incerteza. Enquanto na parábola do porteiro a existência da lei é certa, enquanto a presença do castelo não é posta em dúvida, aqui não se sabe se a mensagem do imperador é fruto da realidade ou da imaginação, realidade ou apenas desejo. No entanto os três textos expressam a relação de Kafka com uma realidade que sobrepuja o homem e o transcende. Esses textos exprimem que há em Kafka a experiência da ausência de Deus, mas não a negação de Deus; a experiência da obscuridade de Deus, mas esse Deus não é alvo de indiferença; a experiência de uma transcendência enigmática, mas não a negação da transcendência. Há em Kafka a esperança repetidamente frustrada, mas não a renúncia à busca. Há em Kafka o insondável e a inescrutabilidade da experiência humana da realidade, mas há também a permanente “espera pelo dia profetizado”. Há nele a desilusão, mas tam­ bém o “sonho” indestrutível, “quando a noite chega”... Quem foi capaz de criar em seus textos símbolos densos de “transcen­ dência negativa” (E. Heller41); quem, em suas tentativas de aproximação literária, foi capaz de representar experiências de transcendência enig­ máticas e codificadas, nas quais a realidade transcendental permanece hermética e assustadora, mas é deixado ao homem um caminho aberto e sua esperança não é aniquilada — um autor assim não nos surpreenderá mais, se também se destacar como aforista religioso, como um virtuose das “fantasias teológicas” (C. David42). Sabe-se que a obra de Kafka, além da parte especificamente literária, contém passagens bastante singulares, nas quais o autor desponta como aforista religioso, como mestre do para­ doxo, como pensador que não cria seus paradoxismos pelo prazer de montar adivinhações, mas faz deles a expressão do que é indizível e. contraditório na realidade. Essa outra obra literária abrange os oito cader41. HELLER, E., Franz Kafka, München, 1976, p. 103 . 42. DAVID, D., “Kafkas mgstischer Weg”, in KRUMMACHER, H. H, et. al. fed.), Zeit der Moderne. Zur deutschen Literatur von der Jahrhundertwende bis zur Gegenwart, Festschrift B. Zeller, Stuttgart, 1984, pp. 301-313, cit. 301.

56

FRANZ KAFKA Ê A INESCRLITABILIOADE DO MUNDO

nos de notas in-oitavo intitulados por Max Brod Considerações sobre o pecado, o sofrimento, a esperança e o verdadeiro caminho; diversas anota­ ções e fragmentos de sua obra póstuma, por exemplo as que Max Brod chamou de “Anotações do ano de 1920” e que levam o título “Ele”; e finalmente as inúmeras manifestações em seus diários e cartas. É preciso

entender bem que esses escritos deixados por Kafka não foram incluídos diretamente em sua obra literária, mas permanecem ao lado dela como material que não se tornou literatura. A morte de Kafka aos 41 anos foi prematura demais para que ele — se pudesse e quisesse — tivesse tempo de elaborar uma grande síntese de todo esse material.

8. Fragmentos de convicções religiosas Esse material não pode ser sistematizado. Pode-se entretanto distin­ guir certos temas básicos e elementos de estilo. Aforismos com bruscas mudanças de ponto de vista alternam-se com passagens mais longas e medi­ tativas. “Uma gaiola saiu para procurar um passarinho”43; “um homem se espantou com a facilidade com que percorria o caminho da eternidade; é que o descia em alta velocidade”44; “uma fé é uma guilhotina: tão pesada quanto leve”45. Ao lado desses aforismos encontram-se reflexões longas, como essas: “O homem não pode viver sem a crença permanente de que algo nele é indestrutível, mas tanto o indestrutível como a crença podem permanecer inconscientes por toda a sua vida, Uma das formas de expres­ são dessa inconsciência é a fé num Deus particular”46. Essas anotações, se lhes acrescentarmos também o diário, apresen­ tam sua maior densidade nos momentos em que Kafka elabora o legado bíblico. No conjunto de suas reflexões sobre a tradição bíblica, predomi­ nam temas como o juízo, a expulsão do paraíso e o pecado original, mas nunca o êxodo, a profecia ou a redenção. Kafka, empregando uma her­ menêutica seletiva, extrai das tradições bíblicas as experiências do fracas­ so, da expulsão e do juízo, e faz isso com uma naturalidade que só se pode explicar a partir de sua afinidade pessoal com esses temas. 43. KAFKA, F. “Betrachtungen”, in id., Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande, op. cit., p. 31. 44. Id., ibid., p. 33. 45. Id., ibid., p. 37. 46. Id., ibid., p. 34. 57

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Kafka como leitor da Bíblia: eis para nós um fragmento esclarecedor de vivências traumáticas; um fragmento do trabalho de luto por insucessos e frustrações; eis aí a recuperação da Bíblia num diálogo franco sobre a vida e a morte, e a reconquista da sinceridade radical na relação com o texto bíblico. Qual teria sido a mensagem de Kafka, quando escreve no “Diário”: “Só o Antigo Testamento vê”?47 Ele tem sido qualificado, talvez com razão, de Jó moderno. Se Kafka foi um Jó, seu sofrimento deveu-se tão-somente à ausência de Deus. Certamente não foi um Jó que, no ajuste de contas final, experimentou a bondade divina e se viu justificado por Deus. Muito pelo contrário: foi um Jó que experimentou a expulsão definitiva do paraíso, sem esperança de retorno. Por isso mesmo a história bíblica da expulsão do paraíso e do pecado original o fascinava mais que qualquer outra. “Por que lamenta­ mos o pecado original? Não foi por causa dele que fomos expulsos do paraíso, mas por causa da árvore da vida, para que dela não comésse­ mos.”48 Nesses paradoxais aforismos, Kafka compreendia seu próprio impasse: “Somos pecadores não só por termos comido da árvore do co­ nhecimento, mas também por não termos comido ainda da árvore da vida. Pecaminosa é a situação em que nos encontramos, independente­ mente de culpa”49. Nessas reflexões Kafka pondera sobre o problema, para ele insolúvel, da onipresença do pecado e da ubiquidade da culpa. O Antigo Testamento, seus personagens e suas histórias, é para ele o livro da confrontação com o impasse de sua própria existência; não é o livro do consolo e sim o do conhecimento que “vê” inexoravelmente nas profundezas e nos baixios do homem. Nenhum dos grandes escritores da literatura alemã do século XX relacionou tão diretamente consigo mesmo os ensinamentos bíblicos sobre a criação, o pecado, a expulsão do paraíso e a lei; para nenhum deles a leitura da Bíblia se tornou um processo tão torturante de esclarecimento sobre si mesmo. Os diários evidenciam que a exegese bíblica e a diagnose psíquica se realizavam paralelamente e eram um exercício opressivo. Em 1916, Kafka escreve: “A fúria de Deus contra a família humana. As duas árvores, a proibição infundada, a punição de todos (serpente, mulher e homem), a preferência por Caim, a quem Ele ainda provoca com a inter­ pelação. Os homens não querem mais se deixar punir por meu espírito”50. 47. 48. 49. 50.

58

Id., Tagebilcher 1910-192, op. cit.,. p. 367. Id., “Betrachtungen”, in id., Hocbseitsv&rbereitungen auf dem Lande, op. cit., p. 36. Id., ibid., pp. 36 s, Id., Tagebilcher 1910-1923, op. cit., p. 366.

FRANZ KAFKA E A 1NESCRLITABIL1DADE DO MUNDO

Nessa época Kafka atingia mais uma vez o auge de seu processo autopunitivo, perguntando-se se deveria continuar a relação com Felice Bauer. “Noite infeliz. Impossível viver com F. É intolerável a convivência

com quem quer que seja. Não lastimo isso. Lastimo a impossibilidade de estar sozinho. Mas continuando: absurdidade da lástima, sujeitar-se e por fim compreender. Levantar do chão. Confia no livro.”51 E o registro seguinte é justamente esta frase singular: “Só o Antigo Testamento vê — para além disso, nada a dizer”. Menos de catorze dias mais tarde irrompe do íntimo de Kafka um texto raro em forma de oração:

Tenha piedade de mim, sou pecador até o último recôndito do meu ser. Mas os meus dons não foram totalmente desprezíveis, tive alguns pequenos talen­ tos, desperdicei-os, desaconselhada criatura que fui, estou próximo do fim, exatamente numa época em que externamente tudo podería voltar-se a meu favor. Não me lance entre os perdidos. Sei, é meu ridículo amor-próprio que assim se expressa, ridículo se visto à distância ou de perto; porém, se estou vivo, tenho também o amor-próprio dos vivos, e se a vida não é ridícula então suas inevitáveis manifestações também não o podem ser. — Pobre dialética! Se estou condenado, não estou apenas condenado a morrer, mas também conde­ nado a defender-me até o fim52.

Só o Antigo Testamento vê? Kafka pôde falar de Adão e Eva, de Caim e Abel, de Abraão e Moisés, mas- do Novo Testamento, de Jesus Cristo, falou raras vezes. Quando o fez foi numa de suas formulações paradoxais, que nos permitem supor como Kafka teria elaborado literariamente uma relação com Cristo. Caso possamos confiar na autenticida­ de das conversas de Janouch com Kafka, então ele teria dito: ‘“E Cristo?’ Kafka meneou a cabeça. ‘É um abismo cheio de luz. E necessário fechar os olhos para não cair’”53. Um abismo cheio de luz — esse paradoxo evidencia mais uma vez que ambos estão em Kafka: a luz e as trevas, a aspiração e o abismo. “Não fui conduzido à vida pela mão — aliás, já enfraquecida — do cristianis­ mo, como Kierkegaard” — anota ele no “Quarto caderno de notas inoitavo” — “e não agarrei a última fimbria da túnica judaica de oração, 51. Id., ibid., p. 367. 52. Id., ibid., p. 370. 53. JANOUCH, G., Gesprache mit Kafka..., op. cit., p. 184.

59

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

---------------------------------------------------------- —----------

como os sionistas. Sou fim ou começo.”54 É isso que ele foi de fato: Kafka foi fim ou começo, mas nunca foi o meio tranqüilo. Nunca foi o centro de um desenvolvimento prescrito pela religião e confirmado pela história! s Nunca foi símbolo do êxodo, nem patrono da redenção messiânica! Veja­ mos o que escreve no “Terceiro caderno de notas in-oitavo”, em 1917: Se nos olharmos com o olhar maculado deste mundo, encontramo-nos na situação dos passageiros de um trem que sofreram um acidente dentro de um longo túnel; do local do acidente não se pode mais ver a luz da entrada, e a luz da saída é tão ínfima, que o olhar constantemente a procura e constante­ mente a perde, e até mesmo a entrada e a saída já são incertas. Ao nosso redor no entanto, na confusão dos nossos sentidos ou na extrema sensibilidade dos nossos sentidos, vemos apenas monstros e, dependendo do estado de espírito ou dos ferimentos de cada um, um espetáculo caleidoscópico fascinante ou cansativo. O que devo fazer? ou: Para que fazê-lo? Essas perguntas não surgem naquelas regiões55.

54. KAFKA, F., “Das vierte Oktavheft”, in id., Hochzeitsvorbereitungen auf dem Lande, op. cit., p. 89. 55. Id., ibid., p. 54.

60

Ill

Rainer Maria Rilke

e as METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA *

Primeiramente, a tese inicial: é difícil crer que um dos grandes escritores do século XX tenha estado tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante do cristianismo; é difícil crer que um desses escritores tenha se distanciado tão dura e sarcasticamente de Cristo e da Igreja e, ao mesmo tempo, incorporado tão extensivamente em sua obra o universo da Igreja e a figura de Cristo; é difícil crer que alguém esteja tão longe da “religião” e, ao mesmo tempo, tão fortemente preso á ela como o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926). A distância de Rilke em relação ao cristianismo, sua forte recusa de Cristo e da Igreja — eis o que precisaremos tematizar, se quisermos falar com autenticidade sobre o modo rilkeano de assimilação, ou seja, sobre o processo singular de metamorfose da essência religiosa em sua obra*1. * Tradução de. Maurício Cardoso 1. Sobre a biografia, ver HOLTSUSEN, H. E., Rilke, Hamburg, 1958. MASON, E. C., Rainer Maria Rilke. Sein Leben und sein Werk, Gottingen, 1964. LEPPMANN, W, Rilke. Sein Leben, seine Welt, sein Werk. Bern, München, 1981. PRATER, D. A., Ein klingendes Glas. Das Leben Rainer Maria Rilkes. Eine Biographic, München-Wien, 1986 (ed. ingl.: 1986). SCHNACK, I. Rainer Maria Rilke. Chronik seines Lebens und seines Werkes, 3 vols. Frankfurt/M., 1990. Sobre a história recente de sua recepção, ver HAMBURGER, K. (org.), Rilke in neuer Sicht. Stuttgart, 1971. HAMBURGER, K., Rilke. Eine Einführung, Stuttgart, 1976. SOLBRIG, I. H., e STORCK, J. W., Rilke heute. Beziehungen und Wirkungen, Frankfurt/M., 1975. STAHL, A., Rilke Kommentar, 2 vols., München 1978/1979. GÔRNER, R. (org.), Rainer Maria Rilke, Darmstadt, 1987. Sobre a dimensão religiosa, ver HERZOG, B., “Über Rilkes Antichristlichkeit”, in Stimmen derZeit 159 (1956/1957): 40-46. MÜLLER,

63

05 ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

1. O papel fatal da religião para uma criança No princípio — por desgraça de alguém — houve um certo tipo de mãel E houve uma infância vivida na cidade católica de Praga, sob a desastrosa concepção católica de educação tal como assumida por essa mãe: ocupando o lugar de uma filha falecida ainda pequena, o garoto foi educado durante seis anos como menina. No princípio havia a devoção inflamada da mãe: “À meia-noite, na mesma hora em que nascera nosso

Salvador — e já que era noite de sexta-feira para sábado —, você se tornou um filho de Maria, com a bênção da madona misericordiosa”, escreveu Sophie (Phia) ao seu filho Rilke em 1922. “Papai e eu, nós te abençoavamos, te beijávamos — nossa felicidade iluminada encontrava refúgio nas preces de agradecimento a Jesus e a Maria. Nosso garotinho meigo era pequeno e frágil — mas magnificamente bem desenvolvido — e, à tarde, quando deitava em seu berço, recebia o pequeno crucifixo: assim, ‘Jesus’ foi seu primeiro presente.”*2 No princípio, estava a desilu­ são de uma mulher com a vida, mulher que percebera tarde demais que o ex-oficial e inspetor ferroviário Joseph Rilke não era o elegante repre­ sentante de uma família social e culturalmente brilhante, como espera­ do, mas um “marido relativamente limitado, por vezes rude como um soldado e incapaz de satisfazer sua ânsia por amor ou sua ambição social”3.

Compensação era o que Phia Rilke proporcionava a si própria. Ela, que em breve se separaria do marido, freqüentava constantemente estân­ cias de águas termais e gostava de se vestir com a formalidade do preto, perfazendo, assim, o estilo de arquiduquesa viúva, sobretudo por sua religiosidade, que exercia até as beiras do fanatismo: “Um dos caminhos de Sophie para a fuga da realidade frustrante era sua crença em um mundo espiritual que ela, com as imagens de uma religiosidade superfi­ cial e de ar extasiante, sabia unificar em uma mistura rara de madonas N, Die Religiositãt des Dichters Rainer Maria Rilke. Ein Beitrag zur theologischen Literaturbetrachtung, Halle, 1964. BADEN, H. J., “Rilke ais religiõser Erzieher”, in Baden, H. J., Der Glaube des Dichters, 2a ed., Hamburg, 1978, pp. 55-78. HÕHLER, G.,Niemanâes Sohn. Zur Poetologie Rainer Maria Rilkes, München, 1979. IMHOF, H., Rilkes “Gott”. Rainer Maria Rilkes Gottesbild als Spiegelung des Unbewuften, Heidelberg, 1983. GUZZONI, G., Dichtung und Metaphgsik am Beispiel Rilkes, Bonn, 1986. 2. Cit. cf. SIEBER, C., René Rilke. Die Jugend Rainer Maria Rilkes, Leipzig, 1932, p. 64. 3. PRATER, D. A., op. cit., p. 23.

64

„------ ---------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

e fantasmas, meninos Jesus e evocações espíritas. Sophie não era uma espírita praticante, mas não chegava a duvidar da realidade dos fenôme­ nos espíritas”4. Não é de admirar que essa mistura de devoção católica

e superstição pagã acabasse obrigatoriamente por influenciar o filho René, que, evidentemente, a cada ida à igreja, não tinha apenas de beijar as chagas do Cristo na cruz, mas também ouvir constantemente as histórias de espíritos que lhe eram contadas. Phia Rilke, para a educação de seu filho, fazia uso de um pequeno crucifixo de latão, que ela mesma man­ teve até idade avançada: “Veja, com isto ensinei René a rezar — tinha 3 anos de idade —, ensinei-lhe que isto representava dores enormes do Salvador e que, por esse motivo, nunca devemos lamentar, quando temos dores”. Segundo declaração de sua mãe, certa noite o pequeno René, ao não conseguir pegar no sono, teria reagido da seguinte forma: “Mas, mamãe, como é que eu posso dormir? Ainda nem dei um beijo no que­ rido Deus”, ao que Phia teria reagido alcançando-lhe o pequeno crucifixo de latão...5 Os efeitos de tal devoção a Cristo sobre o jovem Rilke, sobre um garoto que, após a separação dos pais, passou por uma fase escolar extre­ mamente infeliz, principalmente em internatos militares (1886-1891)6, podem se depreender de uma carta de prestação de contas escrita por Rilke no seu décimo nono aniversário, em 1894, e destinada a sua então amiga Valerie von David-Rohnfeld (aliás, um de seus testemunhos auto­ biográficos mais remotos, dentre os que possuímos). Em um retrospecto crítico de sua infância, já naquele momento, Rilke anota:

Você conhece a história sem brilho de minha infância falha, e conhece também aquelas pessoas que carregam a culpa por eu não conseguir guardar nada ou quase nada de agradável daqueles dias de minha formação (...) Na minha forma infantil de compreensão, acreditava que minha paciência me aproxima­ va do mérito de Jesus Cristo. Certa vez, ao receber um forte tapa no rosto, tão forte que meus joelhos tremeram, disse ao meu agressor injusto — posso ouvir ainda hoje — em voz baixa: “Eu tolero isto porque Cristo também tolerou, em 4. DEMETZ, E, René Rilkes Prager Jahre, Düsseldorf, 1953, pp. 25 s. 5. KOENIG, H., Rilhes Mutter, Pfuhingen, 1963, p. 19. O relato inteiro reflete sobre o papel fatal do tipo de piedade católica cultivada pela mãe de Rilke, principalmente sobre o significado do Cristo sofredor (cf. pp. 7, 13 s., 16, 30). 6. Quanto a isso, cf. o estudo bastante elucidativo de KIM, B-O., Rilhes Militârschulerlehnis und das Problem des verlorenen Sohnes, Bonn, 1973.

65

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

silêncio, sem lamentação, e enquanto você me batia eu rezava a meu bom Deus para que ele te perdoasse”... Então fugí, recuando até o último vão de janela, segurando minhas lágrimas para que somente à noite, quando pairasse a res­ piração regular dos garotos no amplo dormitório, elas rompessem impetuosa e calorosamente. E na noite em que se comemoravam os anos do meu nascimen­ to, não sei quantos, ajoelhei-me na cama e, de mãos postas, pedi pela morte. Naquele tempo, uma doença me parecería um sinal certo de elevação, só que ela não vinha. Em compensação, começou a se desenvolver naquela época o impulso de escrever, que mesmo no seu princípio, ainda ingênuo, já me servia de consolo7.

Nessa carta, não é notável apenas a referência à superação do medo e aos desejos de morte na tenra infância, mas sobretudo a relação da criança com Cristo, tal como ela lhe foi inculcada. Os rituais religiosos que a mãe, já tão cedo, visivelmente exigia da criança podem ser identi­ ficados aqui tão bem quanto a técnica de superação do medo no garoto em desenvolvimento. Pela assunção do papel do Cristo que sofre sem oferecer resistência, a autotortura infantil é sobrepujada espiritualmente; a indefensabilidade e a renúncia à capacidade de se impor são legitima­ das religiosamente. Um cristomasoquismo surge no lugar da autoconfiança e da autovalorização. Assim, não admira que a relação de Rilke com a mãe, que viveria cinco anos a mais que ele (morreu em 1931), manteve-se, até o fim de sua vida, profundamente discrepante. Em textos posteriores ele não apenas expressa horror “diante de sua devoção dispersa, diante de sua crença teimosa e diante de todas estas desfigurações e deturpações”8, mas alude, repetidamente, ao papel de Cristo na vida de Phia. Aos 40 anos de idade, num poema de 1915, ele escreve:

Ai de mim, que minha mãe me desarvora. Eu me cercara de pedra sobre pedra e ali me erguia feito uma casinha a cuja volta, esplêndido, se movimenta o dia, só por ora. Mas vem a mãe, vem e a mim me desarvora. (...) 7. Cit. conforme PRATER, op. cit, pp. 42 s. 8. RILKE R. M.-ANDREAS-SALOMÉ, LOU Briefwechsel, Zürich-Wiesbaden, 1952, p. 143.

66

------------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Dela a mim, jamais um sopro de vento mais quente. Ela não vive lá onde os ventos sopram mas num alto e pio tabíque ei-Ia que jaz: ali Cristo a vem limpar diariamente (III, 101 s.)9. O relato de Herta Koenig sobre um encontro com a mãe de Rilke em Munique, no mesmo ano em que o poema foi escrito (1915), pode

ser lido como um comentário sobre o texto. Ela marcara encontro com Rilke e sua mãe em um restaurante vegetariano chamado Ethos (Rilke era vegetariano!), e chamou-lhe atenção o comportamento alterado de Rilke na presença da mãe: “Há mães em cuja presença não se pode ter mais que 14 anos, como se não pudesse ser normal ter 30 ou 50. De repente, percebi que Rilke, na frente da mãe, via-se rigidamente cabis­ baixo — com uma expressão diferente da de benévola modéstia que costumava trazer consigo ao entrar em um ambiente e sentar-se para a refeição; era um pequeno traço de mágoa e desânimo de adolescente, como se ele, havia pouco, tivesse sido repreendido, embora nada tivesse acontecido além das sugestões e escolhas ao longo do extenso cardápio do Ethos”10.

2. A fé oposta: amor como religião Não é preciso longas análises de psicologia profunda para perceber que a religiosidade infanto-púbere inculcada a Rilke, essa mistura quase patogênica de medo da vida e disposição ao sofrimento, tinha de desapa­ recer como um fantasma no momento em que o menino começasse a crescer e a pensar por si só. Já aos 18 anos, antes de escrever a carta citada acima, Rilke formulara sua “Confissão de fé”, datada por ele mesmo com o dia “2 de abril de 1893” — o dia exato parece ter sido importante para ele: 9. Trad. do original alemão por José Paulo Paes (cf. RILKE, R. M., Poemas, sei., trad, e introd. de J. P. Paes, São Paulo, Cia. das Letras, 1993, pp. 170-171). As obras de Rilke no original, indicadas no texto de acordo com o número do volume seguido do número da página, são citadas conforme RILKE, R. M., Sãmtliche Werke, org. de Rilke-Archiv em colab. com R. Siéber-Rilke e E. Zinn, vols. I-XII, Frankfurt/M., 1976 (Insel Werkausgabe). As traduções dos poemas e textos subsequentes são de responsabilidade dos trads. deste capítulo. 10. KOENIG, H., op. cit, p. 7.

67

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

---------------------

Vós, cristãos piedosos da boca para fora, a mim julgais ateu e ides embora para longe de mim, só porque, diferente de vós todos não me deixo levar pelos engodos das armadilhas do cristianismo. Eu sei que vossos ensinamentos sabem converter intentos e nos tornam crédulos — e estúpidos. Pois só para que vós caís em pecado é que um dia vos foi anunciado o Evangelho.

E vossos padres providenciam para que nada mais se vos evidencie nem hoje nem amanhã. Despertai com lei e castigo •— mas por sobre as ovelhas dele o pastor “infalível”.

Oh, pai sagrado, que do Senhor és o sábio conselheiro sobre a Terra, Tu és o primeiro pecador, ou — com mais brandura, perdão! — : Tu és o primeiro cristão.

E teus cordeiros continuam a ensinar: a trindade vós deveis honrar agora e por toda a eternidade. (É só encher a caixinha de ofertas — para então sentir-se do fardo de vossas dívidas libertado.)

As ovelhas seguem a todos, basta que ressoe estrondoso o sino da igreja; e sentem-se compensadas com a predica enfadada que o padreco gargareja. Ele fala da morte e do fim, ... elas juntam suas mãos 68

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

e vertem lágrimas, quase cegas. Então num só murmúrio: amém, e vão... — em nome de Deus —, quão felizes elas não são! Estão purificadas e jamais serão torturadas pelas chamas do purgatório. Por elas, Cristo morreu, salvação lhes concedeu com seu sangue santificado. Ele lhes ensinou essa vida e tudo mais — abrir mão de tudo como ele, o Filho do Homem. E algum dia em outro mundo Deus Pai lhes retribuiría com sua recompensa excelsa!...

Vós gritais: Tu vais sucumbir, não vais levantar quando a trombeta ressoar!” — Eu agradeço, mas vou ficar em meu leito, vou tirar proveito deste mundo aqui. —

Eu acredito no ensinamento segundo o qual a compensação viria aqui na Terra e a contento. O ensinamento que eu sigo é o amor que está comigo, que é para mim religião (VI, 489 ss.). Não, um adolescente mordaz, autoconfiante e fanfarrão não pode, enquanto estudante, distanciar-se do cristianismo de seus pais, da Igreja do meio em que vive e da religião presente em seu ambiente típico de Praga. Aqui, um poeta principiante utiliza, de modo virtuoso, duzentos anos de crítica iluminista à religião para tratar de seu próprio caso. O cristianismo? Entendido como “armadilha”. De modo atrevido, constata-se uma relação entre devoção e imbecilidade. De modo, sarcástico, o anúncio do Evangelho é invertido: a predica existe graças à produção de pecados. De modo irônico, os padres e o “infalível” papa são acusados pelo emburrecimento consciente do povo. Ao estilo de Heine, a crença na 69

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Trindade é escarnecida. Ao estilo de Voltaire, zomba-se dos crentes como se fossem “cordeiros” e “ovelhas”. No espírito nietzschiano11, a crença na redenção dos cristãos é satiricamente desmascarada. E para coroar isso tudo o jovem de 18 anos, quando ameaçado com o Juízo Final, despede-se com a autoconfiança galante e pouco cerimoniosa: “Eu agradeço, mas vou ficar em meu leito,/vou tirar proveito/destó mundo aqui” — para então enaltecer “o amor” como única e verdadeira “religião”. E compreen­ sível, pois, o fato de que Rilke nunca tenha ousado publicar um produto com tamanha dose de escárnio religioso, descompostura clerical e cinis­ mo eclesiástico. Mas que prelúdio à vida de escritor!

3. “Tudo perdido” — até mesmo Cristo, até mesmo Deus Há um poema da mesma época, também nunca publicado por ele próprio, em que o jovem de 18 anos, ao estilo de “Deutschland. Ein Wintermãrchen” (“Alemanha. Um conto de inverno”), de Heine, descre­ ve sua “relação com Cristo” em tom claramente autobiográfico. Assim como o sátiro errante do poema de Heine descreve sua reação ao deparar com uma imagem sacra do Cristo crucificado nos arredores de Paderborn, e isto com o propósito de refletir, numa mistura de ironia e perplexidade, sobre o destino do “primo pobre” de Nazaré, também o jovem Rilke, pela primeira vez num tom tão pessoal, descreve sua postura em relação ao Nazareno. Com isso, Rilke distancia-se inequivocamente do tipo de fé de sua própria infância e realiza, no espírito de David Friedrich Strauss (cf. X, 102) e Friedrich Nietzsche, uma desmitificação radical da figura de Cristo como filho de Deus. Em silêncio eu lá estava, os olhos cheio de lágrimas e o pobre coração repleto de dúvidas discordantes. E ali, diante de meus olhos, vi aquele a quem eles suplicavam que os ajudasse. E quanto eu não podería rogar-lhe? Mas por que eu olhava apenas o latão colorido — nada mais? Ele era uma pessoa, como eu —, mas confiava demais em suas próprias forças.11 11. Sobre a influência de Nietzsche sobre Rilke, cf. HELLER, E., Nirgendwo wird Welt sein ais innen. Versuche uber Rilke, Frankfurt/M., 1975, pp. 71-120.

70

------------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Ele era grande — propusera-se objetivos nobres, Mas uma coisa o toma pequeno: por excesso de sentimentos negou ser um simples ser humano... Justamente quando por mil e um caminhos espalhava-se seu poder pelo mundo, justo aí ele devería ter sido capaz de dizer com orgulho: eu sou um ser humano, um ser humano que chegou a tanto. Mas nesse momento despertou em seu ser a ambição de ser honrado, a ambição que curva a grandeza de muitos. Ele queria que, algum dia, de altares dourados a fumaça se levantasse aos céus em sua homenagem. Ele não queria ser venerado como ser humano, não, antes carregar a vergonha, o opróbrio e o escárnio, não, antes sofrer e morrer, morrer crucificado — mas claro que como Deus. Agora eu sei por que não o amo nem o posso admirar, nem dedicar-lhe uma oração: como ser humano, ele se tornara divinamente grande, e agora, como Deus, ele se manifesta humanamente pequeno! Olhei para cima, para onde a imagem colorida, de olhos virados, estava pendurada sobre a humilde cruz. Já não era sem tempo — voltei-lhe as costas, sequei minhas lágrimas e parti... (VI, 492 s.). “Ele não queria ser venerado como ser humano” — “Agora eu sei por que não o amo,/nem o posso admirar”: curioso que esse jovem de 18 anos tivesse tão claro para si o que rejeitava nesse Cristo. E a nós, leitores de hoje, ajuda muito pouco constatar que a crítica de Rilke pressupõe uma imagem tradicional de Cristo que não é mais a nossa. Nós nos acostumamos a pensar — ilustrados pelo caráter crítico da exegese — que Cristo não se considerava nem filho de Deus, nem muito menos Deus, ele próprio; e sabemos que o Jesus histórico em hipótese alguma queria “que, algum dia, de altares dourados/a fumaça se levantasse aos céus em sua homenagem”. É inútil especular a respeito do que teria acontecido se, na Igreja, outro Cristo tivesse sido anunciado a Rilke. Temos a constatar, sim, o seguinte: com esse poema, uma pessoa que acabou de se tornar adulta despede-se do culto a Cristo e dos dogmas de Cristo em 71

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

sua Igreja; aqui, alguém dá literalmente as costas a 2.000 anos de história de fé cristã, afasta dela “o pobre coração, repleto de dúvidas discordantes”, ainda com as lágrimas nos olhos, e traça os seus próprios caminhos. “Já s não era sem tempo” — também para René Maria Rilke... Também como “escritor” ele traça seu próprio caminho. Em livros de poesias como Sacrifício aos Lares (Larenopfer, de 1895 — Lares, aqui, os deuses romanos do domicílio) e Coroado de Sonhos (Traumgekrônt, de 1896), ambos escritos ainda no tempo em que Rilke vivia em Praga, o poeta revela-se um artista de aura impressionista, epígono do romantis­ mo e adepto do neo-romantismo. Neles, a matéria ligada à Igreja, acumu­ lada justamente na atmosfera católica de Praga, é ricamente processada. Os textos que se seguem são alguns exemplos: “Bei Sankt Veith” (“Junto a São Vito”), “Im Dome” (“Na catedral”), “In der Kapelle Sankt Wenzels” (“Na capela de São Venceslau”), “Im StraEenkappelchen” (“Na capelinha de rua”), “Das Kloster” (“O mosteiro”), “Bei den Kapuzinern” (“Com os capuchinhos”). Ao todo, catorze dos noventa poemas de Sacrifício aos Lares têm um tema católico ou judeu. Mas o universo eclesiástico ou o judeu (como em “Rabino Low”, I, 61-64) só lhe servem de bastidor; a essência religiosa é apenas um ensejo para a descrição de atmosferas, impressões, cores e espaços. Seus problemas relacionados com a fé, estes ele não confia a versos tão inofensivos. Um pequeno texto em prosa, escrito ainda em Praga, mostra com clareza aonde Rilke chegara intelectualmente. O texto, escrito no começo de 1896 sob o título “Der Apostei” (“O Apóstolo”), é — como afirma ele próprio — “uma confissão de fé profundamente séria, por um lado, e satírica, por outro”. Aqui não se descreve alguém que testemunha a fé cristã, um discípulo do homem de Nazaré, mas a entrada em cena de um profeta anticristão, de um discípulo de Zaratustra. O texto tem por cená­ rio um banquete burguês-aristocrático — fala-se de um “evento benefi­ cente”; nele, um dos convidados presentes (acreditava-se ser um artista até então, por seus “traços intelectuais”) levanta-se e, para espanto dos presentes, profere vulcanicamente um, testemunho de fé no mais puro espírito nietzschiano: “Vocês realizam uma obra de amor; eu saio mundo afora para matar o amor. Onde eu o encontro, eu o assassino; e eu o encontro com muita freqüência em casebres e castelos, em igrejas e na natureza, ao ar livre. Mas eu o sigo implacavelmente... Ouçam: as pes­ soas não estavam maduras quando o Nazareno veio a elas e lhes trouxe o amor. Ele, com sua generosidade ridiculamente infantil, acreditava estar 72

----- -------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

lhes fazendo um bem! — Para uma raça de gigantes, o amor seria um travesseiro esplêndido, sobre cuja voluptuosidade cada um deles poderia sonhar seus novos feitos. Mas para os fracos ele é a ruína” (VII, 454 s.). E assim prossegue o texto, até encerrar-se, no espírito de Zaratustra, com a evocação da vontade e do poder, com o desprezo pela massa de doentes, fracos e aleijados, e a apoteose (“ele parecia um deus”) dos poucos que se distinguem como fortes, grandes, violentos e divinos. Fantasias nietzschianas do rapaz de 21 anos: “Eu saio mundo afora, e prego aos fortes: ‘Ódio! Ódio! Três vezes ódio!”' (VII, 488 s.). Cada vez mais ele segue os próprios caminhos e experimenta os mais diversos papéis, um após o outro12: ora é aquele que, no espírito de Zaratustra, desdenha intelectual e aristocraticamente a massa popular, ora o esteta, o poeta romântico-melancólico que surge por vezes com essa máscara em meio à massa, passeando em Praga, ao longo da elegante alameda Graben, vestido de preto, nas mãos um único gladíolo de longa haste. Ora surge como o autor de monólogos dramáticos (“psicodramas”), histórias grosseiramente naturalistas sobre o destino de gente pobre que chegavam a superar Gerhart Hauptmann no grau de crítica social desve­ lada: “Frühsfrost” (“Geada da manhã”) e “Jetzt und in der Stunde unseies Absterbens” (“Agora e na hora de nossa morte”) são dois desses peque­ nos dramas bombástico-naturalistas que chegaram mesmo a ser encena­ dos em Praga. Ora ele é o autonomeado “poeta da corte” — referência ao “Tasso” de Goethe —, atuando no castelo Weleslavin (ao oeste de Praga), pertencente a Láska van Oestéren, filha de uma família da baixa nobreza que também escrevia e se encantara por Rilke. Ora ele é o engajado educador do povo, que produz e edita sozinho a revista Wegwarten e a distribui de graça pelas ruas aos pobres e trabalhadores; ora ele é, de novo, o patriota tcheco que em poemas da coletânea Bohmens Hain und Flur (Bosques e campos da Boêmia) assume um distanciamento precioso e latinizante, para oferecer um sacrifício aos “Lares”, os já mencionados deuses romanos que protegem a casa e a pátria... Por fim, no entanto, Rilke se desvencilha do universo da cidade de Praga, como aquele fictício Ewald Tragy, figura central do conto homô­ nimo (1898) e fortemente autobiográfico de Rilke: nele, o protagonista passa por um processo doloroso de desligamento da casa dos pais. Ele está prestes a sair de casa, a partir, a fugir. Assim como o próprio Rilke, 12. Bem descrito por PRATER, op. cit., pp. 45-52.

73

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Tragy luta por sua “vocação para artista”, que ele precisa impor aos pais. Numa conversa com a criada francesa da família, na noite anterior à partida, chega a ocorrer a seguinte confissão:

~~ O senhor é um poeta? Ela está enrubescida e assustada como uma criança. — Esta é a questão, senhorita — explica ele. — Eu não sei. E de alguma forma é preciso descobrir, não é mesmo? De um jeito ou de outro. Aqui não se chega a nenhuma clareza a esse respeito. Não é possível distanciar-se de si próprio, falta o sossego, é o espaço que falta, a perspectiva. A senhorita entende isto? — Talvez — a francesa faz que sim com a cabeça mas... acho que... é claro que o senhor seu pai deve se alegrar, assim como sua... — Minha mãe, você quer dizer. Hum... Sim, isto é o que pensam. Sabe, minha mãe está doente. Você já deve ter ouvido... embora se evite usar por aqui o nome dela. Ela deixou meu pai. Ela está viajando. E, quando viaja, leva con­ sigo apenas o necessário, mesmo quando se trata de amor... Faz tempo não sei nada a seu respeito, não nos escrevemos há mais dê um ano. Mas em suas viagens de trem, entre uma estação e outra, ela certamente deve contar que seu filho é um poeta... Pausa... — Bom, e há meu pai. Ele é um homem excelente. Eu gosto dele. Ele é tão distinto e tem mesmo um coração de ouro. Mas as pessoas perguntam a ele: ‘E seu filho, o que ele é?’ Aí ele se envergonha, se embaraça. O que é que ele deveria dizer? Só poeta? Isto é ridículo. E, mesmo que fosse possível, isso não é profissão. Isso não acarreta responsabilidades, não faz pertencer a nenhuma classe, não dá direito a pensão, ou seja, não tem conexão alguma com a vida. Por isso não se deve apoiar algo assim, dizer ‘tudo bem5 e ‘amém’. Você entende agora por que é que eu nunca mostro nada para o meu pai... aliás, para ninguém daqui; é que aqui não se julgam minhas tentativas, elas são odiadas já de início, e nelas é a mim que odeiam. E eu mesmo tenho tantas dúvidas, É sério: noites inteiras eu fico acordado, deitado e com as mãos entrelaçadas, e me atormento: — Serei digno? (...) —• Mas o senhor ainda não perdeu nada! Nisto Ewald põe as mãos sobre o colo e olha pela janela. Pausa. — O senhor é tão jovem... — a menina o consola num tom tímido. — Oh! — diz ele. Está mesmo convicto de que sua vida já está consumada; não que ele já a tivesse de fato vivido; teria simplesmente passado por ela, sem

74

.---- --------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

vivê-la. Agora ele não está mentindo, e está verdadeiramente triste; — Jovem? Foi isso mesmo que ouvi? Eu perdi tudo... Pausa. — ... até mesmo Deus — e ele se esforça para evitar qualquer tipo de afetação sentimental (VII, 530 s.; 534 s.). Tu,do perdido — até mesmo Deus! Não é de admirar que Rilke, após o desmoronamento do seu mundo católico de Praga, tenha procurado por sucedâneos ideológicos. Da astrologia ainda era capaz de zombar de modo irônico; não acreditava nas estrelas do céu, é o que diz um poema sobre “Astrologia”, mas sim nas estrelas nos olhos de cada garota; e por essa razão ele tinha especial apreço pela astrologia, “mais que por qualquer outra ciência” (SW V, 67 s.). Com a mudança para Munique, em setem­ bro de 1896 (início dos estudos em história da arte), Rilke começa a se ocupar mais seriamente com o espiritismo e a procurar contato com cír­ culos espíritas por intermédio do barão KarlDuPrel (1839-1899), conhe­ cido ocultista e escritor de relatos de viagem. Seus livros Das Ràtsel des Menschen (O enigma do ser humano, 1892) e Der Spiritismus (O Espiritis­ mo, 1893), que procuravam dar base científica ao espiritismo, eram então estudados avidamente por Rilke. Em uma carta a Du Prel, Rilke chega a explicitar o que lhe fascina no espiritismo: “Independentemente do en­ canto pelo misterioso, o campo do espiritismo exerce sobre mim uma atração significativa, pois a identificação das muitas forças ociosas e a submissão a seu poder faz-me avistar de longe a grande salvação, e acre­ ditar que cada artista em particular deva atravessar a bruma densa do parco materialismo, para então alcançar o pressentimento anímico que constrói para ele a ponte de ouro sobre os mares infinitos de eternidade”. E Rilke não deixa de lado a aguda crítica à Igreja, ao oferecer-se como futuro “aliado” do barão: “Se me for permitido penetrar a essência de sua ciência, talvez me seja concedida a honra de tornar-me, com a palavra e a pena, um aliado da nova fé, um aliado que voa alto por sobre a cruz na torre da igreja e, como primeiro prenuncio do amanhecer, expõe-se ao sol sobre os picos mais principescos”13. E, como se já estivesse no espí­ rito desses aliados, Rilke menciona um trabalho que surgiría em breve, Christus-Visionen (Visões de Cristo). 13. RILKE, R. M., Briefe aus ãen Jahren 1892-1904, org. de R. Sieber-Rilke e C. Sieber, Leipzig, 1939, p. 32.

75

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

x

A partir de então, Rilke voltará sempre a se ocupar do espiritismo. Em 1912, participa de sessões espíritas no castelo de Duíno, como ouvin­ te interessado, e redige suas atas com base, aliás, nos registros de uma planchette (prancheta disposta sobre dois rolos ou guias e equipada com um lápis sobre o qual o participante repousa levemente o dedo enquanto “algo” escreve). Deve-se partir do seguinte ponto: Rilke não acreditava necessariamente em tais manifestações e negava possuir qualquer apti­ dão mediúnica. No entanto, estava convicto de que “as forças que se liberavam em ocasiões como aquelas também o influenciavam de alguma * 14 maneira .

4. A outra imagem de Cristo: as Visões de Cristo De volta a Munique. Aos poucos, tornam-se nítidos os dois fronts intelectuais contra os quais Rilke começava a depor: contra o “parco materialismo”, por um lado, e contra as “cruzes nas torres de igreja”, por outro. Nem bem se mudara para Munique e seu confronto com o cristia­ nismo tornava-se mais uma vez fundamental. Entre outubro de 1896 e o verão de 1897 surgem as oito Visões de Cristo — já mencionadas na carta de Rilke a Du Prel —, em que, com toda a clareza desejável, ele expõe sua forma de compreender Cristo. Por mais convencionais que pareçam os versos quanto à rima e ao ritmo, seu contéudo não pode ser pensado de modo suficientemente radical. Aqui, Nietzsche, com seu “Anticristo”, pode ter servido de padrinho intelectual. Ou talvez Friedrich Werner van Oestéren, o irmão de Láska, que poucos anos depois causaria sensação com seu romance Christas, nicht Jesus (Cristo, não Jesus), de cunho antijesuíta. Influente mesmo, no entanto, foi uma das figuras femininas mais fascinantes do fim do século XIX: Lou Andreas-Salomé (1861-1937), que Rilke conhecera em maio de 1897 em Munique, enquanto trabalhava nas Visões. Lou — filha de um general russo e de uma alemã, e que se casara, em 1887, com o filólogo Carl Andreas — já desempenhara na vida de Nietzsche um papel considerável: recusara-lhe uma proposta de casamen­ to; e publicara, em 1894, a primeira biografia do filósofo. Ora, ela começa então a encantar o jovem poeta René Rilke, catorze anos mais novo. Lou* 14. LEPPMANN, W., op. cit., p. 328.

76

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

acabara de publicar um notável ensaio crítico-religioso chamado Jesus, der Juãe (Jesus, o judeu), em que expõe sua imagem de Jesus e sua teoria do surgimento do cristianismo15. Seu argumento é o seguinte: Jesus, como grande “gênio religioso” e por meio de seu contato direto com Deus, teria incorporado os desejos mais profundos do judaísmo (“o judeu não me­ dita sobre o seu Deus; ele sofre, vive, sente o seu Deus”) e se transfor­ mara, assim, “na expressão mais fiel do próprio judaísmo, e não em seu superador”; o judaísmo, de sua parte, ao rejeitar Jesus teria perdido todas as chances de renovação, entrado em processo definitivo de ossificação e finalmente esmorecido. O paganismo, no entanto, em busca da redenção na vida eterna, teria se fortalecido justamente pela crença na ressurrei­ ção. A teologia cristã surgiría, então, a partir da poderosa ânsia dessa crença na vida eterna — com Jesus em seu centro, como o Deus nos Céus. A consequência? Ora, o cristianismo não possui mais qualquer semelhança com o desejo mais íntimo de Jesus, “com o mais elevado processo anímico interior, em que um gênio religioso único recebe e anuncia sua revelação divina”. Nesse processo, vale o que vale também para a origem dos deuses em geral; é a necessidade do ser humano que o leva à criação de Deus!16 Jesus, o “gênio religioso”; o Jesus judeu, que vivia em função de um contato direto com Deus; o cristianismo como religião da deificação de Jesus a partir da ânsia por um redentor; Deus, uma criação do ser huma­ no: Rainer Maria Rilhe também pensava nesse sentido. (A propósito, foi Lou quem, sem muita cerimônia, transformou em Rainer o nome René, que a ela soava muito artificial.) Em sua primeira carta a Lou, Rilhe menciona o fato de que aquele ensaio estava para seus poemas sobre Cristo como “o sonho está para a realidade, o desejo para a realização”17. Mas de que se trata nas Visões de Cristo, poemas nos quais Rilke, numa sequência de oito cenas, faz surgir seu Jesus diante de diferentes personagens (“a órfã”, “as crianças”), ou em lugares diferentes (“quer­ messe”, “Veneza”, “cemitério judeu”)? Mais radicalmente que em seu poema de 1893 sobre Cristo, Rilke confronta-se aqui com a questão da deificação de Jesus. Se naquele texto Rilke imputava ao próprio Jesus um 15. ANDREAS-SALOMÉ, LOU, "Jesus der Jude”, in Neue Deutsche Rtinãschau (1896), 342-351. 16. Quanto a isso, cf. id., Lebensüberblick, org. de E. Pfeiffer, Frankfurt/M., 1974. Em especial o cap. 1: “Das Erlebnis Gott”. 17. Cf. nota 8.

77

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

interesse em sua deificação, ele vai agora decididamente mais adiante, e o faz de quatro formas diferentes: 1. Rilke faz sair da boca “do próprio Jesus a recusa de sua divinda­ de” e, com isso, a recusa de todas as projeções humanas de Deus. Na presença de uma prostituta (Sexta Visão), esse Cristo lembra-se da per­ gunta que um dia lhe foi feita: “Você é o filho de Deus?” Agora ele responde definitivamente: “Não, não sou, não sou nenhum Deus... Nós somos a maldição herdada deste mundo: eu, a eterna ilusão, você, a eterna prostituta” (V, 151 s.). Na Quarta Visão, o Cristo rilkeano, na presença de um pintor, deixa claro o princípio básico de toda projeção: Lá estava eu — Deus. E só o Deus que se ignorava podería ser grande, o Deus que não precisava seguir o chamado impetuoso da multidão, que dele carecia fervorosamente. Com a perseverança de um sopro contínuo de ilusão, a plebe, cedo ou tarde, resgata do éter todos os deuses, e eles, aos olhares receosos de seus devotos, dissipam-se (V, 142).

2. Inédita até então na literatura alemã — no que diz respeito à representação de Cristo — é a destabuização sexual de Cristo aqui empreen­ dida. Nessa mesma Sexta Visão, Cristo se deixa seduzir por uma prosti­ tuta. Provocado pelo convite de “viver a vida, em vez de sonhá-la apati­ camente” (V, 150), chega-se uma noite a uma união sexual orgiástica entre Jesus e a prostituta — em uma taberna denominada sugestivamente Os Anjos. 3. O motivo do Jesus incapaz de morrer também é novo (Quinta Visão). Desde que seus discípulos, “atordoados por tanto ufanar-se da própria fé”, roubaram-no do túmulo, esse Cristo não encontra mais sos­ sego. É crucificado continuamente, e como o “judeu errante”, como Ahasver, tem de caminhar sobre a Terra, um morto-vivo, um pseudodefunto que vive e morre diariamente:

De cruz em cruz, vou pagando penitência: onde, fincados no chão, dois paus se cruzem para lá eu vou, o sangue em minhas sandálias, e sou o escravo de minhas antigas dores, nascem pregos de minhas chagas, e os minutos me comprimem sobre a cruz (V, 147).

78

______________________________ RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

4. Radicalmente novo, afinal, é na Oitava Visão o acerto de contas com Deus, que Jesus mesmo realiza. Ao aparecer no cemitério de judeus em Praga, onde está sepultado o velho Rabino Lõw, o Cristo rilkeano sente-se “explorado” por Jeová; ele pretendia renovar a antiga imagem de Deus, mas viu-se obrigado a concluir que esse Deus nem existia mais. O céu para o qual esse Cristo se eleva está vazio: E então, pesando milhares de preocupações terrenas minha alma subiu ao alto céu, e minha alma gelou, pois ele estava vazio. Você nunca foi assim — ou não era mais quando eu, desgraçado, desci à Terra. O que me importa o desgosto da humanidade, se você, o Deus, não reúne mais as pessoas em volta do seu trono? — Se a súplica fiel é só loucura, e se você nunca se revela porque não existe? — Certa vez presumi, preciso admitir, que eu seria (a) voz da sua idéia de mundo... Tudo para mim, pai, era sua proximidade... Você, cruel, e se você nunca existiu, então o meu amor e a minha dor deveríam tê-lo criado no Getsêmani (V, 158). Custa crer que alguém, como Rilke em suas Visões de Cristo, possa distanciar-se mais decididamente da fé cristã da Igreja, e do Cristo do dogma e do culto. Difícil superá-lo em seu empreendimento de subtrair ao Nazareno o caráter divino e cultuai: Jesus surge em seus poemas como uma mistura de truão e proletário, de louco e possuído, de enganador e enganado. Depois do “discurso do Cristo morto, proferido do alto do firmamento, e segundo o qual Deus não existiría” (Jean Paul), nunca mais se ouviu falar de algo assim na literatura alemã: um poeta faz seu Cristo dizer que o céu está vazio, que Deus é ficção e que oração é, fundamentalmente, loucura18. Jesus Cristo — nada mais que a tela de projeção do ser humano, nada mais que a fantasia da ânsia por deificação 18. O motivo reaparece em Rilke no poema “O jardim das oliveiras” (“Der ÔlbaumGarten”, II, 492-494). Quanto a isso, cf. o belo artigo de BLUME, B., “Jesus der Gottesleugner: Rilkes ‘Der Ôlbaum-Garten’ und Jean Pauls ‘Rede des toten Christus’”, in B. Blume, Existem und Dichtung. Essays und Aufsãtze, sei. de E. Schwarz, Frankfurt/M. 1980, pp. 112-146.

79

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

e redenção — a eterna ilusão! Quanto Rilke trouxe às claras o rompi­ mento com o Cristo de sua infância, quanto estava consciente de que tipo de imagem de Cristo — uma imagem completamente sua — ele ali criara, despreocupado em considerar tradições da Igreja e convenções burgue­ sas, isso tudo fica claro em sua reação por ocasião de um pequeno escân­ dalo no meio artístico de Munique, em torno de uma “imagem de Cristo do pintor Fritz von Uhde” (X, 351-356). A antiga Pinacoteca de Muni­ que decidira adquirir o quadro Ascensão de Cristo, de Uhde, mas apenas se o pintor estivesse disposto a realizar na tela algumas mudanças. Uhde concordou. Mas o fato de um artista estar disposto a negociar a respeito de sua arte tirou Rilke do sério. Em um artigo, despeja todo o seu escár­ nio e desprezo diante de tal procedimento, o que permite tecer alguns paralelos à sua própria imagem de Cristo, criada sem compromisso e, até então, inédita. Rilke escreve ironicamente:

Já que se é um píntor de Cristo, então não se deve mesmo frustrar o público. Assim como os outros escrevem seu “drama anual” a partir desse sentimen­ to, assim também se deve pintar o “Cristo anual”. E como recompensa pela aplicação e perseverança um Instituto do Rei acaba por comprar um dentre os muitos Redentores. Aliás, o mais oficial dentre eles: a Ascensão de Cristo. Agora, francamente: o mínimo que se pode esperar de um Cristo sancionado pelo rei é que ele possa voar. E, já que isto de certo modo se tornou incômodo ao objeto comprado, o Sr. von Uhde ainda teve de lhe dedicar, em seu ateliê, algumas aulas particulares sobre essa arte extremamente íntima, para que só então o objeto conseguisse estada permanente na Pinacoteca; afinal, é isto mesmo que objetiva a proposição consciente de “mudança” (X, 353). Nesses quatro anos, entre 1893 e 1897, o desligamento de Rilke do mundo religioso de seus anos em Praga finalmente se consumara. Aqui, Rilke chega a uma certa compreensão do cristianismo que não abando­ nará mais, até o fim de sua vida. É certo que ele nem sempre tematiza essa sua crítica ao cristianismo com a mesma intensidade. Intocada du­ rante anos, essa crítica pode construir o horizonte espiritual de sua autocompreensão como ser humano e artista. Em 1901, Rilke deixa a Igreja católica de modo consequente e sem estardalhaço, ao decidir casar com Clara Westhoff, uma protestante da cidade de Bremen. Por vezes, essa crítica ressurge novamente em toda a sua agudeza. Como no fim de 1912, durante uma “viagem pela Espanha”. 80

—-------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

5. “Anticristandade raivosa” e a descoberta do Islã A cidade espanhola de Toledo foi a grande experiência, a Toledo de El Greco19. Essa cidade — situada em um maciço montanhoso em que o elemento oriental e o europeu, o cristão, o judeu e o árabe haviam se misturado de forma única — despertou em Rilke, logo ao chegar, visões da criação do mundo: imagens primordiais de “mundo, criação, monta­ nha e desfiladeiro, Gênesis”. Nessa região, ele acabava pensando sempre em um profeta, em um profeta que, a qualquer instante, pudesse ser acometido pela profecia, a “imensa visão de faces brutas” — tal era o semblante da natureza nos arredores da cidade20. Não é de admirar que Rilke, nessa paisagem primitiva, quisesse ler apenas um livro: o Antigo Testamento. “O parâmetro é quase o mesmo: abre-se a Bíblia e a leitura tem prosseguimento na paisagem, uma paisagem que não fala, que pro­ fetiza. Uma paisagem que se vê acometida pelo espírito de sua grandiosidade; em todos os lugares, diante de todos os portões, ela reben­ ta em grandeza. E a própria cidade, sem uma camada que a isole, está tão diretamente sobre a terra, tão assentada sobre a terra criada, quanto a Torre de Babel sobre o cobre antigo”21. Imagens primitivas vinham-lhe à tona nessa cidade, e Rilke só podia explicar o surgimento daquela loca­ lidade lançando mão de elementos míticos e legendários — muito típico para alguém como ele, que vivia do olhar poético e não da análise filo­ sófica: “Eu me lembro por um instante da lenda segundo a qual Deus, no quarto dia da criação, tomou o sol e instalou-o diretamente sobre Toledo”22; ou: “Quando se pensa nessa cidade, não se pensa em histórias, ela só possui lendas; um eremita e um animal selvagem discutiam sobre o enterro da Maria egípcia; assim, segundo dizem, também aqui um santo e um leão devem ter trabalhado juntos para que tudo isso pudesse ser criado”23. Portanto, Rilke vivenciou nessa cidade uma inaudita relação imediata com Deus, um contato com os primórdios da criação, um mergulho na gênese do mundo. Não admira que, durante a viagem à Espanha, ele 19. Sobre o significado da Espanha para Rilke cf., além das obras mencionadas na nota 1, em especial GEBSER, J., Rilke tend Spanien (1940), Frankfurt/M., 1977. 20. RILKE, R. M., Briefe aus den Jahren 1907-1914, op. cit., pp. 258 s. 21. Id., ibid., pp. 266 s. 22. Id., ibid., p. 255 s. 23. Id., ibid., p. 267.

81

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

comece a descobrir o Islã e a ler, juntamente com o Antigo Testamento, também o Alcorão. Ambos têm em comum a abordagem da relação direta entre criador e criatura, Deus e ser humano: “Eu estou lendo o Alcorão e, por vezes, ele assume uma voz em que rne sinto inscrito, com todas as minhas forças, como o sopro nos foles de um órgão”24. Quatro anos antes, em 1908, os textos de Aus den neuen Gedichten (Novos poemas, 1903-1908) já deixavam transparecer um confronto com Maomé. Em “Mohammeds Berufung” (“A vocação de Maomé”), Rilke volta a atenção para o momento em que o comerciante Maomé recebe a mensagem de um anjo de Deus, mensagem que tranformaria sua vida — tal como se dá com o artista que tem a vocação de proclamar a palavra e cuja vida é transformada pela “revelação”.

Mas no esconderijo, quando adentrou o Altíssimo, o Inconfundível: o Anjo puro e fulgente — ele lhe suplicou, despojado de toda aspiração,

poder continuar sendo o comerciante de sempre, viajeiro atormentado; ele, que nada lia, ignorante — que faria com tal palavra, de letrados? Mas o anjo, imperioso, insistia, indicava nas folhas os escritos — lê, dizia-lhe, e não desistia.

Ele leu: logo o anjo se curvou. Ele já era alguém que tinha lido e foi capaz, cedeu, realizou (II, 638).

O outro lado dessa experiência é uma reiterada crítica ao cristianis­ mo realmente existente. Em Córdoba, Rilke irritara-se com o fato de a grande mesquita ter sido completamente reestruturada para fins cristãos: “Deveriamos desembaraçar estas igrejas, emaranhadas no desgrenhado de seu interior, como os nós de um belo cabelo. Como nacos imensos, as capelas ficaram entaladas na garganta da escuridão criada com o propó­ sito de engolir Deus suave e continuamente, assim como se faz com o suco de uma fruta que se desmancha. Agora mesmo, foi insuportável ouvir neste lugar o órgão e a resposta dos cônegos... O cristianismo, a 24. Id., ibid., p. 269.

82

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

idéia surgida involuntariamente, retalha Deus constantemente como uma bela torta, mas Alá ainda está inteiro, intacto, salve Alá”25. Irritado, Rilke elabora ao longo da viagem uma tirada contra o cris­ tianismo que se aguça até a escolha de imagens sem igual. Em Ronda, Rilke escreve para a princesa Thurn e Taxis (17 de dezembro de 1912):

Aliás, disso a senhora precisa saber, estou tomado desde Córdoba por uma anticristandade quase raivosa... Acredita-se ser este aqui um país cristão; mas isto já era, era uma vez um mundo cristão... Agora impera aqui uma indiferença sem tamanho, igrejas vazias, igrejas esquecidas, capelas famintas — realmente, não se pode sentar a uma mesa há muito já posta e ainda repartir as cascas que restam, fazendo-as passar por alimentos. A polpa já foi sugada, o que simples­ mente significa, grosso modo, que é preciso cuspir as cascas. Mas os protestantes e os cristãos americanos ainda insistem em fazer mais uma infusão com este saquinho de chá já usado ao longo de 2.000 anos. Em todo caso, Maomé era o que viria a seguir: assim como um rio que atravessa uma montanha, ele rompe em direção a um certo deus com quem, grandiosamente, se pode falar toda manhã, sem precisar de um telefone chamado “Cristo”, para o qual se costuma ligar continuamente — Alô, tem alguém aí? — sem que ninguém responda26.

A crítica de Rilke ao cristianismo verte pela primeira vez em Mu­ nique, em 1896, com as Visões ãe Cristo. A segunda vez, na viagem pela Espanha, em 1912, com o horror ante o cristianismo de um Deus dissi­ mulado. E a terceira, em 1922, no Castelo Muzot, ao acabar de escrever as Duineser Elegien (Elegias de Duíno) e ós Sonette an Orpheus (Sonetos a Orfeu). Em “Brief des jungen Arbeiters” (“Carta do jovem trabalhador”, 1922), Rilke sente-se impelido a objetivar mais uma vez tudo o que, muito antes, já se tornara sua propriedade intelectual (XI, 1111-1127): Cristo? “Mas quem é este Cristo que se mete em tudo?” A cruz? “Não posso imaginar que a cruz deva permanecer como uma via-sacra e nada mais. Ela certamente não nos deveria ser imposta por toda parte, como um estigma.” Redenção? “Se esse Cristo nos ajudou a falar de redenção com uma voz mais clara, de modo mais completo e legítimo, melhor para nós; mas, por favor, deixem-no de fora disso agora. Não nos forcem a recair sempre no sacrifício e na aflição que nossa 'salvação * lhe custou. Deixem-nos, enfim, começar a viver esse estado de redenção.” 25. RILKE, R. M.-M. v. THURN UND TAXIS, Briefwechsel, vol. 1, org. de E. Zinn, Zürich-Wiesbaden, 1951, p. 240 (carta enviada de Sevilla em 4/12/1912). 26. Id., ibid., p. 245 s.

83

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Cristianismo? “Eles fizeram da essência cristã o seu metier, uma ocupação burguesa, sur place, um tanque que, periodicamente, se deixa esvaziar, para se encher novamente.” E a alternativa? Cristo? Ele não teria pretendido nada mais que “apontar” para Deus — assim como o Alcorão não teria pretendido ser nada mais que um “dedo indicador” de Deus: “E certa vez eu tentei ler o Alcorão; não fui muito longe, mas o suficiente para entender que há ali uma espécie de dedo indicador poderoso, e Deus encontra-se no fim da direção para a qual esse dedo aponta, pronto para sua jornada eterna, rumo a um oriente distante que nunca se aproxima. Cristo quis certa­ mente o mesmo: apontar”. A vida aqui e agora? O “aqui-e-agora”, o “mundano”, não é ruim de se cumprir, mas deve ser usado corretamente: “Assumir o ‘aqui-e-agora’ de modo efusivamente carinhoso, admirando-o como a única coisa que temos, por enquanto; eis aí, ao mesmo tempo, e para dizer de modo simples, a grande regra do manual de instruções de Deus. São Francisco de Assis pretendera anotá-la em sua canção dedicada ao sol, esse sol que, no momento em que o santo morria, parecia-lhe ainda mais maravilhoso do que a cruz, que servia apenas para ‘indicar’ o sol... Quantas vezes já não se deve ter feito a tentativa de reconciliar a recusa cristã (do mundo) e a evidente amistosidade e alegria da Terra”. Relação com Deus? É decisivo repousar em Deus, existir completa­ mente para Deus: “Olhem, eu quero ser útil a Deus do jeito que eu sou; o que eu faço aqui, o meu trabalho, é isto que quero fazer, caminhando em sua direção, sem que meu fluxo seja interrompido, se é que posso me expressar assim; nem mesmo por Cristo que, um dia, foi água para muitos... Não quero me deixar passar por mau graças a Cristo, mas ser bom para Deus. Não quero que me chamem de pecador já desde o come­ ço, talvez eu não o seja. Tenho manhãs tão puras! Eu poderia falar com Deus; não preciso de ninguém que me ajude a escrever cartas a ele”. Ser útil a Deus, ser bom para Deus, falar com Deus: de que forma isso combina com a denúncia de crítica à religião feita por Rilke quanto à fé em Deus? Como se concilia com a convicção da perda de Deus, manifes­ tada em “Ewald Tragy”? Como se concilia com as convicções descritas nas Visões de Cristo: o céu — vazio; Deus — uma ficção; orações — a eterna ilusão do ser humano? Para responder a essas perguntas é preciso lembrar o seguinte: como nenhum outro grande escritor do século XX, Rilke esteve, ao mesmo tempo, muito distante e bem próximo do cristia­ nismo. Somos testemunhas de um processo muito particular de trans­ 84

—--------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

formação da essência religiosa, de uma certa metamorfose da essência cristã, para a qual praticamente não há paralelo na literatura alemã. Nenhum dos grandes autores acabou de tal forma com a metafísica cristã e, ao mesmo tempo, “serviu-se” tão livremente da herança do cristianis­ mo como Rainer Maria Rilke; ninguém partiu tão decididamente para o conhecimento de uma anticristandade raivosa e, ao mesmo tempo, incor­ porou o universo cristão tão criativamente quanto esse poeta da cidade de Praga. Vamos observar mais de perto.

6. Arte e religião: a viagem para a Itália Em seus textos, Rilke utiliza “formas” cristãs tradicionais: seu Stundenbuch (Livro de horas) imita os antigos livres d’heures franceses, breviários pagãos usados já desde os fins da Idade Média e freqüentemente adornados com miniaturas. Suas Geschichten vom lieben Gott (Histórias do bom Deus) são reproduções de lendas cristãs. Seu Das Marien-Leben (A Vida de Maria) é orientado pela iconografia cristã, refletindo a madona de modo meditativo. E Rilke sempre volta a recorrer às formas da oração, do réquiem (I, 469; II, 647-664; III, 104-107), da missa e das visitas à igreja. Para expressar sua compreensão da arte, Rilke mergulha com prazer em alguns papéis marcadamente eclesiásticos: não se podem compreen­ der seus “Gebete der Mãdchen zu Maria” (“Orações das meninas a Maria”) sem ter presentes os monges-pintores Fra Angelico ou Fra Bartolomeo; nem o Livro de horas sem ter em mente os “irmãos de ba­ tina” mencionados nos poemas, os monges russos da pintura icônica. Ser artista e ser monge, entregar-se a Deus e à arte, para Rilke isto é tudo uma só coisa. O universo lírico de Rilke está repleto de figuras religiosas arquetípicas: — Figuras do Antigo Testamento-, “Davi canta diante de Saul” (II, 488); “O jejum de Josué” (II, 490); “Consolação de Elias” (II, 563); “Saul entre os profetas” (II, 564); “A aparição de Samuel a Saul” (II, 565); “Profeta” (II, 566); “Jeremias” (II, 567);. “A queda de Absalão” (II, 569); “Ester” (II, 570); “Adão” (II, 583); “Eva” (II, 584); “O retorno de Judite” (III, 38); “A morte de Moisés” (II, 102 s.). — Figuras do Novo Testamento: “Os três reis magos” (I, 411); “A partida do filho pródigo” (II, 491); “A ressurreição de Lázaro” (III, 49 s.); “As pala­ vras do Senhor a João em Patmos” (III, 108 s.; 440-443). 85

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

— Figuras de santos cristãos: "São Sebastião” (II, 507) e “São Jorge” (II, 618; v. III, 28); “São Cristóvão” (II, 58-60); “As Mártires” (I, 382); “A Santa” (I, 383). — E as figuras recorrentes de Cristo e de Maria: “O jardim das oliveiras” (II, 492); “A crucificação” (II, 581); “O ressucitado” (II, 552); “A santa ceia” (II, 591); “Emails” (III, 55); “A descida de Cristo ao inferno” (III, 57); “Anunciação” (I, 409). Ou ainda “Pietà” (II, 494); “A procissão de Maria em Gent” (II, 536); “Magnificat” (II, 583); “A ascensão de Maria aos céus” (III, 46 s). — E não se podem esquecer as muitas figuras de anjos na obra de Rilke: não apenas nas “Elegias de Duíno”, mas também em inúmeros poemas anterio­ res: “Os anjos” (I, 380); “O anjo da guarda” (I, 281). Como se explica isso tudo? Como se explicam essa distância e pro­ ximidade simultâneas? Como o falar de Deus ajusta-se à recusa de Deus? Ora, não se pode chegar à compreensão rilkeana de Deus sem entender a compreensão rilkeana de arte. De abril a maio de 1898 — então com 23 anos —, Rilke fora pela primeira vez à Itália. Em Florença e suas redondezas contemplara os quadros dos grandes pintores italianos da Renascença: Fra Angelico (1400-1455), Fra Bartolomeo (1472-1517), Botticelli (1445-1510), Ghirlandaio (1449-1494), Rafael (1483-1520) e, acima de todos, Michelangelo (1475-1564). Ele confia ao seu Diário de Florença, pela primeira vez com tamanho rigor e riqueza de princípios, sua compreen­ são de arte — oposta à dos “filisteus” (“da qual se pode gozar como de um sono após o almoço ou de uma inspirada de rapé”). Surgem aqui proposições que, a partir de então, passam a fazer parte da autocompreensão rilkeana: a arte seria “o instrumento com o qual o indi­ víduo, sozinho, poderia realizar-se, a si mesmo”. O artista deveria criar para si, “exclusivamente para si”; ele teria de “superar obstáculo por obstáculo e construir-se degrau por degrau, até que, finalmente, pudes­ se olhar para dentro de si”27. Rilke acreditara poder trazer da viagem pela Itália alguma “reve­ lação” sobre Botticelli ou Michelangelo. No entanto, precisou constatar que começava a descobrir-se a si próprio: “Cada um recria o mundo com 27. Cit. conforme RILKE, R. M., “Das Florenzer Tagebuch” (1898), in R. M. Rilke, Tagehücher aus der Frühzeit, org. de R. Sieber-Rilke e C. Sieber (1942), Frankfurt/M., 1973, pp. 13-120.

86

_----------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES OA ESSÊNCIA RELIGIOSA

seu próprio nascimento; pois cada um é o mundo”. Agora, para ilustrar sua compreensão de arte, Rilke recorre até mesmo a comparações com o mundo das ordens religiosas: “A criação do artista é uma ordem religiosa”28. Não admira que Rilke tivesse uma afinidade especial com Fra Angelico e Fra Bartolomeo, monges-pintores florentinos que, com dedi­ cação e solidão devotas — e sem especular quanto à aprovação do públi­ co —, tinham dado forma ao seu mosteiro San Marco. O monge no claus­ tro — completamente entregue à arte, completamente entregue a Deus, o monge que pinta um quadro para servir exclusivamente a Deus, para encontrar Deus em si: este se tornará o paradigma da compreensão rilkeana de arte. Pois também para esses grandes monges-pintores vale o seguinte: Se eles faziam dez mil vezes os mesmos santos e madonas, e se alguns deles pintavam de batina e de joelhos, e se suas madonas continuam a fazer milagres até esses dias, isto é porque eles todos possuíam apenas uma crença, e apenas uma religião os fazia arder completamente: a saudade de si mesmos. Seus mais altos encantos eram as descobertas que faziam em suas próprias profundezas, Temerosos, trouxeram-nas à luz, e porque a luz estava então repleta de Deus ELE aceitou suas dádivas29.

Foi disso que Rilke se deu conta ao entrar em contato com a pintura renascentista (cf. Fernsichten. Skizzen aus dem Florenz des Quattrocento [Vistas amplas. Esboços da Florença do' Quattrocento], VIII, 500-503; “Intérieurs”, X, 399-412): o artista, não obstante o que crie — e ele ainda está por criar a obra mais devota —, traz à luz e expressa, no sentido último e mais profundo, apenas o que se esconde na escuridão de sua própria alma. Aplicando-se isto a Deus, tem-se que também Ele precisa ser recriado com cada nova obra de arte. Pois o Deus da infância já morreu, é o que diz Rilke, aquele Deus que teria feito todos de crianças, isto é, seres não-emancipados: “Algum dia ele precisa permitir-se morrer. Pois nós também queremos nos tornar pais”. Para Rilke, então, aquele Deus antigo está morto, “e cada um regressa enlutado do leito de morte do Deus de sua infância; mas até que vá de fato, confiante e festivo, é nele que ocorre a ressurreição de Deus”30. 28. Id., ibid., p. 34; cit. anterior: id., ibid., p. 35. 29. Id., ibid., pp. 37 s. 30. Id., ibid., pp. 46, 47. 87

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Eis o pensamento básico que, a partir de então, dominará a compre­ ensão rilkeana sobre Deus e a arte: “Deus é a mais antiga das obras de arte”; “a ressurreição de Deus” se dá no artista solitário que está acima da massa de pessoas, e por meio dele. Rilke encontrava o “valor último” de seu Diário de Florença justamente na descoberta de uma prática artís­ tica que fosse apenas um caminho e que se realizaria num futuro distan­ te, na maturidade. Não se pode ver com mais clareza o tipo de convicção quanto à tarefa do artista que se firmara no jovem Rilke, de 23 anos: arte e re-Criaçao, é a liberação da realidade íntima no próprio artista. E so­ mente essa realidade íntima é real. Desse modo, a arte é comparável ao trabalho de parto, a um processo de nascimento, e tem a ver com o mistério da maternidade. Por isso não deve causar espanto o fato de Rilke voltar sempre a mencionar figuras de meninas e madonas, tanto em seu Diário como em seus textos líricos de então. É a figura da virgem materna, representada nas telas da Renascença, sobretudo nas de Botticelli, que o fascina: “Na­ quela época vocês criaram as madonas como virgens maternas; nossas amantes tomar-se-ão mães virgens”, é o que anota em seu diário31. E justamente esse paradoxo vinha corresponder à sua imagem da mulher e do artista: virgem que ao mesmo tempo não o é; mãe que ao mesmo tempo não é mãe nenhuma. Surgem os primeiros textos de madonas (“Orações das meninas para Maria”), e a madona corresponde ao tipo de uma mãe que dá à luz o filho, mas sem deixar de ser virgem:

Ser como as outras, você queria, que se vestem recatadas e tímidas; de seda tua alma queria vestir-se seus lamentos, fatigados, de menina a florescer na orla da vida. Mas nas profundezas de tua vida, doente, brotava uma força envolvente, — Sementes afundam sob sol ardente: e você a amadurecer, como o vinho.

E você agora está doce e farta como o cair da tarde sobre nós todos —, e sentimos como caímos aos tombos, e como você nos abafa... 31. Id., ibid., p. 64.

88

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Olha, nossos dias são estreitos, e o aposento noturno — o medo; buscamos todos, sem jeito, buscamos rosas em vermelho. Seja meiga conosco, Maria, florescemos do teu sangue, e só você pode saber, Maria, como dói desejar o reencontro;

Você reconheceu em si mesma, na alma, essa dor de menina: faz-se perceber como neve natalina, mas arde em chamas, incende...” (I, 182 s.)

Só é possível entender esses versos sob a ótica das madonas boticellianas: todas elas mulheres virginais, cujos gestos melancólicos e semblantes fatigados parecem falar da frustração de uma maturidade nunca atingida, como se não tivessem se tornado fruto, mas permanecido flor. Com tais imagens poéticas, que correspondiam a determinado tipo de mulher do Jugenãstil — à femme fragile —, Rilke criou códigos para a auto-interpretação do artista: o artista também tem de parir a palavra, e ao pari-la torna-se mãe, sem jamais poder ser mãe. Assim, o valor da viagem de Rilke a Florença residiu em deixar mais claro o que a arte teria a lhe dar. Nesse sentido, a dimensão religiosa foi de grande importância. A partir de então, Rilke pôde dizer expressa­ mente que o não-artista, ele sim, precisa de uma religião em sentido mais profundo. "Ser ateu”, nesse sentido, significa "ser bárbaro”32. Agora, quando fala em "Deus”, Rilke não se refere a um "mundo transcenden­ tal”, a um "além” cristão, mas à realidade mais real presente no coração das coisas reveladas pelo artista na obra de arte, proferidas e objetivadas por ele em sua obra. Dessa forma, o Diário de Florença termina com as seguintes frases entusiásticas: Assim, cada geração vai passando, como uma corrente, de Deus para Deus. E cada Deus é todo o passado de um mundo, seu sentido último, sua expressão homogênea e, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma nova vida. Como ou­ tros mundos distantes vão atingir a maturidade dos deuses, isto eu não sei. Mas para nós a arte é o caminho; pois, entre nós os artistas é que são os 32. Id., ibid., p. 38.

89

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

sedentos de mundo, os imodestos que não constroem cabanas em lugar algum, os eternos, que avançam para além dos tetos dos séculos. Eles receberam frag­ mentos de vida, e a dão inteira. Mas, se chegarem a receber a vida inteira e carregarem em si o mundo com todas as forças e possibilidades, então eles darão algo — além disso... Pois sinto que somos os antepassados de um Deus e, em nosso mais profundo isolamento, vamos atravessando os milênios, até alcançarmos seu princípio. E isto o que sinto!33

7. A viagem para a Rússia e o “Deus” do Livro de horas Arte como caminho que conduz a Deus; o artista como antepassado de Deus: um ano após a viagem pela Itália, ao partir com Lou para uma primeira viagem pela Rússia (de abril a junho de 1899), Rilke tivera a oportunidade de desenvolver todas essas idéias embrionárias. Um ano mais tarde, de maio a agosto de 1900, a segunda viagem. É a pintura

icônica russa que o atrai então de um modo quase mágico; como na Itália, aqui também lhe ocorrem pensamentos sobre a arte. Ao observar os ícones russos, Rilke nota que são revestidos frequentemente de lâminas de ouro e prata e só se revelam através de uma abertura, de uma cavida­ de, de modo que a impressão de profundidade se acentua: O que vale em relação a cada obra de arte em seu sentido mais elevado, para a pessoa que a sente, é o seguinte: ela não passa de uma possibilidade, e o espaço em que o observador tem de recriar o que o artista antes criara, isso tudo se completa no emolduramento dessas imagens, por meio da devoção dos que rezam diante delas. O povo projeta seus olhares para o interior dos ícones ocos e vê ali incontáveis madonas. E, os semblantes serenos, sua ansiedade criadora dá vida aos. ovais vazios. É aí que, sem lançar mão da forma habitual, o artista precisa arriscar, realizando, no interior da crosta dourada, as visões do povo; à medida que o artista dá ao povo a oportunidade de sonhar para além desse novo conteúdo da imagem, ele mantém a esperança de ascender, de beleza em beleza, elevando consigo todo o povo rumo às realidades maduras de sua alma (X, 496).

Rilke nem bem retornara da Rússia e já começava a sintetizar suas impressões da viagem naquele que viría a ser o primeiro livro do Livro 33. Id., ibid., pp. 119 s.

90

------------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

de horas, intitulado “Da vida monástica” (escrito em setembro/outubro de 1899). Mais tarde, surgem “Da peregrinação” e “Da pobreza e da morte”, que, em conjunto com o primeiro, seriam publicados em 1905. Já no primeiro livro, com versos inauditos que coloca na boca de um monge-pintor russo, Rilke desenvolve a noção do artista como genitor de Deus — noção que descobrira na Itália e aprofundara na Rússia:

Nós vamos te construindo com mão vacilante, empilhando átomo sobre átomo sobre átomo. Mas quem poderá terminar-te, a ti, catedral? (I, 261). Ou de modo ainda mais claro:

E o que seria de ti, Deus, se eu morresse? Eu sou teu cântaro (e se eu rompesse?) Eu sou tua bebida (e se eu vertesse?) Sou teu ofício e tua veste, comigo, perdes teu sentido (I, 275).

E agora, o que temos aqui? Deus será pura criação da “força ima­ ginativa” do ser humano? Falar de Deus não passaria de um “proce­ dimento psicológico no homem”? Será que o Livro de horas e tantos outros textos de Rilke não passam de produtos de um refinado “desencaminhamento anímico ocasionado, por intermédio de uma lingua­ gem pseudo-religiosa, cuja tarefa é esconder ao poeta e ao seu leitor o crasso fundamento materialista”?34 Será que isso tudo não passa de “in­ solência religiosa”, como disse Karl Barth, zangado com Rilke, em uma referência a Angelus Silesius?35 “Insolências”, além do mais, colocadas na boca de um monge? Ou seria Rilke nesse livro, ao contrário, um “ateu melancólico”, um “infiel de consciência pesada”?36 Para colocar em prova o teor de tais críticas, é preciso deixar-se envolver mais intensamente pelos textos. Feito isto, não se deixará de verificar que, ao lado de versos como estes, que soam como pura proje­ 34. Tal a crítica tosca feita por KOHLSCHMIDT, W., "Die grofíe Sàkularisierung. Zu Rilkes Umgang mit dem Worte ‘Gott’”, in FRÜHWALD, W. (org.), Sprache und Bekenntnis. Sonderband des literaturwissenschaftlichen Jahrbuchs. H. Kimisch zum 70. Geburtstag, Berlin, 1971, pp. 335-347, cit. p. 347. 35. BARTH, K., Kirchliche Dogmaük, vol. II/l, Zürich, 1940, p. 316. 36. LEPPMANN, W., op. cit., p. 139. 91

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

ção, há também outras dicções para a representação de Deus nesse Livro de horas. E é justamente aí que essa obra encontra sua especificidade: ela cria uma profusão de metáforas para dar nome a Deus, mas sem efetiva­ mente defini-lo, em lugar algum. Deus é a “torre primordial”, é “escuro e como uma tessitura de mil raízes”, ele é o “vizinho”, do qual apenas uma fina parede nos separa, é a “escuridão” e a “grande força”. Deus é o “cada vez mais profundo”, a “catedral” ainda inacabada, um “espaço”, um “rosto”, uma “presença ilimitada”, a “coisa das coisas”, o “tom mais baixo”, “mais profundo”, “mais suave”, a “floresta das contradições”, o “enigmático”. E assim por diante, imagem sobre imagem. Como ondas, elas se entrecruzam, ultrapassam-se, corrigem-se e se compensam. Poderse-ia chamar esse procedimento de técnica de fluxo de imagens, de téc­ nica de explosão metafórica. Mas essa técnica não repousa apenas no mero acaso, na inspiração recebida; é preciso reconhecer aqui uma estratégia literária. Rilke conse­ gue mostrar, por meio do fluxo inebriante dessa cascata de versos entrecruzados, sem começo nem fim real, quanto a realidade de Deus é literalmente ilimitada, inefável, inconcebível. A profusão transbordante de imagens é expressão do fato de que Deus, em ultima instância, não pode residir em nenhuma imagem, nem ser limitado por palavra alguma, nem apreendido por comparações. Deus é a própria essência vibrante da vida, o desassossego de toda tranqüilidade, e a tranqüilidade de todo desassossego, o zumbido no silêncio e o silêncio no zumbido. Deus — e Rilke consegue demonstrar isto literariamente — é o todo dessa realidade de mil lados, multifacetada, a qual engloba simultaneamente as formas mais altas e mais baixas. Deus não está “além de todas as coisas”, não está “do lado de fora” ou “acima”, mas dentro dé todas as coisas, no coração da realidade, na alma do mundo: “Eu te encontro em todas estas coisas, e sou bom como um irmão para com elas!” Dito de outro modo: a profusão de palavras para expressar Deus não é expressão de um ultraje (hybris), mas, ao contrário, de uma última impotência linguística; a ri­ queza transbordante das metáforas é um indicador da derradeira indizibilidade de Deus. Uma vez que se tenha reconhecido que, para Rilke, transcendência e imanência, este mundo e o além, Deus e as coisas não são mais dois campos da realidade que se possam separar, mas que pertencem um ao outro, que constituem uma unidade complexa, aí então será possível também compreender o lugar do ser humano, que ocupa uma posição 92

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

especial entre Deus e a criação, constituindo uma realidade própria, uma terceira realidade. O ser humano faz parte da criação, mas também pode ser, ele mesmo, criador. O ser. humano está, ao mesmo tempo, “na” criação e “de frente” para ela. E preciso definir essa posição dupla, e Rilke o faz ao deixar oscilar a relação do ser humano com Deus entre a autoconfiança e a humildade. Assim, por um lado temos a linguagem da auto­ confiança do homem criador: “Nem percebes, Deus, quando te pinto”; “Tu te alegras com todos que te utilizam como instrumento”; “Mas em sonho, por vezes, posso visualizar todo esse espaço, das profundezas do princípio até o topo dourado do telhado. E o que eu vejo: meus sentidos dão forma e constroem os últimos ornamentos”. E o ponto alto dessa linguagem da autoconfiança é, sem dúvida, a frase citada acima: “Comi­ go, perdes teu sentido”! Em contrapartida, há a linguagem da humildade. Não por acaso Rilke (sobretudo no primeiro e no segundo livro) escolheu o papel de um monge para articular sua compreensão de Deus: um homem cuja vida está radicalmente posta a serviço de Deus, um homem submisso a regras e compromissos. “Nós não nos permitimos pintar-te com nossas próprias forças” — esse verso, logo no começo do “Livro da vida monástica”, sugere a autolimitação e a auto-anulação do ser humano. Ele não quer pintar a si próprio, mas honrar a Deus com sua pintura; ele sabe que uma arte que desejasse captar Deus em uma imagem não passaria de blasfêmia. Por isso, a vida do artista-monge (e a de qualquer artista) é, basi­ camente, uma contradição em si própria, uma possibilidade impossível: o artista, como tal, precisa ser objetivo e criar re-produções, embora esteja ciente de que elas precisam fracassar “diante de Deus”. Apenas com base nesse paradoxo é que se pode compreender versos tão “escandalosos”: “Nós vamos te construindo” — mas com “mão vacilante" A noção de Kierkegaard de “temor e tremor” como postura básica do fiel ante Deus não se distancia muito disso. E assim também fica claro que. a pergunta “mas quem poderá terminar-te, a ti, catedral?” não pode ser entendida como blasfêmia, e sim como uma pergunta retórica. Não, o artista como genitor de Deus não é o produtor, o inventor, aquele que faz Deus — assim como quem sopra o ar para fora de seus pulmões também não “cria” o ar naquele instante, nem o “produz”. O artista apenas traz à tona algo que constitui a base da realidade, torna audível e visível o que, há já muito tempo, existe de modo oculto, obscuro e bem enraizado — assim 93

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

como quem depende do ar para viver mas, em contrapartida, torna-o audível através de sua própria respiração. Rilke não é um seguidor trivial de Feuerbach. Sua frase “Comigo, perdes teu sentido” deve ser entendida s literalmente. Não significa: comigo perdes tua existência ou a razão de existir. Pois — pela terceira vez a analogia —, assim como o ar se torna sem sentido quando não existe um pulmão que o respire, do mesmo modo Deus também perde seu sentido quando o artista não o faz visível em sua obra de arte. O próprio texto do Livro de horas dá indícios de que Rilke deva ter previsto repreensões a essa “insolência religiosa”. O “Livro da vida mo­ nástica” já lança mão dessa crítica; mas justamente nesta passagem sur­ gem coincidências notáveis e paradoxais de humildade e auto-afirmação: Se é atrevimento, meu Deus, perdoa. Mas com isto só quero te dizer: sê como impulso, meu máximo esforço, assim, sem zanga e sem temer; assim como as crianças te têm amor.

E ao inundar, e ao desembocar em braços largos no mar aberto, nesse sempre crescente regresso, quero te proclamar, te anunciar como jamais se fez. E se isto é soberba, então soberbo deixe-me ser em prol de minha prece que se põe tão só e séria ante a tua face anuviada (I, 259).

Fica claro: não se pode fazer jus à discussão sobre Deus, nesse texto altamente complexo, com categorias rasteiras como “linguagem pseudo-religiosa”, “produto da imaginação humana”, mascaramento de um “fun­ damento materialista” ou de “ateísmo”. Não se pode apreender a posição de Rilke com categorias tradicionais. E tudo se complica quando o poeta, no segundo livro (“Da peregrinação”, escrito em Worpswede, em setem­ bro de 1901), acentua e explicita ainda mais o próprio distanciamento em relação a posições tradicionais conflitantes entre si: ele quer estar distante dos “pagãos”, dos “questionadores” e também dos “cristãos”. Rilke deixa claro que seu Deus não tem nada a ver com qualquer forma de superstição viciada em milagres: 94

-------------------------------

RAINER MARIA REI IKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Poderías abrir as veias de uma cordilheira como sinal de grande feito; mas não te empenhas com efeito por quem não te queira (I, 319). Rilke deixa claro que seu Deus nada tem a ver com qualquer forma de buscas e questionamentos voluntariosos: Quem pergunta, pouco importa a ti. Com semblante tranquilo, observas é quem carrega.

Os que te procuram te procuram seduzir. E te associam, ao te descobrir, a imagem e gesto (I, 319). Por fim, Rilke não quer que seu Deus tenha algo a ver com cristia­ nismo e Igreja:

Não queres brigar com toda astúcia nem queres buscar o amor da luz; pois não te despertam qualquer atenção os cristãos (I, 319). E nada de igrejas que circunscrevam a Deus como um refugiado, e que Iamuriem ao ouvido seu como animais feridos e presos — as casas dão a todos boas-vindas mas um sentimento de sacrifício sem fim trafega em mim, em ti, no que fazemos.

Nada de esperar o além, lançar o olhar adiante; apenas o desejo, ante a morte, de não a profanar, e de manter-se solícito nesse mundo, e atuante, para não ser mais novo às mãos dela, quando lá” (I, 329).

A alternativa? Para Rilke, trata-se de deixar que Deus seja Deus; deixá-lo amadurecer; e tornar visível sua lei:

Mas quero te conhecer como a Terra te conhece; com meu amadurecer amadurece o reino em que reges. 95

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Não espero de ti atitude vaidosa, para tua existência, nenhuma prova. Sei que o tempo que escoa para si outro nome apregoa, não o teu. Por mim, nada de milagres impossíveis. Faze apenas valer tuas leis, que geração após outra, de novo a cada vez, tornam-se mais visíveis (I, 319).

Eis do que se trata: tornar as leis âe Deus mais visíveis — por meio da arte, buscar o efêmero no mundo e eternizá-lo — por meio da palavra do artista: Por ti, e nada mais, enclausuram-se os poetas: ricas e extasiantes, as imagens que coletam; eles partem, e a cada metáfora amadurecem, passam as vidas a sós, e assim permanecem... E os pintores só pintam suas telas, para que tu recebas de volta, eterna, a natureza que concebeste efêmera: tudo se eternizará. Vê! Há tempos a mulher que habita a Mona Lisa amadureceu sem nem perceber qual vinho no tempo de se beber; não se precisará mais de nenhuma mulher, pois coisas novas, não as trará mulher nenhuma. Os que dão forma são como tu. Querem a eternidade. E dizem: pedra seja eterna. Ou seja: seja tua! (I, 315).

Assim, é preciso ler o Livro de horas como uma forma única de recusa do materialismo, do ateísmo e da superstição, como grande e única tentativa de ainda falar da realidade de Deus após o colapso da antiga metafísica. Lê~lo — após a “morte de Deus” —- como tentativa de salvar o discurso sobre Deus, por meio de sua aceitação no âmbito da arte. Depois de a crença tradicional ter esvaziado o céu, o artista se torna o paradigma do homem criador, que põe a salvo o discurso sobre Deus e ao mesmo tempo devolve a Deus o que ele sempre foi: a mais real das 96

------------------------------- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

realidades no coração de todas as coisas, a força vibrante que mantém tudo unido, a energia pulsante que é a base de todos como unidade. O Livro de horas é uma aventura linguística que perpassa as questões divi­ nas com o auxílio de cascatas de versos, acúmulos lexicais e aterros metafóricos. Tudo isso com o simples intuito de criar uma linguagem para o indizível e dar voz ao inefável. Aventura apreendida, a propósito, por um artista que é ao mesmo tempo genitor de Deus e seu súdito mais fiel, Zaratustra e, ao mesmo tempo, Francisco de Assis (o “irmão de marrom” do terceiro livro, “Da pobreza e da morte”). Tal como Rilke escrevera em seu ensaio “Sobre arte”, datado dessa época (1898):

Os outros têm Deus atrás de si como uma lembrança. Para os criadores, Deus é a última e mais profunda realização. E, enquanto os fiéis dizem “Ele é” e os aflitos “Ele era”, o artista sorri e diz “Ele será”. Sua fé é mais que fé, pois ele mesmo trabalha na construção desse Deus. A cada olhar, a cada momento de identificação, a cada um de seus momentos sutis de alegria, o artista lhe atribui um poder e um nome para que esse Deus, em um futuro bisneto, fmalmente se conclua, ornado com todos os poderes e todos os nomes. Esta é a obrigação do artista (X, 427).

8. Religião, sim — aula de religião, não O Livro de horas e as Histórias do bom Deus, escritos na mesma época, cristalizaram, sob a impressão das viagens pela Itália e pela Rússia, a com­ preensão que Rilke tinha de Deus e da arte. Em um grande lance literário como o Livro de horas — para melhor situá-lo na história do pensamen­ to —, Rilke tentara superar o processo tipicamente moderno de diferencia­ ção e autonomização da realidade em dois campos — um mundo “religio­ so” e um mundo “secular” e conceber a religião não mais como uma entre outras dimensões, mas como uma dimensão profunda inerente a toda a realidade. A “prova real” aplicada a um caso político, Rilke tirou-a em 1905, ao envolver-se com uma tentativa sueca de reforma escolar (Samskola), sobre a qual escreveu um artigo. Rilke deparou-se aí com um padrão es­ colar que era aproximadamente o oposto do das instituições militares, aquelas que, quando garoto, tinham lhe ensinado o que é ter medo: É uma escola pouco comum, absolutamente não-imperativa; uma escola que

cede, que não se dá por concluída e se considera, ao contrário, em desenvolvi­ mento, algo por que as próprias crianças devem trabalhar, de forma transfor97

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

madora e determinante. As crianças em um relacionamento mais proximo e amigável com alguns adultos atenciosos, cuidadosos e dispostos a aprender, com seres humanos, professores, se assim quisermos. As crianças são o ponto central desta escola. É de pensar que, com isso, muitas das disposições comuns em outras escolas acabem por sucumbir, Por exemplo: aqueles exames e inter­ rogatórios extrema e miseravelmente constrangedores, aos quais se deu o nome de provas, e os respectivos boletins de nota (X, 672).

E uma das disciplinas que se havia suprimido nesta escola fora a aula de religião. Rilke entende isto como “conseqüente e corajoso” (X, 680), pois uma influência de cunho autoritário sobre essa área sensibilíssima da vida pessoal interior teria subvertido qualquer tentativa de justiça e humanidade realizada anteriormente. Decidiu-se proferir o conteúdo bíblico sob a forma de histórias, segundo as fontes mais puras e despretensiosas. Paulatinamente, pretende-se chegar ao ponto em que não se trate de religião uma ou duas vezes por semana, hoje das 9h às lOh, por exemplo, mas sempre, diariamente e associada a todos os assuntos, em todas as aulas.

Religião associada a todos os assuntos em todas as aulas: aqui lampeja mais uma vez a concepção unificada de Rilke — espelhada na nova concepção de uma Escola Reformada. Assim, convidado a tomar posição, Rilke recebe muito bem uma iniciativa da União dos Professores de Bremen para uma reforma escolar, que também deveria englobar a abolição da aula de religião (X, 683-686; v. XII, 1447-1451). Em sua tomada de po­ sição, Rilke lamenta veementemente quanto “a vida e a realidade” teriam sido “banidas” da escola. Por causa desse “isolamento perverso e incon­ cebível”, a escola estaria “atrofiada”: todo o seu conteúdo teria se torna­ do “uma massa fria e encaroçada”. Sua intenção seria tratar até mesmo o que há de mais fino, sutil e fugaz — subentende-se aí a religião — como um “objeto compacto”. Com isso, se teria conseguido alcançar o oposto à religião. O oposto. Mas quem podería crer que a religião se deixaria oprimir desse modo? — pergunta Rilke. Ora, isso não ocorrería nem por essa forma de restri­ ção prescritiva, nem pela mera abolição. A religião — justamente onde se lhe cerram as portas — encontra “milhares de outros acessos”. Ela nos “aflige” e “agride” onde menos esperamos. Pois, pensa Rilke, é justamen­ te assim que chega ao ser humano: “de investida em investida”, “sob a forma do inesperado, do inefável, do despropositado”. 98

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Uma vez que tenhamos entendido, em última e mais profunda ins­ tância, o que é a religião — a saber, a origem primodial de toda a realidade, o inerente “a todas as coisas”, aquilo que co-move o ser humano continua­ mente —, então poderemos compreender que, quando se trata de religião, não há o sabido, refletido e pronto; mais que isso, compreenderemos que todos, crianças e adultos, são aprendizes, humildes e receptores. De acordo com o Livro de horas, em que a desunião da consciência ainda não é dominante, as crianças estão mais próximas de Deus que os adultos. Isto, em Rilke, é mais que a transfiguração romântica em uma criança de pai impossibilitado. A questão já fora pensada pedagogicamente e concretizada com vistas à prática da educação — com base, aliás, em outro livro famoso, sobre o qual Rilke escrevera uma resenha (X, 584-592), O século das crian­ ças (1900; ed. alemã 1902), da escritora dinamarquesa Ellen Key, feminista e incentivadora de Rilke. Rilke apegou-se firmemente a essa idéia: as cri­ anças são justamente as mais receptivas para a “religião”, pois, para elas, a realidade ainda é uma “grande unidade”. Desse modo, Rilke faria seu monge do Livro de horas dizer o seguinte: Muito confiante e seguro — acordei assim, feito criança: passado o medo, o escuro, iria rever-te, sem tardança. Distância, profundidade, largura... isso tudo meço com o pensamento: mas tu és e és e és, e continuas, inabalado pelo tempo. Para mim é como se de uma só vez eu fosse criança, rapaz e homem, e mais. Eu sinto: o anel só é rico porque retorna ao seu princípio (I, 297). Uma vez entendido que as hierarquias e seqüências hierárquicas atuais invertem-se a partir de uma compreensão correta de religião, en­ tão se terá também o princípio correto para a reforma escolar — e assim se fecha o círculo da argumentação rilkeana. Adultos e crianças, profes­ sores e alunos não estão mais separados hierarquicamente, mas constituem, sim, um só elemento, ao aprender, receber e ouvir: Aí reside o grande significado do avanço que vocês propõem: nas exigências infinitamente maiores e mais abrangentes que, com a omissão das aulas de

99

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

religião, se vêem estendidas a todos os outros objetos do trabalho escolar. A partir desse momento, a aula toda precisa mudar: em lugar da superioridade que afasta as crianças dos que as ensinam, surge uma nova síntese, uma unidade. Diante do eterno e inefável não há mais quem saiba e quem dê; ao contrário, ambas as partes — tratando-se do todo — são humildes e receptoras; e nisso consiste o acordo natural entre todos, seu trabalho comum (X, 685 s.).

9. “Aprender a ver”: Cézanne e as consequências O exercício da compreensão correta de Deus equivale a um exercício de relacionamento correto do ser humano com o mundo, com “as coisas”. Quando se compreende que Deus reside no coração de todas as coisas, que ele é a “quintessência profunda” delas (I, 327), então essas mesmas coisas deixam de ser para os homens matéria sem alma, substância sem essência, massa passível de se tornar instrumento. E então tem fim um determinado posicionamento do ser humano diante da criação, tão típico da modernidade: a ânsia por ter, o desejo de dispor, a designação, a violação, o uso e o consumo. O monge do Livro de horas, em vez de tudo isso, deseja apenas “nomear humilde e despretensiosamente” (I, 295) as coisas em Deus (“em ti”) e “amar as coisas como ninguém” (I, 297). Essa noção de “nomeação” humilde e despretensiosa das coisas aprofunda-se após o Livro de horas e desenvolve-se cada vez mais em Rilke rumo a uma poética programática do “dizer objetivo *' das coisas. Surgem novos textos que se distinguem da atmosfera artística e do pathos tão frequentemente exaltado dos poemas mais antigos. De novo são os pintores que ajudam o poeta a enxergar a realidade de modo diferente; agora, no entanto, não os monges-pintores da Renascença italiana ou da pintura icônica russa, mas os pintores contemporâneos da colônia de artis­ tas de Worpswede, sobretudo Heinrich Vogler, Paula Modersohn-Becker e Clara Westhoff; em seguida, o escultor parisiense Auguste Rodin, e final­ mente Van Gogh e Cézanne. O centro intelectual de Rilke desloca-se de Florêriça e Moscou para Paris, onde ele, à parte alguns eventuais distan­ ciamentos, viverá a partir de agosto de 1902 até a eclosão da Primeira Guerra Mundial; entre outras coisas, atua durante alguns meses (no início de 1906) como secretário particular do famoso Auguste Rodin.

O que Paris significou para Rilke está descrito no romance-diário autobiográfico e facilmente decifrável Os cadernos de Malte Lauriâs Brigge, 100

- ------------------------------ RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

que começa a escrever em 1904, sob a impressão da primeira estada na cidade, e só conclui em 1910, ano de sua publicação. Paris significa con­ fronto com todas as dimensões da realidade, com todos os matizes do mundo exterior das coisas, inclusive com tudo o que é horrível, nojento e repugnante, como só uma cidade grande pode apresentar. Assim como para seu eu fictício, que tentava levar uma vida de escritor em Paris, o jovem dinamarquês Malte, de 28 anos, último de sua nobre linhagem, também para Rilke tratava-se de aprender a ver. Para ambos, no entanto, “ver” significa mais que a percepção do mundo exterior, mais que regis­ trar e descrever. Ver é penetrar imaginativamente o mundo exterior até o ponto em que as coisas liberam sua estrutura profunda, onde se revela a verdadeira realidade e a verdade nelas oculta:

Estou aprendendo a ver. Não sei qual a causa disso; tudo me invade profundamente e não permanece mais no local em que costumava acabar. Possuo um interior que eu mesmo desconhecia. Tudo dirige-se para lá, agora. Não sei o que acontece por lá (XI, 710 s.). Munido desse olhar profundo, o herói do romance passeia pelas ruas de Paris e começa, literalmente, a olhar para as pessoas por trás de seus semblantes: A rua estava muito deserta; seu vazio entediava-me, tolhia-me o passo ao tirar o chão de sob os meus pés e cá e lá soava em torno de meu andar, como se batesse um sapato de madeira. A mulher assustou-se e saiu de si, rápida e veemente demais, a ponto de colher o semblante nas próprias mãos. Eu pude vê-lo pousado ali, sua forma oca. Num esforço indescritível, custou-me muito ater-me às mãos, sem olhar o que delas se arrancara. Aterrorizou-me ver um semblante ao avesso, mas sentia-me ainda muito mais atemorizado diante da cabeça nua e ferida, sem o semblante (XI, 712).

Era exatamente isso que Rilke começava a descobrir e colocava nas palavras de seu personagem Malte: “uma concepção absolutamente dife­ rente de todas as coisas”, um “mundo modificado”. Tudo era novo em Paris, e todos se tomavam “principiantes” em suas “próprias relações” (XI, 775). Assim como o grande poeta francês Charles Baudelaire ousara mostrar o horrível e o repugnante no famoso poema “Une charogne” (“Uma carniça”), assim também o Malte de Rílke queria render-se a tudo o que este mundo contém. Ele entendia como tarefa do artista “enxergar o ente válido entre todos os entes, visível no que há de horripilante e

101

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

apenas aparentemente repugnante. Sem escolha nem rejeição” (XI, 775). Assim como o homem em São Juliano, o hospitaleiro, de Flaubert, que, imbuído de um sentimento de penitência e assistência cristã, mostrava-se receptivo mesmo para com um leproso, assim também se deveria julgar o poeta: segundo “sua capacidade de juntar-se a um leproso e aquecê-lo com o calor cordial das noites de amor” (XI, 775). Mas, ao lado dos poetas Baudelaire e Flaubert, também os pintores ensinaram a Rilke uma ética do trabalho diante da natureza, um aban­ dono da interioridade entusiástica das primeiras obras e uma reorientação da arte anímica e de atmosfera neo-romântica para o mundo exterior das coisas. Cézanne desempenhou aí um papel decisivo; Rilke começara a estudá-lo por ocasião de uma exposição em 1907, realizada um ano após a morte do pintor. São três os aspectos que fazem da experiência rilkeana de Cézanne algo tão marcante, e somos testemunhas desta experiência graças às cartas que Rilke escrevera à esposa, Clara, no período de junho a novembro de 190737. 1. Cézanne torna-se para Rilke um arquétipo da. existência do artista que vive radicalmente o conflito entre vida burguesa e missão artística. Em suas cartas, Rilke volta sempre a mencionar que Cézanne, que vivera até os 40 anos como boêmio, teria passado seus últimos trinta anos de vida trabalhando, mas sem “alegria, como se pensa, e.sim em progressivo ódio, em conflito com cada um de seus trabalhos, que não lhe pareciam alcançar — nenhum deles — o que considerava o mais indispensável”38. O trabalho teria sido tão importante para Cézanne, que ele teria evitado até mesmo comparecer ao enterro de sua querida mãe, já que o trabalho não lhe permitia abrir “nenhuma exceção”. Rilke evocava continuamente a imagem do artista velho, doente e solitário, que teria se tornado, por fora, um tipo esquisito e risível, e que, no caminho entre sua casa e seu ateliê, era vítima do escárnio e das pedras lançadas pelas crianças:

Mesmo velho, doente, consumido pelo trabalho constante e diário até quase desfalecer ao fim de cada tarde (tanto que frequentemente dormia às 6 da tarde, logo que escurecia e depois de engolir o jantar com indiferença); mesmo malvado, desconfiado, e além disso escarnecido, zombado e maltratado toda vez que se punha em seu caminho para o ateliê — ainda assim festejava o domingo, ouvia a missa e as vésperas como uma criança, e pedia gentilmente 37. RILKE, R. M., Briefe über Cézanne, org. de C. Rilke, Frankfurt/M., 1983. 38. Id., ibid., p. 30.

102

______________________________ RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÉNCbX RELIGIOSA

a Madame Brèmond, sua governanta, uma comida um pouco melhor. Talvez ainda esperasse, dia após dia, alcançar êxito, o êxito que ele acreditava ser a única coisa essencial39. Aqui Rilke enxergava paralelos com sua própria autocompreensão como artista. Tomando dois exemplos de vida de artista vivenciados concreta­ mente, Tolstoi e Rodin, que teriam sofrido do mesmo modo sob a tensão insuportável entre profissão e matrimônio, também as cartas a Cézanne sinalizam justificativas para uma vida de solidão espontânea em prol da obra, justificativa a que estava verdadeiramente obrigado como marido e pai de uma criança (em 1901 nasce a única filha de Rilke, Ruth). E quando morre, justamente durante o parto, a pintora Paula Modersohn-Becker, amiga a quem Rilke tanto admirava, ele aproveita o ensejo para tematizar esse problema em um primeiro “Réquiem” (1908). Aqui se pronuncia a palavra dura de uma antiga “animosidade entre a vida e o grande trabalho” (II, 655 s.). 2. Cézanne torna-se para Rilke um arquétipo da existência artís­ tica voltada à realização objetiva e despropositada das coisas. A imagem do cachorro, do velho animal que poderia ficar sentado por horas em frente às coisas, contemplando-as pacientemente, impõe-se a Rilke sem­ pre que pretende descrever Cézanne. Entre as imagens de Cézanne para as coisas que surgem sobre a tela, nenhuma é imitação e cópia, nenhuma é violação imprópria ou desfiguração subjetiva, mas, em gran­ de medida, as coisas em si mesmas — èm um equilíbrio jamais visto entre cor e forma, em um balanceamento inusitado entre os objetos lá de fora e as coisas sobre a tela. Aqui as cores se fundiriam plenamente à realização das coisas, aqui se atingiría um equilíbrio único entre a imagem primordial e a imagem retratada! E justamente isso Rilke vivenciava em si mesmo como missão. Era isso que admirava em Cézanne..— seu trabalho: Esse trabalho, que não tinha mais predileções, tendências nem caprichos es­ quisitos, e cujos componentes, por menores que fossem, eram postos à prova na balança de uma consciência infinitamente sensível; um trabalho que con­ centrava o ente de maneira tão íntegra sobre o seu conteúdo cromático, que iniciava, em um além das cores, uma nova existência, sem lembranças remotas. É essa objetividade ilimitada, que repudia toda e qualquer intromissão em uma 39. Id., ibid., pp. 30 s. 103

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

unidade estranha, que toma os retratos de Cézanne tão es< sitos para as pessoas40.

3. Cézanne é, para Rilke, o arquétipo de uma nova li^ e a religião. Rilke reconhece em Cézanne o artista que, j realização, teria intensificado as coisas “até que elas at fectível”; o artista capaz de fazer das coisas os seus própri obrigá-las a “serem belas, a significar o mundo todo, to toda a glória”41. Rilke, para descrever o trabalho do artist ao recorrer a conceitos marcadamente religiosos, como g surge aqui novamente a noção que já aparecera antes n< Laurids Brigge (obra e biografia são intercambiáveis): im artista deveria enxergar a essência também no horripilanti te repugnante; não se permite uma seleção, pois uma ún viaria da condição de “graça”, tomá-lo-ia “completamentt novamente ele aponta para lenda de São Juliano, de Fia

Deitar-se junto ao leproso e partilhar com ele todo o calor ] o calor cordial das noites de amor: eis o que precisa aconte existência de um artista, em um momento qualquer, como st à sua nova bem-aventurança... Por trás deste abandono c< primeiramente de pequena: a vida simples de um amor qi que, sem jamais se gabar de sua vitória, dirige-se a todos, discreto e silencioso. O verdadeiro trabalho, a completudf começa apenas a partir dessa vitória; e se alguém não pudf chegará a ver, no Céu, a Virgem Maria, alguns santos e pe rei Saul e Charles le Téméraire; mas Hokusai e Lionardo, Verhaeren, Rodin, Cézanne, e até mesmo o Deus amado — 1 ele só poderá mesmo é ouvir falar42. Agora é clara a postura humilde do Livro de horas ( sem posse e sem propósito) mais uma vez radicalizada; e < agora, para caracterizar essa postura básica do poeta, Ri a palavra extrema da linguagem religiosa: “santidade”! ouvir o seguinte, no “Réquiem” a Paula Modersohn-Be 40. Id., ibid., pp. 49 s. 41. Id., ibid., p. 34. 42. Id., ibid., pp. 51 s. Hokusai (1760-1849) foi um mestre da es madeira. Verhaeren (1855-1916) foi o principal poeta lírico belga de

104

- -----------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

E como frutos vias também as mulheres e vias assim também as crianças, a partir do interior, movidas para as formas de sua existência. E por fim vias a ti mesmo como um fruto, e te extraias de tuas próprias roupas, e te carregavas para a frente do espelho, deixando-te entrar inteiro lá, mas não teu olhar; este permaneceu diante do espelho, amplo, e não disse: este sou eu; não: aquele é que é. Assim, afinal, ficou teu olhar, tão sem curiosidade e tão sem posses, tão verdadeiramente pobre, que nem mesmo a ti não cobiçava mais: santo (II, 649).

10. A metamorfose da essência religiosa nos Novos poemas Essa poética do “dizer objetivo” — da qual resultaram textos tão famosos quanto “Der Panther” (“A pantera”, II, 505), “Blaue Hortensie” (“Hortênsia azul”, II, 519), “Rõmische Fontane” (“Fonte romana”, II, 529) ou “Das Karussell. Jardin du Loxembourg” (“O carrossel”, II, 530) — também teve conseqüências para o trabalho com as tradições religiosas. Com tal poética, chega-se a outra metamorfose do religioso, a uma nova apropriação do material eclesiástico e bíblico e à sua reformulação criativa.

1. A oração como ato de relação com as coisas

Como no Livro de horas, em que todos os textos eram orações, Rilke segue cultivando essa forma textual também nas publicações posteriores. No Livro das imagens há um texto intitulado “Oração”. Essa oração, no entanto, assume aqui uma função diferente:

Noite, noite silente, em que se entretecem coisas brancas, rubras, coisas coloridas, cores dispersas, que se enaltecem rumo ao Uno Escuro do Silêncio Uno — liga-me, também a mim, oh, noite, ao Muito que tu conquistas e convences. Lúdicos ainda lidam meus sentidos com a luz? E meu semblante, inoportuno, 105

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

ainda se afasta dos objetos, se exime? Considera minhas mãos, e um juízo emite: elas não estão lá, como instrumento e coisa? E o anel não pousa em minha mão, justo? E não incide confiante sobre elas a luz, como fossem vias que, sob o lume, tal e qual se bifurcam, como na escuridão?... (I, 401).

A diferença em relação ao Livro de horas é evidente. O poema já não se dirige a Deus, mas à “noite silente”. A oração já não tem um interlocutor, nenhuma instância transcendente; ela se transforma, isso sim, em um ato de meditação, de autodeterminação e na delimitação do lugar de quem reza. Não se pergunta sobre a vontade de Deus, mas sobre a relação do homem com o mundo das coisas. Fator decisivo não é mais a vertical entre acima e abaixo, mas a horizontal, o relaciona­ mento do homem com os “objetos”. E a noite, para tanto, é o tempo mais apropriado. Pois a noite não é uma fase qualquer do dia, mas o espaço em que as relações das coisas entre si se reordenam, e em que a relação do ser humano com as coisas também pode ser vista de maneira nova. A noite, ao contrário do dia, não é o tempo da separação (claro-escuro), nem o da diferenciação evidente (acima-abaixo), mas o tempo da unidade, da fusão, da profundidade. A noite, portanto, é o tempo em que o ser humano, no relacionamento com as coisas, não recorre mais ao jogo excessivo “com a luz” e não afasta mais o rosto “inoportuno” dos ob­ jetos. Escuridão e silêncio são “espaços” em que o ser humano passa a “confiar” nos objetos. Decisivo é ser-aí — existir: a própria existência como uma ferramenta, como um anel à mão. Para Rilke, essa deve ser a única preocupação do ser humano, e a “oração” deve ser a expressão veemente de tal preocupação: é preciso aprender a cultivar uma “rela­ ção” com os objetos na “escuridão” e no “silêncio”. E assim se compreen­ de a estratégia rilkeana para o recebimento de sua herança religiosa, na qual continuidade e descontinuidade se fazem perceber a um só tempo: tal como para quem reza tradicionalmente, também para Rilke é impor­ tante uma tomada de consciência sobre o que há de mais profundo na vida humana. Ao mesmo tempo, porém, essa “oração” não conhece mais uma “contraparte” a que se dirigir, senão apenas estruturas que constituem as relações neste mundo. 106

-------------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

2. 0 profeta como espelho do artista Nos Novos poemas, entre os muitos textos que Rilke dedica a per­ sonagens do Antigo Testamento, há um que trata de “Jeremias”: Antes eu era tenro como trigo novo mas tu conseguiste — tu, o Intenso — incendiar-me o coração moroso, que agora pulsa como o de um leão. Exigiste de minha boca além da conta, e eu era só um menino, lá atrás: a boca tornou-se ferida e dela sangra ano de azar após ano de azar.

Dia a dia fiz soar o anúncio das misérias que tu, Insaciável, imaginaste, matar minha boca elas não puderam; agora cabe a ti ver como saciá-la,

quando os que repelimos e aniquilamos já forem passado e estiverem expulsos, e em meio ao perigo estiverem perdidos: aí vou querer ouvir minha voz soando, renovada, em meio aos escombros — minha voz, desde sempre choro de menino (II, 567 s.).

O poema apreende um momento de reflexão em que Jeremias, o grande profeta da desgraça e do sofrimento nas Escrituras, olha retros­ pectivamente para seu destino ambíguo. Rilke, nesse ponto, atém-se ao traços bíblicos: também o Jeremias bíblico (sécs. VII/VI a.C.), para am­ parar-se contra a missão que Deus lhe impõe, apresenta a objeção de que seria “jovem demais” para ela (Jr 1,6); o Jeremias bíblico — diante da iminente destruição de Jerusalém pelos exércitos babilônicos — tem igual­ mente de anunciar ao povo “ano de azar após ano de azar”. O Jeremias bíblico tampouco foi capaz de evitar que Jerusalém fosse destruída e se tornasse um monte de “escombros” — ele, que começara a entrar em conflito com Deus (“Por que minha dor é permanente?”: 15,18), que amaldiçoou o dia em que nasceu (20,14) e mais tarde teve de morrer no Egito, exilado e anônimo... O texto de Rilke, no entanto, vai além e atribui grande valor ao caráter coativo da missão profética, estritamente relacionada à sua visão 107

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

de Deus. Deus, nesse texto, é o Intenso, o Insaciável. E eis o que perfaz a ambigüidade do destino do profeta: a exigência de Deus imposta a um homem, de que este abra a boca “para arrancar e derrubar, para arruinar x e demolir’* (Jr 1,10), ou de que ele, como no poema, anuncie diariamente “novas misérias”, o que coloca o próprio profeta em posição de miséria extrema. Esse nexo interessa a Rilke, pois tal experiência é vivida tam­ bém pelo poeta: deve-se falar, mas com isso se incorre em uma situação de miséria, em uma posição marginal assumida espontaneamente. Por­ tanto, não se pode entender o poema sobre Jeremias sem vê-lo como uma auto-interpretação velada do poeta. Rilke não está interessado no tema profético em virtude de uma teologia do Antigo Testamento, mas em virtude da interpretação de seu próprio destino como artista; e “seria perfeitamente possível comparar a inexorabilidade do ‘Senhor’ com as exigências dos modelos assumidos por Rilke como seus (primeiro Rodin, Cézanne e Van Gogh logo a seguir): ‘Il faut travailler, rien que travallier... J’ai donné ma jeunesse’”43. A experiência de sentir-se chamado, e de sentir sobre si o peso da instância e da inexorabilidade da exigência de um Deus insaciável, era bem familiar a Rilke.

3. “Crucifixão” como verbalização do repugnante Um poema intitulado “Crucifíxão”, também em Novos poemas, dei­ xa claro o destino a que conduz o programa de um “dizer objetivo”:

Costumados a tocar ao madeiro a corja que fosse, não importava, cumpriram o serviço rotineiro: ladeira acima, seus rostos pousavam

còm um esgar sobre os três infelizes. No monte, cumpriram a algozaria sem demora; e tarefa feita, livres, ficaram por all, na calmaria. Um deles, manchado como açougueiro, quebrou o silêncio: “Esse aqui gritou, 43. É o que afirma, com razão, STAHL, A., Rllke-Kommentar zum lyrlschen Werk, München, 1978, pp. 227 s.

108

-------------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES D?\ ESSÊNCIA RELIGIOSA

Capitão”. — “Qual?”, este disse altaneiro, de seu cavalo; e a impressão lhe ficou de que o ouvira chamar Elias.

Olhares de prazer ante a visão: para prolongar-lhe a agonia, impingiram-lhe fel — ver se hebia! —, mas a boca ofegante tossiu “não”,

Pois todos queriam entreter-se, ver, quem sabe, Elias, se viesse. Mas, súbito, Maria a condoer-se grita, E ele mesmo: gane e falece (II, 581). Provavelmente não há forma mais drástica de mostrar o resultado ao qual pode conduzir um “dizer objetivo”. Pois aqui prevalece a objeti­ vidade, a ponto de se tornar indiferença e frieza. E mais uma vez — também nessa fase — Rilke confronta-se com o Nazareno. Se no poema sobre Cristo de 1893 ele ainda tratava de descrever a própria despedida pessoal de um Cristo que se considerava “Deus” (a despedida se dá em meio a “lágrimas” e “dúvidas discordantes”), e se nas visões de Cristo de 1896 e 1897 ainda importava a Rilke uma auto-representação do Nazareno como o pelejador, o sofredor, o pobre e ludibriado ~ o que predomina hoje, nesse novo poema, é o completo distanciamento, a objetividade fria. O interesse de Rilke volta-se inteiramente a representar a crucifíxão de Cristo como um acontecimento concreto, com riqueza de detalhes, mes­ mo os mais brutais: tudo sem coloração amenizadora, sem sublimação teológica, sem espiritualização devota. (No mesmo volume, ver ainda o poema “Der Õlbaum-Garten” [“O jardim das oliveiras”], II, 492-494.) Por isso já se indicam na primeira estrofe .um terreno descampado onde ficam as cruzes, a corja de ladrões, os esgares nos rostos dos servos responsáveis pela crucifíxão e os “três infelizes” E por isso as rimas abjetas e rigorosamente calculadas: “algozaria” e “calmaria”, “prazer ante a visão” e ífboca ofegante tossiu ‘não’”. Por isso a postura distanciada do capitão, que nem sabe muito bem qual deles poderia ter gritado. Por isso a indicação da madona que grita, o estertor e o falecimento do crucifica­ do, ao final. Rilke, desde o início, faz de tudo nesse poema para levar ad absurdum toda e qualquer significação teológica ou espiritual dos acon­ tecimentos na cruz. Mais que isso, toma para si mesmo a perspectiva dos algozes e daqueles que esperam um entretenimento ainda mais duradou­ ro diante daquela visão, além da aparição do profeta Elias. Rilke, portan­ to, assume antes a perspectiva dos que não têm noção alguma do que

109

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

possa estar em jogo com essa morte. A “Crucifixão” torna-se, nos Novos poemas, o paradigma de um “dizer objetivo” que se mostra disposto a incorporar e expressar, como parte da realidade, mesmo o que seja repug­ nante e abjeto.

4. Ressurreição: compreender o qu.e é amor Um dos grandes temas dessa época é o do amor, e Rilke trilha nesse ponto um caminho muito peculiar. Para o encerramento de seu romace Os cadernos de Malte Laurids Brigge, apresenta uma inversão da parábola neotestamentária do filho pródigo: este se torna um tipo de pessoa que não quer ser amada. Pois o amor, para Rilke, apresenta sempre um compo­ nente coativo, possessivo, reivindicativo. Quem ama transforma o outro em objeto do próprio amor, das próprias inclinações, transforma-o em prisioneiro de seus cuidados. A tal compreensão, Rilke contrapõe outro tipo de amor, que inde­ pende do anseio possessivo, da contrapartida, de um estar frente a frente. Nos Novos poemas ele codifica essa problemática em um texto sobre o “Ressuscitado”:

Jamais ele conseguiu por completo levá-la à renúncia: não prescindia de anunciar aos ventos seu amor; e, à cruz, pousou o manto de dor sobre si mesma, vestiu-o repleto de pedras, sinais do amor que sentia.

Mas visto que ela veio ao sepulcro com lágrimas na face, para ungi-lo, por ela ele ressuscitou, em júbilo ainda maior: ela .devia ouvi-lo —

e ele disse “Não”. Depois de dias, na gruta ela veio entender: mais forte em virtude da morte, ele proibia o alívio do óleo e do toque; pretendia tomá-la em uma amante que não se volta mais ao ser amado, pois — de enormes tormentas já distante — ela, em face da voz dele, ultrapassava-a (II, 582). 110

RAINER. MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Também nesse poema, Rilke abandona uma vez mais todos os as­ pectos teológicos da ressurreição de Cristo. Nada se ouve sobre a dimen­ são cosmológica, cristológica ou escatológica desse evento. Rilke projeta a ressurreição exclusivamente sobre a figura de Maria Madalena, que se destaca na Escritura justamente como a mulher que ama. Assim, também o amor é o assunto do poema, à luz da grande cisão marcada pela morte de Jesus. Antes da morte, Jesus não pôde impedir Maria Madalena de torná-lo objeto de seu amor. Esse amor foi expresso mais uma vez aos pés da cruz, e depois, por fim, no sepulcro, ao qual ela se dirigiu com “lágri­ mas na face” para prestar um último ofício ao amado. Mas aí ocorre a grande reviravolta: somente após a morte de Jesus, em uma “gruta” — faz-se alusão a lendas da tradição, segundo as quais Maria Madalena teria passado o resto de sua vida em uma gruta —, somente aí essa mulher compreende a lição que deveria ter entendido: a lição de um amor que “não se volta mais ao ser amado”, e que não precisa voltar-se para ele, já que é livre por completo. A lição, portanto, de um amor sem posse, sem exigências, sem “frente a frente”. Com “Ressurreição”, portanto, não está relacionada nenhuma con­ vicção em sentido cristão (não se trata da fé na superação da morte,

proporcionada por Cristo). Mais que isso, ressurreição é aqui o símbolo de um novo posicionamento do ser humano diante de uma dimensão pri­ mordial em sua vida: o amor. “Por ela” é qpeJesus teria ressuscitado, lê-se expressamente no texto. Jesus ressuscita para comunicar a essa mulher o que ela já deveria ter entendido antes da morte dele: que o amor só é puro quando nasce da renúncia, quando pode ser completo mesmo sem. a pessoa amada. Portanto, Rilke projeta sobre o relaciona­ mento entre Maria Madalena e o Cristo ressuscitado sua própria com­ preensão do amor verdadeiro, isento de um objeto, isento de posse, da mesma forma que expresso nos famosos versos de seu “Réquiem” a Paula Modersohn-Becker: Pois isso é culpa, se alguma culpa há: não aumentar a liberdade do amor na razão da liberdade que há em si. Quando amamos, o desígnio é um só: abandonar o outro; pois nos prendermos é fácil e dispensa aprendizado prévio (II, 654).

111

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

11. O discurso sobre Deus — em trajes budistas

s

É evidente que a noção de amor sem posse e isento de objeto traz consequências também para o relacionamento do ser humano com Deus. As fases marcadas pelo romance Os cadernos de Malte Laurids Brigge e pelos Novos poemas — se comparadas à do Livro de horas — caracterizam-se notadamente pelo retraimento do discurso sobre Deus na dicção de Rilke. Tal discurso está longe de interromper-se; mas se exime de todo entusiasmo e excesso. A inevitabilidade do discurso sobre Deus já fora demonstrada cabalmente no Livro de horas; mais tarde, porém, só pôde realizar-se de forma mais econômica e contida. Ora, não são tão importantes no romance sobre Malte as alusões à religião da infância do protagonista; nem as alusões ao pai, que “diante de Deus” teria sido “muito correto e de uma cortesia inatacável”, uma espécie de “mestre de caça” a serviço de Deus, por sua maneira muito própria de posicionar-se na igreja, de esperar e curvar-se (XI, 810); nem tampouco as alusões à mãe, para a qual seria uma “bem-aventurança” (se ela tivesse condições) “ajoelhar-se durante horas e prostrar-se e carregar com afeto a grande cruz no peito e em torno ao ombros” (XI, 810). Alusões como essas apontam para o cenário autobiográfico de Rilke e são, no romance, tão pouco originais quanto as alusões ao pregador Dr. Jespersen, marcadas por um tom satírico e pelas críticas à Igreja. Mais importante que essas alusões é o fato de Rilke demonstrar novamente, com seu herói Malte, uma fase decisiva de desenvolvimento nas questões relativas a Deus: com a ruptura com o Deus dos pais, esse mesmo Deus se teria “estilhaçado”, de modo que seria preciso recomeçar “bem do início” (XI, 810). E esse “começar bem do início” acaba por equivaler à experiência inicial do jovem poeta no romance (Malte conta ■: 18 anos na ocasião). Ao começar suas “Notas”, ele teria intensificado a consciência do rompimento, da cesura e do recomeço, chegando a ques-:. tões sempre mais dramáticas: É possível (...) que não tenhamos visto, conhecido ou dito nada de real e de importante até agora? É possível que tenhamos tido milênios para ver, refletir e esboçar — e que tenhamos desperdiçado esses milênios, como se fossem um recreio escolar, em que se come um pão com manteiga e uma maçã? Sim, é possível. E possível que se tenha ficado na superfície da vida, apesar das invenções e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da sabedoria do mundo?

112

- ------------------------------ RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Sim, é possível. É possível haver pessoas que digam “Deus” e pensem tratar-se aí de algo em comum? ... É possível crer que se possa ter um Deus sem fazer uso dele? Sim, é possível (XI, 726-728).

Ter um Deus sem fazer uso dele: eis o programa, ou melhor, a noção central da fé a que chegara Rilke. No romance sobre Malte, demonstrase tal coisa a partir da descrição de um jornaleiro cego no Jardin du Luxembourg. Depois de Malte se haver forçado a olhar em detalhes para essa figura miserável, cumprindo fielmente o programa de um dizer objetivo, vem-lhe à cabeça o seguinte:

Meu Deus — ocorreu-me de supetão —, tu és assim mesmo. Há provas de tua existência. Eu as esquecí todas e não exigi nenhuma, pois qual não seria a responsabilidade descomunal presente em tua certeza. E mesmo assim isso se mostra a mim. Teu gosto é esse, e nisso encontras tua satisfação. Que nós tenhamos aprendido a suportar tudo, e nada julgar. Que coisas são um peso? Que coisas, uma graça? Só tu o sabes (XI, 903).

Nesse trecho o nome de Deus não é mencionado de forma blasfema — como bem observou a germanista alemã Kate Hamburger —, mas como “expressão de uma cognição existencial, da verdade sobre a existência terrena, que é sofrimento e miséria”44. Ter um Deus sem fazer uso dele: a isso corresponde a idéia, já discu­ tida no romance sobre Malte Brigge, de um amor não-possessivo — tam­ bém diante do próprio Deus. Com a personagem Abelone, a irmã mais nova da mãe de Malte e que permaneceu solteira, Rilke descreve a figura de alguém que ama com verdadeira renúncia e verdadeira liberdade. Por parte de Malte, ela merece toda a admiração:

Antigamente, perguntei-me algumas vezes por que Abelone não destinou a calidez de seu maravilhoso sentimento a Deus. Sei que ela ansiava por purificar seu amor de tudo que fosse transitório, mas será que seu coração se enganara quanto ao fato de Deus ser apenas um direcionamento do amor, e não um objeto seu? Ela não sabia que não é preciso temer nenhuma contrapartida amorosa, por parte dele? Será que desconhecia o retraimento desse amante superior, que afasta tranquilamente o prazer, para permitir que nós, os vagaro­ sos, façamos render todo nosso coração? Ou ela queria evitar Cristo? Temia, nele, tomar-se amada, ao ser chamada por ele, a caminho? (XI, 937) 44. HAMBURGER, K., op. cit, p. 77.

113

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Em outras palavras, a relação amante-amado reflete-se no plano da relação Deus-homem. Apenas quando Deus não é objeto do amor para o homem, mas a direção do amor, e quando, por outro lado, também o ser humano não é objeto do amor de Deus, só então se estabelecem relacio­ namentos de liberdade bem-aventurada, de existência plena. Justamente nessa época, e tomando como ponto de partida a frase de Spinoza: “quem ama a Deus não pode almejar em contrapartida que Deus o ame”, Rilke reflete sobre o problema do amor recíproco de Deus, tal como mostra o esboço de uma palestra sobre esse tema que jamais chegou a receber versão definitiva (XI, 1042-1045): E todas as nossas experiências, desde então, não levam a crer que no início a presença de um objeto amado seja de grande ajuda ao amor, mas que depois, na fase madura, ela acabe ocasionando preocupações e rupturas? E os destinos de todos os amantes, segundo o que conhecemos, não acabam estando de acordo com isso? E possível continuar ignorando o júbilo inconsciente nas cartas dos abandonados, no tom de suas lamentações, tão logo se dão conta de que seu sentimento não tem mais o amado diante de si, mas apenas o próprio caminho cambaleante, cambaleante e bem-aventurado? (XI, 1044)

Eis o programa rilkeano: um amor de Deus isento de objeto — enten­ dido em seu duplo sentido, como genitivas subjectivas e objectivus. O que isso vem significar para a compreensão de Deus evidencia-se da melhor maneira a partir da confrontação de dois textos sobre Deus nos Novos poemas. Um deles reflete a posição tradicional do cristianismo, anteci­ pando sinais do colapso deste universo; o outro recorre à tradição do budismo, sobre a qual Rilke projeta sua própria compreensão de Deus e da realidade. Em 1907 surge o poema “Deus na Idade Média”45: E guardaram-No dentro de si mesmos e quiseram que julgasse e fosse, e nele prenderam pesos, por sobre, (para que ao céu não ascendesse) —

prenderam-lhe, das próprias catedrais, massa e peso. Deram-lhe a missão, 45. Quanto a isso, cf. princ, STORCK, J. W., “Aspekte der Mittelalter-Rezeption im Werk Rainer Maria Rilkes”, in KÜHNEL, J. (orgj, Mittelalter-Rezeption III. Ge.sammelte Vortrage des 3. Salzburger Sgmposions “Mittelalter, Massenmedien. Neue Mythen”, Goppingen, 1988, pp. 249-271.

114

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

de que girasse sobre os numerais infindos, apontando; e que a ação

e trabalho deles sinalizasse, qual relógio. Ele, porém, de súbito pôs-se a mover, e a gente do povoado,

pasma com sua voz e em grande susto, deixou-o ir, à mostra as engrenagens, e fugiu de seu mostrador cifrado (II, 502 s.). A tensão poética desse soneto culmina com o momento da ruptura evidenciada por Rilke. Ao longo de nove versos, ele descreve o relaciona­ mento tradicional com Deus, a visão e a compreensão tradicionais de Deus, o uso que se fez dele. Por nove versos a fio, Rilke descreve o interesse do ser humano por Deus: por sua existência em geral e por sua existência como juiz. A imagem do relógio já surge na primeira estrofe. As grandes catedrais são os pesos da engrenagem de um relógio, cujo peso e cuja massa mantêm a máquina em funcionamento. Deus deveria funcionar “qual reló­ gio” e conferir sinais “à ação e ao trabalho” dos seres humanos. Em outras palavras, Deus tinha (“na Idade Média”) uma função de ordem e orienta­ ção claramente definidas para a vida das pessoas. Usaram-no amplamente. De súbito, porém, tudo se modifica no poema. Deus se liberta da função estrita a que o haviam reduzido, e esse Deus, em movimento pleno, e que não funciona mais como massa e peso das igrejas, desenca­ deia nas pessoas temor, pasmo e fuga. Deus pode seguir adiante, porém traz agora sua engrenagem dependurada e “à mostra”. Em contrapartida, leia-se o poema “Buda”, como a seguir:

Qual ele ouvisse. Quietude: distância... Detemo-nos, deixamos de escutá-lo. Ele é estrela. E outras estrelas grandes, que não vemos, estão a circundá-lo. Oh, ele é tudo. Esperamos de fato que nos veja? Precisaria disso? E se diante dele nos curvássemos, continuaria soturno qual bicho.

Pois o que nos arrasta a seus pés gira dentro dele há milhões de anos. Ele, que esquece o que a vivência é, e que vivência o que nos orfana (II, 496). 115

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

A criação desse poema foi motivada por uma estátua de Buda vista por Rilke no jardim de Rodin, em Meudon. Em uma carta de setembro de 1905, o poeta já mencionava a “quietude fanática” de uma figura de Buda com a qual deparara46. De fato, o verso inicial do poema, “Qual ele ouvisse”, só pode ser entendido a partir da posição de um observador externo. Palavras-chave são “quietude”, “distância”, “estrela”. E os con­ ceitos centrais se manifestam em expressões como “tudo” e “de fato”, no primeiro verso da segunda estrofe. Eles preparam o leitor para o que é decisivo no poema: esse Buda é um “Deus” que justamente não precisa de nós e que, caso nos curvássemos diante dele, não reagiria. Buda é o Deus com quem o ser humano não logra travar nenhuma relação, que não quer ser amado nem corresponder ao amor, e que, por isso mesmo, torna o homem livre. Um Deus que é a verdade e a realidade, e que encontra expressão no poema graças à metáfora do movimento giratório de milhões de anos. Buda é o Deus que já vivenciou o que nos torna órfãos — e “orfana” aqui é uma palavra de sentido ambíguo, que signi­ fica ao mesmo tempo uma repreensão, mas também a indicação de um caminho. Assim, em um poema posterior de Rilke, Buda pode ser chama­ do o “centro de todos os centros, cerne dos cernes”, um Deus ao qual nada se “apega”, e que estabelece portanto um contraste extremo em relação ao Deus da Idade Média, sobrecarregado com . os interesses dos seres humanos. Com os argumentos e informações propostos até agora, podemos ousar uma rápida incursão pela complexa obra tardia de Rilke.

12. A compreensão da realidade na obra tardia Caminho pela Maívasinka, ladeio a fila das crianças; serena e boa, Anka ou Ninka no berço derradeiro descansa. Oculto entre papoulas altas no cimo irregular da colina, 46. Cit. conforme STAHL, A., op. cit.,' p. 201 s. Ao lado da leitura casual de uma edição dos discursos de Buda (Edição Neumann), não há outros conhecimentos de Rilke sobre o budismo que possam ser comprovados. Também aqui Rilke apreendeu a “essência” de Buda não de maneira analítico-intelectual, mas visionário-intuitiva.

116

-------------------------------

RAINER MARIA REILKE E AS ME1AM0RFQSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

feito de barro, asa quebrada e cheia de pó: um anjinho. Pobre da criança aleijada em sua asa — deu-me dó... Mas vê! De seus lábios, diáfana, pequena, a borboleta solta-se (I, 23).

O texto integra Sacrifício aos Lares (1895), já mencionado. Título desse produto deplorável: “O anjo”! Nem bem passados dezessete anos, em 21 de janeiro de 1912 — Rilke vive então no castelo da princesa Thurn e Taxis, em Duíno, às margens do Mar Adriático —, nasce a primeira das Elegias, com os famosos versos iniciais: “Quem, nas ordens de anjos, me ouviria se eu gritasse?” (II, 685) Ora, não há melhor exem­ plo para o desenvolvimento de Rilke: de um inofensivo poema emotivo sobre a estatueta de um anjo no cemitério de Praga (“Malvasinka”), sofrível até mesmo quando comparado aos demais poemas de Sacrifício aos Lares, chega-se a uma poesia em que o anjo surge como imagem calculada, e ainda assim profundamente poética, de uma compreensão da própria existência. Como entender essa nova poesia, sob o aspecto religioso?47 Depois de toda a história pregressa esboçada até aqui, já não sur­ preende que Rilke, a partir do mundo religioso cristão, empreenda agora suas próprias metamorfoses. E o que se dá aqui com a figura do anjo que o próprio Rilke, em vida, tratou de desvincular por completo dos anjos da tradição cristã. O anjo nas Elegias de Duíno — concluídas somente depois de dez anos, no dia 26 de fevereiro de 1922, em Château Muzot — nada tem a ver com os mensageiros divinos que na tradição judeu-cristã comunicam a vontade de Deus aos homens e mulheres e, como seres intermediários, devem tornar visível aqui na Terra a proximidade e a distância de Deus. 47. Sobre as Elegias de Duíno, cf. princ. FÜLLEBORN, M, (org.), Rilkes Duineser Elegien, vols. I-III, Frankfurt/M., 1982-1983. O vol. I (1983) contém depoimentos do próprio poeta sobre o surgimento e interpretação das Elegias; o vol, II (1982), artigos selecionados dentre os estudos especializados; e o vol. Ill (1982), textos sobre a história da recepção. Da perspectiva teológica, continua de fundamental importância o estudo de GUARDINI, R., Rainer Maria Rilkes Deutung des Daseins. Eine Interpretation der Duineser Elegien, München, 1953. Do ponto de vista biográfico, é importante considerar SALIS, J. R, von, Rilkes SchweizerJahre. Ein Beitrag zur Biographic von Rilkes Spatzeit (1952), Frank­ furt/M., 1975.

117

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

s

Eis aí o primeiro elemento que chama atenção nessas elegias: nelas, a menção direta a Deus praticamente desapareceu. Se o Livro de horas ainda era inteiramente composto de orações, e se Os cadernos de Malte Laurids Brigge ainda contavam ao menos com vestígios de orações ou imprecações diante de Deus, agora só há duas ocorrências da palavra Deus em todas as dez elegias (II, 687, 714), e em contextos sem impor­ tância. A posição antes ocupada por Deus foi agora assumida pelos anjos ou então pelos “Deuses” (Segunda Elegia: II, 692), pelo “Espaço” (II, 685) ou pelo “Universo” (II, 719). Tais sinônimos relativamente arbitrá­ rios já demonstram que para Rilhe, nesses seus textos, não importa ofe­ recer uma figuração plena do universo divino. Tampouco interessam-no reflexões de teologia sistemática sobre a relação entre Deus, a Criação e o ser humano, nem sobre a relação entre Deus, anjos e ser humano, nem tampouco a distinção entre “Deus” e “Deuses”, de grande importância na história das religiões e do pensamento. A vagueza da escolha lexical, que destoa diante de uma composição tão precisa e exata com as demais palavras, só faz ressaltar esse seu desinteresse. Nas elegias trata-se de outra coisa: trata-se, em uma formulação extremamente sintética, da autocogniçao do ser humano e do lugar do ser humano no mundo. Contudo, para descrever essa posição do ser humano no mundo, Rilke contrói espaços imensos e faz surgir grandes dimensões que tor­ nam visível o lugar que o ser humano de fato ocupa. Assim, as Elegias não podem ser entendidas sem os espaços que abrem, e que são pelo menos quatro:

— nelas o espaço ou o universo e as ordens dos anjos são independentes do ser humano, e independente de tudo isso a realidade de Deus ou dos Deuses; — nelas também está o mundo do eu ou do nós, do qual se diz ser o “mundo interpretado” (Primeira Elegia). A esse mundo pertencem outros grupos ainda: os animais, os “viajantes” (os artistas da Quinta Elegia), os amantes; — nelas está presente o mundo interior do eu, no qual, por via visionária, onírica ou mnemônica, figuras do passado reaparecem, logo que a “corti­ na” do “coração” se descerra: a mãe (Terceira Elegia), o pai (Quarta Ele­ gia) ou a boneca (Quarta Elegia); — finalmente, está nelas o mundo dos “mortos jovens”, dos “arrebatados preco­ ces”; para eles é “penoso” estar morto (Primeira Elegia), e portanto ainda permanecem em contato com o mundo dos vivos por mais um tempo, desprendendo-se apenas aos poucos. 118

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Nessa tessitura de espaços, porém, algo é decisivo: os mundos estão imbricados entre si, não se separam uns dos outros, e constituem uma complexa unidade. Aquém e além, vida e morte, tempo e eternidade não consistem em planos ou fases divididas, mas se superpõem. E isso vale tanto mais para os anjos, os amantes e os mortos precoces que para os seres humanos. Já na Primeira Elegia se lê sobre os anjos: “Os anjos (dizse) frequentemente não sabem/se caminham entre vivos, ou entre mor­ tos”. Sobre os que morreram jovens, na mesma elegia: “E por fim não precisam mais de nós, os arrebatados precoces... Mas nós, que precisamos/de mistérios tão grandes, dos quais não raro, por força do luto,/um avanço bem-aventurado brota: poderiamos ser, sem eles?” E justamente os amantes permitirão intuir algo sobre a eternidade do tempo. Quando se entende que essa abertura dos espaços imensos desempe­ nha a função de um autoposicionamento do ser humano, então também se entende a função dos diferentes grupos de comparação que se constituem em torno do ser humano: sobretudo anjos, amantes e animais. Eles se prestam à auto-relativização e à auto-interpretação poético-imagética do próprio ser humano; são como espelhos da autocognição humana. — Os animais, de acordo com a Primeira Elegia, percebem que nós, seres humanos, não somos muito “confiáveis” em nosso “mundo inter­ pretado”. Na Oitava Elegia eles assumem plenamente o caráter de figuras que simbolizam a presença profunda do “Aberto”:

0 que é por fora, isso já sabemos do semblante do animal, por si só; pois já fazemos, desde cedo, a criança virar-se, e a obrigamos, voltada para trás, a ver a formação, não o Aberto, que cala tão profundo na face do animal. Livre da morte. Só a ele é que vemos; o animal livre já deixou atrás de si o próprio declínio e tem Deus pela frente, ... Nós não temos jamais, nem um dia sequer, o espaço puro diante de nós, para onde as flores florescem infinitamente (II, 714). — Os amantes mostram as grandes possibilidades, mas também as profundas alienações do ser humano. Pouco a pouco, eles concretizam o que de fato importa: “duração pura”, “eternidade”, “ser” (Segunda Ele­ gia). Nada é suficiente para “exaltar” seu “sentimento famoso” (Primeira 119

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Elegia). Ao mesmo tempo, porém, eles sempre voltam a fracassar quando se aproximam uns dos outros: “O que fazem é acorbertar, uns com os outros, seu destino” (Primeira Elegia: II, 685). Por isso é tempo, afinal, de tornar frutíferas essas “dores antiqüíssimas” e almejar o ideal do amor isento de objeto ou parceiro. Por isso já é tempo de, “amando, libertarnos do amante, e, estremecendo, superar tal coisa” (II, 687). —- Mais distantes do ser humano estão, sem dúvida, os anjos. Nas Elegias — vale reiterar — eles não devem ser entendidos como entes míticos ou personagens supramundanos, embora sejam interpelados como tais. Os anjos das elegias são sinais destinados à auto-interpretação do ser humano. Eles têm por função tão-somente revelar o que o ser huma­ no (ainda) não é. Pois os anjos têm — como se diz expressamente — a .. “existência mais forte”. São ao mesmo tempo “terríveis” e “belos”, embo­ ra a “beleza” seja apenas o princípio do que é terrível (Primeira Elegia). Os seres humanos, na verdade, só existem porque os entes mais fortes os “abandonaram”, e ainda não os destruíram. Os anjos — conforme a Segunda Elegia — são os “pássaros mortais da alma”. E assim fica evi­ dente: os anjos incorporam uma forma de ser diversa da do homem. São “bem-sucedidos precoces”, “mimados da criação”, “pólen da divindade florescente” e seres capazes de recapturar como “espelhos” a beleza que eles, mesmos “expelem”, e não apenas dispendem, como no caso dos seres humanos (Segunda Elegia). O ser humano, portanto, se comparado aos diversos grupos aqui mencionados, vive em estado de “dissensão” (Quarta Elegia: II, 669). Por isso, vale para os seres humanos o seguinte: não há para eles “lugar algum de permanência” (Primeira Elegia); onde sentem, aí “esvaecem” (Segunda Elegia); inimizade é o que lhes está mais próximo (Quarta Ele­ gia). E a situação do ser humano, em contraste com a do mundo natural ou animal, é descrita na Quarta Elegia como a seguir:

Não somos unos. Não somos como aves migratórias, concordantes. Ultrapassados e tardios, abalamo-nos subitamente sobre os ventos e desabamos sobre lagos de isolamento. Na consciência, florescer e secar são-nos concomitantes (II, 697). Logo, a situação do ser humano é impossível e questionável. Nas ques­ tões decisivas, nada resta, apenas perguntas. Aos amantes: “Vocês têm provas?” (Segunda Elegia); aos anjos: “Quem são vocês?” (Segunda Ele120

- RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

gia). Nas questões decisivas, resta apenas o protesto pelo fato de o ser humano não poder “precisar” nem de anjos nem de outros seres huma­ nos (Primeira Elegia); resta apenas a contenção e o refreamento de um chamado que talvez pudesse alterar o estado de coisas. Mesmo a expres­ são exaltada dessa impossibilidade acabaria sendo inútil. E por quê? Porque ainda que o ser humano gritasse ninguém na ordem dos anjos o ouviría. As Elegias também começam (e não se deve ignorar esse aspecto) com uma hipótese dupla, sob a forma de pergunta: “Quem, nas ordens de anjos, me ouviría se eu gritasse?” (II, 685). Caso se negue a hipótese, isso fortalece a situação de abandono e perdição do ser humano: “Se eu gri­ tasse” — mas não grito! E mesmo que o fizesse isso seria inútil, pois aqueles a quem me dirijo não ouvem. E apresenta-se ainda uma terceira hipótese, também negada: pois, mesmo que um dos anjos atendesse de coração ao chamado do homem, o homem não faria jus ao “ser mais forte” de um anjo. “Quem, se eu gritasse, me ouviría?”: o grito contido, o chamado que não se ouve e o protesto que não se faz — tais elementos acentuam ao máximo a tensão nesse texto e exaltam radicalmente a ali­ enação do ser humano, já que o destinatário a quem se podería recorrer não chega sequer a ouvir os apelos. As Elegias, no entanto, acenam com alguns sinais de que o ser humano, apesar de tudo, também é requisitado:

Sim, os precoces precisam de ti. Confiaram-te algumas estrelas, para que tivesse de senti-las. Formou-se no passado uma onda que avançou, ou — porque passaste pela janela aberta — um violino se entregou. Tudo isso era missão (II, 686). Mas logo vem a pergunta seguinte: “Você é capaz de cumpri-la?” Assim, nada resta ao ser humano senão ouvir. E esse ouvir não passa de um registro de sons ou informações. Ouvir significa direcionar a vida toda à receptividade, deixar-se determinar por algo cuja origem é exterior a quem se deixa determinar. Exige-se um ouvir semelhante ao dos “san­ tos”, de quem se diz, na Primeira Elegia, serem “impossíveis”: ajoelham-se, cedendo à gravidade, mas nesse mesmo gesto são como que elevados “do chão”, dada sua abertura irrestrita ao divino (II, 687). Para o ser humano de hoje, não se trata simplesmente da voz de Deus — Rilke, no mesmo contexto, não deixa qualquer dúvida quanto a isso; pois essa voz nenhum anjo podería suportar, e tanto menos o ser humano. Trata-se sobretudo da reorientação ãa existência humana à percepção, ao ouvir e ao 121

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

s

receber: “Quem sofre, porém, ouça a mensagem ininterrupta que se forma a partir do silêncio” (II, 687). O que estará por trás de formulações tão peculiares como “missão” e “mensagem”, para as quais não se esclarece quem são o mandatário ou o remetente? Mais uma vez o paradoxo: nas Elegias, é preciso estar em sintonia com uma segunda sequência de enunciados, assim como já ocorria anos atrás, no Livro de horas. Nele, oscilava-se entre a autoconsciência e o retraimento do ser humano, entre arrojamento e resignação; agora, nas Elegias, como reação contrária à descrição analítica da dissensão, apresenta-se a contracorrente de uma reconciliação com a existência, de um louvor ao “estar aqui”, de um elogio à vida aqui e neste momento. As Elegias oscilam entre “Deter-se é nenhures” (Primeira Elegia) e “Estar aqui é glorioso” (Sétima Elegia). Em outras palavras, a experiência rilkeana da alienação não o leva a menosprezar nem a amaldiçoar o mundo. O objetivo não é o aniquila­ mento do ser, mas a experiência do puro ser, da existência plena. E isso não tem início somente após a morte, mas agora, aqui, embora a morte, como um dos momentos da vida, não se torne tabu. Aos que morreram precocemente não se fez “injustiça” nenhuma, pois eles continuam vi­ vendo, à sua maneira, no puro ser. De onde nasce, no entanto, a expe­ riência da existência plena no aqui e agora? Ora, por meio daquilo que o poeta faz: uma transformação das coisas. A linha de pensamento das Elegias, portanto, está em consonância com o trajeto cumprido até então pela compreensão rilkeana da arte, de Deus e da realidade: não está direcionada para “adiante” ou para o “alto” (para um além transcendente), mas para o interior. “Em lugar algum, amada, haverá mundo, senão no interior” (Sétima Elegia: II, 711). E a vida “segue adiante com a transformação” (II, 711). Por isso não há mais necessidade das religiões tradicionais, dos “templos”: Esse desperdício do coração poupemos com discrição maior. Onde alguma coisa ainda resiste, algo que antes se rezava, se oficiava, de joelhos —, ela já tende, tal como é, em direção ao invisível. Muitos já não a observam, sem a vantagem, porém, de construí-la interiormente, com pilares e estátuas, ainda maior! (II, 711).

E isso, a um só tempo, assusta e consola: a capacidade do ser hu­ mano de se transformar por meio da contemplação das coisas é seu único trunfo diante dos anjos, desses seres que lhe são superiores:

122

RAINER MARIA RE1LKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

Anjo, isso ainda te mostro, lá! em teu contemplar isso esteja salvo afinal... Não foi milagre? Pasma, anjo, pois somos nós, nós, oh! Grandioso, e conta que logramos tal coisa, meu fôlego não dá conta de afamar (Sétima Elegia: II, 712).

Por essa capacidade de transformar as coisas, e assim eternizá-las, o ser humano aproxima-se um pouco mais da “existência mais forte” dos anjos. O abismo entre ambos começa a diminuir. Os anjos, que até então somente desprezavam os homens, agora já podem “pasmar”. Certamente, nada mudou para o ser humano no que diz respeito à sua efemeridade; ele continua a ser o mais fugidio e oscilante dos seres. Continua a ser Espectador, sempre, em todo lugar, voltado a tudo isso, e jamais para além! Isso nos invade. Nós o ordenamos. Isso decai. Nós voltamos a ordená-lo, e quem decai somos nós” (Oitava Elegia: II, 716). Certamente, o ser humano, mesmo agora, não tem qualquer razão para autovalorizar-se diante dos anjos:

para ele/nâo podes fazer-te de grande com sentimento grandioso; no universo, onde sensível ele sente, não passas de um noviço. Mostra-lhe, por isso, o que é simples, ... Diz-lhe as coisas. Ele ficará ainda mais pasmado; como estiveste parado junto ao cordoeiro em Roma, ou ao ceramista nas margens do Nilo (Nona Elegia: II, 719). Agora, no entanto, a missão única, e imprescindível está mencionada deforma clara:

Terra, não é isto o que queres: estar invisível em nós? — Não é este teu sonho, ser invisível ao menos uma vez? — Terra! invisível! Qual é, senão transformação, tua missão premente? (Nona Elegia: II, 720). Assim, chegara o tempo da colheita para Rilke; em fevereiro de 1922, época em que concluiu as Elegias, surgiram nessa mesma leva produtiva outros 55 sonetos, voltados não mais a “Deus” ou aos “deu­ ses”, mas expressamente ao “deus” dos artistas, com sua lira —• a Orfeu.

123

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Em numerosas cartas e conversas, Rilke iniciou um processo de autointerpretação, auto-estilização, até mesmo de auto transfiguração, que em seu círculo de simpatizantes só fez fortalecer um incipiente processo de s idealização. Fez-se de Rilke um poeta visionário, um artista mensageiro, uma figura sacerdotal pós-cristã, um mitopoeta. A “veneração [a ele] não apenas cresceu” — como afirma o teólogo Romano Guardini, em um tom discreto de repreensão —, “mas assumiu nesse tempo uma espécie de incondicionamento religioso — semelhante ao que se atribuiu à obra de Stefan George e ao Hõlderlin dos Hinos e dos Fragmentos, na fase tar­ dia”; Guardini lembra que uma crítica a Rilke, na época, corria o risco de “não ser mais apreciada de maneira objetiva, mas simplesmente rechaçada como reflexão desautorizada”48. O próprio Rilke usou concei­ tos religiosos para descrever sua vivência criativa em Muzot: “graça”, “furacão no espírito”, “missão”, “dito misterioso”, “temor”, “envio”. E em uma carta escrita a sua mulher, na época, ele não se acanha ao fazer a seguinte observação: “Onde resta um espaço obscuro, ele não é do tipo que exija esclarecimento, mas sim submissão”!49 De qualquer maneira, em um ponto o poeta não se submeteu: na questão da fé cristã no além. Desafiado pelo pastor evangélico Rudolf Zimmermann, ele se posicionou uma vez mais, no início dos anos 20, sobre as etapas que percorreu ao se ocupar com Deus e a religião: — As Histórias do bom Deus? Com elas, ele tencionara remover. Deus da “esfera dos boatos” e inseri-lo “em um campo onde pudesse ser vivenciado de maneira imediata e diária”. Pois o “isolamento, o caráter de além-mundo atribuído definitivamente a Deus” sempre o surpreende­ ra e inquietara, desde a infância50. — O Livro de horas? O que teria sido senão “a tentativa ainda mais apaixonada de estabelecer a relação mais imediata possível com Deus”?51 — Os cadernos de Malte Laurids Brigge? Não seria “compreensível” a constituição desse “jovem solitário”, protagonista do romance? E, com ela, “toda a desesperança ainda presente no que é humano?” A religião não pode parecer mais arrogante “do que quando imagina poder conso­ 48. GUARDINI, R., op. cit., p. 15. 49. As citações podem ser comprovadas em id., ibid., pp. 16-21. e nos vols. menci­ onados na nota 47. 50. RILKE, R. M., Briefe. Bd. II (1914-1926), org. de Rilke-Arcbiv, sob coord, de R. Sieber-Rilke, Wiesbaden, 1950, p. 215 (carta a R. Zimmermann, de 25/1/1921). 51. Id., ibid., p. 216 (carta de 3/2/1921).

124

RAINER MARIA REILKE E AS METAMORFOSES DA ESSÊNCIA RELIGIOSA

lar”! Diz-se, porém, ao mesmo tempo: “A clarividência quanto a nossa condição inconsolável constitui o momento em que podería ter início nossa verdadeira produtividade religiosa”!52 Assim, não admira o fato de Rilke, para seu próprio sepultamento, não querer a presença de um sacerdote “intermediário”53: desde o início, afinal, ele polemizara contra Cristo como um “mediador” entre Deus e o ser humano; aos 18 anos, já fizera sua primeira “profissão de fé”, afirmando não ter apreço pela “noção cristã de um além” (e reiterará tal idéia em uma carta de 1923, três anos antes de sua morte)54; e recrimi­ nara, além disso, “em todas as religiões modernas”, o fato de oferecerem a seus fiéis “consolações e versões camufladas da morte”, mas nenhum meio de se “conciliar” com ela nem de “suportá-la”55. Ao ser sepultado no pequeno cemitério montanhês de Raron, em janeiro de 1927, foi celebrada uma missa discreta, segundo a tradição do cemitério católico. Junto a seu túmulo, no entanto, estavam alguns amigos e conhecidos que evitavam, todos eles, qualquer referência religiosa. Um deles declamou versos da Primeira Elegia sobre os “arrebatados precoces” que se desacos­ tumavam lentamente das coisas terrenas, e sobre o luto de que nascia com tanta freqüência “um avanço bem-aventurado”... Rilke, que falara de maneira tão soberana sobre o nexo entre morte e vida, teve muita dificuldade para trabalhar literariamente a própria morte, tanto mais próxima quanto maior o avanço da leucemia que o acometia. Já não se podiam repetir agora os versos sobre a morte que, vinte anos antes, encerraram o Livro das imagens:

A morte é enorme, Nós somos os seus, somos risos, só. Quando nos cremos no meio da vida chora, a atrevida, no âmago de nós (I, 477).

O último texto de Rilke, escrito em seu leito de morte, está isento de toda paixão, de todo entusiasmo e abstração. Não é uma confrontação 52. 53. 261-289. 54. 55.

Id., ibid., p. 218 (carta de 3/2/1921). Quanto a isso, cf. a representação detalhada em SALIS, J. R. von., op. cit.( pp. RILKE, R. M., Briefe, op. cit., p. 379 (carta de 6/1/1923 à Condessa Sizzo). Id., ibid., p. 380 (carta de 6/1/1923 à Condessa Sizzo).

125

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

coni a morte, mas uma confrontação concreta e precisa, mesmo no âm­ bito da linguagem, com a terrível dor sentida no próprio corpo: Vem, ó última, que reconheço, dor incurável no traçado do corpo: meu espírito queimou, ora queimo eu em ti; a lenha quis opor-se a acatar a chama que tu inflamas, mas agora te alimento e queimo em ti. Minha amenidade será em tua gana uma gana do inferno e não daqui. Sem futuro e sem planos, todo puro, subi à insanidade do desatino certo de não comprar nada futuro para o coração calado e vazio. Ainda sou eu quem queima insciente? Não arranco de mim quaisquer lembranças. 0 vida: estar lá fora! Eu em chamas. E que me conheça, nenhum vivente (III, 511).

126

Hermann Hesse

IV

Hermann Hesse E A INS0NDABIL1DADE DA ALMA *

Hermann Hesse integra a literatura moderna clássica. Tomou-se um bem comum, parte de nossa formação e de nossa herança cultural. É

um clássico literário. Os clássicos possuem no entanto uma desvantagem: foram alçados a uma dimensão em que não são contestados; são inquestionavelmente significativos, asseguradamente importantes. E o que é o mais grave: os leitores creem conhecê-los. Trata-se aqui de destruir esse quadro; .Não para depreciar a dimen­ são de Hermann Hesse (1877-1962), mas para descobri-la onde ele real­ mente foi grande: na confissão de rupturas, abismos e contradições em sua vida e em sua obra*1. Hesse foi mais radical que outros em sua descon* Tradução de Ana Lucia Welters. 1. Sobre a biografia; B. ZELLER, Hermann Hesse, Hamburg 1963, ed. rev. e ampl., 1975 (Rowohlt Monographic). J. MILECK, Hermann Hesse. Life and Art, Berkley/Ca. 1978. Sobre a história recente da recepção; V MICHELS (org.), Über Hermann Hesse, vols. I-II, Frankfurt/M. 1976-1977 (pp. 331-332). LIEBMANN, J., (or&f Hermann Hesse A Collection of criticism, New York, 1977. Th. ZIOLKOWSKI, Der Schriftsteller Hermann Hesse Wertung und Neubewertung, Frankfurt/M., 1979. PFEIFER, M., Hesse. Kommentar zu samtlichen Werken, München, 1980. “Hermann Hesse”, in Text und Kritik, org. de ARNOLD, H. L., München, 21983. BRAN, E, PFEIFER, M., (orgs.), Wcge zu Hermann Hesses Dichtung-Musik-Malerei-Film, Bad Liebenzell, 1989. Sobre a recepção no Brasil; THIMANN, S., Brasilien als Rezipient deutschsprachiger Prosa des 20. Jahrhunderts. Bestandaufnahme und Darstellung am Beispiel der Bezeptionen 'Thomas Manns, Stefan Zweigs und Hermann Hesses, Frankfurt/M., 1989. Sobre a dimensão religiosa: MAYER, G., Die Begegnung des Christentums mit den asiatischen Beligionen im Werk Hermann Hesses, Bonn, 1956. BÔHME, W., (org.), Suehe nach Einheit. Hermann Hesse und die

129

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

------ --------------------------------------------------------------------

fiança quanto a esculpir santos no próprio corpo. Ninguém percebeu como ele a dupla faceta da fama, a falsidade por detrás do aplauso, a hipocrisia do fazer cultural, de forma por vezes resignada, por vezes de maneira cínica ou bem-humorada. Quando ele foi escolhido para integrar a Academia Berlinense em 1926, escreveu a “Balada dos Clássicos”, como que para arrefecer a fama: Prematuramente convocado para os clássicos: foi assim que se sentiu o jovem Emil Bums; aproximou-se, trazendo Deus no peito, dos degraus do templo sagrado de Apoio.

Raramente viu-se de fato um poeta tão animado por sublime empenho, logo ele se viu escolhido pelo coro de juizes como o preferido do povo. Jamais ele se expôs, ainda que minimamente, jamais desviou-se do trilho da mais severa virtude; cantou sobre Deus e a grandeza da nação, o que lhe trouxe imensa fama. Infelizmente o fraco coração deste nobre poeta não estava apto a vôo tão alto, e em uma turnê de apresentações na Saxònia ficou doente e partiu em direção ao céu. Uma cerimônia fúnebre sem igual, plenamente ciente do significado do instante,' enfeitou com carvalhos da pátria o peito heróico do imortalizado cantor.

Indústria, finanças, autoridades, imprensa — todas comovidas em torno da cova aberta; Religioner, Stuttgart, 1978 (Herrenalber Texte 1). HSIA, A., Hermann Hesse and China, Frankfurt/M., 1974. JENS, W., KÜNG, H., AnwdltederHumanitãt. Thomas Mann-Hermann-Hesse-Heinrich Boll, München, 1989. Traduções brasileiras de obras aqui mencionadas: O lobo da estepe, trad, de Ivo Barroso; Rosshalde, trad, de Álvaro Cabral; Rnulp. Três episódios de uma vida, trad, de Eglê Malheiros; Narciso e Góldmund, trad, de Myriam Moraes Spíritus; Demian. História da juventude de Emil Sinclair, trad, de Ivo Barroso; Sidarta, trad, de Herbert Caro; Ojogo das contas de vidro, trad, de Lavfnia Viotti e Flavio de Souza; Viagem ao Oriente, trad, de Leda Gonçalves Maia; Gertrud, trad, de Mário da Silva; Menino prodígio (Debaixo das rodas), trad, de Álvaro Cabral; O último verão de Klingsor, trad, de Pinheiro de Lemos; e Minha fé, trad, de Luiza Leite Ribeiro, Rio de Janeiro, Record. E ainda: Peter Carmezind, trad, de Myriam Moraes Spíritus, 1972; e Hermann Lauscher, trad, de Heloísa Breda Ferreira, São Paulo, Brasiliense.

130

HERMANN HESSE E A INS0NDABIL1DADE DA ALMA

Gerhart Hauptmann e Hermann Hesse jogaram uma pá cheia de papel sepultura adentro.

Entre outros adoráveis troféus no Templo do Museu do Povo, pode-se ver sua máquina de escrever, muito disputada pelo público aos domingos.

Este homem nunca será esquecido, talvez o último clássico alemão, pois não se encontra sobre a terra ninguém que lhe chegue aos pés.

Eu mesmo, que descobri o Bums, que lhe dei nome, fama e forma, me curvo envergonhado e vencido diante de tanto talento, de tanta genialidade. E assim peregrina a memória da divindade, liberta da dura realidade, legado mais nobre de seu povo, por séculos até a eternidade (G II, 772 s.)2.

É com essa mesma capacidade de desmascarar tanto a si mesmo como ao outro que o escritor Hermann Hesse pretende ser lido. Sua obra apresenta fases de diferentes tipos: continuidade, desenvolvimento tran­ quilo e sabedoria harmoniosa, bem como rupturas, erupções e contradi­ ções. E justamente quem se aproxima dos aspectos religiosos de sua obra terá de se defrontar com surpreendentes correntes e contracorrentes: águas calmas, mas também rajadas de vento semelhantes às de um furacão; contemplação idílica, mas também uma insondabilidade abissal da alma. Não é segredo algum: a vida deste escritor começou como para poucos autores alemães com uma ruptura semelhante à erupção de um vulcão, ou melhor, com um primeiro olhar para dentro do abismo.

1. Primeiros olhares em direção ao abismo Setembro de 1891: desde os meados desse mês, o jovem Hermann Hesse, 14 anos e filho de um missionário, já é aluno do Seminário Evangé2. Os poemas — indicados no texto de forma abreviada com um “G” seguido do volume e página — foram citados (e traduzidos ~~ N. do T.) a partir de HESSE, H., Die Gedichte, vols. I-JI, Frankfurt/M., 1977.

131

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

lico de Maulbronn. Exemplarmente, ele escreve com reg a seus pais na cidade natal de Calw, conforme urn bom s Os pais estão orgulhosos e felizes por tê-lo nessa famosa íestante. A primeira preocupação que tiveram de enfri fins de outubro de 1891, quando o pupilo relatou que hipnotizar — só de brincadeira, naturalmente. Um cole em hipnotismo e magnetismo. Ele relata que teria tremi ror, e que ficara feliz por não ter perdido o juízo. E < forma significativa: “deve-se levar esta última parte a : letra” (KJ 1,130)3. Ele começa então a escrever poesias,

versos ricos em fantasia, inspirados por uma puberdac amadurecida e por aulas de grego; neles, fala da dança de e com corpos divinos/ brancos como a neve, para o soar d< tuosas” (KJ I, 151).

Cerca de quatro meses mais tarde, foge do seminar é o dia 7 de março de 1892. Os professores temem aqt mesmo já supunha abertamente: “Perturbação mental p doentia” (KJ I, 183). A direção eclesiástica do internato de cárcere (oito horas), considera-o um perigo para os < sugere ao pai, por carta, que afaste seu filho da instituiçã de incluir na mesma carta “uma lista das despesas” que sadas pela fuga de Hermann (KJ I, 190). Ao aluno falta “de se manter disciplinado e de colocar seu gênio e seu dos lugares, o que seria necessário para sua idade e par bem-sucedida em um seminário” (KJ I, 189). A Johannes e Marie Hesse só resta trazer o filho ] semanas para casa. Quando ele retorna, no entanto, p Maulbronn, acontece uma segunda crise, mais grave que 1° de maio de 1892, o jovem de 15 anos começa a se d carta, chamando-o de “senhor”, em uma demonstração df e formalidade (KJ I, 203). A um colega de seminário ele

na cabeça “que só podería ser curada se ele matasse algu Apressadamente seus pais mandam o filho para Bad Boll com experiência no trato com doentes com problemas ps 3. As cartas da infância e adolescência — citadas abreviadament seguidos do volume e página — foram citadas (e traduzidas — N. do T. H. (org.), Hermann Hesses Kindheit andJugend vor 1900, vols. I-II, Franl

132

HERMANN HESSE E A INSONDABILIDAOE DA ALMA

Poucas semanas mais tarde, em 2 de junho de 1892, eies ficam sabendo por carta, que ele, Hermann Hesse, desejava dormir por “milênios”, “eter­ namente”, “até que venha um tempo belo e colorido como em fábulas, no qual homem e natureza voltem a ter valor, e no qual deixem de existir privilégios, classe, posição e preconceito, bem como nossa ‘sociedade’ e a ordem atual” (KJ I, 218). Precisamente em Bad Boll o jovem se apaixo­ nara por uma mulher sete anos mais velha (Eugenie Kolb); quando ela o rejeita, ele consegue um revólver e decide se matar. Pela terceira vez os pais precisam alterar os planos. A cidade de Boll, relativamente liberal, não é mais lugar para seu filho. Ele é inter­ nado em uma clínica psiquiátrica em Stetten im Remstal. “Vocês querem me prender na cadeia? Prefiro, estando lá, me atirar no poço”, teria gritado ao avistar o quartel psiquiátrico. O que para seu pai era “um grande consolo, o atendimento de uma prece”, significava para o jovem nada mais que a morte simbólica. Surge um novo poema, um entre os 23 escritos em Stetten: A vida era tão luminosa e tão doce, e a terra próspera um paraíso, e agora está tudo arruinado, a brincadeira e o humor e a futilidade da terra, a coragem de arriscar extinguiu-se, desapareceu, oh, quisera estar morto! (KJ I, 221).

Exteriormente ele vive agora adaptado, mas “em silêncio” pragueja contra Deus e o mundo. Em uma carta a seu pai ele assina “H. Hesse Niilista (haha!)”. E novamente extravasa: O sanatório em Stetten? “Stetten é para mim o inferno.” A vida? “Se a vida merecesse pelo menos ser jogada no lixo, ela não seria ora uma ilusão alegre, ora negra — eu gostaria de me jogar com a cabeça contra as paredes que me separam de mim mesmo” (KJ I, 251). O papel da religião, de Deus e de Cristo? “Me fazem discursos ‘Apegue-se em Deus, em Cristo etc. etc.!’ Eu não consigo justamente ver nesse Deus mais que uma ilusão, nesse Cristo mais que um homem, ainda que vocês me amaldiçoem mil vezes por isso” (KJ I, 252). Em um longo texto de 11 de setembro de 1892, que se comparou à famosa carta de Kafka a seu pai (com a diferença de a carta de Hesse ter sido realmente enviada), ele alertou seus pais:

Vocês são legítimos, verdadeiros pietistas... Vocês têm outros anseios, pontos de vista, esperanças, outros ideais, acham no outro seu contentamento, fazem

133

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

outras exigências em relação a esta e à outra vida; vocês são cristãos, e eu — somente um ser humano. Sou um produto infeliz da natureza, que carrega o germe da infelicidade em si mesmo... Se vocês pudessem olhar meu íntimo, esta caverna escura, na qual o único ponto de luz arde e queima de maneira infernal, vocês me desejariam a morte, para o meu próprio bem... Eu gostaria de fugir, mas para onde no outono frio, sem dinheiro e sem destino? Para a escuridão? Para onde, neste país crivado de policiais? Eu desejaria agora que irrompesse uma revolução, que o cólera chegasse logo. Em meio ao sofrimento geral o pequeno pode morrer em paz. Em Boll eu primeiro aprendi a rir, depois a chorar; em Stetten também aprendi algo: a amaldiçoar. Isto mesmo, agora eu sei fazê-lo 1 Amaldiçoar a mim mesmo e, sobretudo, Stetten, depois os parentes, o maldito sonho e a maldita ilusão do mundo e de Deus, de felicidade e infelicidade. Se vocês quiserem me escrever, por favor não me venham de novo com seu Cristo. Já fazem alarde dele o suficiente por aqui. ‘Cristo e amor, Deus e glória’ etc. etc. vê-se em todos os lugares, escrito em cada canto e, justamente aí •— tudo pleno de ódio e inimizade” (KJ I, 265 s.).

E, antes de o surto diminuir, ele irrompe mais uma vez. Escreve ao pai:

Mui prezado senhor! Dado que o senhor se mostra tão visivelmente disposto a sacrifícios, devo lhe pedir, talvez já pela sétima vez, o revólver. Depois que o senhor me trouxe o desespero, deve estar provavelmente disposto a se livrar disso, e a mim também. Aliás, eu já deveria ter ido desta para melhor em junho... Do “querido Hermann” surgiu outro, um ser que odeia o mundo, um órfão, cujos pais vivem... H. Hesse, prisioneiro na Casa de Reclusão de Stetten” (KJ I, 268 s.). Poucas semanas mais tarde a crise passa e o jovem Hesse, nesse meio tempo em descanso ém Basel, pede perdão a sua mãe. O “mau ano” de 1892, conforme escreve Marie Hesse (KJ I, 311), ficou para trás, mas não a postura básica do filho, cuja vida não se acalmará rios próximo três anos, até tornar-se aprendiz em uma livraria de Tubingen, aos 18 anos. Tem sequência a dúvida em relação ao Deus cristão de seus país pietistas. Zombeteiro, aos 16 anos escreve para a mãe: “Se eu tivesse todo o ‘espírito de santidade’ que vocês me desejam, eu já seria há muito tempo um grande apóstolo. E ainda esse seu ‘Deus’! Ele pode até existir, até mesmo ser exatamente como você o imagina, mas a mim ele não interessa. Não creia poder me influenciar de alguma forma neste senti­ do” (KJ 1, 323). 134

HERMANN HESSE E A INS0NDA8ILIDADE DA ALMA

Têm sequência a repugnância pela vida e os desejos de morte: “Às

vezes acho que já morrí há muito tempo, e minha vida e meus atos não passam de um sonho de morto, desordenado. Eu estou no fim, estou me extinguindo gradativamente, sou tão tolo e apático e doente e cheio de medos e desprovido de amor” (KJ I, 346). Tem seqüência a convicção de que religião é ilusão e mentira: “Eu já poderia ter me tornado alguma coisa se tivesse sido mais bobo e acreditado logo de início nos engodos sobre religião e outras coisas mais” (KJ I, 346).

Tem seqüência, finalmente, a paixão por si mesmo na atitude do niilista: “Eu me apaixonei por literatura, poesia, por panteísmo e pela beleza. Foi muito melhor ter outros ideais do que os seus ou do que absolutamente nenhum. Para vocês, cristãos, o panteísta, o sonhador estava tão distante quanto o ateísta, o niilista. Agora eu mesmo sou meu deus, eu sou um egoísta pronto e perfeito. Assim é que funciona” (KJ I, 376 s.). Difícil imaginar que um adolescente possa atravessar uma crise religiosa mais radical que esta. Dificilmente se pode experimentar de maneira mais impiedosa quão cedo se podem abrir abismos em uma vida, e quão cedo o mundo pode começar a brincar literalmente com uma “roleta russa”. Aos poucos, com o decorrer do ano de 1894, muito len­ tamente o futuro vai tomando contornos para Hermann Hesse. A produ­ ção de poemas fica mais intensa, não sem influência da lírica de Goethe e Heine. Já em maio de 1895, aos 18 anos, o jovem Hesse crê ter sobre­ vivido felizmente à “mais desvairada fase,‘Tempestade e ímpeto * ”, em uma alusão ao movimento pré-romântico alemão (KJ I, 468). E por uns tempos parece ser assim. Quanto mais Hesse mergulha no mundo da literatura em Tübingen, a partir do ano de 1895, quanto mais começa a se sentir escritor, tanto mais firme se torna uma nova convicção religiosa. De acordo com ela, Hesse afirma: “Confesso que meu próprio ideal de vida, minha poesia, até mesmo um certo culto que de­ voto a Goethe são deuses melhores e mais fiéis que aquele deus domini­ cal” (KJ II, 139). Em outras palavras: o jovem de 18 anos integra-se a um tipo de “panteísmo poético” (KJ I, 139), a um tipo de religião da arte, a uma “crença no belo”: “Só me dei conta agora do que vem a ser religião e desde então estou incrivelmente em paz quanto a todas as ‘crenças’, pois eu mesmo estou decidido a me colocar em um degrau mais alto da vida” (KJ II, 190). O mais surpreendente, porém, é que sua produção literária, não somente do período de Tubingen mas também dos próximos vinte anos, 135

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

até a Primeira Guerra Mundial, começa a perder em radicalidade religio­ sa. Ela se torna inofensiva, um fazer estético dos mais finamente elabo­ rados, mas incontestado. Não podemos nos eximir de descrever um se''gundo cenário. Corrente e contracorrente.

2. Reconciliação com Dens e com a arte Inofensivas, em sentido religioso, são as obras líricas dos próximos vinte anos, publicadas em edições como Canções românticas (1898) ou Poemas (1902). Hesse passa a levar uma espécie de vida dupla quando começa a trabalhar como ajudante na livraria Hekenhauer, em Tübingen. O dia é dedicado a esse “ofício-ganha-pão”; a noite, à arte. Solitário e ao mesmo tempo esquivo em relação às pessoas, ele cria para si a imagem de alguém que habita dois mundos, trabalhando lá e cá, entre o dia e a noite, um “rei sem terras”. O horário predileto para suas poesias é sempre a noite. Temas prediletos são o amor em vão pelas mulheres, os desejos de morte, medos e solidões. O mundo intermediário entre dia e noite, no qual ele se coloca, corresponde ao mundo intermediário entre sonho e realidade, mundo em que se sente bem e no qual o ajudante de livraria, em sua mansarda solitária diante dos portões de Tübingen, acaba por encontrar compensação. A “Hora depois da meia-noite”, título de um de seus primeiros poemas e também de sua primeira publicação em prosa, é o retrato por excelência do tempo livre de Hesse. Quando o mundo dos sonhos se desfaz, começa a vida austera, e essa vida dura só é suportável por causa do mundo dos sonhos.

De todas as paredes cai o esplendor, A vida austera entra zunindo, E eu tenho de me submeter ao seu poder, Medroso e desanimado, Atormentado pelo jugo, Ó meia-noite, como espero por ti! (G I, 30) Quando Hesse passa então a se ocupar liricamente com questões religiosas básicas, ele não atinge mais a insondabilidade inquietante, a ameaça existencial, a contestação como nos primeiros anos. A realidade, que naquele tempo ia embalada em cartas, não voltará a ser recuperada em sua poesia de nenhuma outra forma. Pelo contrário: quando Hesse 136

HERMANN HESSE E A INSONOABILIDADE DA ALMA

fala de morte em seus poemas, a partir de então isso soa conforme a convenção literária romântica. Quando fala liricamente de Deus, sua voz soa como arte de ocasião, muito polida, como vocabulário de arte deco­ rativa. A seguir, um poema com o título “Oração”, do período entre 1898 e 1902, que alude aos tempos lúgubres de então: Se estou diante de teu semblante, Então penso em como tu me deixaste só E penso em como vaguei por ruelas, Abandonado e aflito com minha dor.

Então penso nas noites escuras horríveis, em que me afligia, carente e com saudades de casa, ansiava como uma criança pela tua mão, e tu me negavas tua destra (G I, 139).

Nada mais de pragas contra Deus, nada de Deus como ilusão, nada de negar a religião como auto-ilusão e mentira. O tom explosivo das manifestações por carta se transforma na inocência de versos bem trabalhados. Também não há nenhum tipo de manifestação diferente nos traba­ lhos em prosa dessa época, nos romances sobretudo, a começar por Hermann Lauscher (1900), Peter Camenzind (1904) e Unterrn Rad (De­ baixo das rodas, 1905), até Gertrud (1910), Rosshalde (1914) e Knulp (1915). Quase todos têm como tema o processo de autoconhecimento do ser humano, sua infância, seu relacionamento (ou não) com as mulheres, com a sociedade, com o fazer artístico. Motivado autobiograficamente, Hesse recruta as personagens de sua ficção sobretudo dos círculos artís­ ticos: Hermann Lauscher, assim como seu criador, é um escritor princi­ piante, amigo da noite e apaixonado por mulheres inatingíveis. Peter Camenzind é um jovem suíço ligado à natureza; tirado de sua vida de pastor de cabras, é mandado para a cidade grande para estudar. Torna-se redator em um jornal, apaixona-se e decepciona-se, leva uma vida errante, a vagar, é confrontado com a morte e o álcool, e fixa-se, por fim, em sua antiga aldeia nas montanhas. Gertrud se desenrola em um círculo de músicos, e novamente é o amor em vão por uma mulher inatingível o enredo desse romance. Em Rosshalde, todavia, os problemas já são apresentados de outra forma. A personagem principal é o pintor Veraguth, que acaba de encon­ trar uma mulher e forma uma família. O casamento, no entanto, já está 137

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

fracassado. Ambos vivem separados no sítio Rosshalde, e o filho de 7 anos representa o último vínculo entre eles. Veraguth se refugiou no trabalho “como em um castelo”, e um amigo que visita Rosshalde acaba ■x por reconhecer “o abismo insondável de isolamento interior e autopunição na vida de Veraguth”. Não é preciso aprofundar-se muito para constatar que Hesse retrabalhou neste romance a história de seu próprio casamento e a expe­ riência de vida em família. Ele mesmo já chamou a atenção para isto muito cedo. Em 1904 casara com Maria Bernoulli, e entie 1905 e 1911 geraram três filhos; a partir daí, vivenciou a experiência progressiva de que esse casamento teria sido um erro. Quando, em 1914, apresenta a seu pai as características do novo romance, espera encontrar uma saída para essa situação difícil, que não se explica somente pela escolha da pessoa errada como companheira, mas também e basicamente pelo con­ flito entre o artista e o burguês:

O processo criativo do livro me deu muito trabalho e ele é para mim uma despedida, mesmo que provisória, dos mais duros problemas que me ocuparam de maneira prática. Pois o casamento infeliz que o livro relata não se deve simplesmente a uma escolha errada, mas a algo mais profundo (...): à questão se de fato um artista ou pensador estaria apto ao casamento (...). Uma respos­ ta a essa questão eu não sei dar, mas minha posição em relação ao tema está presente no livro; aí está concluída uma coisa que eu espero resolver em minha vida de outra forma4.

O problema, contudo, fora apenas abordado até então. Já o próximo texto em prosa mostra que a existência burguesa e a arte são para Hesse cada vez mais inconciliáveis. Em Kniãp, Hesse copia a história de um errante, de um vagabundo que, da mesma forma, pode ser facilmente reconhecido como um espelho ou figura que projeta o lado antiburguês e vagabundo de Hermann Hesse. Ferido por uma amante e namorada infiel, Knulp perde o prumo e adota uma filosofia de vida trágico-resignada que culmina no conhecimento de uma última solidão existencial no indivíduo. Um amigo que conta essa história deve reconhecer: Onde estava meu amigo agora? Eu tinha interpretado seu discurso como con­ solo, tinha começado a entender sua alma e acreditava fazer parte da vida dele. 4. HESSE, H., Carta ao pai de 16/3/1914, in id., Gesammelte Briefe, org. de U. et V. Michels, vol. I, Frankfurt/M., 1973, p. 242.

138

HERMANN HESSE E A SNSONDABlLiDADE DA ALMA

De repente ele se foi, eu fiquei só e decepcionado, tive de me culpar mais do que a ele e tinha a solidão, na qual, segundo a visão de Knulp, todos vivem; nela, eu nunca podería ter crido completamente, nem podería tê-la provado pessoalmente, Ela foi amarga, não somente naquele primeiro dia; e talvez ela tenha se tornado mais discreta às vezes, mas nunca mais me abandonou desde então (IV, 492 s.)5.

Hesse conseguiu também traduzir textualmente em lírica, de modo único, essa experiência de uma solidão última do indivíduo. Aqui ele alcança com seus poemas rara beleza e precisão expressiva. Um deles se chama “Na neblina”.

Estranho caminhar na neblina! Solitário cada arbusto, solitária cada pedra, nenhuma árvore vê as demais, todas solitárias, O mundo para mim era cheio de amigos, quando minha vida ainda era límpida; agora, que a neblina cai, ninguém mais é visível.

Realmente, ninguém é sábio se não conhece a escuridão, que silenciosa e inevitável o separa de tudo. Estranho, caminhar na neblina! Viver é ser só. Pessoa alguma conhece o próximo, todos são solitários (G I, 236).

Qual é, no entanto, a quintessência espiritual e religiosa dos primei­ ros trabalhos em prosa de Hermann Hesse? Em vista de todas as suas experiências de crise e solidão, pode-se considerá-la até mesmo harmonizadora. É certo que em Hermann Lauscher ainda se tratava de uma rei­ terada negação radical das crenças cristãs (I, 316 s.).' E em Gertrud Hesse permite que o músico Kuhn traduza em música um texto inspirado por Nietzsche sobre a morte de Deus: 5, As obras de Hesse — abreviadas no texto com volume e página — foram cita­ das a partir de: HESSE, H., Gesammelte Werke, vols. I-XII, Frankfurt/M., 1970 (edition suhrkamp).

139

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Que a cada vento que precede a chuva role das montanhas a avalanche, com alarido e som de morte — foi Deus quem o quis? Que eu tenha que caminhar sem uma saudação em meio à terra dos homens — isso vem da mão de Deus? Quando o coração aperta e me torturo, ele me vê pairar? Ah! Deus está morto! — E eu devo viver? (III, 38) Mas essa lírica de personagens não tem consequências retumbantes no que tange à expressão de Gertrud como um todo, nem para outros romances dessa época. Da insondabilidade nietzschiana não há sinais nestes romances, nem de maneira direta, nem indireta. Ao contrário: Em Peter Camenzind, o protagonista pode retornar em paz de espírito a seu mundo nas montanhas depois de ter aprendido a aceitar a presença de Deus, respeitando e seguindo os passos de Francisco de Assis, na natu­ reza, na linguagem de Deus e nos mais humildes dos seres humanos (ele se ocupa com o aleijado Boppi) (I, 434) — isso depois de ter compreen­ dido, ao contrário de Nietzsche, “que não criamos deuses de nós mesmos, mas sim somos filhos e parte da terra e do todo cósmico” (I, 452). Debaixo das rodas tem como cenário a Igreja, mas ela não é tratada como problema religioso, e sim como parte de um sistema educativo repressivo da sociedade. A morte do herói Hans Giebenrath não suscita quaisquer questões metafísicas básicas, ao contrário do que acontece com o próprio jovem Hermann Hesse. Em Gertrud o músico Kuhn deixa-se consolar pelos golpes do des­ tino com uma religiosidade interior vaga e meio amarga. No final, lê-se o seguinte:

Nós podemos carregar Deus no coração e às vezes, quando estamos plenos dele, ele pode olhar a partir de nossos olhos e de nossas palavras, e ainda falar a outros que não o conhecem ou não querem conhecê-lo. Nós não podemos privar nosso coração da vida, mas podemos formá-lo e ensiná-lo de uma forma que ele possa ser confrontado com o acaso e possa olhar a dor sem se partir (III, 189). 140

HERMANN HESSE E A iNSONDABILIDADE DA ALMA

Em Rosshalde. a arte fica como consolo para o pintor Veraguth depois da perda de seu filho querido, e pode-se até dizer que em relação à arte ele “nunca se sentiu tão seguro” como então (IV, 169). E, como se Hesse quisesse intensificar a questão até alcançar um clímax grotesco, antes que ela se invertesse para ele mesmo, ele deixa no final da história de Knulp que o “bom Deus” apareça em pessoa e desem­ penhe o papel de apaziguador. Mais de vinte anos depois do fatídico 1892. é evocada nesse romance a constelação inicial da época de seus 15 anos. Lemos ao final de Knulp o surpreendente diálogo entre Knulp e Deus:

Naquela época (...) eu tinha 14 anos e a Francisca me abandonou. Nesse tempo eu ainda podería ter me tornado algo na vida. Então quebrou-se ou estragou-se algo em mim, e a partir daí não prestei para mais nada. Sabe por quê? O erro foi simplesmente você não me ter deixado morrer aos 14 anos. Assim minha vida teria sido tão bela e perfeita como uma maçã madura (IV, 521), E o que diz o “bom Deus” a seu herói?

Pois se dê por satisfeito (...). De que adianta queixar-se? Você não consegue mesmo ver que tudo correu bem e da forma correta, e que nada podería ter sido diferente? ... Veja, (...) eu não podería ter precisado de você de outra forma, a não ser como você é. Em meu nome você partiu e levou a pessoas sedentárias o sentimento de nostalgia pela liberdade. Em meu nome você fez bobagens e foi por isso objeto de zombaria. Eu mesmo fui alvo de chacota e amado em você. Você é meu filho e meu irmão e um pedaço de mim; e você não desfrutou nada nem sofreu nada sem que eu não tenha sentido isso também (IV, 523 s.).

3. O mundo espiritual da primeira fase de Hesse Tudo bom e correto? Quando Knulp surgiu, em 1915, Hesse tinha 38 anos. Imagine-se apenas por um momento. * se ele tivesse se afastado do cenário literário nessa época (por morte ou perda de produtividade) como muitos antes dele, Novalis e Büchner, Trakl e Heym, que não chegaram aos 30, ele seria literária e teologicamente tão insignificante para nós quanto Richard Dehmel (1863-1920), Detlef von Liliencron (1844-1909) ou Alfred Mombert (1872-1942), dignos e reconhecidos em suas épocas, mas ao mesmo tempo artistas menores e por isso conhecidos hoje somente por especialistas em literatura. Tivesse Hermann Hesse saído de cena aos 38 anos, seria preciso encarar sua visão religiosa básica

141

OS ESCRITORES Ê AS ESCRITURAS

--------------------------------------------------------------------------

como um simples esquema evolutivo: depois da crise da puberdade, em certa medida mais intensa que o normal, vem uma maturidade espiritual, uma consolidação interior e exterior que faz de Hesse, o mais tardar a s partir do best-seller Peter Camenzinâ, um autor consagrado, que se pode permitir viagens mais extensas para a Itália e o Oriente (191l)6. Sim, se ele tivesse saído de cena aos 38 sua postura inicial espiritual-religiosa seria um coquetel inofensivo de elementos heterogêneos e tão tipicamen­ te fascinantes para aquela época:

— uma dose de panteísmo naturalista na linha de sucessão a Goethe e Novalis, bem ao gosto dos movimentos de juventude e das agremiações de adeptos de longas caminhadas em meio à natureza — os “Wanderer” —, nos quais predominava um tom de crítica à civilização, à técnica, à vida urbana, à indústria e à aglomeração de massas nas cidades industrializadas dos fins da época imperial guilhermina7; — uma dose de entusiasmo por Francisco de Assis, que inclusive levou Hesse a escrever uma biografia popular deste santo cristão (1904), o qual — por sua maneira alegre de confiar na criação, por sua ligação antiburguesa com a natureza e sua existência de pregador peregrino — está em perfeito contraste com a cristandade burguesa-pietista que Hesse conhecia de sua casa paterna8; — uma dose de fascinação pelo Oriente, que motivou Hesse a empreender uma Viagem ã índia (título de seu livro de 1913): eis aí a origem do conceito de carma, introduzido e ao mesmo tempo protelado em Gertrud (“Isto não é nada para mim por enquanto”: III, 63), e também a de seu crescente interesse por textos básicos hindus e chineses — o Bhagavad-Gita, o Tao-Te-King, os diálogos de Confúcio, no entanto ainda sem repercussão em sua obra literária9; 6. Sobre as viagens à índia cf. atualmente a coletânea de textos: H. Hesse, Aus Indien. Aufzeichnungen, Tagebücher, Gedichte, Betrachtungen und Erzahlungen, Frankfurt/ M„ 1980. 7. Sobre os contatos de Hesse com os movimentos alternativos da época cf. G. Grãser, AusLeben und Werk, Vaihingen-Enz, 1987. LANDMANN, R., Ascona, Monte Verità, Frankfurt/M.-Berlin, 1979 (Ullstein TB 34013). Monte Verità. Berg der Wahrheit. Lokale Anthropologie ais Beitrag zur Wiederentdeckung einer neuzeitlichen sakralen Topographie, Milão, s.d. 8. Sobre Francisco de Assis cf. HESSE, H., Franz von Assisi, Fránkfurt/M,, 1988. 9. Sobre o significado da China na obra de Hermann Hesse cf. tb., além de A. Hsia (cf. nota 1), KUSCHEL, K.-J., “China im Werk von Bert Brecht und Hermann Hesse”, Fu Jen Studies (Taiwan) 22 (1989), 99-127. Ch. GELLNER, Weisheit, Kunt und Lebenskunst. Fernostliche Religion und Philosophic bei HESSE, H., und BRECHT, B., Mainz, 1997.

142

HERMANN HESSE E A INSONDABILIDADE DA ALM?\

— uma dose de entusiasmo pela arte, que fez dela uma espécie de sucedâneo da religião, que fez da estética a teologia, do belo um deus, e do poeta, ó substituto do sacerdote.

Tem-se portanto um coquetel espiritual-religioso, tão típico para a época, suportável ou insuportável, dependendo do ponto de vista ou do gosto. Mas da radicalidade dos tempos anteriores de crise não há sinal. O significado religioso mais profundo da primeira fase da obra de Hesse não se encontra nessa mescla ao gosto da moda, mas em outro lugar. Se há em Hesse algo próximo de um tema religioso primário e indireto que dá coerência ao todo de suas obras da fase inicial, então isso consiste no seguinte: a vida, desde o início, se apresenta para o filho de missio­ nário protestante como carente dejustificação. Poder-se-ia chamar tal coisa de arquétipo protestante do pensamento. A vida não é necessariamente algo disponível, üsufruível e desfrutável; ela precisa, sim — e no mais tardar quando se deixa para trás a inocência da infância —, de justifica­ ção, ou seja, de controle, comprovação e legitimação, da resposta ao para quê? e ao por quê?. Em Hesse, porém, essa carência de justificação já está presente na transformação secular por que o mundo passa. Para ele, a vida não está mais justificada diante do Deus cristão, nem tampouco se pode aceitála como algo justificado pela Graça. Os personagens dos romances de Hesse da primeira fase sentem muito mais o impulso a se justificarem diante de si mesmos. Aqui se encontra o motivo mais profundo para que a maioria dos romances da primeira fase sejam narrados em pri­ meira pessoa: Hermann Lauscher, Peter Camenzind, Gertrud. E até mes­ mo na perspectiva narrativa aparentemente neutra de Debaixo das ro­ das, Rosshalde e Knulp percebe-se a maneira retrospectiva de narrar e o ânimo, para descrever o curso de uma vida de modo a explicá-lo, esclarecê-ío e entendê-lo. Para que? Por quê? Ó, Deus, foi tudo um jogo, um acaso, um quadro pintado? Eu já não tinha agonizado e sofrido as tormentas da cobiça por inteligência, amizade, beleza, verdade e amor? Não me torturava a mesma onda sufocante de saudades e amor? E tudo em vão! A mim a tormenta, e a ninguém o prazer! (I, 423)

Esta pergunta desesperada de Peter Camenzind é a questão principal de todos os personagens dos romances da primeira fase de Hermann Hesse. Mas o escritor viverá ainda até 9 de agosto de 1962, e serão esses próximos 47 anos que de fato darão significado aos primeiros 38.

143

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

4. A nova crise: a face dupla do homem e de Deus “Tudo bem e tudo certo” — Hesse fez o [fbom Deus” pionunciar-se s dessa forma apaziguadora em Knulp. Tudo bem e tudo certo? O próprio Hesse sentia que dessa forma não podería continuar, não era possível prosseguir com a fé harmonizadora em um Deus que habita em cada coração; com a confiança ingênua no amor à natureza; com a observação artística agradável da beleza da paisagem e das leis cósmicas; com a con­ fiança na arte, em momentos difíceis da vida. Ele começou a sentir que, apesar de toda a seriedade das tentativas de encontrar uma solução com a ajuda da literatura, para ele mesmo não havia solução na vida prática. “Meu romance Rosshalde logo se transforma em livro, e com isso vejo o fim de uma fase narrativa que me parece mais lastimável que nunca; e tenho a impressão de que ou paro com isso ou arrisco algo completamente novo, com os rudimentos e presságios disponíveis para tal”, eis o que afirma Hesse por ocasião do Natal de 191310. Meio ano depois tem início a Primeira Guerra Mundial. Essa tor­ menta se estende sobre a Europa, refletindo-se também na produção lírica de Hermann Hesse da época. Antigas feridas — sobretudo a do desejo de morte — são reabertas violentamente:

Anos sem bênção, Tempestade em todas as direções, Em local algum a pátria, Somente caminhos errados e despropósito! A mão de Deus pesa Sobre minha alma. E de todos os pecados, de todos os abismos escuros apenas um desejo único: Encontrar a paz afinal, E ir para o túmulo, Sem volta (G I, 364). Hesse, que em princípio encarou a guerra como “experiência” (G I, 389) e a colocou no mesmo nível da paz (“Guerra e paz, ambas têm o mesmo valor/ Pois nenhuma morte toca o reino da alma”), já em outubro 10. Hesse, H., Carta a O. Blümel de 24/12/1913, in Gesammelte Briefe, op. cit., p. 236. 144

HERMANN HESSE E A INSONDABILIDADE D/X ALMA

de 1914 toma um curso conseqüentemente antibélico (“O Freunde, nicht diese Tone”). Ele pressente a catástrofe cultural que a guerra significará, que nada mais será como antes. Crises pessoais pioram sua própria situa­ ção de maneira dramática. Sua mulher adoece psiquicamente e tem de ser internada temporariamente em 1916 em uma clínica psiquiátrica. Ele mesmo submete-se de abril de 1916 a novembro de 1917 — durante quase um ano e meio, portanto — a um tratamento na linha da psicolo­ gia do inconsciente, em Lucerna. Terminada a guerra, Hesse separa-se definitivamente de sua família e acaba encontrando novamente uma oportunidade de trabalho tranqüilo, desta vez nas montanhas de Tessin, em Montagnola, primeiramente na Casa Camuzzi, onde morará até agos­ to de 1931. Os textos-chave dessa época deixam transparecer a cesura em relação aos que os antecederam: Demian (1917), Klein e Wagner (maio a junho de 1919), Klingsors letzter Sommer (O último verão de Klingsor, julho a agosto de 1919). Talvez “cesura” seja aqui uma palavra um tanto pálida. O próprio Hesse chama Klein e Wagner de um “rompimento com meu antigo modo de ser e o início de algo totalmente novo. Essa narra­ tiva não é bela e graciosa, mas como Cyankali”11. Mas o que nesses textos seria tão perigoso quanto Cyankali? Dito de forma abreviada, o perigo estava no redescobrimento da dupla face do homem e conseqüentemente do próprio Deus. Era a nova experiência da androginia do homem e de Deus. A redescoberta da inquietude e da insondabilidade — física e metafísica. O descobrimento da síndrome de Abraxas, a partir de uma imagem de Demian: a experiência do bom e do mau, de Deus e do diabo. Algo assim ainda não surgira no mundo espiritual-religioso de Hesse: um sim para protestos contra o Deus cego e cruel. Ainda em 1914, lê-se o seguinte em um poema passional sobre Deus, “Do solitário para Deus”: Solitário eu fico, mal-amado e abandonado na noite inimiga. Pesa-me o ânimo, cheio de amargura, Quando me lembro de ti, Deus cego, que, sempre pleno de crueldade, Faz o que é incompreensível (G I, 370).11 11. Id., Carta a L. Moilliet de 24/7/1919, in ibid., p. 407.

145

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Ora, a propria crueldade como Deus? Um Deus que suscita ao mesmo ' tempo prazer e terror, que constitui o que há de mais sagrado e de mais horrendo, que é culpa e inocência, bem e mal? Hesse não descrevera nem mesmo o homem dessa forma, até então. Certamente, seus personagens dos primeiros romances eram sempre vítimas de medos, dúvidas ou circunstâncias de amor não-correspondido, de produtividade fracassada, da indiferença da sociedade — seres problemá­ ticos, sensíveis, complexos. Agora, no entanto, Hesse descreve persona­ gens que trazem em si próprios a contradição da morte. Por exemplo um homem chamado Klein, verdadeiro representante da decência, da ordem, dos costumes e da vida em sociedade, das virtudes e dos valores burgue­ ses. E esse Klein é ao mesmo tempo Wagner, em cuja alma mora o “crime”, onde há “revolta, abandono dos deveres sagrados, entrega ao mundo, ódio contra a esposa, fuga, isolamento e talvez suicídio” (V, 215). Se Klein é um homem controlado, que domina as fantasias da vida cotidiana, Wagner é atormentado por fantasias de oigias de sangue, pela visão de um homi­ cídio quádruplo, seu e de sua família. Em resumo, ao passo que Klein é “o bom homem”, Wagner carrega em si o “assassino e o perseguido, mas também o compositor, o artista, o gênio, o sedutor, a inclinação para a alegria de viver, o prazer sensual, o luxo — Wagner era o nome coletivo para tudo que é reprimido, sufocado e escasso na vida do então funcioná­ rio público Friedrich Klein” (V, 267). Klein e Wagner — fatal simultaneidade do que há de contraditório no ser humano. Mas como? Anteriormente havia nos romances sobre artistas a descrição de seus caminhos e estágios exteriores como caminhos para o encontro de si mesmos. Agora — a história de Klingsor é o auge da nova tendência — dá-se pela primeira vez a descrição de um caminho para dentro, a descrição de um processo interno de auto-objetivação artística em uma única obra, qual seja o auto-retrato que o pintor faz de si mesmo no final do longo verão. De fato: mesmo em Klingsor trata-se de preser­ var a simultaneidade da contradição, a presença do que em geral se exclui de maneira contraditória. O deus Abraxas corresponde ao homem Abraxas. É exatamente isso, segundo essa narrativa, que deve se tornar visível no auto-retrato de Klingsor: O ser cansado, cobiçoso, selvagem, infantil e refinado de nossos tempos, o ser europeu, moribundo, ansioso pela morte: refinado por cada nostalgia, adoecido por cada vício, dominado entusiasticamente pelo conhecimento de seu declínio, preparado para todo progresso, maduro para cada retrocesso, pleno de fervor

146

HERMANN* HESSE E A INSON'DABILIDADE DA ALMA

e pleno de cansaço, entregue ao destino e à dor como o morfinômano ao veneno, isolado, escavado, antiqüíssimo, semelhante a Fausto e Karamasow, animal e sábio, totalmente despojado, completamente isento de ambição, com­ pletamente nu, pleno de medos infantis em relação à morte e pleno de dispo­ sição fatigada para morrer (V, 348 s.),

E por que tudo isso? Por que essa perspectiva interna e externa, por que essa radicalização da imagem do ser humano e de Deus ao mesmo tempo? Só há uma resposta: sob a influência da psicanálise e da psicolo­ gia do inconsciente, Hermann Hesse teve de aprender a conviver com a simultaneidade do contraditório em si mesmo. O que sua educação separa­ ra em bom e mau, pecaminoso e permitido, culpa e inocência, Deus e diabo, deveria agora ser ligado. Quanto de cisões, demonização e ruptu­ ras a criação cristã-pietista ocasionara em sua alma. Agora ele finalmente chegaria a uma reconciliação, em seu próprio coração. A libertação de­ veria se dar a partir da aceitação das imagens tornadas contraditórias em sua alma por sua criação. Por isso, a libertação dos sentimentos de culpa está por trás da crença no deus Abraxas, que é ao mesmo tempo luz e treva, e sobre o qual se diz, de maneira característica: “Quanto a teus pensamentos e quanto a teus sonhos, ele não tem qualquer restrição a fazer” (V, 109). A liberta­ ção do ódio de si mesmo está subjacente à tentativa desesperada de Klein de aceitar o Wagner dentro de si e não mais reprimi-lo. Klein, antes de sarar, tem primeiramente de descobrir a expressão-chave: conseguir re­ nunciar, lançar-se para dentro do ritmo fundamental da vida — inspira­ ção e expiração, forma e dissolução, nascimento e morte, partida e retor­ no. Somente quando isso for descoberto e aceito, apenas quando ele realmente renunciar a si mesmo e não mais resistir “contra a vontade de Deus” — é o que está dito literalmente —, quando não se apegar mais a nada, nem ao bem nem ao mal, somente então poderá dizer: “Naquele momento estava-se salvo, estava-se livre do sofrimento, livre do medo, somente então” (V, 289).

5. A nova imagem de Deus Eis portanto a grande descoberta: a aceitação das próprias contra­ dições como caminho para a libertação da culpa, do ódio e do medo, como caminho para a salvação e a liberdade; o reconhecimento de que as 147

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

oposiçôes do mundo são somente invenção do gênio humano e existem somente no tempo; na realidade, pertencem como que “desde a eternida­ de” a uma unidade que se podería chamar de Deus. Para Hermann Hesse, beus não é mais algo frontal ao ser humano, algo que se pode interpelar de modo confiante, ou algo contra o qual se pode praguejar. Deus tornou-se agora o mistério inexplicável da unidade de todos os opostos. Lê-se em um poema dessa época:

Deus vive em mim, Deus morre em mim, Deus sofre em meu peito, isso me basta como objetivo. Caminho certo ou caminho errado, botão ou fruto maduro, Tudo é uma coisa só, são nomes apenas (G II, 455). Deus, portanto, não pode ser encontrado “lá fora”, mas “no inte­ rior” (V, 292), interior que com certeza já precede as oposiçôes de inte­

rior e exterior. E desta , forma Klein e Wagner pode terminar com um singular “furioso” lançado contra o Deus inominável: Heróis e pensadores, profetas e mensageiros desviaram-se do fluxo da história do mundo. “Veja, aqui está Deus, o Senhor, e seu caminho conduz à paz”, disse um, e muitos o seguiram. Outro anunciou que o caminho de Deus con­ duziría à luta e à guerra. Um chamou-o de luz, outro o chamou de noite; um, de pai, outro, de mãe. Um o exaltou como tranquilidade, outro como movimen­ to, como fogo, como frio, como juiz, como consolador, como criador, como aniquilador, como indulgente, como vingador. Deus mesmo não se definia. Ele queria ser nomeado, amado, exaltado, amaldiçoado, odiado, adorado, pois a música do coro do mundo era seu templo e era sua vida — mas lhe era indiferente o nome com que era exaltado, se era amado ou odiado, se era procurado na tranquilidade, durante o sono, durante a dança ou a raiva. Qual­ quer um podia procurá-lo. Qualquer um podia achá-lo (V, 292). Qualquer um podia procurar e achar? De fato, Hesse dá nessa fase a impressão de que o homem pode encontrar uma solução para seus problemas apesar de toda radicalização da problemática divina. Ele pro­ vavelmente acreditava que apesar de toda a contradição da vida se podia alcançar uma unidade vivível com a ajuda da literatura. Façamos também aqui a prova. Como termina o romance Demian? Claro que com o irrompimento da Primeira Guerra Mundial e o ocaso do Velho Mundo; e ainda com a confiança de que Sinclair, o herói desse romance, possa ver no final a 148

----------------------------------------------------

HERMANN! HESSE E A INSONDABIUDADE DA ALMA

“própria imagem” (agora totalmente idêntica à de Max Demian), descen­ do para dentro de si mesma (“onde as imagens do destino dormitam em um espelho escuro”). Como termina Klein e Wagner? Claro que com a ruína do herói, sua partida voluntária para o lago, mas também com a confiança de que, apesar de todas as fantasias de homícidio e de todas as noções de delito, ele pode encontrar na ruína humana a “própria voz” e cantar “alto e retumbante louvor e glória a Deus” —- ao Deus, todavia, que só pode se revelar em sua dupla face. Como termina O último verão de Klingsor? Com o fato de que o pintor consegue criar seu auto-retrato, apesar de sua forma radical de viver, que oscila entre o prazer selvagem da bebida e o erotismo próximo à luxúria, entre a vontade de viver e o pressentimento de morte. Tímido, esconde sua obra do público e, depois de concluída, volta ao seu mundo banal do trabalho: “Então ele tomou Veronal e dormiu um dia e uma noite. Depois se lavou, barbeou-se, vestiu novas roupas, foi à cidade, comprou frutas e cigarros para presentear Gina com eles” (V, 352). Como termina, por fim, Siãarta (1922), para o qual Hesse utiliza seus muitos anos de estudo sobre filosofia e religião da índia, iniciados já na infância?12 Como se sabe, nem com a mensagem da renúncia bu­ dista ao mundo (Sidarta não segue Buda), nem com a leitura de mundo hindu (mundo .= Maia = aparência), mas sim com uma convicção pro­ funda que denuncia semelhanças com a Cristandade, segundo as próprias palavras de Hesse13. Em um diálogo decisivo entre Sidarta e Govinda, que seguiu o caminho de Buda, sem encontrar todavia a iluminação, lê-se o seguinte: Govinda disse: — Mas é algo real e específico o que você chama de “coisas”? Não se trata de uma ilusão de Maia, somente imagem e aparência? A pedra que você men­ ciona, sua árvore, seu rio — são realidades? — Também isso — disse Sidarta — não me importa muito. Sejam ou não essas coisas aparência, então eu também sou aparência, e dessa forma elas 12. Sobre Siãarta, cf. MICHELS, V., (org.), MateriaUenzu Hermann Hesses “Siddhartha", vols. I-n, Frankfurt/M., 1977-1978. 13. Citado por ZELLER, B., Hermann Hesse, 94 (cf. nota 1): “O fato de mea Sidarta não privilegiar o conhecimento, mas o amor, e o fato de recusar o dogma e conferir à vivência e à unidade um papel central apontam para um reencontro com o cristianismo e marcam até mesmo um traço verdadeiramente protestante”.

149

OS ESCRITORES E AS ESCRiTURAS

■x

são sempre minhas semelhantes... eis o que as faz tão queridas e dignas de respeito para mim: elas são como eu. Por isso eu posso amá-las. E isso é somente uma teoria da qual você vai rir: o amor, oh! Govinda, me parece ser a principal coisa entre todas as outras. Ler o mundo, esclarecê-lo, desprezá-lo, pode ser grande coisa para pensadores. Para mim, no entanto, só importa poder amar o mundo, não o desprezar, não o odiar, tampouco a mim mesmo; poder observar o mundo, a mim mesmo e a todas as cria­ turas com amor, admiração e respeito. — Isso eu entendo — disse Govinda. — Mas mesmo isso o Mestre reconheceu como ilusão. Ele nos ordenou benevolência, consideração, tolerância, mas não amor; ele nos proibiu de atar nosso coração a coisas temporais. — Eu sei disso — disse Sidarta, e seu sorriso radiava dourado. — Eu sei, Govinda. E veja, aqui estamos nós, dentro da densa floresta dos pensamen­ tos, discutindo sobre palavras. Pois eu não posso negar que minhas pala­ vras sobre o amor estejam em contradição com as palavras de Gotama. E exatamente por isso eu desconfio tanto das palavras, pois sei que essa contradição é enganosa. Eu sei que tenho o mesmo pensamento que Gotama. Então como pode ser possível que ele não conheça o amor? Ele, que reco­ nheceu tudo o que é humano em toda sua fugacidade, em sua futilidade, e mesmo assim amou tanto os homens, de forma a empregar uma longa e penosa vida para ajudá-los e ensinar-lhes! Também em relação a ele, seu grande Mestre, prefiro a coisa às palavras; suas ações e sua vida são para mim mais importantes que seu discurso; o gesto de sua mão é mais impor­ tante que suas opiniões. Não é nas palavras ou no pensamento que vejo a grandeza, mas somente nas ações, na vida (V, 466 s.).

“Encarar todos os seres com amor, admiração e respeito”? Polaridade apaziguada? Amorosa aceitação das próprias contradições? Relação bem-sucedida com a própria inquietude? Estaria fria a massa de lava incan­ descente que fervia no jovem Hessé aos 14 anos, em 1892, ou aos 42, em 1919? Hesse — um homem definitivamente estabilizado, que se permite até mesmo expressar pensamentos bem-humorados sobre “ficar velho”? Toda a futilidade que os jovens valorizam, também por mim era reverenciada: cachos, gravatas, elmo e espada, e não menos as donzelas.

Mas somente agora vejo com clareza — já que para mim, velho rapaz, 150

----------------------------------------------------

HERMANN HESSE E A INSONDABILIDADE DA ALMA

já não é possível ter tudo — somente agora vejo com clareza como essa aspiração era sábia, É certo que as fitas e os cachos se vão E toda a magia também; mas o que eu consegui a mais, sabedoria, virtude, meias quentes, ah, isso também se vai, e na terra fará frio, Para pessoas idosas, a maravilha é estar ao fogão, um bom vinho tinto, e por fim uma morte amena — mas só mais tarde, hoje ainda não (G II, 459).

6. A crença básica de Hesse na unidade De fato, num primeiro momento tudo parecia consolidado. Siãarta surgiu em 1922, depois da superação de uma dura crise psíquica e artís­ tica. Em 1923 o primeiro casamento de Hesse é desfeito, e em 1924 ele começa o segundo casamento, desta vez com Ruth Wenger. Hesse vive um vaivém entre Basiléia, Zurique e Montagnola; primeiro, em 1923, faz um tratamento em Baden, próximo a Zurique, para resolver seus proble­ mas de nervo ciático e reumatismo, e em 1925 empreende uma viagem de leituras pela Alemanha. Os textos-chave desta época entre 1922 e 1926 respiram uma atmosfera descontraída: Kurgast (O paciente) e Nürnberger Reise (Viagem a Nürnberg). Em especial em Aufzeichnung von einerBaãener Kur (Anotações de um tratamento em Baden), Hesse conse­ gue transmitir um clima de serenidade de maneira criticamente distan­ ciada, e ao mesmo tempo solta e divertida. De início, formula com cla­ reza e precisão clássicas seu credo espiritual, que a partir daqui será a peça fundamental de sua crença: Neste mundo, não creio em nada tão profundamente, e nenhum outro conceito me é tão sagrado quanto o da unidade: a noção de que o mundo todo forma uma unidade divina e de que nele só há dor e maldade porque nós não nos vemos mais, enquanto indivíduos, como parte inseparável do todo, ou seja, porque o eu se considera importante demais. Sofri muito em minha vida, fui muito injusto, meti-me em situações tolas e duras, mas sempre consegui me 151

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

libertar, esquecer meu eu e sentir a unidade, perceber como ilusão a discrepân­ cia entre interior e exterior, entre o eu e o mundo, e entrar de boa vontade e de olhos fechados nessa unidade. Isso nunca foi fácil para mim, ninguém podería ter menos pendo para o sagrado do que eu; mas mesmo assim encon­ trei seguidamente aquela maravilha que os teólogos cristãos chamam de “gra­ ça, aquela experiência divina da conciliação, do não-mais-resistir, do estar voluntariamente de acordo — que nada mais é senão a entrega cristã do eu, ou o conhecimento indiano da unidade (VII, 61 s.).

E, para tirar a prova na prática, o paciente Hesse dá ao leitor a oportunidade de conhecer sua técnica de conciliação em detalhes. No quarto vizinho do hotel, em Baden, estava hospedado um paciente holan­ dês extremamente desagradável. O ódio contra este homem começa a crescer e acaba desgastando os nervos do vizinho Hesse até o limite. Desejos de morte germinam. Aí o filho de missionário se lembra da bela frase do cristianismo primitivo: amai vossos inimigos. Então se apresenta ao inimigo, incorpora-o em sua fantasia, penetra-o com a própria alma, com a própria respiração, acaba com toda a resistência — e vence. A frase do Novo Testamento se torna “doutrina de felicidade”, uma “téc­ nica espiritual para a máxima ponderação” (VII, 65). Hesse, discípulo de Jung e Freud, tira disso conseqüências funda­ mentais e descobre como que uma psicologia da doutrina neotestamentária do amor: Se as sentenças do Novo Testamento não forem tomadas como mandamentos, mas como manisfestações de um conhecimento extraordinariamente profundo sobre os mistérios de nossa alma, então a sentença “Ama teu próximo como a ti mesmo...” é a palavra mais sábia que jamais se pronunciou, a breve essên­ cia de toda a arte de viver e de toda doutrina da felicidade. O mistério de toda: a felicidade, de toda bem-aventurança, está contido nessa sentença: ah, toda a sabedoria é tão simples, já foi expressa e formulada há tanto tempo e de maneira tão precisa! Por que ela nos pertence somente às vezes, somente nos bons dias, por que não sempre? (VII, 105 s.)

Era esta a solução de Hesse para todos os problemas? Estranhamente, é como se ele tivesse ansiado por soluções demais, e as descrito demais, assim como já fizera em uma fase anterior, em Knulp (1915). É como se: ele tivesse tentado colocar conciliação em excesso no plano estético, sem ter levado a sério o suficiente a realidade em todas as suas dimensões.

HERMANN HESSE E A 1NS0NDA81UDADE DA ALMA

Não é de admirar portanto que chegue novamente a mais uma ruptura, a última desse tipo.

7. Um último olhar para o caos Sim, eles estavam presentes o tempo todo: os dias escuros na vida de Hermann Hesse, os dias inquietantes, insondáveis, contraditórios, impulsivos e nauseantes. Mas agora Hesse é capaz, de aceitá-los e retrabalhá-los. Com quase 50 anos, e como jamais até então, o autor alcança a capacidade literária de uma impiedade analítica em relação a si mesmo. Talvez esteja aí seu valor efetivo: na desconsideração despreocupada com que se torna capaz, ao longo dos anos, de se colocar diante da insondabilidade oculta de sua própria alma, da insondabilidade esteticamente ignorada, claramente escondida por detrás .de uma fachada burguesa. E mais, se seguirmos uma análise versada: nesse caso, teremos de conside­ rar em Hesse uma relação de tormenta existencial e produtividade lite­ rária. Experiências de dor, obscurecimento depressivo, auto-observações torturantes e incessante crescimento do mal-estar físico eram o pré-requi­ sito espiritual para produção criativa nesse autor, que encarava um rela­ tivo bem-estar como “desvio indigesto” que lhe causava “certos escrúpu­ los e impaciência”14. Não admira por isso que paralelamente a Sidarta, O paciente e Viagem a Nürnberg apareçam repetidamente textos sombrios: em Gedanken zu Dostowjewskis “Idiot” (Reflexões sobre “O idiota” de Dostoievsky 1920), surge repentinamente a expressão “pensamento mágico” e já se evoca programaticamente a “aceitação do caos”:

Retorno ao desordenado, volta ao inconsciente, ao desestruturado, ao animal, para aquém do animal, um retomo ao início. Não para ficarmos lá, não para nos tornarmos animais, não para voltarmos ao barro inicial, mas. para nos reorientarmos, para descobrirmos nas raízes de nosso ser os instintos esque­ cidos e as possibilidades de evolução, para podermos proceder a uma nova criação, valorização e divisão do mundo15. 14. Quanto a isso, cf. KLEINE, G., Zwischen Welt und Zaubergarten. Ninon Hesse und Hermann Hesse: Ein Leben im Dialog, Frankfurt, 1988. 15. H. Hesse, “Gedanken zu Dostojewskis Zdwf”, in MICHELS, V., (org.), Materialien zu Hermann Hesses "Der Steppenwolf', Frankfurt/M., 1972, pp. 217-223, cit. 223.

153

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Dessa forma, a direção fica clara: somente o olhar que se lança sobre o caos permite sua aceitação, e somente a aceitação do caos permite sua superação! s Pode-se ver ainda o Tagebuch eines Entgleisten [Diário de um desencaminhadd), texto decisivo para se estabelecer a imagem que Hermann Hesse tem da mulher. Nele, alguém se dá conta de que conseguiu tudo que desejou para si na vida (casamento, família, paz, uma casa no campo, dinheiro, viagens) e de que neste momento, ao alcançar tudo, tudo lhe parece diluído e sem valor. O mesmo acontece em relação às mulheres: Também elas, as mulheres, por tanto tempo desejadas, inatingíveis, estão aqui agora. Deus sabe levadas pelo quê; e eu acaricio seus cabelos, seus seios inquie­ tos e quentes e, já hesitante, admiro e tomo nas mãos a fruta mordida, que me atraía de tão longe, como se estivesse no paraíso! Ela é gostosa, essa fruta; tem sabor doce e pleno, não posso repreendê-la — mas ela satisfaz, satisfaz rapi­ damente, já estou sentindo, e logo será jogada fora16.

Essa metáfora de violência e agressão (a mordida, o jogar fora) deixa transparecer e anuncia uma nova ruptura. E não se pode deixar de percebê-la: a luz da conciliação em Sidarta e O paciente se torna nova­ mente pálida. O que resta de lava vulcânica começa a ferver e crescer: se em 1892 ocorreu a descoberta da religião como mentira, do cristianismo como ilusão, da Igreja como engano, e se em 1919 deu-se a descoberta da dupla face do deus Abraxas, agora, o mais tardar em 1926, acontece a descoberta do homem lobo-da-estepe. Retoma-se o mesmo tema da natureza bipolar do ser humano, que já fora lembrado em Klein e Wagner e Klingsor. Mas com que nova inten­ sidade! Se o “lobo” que havia dentro do funcionário piiblico Friedrich Klein não extrapolava o terreno da fantasia, Hesse permite agora em seu novo romance, O lobo da estepe17, que seu Harry Haller, um homem so­ litário, 50 anos, caminhe pelo terreno de tudo que é real e experimente tudo, física e psiquicamente: não somente o álcool e a bebedeira, mas todo o espectro de experiências sexuais e sensações de satisfação propor­ cionadas pela embriaguez. Harry, em relação a Klein e Wagner, afasta-se muito do conceito simplista de que o homem seria explicável por um esquema dualista. Certamente o próprio Hariy trabalha ainda com a me­ 16. Id., “Aus dem ‘Tagebuch eines Entgleisten”’, in ibid., pp. 199-203, cit. 201. 17. Sobre O lobo da estepe, cf. MICHELS, V., (org.), op. cit., e SCHWARZ, E., (org.). Hermann Hesses "Steppenwolf’, Kõnigstein/Ts., 1980. 154

HERMANN HESSE E A IN50NDABILIDADE DA ALMA

táfora dualista de lobo e homem em seu “Tratado sobre o lobo da estepe”: “Em seus sentimentos, nosso lobo da estepe vivia às vezes como lobo, às vezes como homem, tal como se dá com todas as criaturas híbridas; mas quando ele era lobo o homem dentro dele permanecia sempre à espreita como espectador, sentenciador e juiz — e nos momentos em que era humano o lobo fazia o mesmo” (VII, 224). Mas precisamente esse “tra­ tado” desmascara esse tipo de auto-interpretação como dualismo simpli­ ficado e pretende ir além do reconhecimento da infinita riqueza psíquica humana: “Harry não se constitui em duas criaturas somente, mas em centenas, em milhares. Sua vida oscila (como toda vida humana) entre milhares de pares polarizados” (VII, 241). De fato, a construção de enredo que caracteriza esse romance é algo até então jamais visto na obra de Hermann Hesse: Hariy, que vive exte­ riormente uma vida adaptada aos padrões burgueses e que se recolhe durante o dia em seu quarto de trabalho, costuma passar suas noites em bares baratos. Lá ele encontra a prostituta Hermine, que o introduz nos prazeres da vida decadente da cidade grande e o seduz para os prazeres da música e da dança. Hermine é lésbica, ligada a Maria, por sua vez a amada de Pablo, músico que assume o papel do mestre psicodélico. Pois Pablo é o senhor do “teatro mágico”, que não passa de uma visionária orgia de drogas, na qual Harry Haller experimenta definitivamente a fragmentação de seu eu em facetas psíquicas “verdadeiras”. Ele pode vivenciar todas as experiências de técnicas cada vez mais elaboradas de sensualidade, percorrer todas as fantasias de morte, experimentar todas as orgias de sangue e gula. Sim, as visões de morte na obra de Hesse alcançam nesse romance seu auge: Klein já estava dominado pela pressão de suicidar-se, de matar sua esposa e, dessa forma, a imagem da mãe que tinha em si; o auto-retrato de Klingsor mostrava um seio feminino cor­ tado por uma faca; Harry Haller tem o desejo de cortar sua própria gar­ ganta com uma lâmina, mas, como isso não acontece, tira a vida de sua amada Hermine com um punhal...

8. Autodenúncia cínica Somente os poemas da série “Crise” superam a impiedade com que Hesse concretiza seu “olhar sobre o caos”, não somente para si mesmo, mas de modo que também o público possa reconstituí-la, por meio da 155

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

--------------------------------- - --------------------------------------

literatura. É difícil acreditar que o autor de Sidarta, que pregava a con­ sideração de “todas as criaturas com amor, admiração e respeito”, seja capaz de versos como estes:

Do berço ao caixão são cinqüenta anos, aí começa a morte, A gente se imbeciliza e se amargura, se torna indiferente e se acaipira e os cabelos vão pro inferno. Também os dentes se estragam, E em vez de nos encantarmos, De apertarmos mulheres jovens contra o peito, O que fazemos é ler um livro de Goethe.

Mas ainda uma vez, antes do fim Eu quero capturar uma jovem, Olhos claros e cabelos encaracolados, Pegá-la cuidadosamente com minhas mãos, Beijar sua boca e o peito e a face, Desvestir sua saia e calcinha. Depois em nome de Deus A morte deve me buscar. Amém (G II, 774).

Também no que diz respeito à religião ele volta ao tom de irreverência, de cinismo, até mesmo de blasfêmia, como não mais ocorrera desde os tempos da primeira crise. A lírica comprova que não se podería imaginar uma distância maior em relação a Sidarta, “Encarar todas as criaturas com amor, admiração e respeito”? O contrário de respeito, amor e admi­ ração chama-se agora escárnio, ódio, cinismo: Eu desejava ser um católico, Então o Redentor teria morrido por mim; Minha vida está completamente corrompida, Eu sinto isso nos olhos e na nuca. A morte mora no meu coração Como um fantasma em uma casa em ruínas, Lentamente ele apaga as luzes, Uma depois da outra, todas as velas brilhando: Velas do amor, luzinha da infância, Chama da poesia, fada graciosa, 156

HERMANN HESSE E A INS0NDAB1LIDADE DA ALMA

tocha da volúpia e cegueira bem-aventurada — Oh, que eu as veja todas brilhando e se apagando! Logo, quando eu estiver novamente embriagado, Virá um automóvel em alta velocidade, Dirigido por um padeiro Que me carregará para a morte com mão segura. Tomara que ele também quebre a nuca, esse católico feliz, Proprietário de casa, fábrica e jardim, Por quem esperam dois filhos e esposa, . E que teria ganho ainda mais dinheiro e feito filhos, Se um poeta bêbado Não tivesse se jogado na frente das luzes de seu carro. Perante a morte até mesmo um padeiro se curva, Mas para ele foi pregado um Redentor na cruz, e para mim ao contrário não há nada a dizer (G II, 552). Todavia essa não foi a última palavra de Hermann Hesse. Corrente e contracorrente. Já mesmo em O lobo da estepe a contracorrente toma contornos. Pois o lobo da estepe não pretende de forma alguma descrever seu estado interior de ruína, desequilíbrio e fragmentação. Antagonistas em relação ao homem lobo-da-estepe são principalmente os “imortais”, sobretudo Goethe e Mozart. Eles incorporam uma coexistência com o mundo burguês por meio de sua capacidade para o “humor”, E exatamen­ te o humor também deveria ser aprendido por Harry Haller. Assim, não é coincidência que justamente depois do assassinato de Hermine, Mozart apareça mais uma vez e elucide para Harry Haller a eterna diferença entre ideal e realidade: “Você deve viver, e deve aprender a sorrir. Você deve aprender a ouvir a maldita música de rádio e admirar o espírito por detrás dela, deve aprender a rir dos acessórios supérfluos que há nela. Isto é tudo. Mais do que isso não será exigido de você” (VII, 411 s.). Somente agora Harry compreende o sentido do sorriso, compreende o mistério dos “imortais”: há uma possibilidade de relacionamento sorridente e descontraído com esse mundo em ruínas e fragmentado, sim, uma possi­ bilidade lúdica com a qual a diversidade psíquica do eu possa lidar. Riso e humor são maneiras de ler o mundo sem demonizá-lo, de viver no mundo e, todavia, não arruinar suas estruturas, coexistir com a discrepância sem a ignorar “burguesmente” Riso e humor seriam formas de reconciliação do eu com o mundo, reconciliação com a própria mortalidade e fragmentação. 157

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Uma vez, no entanto, que Harry Haller só reconhece isso no final do romance, sua história tem de acabar em aberto. Harry Haller abando­ na o quarto burguês onde morara e onde seu narrador o encontrara — nào sem deixar para trás seu “tratado” e então desaparecer para sempre.

Mas ao leitor acena-se com a possibilidade de que Harry no final estives­ se disposto a “começar o jogo novamente, provar novamente suas tor­ mentas, estremecer novamente perante sua tolice, caminhar novamente no inferno do meu interior” (VII, 413). Sim, depois de Harry ter conhe­ cido o segredo dos “imortais” ele está preparado para começar de novo e de uma maneira diferente jogar o “jogo”: “Ao menos uma vez eu iria mover com mais habilidade as peças do jogo e iria aprender a rir. Pablo esperava por mim. Mozart esperava por mim” (VII, 413). Sem dúvida, O lobo da estepe é mais que um romance que possibilita olhar o caos interior: é também um romance em que o homem, apesar de tudo, deve procurar “esse sinal divino” (VII, 211), o “sinal dourado e reluzente” (VII, 214), a revelação e a proximidade de Deus no “último caos enlouquecido”. Em seu posfácio para O lobo da estepe, Hermann Hesse escreveu em 1941:

Esses leitores, ao que me parece, reencontraram a si mesmos em O lobo da estepe (...) e lhes acabou passando totalmente despercebido que o livro também sabe de outras coisas além de Harry Haller, e que ele fala sobre elas; (...) eles parecem não ter percebido que além do lobo da estepe e sua vida problemática constrói-se um segundo mundo, mais elevado, eterno e que o “tratado” e todos os trechos do livro que tratam do espírito, da arte e dos “imortais” confrontam o mundo de sofrimentos do lobo da estepe com um mundo de crença positivo, sereno, impessoal e atemporal (...)18

Eis, portanto, o que Hesse pretendia em O lobo da estepe, e também em sua própria existência como artista: “Viver no mundo como se ele não fosse mundo, observar a lei e, todavia, estar além dela, possuir como se não se possuísse, desistir, como se não houvesse desistência” (VII, 238) — uma frase que caracteriza a grande convergência entre a postura básica de Hesse e a existência escatológica do cristão, como expressou Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (ICor 7,29). 18. HESSE, H., Posfácio, in Materialien zu Hermann Hesses “Der Steppemvolf”, op. cit., p. 159.

158

HERMANN HESSE E A INSONDABIllDADE DA ALMA

9. A ultima conciliação: “Meditação” É nítida em Hermann Hesse a procura por urna coexistência com

o mundo sem cair na banalidade burguesa. Seu próximo romance, Nar­ ciso e Goldmund, publicado em 1930, comprova isso. Pois Hesse tenta mais uma vez: depois da desunião, a unidade; depois da fragmentação, a conciliação; depois do olhar para o caos, um caminho para a cura. Mas agora — menos de quatro anos depois de O lobo da estepe — o esquema narrativo já está demasiadamente transparente, a problemática demasia­ damente conhecida, a solução simples demais para que o romance possa convencer de novo e apresentar novamente um salto de qualidade. Como se sabe, o caminho de Goldmund, que tem de percorrer o mundo como artista, termina no mosteiro do qual ele partiu e no qual seu amigo Narciso passou uma vida de ascese e erudição. Comovido profundamente pela visão da imagem de Maria, Goldmund quis aprender a arte da escultura, realizar um protótipo em si mesmo, tal como o pintor Klingsor tentou fazer a seu modo. Desta vez, no entanto, não se trata da própria imagem, mas da imagem da mãe dos homens, da progenitora que mora nas camadas mais profundas da própria alma. Hesse, contudo, permite que seu Goldmund, no leito de morte no mosteiro, e em um último diálogo com Narciso, reconheça que o que importa não é ser sujeito e produtor da própria imagem interior. Tudo depende de se dei­ xar formar e modelar, de se admitir e amar ,o mistério materno em nós, que quer ficar invisível. Goldmund pode morrer apaziguado com esse conhecimento. Narciso, no entanto, fica inquieto com a última pergunta de Goldmund: “Mas como é que você quer morrer, Narciso, se você não tem mãe? Sem mãe não se pode amar. Sem mãe não se pode morrer” (VIII, 320). Parece quase inacreditável que o autor de Klein e Wagner, Klingsor e O lobo da estepe possa escrever um romance tão kitsch, permeado de clichês e convenções. E ainda: depois de O lobo da estepe não haverá mais nenhuma rup­ tura semelhante em Hermann Hesse. Ao contrário: a Hesse, no fim das contas, interessa formular um tipo de credo básico. Agora surgem textos como Mein Glaube (Minha fé, 1931) e Ein Stückchen Theologie (Um pouco de teologia, 1932), nos quais Hesse formula a suma de seus conhecimen­ tos espirituais. “Em minhas primeiras narrativas, em Knulp, em Sidarta etc., vocês certamente encontrarão uma crença, mesmo que não uma crença formulada de maneira dogmática”, escreve Hesse em novembro de 159

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

1935. “De início, tentei formulá-la de maneira poética em Morgenlandfahrt (Viagem ao Oriente), e de maneira direta em uma poema que está no final do meu livreto de poesias da Editora Insel.”19 x Ao se analisar esse poema, “Meditação”, percebe-se com facilidade o tom altamente patético, o estilo elevado e artificioso que imita a crença de Goethe e a linguagem de Hõlderlin. Alguns poucos anos depois de O lobo da estepe Hesse está apto a esse tipo de lírica: Divino e eterno é o espírito. Ao seu encontro, de quem somos imagem e instrumento, Ele conduz nosso caminho; eis nossa nostalgia interna: Tornarmo-nos como ele, brilhar em sua luz. (...)

Assim, entre mãe e pai, Assim, entre corpo e espírito, Hesita o filho mais frágil da criação, Alma que estremece, ser humano, apto para a dor Como nenhuma outra criatura, e capaz do mais elevado: Do amor que crê e espera. (...) Por isso a nós, irmãos errantes, é possível O amor, mesmo na desavença, Nem julgamento nem ódio, Mas amor paciente, Amorosa tolerância conduz-nos para mais perto do objetivo sagrado (GII, 623).

Sem dúvida, eis a lírica confessional de um reconvertido, a penitên­ cia secular e a linguagem arrependida de um filho perdido que torna à casa paterna. Hesse desliza com habilidade em meio à abstração permeada de religião: onde ele antes teria sido concreto, tem-se agora espírito, caminho, luz, criação, natureza, culpa, alma, amor. Onde antes teria narrado de forma complexa, Hesse fala agora em esquema dualista: luz e treva, pai e mãe, alma e corpo; tempo e eternidade, fugacidade e imor­ talidade, amor e ódio. Se não houvesse uma experiência de vida e sofri-: mento por trás desses textos, eles nos seriam estranhos como um 19. Id., Carta a H. M. de 19/11/1935, in Ausgewãhlte Briefe, ed. ampl. org. p. H. Hesse e N. Hesse, Frankfurt/M., 1974, p. 149. Sobre o conceito de fé em Hesse cf. a bela coletânea de textos Mein Glaube, sei. e posfácio de S. XJnseld, Frankfurt/M., 1971.

160

HERMANN HESSE E A 1NS0NDABIUDADE DA ALMA

meteorito. Tal como se apresentam, são o produto abstrato final de uma longa jornada de vida, o destilado espiritual de um meditador e melan­ cólico que agora encontra sua coexistência com o mundo. A experiência da insondabilidade da alma não existe mais a partir dos anos 30 na obra de Hesse. Podemos encerrar a descrição de nossos cenários. Os contos Morgenlandfakrt (Viagem ao Oriente, 1932) e o ro­ mance Glasperlenspiel (O jogo das contas de vidro, 1943)20 não são mais produtos de uma crise existencial, mas um caminho de formação purifi­ cado, amadurecido, limpo; não mais olhares para o abismo, mas olhares para o futuro, ou mais precisamente: nostalgia da “unificação de todos os tempos” (VIII, 338). É exatamente essa unificação a marca de Viagem ao Oriente, essa experiência de unidade “mágica” que Hesse procura descre­ ver renovadamente desde Demian em todas as suas narrativas, como um feitiço infinito que lhe transmite a sensação de pertencer a uma comu­ nidade espiritual atemporal e intercultural. De sua parte, a lírica vem exatificar, na maior contenção e densidade possíveis: O máximo seria: viver em eterno presente. Mas essa graça só foi dada às crianças e a Deus (G II, 694).

10. A sabedoria da maturidade O que permanece? Permanecem nas décadas seguintes, nos anos 40, 50 e no início dos 60, as confissões líricas de um idoso, que não é nenhum leigo no assunto, mas talvez um indivíduo que tenha vivenciado em si próprio a polaridade como algo conciliável. Quem lê a lírica de Hesse dessas décadas não se confronta com alguém que alcançou a satis­ fação própria, com um sábio, com um sabe-tudo, mas com um tipo muito específico de sabedoria da maturidade: muita saciedade do mundo, um tênue cansaço da vida, uma melancólica volatilidade do mundo; descobre um homem que está pronto a começar uma nova viagem, que quer arris­ car uma nova partida: 20. Sobre O jogo das contas de vidro, cf. MICHELS, V., (org.), Materialien zuHermann Hesses "Das Glasperlenspiel”, vols. I-II, Frankfurt/M., 1977, e BRAN, R, PFEIFER, M., (org.), Hermann Hesses Glasperlenspiel, Bad Liebenzell, 1987.

161

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

-------------------------------------------------------------------------

Intranqüilo e ansioso por viajar, desperto de sonhos fragmentados, ouço uma melodia sussurrar para meus bambus, noite adentro. Em vez de repousar, em vez de ficar deitado, Algo me arranca dos velhos trilhos, exorta-me a cair, a voar, a viajar para o infinito (G II, 724).

Sim, retoma-se a postura básica que o jovem poeta já seguira: a do espreitar, do ouvir e do esperar. Certamente não é mais um esperar pela inspiração poética, não é mais um espreitar pela música da vida; trata-se agora de esperar pela possibilidade de um último retorno: Talvez haja um mensageiro lá fora E entre logo em minha casa; Antes que o dia se vá, Talvez eu esteja em casa (GII, 692), Chama a atenção que Hesse, aos 60 ou 70 anos, permaneça fiel a seus temas básicos: ele continua a ser um amigo da noite, um companhei­ ro do outono e do inverno. Suas estações líricas mais caras continuam a ser não as mais plenas em florescência, mas os tempos de declínio e transição. “Cheiro de outono” é seu perfume, “Dia cinza de inverno” seu momento, “Chuva de outono” seu meio lírico. Ele mesmo continua a se ver como “Caminheiro em fins de outono”, mas, quanto mais velho fica, mais parca se torna sua lírica. Mais escassa sem perder em força de expressão; mais densa sem se tornar hermética; mais fácil sem cair na simplicidade. Ele escreve poemas que ao dizer calam muito e dizem muito ao calar. “Noite cansada” (1960): O balbuciar dos ventos da noite Queixa-se, asfixia-se na folhagem, Caem gotas pesadas Cada uma ao chão.

Dos muros cansados Brotam musgo e samambaia, Pessoas idosas se acocoram Silenciosas sobre as soleiras.

Mãos curvas pesam Silenciosamente sobre joelhos tesos, 162

----------------------------------------------------

HERMANN HESSE E A INSONOABILIDADE DA ALMA

Dão-se o descanso E murcham.

Sobre o cemitério voam Gralhas pesadas e grandes. Sobre as colinas planas Crescem samambaia e musgo (G II, 717). Esse poema foi escrito por Hesse aos 83 anos. É o texto de um mestre que agora domina soberanamente a arte da redução à simplicidade máxima, de um mestre cuja lírica está muito destilada, livre de elementos supérfluos, de verborragia, de inflação de palavras. E de repente, na lírica do poeta de 85 anos, surge novamente o grande tema que o ocupou desde a infância e que serviu também para nós como ponto de partida: ilusão e fraude, engano e mentira. Mas que transformação não ocorre agora, que metamorfose trazida pela maturidade: sob influência do zen-budismo, do taoísmo e da espiritualidade cristã, Hermann Hesse é capaz, nesse mo­ mento, de não confrontar mais verdade e mentira, ilusão e realidade, mas sim de cruzá-las dialeticamente umas com as outras. Setenta anos sepa­ ram “Jovem noviço no mosteiro zen” e a crise de 1892:

Ainda que tudo seja engano e ilusão E a verdade sempre indizível, & montanha me observa Dentada e nitidamente reconhecível.

Veado e corvo, rosa vermelha, Azul do mar, mundo colorido: Concentre-se — e ele se dilui No informe e inominado. Concentre-se e entre, aprenda a olhar, aprenda a ler! Concentre-se — e mundo será aparência. Concentre-se — e aparência será essência (G II, 720).

E de repente — como se ele buscasse ar pela última vez — relampeja ainda uma vez o grande tema da insondabilidade do mundo, uma última vez o grande tema de sua obra: a música da vida, a dubiedade da existência, a dolorosa fragmentação de todas as coisas, a fugacidade de todos os fenômenos, a ambigüidade de tudo o que há. E, no entanto, que transformação, que metamorfose, que experiência profunda o poeta, aos 85 anos, é capaz de condensar (“Pequena canção”, 1962): 163

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Poema do arco-íris, Feitiço da luz moribunda, Felicidade desfeita como música, A dor na face da madona, Amargas alegrias da existência ...

Flores espalhadas pela tempestade, Coroas colocadas sobre túmulos, Serenidade sem duração, Estrela que cai na escuridão: Cortina de beleza e tristeza Sobre o abismo do mundo (G II, 726).

164

Thomas Mann

V

Thomas Mann A REDESCOBERTA DO CRISTINIAN1SMO E DA ÉTICA NO COMBATE AO FASCISMO *

1. A necessidade de uma ética mundial Apesar de críticas específicas, já há hoje certo consenso quanto à necessidade premente de se estabelecer uma ética mundial diante dos problemas de âmbito global. A transformação da sociedade mundial no limiar do século XXI, acelerada pelos sistemas de comunicação infor­ matizados e via satélite, é tão radical quanto a provocada pela Revolução Industrial no século XIX. A globalização, que se constata por toda parte, exibe nesse processo uma dupla face; ela revela novas chances para a economia mundial, para o sistema financeiro internacional, para os mer­ cados de capitais no mundo todo, mas os problemas irresolvidos, de outra parte, acumulam-se em proporções globais: superpopulação, escassez de recursos naturais, desemprego mundial, mudanças climáticas, movimentos migratórios, criminalidade em âmbito internacional (corrupção, tráfico de drogas). Já se constatou ser urgente pensar de maneira global tanto na esfera da economia, das finanças, da tecnologia e da ecologia como em vista de uma agenda de políticas internas em nível mundial, ainda por cumprir. A ordem mundial contemporânea, diante de tudo isso, está longe de se tornar mais estável. Pelo contrário. * Tradução de Paulo Astor Soethe.

167

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

Se no âmbito das religiões mundiais é possível registrar essa instabili­ dade, ocorre em muitas delas, por outro lado, o crescimento de um fanatis­ mo extremista, que chega mesmo a se manifestar sob a forma de violência terrorista. E as razões para isso nem sempre são de caráter imanentemente religioso. A religião, sobretudo sob a forma de fundamentalismo, é frequen­ temente expressão simbólica de insatisfações de natureza política ou social. Muitas vezes, o fanatismo religioso funciona como um cabo de transmissão destinado a levar à consciência da opinião pública os problemas de deter­ minada sociedade. Esses grupos religiosos, no entanto, são fator de inqui­ etação e desestabilização, sobretudo no âmbito das religiões proféticas (ju­ daísmo, cristianismo e islamismo). E não se pode fazer qualquer prognós­ tico seguro sobre a direção que grupos como esses podem impor a determi­ nados países. Quem se arriscaria, hoje, a fazer uma previsão segura sobre a situação, por exemplo, da Turquia ou da Argélia em 2020? Ao mesmo tempo, porém, o campo das religiões mundiais e da política global revela iniciativas opostas, que vale mencionar aqui1. Re­ cordo duas delas: em primeiro lugar, a Declaração por uma Ética Mun­

dial, assinada por trezentos representantes de todas as religiões em 4 de setembro de 1993 no Parlamento ãas Religiões em Chicago, e na qual se lê, entre outras coisas, a seguinte intenção programática: Estamos convencidos da unidade fundamental da família humana sobre nosso planeta Terra. Por isso trazemos à memória a Declaração dos Direitos Universais das Nações Unidas, de 1948. O que ela veio proclamar solenemente no plano do direito queremos também confirmar e aprofundar no plano da ética. (...) Sob a designação “ética mundial” não entendemos uma nova ideologia, nem uma religião mundial unitária para além de todas as existentes, nem tampouco o domínio de uma religião sobre as demais. Por ética mundial entendemos, sim, um consenso fundamental no que diz respeito a valores unitivos e obri­ gatórios, a parâmetros inamovíveis e a atitudes pessoais básicas. Sem um con­ senso fundamental em tomo da ética, a comunidade vê-se ameaçada pelo caos ou por uma ditadura, que podem irromper mais cedo ou mais tarde, e os indivíduos perderão suas esperanças12.

Em segundo lugar, recordo ainda a “Declaração Universal dos Deve­ res Humanos” sugerida publicamente em setembro de 1997 pelo Inter 1. Mais detalhes em KÜNG, Hans, Weltethos für Weltpolitik unã Weltwirtschaft, München, Zürich, 1997. 2. KÜNG, H., e KUSCHEL, K.-J. (orgs.), Erklarung zum Weltethos. Die Deklaration des Parlamentes der Wéltreligionen, München, 1993, p, 23.

168

THOMAS MANN - A REDESCOBERTA DO CRISTIANISMO E DA ÉTICA

Action Council, uma união de ex-chefes de Estado e de governo, O texto, esboçado pelo teólogo Hans Küng (como no caso da Declaração pela Ética

Mundial) e trazido a público por políticos como Helmut Schmidt, Malcom Fraser e Kiishi Miyasawa (ex-chefes de governo de Alemanha, Australia e Japão), apregoa entre outras coisas: A globalização e a economia mundial vêm acompanhadas de problemas glo­ bais, e problemas globais exigem soluções globais com base em idéias, valores e normas respeitados por todas as culturas e sociedades. 0 reconhecimento de direitos iguais e inalienáveis para todos os seres humanos exige uma base de liberdade, justiça e paz; todavia, isso exige também que se atribua igual signi­ ficado a direitos e deveres, a fim de que se estabeleça uma base ética e a fim de que todos os homens e mulheres possam conviver pacificamente e tornar plenos seus potenciais. Uma ordem social melhor, em âmbito nacional e inter­ nacional, não pode ser alcançada apenas por meio de leis, prescrições e con­ venções, mas necessita de uma ética mundial. O anseio humano por progresso só pode se tomar realidade graças a valores e parâmetros comuns, aplicados a qualquer tempo por todas as pessoas e instituições3.

2. Como consolidar uma ética? Fundamentar e proclamar uma ética .mundial é por si só tarefa bastante difícil, Mas não é menor a dificuldade em responder à pergunta que segue de imediato, sobre a possibilidade de se firmar essa ética na prática, Uma coisa são as exigências, outra coisa “as circunstâncias” (B. Brecht), ou melhor, as pessoas. Por isso, muita gente bem-intencionada também levanta a seguinte questão: como convencer as pessoas a se deixarem envolver em uma ética como essa, ainda mais diante do fato de pertencerem a sistemas valorativos contraditórios — por uma contingên­ cia sociocultural? Réplicas como essa fazem perceber que a procura por uma ética comum suscita ao mesmo tempo reflexões sobre a concepção de ser humano. Afinal, as pessoas são eticamente capazes? O que existe nelas que as faz recusar ou realizar uma atitude ética? E finalmente: sob que condições históricas as pessoas de culturas e religiões diferentes se dispõem a comprometer-se com uma nova ética, a tornar-se até mesmo 3. SCHMIDT, Helmut (org.), Allgemeine Erklarung der Mensckenpfllchten, Ein 'Vorschlctg, München, 1998, p, 21.

169

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

conscientes dos traços comuns a uma ética da humanidade? Nem sequer seriam necessárias proclamações de éticas mundiais se a história das religiões e culturas não fosse também uma história da violação e do esbárnio diante da ética. O presente capítulo terá por objetivo investigar essas questões à luz de um grande escritor — Thomas Mann —, além de revelar parte de seu universo pessoal no que diz respeito à religião. Ora, os questionamentos céticos quanto à possibilidade de aceitação generalizada de uma ética não são gratuitos. Alimentam-se da experiên­ cia de ruptura âa civilização que marca este nosso século XX. Duas guer­ ras genocidas, o Arquipélago Gulag, sob o stalinismo, e o holocausto nacional-socialista abalaram radicalmente a crença na possibilidade de se ilustrar e educar o ser humano. No caso dos cristãos, o holocausto con­ tinua a ser ferida especialmente traumática: todo o desenvolvimento da cultura humanista-cristã ao longo de dois mil anos não foi capaz de evitar Auschwitz. George Steiner, cientista literário inglês de origem judaica, expõe o problema da seguinte maneira: Todo meu trabalho gira em torno de uma pergunta: as raízes do que é desu­ mano estão imbricadas com as raízes da civilização desenvolvida? Auschwitz não proveio da floresta, nem da estepe. A barbárie tomou o homem de assalto bem no centro da cultura, das artes, no centro da formação universal do espí­ rito e do milagre das ciências naturais. A apenas alguns quilômetros dos mais belos museus, bibliotecas e salas de concerto, Dachau exalava seu ar pestilento. Homens que durante o dia torturavam, enforcavam crianças, à noite liam Rilke, ouviam Schubert. Eis aí um enigma ontológico, o mistério do ennui ou do mal civilizado; e esse mistério, a meu ver, põe em dúvida todo o futuro dó ser humano. Se as ciências de cunho humanista não podem conduzir à humanização, se a mesma pessoa é capaz de tocar violino e incendiar o gueto de Wilna, onde é que pode estar a civilização?4

Ao contrário de muitas opiniões contrárias, questionamentos como os de Steiner alimentam-se da suspeita inquietante de que o holocausto talvez não tenha sido um descaminho da civilização, mas uma conseqüência sua, e de que, diante disso, talvez caiba pôr à prova a esperança do ser humano em si mesmo. E mais: de forma representativa (também para a realidade na Ioguslávia, em Ruanda), esse acontecimento histórico deixa entrever quão 4. STEINER, Georg, Sprache und Schweigen. Essays uber Sprache, Literatur und das Unmenschliche, Frankfurt/M., 1969, pp. 8 s. 170

THOMAS MANN - A REDESCOBERTA DO CRISTIANISMO E DA ÉT1CA

fina é a pâtina de civilização sobre nós, e quão ineficientes as concepções morais em situações de extrema ilegalidade e desorientação política. Assim, a experiência fundamental deste século seria a da ruptura da civilização — e isso leva os mais sensíveis a abandonar a ilusão de que a ética, como parte integrante da cultura burguesa, esteja assegurada. Na verdade, a ética é uma camada civilizadora fina e frágil, a recobrir um potencial de inumanidade abissal ainda latente no ser humano. De modo especial, é a literatura que vem tematizar esse problema. Pois, se há uma grande contribuição das grandes obras literárias para o diálogo entre as culturas e religiões, essa contribuição está na tematização do ser humano: no esclarecimento da conditio humana em todo o seu resplendor e em toda a sua miséria. Os escritores sempre tomam visíveis as potencialidades do ser humano — no que elas têm de bom e de mau. A poética do humano na literatura do século XX é uma poética dos confli­ tos, da hesitação, da dúvida quanto a si mesmo, do medo diante do declínio, da busca incisiva de sentido. Quando se descrevem pessoas na literatura do século XX (em James Joyce e Franz Kafka, em Albert Camus e García Márquez), elas são descritas em sua insondabilidade e insegurança. A li­ teratura — em contraste com uma cultura burguesa das sensações e uma mentalidade “securitária” isenta de riscos — mostra o homem justamente como um ser em risco, inexplicável, um enigma para si mesmo e para os outros, não raro um monstro. Inquietações latentes e explícitas são o material da literatura, medos subterrâneos, as fragilidades dos projetos humanos e dos planos para a história, ameaças mundiais em que gêneses podem se transformar em apocalipses. O ser humano, um enigma... Exatamente nos textos de um dos maiores escritores deste século, Thomas Mann, esse enigma encontrou uma forma de expressão adequa­ da à civilizadora destruição de ilusões. Não é possível reproduzir aqui todo o caminho percorrido por esse autor. Para apresentar, de modo representativo, a experiência de Thomas Mann com o ser humano, se­ guem algumas frases do discurso “Sobre a futura vitória da democracia”, que o escritor proferiu de modo programático em quinze cidades norte-americanas, no ano de 1938. Tendo diante dos olhos a vitória mundial do fascismo, a vitória do “domínio do populacho”, como ele o designava, Thomas Mann se deixa tomar pelo ceticismo: A dignidade do ser humano... Não ficamos um pouco atordoados e ridículos diante dessa expressão? Ela não cheira a um otimismo turvo e mofado, a uma Tetórica comemorativa que pouco coincide com a verdade amarga e rude sobre 171

OS ESCRITORES E AS ESCRITURAS

o ser huxnano, no dia-a-dia? — Nós a conhecemos, essa verdade. Estamos familiarizados demais com a natureza do ser humano, ou melhor, dos seres humanos, e ao mesmo tempo distantes demais dessa natureza, para termos ilusões sobre ela. Ela está consolidada nas sacras palavras: “A lida com o coração humano é má desde a idade mais tenra’1. E foi expressa com cinismo filosófico nas palavras de Frederico II sobre a “raça maldita” — cette race maudite. Meu Deus, os homens... Neles a injustiça, a maldade, a crueldade, a tolice e a cegueira já estão suficientemente comprovadas; seu egoísmo é crasso; sua mentira, sua covardia e sua insociabilidade perfazem nossa experiência diária; faz-se necessária uma pressão férrea exercida pela coação disciplinar para mantê-los em ordem e domesticados. Quem poderia deixar de apontar todos os vícios dessa estirpe atrapalhada? Quem não pensa com frequência e sem qualquer esperança em seu futuro, e quem não é capaz de entender que os anjos no céu torçam o nariz desde o dia da criação, indignados com a parte que Deus, o Senhor, destinou a essa criatura duvidosa?5

3. Da propaganda política à “fantasia mosaica” As frases da citação acima conduzem-nos diretamente à obra de Mann, e portanto à pergunta sobre a contribuição que a arte, sob a forma da grande literatura, tem a dar para a discussão sobre uma ética mundial. Pretendo, com isso, pensar para além do fato de que Thomas Mann, como cidadão do mundo (tal como fizeram outros grandes artistas deste século), tenha se engajado politicamente em prol do fomento de uma ética humana capaz de abranger as nações e culturas. Em incontáveis ensaios e conferências, sobretudo posteriores a 1933, Mann deixou clara essa tomada de posição e se manifestou reiteradamente em favor de uma “fórmula básica de humanidade e civilidade” que — preservando todas as diferenças culturais e políticas dos povos — unisse “todos em igual medida” e garantisse a todos os que portassem uma face humana “um mínimo de segurança legal, possibilidades de ser feliz, reconhecimento da dignidade e inviolabilidade do indivíduo”6. Mas estas são tomadas de posição política do literato como cidadão que, como tais, integram sem 5. MANN, Thomas, “Vom zukünftigen Sieg der Demokratie” (1938), in Essays, vol. IV, org. de H. Kurzke e S. Stachorsky, Frankfurt/M., 1995, pp. 214-244, cit. p. 220. 6. Cf. p. ex. Kindness (1943), in MANN, Thomas, An diegesittete Welt. Politische Schriften und Reden im Exil, Frankurt/M., 1986, pp. 640 s.

172

THOMAS MANN - A RE DESCOBERTA DO CRISTIANISMO E DA ÉTICA

dúvida nenhuma o conjunto da personalidade. O que me importa aqui, porém, é o irrompimento do tema “ética” na obra de arte, que está sub­ metida a outras regras próprias. Pois aí reside a contribuição genuína do literato como artista, no campo de tensão entre estética e ética. Para se perceber tal questão, poucos textos são tão adequados quanto A lei, no­ vela que tem por tema a atuação de Moisés junto a seu povo. Quanto ao surgimento dessa narrativa, objeto central de nossas reflexões, contamos com muitas indicações do próprio Thomas Mann, seja pelas anotações em diário, seja pelas cartas e pelo relatório autobio­ gráfico O surgimento do doutor Fausto (1949). Para nossa questão, é sig­ nificativo que o próprio autor, no processo de planejamento e elaboração da obra, tenha-se visto obrigado a uma mudança formal. Inicialmente, afinal, ele deveria apenas engajar-se na produção de um filme de propa­ ganda política. Em 1942 — quando Mann já se encontrava havia um bom tempo em exílio na Califórnia, Pacific Palisades —, um agente lite­ rário de origem austríaca chamado Armin L. Robinson dirigiu-se a dez autores bem conhecidos na época com o pedido de que escrevessem um texto sobre os Dez Mandamentos e sua profanação pelo fascismo hitlerista; ele pretendia fazer um filme a partir desses textos. Em 21 de julho de 1942, Thomas Mann anotou em seu diário: “Plano do filme de propagan­ da política sobre os 10 Mandamentos (Robinson)”7. Contudo, apesar do empenho de Mann, que investe no projeto seu prestígio de portador do prêmio Nobel, participando pessoalmente de conversas com a Metro Goldwyn Mayer, os planos acabam mesmo por não dar em nada. Para Robinson, resta ao menos convencer seus autores a entregar os textos para uma publicação em forma de livro, oferecendolhes a motivação adicional de um pagamento de mil dólares8. Thomas 7. MANN, Thomas, Tagebücher 1940-1943, org. de P. de Mendelssohn, Frankfurt/ M., 1982, p. 454. 8. Lê-se na anotação do dia 24/11/1942: “Para o chá, Robinson: discussão acerca do livro sobre os Dez Mandamentos; aceitação de uma colaboração por 1.000 dólares” (p. 501). O livro foi publicado sob o título The Ten Commandements. Ten Short Novels of Hitler’s War Against the Moral Code, ed. by A. L. Robinson with a preface by H. Rauschning. New York, 1943. Edição inglesa: Londres, 1945. Participaram dessa série sobre os Dez Mandamentos Thomas Mann, Rebecca West, Franz Werfel, John Erskine, Bruno Frank, Jules Romains, André Maurois, Sigrit Unset, Henrik Willem van Loon e Louis Bromfield. Thomas Mann não ficou muito entusiasmado com o resultado. Seguro de si, considera seu texto “de longe o melhor” (in Dichter über ihre Dichtungen: Thomas Mann [Teil II: 1918-1943], org. de H. Wysling e M. Fischer, Frankfurt/M., 1979, p. 643. Doravante as citações desse texto serão indicadas pela abreviatura D II, seguida da página.)

173

OS ESCRiTORES E AS ESCRITURAS

Mann deveria colaborar ainda com uma “curta introduçí mas reconhece abertamente, durante os estudos mais de Moisés e os Dez Mandamentos, que seria preciso utiliz, tqma de uma linguagem formal própria, ou seja, de sua gem. Essa transposição de uma prosa adequada à propí para a obra de arte autônoma já dá indícios da bipartição dimento literário como um todo; a seguir, pretendemos questão, de modo a torná-la profícua para a discussão atu solidação de uma ética mundial: trata-se da concomitânci; de e profissão de fé em favor de uma moral. A tudo isso vem aliar-se o fato de que Thomas M provavelmente viu com bons olhos o trabalho sobre um tei dezesseis anos anteriores ele se ocupara intensivamente < blico de José, e o romance em quatro tomos que resultou d do alguns dias antes, em 4 de janeiro de 1943. Duas sema 18 de janeiro de 1943, Thomas Mann põe-se a escrever se anotações em diário permitem reconstituir com precisão vios e paralelos que ele empreende durante a elaboração c leituras são Deserto e terra louvada, de Elias Auerbach, ur Israel dos primórdios à morte de Salomão”, publicada 1932. Também se aprofunda no último dos textos de S Moisés e a religião monoteísta, publicado em 1939, ano d da psicanálise; e, motivado pelo texto de Freud, lê aim Goethe Israel no deserto, parte das “Notas e tratados para preensão do Divã Ocidental-Oriental”. Estuda a terceira de Alfred Jeremias Das Alte Testament im Lichte des a\ Antigo Testamento à luz do Oriente Antigo, 1916). E mais t* 9. MANN, Thomas. Die Entstehung des Doktor Faustus, p. 687. 10. Documentação e análise detalhada das fontes em MAKOSCHEY, Untersuchungen zum Spãtwerk Thomas Manns.