Os cavaleiros que fizeram as cantigas: aproximação às origens socioculturais da lírica galego-portuguesa 9788522808403

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Os cavaleiros que fizeram as cantigas: aproximação às origens socioculturais da lírica galego-portuguesa
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Table of contents :
CAPA......Page 1
SUMÁRIO......Page 7
PRÓLOGO......Page 9
INTRODUÇÃO......Page 11
CAPÍTULO I - JOÃO VÉLAZ (OCCITANO-) CATALÃES NO REINO GALAICO-LEONÊS......Page 16
1. A peça chave: João Vélaz......Page 18
2. Pôncio de Cabrera, maiordomus imperatoris......Page 22
3. Os Cabreras e o trovadorismo......Page 26
4. Sancha Ponce e Vela Guterres......Page 32
5. Johannes Velaz......Page 36
6. Outros descendentes de Pôncio II Geraldo......Page 42
Fernan Ponz el Maior......Page 43
Fernandus comes de Cabreria......Page 44
7. Minervas e Urgéis......Page 47
Vélaz, Minerva e Flaínes-Froilaz......Page 48
CAPÍTULO II - JOÃO SOARES DE PAIVA......Page 55
1. João Soares, o Trobador......Page 57
Entre Paiva e o Bércio......Page 58
Em Santa Maria de Moreirola......Page 63
De Bregancia......Page 65
2. A poesia na história......Page 71
CAPÍTULO III - OSÓRIO EANES LIMAS & TRAVAS......Page 79
1. O trovador Osório Eanes e a personagem histórica......Page 81
Os Oares de Bóveda......Page 87
Fernandus Oduariz......Page 90
Arias Calvus de Castella......Page 93
Fernando Airas......Page 97
3. João Airas de Nóvoa e Urraca Fernandes de Trava......Page 103
4. Dom Gonçal’ Eanes, o Boo......Page 112
5. Ego Osorius Johannis, miles......Page 116
6. Os seus versos de amor......Page 120
7. Airas Oares......Page 121
CAPÍTULO IV - TROVADORES GALAICO-MINHOTOS......Page 124
1. Pedro Pais Bazaco......Page 126
2. Fernando Pais de Tamalhancos......Page 132
3. Airas Moniz de Asma e Diogo Moniz......Page 134
4.1. Ego domnus Johannes Suerii, dictus Submessu......Page 139
Filius comitisse......Page 157
4.2. Ogan’ en Muimenta......Page 160
CAPÍTULO V - EN CASTELL’ E VAS PORTEGAU......Page 163
1. Ego don Rodrigo Diaz de los Camberos......Page 165
Entre trobadors e trobadores......Page 170
2. Garcias Menendi, felicis recordationis......Page 173
Roy de Spanha......Page 177
evaron-na Codorniz......Page 179
3. Don Pedro Rodriguiz da Palmeira......Page 181
CAPÍTULO VI - D. JUIÃO......Page 184
1. O nome e a identifi cação do poeta......Page 186
2. D. Cotalaia e o seu grupo familiar......Page 188
3. Domnus Giao......Page 192
CAPÍTULO VII - NA CORTE DE D. RODRIGO GOMES DE TRAVA (E URGELL)......Page 195
Don Rodrigo Gomez de Trastamar......Page 197
Domnus Petrus Garsie, miles de Ambrona......Page 201
De Mirapisce......Page 202
CAPÍTULO VIII - RAIMBAUT DE VAQUEIRAS E A LÍRICA GALEGO-PORTUGUESA......Page 203
Tanto temo vostro preito......Page 205
CAPÍTULO IX PERO BE VOLH QUE·L REIS FERANS AVIA MO VERS E·L REIS N’ AMFOS!......Page 213
Seignor dels galecs......Page 215
Lo valenz reis n’ Anfons rics de cor......Page 229
ANEXO I - ESQUEMAS GENEALÓGICOS......Page 233
ANEXO II - DOCUMENTAÇÃO......Page 250
FONTES DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS......Page 316
1. Siglas......Page 317
2. Bibliografia......Page 320

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JOSÉ ANTÓNIO SOUTO CABO

OS CAVALEIROS QUE FIZERAM AS CANTIGAS APROXIMAÇÃO ÀS ORIGENS SOCIOCULTURAIS DA LÍRICA GALEGO-PORTUGUESA

Niterói/RJ 2012

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SUMÁRIO PRÓLOGO........................................................................................................... 7 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 CAPÍTULO I JOÃO VÉLAZ (OCCITANO-)CATALÃES NO REINO GALAICOLEONÊS ............................................................................................................ 15 1. A peça chave: João Vélaz ..........................................................................17 2. Pôncio de Cabrera, maiordomus imperatoris ............................................21 3. Os Cabreras e o trovadorismo ...................................................................25 4. Sancha Ponce e Vela Guterres ...................................................................31 5. Johannes Velaz...........................................................................................35 6. Outros descendentes de Pôncio II Geraldo ................................................41 7. Minervas e Urgéis ......................................................................................46 CAPÍTULO II JOÃO SOARES DE PAIVA............................................................................... 55 1. João Soares, o Trobador ............................................................................57 2. A poesia na história ....................................................................................71 CAPÍTULO III OSÓRIO EANES – LIMAS & TRAVAS .......................................................... 79 1. O trovador Osório Eanes e a personagem histórica...................................81 2. Genealógica ...............................................................................................87 3. João Airas de Nóvoa e Urraca Fernandes de Trava .................................103 4. Dom Gonçal’ Eanes, o Boo ..................................................................... 112 5. Ego Osorius Johannis, miles ................................................................... 116 6. Os seus versos de amor............................................................................120 7. Airas Oares ..............................................................................................121 CAPÍTULO IV TROVADORES GALAICO-MINHOTOS ...................................................... 125 1. Pedro Pais Bazaco ..................................................................................127 2. Fernando Pais de Tamalhancos................................................................133 3. Airas Moniz de Asma e Diogo Moniz .....................................................135 4. João Soares Somesso ...............................................................................140

4.1. Ego domnus Johannes Suerii, dictus Submessu..........................140 4.2. Ogan’ en Muimenta .....................................................................161

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CAPÍTULO V EN CASTELL’ E VAS PORTEGAU ............................................................... 165 1. Ego don Rodrigo Diaz de los Camberos .................................................167 2. Garcias Menendi, felicis recordationis....................................................175 3. Don Pedro Rodriguiz da Palmeira ..........................................................183 CAPÍTULO VI D. JUIÃO ......................................................................................................... 187 1. O nome e a identificação do poeta ...........................................................189 2. D. Cotalaia e o seu grupo familiar ...........................................................191 3. Domnus Giao ...........................................................................................195 CAPÍTULO VII NA CORTE DE D. RODRIGO GOMES DE TRAVA (E URGELL) .............. 199 CAPÍTULO VIII .................................................................................................... RAIMBAUT DE VAQUEIRAS E A LÍRICA GALEGO-PORTUGUESA..... 207 CAPÍTULO IX PERO BE VOLH QUE·L REIS FERANS AVIA MO VERS E·L REIS N’ AMFOS! ...................................................................................................... 217 ANEXO I ESQUEMAS GENEALÓGICOS .................................................................... 237 ANEXO II DOCUMENTAÇÃO ........................................................................................ 255 FONTES DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS ....................................... 321 1. Siglas .......................................................................................................323 2. Bibliografia ..............................................................................................326

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PRÓLOGO

Entre as pessoas interessadas pela lírica galego-portuguesa, somos muitos os que estávamos convencidos de que o ponto de partida dessa tradição tinha que estar na Galiza e no mesmo século XII (ainda que fosse nas últimas décadas). No entanto, não o conseguíamos demonstrar, porque – no máximo – chegávamos a identificar peças soltas de um mosaico para o qual não tínhamos um modelo que nos ajudasse a decidir onde e como dispor cada uma dessas tesselas. Também pensávamos que as cortes de Fernando II e, nomeadamente, a de Afonso IX – reis da Galiza e de Leão, que preferiram ser sepultados na catedral de Santiago a sê-lo no panteão real de S. Isidoro de Leão – tiveram uma importância essencial, da mesma forma que as famílias nobres mais poderosas desse período. Era patente também que os Travas tinham algo a ver, porque uma das razós mais significativas dos nossos cancioneiros menciona explicitamente a “cas dona Maior”, como salientava Yara Frateschi Vieira no seu belo e rigoroso livro sobre o tema. Mas surgiam no meio outros nomes de famílias igualmente destacadas, e nem sempre era evidente o seu relacionamento com a Galiza. Com este livro de José António Souto, as peças começam a encaixar, e o mosaico adquire forma. Alguns dados já os tinha adiantado em trabalhos prévios, mas é agora que podemos observar com relativa facilidade como um dos fios condutores são as mulheres da família Trava, uma família poderosa que pôs em prática uma política matrimonial que a fez aparentar-se com todas as linhagens relevantes da época (uma época, por outra parte, bastante ampla). Desse modo, são bastantes os trovadores que ou bem pertencem – por via materna – a esse núcleo fundamental, ou com ele se relacionam de algum modo. O autor realizou uma pesquisa atenta e aprofundada em documentos ainda inéditos, dos quais ele mesmo oferece uma edição, e foi

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relacionando dados com todo o cuidado, para que não lhe escapasse das mãos qualquer elemento que permitisse identificar os trovadores de que trata (e, em não poucos casos, outros membros relevantes das suas famílias). Graças a este trabalho minucioso, pôde mesmo identificar laços com a tradição provençal e desvendar uma atividade cultural importante na Galiza do século XII, coerente com a produção de obras latinas como o Liber Sancti Jacobi ou a Historia Compostellana e com o “obradoiro” artístico da catedral. Convém não esquecer que alguns desses nomes cuja pista segue têm a ver com o cabido catedralício. Temos muito que agradecer a José António Souto. A sua infinita paciência e a sua paixão por estas questões deram como resultado um fruto saboroso do qual todos poderemos tirar proveito a partir de agora. Este livro constitui um marco fundamental no conhecimento das primeiras gerações de trovadores galego-portugueses e referência obrigatória para todos os que se ocupem – aguardamos que num futuro imediato – do tema. Mercedes Brea

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INTRODUÇÃO

A análise das fontes diplomáticas galegas, por causas que inicialmente não estavam vinculadas ao estudo da poesia galego-portuguesa, permitiu-nos rever a biografia de alguns poetas como Nuno Eanes Cêrceo, Airas Fernandes Carpancho ou Pedro Garcia de Ambroa. A pesquisa desenvolvida forneceu alguns indícios, cronológicos e socioculturais, que sugeriam a necessidade de abordar, com uma perspetiva nova e abrangente, o problema da emergência efetiva dessa manifestação cultural no noroeste ibérico.

B, fól. 137v

Esta folha adeante se começam as cantigas d’ amigo que fezeron os cavaleiros, e o primeiro é Fernan Rodriguit de Calheiros. A rubrica com que se abre a secção das cantigas de amigo em B (fól. 137v) e V (fól. 33r) constitui um testemunho explícito sobre a preexistência de uma coletânea poética – anterior à compilação geral – baseada num critério sociológico: a pertença dos seus membros ao estamento aristocrático. Por sua vez, essa recolha revela uma organização interna de natureza cronológica, pela qual a maior ou menor antiguidade tende a refletir-se em posições mais ou me-

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nos altas. É consensual reconhecer nessa primeira sequência de nomes o grupo humano que nos aproxima das origens do nosso trovadorismo. Só o conhecimento pormenorizado da esfera social em que se integrou esse conjunto de poetas é que nos permitirá definir, com alguma segurança, o contexto histórico em que se instituiu o movimento cultural em questão, propósito central deste trabalho. O interesse por esse mesmo objetivo correu paralelo ao desenvolvimento das investigações sobre a poesia galego-portuguesa. Antonio López Ferreiro e Carolina Michaëlis de Vasconcelos, com propostas diversas, podem ser considerados os pioneiros nessa investigação. Em tempos recentes, também se debruçaram sobre o assunto: Giuseppe Tavani, António Resende de Oliveira, Mercedes Brea, José C. Miranda, Yara Frateschi Vieira, Xosé R. Pena ou Henrique Monteagudo. Não existiu, até à atualidade, uma opinião unânime a esse respeito, já que encontramos duas teses diferentes. Por um lado, aqueles que situam os primeiros passos da canção cortês em galego-português fora do espaço em que esse idioma é a modalidade linguística funcional (Oliveira, Miranda). Por outro, a postura que assume as origens autóctones do fenômeno (Tavani, Brea), entendimento compartilhado pela obra que agora apresentamos. Para além do importante contributo dos autores referenciados no parágrafo anterior, a nossa pesquisa viu-se favorecida por progressos assinaláveis no âmbito historiográfico, quer no que diz respeito à publicação de fontes documentais, quer no campo dos estudos sobre a aristocracia dos reinos centro-ocidentais da Península. Nesta última área, são de citar, entre outros, os nomes de Simon Barton, Inés Calderón Medina, J. M.ª Canal, Ernesto Fernández-Xesta Vázquez, José Paulo Ferreira, José Luis López Sangil, José Mattoso, M.ª C. Pallares, Augusto Pizarro, Ermelindo Portela, Jaime Salazar Acha, Margarita Torres Sevilla ou Leontina Ventura. A informação bibliográfica foi complementada pela pesquisa em diferentes arquivos, sobretudo no Arquivo da Catedral de Ourense, no Arquivo da Catedral de Santiago (ACS), no Arquivo Histórico Nacional (AHN) ou no IAN/Torre do Tombo de Lisboa. Do ponto de vista cronológico, este estudo abarca, em essência, o espaço temporal que vai desde o momento em que, possivelmente, surgiram as primeiras manifestações do trovadorismo no noroeste da Península (c.

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1170) até ao ano de 1230, quando os reinos da Galiza e de Leão, à morte de Afonso IX, passam a ser governados pelo rei de Castela, Fernando III. Portanto, a nossa atenção centrou-se naqueles compositores cuja atividade poética se pode situar, no todo ou em parte, antes dessa última data. Esse grupo integra um número elevado de personalidades de biografia incerta ou imprecisa, inclusivamente por motivos onomásticos. Foi, assim, necessário esclarecer ou repensar a identidade de poetas como: Airas Moniz de Asma, Airas Oares (até agora conhecido como Airas Soares), Diogo Moniz, Fernando Pais de Tamalhancos, Fernando Rodrigues de Calheiros, Garcia Mendes de Eixo, João Soares Somesso, João Vélaz, D. Juião (até agora conhecido como D. Juano), Osório Eanes ou Rui Gomes o Freire. Porém, o resultado de maior relevo da investigação prosopográfica consiste no reconhecimento das estruturas sociais e de parentesco como vias preferenciais para a difusão da canção trovadoresca. Aliás, numa época caraterizada por um intenso grau de homonímia, essa constatação constitui um apoio metodológico muito eficaz para definir a personalidade histórica dos poetas estudados. A necessidade de explorar aquelas vias fez com que alargássemos o horizonte da nossa pesquisa, de modo a incluir, no possível, aqueles espaços socioculturais imediatos dos trovadores em foco. Do anterior deriva um conjunto notável de dados que se retrotraem, em muitos casos, à primeira metade do séc. XII ou mesmo a períodos anteriores. Conquanto o volume de informação possa parecer ocasionalmente excessivo, preferimos deixar registrado tudo aquilo que seja suscetível de aproveitamento presente ou futuro. A apresentação (seletiva) e a articulação da informação disponível são aspetos que suscitaram múltiplas dúvidas e dificuldades. Na origem desse obstáculo está a enorme assimetria (em magnitude, natureza e pertinência) entre os diversos dados disponíveis. Com efeito, em face à hipertrofia de uma parte da informação histórica, deparamo-nos com notáveis lacunas no que se refere à cultura e, sobretudo, ao domínio (para) literário. Lembremos, por exemplo, que a produção poética dos trovadores estudados se encontra dizimada, por causa dos acidentes sofridos pela, já seletiva, tradição manuscrita do nosso lirismo. O extravio dos três bifólios interiores do segundo caderno de B, somado à acefalia de A e V, derivou no desaparecimento de (pelo menos) vinte e quatro cantigas correspondentes a

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sete trovadores, dos quais só João Soares de Paiva reaparece noutra secção. Felizmente conhecemos a existência deles graças à Tavola Colocciana (provável índice de B), onde além do Paiva achamos: Pedro Pais Bazaco, João Vélaz, D. Juião, Pedro Rodrigues da Palmeira, Rodrigo Dias dos Cameros e Airas Oares. Trata-se de alguns nomes incontornáveis para nos aproximarmos do momento inaugural do nosso trovadorismo. O desenho dos capítulos compósitos que conformam a obra responde, portanto, a pautas diversas, motivo pelo qual é flutuante o grau de congruência interna. O capítulo nono, junto com a sua natureza conclusiva, pretende servir como moldura unitária ao conjunto de informações referidas, nomeadamente, ao reino da Galiza, berço da manifestação literária em apreço. O corpo central do trabalho é seguido por dois apêndices: genealógico e documental. No primeiro apresentamos uma reconstituição daquelas famílias mais diretamente implicadas no nosso estudo. Trata-se de esquemas genealógicos parciais, centrados sobretudo nas personagens relevantes para este trabalho, em que a linha genealógica pode, ocasionalmente, ser estabelecida por via cognatícia. O último apêndice inclui um conjunto de 40 escrituras notariais – identificadas pelo número de ordem entre parênteses retos – e a reprodução (parcial) do poema Cabra juglar de que foi autor Geraldo de Cabrera (tio ou sobrinho-segundo de João Vélaz). A informação pode aparecer sintetizada pelo uso dos símbolos seguintes: • {...}: apelido(s) linhagístico(s)  : filiação • = / & : união por casamento • (numeral-numeral): registros temporais (conhecidos) sobre a atividade de um indivíduo • (F+letra / numeral): filiação da prole entre vários consortes (só nos esquemas genealógicos) Todos os topônimos e antropônimos galegos e portugueses são regularizados de acordo com as práticas ortográficas portuguesas atuais ou históricas.

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A elaboração deste estudo foi possível graças ao apoio que, generosamente, nos ofereceram: Marta Afonso, José Miguel Andrade Cernadas, Simon Barton, Mercedes Brea, Xosé Luís Couceiro, José María Díaz Fernández, Manuela Domínguez, Francisco Fernández Campo, Ernesto Fernández-Xesta Vázquez, Joel R. Ferraz Falcão, João Paulo M. Ferreira, Miguel Ángel González, Aida Sampaio Lemos, José Carlos de Lera Maíllo, Eduardo Marchena, Benjamim Moreira, António Resende de Oliveira, Pablo Otero Piñeiro Maseda, Ermelindo Portela Silva, Ricardo Pichel Gotérrez, José Luís Rodríguez, Miguel Romaní Martínez, Xabier Ron, Jaime Salazar Acha, Xosé Sánchez Sánchez, José Manuel Uruburu, Xavier Varela e Yara F. Vieira. Também agradecemos a colaboração das seguintes instituições: Archivo Catedralicio de Calahorra, Archivo de la Catedral de Zamora, Archivo General de Navarra, Archivo Histórico Diocesano de León, Archivo Histórico Nacional (Madrid), Arquivo da Catedral de Ourense, Arquivo da Catedral de Santiago, Arquivo da Catedral de Tui, Arquivo Distrital de Braga, Biblioteca Nacional (Madrid), Arquivo do Reino de Galiza, Cabido da Catedral de Santiago, Colegiata de S. Isidoro de León, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa). Este estudo integra-se nos projetos de investigação: PGIDIT06CSC20401PR, PGIDIT09SECO23204PR e PGIDITINCITE09204068PR.

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CAPÍTULO I JOÃO VÉLAZ (OCCITANO-)CATALÃES NO REINO GALAICO-LEONÊS

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Selo dos irmãos Vélaz (ACZ, maço 17, nº 30 [1193])

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1. A peça chave: João Vélaz1 A biografia de João Vélaz, trovador conhecido apenas pela Tavola Colocciana, tem-se revelado como uma chave indispensável para desvendar as incógnitas que pairam sobre as origens da lírica galego-portuguesa. Com efeito, a sua identificação com um indivíduo da importante estirpe galega dos Vélaz, documentado desde 1158 e falecido em 1181, abre uma via para dissipar, de modo objetivo, as numerosas dúvidas atinentes ao processo de implantação daquele movimento lírico no noroeste peninsular.

Távola Colocciana, fól. 300r

António R. de Oliveira (1994: 374), a quem se devem as primeiras hipóteses acerca da integração familiar deste poeta, apontou (inicialmente) duas possibilidades: a linhagem galega dos Vélaz ou a vasco-burgalesa dos Vélez de Guevara: Os livros de linhagens conservam apenas a menção ao conde galego Ponço Velas de Cabreira, filho de Vela Ponço e de Elvira Peres de Trava [...]. Uma dama da mesma família, Sancha Ponce de Cabreira, terá casado com Vela Guterres, filho de Guterre Bermudes, conde de Montenegro, e de Toda Peres de Trava, tendo um filho e um neto com o nome do trovador [...]. Desconhecemos se o neto, cuja cronologia se situará na primeira metade do séc. XIII, se poderá identificar

Alguns resultados da pesquisa que deu origem a este trabalho já foram apresentados parcialmente ou de modo sintético (Souto Cabo 2011a, [no prelo/1], [no prelo/2]).

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com um terceiro João Vele, cavaleiro, que testemunha uma penhora de D. Fernando Gonçalves em 1231 (AHN, Tumbo de S. Salvador de Lorenzana, 90v). A colocação do autor no início de B, numa zona onde predominam os trovadores galegos, parece apontar para uma naturalidade galega, embora seja difícil, sem novos elementos, a sua associação a qualquer dos indivíduos citados. Refira-se apenas a ligação de dois deles, pelo menos, a uma família – os Travas ou Trastâmaras – com boas tradições no meio trovadoresco peninsular, através da figura de D. Rodrigo Gomes. Fora do ambiente galego, mais propriamente em Castela, um outro “Johannes Velaz” testemunha uma doação de Afonso VIII ao mosteiro de S. Salvador de Oña em 1171 [...]. É outra indicação a ter em conta para uma futura identificação deste autor (a própria grafia do apelido é a que aparece no cancioneiro) tanto mais quanto se sabe que as primeiras referências a autores peninsulares e as primeiras composições parecem ter surgido no norte peninsular2.

As alusões posteriores vieram a situá-lo na fase que esse estudioso denomina “A implantação no Ocidente peninsular” (Oliveira 2001: 158, 176-178), à qual atribui o quadro cronológico de 1220-1240. Essa colocação supõe identificá-lo com um (incerto) indivíduo referido numa escritura de 1227 copiada no Tombo de Lourençá3, preterindo aquela hipótese que, a julgar pelo próprio raciocínio, parecia mais plausível: o filho de Vela Guterres e neto da condessa Toda Peres de Trava4. Lembremos que para A. R. de Oliveira e J. C. Miranda – que já opta claramente pelos Vélaz-Guevara5 – só cabe falar em implementação

Esta personagem foi tenente de Belorado (PSJuan, nº 93 [1165]) e Álava (Ubieto Arteta 1973: 242 [1175]). O seu nome ocorre, no grupo castelhano, entre as testemunhas do tratado de paz entre Fernando II e Afonso VIII em 1181 (Tombo B, nº 38) como “Iohannes Velez de Alava, testis”.

2

No excerto acima reproduzido, Oliveira fala do ano 1231, mas o documento é de 1227 (TLourençá, nº 131). Trata-se provavelmente do indivíduo, “iudex et miles”, citado na documentação de Caveiro entre 1244-1245 (TCaveiro, nº 243, 246, 256) e que será também um dos confirmantes de um testamento redigido em Santiago c. 1228-1230 (Tombo C, fól. 25v).

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4 O trabalho monográfico sobre os Travas publicado por López Sangil (2002) constitui a base para múltiplas informações aqui oferecidas. Contudo, como noutros casos, a revisão crítica desses dados resultou em algumas divergências interpretativas.

“Joan Velaz, com essa mesma grafia na documentação local, é o filho de Vela Ladrón, homem feito conde nos tempos de Afonso VII. Dele(s) virá a descender a estirpe dos Guevara, implantada na região de Oña [Burgos], com solar na localidade de Oñate [Gui5

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do fenómeno trovadoresco no noroeste da Península a partir do segundo quartel de séc. XIII, o que é inconciliável com a cronologia daquele (primeiro) João Vélaz (cf. infra)6. De acordo com essa conjetura, as raízes da lírica galego-portuguesa são anteriores àquele período cronológico, mas estariam situadas no nordeste peninsular ou mesmo além-Pireneus7. Tal proposta é, a nosso ver (Souto Cabo 2011a), um construto elaborado a partir de suposições pouco verossímeis, que não serve de base para identificar historicamente a figura de João Vélaz8. Pelo contrário, a possibilidade de nele reconhecer o filho de Vela Guterres vem avalizada, de modo muito objetivo, pela profunda solidariedade interna do grupo de poetas analisados neste trabalho e, como foi frisado, pelo fato de vir a dar uma resposta coerente à questão das origens do nosso trovadorismo. Na documentação do último quartel do séc. XII e primeiro terço do século seguinte, encontramos indivíduos em cujo nome, por via de regra púscoa]. Embora não se situem ao nível das linhagens mais poderosas, João Velaz nem por isso está ausente da documentação castelhana, figurando em lugar de relevo nos dois tratados de Afonso VIII de Castela e Sancho VI de Navarra, respectivamente de 1176 e 1179, e sempre numa posição de fidelidade e compromisso perante ambos os reis, situação que, como vimos atrás, foi também frequentemente a dos Cameros, afinal consequência quer da generalização de vínculos de relacionamento feudo-vassálicos, quer do posicionamento de fronteira característico de ambas as linhagens. Para o reconhecimento desta linhagem como a do mencionado trovador é também importante ter em conta a indicação fornecida por Salvador de Moxó segundo a qual, embora o neto de Joan Velaz, Vele Ladron II, tenha mantido uma posição discreta na sublevação da nobreza contra Afonso X, ocorrida em 1272, nem por isso deixou de manter relações estreitas com Simon Díaz de los Cameros, filho de Rui Diaz, personagem que verá terminados os seus dias pela acção da justiça do rei. Ora, como em tão graves circunstâncias não se forjam alianças ou relações ocasionais, é de crer que a ligação entre os membros destas duas linhagens viesse de trás, tornando credível pensar que «Joan Velaz trovador» era provavelmente Joan Velaz de Guevara e terá integrado o núcleo de trovadores que se reuniram em torno de Rui Díaz de los Cameros” (Miranda 2004: 49). Sancha Ponce e Vela Guterres não tiveram um neto denominado “João Vélaz”, como supõe Oliveira. Esse neto – filho de Fernando Vélaz e sobrinho de João Vélaz – foi João Fernandes (cf. infra).

6

“[N]a pesquisa a empreender sobre essas origens, o investigador terá de orientar a sua atenção não para as regiões do Noroeste peninsular, onde pensaria ser mais natural encontrá-las, mas para os reinos castelhano e aragonês e, se necessário, mesmo para o Sul de França” (Oliveira 2001: 70-71).

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Quanto às teorias relativas às origens da lírica trovadoresca, sobretudo no respeitante ao papel da cidade de Santiago, veja-se a lúcida síntese de Vieira ([no prelo]).

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latino (“Johannes Velaz/Vele/Velez”), descobrimos a denominação “Joan Velaz” (cf. infra). O antropônimo “Vela” e o patronímico correspondente encontram-se com alguma frequência no conjunto dos reinos centro-ocidentais. Na Galiza, mesmo não sendo tão abundante como no reino de Leão, a designação em foco, transformada em nome de linhagem, veio caraterizar uma das grandes famílias do país: os “Vélaz” ou “Velas” (plural de “Vela”). Como noutros casos, assistimos à recorrência genealógica de um nome, utilizado pela historiografia moderna, por motivos práticos, para identificar uma estirpe medieval. As notícias mais recuadas sobre os Vélaz9 situam o seu berço no território da Álava atual, de onde terão passado no primeiro quartel do séc. X para o reino de Leão. O conde Bermudo Vélaz (976-1027) representa o início da presença dessa linhagem na Galiza, onde o seu neto Rodrigo Oveques (1063-1089)10 já ostentava o cargo de “comes Gallaetia” em 1075. O conde de Montenegro, Guterre Bermudes (1086-1130), sobrinho desse último e filho de Bermudo Oveques (1053-1092), está na origem do ramo que mais interessa ao objetivo deste trabalho. Vela Oveques, irmão do anterior, é o princípio da geração que atingiu maior notoriedade política (cf. infra). Guterre Bermudes, seguindo uma estratégia política que se repete nos Vélaz, irá entroncar com os Travas pelo seu casamento com Toda Peres (1114-1155) (←Pedro Froiaz de Trava & Maior Rodrigues), enlace de que resultou Vela Guterres11, pai de João Vélaz. Apesar da vinculação à Galiza12, Vela Guterres veio a associar-se às terras leonesas próximas da Sobre os Bermudes e Vélaz, veja-se Salazar Acha (1985), Calleja Puerta (2001: 520530) e, nas secções correspondentes, Fernández-Xesta (1991), Barton (1997), Torres Sevilha (1999) ou Pardo de Guevara (2000).

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10 Rodrigo Oveques esteve casado com uma Toda cujo apelido “Gonçalves” descobrimos numa carta do Mosteiro de Doçom (DDozón, nº 3).

Torres Sevilla (1998: 179) julga – com algumas dúvidas – que um Fernando Guterres foi irmão de Vela Guterres, porém, Salazar Acha (1985: 51) considera que este último foi filho único. Sabemos que Toda Peres casou com Fernando Fernandes com quem teve outro filho, Vasco Fernandes, citado numa escritura de 1181 [D.16].

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Sobre ele, Torres Sevilla (1998: 188) escreve: “Si Pedro Alfonso representó [...] los intereses asturianos del linaje, Vela Gutiérrez heredará la vinculación a Galicia de su progenitor, Gutierre Vermúdez”. 12

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Via da Prata (NW Zamora – SW Leão) dominadas pelo conde catalão D. Pôncio II Geraldo, visconde de Girona e Àger13, senhor de Cabrera (Girona). D. Vela irá aparentar-se com este último pelo matrimônio (c. 1145) com Sancha Ponce, filha de D. Pôncio, com quem teve sete filhos: Rodrigo, Garcia, Fernando, Pôncio, Pedro, João e Maria Vélaz. Antes de abordarmos a história deste último grupo familiar, orientaremos a nossa atenção para a linha central dos Cabreras e para as conexões desta linhagem com a lírica trovadoresca, aspeto que se afigura de grande interesse para contextualizar a participação de João Vélaz na versão galego-portuguesa desse movimento.

2. Pôncio de Cabrera, maiordomus imperatoris O casamento, em 1128, de Afonso VII com Berengária, filha de Raimundo Berengário VI, conde de Barcelona, e de Dulce de Provença, foi o ensejo que propiciou a chegada ao reino galaico-leonês de dois nobres de origem catalano-provençal, Pôncio de Cabrera e Pôncio de Minerva14. O percurso político destes magnates pode ser sintetizado com palavras de Barton (1992: 233): “Aided by the protective cloak of royal patronage, in the years that followed both magnates became prominent figures at the Leonese-Castilian court; they received lavish gifts of land from the crown; and they were granted authority over large areas of the kingdom”. A possível significação da presença no ocidente ibérico destas duas famílias, oriundas do espaço em que se gerou o trovadorismo, parece ter passado despercebida para os estudiosos. O “desinteresse” é ainda mais surpreendente se tivermos em conta que vários membros dessas linhagens participaram na lírica occitânica e que o seu papel terá sido decisivo no processo de adaptação dessa corrente literária no noroeste peninsular. Os Vélaz estabeleceram vínculos com essas 13 É com o nome desta localidade de Lleida, situada a norte de Balaguer, que passou a ser conhecido o condado do Baixo-Urgell desde a primeira metade do séc. XII. 14 Como veremos, a presença de grandes magnates originários daquela área completa-se com os condes de Urgell, já estabelecidos nos reinos centro-ocidentais da Península desde finais do séc. XI. A participação na política galaico-leonesa e castelhana por parte desses nobres foi analisada, entre outros, por Barton (1992, 1996), Calderón Medina (2007), Canal (1989a), Martín Rodríguez (1964) etc.

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duas estirpes catalano-provençais, já que, para além do casamento de Vela Guterres com Sancha Ponce de Cabrera, o conde Rodrigo Álvares {Vélaz-Trava}15 casou com Maria Ponce, filha de Pôncio de Minerva (cf. infra). Pôncio II Geraldo de Cabrera (1105-1162) era filho de Geraldo II (visconde de Girona e Àger e senhor de Cabrera) e de Elvira (Peres? Fernandes?16). Conde desde 1142, mordomo de Afonso VII (1145-1157) e de Fernando II (1157, 1159-1161), ele exerceu também como tenente no castelo (berciano) de Ulver (1128), Zamora (1129, 1140, 1142-1150, 11551156), Sanábria (1132, 1154, 1156, 1158-1161), Cabrera17 e Morales (1138, 1146, 1148, 1156), Castrotoraf (1140), Salamanca (1155-1161), Toro (11551156), Leão (1156), Benavente (1159) etc18. A localização dessas tenências coincide grosso modo com os espaços em que assentava o seu patrimônio e/ou senhorio: (i) fronteira do Sul (Estremadura leonesa e atual Castilla-La Mancha), (ii) província de Zamora (Villalpando, Benavente, Sanábria), (iii) Galiza (Sárria), (iv) Leão-Palência (Castro Calvón, Val de Salce etc.) (Fernández-Xesta 1991: 95-113). Situam-se, de modo preferencial, nessas áreas os centros de natureza religiosa a que a família de D. Pôncio esteve associada: a Sé de Zamora e os mosteiros de Castanheda, Moreruela, Nogales19, Meira, Samos, Tojos Outos e Sar. Rodrigo Álvares era filho do conde Álvaro Rodrigues de Sárria {Vélaz} e da condessa Sancha Fernandes (← Teresa de Portugal & Fernando Peres de Trava) (cf. infra). 15

Existem dúvidas sobre o patronímico desta senhora. Se for aceite que um dos seus netos foi o bispo de Astorga Pedro Cristão, teremos de lhe atribuir o de “Fernandes”, já que esse último alude à avó como “Elvira Fernandes” (CCarracedo, nº 24). As propriedades desse grupo familiar situavam-se nas regiões leonesas do Bierzo-Sanábria e nas áreas galegas limítrofes, nomedamente em Valdeorras (Quintana Prieto 1985: 304). Outros historiadores consideram que se trata de Elvira Peres, filha do conde Pedro Ansures (Fernández-Xesta 1991: 29-33, Barton 1997: 284, Alonso Álvarez 2007: 676). 16

A terra da Cabrera, limítrofe com a Sanábria, constitui o espaço mais meridional do Bierzo. O título com que se nomeia a família não deriva dessa região, mas da catalã homônima em Girona. 17

18 Uma desavença com Fernando II terá motivado a presença de D. Pôncio na corte do rei Sancho III de Castela por um breve período –outubro de 1157 a maio de 1158-, acompanhado pelo genro Vela Guterres. 19 Afonso VII entregou a vila de Moreruela de Frades, em 1143, a D. Pôncio e por este aos frades Pedro e Sancho para que nela fosse reimplantada a vida monástica (Moreruela, nº 4). O mosteiro teve São Tiago como orago (“Sancti Iacobi apostoli de Moreirola”, Moreruela, nº 1 [1042]) até 1162, altura em que aparece como instituição bernarda dedicada a

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D. Pôncio Geraldo casou duas vezes, a primeira com uma Sancha (Nunes?)20, presumivelmente filha do conde Nuno Mendes de Celanova21 e de Sancha Viegas de Sousa (← Egas Gomes de Sousa). Sancha terá sido irmã (ou prima?), entre outros, de Gomes Nunes (1094-1147)22 e de Fernando Nunes23. D. Gomes, conde de Toronho, desposou Elvira Peres de Trava (← Pedro Froiaz)24 e manteve ligações com o Mosteiro de Celanova, com Cluny e com a Ordem do Templo25. Ele também exerceu

Santa Maria (“Sancte Marie de Morerola”, Moreruela, nº 13). Alguns autores associaram essa mudança de titular à aceitação dos princípios de Claraval (Alonso Álvarez 2007: 559). Sobre a ligação da família a Moreruela e Nogales, veja-se Calderón Medina (2008). Um regesto do Tombo de Meira (TMeira, nº 296) cita uma Sancha Nunes, com propriedades em Azúmara e Francos (c. Castro de Rei, Lugo), como avó de Fernando, João e Maria Vélaz. Porém, é possível que o conteúdo dessa síntese esteja deturpado – ou adulterado – até na própria data (cf. infra). Sobre os problemas que levanta a identificação histórica desta personagem, veja-se Fernández-Xesta (1991: 60-61). A presença de um “Martim Kabra consobrinus D. Pontii” na Chronica Gothorum (Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores, vol. I, p. 13), logo a seguir aos filhos de Fernando Eanes de Toronho e de Urraca Gomes (filha de Gomes Nunes), pode ser um elemento para postular a integração de Sancha nesse grupo familiar. Alguns historiadores consideram que D.ª Sancha pertencia à família dos Flaínes (Calderón Medina 2011a: 166). 20

21 Nuno Mendes (Mides?) chefiou, em 1071, a rebelião contra o rei Garcia I de Galiza-Portugal, na sequência da qual foi derrotado e morto (Barton 1997: 256, Mattoso 1982: 13-15). Os seus descendentes aparecem nomeados como Celanova, Pombeiro, Toronho ou Barbosa. O segundo (antrotopônimo) responde ao seu relacionamento com o Mosteiro de Pombeiro (conc. Felgueiras, Porto), fundado por Gomes Echigues, avô de Sancha Viegas de Sousa (cf. infra). 22 Sobre Gomes Nunes, veja-se Bishko (1965: 327-331), Barton (1997: 256), Salazar Acha (2000: 358), Fernández Rodríguez (2004: 71-91) e González Montañés (2011: 8081, 85-109, 141-167). 23

D. Fernando foi bisavô de Rodrigo Dias dos Cameros (cf. infra).

Desse matrimônio resultou Urraca Gomes, bisavó do trovador Fernando Pais de Tamalhancos (Souto Cabo [no prelo/1]). 24

Observamos algumas discrepâncias nas informações sobre os antecedentes de Gomes Nunes e, portanto, de Sancha Nunes. Alguns estudiosos denominam “Nuno Vasques” o pai de Gomes Nunes e consideram que este último foi irmão de Afonso Nunes. Barton (1997: 256) discrimina dois ramos, supondo que Nuno Mides/Mendes (?) ( Gomes Nunes) e Nuno Vasques ( Afonso Nunes) foram primos. Por outro lado, a mulher de Nuno Mendes é tida por filha de Gomes Echigues/Égicaz (Mattoso 1982: 47-48, Fernández Rodríguez 2004: 72, Ventura 1992 [Genealogia dos Barbosas]), o que nos situaria numa geração anterior dos Sousas; isto é, seria irmã de Egas Gomes, aqui postulado como pai dela. Veja-se também Pizarro (1997/I: 511-512) e González Montañés (2011: 86-87). 25

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uma importante atividade política a sul do Minho, tendo ocupado o cargo de mordomo do conde D. Henrique (1112) e governador da Torre de S. Cristóvão (1111-1112) (conc. Cerveira)26. Após a anulação do primeiro casamento (c. 1141), Pôncio II Geraldo encetou matrimônio com Maria Fernandes, filha de Fernando Peres {Trava}27 (cf. infra). Esta mudança conjugal ocorre em função de uma estratégia política que, com efeito, marcou o início do seu apogeu junto do poder real. Fruto destes dois enlaces foram cinco filhos: Beatriz (?), Geraldo III, Sancha, Fernando Ponce “o Maior” e Fernando Ponce “o Menor”. Só este último é considerado filho de Maria Fernandes28, o que terá justificado a utilização do antropônimo já atribuído a um irmão29. Geraldo III (1145-1160) assumiu os títulos e propriedades do pai na Catalunha, sendo conhecido como Geraldo III Ponce, visconde de Girona e do Baixo-Urgell. A biografia deste tio de João Vélaz desenvolveu-se sobretudo em terras catalãs, mas também manteve vínculos intensos com o reino galaico-leonês. Sabemos que morreu prestando algum tipo de serviço a Fernando II, segundo declarou esse rei em diploma de 1161.05.05 pelo qual ampliava o couto do Mosteiro de Samos, onde esse mesmo D. Geraldo fora enterrado: “Hanc vocis et caracteris donationem et stabilem et firmam cauti dationem et concessionem facio et in perpetuum dono et concedo Deo et samonensi monasterio, quia ibidem domnus Gueraldus dilectus uassalus meus qui in seruitio meo decessit tumulatus est” (TSamos, nº 60)30. O facto 26

Veja-se Mattoso (1985: 34), Barton (1997: 256), Fernández Rodríguez (2004: 72-91).

A primeira notícia sobre este enlace surge numa escritura de 1142.03.26 pela qual D. Pôncio e D.ª Maria oferecem ao Mosteiro de Tojos Outos uma herdade em Val de Salce: “ego Poncius Geraldi cabrerensis cum uxore mea Maria Fernandez” (Toxos Outos, nº 27). 27

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O testamento de Maria Fernandes, lavrado em 1169, é reproduzido neste trabalho [D.7].

Alguns autores consideram que todos foram filhos de Maria Fernandes, hipótese que não é sustentada pela documentação. 29

30 A sua última presença ativa (1160.03.12) encontra-se numa doação de Fernando II à Igreja de Santo Isidoro de Leão confirmada por Geraldo III, que subscreve após o conde de Barcelona. Nessa escritura também encontramos o pai e um dos irmãos, Fernando Ponce “o Maior” (Fernandez-Xesta 1991: 67). Sabemos que o túmulo de D. Geraldo sobreviveu até 1607-1610, altura em que, segundo refere Castro (1912: 116), foi desmanchado por frei Baltasar Guerrero: “con ocasión de hacer unas reparaciones en la iglesia, deshizo dos de los tres grandes sepulcros de piedra que de antiguo había en esta casa. El uno, que tenía por armas muchas conchas y veneras, era de D. Giraldo Poncio de Cabrera, hijo del Conde D.

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de Geraldo III ter sido sepultado nesse cenóbio galego é uma das causas que moveram o pai a dar um conjunto avultado de propriedades na zona de Sárria aos frades do mesmo: “pro anima carissimi filii mei Geraldi Poncii, qui in ipso monasterio samonensi tumulatus requiescit” [D.5]31 Só conhecemos um filho de Geraldo III Ponce e de Berengária de Queralt: Pôncio III Geraldo, visconde de Girona e Àger (1165-1198). O anterior desposou D.ª Marquesa, filha de Armengol VII de Urgell (cf. infra), com quem teve Geraldo IV Ponce (1194-1228)32, visconde de Cabrera, de Àger e conde de Urgell.

3. Os Cabreras e o trovadorismo Como é sabido, as mais antigas notícias sobre a conexão entre trovadores provençais e os reinos do ocidente peninsular têm como protagonista Marcabru33. Este trovador aparece ligado à corte de Afonso VII, na qual elaborou, no verão de 1137, a famosa canção de cruzada Emperaire, per mi mezeis (Gaunt 2000, nº 2). Nesse contexto, é ainda possível que se encontrasse em Santiago aquando da morte, nessa mesma urbe, de Guilherme X da Aquitânia (1137.04.09). Aliás, Marcabru terá composto Al prim comenz de l’ invernailh na capital galega, tal como sugerem Gaunt et al. (2000: 69): “This obviously suggests that Marcabru was in Castile (or possibly still in Santiago where William X died) when he composed IVb”. Vários passos da obra de Marcabru indicam que pôde entrar em contacto

Poncio de Cabrera mayordomo de D. Fernando y D. Alfonso de León [...]. Los huesos que contenían los puso debajo del altar que cae contra la portería de este convento, que debe de ser el sitio en que ahora está el altar de Santa Gertrudis que está al norte de la iglesia en un remate de la punta del crucero”. 31 A localização dessas posses parece um dado importante para atribuir naturalidade galega à mãe de Pôncio II Geraldo. Aliás, essa ligação às terras de Sárria favoreceu o casamento de Sancha Ponce com Vela Guterres, membro da linhagem que dominava esse condado lucense, pelo menos, desde a primeira metade do séc. XII. Numa escritura de 1196 (ACZ, 17/30), Maria e Pedro Vélaz, netos de D. Pôncio, entregavam ao bispo e ao cabido de Zamora a vila de Avradelo (Real, conc. Samos), situada a 7 km do Mosteiro de Samos. Porém, neste caso, a origem da propriedade poderia estar nos Vélaz. 32

Sobre esta personagem, veja-se Miret y Sans (1910: 315-331).

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Vejam-se, entre outros, Alvar (1977: 27-43) e Menéndez Pidal (1991: 152-154).

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com os Cabreras no ambiente curial de Afonso VII e que esse vínculo se terá reforçado posteriormente com Geraldo III (cf. infra): We are, however, disinclined to understand the tornadas of poem XII [Bel m’ es can s’ esclarzis l’onda] as a tribute to William X; rather, it seems more likely that the rising fortunes of the lord predicted there are those of the lord of Gerona. We suggest that it was at the court of Castile that Marcabru first came into contact with the house of Cabrera (see XII) and this would explain that he later sent a song to Guerau III at Urgel (see XXXIV [Hueymais dey eser alegrans]) (Gaunt et al. 2000: 4-5).

Os estudiosos britânicos aludem a duas referências contidas, respetivamente, em Bel m’ es can s’ esclarzis l’ onda (vv. 46-49) e em Hueymais dey eser alegrans (vv. 43-49): A Se.l segnoriu de Gironda poia, encar poiara plus, ab qe pense com confonda paians, so.ilh manda Jhezus. B Messatgier cortes, ben parlans, vai t’en Urgelh, ses falhir, e sias del vers despleyans a.n Cabreira, que lo remir, e potz li dir senes guabar qu’en tal loc ai tornat ma sort on elh poiria pro muzar34.

É plausível que, no primeiro caso, o senhor de Girona seja o próprio conde Pôncio II. De fato, ele foi famoso literariamente por ter protagonizado diversos episódios bélicos contra os árabes que lhe valeram a frase “mauris est pestis” no Poema de Almeria (Gil 1974), composição que contém um longo panegírico de D. Pôncio (vv. 176-198):

34 “Cortês, eloquente mensageiro, vai a Urgell sem falta e mostra o meu poema ao senhor de Cabrera, para que o possa contemplar, e podes-lhe dizer isto, sem ostentação, que eu coloquei o meu destino nas mãos de alguém novo perante quem ele pode esperar em vão durante muito tempo”.

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Pontius ista comes regit agmina nobilis hasta, uirtus Sansonis erat hic, glaudius Gedeonis, compar erat Ionate, preclarus uti Iesu Naue, gentis erat rector sicut fortissimus Hector, dapsilis et uerax uelut insuperabilis Aiax Non cuidam cedit, nunquam bellando recedit [...]35

Quanto ao senhor de Cabrera (a.n Cabreira), ele poderá ser identificado com Geraldo III, que morou de preferência nos estados paternos de Aragão e Catalunha desde os inícios da década de 40, assumindo, como herdeiro primogênito, os cargos do pai. A relação dessa estirpe com o trovadorismo occitânico foi além do simples mecenato. Um dos monumentos literários mais singulares dessa corrente poética é a composição conhecida como Ensenhamen [D.41]: “L’ ensenhamen-sirventes [...] constitue un témoignage littéraire d’une importance capitale, nous permettant d’atteindre par l’inventaire un ensemble d’oeuvres narratives, chansons de geste, romans antiques et romans bretons” (Lafont 2000: 337). O poema figura sob a autoria de um Guiraut de Cabreira que foi reconhecido, por alguns investigadores, como sendo Geraldo III36. Essa identificação baseia-se na alegada cronologia do Ensenhamen (c. 1150), fixada a partir de algumas referências histórico-literárias nele contidas. Concretamente, interessam as alusões a Marcabru (1130-1150), Ebles de Ventadorn (1090-1147) e Rudel (documentado a partir de 1147): Ja vers novel bon d’ En Rudell non cug que·t pas sotz lo guingnon, de Markabrun ni de negun ni de N’ Anfos ni de N’ Eblon.

35 A respeito da relação de D. Pôncio com essa obra, Salvador Martínez (1975: 151) opina que “El gran elogio del conde Poncio puede ser un indicio de que el autor quiso inmortalizar su memoria en el Poema. Poncio [...] por cuyas manos debió pasar la obra de nuestro poeta, de ahí su clara intención de complacerle con tanto epíteto bíblico y clásico”. Contudo, a personagem a que se dedica maior atenção é Álvaro Rodrigues de Sárria {Vélaz} (vv. 217-255). Veja-se Salazar Acha (1985: 53) e Barton (1997: 230). 36

Veja-se Riquer (1984: 56-66), Pirot (1972) ou Lafont (2000).

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No concernente a Marcabru existem, como vimos, elementos para suspeitarmos um relacionamento pessoal com Geraldo III Ponce – talvez com o conjunto da família Cabrera – como sublinhava Riquer (1984: 63) nas conclusões sobre a autoria e cronologia de texto: No és aventurar, doncs, d’establir una relació personal entre el nostre Guerau de Cabrera i Marcabrú, la producció del qual, repeteixo, es tanca l’ any 1150. El 1147 es tanquen também les d’ Ebles de Ventadorn i de Jaufré Rudel, com ja hem vist, i tenim la dada preciosa que el vers d’ aquest darrer trobador és qualificat, a l’ensenyament, de novel o sigui nou, recent. Tot això ens duu a suposar que Guerau de Cabrera escriví la seva llarga composició a mitjan segle XII, quan encara no eren famosos trobadors com Bernart de Ventadorn, Giraut de Bornelh, Arnaut de Maruelh, Guillem de Berguedà, Raimbaut d’ Aurenga, que ho horen tant a partir del 1170, almenys.

No entanto, Cingolani (1993: 192) desconfia da identificação pessoal e da proposta temporal por causa do ingente volume de informação literária (“comparable, or even superior, to that of a modern philologist”), que não estaria ao alcance de um trovador catalão em meados do séc. XII, sobretudo no referente à narrativa. Esse estudioso menospreza a alusão àqueles três trovadores, vindo a privilegiar o valor probatório dos textos narrativos citados no Ensenhamen. Resulta, assim, uma localização cronológica c. 1196-1198, logo a atribuição da autoria a Geraldo IV Ponce, neto de Geraldo III37: To sum up: until the 1170s we have few and fragmentary demonstrations that langue d’oil narrative was known in Provence, and the few troubadours who

Na verdade, a proposta já fora defendida por Miret y Sans (1910: 331) em face à de Milá (De los trovadores en España), que o identificava com Pôncio III Geraldo. Apesar de tudo, no seu muito documentado estudo, Miret y Sans reconhece as dificuldades de se chegar a uma conclusão definitiva: “Les noves y scriptures justificatives inèdites que havem aportat aixamplen y rectifiquen en molts punts lo que Monfar, Zurita y altres historiaires havien recomptat dels pare y fill Pons y Guerau [...]. Per desgracia no donen llum per resoldre si’l trovador nomenat Guerau de Cabrera, l’ autor de la poesia al joglar Cabra, fòu Pons, marit de Marquesa d’ Urgell o’l fill d’aquest el vescomte Guerau, frare templer [...]. Els que tinguin competencia per semblant treball son els que ens hauràn de demostrar si, malgrat de citarse com a noves en la composició al joglar Cabra les poesies de Rudel, Marcabrú y Ebles de Ventadorn y sobre tot d’un Alfons, que es segurament el rey de Catalunya-Aragó, pot situarse a son autor, el vescomte Guirau de Cabrera, tan a la primeria com a la fi del regnat del esmentat princep”. 37

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are familiar with some poems were all travellers or closely connected with northern milieux [...]. The spread of the northern literature of chivalry into the southern lands was slow and gradual. It became better know during the 1180s [...], at first through the chansons de geste and then, towards the end of the twelfth century, through the Arthurian romances [...]. This also explains the rather minor role played by the romances in the cultural make-up of Guerau. If all these arguments are correct and convincing, they lead to certain conclusions [...]. First: the troubadour Guerau de Cabrera can be no other than Guerau IV, and not his grandfather Guerau III. Second: the date of the composition of Cabra joglar has to be fixed after the beginning of his stay in Provence (1194), which is borne out both by documents and the relation of Gervase of Tibury. [...] Third: the sirventes cannot be used as proof of the spread of French literature in Catalonia in the twelfth century, and not even in the thirteenth, since it was composed in Provence from materials available there, and not in the Principality (Cingolani 1993: 199).

Pelo contrário, Lafont (2000), conquanto não impugne explicitamente a proposta de Cingolani, aceita a cronologia tradicional e utiliza o texto para equacionar “l´antériorité ou non d’une création d’oc par rapport à une création d’oil”38. O Ensenhamen seria mais um argumento para apoiar a prioridade occitânica na elaboração de diversos géneros literários, sugerida em vários trabalhos deste autor. Está fora das nossas pretensões aprofundar no debate; contudo, cabe notar dois dados, de natureza muito diversa, que favorecem a hipótese de Riquer (e Pirot). Devemos lembrar, em primeiro lugar, que a estrutura formal do Ensenhamen está tomada da composição Seignher n’ Audric de Marcabru, trovador cuja produção não ultrapassa o ano 115039. Por outro 38 Finaliza o seu trabalho com uma conclusão interrogativa: “Pourquoi n’a-t-on pas pensé que le domaine, plus exactement les ateliers qui inventaient, entre univers monacal et mondanité, l’ art lyrique, pouvaient en même temps inventer l’ art épique, le roman antique, la chanson d’ histoire et jouer un rôle moteur dans la diffusion des modes bretonnes. Il n’y a pas là préjugé méridional répondant au préjugé nordiste, mais simple logique d’histoire littéraire” (p. 363). 39 Cingolani (1993: 195) alude a esse dado mas não lhe atribui qualquer significação: “The contacts between Marcabru and the Cabreras, and specifically with Guerau III, which Pirot sets out for us are indisputable, and Marcabru’s tenson with Aldric del Vilar is also important, as it is the source of the metrics Cabra juglar [...]. From Pirot’s argument it clearly emerges that the friendship between Marcabru and Guerau III is good enough reason for the attribution of the sirventes. But in view of the troubadour Guerau’s liking for narrative, might not his mention of the two troubadours, together with Eble, rightly

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lado, mesmo reconhecendo que as conclusões de Cingolani parecem convincentes, a nossa perspetiva poderá mudar, em parte, se situarmos Geraldo III na atmosfera cultural da corte de Afonso VII e do Caminho (francês) de Santiago, aspetos não abordados por esse estudioso40. Lembremos que esse itinerário de peregrinação, ao qual os Cabreras estiveram vinculados, aparece desde os inícios do séc. XII como uma via de difusão das histórias de ambiente bretão, amplamente representadas no Ensenhamen41. Os dados de que dispomos acerca de Geraldo IV, neto de Geraldo III e sobrinho-segundo de João Vélaz, apontam para uma participação ativa no trovadorismo, tal como se depreende da curiosa descrição que nos deixou o britânico Gervásio de Tilbury em Otia Imperialia (Banks – Binns 2002: 17-2142) sobre as suas habilidades sociais e musicais: Erat temporibus nostris in Cathalonia miles nobilissimis ortus natalibus, milicia strenuus, elegantia gratiosus, cui nomen Giraldus de Cabreriis [...]. Erat miles in iuuentute sua, iocundus, hylaris, musicis instrumentis plurimum instructus, a dominabus inuidiose desideratus. In palatio nostro (quod ex uestri munere uestraque gratia ad nos reddit per sententiam curie imperialis, princeps excelentissime, propter ius patrimoniale uxoris nostre), in presentia pie memorie Ildefonsi, illustris regis quondam Aragonensis, et socrus nostre, qui singulari laude precellebat inter dominas sui confinii, necnon in conspectu multorum procerum, miles sepe dictus uiolam trahebat, domine chorum ducebant, et ad tactum cordarum equus incomparabilibus circumflexionibus saltabat.

identified as Ebles de Ventadorn, be interpreted, at least as preliminary hypothesis as what remained of a family tradition?”. No Ensenhamen alude-se a um “N’ Arumalec” (herói romanesco não identificado) que foi relacionado com um “N’ Aturmalec” citado nesse mesmo poema de Marcabru (Gaunt et al. 2000: 537-539). 40 Lembremos que a preferência pela matéria épica, a que alude Cingolani, poderia ser associada ao Poema de Almeria, texto provavelmente relacionado com os Cabreras e os Vélaz (cf. supra). 41 Veja-se o capítulo “A materia de Bretaña no occidente Peninsular” em Lorenzo Gradín – Souto Cabo (2001: 17-21). 42 Estes estudiosos (p. 738, n. 1) identificam-no erradamente com Geraldo III: “probably the famous Guiraut ou Guerau III Ponç de Cabrera, one of the first Catalan troubadours known to us by name”. Eles supõem, seguindo Riquer (1984), que Geraldo III morrera em 1170 e situam os acontecimentos narrados em 1167, quando Afonso II estava em Arlés.

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Com independência de quem tenha sido o autor de Cabra juglar43, a informação analisada revela que a estirpe dos Cabreras esteve envolvida, de vários pontos de vista, no movimento lírico occitânico e, muito provavelmente, na sua irrupção em terras do ocidente ibérico44. Não nos surpreende, antes pelo contrário, que João Vélaz, membro dessa casa, apareça como o mais antigo representante do nosso trovadorismo. Por outro lado, é também possível que os Cabreras tenham propiciado o conhecimento da lírica galego-portuguesa na área occitano-catalã (cf. infra).

4. Sancha Ponce e Vela Guterres Sancha Ponce (1149-1176), filha de D. Pôncio II Geraldo de Cabrera, casou com o galego Vela Guterres (1130-115845) {Vélaz – Trava}, primeiro mordomo (1154, 1156-115746) do infante Fernando e tenente de Morales (por delegação de Pôncio Geraldo) (1147), Cabrera (1149-1150, 1154), Malgrado (1150), Lemos e Sárria (1155). O casal47, seguindo uma 43 Note-se que Miret y Sans também considerou a possibilidade de o identificar com Pôncio III Geraldo (cf. supra). 44 Marquesa d’ Urgell, mulher de Pôncio III Geraldo, é uma personagem aludida na obra de trovadores como Guilhem de Berguedà e, sobretudo, Ponç de la Guàrdia. Miracle de Urgell, irmã dela, foi a mãe de Rodrigo Gomes de Trava (cf. infra).

Diversos historiadores situam a sua morte em 4 de novembro de 1160 (Salazar Acha 1985: 51, Fernández-Xesta 1991: 68) de acordo com o obituário de Nogales; porém, uma escritura de 1158.09.15 ([D.2]) induz a pensar que, nessa altura, já falecera (Calderón Medina 2011a: 83, n. 132). Alguns estudiosos atribuíram, erradamente, a Vela Guterres a dignidade condal. Existiu um conde Vela na área leonesa, documentado ainda em 1185 (SMarcos, nº 93). 45

Torres Sevilla (1998: 188) assinala como data mais recuada o ano 1136 com base num documento de Villanueva de Oscos conservado em cópia da segunda metade do séc. XII. Porém, Floriano Llorente (1981: 133, nº 1), editor dessa escritura, considera que “Las menciones personales que figuran en el documento son totalmente anacrónicas. La mayor parte pertenece a una época posterior, sospechándose que el copista anotó en la fórmula cronológica el año de la primitiva donación, pudiéndose situar la confirmación entre los años 1156-1157”. Portanto, o mais antigo aparecimento dele nesse cargo palatino pode ser situado em 1154.06.24: “Uela Guterriz, maiordomus regis Fernandus, conf.” (SMarcos, nº 12). 46

Desconhecemos a data do casamento mas em abril de 1150 já contavam, pelo menos, com dois filhos (Rodrigo e Garcia) (cf. infra). Aliás, o fato de D. Vela em 1147 estar exercendo o cargo de tenente de Morales por delegação de D. Pôncio leva a pensar que este 47

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prática frequente naquela altura, promoveu a fundação de um Mosteiro em Nogales (Leão) (Nogales, nº 2 [1150]) numa terra que Afonso VII entregara a Vela Guterres: “Ego Adefonsus, imperator Hispanie, una cum filiis meis, Sancio et Fernando, uobis domno Uela Guterrez, milite meo, et generis comitis Pontii propter amore seruicii quod fecistis in multotiens et facities cotidie, dono iure hereditario, spontanea uoluntate, Nogares que iacet in ualle de Aria” (Nogales, nº 1 [1149]). Ora, é interessante salientarmos que os progenitores de João Vélaz encomendaram à bisavó de Osório Eanes (cf. infra), Aldara Peres, a instauração da vida monástica em Nogales48. O dado evidencia uma aproximação e colaboração entre os Bóvedas –antecedentes de Osório Eanes (cf. infra) – e os Vélaz que contam com outros exemplos significativos ainda na primeira metade do séc. XII49. Aquela primeira iniciativa fracassou, vindo a ser retomada em 1164 com a cooperação dos frades do Mosteiro de Moreruela (Nogales, nº 550), fundação de Pôncio II Geraldo (cf. infra). Para além dessas duas

último, nessa altura, já era sogro daquele. Pensamos que o matrimônio pôde ser induzido por Maria Fernandes, segunda mulher de Pôncio de Cabrera e tia de Vela Guterres. “Qua propter ego Vela Gutierrez una cum coniuge mea, Sancia Pontia, donamus, bono animo et spontaneamente Domino Deo, et tibi Aldara Pedrez et succesores tuos, pro remedio animarum nostrarum uel parentum nostrorum atque omnium fidelium defunctorum, ipsam hereditatem quem imperator nobis dedit, per cartam, in Valderia, scilicet villam quae vocatur Nogales et Quintanella et Bobeda eam pertinet vel pertinere debent [...]. Ita damus tibi et tuis sociabus vel quae post te futurae erunt ad serviendam Deo sub regula sancti Benedicti” (Nogales, nº 2).

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“Vela Gutiérrez estaba casado con Sancha Ponce, perteneciente al linaje de los Ponce de Cabrera. Ambos fundaron un monasterio en su villa de Nogales: en 1150 encargaron su constitución a las benedictinas gallegas de San Miguel de Bóveda, a cuya cabeza estaba doña Aldara” (Cavero Dominguez 2001: 9). A consideração de Aldara Peres como abadessa de Bóveda está em Manrique (1642: 175), que atribui tal hipótese à tradição: “Donato termino, com multis possessionibus, abbatissae Aldoarae, sociabusque, quas ex Gallecia, et monasterio Bovedae, altero ab urbe Auriensi lapide, adductas, traditio magis probat, quam instrumenta”. Aldara Peres e o marido, Oeiro Ordonhes, foram patronos do Mosteiro de Bóveda. Notemos, contudo, que também conhecemos uma Aldara Peres, filha de Pedro Froiaz e irmã de Fernando Peres de Trava. 49

50 Na edição citada, o documento é atribuído ao ano 1163 partindo de uma interpretação errada da data: “Facta carta sub era MCCII, XII kalendas januarii”. Os elementos da datação sincrônica confirmam que se trata de 1164, já que Gomes Gonçalves – mordomo citado no texto – aparece pela primeira vez em 1164.10.21. Esse cargo fora ocupado anteriormente por Fernando Rodrigues, entre 1162.08.15 e 1164.09.06.

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instituições monásticas, os Vélaz-Cabreras aparecem vinculados às sés de Astorga e Santiago e aos mosteiros de Castanheda, Caveiro51, Meira, Osseira, Sobrado52 e Vega de Valhadolid53. Segundo foi exposto, o matrimônio de Sancha Ponce com Vela Guterres deu origem a sete filhos: Rodrigo, Garcia, João, Fernando, Pedro, Maria e Pôncio Vélaz. A biografia dos três primeiros permanece numa certa penumbra. O único testemunho histórico relativo a Rodrigo Vélaz surge na escritura em que se impulsiona a criação do Mosteiro de Nogales em 1150.04.06 (Nogales, nº 254). É possível que tenha falecido entre essa data e 1158.09.15 [D.2], altura em que a mãe e os irmãos fizeram uma doação à Igreja de Astorga na qual ele não participa. Garcia Vélaz (1150-1161) aparece nas datas anteriores e ainda, pela última vez, em 1161.05.1255. Fernando Vélaz (1158-1192) foi tenente em Astúrias, Benavente, Bierzo – ou Bércio –, Leão, e Tineo. Ele desposou Sancha Álvares (← Álvaro Rodrigues {Vélaz} & Sancha Fernandes56), com quem teve João Fernandes de Cabrera e Fernando Fernandes (cf. infra). Existe uma notável dificuldade homonímica para discriminar esse João Fernandes de Cabrera de João Fernandes de Lima (ou Batissela) (cf. infra). Torres Sevilla (1999: 190) refere-se ao primeiro como: “tenente de Limia, Lemos, Zamora, alferez y mayordomo real de Alfonso IX”, mas Salazar y Acha (2000: 366-368) – que não cita o de Cabrera – atribui esses (e outros) cargos a João Fernan51 Em 1142, Vela Guterres deu ao Mosteiro de Caveiro metade de Igreja de Larage (conc. Cabanas) (TCaveiro, nº 17). 52 Em 1149 e 1154, Vela Guterres juntamente com o tio, Rodrigo Peres, oferecia ao Mosteiro de Sobrado propriedades na terra de Nendos e em Aranga (López Sangil 2002: 115). Notemos, aliás, que Vela Guterres é uma das personalidades que confirmam a refundação deste mosteiro e a entrega à ordem de Cister [D.1].

Em 31 de dezembro de 1156, o conde Ramiro Froilaz e Sancha Ponce, junto com os esposos (Elo e Vela Guterres) e filhos respetivos, ofereciam a esse cenóbio um solar no bairro de S. Paio em Leão (Vega, nº 54). 53

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“Rodericus filius Vela Gutierres atque Santia Pontia conf.– Garcia frater eius conf.”.

Ele aparece consignado no obituário de S. Zoilo de Carrión no dia 22 de julho: “Garsias Velet. XI Kalendas Augusti. Pro officium fiat. Et cellararius maior refectionem plenariam faciat senioribus. Et hoc de omnibus infurcionibus Sancii Mametis, quam hereditatem dedit nobis domna Sancia comitissa, mater eius, ad hoc aniversarium in perpetuum faciendum in hac die” (Reglero de la Fuente 2008: 650-651). 55

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Filha de Fernando Peres de Trava e da rainha Teresa de Portugal.

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des de Lima57. Pôncio Vélaz (1158-1202) foi alferes régio (1185-1186) e tenente em Aguilar, Astúrias e Tineo, Babia, Bierzo, Estremadura, castelo de Luna, Mansilla, Mayorga, Miranda de Astúrias, Salamanca, Sanábria e Zamora58. Pedro Vélaz (1158-120259) escolheu a carreira religiosa como arcediago da Sé de Compostela60. Ele juntou essa função à de chanceler (1184-1202) nas cortes de Fernando II e Afonso IX, ao qual ainda somou a mordomia com o último monarca (1188)61. Maria Vélaz (1158-1204) foi, segundo Calderón Medina (2008: 368), domina (‘administradora’) do mosteiro de Moreruela62. Soeiro Mendes, registrado entre os irmãos a partir de 1177 (TMeira, nº 79), foi fruto de um segundo casamento de Sancha Ponce (cf. infra).

Fernández Rodríguez (2004: 148-149) alude a “Juan Fernandez de Limia, llamado el Bueno o Juan Fernández Baticela”, a quem atribui a totalidade dos cargos resenhados. 57

D. Pôncio desposou Teresa Rodrigues com quem teve: Fernando, João e Pedro Ponce. Este último, casado com Aldonça Afonso (← Afonso IX), irá atingir uma grande notoriedade pública nos reinados de Fernando III e Afonso X. Ele foi a origem dos Ponce de León (Torres Sevilla 1998: 191). Calderón Medina (2011a: 168, 501), certamente por lapso, atribui os cargos citados a Fernando Ponce “o Menor”. 58

59 González (1944: 171) aponta que foi abade de Osseira c. 1211; mas, entre 1205 e 1223, esse cenóbio era regido por Lourenço I (Romaní 1989: 73). Notemos que Maria Vélaz ofereceu a vila de Gema ao bispo de Zamora em 1204.01.18 (CZamora, nº 61) como sufrágio pela alma de Pedro Vélaz e doutros parentes: “Ego domna Maria Vele ob remedium anime mee et avi mei comitis domni Poncii et patris mei domni Vele Guterri et matris mee comitisse domne Sancie Poncii et fratrum meorum Fernandi Vele, Petri Vele, Iohannis Vele, Poncii Vele, dono et imperpetuum concedo domno Martino zemorensi episco et ecclesie sancti Salvatoris villam que vocatur Xema”. Entendemos que os indivíduos citados já tinham morrido naquela altura. Lucas Álvarez (1993: 514), com base nos Calendários da catedral de Mondonhedo, situa a sua morte em 1212.07.8, mas pode tratar-se de um erro (MCCL por MCCXL).

Apontemos ainda a significativa presença dele nos Livros de Aniversários da sé de Santiago no dia 2 de março (Leirós Fernández 1970: 32): “Pro archidiacono D. Petro Velle. Dantur 80 lbr. Processio ad claustrum novum”. 60

61 Pedro Vélaz estabeleceu várias permutas com os irmãos Fernando e Pôncio, pelas quais recebeu a posse (ou usufruto) das propriedades deles na Galiza (TLourençá, nº 63, TMeira, nº 145, 174). 62 Segundo Salazar Acha (1985: 48), esteve casada dom Álvaro Rodrigues de Castro, dado que não é referido por outros autores. Uma escritura de 1193 (ACZ, 17/30), de que são titulares Maria e Pedro Vélaz, conserva o único selo dos irmãos Vélaz que conhecemos. Esse elemento é reproduzido fotográficamente no início deste capítulo.

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5. Johannes Velaz Ao invés do que acontece com a maior parte dos irmãos, a documentação só proporciona notícias lacônicas sobre a biografia de João Vélaz63. Mesmo assim, as indicações diplomáticas permitem circunscrever com notável precisão a sua cronologia. Eis a descrição das escrituras que, com alguma segurança, lhe dizem respeito: 01. 1158.09.15 ([D.2]): Sancha Ponce e os filhos, Garcia, Fernando, Pôncio, Pedro, João e Maria Vélaz, oferecem à Sé de Astorga metade da vila de Verdenosa (Zamora). 02. 1161.05.12 ([D.3]): Sancha Ponce e os filhos, Garcia, Fernando, Pôncio, Pedro, João e Maria Vélaz doam as herdades de Partóvia e Mouriz (conc. Carvalhinho), junto com as propriedades eclesiásticas que lhes correspondem nessa mesma zona, ao abade do mosteiro premonstratense de S. Leonardo de Alba de Tormes. 03. 1164.12.21 (Nogales, nº 5): A condessa Sancha Ponce, viúva de Vela Guterres, e os filhos, Fernando, Pôncio, Pedro e João e Maria Vélaz entregam o Mosteiro de Nogales aos frades de Moreruela (Zamora) (cf. supra). 04. 1172.06.17 (ASIL, nº 312): Pedro, astorgano, oferece a João, abade de Nogales, uma herdade em Llamas de la Ribera (Leão). Confirmam os irmãos Pedro, João, Fernando e Pôncio Vélaz.

A biografia (possível) de João Vélaz assemelha-se, em alguns aspetos, à caraterização do “trovador” desenhada por Oliveira (2001:15-22). 63

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Subscrições dos irmãos Vélaz em 1172.06.17

05. 1174.09.03 (TMeira, nº 62): Maria Vélaz e os irmãos Pedro, Pôncio e João Vélaz dão ao Mosteiro de Meira o que possuem em S. Tirso e em Vilarmide (conc. Ponte Nova), com reserva do usufruto para Maria Vélaz. 06. 1174 (?) (TMeira, nº 29664): Os irmãos João, Fernando e Maria Vélaz cedem ao Mosteiro de Meira o que possuem em Azúmara e em Francos (conc. Castro de Rei) por herança da avó Sancha Nunes (?). 07. 1177 (TMeira, nº 79): Os irmãos Fernando Vélaz, Pôncio Vélaz, João Vélaz e Soeiro Mendes entregam à irmã Maria Vélaz as herdades que possuem em Honceniego, Castro Calbón (Leão), Vilalva, Vila Verde, Vilarmide (conc. Ponte Nova) e Santo Tirso. 08. 1181.06.05 ([D.13]): Os irmãos Fernando Vélaz, João Vélaz, Pedro Vélaz e Soeiro Mendes oferecem à irmã Maria Vélaz a herdade de Gema (Zamora) que receberam de Fernando II (em troca de S. Cebrião de Mazote). Após a morte da irmã, aquela herdade deverá passar ao Mosteiro de Fontevraud (França). 09. 1181.12.07 ([D.15]): Os irmãos Fernando Vélaz, Pedro Vélaz, Pôncio Vélaz e Soeiro Mendes, cumprindo as últimas vontades de João Vélaz,

64 Conservamos apenas um resumo deste documento no TMeira, de 1616, onde lhe é atribuída a data de 1221, altura em que os irmãos citados já tinham falecido (Fernández-Xesta 1991: 60-61). A pensarmos numa transcrição parcialmente errada, o diploma poderá remontar à era de 1211, isto é, ano 1173. No entanto, não descartamos que o conteúdo desse resumo esteja deturpado por contaminação – ou seja fruto de uma falsificação. Outros dois regestos copiados no mesmo fólio (254r-v) (também com a data de 1221) aludem (num tempo passado) a uma Sancha Nunes, avó de Toda e de Diogo Eanes (filho de João Capelo), com propriedades em Azúmara (cf. supra).

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sepultado no Mosteiro de Moreruela, dão a esse cenóbio aquilo que possuem em Ceque e em Galende (Zamora). 10. 1181.12.07 ([D.16]): Os irmãos Fernando, Pôncio e Pedro Vélaz, cumprindo as últimas vontades de João Vélaz, sepultado no Mosteiro de Moreruela, oferecem a esse cenóbio aquilo que possuem em Vionho (conc. Corunha) e em Faro (conc. Corunha) – herdado da avó, a condessa Toda Peres de Trava – e confirmam a entrega ao cabido da Sé de Santiago da parte que lhes pertence na Igreja de Oza. 11. 1204.01.18 (CZamora, nº 61): Maria Vélaz cede a vila de Gema (Zamora) a Martim, bispo de Zamora, e à Sé S. Salvador em sufrágio pela alma do avô, D. Ponce; do pai, Vela Guterres; da mãe, a condessa Sancha Ponce, e dos irmãos, Fernando, Pedro, João e Pôncio Vélaz65. Ignoramos a data concreta do nascimento de João Vélaz, contudo, a julgarmos pelas escrituras referidas e por aquilo que sabemos sobre o seu grupo familiar mais próximo, torna-se possível situá-lo c. 1145-1155. Pelo contrário, tendo em atenção as cartas nº 8, 9 e 10, conseguimos fixar com bastante exatidão o momento da sua morte na segunda metade do ano 1181, entre 5 de julho e 7 de dezembro66. De acordo com as informações de frei A cronologia e/ou a ausência de contexto familiar faz com que seja menos segura a identificação do trovador com um ou vários homónimos citados em escrituras produzidas na área leonesa. Assim, encontramos um João Vélaz que, com a mulher e os filhos (“Ego Iohanne Uelaz et uxor mea Marina Aluariz cum filiis et filiabus nostris”), vende uma herdade em Vega de Magaz (Leão) em 1156 (DAstorga, nº 12). Esse também é o nome (“Iohannis Vélaz”) do pai de um Domingos Eanes que, em 1163 (CSalamanca, nº 25), vendia várias casas em Salamanca. Notemos ainda, entre outros, a presença de “Iohannes Uelez” em 1194 (Nogales, nº 20) e 1217 (SMarcos, nº 235) e de “Iohannes Uelaz” em 1200 (Sahagún, nº 1537), portanto, fora do quadro cronológico em que se integrou o filho de Vela Guterres (cf. infra). O mesmo acontece no caso da Galiza, onde registramos esse antropônimo no segundo quartel do séc. XIII (cf. supra). Também encontramos indivíduos com esse nome na área de onde procede o antropônimo: “Johannes Uelez de Alaua”, testemunha do rei de Castela no tratado de paz entre Fernando II e Afonso VIII de Leão em 1181 (Tombo B, nº 38), e “Iohan Velaz”, pai de um Petro Iohanes, que confirma um diploma de Santo Domingo de la Calzada em 1201 (SDomingo, nº 101). 65

Calderón Medina (2011a: 151) opina que “Rodrigo, Garcia y Juan [Vélaz] no llegaron a la edad adulta”. Tal suposição, referida a João Vélaz, deve ser corrigida, entre outros motivos, pelo facto de ele ter atingido a maioridade (14 anos), pelo menos, em 1172, quando confirma, junto com os irmãos, o diploma nº 4 (cf. supra). Como foi dito, desconhecemos os pormenores da biografia de João Vélaz. Notemos, contudo, a sua inopinada ausência num ato documental pelo qual a condessa Sancha Ponce e os filhos (Fernando, Pôncio, Pe66

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Bernardo de Villalpando transmitidas, entre outros, por Yepes (1615: 211v), ele foi enterrado no claustro do Mosteiro de Moreruela: En diuersos arcos que ay embeuidos en las paredes de los claustros estan sepultadas muchas personas principales, bienhechoras del Monasterio, de las quales por injuria de los tiempos, no se saben sus nombres, mas de los que consta por escrituras ciertas son estos. En el claustro de capitulo junto à la puerta de la Iglesia en vn arco, que està al lado del altar de san Iuan, està sepultado don Iuan Vela, hijo del Conde (sic) don Vela Gutierrez, y de la Condesa doña Sancha Ponce de Cabrera, fundadores magnificos del Monasterio de Nogales, como parece por dos escrituras de donación, que hazen à Moreruela Fernan Vela, Ponce Vela, y Pedro Vela, donde confessando, que està sepultado en este Monasterio Iuan Vela su hermano, dan â la casa diferentes haziendas. Estan esculpidas en el sepulcro de este cauallero vnas cabras en campo verde, que son las armas de su madre la Condesa doña Sancha Ponce de Cabrera, y de su abuelo el Conde don Poncio de Cabrera, mayordomo que fue del Emperador don Alonso Ramon67.

dro, Maria Vélaz e Soeiro Mendes) deram a terça parte dos dízimos da Igreja de S. Fresme de Alija (Leão) ao bispo de Astorga em 1170 (DAstorga, nº 20). 67 Segundo Yepes, no arco, que se conserva (muito danificado), também teria sido enterrado D. Fernando Ponce, sobrinho de João Vélaz: “Dentro del arco donde està el de Don Iuan Vela, yaze sepultado el Conde don Fernando Ponce de Cabrera, hijo mayor de don Ponce de Vela, y de doña Teresa Rodriguez su muger, y hermano de don Pedro Ponce de Cabrera, que casò con doña Aldonça Alonso hija natural del Rey don Alonso de Leon... Tiene en su sepulcro esculpidas cabras en campo verde, como su tio don Iuan Vela” (Yepes 1615: 211v-212r).

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Arcossólio no claustro de Moreruela em que foi sepultado João Vélaz

João Vélaz integra-se, portanto, num tronco em que confluíram os Vélaz, Travas, Cabreras e Celanovas, quatro das principais linhagens do reino nos tempos de Afonso VII (1126-1157) e Fernando II (1157-1188) (cf. infra). A julgar pela documentação, a sua biografia aparece, em primeiro lugar, ligada às terras do sudoeste leonês dominadas pelos Cabreras: uma extensa faixa fronteiriça que vai do Bierzo e Sanábria até Ciudad Rodrigo. Por outro lado, a ascendência paterna de João Vélaz, fruto da união dos Vélaz com os Travas, leva-nos à Galiza68. A localização das propriedades que lhe pertenceram reflete, em boa medida, essas conexões familiares. Podemos vincular, de modo genérico, aos Travas as posses situadas no norte e noroeste da atual província da Corunha e aos Vélaz aquelas localizadas na área lucense de Meira69. Quanto às herdades na terra de Orzelhão, cedidas 68 Lembre-se que o segundo casamento de D. Pôncio com Maria Fernandes de Trava veio ainda reforçar a ligação dos Cabreras à família dos Travas e que esta última foi a “avó” de fato de João Vélaz, embora não o fosse de sangue (cf. supra). 69

Veja-se TMeira (nº 63, 76, 97, 120, 143, 174, 178, 211, 216).

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a Osseira na escritura nº 2, é possível que sejam o resultado da integração de Sancha Ponce na estirpe dos Celanovas. Não devemos concluir este percurso pela biografia de João Vélaz sem aludir ao último ato documental protagonizado por ele e pelos irmãos em junho de 1181 [D.13]. O conjunto de descendentes de Sancha Ponce oferecia de modo vitalício à irmã, Maria Vélaz, a vila de Gema (Zamora), estipulando que, após a morte dela, devia passar à abadia de Fontevraud (Anjou, França). A entrega de Gema a esse mosteiro fica sujeita a uma série de condições que, entre outros aspetos, favorecem a presença de mulheres da família dos doadores no mesmo, inclusivamente dando-lhes preferência para ocupar o cargo de priora. Os termos em que o diploma foi redigido deixam transparecer a existência de contatos diretos e muito sólidos dos Vélaz com o mosteiro angevino e com os patronos do mesmo. A relação desse grupo com Fontevraud remonta a 1156, quando Sancha Ponce e Vela Guterres ofereceram ao mosteiro valhisoletano de Vega – uma das raras fundações fontevristas – o seu quinhão de um solar em Leão (Vega, nº 54). A abadia de Fontevraud constituiu o referente religioso da dinastia Plantageneta, à qual pertenceu Leonor da Aquitânia (1122-1204) pelo seu casamento, em 1152, com o conde de Anjou, futuro Henrique II da Inglaterra70. O papel da neta de Guilherme IX na criação e difusão literárias do amor cortês torna muito sugestiva a afinidade entre o ambiente cultural daquela senhora e o grupo familiar do primeiro trovador galego-português conhecido71. A perda da produção poética de João Vélaz impede-nos de estabelecer possíveis conexões poéticas entre ele e outros autores. No entanto, fica dentro das nossas possibilidades notar os elos familiares e sociais com os primeiros poetas em galego-português. Segundo se patenteia de modo reiterado ao longo deste trabalho72, esse tipo de nexos é a chave que expliConhecemos o interesse de Leonor por Fontevraud, abadia na qual chegou a ser freira e onde mandou ser sepultada. 70

71 Essa ligação dos padroeiros de Moreruela ao ambiente setentrional da Gália talvez ajude a explicar algumas pegadas artísticas (estruturais e decorativas) da igreja abacial de Moreruela, originárias de “empresas del norte de Francia – Île de France y territorios próximos –, derivadas o inspiradas por el prototipo concebido en Saint-Dénis” (Valle Pérez 1992: 12). 72

Veja-se, a esse respeito, o esquema genealógico dos Travas.

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ca a propagação do trovadorismo nas terras do ocidente peninsular e, ao mesmo tempo, vem garantir algumas das propostas identificativas, como é o caso da do próprio João Vélaz. Nessa linha, é possível associarmos por parentesco biológico, mais ou menos direto, João Vélaz com Osório Eanes, Rodrigo Dias dos Cameros, Pedro Rodrigues da Palmeira, Garcia Mendes de Eixo, João Soares Somesso, Fernando Pais de Tamalhancos ou Airas Oares. Vínculos de natureza social ou sociopolítica permitem, por sua vez, aproximá-lo de D. Juião e de João Soares de Paiva. Como veremos adiante, o ofício poético deste último terá sido consequência do seu relacionamento com os Vélaz-Cabreras através dos Braganções, estirpe a que ele pertenceu por via materna (cf. infra).

6. Outros descendentes de Pôncio II Geraldo Entre a prole de Pôncio II Geraldo, houve dois filhos de nome “Fernando”: Fernando Ponce “o Maior” (1160-1180)73 e Fernando Ponce “o Menor” (1163-120074). A opinião maioritária (Fernández-Xesta 1991: 57-59, Barton 1997: 284), corroborada pela documentação, é que o primeiro foi filho de Sancha Nunes de Celanova e o mais novo da condessa Maria Fernandes de Trava. Isto permitiu a utilização do mesmo antropônimo e vem explicar o motivo pelo qual (só) “o Menor” ostentou a dignidade condal (herdada do avô Fernando Peres de Trava)75. A coincidência onomástica entre eles derivou na troca de informações sobre as biografias respetivas.

Ele foi um dos alumni da infanta Sancha (Calderón Medina 2011a: 131, n. 263), irmã de Afonso VII. 73

O foral de Junqueira de Valariça (conc. Torre de Moncorvo, Bragança), outorgado por Sancho I de Portugal em 1201, é atestado por “el conde Fernando de Cabreira” (Sancho I, nº 137). Não podemos confirmar a identificação desse conde com a personagem em questão ou com um sobrinho segundo dele, filho de Pôncio Vélaz, a quem também se atribui a dignidade condal. 74

Um diploma do Mosteiro de Villaverde de Sandoval (Sandoval, nº 9 [1171]) assegura que só Fernando Ponce “o Menor” foi filho de Maria Fernandes. Nesse texto, apesar de estarem presentes os dois irmãos (“roborant ambos irmanos, Fernan Ponz el Maior et el Minor”), só se aponta um deles como “Fernando Ponz, filio de la condesa dona Maria”. O editor identifica erradamente “o Maior” como sendo filho de D.ª Maria. No testamento, D.ª Maria refere um único filho: “filio meo, Fernando Poncii” [D.7]. 75

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Fernan Ponz el Maior Como se infere de um documento do núcleo de Armenteira outorgado por D.ª Fruílhe Fernandes em 1162, Guiomar Rodrigues (filha desta última e mãe de Rodrigo Dias dos Cameros) esteve casada em primeiras núpcias com (um) “Fernando Ponce”. Com efeito, essa escritura aparece confirmada, entre outros, por esse casal (junto com Sancha Ponce, mãe de João Vélaz): “Ego domna Guiumar hanc kartulam roboro et confirmo. Uir meus domnus Fernandus Poncii confirmat. Domna Sancia Poncii confirmat”76. Esse matrimônio veio a ser revogado antes de 1173, altura em que Guiomar já fora desposada por Diogo Ximenes dos Cameros (cf. infra). A anulação, consequência habitual do parentesco existente entre os cônjuges, levou a pensar que o primeiro marido de Guiomar Rodrigues {Trava} fosse filho de Maria Fernandes {Trava}77. Porém, devemos lembrar que Fernando Ponce “o Maior”, considerado prole de Sancha Nunes, e Guiomar também foram familiares próximos enquanto descendentes de Nuno Mendes de Celanova78. Observamos também dificuldades para destrinçar as atividades públicas dos irmãos homônimos no período cronológico que partilharam. Salazar Acha (2000: 418-419) refere-se apenas à figura do “conde” atribuindo-lhe todos os cargos que figuram sob o nome de “Fernando Ponce”79. Pelo contrário, Fernández-Xesta (1991: 71-74) deslinda a atuação pública de ambos e crê que Fernando Ponce “o Maior” foi alferes (1161-1163) e tenente na Terra de Campos, Benavente, Sanábria, Alhariz, Ledesma, Lemos

76

AHN, Mosteiro de Armenteira, maço 1750, nº 13.

Torres Sevilla (1999: 295, n. 1493) supõe que “Guiomar Rodríguez, hija del conde Rodrigo Pérez el Velloso, desposó en dos ocasiones: la primera con Fernando Ponce, hijo del conde Ponce de Cabrera, matrimonio anulado en función del parentesco, pues ambos cónyuges eran descendientes del conde Pedro Froílaz de Traba”. Salazar Acha (1984: 77) cita “Fernando Ponce el Mayor” como primeiro marido de Guiomar. Num trabalho posterior (2000: 418), de acordo com os cargos e biografia que lhe atribui, parece aludir implicitamente ao “Menor”: “Casó dos veces: la primera con doña Guiomar Rodríguez [...]. La segunda con doña Estefanía López, hija de conde Lope Diaz de Haro” (cf. infra). 77

78 A presença de Sancha Ponce no diploma de Armenteira, acima citado, depõe claramente a favor da identificação com “o Maior”.

Fernandez Rodríguez (2004: 124) também não discrimina entre eles e só fala de um “Don Fernando Ponce [...] hijo de don Ponce de Cabrera”. 79

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e Zamora. Barton (1997: 243) também lhe adjudica o cargo de alferes e supõe que desapareceu do cenário político a partir de 117180. A união de Fernando Ponce “o Maior” com Guiomar Rodrigues resultou num filho, Fernando Fernandes de Cabrera (meio-irmão de Rodrigo Dias dos Cameros e primo de João Vélaz), documentado pela primeira em 1198 numa doação ao Mosteiro de Nogales lavrada em Bragança: “ego Fernandus Fernandi, filius Fernandi Pontii maioris et nepos comitis Pontii de Cabrera [...] uobis domno Nicholao abbati monasterii de Sanctae Mariae de Nogales dono partem tota uilla de Granoncello” (Nogales, nº 25). Seguindo o exemplo familiar, esse cenóbio e o de Castanheda – em menor medida o de Moreruela – foram os mais favorecidos por Fernando Fernandes81. Apesar de alguns estudiosos lhe terem atribuído diversos cargos institucionais (tenente, alferes, mordomo), a análise atenta da documentação induz a pensar que, na verdade, essas funções pertenceram ao seu homónimo Fernando Fernandes de Bragança82, sobrinho-neto segundo de João Soares de Paiva (cf. infra).

Fernandus comes de Cabreria Quanto ao conde Fernando Ponce “o Menor” {Cabrera-Trava}, Fernández-Xesta (1991:73) assinala que foi tenente em Lima, Lemos e Estremadura. Mas, se aceitarmos a proposta de Barton (1997: 243), teremos de

80 O último registro apresenta-o como tenente de Sanábria: “Fernandus Poncii, Maior, tenens Senabriam cf.” (OSantiago, nº 49 [1171]). 81 Assim, já em 1199 oferece a Castanheda uma herdade em Galende: “ego Fernandus Fernandi do et concedo Deo et Sancto Martino de Castanaria et uobis abbas Petrus omnis conuentus presentibus et futuris hereditatem meam quam habeo in uilla que dicitur Galendi [...] pro remedium anime mee et patris mei et auio meo comiti donno Pontio qui eam adquisiuit” (TCastañeda, nº 175). Outras doações a essas abadias situam-se em 1204 (Moreruela, nº 46), 1209 (Nogales, nº 33), 1212 (TCastañeda, nº 109), 1230 (Nogales, nº 52) e 1231 (Nogales, nº 56). Exceto no caso da escritura relativa a Moreruela, existem elementos para considerar que o donatário foi, com efeito, o filho de Fernando Ponce “o Maior”. 82 Estamos, na verdade, perante um caso extremo de concatenamento homonímico, já que a mulher de Fernando Fernandes de Cabrera e a primeira esposa de Fernando Fernandes de Bragança utilizaram o nome de “Maria Peres”. Somado ao grande paralelismo vital entre ambos, isso explica as confusões da crítica historiográfica e as dúvidas que subsistem sobre alguns aspetos concretos das suas biografias.

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lhe atribuir a mordomia (1188-1189) e as tenências de Melgar (1172, 1190), Lima (1173-1174, 1176, 1178-1179, 1182-1184, 1187, 1195-1196), Alhariz (1174), Zamora (1176, 1188-1192, 1195), Lemos (1177-1180, 1187, 1192, 1197), Toronho (1178, 1194-1195), Cabrera (1178, 1182-1183), Benavente (1181-1186, 1188), Sanábria (1182, 118983), Mayorga (1186-1187), T. de Campos (1186-1193), Estremadura (1188, 1190, 1192-1195), Salamanca (1188-1190), Transerra (1188), Valladolid (1190), Valdemora (1198), Robledo (1198)84 etc. Sabemos que casou com Estefânia Lopes de Haro85 (← Lopo Dias de Haro & Aldonça [Gonçalves] {Trava & Vélaz}86), cuja integração familiar aparece bem definida numa escritura lavrada em 1200.11.20: “Ego Stephania comitissa, filia felicis recordationis Lupi nobilissimi comitis de Nagara”87. Ela foi, portanto, tia de Aldonça Dias (← Diogo Lopes de Haro & Toda Peres de Azagra), a mulher de Rodrigo Dias dos Cameros.

83 Salazar Acha (2000: 418-419) também o registra nessa tenência entre 1164-1169, o que nos leva a pensar que pode tratar-se do irmão. 84 A atribuição destas tenências a Fernando Ponce “o Menor” é ocasionalmente assegurada pela referência à dignidade condal – com que não contava o irmão homônimo –: “Fernandus Poncii comes in Toronio” (Fernando II, nº 139 [1178]), “Fernandus Poncii comes in Limia” (Oseira, nº 58 [1178]), “Fernandus Poncii, comes in Limia” (SMarcos, nº 65 [1179]), “Fernandus Poncii comes in Lemos” (Tombo B, n º 207 [1180]), “comes Fernandus tenente Limia” (Oseira, nº 66 [1183]), “comes Fernandus in Limia” (SMarcos, nº 84 [1184]), “Comes Fernandus in Benavente” (Oseira, nº 72 [1186]), “Comite Fernando Poncii, tenente Benevento” (SMarcos, nº 118 [1188]), “Comes Fernandus Pontii tenens Campos” (Oseira, nº 82 [1193]) “comite Fernando tenente Limia” (SMarcos, nº 139 [1195]), etc. Uma escritura de 1172 apresenta-o como “Fernando Ponzo, presidente in Uidriales et in Riba de Teira et in Carualleda et in Sena[bria]” (ASIL, nº 312). Notemos que a partir de década de noventa, quando falta o patronímico, existem dificuldades para o distinguir de Fernando Nunes de Lara (Fernández Rodríguez 2004: 125-126). 85 O casamento foi anterior a janeiro de 1183, altura em que ambos fizeram uma cessão ao Mosteiro de Sar (cf. infra). 86 Sobre a biografia de Aldonça Gonçalves, veja-se Canal (1995b: 12-16). Este estudioso considera que foi filha de Gonçalo Fernandes de Trava e de Elvira Rodrigues {Vélaz} (← Rodrigo Vélaz & Urraca Álvares ← Álvar Fañez & Maior Peres de Carrión {Ansures}) (cf. infra).

ACZ, Pergaminhos, maço 14, nº 32. Esse documento confirma a doação da vila de Manganeses à Sé de Zamora realizada em finais do mês anterior (1200.10.29) por Fernando Ponce e a sua ex-mulher Estefânia: “Ego Fernandus comes de Cabreria cum Stephania comitissa, quondam uxore mea, dono totam vilam de Manganeses ecclesie sancti Salvatoris de Zemora” (CZamora, nº 56). A dissolução do matrimônio pode ser atribuída à consanguinidade existente entre eles, já que os dois eram Travas por via materna. 87

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Entre a documentação respeitante a Fernando Ponce “o Menor”, dois diplomas do núcleo arquivístico de Santa Maria de Sar, de 1175 [D.9] e 1183, encerram um notável interesse por nos elucidarem sobre as relações institucionais e humanas do titular88. Pelo conteúdo explícito desses escritos, vimos a descobrir os laços que ligavam Fernando Ponce a esse mosteiro compostelano, seguindo o exemplo dos pais. O mais antigo informa da compensação que Fernando Ponce fez àquela instituição pelas perdas que lhe causara89. O aspeto que atrai a nossa atenção tem a ver com o primeiro elenco de confirmantes, que reúne uma parte da elite nobiliárquica vinculada a Fernando Ponce “o Menor”. Podemos identificar entre eles um número relativamente importante de indivíduos aparentados com personagens que, em momentos e modos diversos, participaram no trovadorismo, a começar pelo próprio “Fernandus Pontii”, tio de João Vélaz e primo de Osório Eanes. Entre as conexões seguras, registramos a presença de “Johannes Arie de Castela”, pai de Osório Eanes; “Arias Fernandi de Taveriolis” e “Petrus Fernandi de Taveriolis”, familiares de Paio Soares e Pedro Velho de Taveirôs; “comes Gomitius de Tratamar”, pai de Rodrigo Gomes de Trastâmara; “Cotalaia”, (provável) pai de D. Juião (cf. infra); “Fernandus Arie”, (provável) avô de João Soares Somesso; “Johannes Froile, dictus Marinus”, antecessor de Pedro Eanes Marinho e Martim Eanes Marinho. É ainda plausível que “Fernandus Patronus” mantenha algum tipo de ligação familiar (pai?) com o trovador homônimo (Fernando Padrão)90. 88 Fernando Ponce e a mulher também aparecem relacionados com a Ordem de Calatrava (Índice de Calatrava, “Particulares”, nº 23) e, nomeadamente, com o Mosteiro de Moreruela. O conde deu a esse cenóbio aquilo que possuía na vila de Ceque e no vilar de Juncello, ocupado indevidamente por ele, e pediu para ser enterrado nesse cenóbio (Moreruela, nº 38 [1196]). Em 1215, a condessa Estefânia doou a essa instituição, pela sua alma e a do ex-marido – já falecido –, diversas propriedades (Moreruela, nº 68). 89 É por esse motivo que vendeu ao prior uma herdade no arciprestado galego da Seaia. A escritura de 1183 transmite a cessão a Sar de uma “curia” em Castro Calvón (Leão) (AHDS, Priorado de Sar, maço 37, nº 43).

Ele é o “Fernandus Pelagii dictus Padrum” titular de uma escritura de 1178 (Toxos Outos, nº 324), segundo se confirma por um diploma de Fernando II de 1164 em que Fernando Padrão, tenente das Torres de Oeste, aparece considerado irmão de Paio Pais: “Ferdinandus Patroni tenens Castellum Oneste confirmat.– Pelagius Pelagii frater eius confirmat”

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Símbolo heráldico de Fernando Ponce “o Menor” (ACZ, 14/31A [1200])

7. Minervas e Urgéis Como se sabe, a presença de linhagens de origem catalano-provençal no ocidente ibérico não se limitou aos Cabreras. Os condes de Urgell já se tinham instalado no aparelho administrativo dos reinos de Afonso VII desde finais do séc. XI, constituindo, assim, o precedente para a chegada dos Cabreras e dos Minervas no séquito de Berengária de Barcelona e Provença. Apesar de não contarem no seu seio com nenhum poeta em galego-português, como no caso dos Cabreras, é possível que os Urgéis e os Minervas tenham favorecido o surto do trovadorismo no noroeste da Península. A interação social dessas duas estirpes, naqueles aspetos que interessam aos propósitos deste trabalho, é objeto de análise nesta secção.

(Colección de Privilegios, nº 17). “Nuno Pelaez de Trasancos” é o pai de Paio Nunes de Trasancos, titular de um documento de 1230 [D.31] em que aparece, como confirmante, um João Somesso.

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Vélaz, Minerva e Flaínes-Froilaz No início deste trabalho aludíamos a Vela Oveques, irmão de Bermudo Oveques (bisavô de João Vélaz), como origem do ramo familiar dos Vélaz que atingiu maior relevo político através da linha sucessória: Vela Oveques (conde)  Rodrigo Vélaz (conde) (1092-1144)91  Álvaro Rodrigues (conde) (1129-1167)  Rodrigo Álvares (conde) (1161-1187)92. Este último, uma das personalidades mais interessantes do reino galaico-leonês durante a segunda metade do séc. XII93, era filho da condessa Sancha Fernandes (← Fernando Peres de Trava & Teresa de Portugal). D. Rodrigo chegou a ser cavaleiro da Ordem de Santiago (1171)94 e, posteriormente, ele próprio fundador da de Monte Gáudio ou Montfragüe (1174)95. Casou-se com Maria Ponce96, uma filha de Pôncio de Minerva e de Estefânia Ramires

91 Ele casou-se com a condessa Urraca Álvares, filha de Álvaro Fanhes e de Maior Peres Ansures. 92

O seu irmão Bermudo Álvares foi mordomo régio (1186-1188).

Contamos com um estudo monográfico sobre Rodrigo Álvares de que é autor J. Mª. Canal (1983). Veja-se também Pardo de Guevara (2000: 67-75). 93

94 Ele foi comendador da Ordem de Santiago em Portugal. Salazar Acha (1985: 55) considera que tomou o hábito do Templo. Também exerceu como tenente em Alhariz, Lemos, Monterroso e Sárria,

Veja-se Blázquez Jiménez (1917), Forey (1971), González (1960: 584-591), Canal (1983) e Pardo de Guevara (2000: 69, n. 78). D. Rodrigo peregrinou a Jerusalém e colocou nessa cidade (c. 1180) a casa mãe da nova ordem (cf. infra). Entre os patrocinadores desta milícia encontra-se a família de Lopo Dias de Haro, marido de Aldonça Gonçalves {Vélaz & Trava} (prima de Rodrigo Álvares) e avô de Aldonça Dias (mulher de Rodrigo Dias dos Cameros) (Forey 1971: 255). Antes de ser absorvida pelo Templo (c. 1197), Monte Gáudio tinha sido amalgamada, em 1188, com a ordem do Hospital do Santo Redentor, recentemente fundada em Aragão (Forey 1971: 258). Fernando III fez com que fosse incorporada na de Calatrava em 1221. 95

A mais antiga referência ao casamento de Rodrigo Álvares com Maria Ponce encontra-se numa escritura de 1172.06.03 (SMarcos, nº 33) pela qual a condessa oferece ao Mosteiro de S. Marcos de Leão aquilo que, por dote de D. Rodrigo, possuía na Igreja de S. Paio de Villamuriel: “Tali, uidilicet conditione ut mihi et uiro meo comiti, scilicet, domno Roderico qui eam mihi sub domine dotis contulit semper in orationibus uestris et ceteris beneficiis teneamini obnoxii”. O enlace de Rodrigo Álvares com Maria Ponce resulta dos interesses econômicos que os irmãos Álvares tinham na área leonesa, provavelmente vinculados ao segundo matrimônio da mãe, Sancha Fernandes, com o conde Pedro Afonso {Vélaz}, casado em primeiras núpcias com Maria Froilaz (←Froila Dias {Flaínes-Froilaz}) (Canal 1983: 390). 96

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{Flaínes – Froilaz}, o que permitiu aos Vélaz conectar com duas das mais importantes linhagens da segunda metade do séc. XII. Os percursos dos Flaínes-Froilaz e dos Minervas encontraram-se nas terras ocidentais do reino de Leão sujeitas ao senhorio dos Flaínes ao longo do séc. XII97. O conde Ramiro Froilaz {Flaínes} (1120-1169), pai de Estefânia Ramires, foi alferes real (1132-1133) e tenente em Astorga, Villafranca del Bierzo, Cabrera, Valdeorras, castelo de Ulver, etc. O conde Froila Ramires (1150-1202), filho dele, para além de alferes real (1182-1184), ocupou, entre outras, as tenências do Bierzo, Astorga, Villafranca, Faro, Lemos, Sárria e Montenegro98. A vinculação à Galiza explica-se pelos seus casamentos com Urraca Gonçalves (1171-1190) (← Gonçalo Fernandes de Trava) e, em segundas núpcias, com Sancha Fernandes99, filha de Fernando Airas (Batissela) {Lima} e de Teresa Bermudes de Trava (cf. supra)100. A linhagem de Minerva (Barton 1992: 249), estabelecida no reino de Leão na primeira metade do séc. XII, tem uma trajetória paralela à dos Cabreras e Urgéis. A sua procedência geográfica situa-se na região occitana de Minervois (Hérault, Languedoc-Roussillon), sujeita à soberania dos Condes de Barcelona desde os inícios do séc. XII101. Como no caso de Pôncio de Cabrera, Pôncio de Minerva (1140-1175) chegou com a rainha Berengária de Barcelona e de Provença. Afonso VII estabeleceu-o patrimonialmente na área de Carrizo de la Ribera, após o seu casamento com 97

Sobre esta linhagem, veja-se a síntese de Calderón Medina ([no prelo]).

O primogênito foi, contudo, Afonso Ramires (1170-1182), tenente em Astorga (1170) e no Bierzo (1180-1183). 98

Veja-se López Sangil (2002: 65-70, 149-151) e Salazar Acha (2000: 421). Fruto desse casamento foram, entre outros, Diogo e Ramiro Froilaz. A filiação materna destes últimos é assegurada com a ajuda de dois documentos (Carbajo 1904: 365r-365v, nº 163 e 164) em que eles aparecem expressamente considerados filhos de D.ª Sancha: “domna Sancia Fernandi, filia domne Tharasie Ueremudiz [...]. Qui presentes fuerunt Ramirus Froile et Didacus Froile, filii supradicta comitissa domna Sanctia, hanc cartam roboramus et confirmamus” (1214, Santiago de Compostela), “Ego domnus Ramirus, filius comitissa domna Santia, hanc cartam quam ipsa fieri iussit roboro te confirmo et etiam in eadem sigillum meum apono” (1214, Carracedo). 99

Sancha Fernandes era, portanto, prima do trovador Osório Eanes e tia de Teresa Lopes de Ulhoa, a segunda mulher de Fernando Pais de Tamalhancos. Veja-se Souto Cabo ([no prelo/1]). 100

A família Minerva contou no seu seio com o poeta Aimeric de Montréal, senhor de Minerva, assassinado aquando da cruzada contra os cátaros. 101

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Estefânia Ramires, segundo ficou registrado num inquérito ordenado por Afonso IX em 1207 (DCarrizo, nº 79)102: Quod quando domino imperatore adduxit suam coniugem imperatricem, adduxit cum ea comite Poncio de Menerua et desposauit eum cum comitissa domna Stephania, filia comite Ramiro, et dedit medietatem de Karrizo que erat rengalengo ut dedisset sponsam suam pro arras. Et dedit illi aliam hereditatem que iacet inter Quintanella et Carrizo et dicitur Quiro. Et aliam medietatem de Karrizo erat de comite Ramiro et dedit ad illum cum filia sua in casamento.

Graças a uma série de doações régias, o conde Pôncio de Minerva tornou-se um dos magnates com maior domínio territorial a norte do Douro, sobretudo nos vales do Porma, Órbigo, Esla e Bernesga (Barton 1992: 252). Evidentemente, esse poder sucede como recompensa pelo envolvimento na governação do reino. Ele chegou a ser alferes (1140-1144) e mordomo (1167103) do rei galaico-leonês (também do de Castela [1172-1173]), conde desde 1164 e tenente em Leão, Coyanza, Saldaña, Mayorga etc. O seu filho, Ramiro Ponce, também foi alferes (1163-1165, 1166-1168) de Fernando II, que lhe terá outorgado a dignidade condal em 1180104.

Ermengaudus Urgellensis Apesar de terem como centro geográfico da sua soberania o condado catalão correspondente105, os Urgéis vieram a inserir-se na estrutura

102 Pôncio de Minerva contava apenas 12 anos quando chegou a Leão e, por este motivo, o seu cuidado foi confiado à infanta D.ª Sancha (Barton 1992: 249, García Calles 1972: 32). 103 Calderón Medina (2011a: 281) atribui-lhe, por lapso, a mordomia em 1176 com base num documento desse ano que, na verdade, é apenas a reprodução doutro de 1167 (Fernando II, nº 83, 148). 104 Os Minervas aparecem como fundadores e padroeiros dos mosteiros cistercienses de Sandoval (1167) e de Carrizo (1176). Alonso Álvarez (2007: 678-679) associa essas fundações ao casamento de Maria Ponce com Rodrigo Álvares. Após a separação do marido, ela foi a primeira abadessa de Carrizo (até 1193). Sobre o Mosteiro de Carrizo e a sua relação com os Minervas-Flaínez, veja-se Casado Lobato (1983), Quintana Prieto (1984), Barton (1992, 1997), Torres Sevilla (1999), Salazar Acha (2000). O grupo familiar de Fernando Pais de Tamalhancos aparece também relacionado com esse cenóbio (Souto Cabo [no prelo/1]).

Lembremos que, na Catalunha, “conde” corresponde ao conceito de ‘rei soberano’. O visconde é o ‘conde’ dos reinos centro-ocidentais da Península e tem caráter hereditário. O 105

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de poder dos reinos centro-ocidentais da Península106. Eles constituem, em termos cronológicos e de relevância social, a primeira e mais distinguida das linhagens catalãs implantadas no império de Afonso VII. Na sequência dessa expansão geográfica, estabeleceram vínculos com boa parte das principais famílias do espaço que vai de Provença até Portugal: Castro, Lara, Haro, Cabrera, Foix, Barcelona, Trava e Portugal. Lembremos, antes de mais, que os Cabreras foram feudatários dos Urgéis, na qualidade de viscondes de Àger (Baixo-Urgell). Por outro lado, a ligação biológica entre ambas as estirpes irá provocar a mudança de titularidade do condado – a favor dos Cabreras – na primeira metade do séc. XIII. O próprio conde Armengol VII era sobrinho de Ponce II Geraldo de Cabrera (avô de João Vélaz). Outra conexão genealógica, escassamente lembrada, é a que liga os Urgéis aos Travas, em concreto a quem foi provavelmente um dos principais promotores do trovadorismo na Galiza, Rodrigo Gomes de Trastâmara, filho do conde Gomes Gonçalves e de Miracle de Urgell (← Armengol VII de Urgell & Dulce de Barcelona) (cf. infra). Armengol IV (1066-1092), conde soberano de Urgell, determinou no testamento que o seu sucessor fosse educado na corte de Afonso VI, desejo que foi cumprido. Armengol V (1075-1102) casou com Maria Peres, filha do conde Pedro Ansures. D. Pedro, sediado na área da Terra de Campos e Valhadolid107, era um dos vultos mais importantes da política em Castela. Além do sucessor, Armengol V teve uma filha de nome Este-

Condado de Urgell (no vale do rio Segre, entre a atual Andorra e a cidade de Lleida) forma parte do grupo primitivo de condados catalães desde o período da Marca Hispânica. Sobre os condes de Urgell, vejam-se, além da bibliografia geral, os trabalhos de Monfar y Sors (1853), Corredera Gutiérrez (1963), Martín Rodríguez (1964), Lomax (1982), Trenchs – Conde (1985), Canal (1989a), Barton (1996), Fernandez-Xesta (2001).

106

Os Ansures e, com eles, os Armengol aparecem relacionados com a presença dos frades premonstratenses em Castela. Sancho Ansures (neto de Pedro Ansures), introdutor dessa ordem na Península, foi o primeiro abade de Retuerta, mosteiro fundado pela condessa Maior Peres (filha de Pedro Ansures e tia de Sancho) em Fuentes Claras e transferido para Retuerta em 1146. Entre as personalidades que favoreceram esta abadia encontra-se Rodrigo Peres de Trava, avô de Rodrigo Dias dos Cameros (Oseira, nº 31 [1156]). Veja-se Barton (1997: 197-198) e Alonso Álvarez (2007: 675). Sancha Gonçalves, mulher de Fernando Peres de Trava e avó do trovador Osório Eanes, era sobrinha de Pedro Ansures (cf. infra). 107

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fânia que, tendo desposado Fernando Garcia de Hita108, foi mãe de Pedro Fernandes de Castro (1139-1184), fundador e (primeiro) mestre da Ordem de Santiago (Canal 1984). A morte precoce do conde de Urgell fez com que Pedro Ansures, com a ajuda de Geraldo II Ponce de Cabrera (aio do futuro conde de Urgell), tivesse exercido a regência e defendesse os direitos do neto na Catalunha109. Armengol VI (1096/1119-1154), mordomo de Afonso VII (1146), uniu-se, em primeiras núpcias, a Arsenda de Àger (← Geraldo II Ponce), enlace que deu origem ao herdeiro, Armengol VII (cf. infra). A segunda mulher de Armengol VI foi Elvira Rodrigues de Lara (← Rodrigo Gonçalves de Lara110). Desse matrimónio nasceu Maria de Almenar, por sua vez, esposa de Lopo Lopes de Haro (← Lopo Dias de Haro111). Um descendente deste último casal, também de nome Armengol, surge associado a um “D. Gomez trobador” que supomos membro do seu séquito [D.23]112. É a primeira alusão nominal à figura desse ator poético nos reinos centro-ocidentais da Península e foi utilizada, com maior ou menor convencimento, para postular a existência de um movimento lírico castelhano (Menéndez Pidal 1990: 33, Oliveira 2001: 69, n. 2). Porém, se tivermos em conta o contexto familiar do filho de Maria de Almenar, não podemos excluir a hipótese de se tratar de um trovador galego-português de obra perdida (ou, evidentemente, de um poeta em provençal). Com efeito, é de notar que Lopo As origens familiares deste indivíduo são incertas. Há uma teoria que o faz filho do rei Garcia da Galiza (Canal 1984) a que se opõe outra que o considera, talvez com mais fundamento, filho de Garcia Ordonhes de Nájera e da infanta Urraca de Navarra (Salazar Acha 1991). Veja-se Portela (2001: 40-44).

108

109 Pedro Ansures chegou a (re)conquistar a cidade de Balaguer (Lleida), ponto estratégico na defesa do condado.

A casa de Lara foi uma das mais poderosas estirpes do reino castelhano durante o séc. XII e inícios do XIII. Rodrigo Gonçalves de Lara e a infanta Sancha Afonso, filha de Afonso VI, foram os pais de Elvira Rodrigues. Porém, Rodrigo Gonçalves irá desposar (em segundas núpcias) Estefânia Armengol, irmã de Armengol VI, portanto tia da filha. Notemos que Maria Gonçalves, irmã de Rodrigo Gonçalves, casou com Ximeno Ínhigues, senhor dos Cameros, bisavô paterno de Rodrigo Dias dos Cameros (cf. infra). 110

111

Sobre os Haros, veja-se Canal (1989b, 1995b) e Alonso Álvarez (2004: 26-36).

Lopo Lopes aparece como confirmante ao lado do jogral Palha numa escritura de 1151 redigida em Toledo: “Lupus Lupiz de Carrione; Palea, joculator, socer Michael Petriz, confirmat” (PSJoão, nº 62). 112

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Dias de Haro (pai de Lopo Lopes) esteve casado com Aldonça Gonçalves (1162-1207), filha de Gonçalo Fernandes de Trava (1140-1164) e de Elvira Rodrigues {Vélaz}113. Apesar de existirem algumas dúvidas sobre a filiação materna de Lopo Lopes114, D.ª Aldonça terá exercido de fato –talvez também de direito – como avó desse Armengol Lopes. A possível origem galega do “trobador” pode ainda vir apoiada por aquilo que conhecemos sobre Armengol VII (cf. infra). Aliás, a relação do anterior com Armengol Lopes parece ter sido muito estreita, ao ponto de, no seu testamento, ter nomeado este último como potencial herdeiro (Canal 1984: 128). Armengol VII (1132-1184), principal representante da linhagem na segunda metade do séc. XII, foi mordomo de Fernando II (1167-1173, 1175, 1176, 1177, 1179-1184) e tenente em Villalpando (1167-1168), Toronho (1170-1173), Lima (1171, 1173, 1180), Monterroso (1172), Leão (1178, 1181-1183), Benavente (1180), Salamanca (1181) e Villafranca (1182) etc. O conde de Urgell chegou a ser tutor do príncipe D. Afonso em 1172, numa altura em que ocupava o cargo de mordomo (cf. supra): “comes Urgelensis maiordomus regis et filiis eius tutor” (Fernando II, nº 127)115. Ele esteve casado com Dulce de Foix (filha de Roger III de Foix e

113 Canal (1995b: 11-15) propõe essa integração familiar para Aldonça (cujo patronímico nunca é referido) com base num documento riojano em que ela é apresentada como prima do conde D. Rodrigo Álvares {Vélaz & Trava}: “yo, la condesa Endulcia, con mi consobrino (= ‘primo’) el conde Rodrigo y mi hijo Diego y demas hijos y hijas” (MLaturce, nº 49 [1182]). Anteriormente fora considerada tia desse mesmo Rodrigo Álvares (Salazar Acha 1985: 57-60) ou ainda irmã dele (Canal 1989b: 62-66). Na identificação em foco, é importante o testemunho de um diploma de 1201 (TLourençá, nº 22) pelo qual sabemos que o avô do conde Gomes Gonçalves {Trava}, considerado irmão de Aldonça Gonçalves, foi Rodrigo Vélaz. Isto quer dizer que Elvira Rodrigues, mãe do conde D. Gomes, pertenceu à linhagem dos Vélaz e que foi filha de Rodrigo Vélaz e de Urraca Álvares {Ansures}. As suas origens apareciam até a esse momento como incertas (Barton 1997: 257). Lembremos, contudo, que o termo “consoprinus” era também utilizado para ‘sobrinho’, o que nos levaria a pensar que D.ª Aldonça fora irmã de Álvaro Rodrigues {Vélaz}, pai desse Rodrigo Álvares.

Canal (1995b), de acordo com uma hipótese sugerida por Balparda (1934: 372), supõe que Lopo Lopes foi fruto de um matrimónio anterior de D. Lopo Dias, mas não aduz provas documentais. É por esse motivo que, no esquema genealógico correspondente, não o incluímos entre os filhos de Aldonça Gonçalves. 114

115

O segundo precetor foi João Airas, pai do trovador Osório Eanes (cf. infra).

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de Ximena de Barcelona, irmã de Raimundo Berengário IV), com quem, além do sucessor, teve duas filhas: Miracle e Marquesa116. Sobre os vínculos de Armengol VII com a Galiza, devemos notar que ele aparece como um dos protetores do Mosteiro de Armenteira, ao qual cedeu, em 1173 (altura em que era tenente de Toronho), o seu quinhão de uma vila: “Ego, Ermengaudus Urgelensis, [...] dono et concedo Deo et beate Maria de Armentaria et tibi domno Ero abbati eiusdem monasterii [...] partem que pertinet michi de illa villa vocitata Suecus que est heredita mea” (AHN, Armenteira 1750, nº 3)117. O dado que mais diretamente liga a família deste conde de Urgell à Galiza (e à lírica galego-portuguesa) tem a ver com Miracle. Ela foi mulher do conde Gomes Gonçalves (principal representante dos Travas e figura essencial na corte galaico-leonesa) e mãe de Rodrigo Gomes de Trava (cf. infra). Marquesa, a outra filha de Armengol VII, reforçou os laços dos Urgéis com os Cabreras pelo seu casamento com Pôncio III Geraldo de Cabrera (visconde de Girona e de Àger). Armengol VIII (1158-1209) não chegou a ocupar cargos importantes no reino galaico-leonês, talvez por se ter fixado, após o casamento, nas posses catalãs. Ele esteve casado com Elvira Nunes118, filha de Nuno Peres de Lara e de Teresa Fernandes (← Fernando Peres de Trava & Teresa Afonso de Portugal), motivo pelo qual os Urgéis se aparentaram de novo com a estirpe dos Trava. Armengol VIII foi sucedido pela filha, Aurembaix, que foi desposada por Álvaro Peres de Castro e, em segundas núpcias, por D. Pedro de Portugal (1187-1252) (← Sancho I)119.

116 Como sublinha, Calderón Medina (2011a: 177) o conde aparece acompanhado por diversos milites catalães que provavelmente formavam parte da sua hoste. 117 As famílias de Osório Eanes e a de Rodrigo Dias dos Cameros também mantiveram vínculos estreitos com esta instituição conventual (cf. infra). 118 Canal (1981) supõe que foi Elvira Peres, filha do conde asturiano Pedro Afonso. No entanto, a documentação apoia a hipótese aqui perfilhada (Calderón Medina 2011a: 178).

D. Pedro foi mordomo (1223-1230) de Afonso IX e tenente. O cargo de mordomo foi exercido ocasionalmente, em nome dele, por Rui Gomes de Briteiros (cf. infra). 119

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CAPÍTULO II JOÃO SOARES DE PAIVA

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Conjunto absidial do Mosteiro de Moreruela (c. 1175)

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1. João Soares, o Trobador Avia otras [cantigas] de Johan Suares de Pavía, el qual se dize aver muerto en Galizia por amores de una infanta de Portugal (Marquês de Santillana, Prohemio e Carta, c. 1448)

A cronologia que alguns estudiosos atribuíram à cantiga Ora faz’ ost’ o senhor de Navarra (c. 1196-12161), único cantar conservado de João Soares de Paiva (1170-1182), faz com que tenha sido amiúde apresentada como o exemplo mais antigo da poesia trovadoresca galego-portuguesa: “Estamos [...] perante a primeira ou uma das primeiras composições dos cancioneiros medievais peninsulares” (Oliveira 1994: 372). Ora bem, devemos lembrar que não se trata de um valor temporal absoluto, uma vez que é referido apenas ao conjunto diminuto de textos, em princípio, datáveis do primeiro grupo de poetas. Contudo, ela poderá representar um recurso de grande pertinência para equacionar a questão das origens da lírica galego-portuguesa. Essa hipotética primazia cronológica, somada a uma vinculação conjetural de João Soares ao ambiente de Rui Dias dos Cameros – aquando da composição do sirventês –, constitui o alicerce da teoria que situa o berço do nosso lirismo nas terras do nordeste peninsular (ou ainda além-Pireneus) (cf. supra). Entre os defensores dessa tese encontra-se José C. Miranda (2004: 38) que para responder à pergunta de “Onde está, então, João Soares de Paiva quando escreve o seu texto?” conclui o seguinte: João Soares comparece, curiosamente, apenas em sétimo lugar da lista, mas perto dele está o nome de Rui Diaz dos Cameros, autor de três composições igualmente não conservadas [...]. Trata-se do senhor dos Cameros, território Riojano que faz fronteira com Navarra, à vista da praça aragonesa de Tarazona. Com os dados actualmente disponíveis não nos parece existir qualquer alternativa minimamente credível à possibilidade de João Soares ter escrito o seu texto junto daquele poderoso magnate e trovador, sendo a relação entre estas

Vejam-se, entre outros, os trabalhos de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1904: 567568, 2004: 299-313), López Aydillo (2008: 38-39), Alvar (1987) ou Miranda (2004: 3842).

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duas personagens o ponto de partida para a compreensão das circunstâncias que levaram ao surgimento do primeiro núcleo trovadoresco em galego-português2.

Existem outras possibilidades, de natureza menos conjetural, para explicar a participação de João Soares de Paiva no trovadorismo. De acordo com a opinião sempre criteriosa de Carolina Michaëlis3, o mais lógico seria, em princípio, pensarmos que o poema foi elaborado em terras do antigo reino de Aragão, visto que, como o próprio Miranda notava, “o trovador assume o partido do rei de Aragão contra o rei de Navarra”4. A hipótese da investigadora alemã coaduna-se, em alguns aspetos da sua conclusão, com a tese defendida neste trabalho, segundo a qual a existência do sirventês advém da associação do Paiva aos Cabreras-Vélaz através da linhagem dos Braganças a que pertenceu por via materna.

Entre Paiva e o Bércio Os investigadores que se ocuparam desse trovador identificaram-no com um João Soares [de Paiva, o Freire, o Trovador], filho de Soeiro Pais (← Paio Pires & Goda Soares da Maia), referido com alguma frequência nos Livros de Linhagens5:

Na verdade, o antigo senhorio dos Cameros não é fronteiriço com Navarra, antes pelo contrário, encontra-se num território riojano(-castelhano) oposto a esse antigo reino; portanto, afastado de Tarazona em cerca de 100 km.

2

Miranda (2004: 16), retomando um assunto que já abordara com algum pormenor (Miranda 1997: 8-9), explica que Michaëlis reforçava a sua hipótese “pela existência de uma Pauia perto de Lérida, em pleno reino aragonês, terra que, na sua opinião, teria sido arrasada pelo rei navarro, motivando o feroz canto do trovador”. Porém, Carolina Michaëlis (2004: 307) na “Glosa IX” – publicada em 1902 – já preferia identificar esse topônimo com o português correspondente (cf. infra). 3

López Aydillo (1923: 42) vê na referência ao “bon rey” (vv. 9 e 13) uma alusão a “Alfonso IX de Castilla” (= Afonso VIII de Castela). Assim, ele interpreta “que el hecho histórico referido en la cantiga de Soarez de Payva, es anterior a la campaña de Alfonso IX de Castilla y Pedro II de Aragón contra Sancho IV de Navarra y debe ser datado, por consiguiente, en el año 1196”.

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5 A identificação parece, logicamente, correta. Notemos, contudo, a existência de indivíduos caraterizados pelo uso do antrotopônimo “Pavia” na área do Minho ourensano no primeiro quartel do séc. XIII: “Rodericus Petri et Iohannes Petri, filios domni Petri Gundisalvi de Paiva et domna Maiores Menendi” (Oseira, nº 210 [1220]).

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E este dom Sueiro Mouro foi casado com dona Urraca Mendes de Bragança, e fora já casada com Diogo Gonçalves, que mataram na lide de Ourique, e fez em ela João Soares, o Freire, e Estevainha Soares e Paio Soares, dito Romeu. (LD 6G5) [...]. E João Soares Freire casou com dona Maria Annes, filha de João Fernandes de Riba de Vizela e de dona Maria Soares, filha de dom Soeiro Mendes, o gordo, de barregã, e fez em ela Pero Annes, e Rodrigo Annes, e Soeiro Annes, e Joanne Annes e Tareja Annes, que foi monja de Lorvam. (LD 6M6) Este Soeiro Anes foi casado com dona Marinha Anes, [filha de dom Joham Fernandez de Riba d’ Avizela], e fez em ela Joham Soarez, e Pais Soarez e Vaasco Soarez, que foi frade de Sam Francisco, e dona Costança Soarez, que foi abadessa de Lorvão [...] (LC 26F4). Este Joham Soares de Pavha foi casado em Lisbõa com dona Margarida, que foi cidadãa, e fez em ela dona Crara Anes, casada com Joham Rodriguiz Cenoira, que foi natural d’ Evora, e foi bõo cavaleiro, e sobrinho do arçobispo dom Martim, e fez em esta dona Crara Anes ũu filho que houve nome Rodrigu’ Eanes Cenoira, como o avoo, e por sobrenome Buçalfom. (LC 26G5) Este dom Soeiro [Paaez] Mouro foi casado com esta dona Orraca Meendez de Bragança, irmãa de dom Fernam Meendez de Bragança, Velho, Braganção, como se mostra no titulo XXXVIII, dos Bragançãos, parrafo 1º, e fez em ela Joham Soarez, o Trobador, e Paai Soarez Romeu, o prestomeiro [...]. Este Joham Soarez, o Trobador, foi casado com dona Maria Annes, filha de dom Joham Fernandes de Riba d ‘Avizela e houverom semel, como se mostra no titulo XXVI. (LC 42W5-6) E dona Marinha Martîiz, irmãa da dita dona Sancha e filha dos sobreditos, foi casada com Sueir’ Eanes de Pavha, e fez em ela Joham Soarez de Pavha, e Gomez Soarez, e dona Costança Soarez, que foi abadessa de Lorvão, e outro que houve nome Paai Soarez de Pavha e frei Vaasco Soarez, que foi frade preegador. Este Joham Soarez de Pavha, suso dito, foi casado em Lixboa com dona Margarida cidadãa de Lisboa, e houverom semel como ja dissemos. (LC 62G7)

Como se verifica pelos excertos reproduzidos, os nobiliários registram diferentes versões biográficas para essa personagem, sendo uma das discrepâncias mais notórias aquela que se prende com o casamento de João Soares: com Maria Eanes de Riba de Vizela ou com a lisboeta Margarida6.

Por esse casamento com Maria Eanes de Riba de Vizela, João Soares teria estabelecido um nexo com a linhagem de Paio Curvo (vinculado familiarmente a Fernando Pais de Tamalhancos e a Garcia Mendes de Eixo), já que Paio Viegas Alvarenga, neto de D. Paio por via feminina, esteve casado com uma irmã dessa Maria Eanes. Veja-se Pérez Varela (1995: 497).

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Poderíamos pensar em dois matrimônios ou na existência de dois indivíduos homônimos, mas de gerações diferentes, cujos dados históricos teriam sido fundidos pela literatura linhagística7. Esta última conjetura vem insinuada por uma certa incompatibilidade cronológica entre a data de nascimento que tradicionalmente se atribui ao poeta (c. 1139) e as atividades de alguns dos seus (alegados) parentes – mulher e filhos – nos últimos anos do séc. XII ou ainda além da primeira metade do séc. XIII (Miranda 2004: 18-198). A escassa presença documental de João Soares de Paiva não permitiu resolver, com alguma segurança, essas dúvidas biográficas. Carolina Michaëlis (2004: 306) supunha que: “o poeta terá nascido imediatamente depois do ano 1139, como filho de D. Soeiro Pais, por alcunha O Mouro e de D.ª Urraca Mendes de Bragança”. Essa cronologia resulta de aceitar a informação dos Livros de Linhagens segundo a qual “o Mouro” cortejava D.ª Urraca mesmo antes da morte do primeiro marido, Diogo Gonçalves de Cete, na batalha de Ourique (1139). A narrativa (romanesca) levou D.ª Carolina a supor um matrimônio imediato dos alegados amantes: “apressou-se, logo que chegou a notícia da sua morte na batalha de Ourique, a casar-se com o amante [...]. O casamento legitimou o filho João Soares, nascido pouco depois”. A dedução da investigadora alemã parece entrar em contradição com o ato documental relativo à entrega das arras por parte de Soeiro Pais a Urraca Mendes em 11469. De acordo com a prática habitual (Calderón Medina 2011a: 101), este contrato nupcial foi provavelmente estabelecido Pizarro (1999, vol. 3, “esquema genealógico dos Paiva”) considera que o marido de Margarida de Lisboa foi João Soares II, filho de Soeiro Anes (← João Soares de Paiva & Maria Eanes de Riba de Vizela).

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Miranda (2004: 18) refere-se concretamente a Maria Eanes (mulher de João Soares), a irmã mais nova de Martim Eanes, alferes-mor de D. Afonso II desde 1217 até à década de quarenta. Por outro lado, alguns dos filhos que os Livros de Linhagens atribuem a João Soares ainda continuavam vivos em finais da década de cinquenta (Miranda 2004: 18).

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“Era Mª Cª LXXXª IIIIª. Ego Suario Pelaiz vobis uxor mea Orraca Menendiz do vobis arras que debeo dare [...] in terra de Pavia una corte que debeo dare [...]. Et istas arras do vobis per tali pacto, ut si ego migratus fuero ante vos et vos alio viro apprehenderitis; ut relinquatis ipsas hereditates ad meos filios et vestros que de nobis fuerint sine alios. Et vobis similiter dico ut si ego ante vos migrata fuero; ut non habeant ipsas hereditates nisi meos filios nisi vestros et si semen nostram extincta fuerit, ut remaneant ipsas hereditates ad illo monasterio” (Martins 1999, nº 1).

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no dia do casamento ou nos dias posteriores, portanto, o enlace deve ser situado em 1146. Por outro lado, a colocação cronológica coaduna-se com o caráter prospetivo da alusão aos descendentes: “filios [...] que de nobis fuerint”, ou seja: ‘os filhos que tivermos’. Não há dados para pensar que nessa altura já contassem com alguma prole10. Assim, o nascimento de João Soares terá como termo post quem o ano de 1146, situação que pode resolver, em parte, os problemas que põe a necessidade de combinar a biografia do Paiva com as datações atribuídas a Ora faz’ ost’ o senhor de Navarra11. O registo histórico mais recuado de João Soares remonta ao ano 1170 quando ele próprio doava ao Mosteiro de Paço de Sousa uma herdade em Pedorido (conc. Castelo de Paiva)12: Ego Johanne Suariz facio testamentum de mea hereditate propria que habeo de parte auiorum meorum siue de ganantia pro remedio anime mee ut partem merear adipisci in celestibus regnis a domino seculis infinitas cum angelis sanctis. Offero huic sancto et uenerabili altaris sancti Saluatoris de Palacioli cum aliis reliquiis que ibidem sunt recondite. Et est ipsa hereditate prenominata in Pedourido I kasal ubi mora Paai Aluitiz, et est a decima de tota a uilla. Do atque concedo ipsa hereditate ad monasterio de Palaciolo per suis terminis nouissimis, et antiquis cum quantum in se obtinet et as prestitum hominis est [...]. Facta karta series testamenti, era MCCVIII. Ego Iohanne Suariz in hoc testamento quod iussi fierei manus meas roboro (PSousa, nº 148).

O mosteiro cisterciense de Paço de Sousa, panteão de Egas Moniz, aparece ligado à família do trovador. O cenóbio também beneficiou de doações 10 Miranda (2004: 17) prefere considerar que o documento “não desmente esta datação, apenas leva a pensar que, nessa data, o casal considerava a sua prole não terminada”. 11

Mesmo na hipótese de datação mais precoce, o poeta estaría perto dos sessenta anos.

Alguns investigadores situam essa primeira atestação em 1169: “encontramos João Soares, filho de Soeiro Pais “Mouro” [...] em 1169, participando numa venda de bens efectuada pelo seu pai” (Miranda 2004: 19), “Aparece mencionado en docs. de 1169 (no que dá consentimento a unha doazón efectuada polo seu pai)” (LP: 549). Porém, nessa escritura não consta o nome do João Soares, já que a ratificação dos filhos é apresentada de modo coletivo: “Ego Suarius Pelaiz cognomento Mauro una cum filiis et filiabus meis facio tibi Petro Arteiro (?) cartam uenditionis de duobis casalibus [...]. Ego Suarius Pelaiz una cum filiis et filiabus meis qui hanc cartam uendicionis facere iussimus in illa manus nostras roboramus” (Arouca, nº 134). O “engano” poderá ter a sua origem numa interpretação errada da referência de Oliveira (1994: 371) a esse mesmo escrito: “Em 1169 anuía, provavelmente, a uma venda efectuada pelo pai”. Outras notícias sobre alguns dos seus bens na terra de Paiva foram registradas pelas Inquirições de 1258 (Oliveira 1994: 372). 12

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do pai em 1171 (PSousa, nº 1913) e do irmão Pai Soares Romeu em 1177 (PSousa, nº 13414). A segunda e, por enquanto, última presença documental do Paiva situa-se numa escritura de 1182.01.30 (TSobrado II, nº 322) lavrada em Villafranca, na região leonesa do Bierzo15: Notum sit omnibus tam futuris quam presentibus quod ego Martinus Faber et sotius meus Petro Pelagii tibi Martino Espartido et uxori tue Exemene Petri, uendimus uobis uineam una que iacet in Ueiga de Uite [...]. Factum scriptum apud Uillafrancam mense Ianuarii IIIº kalendas februarii, era Mª CCª XXª. Regnante inclito rege domno Fernando et eius filio Alfonso in Legione, Gallecia, Extrematura et Asturiis. Episcopo domno Fernando in Astorica. Comite Urgelensi tenente Uillamfrancam et de manu eius Petro de Fonte [...]. Presentibus confirmantibus: [...] Johanne de Pauia cf.

Essa informação evidencia um possível afastamento do Paiva a respeito das terras de onde era natural, sugerido pela própria cantiga. Michaëlis (2004: 307) – que desconhecia a “estadia” leonesa – sugeria ligar essa deslocação ao casamento da filha de D. Raimundo Berengário com Sancho I16. Por seu turno, Miranda (2004: 20) avalia a existência de causas de ordem política: 13 “Ego Suario Pelaiz cognominato Mauro facio series testamenti pro remedio anime mee [...]. Offero huic sancto et uenerabili altari Sancti Saluatoris de Palaciolo cum aliis reliquiis que ibidem sunt recondite. Sunt ipsas hereditates pernominatas in terra de Pauia in Crasto V casales, in Kasal Perro I casal, in terra de Penafiel in Figueira II kasales, in Rriu Malo I kasal”. 14 “Ego famulus Dei, Pelagio Suariz cognomento, Romeu, prolix Orraca filius [...]. Do atque concedo in loco supra dicto, ut pro anima mea remedio hereditate mea propria que habeo de parte genitore meo, Suario Pelaiz, cognomento Mauro et pernominata in uilla de Ceidoneses medietate de ipsa quintana cum sua senara et cum suo casal, et cum omnem suam rectitudinem; et alio kasal ante porta de Sancto Uicentio, et alio in Uilela. Alio casal in Octeiro [...]”. 15 Miranda (2004: 19) situa essa vila em território galego (“Villafranca na Galiza”), o que não corresponde à realidade, no passado nem no presente. Aliás, também não se justifica a afirmação de que “Villafranca, onde se encontra em 1182 [João Soares de Paiva], como vimos atrás, se situa na zona de origem da mãe de Rui Diaz de los Cameros” (p. 39).

“Não posso comprovar por que motivo ele se ausentou da pátria, nem se o fez como cavaleiro ou como trovador. Tão pouco sei quando. Só posso conjecturar que teria acontecido enquanto D. Dulce, irmã de D. Afonso II e filha de D. Raimundo Berenger, partilhava o trono português com D. Sancho I, porque nesse período (1174-1198) se desenvolveu, naturalmente, um intenso contacto entre as duas dinastias, causando visitas, contratos e embaixadas”. 16

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É certo que o momento em que Soeiro Pais “Mouro” e o filho João Soares abandonam Portugal coincide com aquele em que outras personalidades relevantes, com as quais tinham relações de parentesco, igualmente o fazem – como o chefe da casa da Maia, Pero Pais, o Alferes ou até o meio-irmão do futuro D. Sancho I, D. Fernando Afonso, que depois virá a ser Grão Mestre da Ordem do Hospital –, o que nos leva a pensar que razões políticas e solidariedades de grupo poderão ter estado na base dessa expatriação. Mas também não é impossível que João Soares e o pai tenham tomado tal iniciativa com vista a efectuar uma peregrinação, caso em que os legados a Paço de Sousa fariam do mesmo modo todo o sentido17.

Tenham concorrido ou não motivos políticos concretos para a alegada expatriação, existem elementos para pensar que a localização de João Soares de Paiva em terras do ocidente leonês se prende aos interesses geopolíticos dos Braganções, estirpe a que ele pertenceu por via materna, enquanto filho de Urraca Mendes de Bragança (cf. infra). Esse fato terá sido, em última instância, responsável pela adoção do ofício poético por parte do Paiva, pois existem dados que relacionam, de vários modos, aquela estirpe trasmontana com o grupo familiar dos Cabreras-Vélaz. É por isso que, nas páginas que se seguem, acompanhamos a trajetória dos Braganças (ou Braganções), desde os inícios do séc. XII até ao primeiro quartel do séc. XIII18, nomeadamente no que diz respeito ao seu envolvimento nos assuntos do reino galaico-leonês.

Em Santa Maria de Moreirola A evidência mais expressiva acerca dos nexos entre os Braganções e a linhagem dos Cabreras-Vélaz pode ser retirada de um passo dos Livros de Linhagens em que se refere o conflito gerado entre dois tios maternos de João Soares de Paiva. De acordo com essa narrativa, Rui Mendes foi punido com a cegueira por ter quebrantado um juramento feito no Mosteiro de Moreruela pelo qual se obrigara a não agredir o irmão Fernando Mendes:

17 Ferreira (2009: 139) descarta a possibilidade de um exílio político por iniciativa do pai, já que não existem provas para a alegada ausência do reino de Soeiro Pais Mouro.

Sobre este grupo familiar, veja-se Mattoso (1982: 65-68), Machado (2004), Pizarro (2007). 18

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E este dom Mem Fernandes foi casado com dona Sancha Viegas, filha de dom Egas Gonsendes de Riba de Douro, e fege em ela dom Fernão Mendes o Bravo, e Rui Mendes, que cegou entrante à lide que houve com seu irmão dom Fernão Mendes, porque lhi jurara em Santa Maria de Moreirola que nom fosse contra ele, e porque passou o juramento que fezera em Santa Maria de Moreirola, cegou entrante à lide, e morreo em ela. (LD 12A3)

Com independência dos possíveis ingredientes lendários, o episódio em foco permite concluir que os Braganças estiveram ligados a esse cenóbio zamorano (Machado 2004: 91, n. 221), fundação patrimonial e panteão dos Cabreras-Vélaz (cf. supra)19. O Mosteiro de Moreruela, uma das principais casas de Cister na Península, exerceu o seu domínio (espiritual e material) nos dois lados da fronteira, com uma importante presença em Trás-os-Montes, notadamente em terras brigantinas20. Essa situação reflete a manutenção de um continuum entre ambos os reinos que a recente fronteira política não conseguira fraturar21. No contexto de porosidade entre as terras do nordeste português e as regiões (galaico-)leonesas contíguas, o exemplo mais notável é constituído precisamente pelas atividades dos Braganças no reino vizinho. Estamos perante uma “tradição que, desde o século XI, consistia numa política dos Braganções de aproximação alternada às cortes dos reis de Portugal e de Leão” (Machado 2004: 172) 22.

O Mosteiro de Castanheda, na comarca zamorana de Sanábria, constitui outro importante “ponto de encontro” entre os Braganças e os Cabreras-Vélaz (cf. infra). 19

20

Veja-se Alfonso Antón (1983/I: 123, 142, 159, 178, 221).

“Resulta evidente que la permeabilidad de efectivos humanos y estruturas de dominio por encima de las fronteras es caraterística de todos los reinos medievales y aun más de los del occidente peninsular. Ahora bien, en los territorios de Tras-os-Montes y la actual provincia de Zamora, durante el periodo que se va a analizar aquí, este fenómeno cobra una intensidad especial, quizás sólo superado por los contactos a ambos lados del Miño [...]. Lo distintivo de este territorio y periodo concreto es la prolongación de los dominios del Císter gallego-leonés y de las órdenes militares al otro lado de la frontera y el entrecruzamiento de señoríos laicos leoneses y portugueses en las comarcas de Sanabria, Carballeda, Braganza y Miranda” (Beceiro Pita 1998: 1085-1086). Sobre a presença de portugueses na corte galaico-leonesa entre 1157 e 1230, veja-se Ferreira (2009), Pizarro (2010) e Calderón Medina (2010). 21

Ventura (1992: 339) também sublinha a dupla sujeição política desta família: “Numa fronteira política flutuante, os de Bragança oscilavam entre obedecer ao rei de Portugal, ou ao rei de Leão, obtendo favores ou suscitando vinganças”. 22

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De Bregancia O domínio dos Braganças sobre o espaço geográfico que abrange o nordeste de Trás-os-Montes (Vila Real-Bragança) e a área leonesa de Zamora já está documentado com D. Fernando Mendes (I) “o Velho” (1112/1117?), senhor de Bragança-Chaves e “mandante” em diversos espaços da atual província de Zamora23. A independência de Portugal não quebrou essa ligação; diversos membros desta estirpe irão participar de modo muito ativo na governação do reino galaico-leonês até ao primeiro quartel do séc. XIII. O único filho de Fernando Mendes (I)24 foi Mendo Fernandes de Bragança (II), avô materno de João Soares de Paiva. D. Mendo casou com Sancha Viegas de Baião com quem teve cinco filhos: Fernando (II), Mendo25, Rui, Urraca (mãe de João Soares de Paiva) (1146-1171) e Nuno Mendes (de Caria). Fernando Mendes (II) “o Bravo” (1124-1160), um dos homens mais poderosos do seu tempo26, desposou em primeiras núpcias Teresa Soares, filha de Soeiro Mendes da Maia, cavaleiro próximo de Afonso VI e de Raimundo de Borgonha (conde da Galiza). Num segundo casamento uniu-se a Sancha Henriques, irmã do futuro rei. Fernando Mendes (II) ostentou a tenência de Bragança e, apesar de não ter exercido cargos na corte, manteve uma presença constante junto de Afonso Henriques, primo e cunhado dele. Fruto do seu primeiro matrimônio foi Pedro Fernandes de Bragança (1152-1194). Este rico-homem, governador da terra de Bragança e mordomo-mor (1166-1175), desenvolveu um papel importante no tratado entre Sancho I de Portugal e o rei Afonso IX de Galiza-Leão, celebrado em 1194, para solucionar os problemas que se seguiram à anulação do casamento da infanta lusa com o rei Afonso IX (Machado 2004: 136-142).

Machado (2004: 61), de acordo com a documentação, refere-se às povoações de Zamora, Toro e Villalobos. 23

24

Casado, segundo algumas propostas, com uma filha natural de Afonso VI.

As hipóteses tradicionais não incluíam este indivíduo entre os filhos de Mendo Fernandes, antes o identificavam com um irmão ou com um neto, atribuindo-lhe o patronímico “Fernandes”, que não consta na documentação. Machado (2004: 82-85), com argumentos convincentes, propõe considerá-lo, como dissemos, o filho de Mendo Fernandes I que atingiu maior notoriedade (cf. infra). 25

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Esta é a opinião de Machado (2004: 107) e doutros investigadores.

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D. Pedro é mencionado, ocasionalmente, entre os representantes do poder como “senhor de Bragança” em documentos do Mosteiro de Castanheda (conc. Galende)27, o que é um indício das intensas relações da região e da própria instituição conventual com os Braganções (cf. infra). O cenóbio situa-se na Sanábria (ou Seavra), região limítrofe com a Galiza dominada pelos Cabreras-Vélaz28, os quais mantiveram fortes vínculos com esse mosteiro. O primo de João Soares surge no escatocolo de uma escritura de doação da vila de Calabor (conc. Pedralba) a esse convento ao lado de Fernando Ponce “o Maior” (tio de João Vélaz): “Regnante rege Fernando in Legione et Gallecia. Petrus Fernandi dominus Bregantie. Fernandus Pontii dominabatur Senabria” (Castañeda, nº 61 [1168]). Também o descobrimos num diploma de teor similar, mas agora acompanhado do seu primogênito Fernando Peres (1178): “Dominus Bregancie Petrus Fernandiz cum filio Fernando Petriz” (TCastañeda, nº 69). Esse último, fruto do casamento de Pedro Fernandes com Fruílhe Sanches de Celanova29, não chegou a ser Senhor de Bragança por ter falecido antes que o pai, passando diretamente a chefia da linhagem, em 1194, a seu filho Fernando Fernandes (1186-1230)30. Como sublinha Beceiro Pita 27 Referimo-nos à sequência de próceres que se insere, com frequência, no protocolo final dos documentos e serve para estabelecer a datação sincrônica dos mesmos. 28 A tenência de Sanábria aparece ocupada, ao longo do séc. XII e primeira metade do séc. XIII, por diversos membros dessa linhagem: Pôncio II Geraldo (1132-1158), Fernando Ponce (1164-1169), Pôncio Vélaz (1200), Fernando Fernández (1219-1220). Veja-se Rodríguez González (1973: 282-283) e Fernández-Xesta (1991: 84-85): “Es, además, la Sanabria, otra de las permanentes tenencias de don Ponce de Cabrera y, quizás, junto con la de Zamora y la de Cabrera (todas ellas comarcas y territorios continuados en el espacio), de las más queridas por él. No estaba limitada, creemos, esta tenencia a la mera Puebla, sino que, a través de los documentos, da la impresión de que don Ponce gobernaba la comarca en su conjunto”. 29 Filha de Sancho Nunes (← Nuno Vasques & Fruílhe Sanches) e de uma irmã (Sancha ou Urraca) de Afonso Henriques (Barton 1997: 302, Machado 2004: 124). Ela era irmã do conde Vasco Sanches (1153-1181), mordomo de Afonso Henriques entre 1169-1172. Posteriormente, D. Vasco exilou-se na corte de Afonso VIII de Castela e, a partir de 1174, na de Fernando II, tendo assumido as tenências do Bierzo, Estremadura, Lemos, Lima, Toronho, Valdeorras etc. 30 Entre a prole de D. Pedro e D.ª Fruílhe também se encontra Garcia Peres de Bragança Ledrão (1186-1205). Um descendente desse último, Pedro Garcia (1218-1235), desposou uma Sancha Osores em quem poderíamos reconhecer uma filha, não documentada, do trovador Osório Eanes.

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(1998: 1086), Fernando Fernandes de Bragança, junto com o tio Mendo [Mendes] (cf. infra), é quem melhor representa a dupla vinculação, lusitana e leonesa, desta estirpe: Los vínculos de los Braganções com la monarquía leonesa, además de con la de su país, quedan de manifiesto con Mendo Fernandes, confirmante de documentos de Sancho I de Portugal en torno a 1155 y alférez mayor de Fernando II de León entre 1157 y 1159. Pero es precisamente la actuación de nuestro personaje, Fernando Fernandes, la que mejor muestra la combinación de posesiones, influencia política y cargos en ambos reinos, aun cuando no siempre compaginara estos últimos.

Fernando Fernandes de Bragança foi tenente (1204-1222) em diversas áreas galegas (Lima) e leonesas (Bierzo), alferes (1211) e mordomo (1219-1222) de Afonso IX31. O monarca recompensou os serviços de Fernando Fernandes na guerra contra os árabes com a entrega da herdade de Vila Nova nas Frieiras: “ego Alfonsus, Dei gratia rex Legionensis et Gallecie [...] concedo uobis domno Fernando Fernandi de Bregancia [...] hereditatem de Villanova in Friarias [...] pro bono et grato seruicio quod mihi fecistis in terra sarracenorum” (Afonso IX, nº 300 [1214])32.

A identifição concreta das funções políticas desempenhadas por Fernando Fernandes (de Bragança) tem enfrentado algumas dificuldades devido à existência de uma outra personagem homônima, o filho de Fernando Ponce de Cabrera “o Maior” e de Guiomar Rodrigues de Trava (cf. supra), ao qual alguns estudiosos imputaram, total ou parcialmente, os cargos que figuram associados ao nome de “Fernando Fernandes” (cf. Fernández-Xesta 1991: 72-73, Salazar Acha 2000: 370, 426, Beceiro Pita 1998, Machado 2004: 163-179). Eis algumas das referências a Fernando Fernandes em que consta o apelido de “Bragança”: “Fernando Fernandi de Bregancia tenente Cemoram et Uillam Fafilam” (1204, Afonso IX, nº 193), “Domno Fernando Fernandi de Bragancia tenente Extrematuram” (1211, Afonso IX, nº 271), “Fernando Fernandi de Bregancia tenente Limiam” (1215, Afonso IX, nº 316), “Fernando Fernandi de Bregancia tenente Astorica” (1220, SMarcos, nº 254), “Fernando Fernandi de Bregancia maiordomo maiore existente” (1221, Gradefes, nº 391). Ele aparece como confirmante ou testemunha doutros documentos do rei galaico-leonês. Numa escritura de 1217, o braganção surge como “tenente Bragantia et Miranda et Montinegro” (TCastañeda, nº 121), tendo sido a última tenência identificada com a galega do mesmo nome (Beceiro Pita 1998: 1089). Lembremos que se trata do antigo distrito lusitano de Montenegro, situado na área do atual concelho de Valpaços, onde ainda hoje se encontra a povoação de Carrazedo de Montenegro. 31

No reino português, ele foi: “rico-homem das cortes de D. Sancho I, de D. Afonso II e de D. Sancho II, como tenente de Bragança (1192-1204 e 1218-1232), de Baião (1197), de Penaguião (1197-1202), e de Panóias (1197-1202, 1218 e 1226-1229), tendo chegado 32

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Essa herdade de Vila Nova será, posteriormente, concedida por Fernando Fernandes ao Mosteiro de Castanheda (TCastañeda, nº 183 [1221]), ao qual já entregara o que possuía em S. Martinho de Angueira (TCastañeda, nº 118 [1214])33. Porém, o fato que de modo mais explícito evidencia os laços dos Braganças com aquele mosteiro sanabrense é a filiação do mosteiro brigantino de S. Salvador de Castro de Avelãs34 – de que foram padroeiros os Braganças – no de S. Martim de Castanheda, estabelecida por carta de D. Fernando e os seus parentes em 119935. Por outro lado, de acordo com uma informação compilada nas Inquirições de Afonso III, sabemos que Fernando Fernandes ofereceu a vila de Vimioso a Pedro Ponce, filho de Pôncio Vélaz e, portanto, sobrinho de João Vélaz (cf. supra): “Domnus Fernandus Fernandi populauit villam de Viminoso in tempore Regis Domni Sancii fratris istius et ipse Domnus Fernandus Fernandi dedit eam Donno Petro Ponci, de Leon”36. Trata-se de a ocupar o importante cargo de alferes-mor de D. Sancho II, entre 1225 e 1226” (Pizarro 2007: 862). 33 Este último cenóbio recebeu de D. Fernando as vilas de Ifanes, Barciosa, “Figuerola” e outros bens. Veja-se Alfonso Antón (1982: 224), Moreruela (nº 46, 65) e Pizarro (2007: 863, sobretudo nota nº 73). Quintana Prieto (1981: 75-79) analisa as relações do Mosteiro de Castanheda com a área de Bragança.

A igreja medieval do antigo Mosteiro de Castro de Avelãs constitui um exemplar único em território português do românico-mudéjar desenvolvido nas terras leonesas vizinhas. 34

Eis o conteúdo central do documento de acordo com Alves (1982: 267, nº 121): “Ea propter nos filii, et filiabus, et nepotibus Domno Petro Fernandi hi sumus: Fernão F. qui sub manu Regis Domini Sancii dominium Bregantie teneo, Garcia Petres, Nuno Petres, Velasco Petres, Petro Fernandi, Sancia Petres, Tharasia Petres cum filiis et filiabus meis [...] et omnibus heredibus qui Ecclesie Sancti Salvatoris sumus debitores [...] damus et concedimus Ecclesiam ipsum vidilicet Sancti Salvatoris de Castro in filiam Sancti Martini Monasterium cognomento Castanaria, et tibi Petro Abbati cognomento Nunio, et fratribus tuis tam presentibus quam in posterum succedentibus, ut provideatis quae bona sunt huic Ecclesiae in eligendo scilicet Abbatem cum conventu Sancti Salvatoris secundum ordinem Sancti Benedicti liberam habeatis potestatem”. Segundo esse autor o escrito encontrava-se “transcripto na Descripção topographica de Bragança, Códice nº. 248 da “Collecção Pombalina” da Biblioteca Nacional de Lisboa, noticia 9ª, artigo «Mosteiros e Hospicios»”. 35

PMH-Inquisitiones, p. 1282. Sancho I entregou, entre outros, a D. Pedro Ponce a vila de Malhadas sob condição de lhe prestar ajuda se Bragança viesse a ser cercada: “Domnus Sancius senex dedit uillam de Maladis […] domno Petro Poncij […] per tale pactum quod si ueniret cercum ad uillam de Bragantia quod ipsi intrarent ibi et quod defenderent eam” (PMH-Inquisitiones, p. 1282). No mesmo segmento dessa fonte achamos outras informações que evidenciam a presença de Pedro Ponce na zona de Bragança. 36

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um indício muito significativo sobre a proximidade entre as linhagens dos Vélaz-Cabreras e os Braganças. A associação de Fernando Fernandes de Bragança ao aparelho administrativo do reino galaico-leonês contou com um notável antecedente familiar na pessoa de Mendo [Mendes] “o Braganção” (1146-1169)37. D. Mendo constitui um representante muito destacado dessa dupla orientação política, lusitana e galaico-leonesa, que caraterizou os interesses da família38. Para além de alferes (1146-1147) e mordomo (1146) na cúria de Afonso Henriques, D. Mendo foi o mais antigo alferes-mor (1156-115939) de Fernando II de Leão, na corte do qual terá permanecido até c. 116940. Portanto, D. Mendo – (provável) tio de João Soares de Paiva – e Vela Guterres (pai de João Vélaz) foram, respetivamente, o primeiro alferes e o primeiro mordomo de Fernando II. Quer num caso, quer no outro, ao exercício dessas funções não serão alheios os vínculos que D. Mendo e D. Vela mantiveram com Pôncio II Geraldo de Cabrera (avô de João Vélaz), último mordomo de Afonso VII e primeiro de Fernando II como rei (após Vela Guterres)41. O paralelismo entre a presença simultânea dessas persona37 Como foi dito, existem algumas divergências sobre a filiação desta personagem, que nunca aparece com o patronímico. Machado (2004: 82-89) considera-o filho de Mendo Fernandes (I), portanto, tio de João Soares de Paiva. Pizarro (2007: 858. 2010: 910) e Ferreira (2009: 103-111) supõem que se trata de um (Mendo Fernandes II) filho de Fernando Mendes (II), ou seja, seria primo do poeta. 38 Ventura (1992: 339, n. 2) – e, a partir dela, Pizarro (1997: 230, n. 25) e Machado (2004: 201) – cita, entre os membros da família Bragança “desnaturalizados na Corte de Leão”, o nome de “Garcia Peres Ladrão, de Bragança, mordomo do rei de Leão em 1196”. Trata-se de um erro por Fernando Garcia [de Vilamayor], mordomo de Afonso IX entre 1194 e 1203. Veja-se Alfonso Antón (1983: 11, 134-141) e Salazar Acha (2000: 367-368). 39 Veja-se Calderón Medina (2011a: 205). A sua associação ao futuro Fernando II já se descobre em 1153 (Moreruela, nº 7). Com efeito, nesse ano confirma, no grupo encabeçado por “rex Fernandus filius imperatoris”, uma doação de Afonso VII ao mosteiro de Moreruela. 40 D. Mendo aparece como senhor de Sanábria em 1157 e 1158 (TCastañeda, nº 34, 40), substituindo Pôncio Geraldo de Cabrera, exilado durante esse breve período: “Menendus Bregantia dominus Senabrie et sub manu eius Petrus Feso”. Veja-se Ferreira (2009: 109110).

Esses três próceres já concorrem no poder palatino em 1156: “Rex Fernandus confirmat […]. Comes Poncius, maiordomus imperatoris, confirmat. Vella Goteriz, maiordomus 41

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gens no topo do poder palatino e a coincidência no ofício poético por parte de João Vélaz e João Soares de Paiva não é atribuível a um simples acaso. A localização de João Soares de Paiva no Bierzo poderá, então, ser entendida se for contemplada sob a perspetiva da sua pertença à linhagem dos Braganças. É de lembrar, mais uma vez, que se trata de uma região fortemente vinculada, desde o primeiro terço do séc. XII, à família galaico-catalã dos Vélaz-Cabreras. O primeiro encargo político atribuído por Afonso VII a Pôncio Geraldo de Cabrera, em 1128, foi a tenência do castelo berciano de Ulver – hoje Cornatel – (conc. Priaranza del Bierzo). Se bem que, como vimos, os Cabreras-Vélaz tivessem passado a dominar, de preferência, outra área contígua ao sul, a ligação patrimonial e ainda administrativa às terras do Bierzo mantinha-se em finais do séc. XII42. Aliás, na altura em que João (Soares) de Paiva estava em Villafranca, o tenente dessa vila era o conde D. Armengol VII de Urgell, sobrinho de Pôncio II Geraldo e marido de Dulce de Foix e Barcelona, o que pode constituir uma nova pista para percebermos o conteúdo do sirventês. Com base nesses pressupostos, a profissão poética do Paiva encontrará uma primeira explicação se for inserida no contexto sociocultural em que João Vélaz desenvolveu a sua atividade literária. Numa perspetiva mais concreta, Ora faz’ ost’ o senhor de Navarra, cujo palco é constituído pelos homens e as terras do nordeste da Península, começa a fazer todo o sentido pelos possíveis nexos do seu autor com as linhagens catalãs aqui analisadas.

regis Fernandi, confirmat. Men Braganza, alferiz illius” (AHN, Mosteiro de Oña, maço 275, nº 10 [1156.01.22]), “Vela Guterri maiordomus F. regis [...] Menendo Bragancia alferiz regis Fernandus” (Afonso VII, nº 176 [1156.11.09]). “Uela Goteriz maiordomus regis, confirmat. Menendus Bregacia alferiz ipsius regis, confirmat” (Afonso VII, nº 177 [1156.12.01]). Num documento de 1193.06.29, redigido em Villafranca, Pôncio Vélaz (irmão de João Vélaz) e os irmãos, Pedro e Maria, oferecem ao abade de Carracedo propriedades nas terras bercianas de Corullón (CCarracedo, nº 122). Fernando e Pôncio Vélaz foram tenentes na área do Bierzo no último quartel do séc. XII (1176-1177, 1186, 1195, 1197-1199). Veja-se Fernández-Xesta Vázquez (1991: 69), Salazar Acha (2000: 422), Torres Sevilla (1999: 470-477), Calderón Medina (2011a: 341). 42

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2. A poesia na história As dúvidas que, em alguns pontos concretos, surgem na hora de fixar a leitura daquela cantiga não chegam a comprometer a definição do seu significado geral. Aliás, com exceção do verso nº 6, definitivamente deturpado43, as divergências entre as várias edições só afetam uma parte mínima do texto: Ora faz’ ost’ o senhor de Navarra pois en Proenç’ est el rei de Aragon. Non lh’ an medo de pico nen de marra Tarraçona, pero vezinhos son, nen an medo de lhis põer bozon e ; mais se Deus traj’ o senhor de Monçon, ben mi cuid’ eu que a cunca lhis varra. Se lh’ o bon rei varrê-la escudela que de Pampolona oistes nomear, mal ficara aquest’ outr’ en Todela que al non á [a] que olhos alçar: ca verra i o bon rei sejornar e destruir ata burgo d’ Estela e veredes navarros lazerar e o senhor que os todos caudela. Quand’ el rei sal de Todela estrẽa ele sa ost’ e todo seu poder; ben sofren i de trabalh’ e de pẽa, ca van a furt’ e tornan-s’ en correr, guarda s’el-rei come de bon saber que o non filhe luz en terra alhẽa e onde sal, i s’ ar torn’ a jazer ou jantar ou se non aa cẽa.

43 O conteúdo desse verso tem sido utilizado inclusivamente para estabelecer a cronologia do texto. Assim, Alvar (1986) propõe – com alguma prudência – a data de 1200-1201, ao identificar o hipotético Endurra com a localidade Navarra de Inzurra, que pertenceu a Castela entre 1198 e 1201. A leitura não é segura e o pretenso topônimo poderia ser identificado com outros de estrutura similar.

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João Soares de Paiva pretende denegrir a atitude do rei de Navarra que, aproveitando a deslocação do monarca aragonês à Provença, invadia o reino vizinho. Todavia, a imprecisão com que se alude ao evento e aos seus protagonistas tem impedido a identificação consensual das circunstâncias históricas em que se baseia. A rubrica explicativa que acompanha o texto também não contribui de modo significativo para delimitar esse contexto: “Esta cantiga é de mal dizer e feze-a Joan Soarez de Pavia al-rei Don Sancho de Navarra porque lhi roubar’ en sa terra e non lhi deu el-rei ende dereito”44. Segundo essa narrativa, o patrimônio com que contava João Soares de Paiva fora submetido a saque na sequência das ações bélicas do rei navarro, que se terá negado a recompensá-lo pelas perdas produzidas. A única menção de conteúdo cronológico, referida a um rei Sancho de Navarra – identificado com Sancho “o Forte” –, abrange um âmbito cronológico de quarenta anos (1194-1234). De acordo com a rubrica, o trovador chegou a possuir algum tipo de bens fundiários no antigo reino de Aragão que, como se sabe, integrava Catalunha45. Conclui-se daqui que João Soares de Paiva se encontrava, provavelmente, em Aragão, aquando da ocorrência dos fatos históricos por ele narrados. A cantiga também poderá ter sido elaborada e encenada naquela região, uma vez que a sua codificação supõe, de modo implícito, a recepção por um público daquela proveniência ou pelo menos “familiarizado” com esse antigo reino.

44 Seguimos Lagares (2000: 144), mas preferimos a leitura “roubar’ en sa terra” (ou “roubar[a] en sa terra”) a “roubaron en sa terra”, proposta por esse estudioso. A indubitável presênça do “b” sugere que o (provável) “troubar” do manuscrito deve ser interpretado como uma forma estropiada do verbo “roubar” e não como uma variante “troube” – por “trouve” (‘trouxe’) – do pretérito do antigo verbo trager (analógica do pretérito de “haver”) como supunha (Michaëlis 2004: 300-301). 45 A existência da localidade de Pavía (conc. Talavera, Lleida), no nordeste deste último território, induziu a pensar que ele fosse aragonês – catalão – ou que o antrotopônimo tivera essa origem. Essa hipótese fora perfilhada pela própria Carolina Michaëlis que a abandonou posteriormente: “A terra de Pávia, de onde provinha o seu apelido e da qual era, presumivelmente, dono e senhor, é, pelos vistos, a Paiva portuguesa, e não a Pavía em Aragão, uma vez que territórios junto ao rio Paiva, afluente do rio Douro, estiveram, já muito antes de Ourique, na posse dos seus antepassados, isto é, dos senhores de Riba Douro” (Michaëlis 2004: 307).

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Como dissemos, existe outra tese interpretativa sobre o nó argumental da cantiga que situa a sua origem no contexto riojano de Rodrigo Dias dos Cameros. Miranda (2004: 41), que defende esse posicionamento, analisa a cantiga em dois planos diferentes. No primeiro, com base na rubrica explicativa, faz uma prospeção das intenções subjacentes ao texto, sendo apenas nesse nível que se estabelece a relação com os Cameros: Na realidade, se o Paiva estava junto dos Cameros, seria certamente na qualidade de seu vassalo e, no caso de Calahorra, de subvassalo de Sancho VI, o Sábio, situação que vai plenamente ao encontro do que nos é descrito no fragmento em prosa que acompanha o cantar, onde se diz que o rei de Navarra devassara (?) ou se tinha apoderado (?) de uma sua tença (?) ou terra (?), não o tendo seguidamente indemnizado. Ora, se o Paiva estava associado aos Cameros na empresa de manutenção militar de Calahorra, é provável que possuísse, como forma de retribuição do seu serviço, o rendimento de uma terra ou mesmo um pagamento directo, que pode bem ser aquilo a que o fragmento em prosa alude [...]. Terá Sancho VII aproveitado as dificuldades dos castelhanos com os muçulmanos, que ditaram a derrota de Alarcos, para, em finais de 1195, atacar algumas praças na Rioja, afrontando directamente os interesses dos Cameros? Terá sido neste contexto que o Paiva se indispôs com Sancho VII de Navarra, aguardando a primeira oportunidade para lhe desferir um violento golpe literário? (Miranda 2004: 40-41).

Estamos perante uma argumentação de natureza conjetural, que não se vê referendada pelo texto nem pela própria rubrica, tão pouco por aquilo que sabemos sobre a história política do período. Com efeito, contamos com um diploma pelo qual Rodrigo Dias dos Cameros e a mulher Aldonça Dias vendem ao rei Sancho VII de Navarra propriedades contíguas ao rio Ebro [D.34]. Esse ato documental não deixa transparecer qualquer cenário conflituoso, implícito na proposta do professor portuense; antes pelo contrário, evidencia um ambiente de colaboração entre essas duas instâncias46. Na dimensão exclusivamente textual, Miranda situa os acontecimentos históricos em 1196, supondo que nesse ano concorriam as condições que permitiram ao rei de Navarra o início das suas hostilidades:

É óbvio que, na altura, as alianças políticas podiam mudar em função dos interesses de cada uma das partes, mas essa hipótese não invalida o valor objetivo do dado histórico. 46

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“ao longo de Abril de 1196, Afonso II, o Batalhador, rei de Aragão – só ele pode ser o «bom rei» de que fala o Paiva – enceta uma viagem até ao Sul da França, vindo a falecer em Perpinyà a 25 de Abril desse ano. Para o trovador português era verdade que «en Proenç’ est el rei d’ Aragon», mesmo que não tivesse atingido o seu destino” (Miranda 2004: 42). Pese embora o interessante esforço de pesquisa levado a cabo, não existe nenhum dado que permita validar a essa colocação cronológica. Aliás, como se admite, teríamos que supor a existência de um erro na informação que João Soares de Paiva fornece sobre o local onde se achava o rei, falecido em Perpinyà (capital da região, outrora, catalã do Rossilhão) antes de chegar à Provença. Lembremos que o interesse de Aragão pelos territórios do Languedoc caraterizou os reinados de Afonso II (1162-1196) e de Pedro II (1196-1213)47. O primeiro foi marquês de Provença, desde 1166, facto que favoreceu as estadias nessa região, onde o encontramos, por exemplo, nos três anos anteriores à sua morte. Essa orientação continuou com o sucessor até que em 1213, com a derrota e morte de Pedro II em Muret (Provença), a coroa catalano-aragonesa veio a ser expulsa dos seus domínios occitânicos pela política expansionista da França capeta aliada aos interesses terreais do papado48. Não é intuito deste trabalho, nas páginas que se seguem, avançar uma nova colocação histórica para a cantiga, já que não contamos com elementos para a situar, com alguma segurança, num momento cronológico concreto. Pretendemos apenas tecer algumas considerações sobre aspetos que não foram suficientemente ponderados de modo a definir o substrato referencial que deu origem ao texto. Trata-se de sugestões interpretativas que não pretendem convergir numa conclusão única. O ponto de partida será a alusão ao “senhor de Monçon” (v. 7), cuja intervenção providencial suporia a derrota do rei de Navarra. Vários estudiosos viram nessa referência

47 O marquesado de Provença foi regido, entre 1196 e 1209, por Afonso II de Provença, filho segundo de Afonso II de Aragão. 48 Por outro lado, os pactos de Aragão com Leão ou com Castela contra o rei de Navarra, em 1162 (Alfonso II, nº 4) e 1179 (Alfonso II, nº 280) ou, pelo contrário, entre Aragão e Navarra contra Castela, em 1190 (Alfonso II, nº 520) e 1191 (Alfonso II, nº 537), são dificilmente interpretáveis como indício para decifrar a datação do texto.

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uma menção (indireta) a Pedro II (Michaëlis) ou a Jaime o Conquistador (Lollis e Lang), porém, López Aydillo (1923: 40) pergunta-se: “si el señor de Monzón era don Jaime, allí encerrado con su primo el Conde de Provenza, Ramon Berenguer, ¿quien era el rey de Aragón que estaba en Provenza?”49. Da nossa perspetiva, não há motivos para pensar que o “senhor de Monçon” não deva ser identificado com quem ostentava o senhorio dessa praça aragonesa (cf. infra). Ora, admitindo, como parece, que essa alusão específica e de conteúdo encomiástico conte com alguma pertinência para estabelecer o sentido do texto, podemo-nos perguntar se existiu algum tipo de nexo entre o senhor de Monzón e o próprio João Soares de Paiva, à luz da possível relação entre este último e os Cabreras. Sabemos que Monzón está precisamente no extremo de uma área geográfica dominada, naquele período, pelos Cabreras. Estes tinham numerosas fortalezas próprias na zona que vai do rio Cinca até ao Noguera; isto é, uma espécie de “península catalã” no reino aragonês, resultado das conquistas do seu antepassado Arnau Mir de Tost, senhor de Àger, bem como dos seus descendentes Cabreras. Muitas conquistas foram próprias, outras como feudatários dos condes de Barcelona ou ainda na qualidade de súditos dos condes de Urgell50. Também foram feudatários de Aragão, chegando a ser tenentes e subtenentes da cidade de Huesca. Alguns dos seus castelos nessa zona foram: Pilzán, Purroy, Estopiñán, Baélls, Falces etc. Trata-se de um espaço limitado, no norte, pela linha de Benabarre na direção de Catalunha e do Cinca; no sul, pela comarca da Litera (Monzón, S. Esteban, Tamarite); no leste, pelas suas próprias posses urgelitanas (Balaguer, Os de Balaguer, Àger, Castillonrroy, Castelló de Farfanya, etc.); e, no oeste, por Peralta de la Sal, Calasanz, Azanúy, Estada, Estadilla, etc (Vázquez-Xesta 2001: 13). Será que as propriedades de João Soares devastadas pelas incursões do rei navarro se situavam nesse

49 De acordo com o estabelecido por Pedro II de Aragão, o seu sobrinho Raimundo Berenguer, órfão e herdeiro do condado de Provença, fora transferido para o castelo de Monzón (em mãos templárias desde a primeira metade do séc. XII). Esse mesmo castelo acolheu, durante a minoridade, D. Jaime I (Montpellier, 1208 – Valência, 1276), que só contava cinco anos quando morreu o pai, Pedro II, em 1213.

Os Cabreras eram viscondes de Girona (cujo conde era o próprio de Barcelona) e, ao mesmo tempo, viscondes do Baixo-Urgell (Àger). 50

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território aragonês imediato de Monzón? Era o próprio Paiva feudatário ou súdito do senhor de Monzón cuja intervenção se anseia51? O rei aragonês Raimundo Berengário IV, em novembro do ano 1143, dera o castelo de Monzón com todos os bens e direitos à Ordem do Templo, prolongando-se a presença dessa milícia na cidade aragonesa até à sua extinção em inícios do séc. XIV52. Portanto, o senhor de Monzón, citado de modo encomiástico na cantiga, poderia ser identificado com o mestre do Templo que governava Monzón na altura. Ora, num passo dos Livros de Linhagens (cf. supra), João Soares aparece qualificado como “freire”, quer dizer, membro de uma das milícias entre as quais se encontram os Templários. Miranda (1997: 11), sem estabelecer qualquer relação com o conteúdo da cantiga, chegou a dar por válida a informação dessa fonte: “João Soares foi membro de uma das ordens militares existentes na altura em Portugal, ou seja Templários e Hospitalários”. O professor portuense abandonou, posteriormente, essa hipótese: “é provável que o aposto «freire», que o Livro do Deão coloca à frente do nome de João Soares, se refira à personagem que virá a casar com Maria Anes de Riba de Vizela e não ao trovador” (Miranda 2004: 21, n. 22). No entanto, há motivos para pensar que João Soares de Paiva pôde ter formado parte das fileiras templárias (ou de outra ordem similar), porventura numa fase etária adiantada53. Na conhecida composição de Peire d’ Alvernha (1149-1168) Cantarai d’ aqestz trobadors, aparece citado um Peire de Monzó, trovador de que não conservamos outras referências e cuja obra nos é desconhecida. A alusão toponímica leva-nos ao Monzón aragonês de que falamos. Menéndez Pidal (1991: 164) sugeriu a identificação do topônimo com Monzón de Campos (Palência): “Peire era muy probablemente castellano, de Monzón de Campos, ya que parece ir en la comitiva de la que va a ser reina de Castilla, pero también pudiera ser del Monzón aragonés de Huesca”. Porém, o relacionamento dessa personagem com o conde de Tolosa, referido no texto poético (“Ab Peire de Monzo so set, / pos lo coms de Tolosa·l det, / chantan, un sonet avinen [...]”), leva a pensar que se trata de um trobador de origem aragonesa, mas de língua provençal, como supõe Riquer (1950: 10-11). Este mesmo investigador (Riquer 1983: 332-333) pondera a possibilidade de essa composição ter sido produzida em Puigverd d’ Agramunt, portanto na área do Baixo-Urgell. 51

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Sobre a presença do Templo nessa cidade, veja-se Oliveros de Castro (1964: 157-181).

Nesse aspeto, a sua biografia poderia ter coincidido com a de Geraldo IV Ponce de Cabrera (1194-1228), visconde de Cabrera e Àger e conde de Urgell (cf. supra). Esta personagem, chefe da linhagem dos Cabreras entre os últimos anos do séc. XII e primeiro terço do seguinte, decidiu retirar-se em 1226-1228, já numa idade provecta, como templário 53

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A Ordem do Templo exerceu um grande influxo em Aragão durante os reinados de Afonso I e Afonso II que lhe outorgaram um enorme patrimônio e poder senhorial54. Por outro lado, talvez convenha lembrar que essa milícia, a partir de 1196, irá incorporar a de Monte Gáudio (cf. infra). Esta última, fundada em 1172 pelo conde galego Rodrigo Álvares {Vélaz & Trava} – parente de João Vélaz – (cf. infra), estabeleceu-se em Aragão da mão do seu fundador a partir de 1174 e foi favorecida por Afonso II55. Se João Soares chegou a ser “freire”, não podemos descartar a sua pertença ou passagem prévia por esta última instituição que esteve, provavelmente, filiada ao Mosteiro de Moreruela. Essa possível integração em alguma das ordens militares implicadas na reconquista da Terra Santa56 teria um reflexo no plano literário. Segundo notou C. Alvar (1986: 11-1257), a estrutura métrica de Ora faz’ ost’

ao castelo de Gardeny (conc. Lleida) “repartiendo sus títulos y honores entre sus hijos” (Férnandez-Xesta 1991: 67). 54 O próprio Afonso I de Aragão cedeu o seu reino às ordens miltares do Templo, do Hospital e do Santo Sepulcro (Oliveros de Castro 1964: 158, Ledesma Rubio 31-32, Barquero Goñi 2003: 14).

Rodrigo Álvares foi sepultado no convento dessa ordem em Alfambra (Teruel). A mais antiga doação de Afonso II ao conde Rodrigo Álvares produziu-se na localidade navarra de Milagro, em julho de 1174, no dia em que o rei de Aragão tomou essa vila: “Ego Ildefonsus [...] Domino Deo et vobis comiti Rodrico [...] dono vobis Alhambra [Alfambra] [...]. Facta carta in Navarra apud ipsum Miracle, in illa die quando iam dictus dominus Ildefonsus, rex Aragonensis, ipsum castrum et villam de Miracle, cepit et destrucit” (Alfonso II, nº 173). 55

Note-se a informação oferecida por Blázquez Jiménez (1917: 147) sobre a Ordem de Monte Gáudio a partir da Historia de las Órdenes de Caballeria españolas de Íñigo (Madrid: 1863): “Después que Godofredo de Bullón conquistó la Tierra Santa, se formó una Orden militar cuyo principal propósito fué la defensa de los Santos Lugares y la protección de los peregrinos. Llamóse primeramente de Monjoya ó Monte Joya, cuyo nombre tomó del lugar de Palestina, donde primero tuvieron asiento”. Ao que parece, a presença da Ordem na Terra Santa foi efêmera (Carmona Ruiz 2001). 56

57 “Conon de Béthune fue uno de los primeros imitadores franceses de las técnicas y de los temas trovadorescos, pero no se limitó a la aclimatación de los mismos en el norte de Francia, sino que les dio nueva vida, al elevarse muy por encima de la inspiración de los trouvères. Dos de las diez composiciones que le atribuyen los manuscritos son canciones de cruzada, escritas hacia 1189, con motivo de la Tercera Cruzada, en la que tomó parte; la más famosa de ambas es, sin lugar a dudas, Ahi! Amors, com dure departie [...]. Creo que es un hecho realmente importante el que la estructura métrica de Ahi! Amors, com dure departie sea exacta a la de la sátira política de Johan Soárez de Pavha. No tendría nada de

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o senhor de Navarra é idêntica à de Ahi! Amors, com dure departie, “canção de cruzada” composta por Conon de Béthune c. 1189 (antes de 1191) com motivo da Terceira Cruzada. Essa empresa militar, em alguma das suas fases, pode ter constituído a ocasião em que João Soares tomou contacto com o texto deste trouvère (cf. infra). Não deixa de ser significativo que, como veremos, um contexto similar esteja por trás da origem de Eras can vei verdejar (composição que tem como um dos seus veículos linguísticos o galego-português) de Raimbaut de Vaqueiras, trovador cujos elos de ligação com Conon de Béthune são bem conhecidos (cf. infra)58. O conteúdo da cantiga e os dados previamente coligidos, sobre as perspetivas possíveis da biografia do autor, não deixam – parafraseando J. C. Miranda – outra alternativa credível à hipótese de relacionar João Soares de Paiva com os Cabreras-Vélaz. Aliás, só num meio como esse, vinculado ao trovadorismo occitânico e luso-galaico mas ainda inserido no contexto político catalano-aragonês, é que a cantiga em foco vem a fazer todo o sentido. Ao mesmo tempo, de uma perspetiva mais concreta, as conexões com esse ambiente familiar poderiam estar na origem da alegada participação do Paiva em alguma das ordens militares que vigoraram durante a segunda metade do séc. XII.

extraño que el primer poeta gallego-portugués de nombre conocido se inspirara e imitara la melodia de la canción de cruzada, compuesta antes de 1191. La relación entre las poesías de ambos autores puede abrir nuevos horizontes para comprender los vínculos que unen las distintas manifestaciones de la lírica cortés en el occidente europeo”. 58 Na proximidade entre João Soares e Bertrand de Born, pela comum “afeição pelo ambiente bélico” (Miranda 2004: 33), poderia também estar envolvido Conon de Béthune, amigo de Bertrand e a quem este último dava o senhal de Mon Isembart. Veja-se Riquer (1983: 685), que toma como base um estudo monográfico de Hoepffner (1946) intitulado Un ami de Bertran de Born: Mon Isembart.

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CAPÍTULO III OSÓRIO EANES LIMAS & TRAVAS

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Osório Eanes doa propriedades ao Cabido da Sé de Santiago [D.29]

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1. O trovador Osório Eanes e a personagem histórica Foi opinião comum reconhecer o trovador galego-português Osório Eanes na figura histórica do cônego compostelano Osório Eanes Marinho, apesar de os cancioneiros não registrarem o apelido linhagístico nem a condição clerical. A conjetura partiu de Antonio López Ferreiro (1905: 372-373) – também cônego e arquivista da Sé de Santiago – que notava a existência de três poetas entre os filhos de João Froiaz Marinho: Otros caballeros tomaron también parte activa en este movimiento poético y trovadoresco. La cantiga 523 del Cancioneiro de la Vaticana, está atribuída á Pero Ans Marinho, hijo de Joham Frojaz de Valadares. Don Juan Fróilaz Mariño, señor de Valladares y otras tierras cerca de Noya, era muy conocido en Santiago. Hizo testamento en el año 1220 y mandó sepultarse en el cementerio de San Pelayo de Antealtares. Esta familia, rica en leyendas, fué también rica en trovadores. Además de Pedro Eans, que fué primogénito de D. Juan, otro su hijo, Martin Eans Mariño, figura como autor de las trovas 1154 y 1155 del Cancioneiro de la Vaticana. En el Cancioneiro de Brancuti suena un Osoyranes (Osorio Ans ó Eans), que indudablemente es el hijo de D. Juan Fróilaz, que llevaba ese nombre. Fue canónigo de Santiago, y como resulta de su testamento, otorgado en 1236, estuvo en Paris con un Domingo Fernández, a quien por esta razón deja una manda.

A autoridade de López Ferreiro será o (único) argumento utilizado algum tempo mais tarde por Cotarelo Valledor1 para contestar uma opinião divergente de Carolina Michaëlis. Com efeito, a investigadora alemã indigitara um membro dos “Condes de Cabreira”2 como tendo sido o poeta homônimo: Conheço um unico, tronco dos Condes de Cabreira, cuja filha, D. Sancha Osoires, casou com um descendente de Egas Moniz, chamado Pero Garcia, o Braganção.

“Osorius Ioannis de los documentos, Osoyranes del Cancioneiro CB. Quiere doña Carolina identificarlo con cierto Osorio Eannes, tronco de los condes de Cabreira, guiándose solamente por el nombre. «Si realmente se tratase de este hidalgo –dice– debiamos colocar su actividad cerca de 1200, en el reinado de Sancho el Viejo». Pero, como ya advirtió López Ferreiro, es el hijo de Juan Fróilaz que llevaba ese nombre. Don Osorio Eans Mariño, acaso el más joven de los varones, fué destinado a la iglesia y siguió sus estudios en París, en compañía de un tal Domingo Fernández, ayo o criado suyo. En Francia debía de hallarse en 1220, pues es el único de los ocho hermanos cuya firma no aparece en el testamento de su padre … Regresando a España, fué canónigo de Compostela y murió en Santiago, al parecer prematuramente, en 1236” (Cotarelo Valledor 1933: 17).

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Não se trata, obviamente, da linhagem catalã aqui estudada.

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Se realmente se tratasse d’ este fidalgo, deviamos collocar a sua actividade perto de 1200, no reinado de Sancho, o Velho, visto que a sua bisneta Aldonça Annes, favorita de Affonso III, casou com o filho do poeta Vasco Gil: Gil Vasques de Soverosa, o Moço, o qual morreu no combate de Gouveia no anno de 1277 (Michaëlis 1904: 526).

Porém, D.ª Carolina abdicou daquela opinião, vindo a perfilhar – talvez com algum ceticismo – o ponto de vista do arquivista compostelano: “Osoir’ Eannes [...] pertence apparentemente á familia dos Marinhos [...]. Irmão de Pedr’ Eannes e de Martim Eannes, é mencionado em 1220 no testamento do pae, Johan Frojaz. Senhor de Valladares e outras terras perto de Noya” (Michaëlis 1904: 582)3. A partir deste momento, a proposta parece ter sido consensual nos estudos dedicados a Osório Eanes, que só esporadicamente mencionaram a primeira das hipóteses de C. Michaëlis. O fato de esse indivíduo ter sido considerado irmão de outros dois agentes do movimento trovadoresco e a sua estadia em Paris, referida no testamento do cônego, foram elementos que contribuíram para a unanimidade crítica a esse respeito. A própria Carolina Michaëlis (1904: 584) chegou a ponderar as consequências literárias da viagem à capital da França: “Osoir’ Eannes estudára em Paris [...]. Ja não me admira da illustração e do bom gosto que distingue os seus versos de amor”4. Alguns estudiosos notaram a existência de um indivíduo que assumiu a tenência de Búval entre finais do séc. XII e primeiros anos do XIII. No entanto, essa identificação foi posta de parte perante a impossibilidade de reconhecer o cônego compostelano na figura do tenente: “Não deverá ser o mesmo Osoiro Anes que aparece como tenente do castelo de Búbal entre 1193 e 1204” (Oliveira 1994: 398). Yara F. Vieira (1999: 146), muito embora tenha apostado na suposição tradicional, chegou a gizar de modo sintético algumas caraterísticas desse outro Osório Eanes: Um documento informa-nos da existência de outro indivíduo do mesmo nome, dessa feita um cavaleiro e, o que tem o seu interesse, um parente de D. Rodrigo Gomes: trata-se de um filho de João Airas, que criou o futuro Afonso IX,

Em nota de rodapé apensa ao advérbio “aparentemente” – por ela utilizado – aponta: “Indubitavelmente, segundo Lopez Ferreiro”.

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Veja-se Souto Cabo – Vieira (2003).

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e Urraca Fernandes de Trava, a filha de Fernando Peres; ou seja, um primo do pai de Rodrigo. A data do documento é de 1217. Uma informação importante também é a menção de uma casa que este Osoir’ Eanes possuía na Praça do Campo (a atual Praça de Cervantes de Santiago de Compostela), a qual tinha sido do conde Dom Froila, ou seja, do pai de Pedro Froilaz de Trava5.

Pelo contrário, em tempos recentes, Monteagudo (2008) veio postular a identificação do trovador em foco com esse filho de João Airas de Nóvoa e de Urraca Fernandes de Trava (cf. infra)6, opção compartilhada pelo autor deste trabalho (Souto Cabo 2011a). Antes de abordarmos especificamente a figura histórica do poeta, cumpre equacionar alguns dos motivos que nos levam a optar pela candidatura do cavaleiro e não pelo cônego. Desde logo, o assunto principal tem a ver, logicamente, com a questão da compatibilidade biográfica, sobretudo do ponto de vista cronológico, entre o trovador e a figura de Osório Eanes Marinho. Cotarelo Valledor, no artigo acima citado, editou o testamento do cônego compostelano. Uma gralha no numeral da data fez com que tenham sobrevivido até à atualidade algumas dúvidas concernentes ao ano em que foi lavrado esse escrito: 1236 ou 1246. Ora, conquanto a última data tenha sido reproduzida em alguns trabalhos7, não existem incertezas em torno desse aspeto. No original dessa escritura lemos: “Sub Era Mª. CCLXXIIIIª” – ano 1236 – (Tombo C, fól. 346r)8. Cotarelo Valledor, por lapso, cometeu

A identificação da escritura deve-se a Barreiro Somoza (1987: 412): “Este es el caso, por ejemplo, del resto de los hijos de Juan Arias y Teresa (sic) Fernández. Uno de éstos, Osorio Eanes, nos especifica su filiación en la donación que efectúa a la mesa capitular de la mitad de la casa que poseía en la Plaza del Campo (Compostela) y que había sido del conde don Froila […]”.

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Monteagudo não se refere à hipótese alternativa de Vieira, o que o impediu de conhecer essa escritura de 1217, a única de que Osório Eanes de Nóvoa é titular [D.29].

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Veja-se Oliveira (1994: 398) e Monteagudo (2008: 363). O professor compostelano faz constar o seguinte: “López Ferreiro e tras el Cotarelo datan o testamento en 1236. Porén, no texto que nos oferece Cotarelo lese «Era Mª CCLXXXIIIj», que dá o ano de 1246. Esta última compadécese mellor cos rexistros de Osorio Eanes [Marinho] no tombo de Toxosoutos que a seguir citaremos, e coa información que dá García Oro (1981:373), segundo o cal en 1239 era tenente de Lama Mala (Oia) un tal Petro Peirin, de manu Osorio Johannis canonico Sancti Jacobi”.

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A datação condiz com a atividade do autor material desse texto, Martim Eanes, notário que documentamos entre 1215 e 1238. Veja-se Pérez Rodríguez (2004: 867).

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um erro na transcrição do numeral romano, mas não na datação que atribuiu ao texto no cabeçalho do mesmo, onde aparece a correta de 1236. Relativamente ao significado desse diploma na definição do percurso de vida do cônego, vários estudiosos perceberam a redação do mesmo como sinal de uma morte imediata9. O próprio Monteagudo (2008: 388), partindo da data (inexata) para esse texto, aponta: “sabemos de certo que finou c. 1246”. Uma hipótese similar provocou as seguintes palavras de Vieira (1999: 145): “A data de 1236 [...] cria-nos um problema, quando a confrontamos com a de outro documento do Mosteiro de Oia, em que o mesmo indivíduo [...] é mencionado como tenente de Lama Mala, em 1239”10. Contudo, visto que essa escritura não abre com qualquer declaração relativa a um falecimento próximo, suspeitamos que essa circunstância não esteve na base da sua elaboração11. Seja como for, um diploma de 23 de março de 1243, sobre o escambo de bens entre Osório Eanes Marinho e o Mosteiro de Tojos Outos, confirma que ele continuava vivo na década de quarenta e com um horizonte de vida ainda prolongado (Toxos Outos, nº 689). Do que ficou dito, pressentimos que o percurso biográfico do religioso terá atingido – e ocupado em parte – o terceiro quartel do séc. XIII12.

Cotarelo Valledor supunha, inclusivamente, tratar-se de uma morte prematura (cf. supra).

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Oliveira também (1994: 398) liga a composição do testamento à proximidade da morte: “Deve ter morrido em 1246, data do seu testamento”. 10

Um desacerto na transcrição de um topônimo presente nessa manda testamentária chegou a induzir conclusões inexatas sobre as relações literárias do cônego (considerado o poeta homônimo). Assim, Miranda (2004: 123) com base, entre outros dados, na forma “Dormãa” estampada por Cotarelo em lugar do correto “Torinaa” (atualmente Tourinhám, conc. Muxia), chegava a refutar a proposta cronológica de Martínez Pereiro (1992) acerca de Fernão Pais de Talamancos: “Infelizmente, o editor equivoca-se inexplicavelmente sobre a cronologia do trovador, colocando-o no final do séc. XIII. Pelas referências que na sua obra se fazem a Dormãa (B 1337/ V 944) – terra mencionada no testamento de Osoir’ Anes Marinho – e uma Marinha (B 78), que tanto pode ser nome de mulher como topónimo – mas lembremos que uma irmã de Osoir’ Anes se chamava Marinha Anes...-, a ligação de Talamancos ao nosso trovador parece inevitável”. Veja-se Souto Cabo ([no prelo/1]).

11

12 É isso que também cabe deduzir do casamento de um dos irmãos, Gonçalo Eanes Marinho, em 1243 (Tombo C, fól. 138). Veja-se López Ferreiro (1902: 372) e Oliveira (1994: 398). Esse irmão também é citado numa escritura de 1245 (ACS, Tombo C, fól. 199). Pelo contrário, consideramos duvidosa a identificação do irmão com um indivíduo homônimo documentado em Lugo no ano 1207 (Risco 1798: 351, 353), provavelmente “o vice-chan-

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Essa colocação temporal não se coaduna facilmente com a integração do poeta homônimo no primeiro grupo da secção dos cancioneiros a que se atribui a cronologia mais recuada13. A presença de Osório Eanes (Marinho) nessa camada concreta da tradição estaria a representar uma inconformidade com o seu contexto autoral, não só quanto ao período em que se situa a atividade dos poetas que o acompanham, mas ainda a respeito doutros autores situados em posições menos altas14. Também não parece condizer com algumas das caraterísticas da sua produção poética: “cremos que a sua obra tem fortes probabilidades de remontar ao ambiente leonês da década de 1210 a 1220, o que explicaria não apenas a sua colocação nos cancioneiros mas também o conhecimento íntimo que revela quer dos primeiros trovadores em galego-português, quer de alguns textos provençais” (Miranda 2003: 118). Ainda no concernente à falta de correspondência entre o poeta e a figura histórica do cônego, não podemos deixar de notar a ausência do apelido linhagístico “Marinho”. Essa situação contrasta com a abundante aplicação desse (famoso) sobrenome aos membros da estirpe na documentação notarial15. De fato, esse uso é já sistemático no caso do pai do capitular, para o qual identificamos duas fórmulas “Johannes Marinus” ou “Johanes Froyle dicto Marino”16. Tal prática reflete-se na denominação dos (outros dois) representantes poéticos dessa família: Martim Eanes Marinho e Pedro Eanes Marinho.

celer e vice-mordomo régio sub manu D. Álvaro Nunes de Lara” em 1217-1218 (Miranda 2004: 99). Por outro lado, talvez fosse necessário explicar o motivo pelo qual não foi integrado na “compilação de clérigos”, agrupamento formado – quase exclusivamente – por membros do Cabido de Santiago da segunda metade do séc. XIII. 13

Esse pode ser o caso, entre outros, de Pedro Garcia de Ambroa (1203-1235), Fernando Pais de Tamalhancos (1196-1242) ou mesmo de Airas Fernandes “Carpancho” (1230). Veja-se Oliveira (1994), Souto Cabo – Vieira (2003), Souto Cabo (2006, [no prelo/1]), Monteagudo (2008). 14

15 “E estes Marinhos partirom-se per muitas partes, por casamentos de filhos que casarom em Galiza, com outras, de que decenderom muitos que chamarom Marinhos” (LC 73A5). 16

Toxos Outos nº 17, 18, 24, 47, 48, 49, 358, 508, 596, 645, 650 [1173-1222].

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À luz da alegada pertença do poeta a essa família, Miranda (2003) sugeriu um novo sentido para a cantiga Cuidei eu de meu coraçon, na linha do relato lendário que descreve a origem dos Marinhos em LC (73A1-2). Como é sabido, essa origem é atribuída ao casamento de D. Froião com uma mulher marinha, ou seja, uma sereia, posteriormente denominada “Dona Marinha”. O professor portuense julga que a imagem do “irresistível e mortífero canto da sereia” seria a chave interpretativa para a cena descrita nesse texto: E pois me assi desemparar ũa senhor foi des enton, e cuid’ eu ben per ren que non podesse mais outra cobrar, mais forçaron-mi os olhos meus e o bon parecer dos seus e o seu preç’ e un cantar, que lh’oí, u a vi estar, en cabelos dizend’ un son. Mal dia non morri enton ante que tal coita levar qual levo, que nunca vi maior, qual levo ond’estou a pavor de mort[e] ou de lho mostrar. (vv. 8-21)

Apesar de atraente, nada assevera essa proposta, até porque falta o elemento marítimo, imprescindível ao aparecimento da sereia. Por outro lado, parece anacrônico supor que a lenda – divulgada a partir de meados do séc. XIV – se pudesse encontrar definida (e difundida) na primeira metade do séc. XIII, quando a existência “real” de alguns dos seus protagonistas mantinha uma notável atualidade. Não esqueçamos que o episódio lendário não se situa em tempos remotos: D. Froião e D.ª Marinha, a sereia da história, foram avós de Osório Eanes Marinho. Aliás, o próprio Miranda (2004: 113) tem de reconhecer que se trataria de um exemplo “muito precoce de ocorrência da fada em âmbito galego-português, e até ibérico”. Na linha do que aqui foi dito, é claro que, além da homonímia (parcial) entre o poeta e o cônego, não existem razões objetivas para propugnarmos a identificação entre eles. Pelo contrário, o cavaleiro Osório Eanes

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de Nóvoa reúne as melhores “habilitações” para vermos nele o trovador em causa. Com efeito, pelos vínculos familiares e sociais, essa figura histórica constitui o vértice em que converge a totalidade dos poetas de cronologia mais recuada. Nesse conjunto, cumpre notar um predomínio de trovadores radicados na região compreendida, grosso modo, entre os rios Ávia, Minho e Asma, confluência que não terá sido alheia à localização dos Nóvoas (cf. infra). Esse ramo dos Limas, para além doutras conexões, aparece associado àquele espaço geográfico, repartido entre os antigos distritos de S. Martinho, Nóvoa, Castela e Búval, terras situadas na margem setentrional do Minho.

2. Genealógica Os Oares de Bóveda Nos primeiros anos do séc. XIII, o Mosteiro de Bóveda (conc. Amoeiro) era regido por Urraca Eanes, uma irmã de Osório Eanes [D.27]. Esse cenóbio, consoante o que se determina explicitamente no diploma da sua refundação, escolhia a abadessa, de preferência, entre os membros da linhagem instituidora17, seguindo a prática habitual na Idade Média. D.ª Urraca, através da avó paterna (cf. infra), pertenceu à linhagem que fundara esse mosteiro. É pela análise desse grupo familiar, aqui nomeado – por motivos práticos – como “Bóveda” (ou “Oares de Bóveda”), que abrimos a aproximação à biografia de Osório Eanes. Apesar de existirem algumas dúvidas sobre a natureza da escritura de reinstituição de Bóveda, o contexto diplomático parece assegurar a veracidade geral dos seus dados, mesmo que se admita a existência de interpolações ou adulterações interesseiras na cópia do séc. XVII que no-la transmitiu (Bóveda, nº 2)18. A carta reflete a renovação e dotação do cenóbio

“abatissa uero, si inuenta fuerit idonea, cum consilio episcopi de genere nostro eligatur, sin autem, undecumque fuerit inuenta idonea, ipsa statuatur” (Bóveda, nº 2). 17

O documento em foco exibe a data de 968, mas García Álvarez (1975: 111-114) situa-o em 1168. Duro Peña (1977: 121) mantém algumas reservas sobre a cronologia e o conteúdo: “sospecho que es interpolado el documento fundacional, al que no me atrevo a señalar fecha”. Os dois escritos mais antigos do núcleo documental de Bóveda, conservados apenas em cópias do séc. XVI, poderão ter sido adulterados pelos Boáns, o que supõe um grave empecilho para validar a informação contida neles. 18

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por parte de Airas Fernandes, a mulher, Godinha Oares, e os filhos: Oeiro, Fernando, João, Marina, Vestrava e Azenda Arias19. O precedente histórico para esse ato documental encontra-se num diploma pelo qual a rainha D.ª Urraca delimitava a favor de Oeiro Ordonhes – pai de Godinha Oares – o couto do mosteiro em 1121 (Bóveda, nº 2)20. Entre os antecedentes de Osório Eanes até agora citados, a figura de cronologia mais remota é, portanto, Oeiro Ordonhes (1098-1150), bisavô do nosso trovador. Trata-se de uma personagem documentada durante a primeira metade do séc. XII, sobretudo, em diplomas da rainha Urraca21. Ele foi um dos líderes da coligação senhorial constituída após a proclamação de Afonso VII (como rei da Galiza) ao lado de Pedro Airas, senhor de Deza, Airas Peres22 (filho do anterior), Pedro Gudesteiz, João Dias (cf. infra), o juiz de Santiago Paio Gudesteiz e Fernando Sanches. Oeiro Ordonhes surge junto da rainha Urraca nos conflitos desta com Gelmires e com o próprio filho (López Ferreiro 1901: 34), podendo ser interpretado o privilégio do couto de 1121 (Bóveda, nº 1) como uma recompensa por tal aliança. D. Oeiro é ainda mencionado no diploma de 1137 pelo qual os habitantes da área circundante ao local em que seria levantado o Mosteiro de Osseira autorizavam a fundação do mesmo (cf. infra)23. A derradeira presença documental situa-se em 1150.05.25 (Barton 1997: 312-313) quando 19 “Ego servus servorum et ancillarum Dei Arias Fernandi et uxor mea Gudina Oduariz et filii et filie nostre, vidilicet, Oduarius Arie, Fernandus Arie, Iohannes Arie, Marina Arie, Vestrava Arie et Azenda Arie”. 20 “Ego Urracha [...] una cum filio meo rege Alfonso [...] facimus ambos cartam kariterii et cautionis vobis Oduario Ordonii uxorique vestra Haldera Petri vocique vestre, super illud monasterium de Bobeda, in honore sancti Michaelis archangeli constructum et super illam vestram hereditatem Tonderey vocitatam [...] quam incautionem predictis hereditatibus vestris incommutabiliter imponimus propter servitium vestrum et fidelitatem que nobis exhibuistis abundanter”. Neste caso, Duro Peña (1977: 121) aponta: “acepto con el [García Álvarez] la factura irreprochable del privilegio de doña Urraca de 1121, pero tengo mis reparos, más que nada por la forma de transmisión”.

Nesse núcleo diplomático, aparece entre 1098 (Urraca, nº 5) e 1123 (Urraca, nº 57). Posteriormente, só reaparece em 1150 numa escritura do Mosteiro de Meira (AHN, 1126, nº 4) (cf. infra). 21

22 Airas Peres é uma personagem recorrente na História Compostelana. Ele esteve casado com Aldara Peres, filha de Pedro Froiaz de Trava (HC III, 2).

No conjunto de confirmantes, comparece um Diogo Ordonhes, que identificamos com um dos irmãos de D. Oeiro (Oseira, nº 15). 23

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dava uma herdade em Carvalhedo (prov. Lugo) ao conde Álvaro Rodrigues {Vélaz}24 e à mulher, a infanta Sancha Fernandes de Trava (tia de Osório Eanes) (cf. supra), pelo auxílio que lhe prestaram na libertação do cunhado, Pedro Tinha, encarcerado por homicídio. O escrito, junto com as conexões sociais que revela, interessa pelos dados relativos à localização espacial da figura de Oeiro Ordonhes e por fornecer informação sobre alguns elementos do seu grupo familiar. No respeitante ao primeiro aspeto, notemos que a propriedade oferecida assenta no atual concelho lucense de Pol, a 10 km do Mosteiro de Meira (instituição muito vinculada aos Vélaz). Por outro lado, vimos a conhecer o nome da mãe, D.ª Elvira Pais, e das irmãs, Gontrode, Urraca e Azenda Ordonhes. Segundo a informação da carta de 1121, Oeiro Ordonhes esteve casado com uma Aldara Peres, que poderá ser uma irmã de Airas Peres e não a filha homônima do Pedro Froiaz25. A identificação precisa dos filhos de Aldara e Oeiro apresenta algumas dificuldades pois não contamos com escrituras que tenham transmitido explicitamente esse tipo de informação. Porém, o testamento de Fernando Oares – um dos filhos – e a documentação permitem reconstruir, em parte, a estrutura desse grupo familiar. Assim, aos nomes de Goina Oares de Orrea e Fiel Oares, referidos nessa manda testamentária, acrescentamos os de Airas e Geraldo Oares registrados, em 1123, entre os confirmantes de um documento da rainha Urraca em que surgem, com a mesma função, Oeiro Ordonhes e Airas Peres (Urraca, nº 57)26. Podemos enumerar neste momento seis filhos de Oeiro Ordonhes: Fiel, Airas, Geraldo, Fernando, Goina e Godinha Oares27. A presença na

24 Filho do conde Rodrigo Vélaz e de Urraca Álvares (Salazar Acha 1985: 54-55, Barton 1997: 230). 25 Veja-se García Álvarez (1975: 116-117). Pelo contrário, Vázquez-Monxardin Fernández (1995: 79) considera que “posiblemente fose da familia dos Traba, tal vez filla de Pedro Froilaz”. Ao que parece, D.ª Aldara ingressou no Mosteiro de Bóveda mesmo antes da morte do marido, já que Vela Guterres – pai de João Vélaz – lhe encomendou a fundação do mosteiro beneditino de Nogales (Leão) em 1150 (cf. supra). 26 Geraldo Oares surge no diploma de 1137 acima referido (Oseira, nº 14). Airas Oares também confirma uma carta de Fernando II em 1127 (Tombo B, nº 223).

Não sabemos se os dois últimos nomes correspondem, na verdade, a uma mesma personagem. A forma “Goina” também poderia ser interpretada como “Goma”. 27

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área ou em contextos diplomáticos coincidentes de indivíduos com esse mesmo patronímico aponta para um número mais elevado de irmãos28.

Fernandus Oduariz A trajetória de Fernando Oares de Bóveda (1135-1169), o filho mais bem conhecido de Oeiro Ordonhes, pode ser seguida desde 1135 (Afonso VII, nº 61) até ao dia da sua morte em 25 de julho de 1169 (Fernández Fernández 2005: 28, 124). O seu testamento [D.8]29 e outras aparições diplomáticas testemunham a ligação de D. Fernando ao cenóbio citado e às terras de Búval. Ele próprio foi tenente desse distrito medieval (Oseira, nº 35 [1158]) e, previamente, do de Aguiar (Rochas, nº 5 [1153]30). Várias cartas régias demonstram que a proximidade de Fernando Oares relativamente ao poder régio ultrapassou o exercício dessas funções político-administrativas31. Assim, sabemos que Afonso VII lhe deu, em 28 Num documento (não datado) do Tombo C (fól. 159v), uma Aldara Fernandes, irmã do cônego compostelano Nuno Fernandes, confirma a venda feita pela mãe Lupa Oares. Esta última foi, muito provavelmente, filha de Oeiro Ordonhes e de Aldara Peres. Por outro lado, os irmãos Aldara, Lupa, Maria, Martim, Pedro e Oeiro Ordonhes, documentados entre finais do séc. XII e primeira metade do XIII, terão sido netos ou bisnetos dele.

Entre os diversos beneficiados por esse cavaleiro templário encontramos: a irmã Goina Oares de Orrea, a Sé de Ourense (onde pede ser enterrado) e os mosteiros de Ante-Altares, Aziveiro, Bóveda, Carvoeiro, Celanova, Chouzám, Hospital, Eiré, Samos e Sobrado. Quanto à localização das suas posses, situam-se na área em que confluem as atuais províncias de Ourense (conc. Amoeiro, Cea, Coles, Ourense, Peroxa, Pinhor, Vilamarim), Pontevedra (conc. Doçom, Rodeiro, Lalim) e Lugo (conc. Monforte). Fernando Oares declara-se devedor de D. Cotalaia, personagem que identificamos como pai do trovador D. Juião (cf. infra) 29

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O distrito de Aguiar (de Pedraio) localiza-se a nordeste da cidade de Ourense.

Ele aparece, só ou com os sobrinhos (Fernando, João e Pedro Airas), como confirmante de diversos diplomas reais entre 1135 e 1169 (Fernando II, nº 9, 54, 35, 64, 78; CAstorga, nº 809). Notemos a sua presença no diploma de fundação de Osseira em 1137 (Oseira, nº 15), outorgado por Afonso VII ao lado de algumas das personalidades mais importantes da área e ainda do conjunto dos reinos da Galiza, Leão e Castela. Entre elas, identificamos diversos indivíduos relacionados familiarmente com poetas contemplados neste trabalho: Fernando Peres de Trava (avô de Osório Eanes), Rodrigo Peres “o Veloso” (avô de Rodrigo Dias dos Cameros e de Garcia Mendes de Eixo), Pôncio II Geraldo de Cabrera (avô de João Vélaz), Paio Curvo (bisavô de Gonçalo Garcia e Fernando Garcia de Esgaravunha), Fernando Oares (tio-avô de Osório Eanes), Airas Calvo (avô de Osório Eanes) e Pedro Bazaco (avô de Pedro Pais Bazaco). 31

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1151, a Igreja de Santa Maria de Barra (conc. Coles) em recompensa pelos serviços militares que lhe tinha prestado (OSantiago, nº 16)32. Quanto ao reinado de Fernando II, dois diplomas de 1164.14.03 são bastante significativos. Num deles, o monarca (Fernando II, nº 54), por conselho de Fernando Oares, concedia à Sé de Ourense a Igreja de Santiago das Caldas (conc. Ourense). No outro (Fernando II, nº 55), o rei oferece a Fernando Oares e à mulher, Teresa Moniz, o Mosteiro de S. Paio de Diomondi e a Igreja de Besteiros para os compensar pelo dinheiro que entregaram a Pedro Airas – sobrinho dele – por ocasião do casamento deste último com a sua filha Aldara Fernandes, posteriormente repudiada pelo marido. Ainda a respeito das suas atividades, lembremos o caráter de confrade templário que se colige da referência a “equum meum et armas meas milicie Templi” contida no seu testamento. O dado prende-se à existência de um assentamento dessa organização na jurisdição de Amoeiro, onde se situa o Mosteiro de Bóveda (Pereira Martínez 2006a). Fernando Oares também formou parte do grupo de cavaleiros que promoveram a fundação da Ordem de Santiago, à qual ofereceu a Igreja de Barra33. A vinculação às ordens militares terá continuidade em Gonçalo Eanes, irmão de Osório Eanes, que chegou a ser mestre da Ordem de Calatrava (cf. infra). Como já dissemos, Fernando Oares esteve casado com Teresa Moniz (1164-1206) (FPallares, nº 17), filha Múnio Pais de Monterroso34 e “Ego Adefunsus, Hispanie Imperator, una cum filiis meis Sancio et Fernando vobis Fernando Oduariz et filiis vestris et omni generationei vestre facio cartam donationis de illa ecclesia que vocatur Sancta Maria de Barra cum omni illo regalengo quod pertinet eidem ecclesie et ad suam feligresia; et dono vobis ipsam ecclesiam cum omni sua felegresia ut ab hac die abeatis eam cautam tam istam hereditatem quam vobis do quam omnem aliam quam ibi habeatis; et hoc facio pro bono et fidei servicio quod michi fecistis in partibus sarracenorum atque christianorum. Et est ipsa ecclesia in terra de Buval, suptus monte Durinu, circa flumen de Barra”. 32

Veja-se Martín (1974: 18, n. 39; 118, n. 226) e López Agurleta (1731: 69-71). Essa cessão constitui o núcleo originário da entidade administrativa santiaguista conhecida como Encomenda de Barra. 33

A HC (I, 66) descreve a participação de Múnio Pais junto dos Travas, nas cerimônias de coroamento de Afonso VII. Múnio Pais era filho de Paio Gomes da linhagem dos Beni Gomes de Carrión, mas muito vinculado à Galiza (Torres Sevilla 1999: 351). A essa estirpe também pertenceu Sancha Gonçalves, mulher de Fernando Peres de Trava (cf. infra). Por via materna, Múnio Pais, enquanto filho de Elvira Moniz, foi neto de Múnio Rodrigues, antepassado de Guiomar Rodrigues, a mãe de Rodrigo Dias dos Cameros. 34

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de Lupa Peres de Trava. Deste casamento conhecemos os seguintes filhos: Múnio, Martim, Aldara, Lupa e Oeiro Fernandes35. Interessa-nos sobretudo o primeiro deles, Múnio Fernandes (1169-118836), primeiro mordomo de Afonso IX (1188)37 e tenente de Camba (1169), de quem procede a linhagem dos Rodeiros (cf. infra)38. O casamento de D. Múnio com Maior Peres Bazaco (tia do trovador Pedro Pais Bazaco) deu origem a Paio e Fernando Moniz de Rodeiro39 (cf. infra). O primeiro foi o progenitor de uma Maria Pais, identificada por alguns estudiosos com a “filha de dom Paai Moniz”, referida numa cantiga de Paio Soares de Taveirôs40. Por sua vez, o casal formado por Fernando Moniz (1197-1227) e Teresa Rodrigues deu origem a Múnio Fernandes de Rodeiro (1210-1261), uma das figuras mais representativas dessa linhagem. Este último casou, em primeiras núpcias, com uma Constança Martins em quem podemos reconhecer aquela “Dona Costança” citada numa cantiga

Este último filho consta na Genealogia dos fundadores do mosteiro de Santa Maria de Ferreira de Palhares [D.39] (Salazar Acha 1984: 85-86; Fernández Fernández 2005: 116). 35

36 Salazar Acha (2000: 364) considera que morreu “poco después de 1188”. Monteagudo (2008: 334) oferece como data do seu último aparecimento o ano de 1193, com base num diploma de Afonso IX em que lemos “Munio Fernandi tenens Temees” (Oseira, nº 82). Esse ato documental só consta por uma cópia posterior em que Múnio Fernandes figura na coluna reservada a bispos e arcebispos, o que constitui uma notável irregularidade e projeta alguma incerteza.

Veja-se Salazar Acha (2000: 364). Monteagudo (2008: 334) também lhe atribui esse cargo em 1182: “en 1182 e 1188 como mordomo de Alfonso IX”. A informação não parece exata, já que em 1182 o rei ainda era Fernando II e o conde Armengol VII de Urgell foi mordomo real desde 1179 até 1184. 37

38 Seguimos a linha de sucessão genealógica desenhada na, acima citada, escritura do Mosteiro de Ferreira de Palhares [D.39]. Pardo de Guevara (2006: 268) apresenta uma proposta diferente, supondo que “la línea principal de la familia no fue la derivada de don Fernando Muniz de Rodeyro [...] sino la de su hermano Pay Muniz – o Pelagio Muniz de Rodeiro – al cual se documenta por el año 1203 como tenente honori Sancti Iacobi. Y ciertamente, de este último, consta también su matrimonio con doña Teresa Munionis, en la que dejó a doña María Pelagii, mujer de Fernando Beltrani, de los cuales quedó ya la primera gran generación de la estirpe: doña Urraca Fernández de Rodeiro, Fernando Pelagii de Rodeiro, que gobernó la tenencia de Camba, Rui Fernández de Rodeiro y finalmente Munio Fernandez de Rodeiro”. Veja-se também Monteagudo (2008: 351-355).

Apesar de não contarmos com dados documentais probatórios, aventamos a possibilidade de os trovadores Airas Moniz e Diogo Moniz terem sido filhos de D. Múnio (cf. infra).

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Veja-se Resende (1994: 402) e Vallín (1995).

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de amor de Airas Fernandes “Carpancho” (“cativo, que non morri, o dia / que a vi en cas Dona Costança”) (Souto Cabo – Vieira 2003: 232). Múnio Fernandes também aparece explicitamente relacionado com um Pedro Garcia de Ambroa, identificável com um dos dois poetas caraterizados pelo antrotopônimo “Ambroa” (Souto Cabo 2006). Estes elementos levam a pensar, com algum fundamento, que os Rodeiros foram patrocinadores do trovadorismo galego-português. Conhecemos, pelo menos, outra descendente de Fernando Moniz: Elvira Fernandes (1246-1259)41, mulher de Rodrigo Garcia Troco (de Fornelos) que foi meirinho da Galiza (1252, 1257-1262) (cf. infra).

Arias Calvus de Castella De acordo com o Privilégio de refundação do Mosteiro de Bóveda, Godinha Oares (irmã de Fernando Oares) esteve casada com um Airas Fernandes, nomeado habitualmente como Airas Calvo (avô de Osório Eanes). Ele deu origem à geração dos Lima42 – ou Airas –, da qual derivaram, pelo menos, outros dois ramos: os Nóvoas e os Batisselas43. A biografia de Airas Calvo e de dois filhos, João e Fernando, foi traçada há já algum tempo por García Álvarez (1966)44. Este estudioso ribadaviense considerava Airas

41 Conservamos vários atos diplomáticos relativos a esta senhora e ao esposo nos núcleos de Ferreira de Palhares (FPallares, nº 102 [1246]) e Osseira (Oseira, nº 578 [1246], 818 [1259]; DGP, nº 79 [1259]). Na sua manda testamentária, de 1259, beneficia os mosteiros de Osseira, onde pede para ser enterrada, Sobrado, S. Francisco de Santiago, Bonaval, Ferreira de Palhares, Vilar de Donas, Melom e Oia. A relação de cenóbios favorecidos define muito bem a integração familiar da outorgante. Ela também é citada na Genealogia dos fundadores do mosteiro de Ferreira de Palhares [D.39].

A documentação medieval galega evidencia a substituição progressiva do resultado (latino/arcaizante) “Límia” por “Lima” (DGP, nº 4, 117, 192, 223). O uso atual da primeira forma na Galiza responde certamente ao influxo do castelhano. 42

Fernandes (1992: 146, n. 182) supõe que a estirpe portuguesa dos Valadares foi um “ramo imediato dos «de Límia»”. Concordamos com Pizarro (1997: 783, n. 1) em que: “exceptuando o argumento de proximidade geográfica, não nos parece que a manipulação que ali é feita dos dados linhagísticos levem a uma conclusão consistente”. 43

44 García Álvarez (1966: 27) desconhecia naquela altura a relação entre os Bóvedas e os Nóvoas, segundo se depreende da seguinte informação: “Ignoramos con quien éste [Airas Calvo] casó y, por tanto, el nombre de la madre de nuestros personajes [João Airas e Fernando Airas]”. Num trabalho publicado dez anos depois (García Álvarez 1975: 114, n. 11),

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Calvo natural da antiga Castela ourensana45, da qual, junto com a terra de Búval, ele próprio chegou a ser tenente em 1151, após ter ocupado esse cargo na Lima (1147-1149)46. A documentação oferece dados sobre Airas Calvo desde 1125 a 115147, situando-o na cúria de Afonso VII. Contudo, García Álvarez não deixou de notar que: “Estas escasas apariciones durante más de un cuarto de siglo y el no figurar más que una vez ostentando el cargo de una tenencia, vendría a indicarnos que Arias Calvo debía ser un magnate de nobleza más bien modesta. Podríamos decir, por lo que se verá, que, más que hijo de familia ilustre, Arias Calvo fue padre de ilustre descendencia” (García Álvarez 1966: 28). O paradoxo notado por García Álvarez, ao confrontar o nebuloso passado de Airas Calvo com o relevo social alcançado pelos seus descendentes, poderá não corresponder totalmente à realidade48. Em primeiro lugar, porque as aparições documentais de Airas Calvo são menos raras do que supunha o estudioso ribadaviense em 1966. Por outro lado, se o patronímico dele foi, na verdade, “Fernandes”, não descartamos que ele tenha sido um dos filhos de Fernando Eanes de Montoro (1112-1157)49, senhor da Lima, bisavô de Fernando Pais de Tamalhancos (Souto Cabo [no prelo/1]). Existem vários argumentos para apoiar essa filiação: 1) o relacionamento com as terras da Lima, território galego defendido por Fernando Eanes, em face às ambições portuguesas50, 2) o seu apareciprecisamente sobre a documentação relativa à fundação do mosteiro de Bóveda, este autor já identifica esses vínculos familiares. O grupo familiar dos Limas foi, em tempos recentes, objeto de análise por Pizarro (2011) 45

Trata-se do espaço situado entre os rios Ávia, Minho e Barbantinho.

“Arias Calvus de Castella, de Bubal” (Afonso VII, nº 132 [1151]); “Arias Caluus, tenens Limiam, conf.” (Afonso VII, nº 114 [1147]), “Arias Caluus dominus Limie confirmat” (Afonso VII, nº 122).

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Ocasionalmente aparece nomeado como “Arias Caluus de Gallecia” (TCastanheda, nº 18 [1150]; Afonso VII, nº 131 [1150], 138 [1151]). 47

Veja-se Pizarro (2011: 58) que analisa criticamente essa afirmação, chegando a sugerir algum tipo de relacionamento com os Travas. 48

O sobrenome antroponímico alude ao fato de ter ocupado, entre 1149 e 1154, a tenência dessa vila cordovesa, reconquistada transitoriamente por Afonso VII. 49

Vários passos da Chronica Adefonsi Imperatoris são, a esse respeito, muito elucidativos (Sanchez Belda 1950: 59-60, 63-64, 155). Também no Poema de Almeria observamos uma identificação direta de D. Fernando com esse território. Ele aparece, assim, acompa50

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mento em diversos atos diplomáticos associado ao de Montoro e ao filho Paio Curvo51 e 3) um passo dos Livros de Linhagens em que esse último aparece apelidado como “Calvo”, o que pôde derivar de uma troca com o sobrenome do possível irmão (Airas Calvo)52. Essa suposição, se vier a ser confirmada, poderá ser de utilidade para explicar algumas conexões históricas e literárias de grande interesse (cf. infra)53. A conjetura em questão parece ser contrariada pela existência de um “Arias Pedrez” alcunhado “Caluus” a confirmar uma escritura de 1149 (Afonso VII, nº 126), o que talvez nos levasse a pensar que o patronímico de Airas Calvo foi “Peres” e não “Fernandes”54. Esta última forma ocorre apenas no Privilégio de refundação do Mosteiro de Bóveda, texto transmitido por cópia do séc. XVII que poderá ter sido interpolada pelos Boáns (Duro Peña 1977b: 119-121). Com efeito, os (Fernández de) Boán vangloriavam-se de ser descendentes dos fundadores desse cenóbio, utilizando como base esse diploma, pelo que não excluímos que tenham atribuído o patronímico “Fernandi” a quem no original figurava como “Arias Calvus” ou “Arias Petri”55.

nhado pelos familiares e pela “Lima toda” na expedição de Afonso VII contra a cidade andaluza em 1147: “Iungitur his cunctis Fredinandus et ipse Iohannis, militia clarus, bello nunquam superatus … Hunc bello mota sequebatur Limia tota” (Gil 1974: 57). 51 “Fernandus Iohannis de Galecia conf.– Arias Caluus conf.– Pelagius Curuus conf.– Munio Tacon conf.” (COurense, nº 22 [1145]), “Arias Caluus confirmat. Munio Tacon confirmat. Fernandus Iohannis confirmat. Pelagius Curuus confirmat” (Afonso VII, nº 117 [1147]) “Fernandus Iohannis de Gallecia conf.– Arias Caluus, tenens Limiam, conf.– Pelagius Curuus conf.” (COurense, nº 23 [1147]). 52 “E este conde don Goiçoi foi o que matou Frade Balderique, visavoo de dom Fernam Anes de Montor ca deste Balderique saio Ramiro Frade, e de Ramiro Frade saio dom Joham Ramirez, padre de dom Fernam Anes de Montor” (LC 22A4).

Fernando Eanes esteve casado com Urraca Gomes, filha de Gomes Nunes de Celanova e de Elvira Peres (← Pedro Froiaz de Trava). 53

Lembremos a figura do turbulento Airas Peres, filho de Pedro Airas de Deza. Esse Airas Peres foi marido de Aldara Peres de Trava (cf. supra).

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55 “Una de las notas que cayeron más simpáticas a Boán – o una de las marcas de Boán – en el documento fundacional, aparte del apellido Fernández, fue la referencia a San Facundo” (Duro Peña 1977b: 121). Lembremos que os Boáns também pretenderam incluir entre os seus ancestrais os santos Facundo e Primitivo (Souto Cabo 2007: 129-131). Por

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Conhecemos quatro filhos de Airas Calvo: Fernando, João, Pedro e Oeiro Airas56. Os três primeiros relacionaram-se com as mais altas instâncias do poder, nomeadamente durante o reinado de Fernando II. Essa promoção social será acompanhada e favorecida por uma série de alianças matrimoniais que situaram, por motivos diversos, Fernando e João Airas na intersecção das famílias reais galaico-leonesa e lusitana. Por seu turno, Pedro Airas irá vincular-se a uma das linhagens mais importantes da Terra de Campos leonesa (cf. infra).

Pedro Airas Pedro Airas (115357-1168) não é mencionado entre os filhos de Airas Calvo e Godinha Oares no Privilégio de refundação do Mosteiro de Bóveda (1168.09.24), circunstância atribuível ao seu decesso em data anterior. Tal hipótese parece ser confirmada pela sua ausência na documentação a partir de 1168.05.10 (CAstorga, nº 80958). Ele foi mordomo real (1166-1167) e tenente de Aguiar (1165) e Castela (1167) (Salazar Acha 2000: 361). Do enlace com uma prima, Aldara Fernandes ( Fernando Oares de Bóveda),

outro lado, os Boáns poderão ter feito desaparecer a documentação de Bóveda anterior a c. 1270 com o intuito de salvaguardar as suas intervenções fraudulentas. 56 García Álvarez (1966: 26) refere apenas os nomes de João e Fernando, notando a falta de dados documentais explícitos para demonstrar a relação familiar entre eles: “No hay prueba expresa de que Juan y Fernando fueran hermanos, e incluso el muy docto Julio González llega a escribir, por evidente descuido, que «era don Juan Arias hijo de Fernando Arias»”. Porém, com independência do (problemático) privilégio da refundação de Bóveda – conhecido posteriormente por esse investigador –, esse vínculo consta numa escritura de c. 1170 pela qual Fernando II oferecia ao Mosteiro de Sar a ermida de Santa Maria da Grova (Sanim, c. Ribadávia): “per illas divisiones et por illos cautos quos Iohannes Arie et frater eius Fernandus Arie [...] diviserunt” (AHDS, Priorado de Sar, maço 38, nº 13). 57 O testemunho mais antigo corresponde a um diploma (TSobrado, II, nº 79 [1153]) que registra o acordo entre a sua prima Loba Fernandes – junto com o marido Fernando Afonso – e o Mosteiro de Sobrado sobre a posse da vila de Penela. Também aparecem Múnio Fernandes (irmão de Loba Fernandes) e Fernando Airas (irmão de Pedro Airas).

É uma das testemunhas ao lado do tio, Fernando Oares, e dos irmãos, João e Fernando, de um ato documental pelo qual o conde Ramiro Froilaz dotava a quarta mulher, Elvira Osores, com a vila de Molina Seca. Segundo Torres Sevilla (1999: 152), Elvira Osores, irmã de Constança Osores (mulher de Pedro Airas), estivera casada em primeiras núpcias com Múnio Fernandes (filho de Fernando Oares e, portanto, primo de Pedro, João e Fernando Airas). 58

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resultou Airas Peres – esposo de Maior Martins –, alferes de D. Afonso IX (1206) e pai do arcebispo compostelano João Airas. Após a interrupção do seu enlace com Aldara, Pedro Airas casou de novo com Constança Osores (mulher repudiada de Fernando Rodrigues de Castro), filha do conde Osório Martins e da condessa Teresa Fernandes, membro de uma linhagem da Terra de Campos leonesa (Martínez Sopena 1985: 371, 381-386; Torres Sevilla 1999: 150-160). Fruto deste segundo casamento será Rodrigo Peres de Villalobos, vulto notável na política leonesa e castelhana do momento. A família manteve os vínculos com as terras originárias do pai59. D. Rodrigo, alferes (1208, 1210-1211) e tenente de Afonso IX, desposou Teresa Froilaz, filha de Urraca Gonçalves ( Gonçalo Fernandes de Trava) e de Froila Ramirez.

Oeiro Airas D. Oeiro é aquele irmão que conta com menor representação documental, talvez por não ter exercido qualquer tipo de função pública, em consequência de uma morte precoce. Por enquanto, só o conseguimos situar no (incerto) privilégio de fundação do Mosteiro de Bóveda (cf. supra). É provável que tenha contado entre os seus filhos com um Airas Oares (1187), pelo seu lado, pai do Oeiro Airas citado em escrituras de finais do séc. XII e princípios do séc. XIII60. Como veremos, esse Airas Oares, provável primo de Osório Eanes, poderá ser identificado com o trovador do mesmo nome lembrado apenas pela TC (cf. infra).

Fernando Airas Fernando Airas Batissela (1147-1196), apelidado “de Castela”, “do Burgo” (= Ribadávia) ou “de Anho”, foi para alguns o irmão mais novo. O primeiro registro documental data de 1147 quando confirma um

59 Rodrigo e a mãe doavam, em 1183, ao Mosteiro de Osseira a quarta parte da vila de Marín “in termino de Benavent, discurrente fluvium Orvego” (Oseira, nº 66).

É possível que Airas Oares tenha desposado Elvira Peres Bazaco, tia do trovador Pedro Pais Bazaco (cf. infra). 60

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diploma de que são titulares vários filhos de Pedro Froiaz (Fernando, Bermudo, Lupa, e Toda Peres)61, o que certifica os seus laços com essa linhagem, reforçados pelo seu casamento com Teresa Bermudes de Trava. Ele apresenta-se ativo até 1196, tendo exercido como tenente (só, com o irmão João Airas ou com os filhos deste último) nos distritos de Castrelo de Veiga62 (1167, 1183-1185, 1187-1188, 1190), Ribadávia (1170, 1188-1189), Aguiar (de Pedraio) (1175-1176, 1193), Castela (1177-1178, 1182-1192), Vila de Rei (1185, 1188-1189), Alva de Búval (1187-1190), Tui e Entenza (1188). Também é mencionado como: “Fernandus Arie in Gallaecia” em 1170 e 1180 (Fernando II, nº 180, 183). O favor régio de que Fernando Airas usufruiu, traduzido nessa ampla presença na administração, reverteu em diversos benefícios patrimoniais na Lima, em Bergantinhos e no Morrazo (García Álvarez 1966: 39-40). D. Fernando desposou Teresa Bermudes (1153-1219), filha de Bermudo Peres de Trava (1104-1168) e de Urraca Henriques, uma irmã do primeiro monarca lusitano63. Esse casamento terá favorecido o envolvimento de D. Fernando e do seu grupo familiar na política portuguesa: ele chegou a ser governador de Trancoso (1193) e tenente em Faria (Mattoso (1982: 129, 143; Ventura 1992: 1001, 1023). A documentação revela a existência de propriedades na região do Ribeiro ourensano, concretamente nos atuais concelhos de Leiro (Camanzo, nº 8 [1203]) e Ribadávia64. Pelo contrário, RAG, Pergaminhos, maço 2, nº 11. Muito provavelmente, ele também é o Fernando Airas que junto com o irmão, João Airas, confirmava, em 1152, um contrato econômico entre o cabido de Santiago e uma Urraca Eanes (Tombo C, fól. 99r). A julgarmos pela localização das propriedades de que esta última dispunha, terá sido, muito provavelmente, parente dos anteriores. 61

62 García Álvarez (1948: 253-272) precisou a localização deste topônimo na margem direita do Minho, em frente de Santa Maria de Castrelo, perto de S. Paio. 63 A relação de filiação de Teresa a Urraca Henriques pode estabelecer-se, indiretamente, por um documento de 1161 em que aparece Urraca Bermudes – irmã de Teresa – ao lado dos pais: “Ego Ueremundus Petrici hoc scriptum quod fieri iussi propria manu et proprio roboro confirmo. Infantissa domna Urracha manu propria confirmo et roboro, fila eius Urracha Uermuiz conf.” (Barton 1997: 320-322; AHN, Tojos Outos, maço 556, nº 4). 64 Várias escrituras referem a existência de propriedades em Sanim (conc. Ribadávia): “Ego Tereisa Uermuit uobis monachis de Mellonis facio manda ipsa uilla de Sanim do ego ipso kasalem quod dictis da Figueira et medietatem de ipsas uineas nouas pro remedium anime mee et de domno Fernandus Arie [...] tenente terra ipsa domna Tereysa” (ACO, Most.º de Melom, nº 38 [1203] = Melón, nº 85), “Ego domna Tarasia Ueremudi asigno

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as posses no norte da Galiza (Betanços, Cedeira, Teixido) podem ser vinculadas aos Travas. Entre outros aspetos da biografia deste casal, salientamos o seu relacionamento com a Ordem de Santiago, segundo reflete uma escritura de 1182, pela qual Fernando Airas e a mulher ofereciam a Pedro Fernandes, mestre dessa milícia, aquilo que possuíam no Mosteiro de Savardes (OSantiago, nº 140). Também aparecem associados à Ordem de São João de Jerusalém (GSJoão, nº 48, PSJuan, nº 185). Esses dados possuem algum interesse já que vários membros da sua linhagem, como Fernando Oares (tio de Fernando Airas) ou Gonçalo Eanes (irmão de Osório Eanes e sobrinho dos citados), estiveram filiados a ordens militares. O Mosteiro de Melom é a instituição religiosa a que mais diretamente aparece associado o casal em questão, nomeadamente D.ª Teresa Bermudes (cf. supra). Quanto à descendência, relacionamos, em primeiro lugar, os nomes de Fernando, João e Rodrigo. Uma boa parte da biografia destes indivíduos desenvolveu-se com notável fortuna em terras portuguesas (Mattoso 1982: 129-130)65. Fernando Fernandes, até agora, só tinha sido documentado na cidade de Ourense aquando da concessão ao Mosteiro de Sobrado de um foro em Tibiás (conc. Pereiro de Aguiar) por parte do seu grupo familiar (CSobrado, fól. 361v [1200]). Também o encontramos em Santiago de Compostela como confirmante de uma escritura ao lado do irmão Rodrigo Fernandes: “Rudericus Fernandi, Fernandus Fernandi, fratres

capitulo conpostellano de assensu et benplacito quos olim prefato capitulo asignaueram Beati Iacobi in uilla que dicitur Sanim, pro remedium anime mee et uiri ei domni Fernandi Arie qui aput ecclesiam beati Iacobi sepultus est” (Tombo C, fól. 149r e 221v [1212]), “Ego domna Tharesia Uermudi [...] facio karta veri testamenti semper ualituram uobis domno Uermudo abbati de Melon et omni conuentui eiusdem [...] de vinea illa de Sanim quam dedi Iohanni Martini portario ad plantandum [...] et hoc facio remedium anime mee et mariti mei domni Fernandi Arie [...] ipsa octra uinea que iacet inter rivulum de Saa et vineas de Melon” (ACO, Most.º de Melom, nº 169 [1217] = Melón, nº 126), “ego domna Tarasia Veremudi et omnis uox mea uobis domno Ueremudio abbati de Meloni conventuique eiusdem loci [...] do et concedo quodam casare quod habeo in Sanin, illud sicilicet quod dicitur de Ficulnea et iacet subtus ecclesia de Sanin” (ACO, Most.º de Melom, nº 191 [1219] = Melón, nº 138). Seguem uma tradição familiar de ação política concretizada, sobretudo, nos irmãos Bermudo, Fernando e Rodrigo Peres de Trava. Lembremos que a avó materna foi irmã de Afonso Henriques (cf. supra). 65

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domni Johannis Batisela” (Tombo C, fól. 92r [1219]). Rodrigo Fernandes “Codorniz” chegou a ser alcaide de Lisboa (1192-1207) com Sancho I (Mattoso 1985: 183)66. Uma filha dele, Maria Rodrigues “Codorniz”, foi vítima de um rapto perpetrado por João Bezerra que satirizou D. Gonçalo Garcia na cantiga Levaron-na Codorniz (cf. infra)67. João Fernandes Batissela, o mais afamado dos irmãos, atingiu o topo do poder como mordomo (1192-1194, 1204-1205) e (primeiro) alferes (1188-1191, 1218-1220) de Afonso IX68. D. João assumiu o cargo de tenente (1183-122069) em diversos territórios galegos e leoneses: Trastâmara, Lima, Lemos, Milmanda, Rueda e Alhariz, Zamora, Monterroso, Salamanca e Toronho70. A última presença na documentação galaico-leonesa situa-se em 1220.03.20 (Afonso IX, nº 394) como “Domno Iohanne Fernandi existente signifero regis”. Na corte portuguesa, além de tenente de Neiva (12111223) e Faria (1219-1223), exerceu como alferes (1224) e mordomo-mor (1225-1226)71. Casou com Berengária Afonso de Baião72 e, em segundas

66 Fernández Rodríguez (2004: 129) considera que foi tenente de Toronho (1180-1182), alferes (1184-1185) e chanceler (1189), mas não é fácil confirmar que se trate dessa mesma personagem. Veja-se também Salazar Acha (1984: 83-84). 67 Esta Maria Rodrigues casou com Martim Martins Marinho e foram pais de Pero Martins Marinho, segundo marido de Teresa Lopes de Ulhoa (cf. infra). 68 Pizarro (2011: 62) valoriza o parentesco (primo) que unia D. João com Afonso IX e com os monarcas lusitanos Sancho I e Afonso II. 69 Neste e noutros casos similares, indicamos apenas as datas extremas, sem que isso suponha uma continuidade no cargo durante o período delimitado. 70 Veja-se Salazar Acha (2000: 366-368) e Fernández Rodríguez (2004: 147-149). Completamos com informação de diversas coleções documentais, nomeadamente a de Osseira.

Existem algumas divergências sobre a sua possível presença na cúria lusitana antes de 1210. Mattoso (1982: 129) identifica-o com um João Fernandes que foi dapífero (ou mordomo) com Sancho I de Portugal entre 1186 e 1204 [1206]. Porém, Ventura (1992: 989, n. 6) considera que se trata de João Fernandes de Riba de Vizela, já que na altura o de Lima ocupava, como dissemos, diversos cargos na corte de Afonso IX. Pizarro (2011: 62) identifica o Batissela com um “Johannes Fernandiz Gallicus” citado num documento da chancelaria de Sancho I (Sancho I, nº 105) e, sem elucidar o motivo, com o dapífero referido em diplomas do ano 1206, mas não com o homônimo que aparece, sem solução de continuidade, antes desse ano. Veja-se Ventura (1992: 1001, 1004). 71

Berengária Afonso foi irmã de Lopo Afonso de Baião, pai do trovador Afonso Lopes de Baião (1246-1280). 72

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núpcias (c. 1212), com a que fora barregã do rei Sancho I, a célebre Maria Pais (← Paio Moniz da Ribeira73 & Urraca Nunes de Bragança)74. Entre os descendentes de João Fernandes Batissela, encontramos Gonçalo, Fernando75 e Teresa Eanes. Os dois últimos tornaram-se parentes dos senhores de Eixo. D. Fernando desposou Teresa Eanes da Maia76, filha de João Peres da Maia e de Guiomar Mendes, uma irmã de Garcia Mendes de Eixo77. Teresa Eanes Batissela foi a mulher de Mendo Garcia de Sousa, filho desse mesmo Garcia Mendes e, portanto, irmão de Gonçalo Garcia e Fernando Garcia de Esgaravunha (cf. infra). Outros filhos varões de Fernando Airas e Teresa Bermudes foram Henrique , Gil e Álvaro Fernandes Batissela79. Gil Fernandes é referido nos Livros de Linhagens como pai de um Fernando Gil que casou com Sancha Fernandes, filha do trovador Fernando Pais de Tamalhancos: “E dom Gil Fernandes Batissela foi casado com uma dona Elvira Paes [...] e fege nela 78

73 Os Ribeiras são considerados um ramo dos Cabreiras e, portanto, aparentados com os Travas (Pizarro 1997: 817). 74 O trovador Gil Sanches (1207-1236) resultou do relacionamento de Maria Pais com o monarca português. D. Gil esteve ligado ou casado a/com Maria Garcia, filha de Garcia Mendes de Eixo (cf. infra). Michaëlis (1904: 307-321) reconheceu nela a Maria Pais citada numa cantiga de Paio Soares de Taveirôs, mas essa identificação tem sido posta em dúvida (Oliveira 1994: 402, Vallín 1995).

Veja-se Fernández Rodríguez (2004:167-172), Monteagudo (2008: 137-138), Pizarro (2011: 63-64). 75

Um filho deles, Fernando Fernandes Pancenteio (Pancenteo, c. Rosal), casou com Sancha Vasques, filha de Vasco Gil de Soverosa (1238-1258) (← Gil Vasques & Sancha Gonçalves de Orvaneja) (cf. infra). João Fernandes, prole destes últimos, foi cônjuge de Maria Eanes, uma filha de João Peres de Aboim (1249-1284). 76

77 Elvira Eanes, a mulher de Rui Gomes de Briteiros, foi irmã de Teresa Eanes da Maia. Antes de casar, Rui Gomes raptou a mulher, sucesso escarnecido na cantiga Pois boas donas son desemparadas do trovador Martim Soares. 78 Conhecemo-lo por uma escritura (1223) em que, juntamente com a irmã Urraca Fernandes, legava diversos bens ao Mosteiro de Sobrado antes de acompanhar o rei Afonso IX na tentativa, fracassada, de tomar a cidade de Cáceres (Vaamonde Lores 1909: 54-55). A sua filiação relativamente ao casal em questão não conta com prova documental explícita.

Monteagudo (2008: 324) inclui um Pedro Fernandes, tenente de Pena Corneira (1188) e Villafranca (1200), entre os filhos de Fernando Airas. 79

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dom Fernão Gil [...] E este Fernão Gil foi casado com dona Sancha Fernandes, filha de dom Fernão Paes de [T]alamancos” (LD 20C3-4, LC 43N6)80. Quanto ao grupo feminino, para além de Elvira (cf. infra), conhecemos os nomes de Sancha, Maria e Urraca Fernandes (1223). Sancha (1198-1234) atingiu o estatuto de condessa pelo seu casamento com o conde Froila Ramires (cf. supra)81, um destacado membro da linhagem leonesa dos Flaínes-Froilaz, que ocupou diversos cargos palatinos no reino galaico-leonês durante os reinados de Fernando II e Afonso IX (cf. supra). Maria Fernandes, casada com Lopo Rodrigues de Ulhoa, foi mãe do trovador João Lopes de Ulhoa82. Teresa Lopes de Ulhoa, irmã deste último, foi desposada em primeiras núpcias por Fernando Pais de Tamalhancos e em segundas por Pedro (Martins) Marinho83. Não se esgotam aí as conexões literárias, é possível que Urraca Fernandes tenha sido mãe de João Soares Somesso, segundo se descreve no capítulo quarto deste trabalho84.

A documentação evidencia que o nome da mulher de Gil Fernandes foi Maria – não Elvira – Pais (CSobrado, fól. 364). 80

Froila Ramires esteve casado em primeiras núpcias com Urraca Gonçalves, filha do conde Gonçalo Fernandes de Trava, falecida em 1190. Veja-se Souto Cabo (2011b).

81

O dado discrepa com a informação dos Livros de Linhagens (LC 13D3), que o faziam filho de Teresa Fernandes de Lima/Trava, mas é confirmado por uma escritura de 1236 em que Maria Fernandes e os filhos, Fernando e João Lopes, realizam uma permuta com o Mosteiro de Sobrado: “Ego domna Maria Fernandi concedente filio meo D. Fernando Lupo et concedente alio filio meo D. Johannes Lupi [...]” (Vaamonde Lores 1909: 58, nº 9). Pelo contrário, é possível que esteja certa a atribuição da condição de “freire” feita pelos Livros de Linhagens, o que nos leva a reconhecê-lo no “Iohannes Lupi conmendator de Faro” que, junto com outro freire dessa mesma bailia, testemunha em 1238.02.13 uma compra-venda outorgada por Urraca Garcia de Ambroa (filha de Garcia Peres de Ambroa, parente de Pedro Garcia de Ambroa) a favor de Rodrigo Gomes de Trava (Tombo C, fól. 153v). A vinculação familiar ao mosteiro santiaguista de Vilar de Donas induz a identificá-lo com a personagem homônima que alguns anos antes, em 1230, confirmava uma escritura desse cenóbio, em que também aparece João Somesso (cf. infra). Não podemos descartar que esse caráter de mílite tenha motivado a sua transferência para a Estremadura portuguesa, pelo menos desde 1265, onde casou com Sancha Lourenço de Taveira. Sobre as relações poéticas do João Lopes em terras lusitanas, veja-se Souto Cabo (2012a). 82

O segundo enlace valeu-lhe uma cantiga satírica de Afonso Soares Sarraça. Este último trovador foi tio de Maria Peres Sarraça, mulher de João Fernandes Varela (← Fernando Pais de Tamalhancos & Teresa Lopes de Ulhoa). 83

Os filhos dela são referidos genericamente no diploma de que é titular o irmão Henrique Fernandes (cf. supra). 84

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Um documento de 1228 parece ser o único testemunho para identificar dois descendentes, até agora desconhecidos, do casal em foco: Álvaro e Elvira Fernandes85. Por esse diploma vimos a saber que os filhos de Teresa Bermudes possuíam parte de um imóvel na cidade de Santiago, herdado da mãe, que partilhavam com a tia Aldonça Bermudes86. A notícia soma-se a outras que confirmam a presença de diversos prédios pertencentes aos Travas na cidade de Santiago87.

3. João Airas de Nóvoa e Urraca Fernandes de Trava João Airas (1152-1180) – conhecido como João Airas de Nóvoa , de Castela ou de Amoeiro89 – foi alferes real (1173-1174) e tenente de Castela (1161, 1167, 1174-1175, 1177-1178), Nóvoa (1166)90, Castrelo 88

É possível que se trate dos filhos mais novos do casal, motivo pelo qual não se encontram na documentação familiar anterior. 85

“Ego Alvarus Fernandi, filius domne Tarasie Ueremundi, pro me, et pro sororibus meis Eluira Fernandi et pro matertera mea domna Aldoncia Veremundi et pro omni uoce mea [...] uendo, dono et firmiter concedo vobis Fernando Pelaez, pectauino, comparanti pro uobis et pro uxore uostra Maiore Viuiani omnique uoci uestre, quartam illius domus de Placia que est sita inter domum canonicorum que fuit domni Cotalaie, ex una parte, et domum Archiepiscopi in quam modo domnus Iohannes decanus moratur, ex alia. Quam IIIIª ego habeo ex parte predicte matris mee domne Tarasie Veremundi ” (Tombo C, fól. 80r). Aldonça Bermudes não é incluída entre a prole de Bermudo Peres, mas poderia ser a Ilduara de que falam algumas fontes. Sobrevivem múltiplas incertezas sobre os casamentos e os filhos de D. Bermudo (Lopez Sangil 2005: 62-63). Apesar das dúvidas que levantam as “novidades” contidas nessa escritura, não parece que existam argumentos suficientes para vincular os indivíduos citados a outro grupo familar. 86

87 D. Cotalaia, citado na escritura anterior, possuía uma casa contígua a outra de Fernando Peres de Trava, situada em frente do portal principal da Sé de Santiago (cf. infra). D. Cotalaia, importante figura da urbe compostelana, é aqui postulado como pai de D. Juião (cf. infra).

A Terra de Nóvoa, que integra a vila de Ribadávia, formava parte do distrito medieval de Toronho (Fernández Rodríguez 2004: 55). A origem do topônimo está em Santo Estêvão de Nóvoa (conc. Carvalheda de Ávia). 88

“E a sobredita dona Maria (sic) Fernandes de Trastamar casou com dom João Aires de Moeiro, e fege nela don Gonçal’ Eanes, o bom, rico homem” (LD 1904). Como vemos, os Livros de Linhagens erram no nome da mulher; Maria Fernandes de Trava, irmã de Urraca, esteve casada com o conde Pôncio II Geraldo de Cabrera (cf. infra). 89

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“tenente Sancti Iohannis de Novoa domno Iohannes Arie” (Melón, nº 31).

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(1167, 1184), Ribadávia (1170, 1172), S. Paio de Toronho (1176), Castelo de Orzelhão (1176) e Alva de Búval (1179)91. Quanto a missões políticas concretas, por ordem de Fernando II, ele teve a incumbência de restituir, em 1170, ao bispo de Tui a posse da vila e do couto: “Nunc [...] per Iohannem Arie karissimum nostrum restituere omnia mandamus [...]. Mandamus itaque quod dilectus noster I. uenerabilis Tudensis episcopus et ecclesia sua habeat predictam uillam et cautum”92. Não podemos falar só de cercania institucional a respeito do poder régio, mas ainda de proximidade familiar entre as casas do rei e a dos Nóvoas. Como se sabe, Fernando II confiou ao pai de Osório Eanes a formação do futuro Afonso IX (cf. infra), o que se liga provavelmente às origens de João Airas e/ou ao fato de ele ter desposado Urraca Fernandes93. Esta última foi filha do conde Fernando Peres de Trava, magnate principal da Galiza, em quem Afonso VII já delegara a formação do futuro Fernando II, seguindo uma prática iniciada em tempos de Afonso VI (cf. infra)94. Sabemos que João Airas morreu entre 1180.03.24 (Fernando II, nº 178)95 e 1181.09.06, quando já se alude a ele como falecido: “Notum est quod uos cum marito vestro bone memorie domno Johanne Arie”, “... ipse uir vestrum ad obitum suum dimisit inde medietate ecclesie Beati Iacobi” (D.14)96. 91 Em 1176 e 1180 encontramo-lo como “Iohannes Arie in Gallecia” (cf. supra) (Fernando II, nº 176, 177; RFernando II, p. 467).

Fernando II (nº 116). Em 1178.12.28 está documentado como vicário real: “in tempus de rege Fernandus, suo vicario Iohanne Arias” (Oseira, nº 59). 92

O casamento ocorre antes de 1165.04.30, altura em que o casal entregou ao Mosteiro de Armenteira a herdade chamada Paraíso [D.6]. 93

Veja-se Pallares – Portela (1983: 837). Notemos, por outro lado, que Fernando II e Afonso IX aparecem ocasionalmente como atores e confirmantes de documentos de que João Airas é titular [D.6, 10]. 94

É possível que continuasse vivo ainda em 1181.02.23, data que supomos para um documento mal datado [D.12]. 95

João Airas foi identificado por García Álvarez (1966: 28), Salazar Acha (2000: 420421) e Calderón Medina (2011a: 129) com um João Galego, documentado até 1187, que chegou a ser tenente das Torres de Leão (Fernando II, nº 156). Porém, tal identificação não é possível já que os dois aparecem ocasionalmente nos mesmos diplomas (Fernando II, nº 156: “Iohannes Arie confirmat […] Iohannes Gallecus in Legione”). Também induziu a engano o regesto que ofereceu González (1943: 513) sobre um documento de 1187 ao 96

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A naturalidade de João Airas foi situada na antiga terra de Castela, de acordo com o que postulam fatores como: o contexto familiar, os cargos político-administrativos ocupados e a localização das suas posses. A documentação refere propriedades nos atuais concelhos ourensanos de Castrelo de Minho, Cenlhe, Leiro, Ribadávia e S. Amaro; isto é, na área do Ribeiro delimitada pelos rios Barbantinho e Ávia (afluentes do Minho). Porém, o casal João Airas-Urraca Fernandes contava com um domínio territorial muito mais vasto, espalhado de modo preferencial pelos distritos de Búval, Castela e Trastâmara, como se depreende dos registos históricos e, sumariamente, de uma das cláusulas do testamento da mulher: “Ad ecclesias de Trastamar, et de Buual et de Castella super quas potestatem habui, et tenui et in illas peccaui et erraui et de illis ganaui” [D.24]. Também aparecem relacionados com a cidade de Santiago (onde tinham residência97) e, acima de tudo, com a Sé e o Mosteiro de S. Martinho (cf. infra)98. Urraca Fernandes (1165-1199), a mãe de Osório Eanes, foi filha de Fernando Peres de Trava (1110-1155) e de Sancha Gonçalves (cf. infra)99. O conde D. Fernando surge como um dos indivíduos com maior poder de decisão na corte de Afonso VII, ao ponto de lhe ser atribuída a iniciativa que levou à divisão dos reinos entre os filhos do rei (cf. infra). No plano cultural, cumpre notar o seu protagonismo na implantação de Cister na Galiza e, por extensão, no conjunto da Península, quando refunda o Mosteiro de Sobrado entregando-o à Ordem bernarda em 1142100

incluir entre os confirmantes um “I. Arie de Buual” em lugar do correto “filiis Iohannis Arie de Buual” (Fernando II, nº 235). O anterior induziu Calderón Medina (2011a: 129) a pensar que João Airas “continuó sirviendo al rey hasta 1187”. Numa escritura de 1182 (Tombo C, fól. 123) cita-se um imóvel na Boca do Campo em Santiago que pertencera a João Airas. O trovador Osório Eanes, filho dele, contava com uma casa nessa localização (cf. infra). 97

Conhecemos duas cartas [D.10, 11] pelas quais D. João e D.ª Urraca venderam e ofereceram, respetivamente, a esse cenóbio propriedades próximas do rio Minho. 98

No apêndice documental incluímos um diploma inédito pelo qual esta senhora estabelecia a celebração de aniversário póstumo por ela e pelo marido na sé de Santiago [D.4]. 99

O Mosteiro de Sobrado tinha pertencido aos antepassados de Urraca Froiaz, a primeira mulher de Pedro Froiaz, mas fora-lhes arrebatado violentamente por Fernando I. A rainha Urraca e o filho, Afonso Raimundes (= Afonso VII), restituíram a propriedade do cenóbio 100

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(cf. infra). D. Fernando, graças ao seu relacionamento com Teresa Afonso101, mãe de Afonso Henriques, desempenhou um importante papel no cenário português, sobretudo entre 1121 e 1128. Fruto destes dois “matrimônios” foram: Gonçalo102, Maria (cf. supra), Sancha103, Teresa104 e Urraca Fernandes. Alguns autores consideraram Urraca Fernandes filha de Fernando Peres e de Teresa Afonso105, mas outros – com os quais concordamos – supõem que foi filha de Sancha Gonçalves106. Note-se que na documentação não aparece como “infans”, em contraste com o uso que desse título fez Sancha Fernandes – indubitável filha de Teresa Afonso –. Por outro lado, aquilo que conhecemos sobre a sua biografia (falece c. 1200) leva a pensar que nasceu c. 1140, portanto, em período posterior ao óbito de D.ª Teresa (c. 1129-1130)107. Assim sendo, Fernando Peres teve Gonçalo e Maria na abandonado a Fernando e a Bermudo Peres, filhos dos anteriores, segundo consta em diploma de 1118 (AHN, Sobrado, pasta 526, nº 3, 4; Sobrado II, nº 8). 101 Existem dúvidas sobre a natureza da relação que existiu entre Fernando Peres e Teresa Afonso. Na carta de fundação do Mosteiro de Monte de Ramo (1124), esta última considera-se “coniux” de D. Fernando “uiro meo”. Porém, a informação da História Compostelana e doutras fontes leva a pensar que não se tratava de um matrimônio legalizado institucionalmente.

Gonçalo Fernandes desposou Elvira Rodrigues e Berengária Rodrigues, ambas filhas do conde Rodrigo Vélaz.

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103 Sancha casou-se (em três ocasiões) com Álvaro Rodrigues de Sarria {Vélaz}, Pedro Afonso e Gonçalo Rodrigues.

D.ª Teresa uniu-se em primeiras núpcias a Nuno Peres de Lara com quem teve: Álvaro, Elvira, Fernando, Gonçalo, Leonor, Sancha e Teresa Nunes. Gonçalo Nunes, muito vinculado ao reino galaico-leonês, aparece relacionado com o trovador Pedro Garcia de Ambroa (Souto Cabo 2006: 230). Pelo seu casamento com Fernando II, D.ª Teresa foi rainha da Galiza e de Leão: “Et rex Fernandus […] duxit uxorem Tharasiam filiam comitis Fredenandi, que fuerat uxor comitis Nunii de Castella” (HRH, 23.45-47). O matrimónio celebrou-se em setembro de 1178 e Teresa Fernandes morreu em 1180.02.07. No entanto, a união marital com Fernando II é anterior àquela data, já que fruto da mesma foi o infante Fernando, nascido – antes do casamento – em 1178 e falecido em 1187. Por esse casamento, Osório Eanes foi sobrinho de Fernando II. O soberano alude a D.ª Teresa como “dilectissime mee comitisse domna Tarasie” (Fernando II, nº 139 [1178.07]) (Calderón Medina 2011: 4, n. 11).

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López Sangil (2002: 77), Monteagudo (2008: 492).

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Barton (1997: 241), Torres Sevilla (1999: 112, 336), Calderón Medina (2011a: 143).

Notemos a ausência de D.ª Urraca, por provável minoridade, entre os confirmantes de uma carta de 1153 em que aparecem os irmãos: Gonçalo, Maria, (infanta) Sancha e (condessa) Teresa Fernandes (TSobrado II, nº 14).

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primeira fase do seu matrimónio com Sancha Gonçalves (antes de 1121) e Urraca Fernandes na segunda (após 1128). Só Sancha e Teresa resultaram, portanto, da relação de Fernando Peres com Teresa Afonso entre 1121 e 1128108. Como dissemos, a mulher de Fernando Peres, Sancha Gonçalves, era filha do conde Gonçalo Ansures {Beni-Gomes} e de Urraca Bermudes {Vélaz}109. Por essas origens, a avó de Osório Eanes aparece indiretamente ligada à linhagem catalã dos Urgell através da sua prima Maria Peres (← Pedro Ansures), esposa de Armengol V e mãe de Armengol VI110. Quanto a Urraca Bermudes, ela foi irmã de Guterre Bermudes, avô paterno de João Vélaz (cf. infra). O documento que melhor ajuda a avaliar o estatuto sócio-econômico de Urraca Fernandes é o testamento, lavrado em 1199 [D.24], acerca do qual García Álvarez (1966: 35) afirmava que “más parece propio de reyes que de persona particular”. Trata-se de uma manda de grandes dimensões na qual, além do exercício da caridade, favorece a prática totalidade dos estabelecimentos e estamentos religiosos da Galiza e dos reinos limítrofes bem como as obras religiosas ou públicas. Ora,

108 López Sangil (2002: 144) cita um diploma de 1203 em que se alude a uma Sancha Fernandes que fora irmã de Teresa Fernandes. Tal exemplar, utilizado – por lapso – para provar a existência de uma segunda Sancha Fernandes, vem certificar que a única irmã “completa” de Sancha foi Teresa.

Existem várias propostas sobre as origens familiares de Sancha Gonçalves. Uma escritura do Tombo de Lourençá, de que D.ª Sancha é titular, assegura que foi neta de Bermudo Oveques {Vélaz}: “Me, comitissa Sancia Gundisaluiz [...] auo meo, Ueremudo Ouequiz” (TLourençá, nº 154 [1142]). Por outro lado, sabemos que Urraca Bermudes, filha do anterior, esteve casada com Gonçalo Ansures {Beni Gomes – Ansures} [1075-1120], conde de Liébana, segundo consta explicitamente num documento do mosteiro asturiano de Cornellana: “Ego Gunzaluus Ansurez una cum uxore mea Urracha Veremudiz”, “Ego Gunzaluus Ansuriz, simul cum coniuge mea Urracha Ueremudiz” (Floriano Cumbreño 1949: 22, nº 3), o que nos permite considerá-lo, com segurança, pai de Sancha Gonçalves. Relativamente a esta linhagem, veja-se Torres Sevilla (1999: 236-274, 341-357). Notemos, porém, que esta última autora considerava, talvez por exclusão, Sancha Gonçalves filha do conde asturiano Gonçalo Pais (Torres Sevilla 1999: 111-112). 109

Não nos esqueçamos que Gomes Gonçales de Trava, primo desse mesmo Osório Eanes, casou com Miracle de Urgell (←Armengol VII & Dulce de Barcelona). Eles foram pais de Rodrigo Gomes de Trava. 110

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dentro desse conjunto de entidades, ocupa um lugar de destaque a Sé compostelana, instituição com a qual Urraca Fernandes manteve muito importantes ligações de tipo econômico, segundo salientou Barreiro Somoza (1987: 410): Doña Urraca Fernandez, hija también de Fernando Pérez de Traba, hace gala en su testamento de su condición de opulenta señora, aunque por lo que respecta a la Iglesia de Santiago, al menos una buena parte de la masa de bienes que lega no constituye una donación absolutamente graciosa, sino la ratificación de donaciones, cuyo usufructo tenía reservado de por vida, y que le habían permitido detraer importantes rentas del señorío jacobeo, en concepto de muestras de gratitud […]. Un tercer testimonio, en este mismo sentido, lo constituye el acuerdo, efectuado en el año 1196, con el cabildo catedralicio, por el que éste se compromete a entregarle una renta anual de seiscientos sueldos turoneses [...] de los que trescientos correspondían a la deuda que esta institución tenía con ella sobre los beneficios de sus partes en el negocio de las conchas o insignias jacobeas y a los que en el futuro le correspondiesen, mientras que los otros trescientos sueldos corresponden a la asignación de una rentas sobre la heredad de Quinzana en Ribadavia, que previamente les había donado y que, por estar toda ella dedicada a viñedo, proporcionaba rentas muy importantes a los canónigos111.

A derradeira presença documental dessa senhora situa-se em 30 de julho de 1199, dia em que dispôs o seu testamento112. Sabemos que morreu antes de 21 de novembro de 1202, data em que a filha, Urraca Eanes,

Veja-se o apêndice documental [D.22]. Sabemos que foi a fundadora do mosteiro de S. Martinho de Cornoces (conc. Amoeiro), segundo consta na inscrição lavrada no muro exterior da igreja: “Urace Fernandi que eam funditus edificauit”.

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112 Entre as atividades da mãe de Osório Eanes, podemos lembrar uma peregrinação à capital das Astúrias em 1187: “In era Iª CCª XXVª, kalendas Augusti, quedam domna predives et nobilis, nomine Urraka Fernandiz, filia comitis, causa peregrinationis a Gallecia veniens Ovetum, plurima pauperibus et monasteriis distribuit” (SVicente, nº 312). Conservamos ainda memória dessa deslocação num diploma de 1192.09.27 (SPelayo, nº 31): “Equum et rationale est, ut ea que fiunt, ne obliuioni tradantur litteris confirmentur. Ea propter notum sit omnibus hominibus, tam presentibus quan futuris, quod quedam dompna de Gallecia, nomine Urraca Fernandi, filia famosissimi comitis Fernandi et uxor cuiusdam militis curialissimi, nomine Iohannes Arias, venit Ouetum causa orationis et deuotionis; que cum multas et largas elemosinas ibi faceret, monasterium Sancti Pelagii intrans, elemosinam largam et honestam ipsi monasterio fecit [...] tali pacto [...] que hereditas semper staret in manu cuiusdam dompne eiusdem conuentus, et fructus predicte hereditatis, quos colligerent, in die anniversarii predicte dompne, et patris et mariti, supra predicte sanctimoniales expenderent”.

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oferecia ao Cabido de Santiago “uno meo casali que habeo ex parte patris meum dominum Iohannes Arie et matris mee domne Urraca Fernandiz in villa que vocatur Zaelli [Cenlhe] in terra de Castela” [D.27]113. A documentação prova a existência de (pelo menos) oito filhos de João Airas e Urraca Fernandes114: Airas, Fernando, Gonçalo, Lourenço, Osório, Pedro, Sancha e Urraca Eanes115. Sancha Eanes, provavelmente a primogénita, só é citada na escritura de compra-venda a favor de S. Martinho Pinário do ano 1175 [D.10]. Como dissemos, a abadessa de Bóveda, Urraca Eanes, aparece atestada em 1202 quando cede ao Cabido de Santiago um casal em Cenlhe. Lourenço Eanes surge pela primeira vez em 1185.05.30 por ocasião da venda de uma herdade em Quintela (Vanga, c. Carvalhinho)116. D. Lourenço será citado em 1217.06.10 num diploma pelo qual Osório Eanes deu diversas propriedades aos cônegos compostelanos [D.29]. Sabemos, por esse escrito, que aquele detivera previamente um benefício eclesiástico em Santa Maria de Alom (conc. Santa Comba), oferecido a esse mesmo estamento religioso. Não ficou registrado o exercício de qualquer cargo institucional por parte de Lourenço Eanes nem no caso de Airas Eanes, notado entre os filhos de João Airas e Urraca Fernandes em 1175 [D.10] e como confirmante de uma carta régia de 1201.08.20 (Afonso IX, nº 158). 113 O falecimento de Urraca Fernandes era celebrado na Catedral de Santiago no dia 28 de maio, segundo consta nos Livros de Aniversários dessa instituição: “Pro Domna Urraqua Fernandi de Duvra, filia D. Fernandi comitis de Dubra, quae donavit Ecclesie Compostellane casale de Quinciana. Dantur de dicta tenencia 150 lbr. Processio ad comitum sepultura in platea palaciorum” (Leirós Fernández 1970: 222). O pagamento pelo aniversário do conde Fernando Peres, no dia 22 de março, é também ligado a essa mesma propriedade (Leirós Fernández 1970: 212).

Monteagudo (2008: 325) atribui-lhe quatro: Pedro, Osório, Airas e Gonçalo e, ao mesmo tempo, considera que López Sangil “non acerta nos nomes dos seus irmáns [de Osório Eanes]”. Esse último investigador cita: Urraca, Osório, Lourenço e Gonçalo (López Sangil 2002: 148). 114

115 O Livro do Deão também refere um Soeiro Eanes: “E dom Soeiro Anes, filho de dom João Aires de [A]m[o]eiro, foi casado com dona Sancha Rodrigues, e fege nela dom João Soares, a condessa dona Elvira Sanches e Gonçalo Soares d’ Orselhom” (LD 19U5). 116 “Ego Laurentius Iohannes tibi Petro Petrici [...] facio kartam venditionis de hereditate mea propria quam habui de abiorum et parentum meorum [...] in territorio Castelle in loco predicto qui vocitant Quintaela subtus monte Pena Excelsa, iuxtam aulam sancte Eulalie de Vanga, discurrente flumine Arinteiro” (Oseira, nº 71).

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Os Livros de Linhagens incluem, entre os descendentes de João Airas e de Urraca Fernandes, um Fernando Eanes (de Duvra)117, ignorado por alguns dos investigadores que, em tempos recentes, se ocuparam da prole dos anteriores. No entanto, a sua presença na literatura linhagística portuguesa, como pai da mulher de Paio Gomes da Silva118, fez com que o seu nome fosse lembrado pelos historiadores lusitanos como Alexandre Herculano (1980: 604), que o denomina “Fernando Anes de Urró”119. No único registro documental em vida que dele conhecemos, D. Fernando aparece ao lado de Osório Eanes como tenente de Castela: “tenente terra de Castela Ossorio Joannis et Fernando Joannis” (Melón, nº 119 [1215])120. A realidade histórica deste filho de Urraca Fernandes, que levou o nome do avô materno, vê-se confirmada pela documentação relativa a dois dos seus descendentes: João Fernandes Ladrão (cônego compostelano) e Maria Fernandes. Eles são os titulares de uma escritura, outorgada na cidade de Santiago em 1227.11.02, pela qual “domnus Iohannes Fernandi, dictus Ladron, canonicus compostellanus et soror mea dona Maria Fernandi filii quondam domni Fernandi Iohannis de Dubra et domne Sancie Iohannis” vendem a Pedro, prior do Mosteiro de Sar (Santiago), aquilo que possuí-

E a sobredita dona Maria Fernandes de Trastamar casou com dom João Airas de [A] moeiro, e fege nela dom Gonçal’ Eanes, o bom, rico homem [...] e dom Suer Anes e dom Fernão Anes de Duvra foram irmãos deste dom Gonçal’Eanes [...]. E dom Pedro Anes de Nóvoa, o Velho, foi filho de dom João Aires d’ Am[o]eiro e de dona Maria Fernandes, filha do conde dom Fernando de Trastamar [...]. E dom Fernão Anes de Du[v]r[a], irmão de Pero Eanes de Nóvoa, o Velho, foi casado com uma dona e fege nela Gonçalo Fernandes e dona Maria Fernandes [...]. E dona Maria Fernandes de Du[v]ra foi casada com dom Paio Gomes da Silva (LD 19L0-19T6).

117

O casamento de Maria Fernandes de Duvra com Paio Gomes da Silva estabelece uma ligação entre o grupo familiar de Osório Eanes e o trovador Rui Gomes de Briteiros (12201248). Com efeito, Urraca Gomes (irmã de Paio Gomes da Silva) casou com Gomes Mendes de Briteiros e foi mãe do trovador Rui Gomes de Briteiros; portanto, Maria Fernandes de Duvra foi tia (por afinidade) deste último e, ao mesmo tempo, prima de Osório Eanes (cf. supra). 118

“Não conhecemos outro indivíduo assaz ilustre para ocupar tantos anos aquele cargo [mordomo-mor] durante os reinados dos nossos terceiro e quarto reis senão Pedro Anes da Nóvoa, irmão de Gonçalo Anes, o mestre de Calatrava, e de Fernando Anes de Urró […]. Eram filhos, os três Anes, de João Aires de Ameiro, ou do Moeiro […]”. 119

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A sua ligação às terras de Duvra encontra explicação numa carta de 1181 [D.14].

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am nos distritos de Castela, Búval e no conjunto do bispado de Ourense. Também são referidas algumas propriedades de que eles detinham “tres quartas” partes: casal de Paços, Cornoces (conc. Amoeiro), Cova de Osso (conc. Ribadávia), Loureiro (conc. Amoeiro), Rouzôs (conc. Amoeiro) e Vinhao (conc. Punxim)121. Quanto a Sancha Eanes, mulher de Fernando Eanes, surge na concessão ao cabido da Sé de Ourense de uma quarta das igrejas de Cornoces e Rouzôs para que comemorem os aniversários da sua morte (COurense, nº 87 [1202]). Pedro Eanes (1182-1229) ocupou várias tenências na área mais diretamente vinculada à própria linhagem: Castela (1182, 1187, 1189), Búval (1185), Ribadávia (1188) e Nóvoa (1203)122. É interessante notar que, em 1197, ele agiu como pesquisador do rei sobre as obrigações do bispo de Ourense a respeito do castelo de Alhariz (Afonso IX, nº 106)123. O resto da carreira política de D. Pedro desenvolveu-se na corte portuguesa, onde exerceu como mordomo (1213-1223, 1228-1229) e tenente da Estremadura AHDS, Colegiada de Sar, maço 38, nº 10/B. João Fernandes Ladrão aparece bem representado na documentação da Sé de Santiago, estabelecimento em que ocupou o cargo de cônego tenencieiro: “Johanne Fernandi de Dubria canonicum tenenciarum Capituli compostellani” (Tombo C, fóls. 93v, 82v-93r, 37v; Tombo de Concórdias, fól. 34v [1250]). O registro dele nos Livros de Aniversários compostelanos (“Pro D. Johan Latrone canon. compost. dantur lbr. 80, scilicet de tenencia ipsius D. Johannis 40 et de tenencia de Villaverde lbr. 40. Processio ad domum comitum”, Leirós Fernández 1970: 27 [27 de janeiro]) reflete a pegada que deixou na instituição e que se traduziu na atribuição retroativa do apelido “de Duvra” à avó e mesmo ao bisavô materno (“Dantur 150 lbr. pro D. Fernando comite de Dubria patre domine Urraca Fernandi. Solvuntur de tenencia de Quinciana. Processio ad comites”, Leirós Fernández 1970: 212 [22 de março]). Outro representante dessa estirpe na Sé compostelana foi o cônego Pedro Eanes de Nóvoa, documentado em 1252 (Tombo C, fól. 260v “Domnus Petrus Iohannis dictus de Nouoa, canonicus compostelanus”). 121

122 Salvo no último caso, o cargo foi compartilhado com os irmãos e com o tio Fernando Airas Batissela: “Petrus Iohannis et eius frater Gondisaluus Iohannis tenentes Castellam” (Oseira, nº 63 [1182]), “Petrus Iohannis et Gundisaluus Iohannis in Bubula” (Fernando II, nº 224 [1185]), “princeps Castellae Petrus Iohannis et Goncialvus Iohannes et Osorio Iohannis” (Oseira, nº 73 [1187]), “tenente Burgo Fernandus Arie et Petrus Iohannis et Gundisaluus Iohannis” (Melón, nº 66 [1188]), “princeps Castelle Petrus Iohannes et suos germanos” (Oseira, nº 76 [1189]), “tenente Novoam Petrus Johannis” (Melón, nº 86 [1203]).

Monteagudo (2008: 325-326) considera que também foi tenente em Villafranca (1200, 1206-1207) em nome da ex-rainha Teresa. 123

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(1235) (Ventura 1992: 989, 1038)124. Uma consequência da sua deslocação para terras lusitanas foi o casamento com Urraca Peres da Maia (← Pedro Pais da Maia & Urraca Viegas de Ribadouro).

4. Dom Gonçal’ Eanes, o Boo Gonçalo Eanes (1182-1232), o irmão de Osório Eanes que atingiu maior relevância social, foi alferes real (1194) e tenente em Castela (1182, 1187-1189, 1195, 1205), Búval (1185, 1187), castelo de S. João de Nóvoa (1188), Ribadávia (1188), castelo de Pena Corneira (1189), Leão (1189), Lemos (1190, 1198-1199, 1206-1210), Coyanza (1194), Lima (1197-1203, 1206-1210), Aguiar de Pedraio (1199), Monterroso (1200-1202), Trastâmara (1200-1203), Gordón (1200), Cabrera (1200) e Benavente (1203). D. Gonçalo chegou a ser comendador-mor de Calatrava (c. 1215-1218)125 e posteriormente, entre 1218 e 1232, mestre dessa Ordem126, assim seguindo o exemplo do tio Fernando Oares, cavaleiro templário (cf. supra)127. A participação nas ordens militares de diversos indivíduos pertencentes à rede sociofamiliar dos Travas revela um claro paralelismo e contiguidade com o seu papel na implantação de Cister128. Lembremos que Urraca Peres, filha de Pedro Eanes casou com Nuno Vasques de Bragança (←Vasco Pires de Bragança & Sancha Pires de Baião). Gonçalo Nunes, filho dos anteriores e último representante dos Braganções, irá desenvolver a sua carreira política exilado na corte castelhana.

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Um “Gonçalo Eanes” foi comendador da Ordem de Santiago em Oreja c. 1206-1210 (Rades 1572: fól. 24r). 125

Esse dado chegou aos Livros de Linhagens: “dom Gonçal’ Eanes, o Boo, ricomen; e foi depois meestre de Calatrava, mui boo” (LC, 13C3). Existem algumas dúvidas sobre o período em que foi mestre de Calatrava. Rades (1572: 34v-39r) situa-o entre 1218 e 1238 mas O’Callaghan (1983: 433-439) descobre um mestre desconhecido, Fernando Peres, entre 1234/1235 e 1238. 126

127 O’Callaghan (1983: 434), tomando como ponto de referência um documento do papa Gregório IX, datado em 1234.03.21 (Ruano 1964: 559), considera a possibilidade de Gonçalo Eanes ter efetuado uma viagem à Terra Santa com o intuito de estabelecer uma casa da Ordem.

De fato, essas milícias representavam amiúde uma versão militante de Cister; com efeito, a Ordem do Templo foi regulamentada pelo próprio S. Bernardo de Claraval. A 128

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a presença dos templários em Portugal –provavelmente também na Galiza – se inicia com a entrega aos mesmos do castelo de Soure por parte da rainha Teresa e do conde Fernando Peres de Trava (DPRégios, nº 80 [1128])129. A Crónica de Calatrava (Rades 1572, fóls. 34v-39r), como em casos similares, giza uma síntese biográfica do mestre Gonçalo Eanes: El noveno maestre de Calatraua fue don Gonçalo Yañez, que en otras escripturas se dize don Gonçalo Joan y en Latin “Gundisaluus Ioannis”, mas todo es un sobre nombre y assi no son diferentes maestres como algunos piensan. Fue hijo de Joan Arias de Noboa, cavallero principal de Galizia [...]. Eligieronle por maestre desta Orden en la era de mill y dozientos y cinquenta y seys, año del Señor de mill y dozientos y diez y ocho [...] Este Cavallero fue uno de los que mas se señalaron en la batalla de las Navas de Tolosa, seys años antes que fuesse maestre [...] Era de mill y dozientos y setenta y seys, que fue año del Señor de mill y dozientos y treynta y ocho, murio el Maestre don Gonçal’ Iañez, aviendo governado la Orden veynte años.

A afinidade de D. Gonçalo com as ordens militares já se descobre, em 1214.12.26, quando D. Gonçalo entregava ao Mosteiro de Osseira aquilo que os templários possuíram em S. Fagundo de Cea (Oseira, nº 161): “Ego Gonsalvus Iohannis do et dono monasterio Sancte Marie Ursarie [...] totam villam Sancti Facundi cum tota illa parte quam in eadem villa noscuntur

ligação é ainda mais clara no caso da Ordem de Calatrava, integrada na própria estrutura dos mosteiros cistercienses desde 1187 (Ayala Martínez 2003: 67-80, Cunha 2009: 12). 129 O castelo fora entregue a Fernando Peres pela rainha Teresa. D. Fernando peregrinou duas vezes à Terra Santa e, após estas viagens, durante as quais terá reforçado o seu contato com a Ordem do Templo, parece ter favorecido a presença dos templários no Burgo de Faro (Corunha), que passou a ser o centro mais importante do Templo na Galiza (Pereira Martínez 2006b: 185). Notemos que a fase inicial do Templo na Galiza aparece associada à área do noroeste ourensano, espaço preferencial dos Bóvedas-Nóvoas-Travas. João Dias – acima citado pela sua relação com Oeiro Ordonhes – é o titular da mais antiga doação à Ordem do Santo Sepulcro, milícia que em origem aparece identificada com a do Templo “como si fueran una y la misma congregación” (Ferreiro Alemparte 1998: 342). A escritura de 1128.10.13, conservada em cópia posterior, transmite a entrega àquela milícia de uma herdade em Cusanca. Entre os confirmantes, encontramos os nomes de Airas Peres e de Oeiro – deturpado como Ruario – Ordonhes. Também aparece o conde Rodrigo Vélaz, personagem que confirma a doação do castelo de Soure. Rodrigo Álvares, neto de Rodrigo Vélaz, foi cavaleiro de Santiago (comendador em Portugal) e fundador da Ordem de Monte Gáudio (cf. supra). D. Rodrigo era primo segundo de Vela Guterres, pai de João Vélaz.

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habuisse fratres templari”130. Um precedente documental para esse donativo revela uma associação, com implicações literárias de grande interesse, entre o (futuro) mestre de Calatrava e o trovador Fernando Rodrigues de Calheiros. Referimo-nos a uma escritura lavrada na cidade de Burgos, em 1195, pela qual Gonçalo Eanes comprava a Manrico Rodrigues o pecúlio patrimonial que a este correspondia na Nogueira (Castrelo, conc. Cea) e em S. Fagundo (conc. Cea). Entre os confirmantes, encontramos Fernando Rodrigues de Calheiros, que poderá ter sido membro do séquito de Gonçalo Eanes e, portanto, ele também mílite (santiaguista?) [D.20]131. Essa ligação existente entre o Calheiros e o irmão de Osório Eanes afigura-se como uma via objetiva para esclarecer a participação precoce de D. Fernando Rodrigues no movimento lírico. A situação cronológica deste poeta, sugerida por alguns estudiosos132, vê-se confirmada por aquele documento e é coerente com uma rubrica de B que o situa(va) no limiar do setor dedicado às cantigas de amigo, isto no interior do cancioneiro de cavaleiros: “Esta folha adeante se começam as cantigas d’ amigo que fezerom os cavaleiros e o primeiro he Fernam Rodriguez de Calheiros”133. D. Gonçalo Eanes também aparece como elo de união com Rui Gomes o Freire, trovador situado imediatamente antes do Calheiros na

O documento é confirmado por freires do Templo, de Calatrava e da Espada. Sobre esse documento veja-se Pereira Martínez (2006b: 284). 130

As vieiras no brasão dos Calheiros sugerem uma relação com a Ordem de Santiago. Na escritura encontramos Airas Peres e Pedro Osores que poderiam ser sobrinhos de Gonçalo Eanes e, respetivamente, filhos de Pedro Eanes e Osório Eanes. Também aparece Bernardo Gonçalves, filho do próprio Gonçalo Eanes. Observamos ainda, entre as testemunhas, um Martim Fernandes “cantador”, cujo ofício talvez tenha estado ligado com o mundo trovadoresco. 131

A sua biografia foi descrita por Oliveira (1994: 244), que situa as origens familiares na área minhota de Ponte de Lima, onde os irmãos Pedro Rodrigues (1252) e Paio Rodrigues (1221-1252) tinham propriedades.

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133 Segundo os Livros de Linhagens, os Calheiros têm como origem as relações extramatrimoniais de Elvira Nunes, mulher de Soeiro Airas de Valadares: “E esta Elvira Nunes, sendo casada com dom Suer Arias, [jouve?] com Men de Lude e foi-se com ele […]. E deste Mem de Laude e d’ Elvira Nunes vem os Carpinteiros […] e os de Calheiros” (LD 13A2).

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secção das cantigas de amor. Oliveira (1994: 432), utilizando como fonte uma obra de José Anastácio de Figueiredo (1800: 231, n. 115), identificara-o com um “Rodrigo Gomes, freire da Ordem de Avis, que atesta a doação, pela rainha Mafalda, filha de Sancho I, dos seus bens em Seia à mesma ordem em 1215”. Ora, o conteúdo do original desse diploma revela que D. Gomes era, na verdade, membro da ordem de Calatrava – não de Avis – que acompanhava Gonçalo Eanes de Nóvoa: “Qui presentes fuerunt: Domnus Gonsalvus Iohannis frater ordinis calatravensis. Frater Hilarius et Rodericus Gomecii fratres eiusdem ordinis. Domnus Fernandus Menendi quondam abbas Alcobacie […]” [D.28]. Segue-se, portanto, que Rodrigo Gomes formava parte do séquito do irmão de Osório Eanes e que a sua naturalidade era, muito provavelmente, galega134.

IAN/TT, Ordem de Avis, maço 2, nº 74 [1215]

O fato de Gonçalo Eanes e de Rodrigo Gomes confirmarem a concessão de Mafalda a Avis explica-se na própria história desta última milícia. A Ordem de S. Bento de Avis, conhecida até 1211 como Milícia dos Freires de Évora, foi fundada c. 1176 “num contexto de avanço almóada e da impossibilidade manifestada pela Ordem do Templo em assegurar

134 Um Rui Gomes de Troncoso, freire da Ordem de Santiago, está documentado nos primeiros anos do séc. XIII em tempos do mestre (galego) Rui Vasques (Rades 1572: fól. 22v). Conhecemos um Troncoso que pertence ao concelho de Castrelo de Minho, adjacente a Ribadávia. A família conhecida por esse topônimo aparece, em tempos posteriores, vinculada às ordens de Santiago e Calatrava.

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eficazmente a defesa de algumas fortalezas que lhe haviam sido entregues por D. Afonso Henriques” (Cunha 2009: 70). Logo após a sua fundação, passou a ser filial de Calatrava135, milícia de obediência cisterciense criada cerca de vinte anos antes por Afonso VIII de Castela136. O nexo institucional entre ambas as ordens resultava, ocasionalmente, na presença do mestre de Calatrava junto dos freires de Avis: [..] a filiação implicava naturalmente as visitas do mestre de Calatrava ou de um seu representante ao braço português da Ordem, acompanhado de um abade cisterciense, com o objectivo de confirmar o mestre (no caso de ter ocorrido uma eleição), verificar a forma de vida e espiritualidade dos freires portugueses e a correcta gestão do seu património. No que respeita a Avis, a filiação permitia-lhe não só participar nas eleições do mestre castelhano mas também nos capítulos por ele convocados (Cunha 2009: 70)137.

5. Ego Osorius Johannis, miles O percurso biográfico e o cursus honorum de Osório Eanes podem ser reconstruídos a partir das notícias que nos fornecem diversos diplomas do último quartel do séc. XII e das primeiras décadas do seguinte. É assim factível situarmos, com notável segurança, a trajetória de vida de Osório Eanes entre c. 1165 e c. 1220, tomando como base a sua presença documental desde 1175 a 1217:

135 Javierre Mur (1952) analisa pormenorizadamente a presença da ordem de Calatrava em Portugal e, em particular, as suas ligações com a milícia de Avis. A Ordem de Avis, além de colaborar na ocupação portuguesa do Algarve, participou no processo de reconquista da Andaluzia por parte dos monarcas castelhanos (Javierre Mur 1952: 371-374). Veja-se também Cunha (1989).

Sobre as origens de Calatrava, veja-se Ayala Martínez (2003: 76-70). Este autor considera que a Ordem nasce guiada pela monarquia castelhana como substituição pactada da Ordem do Templo para “servir intereses no necesariamente hipotecados por responsabilidades extrapeninsulares” (p. 70). 136

137 Lembremos a provável presença de Gonçalo Eanes no convento de Avis em 1222 e 1226 por ocasião da eleição do mestre nesses anos (Ayala Martínez 2003: 90). Uma visita às propriedades de Avis em Cambra, perto de Arouca, levou-o a confirmar em 1223 uma escritura pela qual D. Garcia Sanches, freire de Calatrava e mestre de Alcântara, doou à ama de D.ª Mafalda o patrimônio que pertencera a um freire irmão dela: “Fratres qui presentes fuerunt sunt hii: [...] Gundisalvus Iohannis maioris magistri [...]” (IAN/TT, Mostº de Arouca, gaveta 3, maço 1, nº 48). Veja-se Marques – Soalheiro (2009: 342-342).

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01. 1175.06 ([D.10]): João Airas, a mulher Urraca e os filhos, Pedro, Osório, Airas, Sancha Eanes [...] vendem ao Mosteiro de S. Martinho Pinário uma propriedade nas margens do rio Minho138. 02. 1187.03.18 (Fernando II, nº 234): “Fernandus Arie et filiis Iohanis Arie Buual”. 03. 1187.10.18 (Oseira, nº 73): “princeps Castelle Petrus Iohannis et Goncialvus Iohannis et Osorio Iohannis”. 04. 1189.08.06 (Oseira, nº 76): “princeps in Castelle Petrus Johannes et suos germanos”. 05. 1193.04.17 (Tombo B, nº 26): “Osorio Iohannis [tenente] Albam de Buval”. 06. 1193.08.03 (Oseira, nº 83): Osório Eanes testemunha a venda de uma herdade na vila de Vide a Adão Peres de Tamalhancos por parte de Pedro Eanes. 07. 1195 (ACO, Santa Comba de Naves, nº 87): “Osorio Iohannis tenente Buval”. 08. 1196.01.01 (RSil, nº 7): “Domnus Osorius Iohannis ts.” 09. 1197 (ACO, Santa Comba de Naves, nº 91): “Domnus Osorius in Alva dominante”. 10. 1199.12.08 (Afonso IX, nº 135): “Osorius Iohannis Albam de Buual139. 11. 1200 (SClodio, nº 12): “tenente terra Castelle Osorius Iohannis”. 12. 1200.10.04 ([D.26]): Pedro Eanes vende ao Cabido de Santiago um casal Baluga (Santa Comba de Trevoedo, conc. Maside) que linda com outra propriedade de Osório Eanes. 13. c. 1200 (Oseira, nº 1296): “Osorium Iohannis quem ego [Maior Peres] nutriui”. 14. 1201.08.20 (Celanova, nº 4): “Gundisaluis Iohannis tenens Limiam et Montem Rosum […]. Petrus Iohannis cf. Osorius Iohannis cf. Arias Iohannis cf.”

138 A área do pergaminho em que se encontra(va)m os nomes dos filhos aparece muito danificada ou mesmo amputada em diversos pontos; no entanto, o espaço livre e três fragmentos do pergaminho permitem reconstituir alguns nomes, entre eles o de Osório Eanes. A escritura é confirmada pelo rei Fernando II e o filho Afonso [D.10].

Afonso IX dota a mulher, D.ª Berengária, com trinta castelos: “Ego Adefonsus, Dei gratia rex Legionensis, do in dotem uxori mee, regine domne Berengarie, filie domni Aldefonsi regis Castelle 139

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15. 1204 (COurense, nº 93): “Tenente Limiam Gunsaluo Iohannis. Et Buualum Osorio Iohannis”. 16. 1204 (GH, nº 87): “Tenente Buualum domno Osorio Iohannis”. 17. 1205 (ACO, S. Clódio, nº 102): “Tenente Aluam Osorio Iohannis”. 18. 1205.10.01 (SClodio, nº 13): “Tenente Castella Osorio Iohannis”. 19. 1207.05.24 (SClodio, nº 14): “tenente Albam Osorio Iohannis”. 20. 1209.04 (Tombo C: fól. 71v): “tenente Burgum Suerio Arie et Osorio Iohannis”. 21. 1213.10.19 (Melón, nº 119): “tenente terra de Castela Ossorio Ioannis et Fernando Ioannis”. 22. 1215.03.14 (TSobrado II, nº 189): “Osorius Iohannis testis et presens”. 23. 1217.06.10 ([D.29]): “Osorius Iohannis, miles” oferece diversas propriedades ao cabido de Santiago140.

Subscrição de Osório Eanes e dos irmãos (ACO, Privilégios, 2/8 [1201])

Sabemos que Osório Eanes foi criado em casa de Maior Peres, tia do trovador Pedro Pais Bazaco. O dado consta de uma cláusula do testamento dessa dona pela qual o trovador era beneficiado com um casal em Paços (conc. Vila Marim): “Mando ad Osorium Iohannis, quem ego nutriui, et rogo eum ut accipiat casale de Palacios et ut dimittat proinde hereditates de Trevoedo filiis meis” (Oseira, nº 1296). Maior Peres Bazaco 140 Entre as testemunhas de um prazo de 1232.01.13 (Oseira, nº 349) outorgado pelo mestre do Templo a João Eanes sobre uma propriedade em Amoeiro, encontramos o nome de um Osório Eanes (também de um Gonçalo Eanes), que supomos mílite templário. Não temos elementos que nos permitam identificá-lo com o trovador.

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foi a mulher de Múnio Fernandes de Rodeiro (I), primo-segundo – por duas linhas familiares – do próprio Osório Eanes (cf. supra). Por outro lado, para além das conexões que decorrem da sua adscrição aos Limas e aos Travas, devemos lembrar que o rei Afonso IX foi instruído na casa do próprio Osório Eanes (cf. supra). Trata-se de um fato muito notável, de que se terão seguido importantes consequências para D. Osório, algumas de natureza cultural (cf. infra). Apesar de não ter atingido a projeção do progenitor, Osório Eanes usufruiu de um considerável relevo político. Seguindo a trajetória do pai e do avô, assumiu o cargo de tenente em diversos pontos da margem norte do Minho centro-meridional: Búval (1187, 1195, 1204), Castela (1187, 1200, 1205, 1213), Alva de Búval (1193, 1197, 1199, 1205, 1207)141 e Ribadávia (1209). Sabemos que Osório Eanes tinha propriedades no interior desse mesmo espaço, concretamente em Trevoedo e em Amarante (conc. Maside). Por outro lado, o último documento – o único de que é titular – evidencia que contava com parte de um imóvel na compostelana praça do Campo. Essa mesma escritura alude ao usufruto de um benefício eclesiástico em Santa Maria de Alom (conc. Santa Comba)142. Quanto ao seu grupo familiar específico, é possível que tenham sido filhos do trovador Gonçalo (1219, 1221), Marina (1207) e Rodrigo Osores (1221), documentados no primeiro quartel do séc. XIII143.

141 O castelo de Alva de Búval estava situado na margem esquerda do rio Formigueiro, perto da aldeia deste mesmo nome (conc. Amoeiro). 142 Airas Fernandes Carpancho deteve uma prebenda similar nessa mesma igreja (Souto Cabo – Vieira 2003: 258-259). 143 Marina Osores é a mulher de um Airas Fernandes que deu ao cabido de Santiago diversos bens, entre eles um casal em Santa Maria de Amarante (c. Maside) (Tombo C, fóls. 196r, 197v, 285v). Gonçalo Osores foi tenente de Búval em 1219 (SCNaves, nº 12). Rodrigo e Gonçalo Osores – o primeiro como donatário e o segundo como testemunha – aparecem numa doação ao mosteiro buvalense de Santa Comba de Naves (SCNaves, nº 14). Também localizamos um Pedro Osores em 1195 na escritura em que surgem Gonçalo Eanes de Nóvoa e Fernando Rodrigues de Calheiros [D.20]. Como foi dito, Sancha Osores, mulher de Pedro Garcia de Bragança, poderia ter sido filha do trovador.

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6. Os seus versos de amor Entre os trovadores que, de modo nítido, demonstram um conhecimento da poesia de além-Pireneus surge logo o nome de Osório Eanes, porventura o mais occitânico dos nossos autores. É isso que conclui Miranda (2004: 108) após uma análise de concordâncias lexicais entre a obra de Osório Eanes e os poetas provençais: Embora muitos destes usos lexicais, conceptuais e temáticos estivessem disseminados um pouco por toda a poesia occitânica [...] – e sobretudo na obra de alguns trovadores que sabemos mantiveram relações estreitas com meios afectos ao Ocidente peninsular –, o facto de se poderem achar conjuntamente em Bernart de Ventadorn transforma Osoir’ Anes num dos trovadores galego-portugueses mais íntima e profundamente inseridos nos hábitos poéticos da poesia de amor occitânica, o que, só por si, poderá ser revelador dos meios e das condições em que exerceu o seu mester.

No concernente aos vínculos de natureza literária com outros poetas galego-portugueses, foram constatadas notáveis concomitâncias, em especial, com Fernando Pais de Tamalhancos e João Soares Somesso, com os quais compartilha, entre outros aspetos, o motivo da “chanson de change” (canção de troca)144. Trata-se de uma modalidade temática em que, violando alguns dos princípios da erótica cortês, o sujeito decide rejeitar a mulher amada e trocá-la por outra. O tópico, amiúde associado à obra de Uc de Sant Circ, remonta a Bernart de Ventadorn, Giraut de Bornelh, Raimbaut de Vaqueiras, Raimon Jordan ou Peire Vidal. Como dissemos, esse argumento está presente na obra de Osório Eanes (Cuidei eu de meu coraçon; Eu, que nova senhor filhei) e também em Fernando Pais de Tamalhancos (Con vossa graça, mia senhor e Non sei dona que podesse)145 e João Soares Somesso (Punhei eu muit’ en me guardar)146, autor, o último, que se revela

144

Seguimos os trabalhos de Marcenaro ([no prelo]) e de Monteagudo (2008: 368-392).

A vida e a obra deste poeta foram abordadas num trabalho monográfico (Souto Cabo [no prelo/1]). A proximidade biográfica e literária com Osório Eanes é notável, quer do ponto de vista familiar, quer do ponto de vista da localização espacial, já que ambos compartilham o mesmo setor geográfico. A nível poético também foram identificadas notáveis correspondências entre Tamalhancos e João Soares Somesso ou Rui Gomes o Freire. 145

Noutros textos destes três autores, o motivo registra algumas variantes que o afastam do padrão retórico. 146

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como o trovador mais afim a Osório Eanes147. Outros elementos retóricos ou expressivos148 aproximam-no de Airas Moniz de Asma, Fernando Rodrigues de Calheiros149, Rui Gomes o Freire150 e Vasco Praga de Sandim151. Como se evidencia ao longo das páginas deste trabalho, vários desses autores mantêm laços sociais e de parentesco com Osório Eanes.

7. Airas Oares Na posição nº 9 dos nomes arrolados na TC (fól. 300v), imediatamente antes de Osório Eanes, ocorre uma sequência gráfica descontínua de três elementos: “Ayra s oarez”, que foi percebida como equivalente a “Airas Soares”152. Em consonância com essa interpretação, o trovador em

Sobre a presença do topos na cantiga Punhei eu muit’ en me quitar de Fernando Garcia de Esgaravunha, veja-se Ramos (2009).

147

Marcenaro ([no prelo]) faz algumas observações à análise das concordâncias linguísticas entre Osório Eanes e outros trovadores levada a cabo por Monteagudo (2008: 369). Assim, parece que o “ouir” registrado na cantiga E porque me desamades? é apenas um erro por “outr’”: (“E, certas, sabiades: / outr’ amor non desejei, vv. 7-11). Lapa (1970, nº 301) também estampou aquela forma no último verso de uma tenção entre Martim Soares e Paio Soares de Taveirós (“ren per que se pague d’el quen n’ ouir”), emendando errada ou desnecessariamente a forma “uir” (“ui[i]r”?) de B (nº 144): “ren per que se pague d’el quen-o ui[i] r”. Do anterior segue-se que aquele infinitivo (“ouir”) não está presente na lírica profana. 148

Notemos, neste caso, a proximidade no incipit das cantigas Min pres forçadamente amor de Osório Eanes e Min fez meter meu coraçon de Fernando Rodrigues de Calheiros. O texto de Osório Eanes tem sido associado, do ponto de vista formal, à cantiga Per pauc de chantar no me lais de Peire Vidal (c. 1193-1194), que apresenta estrutura métrica (8 ababccdd) “poco diffusa nella lirica trobadorica” (Canettieri & Pulsoni 2003: 139). Airas Moniz de Asma utiliza esse mesmo esquema em Pois mi non val d’ eu muit’ amar (cf. infra).

149

Rui Gomes “o Freire”, em Oimais non sei eu, mia senhor, utiliza um esquema métrico pouco frequente (8 abbaccdd, Tavani 1967, nº 168.6-7) que observamos em Sazon é ja de me partir de Osório Eanes. O antecedente para este último parece estar em Nuls hom no pot d’ amor gandir (c. 1188-1189) de Peire Vidal com o qual também compartilha as rimas en -ir e -or e as palavras-rima amor, guarir e senhor; bem como o argumento do sofrimento pela perda do favor da mulher amada. Veja-se Canettieri – Pulsoni (2003: 141-142) e Marcenaro ([no prelo]). 150

151 Entre outros aspetos, o motivo da prisão de amor, raro na cantiga de amor, vincula Cuidei eu de meu coraçon de Osório Eanes a Per bõa fe, meu coraçon de Sandim.

Gonçalves (1976: 408) junta o esse à vogal inicial do patronímico e integra outro hipoteticamente faltoso: “Ayra[s] Soarez”. 152

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foco poderia ser identificado com o “Arias Sueri, laycus” que testemunha a venda de um monte em Cudeiro (conc. Ourense) ao Mosteiro de Sar por Pedro Airas (GH, nº 87 [1204]). Ele seria também o “Arias laicus” que achamos em 1193 (Oseira, nº 85) e o “Arie Suerii de Codairo” citado, em modo pretérito, numa escritura de 1252 (COurense, nº 259)153. No entanto, a leitura da TC remete para “Ayras Oarez” em qualquer uma das interpretações possíveis. A colocação voluntária do esse no intervalo que separa “Ayra” e “oarez”, mas afastado de ambos, deixa transparecer a incerteza sobre a identificação (e segmentação) de elementos no antropônimo “Ayras Oarez”, cujo segundo elemento não foi reconhecido. Do mesmo modo, se o que estava na fonte – de que deriva a TC – era “Ayrasoarez” (com os elementos soldados)154, a conclusão nominal voltaria a ser a mesma, já que a tipologia de escrita utilizada discrimina entre o fonema sonoro e o surdo (-s– vs. –ss-) em contexto intervocálico155. De fato, nesse caso, a base para “Ayras Soarez” só poderia ter sido “Ayrassoarez”, o que não iria criar qualquer problema de representação ao autor da TC.

Távola Colocciana, fól. 300v

Cudeiro (ou Codeiro), no antigo distrito de Búval, situa-se numa área próxima do Mosteiro de Bóveda (conc. Amoeiro). 153

154

A situação da TC não favorece esta segunda hipótese.

155

Lembremos que a TC é, muito provavelmente, índice de B.

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A hipótese sobre a forma do nome vê-se apoiada pelos dados histórico-documentais. Notemos, antes de mais, que a origem familiar deste Airas Oares poderá situar-se no ramo paterno da linhagem de Osório Eanes. Com efeito, a estirpe dos Bóvedas teve como sinal nominativo o uso de Oeiro (lat. Oduario) e, portanto, do patronímico Oares (lat. Odoarii), cuja versão romance medieval era Oarez156. Como vimos, um dos filhos de Airas Calvo foi Oeiro Airas que, por sua vez, terá sido o pai do Arias Odoarii (Airas Oares) que confirma um escrito de 1187.05.07 [D.19] lavrado em Osseira, estabelecimento monástico ligado ao grupo dos Oares-Limas-Travas157. Ora bem, Elvira Peres, tia de Pedro Pais Bazaco, esteve casada com um indivíduo que, a julgarmos pelo patronímico e nomes dos filhos, utilizou essa denominação, o que nos permite identificá-lo conjeturalmente com ele (cf. infra). Airas Oares terá sido primo direito de Osório Eanes e tio por afinidade de Pedro Pais Bazaco, o que condiz com as respetivas localizações cronológicas (cf. infra)158.

Oeiro [OD(U)ARIO> O(d)airo> Oairo> Oeiro] e Oarez [OD(U)ARICI> O(d)aridz(e)> Oariz> Oarez] estão amplamente documentados e refletem a evolução fonética esperada. 156

157 Na mesma zona, encontramos essa fórmula antroponímica no primeiro quartel do séc. XIII atribuída a um frade de Osseira (Oseira, nº 191 [1219]) e ao indivíduo que vendia uma herdade em Longos (conc. Cea) a Airas Fernandes, talvez o marido da filha de Osório Eanes (Oseira, nº 259 [1224]).

Numa escritura compostelana de 1230 aparece, como confirmante, um escudeiro com o nome de Airas Oares: “Arias Oduariz, armiger” (Tombo C, fóls. 232r-232v). 158

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CAPÍTULO IV TROVADORES GALAICO-MINHOTOS

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Cena jogralesca na igreja de S. Miguel do Monte (conc. Chantada).

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A presença dos grupos familiares que resultaram da fusão dos Limas e Travas na área ourensana do Minho pode ser considerada a causa que, em última instância, explique o fato de vários trovadores do grupo mais antigo serem originários dessa região. Lembremos os vínculos que a monarquia galaico-leonesa estabeleceu com aquela estirpe, visualizados no fato de Afonso IX ter sido instruído no seio dessa linhagem e nesse espaço. As relações com esse âmbito social e geográfico serão perpetuadas pelo monarca ao longo da sua vida, segundo atestam, entre outros, os dados referidos a várias das suas concubinas (Calderón Medina 2011b). Além de Osório Eanes, ao menos, outros cinco trovadores podem ser aproximados dessa área: Pedro Pais Bazaco, Airas Moniz de Asma, Diogo Moniz, Fernando Pais de Tamalhancos e João Soares Somesso1. A concorrência geográfica vai, amiúde, acompanhada de parentesco e, o que é mais importante, de diálogo poético (cf. supra).

1. Pedro Pais Bazaco Pedro Pais Bazaco, situado após Airas Moniz de Asma e Diogo Moniz e antes de João Vélaz, ocupa o terceiro lugar na sequência de autores enumerados na TC. O trovador contava com oito cantigas de amor, infelizmente perdidas, o que fazia dele, junto com Osório Eanes, o poeta mais bem representado no conjunto dos treze primeiros autores daquele inventário. A primeira aproximação à sua biografia foi efetuada por Oliveira, que identificou o poeta com o “Petrus Pelagii, filius meus” citado numa das cláusulas do testamento do pai Paio Peres Bazaco (COurense, nº 82)2. A esse grupo, provavelmente, devamos somar o nome de Nuno Eanes Cêrceo, ligado patrimonialmente a Belesar (Melias, conc. Coles), na antiga terra de Aguiar de Pedraio (Souto Cabo 1996). A dos Ribelas é outra estirpe vinculada ao mundo do trovadorismo cujas origens se situam na terra de Búval, concretamente na freguesia do mesmo nome do atual concelho de Coles. Paio Soares de Ribela, pai do trovador Rui Pais de Ribela, confirma a escritura de 1204 acima citada (GH, nº 87). Também localizamos um Pedro Airas de Ribela como testemunha numa escritura de 1227 (SCNaves, nº 14) de que é titular Rodrigo Osores, provável filho do Osório Eanes.

1

“Este investigador [Duro Peña] teve a amabilidade de nos enviar uma cópia deste documento onde, entre vários familiares de Paio Bazoco, é mencionado seu filho Pero Pais, certamente o trovador em causa” (Oliveira 1987: 20).

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Outros trabalhos posteriores ajudaram a estabelecer com algum pormenor as conexões familiares e sociais em que se integrou este trovador (Monteagudo 2008: 346-359). Pedro Bazaco (1135-1161)3, avô do poeta e o mais antigo representante conhecido da estirpe, foi tenente de Búval (1148). Ele autorizou, entre outros proprietários da área, a presença dos frades “in locum desertum qui uocatur Ursaria” (Oseira, nº 14 [1137]) e confirmou, juntamente com alguns dos próceres principais do reino, a fundação efetiva do cenóbio de Osseira por parte de Afonso VII4. Monteagudo (2008: 348-349) registrou oito filhos de Pedro Bazaco como resultado de dois casamentos (com Teresa Airas e com Urraca Lopes): Fernando (1192)5, Gomes (1186-1207), João (1192), Maior (1193-1206), Maria (1169-1192)6, Paio (1191-1204), Teresa (1167-1173) e Toda Peres (1188-1206). Como já foi sublinhado, trata-se de um grupo familiar ligado diretamente a dois dos principais estabelecimentos Numa escritura de 1155 encontramos um Pedro Baltsac (Oseira, nº 31) que Monteagudo (2008: 348) identifica com Pedro Bazaco, vindo a deduzir que: “A variante Baltsac suxire unha orixe occitana (existe un lugar denominado Balsac no corazón de Occitania ...); Bazaco constituiría unha adaptación vernacularizada daquela”. No nosso entender, esse Pedro Baltsac antes deve ser identificado com um indivíduo de naturalidade gala que acompanhava Vital (“scriptor” do próprio diploma), abade do mosteiro premonstratense de S. Leonardo de Retuerta (Valhadolid), a quem Rodrigo Peres “o Veloso” e a mulher, Fruílhe Fernandes (avós de Rui Dias dos Cameros), davam diversas propriedades. A ordem dos premonstratenses foi fundada por S. Norberto em Prémontré (Aisne) na França, em 1120.

3

“Ego Petrus Bazaccus qui prefatum locum iussu domini imperatoris cautaui et confirmo” (Oseira, nº 15 [1137]) (cf. supra).

4

João Fernandes Bazaco, muito provavelmente filho do anterior, é testemunha numa escritura de interesse para o cabido compostelano lavrada, em 1230, na cidade de Santiago (Tombo C, fóls. 246v-247r). Em 1234 registramos um Rodrigo Peres, “connomento Bazaco”, que oferece ao Mosteiro de Caveiro a parte que lhe pertence na Igreja de Bemantes (conc. Minho) (TCaveiro, nº 216). Não sabemos qual é o relacionamento que pôde manter com a linhagem em questão. Um Bermudo Bazaco surge, em 1213, numa escritura de Sobrado (TSobrado, I, nº 453). 5

A cessão patrimonial efetuada por Maria Peres a favor de Toda Peres em 1169 (DDozón, nº 18) é muito elucidativa sobre as áreas em que se localizavam as propriedades da família: “Ego Maria Petriz [...] Placuit michi per bona pacis et per bona uoluntatem ut faceremos ad uobis kartulam de donationis de hereditatem meam propriam quem habeo de meo patre et de mea matre [Urraca Lopes] in loco predicto in Deca, in Taveirolas, in Buval, in Asma, in Camba, in Montes, in Riba Ulia, in Durra, in Lemos, in Sarria”. Trata-se de um vasto espaço no interior da Galiza cujo perímetro pode ser definido pelas localidades de Ourense, Monforte, Sárria, Vila de Cruzes, Estrada e Carvalhinho.

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monásticos da zona: Vila Nova de Doçom (ou Deçom) e Osseira. Teresa e Toda foram abadessas do primeiro, assim inaugurando uma prática que se manterá nas seguintes gerações. Osseira foi escolhido como sepultura por Maior Peres (“ego domna Maiore mando corpus meus ad Sancta Maria de Ursaria”, Oseira, nº 1296) e por Paio Peres Bazaco (“Pelagio Bazaco... mando corpus meum ad Sanctam Mariam de Ursaria”, COurense, nº 82)7. Gomes Peres Bazaco, talvez o primogênito entre os homens, foi o filho que atingiu maior brilho político. Sabemos que Fernando II recompensou os seus serviços, entregando-lhe o reguengo de Santa Eulália da Aguada (conc. Carvalhedo) no extremo setentrional da terra de Búval (Oseira, nº 72 [1186])8. É significativa a sua ligação a alguns membros dos Travas e Limas, concretamente ao conde Gomes Gonçalves – pai de Rodrigo Gomes de Trava –, em nome do qual chegou a exercer como tenente de Asma em 11919. Maior Peres Bazaco é bem conhecida graças ao seu testamento (Oseira, nº 1296 [c. 1200]). De acordo com os dados dessa manda e doutros escritos do período, pensamos que foi mulher de Múnio Fernandes de Rodeiro e mãe de Fernando Moniz de Rodeiro e de Paio Moniz de Refronteira (cf. supra)10. Como dissemos, este vínculo com a importante estirpe dos Rodeiros pode explicar a razão pela qual Osório Eanes, aparentado diretamente com eles, será criado em casa dessa senhora (cf. supra). É possível que entre as filhas de Pedro Bazaco ainda devamos contar uma Elvira Peres que, junto com os filhos: Pedro, Oeiro, Fernando, Soeiro, Mendo, Diogo, Maior, Teresa e Maria Airas, doava ao Mosteiro de

Monteagudo (2008: 359) considera que João Peres foi o prior de Osseira documentado em 1192 (Oseira, nº 80).

7

Ele aparece ainda como um dos garantes do pacto econômico entre Afonso IX e a rainha Berengária em 1207 (Afonso IX, nº 219).

8

“comite domno Gomecio tenente Monte Rosum et Trastamarem, domno Gomecio Petri tenente Asma de sua manu” (Oseira, nº 79). Também pode ser relacionado com Teresa Bermudes de Trava e Fernando Airas Batissela aos quais vendeu uma herdade em Lalom (conc. Leiro) (Camanzo, nº 8).

9

Monteagudo (2008: 352) discrimina, como pessoas diferentes, Paio Moniz de Rodeiro e Paio Moniz de Refronteira, nomes que, em nosso entender, têm como referente um único indivíduo. 10

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Sar o que lhe pertencia no Porto de Ourense e num casal de Bovadela (conc. Ourense) em 1188 (AHDS, Colegiada de Sar, maço 38, nº 10)11. Notemos que Toda Peres Bazaco foi usufrutuária de uma parte da igreja de Bovadela (Monteagudo 2008: 349, n. 15) e que Paio Peres Bazaco, pai do trovador, contava com um casal nesse local, segundo consta do seu testamento. Tendo em vista as práticas antroponímicas do período, é muito provável que o marido de Elvira Peres tivesse o nome de Airas Oares, o que sugere a sua identificação com o trovador homônimo (cf. supra). Paio Peres Bazaco aparece, pela primeira vez, no grupo dos homens bons que, em 1191, foram testemunhas do acordo entre Toda Peres Bazaco e Fernando Guterres sobre a posse de metade da Igreja de Santa Eulália de Camba e de três casais (DDozón, nº 18)12. Dois anos mais tarde, é ele o Pelagius Bazaco que vende a herdade dita de Santa Eufêmia em Santa Marinha de Orvám (conc. Vila Marim) a Pedro Pais e à mulher Maior Pais (Bazaco?) (Oseira, nº 84)13. O arquivo da sé de Ourense custodia o seu testamento (COurense, nº 82), sem cláusula cronológica, datável de 1195-120014. Por esse diploma, vimos a saber dos laços que mantinha Oeiro (“Odoarius Arie de Lamas”), Diogo, Pedro e Mendo Airas testemunham, em 1204, a venda do monte Cudeiro ao Mosteiro de Sar (GH, nº 87 [1204]) outorgada por um Pedro Airas cuja relação com os anteriores levanta algumas dúvidas. Este (outro?) Pedro Airas declara-se “sobrinho materno” de D.ª Teresa e de D. Paio (“Therasie matertere mee et domni Pelagii auunculi mei”), identificados com o casal formado por Teresa Moniz e Paio Moniz de Refronteira (o filho de Maior Peres Bazaco), os quais autorizam a transação. O território adquirido pelo mosteiro compostelano parece encontrar-se numa área próxima ou contígua daquele que fora cedido por Elvira Peres. Por outro lado, Pedro Airas ratifica em 1206 a venda (e permuta) de uma herdade no monte dos Cóscaros (conc. Pinhor de Cea) a favor do Mosteiro de Osseira (Oseira, nº 115): “ego Petrus Arie vendidi L. abbati Ursarie et monasterio totam hereditatem quam domnus Arias pater meus habuit in monte illo qui dicitur Coscaros”. Oeiro Airas de Lamas é testemunha e fiador desse negócio: “Oerius Airas de Lamas miles testis et fideussor de supradictam conuentionem”, o que assegura que se trata dos filhos de Elvira Peres.

11

Monteagudo (2008: 355) supõe “sen total seguranza” que é ele o indivíduo citado noutras cartas de 1161 e 1199. 12

13 O monte a que se alude nesse escrito – hoje conhecido como Sagrade – encontra-se precisamente em Santa Marinha de Orvám, uma das atuais freguesias do concelho de Vila Marim.

A alusão a um “Iohanne, prior Ursarie” identificável com João Peres, prior de Osseira (Oseira, nº 80 [1192]) e a Toda Peres como abadessa de Doçom (1188, 1191) leva-nos a propor aquela localização cronológica. Seja como for, essa manda testamentária deve ser 14

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com várias instituições religiosas por ele favorecidas: a Sé de Ourense e os mosteiros de Osseira (onde pede para ser enterrado), de Doçom e de S. Martinho Pinário de Santiago. Também retiramos diversos dados sobre o seu patrimônio, localizado no interior de Pontevedra (Camba, Deça, Doçom) e sobretudo no noroeste de Ourense (Búval15 e Castela16). O pai do trovador encetou matrimônio com Maria Pais Dorra (← Paio Pais Dorra & Aldonça Rodrigues17), mãe de Maior e de Pedro Pais Bazaco, e, em segundas núpcias, com Maria Peres. Quando mandou lavrar o seu testamento, Paio Peres esperava um filho dessa última esposa, (meio-) irmão com o qual Pedro Pais Bazaco deveria partilhar alguns bens durante a minoridade18. Pedro Pais ainda recebeu do pai um casal em Vila Marim: “Aliud que est in Uilamarin quod tenet Suerius Arii det Petrus Pelagii, filius meus”. Essas referências constituem o primeiro registro histórico seguro do trovador. No entanto, o mais recuado poderá remontar a 1184 (Oseira, nº 70), se for possível identificá-lo com o Pedro Pais que, junto com a mulher e os filhos, permutava com o mosteiro de Osseira o que lhe pertencia na Igreja de Santiago das Cales (Coiras, conc. Pinhor de Cea) pelo casal de Vila Meá em Torrezela (conc. Pinhor de Cea). Posteriormente, para além doutras atestações imprecisas por ausência do apelativo familiar (Oseira, nº 79 [1191]; COurense, nº 93 [1204]19; Oseira, nº 119 [1207]; Oseira, nº 152 [1213]; Oseira, nº 214 [1221]), localizamos o trovador em 1223 quando anterior a 1205.02.10, altura em que registramos um novo prior de nome Fernando (Oseira, nº 111). 15

Entre outras terras, alude-se a Cudeiro: “quanto habeo in Codeiro”.

Nesta terra situam-se um casal na Grova e dois em Ventosela, que deixa ao Mosteiro de S. Martinho Pinário de Santiago. A Grova (Sanim) e Ventosela são locais próximos no atual concelho de Ribadávia. 16

Descobrimos dados sobre os ascendentes da mãe e os filhos do trovador em várias escrituras do Mosteiro de Sobrado (TSobrado II, nº 276, 429). 17

“et omnem hereditatem meam que restat mando ei et diuidat fratre suo qui nasciturus ex Maria Petri, et dum ipse puer fuerit Petrus teneat hereditatem et det inde adiutorium scilicet uictum et uestitum, et cum puer uenerit ad uirilem etatem medietatem hereditatis recipiat”. 18

19 Monteagudo (2008: 356) supõe que Pedro Pais Bazaco poderia ser quem vende – na verdade oferece – à Sé de Ourense um casal em Vila Marim: “Ese casal de Vilamarín puidera ser o que en 1204 vendeu á catedral de Ourense un Pero Paez de Vilamarin, quen neste caso poderiamos identificar co noso trovador”. Porém, o nome do titular da escritura é Pedro Peres; “Petrus Pelagii de Uillamarim” é apenas uma testemunha.

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vende ao Mosteiro de Osseira propriedades situadas em Aguada (conc. Carvalhedo), no extremo norte de Búval20. A última presença ativa situar-se-á em 1224.03 no foro do monte de Casderrande (conc. Vila Marim) outorgado pela abadessa de Doçom, Urraca Gomes, prima dele (Dozón, nº 4421). A escassa atestação do trovador ao longo da década de 90 aponta para um afastamento temporário das terras de origem. Essa circunstância explicar-se-á se o identificarmos com o “Bazaco” que confirma, em 1197, uma venda de propriedades em Barrueco Pardo, na atual província de Salamanca (SMarcos, nº 147)22. O senhorio da vila salmantina fora cedido por Afonso IX à Ordem de Santiago em 1195 (Afonso IX, nº 92); portanto, é lógico supormos, com algum fundamento, que este (Pedro Pais?) Bazaco pôde formar parte dessa última milícia. Pedro Pais Bazaco terá falecido entre 1224.03 e 1227.06.25, quando a mulher, Maria Peres, e os filhos (Pedro, Domingos e Marina Peres) vendiam ao mosteiro de Sobrado propriedades que Pedro Pais herdara da mãe, Maria Pais Dorra23. Maria Peres era prima do próprio marido, enquanto filha de Pedro Pais Dorra, um irmão de Maria Pais Dorra24. A linhagem dos Dorras tomou o nome de uma freguesia situada no centro-norte da Galiza 20 “Ego Petrus Bacacus do vobis totam hereditatem que fuit de Iohanne Benedictiz in Aguata et in Arvogoria et in Blandian” (Oseira, nº 238). 21 Notemos que, também neste caso, só consta como “Petrus Pelagii”. Um “Petrus Bazacho Poderoso” surge numa escritura de 1231 lavrada, provavelmente, no distrito de Camba (Oseira, nº 344), mas a omissão do patronímico impede-nos de confirmar a sua identificação com o trovador.

O vendedor, Gomes Peres, foi provavelmene um filho daquele Pedro Fernandes, súdito de Armengol VII, a quem, em 1181, o conde catalão cedera essa vila em feudo, reservando para ele o senhorio da vila. Barruecopardo estava em posse de Armengol VII desde 1177, quando lhe foi dada pelo concelho de Ledesma (Barton 1997: 233-234). 22

23 “Ego Maria Petri cum filiis meis, Petrus Petri et Dominicus Petri et Marina Petri, et omnis uox nostra, uendimus uobis fratri Michaeli, magistro de Guisone, et uobis fratribus de Supperado, totas hereditates meas quas mihi dedit maritus meus Petrus Bazacu, in dote corporis mei ex parte matris sue Marie Pelagii, filie Pelagii de Dorra et de Eldonza Roderici, filia de Roderico Almadran” (TSobrado II, nº 276). 24 “Rodericus Almadran habuit Vº filios, Eldontia Roderici, Petrus Penas, Petrum Roderici de Dornana, Fernandum Roderici de Friol, Sancia Roderici [...] Eldontia Petri habuit IIIIor filios, Petrus Pelaz de Dorra, Maria Pelaz, Marina Pelaiz, Pelagio Pelagii. Petrus Pelaz de Dorra habuit Vº filios, Orraca Petri et Maria Petri et Fernan Petri et Maria de Sancto Mamete et Dominica Petri, filie Marina Munit” (TSobrado I, nº 406 e 278, 376, 381).

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(conc. Antas de Ulha), numa área próxima do mosteiro de Sobrado, com o qual mantiveram vínculos de tipo econômico. A perda da produção de Pedro Pais Bazaco impede-nos de apurar com algum detalhe quais foram as conexões literárias com outros poetas do período. Todavia, as coordenadas temporais e espaciais em que se integra permitem relacioná-lo, em primeiro lugar, pelos motivos familiares acima colecionados, com Osório Eanes e com Airas Oares, e ainda com outros autores vinculados a Osório Eanes, nomeadamente Fernando Pais de Tamalhancos (1196-1242). Efetivamente, temos indícios que apontam para uma grande proximidade biográfica entre o anterior e Pedro Pais Bazaco. Não só foram em boa medida contemporâneos, também concentravam uma parte do seu patrimônio na mesma região geográfica: o noroeste da cidade de Ourense, ao redor das localidades de Cudeiro, Vila Marim e Tamalhancos. Como vimos, Pedro Pais Bazaco recebeu do pai um casal em Vila Marim, num espaço dominado pelos Tamalhancos desde a primeira metade do século XII, altura em que Afonso VII deu a Fernando Eanes, bisavô de Fernando Pais, Vila Marim (cf. infra).

2. Fernando Pais de Tamalhancos A grande notoriedade pública da linhagem a que pertenceu Fernando Pais de Tamalhancos (1196-1242) faz com que seja um dos trovadores de biografia pessoal e familiar mais bem conhecida25. A documentação veio demonstrar que era descendente de Elvira Peres de Trava e de Gomes Nunes de Celanova, tetravós do poeta e pais de Urraca Gomes. Do matrimônio desta última com Fernando Eanes de Montoro26 resultou D. Varela (Fernandes), progenitor de Paio (Moniz) Varela, o pai de Fernando Pais. Entre os filhos de Fernando Eanes de Montoro, personagem relevante A existência de um trabalho monográfico sobre este autor (Souto Cabo [no prelo/1]) – ao qual remetemos –, leva-nos a reproduzir apenas uma síntese do mesmo há pouco publicada (Souto Cabo 2011a: 379-380). 25

Filho de João Ramires, representante de Raimundo de Borgonha quando este exercia como governador de Toronho. A implantação territorial deste ramo familiar leva-nos à área do Morrazo, contígua a Toronho no noroeste. 26

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nos meios da corte de Afonso VII, também encontramos Paio Curvo de Toronho, de cujo casamento com Toda Moniz (sobrinha do arcebispo Diogo Gelmires27) foi fruto aquela Maria Pais que provocou a morte (literária?) de amor do seu parente Pedro Rodrigues da Palmeira (cf. infra). A identificação dos antepassados do Tamalhancos desvenda o motivo por que Fernando Pais, numa cantiga, denomina “coirmãa” a abadessa de Dormeá (conc. Boimorto). Visto que esse mosteiro foi instituído por Lupa Peres de Trava, irmã de Elvira Peres, é lógico supormos que a anônima abadessa pertencia – como costumava acontecer – à estirpe fundadora, portanto à do próprio poeta. Paio Moniz Varela e o filho, Fernando Pais de Tamalhancos, ocuparam a alferesia em 1197, cargo ao qual o pai acrescentou, nesse mesmo ano, a função de mordomo de Afonso IX. É interessante notar que em agosto do ano seguinte surge na corte de Sancho I de Portugal como testemunha numa doação desse monarca: “Testes autem qui presentes fuerunt: Pelagius Moniz Varela […]” (Sancho I, nº 111). A partir desse momento e até 1202, ele permaneceu na cúria lusitana, chegando a ocupar o posto de alferes entre 1199 e 120228. A sua presença junto do monarca português constitui um prenúncio da participação dos Limas (Nóvoa e Batissela) em funções palatinas com Afonso II e Sancho II (cf. supra). Para além dos ancestrais comuns e da contiguidade geográfica (cf. infra), os Tamalhancos ligaram-se aos Batisselas pelo casamento do trovador, em segundas núpcias, com Teresa Lopes de Ulhoa, sobrinha de João Fernandes Batissela, alferes e mordomo de Sancho II. Por sua vez, Sancha Fernandes, filha do Tamalhancos, foi desposada por Fernando Gil Batissela, sobrinho desse João Fernandes. Como manifesta o próprio antrotopônimo com que é conhecido, Fernando Pais aparece associado ao já citado território de Búval. É nele

27 Existem dados para considerar Airas Fernandes Carpancho como descendente de Pedro Gelmires, um irmão do arcebispo Diogo Gelmires. Veja-se Souto Cabo – Vieira (2003). 28 Sancho I, nº 111, 112, 113, 114, 115 (“domnus Pelagius Moniz signifer domini regis” [1199]), 116, 118, 121, 122, 124, 125, 126, 128, 132, 134, 138, 140, 144. Ventura (1992: 993) supõe que se trata de Paio Moniz de Cabreira e Ribeira. É possível que nessa identificação tenha influído o fato de nos Livros de Linhagens ser referido um único “Paio Moniz” filho de Múnio Soares de Ribeira e pai de Maria Pais Ribeira (LV 1AO9, LC 13A4, etc.).

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que se integra a localidade de Tamalhancos (conc.Vila Marim)29, onde exerceu como tenente durante um longo período de tempo (1216-1240). Essa localização geográfica coincide com a que foi desenhada para os Limas, estirpe com a qual, como acabamos de ver, D. Fernando mesmo estabeleceu (novos) laços familiares. Os nexos de natureza diversa que manteve com essa linhagem ajudam a explicar a existência de coincidências retóricas e linguísticas com Osório Eanes (cf. supra). Do mesmo modo, vários paralelismos históricos e literários com João Soares Somesso30 e com Lopo Lias levam a pensar numa experiência poética compartilhada com os anteriores nas terras do sudoeste galego ou talvez na área do Morrazo, espaço dominado pela estirpe de D. Fernando desde meados do séc. XII31. Notemos finalmente os indícios, sugeridos na alínea que se segue, acerca da relação social e/ou familiar do Tamalhancos com Airas Moniz de Asma (e com Diogo Moniz).

3. Airas Moniz de Asma e Diogo Moniz Airas Moniz de Asma32 e Diogo Moniz, cada um com duas cantigas de amor, abrem na atualidade o elenco de poetas representados em B. Essa primazia, que remonta à “compilação geral”, contrasta com as 29 Também sabemos que contava com propriedades nas terras do Morrazo (Pontevedra), de Asma (Lugo) e na área asturicense do reino de Leão, de onde procedia, provavelmente, um ramo dos seus antepassados. 30 Além do tema da troca da senhor, acarinhado por ambos, o incipit da cantiga Con vossa graça, mia senhor de Fernando Pais logo nos lembra os de João Soares Somesso Con vossa coita, mia senhor e Con vosso medo, mia senhor. Segundo se expõe neste trabalho, é possível que o Somesso tenha pertencido por via materna aos Limas.

A conexão com Lopo Lias, além de envolver alguns aspetos literários, tem implicações mais complexas. Veja-se Souto Cabo (2012b). 31

A presença (duvidosa) da forma “Asme” em B, preterida como resultado deturpado por “Asma” (Oliveira 1994: 316-317), permitiu que fosse considerado português: “Provavelmente de origem portuguesa. Asme, ou S. Lourenço d’ Asme fica ao pé de Ermesinde, na Maia” (Michaëlis 1904: 525). Lembremos que, como notou Oliveira, a forma medieval dessa povoação lusitana foi “Asmes”. Vejam-se os esclarecimentos de Montero Santalha (2000: 43-44): “Deve considerar-se errada a leitura Asme, que se vem dando tradicionalmente ao sobrenome deste trovador, que se deve ler Asma. Por duas razões: 1) Porque no manuscrito trovadoresco aparece Asma e não Asme; e 2) Porque o suposto topónimo Asme não existe nem nunca existiu, enquanto Asma é topónimo antigo e ainda hoje bem vivo”. 32

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incertezas que pairam sobre a biografia deles. Porém, a sua integração num segmento concreto da tradição manuscrita caraterizado por uma grande afinidade social, junto com a referência toponímica à terra de Asma33 – apensa a Airas Moniz –, induzem a concluir que se trata de indivíduos pertencentes ao núcleo poético estudado nesta secção. Consideramos que foram, muito provavelmente, dois irmãos, seguindo a sugestão de Michaëlis (1904: 526) perfilhada por Oliveira (1994: 327): “É [Diogo Moniz], juntamente com Airas Moniz, o único autor deste patronímico presente nos cancioneiros. A associação de ambos [...] poderá sugerir, como referiu C. Michaëlis, que nos encontramos perante dois autores da mesma família, eventualmente dois irmãos”34. A colocação cronológica que advém da inserção de Airas Moniz no grupo de trovadores em apreço não se concilia com a (hipotética) dependência poética, alegada por Beltrán (1985, 1989), entre Pois mi non val d’ eu muit’ amar de Airas Moniz a respeito de Tant auta domna·m fai amar de Bonifácio Calvo. Com efeito, visto que a canso foi elaborada durante a estadia do genovês na corte de Afonso X (c. 1250-1260), a atividade poética de Airas Moniz de Asma deveria, então, ser situada no terceiro quartel do séc. XIII: “no cabe ya dudar de que Ayras Moniz d’Asme no pertenece al primer tercio del siglo XIII, puesto que prolongó su actividad hasta los albores del período alfonsí, y que independientemente de su naturaleza – gallego o portugués – hemos de adscribir su producción a la corte castellana” (Beltrán 1985: 53). O professor de Barcelona estabelece aquela conexão baseando-se numa suposta complementariedade temática e, por outro lado, no fato de compartilharem a mesma estrutura métrica (8 ababccdd35), bem

33 A terra de Asma (no extremo sudoeste da atual província de Lugo) limita-se ao sul com os distritos de Castela, Búval e Aguiar. 34 Monteagudo (2008: 359-360) prefere “manter en suspenso a suposición sobre o seu parentesco” e identifica Diogo Moniz com um indivíduo, citado no testamento de Maior Peres Bazaco, que julga filho de Múnio Dias “laycus de Codario” (GH, nº 87 [1204]). 35 Beltrán (1985: 52) observa, contudo, que essa combinação de rimas “está entre las más frecuentes y banales de la tradición provenzal”. Pelo contrário, na lírica galego-portuguesa só se registra em Airas Moniz e em Osório Eanes (cf. infra). O mesmo esquema de rimas, mas em versos decassílabos, foi usado por Martim Soares e por Pedro Garcia Burgalês.

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como na coincidência de dois vocábulos em rima (BonCalv: amar, ai = AirMnz: amar, ei). A respeito do motivo argumental, é duvidoso que o poema de Airas Moniz seja uma espécie de paródia do provençal como sugere Beltrán. A dificuldade em manter o segredo sobre a identidade da dama é um assunto ambíguo no texto de Bonifácio Calvo que poderia estar relacionado com a biografia real do autor36. Airas Moniz, para vingar-se da falta de correspondência amorosa, mostra-se disposto a declarar a identidade da senhor. Esta decisão anti-cortês não se chega a consubstanciar, sendo apenas um pretexto conceptual sobre o qual irá assentar o elogio, tão hiperbólico quanto impreciso, das qualidades da senhor: “saberan de quen tort’ ei: / Da que á melhor semelhar / de quantas no mund’ ome vir’, e mais mansa sabe falar / das que ome falar oir; /non vo-la ei chus a dizer / quenquer x’ a pode entender”37. Quanto aos aspetos formais citados, o modelo para Airas Moniz foi, muito provavelmente, a cantiga Min pres forçadamente amor de Osório Eanes, com a qual concorda perfeitamente no esquema métrico e no uso da palavra rimante amar. Já a presença da forma verbal ei, em idêntica situação, fará todo o sentido se for relacionada com a rima C (precisamente “-ei”) utilizada por esse último autor (baratei, tornei, farei, sei). Do anterior, segue-se a impossibilidade de identificar Airas Moniz de Asma com um Airas Muñiz “de criazón del rey don Fernando” beneficiado no repartimento de Sevilha38. Oliveira (1994: 317), apesar de aceitar a vinculação poética entre Airas Moniz e Bonifácio Calvo, optou por o identificar com um “Arias Nuni de Asma armiger” que testemunha, em 1224, o testamento de um Pedro Fernandes “laycus de Burgo Ripe Avie” (Oseira, nº 24). Essa possibilidade 36 Trata-se da possibilidade de Bonifácio Calvo ter cantado a uma dama da família real, notícia transmitida por Jean de Nostredame. 37 Em Meus amigos, direi-vos que mi aven, Pedro Garcia Burgalês explora o motivo de modo muito similar: “Moiro [...] / por unha dona. Mais non vos direi / seu nome; mais tanto vos direi én: est a mais fremosa que no mundo á”. Vieira (2009) trata esses casos vinculando-os à cultura escolástica.

A possibilidade foi sugerida por Beltrán (1989). Porém, esse estudioso reconhece que “tampoco se puede demostrar que este Arias Muñiz sea el trovador; es más, las relaciones de repobladores abundan en Airas o Airas, y no son raros los Muñiz o Moniz” (p. 13). 38

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enfrenta algumas dificuldades, a começar pelo patronímico do escudeiro, cuja versão romance teria sido “Nunez” (ou “Nuniz”), mas não “Moniz”39. É verdade que uma transmissão manuscrita/editorial tem gerado a troca entre “Munio” e “Nuno” e entre os patronímicos respetivos, mas o erro não deve ser elevado à categoria de norma. O estatuto do “escudeiro” Airas Nunes também não se coaduna com a camada social em que, como estamos a ver, aparece integrado o conjunto de poetas aqui analisados. Relativamente à atribuição do topônimo “Asma”, não é seguro que se possa falar de uma espécie de nome de família nem que exista qualquer nexo do trovador com o escudeiro ou com alguma outra personagem caraterizada por essa referência geográfica. O uso de apelidos linhagísticos é um fenômeno que se manifesta de modo esporádico nesta altura. Se levarmos em consideração o alto grau de solidariedade (política, social e familiar) que observamos no grupo dos mais antigos trovadores, parece lógico identificar o poeta com um Airas Moniz que, em 1219.04, exercia como tenente de Alva (“tenente Alva Arias Munionis”, Oseira, nº 185), na área meridional da terra de Búval (cf. supra). Trata-se de um cargo que foi ocupado, antes e depois dessa data, por Osório Eanes (1193, 1197, 1199, 1205, 1207) e, sobretudo, por Fernando Pais de Tamalhancos (1216-1218, 1227, 1232-1233, 1236, 1238, 124040). Como vemos, é particularmente significativa a vinculação de Fernando Pais àquela tenência durante 24 anos, o que nos move a entender que era uma área de interesse preferencial para o seu grupo familiar. Assim, não seria aventuroso pensar que, como acontece em casos similares, o tenente de Alva de que falamos tenha mantido algum tipo de contato social direto ou mesmo laços de parentesco com o senhor de Tamalhancos. O exercício desse cargo institucional não será o único ponto de encontro entre este último e “um” Airas Moniz. No núcleo documental 39 Oliveira (1994: 317) aduz como justificação que: “a forma nominal Airas «Moniz» parece ter sido preterida, cá, pela forma Airas «Nunes»”. 40 Lembremos que Fernando Pais foi tenente do distrito de Búval no mesmo período (1216, 1222, 1229, 1231, 1233, 1239-1242). A aparente intermitência no exercício do cargo é amiúde resultado da falta de dados e não da transferência do mesmo a outros indivíduos. De fato, para além de Fernando Pais e de Airas Moniz, só o encontramos atribuído a Pedro de Pedibus (1220) e a Fernando Guterres de Castro (1224).

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de Osseira achamos uma manda testamentária [D.37] outorgada por um indivíduo desse nome que pode ser outro elemento chave para apurar a identificação histórica do trovador41. Por ela sabemos que o testador pediu para ser sepultado no mosteiro de Osseira e deixou a essa instituição um cavalo e diversos casais em Esmeriz, Esmoriz e Pinheiro (Bermum, conc. Chantada). Trata-se de locais no extremo norocidental da terra de Asma, situados entre os cursos fluviais do Asma e do Comezo, afluente do anterior. Por uma informação que Argote de Molina (1866) transmitiu sobre Fernando Pais de Tamalhancos e os seus ancestrais42, sabemos que este último tinha recebido de Afonso IX as vilas de Santo Estêvão de Cartelos, Santa Cristina (Asma)43, Bucinhos e Ruviás (conc. Carvalhedo), que nos remetem para uma área geográfica adjacente à anterior, da qual é separada apenas pelo rio Asma44. Se tal doação régia tinha como alvo consolidar a existência de um patrimônio familiar pré-existente45, calculamos que outros parentes também contaram com posses nessa mesma zona, o que nos induz a pensar na existência de vínculos familiares entre Airas Moniz e Fernando Pais de Tamalhancos. Esta hipótese viria explicar a razão por que Airas Moniz (de Asma) exerceu como tenente de Alva, substituindo provisoriamente o (alegado) parente, e justifica a presença de Airas e Diogo Moniz nesse segmento da tradição manuscrita46.

O diploma não contém cláusulas cronológicas mas terá sido redigido no primeiro terço do séc. XIII. Nesse texto aparece citado, como já falecido, um João Gostiz que foi, com a mulher, nutritor do próprio Airas Moniz. É possível que se trate do irmão mais velho de um Fernando Gostiz, documentado como frade de Osseira entre 1215 e 1227. 41

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Veja-se Souto Cabo ([no prelo/1]).

No fragmento reproduzido por Argote de Molina lemos “Sancta Cruz”, mas trata-se muito provavelmente de uma expansão imperfeita da abreviatura correspondente a “Santa Cristina”, local na freguesia de (Santa Cristina de) Asma. Os restantes topônimos também ocorrem – nessa fonte – com formas desfiguradas, embora facilmente identificáveis. 43

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Cartelos e Esmoriz são freguesias adjacentes.

Encontramo-nos num espaço já muito próximo do distrito de Camba, de que o próprio Fernando Pais foi tenente, em 1238, junto com Múnio Fernandes de Rodeiro (Oseira, nº 432 [1232]: “tenente Cambam domnus Fernandus Pelaiz et domnus Munio Fernandi”). 45

O patronímico “Moniz” permitiria relacioná-los com Paio Moniz (← Múnio Fernandes de Rodeiro & Maior Peres Bazaco) ou com a mulher dele, Teresa Moniz. 46

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4. João Soares Somesso 4.1. Ego domnus Johannes Suerii, dictus Submessu As vinte e cinco cantigas preservadas pela tradição manuscrita fazem de João Soares Somesso47, junto com Vasco Praga de Sandim, o poeta com maior representação entre aqueles que são contemplados neste trabalho. Por outro lado, do ponto de vista cronológico, estamos provavelmente perante o autor mais tardio do grupo (cf. infra). É isso que sugerem dois testemunhos documentais pelos quais constatamos, de modo seguro, a presença histórica do trovador nos anos de 1223 e 1242 em duas áreas do antigo distrito de Toronho, no extremo sudoeste da Galiza. O mais recuado situa-o na terra de S. Martinho48, quando doava ao mosteiro lusitano de Fiães (conc. Melgaço) um casal na villa de “Chaianos” (conc. Crecente) [D.30]49. A segunda escritura, lavrada na cidade de Tui em 1242.03.25 [D.33], reflete uma permuta patrimonial entre João Soares, dicto “Sumenso”, e D. Lucas, bispo da cidade galega50. Por ela, o trovador transferia Em face à proposta de Michaëlis (1904: 307), que considerava “Somesso” como uma alcunha, Ron Fernández (2005: 132-133) supõe que se trata de um topônimo – situado perto de Celanova – citado no Tombo de Celanova: “pensamos que o apelido non é un alcume... senón que pode referirse a un topónimo. De se poder identificar con este Somesso, o trobador poderia ser natural desta localidade”. Do nosso ponto de vista, o modo como é mencionado em B e na documentação (sem a preposição ‘de’) impede-nos de aceitar essa última hipótese e leva-nos a pensar que se tratava de um apodo com valor desambiguador (cf. infra). 47

48 Essa terra menor de Toronho, assim conhecida por nela assentar o castelo de S. Martinho de Ladrons (Fernández Rodríguez 2004: 59-62), ocupava o sudeste dessa jurisdição administrativa, o que corresponde, aproximadamente, aos atuais concelhos da Canhiza, Neves, Arvo e Crecente. Estamos, portanto, na região limítrofe com a antiga terra de Valadares portuguesa da qual é separada pelo rio Minho. 49 Esse topônimo (com diversas grafias) designava uma área nas freguesias de Crecente e do Freixo (conc. Crecente), segundo se depreende de alguns dos locais (Nane, Cruzes e Costa) que nele se integravam (cf. infra). A documentação demonstra que o mosteiro assumiu a posse dessa propriedade: “hereditate nostra quam habemus in Chaianos, sicut diuidit per aquam de Fonte Bona et deuide ad castero de Monte et ad Cruces quantum ibi habemus” (Fiães, nº 231 [1227], nº 232 [1223]). De acordo com uma carta de 1254 (Melón, nº 571), a villa também se espraiava pelas margens do Minho. É possível que o topônimo tenha sobrevivido até à época moderna como “Chagueáns” (Vázquez Martínez 1948b: 252) ou “Chagiáns”. 50

O documento fora citado por Galindo Romeo (1923: 78, 150).

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ao prelado os direitos de patronato que tinha nas igrejas de Santa Cristina de Baleixe (conc. Canhiza) e Santa Eugênia de Setados (conc. Neves), na mesma terra de S. Martinho. Em contrapartida, D. João ganhava o usufruto dos casais de Paço e Sucarreira (nessa última freguesia), doados por ele próprio à Sé de Tui noutra altura. Contamos ainda com um João Somesso (“Iohannes Sumesso” [D.31]) que, em 1230, confirmava uma escritura de interesse para o mosteiro de Vilar de Donas (conc. Palas de Rei), o mais importante estabelecimento da Ordem de Santiago na Galiza. Apesar de não constar o estatuto dessa personagem, o mais provável é que tenha sido freire da Ordem de Santiago (cf. infra). Porém, a omissão do patronímico pode tornar mais incerto identificar nele o trovador em apreço51. Carolina Michëlis (1904: 297-307) reconheceu João Soares Somesso (1212-1247) como o filho homônimo de Soeiro Airas de Valadares e de uma senhora de nome desconhecido, que identificou com Maior Peres de Bravães. A proposta baseia-se no conteúdo da sua produção satírica e num passo dos Livros de Linhagens em que se alude a um indivíduo desse nome gabado pelas aptidões poéticas: “E o sobredito dom Soeiro Aires, des que lhe foi Elvira Nunes com Mem de Laude, casou com uma infante de Galiza, e fege nela João Soares, que foi bom trovador” (LD 13F2)52. Airas Nunes e Ximena Nunes “ambos naturaes de Galiza” (LD 13A1) são considerados os mais antigos representantes dos Valadares em Portugal53. Eles foram os pais de Soeiro Airas de Valadares (1152-1183), personagem da corte de Afonso Henriques que exerceu como tenente na

51 Ron Fernández (2005: 137) nota a existência de um João Rodrigues Somesso em Monfero no ano de 1224: “Máis dubidosa – aínda que non imposible – é a súa identificación co I. Submesso presente en Vilar de Donas. Podería tratarse aquí do Johannes Roderici apodado Submesso, que xunto coa súa irmá Maria Roderici, fillos de Roderici Pelaiz, venden a Pedro Calvo, monxe de Santa María de Monfero, a herdade de Freamelle”. 52 Os Livros de Linhagens chegam a atribuir quatro matrimônios a Soeiro Airas, mas só neste passo é que se alude a João Soares [Somesso] (cf. infra). 53 Como acima foi dito, Fernandes (1992: 146, n. 182) supõe que os Valadares foram um ramo secundário dos Limas, mas aduz argumentos pouco concludentes. A proposta baseia-se na identificação de Airas Nunes com Airas Calvo, hipótese que encerra numerosas dificuldades. Os Valadares, junto com os Celanovas ou Soverosas, são um exemplo da fixação de nobres galegos em Portugal no século XII (Pizarro 2010: 901, Ferreira 2009).

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terra luso-minhota de Valadares54. Do matrimônio de Soeiro Airas com Elvira Nunes Velho resultou Paio Soares de Valadares (1183-1203), rico-homem da corte de Sancho II e tenente no Riba Minho. Por sua vez, Paio Soares casou com Elvira Vasques de Soverosa (I) (tia do trovador Vasco Gil) de quem teve Soeiro Pais (1222-1250). D. Soeiro também foi tenente do Riba Minho55 e está registrado na corte portuguesa, até 1250, com Afonso II, Sancho II e Afonso III (Ventura 1992: 725-726). Ele ocupou o cargo de mordomo na cúria galaico-leonesa de Afonso IX (1225) de manu do infante Pedro Sanches (Afonso IX, nº 450)56. João Soares Somesso teria sido meio-irmão de Paio Soares de Valadares, como fruto do casamento de Soeiro Airas com uma senhora (galega) de identidade duvidosa57 (cf. infra). O que até aqui foi apresentado constitui a teoria tradicional sobre a integração familiar do poeta. Porém, pensamos que existem indícios para duvidar da sua veracidade histórica. Já vimos que a identificação de João Soares Somesso com João Soares de Valadares assenta na informação transmitida por um passo do Livro do Deão que o faz filho de Soeiro Airas de Valadares e de uma infanta da Galiza (LD F2) (cf. supra). As restantes alusões ao pai não referem a existência desse filho, nem sequer o casamento com a dama galega. Esta última tem sido identificada com Maria Afonso, filha de Afonso IX, também assinalada por essas fontes como esposa desse Soeiro Airas e mãe do trovador Afonso Soares Sarraça (1262). Porém, neste caso, a crítica optou por considerar que “a identificação do pai do trovador com Soeiro Aires de Valadares, feita pelo Livro do Deão, deve

54 Afonso Henriques doou-lhe o couto de S. Vicente (Alvaredo, conc. Melgaço) que, mais tarde, trocou com o bispo de Tui (Ventura 1992: 337). 55 Registramo-lo como tenente de Valadares, de modo descontínuo, entre 1209 e 1230 (Ferro Couselo 1995: 351). 56 Um Lourenço Soares registrado na corte de Afonso IX (mordomo [1205, 1219], alferes [1195-1196, 1204] e tenente [1204-1219, 1224]) foi identificado com um filho de Soeiro Airas (Ferreira 2009: 161-167). É possível que, à luz das conclusões deste parágrafo, essa hipótese deva ser repensada.

Pizarro (1997: 786-787) considera Maria Afonso de Leão (filha – ilegítima – de Afonso IX e de Teresa Gil de Soverosa) como segunda mulher de Soeiro Airas, o que é cronologicamente impossível. 57

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ser posta de parte, porquanto este deve ter morrido por volta de 1179” (Oliveira 1994: 312)58. Na verdade, tudo leva a crer que literatura linhagística amalgamou em Soeiro Airas de Valadares os dados de, pelo menos, dois indivíduos homônimos de cronologias, em parte, dissemelhantes. Essa confusão terá também envolvido a figura de João Soares “que foi bom trovador” identificável com João Soares Somesso59. Com efeito, mesmo considerando a hipótese de vários casamentos, afigura-se realmente improvável que o trovador tivesse sobrevivido ao pai em cerca de 65 anos e em mais de 40 ao irmão Paio Soares (cf. supra)60. Se admitirmos que a literatura linhagística transmite a verdade, pelo menos, sobre a denominação do pai, então será necessário identificar um Soeiro Airas, atestado por volta de 1200-1220, cuja identidade possa ter sido fundida com o (homônimo) senhor de Valadares. A documentação registra, com efeito, um Soeiro Airas que assumiu, nesse período, a tenência de S. Martinho de Ladrons (Melón, nº 83 [1202], 92 [1204]; Fiães, nº 250 [120961]) e ainda a de Ribadávia (Oseira, nº 113 [1205]), Orzelhão (Oseira, nº 124 [1208]) e Francelos (Melón, nº 108 [1211]). Esses testemunhos harmonizam-se, sem criar fricções, com o que conhecemos sobre a cronologia e geografia política do poeta, bem como com as conjeturas que podemos tecer sobre o seu hipotético progenitor. No entanto, nada assegura 58 De fato, Maria Afonso está registrada, pelo menos, até 1275 (Melón, nº 761). A última referência documental de Teresa Gil, mãe dela, é de 1269 (Melón, nº 704). 59 Lembremos que o Livro do Deão não lhe atribui a apostila “Somesso” com que é identificado na tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa.

Paio Soares e a mulher, Elvira Vasques de Soverosa, contavam, em 1192, com filhos e filhas (Fiães, nº 4): “cum filiis et filiabus meis”. Lembremos que, de acordo com Calleja Puerta (2001: 169), a idade média para o casamento dos homens nobres era de trinta anos, vinte e um para as mulheres. Aliás, alguns estudiosos consideram que pode existir uma lacuna nos Livros de Linhagens em torno dos Valadares entre finais do séc. XII e primeiras décadas do seguinte. De facto, esse cenário levou a dissociar em dois indivíduos diferentes Lourenço e Rui Soares (Pizarro 1997: 786-787, Ferreira 2009: 162-167). 60

Na edição, o documento é atribuído ao ano de 1179 de acordo com o numeral latino (“M.ª CC.ª XVII”). Porém, a citação do bispo D. Soeiro em Tui (1205-1216) e do rei D. Afonso IX (1188-1230) garantem que se trata de 1209. O erro deriva, certamente, da presença de um xis aspado (=XL) no original, não reconhecido como tal pelo copista do tombo.

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que aquele Soeiro Airas tenha sido membro da linhagem de Valadares, antes pelo contrário, trata-se muito provavelmente de um indivíduo pertencente à estirpe galega dos Fornelos, filho de Airas Nunes de Fornelos e de Maior Peres “Pobre” de Bravães (cf. infra), também citado no Livro do Deão: Sancha Nunes foi casada com dom Paio Vasques de Bravães, e fez em ela Pero Paes, o Prove. E este Pero Paes, o Prove, foi casado com dona Examea Nunes, madre de dom Sueiro Aires de Valadares, e fez em ela dona Mor Peres, a Prove. E esta dona Mor Peres, a Prove, foi casada com Aires Nunes de Fornelos, e fege nela dom Sueiro Aires de Fornelos e don Pedro Aires e dona Maria Aires. E esta Maria foi barregam d’ el rei dom Sancho I de Portugal, e fege nela don Martim Sanches [...] (LD 14F6-9)62

Como vemos, os Livros de Linhagens desenham um muito notável paralelismo, genealógico e onomástico, entre os antecedentes de Soeiro Airas de Valadares e os de Soeiro Airas de Fornelos. Assim, a identidade antroponímica entre eles soma-se à dos seus pais (Airas Nunes de Valadares e Airas Nunes de Fornelos) e ao fato de ambos terem partilhado Ximena Nunes como antecedente familiar: mãe do de Valadares e avó do de Fornelos63. Essas semelhanças poderão ter dado ensejo à transferência de dados dos Fornelos “a favor” dos (seus vizinhos) Valadares64. Aliás, a

Pizarro (1997: 288), com base na lição de LD 22A2, considera que a mulher de Paio Vasques de Bravães foi, na verdade, Sancha Soares (1112), filha de Soeiro Nunes Velho (I). Paio Vasques (1125), alferes da rainha Teresa e tenente de Riba Lima, foi protegido pelos Travas (Mattoso 1988: 141, 143). A linhagem Bravães toma o nome da freguesia homônima no concelho limiano de Ponte da Barca (Alto Minho). Relativamente aos Velhos, eles fixaram-se “na faixa litoral entre Cávado e Lima, aproximando-se, mesmo, do Minho” (Pizarro 1997: 323). Foram patronos dos mosteiros de Santo Antonino de Barbudo (conc. Vila Verde) e de Carvoeiro (conc. Viana do Castelo) e da igreja da Vinha (conc. Viana do Castelo). 62

Outro ponto de encontro genealógico está em Nuno Soares Velho II, pai de Elvira Nunes, mulher de Soeiro Airas de Valadares (LC 42A5-6), e bisavô de Maior Peres Velho, mãe de Soeiro Aires de Fornelos (LD 14C3-F6-8). Vejam-se, contudo, as observações de Pizarro (1997: 287-288).

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Pizarro (1997: 786, n. 10) identifica uma possível de transferência de dados entre as duas linhagens: “Cremos, contudo, que os livros de linhagens veicularam uma informação errada: assim, em LD 14F7-8 afirma-se que Mor Pires de Bravães c.c. Aires Nunes de Fornelos e foi mãe de Soeiro Aires de Fornelos, versão que terá sido deturpada, em nosso entender, na transmissão para LL25J2, o único texto que refere Soeiro Aires de Valadares c.c. Mor Pires de Fornelos”. Os Livros de Linhagens não aludem – no passo acima repro64

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multiplicidade de matrimônios – três ou quatro – contraídos, segundo a literatura linhagística, por D. Soeiro Airas de Valadares é um motivo para suspeitarmos que nem todos lhe diziam respeito. Pelo contrário, Soeiro Airas de Fornelos aparece desprovido de qualquer referência conjugal, o que, desde logo, causa alguma estranheza. Pensamos que existem indícios efetivos para aventar a hipótese de João Soares Somesso ter sido filho de Soeiro Airas de Fornelos e não de Soeiro Airas de Valadares. De fato, com os dados disponíveis, parece não existir outra alternativa65. Quanto aos que, segundo esta hipótese, foram antecedentes familiares do trovador, devemos citar, em primeiro lugar, a figura de Pedro Pais “Pobre” (de Bravães) bisavô materno. Encontramo-lo referido em dois atos diplomáticos régios de 1161 (Fernando II, nº 36) e 1166 (Fernando II, nº 77)66. No primeiro, exerce como testemunha na disputa que existia entre os mosteiros de Melom e de Ante-Altares. O seu nome surge a seguir aos de João e Pedro Airas – pai e tio, respetivamente, de Osório Eanes – o que sugere algum tipo de relação com os Limas, originários dessa mesma zona. D. Pedro Pais conta com uma participação mais ativa no segundo dos escritos, pois é precisamente a pedido dele que o monarca deu ao mosteiro de Melom a veiga de Francelos (conc. Ribadávia): “[...] illam ueigam de Francelos que iacet contra Arnoiam quomodo diuidit de Castrelo husque ad faucem Arnoie cum media Dareza […] concedo pro remedio anime mee et parentum meorum et pro rogatum uassalli mei Petri Pelagii dicti «Pauperis»” (Fernando II, nº 77)67. Como vimos, segundo o Livro do Deão, Pedro Pais foi sogro de “Airas Nunes”, personagem em quem podemos reconhecer o duzido – a Mor Peres de Bravães, mas a Mor Peres Pobre (cf. supra). Mesmo assim, o exemplo não perde o valor probatório. Notemos que à luz da “hipótese tradicional” a presença de João Soares Somesso na camada mais antiga da tradição trovadoresca não encontrava fácil explicação, uma vez que não se constatam laços firmes com aqueles âmbitos sociofamiliares donde se difunde esse molde poético. 65

66 Marques – Soalheiro (2009: 298) consideram que o nome da filha de Pedro Pais Pobre poderá ter sido Goncina “pois é frequente o nome Mor ter o valor de cognome”. Essa senhora recebeu uma doação de Afonso Henriques em 1183 na villa de Golães (conc. Fafe).

A sua consideração como “vassalo” deve-se ao fato de ser um nobre lusitano acolhido na corte de Fernando II. Calderón Medina (2011: 256-257) explica o uso de vassalus regis com esse valor. 67

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“Arias Muniz” que era tenente de S. Martinho em 1174 (Melón, nº 41)68. Os dados até agora coligidos revelam uma intensa ligação, patrimonial e político-administrativa, às terras de Nóvoa e de S. Martinho de Ladrons. De facto, a governação desse último distrito vai ser monopolizada por membros desta rede familiar durante a primeira metade do séc. XIII. Entre os irmãos de D. Soeiro Airas, encontravam-se Pedro e Maria Airas (cf. infra). D. Pedro, seguindo o exemplo do pai, dominava a terra de S. Martinho em 1201: “Petro Arie de Fornelos tenente Sanctum Martinum” (Afonso IX, nº 148)69. É possível que tenha sido irmão dos anteriores Paio Airas (talvez o primogênito), tenente dessa mesma circunscrição em 1187 e 1190 (Fiães, nº 52, 260; 51, 252)70. A eles devemos ainda juntar o nome de Soeiro Dias, meio-irmão referido num ato documental pelo qual essa Maria Airas vendia o agro da Portela “in villa de Ossevi” (Oseve, freg. Levosende, conc. Leiro) por intermediação do seu mordomo e desse irmão: “per manum maiordomi mei Joannes Johannis et per mano germani mei Sueri Didaci qui tenet terram in Tudam […]. Ego Suerius Didaci qui teneo comendam de domna Maria Arias hoc placitum concedo et confirmo” (Melón, nº 95 [1207])71. Voltaremos a tratar deste D. Soeiro um pouco mais à frente. Maria Airas de Fornelos é célebre pelas ligações que ela e os descendentes estabeleceram com as casas reais portuguesa e galaico-leonesa. D.ª Maria foi concubina de Sancho I de Portugal, com quem teve Martim Sanches (1218-1228)72. Do seu casamento com Gil Vasques de Sovero-

68 Não é fácil decidir se se trata de “Muniz” ou “Nuniz” – patronímicos amiúde confundidos –, já que o testemunho do cartulário de Melom procede da cópia de um tombo elaborado entre 1799-1802 e, pelo contrário, os Livros de Linhagens manifestam uma preferência pelos “Nunes”.

O topônimo aparece, na fonte manuscrita, abreviado por suspensão como “Forn.” Cambón oferece, sem justificação paleográfica, a leitura Fornos (Melón, nº 202). Registramos o nome “Pedro Airas” com alguma frequência durante o período nessa área, mas é difícil apurar se, em algum caso, pode corresponder a Pedro Airas de Fornelos. 69

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Um Paio Airas foi mordomo de Castrelo (conc. Ribadávia) em 1211 (Melón, nº 113).

Também conhecemos Maior e Urraca Airas que, em 1208, vendiam uma propriedade em Pena Corneira, área vinculada aos Fornelos (Melón, nº 46) (cf. infra). 71

D. Martim foi meio-irmão do trovador Gil Sanches, filho do monarca português e de Maria Pais Ribeira. Como dissemos, a anterior casou (c. 1212) com João Fernandes Batissela. 72

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sa73 resultaram Fernando, Martim e Teresa Gil de Soverosa74. D.ª Teresa foi barregã de Afonso IX75 e mãe de Maria e Martim Afonso de Leão76. Martim Sanches e Martim Gil, para além de ter exercido funções político-administrativas noutras áreas de Toronho – e ainda no conjunto do reino –, assumiram tenências na área de S. Martinho e de Nóvoa, regiões às quais os Fornelos-Bravães aparecem, como vimos, recorrentemente ligados. Martim Sanches foi tenente de Ribadávia (1218-1225), S. Martinho (1223), Nóvoa (1221), Pena Corneira (1218-1222)77; Martim Gil, de S. Martinho (1229) e Ribadávia (1234-1236, 1257-1258)78. Precisamente, o sogro de Martim Gil (& Inês Fernandes), Fernando Guterres de Castro, também ocupou, entre outras, as tenências de Ribadávia (1205, 1228, 1231-1234, 1237-1239), Castrelo (1225), Pena Corneira (1208, 1212, 1215) e Nóvoa (1212, 1233). No caso da vila do Ávia, partilhou ocasionalmente esse posto com Soeiro

Vasco Fernandes, pai de D. Gil, teve um importante papel na corte galaico-leonesa, entre 1186 e 1188. Ele ocupou, entre outras, a importante tenência do Bierzo. Sobre os Soverosas, linhagem de origem galega, veja-se Mattoso (1985: 176-177), Ventura (1992: 162163), Pizarro (1997: 803), Calderón Medina (2011a: 212-217, 2011b: 15-16). O fundador dos Soverosas terá sido Fernando Peres Cativo (1129-1155), filho bastardo de Pedro Froiaz de Trava (Mattoso 207: 100-104) que chegou a ser mordomo de Afonso VII. A localização dos bens que pertenceram aos descendentes de Gil Vasques confirmam a relação com os Travas. Assim, Dordia Gil – freira de Arouca, filha de D. Gil e de Aldonça Gonçalves Girão – contava com posses em Trastâmara, nos coutos de S. Fiz e no da Corunha, em Ilhovre (conc. Vedra), em Bandoxa (conc. Oza dos Rios) e na terra de Nendos. Essas propriedades foram objeto de permuta com Martim Afonso, sobrinho de D.ª Dordia (DGP, nº 322, 338).

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A ligação dos Fornelos às terras do Ávia sugere a identificação de Maria Airas com a personagem homônima que, em 1228, aforava o que lhe pertencia num casal na vila de Corneira (Lamas, conc. Leiro) (Melón, nº 208). A alusão ao tenente de S. João [de Pena Corneira] assegura que se trata de uma vila nessa subárea do distrito de Nóvoa. 74

75 O seu relacionamento com o monarca, do qual resultaram cinco filhos, prolongou-se desde 1218 até 1230 (Calderón Medina 2011a: 121, 2011b: 14-26).

O trovador Vasco Gil (1238-1258) foi fruto de um segundo casamento de Gil Vasques de Soverosa com Sancha Gonçalves de Orvaneja (LV O9, LC 25B2) (Pizarro 1997: 808-809).

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Aludimos apenas aos cargos relacionados com a área em questão. Sobre a trajetória política dessa personagem, veja-se Fernández Rodríguez (2004: 161-166) e Ferreira (2009: 250-257).

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78 Veja-se Ferro Couselo (1995: 348-351), Pizarro, (1997: 804-816), Fernández Rodríguez (2004: 173-175), Calderón Medina (2011a: 230-239, 2011b). Note-se que exercia, nos primeiros anos do período, pela mão do sogro: “domno Martino Egidii de manu domni Fernando Goterri” (Oseira, nº 384 [1235]; Melón, nº 281 [1235]) (cf. infra).

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Airas de Fornelos: “tenente Burgo Fernandus Guterri et Suerius Arie” (Oseira, nº 113 [1205]). Sabemos que Teresa Gil de Soverosa era proprietária da quarta parte de um casal em “Chachanos” (Melón, nº 387 [1245]79), topônimo que parece designar a mesma unidade fundiária em que se encontrava o pago cedido por João Soares Somesso ao mosteiro de Fiães. Esta coincidência, que resulta normalmente da existência de antepassados comuns, também favorece a hipótese de integração do poeta na linhagem dos Fornelos. Aliás, não é um exemplo isolado, já que outros netos de Maria Airas de Fornelos herdaram dos antecessores propriedades na terra de S. Martinho. Martim Gil contava com bens legados dos avós em Vilamide (Parada das Achas, conc. Canhiza): “[…] illud casale de Villamidi, quod casale aquisiuit domnus Martinus Egidii de suo erdamento ex parte abiorum suorum” (Melón, nº 451 [1250])80. Trata-se de um local situado a 4 km da igreja de Santa Cristina de Baleixe, uma parte de cujo patronato pertencera, como vimos, a João Soares Somesso. Como dissemos, Soeiro Dias (1205-1241) era meio-irmão de Maria e Soeiro Airas de Fornelos. Ele terá sido, portanto, filho de Maior Peres Pobre de Bravães e de um “Diogo” cuja identidade não é fácil de estabelecer em ausência de patronímico81. D. Soeiro contou, muito provavelmente, entre os seus irmãos completos com um Garcia Dias que foi

79 Por essa escritura D.ª Teresa aforava a um João Peres: “quartam partem de illo casali nostro de Chachanos excepta inde senara de Penso et bauza de Barallia”. 80 Teresa Gil tinha patrimônio em Figueiredo e Pomarinho (Sendelhe, c. Crecente) (Melón, nº 475[1252]; 704 [1269]). A localização dessas posses na área poderá explicar o motivo por que D. Afonso IX concedeu à concubina uma herdade, vizinha das anteriores, em Lougarés (Sendelhe, conc. Crecente): “ego Adefonsus […] do et iure hereditario in perpetuum concedo uobis donne Therasie Gil, et filiis uestris ex me suscpistis et deinceps ex me suscipiendis, omnem hereditatem quam habeo uel habere debeo in Lougares” (Melón, nº 219 [1229]). Outras escrituras evidenciam o interesse por concentrar as possessões nessa zona. Teresa Gil e o filho, Martim Afonso, adquiriram um casal em Mandelos (Vilar, conc. Crecente) que foi, em parte, pago com propriedades no Morrazo – provavelmente doadas por Afonso IX – (Melón, nº 347 [1243] = AHN, Poio, maço 1858, nº 9).

Entre os indivíduos caraterizados por esse nome, conhecemos um Diogo Eanes (11501159) que surge associado a Airas Calvo, Fernando Eanes de Montoro, Paio Curvo ou Mendo Faião (Afonso VII, nº 131, 135, 167; Oseira, nº 32; Fernando II, nº 5, 15). 81

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tenente de S. Martinho em 1212 e 1214 (Fiães, nº 251, 247)82. Por sua vez, o anterior poderá ter sido pai de Rodrigo Garcia, meirinho da Galiza (1252, 1257-1262) que teve morada em Ribadávia (Melón, nº 318 [1260?]). D. Rodrigo esteve casado com Elvira Fernandes de Rodeiro, filha de Fernando Moniz de Rodeiro (cf. supra)83. Por motivos não declarados, talvez de ordem militar, Afonso IX concedeu a Soeiro Dias o reguengo de Guilhade (conc. Ponte Areas) em 1205, doação que será confirmada em 1228 (Afonso IX, nº 197, 586)84. D. Soeiro, para além de tenente em Tui (1205) (cf. supra), foi senhor de S. Martinho (Fiães, nº 231 [1227]; Melón, nº 209 [1228]). Não temos dados sobre a mulher, mas sabemos que entre a progênie deste par se encontrava um Rodrigo Soares (1224-1256). Essa filiação pode ser constatada na venda ao mosteiro de Melom de um casal em Carvalhal e outro em S. Julião (Petam, conc. Canhiza85) por parte desse filho: “vendimus ipsam nostram hereditatem quam ego domnus Rodericus Suerii habeo ex parte patris mei domni Suerii Didaci; vidilicet: terciam unius casalis in villa que dicitur Carvalial e aliam terciam alterius nostri casalis de Sancto Iuliano” (Melón, 82 É isso que, entre outros motivos, podemos deduzir da presença conjunta de Afonso Soares de Fornelos e de Pedro Garcia de Fornelos como confirmantes numa escritura de 1231: “Domnus Alfonsus Sueri de Fornelos, Domnus Petrus Garsie de Fornelos” (Melón, nº 233). Afonso Soares e Pedro Garcia terão sido, respetivamente, filhos de Soeiro Dias e de Garcia Dias. Entre as testemunhas desse diploma também ocorre um Pedro Nariz de Fornelos que, pela posição relativa, poderia ter sido irmão de D. Pedro. É possível que D. Afonso tenha falecido na juventude, talvez antes de casar, já que não aparece ao lado dos irmãos em 1251 (cf. infra). Note-se que, segundo essa interpretação, os filhos utilizavam o sobrenome toponímico que, em princípio, caraterizava a linhagem do padrasto de seus pais. Podemos pensar que o progenitor deles também pertencera à linhagem dos Fornelos (irmão de Airas Nunes/Moniz?), situação não rara na época, ou que eles foram adotados como filhos próprios pelo padrasto. De fato, a localização das propriedades dos filhos de Soeiro Dias sugere alguma dessas possibilidades. 83 Múnio Fernandes de Rodeiro, pai de Fernando Moniz, foi o meirinho entre 1239 e 1253. No espaço temporal intermédio, o cargo foi ocupado por Rodrigo Soares primo desse Rodrigo Garcia (cf. infra).

O reguengo citado é, habitualmente, identificado com a freguesia homônima de Ponte Areas, porém, muito próximo do Guilhade de Filgueira (conc. Crecente) encontramos “Reguengo”. 84

D. Soeiro detinha, por empréstimo de Melom, outras propriedades nessa mesma freguesia (Santa Eulália [de Ponte Deva] e Senande) (Melón, nº 297 [1238], 325 [1241]). Essa situação repete-se no caso do seu irmão Afonso Soares. 85

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nº 417 [1246]). O fato de lhe corresponder um terço dos casais citados leva a pensar que teve, pelo menos, dois irmãos86. Esses três filhos de D. Soeiro Dias poderão ser identificados com Rodrigo, Fernando e Teresa Soares que, em 1251, aconselhavam ao abade de Melom o aforamento de um casal, que lhes pertencia, em Chaos (Levosende, conc. Leiro)87. Rodrigo Soares esteve casado com Estefânia Peres Faião, filha de Pedro Mendes e neta de Mendo Faião88. D. Mendo e o filho são personagens bem conhecidas nas cortes de Afonso VII, Fernando II e Afonso IX89. Após a anulação do matrimônio de Afonso IX com a rainha Berengária, em 1204, D.ª Estefânia tornou-se concubina do monarca e dele recebeu os reguengos de Ginzo e Vila Maior (Afonso IX, nº 269 [1211])90. Dessa relação nasceu Fernando Afonso91. Como vimos, o pecúlio específico de D. Rodrigo situava-se nas terras de Nóvoa e S. Martinho. Além daquilo que foi já notado, a docu-

Isso mesmo podemos concluir doutras referências documentais aos bens de D. Rodrigo: “tertias duorum nostrorum casalium de Sobradelo” (Melón, nº 420) (cfr. infra). 86

“[...] ego Petrus abbas Melonis, cum consilio et mandato domini Roderici Suerii et domni Fernandi Suerii et domne Taresie Suerii propter eorum commoditate et propter eorum consensum […] do et concedo quandam hereditatem supradictorum dominorum in termino Lovesendi” (Melón, nº 464). A documentação de Melom confirma essa identidade para Teresa Soares (Melón, nº 326, 436, 496, 556, 565). Como dissemos, é possível que tenha sido irmão dos anteriores Afonso Soares, talvez falecido antes de casar e gerar descendência.

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O trovador Estêvão Faião poderia ter sido irmão ou primo de D.ª Estefânia.

D. Mendo surge com alguma frequência entre 1133 (Afonso VII, nº 49) e 1164 (Fernando II, nº 54). D. Pedro foi um dos dez vassalos do rei galaico-leonês que assinaram o tratado de Paz do Boronal: “Petrus Menendi Faiam” (Afonso IX, nº 373 [1219]). 89

90 A propriedade de Vila Maior foi oferecida ao mosteiro de Melom em 1249 (Melón, nº 440): “ego domna Stephania Petri, presente et concedente viro meo domno Ruderico Suerii, do et concedo Sancte Marie de Melon ob remissionem delictorum domini regis Alfonsi et eius filii domni Fernandi Alfonso et ob remissionem anime mee et uiri mei Ruderico Suerii illam meam villam que vocatur Villamaior de Ultramontem quam dominus bone memorie rex Alfonsus michi dedit”. Veja-se Calderón Medina (2011b: 8-10).

O testamento desta senhora permite identificar três áreas em que se concentrava maioritariamente a sua fazenda: (i) Bacia galega do Lima (conc. Entrimo, Lóbios, Moinhos, Qualedro, Trasmiras etc.); (ii) Tras-os-Montes (conc. Terras de Bouro e Montalegre); (iii) Sanábria (conc. Requeixo). Para além doutras muitas instituições religiosas, D.ª Estefânia beneficiou os mosteiros de Celanova, Melom, Santo Isidoro de Leão e, sobretudo, Fiães, onde pediu para ser enterrada: “mando corpus meum monasterio Sancte Marie de Fenalibus” (Fiães, nº 341 [1250]). 91

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mentação relativa ao casal e aos filhos (Nuno, Pedro, Estêvão e Estefânia) menciona posses em vários locais do atual concelho da Canhiza: Sobradelo (freg. Achas), Taim (freg. Baleixe), Folgoso (freg. Parada das Achas) (Melón, nº 420, 599, 605)92. D. Rodrigo Soares atingiu uma notável projeção política durante os reinados de Afonso IX, Fernando III e Afonso X. Com efeito, além de assumir diversas tenências desde 1224 até 1250 (S. Martinho [1224, 1233, 1236, 1238-1240, 1243-1247, 1250], Aveleda, Araújo, Mugueimes, Aquilaris93), chegou a ser meirinho da Galiza entre 1251 e 1256 (cf. supra). No exercício da função de tenente em S. Martinho, durante a primeira metade do séc. XIII, encontramos um João Soares (I) que, de acordo com o que foi acima estabelecido, poderá ter sido filho de Soeiro Airas de Fornelos e, portanto, (meio-)primo de Rodrigo Soares94. Este João Soares (I) foi senhor de Crecente (1223), por delegação do seu coirmão Martim Sanches95, e tenente do castelo de S. Martinho (1238-1239, 1246), ocasionalmente associado a Rodrigo Soares96. 92 D.ª Estefânia Rodrigues mandou, no seu testamento, ser enterrada no mosteiro de Melom ao lado do pai: “iuxta patrem meum mihi eligo sepulturam” (AHN, Mosteiro de Oia, maço 1801, nº 13 [1255]). Apesar de ter sido lavrado “in articulo mortis”, ela não faleceu nessa altura. O seu marido foi João Nunes.

Salvo no caso de S. Martinho, trata-se de tenências situadas na bacia do Lima: Aveleda (conc. Porqueira), Araújo (conc. Lóbios), Mugueimes (conc. Moinhos). 93

A localização das posses deste indivíduo autoriza o estabelecimento da conexão familiar com Rodrigo Soares (cf. infra). O anterior parece ter “herdado”, para o cargo de mordomo, a figura de Pedro Vilamide, que já o fora com João Soares: “tenente castellum Sancti Martini domno Johanne Suerii, maiordomo Petro Villamidi” (Melón, nº 294 [1238]), “Tenente castello de Sancto Martino domno Roderico Suerii, maiordomo Petro Villamidi” (AHN, Mosteiro de Oia, maço 1800, nº 5 [1243]; Melón, nº 431 [1247]). Trata-se de uma personagem vinculada a D. Rodrigo e D.ª Estefânia: com eles aparece numa escritura redigida provavalmente em Mugueimes (conc. Moinhos), onde o casal tinha residência (Melón, nº 417 [1246]). Lembremos que Martim Gil tinha propriedades em Vilamide (Parada das Achas, conc. Canhiza) herdadas dos avós. A essa freguesia também aparecem associados Rodrigo Soares e João Soares (II) (cf. infra). 94

95 “Tenente castellum Sancti Martini domno Martino Sancii. Sub manu eius, Johane Suariz, senior de Crecenti” (Fiães, nº 196).

“Tenente castellum Sancti Martini domno Iohanne Suarii” (Melón, nº 294 [1238]), “Tenentes castellum Sancti Martini domno Iohane Suerii et domno Roderico Petri” (Fiães, nº 259 [1239]), “tenente castello Sancti Martini Roderico Suerii et Johanne Suerii” (Melón, nº 421 [1246]). Em abril de 1245 aparece, junto a D. Rodrigo Soares e após Gonçalo Eanes 96

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João Soares (I) também terá sido conhecido como “João Soares de Chapela”, cavaleiro registrado com alguma frequência no acervo documental do mosteiro de Melom entre 1228 e 124797. Os diplomas que lhe dizem respeito, sobretudo as mandas testamentárias [D.32/A-B], evidenciam que contava com uma importante rede patrimonial nos distritos de S. Martinho, Manhó e Morrazo98, correspondendo aos atuais concelhos de Arvo (Igreja de Arvo, Merelhe [freg. Cabeiras], Facuco [freg. Sela], Sande [freg. Mourentám], Sela, Várzea [freg. Mourentám]), Canhiza (Igreja de St.ª Cristina [de Baleixe]), Crecente (Chaguiáns [freg. Freixo e Costa], Mosteiro de [S. Pedro de] Crecente, Sendelhe, Mandelos [freg. Vilar]99), Moanha (Domaio, Gagám [freg. Domaio]), Neves (Vide, Setados), Redondela (Chapela). João Soares de Chapela favoreceu economicamente os mosteiros de Fiães e Melom, a Sé de Tui e as obras das pontes de Castrelo, Ourense e S. Paio. No que concerne à família, avulta o fato de a mãe ter ostentado a dignidade condal: “Iohannes Suerii, miles de Chapela, filius comitisse”100, assunto que retomaremos posteriormente. Ainda referido aos parentes próximos, vimos a saber da existência de uma filha Maria Eanes e de (pelo menos) um irmão Fernando, vivo em 1238, mas já falecido em 1247. Quatro sobrinhos de D. João eram filhos do anterior: Estefânia, João, Maria, Martim e Pedro Fernandes101. A estes acrescentamos Pedro Martins e Pedro Rodrigues, cujos ascendentes não são nomeados. (Batissela), tenente de Nóvoa: “Tenente Novoa domno Gunzalvo Joanis. Cantarios [cautarios] domino Joane Suerii et domino Roderico Suerii” (Melón, nº 392). 97 O fato de não reaparecer um (outro) “João Soares” como tenente de S. Martinho após a morte dele em 1247 parece assegurar esta identificação (cf. infra). O mais antigo registro documental pode situar-se numa escritura de 1212.06.20 pela qual Fernando Soares e o irmão, João Soares, venderam a quarta parte dos casais de Outeiro ao mosteiro de Fiães (Fiães, nº 251). 98 Reproduzimos, num mesmo item do apêndice, as duas versões do seu testamento, lavradas em 1238 e 1247 [D.32/A-B]. Outros documentos do Mosteiro de Melom registam notícias sobre João Soares (I) (Melón, nº 209 [1228] e nº 432 [s. d. (1242)]). 99

Existe outro local com esse nome na freguesia de Cequelinhos (conc. Arvo).

O dado consta, pela primeira vez, numa escritura datável (entre fevereiro e julho) de 1242 (Melón, nº 432) e na segunda redação do seu testamento de 1247 [D.32/B]. 100

Maria e Martim Fernandes surgem, para além de no testamento de D. João Soares, numa escritura de 1260 (DGP, nº 128). Estefânia Fernandes poderá ser a freira do mosteiro 101

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Aliás, a segunda redação do seu testamento atesta que foi favorecido com uma herdade em Múrcia (“illam meam hereditatem quam lucratus fui in Murcia”), donde se conclui que participou ativamente, entre 1243 e 1245, na conquista desse reino pelo infante D. Afonso (futuro Afonso X)102. Com efeito, João Soares deixou de ocupar cargos político-administrativos entre julho de 1239 e abril de 1245. De fato, em 1243, era o sobrinho João Fernandes quem, por delegação do tio, assumia a tenência do castelo de S. Martinho: “Iohannes Fernandi tenente castellum Sancti Martini de Latronibus de manu Iohannis Suarii” (ACT, maço 12, nº 11). Um escrito de que é titular Pedro Rodrigues, um dos seus sobrinhos, permite datar o decesso de João Soares de Chapela em finais de 1247103. A coincidência na determinação ou localização concreta do patrimônio “parece” sugerir que João Soares Somesso e João Soares de Chapela foram a mesma personagem histórica. Como no caso do trovador, a documentação prova que o de Chapela contou com propriedades na villa de “Chagianos/Chagais”, em Setados e que lhe pertencia, por direito de patronato, uma parte dos benefícios da Igreja de Santa Cristina de Baleixe [D.32]104. Também ficou registro do relacionamento com o mosteiro de Fiães, favorecido na sua manda testamentária (cf. supra). No entanto, uma análise atenta de alguns desses dados aponta em sentido contrário. Com de Alveos (“Touquinigra d’ elueos”) citada nesse mesmo diploma como irmã dos anteriores 102 Nessa campanha militar, teve grande protagonismo a Ordem de Santiago chefiada pelo grão-mestre, Paio Peres Correia (Lomax 1965: 13-14; De las Heras 2010: 197; Ballesteros Beretta 1949), o que seria um argumento para o identificar com o João Somesso registrado em Vilar de Donas (cf. infra).

Por essa escritura, redigida em 1249, D. Pedro abdicou de uma demanda contra as disposições testamentárias do tio. O conteúdo do diploma parece situar a morte de D. João próxima do momento em que João Soares ordenou a sua manda: “ego Petrus Roderici, miles de Chapela, quito et abrenuncio demandas et bona que ego faciebam contra mandam Iohannis Suerii de Chapela, tam in hereditatibus quam in omnibus rebus uel debitis ipsius, scilicet in Domayo, in Sendely, in Chayanis uel in omnibus aliis hereditatibus preter Seetados uobis domno Petro abbati Melonis […] et ego frater Petrus abbas Melonis pariter cum illis quibus ipse domnus Iohannes Suerii legauit bona sua in hora mortis […]” (Melón, nº 444 [1249]). 103

Neste último caso, só se refere o nome da santa padroeira, mas não existe outra freguesia com esse orago na área. 104

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efeito, se João Soares Somesso entregara o casal que possuía nessa villa de Chaguiáns ao mosteiro de Fiães em 1223105 e, em 1242, ao bispo de Tui todos os direitos que lhe correspondiam nos lucros da igreja de Santa Cristina de Baleixe, como é que podia conservar a posse desses bens à data do seu derradeiro testamento (1247)106? Por outro lado, na primeira versão dessa manda (1238) não se menciona o benefício da Igreja de Setados, prebenda que, no que correspondia a João Soares Somesso, será doada pelo anterior à Sé de Tui quatro anos mais tarde, em 1242107. Ora bem, mesmo concluindo que estamos perante pessoas diferentes, todavia, não se pode deixar de reconhecer que, certamente, foram indivíduos da mesma estirpe. É muito provável que tenham sido irmãos, o que oferece uma justificação para o uso do sobrenome “Somesso” com função desambiguadora, sobretudo em contextos documentais nos quais a identidade do titular podia ser, com a passagem do tempo, dúbia108. Pensamos, portanto, que João Soares Somesso foi, entre os dois, o irmão mais novo, indicação que também poderá estar presente no epíteto que o individualizava. O fundo documental do mosteiro de Melom preservou a memória doutro João Soares (II), fidalgo que mandou lavrar o seu testamento em agosto de 1257 [D.38]. Por esse diploma sabemos que a sua família estava integrada pela mulher D.ª Maior e por quatro filhos: Fernando, Maria, Elvira e Aldara Eanes. Uma alusão às suas armas reflete explicitamente o caráter de cavaleiro-guerreiro (cf. infra): “Et omnia arma mea mando filio

O modo como se alude a esse casal, sem qualquer rótulo particularizante, supõe que se tratava do único de que João Soares Somesso era proprietário, entre outros pertencentes ao seus familiares. 105

É interessante notar que, na versão mais antiga do testamento (1238), João Soares (I) oferece ao sobrinho João Fernandes “in uita sua” o seu quinhão na Igreja de Santa Cristina de Baleixe, especificando que após a morte do anterior deveria ficar em posse da sua linhagem: “Post mortem eius remaneat meo linagem”. Tal indicação parece assegurar que nos benefícios dessa igreja participavam exclusivamente, naquela altura, membros da sua estirpe. Essa apostila desaparece em 1247: “mando Johanni Fernandi […] meum quinionem Ecclesie Sancte Christine”. 106

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Os argumentos por omissão têm, contudo, menos valor probatório.

A utilização do mesmo nome para dois filhos não é, como se sabe, um facto excecional na altura.

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meo”. Entre outros lugares, D. João (II) tinha propriedades em Castro – hoje Crasto – (Rubiós, conc. Neves), Filgueira (Rubiós, conc. Neves), Levosende (conc. Leiro), Sendelhe (conc. Crecente), Paradela (S. C. Ribarteme, conc. Neves), Paredes (Neves, conc. Neves), Taim (Baleixe, conc. Canhiza), Teixugueiras (conc. Cartelhe?)109. Relativamente às instituições religiosas por ele favorecidas, são nomeados: Mosteiro de St.ª Maria de Melom, [Mosteiro de] Alveos (conc. Crecente), [Mosteiro de] S. Pedro de Crecente, Igreja de Santiago de Parada das Achas (conc. Canhiza) e Igreja de Guilhade (conc. Ponte Areas). Também deixa um contributo para as pontes de Ourense e de Ribadávia. Achamos estes dados suficientes para aventarmos, com alguma garantia, a sua integração no grupo familiar em questão. Ora bem, apesar da grande diferença no volume do patrimônio enumerado, o paralelismo com as indicações relativas aos bens de João Soares (I) não deixa espaço para dúvidas sobre a vinculação de parentesco entre eles. Em primeiro lugar, é altamente significativa a coincidência na localização genérica das propriedades em dois distritos (históricos) sem continuidade geográfica: S. Martinho de Ladrons e Manhó110. Nesta última encontra-se Chapela (conc. Redondela), povoação que emprestava o nome a João Soares (I) e onde achamos uma parte importante dos seus domínios: “illam meam pausam de Chapela et casas et uineas cum sua quintana et cum suis cortinis et illum meum casale de Petro Fernandi”111. Embora em menor proporção, João Soares (II) também contava com patrimônio nessa circunscrição: “quantam hereditatem habeo in Manoa preter ecclesias”. OuÉ difícil precisar a localização dos topônimos “Felgeyra”, “Paradela” e “Paredes” já que, entre outros locais, surgem em várias freguesias da área de S. Martinho e de Nóvoa. Filgueira: Rubiós (conc. Neves), Filgueira (conc. Crecente); Paradela: Alveos (conc. Crecente), Angudes (conc. Crecente), Baleixe (conc. Canhiza), Barral (conc. Castrelo de Minho), S. C. Ribarteme (conc. Neves); Paredes: Ameixeira (conc. Crecente), Neves (conc. Neves), Oroso (conc. Canhiza), Ribeira (conc. Crecente), Serantes (conc. Leiro). Optamos pelos locais das Neves visto que na metade meridional desse concelho aparecem os três e que nessa área o filho contava com propriedades (cf. infra). Muito perto desse Filgueira encontramos o topônimo Crasto, provavelmente o “Castro” citado por João Soares (II). 109

A antiga terra de Manhó ocupava o atual concelho de Redondela e parte dos limítrofes (Vigo, Paços de Borvém e Souto Maior). Uma das freguesias desse município é Tras-Manhó, contígua de Chapela. 110

O sobrenome geográfico costumava designar a área em que se concentrava o patrimônio de um indíviduo.

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tro ponto de convergência mais concreta está em Sendelhe (conc. Crecente), local em que o próprio João Soares (II) refere a existência de dois casais. Sabemos que, pelo menos, um fora de seu pai: “unum in Sendely que fuit de pater meo”. Nessa mesma freguesia achamos uma extensa propriedade de João Soares (I) que incluía um prédio residencial: “[…] illam meam pausam de Sendili et unum casale ibi cum ea, excepto inde forario illo de Booca [...] et excepta illa domo quam ego dedi Marie Johannis cum sua cortina [...] et excepto prestimonio de Varzina [...], et excepta domo illa de Suerio Nuni”. Retiramos, portanto, a conclusão de que se trata de dois irmãos112, dedução que não deverá ser contrariada pelas diferenças, aliás naturais, na distribuição geográfica dos bens. Assim, falta correspondência nas áreas do Morrazo e de Nóvoa, associadas de modo privativo, respetivamente, a João Soares (I) e a João Soares (II)113. Uma escritura de 1268 de que é titular Fernando Eanes, filho – já citado – de João Soares (II), vem confirmar a identidade do pai. Por esse diploma, lavrado em Jerez de la Frontera (Andaluzia), Ramiro Rodrigues vendia a Fernando Eanes, filho de João Soares de Fornelos, aquilo que lhe correspondia em Tortoreos (conc. Neves) (ACT, maço 14, nº 36114). O Um “João Soares” é referido no testamento de Chapela [D.32/B]: “Et quito Johanni Suerii, militi, portionem patris sui de hereditate de Athenis”. É muito provável que se trate de João Soares (II). Notemos, contudo, que na manda faltam referências a outros membros da sua rede familiar mais próxima, como se deduz da existência dos sobrinhos Pedro Martins e Pedro Rodrigues. 112

113 Para João Soares (I) temos os topônimos de Domaio e Gagám (conc. Moanha [Morrazo]) e para João Soares II o de Levosende (conc. Leiro [Nóvoa]). Por interpretação errada do fenômeno fonético conhecido como gheada, Gagám pode aparecer representado como “Xaxán” na cartografia atual.

Conservamos uma cópia desse diploma validada pelo notário de Ribadávia: “Sepan quantos esta carta viren como yo don Ramir Rodriguez fijo de don Rodrigo Fernandez de Valdeira vendo a vós Fernan Eanes fijo de don Johan Suarez de Fornellos todos quantos erdamientos yo é en Tortorenos aldea que es en el alfoz de Salva Terra. Los quales erdamientos fuerun de don Pedro Martinez mio suegro e heredelos yo de dona Berengella mi mugier [...]. Fecha la carta a veint e cinquo dias de febrero, en era de mill e trezentos e seis anos. E desto som firmas rogadas de ambas las partes: Dom Pedro Rodriguiz veiro e Alvar Perez de Cepeda, e Estevan Andreu scudero del rey e Johan Romeu Galiza e Pedro Rodriguez de Sarra, e Vaasquo Perez de Valex e Esidro Garcia fijo de Garcia Meendez [...]. Yo Garcia Fuertes notario puplico del conceyo de Xerez fiz escriver esta carta [...]. Eu Pedro Aras de mandado de Johan Perez, notario del rei en Ribadavia, scrivi este trallado [...]. Eu Johan Perez, notario del rei en Ribadavia, fiz escrever este traslado e puge hi meu 114

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progenitor de D. Fernando foi, portanto, João Soares de Fornelos – filho de Soeiro Airas de Fornelos – não referido nos Livros de Linhagens. Por outro lado, é importante repararmos na localização dos herdamentos adquiridos por esse Fernando Eanes, já que constitui uma pista segura para saber qual era a área concreta em que sediava o seu patrimônio preexistente115. Trata-se, como vimos, de Tortoreos, terra que dista apenas 2,5 km de Setados, onde João Soares Somesso contara com propriedades doadas à Sé de Tui116. Relativamente ao filho, a sua presença na cidade andaluza, reconquistada quatro anos antes por Afonso X, leva-nos a reconhecê-lo na personagem homônima citada no Libro del repartimiento de Jerez: “Ferrant Yvannes, escudero del rey” (González Jiménez – González Gómez 1980: 105). É, portanto, possível que pai e filho tenham formado parte do aparelho militar de Fernando III e de Afonso X nas campanhas da Andaluzia ocidental. Considerando o que foi dito até agora, pensamos que só João Soares de Fornelos é que pode ser identificado com o trovador João Soares Somesso. O poeta aparece, destarte, documentado entre 1223 e 1257, cronologia que se adequa ao posto que ocupa na tradição manuscrita entre Vasco Praga de Sandim117 (1258) e Nuno Eanes Cêrceo (c. 1200-c. 1260)118.

signo por testemuyo que est atal”. Note-se a presença, entre as testemunhas, de um Vasco Peres de Baleixe. 115 Notemos que, segundo consta no testamento do pai, Fernando Eanes já tinha recebido em vida diversas propriedades dos progenitores.

Também, pelo menos, uma parte das possessões em Tortoreos serão doadas à Sé de Tui, fato que explica a presença do diploma em foco nos fundos dessa instituição. 116

Vasco Martins, cunhado de Vasco Praga, casou com Elvira Vasques de Soverosa (após a morte de Paio Soares de Valadares, o seu primeiro marido). Oliveira (1994: 439) supõe que D. Vasco veio para Portugal no séquito de Gil Vasques de Soverosa. Monteagudo (2008: 388-389) notou a existência de algumas afinidades linguísticas entre Vasco Praga, Osório Eanes, Fernando Rodrigues de Calheiros e João Soares Somesso. Veja-se a síntese oferecida por Ron Fernández (2005: 129-130). 117

O anterior, junto com os filhos, também participou na reconquista andaluza (Souto Cabo 1994). 118

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Filius comitisse João Soares de Chapela declarou, em duas escrituras, ter sido filho de uma condessa, mas sem especificar o nome dela (cf. supra). O fato de a mãe ter ostentado esse título não supõe que também o devamos atribuir ao pai. As mulheres ganhavam essa dignidade pelo casamento com um conde, mantendo-a inclusivamente após a morte do marido. Neste caso, o enlace conjugal pôde ser anterior ou posterior ao estabelecido com Soeiro Airas de Fornelos, indivíduo que supomos pai dos dois “João Soares”119. Levando em consideração a área geográfica e o período temporal em que se insere a biografia dessa condessa, poderíamos identificá-la com Sancha Fernandes (1198-1234) (Souto Cabo 2011b), filha de Fernando Airas Batissela e de Teresa Bermudes de Trava. O título nobiliário proveio do seu matrimônio com o conde Froila Ramírez (1150-1202), com quem esteve casada entre c. 1195 e 1202120. Porém, no testamento de D.ª Sancha não deparamos com qualquer indicação ou indício sobre um filho de nome João Soares, mas apenas sobre os três conhecidos: Diogo, Ramiro e Rodrigo Froilaz (CCarracedo, nº 369 [369]). Cumpre, contudo, notar que entre os mosteiros favorecidos pela condessa, além dos leoneses e os galegos (Melom, Osseira, S. Clódio, etc.), também se encontra o de Fiães, o que evidencia a proximidade do seu grupo familiar relativamente a essa instituição e à área geográfica em foco (cf. supra). Um documento de 1243 pode ser a chave para confirmar as ligações familiares aqui estabelecidas, bem como para desvendar a identidade dessa senhora. Martim Airas, freire da Ordem de Santiago, ratifica que a sua avó, a condessa Urraca Fernandes, entregara a D. Soeiro – bispo de Tui entre 1206 e 1215 – metade da igreja de Setados (conc. Neves)121. No

119 É possível que D. Soeiro tenha falecido pouco depois do último testemunho documental em 13 de janeiro de 1211. Pelo contrário, a mulher poderá ter atingido a década de 40. A referência à mãe por parte de João Soares de Chapela em 1242 (e 1247) pode ser interpretada como sinal de óbito não muito afastado temporalmente.

A primeira foi Urraca Gonçalves, filha de Gonçalo Fernandes de Trava, falecida em 1190. A notícia mais recuada sobre o casamento de D. Froila com D.ª Sancha remonta a 1198 (Barton 1998: 247). 120

Martim Airas, a mulher Maria Moniz e outros particulares venderam ao mosteiro de Melom propriedades em Petám (conc. Canhiza) no ano de 1245 (Melón, nº 547). Nessa 121

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mesmo ato diplomático, D. Martim oferece à Sé de Tui o que, por herança, lhe correspondia em Paço, Quinta e Setados e o que, por ventura, lhe poderia vir a pertencer na igreja citada122. Com foi acima referido, João Soares Somesso também tinha contado com um quinhão nos benefícios da igreja de Setados e fora detentor de um casal em Paço (freg. Setados) [D.33]123. Diante destes dados, é necessário concluir, por um lado, que a condessa Urraca Fernandes foi mãe do trovador e de João Soares de Chapela e, por outro, que os anteriores foram tios de Martim Airas124. A análise da distribuição diatópica do patrimônio tem revelado, sobretudo neste capítulo, uma grande funcionalidade para desvendar identidades e estabelecer conexões familiares que, doutro modo, teriam passado despercebidas. É possível que também nos abra a porta para descobrir a personalidade da condessa Urraca Fernandes, mãe de João Soares Somesso. Uma das novidades relativas ao trovador e, sobretudo, ao seu irmão homônimo tem a ver com a localização de propriedades em mesma freguesia tivera propriedades Soeiro Dias (cf. supra). “In Dei nomine, amen. Notum sit omnibus tam presentibus quam futuris quod ego Martinus Arie, frater Ordinis milicie Sancti Jacobi, recognosco auiam meam, comitissam domnam Orracam Fernandi, bone memorie, medietatem ecclesie de Saetados in terra Sancti Martini de Latronibus, pie recordacionis, domno Suerio, quondam tudense episcopo et eiusdem ecclesie contulisse ob remedium anime sue et parentum suorum cum omnibus pertinenciis suis perpetuo possidendam. Quam donacionem ego, predictus Martinus Arie, uobis domno Luce, tudense episcopo, et ecclesie uestre confirmo et concedo. Et si quis michi iuris usque nunc competebat in predicta ecclesia de Saetados totum uobis et ecclesie tudensi dono et concedo perpetuo pacifice possidendum. Dono m uobis et ecclesie uestre adque concedo siquid mihi iuris hereditarii conpetebat, in Palacio Quintana uel uilla de Saetados cum omnibus pertinenciis” (ACT, Pergaminhos, maço 12, nº 11). Paço e Quinta são locais muito próximos na freguesia de Setados. 122

Como no caso das propriedades “laicas”, a participação de vários indivíduos nos lucros eclesiásticos constitui um indício de grande pertinência para estabelecer relações familiares entre eles. É precisamente a partir desses dados que foi reconstruído o grupo familiar de Airas Fernandes Carpancho (Souto – Vieira 2003). 123

124 Duas escrituras do mosteiro de Fiães corroboram esse vínculo familiar através da relação que se estabelece entre um João Soares – que supomos o “de Chapela” – e Martim Airas a respeito de uma herdade no casal de “Facuco” (Sela, conc. Arvo). Por elas sabemos que João Soares entregara àquele cenóbio essa propriedade em 1216 (Fiães, nº 249) e que Martim Airas, em 1246, se comprometia a cessar nas querelas que o opunham a Fiães por causa de uma posse similar nesse mesmo casal (Fiães, nº 254). A origem do conflito estava provavelmente nas dúvidas sobre os limites da herdade que recebera o mosteiro de João Soares e aquilo que correspondia a Martim Airas nessa mesma aldeola.

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duas margens opostas mas adjacentes da ria de Vigo. Trata-se da área mais estreita da mesma que, por essa caraterística, permitia a passagem de um ao outro lado por via marítima, mas com alguma facilidade. Com efeito, João Soares de Chapela, além das posses em Manhó, era proprietário do Couto de Domaio125 (conc. Moanha) e de um casal em Gagám (conc. Moanha). Na aba sudoeste da elevação orográfica em que surgem esses dois topônimos, descobrimos a terra de Savazeda (conc. Moanha). Esse local dava nome ao couto régio que Fernando II concedeu a Fernando Airas Batissela em 1184: “loco designato in Sauazeda cum suis pertinenciis iure hereditario et cauto regio” (AHN, Mosteiro de Armenteira, maço 1750, nº 14)126. Ora, entre as filhas de D. Fernando e de Teresa Bermudes encontrava-se uma Urraca Fernandes (1223), escassamente representada na documentação do período. É, portanto, provável que tenha sido desposada por um conde de nome desconhecido – talvez daquela região – e (anteriormente ou depois) por Soeiro Airas de Fornelos. Lembremos que as linhagens dos Fornelos e a dos Limas, a que pertence Fernando Airas, partilharam, em boa medida, os mesmos interesses geopolíticos (cf. supra). Aliás, como foi exposto no capítulo correspondente, Teresa Bermudes de Trava foi a grande protetora do mosteiro de Melom, afeto – não isento de interesse econômico – em que foi acompanhada pelos sucessores127.

“captum de Domaio, cum omnibus suis pertinenciis et directuris, tam in mare quam in terra” [D.32/B]. 125

O topônimo foi reproduzido erradamente como “Fabaceda” (Afonso IX, nº 217). A cópia de 1304 que transmitiu esse ato diplomático é afetada por uma grande mancha de umidade que nos impede de conhecer outros dados sobre os limites dessa propriedade. O erro fora já observado por García Álvarez (1966: 39) e López Sangil (2005: 67, n. 215). D. Varela, avô de Fernando Pais de Tamalhancos, recebeu de Fernando II, em 1160, a herdade de Cangas do Morrazo, concelho limítrofe com o de Moanha (Souto Cabo [no prelo/1]). 126

Outro dado patrimonial pode, de modo indireto, apoiar, por um lado, a identificação de Urraca Fernandes com a filha de Fernando Airas Batissela e, por outro, a relação familiar com João Soares (I) e com Martim Airas. O compromisso assumido entre D. Martim Airas e o mosteiro de Fiães, em 1246 (cf. supra), além do casal de Facuco, envolvia outras propriedades circunvizinhas, entre elas um casal que tinha pertencido a Maria Pais Ribeira: “super casale quo fuit Marie Pelagii Ribiere”. Esta foi, como se sabe, mulher de João Fernandes Batissela (1183-1226), portanto cunhada de Urraca Fernandes Batissela. Esses bens fundiários foram, certamente, herdados do marido, o que vem relacionar diretamente os Batissela com João Soares de Chapela e Martim Airas. 127

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A identificação da mãe do Somesso com Urraca Fernandes Batissela vem, por outro lado, explicar o motivo pelo qual a progenitora é nomeada como “infante” nos Livros de Linhagens, qualificação com que normalmente se aludia aos filhos do rei. Lembremos que Urraca Fernandes, apesar de não ter sido infanta em sentido estrito, foi descendente de uma infante, enquanto neta de Urraca Henriques, filha do primeiro monarca português. Como vimos, Martim Airas, titular da escritura de 1243, declara, logo no início desse texto, o seu caráter de mílite santiaguista. Também neste caso observamos continuidade com o que conhecemos sobre os Limas-Batisselas e os seus antecedentes familiares, entre os quais se encontra Fernando Oares, um dos fundadores da Ordem de Santiago (cf. supra). Fernando Airas e a mulher também foram benfeitores dessa instituição, que recebeu deles o que lhes pertencia no mosteiro de Savardes em 1188 (cf. supra). Nesse contexto, é muito provável que o João Somesso registrado no mosteiro santiaguista de Vilar de Donas em 1230 seja, na verdade, João Soares Somesso128.

4.2. Ogan’ en Muimenta De acordo com a tese aqui perfilhada, João Soares Somesso foi sobrinho-segundo de Osório Eanes e primo por afinidade de Fernando Pais de Tamalhancos129, trovadores com os quais, sobretudo com o primeiro, mantém muito notáveis correspondências expressivas e/ou retóricas (cf. supra). Essas relações de parentesco servem também para explicar o motivo pelo qual João Soares Somesso pôs em boca de Martim Gil de Soverosa uma sátira contra Abril Peres de Lumiares, inimigo dos Soverosas (cf. infra): Ogan’, en Muimenta, disse don Martin Gil: – Viv’ en mui gran tormenta

128 Entre os confirmantes do segundo testamento de João Soares de Chapela aparece um “Domnus Gundisalus” [D.32/B] que poderia ser Gonçalo Rodrigues Girão, comendador da Ordem de Santiago na Galiza e Leão com Paio Peres Corrêa e, posteriormente, mestre da mesma (Rades y Andrada 1572: 34v).

Fernando Pais de Tamalhancos também aparece ligado, por origens familiares, à linhagem dos Travas como descendente de Elvira Peres de Trava. 129

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Dona Orrac’ Abril, per como a quer casar seu pai; e, a quen lho enmenta, cedo moira [no Sil] e ar ela, se se con Chora vai (B 104, vv. 1-8)130.

Martim Gil de Soverosa terá sido, segundo a proposta considerada, primo de João Soares Somesso (cf. supra), o que justifica o apoio (literário) do parente. Como foi acima notado, contamos com diversas evidências documentais que ligam os Fornelos patrimonial e politicamente às antigas terras de Nóvoa: Maria Airas de Fornelos contava com propriedades na freguesia de Levosende (conc. Leiro) e em Corneira (Lamas, conc. Leiro). Segundo se reflete no testamento do João Soares de Fornelos, que identificamos com o trovador, ele também tinha possessões em Levosende equivalentes a dois casais: “quantam hereditatem habeo in Leuosende pro duobus casalibus”. Levosende e Corneira situam-se numa subárea de Nóvoa, conhecida como terra de S. João de Pena Corneira, da qual foram tenentes Martim Sanches e Fernando Guterres de Castro, sogro de Martim Gil (cf. supra). Precisamente nessa mesma zona encontramos a freguesia de Muimenta (conc. Carvalheda de Ávia), espaço que não duvidamos em identificar com o local onde João Soares Somesso situa a alocução literária de Martim Gil de Soverosa131. Trata-se de um indício muito sólido para pensar que a vila de Ribadávia e os seus arredores constituíram um foco de atividade literária trovadoresca, com tradição que podemos remontar a Osório Eanes, também tenente da Pena Corneira em 1189.

A cantiga faz escárnio dos problemas que tinha Abril Peres para desposar a filha com João Martins “Chora” (com quem acabou por casar). Martim Gil terá causado a morte de Abril Peres na lide de Gaia em 1245.

130

Michaëlis (1904: 303) identificou-o, sem razões de peso, com Moimenta da Beira: “O logar de Mõimenta, onde se passaram os acontecimentos que deram assumpto á chufa do trovador, é muito provavelmente o da Beira (perto de Lamego), visto essa localidade ter feito parte dos vastos territorios, governados militarmente por D. Abril Peres de 1228 a 1231. Bem podia ser que a poesia fosse composta naquelle período”. Notemos que a forma do topónimo em B (nº 104), o único testemunho que transmitiu o texto, é “muymenta”.

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A menos de 1,5 km de Muimenta descobrimos Fornelos (Avelenda das Penas, conc. Carvalheda de Ávia)132 topônimo que poderá ter dado origem ao sobrenome geográfico com que foi conhecida a linhagem de João Soares Somesso. No entanto, essa denominação reaparece também no coração da terra de S. Martinho, aplicado a uma torre que se ergue na margem esquerda do rio Ribadil (Ribeira, conc. Crecente)133. Não sabemos se a presença dessa designação nos dois espaços a que os Fornelos estiveram mais diretamente associados é fruto do acaso ou se, no caso da fortaleza134, foi resultado artificial da presença dessa estirpe135.

132 Encontramos uma referência a esse local numa escritura de 1218: “ipso casari de Fornelis quod jacet in villa de Avelaneda concurrente ad ecclesiam Sancti Andree” (Melón, nº 135). Tal propriedade pertencia, na altura, a Fernando Afonso que a vendia à irmã Aldara. 133

Vázquez Martínez (1948a) e Garrido Rodriguez (1987: 119).

Notemos que o lugar onde se encontram aqueles restos da antiga praça-forte, hoje recuperados, leva o nome de “Torre” e não o de “Fornelos”. Essa também é a denominação de uma freguesia no concelho de Salvaterra de Minho. 134

135 Quando este trabalho já fora concluído, Henrique Monteagudo ([prep.]) teve a amabilidade de nos enviar dois artigos, em fase de preparação, sobre o poeta em questão. O professor compostelano aceita a teoria tradicional, sobre o pai de João Soares Somesso, e considera o poeta filho de Fruílhe Fernandes de Celanova (c. 1125-1187), o que em termos biográficos e biológicos parece difícil de justificar. Ele identifica João Soares de Chapela com João Soares Somesso. O trabalho oferece uma análise minuciosa da documentação, mas fica muito sujeito à letra dos Livros de Linhagens.

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CAPÍTULO V EN CASTELL’ E VAS PORTEGAU

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Nave da igreja do Mosteiro de Alcobaça

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Um verso de Marcabru dá título a uma secção em que, apenas por motivos de ordem prática, foram reunidos três trovadores, um castelhano e dois portugueses, cuja única característica em comum reside no fato de não serem originários da Galiza: Rodrigo Dias dos Cameros, Garcia Mendes de Eixo e Pedro Rodrigues da Palmeira1. No entanto, essa mudança de cenário geopolítico é um aspeto, na verdade, secundário, uma vez que nos encontramos com indivíduos vinculados à linhagem galega dos Travas. A sua presença na tradição manuscrita serve, indiretamente, para provar que até 1230 o trovadorismo era um fenômeno essencialmente galego e que a sua difusão tinha como via privilegiada a estrutura sociofamiliar daquela estirpe.

1. Ego don Rodrigo Diaz de los Camberos A obra poética de Rodrigo – ou Rui – Dias dos Cameros (11821230), autor que ocupa o oitavo lugar no elenco geral, viu-se também afetada, na totalidade, pela lacuna no segundo caderno de B. Sabemos pela TC que contava com três cantigas de amor correspondentes aos números 31 a 33. Ele surge situado entre Pedro Rodrigues da Palmeira e Osório Eanes, trovadores com os quais se encontra diretamente aparentado (cf. infra). Rodrigo Dias incorpora na sua denominação a forma “Cameiros” (lat. Camberri), topônimo que designa o (antigo) senhorio dos Cameros, localizado entre o sul da Rioja e o norte da província castelhana de Sória2. Os Livros de Linhagens transmitiram alguns dados, nem todos verídicos, sobre os ascendentes familiares imediatos de D. Rodrigo: E a sobredita dona Guiomar Fernandez, filha do conde dom Fernando Perez de Trava, foi casada com dom Dia Xamenez dos Cameiros, e fez en ela dom Rui Diaz e dom Alvar Diaz, e forom mui boos fidalgos e mui graados. E dom Rui Diaz foi casado com a condessa dona Orraca Diaz, filha de dom Diego, o Boo [...] e fez em ela dom Simom Rodriguez [...]. (LC 13B2)

1

Lembremos, contudo, que Rodrigo Dias e García Mendes de Eixo foram primos.

Esse território passou a constituir um senhorio com um seu antepassado, Fortum Ochoa (1040-1050), indivíduo pertencente a uma família aparentada, provavelmente, com a dinastia real de Navarra (García Turza 1995: 17-19, Canal 1995a). A história desse domínio é objeto de estudo monográfico por Lafuente Urién et al. (1999).

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O pai foi, efetivamente, Diogo Ximenes (1162-1188), importante personagem da corte de Afonso VIII de Castela, na qual ocupou as tenências de Arnedo, Bureba, Cameros, Cuenca, Sória etc. Relativamente à mãe, a informação dos Livros de Linhagens não é correta: a documentação histórica confirma que se trata de Guiomar Rodrigues de Trava3. É assim que consta na Genealogia dos fundadores do mosteiro de Ferreira de Palhares [D.39]: “Et desta dona Maor Rodriguez nascio a condessa dona Froille. Et de dona Froille nascio dona Giomar. E de dona Giomar nascio don Rodrigo Diaz dos Cameros”4. Trata-se de uma filha de Rodrigo Peres “o Veloso”5 (1111-1159) (← Pedro Froiaz de Trava & Maior Rodrigues) e de Fruílhe Fernandes (← Fernando Nunes de Celanova)6. A integração de Rodrigo Dias nas linhagens dos Travas-Celanovas, para além do seu relacionamento com os Vélaz-Cabreras, faz dele um elemento chave na rede de vínculos sociais e familiares que estrutura a primeira geração de trovadores analisados neste trabalho. Sabemos que Diogo Ximenes e a mulher7 (certamente também o filho Rodrigo) se deslocaram a Leão entre 1179 e 1180, vindo D. Diogo a ser nomeado tenente/vílico das Torres de Leão (1180-1181), portanto, Oliveira (1994: 430) e Monteagudo nomeiam a mãe como Guiomar Fernandes. Monteagudo (2008: 333-334) considera que a filiação desta a respeito de D.ª Fruílhe “é, cando menos, dubidosa”. No entanto, o casamento de Rodrigo Peres com D.ª Fruílhe e a filiação de D.ª Guiomar, relativamente a esta última, contam com registro documental (Salazar Acha 1984: 77-78, Canal 1995a: 153, Barton 1997: 297). A fórmula antroponímica de Rodrigo Dias lembra, como costuma acontecer, o nome do avô (Rodrigo) e, no patronímico, o do pai (Diogo) (cf. infra).

3

Maior Rodrigues foi filha de Rodrigo Moniz (← Múnio Rodrigues), um irmão de Elvira Moniz, a trisavó de Múnio Fernandes de Rodeiro.

4

5

Sobre esta personagem, vejam-se Barton (1989, 1997: 297-298) e Pizarro (1997: 817).

Esta última, também relacionada com o Mosteiro de Melom, foi a (re)fundadora do cenóbio de Ferreira de Pantom, em 1175 (FPantón, nº 7), instituição em que Guiomar Rodrigues irá ingressar algum tempo após a morte do marido (c. 1187-1188) (Canal 1995a: 156). D.ª Guiomar confirmou as disposições da mãe (entrega à Ordem de Cister) em 1196 (FPantón, nº 10). Alguns autores confundem o Mosteiro de Ferreira de Pantom com o de Ferreira de Palhares, mas devemos notar que o único feminino foi o de Pantom. Na origem deste equívoco está o fato de D.ª Fruílhe ter sido também protetora de Ferreira de Palhares, segundo se observa em duas escrituras de 1187.02.10 (FPallares, nº 19, 20).

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O casamento entre eles está documentado desde 1173.04.11, altura em que o rei Afonso VIII de Castela lhes cedeu a vila de Herce: “ego Ildefonsus [...] dono et concedo uobis

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responsável pelo governo e defesa militar da cidade (Canal 1995a: 154). A coincidência temporal entre a presença de Diogo Ximenes nessa urbe e o período em que Teresa Fernandes de Trava, prima de Guiomar, foi rainha (pelo casamento com Fernando II) leva a atribuir o cargo ocupado ao influxo de D.ª Teresa8. Por outro lado, Diogo Ximenes, provavelmente nesse mesmo período, conseguiu uma série de castelos no Alto-Esla (permutados com Afonso VIII por vilas no nordeste peninsular), numa região complementar àquela ocupada pelos Cabreras-Vélaz. A contiguidade geográfica não é o único elemento que aproxima D. Rodrigo dos Vélaz-Cabreras. Lembremos que D.ª Guiomar estivera casada em primeiras núpcias com um tio-segundo, D. Fernando Ponce “o Maior”, filho do conde Ponce II Geraldo de Cabrera e da primeira mulher, Sancha Nunes de Celanova. Desse casamento, anulado por motivos de consanguinidade, nasceu D. Fernando Fernandes, que foi meio-irmão de Rodrigo Dias dos Cameros e, ao mesmo tempo, primo de João Vélaz. A conexão entre os ascendentes de Guiomar Rodrigues (mãe de Rui Dias) e os de Sancha Ponce (mãe de João Vélaz) reflete-se em duas doações relativas à mesma entidade fundiária. Uma delas é efetuada pelo conde D. Rodrigo e Fruílhe Fernandes (Oseira, nº 31 [1155]) e a outra por D.ª Sancha Ponce de Cabrera e os filhos [D.3], sendo beneficiários os mosteiros premostratenses de Retuerta e S. Leonardo de Alba de Tormes9, respetivamente. A demarcação das propriedades em questão, idêntica nos dois escritos, assegura que pertenciam de modo conjunto a ambos os grupos familiares10.

Didaco Xemenez, et uxori uestre domina Giomar, et filiis et filiabus uestris et universe succesioni uestre [...] uillam illam que uocatur Erce” (Rioja, nº 259). Esta é a opinião de González (1960: 319), que considera erradamente Teresa e Guiomar como irmãs. Lembremos que a rainha Teresa Fernandes de Trava estivera casada com Nuno Peres de Lara, o que explica, como nota esse estudioso, o parentesco dos Cameros com os Laras.

8

Note-se o interesse pela reforma premostratense que, de modo habitual, se associa aos Ansures-Armengóis (Alonso Álvarez 2007: 25-55).

9

Essas posses passaram, em 1162, a Osseira por uma permuta com o abade de S. Leonardo (Oseira, nº 39). O domínio conjunto desse patrimônio parece remontar aos antecedentes familiares comuns de Fruílhe Fernandes e de Sancha Nunes (mãe de Sancha Pon10

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A primeira presença histórica conhecida de Rodrigo Dias, em 1182.02.14, ocorre num ato documental [D.17] pelo qual o abade de Santa Maria de Montes de Oca vendia a Lamberto, abade de Monte Laturce, uma herdade que pertencera a Diogo Ximenes: “Y todo esto hacemos por la mediacion del mismo señor don Diego Ximenes y por concession suya y de su muger doña Guiomar, de su hijo don Rodrigo Diaz, de sus hermanas, hijos y parientes de todo su linage”11. O núcleo arquivístico de Monte Laturce contém múltiplos registros relativos ao trovador (Garcia Turza 1995: 243), que o apresentam como: “señor de Yanguas” (1197), “señor de Jubera y Cameros” (1217), “señor en Cameros y Rio Leza” (1226), “señor de Yanguas y Cameros” (1226). Também surge, com alguma, frequência na documentação régia castelhana desde 1186 até 1230.06.30 (González 1960: 320). Quanto a cargos institucionais, sabemos que foi tenente de Afonso VIII em Logronho (1202, 1214), Nájera (1203), Calahorra (1214) e Sória (1214)12. Ele poderá ter exercido essa mesma função institucional na própria Galiza, se o identificarmos com o Rodrigo Dias que, em 1201, aparece como tenente de Sárria e Montenegro (Jular 1990: 84), distritos tradicionalmente associados aos Travas e Vélaz. Aliás, a presença do próprio D. Rodrigo na Galiza está provada, em 1199, quando D.ª Guiomar se comprometia a cumprir as mandas testamentárias da avó do poeta respeitantes ao mosteiro de Meira [D.25]. Pelo casamento com Aldonça Dias, filha de Diogo Lopes de Haro e de Toda Peres de Azagra, Rodrigo Dias estabeleceu ligações familiares com os Azagras, com os Haros e reforçou as que já tinha com os Vélaz e os Travas. Lembremos, em primeiro lugar, que o trovador Gonçalo Ruiz,

ce), enquanto membros da estirpe dos Celanovas. Também pode ser atribuído aos Travas, família a que pertenceu Rodrigo Peres “o Veloso” e os filhos de D.ª Sancha, mulher de Vela Guterres. Lembremos que D. Rodrigo, como patrono do Mosteiro de Monte Laturce, deu esse cenóbio à Ordem de Cister em 1203 (MLaturce, nº 57). Segundo se depreende do seu testamento, pediu para ser enterrado nele (D.36).

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Regnante Adefonso rege [...] Dominante sub eo in Lucronio, Roderico Didaci” (Rioja, nº 409 [1202]), “dominando en Logroño y en Calahorra y en Soria y en ambos Cameros” (MLaturce, nº 61 [1214]). 12

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referido por Peire d’ Alvernha em Cantarai d’aqestz trobadors, foi identificado com Gonçalo Ruiz de Azagra (Asperti 2001)13, documentado na corte de Navarra (alferes de Sancho VI [1157-1158]), na de Castela (1169) e na de Galiza e Leão (alferes de Fernando II [1180-1182]). Ele era irmão de Pedro Ruiz de Azagra14 (primeiro senhor de Albarracín e pai de Toda Peres de Azagra) e tio por afinidade de Rodrigo Dias15. Como demonstrou Stefano Asperti, em face à hipótese defendida por Menéndez Pidal (1991: 162), é muito provável que se trate de um poeta em provençal16. Relativamente a Diogo Lopes de Haro (1168-1214) – sogro de Rui Dias –, antes de mais, devemos lembrar que pertenceu por via materna aos Travas-Vélaz. D. Diogo era filho do conde Lopo Dias (1124-1170) e da galega Aldonça [Gonçalves] (1162-1217)17 (← Gonçalo Fernandes de Trava & Elvira Rodrigues {Vélaz})18. Diogo Lopes de Haro, senhor de Biscaia

13

Bertran de Born também alude a ele em Quan vei pels vergiers desplegar.

A presença de Pedro Ruiz de Azagra no texto de Bertran de Born permitiu, precisamente, apurar a identificação histórica de Pedro Ruiz (Asperti 2001: 52-53). 14

A família aparece como uma grande protetora da Ordem do Templo (Almagro Basch 1956). Dois dos seus membros, Fernando Rodrigues e Pedro Fernandes de Azagra, formaram parte da Ordem de Santiago em finais do séc. XII (Rades 1572: 19v). Segundo outros autores, tratar-se-ia de Gonçalo Ruiz de Bureba (← Rodrigo Gomes de Bureba & Elvira Ramires, irmã do rei Garcia VI de Navarra) que esteve casado com Sancha Fernandes (← Fernando Peres de Trava & Teresa Afonso de Portugal). Sobre o grupo familiar dos Azagras, veja-se Canellas López (1985).

15

16 “Inoltre, sempre la modalità dell’ invio di Bertran fa ritenere che Gonzalo Ruiz de Azagra non solo avesse una certa familiarità con la lírica cortese, ma che anzi la praticasse («aprenda»). Trova così una conferma l’ opinione dei più che hanno ritenuto che anche i due iberici presenti nella satira di Peire d’ Alvernhe componessero in lingua d’ oc, o quantomeno si sforzassero di farlo, finendo proprio per questo col venire dirisi; diviene, di contro, ancora più gravoso l’ onere della prova per i sostenitori dell’ ipotesi che fa di «Gossalbo Rois» il primo autore lirico a noi noto che componese in una lingua iberica. È invece da sottolineare, in positivo, la conoscenza della lirica trobadorica e della sua lingua in territori pirenaici, in specie della Navarra, collocati lungo il Cammino de Santiago e naturalmente aperti verso i territori vicini del Béarn e della Guascogna” (Asperti 2001: 56). Lembremos, como se indica, que ele foi alferes de Fernando II numa altura em que o galego-português já era língua da poesia trovadoresca. 17 O casamento deverá ter ocorrido c. 1150. Veja-se Canal (1995a), Barton (1997: 263), Alonso Álvarez (2004: 26-32).

Estefânia Lopes, irmã de D. Diogo, esteve casada com Fernando Ponce de Cabrera “o Menor” (cf. supra), tio do trovador João Vélaz. 18

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e Nájera19, ficou conhecido como o nobre hispânico que teve um contato mais direto e intenso com os trobadors, recebidos generosamente na sua corte para cantar as glórias do senhor de Haro. Entre eles, encontramos os nomes de Rigaut de Berbezilh, Peire Vidal, Ramón Vidal de Besalú ou Aimeric de Peguilhan (Alvar 1977: 143-147, 163-164)20. Os elementos analisados levam-nos a compartilhar, pelo menos em parte, a opinião de Asperti (2001: 57) quando considera Diogo Lopes de Haro como: “figura probabilmente non secondaria nel processo di radicamento della tradizione lirica autoctona in galego”. Conhecemos vários filhos de D. Rodrigo: Simão (herdeiro do senhorio), Álvaro e Diogo Rodrigues. No testamento (D. 36), D. Rodrigo parece aludir a uma filha que se criava no palácio dos infantes (galaico-) leoneses: “filie quam habeo in domo infancium de Legione”. O dado conta com um grande interesse por evidenciar que o senhor de Cameros, apesar da condição de súdito do rei castelhano, mantinha laços diretos com a corte de Afonso IX. No mesmo sentido devemos interpretar o fato de D. Simão Rodrigues ter desposado Sancha Afonso, filha natural desse monarca e de Teresa Gil de Soverosa (meia-irmã do trovador Vasco Gil, cf. infra).

Entre trobadors e trobadores O próprio Rodrigo Dias aparece como um dos mecenas do fenômeno trovadoresco, tendo sido citado por Elias Cairel (1204-1222), num sirventês composto provavelmente na corte leonesa (Alvar 1977: 153, 19 D. Diogo foi alferes (1183-1187, 1188-1199, 1206-1209) de Afonso VIII de Castela e tenente em Almazán, Bureba e Castela a Velha, Sória, Nájera, Rioja, Trasmiera etc. No âmbito galaico-leonês, ocupou as tenências leonesas de Salamanca (1187), Leão (1204), Toro (1204-1206), Estremadura (1205-1206) e a galega de Sárria (1204).

Miranda (2004: 43, n. 79) julga que o “En Diego” elogiado por Peire Vidal, na composição Car’ amiga dols’ e franca, deve ser identificado com Diogo Ximenes dos Cameros, o pai de Rui Dias dos Cameros, e não com Diogo Lopes. A base para essa suposição estaria numa alegada incompatibilidade cronológica entre o senhor de Haro e o trovador provençal apontada por Carlos Alvar. Porém, houve um lapso na interpretação, já que Alvar (1977: 145, nº 29) – no excerto citado por Miranda – não se está referindo a Peire Vidal, mas a Rigaut de Berbezilh: “Me resulta difícil admitir esta hipótesis, pues indicaría que Rigaut y don Diego se conocieron antes de 1160 [...]”. De fato, as biografias de Peire Vidal (1183-1204) e de Diogo Lopes de Haro são, em boa medida, paralelas. 20

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Riquer 1983: 1144-1145), e por Aimar lo Negre (1212-1219): “Cel q’ es francs, cars e bos, / Roiz Dies vol qu’ eu chan” (Riquer 1983: 1145, n. 4; Miranda 2004: 43). É possível que seja ele – ou um seu parente – o “Guidefre des Gamberes” mencionado por Raimon Vidal de Besalú (1212-1252) e ainda o “Roiz Perez dels Gambiros” a que se alude na Vida de Guilhem Magret (1196-1204). Contudo, como já foi frisado, discordamos do posicionamento que pretende situar a origem da lírica galego-portuguesa na esfera curial de Rodrigo Dias, supondo uma associação de João Soares de Paiva a esse último21. Segundo essa proposta, a motivação histórica para a composição satírica deste último teria sido uma ação bélica do rei de Navarra contra as terras riojanas vizinhas, que pôde lesar algum tipo de patrimônio do Paiva na zona dominada por Rodrigo Dias. Essa conjetura não se coaduna com os dados históricos, nomeadamente com aquilo que sabemos sobre o relacionamento entre D. Rodrigo e o rei navarro. De fato, como foi acima notado, conhecemos um ato documental pelo qual o senhor de Cameros e a mulher vendiam a esse monarca diversas propriedades nas imediações do rio Ebro, sugerindo um ambiente de colaboração entre ambos que vai de encontro à atitude anti-navarra de Ora faz’ ost’ o senhor de Navarra. Uma das cláusulas do testamento de Rodrigo Dias [D.36] (falecido c. 1230) prevê a entrega ao mosteiro cisterciense de Alcobaça de duzentos áureos no aniversário da sua morte. A conexão com essa abadia poderá ser o resultado dos fortes vínculos do avô, Rodrigo Peres “o Veloso”, com a monarquia lusitana (cf. infra)22. Por outro lado, não será de esquecer que os Cameros, certamente por influxo de Guiomar (Alonso Álvarez 2007: 667), propiciaram a implantação de Cister com a entrega do cenóbio de S. Prudêncio de Monte Laturce a essa ordem em 1181. J. C. Miranda (2004: 38), um dos promotores dessa suposição, manifesta-se em termos muito categóricos a esse respeito: “Com os dados actualmente disponíveis, não nos parece existir qualquer alternativa minimamente credível à possibilidade de João Soares ter escrito o seu texto junto daquele poderoso magnate e trovador, sendo a relação entre estas duas personagens o ponto de partida para a compreensão das circunstâncias que levaram ao surgimento do primeiro núcleo trovadoresco em galego-português”. 21

Garcia Mendes de Eixo, descendente desse mesmo Rodrigo Peres, aparece também vinculado ao Mosteiro de Alcobaça, onde jaz sepultado. 22

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Em vários pontos deste trabalho temos notado a existência de afinidades entre os meios sociais permeáveis ao lirismo galego-português e várias ordens militares. Esta circunstância também se verifica no grupo familiar de Rodrigo Dias, já que um dos seus irmãos, Fortum Dias, ingressou como “treze” na Ordem de Santiago em 118423. No entanto, os vínculos de Rodrigo Dias com as ordens militares poderiam ter sido ainda mais estreitos se fosse possível confirmar que ele próprio foi comendador-mor (1198-1206) e mestre da Ordem de Calatrava (1206-121224). Rades (1572: 23r) menciona um mestre denominado Rui Dias originário de Yanguas no senhorio dos Cameros: El sexto maestre de Calatrava y segundo de los de Salvatierra fue don Ruy Diaz natural de la villa de Anguas que deve ser la que en este tiempo se dize Yanguas, en el antiguo señorio de los Cameros... Fue electo en la era de mill y dozientos y quarenta y quatro años, año del Señor de mill y dozientos y seys, aviendo governado la Orden antes desto, con titulo de lugarteniente de Maestre. Rodrigo Dias dos Cameros era, como vimos, conhecido como senhor de Yanguas, vila situada na vertente soriana dos Cameros, conforme se deduz do seu testamento e doutros diplomas do período25. Essa identificação parece

23 “Don Fortun Diaz Treze. Este Cauallero paresce hauer tomado el habito desta Orden año del señor de .1184. por vna escriptura en que don Diago Ximenez su padre señor de los Cameros, y doña Guiomar su muger dieron a esta Orden ciertos heredamientos en Torquemada, que se anexaron al hospital de Villamartin. Y dize que los dieron por amor de Dios, y por honra de señor Santiago, donde esta freylado Fortun Diaz su hijo. Fueron estos señores los que fundaron el monasterio de San Prudencio de la Orden del Cistel, cerca de Logroño: y padres de don Ruy Diaz señor de los Cameros, y de don Aluar Diaz y don Lope Diaz, todos bien nombrados en la Chronica del rey don Fernando el sancto”. (Rades 1572: 17v). No mesmo grupo de trezes encontramos um “Don Alonso de Camberos Comendador de Vcles”.

De acordo com Rades (1572: 30v), ele abandonou a direção da Ordem na sequência do ferimento que recebeu na batalha das Navas de Tolosa. 24

25 Na documentação de Monte Laturce encontramos diversos exemplos da associação de Rodrigo Dias a Yanguas: “señor de Yanguas Ruy Diaz” (MLaturce, nº 55 [1197]), “señor de Yanguas y en Cameros don Ruy Diaz” (MLaturce, nº 68 [1226]). O próprio Rades (1572: 41r) alude a uma escritura que evidencia a pertença da área de Yanguas aos descendentes de Rodrigo Dias e, ao mesmo tempo, sublinha a existência de ligações entre a Ordem e essa linhagem: “Era de mill y dozientos y ochenta y quatro, don Simon Ruyz vendio al maestre do Fernando Ordoñez para su Orden la villa de y castilo de Encisso,

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ser contrariada pela própria informação de Rades (1572: 29r), que alude ao senhor dos Cameros, como personagem diferente do anterior, pela sua participação na batalha das Navas de Tolosa: “A vn lado yua don Ruy Diaz señor de los Cameros, con los concejos de Soria, Logroño, Nagera, y otros pueblos”26. Lembremos que Gonçalo Eanes da Nóvoa, mestre da Ordem de Calatrava entre 1218 e 1232, aparece relacionado com vários trovadores galego-portugueses (cf. supra).

2. Garcias Menendi, felicis recordationis Em contraste com o que carateriza o conjunto de poetas contemplados neste trabalho, a integração de Garcia Mendes de Sousa (1186-1239) na tradição manuscrita remonta a uma “compilação de reis e magnates” (Oliveira 1994: 193-194)27. Conservamos apenas uma composição da sua autoria redigida numa modalidade linguística qualificada como provençal ou “lemosino (catalanesco)” por Carolina Michaëlis (1904: 327). As vicissitudes da transmissão manuscrita deturparam de tal maneira o texto que custa decifrar aquilo que, na verdade, foi criado pelo senhor de Eixo: Ala u jaz la Torona e sos parens, que son tans, e la terra es trop bona e ja quites son los mans, aora.m volh tornar a Sousa, a lo mon logar que m’ adouça e.m saudona. La sang que me ten me sona que torne per un Natal en la folha assi verdona que nulh temps on lhi fai mal,

entre Yanguas y Prexamo, por ocho mill marauedis alfonsies. Dize la escritura que era hijo de don Ruy Diaz señor de los Cameros y de doña Aldonça su muger, hija de Diego Lopez de Haro, señor de Vizcaya”. 26 O mesmo acontece no referido à tomada da vila de Calatrava, onde se fala de “Don Ruy Diaz, maestre de Calatrava, con los suyos” e de “Ruy Diaz señor de los Cameros, don Alvar Diaz y don Lope Diaz sus hermanos” (Rades 1572: 26v-27v). 27

Sobre a biografia desta personagem, veja-se Ferreira (2009: 244-250).

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toda.n se dev’apagar: que nulh’ om non lhi a chatar Acho.nten e es tro

bona que mal es so d’ asembrar las faisons de la Torona a qui no.n pot gazalhar28.

Documentado na corte de Sancho I, sabemos que morreu em 1239.02.27 e foi enterrado no mosteiro de Alcobaça. No seu túmulo, uma legenda reza: “Era MCCLXXVII, tertio kalendas martii, obiit domnus Garcias Menendi felicis recordationis. Comitis domni Menendi filius et pater comitis domni Gundisalui. Anima eius requiescit in pace”29. A sua biografia é, em termos gerais, conhecida, mas existem alguns aspetos escassamente lembrados que podem explicar a participação de D. Garcia no trovadorismo, para além dos circunstancialismos em que essa atividade poética se tenha desenvolvido. O dado de maior pertinência tem a ver com os seus ascendentes maternos, que apontam, mais uma vez, para a família dos Travas. Com efeito, há unanimidade nos Livros de Linhagens na consideração da mãe do trovador, Maria Rodrigues Veloso (mulher do conde Mendo Gonçalves I), como filha de D. Rodrigo “o Veloso”: Este el conde dom Mendo foi casado com Dona Maria Rodrigues, filha do conde dom Rodrigo, o Veloso, e fez em ela dom Gonçalo Mendes e dom Garcia Mendes (LV 5A1) Este conde dom Meendo, o Sousão, foi casado com dona Maria Rodriguiz, filha do conde dom Rodrigo o Velhoso, e de dona Meniha Froiaz, e fez em ela dom Gonçalo Meendez e dom Garcia Meendez [...] (LC 22D10) Noutro passo do próprio Livro Velho chega-se a precisar a integração familiar desse D. Rodrigo na linhagem dos Travas: Reproduzimos seguindo, em parte, Tavani (2002: 57-58). Também incorporamos algumas sugestões de Lopes (1998), Arias Freixedo (2004) e Miranda (2004: 168). Contudo, concordamos com Michaëlis (1904: 327) em que “tão viciada está que a tentativa de a restaurar completamente, talvez seja desesperada”. 28

29

Veja-se Michaëlis (1904: 327), Oliveira (1994: 348-349), Miranda (2004: 165-167).

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E saibamos do sobredito el conde dom Mendo, que foi casado com a condessa dona Maria Rodrigues, que foi filha del conde dom Rodrigo, o Veloso, que foi de Trava, e da condessa dona Alambre, que foi irmã d’ el rei de França, e fez i coatro filhos e uma filha: o primeiro houve nome dom Gonçalo Mendes, o outro dom Garcia Mendes... (LV 1U8).

Trata-se do, já citado, conde D. Rodrigo Peres “o Veloso”, filho de Pedro Froiaz de Trava e (meio-)irmão do conde Fernando Peres de Trava. Apesar de não contarmos com outros dados documentais para confirmar tal informação, é perfeitamente viável supor, em termos cronológicos, que D. Rodrigo, antes do matrimônio com Fruílhe Fernandes, já tivesse desposado uma senhora de identidade, como vemos, duvidosa30. O fato de um dos irmãos de Garcia Mendes ter recebido o nome de “Rodrigo” serve para apoiar a informação dos Livros de Linhagens31. Aliás, a trajetória política de D. Rodrigo, caraterizada em boa medida pelo suporte prestado à causa lusitana coligado ao conde Gomes Nunes de Celanova (senhor de Tui e Toronho), proporciona um quadro geopolítico no qual se pode inscrever o seu relacionamento com a nobreza portuguesa32. Por outro lado, devemos tomar em linha de conta que Garcia Mendes de Eixo casou com Elvira Gonçalves, prole de Gonçalo Pais de Toronho (← Paio Curvo): “E este dom Garcia Mendes de Eixo foi casado com dona Elvira Gonçalves, filha de dom Gonçalo Paes de Toronho, e fez em ela dom Mem Garcia e o conde Gonçalo Garcia e dom João Garcia, o Pinto, e dom Fernam Garcia Esgaravunha ...” (LD 5A2). O dado genealóA primeira notícia sobre o casamento de D. Rodrigo e D.ª Fruílhe remonta a 1155.12.15 (Oseira, nº 32), só três anos antes do seu desaparecimento na documentação. 30

Se um dos irmãos de Garcia Mendes de Eixo recebia o nome em lembrança do avô, o mesmo terá acontecido com Rodrigo Dias dos Cameros, neto desse mesmo Rodrigo Peres de Trava e da segunda mulher, Fruílhe Fernandes de Celanova (através da mãe, D.ª Guiomar Rodrigues de Trava) (cf. supra). 31

32 “The Galician [Rodrigo Peres de Trava] maintained close links with the Portuguese court, to which he was a regular visitor from 1128. On 28 September 1132 he was granted the villa of Burral by King Alfonso Enríquez in recognition of his loyal service; he held the lordship of Porto between at least 1132 and 1135; and later served as dapifer, or mayordomo, to the royal household between at least Nov. 1140 and Feb. 1141. When the Portuguese invaded Galicia en 1137, Count Rodrigo and Count Gómez Nuñez both lent their support, but once peace had been agreed with Alfonso VII in 1141 both paid a severe political price as a result” (Barton 1997: 297).

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gico tem um notável interesse porque liga Garcia Mendes de Eixo e os seus descendentes à linhagem de Paio Curvo, à qual também pertenceu o trovador Fernando Pais de Tamalhancos, neto de D. Varela Fernandes, um irmão desse mesmo Paio Curvo33. Lembremos, aliás, que a primeira mulher deste último foi Toda Moniz, sobrinha do arcebispo Gelmires e avó dos filhos de Garcia Mendes, Gonçalo Garcia e Fernando Garcia de Esgaravunha34. Mendo Garcia de Sousa, irmão dos anteriores, desposou Teresa Eanes Batissela (← João Fernandes Batissela & Maria Pais Ribeira), sobrinha-segunda do trovador Osório Eanes. Sabemos que Sancha Ponce de Cabrera, a mãe de João Vélaz, casou de novo, entre 1161 e 1164, após a morte do marido, Vela Guterres, mas não temos notícias que identifiquem de modo explícito esse segundo marido (cf. supra). Ora bem, a adoção do título de condessa por D.ª Sancha, a partir de 1164, junto com a denominação do filho deste último casamento, Soeiro Mendes, permitem concluir que se tratava de um conde “Mendo”. Consoante a opinião de Fernández-Xesta (1991: 68) e de Salazar Acha, a única figura histórica que satisfazia essas duas condições era o conde D. Mendo Gonçalves de Sousa, pai de Garcia Mendes de Eixo, que teria casado em primeiras núpcias com a viúva de Vela Guterres. Destarte, o senhor de Eixo estaria relacionado com João Vélaz através de Soeiro Mendes, meio-irmão de ambos35. Porém, Ferreira (2009: 159-160), embora deixe

33 Garcia Mendes de Eixo estabelecia, assim, um nexo com a linhagem de Gomes Nunes de Celanova, aliado do seu avô. Uma bisavó de Elvira Gonçalves, Urraca Gomes (mãe de Paio Curvo), foi filha de D. Gomes (& Elvira Peres de Trava). Notemos que no texto se alude, provavelmente, à Torronha (Burgueira, conc. Oia), local situado no antigo distrito de Toronho. Também se conhecem os topônimos Toronha (conc. Salzeda de Caselas) e Tronha (Ponte Areas) (González Montañés 2011: 75-77). 34 Airas Fernandes Carpancho também pertenceu à linhagem de Diogo Gelmires (Souto Cabo – Vieira 2003). 35 Fernandez-Xesta (1991: 71) considera que Soeiro Mendes foi “Tenente en Villalpando, Alférez del Rey Fernando II de León”. Ora, motivos de ordem cronológica levam-nos a duvidar dessa identificação. Segundo esse autor também seria a personagem homônima que em 1219 (Oseira, nº 190), ao lado dos irmãos (Rodrigo, Pedro, Urraca e Sancha Mendes), oferece a um seu parente, Mendo Salvadores, uma herdade na vila de S. Cristóvão de Eigom (Ribadávia). Um Soeiro Mendes obteve em foro uma casa em Trabadelo por parte da Sé de Santiago no ano 1200 e no ano seguinte vendia ao arcebispo de Santiago duas casas nessa mesma vila do Bierzo (Tombo C, fóls. 108r e 90v [Villafranca]).

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um “espaço para dúvidas”, presume que essa identificação “esteja errada”, já que D. Mendo só adotou a dignidade de conde a partir de 1188. Seja como for, é possível que na sua estadia fora das terras lusitanas (1211-1217), na sequência das dissensões políticas dos Sousas com Afonso II, Garcia Mendes tenha entrado em contato com o círculo cortesão dos Cabreras-Vélaz. Esse ambiente, permeado de cultura trovadoresca, terá sido afinal responsável, de um ou outro modo, pela matriz idiomática da cantiga que dele conservamos.

Roy de Spanha Esse texto é acompanhado de uma rubrica explicativa cujo conteúdo tem recebido interpretações díspares ao longo do tempo. C. Michaëlis (1904: 327) apontava que: A rubrica .. parece dizer Esta cantiga foi feita a Roy de Spanha em Monfalcó (?) seu condado dá margem a várias considerações. O hypothetico Monfalcó será Monfalcó de Agramunt, que não fica muito longe de Pauia? Este Roy será o trovador provençal Rodrigo? Relacionou-se D. Garcia antes de 1218 com o velho trovador João Soares de Paiva? Conheceu o Senhor dos Cameiros? o de Haro? e os provençaes e catalães da corte de En Peire II e do moço D. Jaime? São problemas que não sei resolver.

As propostas posteriores discriminaram a rubrica explicativa propriamente dita: “Esta cantiga foi feita a Roy de Spanha”, do assunto da segunda linha que estaria constituído por duas apostilas de Colocci (a nostri fa’l contrasto / con condado) (Fernández Campo 2008: 446). Oliveira (2001: 68) tentou identificar aquele Rui de Espanha com Rodrigo Dias dos Cameros ou com Rodrigo Gomes de Trava: Como a composição, feita fora de Portugal, é anterior a 1217 – data em que se conclui uma ausência do magnate de Sousa do território português que durou cerca de seis anos –, somente divisamos dois possíveis destinatários para esta dedicatória: D. Rodrigo Dias dos Cameiros ou D. Rodrigo Gomes de Trastâmara. Este acabava de suceder ao pai, o conde D. Gomes Gonçalves, na direcção do ramo familiar, e preparava-se para transformar a sua corte num importante centro de difusão da cultura trovadoresca galego-portuguesa; aquele era já elogiado por trovadores provençais como fazendo parte do mesmo meio. Neste contexto, como a dedicatória a D. Rodrigo Dias seria talvez mais aceitável, teremos de

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admitir igualmente que D. Garcia Mendes, após a sua saída de Portugal, se terá relacionado com o magnate de Cameros, embora não possamos precisar o local ou locais onde esses contactos se verificaram.

Porém, não conseguimos descortinar motivos que justifiquem a denominação “de Spanha” aplicada a qualquer um deles. A identificação de Espanha, de modo excludente face a Portugal, com os reinos que representam o antecedente histórico do atual Estado Espanhol é um fenômeno posterior à Idade Média; não faria sentido em boca de um português, ele também “espanhol”36. Em nossa opinião, é possível que estejamos perante um apelido linhagístico, visto a forma em foco ter sido utilizada com esta função. Assim, em 1196, num diploma emitido pelo rei Afonso II de Aragão em Monzón (Huesca), encontramos um Pedro de Espanha (“Petro de Yspania”), ao qual esse monarca cede vários castelos no Vall d’ Arán (Lleida)37. É possível que essa estirpe tenha algum tipo de relacionamento com a “ilustre familia compostelana de los Españas, los cuales dieron su nombre á una de las capillas de la Catedral [de Santiago] conocida también con el de Nuestra Señora la Blanca” (López Ferreiro 1905: 78). Esta linhagem, bem conhecida durante os sécs. XIV e XV, já em finais do séc. XIII tinha atingido uma notável projeção social, pois é nessa altura que João de Espanha funda a capela citada por López Ferreiro38. Aliás, um indivíduo com esse apelido (Pero d’ Espana) confirma em 1265 uma escritura lavrada em Ribadávia (DGP, nº 190), o que sugere algum tipo de ligação com a área ourensana vinculada, como vimos, às origens da nossa lírica. A família em foco será incluída por Molina (1550: 55r) no nobiliário da Descripcion del reyno

36 Lembremos que Camões (ainda) alude aos portugueses como “gente fortíssima de Espanha”. Segundo notou Alvar (1977: 296) numa análise sobre o significado de Espanha entre os trovadores provençais: “Más frecuentes son los textos en los que Espanha representa la suma de los reinos cristianos de la Península”.

“Ego Ildefonsus [...] rex Aragonum, comes Barchinone et marchio Provincie, concedo atque concedo vobis Petro de Yspania et boni homini tribus castrum de Senters et castrum de Bolsost [...] de Ponte Daros dorsum usque ad Daniliamum” (Alfonso II, nº 607). “Bolsost” e “Ponte Daros” correspondem atualmente a Bossost e Pont d’ Arrós. Lembremos que o Val d’Arán pertence do ponto de vista idiomático à área occitânica. Existiu um trovador provençal conhecido como Guiraut d’ Espanha, natural de Toulouse. 37

João de Espanha (“Iohannes de Yspania”) confirma uma escritura compostelana de 1321 (Tombo C, fól. 173r). 38

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de Galizia39: “Esta casa de los Españas es natural y son de la ciudad de Santiago de que ay buenos hidalgos y de antiguedad la qual parece es una principal capilla que tienen en la iglesia mayor de aquella ciudad junto a la del rey de Francia”40. Os dados anteriores vão ao encontro de uma sugestão de Miranda (2004: 171) que, atendendo à possível conexão literária com Aigua pueia contramon de Guilhem Magret, coloca a origem do texto no reino galaico-leonês: Se Garcia Mendes conheceu e se baseou no poema de Magret para celebrar o “canto do exílio”, como pensamos que sucedeu, então confirmar-se-á também que o local onde o Sousão se encontrava quando o redigiu era certamente o reino de Leão, em meios afectos à corte régia, e tê-lo-ia feito em 1217, pouco tempo antes de retornar a Portugal após uma ausência de cerca de cinco anos.

Levaron-na Codorniz O múltiplo relacionamento familiar de D. Garcia com os Travas poderá ser ainda corroborado por aquilo que conhecemos sobre o seu filho, também trovador, o conde Gonçalo Garcia (1229-1284). Como se sabe, o episódio argumental da única cantiga (satírica) deste autor, Levaron-na Codorniz, situa-se precisamente no paço de Rodrigo Gomes de Trava41, o

39 No “Nobiliário” da História de D. Servando (c. 1635) aparece também relacionada com Compostela: “Ten seu soar en Solovio e outro en Bonaval. E son venfeytores da eyreja do Apostol donde ten sua capela. Tran por divisa un ramo verde d’ ubas, e unas espigas de pan de trigo en escudo branco, e unha agia coronada en canpo d’ ouro, e un castelo e unha estrela” (Souto Cabo 2007: 79).

O poeta Abril Peres foi identificado por Oliveira (1994: 304) com um jogral (“D. Abril jogral”) que testemunha um documento redigido em Lisboa em 1221. Por essa carta, D.ª Guiomar Mendes de Sousa confirmava uma venda feita pelo irmão, D. Gonçalo Mendes, o que induz a situar o jogral na corte senhorial dos Sousas. Ora, a única composição que conservamos de Abril Peres é, como se sabe, uma tenção com Bernal de Bonaval, circunstância que poderia dar sentido ao hipotético relacionamento dos Sousas com a linhagem dos Espanhas (sediada na capital galega). Contudo, achamos muito improvável a identificação daquele jogral com Abril Peres. 40

“E o sobredito dom Rui Fernandez Codorniz, irmão de dom João Fernandes Batissela, foi casado com uma dona, e fege nela dona Maria Rodrigues Codorniz. E esta dona Maria Codorniz rouçou-a João Bezerra de casa de dom Rodrigo Gomes” (LD 20G3). 41

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que sugere a integração do poeta nesse mesmo ambiente42. Aliás, Maria Rodrigues, filha de Rodrigo Fernandes “Codorniz” raptada por João Bezerra –segundo se refere nesse texto –, pertencia à estirpe dos Limas, sendo descendente dos Travas (cf. infra). Sabemos que João (Nunes) Bezerra, provável raptor, tinha propriedades em Ribadávia, isto é, no mesmo espaço a que esteve ligada a família da sequestrada43. Se a atividade poética de Garcia Mendes de Sousa parece decorrer da sua relação familiar com os Travas e/ou com os Cabreras-Vélaz, é possível que, pelo seu lado, ele – ou o conjunto dos Sousas – tenha sido o vínculo que ajude a explicar a presença entre os nossos poetas medievais de, pelo menos, dois dos mais antigos trovadores de origem lusitana: Gil Sanches (← Sancho I de Portugal & Maria Pais Ribeira) (1207-1236) e Rui Gomes de Briteiros (c. 1220-1248). O primeiro casou com Maria Garcia de Sousa, filha de D. Garcia, segundo se refere nos Livros de Linhagens: “E dona Maria Garcia foi casada com dom Gil Sanches, filho d’ el rei dom Sancho, de gaança, e de dona Maria Paes Ribeira” (LD 5G3)44. Quanto a Oliveira (2001: 101, n. 5) propõe conciliar o conteúdo dos Livros de Linhagens (cf. supra) com a informação da rubrica atributiva a essa mesma cantiga (“Esta cantiga de cima fez o conde Don Gonçalo Garcia en cas Don Rodrigo Sanchez, por ũa donzela que levaron a furto, que avia nome Codorniz, e o porteiro avia nome Fiiz”, Lagares 2000: 115), onde se nota que esse texto foi composto em casa de D. Rodrigo Sanches, filho de Sancho I, morto em 1245. Esta última leitura fora considerada, pelo próprio Oliveira (1994: 355), erro por “Rodrigo Gomes”; mas é evidente que poderia tratar-se de dois planos diferentes: o local do acontecimento histórico e o da elaboração do poema. No entanto, se admitirmos que o rapto se obrou em casa de D. Rodrigo Gomes, o lógico é que o texto tenha sido produzido para o público do âmbito social em que se registrou aquele acontecimento. 42

A informação procede de dois documentos de 1202 e 1209 lavrados na vila de Ribadávia (Tombo C, fóls. 194r-v e 71v). O mais antigo registra a venda de uma vinha por parte desse mesmo João Nunes Bezerra: “Ego Iohannes Nunonis dictus Bezerra et uxor mea Aragunti Pelagii […] uobis domno Petro Artario ecclesie beati Iacobi canonico […] facimus textus scripture firmitatis de ipsa mea propria uinea quam habemus in ripa Minii, que iacet loco certo circam ipsam focem ubi intrat fluuius Auie”. No segundo, alude-se a uma vinha que pertencia a essa Aragunte Pais: “ipsa uinea quam habeo in ripa Auia in loco nominato Ganderela […] super carreiram, inter uineam Garsie Gundisalui et uineam Aragunti Pelagii, mulieris Iohannis Bezerra”. Segundo consta nesta última, o tenente de Ribadávia era o trovador Osório Eanes: “tenente Burgum Suerio Arie et Osorio Iohannis” (cf. supra). Oliveira (1994: 356) supõe que o raptor foi um João Fernandes Bezerra que confirma uma compra efetuada por Rodrigo Gomes em 1254.

43

Segundo o LV (1A 010), tratar-se-ia de uma relação doutro tipo: “Gil Sanches [...] foi chus honrado clerigo que houve na Espanha, e houve por barregam dona Maria Garcia”. 44

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Rui Gomes, Oliveira aponta que “pertencia certamente ao séquito militar desta linhagem [Sousas] como deixam entender não só o facto de o seu irmão ter sido armado cavaleiro por D. Gonçalo [Mendes de Sousa], como também o aparente assentimento que a linhagem dos Sousas acabou por dar ao «rapto» perpetrado pelo trovador na figura de D. Elvira Anes da Maia” (Ventura – Oliveira 1995: 76). Não podemos deixar de lembrar a presença de Rui Gomes de Briteiros na corte de Afonso IX, na qual chegou a exercer o cargo de mordomo em representação do infante D. Pedro Sanches, segundo ficou registrado numa escritura de 1226 confirmada, entre outros, por Rodrigo Gomes de Trava: “Domno Roderico Gomez tenente Trastamar et Montenegrum et Monterrosum [...]. Roderico Gomez de Briteiros tenente maiordomatum de manu infantis” (Afonso IX, nº 473)45.

3. Don Pedro Rodriguiz da Palmeira Pedro Rodrigues da Palmeira (1225), situado na TC entre João Soares de Paiva (nº 6) e Rui Dias dos Cameros (nº 8), perdeu as duas composições com que contava pela mutilação do setor inicial dos cancioneiros. Ele era bisneto de Rodrigo Froiaz (1102-1117), filho de Froia Bermudes de Trava e irmão de Pedro Froiaz46. D. Rodrigo dominava a área geográfica que vai de Pontedeume a Ortigueira e manteve diversos vínculos com dois mosteiros dessa região, Caveiro e Júvia, mas também com a Sé de Santiago (López Sangil 2002: 41-43). Uma irmã de Gil Sanches, Teresa Sanches, casada com Afonso Teles de Meneses, foi a mãe de Maior Afonso, a mulher de Rodrigo Gomes de Trava. Este último foi, portanto, sobrinho por afinidade de D. Gil. O infante D. Pedro Sanches desposou Aurembaix filha de Armengol VIII de Urgell, com o qual D. Pedro veio ser primo (por afinidade) de Rodrigo Gomes de Trava (cf. supra). Esses laços familiares e políticos relacionam Rodrigo Gomes de Briteiros com a geração com que se abre a tradição manuscrita e apoiam a hipótese, lançada por Michaëlis (1904: 336), segundo a qual teriam pertencido ao Briteiros as cantigas anónimas A 62-63. Rui Gomes ficaria, assim, situado no segmento que remete para uma cronologia mais recuada. 45

46 Num dos mais antigos registros documentais, em 1102, D. Rodrigo Froiaz aparece como almirante: “Facta carta testamenti in era Mª Cª XLª et quotum XIº kalendas aprilis, in tempore Adefonsi regis qui tenebat Tolleto, et Legione, et Gallecia. Comes domnus Petrus in Gallecia et frater eius, Rodericus Froyle, admirante” (TCaveiro, nº 131). Esse cargo parece estar associado à defesa das costas contra os ataques normandos.

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Do seu matrimônio com Gontinha Gonçalves da Maia resultaram, pelo menos, três filhos: Mendo, Gonçalo e Froia Rodrigues: “Rodericus Froyle habuit tres filios: Menendum Roderici et Gundisaluum Roderici et Froylam Roderici” (TSobrado, nº 212). Gonçalo Rodrigues [da Palmeira] (1112-1154), casado com Fruílhe Afonso de Celanova (← Afonso Nunes47), estabeleceu-se em Portugal nos inícios do séc. XII. Foi mordomo da rainha Teresa (1112) e governador de Refoios de Riba de Ave (1146), Penafiel de Bastuço (1146) e Vermoim (1128-1146), onde se situava a terra da Palmeira48. Filhos varões desse último foram Gonçalo (1154-1198), Fernando (1150-1177) e Rodrigo Gonçalves de Palmeira ou de Pereira (1177), governador do castelo de Lanhoso49. De acordo com a informação dos Livros de Linhagens, este D. Rodrigo terá sido o progenitor de Pedro Rodrigues de Pereira, governador de Trancoso e de Viseu (c. 1182-1183)50. Elvira Gonçalves da Palmeira (117751), irmã dos anteriores, casada com Rodrigo Nunes das Astúrias, foi a mãe de (um outro) Pedro Rodrigues da Palmeira –ou de Nomães – que morreu de amores (poéticos?) por Maria Pais (← Paio Curvo), a mulher do seu tio Gonçalo Gonçalves (LC 37E4)52. 47 Mattoso (1982: 118), com base nos Livros de Linhagens, supõe que foi filha do conde que denomina “Afonso Vasques de Celanova”. Porém, quanto a nós, esse conde foi provavelmente Afonso Nunes (1101-1135), um dos filhos de Nuno Vasques (Barton 1997: 227) (cf. supra).

Mendo Rodrigues [de Tougues], irmão do anterior, seguiu uma trajetória muito similar. Segundo os Livros de Linhagens, da sua união com Châmoa Gomes (← Gomes Nunes de Toronho) resultou Soeiro Mendes Facha, documentado na corte portuguesa entre c. 1156 e 1176. Veja-se Mattoso (1985: 178; 1988: 163-165). 48

49 Os Livros de Linhagens nomeiam D. Rodrigo Gonçalves como “da Palmeira” ou “de Pereira”. Ele foi, com efeito, quem deu continuidade à linhagem com esse novo apelido (Oliveira 1994: 424).

Veja-se Ventura (1992: 1023-1024; Mattoso 1982: 126-127, 1985: 178, n. 14). Notemos que, como é habitual na altura, a personagem que ocupa esse cargo não é caraterizada por qualquer apelido linhagístico: “Petrus Roderici tenens turres Troncoso conf.” (DPRégios, nº 343 [c.1180-1182]), “Ego Petrus Roderici terreVisei presidens conf.” (DPRégios, nº 352 [1183]). Ventura refere-se a ele como “Pedro Rodrigues da Palmeira” (cf. infra).

50

51 É neste ano que os quatro filhos ratificam a doação do couto da Palmeira ao Mosteiro de Nandim/Ladim (conc. Vila Nova de Famalicão) (Figueiredo 1800/I: 344).

Maria Pais, descendente de Gomes Pais, era também parente do próprio Pedro Rodrigues. 52

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Embora existam elementos para pensar que Pedro Rodrigues de Pereira e Pedro Rodrigues da Palmeira foram um único indivíduo53, as fórmulas onomásticas que lhes são atribuídas só permitem, em princípio, identificar o trovador com esse filho de Elvira Gonçalves (Oliveira 1994: 424)54. Ele poderá ser o Pedro Rodrigues que, junto com Pedro Mendes e o sobrinho (?), Martim Gonçalves [de Nomães?], se compromete, em 1225, na Igreja de S. Miguel de Guimarães e perante o arcebispo de Braga, a não ter malados nas herdades do mosteiro de Landim, fundado pelo avô, Gonçalo Rodrigues (Figueiredo 1800/I: 345, n. 140). O único registro documental – sem indicação cronológica – em que achamos o nome do trovador menciona um paço em Vila Nova (de Famalicão) que lhe tinha pertencido: “o [...] paaço de Vila Nova, o qual foi de don Pedro Rodriguiz da Palmeira que he no julgado de Vermue” [D.40]. Os dados relativos à mãe e a outros parentes da sua geração levam-nos a admitir a possibilidade de ele ter sido poeticamente ativo a partir de c. 1185.

O apelido linhagístico seria, na verdade, “Nomães”, atribuído nos Livros de Linhagens a Gonçalo Rodrigues de Nomães, filho primogênito de Elvira Gonçalves e Rodrigo Nunes. Por outro lado, só no Livro do Deão é que se alude explicitamente a esse “Pero Rodrigues, que morreo de amor” (LD 7G4) entre os filhos de Elvira Gonçalves da Palmeira: Gonçalo, Martim, Urraca e Guiomar Rodrigues. Pelo contrário, no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro só se fala de Gonçalo Rodrigues de Nomães, Urraca e Guiomar Rodrigues (LC 33A1-2). Nesta última obra, cita-se Pedro Rodrigues da Palmeira, mas apenas no episódio da “morte de amor” e sem explicar as origens familiares. Mattoso, no “Índice” de LC, identifica o da Palmeira e o de Pereira (p. 302). 53

D. Martim Rodrigues, bispo do Porto entre 1191 e 1235, foi também filho da anterior e irmão do trovador: “e outro filho houve nome dom Martim Rodrigues, que foi bispo do Porto” (LD 7G4). 54

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CAPÍTULO VI D. JUIÃO

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Cadeiral pétreo para o Cabido da Sé de Santiago (c. 1188-1211)

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1. O nome e a identificação do poeta A personalidade que se esconde sob a denominação de “D. Juano” (transmitida só pela TC1) permaneceu até à atualidade no âmbito do ignoto, cumprindo-se, assim, o vaticínio de Oliveira (1994: 377): “Será, certamente, muito difícil identificar este trovador de quem se conservou apenas o nome próprio”. O professor de Coimbra aventou, contudo, a identificação dele com um “Johanes Trobador”, referido em diploma de Santarém (1300), mas assumindo a impossibilidade de confirmar essa hipótese. Posteriormente (Oliveira 2001: 176-178), sem aduzir novos argumentos, foi incluído no grupo de autores a que se atribui o rótulo de “A implantação no Ocidente peninsular (1220-1240)”. Miranda (2004: 49) foi além das sugestões anteriores, vindo a presumir que se tratava de um jogral de origem castelhana: Uma outra figura nos parece dever ser tida em consideração ainda a partir dos dados exclusivos da Tavola Colocciana: referimo-nos ao D. Juano que antecede aqueles três trovadores: o Paiva, o Palmeira e o Cameros. Trata-se apenas de um nome, o que, à partida, poucas certezas induzirá. Mas não é lícito silenciar algumas consequências desse nome. Com efeito, Juano não é forma galego-portuguesa. Toda a documentação da época e os mesmos cancioneiros conhecem apenas as variantes alatinadas –Iohan, Iohannes, Johan-, ou então a forma evoluída Joan. A área do castelhano é consistente no fechamento da primeira sílaba, apresentando sistematicamente Juan, com o qual Juano parece aparentar-se. Na nossa opinião, tendo em atenção que o honorífico “Dom” vai a par com a ausência de patronímico ou de terra de origem, será certamente um título irónico, como o que mais tarde foi atribuído a D. Bernaldo de Bonaval, o que significa que esta personagem poderia não ser mais do que um jogral. A forma anómala do seu nome justificar-se-ia também nesse contexto.

A proposta de Miranda deve, no entanto, ser repensada atendendo aos seguintes dados: 1. Conforme o que é prática usual, os nomes – topônimos e antropônimos – aparecem de modo sistemático nos cancioneiros sob a forma galego-portuguesa, com independência da sua origem geográfica ou linguística: Rodrigo Diaz dos Cameyros, Johan Vaasquiz de Talaveyra etc.

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De acordo com essa tabela, estava representado apenas com uma cantiga.

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2. Na documentação castelhana correspondente ao período de 1180-12502, as formas desse antropônimo com –o– (Johan/Joan), com 52%, ultrapassam a porcentagem daquelas com –u– (Juan/Juhan). 3. O uso do título “Dom” não era incompatível com a ausência do patronímico, segundo demonstram as fontes escritas do período, nem há quaisquer indícios de que possa ter sido utilizado com um valor irônico fora da ficção literária (cf. infra). 4. A presença de um jogral castelhano nesta zona da tradição manuscrita entraria em flagrante contradição com o que, como vimos, é norma desse segmento, onde encontramos trovadores de origem aristocrática e ascendência galega (ou galego-portuguesa). 5. A ausência do patronímico, conquanto não seja excepcional naquela altura3, pode ser um indício para pensarmos que a extração social de D. Juião não era equiparável à do resto dos trovadores considerados.

Távola Colocciana, fól. 300r

Parece-nos evidente que sob a forma (estropiada) D. Juano da TC se encontra o antropônimo “Juião”, resultado patrimonial (